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Urgia por mãos à tarefa. Certo não desfaleceria da minha banda a defesa da
Legalidade — belo eufemismo destes tempos sem leis.
Foi atacado o trabalho. Cento e tantos homens, agitantes sobre as ordens ríspidas,
arcados sob os sacos cheios de areia ou arrastando-os, arrumando-os, superpostos, como
grandes adobes de um muramento ciclópico, bracejavam durante o dia todo...
De sorte que ao chegar a noite, brusca e varada de chuvisqueiros intermitentes e frios,
pude contemplar o meu prodígio de baluarte chinês: uma duna ensacada, erguida em poucas
horas sobre a crista do cais, dominante e desafiando assaltos.
Protegidos por ela, e apagados, para maior resguardo, os lampiões de gás, da vizinhança,
os carpinteiros principiaram a ajeitar os pranchões aparelhados, madeirando a plataforma.
Era a fase mais perigosa da empresa. Aquela agitação, que se realizara até ali sem ruídos,
ia transmudar-se, pela ação estrepitosa dos martelos, precisamente na hora das surpresas,
das repentinas visitas das torpedeiras traidoras.
Sustive-a, por isto, um momento, indeciso.
Considerei em torno...
Aquele trecho da Prainha, espécie de White Chapel em miniatura, enredado de bitesgas
tortuosas e estreitas, onde moureja população ativa, parecia abandonado. Nem uma voz.
Nem uma luz.
Em frente, no mar, inteiramente calmo, avultavam, mal percebidos, os navios de guerra
estrangeiros, destacando-se melhor os couraçados brancos da esquadra americana. Ao
fundo, um cordão de pontos luminosos — Niterói. Adivinhavam-se ainda uns perfis de
ilhas, as da Conceição e Mocanguê, vagos, numa difusão de sombras; e a silhueta apagada
do Tamandaré junto à última, imóvel, calada a artilharia formidável, mudo na solidão das
águas... Depois, para a direita, algumas lanternas bruxuleantes, asfixiadas nas brumas: a do
Forte de Gragoatá, a de Santa Cruz, mais longe, e a da Fortaleza da Laje, intermitindo em
cintilações longínquas, chofradas pelas ventanias ríspidas da barra.
Nada mais na tela obscurecida...
O cenário quadrava bem a um episódio habitual e dramático, que embora diuturnamente
reproduzido não perde o traço emocionante e bárbaro.
Atravessando em silêncio a baía, o Vulcano, a Luci ou qualquer outro sócio de
catástrofes — caldeiras surdas, fogos abafados, avançando em deslizamentos velozes —
abeira-se do litoral. Não o percebem as sentinelas, vigilantes no alto dos parapeitos...
De repente, arrebenta-lhes adiante, nas águas, a explosão de uma cratera. Desencadeia-se
o alarma. Correm os soldados surpreendidos. Baqueiam alguns, baleados. A maioria alinha-
se nas trincheiras, carabinas estendidas sobre o plano de fogo. Deflagram na treva os
fulgores das descargas. Espingardeia-se por cinco minutos, o vácuo... e reinam de novo o
silêncio e as sombras, enquanto o rebocador atacante, banhado nos últimos clarões do
tiroteio, se afasta como uma salamandra enorme, intangível, engolfando-se na noite...
Ora, o trabalho a iniciar-se ia atrair, sem dúvida, um desses recontros rápidos e ferozes.
Era, porém, improrrogável.
Um carpinteiro arriscou a primeira pancada, medrosa, vacilando. Depois outra, mais
firme — um estalo dilacerador na mudez absoluta. Sucederam-se outras; e em breve, sem
cadência, sacudidos pelos punhos trêmulos, vibrando na psicose convulsiva do medo mal
refreado, estrepitavam os martelos sobre as tábuas...
Tirei o relógio. Uma hora da madrugada. Ia acordar o Rio de Janeiro todo com aquele
despertador estranho que desandava, de chofre, à sua cabeceira.