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PABLO ASSUMPÇÃO BARROS COSTA
CORPO E CIDADE
COMUNICAÇÃO E CONTAMINAÇÃO
Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo
2006
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PABLO ASSUMPÇÃO BARROS COSTA
CORPO E CIDADE
COMUNICAÇÃO E CONTAMINAÇÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Comunicação e Semiótica - área de
concentração Signo e Significação nas Mídias, sob a
orientação da Profa. Doutora Christine Greiner.
Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo
2006
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RESUMO
A pesquisa investiga a vinculação entre corpo e cidade como um acoplamento
estrutural sistêmico no qual o fluxo de informações se organiza como processo
comunicativo. Para tanto, analisamos o conceito de “ambiente” a partir de algumas
teorias ligadas à biossemiótica (Uexküll, 2004), ao conceito de "embodiment" conforme é
proposto pela teoria do corpomídia (Katz e Greiner, 2005), os conceitos de signo e
semiose segundo comentadores de C. S. Peirce (Nöth, 1990, Queiroz, 2004) e algumas
questões levantadas a respeito da representação na arte e na construção teórica.
O estudo da relação entre o corpo e o espaço como processo comunicativo
evidencia a ambivalência da organização das informações e do conhecimento. Sugere que
a comunicação se estrutura como uma performance. Como resultado da pesquisa
realizamos, ao lado da discussão teórica, duas leituras escritas da relação entre corpo e
cidade e três trabalhos de vídeo. As leituras escritas são exercícios que combinam
algumas referências teóricas à memória, à confissão e à ficção para representar a
performance de duas organizações espaço-temporais da cidade de São Paulo: um
cemitério e um ônibus na madrugada. O primeiro vídeo é sobre a cidade de Fortaleza e
cria um embate entre a narrativa auto-biográfica e a imagem institucionalizada da
cidade. O segundo vídeo conecta o espaço-tempo do cemitério em São Paulo à narrativa
científica da evolução. Para finalizar, é proposta uma instalação audiovisual sobre as
árvores da cidade de São Paulo.
Palavras-chave: comunicação, corpo, cidade, performance, organização, estética.
Linha de pesquisa: Epistemologia da comunicação e semiótica das mediações
Área de concentração: Signo e significação nas mídias
ABSTRACT
The research investigates the connection between the body and the city as a
systemic structural coupling through which the flux of information is organized as
communicative process. In order to do so, we analyze the concept of “environment”
according to a few bio-semiotic theories (Uexküll, 2004), the concept of “embodiment”
assessed by the bodymedia theory (Katz and Greiner, 2005), the concepts of “sign” and
“semiosis” according to C. S. Peirce’s commentators (Nöth 1990, Queiroz 2004), and a
few important questions raised regarding “representation” in art and theory.
The study of the relationship between body and space as communicative process
provides evidence of the ambivalence involved in the live organization of information
and knowledge. As the result of the research, we provide the theoretical discussion plus
two performative writing exercises and three art works in digital video about two cities
that were objects of our study: Fortaleza and São Paulo. The art works combine
theoretical references, memory, personal confession and fiction.
Key-words: communication, body, city, performance, organization, aesthetics.
“A arte é, essencialmente, a expressão de algo fundamental
na natureza. Nela, vemos irreversibilidade e
imprevisibilidade” Ilya Prigogine (1986: 237)
SUMÁRIO
NOTA PRELIMINAR.......................................................................................................02
INTRODUÇÃO.................................................................................................................04
O CORPO DA TEORIA Da semiose à coreografia do rastro........................................10
1. Sobre como o corpo organiza mundo: escritura e performance........................10
2. Sobre a representação como marca do “real”....................................................15
3. Sobre o corpo e a escritura como rastros...........................................................26
SÃO PAULO I - Emergências e Coações, uma ficção científica......................................32
O CORPO DA CIDADE (se a cidade tem um corpo, façamo-lo dançar).........................45
1. O que é Umwelt.................................................................................................46
2. Embodiment, ou como o corpo funciona...........................................................52
3. Da espacialidade dos sentimentos......................................................................58
Nota sobre a ciência e o mistério.......................................................................................63
SÃO PAULO II - Como Apanhar o Jaçanã e encarnar a redenção: da empatia como
protesto político.................................................................................................................65
FORTALEZA I - Fortaleza, Terra da Luz (performance)................................................68
SÃO PAULO III - Como alinhar a cidade de São Paulo, o cérebro, as árvores e 165
aparições da Virgem Maria: a revanche do corpomídia (ou da conectividade como
parâmetro evolutivo sistêmico)..........................................................................................70
PARA NÃO CONCLUIR (porque ao criar trabalhos artísticos organizamos um novo
mundo)...............................................................................................................................73
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................77
NOTA PRELIMINAR
Do conceito de Comunicação:
Ontem peguei o metrô. Entre o pendular de troncos e pernas e bolsas, dei conta de um
homem cego, quase junto a mim, que segurava seu cão de raça pela coleira. O cão, que
tinha olhar atento, guiava aquele homem cego desde pensei a eternidade.
O animal não parecia incomodar-se com a profusão de estímulos do ambiente, com os
corpos todos mais altos que ele, com o incômodo rugir dos trilhos, as conversas
espalhadas e fundidas num murmúrio coletivo e impessoal. Estava ali como um
verdadeiro guia, uma pedra filosofal, e sequer mirava seu dono. O corpo do bicho não
denunciava qualquer nuance de carência, viajava em sua postura de superior e desafetada
sapiência. Gostei dele. Parecia uma montanha viva a guiar um oceano.
Ainda em movimento, o metrô avisou nas caixas de áudio a chegada da estação Paraíso.
O cão de pronto virou-se para a porta que iria abrir-se. Neste instante olhou para os lados.
O cego, depois do cão, também se preparou: animou e cuidadosamente girou o corpo de
modo a encarar a mesma porta, que se abriu em poucos segundos.
Mais da metade dos passageiros do vagão saiu apressando-se através da porta, dirigindo-
se para o canto da plataforma onde havia uma escada rolante. Em ritmo menos eufórico,
por passos quietos e medidos, mantendo uma distância estudada entre ambos, deslizavam
a montanha e o oceano.
Não se afobavam, exibiam movimentos precisos e me ensinavam, entre outras coisas, a
imagem do estar alerta. Como o ritmo da massa era outro, o cego e seu companheiro
foram naturalmente ultrapassados pelas nucleações de adolescentes com mochilas,
mulheres de salto e ternos abotoados, e homens com e sem gravatas.
O robusto cão, para quem eu dedicava uma atenção de orgulhoso irmão mais velho, não
hesitava em nada, seguia na direção exata da escada rolante. O cego, que se prestava à
sinalização sutil e às tomadas de decisão do animal, não tinha porque preocupar-se; tinha
um guia cuja coleira ele segurava com a mão direita bem firme. Se o animal esquivava-se
de uma lixeira colada à parede, o cego repetia a ação.
Eu não desci na estação Paraíso, e quando o vagão fechou as portas e começou a
deslocar-se rumo à Ana Rosa eu ainda vi pela janela os dois movendo-se com eficiência e
entendimento mútuo, rumo aos seus compromissos na cidade. A relação entre aqueles
dois atingiu meu corpo, meu pescoço girava para olhá-los até onde podia.
No silêncio ativo e na invisibilidade do cuidado que se construía entre os corpos do cego
e do seu cão vidente, vibrava, chocante e irrevogável, a comunicação.
INTRODUÇÃO
Esta é uma dissertação sobre a comunicação entre corpo e ambiente. A ontologia
sistêmica (Bunge 1977, 1979) explica que a diversidade da organização material força a
relação com o outro, mesmo a colaboração, e daí emerge a comunicação como ação
complexa e organizacional que busca assegurar autonomia e a sobrevivência do sistema.
Mas o que teríamos a dizer exatamente sobre a comunicação que incessantemente
permite a organização de um corpo numa cidade e a organização da cidade em um corpo?
A proposta teórica nasceu de uma pesquisa artística
1
, por isso é um trabalho que
leva em consideração as especificidades da atividade teórica e da atividade artística e, ao
mesmo tempo, examina as possibilidades colaborativas entre elas. Escrita por um artista
que há alguns anos produz seus trabalhos acerca das relações entre o corpo e a cidade, a
dissertação propõe que a prática, mais especificamente a prática artística, possa consistir
num dos modos da organização teórica.
O percurso escolhido passa pela leitura de duas cidades que foram “sujeitos” da
pesquisa (Fortaleza e São Paulo) e, de modo análogo, passa pela leitura de conceitos
introdutórios da semiótica peirceana (os conceitos de semiose e signo), pelo conceito de
embodiment proposto pelas ciências cognitivas e os estudos do corpo, o conceito de
performance, conforme a ontologia proposta por Peggy Phelan (1997, 2001), e a idéia de
performatividade presente na filosofia analítica de J. L. Austin (1975) e apropriada, a
partir da crítica de Jacques Derrida (1982) a Austin, pelos chamados estudos da
performance (performance studies).
1
Iniciamos esta pesquisa sobre corpo e cidade em um projeto artístico em Ljubljana (Eslovênia) em junho
de 2002, posteriormente aprofundada no projeto multidisciplinar S.E.R. Fortaleza, que durou 1 ano (Bolsa
Vitae 2003), e continuamos a pesquisa, agora vinculados ao programa de mestrado em comunicação e
semiótica da PUC-SP, com o projeto São Paulo (Bolsa CNPq, 2004-06).
Porque tivemos a oportunidade de estudar a teoria da performance
2
, passamos a
valorizar um aspecto fundamental apontado por ela, que é exatamente o que a
temporalidade da performance acarreta para a prática teórica. Resumidamente, a arte de
performance, que está na origem da teoria, é um evento que ocorre na suspensão entre a
matéria física “real” do corpo e a experiência psíquica daquilo que será “encenado”.
Como aponta Peggy Phelan (2001: 167), a performance, como evento, declara que o Ser
é representado (performed) e tornado temporariamente visível nesse espaço do “entre”,
em suspensão. A teoria da performance, radicalmente, propõe levar à sério a
incapacidade dos instrumentos empíricos de assegurar esse “real” suspenso, performed.
Phelan diz que os críticos e os teóricos da performance, ao se dedicarem a
registrar sempre só o “lado psíquico” do evento ou, ao contrário, só o seu lado
“puramente material”, cometem uma boa dose de negligência. Fatalmente, há sempre
algo invisível num evento em performance, cuja ontologia implica numa materialidade
necessariamente precária, temporal e evasiva. A teoria da performance, entretanto,
denuncia que é precisamente nesta contingência radical do “real” psíquico e físico que o
sujeito é produzido. Performance e subjetividade apresentam ontologias análogas, e a
“representação”, como também atesta a semiótica, não consegue reproduzir este “real”,
sendo sempre parcial, um arranjo de significado que só funciona condicionalmente. O
limite na representação deve ser discutido, é um limite que implementa a dúvida como
fundamento da presença, da verdade, da ação. Isto, diz Phelan (op.cit.: 172), nos põe a
buscar, e nos põe a esperar (to hope).
2
O autor fez mestrado em artes no departamento de Estudos da Performance da New York University,
Tisch School of the Arts, em 2001-02.
As implicações para a teoria são irrefutáveis, pelo menos para a teoria que
pretende fixar objetos e reproduzi-los em discurso previamente formatado. A
impossibilidade de “ver verdadeiramente”, de “conhecer verdadeiramente” e de
“compreender verdadeiramente” o outro (e o mundo) causa imensa ansiedade, e não raro
dá lugar a narrativas de desencanto ou até de ódio, cria uma falha de comunicação. A
teoria da performance, na esteira desta comprovação, e na luta contra os resultados dessa
ansiedade (como a violência étnica e racial, o machismo, o sistema de saber-poder etc.),
acredita que devemos resistir à falsa promessa do entendimento verdadeiro, e que é
necessário fundar uma política e uma pedagogia do não-entendimento. O objetivo não é
deixar de aprender e produzir, mas tornar a dúvida um fundamento produtivo.
A questão fundamental desta teoria, evidentemente, é a relação do “real” com sua
“representação”. Aqueles que se preocupam com esta relação devem, segundo Phelan
(op.cit: 180) reconhecer que mesmo nossos olhos são insuficientes para medir os termos e
os significados da alquimia que se exaspera entre um e outro. As possibilidades
transformativas do “real”, se não podem ser confirmadas com segurança pelo campo do
visível ou do empírico, também não podem ser negadas para sempre. O que a teoria da
performance propõe é que o estado da dúvida deveria nos levar a criar e recriar o “real”
em nossas performances, e principalmente transformar as interpretações da relação entre
o “real” e a sua “representação”.
Notemos que a crítica à representação não aparece apenas como uma fatalidade,
mas como um convite à criação. Sendo o “real” irreprodutível, resta-nos, também como
teóricos, forjar possíveis reais. Esta postura nos interessa profundamente, uma vez que
aproxima o trabalho do pesquisador e do teórico ao trabalho do artista. Uma das
propostas que alguns autores ligados à divulgação da teoria da performance apresentam é
a escrita performativa (performative writing).
Em nossa dissertação, comentamos alguns destes autores, mas principalmente
trazemos em nosso texto exercícios de performative writing. Este exercício, conectado ao
que a teoria do corpomídia (Katz e Greiner, 2005) e a semiótica peirceana nos oferecem
como material de inspiração, propõe sobretudo uma releitura das noções de escrita e
representação. A escrita textual com palavras é, a nosso ver, apenas um dos modos de
organização do pensamento. Em se tratando das “representações” das cidades de
Fortaleza e São Paulo, conforme estas se produziram para nós no curso de nossa vida,
propomos outras linguagens artísticas como formas de melhor organizar a comunicação.
Assim, “O Corpo da Teoria”, primeiro capítulo da dissertação, é dedicado à
discussão da teoria da performance e do performative writing. Neste começo, criamos um
diálogo entre teoria da performance e da performatividade com o conceito dinâmico de
signo proposto por C. S. Peirce, e sua teoria da semiose. Comentamos, além disso, um
operador teórico proposto por Derrida, que é o conceito de “rastro”, e sua relação com as
propostas de teóricos da performance, como André Lepecki (2004), de reinterpretar o elo
entre evento, temporalidade e escrita.
Seguindo-se à apresentação destes conceitos, apresentamos um exercício de
escrita performativa. Da ação diária de cruzar um espaço específico da cidade de São
Paulo, o Cemitério São Paulo, e dos afetos que o espaço provoca, escrevemos um texto
que em certa medida mimetiza o desaparecimento do objeto estudado pela teoria da
performance. Trata-se de um exercício estruturado como texto dramático, como uma peça
para ser lida, isto é, uma peça-proposta que utiliza a consciência do leitor como palco de
sua encenação. Há, ao longo de toda a peça, referências a autores e até mesmo citações
inteiras de textos filosóficos. Todo o material teórico utilizado neste texto encontra-se
listado na bibliografia, ao final da dissertação.
“O Corpo da Cidade”, que vem a seguir, é um capítulo que faz uma breve e
localizada revisão do conceito de “ambiente” e, portanto, de “cidade”, a partir de alguns
conceitos da teoria da significação do biólogo Jakob von Uexküll, especialmente seu
conceito de Umwelt, e também a partir dos novos estudos sobre como o corpo funciona,
propostos por autores ligados às chamadas ciências cognitivas. Aqui, pretendemos
problematizar um pouco a idéia do ambiente como mera exterioridade e refletir sobre
como podemos definir “a cidade” partindo das recentes descobertas de cientistas
preocupados com o estudo da cognição humana. Este capítulo é acompanhado de uma
nota pessoal sobre a ciência e de conto. Este, de certa maneira, evoca o caráter social da
cognição quando um dado corpo pode circular e se organizar numa cidade como São
Paulo.
Em seguida, apresentamos resumidamente dois trabalhos audiovisuais de nossa
autoria e que também integram esta dissertação de mestrado. São capítulos audiovisuais e
o objetivo destes textos é meramente apresentá-los aos membros da banca de defesa, não
justificá-los ou defini-los. Os três trabalhos em vídeo digital, embora sejam resultados
especificamente organizados no curso de nossa pesquisa e a ela estejam vinculados como
capítulos específicos, gozam, por virtude de seus próprios formatos, de relativa
autonomia com relação ao texto teórico. Como já foi dito, nosso trabalho propõe que há
certas “coisas” tão investidas pelo que Phelan chamou de alquimia transformativa do
espaço entre o “real” e a “representação” que a melhor forma de abordá-los teoricamente
é usando um discurso mais dinâmico, mais aberto, mais contingente e mais imprevisível.
A combinação do áudio com imagens é um caminho possível.
Ao final, oferecemos um tipo de inCONCLUSÃO da dissertação. Sendo este
trabalho um processo em curso, consideramos honesto finalizar com algumas
observações acerca do significado teórico e artístico do mestrado para nós, e um
comentário acerca de como esse efeito pode se traduzir em projetos futuros.
O CORPO DA TEORIA
Da semiose à coreografia do rastro
1. Sobre como o corpo organiza o mundo: escritura e performance
A vida é uma maneira de os signos produzirem um outro signo” (Sebeok apud
Uexküll, 2004: 22)
Estamos, nós também, refletindo sobre “o que pode o corpo” quando este se
relaciona com o mundo. Ou, a depender do ponto de vista e do vocabulário escolhido,
sobre “o que pode o mundo” (já que, objetivamente, corpo é mundo) quando se relaciona
consigo mesmo. O trabalho artístico, para alguns de nós, emerge sempre de uma intensa
mudança do estado corporal. Processos comunicativos entre o corpo e o ambiente em
volta acionam a produção subjetiva, acelerando a instabilidade do corpo na sua
combustão hormonal, intensificando as contrações musculares (o pulso, o cérebro, o
sexo), obrigando o corpo a reorganizar-se o tempo todo.
Uma das coisas que pode o corpo é precisamente se reorganizar, e quase sempre
dando continuidade à natureza comunicativa de seu funcionamento. Novos fluxos e
processos comunicativos (o mundo, vibrátil, em comunicação) estruturam-se no tempo
como imagens e percepções singulares, mapas neurais que externalizamos na forma de
um trabalho (um texto, uma partitura musical ou corporal, um ensaio, uma mímica, uma
montagem audiovisual, um gesto para o outro: uma teoria e/ou uma poesia). De fora para
dentro, e logo de volta para fora, e então para “outro dentro”: a transferência (como é
próprio do amor) e o deslocamento (como é próprio da matéria).
O espaço-tempo desdobra-se sem cessar, transfere-se deslocando seus múltiplos
atributos numa espécie de giro espiralado entre “dentros” e “foras”. Para o artista, o palco
seja uma folha de papel, um tablado, uma tela de plasma é o relicário de seu amor
com o mundo. Para alguns de nós, um trabalho ou uma teoria não importa é sempre
uma oferenda ao outro. E uma homenagem ao movimento desse amor.
Uma verdadeira façanha “possibilitada” pelo corpo é a sensação do movimento
amoroso, porquanto caótico, do mundo através da carne. O corpo é a mídia do próprio
mundo, objetivamente tomado em seu caráter de processo comunicativo. O corpo
inaugura novas possibilidades de o mundo investigar a si próprio. O corpo escoa mundo:
linguagem e subjetividade emergem como propriedades partilhadas do jogo.
Subjetividade é a objetividade do corpo. Sobre o mundo tornado carne, inevitavelmente,
versa toda teoria. E é necessariamente isto o que qualquer trabalho artístico acaba
categorizando.
Numa conversa com Michel Foucault, publicada em capítulo do livro Microfísica
do Poder (2004), Gilles Deleuze afirma que a dicotomia teoria-prática se estabeleceu
historicamente entre duas concepções hegemônicas de “prática”, onde esta era concebida
ou como uma aplicação da teoria, isto é, como uma conseqüência dela, ou, ao contrário,
como devendo inspirar a teoria, como sendo ela própria criadora com relação a uma
forma futura de teoria (2004: 69).
Discordando que haja aí um binarismo realmente, Deleuze afirma ser mais justo
reconhecer que a prática, não sendo exatamente a “aplicação” de uma teoria e nem
tampouco o seu ponto de partida ou inspiração, se estrutura na verdade como um
conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e deste mesmo modo, que a teoria se
estrutura como um revezamento de uma prática a outra (idem: 70). “Uma teoria é como
uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante” (Deleuze, In Foucault
2004: 71).
Aonde quer chegar Deleuze, ou de onde parte o autor, para reconceituar esta
dicotomia tão antiga quanto a maioria das metáforas culturais que estruturam nossa vida
social? O trabalho teórico, sendo um exercício humano, deve grosso modo consistir numa
relação emergente entre corpo e linguagem. Um corpo estuda o mundo, recolhe
diferenças deste, elabora estas diferenças na forma de conceitos e comunica tais conceitos
à sociedade. Deleuze, no entanto, admitindo a complexidade da organização viva logo
pergunta: mas “quem fala e age?”; ao que responde, significativamente: “sempre uma
multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age” (idem: 70).
A “multiplicidade” como natureza da própria subjetividade determina, de certa
maneira, a impossibilidade de qualquer dicotomia ou, para usar o termo deleuziano, de
qualquer “totalização”. Fica evidente a partir desta “conversa entre filósofos” que o
posicionamento de Deleuze, bem como de seu interlocutor, Michel Foucault, repousa na
idéia de que a teoria é uma prática, e que a prática, por sua vez, envolve cognição,
pensamento conceitual, e não se opõe à teoria, sendo na verdade uma de suas
organizações.
Claro que o mundo substancial como processo comunicativo em evolução pode
ser descrito de múltiplas maneiras. Aqui escolha necessária de vocabulários o
enfatizamos como “evento”, como “singularidade”, como “temporalidade”, daí o
interesse pela teoria da performance.
Quando Peggy Phelan (2001) escreve que a única vida da performance é no
presente, ela sabe das implicações que isto acarreta para a “teoria”, pelo menos a teoria
como “to talização” denunciada e renegada por Deleuze e Foucault. Em um sentido
estritamente ontológico, a performance (o evento, a singularidade e, em nossa concepção
aqui adotada, o mundo como processo comunicativo) não é reprodutível. É, conforme
propõe Phelan, uma “representação sem reprodução” (“representation without
reproduction”). A performance desaparece, torna-se memória ou registro, no máximo
uma “documentação” (inevitavelmente um algo “outro” que a performance em si), e daí
jorram algumas implicações para a teoria.
“Tentar escrever sobre o evento não-documentável da performance é
invocar as regras do documento escrito e no mesmo movimento alterar o
próprio evento. Assim como a física quântica descobriu que macro-
instrumentos não conseguem medir partículas microscópicas sem
transformá-las, também os críticos da performance devem compreender
que o esforço de escrever sobre performance (e portanto ‘preservá-la’) é
um esforço que fundamentalmente altera o evento.” (Phelan 2001: 148)
3
Se o mundo bem como sua prosa, a realidade é evasiva ao esforço teórico, nos
resta perguntar, já que somos pesquisadores: como continuar? Phelan, em seu ensaio
“The Ontology of Performance” (2001: 146-166), diz que não basta simplesmente
recusar-se a escrever. A “alteração do evento” como prerrogativa do ato de escrever sobre
a performance seria na verdade um desafio lançado ao escritor/teórico no sentido de se
3
“To attempt to write about the undocumentable event of performance is to invoke the rules of the written
document and thereby alter the event itself. Just as quantum physics discovered that macro-instruments
cannot measure microscopic particles without transforming those particles, so too must performance critics
realize that the labor to write about performance (and thus to “preserve” it) is also a labor that
fundamentally alters the event.
remarcar as possibilidades performativas da própria escrita. Phelan diz que o ato de
escrever no sentido da “desaparição” (em oposição ao escrever no sentido de “preservar”
o objeto) precisa lembrar-se que o efeito (after-effect) do desaparecimento é a própria
experiência da subjetividade.
A escrita teórica não deveria, assim, ter medo de assumir a multiplicidade de
vozes que Deleuze identifica como linha definidora da subjetividade. Não deveria, da
mesma maneira, temer as distorções da memória e da fantasia, próprias das
representações organizadas por um sistema vivo e singular em tempo real. A escrita
deveria, ao contrário, investir na instabilidade criativa e na dimensão ficcional da
memória como técnicas produtivas de representação do “objeto”.
Se como afirma Homi Bhabha (2003) o “verdadeiro” é sempre marcado pela
ambivalência do próprio processo de emergência, pela produtividade de sentidos “que
constrói contra-saberes in media res, no ato mesmo do agonismo, no interior dos termos
de uma negociação (em vez de negação) de elementos oposicionais e antagonísticos”
(op.cit: 48), pensamos que a teoria, uma vez preocupada com o questionamento
incessante, tem algo a aprender com o procedimento de criação artística.
Phelan rejeita a escrita acadêmica como modo de fixar a performance do
“verdadeiro”. Em seu livro, a autora faz um elogio à desaparição do objeto, da verdade,
da escrita e propõe uma nova postura de linguagem para escrever sobre performance,
para teorizar sobre um objeto que se dá e desaparece no mesmo movimento, e por isso é
uma postura que nos interessa para abordar a comunicação entre corpo e ambiente.
É claro que para negar a dicotomia teoria-prática não somos obrigados a criar uma
outra dicotomia intransponível entre escritura e performance. Ao contrário, somos
tentados a procurar um termo médio entre estes dois modos de organizar a experiência.
Pois não seria o processo de significação, tanto na escrita como na performance, um
arranjo provisório no tempo: uma improvisação?
2. Sobre a representação como marca do “real”
Linguagem é sistema de signos. A linguagem necessariamente media o corpo e a
cidade, estruturando não só a cognição, mas a própria percepção que um corpo é capaz de
ter numa ou de uma cidade. Aliás, se levarmos a sério o projeto da semiótica peirceana
4
,
teoria geral dos signos, os signos estruturariam não só a linguagem, mas a própria vida
em evolução.
A semiótica, definida por Nöth (1990) como a teoria das semioses, esmiúça esse
movimento de algo vir a ser signo de uma outra coisa, e explica que esse “algo” que
substitui uma “coisa” é mais bem definido como um “processo” do que como uma nova
“coisa”. O “interpretante”, isto é, a imagem complexa de um objeto na mente de um
intérprete, é um processo de construção e elaboração, não uma resposta dada e
predeterminada a um estímulo. Notemos que esse movimento processual estrutura não só
o ato quase automático de usar uma palavra para evocar um objeto numa conversa
informal, como também estrutura a organização de uma performance (artística ou outra)
num dado ambiente. Não haveria, na verdade, uma fronteira estável entre linguagem e
mundo, sendo impossível se interpor entre a linguagem e aquilo que ela denomina.
4
Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo norte-americano criador do vocábulo “pragmatismo” (Vita
1964: 94), e criador da semiótica, ou teoria geral dos signos, ainda no século XIX, como uma Lógica, uma
teoria da significação com projeto de idealismo objetivo.
“Em todas as formas de representação, uma coisa se encontra no lugar de outra,
representar significa ser o outro dum outro que a representação, num mesmo movimento,
convoca e evoca” (Gil, 1984: 39).
Basta relembrar que a própria idéia de um “corpo” já é uma construção da
linguagem mais ou menos estabilizada pelo uso, ou seja, mesmo o objeto “corpo” tem
seus contornos físicos estabelecidos pela natureza sócio-histórica da linguagem, pelo
modo como aprendemos a delimitar (dentro da linguagem) a pele como o limite de um
objeto singular o corpo. Sabe-se que o corpo do sujeito não acaba, de fato, na pele,
dependendo de recursos de seu meio ambiente para funcionar e estando com este
estruturalmente conecto sistema e subsistema em conexão. Como veremos mais
adiante, mesmo atividades simbólicas consideradas como “internas” ao corpo, acontecem
na verdade num espaço de interação com o ambiente. Em suma, o “corpo” só é
delimitável provisoriamente em linguagem.
A semiótica explica que para que haja cognição (bem como comunicação), as
coisas do mundo precisam virar signos, ou seja, precisam traduzir-se em linguagem,
adquirir significados. O significado de um evento ou objeto, no entanto, mesmo para a
semiótica, nunca é absoluto, mas sempre contextual, dependendo do uso e de como o
evento sígnico se estrutura. Em todo caso, um signo é sempre um processo que envolve
representação, o que implica a nossa concepção inicial de que a comunicação, entre corpo
e cidade, sempre se estrutura como uma performance.
Phelan afirma que “escrever” é uma atividade que confia na reprodução do
“mesmo” para a produção de significado ou seja, a palavra de quatro letras gato vai
repetidamente significar o animal peludo de quatro patas e que tem bigode (2001: 149).
Phelan refere-se ao processo iterativo da linguagem, onde “palavras” e “coisas” mantêm
uma relação de significado estável assegurada pelo uso e pela história prévia de
citacionalidade, isto é, assegurada por um poder.
Mas a semiótica prevê a ambivalência intrínseca à natureza dos processos de
significação, evitando a idéia de que a “representação direta” entre uma palavra e uma
coisa seja algo realmente assegurado. Uma das mais citadas definições de “signo”
propostas por C. S. Peirce assinala seu caráter processual:
“Um signo, ou representamen, é alguma coisa que representa algo para
alguém, sob certo aspecto ou modo. Dirige-se para alguém, isto é, cria na
mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais
desenvolvido. Este signo criado eu chamo de interpretante do primeiro
signo. O signo representa algo, seu objeto. Ele representa o objeto não de
qualquer maneira, mas em referência a um tipo de idéia” (Peirce apud
Nöth 1990: 42)
Signo é processo emergente na interação entre dois sistemas, sendo descrito por
Peirce mais como uma “qualidade” ou “função relacional” do que como uma classe de
objetos propriamente ditos. Isto, a bem da verdade, não difere do processo de um corpo
se apresentar em um ambiente (numa performance) organizando novas relações que
emergem das conexões entre corpo, espaço e público. Relações singulares, temporais e
fadadas a desaparecer. Esta definição peirceana de signo também é representativa da
emergência ambivalente do “verdadeiro”, conforme assinalou Bhabha.
“Signo” é qualquer coisa que depende de ser interpretado, daí Peirce afirmar que
nada é signo a menos que seja interpretado como tal (idem). E é por isso que a palavra
gato pode significar, a depender do tempo e do espaço de sua elocução, algo bem
diferente do animal peludo de quatro patas e que tem bigode.
É próprio de toda linguagem ser processual. Para a semiótica, um “signo” (isto é,
um processo de significação) é sempre o movimento entre objeto, signo e interpretante.
Um objeto torna-se signo e, logo, interpretante. Este interpretante já é, em verdade, outro
objeto, distinto do primeiro, pronto para tornar-se outro signo e logo outro interpretante
na mente de outrem.
A “semiose”, por sua vez, é descrita como esta ação do signo de criar novos
signos, indeterminadamente o que a rigor não difere muito da própria definição de
signo, já que este é sempre o movimento de um signo criar na mente de uma pessoa um
signo equivalente ou mais desenvolvido (interpretante). Signo já é movimento e processo
de significação. No seu livro “Semiose segundo C. S. Peirce”, Queiroz (2004) chega a
afirmar que “signo” e “semiose” são sinônimos (pg.49). Isto é, se o signo, “um outro”
quanto ao objeto que ele indica, determina outro signo, o interpretante, como uma
determinação do objeto, então um signo é sempre também um movimento de semiose
(Queiroz, 2004: 49).
Peirce, reconhecendo que linguagem e vida são facetas de um mesmo fenômeno,
o processo vital, afirma que na “realidade” encontramos interpretantes sendo
determinados por objetos o tempo todo através da criação de signos. Um pensamento se
estrutura como signo na mente de alguém que irá comunicá-lo a outro alguém, assim
como uma semente se estrutura como signo dentro de um pedaço de terra úmida, que vai
nutri-la e torná-la desenvolvida em planta, árvore ou arbusto a depender do processo,
que envolve não só a própria semente, mas também relações contextuais como o tipo de
terra, o clima do local etc.
Assim como a terra interpreta a semente, a semente interpreta a terra, a água e a
luz do sol. Sendo signo, a semente é na verdade um processo dialógico. É neste sentido
que Merrel (1992) afirma que, para Peirce, todo pensamento ou toda atividade mental
dotada de significado é dialógico. Mesmo um pensamento íntimo, silencioso, é
evidentemente dialógico, já que corre no tempo: tomemos mesmo o caso banal de uma
conversação interior, uma pergunta e resposta do sujeito para consigo mesmo, e teríamos
necessariamente duas fases diferentes do ego em conversação. Resulta que o self é em si
um processo comunicativo, como sugeriu Deleuze ao falar em “multiplicidade”.
Um aspecto importante do conceito peirceano de signo vem à tona uma vez
exposto o self como diálogo. O self seria um fabricador de novos signos, pela poiesis
(criação, produção), ao mesmo tempo engajado na praxis (interação social) interagindo
dialogicamente consigo mesmo e com outros. Neste contexto, diz Merrell (1992: 201),
Peirce usa a palavra “signo” como o próprio meio e o método do self estender o que
Merrell denomina o “interconectado tecido da significação”, algo próximo da vida
mesma.
Merrell diz que o signo, através de seu objeto, representa esse tecido da mesma
forma que representa a si mesmo: a semiose cria um mapa cognitivo-comunicativo entre
corpo e mundo que nem é o signo em si nem o mundo em si, mas uma mediação que
permite ao corpo acessar o mundo. Em última análise, o que Merrell diz é que a
representação semiótica nunca é idêntica ao “tecido de significações” e, assim como a
totalidade do tecido, não pode senão aproximar-se do “mundo real”. Da mesma maneira,
a memória ou o registro que fica de uma performance, como afirmou Phelan, nunca pode
senão aproximar-se daquela materialidade desaparecida do evento em si. Somos fadados,
repetindo Phelan, a lidar com a memória da performance na nossa escrita temos nas
mãos apenas um mapa do que passou e, se quisermos ser radicais, precisamos admitir
que o que resta é na verdade um “mapa do mapa”, já que a percepção em tempo real da
performance se estrutura, ela mesma, como um mapa possibilitado pelos sentidos do
corpo. A colaboração entre semiótica e teoria da performance, na criação de uma crítica
da labuta teórica, vai ficando mais clara aqui.
Aos “mapas” criados em semiose (poiesis e praxis juntas) durante a percepção,
Merrell dá o nome de “modelos”. Nós chamaremos estes modelos de “mapas cognitivos”,
arranjos perceptivos criados pelo corpo, a representação inevitável que nos permite
acessar uma cidade e conhecê-la a própria cidade, se assim quisermos, conforme somos
capazes de percebê-la.
É evidente, a esta altura, que nenhum conhecimento de uma cidade existe sem
significação “modelada”, pois toda significação é necessariamente mediada, sempre “a
um passo do ‘real’, assim como o self está sempre a um passo do seu outro” (Merrell
1992: 201). Tampouco é difícil imaginar que estes mapas cognitivos, sendo criações
singulares (eventos, performances) modeladas a partir da interação entre corpo e cidade,
guardam características de ambos: o som estridente de uma rua na cidade não se separa
facilmente do repúdio do tímpano nem da saudade de uma praia deserta, digamos assim.
Um aspecto importante da leitura que Merrell faz de Peirce é seu esforço em não
cair num relativismo banal, onde já que o “real” está sempre a um passo do corpo
perceptivo, qualquer modelo pode significar qualquer objeto. Em sua busca de
vocabulários, Merrell admite que seja realmente fácil defender que modelos semióticos
(ou mapas cognitivos-comunicativos) são sugestões encabuladas e sempre passíveis de
modificação do “mundo real”, e que são de fato sugestões sempre parcialmente falseadas
no caso de as tomarmos literalmente. Por esta razão, Merrell diz que prefere pensar em
“significação” ao invés de “representação”. O tecido de significações é inevitavelmente o
nosso mundo, e não uma mera representação. Merrell valoriza o termo “significação”
certamente porque “representação” é um termo carregado de uma história de múltiplos (e
às vezes pejorativos) usos, mas principalmente porque falar em significação auxilia-o a
apresentar sua teoria de que a semiose é na verdade uma pragmática da interação
humana.
Semiose é, para este autor, o processo de significação que afinal permite (e
modera) a construção de uma pluralidade vital de mundos semioticamente reais que, mais
do que representarem o “real”, gozam de diferentes níveis de comensurabilidade:
permitem medidas locais comuns e, em última análise, permitem a emergência de
“sociabilidade” entre grupos e/ou espécies de seres. Se a bagagem conceitual de um self é
em qualquer medida “representativa” do mobiliário próprio do mundo, diz Merrell, será
assim apenas no sentido de levar este self a agir (idem: 202).
Lembramos que nosso objetivo é observar os mapas semióticos organizados entre
corpo e cidade como processos comunicativos, no sentido de criar trabalhos artísticos,
portanto prevendo uma ação (no sentido pragmático dado por Merrell). Assumindo-se
que a semiose é um processo necessariamente imerso no tempo, o nosso conceito de
conhecimento da cidade deve, antes demais nada, dialogar com o que diz a teoria da
performance.
Abraçaremos esta possibilidade colaborativa entre a semiótica e a teoria da
performance ao observar os conhecimentos que um corpo é capaz de construir sobre uma
cidade. De modo radical, a teoria da performance considera a atividade da linguagem
como um processo de natureza análoga à da performance. Admite-se que linguagem não
apenas “nomeia” os objetos, mas cria estes objetos e age sobre eles. Sendo “semiose” a
estratégia pela qual a semiótica descreve o modo como corpo e cidade se representam,
relembramos que a significação (conhecimento) que o corpo pode elaborar dessa cidade
(na verdade, uma retro-representação) é necessariamente estruturado como uma
performance.
Talvez pelas mesmas razões por que Merrell rejeita a idéia facilmente relativista
de que não acessamos o “real” realmente, Phelan rejeitou a tentação de parar de escrever
frente à desaparição do objeto estudado. Acessamos o único “real” possível, e dele
podemos “escrever” textos ricos em performatividade. Se a representação é necessária,
ela deve ser tomada como desafio, não como impasse. Para estes autores, aparentemente
pertencendo a teorias tão distintas, a representação como ontologia da vida sígnica deve
aumentar a potência de agir do crítico, e não estagná-lo num lugar de derrota. Mas para
isso, novas posturas diante da teoria e da pedagogia devem emergir. Estas posturas
inspiram nosso trabalho.
Phelan referiu-se à “escrita para o desaparecimento” ao invés de “escrita para a
preservação” (2001: 148). Esta idéia espelha-se na concepção de linguagem performativa
proposta por J. L. Austin
5
(1975). Austin observou que em alguns casos a linguagem não
5
John Langshaw Austin (1911-1960), filósofo analítico inglês que desenvolveu muito do que viria a ser
identificado como teoria dos “atos de fala”. Seu livro mais importante é How To Do Things With Words,
traduzido no Brasil como Quando Dizer é Fazer, onde figura sua teoria acerca do proferimento
performativo e da linguagem como sistema de ação e não de representação.
visa fixar um significante, mas agir e modificar o mundo. Esta ação seria em si o
significante criado em tempo real pelo ato de fala. Assim, quando se usa a linguagem
para selar um compromisso, por exemplo, num casamento, o “sim” proferido não visa a
permanência de algo exterior ao próprio ato de casar é um ato de fala irreprodutível
(como toda performance), pois sendo reproduzido, se reproduzirá também o ato social:
um outro “sim” só valerá no sentido de se casar novamente. Cada “reprodução” deste tipo
de linguagem dará origem a um novo ato levado a cabo por alguém qualificado para sua
execução.
Austin diz que se o “proferimento performativo” for reproduzido por alguém
“desqualificado” para tal ato, torna-se uma mera elocução constativa, isto é, não tem o
poder de “agir” realmente, de “fazer-se a si”, mas apenas descrever ou referir-se a algo
exterior a ela própria (referir-se ao ato válido). Para Austin, o discurso tem estas duas
funções: a constativa (descrever coisas do mundo) e a performativa (criar coisas no
mundo). No caso do performativo, o significado da expressão é uma ação, é o ato que o
próprio discurso pronuncia. Além do exemplo do casamento, outros tantos ficaram
emblemáticos na teoria proposta pelo autor: “eu prometo”, “o júri condena o réu a 10
anos de prisão”, “eu lhe batizo Zumira” etc.
Austin, influenciado por Wittgenstein, inicia esta discussão do performativo no
sentido de desestabilizar a busca filosófica pela “verdade” definitiva baseada em nomes
que “representam” coisas significado como representação direta e não como
“improvisação”, conforme ve mos defendendo. De acordo com sua teoria do proferimento
performativo, há aquela porção da linguagem que não pode ser julgada em termos de sua
“verdade” ou “mentira”, mas apenas em termos de sua “felicidade” ou “infelicidade”.
Há muita especulação teórica a respeito dos termos escolhidos por Austin para
apresentar o performativo. Sua palestra em que o teatro aparece como uma instância
parasita (infeliz) do proferimento performativo é especialmente lembrada. Jacques
Derrida (1982: 325), por exemplo, critica os termos escolhidos por Austin ao identificar o
próprio caráter citacional (teatral!) do ato performativo o que assegura a sua “felicidade”.
Teatro e mundo, segundo Derrida, seriam organizações estranhamente similares.
Para Derrida, toda linguagem é necessariamente iterativa. Ao falarmos, todos nós
já estamos imersos numa rede citacional iterativa que não apenas nos atravessa, mas
também nos conforma, pois somos socialmente construídos em linguagem. Logo, Derrida
identifica que a força do performativo não é a consciência do sujeito já que um homem
pode casar contra sua vontade e um juiz pode condenar um homem acreditando em sua
inocência, bastando para isso usar o ato de fala performativo no momento adequado e
sim algo exterior a este sujeito.
Em resumo, a presença intencional do sujeito falante não basta por si só diante do
ato locutório, pois as próprias circunstâncias do ato de fala, sendo anterior a este sujeito,
não podem ser definidas por ele o seu contexto, bem como o poder que denomina quem
é qualificado para assinar uma sentença ou declarar uma união matrimonial. É por isso
que uma ilocução performativa não pode ser “feliz” (mesmo fora do teatro) se não puder
ser reconhecido em uma relação iterativa, se não for de algum modo identificado como
uma citação.
Austin diz que a linguagem age, enquanto Derrida esclarece que o poder se
organiza como linguagem. Mas Derrida também admite que a única coisa capaz de
desconstruir a linguagem é linguagem mesma, e daí retornamos à proposta de Phelan para
uma nova postura diante da escrita acadêmica em face da ontológica desaparição do
objeto. Phelan afirma que o “performativo” austiniano é importante para Derrida porque
evidencia a independência entre a linguagem e o referente fora de si mesma. Para Derrida
(apud Phelan 2001) o performativo é o “já” da escrita no momento presente. O
performativo é a escrita tornada evento, daí a proposta de Phelan de que a escritura
acadêmica deve ser uma escrita performativa (performative writing).
O desafio posto pela performance à escrita é descobrir um modo de palavras
repetidas tornarem-se proferimentos performativos(Phelan 2001: 149)
6
. Estaremos
sempre lidando com discurso, representação, portanto, citação e iteração. Mas deve haver
um modo de transformar essa citacionalidade em fonte de poder e modo de posicionar-se
politicamente. Phelan identifica, por exemplo, a escrita crítico-teórica feminista como
performativa. É uma escrita que atualiza a crença num futuro melhor e, ao tornar-se
presentificada, antecipa este futuro.
Derrida, ao colocar o performativo de Austin como característica geral da
linguagem, inspira Bhabha quando este escreve que é um sinal de maturidade política
aceitar que haja muitas formas de escrita política, cujos diferentes efeitos são
obscurecidos quando se distingue entre o “teórico” e o “ativista político”. Para Bhabha,
como para Derrida, a teoria e o ativismo são ambos formas de discurso e nessa medida
“produzem, mais do que refletem, seus objetos de referência” (Bhabha op.cit: 46). Para
Bhabha, a diferença entre eles está em suas qualidades operacionais.
Esta dissertação parte não só da constatação de que há muitas formas de “escrita
política”, mas principalmente de que há muitas formas de escrita. Como Bhabha (op.cit:
6
“Performance’s challenge to writing is to discover a way for repeated words to become performative
utterances.
50) tornamo-nos conscientes da justaposição ambivalente, da relação intersticial do
factual e do projetivo no mapeamento das relações entre corpo e cidade. Também como
Bhabha (idem: 48), acreditamos que a pergunta “o que deve ser feito?” (em termos de
uma política) deve reconhecer a força da escrita, sua metaforicidade e seu discurso
retórico como matriz produtiva da e para a ação.
“A textualidade não é simplesmente uma expressão ideológica de segunda ordem
ou um sintoma verbal de um sujeito político pré-dado” (Bhabha op.cit:48), pois sabemos,
a partir de Austin e Derrida, que o sujeito político é um evento discursivo. A tradução de
nosso objeto de estudo (comunicação, corpo, cidade) será uma performance textual que
busca outros vocabulários, que investe no procedimento artístico da escritura. Há aqui, na
esteira de Bhabha e Phelan, um posicionamento político: a valorização da significação
enquanto rastro da linguagem, o elogio ao corpo como mídia do “real” enquanto
organização estética. Não reclamamos nenhum título de originalidade, mas o direito à
singularidade.
3. Sobre o corpo e a escritura como rastros
“É preciso pensar a vida como rastro antes de determinar o ser como presença. (...) É a
não-origem que é originária”
7
(Derrida, 2002: 188)
Em um ensaio onde expõe características comuns a corpo e escrita, André
Lepecki (2004) analisa o lamento de um dos fundadores da concepção de coreografia,
Jean-Georges Noverre, ao deplorar, em suas famosas cartas, a efemeridade e
evanescência da materialidade da dança. É desse lamento que nascem os manuais de
7
Na tradução brasileira pela Editora Perpectiva, o trace de Derrida está traduzido como ‘traço”.
Escolhemos em nosso trabalho usar o vocábulo “rastro” como tradução de trace porque “rastro” parece
evocar melhor o desaparecimento significado nos textos de Derrida e Lepecki.
dança, a necessidade de sistematizar notações, a prática coreográfica em si, bem como a
disciplina acadêmica dos estudos da dança, tentativas de assegurar a permanência dos
movimentos (e, afinal, dos corpos) contra seu desaparecimento.
Na filosofia contemporânea, Lepecki nomeia Jacques Derrida e sua radical
reavaliação do problema da materialidade e da presença na metafísica ocidental (em
especial a sua escrita sobre o “rastro” freudiano) como premissa importante da teoria
crítica que pretende repensar as relações entre dança e escrita nos estudos da dança e da
performance. Segundo Lepecki, Derrida identificou a história da metafísica ocidental
como estruturada sobre um centro epistemológico: o ser como presença em todos os
sentidos da palavra.
Derrida escreve sobre o rastro num ensaio que intitula “Freud e a cena da
escritura” (2002). No senso comum, “cena” é o lugar do ator, mas Derrida chama de
“escritura” precisamente a “cena da história e o jogo do mundo”, o caminhar das
metáforas, do traço ou rastro, dos mapas de representação que introduzimos desde o
conceito de semiose, que é afinal a performance do signo, eternamente retardando-se ao
longo de cadeias significantes. O signo funciona como um ator em cena, logo Derrida dá
a entender que um texto nunca é ele mesmo, mas um caminho citacional (o que é análogo
à atividade teatral), assim como o objeto nunca é o objeto mesmo, mas já se dá à
percepção na qualidade de objeto corporificado (embodied).
Nos estudos do corpo, a desaparição da performance, do signo e do próprio corpo
é sugerida por Christine Greiner (2005): “O aqui e o agora já foram no momento em que
nos referimos a eles. O que fica são apenas princípios reguladores pelos quais se entende
a existência presente e, paradoxalmente, sempre ficam também como parte do futuro”
(Greiner 2005: 85). A “virgindade ideal do agora”, para Derrida (2002: 221) é constituída
pelo trabalho da memória. O que “se dá a ver” não são as coisas como elas são, mas
como define Greiner, “a ficção que contamos a nós mesmos tendo em vista a
sobrevivência, o reconhecimento, o estar lá” (idem, ibidem)
No final de seu texto sobre Freud, Derrida diz que é preciso radicalizar o conceito
freudiano de rastro e extraí-lo da metafísica da presença. A nota onde define a sua
interpretação do rastro, também citado por Lepecki em seu ensaio, segue assim: “o rastro
é a desaparição de si, da sua própria presença, é constituído pela ameaça ou a angústia da
sua desaparição irremediável, da desaparição da sua desaparição” (Derrida 2002: 226).
Este desaparecimento é a própria morte, diz Derrida, e é no seu horizonte que se
deve pensar o presente. Se a performance é a arte do presente, é também a arte da morte.
Lepecki aponta os estudos da dança e da performance
8
como o espaço possível onde a
desaparição como/na origem do discurso, e a remoção da presença como pré-requisito do
conhecimento, dá lugar a um tipo de escrita que trabalha com o efêmero e não contra ele.
Também para Lepecki, a crítica da presença em Derrida implica em que todo
significado já está habitado por (e referindo-se a) uma série de outras referências, rastros
de outros rastros, num eterno jogo de différance
9
.
8
Lepecki exemplifica estes estudos não só com as idéias de Phelan, mas também de outros autores como
Mark Franko (Dancing Modernism / Performing Politics, Bloomington: Indiana University Press, 1995) e
Jacques Rivière (“Lê Sacre du Printemps, 1913” in Nijinsky Dancing, ed. Lincoln Kirstein, New York:
Knopf, 1975).
9
A idéia da presença como um movimento de desaparecimento constante (como traço/rastro) levou Derrida
a cunhar a palavra “différrance” (deferência), cuja pronúncia em francês é a mesma de “différrence”
(diferença), para significar a dinâmica de significação em linguagem, onde o rastro também é a tônica: o
significado de uma palavra já não mais se refere ao seu objeto imediato, mas à referência à referência, num
jogo provisório de diferenças (espaciais) e deferências (temporais). Sobre este conceito derrideano, Greiner
(2005) comenta: “o espaço, a partir de então, seria o espaço da escritura, não apenas da palavra escrita mas
da escritura dos fenômenos no mundo e no corpo. A tal différance seria uma espécie de ação de
suplementaridade” (86).
A termodinâmica, como será explicado a seguir, nos mostra que o que move o
significante, move também o sujeito-interpretante não só o corpo em performance
desaparece a cada instante, mas também nós, teóricos do corpo. Para o químico russo Ilya
Prigogine, a “natureza” é ao mesmo tempo “alguma coisa objetiva”, as nossas
concepções sobre a natureza e as nossas relações materiais com ela, os efeitos que nela
produzimos e os processos que aí cultivamos sistematicamente, enchendo-a
designadamente de máquinas.
Há expresso em seu livro A Nova Aliança (1997), escrito a quatro mãos com a
filósofa Isabelle Stengers, uma proposta de profunda aliança do homem com a natureza
que ele descreve. Em dado momento, na introdução do livro, este cientista (que recebeu o
prêmio Nobel por descobrir processos de organização espontânea e sistematizar a teoria
das estruturas dissipativas, cuja gênese implica a associação indissolúvel do acaso e da
necessidade, levando a um desenvolvimento inédito do segundo princípio da
termoninâmica
10
), descreveu a violência que seria descrever a atividade científica como
separada do mundo a que pertence com as seguintes palavras:
“Durante muito tempo, o caráter absoluto dos enunciados científicos foi
considerado como um sinal de racionalidade universal; neste caso, a
universalidade seria a negação e superação de toda particularidade
cultural. Pensamos que a nossa ciência se abrirá ao universal logo que
10
Esboçado por Carnot e formulado por Clausius (1850) o segundo princípio da termodinâmica descreve
que enquanto todas as outras formas de energia podem transformar-se integralmente umas nas outras, a
energia que toma a forma de calor não pode converter-se inteiramente, perdendo sempre parte de sua
aptidão para um trabalho. O que descobriu-se foi que todo movimento ou trabalho necessariamente libera
calor, contribuindo para esta degradação. A diminuição irreversível da aptidão para transformar-se, própria
do calor, foi denominado por Clausius de “entropia”. O que Prigogine demonstrou experimentalmente foi
que a entropia é também um vetor que força a reorganização do sistema, uma vez que fluxos caloríficos,
em condição de flutuação e instabilidade, ou seja, de desordem, podem transformar-se espontaneamente em
estrutura, ou forma organizada.
cessar de negar, de se pretender estranha às preocupações e interrogações
das sociedades no seio das quais se desenvolve, no momento em que for,
finalmente, capaz de um diálogo com a natureza, da qual saberá apreciar
os múltiplos encantos, e, com os homens de todas as culturas, cujas
questões ela saberá no futuro respeitar” (Prigogine e Stengers 1997: 14)
Movem-se os seres, movem-se os conceitos, e a vida segue seu fluxo dialógico de
criação e degradação. Seguimos afirmando: que outro jeito senão abraçar esse fluxo
contínuo na escrita? Se o que faz mover e dissipar as estruturas está longe de nosso
controle, não faz sentido procurar restringir e controlar a escrita (nem os corpos) aos
padrões vigentes.
Em sua ênfase no “ausente” e na “desaparição”, tão importante na evolução da
teoria da performance, Lepecki mostra que Derrida na verdade reformulou a base
sensorial da filosofia. As leituras artísticas das cidades de Fortaleza e de São Paulo que se
seguem partem dessa novíssima base sensorial. Tomado como desafio a oportunidade que
a ênfase no “rastro” derrideano nos oferece como ferramenta para a construção de um
novo vocabulário para se abordar o corpo e suas atividades comunicativas, entregamo-
nos à criação. Um vocabulário que não apenas fale da ação do corpo, mas que de fato
proponha-se a agir.
Em todo o fluxo material de informações entre o corpo e a cidade, da
comunicação entre os dois sistemas e do conhecimento acerca dela, interessa-nos muito a
idéia de ausência, ou do que está fora da visão (fora da cidade?) e, no entanto, é resultado
da própria carne: os rastros da carne. A imaginação, a mímica interna, seus produtos.
Peggy Phelan afirmou que em toda afecção e em todo pensamento encontramos uma
mistura de fatos com fantasmas.
Pois que abramos as janelas.
SÃO PAULO I Emergências e Coações: uma ficção científica
Entramos no cemitério, eu e você.
Eu faço um sinal da cruz, junto ao primeiro passo, e começa assim uma estória de
emergências e coações. O cemitério é longo, não ousamos flanar entre as centenas de
veredas entrecruzadas. Seguimos na ladeira central, emoldurados por altos e finos
pinheiros. Escutamos o granular entre os pés e o chão, e escutamos os pássaros.
VOCÊ São corvos?
Olhamos para cima, mas não os vemos. É melhor quando não há velório, nem enterro,
pois andamos devagar e desatentos. Tenho medo de encontrar o luto do outro. Você
também.
Paramos de frente a um túmulo. Uma escultura em bronze de duas crianças, como irmãs,
sobre uma lápide que comunica uma data dos anos 50. A irmã mais baixinha lança o
olhar para a mais velha, que mantém as mãos em prece. As nuvens passam por detrás.
Entre as mãos de bronze escuro, alguém deixou um cacho de flores naturais.
EU Há textos que procuram acomodar signos oferecidos por um bom professor, cuja
leitura do mundo nos comove. (Você senta na lápide) Em seu primeiro dia de aula, em 22
de fevereiro de 2005, professor Jorge Vieira pronunciou com generosa alegria sua visão
pessoal de objetivista realista crítico: “o que nós fazemos agora depende da simplicidade
do que passou”. E, ainda: “você é estrela organizada”.
Nesse instante, passa uma estrela cadente, mas é dia, e não a vemos.
EU Eu ali sentado numa mesa de estudo, os outros alunos, Jorge, sua barba
branca, ruídos, cinco andares abaixo, a vertigem, o quadro rabiscado de giz: o universo
conversava consigo mesmo: meu corpo acomodava a fala do outro e, por instantes,
mimetizava uma estrela em expansão. Religação? Essa performance é religiosa, pensei. A
ação interna de reconhecer-se estrela, um reconhecimento profundo, que incluía sim o
ruído dos carros, a mesinha de estudo, o outro, mas principalmente o si-mesmo: meu
corpo reconheceu-se estrela.
Você pega um giz e escreve no chão, desinteressada, as minhas próximas palavras.
EU Uma performance assim onde o objetivismo realista crítico (“matéria cósmica”)
leva à produção subjetiva (“eu sou”).
Você joga fora o giz.
EU Ator e espectador ao mesmo tempo, saio da sala diferente de como entrei. É difícil
localizar o palco (espaço físico) desta coreografia a consciência, talvez? Certamente
sim, mas também a rua João Ramalho, o bairro das Perdizes, a sala de número 502, o
quintal da infância onde exercitávamos sexualidade, meus cinco anos de idade quando
me contaram que um dia eu ia morrer a minha pele, a sua parte de dentro. Mesmo o
futuro, (essa folha de papel, por exemplo) aquilo que eu projetava e que ganhava
espacialidade dentro ou fora de mim, compunha esse espaço da performance e,
objetivamente, o corpo das estrelas.
Você me puxa dali, e caminhamos em direção à cerejeira em flor. Passa um avião por
trás da cerejeira, o ruído provoca duas flores cair no chão, e lá ficam como duas bocas
na iminência de um beijo. Eu continuo falando, e piso em cima das flores, desatento.
Você percebe, sente pena do beijo.
EU Esse atalho até o ponto de ônibus que me leva à PUC passa justamente por dentro
desse cemitério. Vimos o terraço onde esperam os convidados para funeral. Aos pés de
quem anda, nestas alamedas de túmulos habitados, esculturas e objetos pessoais deixados
por desconhecidos, dedicados aos mortos, comunicam-se com meu corpo. O fora e o
dentro comunicando-se geram afetos, ações ou imagens internas, que logo se
externalizam: veja aquele outro túmulo infantil, eu parei lá ontem, e percebi os pirulitos e
as balinhas deixadas por um visitante. A menina morreu aos cinco anos de idade. Toda a
lápide e a estátua que representa a menina segurando a saia rodada é de mármore branco.
O sorriso branco de dentes de mármore. Sinto a saudade de quem não conheço. Os
presentes à criança morta me jogam na realidade sígnica do amor, do luto, da morte. Mas
de quem: minha?
Minha pele arrepia -se.
Fumaça. Deleuze está ao nosso lado, carregando uma cigarrilha escura. Olhamos para
ele, ao que ele responde passando o cigarro adiante. (Ele fala pela traquéia)
DELEUZE O modelo do corpo, segundo Espinosa, não implica nenhuma
desvalorização do pensamento em relação à extensão, porém, o que é muito mais
importante, uma desvalorização da consciência em relação ao pensamento: uma
descoberta do inconsciente e de um inconsciente do pensamento, não menos profundo
que o desconhecido do corpo. E isso porque a consciência é naturalmente o lugar de uma
ilusão. A sua natureza é tal que ela recolhe efeitos, mas ignora as causas.
Ele traga fumaça, lentamente, e sai sem ser chamado.
Há um silêncio, até passar um grupo de estudantes fardados provocando calor. Um deles
cospe um chiclete mascado sobre a lápide branca.
EU O corpo é uma máquina paradoxal.
VOCÊ Uma mídia paradoxal.
EU O limite da pele conecta e separa. O corpo biológico, de acordo com a teoria da
Umwelt, é responsável pela criação do ambiente como um conjunto de signos. Mas o que
podem os signos criados? Até separar coisas que são uma? Se intuímos que “nosso
mundo” é produzido por nosso corpo, em suas muitas dimensões carne, memória,
desejo, trauma não podemos ignorar que este corpo, na verdade, foi produzido pelo
mundo. O mundo cria o mundo.
Aqui, cessam todos os ruídos da cidade. Há um silêncio de penhasco.
EU Mas (pausa) e essa sensação de “eu”?
Silêncio total. Fitamos o túmulo, lemos os nomes, as datas. Súbito, e no entanto
calmamente, a estátua branca da menina cai. O mármore branco se quebra em mil
pedaços e os ruídos da cidade voltam ao normal. Um grão do mármore cai no meu olho,
e saímos de perto.
EU É justo que a subjetividade está encarnada, que emana do corpo. Como o suor, a
saliva: o amor. O meu suor não é o do outro, tem propriedades bioquímicas específicas,
que mudam conforme minha alimentação. Continua-se no corpo quando Damásio fala
que a emergência da subjetividade é a organização da matéria como um self. Damásio
explica que a palavra self (ou o si-mesmo) deve ser entendida como significando “as
estruturas e as operações” necessárias , mas não suficientes, para que as imagens que
consistem a produção subjetiva possam emergir. Para Damásio, esse self (pré-linguístico,
embora enriquecido pela linguagem) é o antecedente e a fundação para o senso de que
uma pessoa é capaz de causar um efeito em pessoas e objetos, e ainda ter uma
consciência dos seus sentimentos e competências.
Nesse instante, eu e você já sabemos o que vou dizer: mas se o self não é o suficiente
para a emergência das imagens internas (subjetividade), a outra metade que desencadeia
o processo é o ambiente, incluindo a interação com outros selfs, o ambiente sócio-
histórico, a linguagem, o mármore.
EU A âncora deste self, na teoria de Damásio, repousa sobre os estados viscerais da
carne e nos mecanismos neurais que representam e regulam processos biológicos básicos
cuja modificabilidade é mínima. Compreendo com isto que o self é possível porque o
corpo respira e metaboliza, atividades cujo acionamento é inconsciente. Esse self permite
que a interação com o ambiente (seja através da percepção ou da reconstrução pela
memória) gere o processo onde oscilações no estado corporal sejam representadas por
imagens internas na rede neural do cérebro. Para Damásio, essa representação é a
consciência, e o ingrediente crítico na noção de consciência é a subjetividade. Na opinião
do próprio autor, essa neurobiologia da subjetividade não esgota o assunto, até porque os
mecanismos por trás de todo o processo permanecem ocultos. Mas gosto que a ciência
oferece os objetos psicológicos materizalizados em imagens corporais, localizáveis, com
duração, portanto com extensão. A ciência admite a realidade física da subjetividade, mas
não sabe o que está por trás.
Ouvimos um pigarro que ecoa, como numa caixa de som. Deleuze está aqui, novamente.
Não fuma mais: de alguma maneira seu cigarro havia parado em minha mão. Fala
novamente pela traquéia.
DELEUZE Eis o que é prodigioso tanto no corpo como no espírito: esses conjuntos de
partes vivas que se compõem e decompõem segundo leis complexas. A ordem das causas
é então uma ordem de composição e de decomposição de relações que afeta infinitamente
toda a natureza. Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas
composições e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o
nosso e com ele se compõe, quando uma idéia se encontra com a nossa alma e com ela se
compõe; inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma idéia ameaçam nossa
própria coerência. (...)Mas o que é o nosso corpo sob a sua própria relação, e nossa alma
sob a sua própria relação, e os outros corpos e as outras almas ou idéias sob suas relações
respectivas, e as regras segundo as quais todas essas relações se compõem e decompõem
nada sabemos disso tudo na ordem de nosso conhecimento e de nossa consciência”.
O senhor louco com quem cruzo todos os dias na escadaria do cemitério, e que sempre
me agride gratuitamente com sua voz sozinha e rouca, aparece ao nosso lado. Ele segura
um grande cachorro, peludo e branco, e de olhos brancos, pela coleira; o cachorro é
selvagem e se agita. O homem fixa o olhar em nós, solta a coleira e começa a gargalhar.
Deleuze recebe o cachorro, que em suas mãos parece dócil e até risível. Antes do filósofo
sair do cemitério, ele dá uma gorjeta ao senhor, que volta a sentar-se nos degraus
externos. Puxa do bolso um isqueiro: está novamente com ele o toco de cigarro apagado.
EU A física e sua explicação do real, por exemplo. Partamos do princípio de que,
realmente, os processos de construção de estrutura que nós podemos observar localmente
(um corpo, por exemplo) são mecanismos para a dissipação da energia em larga escala.
Esta é a teoria do físico Werner Mende, a partir de Prigogine, e ela significa que para o
universo produzir sua termodinâmica ele precisa localmente formar canais para escoar
sua entropia: este processo geraria limites de energia como uma sequência de níveis de
estabilidade, de modo que, assim, a evolução seria uma transição consecutiva de um nível
de estabilidade para outro. Mais do que uma explicação, Mende sugere uma coreografia.
Nós juntamos as palmas de nossas mãos, e ficamos sentindo o calor. As mãos começam a
suar. Uma senhora passa e olha nosso gesto.
EU Nós podemos os corpos podem viver, sentir e refletir níveis de estabilidade. (A
senhora se aproxima e amarra as pontas de nossos dedos unidos com um barbante,
depois vai embora). Na superfície da terra, todos os processos estão alimentados na
situação de não-equilíbrio fundamental, em conexão com o sol. Mende concorda com
Prigogine que uma estrutura dissipativa é o mecanismo de auto-organização por
excelência (o caos das múltiplas bifurcações gerando a possibilidade do novo, a ordem do
que emerge), portanto a cognição, a emergência da comunicação em sistemas vivos, e
também a subjetividade funcionam como estruturas dissipativas. Sentimos conforme uma
termodinâmica.
Sobre algum túmulo, achamos um bilhete enrugado. “Sentimento é mapa neural”. Você
se desvencilha do barbante e dobra o bilhete, colocando-o pra dentro de uma tumba.
Pausa. O sol já se avermelha.
Não há mais funerais, hoje, e nós sentamos no banco de cimento. Durante as pausas,
olhamos as pontinhas finas dos compridos pinheiros balançando ao vento. Os pinheiros
dançam com uma calma invejável. Passam cinco mil anos, e nós continuamos ali.
EU Hoje, estando em São Paulo, a subjetividade em meu corpo é também construída
pela cidade, numa relação-comunicação que envolve ainda a memória que tenho do meu
passado em outras cidades, envolve uma carência afetiva ontológica, a impossibilidade de
inaugurar um paraíso durável, o desejo de permanecer vivo, e quanta coisa mais.
Você abre a mochila e me entrega um livro. É o “Método 3 - O Conhecimento do
Conhecimento” de Edgar Morin (1999).
EU É Edgar Morin quem diz que todo desenvolvimento vivo obedece a uma lógica de
auto-eco-organização que, de modo a garantir auto-integridade e a permanência do
organismo, inscreve os princípios organizacionais do mundo exterior no interior do ser.
Sou uma organização viva e resolvo meus problemas de sobrevivência diante do futuro
aberto, em qualquer cidade, pelo processo involuntário que Morin chama “computação
viva”. Cientificamente falando, isso é cognição, e diz respeito à organização do meu
corpo, a partir de meus estados vicerais (representados em imagens internas) em relação
às condições externas com as quais me deparo e com as quais preciso interagir.
Percepção do mundo e operação no mundo, isso tudo em duas vias, de dentro para fora, e
de fora para dentro, numa auto-eco-organização.
Eu me levanto, tomo o livro de Morin e o coloco entre as mãos da menina de bronze.
Observamos o livro e as flores entre as mãos em prece da estátua.
EU O biólogo alemão Jakob von Uexküll desenvolveu uma teoria da significação. Se é
impossível internalizar a realidade “como ela é”, em biossemiótica dizemos que nosso
corpo filtra o real de acordo com seu aparato biológico, cada espécie à sua maneira, num
processo de seleção perceptiva condicionado pelas possibilidades de percepção e
operação oferecidas pela biologia de um corpo. Nosso corpo não pode ver todos os
objetos do mundo, mas só aqueles cujo programa semiósico da nossa Umwelt permite. É
difícil conceber noções como “energia”, “linguagem” ou “subjetividade” como objetos
físicos, como estrela organizada. Mas de fato, segundo a teoria de Uexküll, somos
resíduo de estrela com órgãos perceptivos e órgãos operacionais desenvolvidos pela
evolução de modo a calcular nosso futuro segundo necessidades biológicas. Para fins de
permanência do sistema, o presente funciona como signo, e o futuro como significante
(Uexküll, 2004). A organização cósmica em forma humana apresenta um corpo e,
portanto uma Umwelt, muito particular. Morin sugere que integramos a ordem
organizacional bio-físico-cósmica da realidade em nosso corpo. Esse meu corpo, se assim
for, é o resultado processual de uma evolução criadora que integra e transforma as
potências de ordem e organização (ecológicas, biofísicas e cósmicas) em potências
psicocerebrais organizadoras da cognição. No meu sistema nervoso há informação
genética tão antiga quanto as estrelas mais velhas. Minha atividade cerebral reflete a
explosão exasperada dela.
Os corvos começam a fazer um ruído inédito, fino e barulhento.
Rapidamente, aparece um cachorro branco correndo em nossa direção. Ele pára diante
de nós. Depois outro, distinto, mas também branco, aparece vindo da direção oposta. É
logo até que sete cachorros brancos fazem um semi-círculo à nossa volta, e passam a nos
observar por pavorosos minutos. Olhamos em seus olhos, suas línguas úmidas para fora.
A imagem de nossa respiração imita a deles. Ofegamos sem fazer ruído, nossas bocas
mimetizam internamente bocas caninas. Você começa a rir verdadeiramente. Eu corro os
olhos procurando o senhor da escadaria e não o encontro. Quando volto meu olhar para
eles, os sete cães, em sincronia, se prostam aos nossos pés. Deitam tranquilos, e não nos
olham mais: parecem adormecer. Você já está em silêncio, novamente, e seus olhos
brilham depois da risada. Sopra um vento de montanha, um hálito de ervas maceradas.
EU Como essa informação da física pode ajudar uma leitura desse lugar? Já foi dito que
estamos em situação de não-equilíbrio termodinâmico, provocada pela crescente entropia
do universo em expansão. Toda organização físico-química está sujeita a esse princípio
de degradação, de desintegração e de dispersão irrevogável que é a entropia. A física já
observou que o universo achou canais de escoá-la, e dessa estratégia nascem as coisas,
mantendo uma negociação termodinâmica constante entre vida e morte. Se tudo isso é
verdade e se Morin está correto, então integramos esta negociação no nosso corpo. Há
uma memória de morte nas vísceras, na química elaborada pelas células. A biologia conta
que o ciclo de vida das células opera a partir de um fenômeno chamado “apoptoses”, um
tipo de suicídio voluntário só as cancerígenas esquecem de morrer. Por alguma razão
nós queremos viver, e é preciso organizar essa memória, achar nós mesmos os canais de
escoar essa degradação. O amor é sem dúvida um meio de manter viva a vida, e morta a
morte. Mas é também o pressuposto do luto: nosso vir-a-ser ama objetos, e sofre ao
perdê-los.
Ouvimos a voz bêbada de um anjo. Um cachorro levanta-se procurando ao redor. Não
há ninguém.
NIETZSCHE Por súplica e oração, por submissão, pelo compromisso de prestar
tributos e oferendas regulares, por glorificações lisonjeiras, é possível, pois, exercer
também sobre as potências da natureza uma coação, atraindo para si sua afeição: amor
liga e é ligado.
EU Nossa etologia em relação aos mortos inclui emaranharmos-nos em camadas
sígnicas para significar “a perda” e “o trauma”. Acreditamos na rede de relações
estabelecida entre nós mesmos, damos seguimento a ela através do jogo intersubjetivo, e
daí criamos rituais fúnebres, construímos cemitérios. Quando Nietzsche (1983) afirma
que a meditação do homem que acredita na magia e no milagre visa impor à natureza
uma lei e, mais ainda, que o culto religioso é o resultado dessa meditação, Nietzsche não
está também falando do processo de auto-eco-organização? (O cachorro late,
aparentemente para o espaço em volta) Nossa racionalidade identifica as supostas leis da
natureza, cria mitos, cria rituais (embodied practices) que evocam sua significação
coletiva, e a transmite aos nossos descendentes: é a organização. (Deita o cachorro)
Depositamos o corpo em decomposição no cemitério e rezamos. Fazemos visitas. Aquele
corpo cuja decomposição escondemos é um signo brutal da força da natureza que
tentamos dar sentido e, assim, controlar. Se Nietzsche tem alguma razão para achar que
criamos a ação ritual de modo a impor à natureza uma lei, então levar flores e bombons à
filha morta é, afinal, uma forma de “coação”. Subjetividade é auto-coação? Para quem
são os pirulitos: para a menina morta ou para a organização de quem os levou? Ou as
duas coisas?
Chega o senhor da escadaria com um saco de ossos. Ajoelha atrás dos cachorros. Reza
em uma língua estranha e os cachorros levantam. Antes de sair e ser seguido pelos cães,
nos avisa que o cemitério vai fechar. Nós levantamos e caminhamos de volta, em direção
à saída por onde entramos.
EU Você não fez o sinal da cruz quando entramos, e eu fiz. Tomado como ato
computacional, meu gesto envolve um código (que está na memória) em comunicação
com o espaço do cemitério. Essa memória onde se localiza o meu gesto não está livre da
entropia: meu medo da morte, minha e dos meus. Nem está livre o cemitério São Paulo
dos fantasmas de minha infância no sertão cearense vê, olha ali as vinte bruxas
idênticas levando baldes d´água para cima das árvores. Mais difícil ainda é compreender
porque o gesto me dá a sensação de realmente estar sendo protegido, de ter o corpo
fechado à empatia dolorosa prometida por esse lugar. A organização é real, então? Esse
meu gesto de coação (sinal da cruz), e toda essa memória de morte, não se relaciona à
decomposição e à finitude (entropia) que integram meu corpo? Essa coação, bem como a
coação da visitante que deixa pirulitos e bombons no túmulo de uma criança, o corpo
agindo, escoando entropia, não é a subjetividade mantendo a vida se auto-regenerando
em meio à irreversível degradação maior? A morte do sistema como memória bio-físico-
cósmica integrada em nosso código genético requer a subjetividade e sua vertente da
ritualização, isto é, requer a produção de significados. Nesse sentido, é tentador conceber
a subjetividade como mais um jogo de representação empreendido pelo próprio cosmo,
mais uma de suas formas de equilibrar-se termodinamicamente. Mas não é também nossa
decisão, prazer ou dor, individual? Impossível negar a individualidade em detrimento do
todo, pois as duas coisas são reais e específicas. A organização acontece entre as duas
coisas, na forma de comunicação.
Chove, neva, depois faz calor.
EU O universo conversa consigo mesmo: o meu corpo estranhado pelos signos de
morte no cemitério (essas covas, uma escultura, a presença dos vivos por meio de
objetos, flores, pirulitos), o meu corpo estranhado é, ao mesmo tempo, o universo em si e
um seu instrumento situado e específico: me organizo, amo, perdôo e permito a expansão
auto-regeneradora, sou o modo dela.
Eu toco uma coluna e passamos a ouvir uma sinfonia. Todos os pássaros nos
acompanham, todos os homens e mulheres acenam com a mão. Uma das pedras de
paralelepípedo que revestem do chão afundou depois que nós passamos, e caiu num
abismo o qual não se pode ver o fundo.
EU As imagens internas, signos invisíveis, meu tio morto no caixão, o velório do meu
avô, a guerra, o homem, compondo e se decompondo com os signos do espaço, que são
signos da cidade, do outro, da morte, um emaranhado de signos, empurrando e atraindo
uns aos outros, tal é a fisicalidade do espaço-tempo que não fica nem “dentro” nem
“fora”. Uma física do invisível não é o que buscamos todos? (Você sorri). Mas buscar
compreender o invisível, acessá-lo com segurança, não é uma coação a mais? A estrela
realmente se organiza por métodos complexos. Pois não é a fé numa física do invisível,
em última instância, a cura do trauma mais invisível de todos, que é a minha morte?
Paramos. Tudo parece estar perfeitamente no lugar. Damos a volta. O cemitério ficou
para trás há muito tempo. O sol já se pôs. Passa um caminhão e buzina muito alto, você
quase atravessou antes do tempo.
O CORPO DA CIDADE (se a cidade tem um corpo, façamo-lo dançar)
“Os signos perceptuais de nossa atenção tornam-se sugestões perceptíveis do
mundo” (Vieira 1994: 120)
O trabalho de campo de um pesquisador consiste na articulação de várias ações-
percepções. No caso de nossa pesquisa, quando partimos para observar atentamente os
níveis de organização sistêmica elaborados na relação de um corpo com uma cidade,
transformamos o nosso próprio cotidiano em laboratório. Esta escolha metodológica, uma
vez tornada atividade em curso, nos levou imediatamente a reconhecer como a disposição
subjetiva do observador em questão contamina a cidade “observada”. Borrava-se a
fronteira do “observar” e do “viver” o fenômeno em questão. Muito nos comoveu, desde
o início, esta justaposição ambígua do desejo e da memória do pesquisador de campo
com seu “objeto de conhecimento”, e, consequentemente, com seu “conhecimento do
objeto”.
Tratou-se, a princípio, de acolher esta constatação relativamente elementar,
nascida da nossa própria atividade de “estar em campo”. Mas o trabalho de campo não se
limita às atividades experimentais, envolvendo também o estudo de textos teóricos e o
diálogo com professores, colegas e amigos, de modo que esta constatação inicial passou a
ter seu reflexo e seu contraponto em outros níveis da atividade. Da dialógica
especificamente organizada durante o longo processo de pesquisa e criação, gostaríamos
de ressaltar duas abordagens teóricas que foram incorporadas ao nosso repertório
reconfigurando de modo radical o entendimento do conceito de “ambiente” para nós. São
os conceitos de Umwelt e Embodiment, que serão apresentados a seguir.
A partir do estudo destes conceitos, surgiu um novo entendimento do que seria a
“cidade”, bem como a performance da cidade em um corpo. Estamos na verdade
admitindo um encontro feliz entre a intuição e o estudo acadêmico, pois o diálogo as
diferentes abordagens conceituais de “ambiente”, a partir destas teorias, foi fundamental
em nossa aposta metodológica consciente de aproximar a nova pesquisa teórica de
mestrado e a nossa não-tão-nova criação artística sobre as cidades. Esta colaboração entre
“teoria” e “criação artística” revelou-se uma estratégia coerente para alcançar o objetivo
de sublinhar como a relação entre corpo e cidade, estruturando-se como uma espécie de
contaminação sistêmica, pode revelar uma estética da comunicação possibilitada pelo
corpo.
As duas abordagens teóricas que consideramos fundamentais para o projeto
examinam a relação estrutural e organizacional entre o corpo e o ambiente. Embora
tenham produzido ressonâncias fundamentais na pesquisa teórico-artística vinculada à
área disciplinar da comunicação e dos estudos da performance, são originalmente ligadas
a pesquisas em biologia e ciências cognitivas.
1. O que é Umwelt
Jakob von Uexküll
11
mostrou, com seus estudos do comportamento de várias
espécies animais, que a sobrevivência de um ser vivo é condicionada por uma evolução
biológica que constrói um “espaço de orientação” (Uexküll 2004: 35) para o
11
Natural da Estônia, Jakob von Uexküll (1864 1944) formou-se em zoologia na Universidade de Dorpat
(atual Tártu) e em seguida desenvolveu pesquisas sobre problemas biológicos do comportamento e
neuropsicológicos nos Institutos de Fisiologia e Biologia Marinha em Heidelberg e Nápoles. Ele é um dos
fundadores da moderna pesquisa do comportamento (etologia), que foi posteriormente definida e
desenvolvida por Konrad Lorenz e Niko Tinbergen mais como uma ciência da fisiologia comportamental.
Em 1924, a Universidade de Hamburgo concedeu-lhe a oportunidade de fundar um instituto para a
“Pesquisa da Umwelt” definida em termos de uma biologia comportamental como ele a entendia.
comportamento motor do animal. Um espaço de orientação que o habilita a se mover
contínua e funcionalmente (em busca da presa, fugindo do perigo etc.).
Esta observação geral de um biólogo revela conseqüências não só para o
estudioso da evolução das espécies, mas para os estudiosos da fenomenologia, da teoria
do significado, bem como para os teóricos do espaço. O que Uexküll acaba por
demonstrar é que todo organismo é acoplado ao seu ambiente pelo seu sistema
perceptivo-motor. O conceito de “ambiente”, uma vez acrescentado o elemento biológico
como condição prévia de sua existência sígnica, passa a ser substituído pelo conceito de
“mundo-próprio” do animal, ou Umwelt da espécie, que já não é um mundo “lá fora”,
mas um ambiente continuamente criado e significado “aqui dentro”, quase um órgão
mesmo do corpo.
Se há um corpo vivo de uma dada espécie no espaço-tempo, o Umwelt dessa
espécie pode ser definido como um recorte necessário no ambiente como um todo, seu
espaço de orientação, ou o “segmento ambiental de um organismo” definido “por suas
capacidades específicas da espécie tanto receptoras quanto efetoras” (op.cit: 22),
explicadas por este autor como “percepção” e “operação”.
Na teoria de Uexküll, o conceito da Umwelt é desenvolvido em conjunto com o
conceito de círculo funcional (ou ciclo de função). Falar em mundo próprio do animal,
automundo ou Umwelt, é reconhecer que o “ambiente” de um determinado organismo é
composto por signos criados pelo arranjo específico de órgãos perceptivos e órgãos
operadores daquele corpo, signos interpretados de modo específico por cada espécie
animal, segundo as disposições e os interesses comportamentais daquela espécie.
Dessa relação entre a criação de signos, as disposições e os interesses de uma
dada espécie, emerge a noção de círculo funcional. Este é o processo sígnico próprio da
espécie. A idéia de um círculo funcional é a idéia de que a evolução assegura certa
coerência entre o organismo e o seu ambiente, ou seja, as possibilidades de relação de um
organismo com o ambiente não são infinitas, mas sim condicionadas por estruturas
previamente organizadas, de modo que cada Umwelt é coerente com as necessidades e as
capacidades de sobrevivência daquela determinada espécie, isto é, é constrangida pelas
ações necessárias que permitirão a sobrevida do animal.
Afirmar isso não é apostar em um reducionismo tolo nem em um determinismo
ontológico, e sim admitir que a inteligência seja uma propriedade da matéria organizada e
que nós, seres humanos, como produtos evolutivos desta organização, herdamos suas
características. A chave para o entendimento sobre as possibilidades de relação entre um
organismo e o ambiente está exatamente em se levar em conta, de modo responsável, o
corpo deste organismo. No caso da criatura humana, é encarar a complexidade ontológica
da carne, esta organização autopoiética
12
capaz de gerar, na interação com o ambiente,
processos sígnicos tão elaborados como teorias matemáticas, tratados metafísicos, obras
sinfônicas, robôs inteligentes, mitos de origem e poemas épicos, enfim, sistemas de
racionalidade, de vontade e de sentimento: a razão e a fantasia, geralmente enredadas
uma na outra.
12
Poiesis, do grego “criação”. Sistemas autopoiéticos são organizações vivas produtoras de si. Embora
sejam sistemas abertos, cuja sobrevivência depende da relação com o meio externo, sistemas autopoiéticos
apresentam um tipo de “fechamento” em relação ao ambiente, e é capaz de reproduzir a si próprio. O corpo,
por exemplo, regula sua sobrevivência de modo autônomo, mantém no seu interior um equilíbrio químico
compatível com a vida, defende o organismo de processos de doença e repõe células mortas mantendo a
estrutura do organismo porque é uma organização produtora de si, capaz de gerar novas células e ativar
processos de defesa imunológica. Um exemplo corriqueiro de autopoiesis é a regeneração de tecidos
celulares.
Uexküll sistematizou o “círculo funcional” como um modelo para descrever as
operações do processo sígnico como um todo:
“O sujeito é um intérprete que recebe sinais do seu ambiente por meio de
“órgãos perceptivos” (receptores). Segundo a espécie biológica do
intérprete (pássaro, peixe, mamífero, carrapato etc.) e dependendo de sua
disposição individual, que serve como um interpretante (fome, sede,
estimulação sexual etc. = necessidade, apetite ou disposição
comportamental segundo Morris 1938), os sinais ganham uma
significação ao ser signo. De modo a designar uma significação, o sinal é
codificado como “signo perceptivo” que como um ser capaz de perceber
indica um “objeto” (comida, presa, parceiro sexual etc.) ainda não
percebido ou uma de suas várias qualidades que servem como um ponto
de referência apto à pista operacional de um comportamento adequado”
(op.cit: 28)
O autor diz que as propriedades particulares do “objeto” tornam-se portadoras de
pistas perceptivas enquanto outras se tornam portadoras de pistas operacionais. O objeto
é sem dúvida uma estrutura só, mas contendo propriedades “reais” significativas para
o sujeito de acordo com o círculo funcional deste sujeito. Algumas propriedades se
representam por pistas operacionais e outras por pistas perceptivas, a depender do arranjo
corporal em questão. Seja como for, a pista operacional extingue a pista perceptiva.
“O objeto tal como o percebemos, com todas as suas qualidades variadas e
objetivamente determináveis, surge no processo sígnico, que é
representado pelo círculo funcional, apenas como uma “estrutura
conectora objetiva” (ou seja, como um elo entre a pista operacional e a
perceptiva), e mesmo esse elo ocorre no processo sígnico apenas como a
influência da pista operacional sobre a pista perceptiva” (idem ibidem)
O que isto quer dizer, afinal, é que precisamos agir, mover, operar no mundo para
sobreviver. O mundo ao redor que “selecionamos”, este ambiente arranjado por nossos
órgãos da percepção e da ação, o nosso Umwelt com seu céu azul e suas milhares de
colorações de flores e os matizes de lodo e cinza e negro revestindo as fachadas de
concreto pela cidade urbana o Objeto, enfim não passa de um elo necessário entre a
nossa sobrevivência e a sobrevivência do ambiente maior que, embora não o
“enxerguemos”, nos integra.
A realidade não é um caos total. Nós levantamos e sabemos como mover-nos
entre a profusão de objetos reais. Internalizamos coordenadas de espaço e tempo
eficientemente, isto é, de modo a permanecermos vivos. Se admitimos que haja evolução,
que as mensagens do código genético são de alguma forma resquícios de mensagens
previamente elaboradas por uma ancestralidade de estrelas explodidas e reorganizadas no
passado, somos levados a admitir a idéia de um “projeto”, muito embora pouco saibamos,
realmente, o que isto significa, nem onde isto “vai dar”.
A teoria da Umwelt nos recoloca na ordem evolutiva desse “projeto”. Uexküll
aponta que há integralidade entre o ambiente geral e os seus produtos vivos, uma criança,
por exemplo, ou nós mesmos. O “círculo funcional” pode ser descrito como um modelo
de como os animais integram seus automundos, seus Umwelten compostos de sinais e
portadores sígnicos selecionados de seu ambiente maior, com os sistemas em que seus
organismos funcionam como subsistemas. Seções do ambiente são incorporados no
sistema vivo como “objetos semióticos”. A pista operacional está encarregada, diz
Uexküll, de utilizar esse objeto semiótico segundo a significação que ele tem para o
sistema.
O que muito nos interessa frisar no meio de toda essa teoria é o aspecto estrutural
conectando ambiente e corpo sistema e subsistema a partir do conceito de Umwelt. O
modo como Uexküll descreve o círculo funcional explicita uma correlação estrutural
entre o corpo do animal e certos fatores do ambiente. Evocando os termos da teoria geral
dos sistemas (Vieira 2000), diríamos que o que Uexküll demonstrou, com seus estudos
experimentais, foi que o sistema perceptivo-motor de um organismo é uma estrutura
construída pela evolução para manter a integralidade e a conectividade entre sistema
(mundo) e subsistema (organismo autopoiético).
Coisas do ambiente são “criadas” pelo corpo, outras passam invisíveis, inaudíveis.
Em outras palavras: o mundo “exterior” que percebemos já é um arranjo “criado” por
nosso corpo e é por ele contaminado, sendo, portanto, um segmento desse corpo. O
“ambiente” (aquilo que não é o próprio corpo, mas cuja intercessão com este é igual a
zero) tem “sinais”, estruturas que o animal assinala por meio de seus órgãos sensoriais
constituídos para esse efeito e para os quais se elaboram respostas no organismo. A cor
daquele pôr-do-sol existe porque há o olho e as células da retina naquela criatura que o
contempla. A cor do crepúsculo, bem como seu efeito emocional, emergem da conexão
estrutural do ambiente com o corpo. Não “pertence” a um nem a outro, mas sim ao elo
fundamental entre ambos que, objetivamente, é a existência daquele corpo em fluxo no
tempo e no espaço.
Uma vez admitida, como expressamente o faz Uexküll, a unidade do processo
vital, “corpo” e “ambiente ao redor” não passam de ficções categóricas que nos auxiliam
a pensar e, portanto, a viver.
As implicações de uma teoria como esta, que coloca em unidade contínua o corpo
e o ambiente, já se fazem evidentes para quem trabalha a cidade em suas pesquisas e
projetos artísticos. Mas ainda há um outro campo teórico que gostaríamos de convidar
para integrar nosso texto, um campo teórico que parece levar adiante os estudos de
Uexküll, pois observa com mais atenção as especificidades da Umwelt humana. Trata-se
do que em ciências cognitivas se passou a identificar como “embodiment”.
2. Embodiment, ou como o corpo funciona
As ciências cognitivas constituem um campo conceitual bastante complexo que
envolve desde conceitos próprios da filosofia da mente e da gnosiologia até descobertas
recentes da neurobiologia, da lingüística aplicada e da teoria dos sistemas dinâmicos, do
qual apenas poucas informações nos serão úteis e realmente acessíveis neste ponto da
pesquisa. Vinculados ao desenvolvimento deste campo e bastante influenciados pelo
pragmatismo filosófico americano, uma gama de teóricos da cognição têm buscado a
compreensão da atividade simbólica e do pensamento humano em estreita colaboração
com a compreensão de como o corpo funciona.
Para autores como Mark Johnson (1999, 2005), George Lakoff (1990, 1999),
Antonio Damásio (1996, 2004), Francisco Varela (1994), entre outros, a cognição é uma
atividade do corpo, e não de uma “mente” desencarnada, de modo que a palavra
“embodiment” expressa a idéia de que o pensamento simbólico se dá organizado na
singularidade de um corpo em interação com seus diversos ambientes.
Em artigo escrito em co-autoria com Tim Rohrer, o filósofo Mark Johnson (2005)
retoma sua idéia de que a atividade mental é o resultado de experiências sensório-motoras
acumuladas e metaforizadas (transportadas) para outros domínios da experiência, tais
como o pensamento abstrato. A chave, dizem os autores, está mais uma vez no
acoplamento ou coordenação interativa de um organismo com seu ambiente. Várias
evidências de acoplamento estrutural entre organismo e ambiente deixam claro que a
recorrência de modelos adaptativos de interação organismo-ambiente formam a base da
cognição, portanto da habilidade de sobreviver e florescer.
Os autores afirmam que os modelos ou padrões (patterns) de nossas interações
com o ambiente acabam definindo os contornos de nosso mundo, e acrescentam que estes
padrões possibilitam a ação de dar sentido aos acontecimentos, tirar conclusões a partir
de inferências e agir com segurança. Em suma: compreendemos o mundo por meio de
metáforas construídas com base em nossa experiência corporal.
Vamos aos exemplos. Incontáveis vezes durante o dia nós vemos, manipulamos e
nos movemos de/para recipientes (entramos e saímos de casa, do carro, das lojas etc.),
então “conter” ou “ser contido” é um dos modelos mais fundamentais de nossa
experiência. Porque temos duas pernas e ficamos em pé dentro de um campo
gravitacional, nós temos a experiência da verticalidade e a orientação “para cima” e “para
baixo”. No nosso cotidiano, também, as qualidades da experiência corporal variam
continuamente de intensidade (calor, vermelhidão, agitação, afiação, maciez) então
verificamos que há uma escala vetorial em nosso mundo: uma luz pode iluminar mais ou
menos, o chá pode ser quente, morno, natural ou gelado, mais doce, menos doce, enfim.
Estas ocorrências repetem-se na experiência corporal e, acumulando-se, tornam-se
padrões desta experiência. Ou seja, estamos sujeitos à ação de forças que nos movem,
que mudam nosso estado corporal, que constrangem nossa capacidade de agir com as
mãos etc., e todas essas forças apresentam padrões e qualidades que constituem nossa
experiência de ser no mundo.
Agora, é necessário trazer algumas informações sobre o funcionamento mesmo do
corpo na relação com estes padrões de experiência. Cada um desses modelos ou padrões
de acontecimentos é mapeado pelo nosso cérebro, estruturando-se como mapa neural.
Como há recorrências no modo como o corpo engaja no mundo, há, naturalmente, a
reconstrução dos arranjos neurais a cada vez. A recorrência de padrões de experiência
sensório-motora forma o que Johnson e Rohrer (2005), bem como outros autores,
chamam de “esquemas de imagem” (image schemas) nos mapas neurais. Estes autores
acreditam que estes esquemas de imagem são incorporados neuralmente como padrões de
ativação dentro e entre nossos mapas neurais.
Esquemas de imagem, estabilizados dentro de nossos mapas neurais, são um dos
modos de nosso acoplamento com o mundo. Ou seja, interações e experiências corporais
com o mundo dão ignição para a formação de mapas neurais e esquemas de imagem
dentro deles. O esquema de imagem de um “recipiente”, por exemplo, advindo de nossa
experiência diária de entrar e sair de cômodos ou manipular objetos de encaixe é
organizado a partir de nossa atividade sensório-motora, mas nós estendemos este conceito
espacial para outros domínios. A metáfora do recipiente aparece claramente, por
exemplo, quando acreditamos que “palavras” são recipientes de “significados” e que
“conceitos” contêm “sistemas de significado”. O tempo inteiro, sem percebermos,
utilizamos o imaginário mental derivado da experiência sensório-motora para qualificar a
experiência subjetiva.
Lakoff e Johnson (2002) têm desenvolvido a teoria das metáforas conceituais. De
acordo com esta teoria, na base de todo sistema de significação estão as metáforas
primárias (como a de “recipiente”) que são associações literais formadas a partir da
experiência sensório-motora com o mundo físico. Até cerca de 2 anos de idade, quando
nosso repertório de referências simbólicas ainda é muito restrito, usamos só a experiência
corporal para categorizar objetos e eventos do mundo. Neste período, os domínios
cognitivos estão fundidos: a experiência subjetiva e a sensório-motora são vividas num só
movimento, sem diferenciação. Nesse período são formadas inúmeras conexões nas redes
neurais, os mapas neurais e seus esquemas de imagem que são as metáforas primárias.
Estas conexões permanecem nos mapas neurais e na medida em que há o acúmulo de
experiência novas associações entre conexões anteriores são formadas por inferência e
cruzamento de esquemas de imagem, agregando complexidade ao sistema conceitual.
Assim nascem as metáforas complexas.
Lakoff (1999) exemplifica: a partir da observação de que ao se colocar mais
líquido em um recipiente, o nível do líquido sobe, passamos a associar “quantidade” com
“nível vertical” e associar “mais” com “mais alto”, como na expressão “os preços
subiram”. Um exemplo de metáfora complexa é a expressão “os preços estão oscilando”.
Neste, temos a utilização de dois esquemas de imagem: (1) a imagem do nível do líq uido
subindo (conceito de subir e descer indicando quantidade) associada à (2) imagem do
pêndulo que balança (conceito de oscilação).
De certa forma, o que diz a teoria das metáforas conceituais é que o “pensamento”
resulta da atividade corporal no ambiente metamorfoseada nos tecidos cerebrais.
Também Johnson e Rohrer (2005) usam o termo embodiment para designar a
atividade simbólica ou “abstrata” como atividades do acoplamento corpo-ambiente. No
processo de esmiuçar esta assertiva, a teoria das metáforas conceituais é importante
porque permite mostrar como conceitos ditos abstratos são definidos por mapeamentos
neurais sistemáticos de domínios de “origem sensório-motora” para domínios de “destino
abstrato” ou conceitual: no cérebro, os diferentes domínios fisiológicos se cruzam e
ressoam um no outro.
Há outros exemplos. Observemos a frase “Nós temos um longo caminho a
percorrer antes de finalizar nossa teoria”. As palavras “um longo caminho a percorrer”,
originalmente usadas para significar movimento através do espaço, podem ser usadas em
relação ao projeto de “finalizar uma teoria” porque existe uma metáfora conceitual
(ATIVIDADES PROPOSICIONAIS SÃO JORNADAS) através da qual algumas
culturas entendem o progresso na direção de um objetivo não-físico como progresso na
direção de um destino ou ponto final no espaço.
O domínio de origem da metáfora é a movimentação no espaço (um longo
caminho a percorrer), mas o domínio de destino abstrato é a atividade mental (finalizar
uma teoria). Efetivamente, o que se descobriu foi que os mapas neurais (ou padrões de
inferência) achados nas áreas sensório-motoras do cérebro também realizam atividades
racionais “abstratas”. Afinal, a computacão, no cérebro, de inferências “abstratas” se dão
utilizando mapas neurais sensório-motores e estas inferências são ativadas como
inferências de “domínio de destino” (target domain, e não de domínio de origem, source
domain, como seria comum aos padrões de atividade sensório-motoras). Isto porque no
cérebro hoje sabidamente um órgão formado por diferentes partes que funcionam de
modo interligado e colaborativo existem conexões neurais que vão desde áreas
sensório-motoras até outras áreas responsáveis por ditas “funções cognitivas de ordem
mais elevada”.
Enfim, o que toda essa teoria “cerebral” evidencia é importante sobretudo porque
a cognição é emergente do engajamento e acoplamento estrutural do corpo com o
ambiente. De maneira mais radical, a cognição, esta atividade que considerávamos
“mental”, “individual”, “íntima” etc., é na verdade uma atividade colaborativa entre, no
mínimo, duas partes: corpo e ambiente. A interação corporal com o mundo é o que dá
forma aos mapas neurais no cérebro e aos esquemas de imagem (metáforas conceituais)
contidos neles.
Para nós, humanos, uma imensa parte dessa interação corporal com o mundo,
como atestam Johnson e Rohrer (op.cit), consiste no diálogo com outros humanos, de
onde resulta que o entendimento e o pensamento humano a razão é um fenômeno
social. A mente, dizem os autores, emerge como (e é atualizada através da) cognição
social. Não há ruptura entre a experiência corporal do significado e o próprio ambiente.
Tampouco há ruptura de experiência entre o perceber, o sentir e o pensar.
Somos ação em curso. Percepção, sentimento e pensamento são atividades do
ambiente processadas no corpo. Nós somos “mundo” e o mundo vive através de nós, isto
é o que garantem Greiner e Katz (2005) ao afirmarem que o corpo é a mídia do ambiente.
Ou como atestou John Dewey (apud Johnson e Rohrer 2005): operações racionais e/ou
emocionais crescem da atividade orgânica, como o mato cresce da terra, sem que o
produto emergente seja idêntico ao que o gerou.
3. Da espacialidade dos sentimentos
António Damásio (2004), como propositor da neurociência dos sentimentos,
também escreve sobre os ditos mapas neurais. Em seu “Em Busca de Espinosa”, Damásio
sublinha a proposição 22 da Parte II da Ética de Baruch de Espinosa, onde este filósofo
diz que a mente humana percebe não só as modificações do corpo, ma as idéias de tais
modificações. Para Damásio, Espinosa fala sobre como ao formar uma idéia de um certo
objeto, pode-se formar uma idéia dessa idéia, e uma idéia da idéia da idéia, e assim por
diante
13
.
Segundo Damásio (op.cit. 228), esse processo traduz-se não só do lado mental da
substância, mas dentro do setor cerebral (material) do organismo: a percepção de um
dado objeto se estrutura como a imagem interna daquele objeto junto com uma
modificação do estado corporal provocado por esta imagem e o mapa neural que
representa esse estado corporal no curso de sua afecção e tudo junto.
Um objeto de pesquisa, sendo assim, não se separa, “mentalmente” ou
“materialmente”, nem da representação corporal deste objeto (como atesta Uexküll), nem
do sentimento por ele suscitado. É importante, neste ponto, explicar brevemente o
conceito de “sentimento” em Damásio.
“Um sentimento é uma percepção de um certo estado do corpo,
acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e
13
É curioso relacionar isto que Damásio afirma acerca de Espinosa com os conceitos previamente expostos
por nós de semiose (C. S. Peirce) e differánce (J. Derrida).
pela percepção de um certo modo de pensar. Todo esse conjunto
perceptivo se refere à causa que lhe deu origem. Os sentimentos
emergem quando a acumulação dos detalhes mapeados no cérebro
atinge um determinado nível” (Damásio op.cit. 92)
Como já foi dito anteriormente, o corpo é continuamente mapeado num certo
número de estruturas cerebrais. A estrutura muscular de um músculo sob tensão, por
exemplo, é mapeada diferentemente da estrutura muscular relaxada. O estado dos órgãos
internos, como o coração, ou a composição química do sangue relativa à concentração de
certas moléculas da qual nossa vida depende, também são continuamente mapeados em
regiões cerebrais específicas. O substrato imediato dos sentimentos, diz Damásio, é
constituído pelos mapas cerebrais do corpo nos quais se encontram representados os mais
diversos parâmetros da estrutura e da operação do corpo (op.cit. 94).
O sentimento é a percepção (e logo uma série de imagens internas que esta
percepção acarreta) de um mapa cerebral que representa um dado estado do corpo. Em
resumo: na relação com o ambiente, o sistema nervoso mapeia as estruturas do corpo e os
seus diversos estados (mapas neurais) e transforma os padrões neurais desses mapas em
imagens internas. Essas imagens que representam estados do corpo precisam ser
“reconhecidas”, isto é, precisam ser “interpretadas” pela consciência. O fascinante é que
todas essas ações (mapas, imagens e interpretações de imagens) ocorrem no cérebro, cada
vez mais um órgão cuja atividade complexa de suas diversas áreas independentes e ao
mesmo tempo integradas evoca a metáfora da “coletividade”.
Mais curioso ainda é perceber, como o faz Damásio (op.cit.: 120), que os mapas
cerebrais que constituem o substrato básico dos sentimentos exibem padrões de estado
corporal que foram executadas sob o comando de outras regiões do mesmo cérebro em
que se exibem. O cérebro de um organismo que “sente” é, ele mesmo, o criador dos
estados corporais que evocam sentimentos quando esse organismo reage ao ambiente ou
à memória e à imaginação com emoções e apetites. Por um lado, o cérebro é necessário
porque só ele pode produzir mapas neurais do estado do corpo. Mas antes que esses
mapas possam ser produzidos, o cérebro necessita construir os estados emocionais do
corpo cujo mapeamento permite os sentimentos. Tudo isso significa que os sentimentos
dependem não apenas da presença de um corpo, mas dependem também da existência
prévia de dispositivos de regulação da vida que incluem os mecanismos de emoção e
apetite.
O prazer e as suas variantes são os resultados de certos mapeamentos do corpo.
Sentir dor ou prazer resulta da presença de uma dada imagem do corpo tal como é
representada, em certo momento, nos mapas neurais do cérebro. Damásio lembra que há
muitas coisas que podem alterar essa imagem a morfina, o uísque, um analgésico,
certas formas de meditação, o desespero, a esperança.
Os mapas do estado corporal são produzidos nas regiões somatossensitivas do
cérebro. Em diversas circunstâncias o cérebro produz mapas precisos do que está de fato
acontecendo, em outras o mapa perde a sua fidelidade ou porque, devido a fatores como
os enumerados acima, a atividade das regiões que executam o mapeamento se modificou,
ou porque os sinais vindos do corpo são modificados. Seja como for, o mapeamento do
corpo e o estado do corpo deixam de coincidir. Como, segundo Damásio, os sentimentos
não têm origem necessariamente no estado real do corpo, e sim no estado real dos mapas
cerebrais que as regiões somatossensitivas constroem em cada momento, a fronteira entre
o real e o imaginário, e entre a ficção e a realidade, são continuamente borradas
14
.
O ambiente está o tempo todo alterando o estado do corpo no qual se integra. As
imagens, segundo Damásio, são criadas sempre na relação com os ambientes, com os
objetos, na reconstrução de eventos pela memória e na construção de eventos pela
imaginação. No que diz respeito à cidade e ao corpo, o “acoplamento estrutural” entre o
sistema ambiente e o subsistema corpo, assim explicado, leva à conclusão de que uma das
formas de construção do espaço é efetivamente o sentimento.
O corpo da cidade é espacialmente criado na atividade cognitiva no amor que
emerge dos corpos que a habitam. Sendo o corpo a mídia da cidade, emoção e
sentimento, objetivamente falando, são espaço em construção. No que diz respeito ao
modo de procedermos com esta constatação teórica, deixamos claro na Introdução ao
trabalho que buscamos uma linguagem teórico-artística para comunicá-la. A partir destas
teorias (Umwelt e Embodiment), sugerimos que a atividade do artista é criar novas
possib ilidades de ambiente esse ambiente ativo, que dá ignição a sentimentos e
pensamentos.
Sendo a arte um encontro entre obra e espectador, o que o artista faz extrapola
definições mais tradicionais. Na arte, são criadas novas possibilidades de acoplamento
estrutural, novas organizações de mundo, novas emoções. Novas e dinâmicas
reorganizações de estados corporais. Novos espaços na forma de sentimento. Novas
14
Ao que parece, a ficção pode ser um modo mais eficiente de organização da realidade mesmo em níveis
biológicos de descrição fenomenológica. Damásio comenta sobre como nosso corpo simula mapas
cerebrais como forma de facilitar certas atividades do organismo. Por exemplo: quando se está gripado,
indisposto, e se é obrigado a entrar “em cena” para atuar numa peça de teatro ou apresentar uma
conferência, o cérebro tem o poder de simular estados corporais fictícios de modo àquela atividade
transcorrer da melhor forma possível, isto é, o corpo continua funcionando “mal”, mas os mapas cerebrais
de seu estado são, por alguns instantes, simulados como funcionando “bem”, permitindo ao sujeito que
“esqueça” seu mal-estar em nome da atividade a ser concluída.
formas de vida. Trata-se, realmente, de uma Criação, no sentido mais estrito da natureza
orgânica.
Nota sobre a ciência e o mistério
O aparente “cientificismo” que as teorias cognitivas e a neurociência podem ser
acusadas de alimentar, descrevendo a atividade do “espírito” com termos tão
empiricamente medidos não nos parece digna de nota. Nosso trabalho não se afilia ao
discurso científico em busca de qualquer validação. A arte e a ciência são para nós
respostas diferentes à mesma natureza organizacional do corpo em busca de autonomia.
Não há em nosso trabalho qualquer impulso de desvendar os mistérios do “espírito”, por
isso não acreditamos subscrever à visão da ciência identificada com a ideologia do
sistema de poder capitalista, ocidental, masculino, iluminista, racista etc. Não
pretendemos, de fato, desvendar qualquer mistério jogar com ele, isto, talvez sim.
Mas gostaríamos de declarar que as “explicações científicas” aqui presentes são
valiosas não porque revelaram a verdade, mas porque criaram um evento de comoção.
Chegar ao nível de descrição quase “frio” que a ciência empírica permite, e incentiva, nos
levou ao entendimento carnalizado da dimensão ontologicamente partilhada da
subjetividade que as tradições culturais parecem ofuscar. Quando, em verdade, o caráter
“individual e pessoal do espírito” é revelado como um fenômeno emergente de um
acoplamento estrutural entre organismo psicossocial e ambiente, percebemos que o que
significamos como “espírito” não é o self, ou o “ego”, mas uma necessária coletividade.
A vida propriamente dita de um indivíduo é, a partir da ciência, retornada à substância
primeira que compõe outros corpos, e também se reencontra com o ar, com a água, com o
fogo, com os astros e com tudo que está além dos astros e, possivelmente, além do
conhecimento.
Em um dado momento do estudo, fomos levados a pronunciar: “eu não penso por
mim”, e isto não foi provocado por cinismo, mas por tremor e respeito. Como num final
surpreendente de um romance, o movimento do “religare” do qual deriva a palavra
“religião” não foi atualizado por doutrinas ou rituais litúrgicos propriamente religiosos,
mas pelo discurso “duro” da ciência.
SÃO PAULO II Como apanhar o Jaçanã numa madrugada fria em Pinheiros e
encarnar a redenção: da empatia como protesto político.
Era madrugada e ele estava bêbado. Na mesa do bar de onde havia acabado de
sair, ele e a amiga conversaram sobre como é encantador, no sentido alquímico dessa
palavra, ler um conto de Calvino sobre os pequenos rituais domésticos de um casal
apaixonado e emocionar-se, minar água dos olhos a partir do mimetismo interno que uma
leitura permite. Os dois verbalizaram uma perfeita fenomenologia da emoção literária e
engoliram cerveja ao som de uma mesa de samba. Mas agora estava sozinho, em pés
pouco estáveis, na calçada da rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros.
Esperava um ônibus que o levasse até a rua da Consolação adorava esse nome
perto de sua casa. A garoa da madrugada estava escassa de ônibus, mas repleta de gente.
Quando já pensava em desistir, oscilando entre qual perna imprimir mais força para o
sustento do corpo, parou o Jaçanã. Tomou esse, e como a brincar consigo mesmo, danou-
se a cantar baixinho o Trem das Onze, de Adoniran Barbosa.
Como criança que brinca, terminava a letra e recomeçava. Sentia uma alegria
política em vocalizar aquele texto em samba, tão emblemático, quase folclórico, da
cidade de São Paulo, esta mesma que lhe corria pela vista através da janela. A cidade e
sua classe trabalhadora foram-se construindo naquele seu canto murmurado: a letra e a
voz. Repetiu mais de cinco vezes a poesia de Adoniran, até chegar seu ponto de saltar do
ônibus. Desceu, sorrindo para a cidade. E esperou o Jaçanã partir e perder-se de vista na
Consolação. Então tornou a cantar.
“Não posso ficar nem mais um minuto com você”. E cruzou a avenida, tomando
um calçadão da avenida Paulista. “Sinto muito, amor. Mas não pode ser”. Grupos de
pessoas circulavam pelo frio da noite. Ao pé de uma agência bancária, dois mendigos
dormiam. “Moro em Jaçanã!” Imaginou, dispondo de um repertório imagético razoável
de ruas e bairros paulistanos na memória, um Jaçanã entristecido, um lugar açoitado pela
rotina e pelo movimento redundante de milhares de vidas mestiças.
Tomava consciência de que as imagens de seu Jaçanã eram tingidas por uma
pátina escura, provocada pela memória da dor e pelos sonhos não realizados de uma
classe trabalhadora de forte descendência nordestina. Imaginou muita gente circulando na
poeira urbana, e entendeu que o combustível desse movimento era o poder organizado em
balança comercial. “Se eu perder esse trem, que sai agora às onze horas, só amanhã de
manhã”. Dorme-se onde quando se perde o trem da onze?
Era tarde, mas nesse instante passou por ele um homem vestido com roupas de
repartição, carregando uma pasta surrada e uma cara arreada de cansaço. É um
nordestino, pensou. Ele sempre dizia aos amigos que se fosse criar um documentário
sobre São Paulo seria um também sobre o Nordeste, sobre como seus encontros na rua
com os retirantes, trabalhadores braçais ou desempregados em São Paulo, se
estruturavam segundo uma ressonância motora da dor física e da contração cardíaca
própria de quem sofre longe de casa. Ele próprio um nordestino branco e de uma classe
social alta o suficiente para sobrevoar aquela contingência, sentia compaixão ao julgar de
vã a busca por uma “vida melhor” que seus conterrâneos significavam no sonho do
imigrante. Percebeu, no mesmo movimento, que sua compaixão era também arrogância.
Sobre toda a ambivalência de seus pensamentos, cantou: “e além disso, mulher,
tem outras coisas: minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Sua voz, embora
ainda se projetando pela calçada pública, subiu deliberadamente de volume e ameaçou
embargar-se num soluço de tristeza. Foi preciso empenhar-se e quase gritar: “sou filho
único, tenho minha casa pra morar”. Seu cérebro traçara uma conexão específica de
mapas neurais: ele parou de caminhar e sentiu uma pressão subindo do coração e
forçando a goela, o rosto e a nuca. “Meu Deus”.
A dois quarteirões de casa, parado na esquina da avenida Paulista com a rua
Haddock Lobo, naquela madrugada ele chorou como uma criança, e soluçou
publicamente pela cidade de São Paulo, lugar para onde vêm os nordestinos que
acreditam na metáfora social do “trabalho” como destino e função do corpo. Engenhoso
processo vital: essa torção da carne e vazamento de fluidos era São Paulo redimindo a si
própria.
FORTALEZA I Fortaleza Terra da Luz (performance)
Corpo: “Fortaleza Terra da Luz”, vídeo digital, 9 minutos.
Ambiente: Festival de Cinema e Vídeo Cine Ceará, Maio de 2004.
Sinopse: Depois de muito diálogo, conseguira a bênção para sair da casa da minha mãe e
alugar um apartamento no centro da cidade, onde eu viveria sozinho, com o argumento de
que a pesquisa demandava uma vivência da cidade que não fosse tão ligada ao cotidiano
da nossa família. Ocorreu que logo no primeiro mês de minha pesquisa artística sobre
Fortaleza, minha mãe fraturou a perna e ficou cerca de 3 meses acamada. O seu estado de
saúde me despertou um tipo voluntário de obrigação de filho de marcar presença em casa.
Como eu não voltaria a morar lá, decidi ir almoçar todos os dias com ela e meu irmão,
assim a veria todos os dias. Almoçar em família sempre foi um evento tradicional em
casa, e fazendo isso eu ainda economizaria um pouco de dinheiro, o que não seria nada
mal. Os almoços em casa da minha mãe tornaram-se logicamente uma parte fundamental
da minha vivência de Fortaleza, e a sua figura e demanda de atenção passaram a compor
em grande medida os afetos despertados pela cidade. Embora não tenha crescido lá, eu
nasci em Fortaleza, e a cidade foi sempre uma figura fortemente feminina em meu
imaginário. No sertão onde eu vivia, tudo era profundamente masculino, e as viagens a
Fortaleza na infância eram sempre exercícios da liberdade. Um dia, depois do almoço, eu
revirava uma caixa velha de objetos antigos pessoais que tinha deixado no meu antigo
quarto. Lá achei uma fita em VHS com um filme publicitário institucional sobre atrações
turísticas no Ceará. Fui para casa e assisti. Era um filme com fartura de estereótipos
publicitários, como a moça da praia de topless e o casal heterossexual apaixonado
comendo coquetel de camarões à beira mar. As imagens de Fortaleza me despertaram
grande interesse. No dia seguinte, pedi a minha mãe, que já estava plenamente recuperada
da perna, para tomar meu gravador portátil e ir na maternidade onde eu havia nascido,
gravar um depoimento sobre o dia em que me dera à luz. Disse-lhe que se tratava de um
material que eu gostaria de usar para discutir o trabalho da memória, e que era importante
que ela fosse, sozinha, diretamente no local da maternidade e que gravasse o depoimento
lá. Ela concordou. Com a narrativa dela em mãos e o vídeo institucional sobre a Fortaleza
turística que eu havia achado, com acentuada exploração da imagem feminina, eu tinha
tudo que eu precisava para criar “Fortaleza Terra da Luz”, um vídeo experimental. Como
tratava-se de uma apropriação ilegal das imagens de um filme com direitos autorais
reservados, não poderia lançá-lo como vídeo. Eu poderia, isto sim, criar uma
performance. Resolvi mandar o vídeo para a seleção de curtas do Cine Ceará, um
badalado festival de cinema e vídeo. Passar no Cine Ceará, caso meu vídeo ilegal tivesse
a sorte de ser selecionado, seria a performance ideal, já que o slogan publicitário Ceará
Terra da Luz é muito querido pelos cineastas da região, e foi abundantemente usado
quando o Governo do Estado investiu no Ceará como pólo da indústria cinematográfica,
no final da década de 90. O diretor e produtor do filme turístico estariam com certeza
presentes no festival, já que hoje eram cineastas bem conhecidos no Estado. Por sorte, o
vídeo foi selecionado por uma comissão julgadora de 3 pessoas ligas ao cinema local. A
performance aconteceria, então. Qual não foi a surpresa ao descobrir, durante os
preparativos do festival, que o produtor do vídeo institucional cujas imagens eu estava
roubando, um cineasta cearense chamado Rosemberg Cariry, era o presidente do júri
oficial do festival.
SÃO PAULO III Como alinhar a cidade de São Paulo, o cérebro, as árvores e 165
aparições da Virgem Maria: a revanche do corpomídia (ou da conectividade como
parâmetro evolutivo sistêmico).
...o fluxo de informações no corpo conecta a experiência corporal com entidades
conceituais...
Você diz: não, não, aqui em São Paulo eu não consigo rezar. Eu faço a oração, busco
por capelas as imagens de Nossa Senhora, mas a Ave Maria soa como uma coleção de
palavras comuns, como sinais da língua portuguesa, um texto que involuntariamente
interpreto: escuto as palavras e as decodifico, criando-as como um discurso social,
forjado no seio histórico de uma instituição religiosa e ideologicamente comprometida
com a violência. Que pena. Em Fortaleza, a Ave Maria é como um mantra em outra
língua, uma partitura tonal confortante e um prazer suave do corpo, um descanso. É uma
escada para um lugar bem quieto, onde sopra uma brisa morna e silenciosa. O corpo
sobe a escada. Agora, você caminha por São Paulo alerta, os sentidos estrangulados por
tantos estímulos. O seu corpo treme com a multidão de respostas cognitivas: o exagero
de estímulos torna-se redundância e cansa o seu corpo. Você tem grande dificuldade de
meditar aqui. Você tenta, respira como a manter-se firme, cava pelo equilíbrio
necessário para elaborar a profusão de informações. A pele é cognitiva e elabora o frio
de julho, as juntas põem-se a trabalhar ante o exagero de movimentos ao redor. Mas
você está sempre correndo e o seu cérebro sempre ativando mapas neurais. Coitado de
ti. Em seu apartamento novo, num dia claro, você vai até o janelão e pensa
repetidamente consigo: perdi a capacidade de acessar o sagrado, em São Paulo, perdi a
capacidade de descansar o corpo. Sua vista então repousa involuntariamente numa
fileira de árvores antigas, suntuosas senhoras retorcidas pelo tempo, um eloqüente
discurso da mobília do mundo. Seus olhos repousam lá, porque estão à sua frente. Os
troncos ancestrais saem da terra revestida de concreto e sobem ao céu cobertos por uma
grama verde e espessa. Você questiona se aquela grama, quase uma samambaia
luxuriosa, é na verdade uma parasita sobre a árvore. Depois se convence que não.
Colaboram árvore e grama. Como um casaco, a grama deve aquecer a velha senhora. O
seu corpo simula a percepção de uma vida nutrindo-se da outra, um evento materno
aquela grama cabeluda e verde grudada nos troncos e galhos da árvore, filtrando a cor e
a luz do sol, o sol que ilumina aquela mãe silenciosa. Você acolhe aquela paisagem, e
logo esquece de pensar.
...
Passaram longos minutos antes que você percebesse um batimento cardíaco
fundamentado na vegetação de São Paulo o seu: é a árvore, esta idosa e sofisticada
senhora, quem respira e tem pele.
Instalação Audiovisual Mecânica da Instalação
A instalação prevê a distribuição de alguns monitores de televisão com imagens
de vídeo em loop mostrando árvores urbanas. Ao lado de cada monitor, um gravador
portátil, com o áudio de uma lista de aparições da Virgem, gravado em fita cassete,
também rodando em loop. A instalação deve ser montada ao longo de um corredor, num
canto de uma sala escura, ou espalhada numa capela.
PARA NÃO CONCLUIR (porque ao criar trabalhos artísticos organizamos um novo
mundo)
Neste trabalho, alguns posicionamentos teóricos foram identificados como
comuns aos recortes e autores escolhidos. Talvez o mais importante, há um pressuposto
comum entres os autores que, aparecendo com seus vocabulários distintos, pode ser
resumido como o seguinte: construímos, objetivamente, o nosso mundo, e nessa
construção as sensações do nosso corpo tornam-se propriedades das coisas, isto é, as
qualidades ditas subjetivas formam o mundo objetivo. Conforme Uexküll, a dicotomia
sujeito x objeto é fluida, ambivalente e, conforme Phelan, se constrói como performance,
ou seja, num tempo e num espaço provisório e transitório.
Partimos do movimento entre “cidade corpo cidade” como processo
comunicativo e organizacional, e consideramos a cidade não como fenômeno pronto, mas
como processo de produção subjetiva que se dá entre corpo e ambiente. A complexidade
do objeto de estudo requisitou uma postura acadêmica que levasse em conta o caráter
processual da performance em questão. Daí a discussão levantada com a ontologia da
performance (Phelan 2001), que, a nosso ver, acusa o caráter processual do conhecimento
ao expô-lo em profundo laço com o tempo “presente” de sua construção; e a teoria do
corpomídia (Katz e Greiner 2005), que, a nosso ver, indica o caráter processual do
conhecimento ao expô-lo como o resultado emergente da conexão estrutural do corpo
com o espaço específico em questão. Estas duas teorias cobrem, de acordo com nosso
objetivo, a necessidade de se marcar o corpo, a cidade e o conhecimento como processos
em fluxo, condicionados a arranjos singulares e irreversíveis no tempo e no espaço.
Resumidamente, o objetivo do nosso trabalho foi duplo: 1) a partir de referências
a trabalhos em ciências cognitivas e da teoria da significação, conforme proposta pela
biossemiótica, que embasam os estudos do corpomídia, sublinhar a estética da
comunicação entre corpo e ambiente e 2) inspirado pelas idéias propostas pela teoria da
performance e do performative writing, organizar novos ambientes, novas possibilidades
de continuidade entre o trabalho de campo, a elaboração dos conteúdos, a escrita
acadêmica e o espectador.
Nessa dupla articulação, há uma forte aproximação com a atividade da
performance artística. A nossa intenção não foi apenas sublinhar algum “fato”
teoricamente e fixá-lo no papel
15
. Nossa intenção foi também, e acima de tudo, dar
condição para que o processo identificado siga como processo sígnico, siga sua
performance da differánce, a fim de que a teoria seja um trabalho não de cristalização do
objeto de estudo, mas de movimentação deste ao longo de inúmeras cadeias sígnicas.
Apostamos no encontro artístico eu, a obra, o outro como topos da comunicação
teórica, e na produção teórica como topos da fruição artística. A nossa arte de
performance, desta forma, só funciona no ambiente próprio da “pedagogia”, sua
dramaturgia depende deste espaço, destas páginas, deste ritual de defesa pública de
mestrado.
Equiparamos o estudo e a identificação de traços da realidade (própria da
atividade científica) com a criação e a antecipação de “possíveis reais” (próprio da
atividade artística). Se o fenômeno é contaminado, sempre, pelo trabalho do corpo que de
alguma maneira o cria como “real”, que esta contaminação seja o pretexto para novas
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Afinal, já nos mostrou Peirce que signo já é semiose, logo os objetos não são “coisas”, mas já se dão
enquanto processos.
possibilidades de sua performance no tempo e no espaço moventes: que também a
realidade “teórica” do fenômeno siga construindo-se no diálogo e na criação
intersubjetiva.
Qualquer coisa que tenha resultado deste trabalho será menos um achado teórico
ou uma síntese específica de pensamento do que uma postura de conduta, tanto artística
como acadêmica. Procuramos desestabilizar a dicotomia estanque que pousa a criação
artística de um lado do muro e a pesquisa teórica do outro.
O que de mais importante emerge de uma defesa de mestrado é sempre a possível
continuidade das novas relações levantadas pelo trabalho. No que concerne ao futuro de
nosso trabalho de pesquisa acadêmica, seja qual caminho ou objeto de estudo específico
ele tomar, o aprofundamento da postura de conduta aqui adotada será o alicerce de seu
desenvolvimento. Arte, ciência e filosofia estão fundidas em nossa concepção de trabalho
acadêmico. A busca por escritas performativas não acaba aqui. A busca por escritas
performativas não acaba. A busca por escritas performativas não. A busca por escritas
performativas. A busca por escritas. A busca por. A busca.
“Com as coisas intelectuais, fazemos ao mesmo tempo teoria,
combate crítico e prazer; submetemos os objetos de saber e de
dissertação como em qualquer arte não mais a uma instância da
verdade, mas a um pensamento dos efeitos” (Barthes 2003: 105)
“Queres ver o que não viram os olhos humanos? Olha a lua. Queres ouvir o que os
ouvidos não ouviram? Ouve o grito do pássaro. Queres tocar o que não tocaram as mãos?
Toca a terra. Digo, verdadeiramente, que Deus está por criar o mundo” (Borges, 1998).
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