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Hélio Takashi Maciel de Farias
Contra as secas
A engenharia e as origens de um planejamento territorial no nordeste
brasileiro (1877 1938)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
Orientador: Prof.ª Drª. Angela Lúcia de
Araújo Ferreira.
N a t a l
2 0 0 8
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Hélio Takashi Maciel de Farias
Contra as secas
A engenharia e as origens de um planejamento territorial no nordeste
brasileiro (1877 1938)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
BANCA EXAMINADORA
...............................................................................
Prof.ª dr.ª Angela Lúcia de Araújo Ferreira
Orientador - PPGAU/UFRN
...............................................................................
Prof. Dr. Antonio Carlos Robert de Moraes
Examinador Externo Depto. Geografia/USP
...............................................................................
Prof. Dr. Raimundo Pereira de Alencar Arrais
Examinador Interno - PPgH/UFRN
...............................................................................
Prof. Dr. Rubenilson Brazão Texeira
Examinador Interno - PPGAU/UFRN
Natal, 16 de junho de 2008
C o n t r a a s S e c a s
ferro, concreto;
traços e braços contra
inverno seco.
A g r a d e c i m e n t o s
Agradecimentos
A minha mãe e minha tia, responsáveis pelo que sou e alcancei na vida.
A Juliana, pelo carinho e apoio ao longo desses anos.
A Angela, pela orientação não apenas no mestrado, mas ao longo de toda minha
formação acadêmica.
Aos professores Rubenilson Teixeira (PPGAU/UFRN), Raimundo Arrais (PPGH/UFRN) e
Almir Leal (PGHIST/UFC), pelo auxílio no decorrer desta pesquisa, e aos professores do
PPGAU/UFRN e PPGH/UFRN envolvidos nesta trajetória.
Aos companheiros de secas George, Gabriel, Adriano e Yuri, pela ajuda na pesquisa e
na revisão deste trabalho, e aos demais colegas do grupo HCUrb.
Aos arquivos visitados e aos funcionários e pesquisadores que neles encontrei e me
auxiliaram na aquisição de dados primários e referências para a pesquisa.
Ao CNPq, pelo apoio financeiro desde meus tempos de Iniciação Científica.
S u m á r i o
Considerações Iniciais
5
1. Prólogo: engenharia e ideologia
1.1. Uma nação em formação 13
1.2. Primórdios e expansão da engenharia no Brasil 21
1.3. Ensino Politécnico 25
1.4. Engenharia, ciência e Positivismo 28
2. O Homem: engenharia e poder
2.1. Emprego, política e modernidade 32
2.2. O discurso nos discursos 42
3. A Terra: engenharia e natureza
3.1. Ferro e Fogo 54
3.2. Uma nação por fazer 56
3.3. Em berço nem sempre esplêndido 57
3.4. Secas e Florestas 63
3.5. Delimitando o território das secas 68
4. A Luta: engenharia e seca
4.1. Seca: um problema nacional 77
4.2. Seca: por que combatê-la 79
4.3. Seca: como entendê-la 85
4.4. Seca: como combatê-la 91
4.5. Açudes: primeiros projetos 97
4.6. Açudes: grandes obras 101
4.7. Estradas: ferrovias 108
4.8. Estradas: rodovias 122
5. Epílogo: planejamento territorial
5.1. Planejamento: prelúdio 131
5.2. Planejamento Regional: primeiras Iniciativas 134
5.3. Planejamento Regional no Brasil: economia e desenvolvimento 139
5.4. Planejamento no Nordeste: política e economia 142
Considerações Finais
148
Referências Bibliográficas
154
R e s u m o | 1
FARIAS, Hélio Takashi Maciel de. Contra as Secas: A engenharia e as origens de um
planejamento regional no nordeste brasileiro. Dissertação (mestrado). 166p. Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal/RN, 2008.
RESUMO
As secas apresentaram-se, desde 1877, como um problema de solução imprescindível
para a nação brasileira em formação. Os engenheiros, que formavam a elite técnica e
científica do país, tomaram para si a responsabilidade de estudar, compreender e
combater o problema através de ações planejadas de intervenção sobre o espaço. Este
trabalho se propõe a, a partir das propostas e discussões expostas em revistas de
engenharia e relatórios, fornecer indícios para compreensão do significado que as
ações sistematizadas contra os efeitos das estiagens nas últimas décadas do século XIX
e primeiras do século XX tiveram no sentido de indicar elementos para a análise do
espaço e para a formação de um (então inexistente) corpo disciplinar de planejamento
urbano e regional no Brasil. Os engenheiros, ao assumir o posto de mentores da
modernização do país, garantiam para si mesmos estabilidade econômica pessoal,
prestígio social e poder político. Entendendo a natureza ora como um recurso a ser
explorado, ora como empecilho para o progresso nacional, exploraram o território das
secas, contribuindo com a própria delimitação da região que hoje chamamos
Nordeste. Procurando compreender o fenômeno das secas, acabaram por criar
conhecimento sobre o espaço sobre o qual pretendiam intervir; levando a cabo, em
meio a dificuldades econômicas e políticas, seus projetos, modificaram a estrutura de
organização de cidades e campo no nordeste. As propostas de açudes, por um lado,
possibilitariam a fixação da população e a resistência da economia às secas; as
estradas ferrovias e rodovias , por outro lado, conectariam o sertão às capitais e ao
litoral, facilitando o auxílio às populações durante as secas e possibilitando a circulação
de bens de forma a fortalecer as economias locais em tempos normais. As práticas e
técnicas adotadas, adaptadas de experiências estrangeiras e desenvolvidas a partir de
tentativas e ajustes, consolidaram-se como um curso de intervenção eminentemente
espacial, ainda que não tenha se formado um corpo teórico de planejamento regional
ou territorial no Brasil. O Planejamento Regional propriamente dito teve início no país
exatamente pela região Nordeste, na década de 1950, partindo de uma leitura
econômica da realidade para atingir o desenvolvimento. O trabalho que os
engenheiros efetuaram previamente, no entanto, não pode ser descartado. Ficou
provado que, apesar de enfrentar entraves financeiros e políticos, os engenheiros
tinham um profundo comprometimento com o problema e objetivaram agir
sistematicamente sobre o espaço de modo a transformar as relações econômicas e
sociais da região, para assim serem vitoriosos em sua luta contra as secas.
Palavras-chave: Planejamento regional e territorial, Combate às secas, Engenharia.
A b s t r a c t | 2
FARIAS, Hélio Takashi Maciel de. Against Droughts: Engineering and the origins of a
regional planning practice in the Brazilian northeast (1877-1938). Dissertation
(Masters degree). 166p. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/RN, 2008
ABSTRACT
Droughts surfaced in 1877 as a crucial problem for the birthing Brazilian nation.
Engineers, who formed the countrys technical and scientific elite, took it upon
themselves to study, understand and fight the problem through planned actions of
intervention on space. This work, based on proposals and discussions contained in
engineering magazines and reports, aims to provide elements for the comprehension
of how these systematized actions against droughts, in the late nineteenth and early
twentieth century, contributed to spatial analysis and the formation of a (then-
inexistent) regional and territorial planning discipline in Brazil. Engineers, by taking up
the position of masterminds in the countrys modernization, guaranteed for
themselves personal economic stability, social prestige and political power. By
understanding nature, either as a resource to be exploited or an adversary to national
progress, they contributed to the delimitation of the region now known as the
Northeast. By seeking to understand the drought phenomenon, they created
knowledge about the space they sought to intervene on; by constructing their projects
amid political and economical difficulty, they changed the organizational structures of
cities and country in the northeast. The proposals for açudes (large water reservoirs)
allowed the fixation of population and the resistance against droughts; the roads
railroads and automotive roadways connected the sertão to the capitals and the
coast, speeding up help to the affected populations during droughts and allowing the
circulation of goods so as to strengthen the local economies in normal rimes. The
adopted practices and techniques, adapted from foreign experience and developed
through trial and improvement, were consolidated as an eminently spatial intervention
course, even if a theoretical body of regional or territorial planning wasnt formed in
Brazil. Regional Planning proper was first applied in the country in the Northeast itself,
in the 1950s, based off an economical view of reality in order to achieve development.
The engineers work prior to that date, however, cannot be disconsidered. It was
proved that, despite facing financial and political hurdles, engineers had a profound
commitment to the problem and intended to act systematically to transform the
economical and social relations in the region, in order to be victorious in their struggle
against droughts.
Keywords: Territorial and regional planning, Combat against droughts, Engineering
L i s t a d e F i g u r a s | 3
Lista de figuras
Figura 1: D. Pedro II e as imagens de ciência e modernidade
Figura 2: Saturnino de Brito e Aarão Reis
Figura 3: Imagens de capa da Revista do Clube de Engenharia
Figura 4: Carnaubal atravessado pela estrada de rodagem de Fortaleza a Soure
Figura 5: Polígono das secas (1936) e Semi-Árido Brasileiro (2005)
Figura 6: A comitiva de Mário de Andrade no sertão do Rio Grande do Norte (1929).
Figura 7: Viajando o Sertão (capa da edição de 1985).
Figura 8: Imagens de satélite: ciclo climático no Nordeste
Figura 9: Um poço público construído pela IFOCS
Figura 10: Escritório da IFOCS no Rio: sede da seção de projetos e orçamentos
Figura 11: Vista da barragem do açude do Cedro
Figura 12: Barragem em construção no açude Acarapé
Figura 13: Mapa de construção de grandes açudes
Figura 14: Casa de força do açude Quixeramobim
Figura 15: Tropas de jumentos: transporte do sertão nordestino
Figura 16: Construção de uma estrada de ferro no Cariri, alto sertão cearense
Figura 17: Estação Central da Rede de Viação Cearense em Fortaleza
Figura 18: Engenheiros inspecionam construção de estrada de ferro
Figura 19: Rede da Great Western of Brazil Railway Company (1914).
Figura 20: Engenheiros, repórter e um Ford, em visita a obra de estrada de ferro.
Figura 21: João Chrockatt de Sá Pereira de Castro e André Gustavo Paulo de Frontin
Figura 22: Representação do plano de J. S. de Castro.
Figura 23: Locomotiva tipo Consolidation, com identificação da IFOCS
Figura 24: Uma curva na estrada de rodagem de Massapé a Meruoca
Figura 25: Construção da estrada junto ao riacho Natuba
Figura 26: Caminhões carregam material para obras contra as secas.
L i s t a d e a b r e v i a t u r a s e s i g l a s | 4
Lista de abreviaturas e siglas
APECE Arquivo Público do Estado do Ceará
BNB Banco do Nordeste do Brasil
BNDE Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico
BOR/UFRJ Biblioteca de Obras Raras da Escola Politécnica da UFRJ
CVSF Comissão do Vale do São Francisco
DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
DNOCS/CE Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Ceará)
EPUSP Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
GTDN Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
HCUrb Grupo de Estudo História da Cidade e do Urbanismo
IFCS/UFRJ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais do Rio de Janeiro
IFOCS Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas
IHGCE Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará
IHGRN Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN)
IOCS Inspetoria Nacional de Obras Contra as Secas
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
NUT-Secas/UFRN Núcleo Temático das Secas da UFRN
PGHIST/UFC Programa de Pós-Graduação em História Social da UFC
PPGAU/UFRN Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN
PPGH/UFRN Programa de Pós-Graduação em História da UFRN
SUDENE Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
UFC Universidade Federal do Ceará
UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 5
Considerações iniciais
Seca. Não obstante as tantas definições científicas, políticas, sociais, que a ela
podem ser associadas; independente das diversas tentativas de entendê-la, explicá-la,
combatê-la e explorá-la, a seca tende a evocar imediatamente certo conjunto de
imagens perenemente transmitidas e reiteradas pela mídia da natureza e dos
homens submetidos aos seus efeitos. Carrega consigo, também, conceitos que acabam
associando-se e muitas vezes sendo delimitados pela seca: no caso brasileiro, pode-se
argumentar, ela tornou-se parte do conjunto definidor, por exemplo, do que são
sertão e nordeste. Essencialmente entendida como uma interrupção na
disponibilidade natural da água, o efeito mais imediato que tem sobre a atividade
humana são os prejuízos na agropecuária, seguidos por uma crise de abastecimento
alimentar, causando evacuação populacional da zona rural e, nos piores casos,
mortalidade por fome e doença entre os afetados. A relação das secas com o ambiente
urbano, no entanto, não é tão imediata; ela se revela à medida que, ao se estudar a
primeira ou o segundo, se toma consciência das profundas implicações dos processos
físico-geográficos e humanos que as aproximam.
Foi dessa forma que a temática das secas apresentou-se recorrentemente nas
pesquisas do grupo HCUrb
1
, como fator que influenciou e justificou políticas de
controle e intervenções sobre o espaço urbano no Nordeste brasileiro ao longo do
século XX. Para investigar essas relações entre cidades e secas, o grupo iniciou em
2004 o projeto intitulado Entre as Secas e as Cidades: Formação de saberes, práticas e
representações do urbanismo (1850-1930)
2
, do qual faz parte a pesquisa que base
a este estudo. Especificamente, estudou-se como um dos eixos de análise desse
projeto a participação dos engenheiros na construção de conhecimentos relativos ao
1
O grupo de estudo História da Cidade e do Urbanismo (HCUrb), do qual o autor faz parte desde 2002,
vinculado à Base de Pesquisa Estudos do Habitat, do Departamento de Arquitetura da UFRN.
Encontra-se em atividade desde 1998, e conta com um vasto acervo de dados digitais e bibliográficos
levantados ao longo de sua existência.
2
Projeto que tem como objetivo geral compreender o papel dos saberes, das práticas e das
representações sobre as secas na construção da cidade moderna no Nordeste e na consolidação do
urbanismo no Brasil.
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 6
combate às secas e sua relação com a constituição de saberes e proposições sobre a
cidade e o território.
Procura-se, assim, compreender aqui o significado que as ões sistematizadas
contra os efeitos das estiagens nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século
XX tiveram no sentido de indicar elementos para a análise do espaço e para a
formação de um (então inexistente) corpo disciplinar de planejamento urbano e
regional no Brasil. Os resultados deste trabalho serão uma contribuição para o novo
projeto de pesquisa do grupo HCUrb, A Dimensão Técnica da Seca e a Construção e
Planejamento do Território e da Cidade (1850-1935), que teve início em março de
2008
3
; pretende-se, de forma mais geral, cooperar com a construção de um quadro
historiográfico que poderá desvendar processos e fatos que tomaram parte na
construção do espaço de uma região do Brasil na virada entre os culos XIX e XX, e
cujas consequências e desdobramentos persistem na atualidade.
Tomamos, para tanto, como ponto inicial da pesquisa o ano de 1877, marcado
por um lado por uma das maiores secas a afetar a sociedade brasileira na história, e
por outro por uma série de sessões no Instituto Politécnico, no Rio de Janeiro, nas
quais as secas, suas causas e possíveis soluções foram discutidas abertamente e de
forma técnica e aprofundada pelos engenheiros presentes na ocasião. O período
estudado estende-se até a segunda metade da década de 1930, quando mudanças
políticas e institucionais começavam a dar caráter institucional e oficial ao
planejamento econômico e regional como instrumento do Estado, e quando a
discussão acerca do urbanismo como disciplina se ampliava e consolidava nas
publicações de engenharia no Brasil. Enquanto o estabelecimento do Estado Novo em
1937 sinalizou o início de uma política mais firmemente interventiva por parte do
governo, adotamos como marco final específico a oficialização da região Nordeste, em
1938, que consideramos emblemática no processo de desenvolvimento de ações sobre
a região. Apesar de concentradas as atenções sobre esse recorte mais específico,
3
Este trabalho atende principalmente a dois dos cinco objetivos desse projeto, quais sejam:
-Consolidar a discussão sobre as matrizes intelectuais da formação da cultura técnica dos
engenheiros, politécnicos em especial, no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX;
- Investigar e debater as interfaces entre a constituição dos saberes e práticas sobre as secas e a
constituição dos saberes e práticas sobre as cidades.
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 7
retrocedemos, de acordo com a necessidade, a períodos anteriores para sinalizar
fundamentos institucionais ou ideológicos que estiveram por trás das propostas aqui
discutidas, assim como avançamos até datas posteriores para acompanhar o
desenrolar de acontecimentos que se relacionaram com nosso tema específico em
particular, o desenvolvimento e difusão do planejamento regional no Brasil.
É importante esclarecer o uso que fazemos do conceito de território. Entendido
de forma mais geral como um espaço ao qual se associa um pertencimento seja por
controle legal ou efetivo ou mesmo por apropriação afetiva (CORRÊA, 1994) ,
trataremos especificamente de um território físico, enquanto noção geográfica e
jurídico-política (FOUCAULT, 1990), um espaço submetido primariamente ao controle
do Estado. Esse território político difere da região, que pode ter significado fiscal,
administrativo e/ou militar (FOUCAULT, 1990) ou ainda econômico ou paisagístico
(MORAES, 2007). O território pode assim, em virtude das diferentes escalas em que se
pode considerá-lo (FOLCH, 2003), conter ou estar contido em uma ou mais regiões. O
processo de construção do(s) território(s) objetivado(s) pelas propostas que
estudaremos será abordado ao longo do trabalho. Adotamos também como
fundamental para esta pesquisa a idéia de Planejamento Territorial enquanto
proposição de caráter primariamente espacial sobre o território uma escolha
justificada pela característica eminentemente econômica associada às propostas de
Planejamento Regional a partir de meados do século XX.
A escolha pelo estudo dos registros de discussões e ações dos engenheiros, em
particular, derivou-se de indicações originadas nos trabalhos prévios do grupo HCUrb,
que apontam para a importância que profissionais como Saturnino de Brito, Aarão Reis
e Henrique de Novaes, entre outros
4
, tiveram na intervenção sobre o espaço das
cidades brasileiras nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX, assim como
pelo papel pivotal que exerceram no direcionamento das políticas e ações de combate
às secas no mesmo período. Os engenheiros faziam parte, durante esse período, de
uma restrita elite intelectual do país; eram homens letrados, detentores de formação
4
Sobre a atuação desses profissionais no planejamento urbano, cf. LEME (1999), DANTAS (2003),
EDUARDO (2008), FERREIRA et al. (2008), e projetos anteriores do grupo HCUrb.
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 8
em nível superior, e nesse aspecto igualados por poucos (principalmente advogados e
médicos), enquanto a grande maioria da população nacional tinha pouca ou nenhuma
instrução formal e não sabia ler ou escrever. Eram também parte da elite no sentido
em que constituíam um grupo minoritário com influência decisiva em certos
acontecimentos (CARVALHO, 1996), influência que puderam exercer através da
aceitação dentro dos círculos da elite, que a opinião popular tinha então pouca
relevância na adoção de políticas públicas de suas idéias, que circulavam em
publicações especializadas. Desta forma, foram tomadas como fonte principal para
todo o estudo realizado as revistas de engenharia
5
, nas quais eram publicados artigos
relacionados aos diversos aspectos da ação dos engenheiros, atas de reuniões de
clubes e institutos de engenharia, notícias e relatórios técnicos de obras, e nas quais
está documentada, portanto, uma parcela significativa das discussões técnicas e
políticas das quais os engenheiros tomaram parte. Outros relatórios, artigos e
publicações escritos pelos próprios engenheiros naquele período são utilizados de
forma complementar às revistas como fonte de dados primários. Ainda que se tenha
tido acesso e trabalhado com material publicado por profissionais contemporâneos e
por autores posteriores que diz respeito aos engenheiros e suas obras, escolheu-se
concentrar a análise primária e construir o trabalho a partir do material escrito pelos
próprios engenheiros.
Esse material
6
foi levantado como parte do projeto de pesquisa Entre as Secas
e as Cidades, nos arquivos do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, da Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP), da Biblioteca de Obras Raras da
Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (BOR/UFRJ), da Biblioteca
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), do Arquivo do
DNOCS do Ceará (DNOCS/CE), do Acervo Público do Estado do Ceará (APECE), do
Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (IHGCE), do Núcleo Temático
5
Fizeram parte do levantamento e análise para este trabalho: Revista de Engenharia (editada no Rio de
Janeiro, anos de 1879 a 1891); Revista do Clube de Engenharia (Rio de Janeiro, 1887 a 1944); Revista
Brazil Ferro-Carril (Rio de Janeiro, 1910-1923); Revista Brasileira de Engenharia (Rio de Janeiro, 1920 a
1935); Revista Polytechnica (São Paulo, 1906 a 1935); Revista de Engenharia do Mackenzie College (São
Paulo, 1918 a 1938) mais informações sobre as revistas estão disponíveis no capítulo 2 deste trabalho.
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 9
das Secas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (NUT-Secas/UFRN) e do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), pelo autor do
trabalho ou pela equipe do grupo HCUrb, no período de dezembro de 2005 a maio de
2007. O estudo bibliográfico que permitiu a contextualização e análise apropriada dos
dados aqui apresentados teve o objetivo de esclarecer os temas gerais da engenharia
brasileira no período em questão, das secas e do combate às secas, da formação
regional do Nordeste e do planejamento urbano e regional em formação no panorama
nacional e internacional
7
. Trabalhos acadêmicos cujo conteúdo se aproxima dos temas
estudados neste trabalho também auxiliaram a análise dos dados da pesquisa,
particularmente as teses de doutoramento A política de combate a seca no nordeste:
uma ideologia para o planejamento regional, de Odilardo Viana de Avelar Jr (USP,
1994) e Planos para o Império: os planos de viação do Segundo Reinado (1869-1899),
de Manoel Fernandes de Sousa Neto (USP, 2004); as dissertações de mestrado A
construção da aridez: representações da natureza, regionalização e institucionalização
do combate à seca (1877-1909), de Rafael Winter Ribeiro (UFRJ, 2001) e Os
politécnicos: ciência e reorganização social segundo o pensamento positivista da
Escola Politécnica do Rio de Janeiro (1862-1922), de Luiz Otávio Ferreira (UFRJ, 1989);
e a monografia de graduação As cidades e os trilhos: resgate histórico da implantação
das ferrovias no Rio Grande do Norte e inventário de suas estações, de Gabriel
Leopoldino Paulo de Medeiros (UFRN, 2007). Os diversos artigos publicados pelo
HCUrb relacionados ao projeto de pesquisa em andamento serviram igualmente como
embasamento para a discussão contida nesta dissertação.
Mesmo que toda fonte de dados requeira atenção aos conteúdos discursivos
imbricados na exposição que fazem da realidade, a utilização das fontes primárias,
como se fez neste trabalho, requer alguns cuidados especiais. Essa discussão será feita
levando em consideração noções, conceitos e categorias apresentados por Michel
Foucault em seus trabalhos As Palavras e as Coisas, e A Arqueologia do Saber, e
7
Nota-se que a bibliografia acerca do planejamento territorial voltou-se principalmente para o espaço
intra-urbano a partir da década de 1980, tendo o interesse acerca do planejamento regional ressurgido
mais recentemente, em obras como a de Anita Kon (1999) e Carlos Brandão (2007), voltando a ser mais
enfatizada a dimensão territorial abandonada nas análises dos economistas.
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 10
discutidos em O Homem e o Discurso e A Ordem do Discurso. Em nenhum de seus
trabalhos Foucault tratou a engenharia de modo específico, como o fez com a
medicina, ou a psiquiatria, ou as ciências humanas; no entanto, suas asserções sobre a
ciência e sobre o discurso conceito central em sua obra, mas que o próprio Foucault
admite ter uma significação um tanto flutuante (FOUCAULT, 2002) podem ser
aplicadas a ela, mantendo-se em mente as devidas precauções concernentes aos
campos teóricos e práticos que explora. Não se tentou realizar aqui uma arqueologia
da engenharia no Brasil, como Foucault a fez para a filologia, a biologia e a economia
política. Não se trata, tampouco, de dissecar as práticas discursivas ao nível dos
enunciados, das formações sintáticas e semânticas
8
. Procuramos apenas ter em mente
que estamos lidando com um discurso de uma ciência que não é só o lugar tranquilo
a partir do qual outras questões são levantadas (FOUCAULT, 2002, p.29), mas é
instrumento de disputas de poder e dominação, influenciado por ideologias políticas,
sociais e econômicas; discurso que é ao mesmo tempo ferramenta e despojo de luta
(FOUCAULT, 1971). Procura-se, enfim, um entendimento do discurso, não como a
totalidade das palavras ditas, mas como um grande texto uniforme; e busca-se uma
aproximação do discurso não como aquilo que foi dito, mas como aquilo que se quis
dizer, através dos sentidos implícitos, nas entrelinhas e nos entre-textos que somos
capazes de identificar em seus enunciados (FOUCAULT, 2002). Para tanto, destacamos
tanto as regularidades quanto as perturbações na uniformidade discursiva, que
combinadas podem oferecer um panorama mais completo de como se construíram as
propostas para combate às secas e como elas acabaram transformando-se em
propostas de intervenção espacial em diversas escalas.
Essas propostas, lançadas naquele período sem contar com uma verdadeira
organização ou embasamento em um campo disciplinar definido, e cujas origens
conceituais e teóricas procuramos localizar ao longo do trabalho, só viriam a ser
formalizadas e transformadas em prática institucional quando da criação da SUDENE
(Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), em 1959. Esse momento pode
ser considerado a culminação de quase um século de discussões e pressionamentos
8
Destaca-se ainda que o discurso é aqui tomado como veículo de informação e fonte de dados, e não
como objeto primário da pesquisa, em si.
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 11
que, tendo inicialmente a participação de engenheiros e políticos, ganha força
posteriormente em outros setores da sociedade nacional (AVELAR JR, 1994). É
importante notar que, ainda que estudos tenham sido feitos sobre o combate às secas
nessa época e sobre o planejamento como política de trabalho da SUDENE, a
associação entre combate às secas e agenciamento do espaço no período pré-SUDENE
e pré-DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) ainda se encontra
praticamente inexplorada.
A reflexão aqui realizada ressalta, portanto, aspectos pouco conhecidos da
gênese do planejamento regional e territorial no Brasil área de conhecimento
relativamente recente que, enquanto disciplina acadêmica, entrou nos currículos de
graduação e pós-graduação no Brasil apenas na década de 1970 e que se encontra em
contínuo processo de consolidação de suas bases teóricas e práticas, adaptando-se à
realidade fluida que caracteriza a construção das cidades e do território. Para atender
à questão principal levantada como o enfrentamento das adversidades climáticas no
Nordeste induziu a geração de conhecimentos e instrumentos de análise e intervenção
sobre o território em suas diferentes escalas? norteadora das reflexões aqui
realizadas, pode-se estruturar algumas pressuposições: que os conhecimentos que os
engenheiros possuíam lhes colocavam em posição privilegiada, permitindo-lhes
entender e agir sobre o espaço; que a forma como as propostas de obras contra as
secas eram conduzidas criava elementos definidores e articuladores da organização
territorial; e que de fato essa ação sobre o espaço inseriu elementos que se refletiriam
na formação de um corpo teórico para a análise, intervenção e planejamento espacial
no país.
No intuito de construir a narrativa que leva à compreensão da associação entre
temas aparentemente distintos o conhecimento acerca das secas e do planejamento
urbano e regional , este trabalho foi dividido em cinco partes. A primeira parte do
trabalho, intitulada Prólogo: Engenharia e Ideologia, tem por fim expor o contexto
social e ideológico do qual se originaram as propostas que abordaremos, tratando de
temas inerentes à construção da nação brasileira ao longo do período estudado, e às
origens da engenharia e do pensamento dos politécnicos no Brasil, em finais do século
C o n s i d e r a ç õ e s I n i c i a i s | 12
XIX e início do XX. A segunda parte, intitulada
9
O Homem: Engenharia e Poder, trata
da inserção desses profissionais na sociedade e, iniciando a exposição dos resultados
obtidos a partir do levantamento de dados primários nos arquivos, busca elucidar
como os engenheiros tomaram para si a posição de principais propositores do
combate às secas e da intervenção espacial no país, fator essencial para a
compreensão da relação entre os dois focos de proposta. Em seguida, A Terra:
Engenharia e Natureza tem por objetivo discutir o entendimento que os engenheiros
tinham do espaço sobre o qual deveriam intervir: a natureza do Brasil, e
especificamente da área que hoje chamamos de Nordeste
10
; e como a sua área de
intervenção o espaço das secas veio a ser delimitado. A quarta parte, A Luta:
Engenharia e Seca apresenta as propostas de combate às secas em si, desde o
conhecimento que se tinha acerca do fenômeno, passando pela discussão das formas
de combate, e chegando aos dois principais tipos de proposta com destacados efeitos
espaciais: os açudes e as estradas. A quinta parte do trabalho Epílogo: Planejamento
Territorial põe em perspectiva os dados discutidos, expondo um breve panorama da
origem das idéias do planejamento regional e sua evolução no Brasil, procurando
situar a ação dos engenheiros no contexto das iniciativas de planejamento no
Nordeste brasileiro, que vieram em seguida ao período estudado. Na parte final do
trabalho, então, são tecidas considerações sobre os resultados da pesquisa, analisando
a significância das propostas discutidas e sua relação com o contexto maior do
planejamento regional, tanto no Brasil quanto nos países desenvolvidos.
9
Adaptamos para a nomeação das três partes centrais do trabalho a estrutura de Os Sertões de
Euclides da Cunha, apresentando inicialmente O Homem (engenheiro), que posteriormente se dirige a
A Terra (o sertão nordestino) para efetuar A Luta (contra as secas).
10
Como veremos mais detalhadamente, o conceito de Nordeste como região brasileira só foi
oficializado no final da década de 1930, e passou por transformações desde então. Quando este
trabalho mencionar o Nordeste, no entanto, independente da época a que se refere e exceto se for feito
apontamento ao contrário, considere-se que tratamos do conceito oficial atual de Nordeste, formado
pelos Estados da Federação MA, PI, CE, RN, PE, PB, SE, AL e BA.
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 13
1. Origens: Engenharia e Ideologia
1.1. Uma nação em formação
As idéias e propostas discutidas ao longo deste trabalho surgiram inicialmente
em um momento e local específico (o Brasil do Segundo Reinado) e desenvolveram-se
enquanto esse contexto alterava-se em aspectos políticos, sociais e principalmente,
no que diz respeito a esta pesquisa ideológicos. Dessa forma, embora o Brasil tenha
surgido no discurso intelectual ao longo de todo o período em questão de meados do
século XIX até as primeiras décadas do século XX como uma nação em formação, ele
passou também por sucessivas transformações que deixaram reflexos nos acordos e
nas polêmicas registradas pela história.
O Império brasileiro era uma nação peculiar: cercado de todos os lados por
repúblicas, foi a exceção ao modelo republicano nas Américas; tendo mantido sua
integridade territorial após a independência, contrapunha-se também às ex-colônias
espanholas, fragmentadas e politicamente instáveis; encabeçado por um governo civil,
contrastou com as nações vizinhas de tendências caudilhistas. Continha, dentro de si
próprio, outras tantas contradições: uma monarquia parlamentarista com um
Imperador centralizador; liberdade de imprensa e um regime escravista; uma
população de grande maioria mestiça e analfabeta e elites que tencionavam pensar e
viver como se habitassem o centro da civilização européia (SCHWARCZ, 2002;
CARVALHO, 1996). As tentativas de resolução ou, ao menos, acomodação desses
conflitos envolveram temas essenciais para a compreensão do pensamento da época,
entre os quais estiveram a natureza do próprio sistema político e legal, a manutenção
da ordem e defesa das fronteiras nacionais, as reformas urbanas e as características
raciais e culturais da nação.
O Brasil não se configurou, durante o período imperial, como um Estado
nacional não havia, e nem poderia haver, face às desigualdades inerentes ao
sistema monárquico-escravagista com fortes resquícios da política colonial, um
sentimento de nacionalidade; ademais, a ocupação do espaço brasileiro em inícios do
século XIX configurava uma espécie de arquipélago geográfico de enclaves coloniais
distintos e pouco comunicáveis (MORAES, 2007). O Império brasileiro foi, de fato, um
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 14
Estado territorial, cuja unidade foi mantida através da rígida autoridade central; um
ente político preenchido por vazios civilizacionais, áreas a ser conquistadas que
constituíam fundos territoriais para a apropriação e exploração futura. Era,
enquanto Estado periférico às principais potências mundiais, um Império fragilizado
em sua dependência econômica dos rumos dos mercados internacionais, e em sua
impotência bélica e portanto incapacidade de imposição dos interesses próprios
frente às nações mais avançadas (MORAES, 2005).
No âmbito político, o Império atingiu seu apogeu a partir da década de 1850.
Superadas as numerosas revoltas que marcaram o período regencial e estabilizado o
sistema político monárquico-parlamentarista que equilibrava dois partidos
Conservador e Liberal com poucas diferenças práticas de postura política, o
Imperador D. Pedro II pôde, através de uma atuação fortemente centralizadora, iniciar
um projeto de nação voltado, ao menos no discurso oficial, para o progresso material e
científico (CARVALHO, 1996). Essa fase estável teve fim à medida que elementos como
o constante e crescente déficit das contas imperiais, em especial após a guerra do
Figura 1: D. Pedro II, mecenas da cultura e assíduo freqüentador das sessões dos institutos
científicos, associou-se constantemente em seus retratos a imagens do conhecimento, como livros e
globos (esq.) e do progresso, como ferrovias e navios a vapor (dir.). FONTE: SCHWARCZ, 2002.
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 15
Paraguai, o surgimento do Exército e da Marinha como atores no jogo político após
esse conflito, as disputas a respeito da abolição da escravatura (à qual o Imperador se
declarou favorável ainda em 1866), o surgimento do Partido Republicano e a difusão
da ideologia positivista deram início à decadência do sistema imperial, nos anos 1870.
A preocupação do Estado de, a despeito dos contrastes políticos e sociais
mencionados, fundar uma nação com uma história unificada e oficial, ficaram
evidentes desde 1838, ainda no início do Segundo Reinado, quando, em uma
simbiose entre Estado e historiografia (VENTURA, 1991), foi criado o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no Rio de Janeiro, cujos trabalhos eram
dedicados a exaltar e glorificar a pátria, enquanto consagravam simultaneamente a
elite local, em especial os próprios membros de seus quadros (SCHWARCZ, 1993).
Fundado por sugestão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional associação civil
que assumiria um papel de incentivadora da modernização nacional ao longo do século
XIX , o IHGB, mais do que um recurso de cunho científico para legitimação do discurso
oficial, foi também pioneiro, através de comissões de exploração, na cartografia e
documentação dos sertões brasileiros, avançando o projeto de apropriação daquelas
áreas até então selvagens (MORAES, 2005). A figura de D. Pedro II, que aparecia
desde então como incentivador da ciência e cultura, ganhou ainda mais destaque nos
anos 1850, quando os esforços de construção nacional expandiram-se nos campos
imagético e literário. Associava-se então o Brasil à imagem do indígena, nobre
selvagem retratado na poesia, prosa e pintura românticas, e exaltava-se sua natureza
rica e exuberante, ao mesmo tempo em que se procurava aproximá-lo dos ideais de
civilização e progresso (SCHWARCZ, 2002).
A defesa dessa civilização tropical teria que contrariar idéias estabelecidas,
como a teoria de Montesquieu a respeito das zonas tórridas segundo a qual o
clima abrasivo das áreas próximas ao equador causaria o relaxamento dos nervos,
submetendo seus habitantes a um perpétuo abatimento e preguiça, criando
sociedades marcadas pela escravidão, poligamia e despotismo. A ideologia de detração
do Novo Mundo, intensificada na segunda metade do século XIX por teorias como as
de Buffon, que colocava a infantilidade do continente como justificativa para o
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 16
atraso evolutivo de suas populações, e de de Pauw, que aventava, por outro lado, que
o ambiente americano teria causado a degradação dos povos que haviam migrado
para aquelas terras (VENTURA, 1991). Visitantes estrangeiros em geral citavam com
deslumbre a exuberante paisagem natural brasileira, contrastada ou mesmo servindo
como uma espécie de compensação à paisagem humana e social, para eles
decepcionante
11
. O debate dos intelectuais brasileiros se deu então no sentido de
rejeitar essa suposta inferioridade, ressaltando atributos como a coragem e a
imaginação dos americanos (VENTURA, 1991). Com a penetração, a partir da década
de 1870, de teorias evolucionistas e de uma espécie de racismo científico, as
discussões sobre o potencial da nação logo se deslocaram dos fatores climáticos para a
composição racial do povo brasileiro.
A publicação da Origem das Espécies de Darwin, em 1859, cujos conceitos
evolucionistas foram adaptados para as mais diversas áreas do conhecimento, deu
suporte científico a uma corrente de determinismo racial que dominou os círculos
intelectuais das décadas seguintes
12
. Cada raça passava então a ser vista como uma
realidade objetiva auto-contida, com qualidades e defeitos próprios, adquiridos
através da seleção natural. A hibridação de diferentes raças era vista quase que
invariavelmente como um mal, pois tendia a resultar apenas na combinação das piores
características postura defendida e largamente divulgada por Artur de Gobineau,
autor de um Ensaio sobre a desigualdade das Raças (SCHWARCZ, 1993). A
penetração de tais idéias no Brasil imperial, apesar de poupar de certa forma o
elemento indígena, foi extremamente nociva em relação aos mestiços, predominantes
na composição étnica nacional, e principalmente aos negros. A nacionalidade era
então deslocada do plano da cultura para a natureza (SCHWARCZ, 1993, p. 245). O
11
Uma exceção a essa regra pode ser encontrada nos relatos do inglês Henry Koster, aportado no Recife
em 1809, e que, ao contrário de Artur de Gobineau e outros que achavam os brasileiros feios,
registrou sua apreciação pelas mulatas brasileiras, as mais belas e de maior atividade de espírito e
corpo. Reprovava, no entanto, o sistema escravista (SCHWARCZ, 2002, p.250)
12
Discutiam-se nesse período duas diferentes concepções de origem da humanidade a monogenia,
segundo a qual a espécie tivera uma origem comum, e se separado em diversos grupos, situados em
diferentes patamares de perfectibilidade; e a poligenia, para a qual a humanidade era formada for
diferentes raças, cujo potencial evolutivo estava determinado. A interpretação racista do Darwinismo
fez com que a segunda predominasse após a divulgação da Origem das Espécies (SCHWARCZ, 1993).
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 17
escravo era então visto como uma linha negra que limitava o progresso do país
(VENTURA, 1991, p. 47). Procurando justificar também a disparidade de progresso
entre a América Latina e os Estados Unidos, os intelectuais recorriam a uma espécie de
auto-exotismo, utilizando fatores raciais e demográficos para explicar a situação
nacional (VENTURA, 1991). Em resposta a essas perspectivas, surgiram, além de
propostas de diferenciação legal entre as raças, as primeiras proposições de
intervenção com o objetivo de depuração racial, a busca da eugenia, que
perduraria República adentro, até os anos 1920.
Foi, portanto, dentro desse contexto de desprezo, por parte das elites, de
grande parte da população brasileira negra ou mestiça que se situa o principal
marco político do período estudado: a proclamação da República. Ao longo das
décadas de 1870 e 1880, enquanto a monarquia perdia o apoio dos latifundiários
sulistas, alienados pelo processo de libertação dos escravos iniciado com a Lei do
Ventre Livre (1871), uma oposição abolicionista e republicana se formava (SCHWARCZ,
2002), comunicando suas idéias através de um crescente números de periódicos
diários e de um círculo de leitores em expansão (VENTURA, 1991). Embora D. Pedro II
continuasse sua política de incentivo à ciência e divulgação do Brasil como civilização
tropical, participando ativamente das atividades de instituições como o IHGB e o
Instituto Politécnico e patrocinando grandes participações em exposições universais, e
ainda que o monarca desfrutasse de grande popularidade frente ao povo, o regime se
enfraquecia e demonstrava vulnerabilidade (SCHWARCZ, 2002).
Os partidários da república não eram, no entanto, unívocos em suas propostas
de implementação do regime republicano. Divididos entre defensores de uma
república liberal democrática, segundo o modelo norte-americano, de uma república
participativa segundo o modelo francês jacobino, ou de uma ditadura republicana,
segundo preceitos positivistas, os republicanos não chegaram a organizar uma ação
coordenada para tomar o poder. Em uma série de eventos de iniciativa militar que
recebeu o apoio de republicanos civis mas teve pouca ou nenhuma participação da
população em geral, que na realidade não rejeitava a monarquia nem o monarca
(CARVALHO, 1987). Os anos que se seguiram foram marcados por turbulências
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 18
políticas e econômicas, marcada pelo individualismo e capitalismo predatório
(CARVALHO, 1998, p. 30) e pela disputa entre militares e civis pelo crédito da
proclamação e entre as diferentes correntes ideológicas pelo poder de ditar os rumos
da nova república os próprios republicanos não escondiam a decepção com o estado
do sistema político e mesmo do relaxamento da moral e costumes na última década
do século XIX. Mesmo em meio a essa instabilidade, os novos dirigentes da nação não
descuidaram da tarefa de substituir o imaginário imperial por novos ícones de forma a
ancorar a ideologia republicana e deixar sua própria marca na construção da nação
13
(CARVALHO, 1998).
A República nascente também enfrentou outros desafios. Se o Império
enfrentou em seus primeiros anos conflitos como a guerra pela província Cisplatina, e
em seu auge a sangrenta guerra do Paraguai, além de conter diversas rebeliões
internas, o novo governo teve que debelar na década de 1890 a revolta em Canudos
e resolver as questões fronteiriças que anexaram ao território nacional os territórios
do Amapá (em 1900) e do Acre (em 1903), além de diversas outras áreas menores nos
limites do extremo norte e oeste (VLACH, 2007) o domínio sobre a Amazônia, a partir
da lucrativa exploração da borracha, tornava-se parte essencial da política nacional.
Mas não era apenas nos distantes sertões que a ordem e a integridade da República
eram ameaçados: a Capital Federal foi palco, em 1904, de outro episódio conflituoso: a
chamada Revolta da Vacina.
O Rio de Janeiro da virada do século era a mais populosa cidade do país, capital
econômica, política e cultural da nação (CARVALHO, 1987). Era, também, como tal,
palco de problemas urbanos causados pelo excesso de população boa parte da qual
era composta por ex-escravos, desempregados ou subempregados , palco das
primeiras greves e manifestações operárias, e afligida por epidemias que afetavam
toda a população local. Era uma situação que requeria intervenções firmes para
13
Tentativas que tiveram resultados pouco consistentes: a nova bandeira mantinha a configuração do
estandarte imperial; o herói da República, buscado na figura de Tiradentes, atingiu apelo popular a
partir de sua identificação com o Cristo; a identificação do ideal republicano com a figura feminina teve
pouquíssimo respaldo e logo tornou-se alvo de chacota na imprensa; o hino nacional imperial manteve-
se inalterado (CARVALHO, 1998)
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 19
restaurar e manter o estado de ordem, sob a ótica positivista de governo. As ações de
reforma urbana da capital tiveram na administração do engenheiro Pereira Passos
(1902-1906) seu período mais intenso e emblemático. Inspirado pelas obras de
Haussmann em Paris, Pereira Passos ordenou a abertura de ruas, a destruição de
cortiços, a imposição de leis de costumes e higiene. Uma decisão em particular, no
entanto, foi alvo de oposição cerrada no Congresso e na imprensa: a obrigatoriedade
da vacinação contra a varíola. A população, sentindo-se ferida em sua liberdade e
privacidade e, principalmente em seus princípios morais imprensa e boatos
exageravam a ofensa à honra e aos pudores femininos que o processo de vacinação
poderia acarretar , insurgiu-se contra a polícia em uma série de protestos violentos e
conflitos que duraram dias, deixando dezenas de mortos e feridos e centenas de
presos. Essa revolta evidenciava mais uma vez o alto grau de alienação entre o projeto
político e social das elites e as necessidades da população. A população, analfabeta em
sua grande maioria, não participava da vida política nacional, assim como as camadas
dominantes ignoravam ou mesmo condenavam as manifestações da cultura popular.
(CARVALHO, 1987). Nesse momento, vale lembrar, as teorias racistas, ainda longe de
terem sido superadas, estavam na verdade fortalecidas nas idéias eugenistas.
Empreendidos por homens de ciência desiludidos e céticos com a perspectiva
de igualdade e progresso trazida pela abolição e pela República (SCHWARCZ, 1993), os
projetos de melhoramento da raça brasileira nas primeiras décadas do século XX
foram adotados, em geral, a partir da perspectiva de branqueamento da população,
através da introdução do elemento branco, preferencialmente imigrado da Europa
ocidental ou central. Enquanto alguns defensores da eugenia previam que, através da
seleção natural, a raça superior branca se sobreporia às demais e, dentro de
algumas gerações, alcançaria o predomínio populacional no país, outros achavam
necessário tomar medidas mais duras, de esterilização compulsória das raças inferiores
ou dos portadores de enfermidades físicas ou mentais. Oferecendo legitimidade a
essas idéias estavam médicos especializados em métodos como a frenologia e
craniometria, que supunham ser possível determinar dados da personalidade de um
indivíduo através do estudo de suas características físicas (SCHWARCZ, 1993). O crítico
literário Sílvio Romero foi um dos principais nomes da discussão racial, identificando as
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 20
causas da dependência cultural que detectava no Brasil como oriundas do servilismo
do negro, a preguiça do índio e o gênio autoritário e tacanho do português
(VENTURA, 1991, p. 49), e defendendo o branqueamento do país, especialmente
com a introdução de exemplares da raça germânica.
A denúncia do racismo científico como ideologia do imperialismo europeu,
apoiada por intelectuais isolados (VENTURA, 1991), ganhou força na década de 1920,
quando cientistas começaram a identificar o atraso nacional com questões
higiênicas e sociais, e não somente raciais (SCHWARCZ, 1993). Artistas do movimento
modernista e intelectuais regionalistas passavam também em interessar-se pelo
folclore e exaltar a cultural popular, situando os elementos negros e mestiços como
partes fundamentais da identidade nacional. Durante a década de 1930, as teorias
racistas foram finalmente rejeitadas pela comunidade científica internacional, e o
eugenismo perdeu sua força no Brasil não antes que se implementassem
programas extensivos e custosos de incentivo à imigração européia. A partir dos
anos 1930, passou a predominar na produção cultural o elogio à miscigenação e o
ufanismo da civilização tropical.
Invertiam-se, assim, mais uma vez os caminhos do projeto de nação, em um
momento em que o contexto político passava por mais uma reviravolta: terminado
com outro golpe de Estado o período da República Velha no Brasil, tinha início um
período de vigorosa ão intervencionista, seguido por um governo ditatorial e pelo
posterior envolvimento do país na Segunda Guerra Mundial novas transformações,
que extrapolam os objetivos desta descrição, ainda afetariam a recente nação.
A ocorrência dessas modificações políticas pode ser atribuída aos reflexos da
dinamização econômica e ao aumento de complexidade ideológica e demográfica no
país nas primeiras décadas do século XX (MORAES, 2005), fruto da imigração
estrangeira, da melhoria nas comunicações e do impulso urbano e industrial,
centralizados principalmente no centro-sul do país. O território foi progressivamente
explorado por novos atores, como o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil,
fundado em 1907 (FIGUEIRÔA, 2007). Ainda assim, preocupações com a integridade do
território nacional continuavam fazendo parte do discurso das elites: a intervenção
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 21
norte-americana no Panamá causou temor pelas fronteiras Amazônicas, e mesmo em
1925, se falava da possibilidade de desmembramentos políticos por pressões
internas (VLACH, 2007, p. 560).
As primeiras décadas do século XX tiveram destaque, também, como um
período em que a modernização atingiu as principais cidades do país. Guiados pelo
exemplo da Capital Federal, reformas urbanas regularizadoras e sanitaristas foram
aplicadas às cidades cujas elites se pretendiam igualmente modernas e se
espelhavam no exemplo europeu de civilização. Em uma espécie de modernização
conservadora (MORAES, 2005), inovações técnicas na comunicação, transporte e
trabalho, em especial as possibilitadas pela energia elétrica e pelo motor de
combustão, modificaram estruturas de produção e redes de sociabilidade, sem alterar
as estruturas de dominação. Acima de tudo, o poder de ação dos homens de ciência,
em especial dos técnicos, expandiu-se em escopo e alcance. Os engenheiros, que com
raras exceções, haviam estado afastados das esferas do poder, passaram a ocupar não
apenas cargos em comissões e órgãos de pesquisa e projeto sob a égide do Estado,
como também posições políticas de destaque na administração de diversas cidades. Os
itens seguintes deste trabalho buscam esclarecer esse processo, acompanhando as
origens e expansão da engenharia brasileira e sua ascensão para a posição de
destaque da qual desfrutaram no período estudado.
1.2. Primórdios e expansão da engenharia no Brasil
A prática da engenharia no Brasil colonial esteve, em geral, associada à carreira
e às obras militares em especial à construção de fortificações. A construção civil era
de fato e o continuou sendo até o século XX orientada e executada pelos chamados
práticos, sem diplomação de nível superior ou experiência acadêmica. O
planejamento das aglomerações urbanas, quando existia, era baseado em leis que
estabeleciam modelos relativamente simples, e a decisão de criar novas aglomerações
ainda estava, na maioria das vezes, ligada à necessidade da Coroa portuguesa de
assegurar a posse sobre o território, ainda em disputa com outras potências
colonizadoras européias, e sob ataque da população nativa (DELSON, 1997).
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 22
Até finais do século XVIII, os engenheiros que atuavam no território brasileiro
eram em sua quase totalidade formados na Europa; as primeiras iniciativas,
esporádicas e pouco organizadas, de ensino técnico no país tiveram início em meados
do século XVII, em aulas isoladas, mas foi apenas em 1792, com a criação da Real
Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho no Rio de Janeiro, que se pôde contar
com um estabelecimento dedicado ao ensino de ciências e formação de engenheiros
no país
14
. Na Academia (que é antecedente direta da Escola Politécnica do Rio de
Janeiro) eram transmitidos, além de uma forte base matemática e de disciplinas de
geometria, física, e aplicações militares, conhecimentos específicos do que se viria a
chamar de engenharia civil, destinados à construção de prédios e estradas
15
. Essa
iniciativa, que se poderia considerar contraditória frente à tradicional política de
desestímulo ao ensino superior na colônia, representava um passo evolucionário em
relação às aulas e cursos isolados que vinham sendo oferecidos ao longo do século
XVIII (TELLES, 1994).
Em 1810, logo após a chegada da família Real portuguesa ao Brasil, foi criada a
Academia Real Militar, que sucedeu a Real Academia no ensino das ciências e da
engenharia. Ainda que continuasse em todos os aspectos um estabelecimento militar,
administrado por oficiais e impondo disciplina militar aos alunos e professores, seus
cursos destinavam-se a formar profissionais destinados a atuar em todos os aspectos
da engenharia na colônia, incluindo-se mineração, geografia e construção de pontes e
canais. Em 1823, passaram a ser aceitas matrículas de alunos civis na Academia; a
separação do currículo civil iniciou-se em 1831, com a criação do curso de Pontes e
Calçadas (baseados nos cursos de Ponts et Chaussés franceses), com duração de dois
anos. Dez anos depois, passava a ser emitido o título de Doutor, desvinculado das
patentes militares.
Na década de 1850, respondendo às necessidades de transporte de cargas
criadas pela cafeicultura do centro-sul, que ganhava importância na pauta de
14
Sobre o período inicial da prática e ensino da engenharia no Brasil, consultar as obras de Roberta
Marx Delson (DELSON, 1998a; DELSON, 1998b) e Beatriz Bueno (BUENO, 2001).
15
Ressalta-se que dos livros que se sabe foram usados no ensino das disciplinas, todos eram de autores
franceses.
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 23
exportação e começava a transformar a economia do país, e favorecida pela iniciativa
de alguns industriais e empreendedores, foi iniciada a construção de estradas de ferro
no Brasil. Criou-se, assim, uma considerável demanda por novos profissionais e novo
conhecimento, que tornou necessária uma reformulação do ensino de engenharia.
Como resposta a essa necessidade, e continuando a tendência de desligamento da
engenharia da esfera militar, a Academia Real Militar foi desmembrada, em 1855, em
Escola de Aplicação do Exército, onde era mantida a ordem militar e os cursos de
artilharia e fortificações, e Escola Militar da Corte, onde se aplicavam os cursos de
matemáticas e engenharia. Essa organização foi logo substituída, quando um decreto
imperial de maio de 1858 criou a Escola Central, voltada exclusivamente para as
disciplinas da engenharia civil, entre as quais grande destaque era conferido à
construção de estradas de ferro (naquele momento, o Brasil já possuía três estradas de
ferro em funcionamento, construídas e operadas por engenheiros estrangeiros)
16
. É
importante notar que o currículo da Escola Central, além das disciplinas voltadas para
as diversas especialidades e aplicações da engenharia, incluía também o ensino de
economia política, estatística e princípios de direito administrativo, evidenciando-se
uma preocupação de preparar os engenheiros para ocupar cargos políticos e
administrativos (TELLES, 1994).
A criação da Escola Central se deu em um momento em que os engenheiros
estavam envolvidos em embates ideológicos, buscando maior representatividade
dentro da estrutura política brasileira. De fato, vivia-se então certa estagnação
científica no Brasil, com o fim de uma geração de iluministas na política nacional,
que não teria equivalentes até a década de 1870 (CARVALHO, 2002). Os ministérios
eram então dominados pelos chamados bacharéis, formados nas escolas de direito,
constantemente criticados pelos engenheiros por sua formação e retórica livrescas, e,
com exceção dos mandatos do Barão do Rio Branco
17
os técnicos só galgaram posições
políticas destacadas após a proclamação da república. Apesar disto, a expansão das
estradas de ferro, por si própria, serviu como principal propulsora para a valorização
16
Mais informações sobre as Estradas de Ferro no Capítulo 5 (A Luta)
17
José Maria da Silva Paranhos, formado em ciências matemáticas, ocupou, entre outros cargos, o de
primeiro ministro do império (1871-1875).
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 24
da atuação dos engenheiros, e permaneceria a maior empregadora desses
profissionais até a difusão do concreto armado na construção civil, na década de
1920.
O Instituto Politécnico surgiu em 1862 para, a exemplo do que a Sociedade de
Medicina do Rio de Janeiro e o Instituto dos Advogados Brasileiros representavam para
suas respectivas profissões, servir como local de reunião, e discussão dos interesses
dos cientistas, técnicos e engenheiros, funcionando de forma complementar à Escola
Central na transmissão e produção de conhecimentos de engenharia. Criava-se então,
nas palavras do engenheiro Guilherme Shuch de Capanema, à ocasião da inauguração,
um centro, onde [os engenheiros brasileiros] livremente pudessem conversar a
respeito das matérias concernentes à profissão (COELHO, 1999, p. 193). O Instituto
não se caracterizava como órgão de representação corporativa da categoria embora
aspectos sobre a prática profissional fossem por vezes abordados nas reuniões , mas
dedicava-se, essencialmente, à difusão de conhecimentos teóricos e práticos e ao
desenvolvimento da ciência nacional; os temas discutidos iam desde astronomia e
equações matemáticas a equipamentos de estradas de ferro e armas de guerra, entre
outros (COELHO, 1999). Em suas seis décadas de funcionamento, foi também fórum de
introdução e difusão de novas correntes ideológicas destacando-se, entre elas, o
positivismo, abordado mais adiante nesse trabalho.
Por facilitar encontros e discussões entre profissionais preocupados com tais
questões, a fundação do Instituto Politécnico veio a ser considerada por Luiz Otávio
Ferreira (1989) como ponto inicial para sua periodização da história social dos
intelectuais científicos no Brasil corroborando sob perspectiva histórica a relevância
que os primeiros membros atribuíam àquela nascente instituição quando de sua
inauguração. As tentativas de fortalecimento do espírito científico no país,
organizadas por esses intelectuais, iriam culminar na criação da Escola Politécnica do
Rio de Janeiro, sucessora da Escola Central, em 1874, e da Escola de Minas de Ouro
Preto, em 1875.
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 25
1.3. Ensino Politécnico
A Escola Politécnica do Rio de Janeiro foi fundada em 25 de abril de 1874, com
caráter completamente civil, subordinada ao Ministério do Império. Oferecia
inicialmente, além de um curso geral (com duração de dois anos), cursos científicos em
Ciências Físicas e Naturais e Ciências sicas e Matemáticas (de dois anos cada um) e
especializações em Engenharia Civil, Engenharia de Minas e Engenharia de Artes e
Manufaturas (com durações respectivas de três anos
18
), todos com currículos
baseados fortemente em métodos e livros franceses.
O curso geral, no qual eram ensinadas noções de matemática, geometria, física,
química e biologia, era uma necessidade, dada a condição precária do ensino
secundário à época, em especial no que se referia às ciências exatas, tanto em questão
de conteúdo (que contemplava apenas as noções mais elementares) quanto de
metodologia (que recebia fortes críticas por ser pouco voltada para o raciocínio, e por
demais para a memorização (CARVALHO, 2002). Os cursos científicos da Escola,
voltados para a formação de bacharéis em ciências e não engenheiros propriamente
ditos, foram extintos em uma reforma de 1890, fato que gerou críticas e longas
discussões. Os cursos de engenharia sofreriam também numerosas reformas ao longo
dos anos, com mudanças nos currículos, transformações, supressão e adição de cursos.
A Escola de Minas de Ouro Preto, criada logo em seguida à Escola Politécnica (a
determinação para a fundação data de 1875) e com o currículo voltado
especificamente para a mineração e geologia, foi o primeiro estabelecimento de
ensino técnico-científico em nível superior a funcionar fora do Rio de Janeiro. A
rivalidade que seria uma constante entre as duas Escolas se fez notar desde a
elaboração do regulamento da Escola de Minas, quando professores da Politécnica,
analisando a proposta do francês Claude Henri Gorceix, fizeram emendas e ressalvas
ao rígido regime de ensino proposto. Ao longo dos anos, alunos e ex-alunos das duas
escolas disputaram influência e empregos, e o pequeno tamanho dos quadros
discentes pela Escola de Ouro Preto era constante alvo de críticas dos cariocas. Se
18
Ao completar o primeiro ano do curso de Engenharia Civil, recebia-se o título de Engenheiro Geógrafo
(TELLES, 1994)
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 26
durante um período (1890-1896) a sobreposição dos currículos das duas escolas
diminuiu com a extinção do curso de engenharia de minas na Politécnica, ela
aumentou, por outro lado, com mudanças na estrutura do curso da Escola de Minas,
que a partir de 1893 passava a dar aos seus formandos a habilitação de Engenheiro
Civil (CARVALHO, 2002).
O ensino na Escola Politécnica era muito exigente, mas pouco objetivo;
enquanto o curso geral fornecia uma boa formação básica, os alunos muitas vezes
faltavam a aulas de matérias cuja especificidade não os interessava; a freqüência
obrigatória foi implantada apenas em uma lei de 1901, que, mesmo assim, não era
cumprida à risca (TELLES, 1994). Não obstante deficiências no ensino, a gama de
conhecimentos oferecidos permitiu a formação de engenheiros que, de forma
parcialmente autodidata, qualificavam-se para atuar nas diversas especialidades da
engenharia. A Escola de Minas de Ouro Preto, em contraste, impunha uma disciplina
mais rígida, com atividades em regime de tempo integral para professores e alunos e
freqüência obrigatória. A escola mineira diferia também por exigir a aprovação dos
candidatos a vagas em um exame; a alta taxa de reprovação limitava o número de
alunos e fez necessária a criação, na própria escola, de um curso preparatório, de certa
forma semelhante ao curso geral da Politécnica. Enquanto nenhuma das duas escolas
cobrava taxas para freqüência em contraste com as escolas de medicina e direito,
que exigiam o pagamento de elevadas anuidades a escola de Minas também diferia
por oferecer, a alunos considerados pobres, bolsas de estudos para que se
pudessem sustentar-se ao longo da duração do curso (CARVALHO, 1998).
O estado de São Paulo, que rapidamente ganhava importância e fortalecia seu
processo de modernização e industrialização, criou seu próprio Instituto Politécnico
em 1892 e sua Escola Politécnica em 1894, que, com o objetivo de atender a
necessidades científicas e utilitárias, contava inicialmente com cursos de Engenharia
Civil, Engenharia Industrial e Engenharia Agrícola, posteriormente expandidos com
cadeiras especiais de engenharia mecânica, engenharia elétrica e arquitetura. Ainda
em 1897 foi fundada a Escola Politécnica da Bahia, por iniciativa de Arlindo Coelho
Fragoso, ex-aluno da Politécnica do Rio de Janeiro. Essa última era uma escola
particular ainda que recebesse algum subsídio estatal e foi, não obstante o
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 27
funcionamento improvisado no período inicial, o primeiro estabelecimento de
ensino superior de engenharia na região atualmente conhecida como Nordeste.
Um fato em particular dava importância especial às faculdades no Brasil: era de
seu meio, e não dos praticantes sem formação acadêmica (como ocorrido nos Estados
Unidos e Europa), que surgiam as elites profissionais (COELHO, 1999). As escolas de
engenharia, além de atender à função básica de ensino e incentivar, em níveis
distintos, a pesquisa e desenvolvimento científico, funcionavam de forma paralela aos
institutos politécnicos na difusão de idéias entre a comunidade técnica, e na
organização da ação dessa comunidade no que dizia respeito à sua participação na
vida social e política do país. Durante o século XIX, entre as questões mais marcantes
discutidas estiveram a abolição da escravatura, ativamente defendida pelo Instituto
Politécnico do Rio de Janeiro (sob a liderança de André Rebouças, professor da
Politécnica e ele próprio de raça mestiça) e a implantação da República, que dividiu
alunos e professores entre republicanos (principalmente os de corrente positivista) e
monarquistas (notadamente Rebouças e Paulo de Frontin) (TELLES, 1994). A Escola de
Minas de Ouro Preto, pouco influenciada pelo positivismo e sempre defendida pelo
Imperador, opôs-se à mudança de regime.
O pensamento positivista, que será abordado no item seguinte com mais
profundidade, foi o fator desencadeador de polêmicas reformas no ensino a partir de
1890, que visavam implantar a livre-docência (que permitiria a qualquer engenheiro
dar cursos extracurriculares nas escolas) e a freqüência livre para os alunos (à qual a
Escola de Minas resistiu fortemente). A discussão, surgida ainda na década de 1860,
causava divisões mesmo entre os liberais, principalmente quando associada à
liberalização do exercício profissional, que diminuiria o valor do diploma acadêmico no
mercado de trabalho. No ensino secundário, por outro lado, as reformas positivistas
deram ênfase ao ensino científico, resultando num impulso (ainda que pouco longevo)
ao desenvolvimento das ciências no país. Durante o período que seguiu-se à
proclamação da República, a influência positivista se fortaleceria ainda mais no meio
intelectual brasileiro, e os engenheiros ocuparam uma posição central na adaptação
dessa filosofia às necessidades do regime no país.
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 28
1.4. Engenharia, ciência e Positivismo
A formação plural recebida no curso geral e nas diversas especialidades
oferecidas pelas escolas, que capacitava os engenheiros politécnicos a projetar e
supervisionar a construção de obras tão diversas quanto edifícios, poços, estradas,
barragens e mesmo cidades
19
, também fazia deles, de fato, homens da ciência
moderna (ou, especificamente, de ciências então consideradas positivas:
matemática, física, química); comprometidos, portanto, com o conjunto de discursos e
práticas discursivas a ela pertencentes. Cabia às ciências positivas buscar não a
essência, mas as leis; não os seres, mas suas regularidades, em uma mudança de
postura que, iniciada no final do século XVIII, e dando fim a uma tradição da idade
clássica, transformaria saberes, práticas e discursos (FOUCAULT, 1999),
estabelecendo
um novo modelo de se pensar e fazer ciência.
A esse pensamento, ou epistémê como Michel Foucault define o conjunto
de práticas discursivas que dão origem a figuras epistemológicas, ciências e sistemas
formalizados (FOUCAULT, 2002) da ciência moderna, somava-se entre os
engenheiros brasileiros da época a forte influência da filosofia positivista, do Grande
Positivismo de Comte, e portanto da oposição entre ciência (encaminhada pelos
interesses do espírito) e opinião (representando os interesses da vida); da
valorização da empiria e desqualificação da metafísica enquanto explicação para a
natureza dos fenômenos e para os fenômenos da natureza (STENGERS, 2002). O
pensamento do século XIX possui, dessa forma, uma vontade de verdade, expressada
por um discurso ingênuo, cuja verdade estava apoiada na verdade do objeto, tratado
de forma exclusivamente empírica (FOUCAULT, 1999). Parece adequado, portanto, que
os engenheiros, cuja atuação baseava-se em ciências da primeira das três dimensões
da epistémê moderna apontadas por Foucault ou seja, aquelas para as quais a
ordem é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições evidentes ou
verificadas (FOUCAULT, 1999), adotassem o ideal positivista como mote em seus
discursos, participando do folclore particular da pretensa total objetividade
(STENGERS, 2002).
19
Como foi o caso de Belo Horizonte, projetada pelo politécnico Aarão Reis, em 1892.
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 29
Dentre as idéias que influenciaram as elites intelectuais ocidentais no culo
XIX, o positivismo foi uma das mais difundidas, em suas diversas vertentes e através de
diferentes veículos. Surgido de uma necessidade percebida de reformar-se a sociedade
respondendo às mudanças econômicas e produtivas decorrentes da ascensão da
burguesia à posição dominante na Europa, teve no francês Auguste Comte (1798-
1857) seu principal desenvolvedor e propagador.
Tendo estudado na École Polytechnique de Paris e na escola médica de
Montpellier, Comte tinha a mente voltada para a ciência, mas também influenciada
pelo conservadorismo cristão. Sua busca por reorganização social baseava-se não em
uma revolução política, mas em uma reforma intelectual e moral baseada em uma
ciência social que seria supostamente positiva, baseada na observação das leis
naturais da sociedade, a exemplo das ciências experimentais já desenvolvidas. O
objetivo declarado dessa reforma seria o aumento da felicidade das sociedades,
através do desenvolvimento das ciências, sem ameaça à ordem social estabelecida
(FERREIRA, 1989).
No pensamento de Comte, a sociedade tinha uma estática essencial, na qual as
funções dividiam-se entre cada segmento. A família e o Estado seriam os pilares dessa
estrutura, e os elementos percebidos em todas as sociedades seriam a propriedade
material, a família, a linguagem, a religião e o governo. A sociedade positivista seguiria
em direção ao progresso, teleologicamente e seguindo leis objetivas, em direção a um
estágio definitivo de altruísmo, pacifismo, industrialismo e cientificismo. O dado
positivo seria, ao mesmo tempo, real e útil (propriedades fundamentais), certo e
preciso (atributos intelectuais), orgânico e relativo (propriedades sociais) e
simpático (assimilação da origem moral pela aceitação final). A disciplina de
consciência submetida à experiência moderna pregada por Comte passava por uma
observação, reflexão e classificação da realidade através de critérios racionais que
permitiriam uma avaliação exata, ou seja, positiva, da natureza (FERREIRA, 1989). O
Positivismo era, dessa forma, essencialmente uma ideologia da contra-revolução.
Mesmo consideradas essas características básicas, o positivismo como
ideologia não foi monolítico. O pensamento do próprio Comte mudou ao longo de sua
vida; durante sua juventude acreditava que a política deveria subordinar-se à
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 30
economia; passou posteriormente a defender que a crise não era material, mas
intelectual, moral e espiritual. Como parte de seu projeto de sistematização de toda
existência humana, individual e sobretudo coletiva, e reconhecendo entre as tais leis
naturais a necessidade de culto, veio a criar sua religião da humanidade, o que
transformou o positivismo Comteano em uma espécie de seita, aspecto criticado por
muitos e que teve pouca difusão, mesmo entre os que concordavam com a ética e
moral positivista, em geral. Variantes heterodoxas do positivismo também existiram,
entre as quais se destaca o Spencerismo
20
, mais próximo do liberalismo, para o qual a
dominação da classe burguesa os mais aptos dentro da dinâmica moderna era
decorrência natural da evolução social, e que condenava intervenções estatais na
economia e à regulamentação da indústria. Outra variante, o Darwinismo social e as
teorias racistas criadas em torno dele, era utilizada para dar justificativas
pretensamente científicas à desigualdade social entre os grupos étnicos.
No Brasil, as diversas versões e derivações do positivismo exerceram inegável
influência ideológica, mesmo que nem sempre em suas formas mais puras, mas
sempre pairando de forma difusa no discurso de muitos intelectuais, destacadamente
daqueles que se reivindicavam cientistas. Profundamente ligado à modernização
social e ao pensamento das elites da segunda metade do século XIX, o positivismo
impregnou-se na ideologia política brasileira, influenciando os movimentos pela
abolição da escravatura e, principalmente, pela proclamação da República, marcada
pelo mote claramente positivista da busca de ordem e progresso. O positivismo no
Brasil foi então usado como suporte para a construção de uma sociedade disciplinar;
seus conteúdos autoritários, afirma Luiza Otávio Ferreira (1989, p. 79), adequaram-se e
reforçaram tendências autoritaristas historicamente predominantes no
desenvolvimento da sociedade brasileira; o caráter difuso de sua introdução
favoreceu, também, a aceitação de idéias de cunho evolucionista social com
destaque para aquelas derivadas do pensamento de Herbert Spencer entre a
burguesia nacional.
O positivismo, enfim, serviu (de forma intencional ou não) como ferramenta
para fortalecer a hegemonia burguesa no Brasil, e dessa forma permitiu que essas
20
Derivado do pensamento de Herbert Spencer
1 . P r ó l o g o : e n g e n h a r i a e i d e o l o g i a | 31
elites tomassem as rédeas do processo de modernização da sociedade, da economia e
da produção espacial no país. Mais do que uma substituição de idéias, esse processo
passaria pela modernização da estrutura física que dava suporte à economia nacional,
à cafeicultura e à nascente industrialização, tarefa que recairia sobre as mãos dos
engenheiros. Para realizar esse ideal, no entanto, era-lhes necessário garantir para si a
posição de orquestradores de tal processo.
Na parte seguinte O Homem: engenharia e poder discute-se como os
engenheiros, tematizando o conhecimento científico e técnico que detinham e a
ideologia positivista que defendiam, empunharam o discurso como ferramenta para
legitimar suas vontades perante a sociedade. Utilizando noções fornecidas pela obra
de Michel Foucault e iniciando-se a exposição do trabalho realizado com as fontes
primárias, exemplifica-se também a forma como o discurso da engenharia foi utilizado,
dentro do próprio estabelecimento de ensino para reproduzir a rede de influência e
poder dos engenheiros, e como aqueles intelectuais/técnicos conseguiram posicionar-
se como detentores do conhecimento e do poder para liderar a modernização técnica
e espacial do país na virada do século XIX para o XX.
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 32
2. O Homem: engenharia e poder
A nossa Pátria, mais do que qualquer outra, precisa da
collaboração activa e efficaz de seus engenheiros.
Antonio Francisco de Paula Souza, 1901
2.1. Emprego, política e modernidade
O processo de modernização da sociedade brasileira envolveu esforços de
transformação da estrutura física, econômica, social e política transformações que
puderam ser realizadas através da ação de elites intelectuais, com acesso a
conhecimentos técnicos atualizados e um variado substrato ideológico. Os
engenheiros, instruídos em uma mentalidade de herança iluminista e guiados pela
confiança positivista, não foram meros operários nesse processo; sentiam-se
qualificados para e destinados a moldar o futuro da nação.
A atuação de profissionais como engenheiros, médicos e advogados foi, de
fato, essencial para a formação dos Estados Nacionais modernos na Europa,
constituindo parte do próprio aparato estatal e indispensável para a governabilidade.
Essa posição foi naturalmente refletida na formação do Estado brasileiro, modelado
em grande parte a partir das nações européias. A própria legislação que dava conta da
estrutura administrativa brasileira havia sido, por bem ou por mal, escrita a partir de
uma combinação não muito sistemática ou harmônica de leis inglesas, americanas
e, principalmente, francesas (COELHO, 1999). Poder-se-ia esperar, portanto, que a
trajetória de crescimento, regulação, reconhecimento e atuação dos engenheiros no
Brasil refletisse aquela dos profissionais europeus. A realidade nacional diferia, no
entanto, profundamente daquela em que os intelectuais procuravam inspirar-se: em
uma nação de baixíssimo grau de desenvolvimento industrial, escravagista até o final
do período imperial, e pouco preparada para a dinâmica capitalista, o espaço para a
atuação dos engenheiros era restrito, a iniciar pela essencial questão da
disponibilidade de empregos.
As oportunidades de trabalho para os então poucos engenheiros brasileiros
eram escassas até a segunda metade do século XIX. Embora a Corte Imperial viesse se
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 33
aproximando do ideal civilizatório europeu desde meados daquele século, contando
com diversas livrarias, casas de chá, charutarias e lojas de outros artigos de luxo, pouco
progresso ocorria no mercado de trabalho para os homens de ciência em 1865,
enquanto o Rio de Janeiro contava com 74 professores de piano e canto, apenas 19
dentistas e 27 engenheiros encontravam emprego (COELHO, 1999). A introdução de
inovações técnicas primariamente as estradas de ferro foi, a um tempo,
empregadora para muitos profissionais, e incentivadora para a formação de outros. Foi
com as ferrovias que o trabalho da engenharia, antes limitada à construção de
fortificações, prédios públicos, ou levantamento e demarcação de fronteiras, tomou
fundamentos mais econômicos e menos políticos (TELLES, 1994). O mercado de
empregos não dispunha, mesmo assim, de vagas abundantes para os recém-formados,
e a formação de novos profissionais seguia contrabalançando o aumento de
oportunidades no país
21
. Entre as opções disponíveis além das ferrovias muitas das
quais estatais , figuravam principalmente a construção civil, a indústria de
transformação, metalúrgica e mineradora, as comissões de estudos, o ensino nas
escolas de engenharia e os cargos públicos.
No campo da construção civil, os engenheiros encontravam concorrência dos
arquitetos, muitas vezes estrangeiros, envolvidos na produção dos prédios de maior
vulto, geralmente de estilo neoclássico derivado diretamente do que era feito na
Europa. Em maior escala, e com grande destaque no discurso politécnico, estava a
concorrência com os mestres de obras, desprezados e recriminados pelos
engenheiros devido à sua carência de estudos superiores. Esses práticos, diziam os
diplomados, com suas construções que rotulavam inseguras e insalubres, colocavam
em risco o bem-estar público. Apesar da aparente preocupação, não eram
especialmente interessantes aos engenheiros as pequenas obras civis que os práticos
nacionais executavam; em seu horizonte estavam grandes obras de remodelação
urbana, conjuntos habitacionais, saneamento e outros empreendimentos de similar
porte (COELHO, 1999). Era, não obstante, de seu interesse, assumir, como categoria, o
21
A relação entre o número de engenheiros para 100.000 habitantes no Rio de Janeiro cresce
continuamente de 1, em 1849, para 16 em 1872, 19 em 1890 e 55 em 1906 (COELHO, 1999).
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 34
monopólio do saber e das decisões relativas à modelação do espaço urbano, e
incorporar para si a tarefa de transformar a cidade colonial em cidade moderna.
A indústria, por seu caráter incipiente no país, tinha poucas oportunidades a
oferecer, principalmente antes do maior desenvolvimento da cafeicultura em São
Paulo. A situação se agravava por serem muitas das indústrias instaladas de
propriedade de empresas estrangeiras, principalmente inglesas, e empregarem
exclusivamente engenheiros de seu país de origem. O pequeno desenvolvimento da
metalurgia no país criava problemas ainda mais graves para os formandos da Escola de
Minas, que após um extenuante curso superior não tinham onde empregar-se e aplicar
seus conhecimentos, dependendo das ocasionais vagas em comissões oficiais de
geologia, ou buscando reinserir-se no meio acadêmico como professores, razão para a
reforma curricular de 1882, que incluiu noções de engenharia civil e ferroviária no
ensino da Escola (CARVALHO, 2002).
Figura 2: Saturnino de Brito (esq.) e Aarão Reis (dir.) são exemplos do envolvimento e atuação de
engenheiros em áreas que iam desde o planejamento urbano ao combate às secas, passando por temas
como saneamento e ferrovias.
FONTE: Acervo do grupo HCUrb
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 35
As comissões temporárias geridas pelo Estado recebiam atribuições de
levantamentos geográficos, topográficos e geológicos das províncias. Sua atuação era
inconstante, por vezes sendo dissolvidas por uma razão ou outra, mesmo antes de
serem atingidos seus objetivos entre essas estavam algumas comissões criadas para
o estudo das áreas afetadas pelas secas. Corpos de engenheiros de maior
permanência, subordinados aos ministérios responsáveis pelas obras públicas eram
uma opção de bom retorno, mas poucas vagas estavam disponíveis. A maior parte das
províncias e capitais não dispunha de engenheiros encarregados permanentemente; a
Diretoria Geral de Obras Públicas, de atuação nacional, contava em 1871 com 33 vagas
para engenheiros, com rendimentos mensais que iam de 900 mil-réis (para o inspetor
geral, cargo mais elevado) a 400 mil-réis (para engenheiros de classe, cargos
inferiores) (CARVALHO, 2002). O emprego na burocracia foi de fato, no Brasil imperial,
um dos mais importantes canais de mobilidade social (CARVALHO, 1998).
O emprego nas escolas de engenharia mostrava-se como uma boa opção, dada
a relativa estabilidade oferecida e os salários razoáveis. A média de salário anual dos
professores da Escola de Politécnica em 1878 era de 3:364 mil-réis, superior, por
exemplo, ao das faculdades de direito (2:817$) e de medicina (2:790$) mas inferior,
ainda, aos salários dos funcionários da Diretoria Geral de Obras Públicas; os
professores, quando possível, trabalhavam externamente à escola, para obter
complemento de renda. Já na Escola de Minas os vencimentos médios eram de 6:000$,
chegando a 12:000$ para o diretor Gorceix fato que era alvo de reclamações dos
professores do Rio de Janeiro, mas justificado pelos mineiros pelo caráter de
dedicação exclusiva em tempo integral requerido pela Escola de Ouro Preto
(CARVALHO, 2002).
Os engenheiros poderiam, por fim, tentar empregar-se em cargos dentro da
administração pública. Essa busca ia além da necessidade de trabalho, adquirindo
cunho ideológico e político, à medida que os engenheiros disputavam com os
bacharéis (principalmente advogados) os cargos que por eles eram erroneamente
(assim diziam) ocupados, e que poderiam dar aos técnicos o comando da
modernização nacional e o monopólio de funções estratégicas dentro do Estado. Os
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 36
advogados, cujo prestígio residia em parte exatamente na possibilidade de ocupar
posições de poder, concedida por sua educação específica, empreendiam seus
próprios esforços para a manutenção da carga simbólica da profissão, apelando
inclusive para o discurso da aplicação de um direito, sociologia e literatura científicos
(SCHWARCZ, 1993). A articulação dos engenheiros para substituição dos bacharéis no
poder teve início ainda no século XIX, como apontado, mas assumiria um caráter
decisivo e resultados expressivos apenas a partir dos anos 1930 o que mesmo assim
não tornou confortável a situação: no ano de 1935, enquanto 643 cargos estavam
disponíveis para engenheiros na administração pública federal, 370 novos profissionais
se formaram, entrando no mercado.
Encontrar posições para empregar-se já era em si, portanto, um desafio para os
engenheiros brasileiros; a compensação que recebiam ao consegui-lo, por outro lado,
os colocava, em média, entre a parcela da população melhor remunerada na capital do
Império, como mostra a análise de Edmundo Campos Coelho sobre dados levantados
22
em 1876. As listas eleitorais daquele ano apontam para os engenheiros uma renda
média anual de 4:196$, contra 721$ para os Trabalhadores urbanos e artesãos
(artesãos, operários e similares) e 1:735$ para Empregados a serviço do estado
(servidores públicos, membros do clero, oficiais, etc). Se comparados aos rendimentos
dos médicos, 4:823$, e dos advogados, 5:142$, no entanto, a engenharia aparece
como a pior remunerada dentre as principais profissões liberais da Corte
23
(COELHO,
1999). A realidade é que, se alguns poucos engenheiros como Pereira Passos ou Paulo
de Frontin desfrutavam de bons rendimentos e razoável prestígio social
complementados por modos e trato quase aristocráticos, a grande maioria poderia ser
descrita como o funcionário público exemplar, o profissional das comissões técnicas
do governo, o modesto fiscal de obras (COELHO, 1999, p. 219), qualidades
representadas na figura de Aarão Reis.
22
O mesmo autor questiona a exatidão dos dados, principalmente no que se refere aos vencimentos de
advogados e médicos, que, desconfia, foram modestos em suas declarações.
23
Para efeito de comparação, têm-se que os ministros de Estado tinham renda anual de 12:000$,
enquanto ministros do Supremo Tribunal de Justiça (órgão superior da Justiça imperial) recebiam
9:000$, e aqueles dos tribunais da Relação, 6:000$.
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 37
Entre outras preocupações da categoria dos engenheiros no final do século XIX,
estavam a luta pela regularização profissional da engenharia, inexistente mesmo anos
após a criação da Escola Politécnica, e o estabelecimento de garantias legais para o
exercício da profissão, benefício adquirido por médicos e bacharéis. No campo do
ensino, opunham-se os politécnicos, favoráveis à regulamentação dos ensinos primário
e secundário, e os bacharéis, defensores de sua liberalização; alguns dos católicos-
conservadores chegaram a criticar as próprias escolas politécnicas, por serem supostos
viveiros de positivistas e materialistas (CARVALHO, 2002).
Esses embates políticos e ideológicos carregavam consigo aspectos de disputa
social: os engenheiros não possuíam, à época, o mesmo prestígio de que desfrutavam
os bacharéis. Nas famílias que faziam parte das elites brasileiras, era comum que a
primeira opção para a profissão dos filhos fosse a carreira no Direito, que lhes
permitiria alcançar destaque na política e sucesso financeiro; a engenharia era uma
opção secundária, e por vezes contestada. Muitos dos alunos das escolas de
engenharia eram, de fato, provenientes de famílias menos abastadas, ou da pequena
burguesia emergente; um melhor posicionamento da categoria dos engenheiros lhes
possibilitaria, portanto, maiores ganhos econômicos e sociais.
A valorização da engenharia na sociedade dependia, de forma geral, de uma
maior compreensão e valorização da função do cientista. Os engenheiros
politécnicos possuíam, além de um saber enciclopédico resultante de um currículo
escolar variado, a singularidade de sua educação científica, que lhes deveria capacitar
a exercer suas funções com objetividade, precisão e neutralidade de pensamento,
ação e sentimento (FERREIRA, 1989, p. 118). Esses cientistas, fazendo uso de uma
inteligência disciplinada, se viam destinados a levar à frente a reorganização e o
progresso da sociedade. Os cientistas brasileiros, como referido anteriormente,
começaram a organizar-se como categoria social na época da criação do Instituto
Politécnico Brasileiro (1862), espaço de produção e reprodução de sua concepção do
mundo. Constituía-se, assim, uma classe científica antes que se fosse criada no país
uma estrutura estatal de suporte à atividade, e ainda em frente a conflitos com um
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 38
pensamento ligado ao regime escravocrata que desvalorizava ou mesmo recriminava o
trabalho material, e que permaneceria latente durante várias décadas.
Dentro das perspectivas de modernização das cidades brasileiras, os
engenheiros disputaram espaço com outra categoria de cientistas em particular: os
médicos. Apesar de a medicina do século XIX estar ainda profundamente ligada ao
conceito de uma arte de curar, na qual os praticantes por vezes criavam suas
próprias receitas e todos, atingindo ou não sucesso através da tentativa e erro, os
profissionais pertenciam àquele grupo educado sob preceitos que se propunham
científicos, oriundos do pensamento iluminista. A trajetória da criação de instituições
de regulação, pesquisa e ensino da medicina no Brasil teve, também, um considerável
paralelismo em relação àquela da engenharia, e da mesma forma que os engenheiros
tiveram que se impor sobre os mestres-de-obras e práticos, os médicos participaram
de contendas com curandeiros, e forçaram a dominação da alopatia sobre a
homeopatia, e percebiam como classe rival os bacharéis e a judicocracia (COELHO,
1999).
A medicina teve um importante papel na discussão racial de finais do século XIX
e início do XX, entendendo as raças como objeto de ciência, opinando sobre as
características físicas e psicológicas inerentes a cada uma, sobre os resultados da
miscigenação, e sobre projetos de eugenia para efetuar a cura da nação,
transformada em um grande hospital. Absorveram também teorias como a frenologia
para uso em medicina legal, que se propunha a identificar tendências criminosas a
partir da conformação crânio-facial dos indivíduos (SCHWARCZ, 1993). No âmbito das
reformas urbanas, a principal ferramenta de legitimação e poder da medicina ou ao
menos das elites médicas, que através de seu discurso deixaram sua marca na história
foi o higienismo
24
. Através da ação pela higiene pública, criava-se uma medicina
tropical (SCHWARCZ, 1993, p. 223), estudando-se formas de combate às moléstias
consideradas inerentes ao clima brasileiro. Propagandeando o lema de que prevenir é
curar, a justificativa de combate às epidemias e outros males sanitários deu aos
24
Sobre os efeitos das políticas higienistas sobre o ambiente urbano no Brasil, cf. FERREIRA, EDUARDO e
DANTAS (2007); DANTAS (2003), EDUARDO (2008) e FERREIRA et. al (2008)
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 39
médicos a autoridade para ditar reformas urbanas e exercer funções de polícia
médica, além da possibilidade de galgar posições no Estado. Apesar dessa posição
aparentemente privilegiada, a medicina, assim como a engenharia, a despeito da força
de seu discurso, encontrava entraves para exercer efetivamente sua vontade de ação.
O poder de intervenção da medicina, demonstra Edmundo Campos Coelho
(1999), não foi absoluto, ou mesmo predominante. A criação de uma comissão de
engenheiros e não de médicos para assessorar as obras de saneamento na capital
imperial, em 1850, ou a dificuldade de elevar-se a taxa de imunização contra a varíola
ao longo do século XIX, ou os pouquíssimos inquéritos e menos ainda condenações de
charlatães da prática curativa, preocupação constante no discurso dos médicos,
eram exemplos da relativa fragilidade da autoridade por eles exercida. De forma ainda
mais representativa surge a ativa participação dos engenheiros, através de discussões
no Instituto Politécnico e Clube de Engenharia, nas propostas sanitaristas para o Rio de
Janeiro de finais do século XIX, sobre as quais a engenharia assumiu um controle
virtualmente completo. Os projetos sólidos e exequíveis advindos dos engenheiros
lhes davam, assim, uma melhor condição de agir sobre o espaço do que as propostas
mais genéricas dos médicos, baseadas em difusas teorias sobre a contaminação
atmosférica mesmo que a higiene e saúde pública fossem, à primeira vista, espaços
de intervenção muito mais próximos à medicina do que à engenharia.
O saber considerado científico não era, portanto, suficiente em si para garantir
a nenhuma categoria o pleno domínio sobre os territórios físicos, sociais e políticos
nos quais pretendiam agir. O próprio Instituto Politécnico, com suas sessões
aristocraticamente cordiais muitas vezes devotadas a temas tendentes a uma
exploração científica desinteressada de temas mundanos, tornou-se inadequado com
o avanço do período republicano, especialmente quando comparado ao Clube de
Engenharia, fundado em 1880 com o expresso objetivo de aproximar a engenharia e o
empresariado e discutir conceitos prontamente aplicáveis no desenvolvimento
econômico e industrial da nação. A própria postura de muitos dos engenheiros
formados na Escola Central e nos primeiros anos da Escola Politécnica, dispostos a
projetar, supervisionar e fiscalizar, mas não a pôr as mãos na massa, e o pouco valor
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 40
que o estudo científico tinha no canteiro de obras propriamente dito, fez com que
não obstante seus estimados diplomas e sua formação enciclopédica eles se
encontrassem por vezes subordinados a práticos britânicos e americanos, sem
diplomação acadêmica, mas versados na realidade da construção de obras públicas.
Essa deficiência de experiência prática foi detectada e exposta por Aarão Reis, em
1875, quando sugeriu não uma reformulação do ensino Politécnico, mas também o
incentivo e investimento em obras, a partir das quais os engenheiros nacionais
poderiam adquirir tal experiência. A situação de carência de técnicos experientes era
tal que ainda em 1901 engenheiros estrangeiros eram aceitos em empregos no país
sem que necessitassem passar por exames de habilitação nas faculdades oficiais
(COELHO, 1999). O processo de introduzir nos meios técnicos nacionais tal instrução
prática, comunicar essa aquisição à sociedade e convencer aos órgãos contratadores
de que os brasileiros já dispunham de tal perícia avançou pelo século XX, e foi mais um
tema ao redor do qual os engenheiros se reuniram em seu esforço discursivo.
Ainda assim, frente às dificuldades de emprego e a disputa por autoridade com
advogados, médicos, e técnicos estrangeiros, os engenheiros nacionais estiveram, com
suas ações na construção de vias de comunicação, na industrialização e na
reorganização urbana, profundamente empenhados na modernização material da
sociedade brasileira.
25
A modernidade que em geral buscavam, vale notar, era
(tributária de um positivismo anti-liberal, anti-democrático e anti-socialista) uma
modernidade conservadora (FERREIRA, 1989, p. 66). Dentro desse pensamento, a
revolução das classes sociais era vista como o maior obstáculo para a modernização
positivista e ao Estado, guiado pelo saber objetivo dos cientistas, cabia a gestão das
modificações graduais às quais a sociedade está sujeita, preservando a propriedade,
a família, a linguagem e a pátria. Da mesma forma, a indústria e a ciência deveriam
receber a proteção do Estado, livrando-se dos riscos do liberalismo. Essa concepção
25
Cabe, neste momento, mencionar que, apesar das disputas por cargos e de divergências de opiniões
em certas questões, a essência das idéias defendidas pelos engenheiros ressoava com o que outros
profissionais defendiam no sentido da modernização da sociedade e da resolução de problemas da
nação entre os quais figuravam as secas. Foi possível perceber, ao trabalhar com material
complementar à pesquisa, que diversos intelectuais, mesmo não tendo formação em engenharia entre
os quais estão Eloy de Souza e Felipe Guerra disseminaram em seus discursos e obras publicadas idéias
semelhantes às dos engenheiros e, não raro, manifestaram apoio a ações destes.
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 41
de manutenção de um Estado autoritário dentro da nascente república foi ecoada, por
exemplo, no discurso dos politécnicos Antonio de Paula Freitas (1892), que defendia
uma rígida divisão do poder entre as elites intelectuais, econômicas e militares e de
Aarão Reis (1918), que via a necessidade de uma enérgica ditadura republicana para
auxiliar a transição para uma sociedade moderna (FERREIRA, 1989).
Evidencia-se, com todos os esforços dos engenheiros no sentido de garantir
influência nas mais diversas esferas da sociedade, uma espécie de contradição que
acompanhou a história da categoria: o saber positivo, supostamente objetivo e neutro,
necessitava de um suporte ideológico e político para exercer a função social para o
qual era criado. A prática da ciência pura, sem caráter industrial ou comercial,
começou a organizar-se no país a partir de 1916 (com a criação da Sociedade Brasileira
de Ciências) e tem na fundação da Academia Brasileira de Ciências (1922) seu marco
maior. Para esses cientistas, partidários de um positivismo renovado, o cultivo da
ciência requeria afastamento das questões sociais e política ainda que mantivessem
e fortalecessem a luta contra o domínio dos bacharéis sobre os cargos públicos.
Opondo-se ao que diziam ser um utilitarismo predominante entre intelectuais e
Figura 3: As imagens que adornavam as folhas de rosto da Revista do Clube de Engenharia demonstram o
universo de trabalho dos engenheiros: As edições de 1889 (A) e 1897 (B e C) destacam o trem em
movimento. A partir de 1900, foi usada uma ilustração que contemplava ferrovias, navegação e atividades
industriais (D). Na década de 1920, estabeleceu-se o logotipo do Clube (E) um globo, devidamente
envolto pela engrenagem que simboliza a engenharia , que se tornou padrão para revista.
FONTE: Acervo do grupo HCUrb.
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 42
dirigentes do Brasil, a ciência pura, liberada de sua carga sociológica, teria seu valor
em sua própria consistência e demonstrabilidade (FERREIRA, 1989).
Mas os engenheiros não faziam ciência pura; sua razão de ser era intervir sobre
a realidade, usando a ciência e a técnica como ferramentas para alcançar seus
objetivos. A política foi, também, uma ferramenta que usariam, dentro e fora das
escolas, nos salões do Clube de Engenharia, do Congresso e do Senado, não para
moldar suas propostas, mas para legitimar seu poder, justificar suas idéias e
possibilitar suas intervenções práticas. Um registro de como utilizaram o discurso
nesse sentido esnas ginas das revistas de engenharia, fontes primárias de dados
para este trabalho, e será discutido em seguida.
2.2. O discurso nos discursos
Como evidenciado pelas disputas mencionadas ao longo deste capítulo, os
profissionais a que nos referimos tinham no campo discursivo sua principal arena de
embates por reconhecimento e poder. Esse combate era exercido por vezes nas
tribunas políticas, nos salões dos Institutos de cada categoria, ou nas escolas em que
se formavam. Existe, no, entanto, um meio privilegiado que dava permanência ao
discurso, e que nos possibilita hoje tentar compreendê-lo: as publicações periódicas.
Enquanto os advogados tinham preferência pela intervenção em diários de circulação
geral, muitos deles tornando-se jornalistas, utilizando ou não pseudônimos para
publicar suas idéias, os médicos e engenheiros organizaram publicações voltadas para
os assuntos mais específicos às suas áreas de atuação (SCHWARCZ, 1993), lidas
principalmente por seus congêneres, mas também por todos aqueles interessados nos
temas discutidos, que abordavam diversos aspectos da modernização do país.
As revistas de engenharia eram editadas pelas escolas ou institutos
politécnicos, ou por agremiações ou grupos editoriais formados por engenheiros,
direcionadas principalmente para os próprios engenheiros e estudantes de
engenharia, que traziam artigos, notícias, editoriais e transcrições de sessões de
discussão, cerimônias e discursos de interesse da categoria. As primeiras publicações
surgiram no Rio de Janeiro, ainda na década de 1870; diversas outras tiveram início
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 43
deste então, algumas desaparecendo após poucos números lançados, outras
alcançando décadas de longevidade, transformando-se e adequando-se aos novos
modelos editoriais é o caso, por exemplo, da Revista do Clube de Engenharia,
inaugurada em 1887 e ainda em circulação. A leitura de seu conteúdo revela diversos
aspectos e pontos de vista que compõem uma crônica do pensamento técnico e
político dos engenheiros e da história da engenharia e no Brasil. Acompanham-se, em
seguida, exemplos de como essas revistas serviram de veículo para a transmissão da
ideologia positivista e progressista entre aqueles profissionais especificamente na
forma de discursos de início de curso e formatura das escolas de engenharia.
A 13 de abril de 1918, foi editado um número extraordinário da Revista
Polythecnica, órgão do Gremio Polythecnico da Escola Polythecnica de São Paulo, por
ocasião do aniversário de um ano do falecimento do engenheiro Antonio Francisco de
Paula Souza, professor e primeiro diretor da Escola Polythecnica. Esse volume constava
de uma compilação de discursos do engenheiro, além de uma lista de obras publicadas
e de trabalhos de engenharia por ele conduzidos.
O discurso inaugural da Escola, proferido em 1894 por um grupo de
autoridades que incluía o próprio Paula Souza, e transcrito na revista, introduzia a
instituição e delineava as expectativas relativas à atuação dos engenheiros no país
26
.
Instituição baseada no estudo das mathematicas em suas differentes
applicações, a sua creação corresponde á uma necessidade quer se a
encare pelo lado utilitario, quer pelo scientifico. Como sciencia,
sabeis, que os maiores pensadores, a collocam na base da
classificação hierarchica dos conhecimentos humanos. A sua
importancia é incontestável, quer se a considere, tendo por objectivo
a determinação das grandezas pelas suas relações precisas, quer se a
encare estudando phenomenos com essa precisão e excellencia de
processos tão logicos, tão concludentes que autorizaram a
philosophia, a dizer pela bocca do grande Platão: aqui ninguem
entra que não seja geometra. (REVISTA POLYTECHNICA, 1918)
26
Nas citações que constam neste artigo foram mantidas a ortografia e a pontuação dos documentos
originais, incluindo também os possíveis erros tipográficos e de redação, quando estes não vinham a
comprometer a leitura.
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 44
Esta secção discursiva, pronunciada pelo Dr. Cesario Motta Junior político e
líder maçônico que se empenhava no apoio à criação de instituições educacionais
nacionais no papel de representante do Governo na inauguração, demonstra o uso
do discurso científico para reafirmar a importância incontestável da matemática (e
portanto da engenharia; e portanto, da Escola Polythecnica; e assim dos futuros
profissionais nela formados) para os conhecimentos humanos. Motta Junior foi mais
além, buscando na referência ao clássico Platão uma forma de legitimar seu discurso,
tornando-o ainda mais incontestável. Após considerações sobre o valor científico e
utilitário das matemáticas e suas aplicações, prosseguia com seu discurso:
Possuimos o mais gigantesco systema fluvial, e quasi não temos
navegação interior; temos a lavoura, e falta-nos o braço, temos a
materia prima, e não temos a fabrica, temos a mina, e não possuimos
o mineiro, cumpre-nos resolver tudo isso, accumulando energias, que
nos tornem verdadeiramente senhores de nossa terra. Tudo isso
convida, senhores, a nos apparelharmos para essa lucta que nos dará
o dominio de tantas forças perdidas, de tantas riquezas abandonadas
e de tantos productos naturaes que o trabalho ainda não valorisou.
(REVISTA POLYTECHNICA, 1918)
Foi com esse tom convocatório que Motta Junior se dirigiu aos futuros
engenheiros, fazendo repousar sobre seus ombros a tarefa de protagonizar a luta pelo
domínio da terra brasileira. A acusação das forças perdidas e das riquezas
abandonadas no país imprimia uma sensação de urgência e apelava ao sentimento
patriótico dos engenheiros. Ao mesmo tempo, tocava na questão do valor que o
trabalho poderia agregar aos produtos naturais: o engenheiro era situado, então, em
uma posição fundamental no mecanismo econômico que possibilitaria o progresso do
país.
E foi para isso, que se creou a Escola Polythecnica de S. Paulo.
Satisfacção de uma necessidade inadiavel, é ella um dos fructos bons
da Federação, sem a qual nada teriamos conseguido; é ela uma das
manifestações de pujança deste Estado, é mais um caminho aberto á
actividade intelligente da mocidade, á cujos paes é devida a sua
prosperidade economica. No terreno intelectual, ela será para a
juventude um foco inextiguivel á aclarar-lhe os dons inapreciaveis da
liberdade, a inspirar-lhe horror á todos os despotismos, cultivando-
lhe o espirito e elevando-lhe o coração. Assim é que ella a preparará
para sustentar os foros de independencia deste Estado e a forma
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 45
democratica do governo que felizmente nos rege. (REVISTA
POLYTECHNICA, 1918)
Esta última secção do discurso de Motta Junior era claramente tingida pelo
discurso político: a apologia ao Estado mesclava-se ao elogio da inteligência dos jovens
e do trabalho de seus pais responsáveis pelo vertiginoso crescimento experimentado
pelo Estado de o Paulo. Igualmente notável é a menção aos conceitos de liberdade,
independência e democracia, opostos a todos os despotismos: o discurso era
proferido em meio a um ambiente político ainda turbulento de uma recém-fundada
república, em meio a revoltas que ameaçavam destruir o ainda frágil aparato
governamental.
O engenheiro A. F. de Paula Souza deu seguimento, então, ao discurso, e ao
fazer um breve histórico sobre as tentativas anteriores de fundar-se uma instituição
similar no Estado, afirmou que:
Era evidente que estava reservado ao governo Republicano, que é o
governo do povo, a tarefa de cuidar seriamente deste
emprehendimento; é agora que se poderá esperar de semelhante
instituição os benefícios que nossos Avós, tão sabiamente,
anteviam. (...)
Si os conhecimentos mathematicos e technicos fossem mais
divulgados entre nós, como o são os das sciencias sociaes e juridicas,
não assistiriamos hoje essa curiosa anomalia de ver aquele mesmo
povo que tão sabia quão pacificamente resolve os mais difficeis
problemas sociaes e políticos como o da abolição da escravidão e
essa gloriosa transformação politica de 15 de Novembro de 1889,
importar os generos mais indispensaveis á vida e até mesmo á
recorrer á industria estrangeira para obtenção dos mais simples
artefactos e apparelhos necessários á defeza da Pátria ameaçada de
ruína e devastação. (REVISTA POLYTECHNICA, 1918)
Paula Souza prosseguiu, arrolando as riquezas naturais presentes no território
nacional, a incoerência de seu sub-aproveitamento, e a necessidade do habito do
methodo, o cumprimento do dever, a previdência calma e reflectida, o espirito da
ordem para que a indústria nacional viesse a prosperar. Percebem-se aqui as
convergências entre o discurso do engenheiro e do político, na glorificação do sistema
republicano, da aplicação da ciência e do espírito positivista como caminho para a
melhoria das condições nacionais. O engenheiro, aliás, levantou uma hipótese
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 46
inusitada ao afirmar que a resolução relativamente pacífica de questões como a
escravatura e a transição republicana no Brasil se devia a um avançado conhecimento
das ciências sociais e jurídicas no país: a ciência se apresentava assim como resposta a
todos os problemas; faltaria então ao Brasil um maior conhecimento matemático e
técnico para que fossem eliminados os demais riscos do desperdício e da ruína.
Anos mais tarde, Paula Souza introduziu seu discurso de congratulação aos
graduandos da turma de 1900-1901 falando da importância para a engenharia do
método científico, que em sua estrutura passava por indução, exame, dedução, e
chegaria finalmente à determinação de leis que exprimem a realidade dos factos. E
adicionava:
E, de facto, é por intermedio da classe dos Engenheiros e graças ás
suas investigações e experiencias constantes que grande numero de
novos pontos de vista foram introduzidos nas sciencias.
A acção dessa classe, durante o seculo que findou, foi
progressivamente augmentando e tornou-se finalmente
preponderante não porque encurtou distancias, transformou por
completo as industrias aproveitando-se do calor, e subjugou a
eletricidade, utilisando a energia mechanica nella contida como
força motora, como poder calorífico e illuminante e como dócil
instrumento de transmissão quasi instantanea á grandes distancias
do pensamento humano, como tambem porque com suas constantes
applicações dos principios scientificos e suas experiencias
grandemente concorreu pra consolidar as bases em que assenta a
sciencia moderna e para promover o seu desenvolvimento.
Em o novo seculo sua influencia se ainda muita maior. É da
actividade, saber e intelligencia dos engenheiros que dependerão o
progresso e o engrandecimento das nações.
A nossa Pátria, mais do que qualquer outra, precisa da collaboração
activa e efficaz de seus engenheiros.
Aqui tudo está ainda por fazer.
Para demonstrar que esta
proposição é exacta basta lembrar-vos que não conhecemos ainda
bem o nosso proprio sólo: - o que se conhece provém de observações
isoladas, esparsas, realisadas defficientemente, e nem sempre por
competentes. (REVISTA POLYTECHNICA, 1918)
Exibia-se então, em toda sua abrangência, o poder da engenharia, de manipular
as energias naturais e utilizá-las para o desenvolvimento da indústria e da própria
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 47
ciência moderna. E aparecia, de forma destacada, a projeção de um futuro de
progresso e engrandecimento das nações, atingido tão somente por esse
desenvolvimento científico. Era recorrente o apelo aos novos engenheiros para que
contribuissem, com seus conhecimentos, para o progresso da Pátria brasileira, ainda
com tudo por fazer. O fato de que as observações do solo nacional eram
ocasionalmente feitas por incompetentes tornava ainda mais séria a necessidade de
ação dos engenheiros, detentores do verdadeiro saber.
Em seu discurso aos formandos da turma de 1902-1903, Paula de Souza
abordou uma questão que lhe incomodava: engenheiros agrônomos e mecânicos
formados, devido a dificuldades impostas pelo fraco desenvolvimento industrial do
país não vinham atuando dentro de suas especialidades, que acabavam exercidas por
meros dilettantes, meros amadores, que por mais esforços que empreguem, não
conseguem realisar convenientemente aquillo que o technico competente realisaria
naturalmente sem grande esforço. Tornava-se evidente o conflito de poder existente,
no qual a arma usada pelo discurso era a da desqualificação da não-ciência, do não-
método, da aprendizagem desordenada.
No extenso discurso dedicado à turma de 1905, Paula Souza apresentou mais
uma vez o quadro da incipiente industrialização nacional, e enunciou, com todo o
otimismo positivista que lhe era característico: ides encontrar a Patria em via de
organizar-se, de apparelhar-se para uma vida realmente independente: tudo nos
prognostica que o Brasil vae prosperar, progredir e engrandecer. Ao endereçar-se aos
engenheiros civis, traçou grandes estradas e ferrovias imaginárias que conectariam o
Brasil internamente e aos países vizinhos; aos engenheiros industriais, incentivou o
espírito empreendedor e aconselhou: inicieis pelo princípio: isto é, em pequena
escala, afim de augmenta-la á medida que as condições o permitam. Foi assim que
Krupp fundou Essen; ao engenheiro arquiteto, que dizia ter a maior liberdade de
atuação individual, falou do grande campo de atuação para exercício das aptidões
técnicas e artísticas; aos engenheiros agrônomos falou da importância dos avanços na
industria mãe; por fim, ressaltou a necessidade de que todos os engenheiros
detivessem generosos conhecimentos geográficos sobre a Pátria. Tratou, enfim, das
possibilidades virtualmente infinitas de atuação da engenharia, e de progresso da
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 48
nação brasileira a partir da aplicação adequada dos conhecimentos técnicos
conhecimentos que estavam à disposição dos engenheiros e de ninguém mais.
Verifica-se, a partir desses pronunciamentos de Cesário Motta Junior e A. F.
Paula de Souza, como foi transmitida para uma geração de engenheiros politécnicos,
formados na Escola Polythecnica de São Paulo na virada do culo XIX para o século
XX, toda uma carga de conceitos e enunciados, um conjunto de formações discursivas
que guiaram o pensamento dos técnicos que atuariam por todo o país, sendo
responsáveis pela construção de praticamente toda a infra-estrutura moderna, desde
a agricultura e a indústria, aos transportes, comunicações, estruturas e edificações
urbanas.
Seria por demais repetitivo, além de inadequado ao escopo desse trabalho,
seguir com um acompanhamento de cada um dos discursos de início de ano e fim de
curso que foram pronunciados na Escola Polythecnica de São Paulo. Avançando então
para um ponto posterior no tempo e buscando uma Escola distinta, insere-se abaixo
uma secção de outro discurso, proferido pelo prof. Luiz Cantanhede de Almeida, por
ocasião do início dos trabalhos escolares do ano de 1936 da Escola Polythecnica do Rio
de Janeiro, intitulado O ensino de engenharia e o que o Brasil espera de seus novos
engenheiros, e publicado na edição de março de 1936 da Revista Brasileira de
Engenharia. Após digressar sobre as instalações físicas e a situação financeira da
escola, os concursos e exames realizados, o professor introduzia:
Pais, immensamente grande, agasalhando 40 milhões de habitantes
quando pode abrigar 200 milhões, farto de riquezas naturaes e pobre
de braços e de capitaes, o Brasil tudo espera dos seus estadistas e de
seus engenheiros.
Aos estadistas compete encaminhar em segura orientação a politica
economica nacional, poupando o superfluo e gastando bem o
necessario, alimentando o que tem vida propria e deixando morrer o
que é parasita, colhendo na experiencia alheia as lições dos
desastres, quando os nossos proprios o sejam ainda bastante
convincentes.
Ao engenheiro compete trabalhar e fazer trabalhar, organisar a
producção, fazel-a circular e leval-a ao consumidor, extrahindo do
solo e do sub-solo as riquezas accumuladas ou em formação,
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 49
transformando-as nas industrias e contribuindo para o conforto e
bem estar da sua patria e da humanidade. (ALMEIDA, 1936)
Após três décadas, o sentimento em relação ao Brasil e seu potencial latente
continuava muito semelhante. Cabe notar a exposição acerca dos papéis distintos e
separados dos estadistas e dos engenheiros: ao mesmo tempo em que o discursante
reafirmava a apoliticidade da ciência e do trabalho do engenheiro, ele deixava
aparecer, talvez, uma preocupação ao precaver os alunos de engenharia a isolar-se
da ão política, estaria ele reagindo a uma situação em que os então profissionais da
área pareciam-lhe fugir às suas competências e tomar atitudes que de fato cabiam
apenas aos estadistas? Cantanhede de Almeida prosseguia:
Os engenheiros que vos precederam nos ultimos 30 annos, meus
jovens alumnos, viram o aperfeiçoamento das machinas hydraulicas,
viram as locomotivas electricas e as locomotivas a vapor luctando
pela victoria no terreno da tracção, viram as innumeras applicações
da electricidade levando o conforto a todos os lares, viram surgir a
era dos arranha céos e das construcções arrojadas de cimento
armado, viram o apparecimento e o desenvolvimento do
automobilismo, exigindo a reconstrucção das auto-estradas que
atravessam os continentes. (ALMEIDA, 1936)
Em seguida, falou sobre os progressos da aviação, da transmissão de energia,
do aproveitamento da força das águas como energia hidroelétrica, da aceleração das
comunicações. Ainda que fossem outras as aplicações da tecnologia, recorria no apelo
às realizações da engenharia como exibição do poder da ciência e do homem
(especificamente, do engenheiro) poder que estaria nas mãos dos alunos, ao fim do
curso. Ademais, era reafirmado o otimismo de décadas atrás, pois os elementos
naturaes conquistados, os meios technicos de acção que dispomos hoje, fazem prever
verdadeiras maravilhas para o futuro. O discurso era então finalizado em tom
convocatório:
O que o Brasil espera de vós, futuros engenheiros é que vos prepareis
com segurança para preencher as suas solicitações de serviços
technicos.
Nós outros que vos procedemos fizemos muita cousa, mas a tarefa
a executar é muito maior e mais importante.
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Abrigamos e demos transportes a 40 milhões de brasileiros; dentro
de 30 annos, devereis abrigar e facilitar os transportes e
communicações a mais de 100 milhões de brasileiros.
(...)sereis da geração que elevará, por certo a nossa producção, per
capita, ao nível, da Argentina e de Cuba, paizes como o nosso
tambem ibero-americanos, e para isso devereis decuplicar a
capacidade productora individual do brasileiro.
Para essa producção accrescida, precisareis apparelhar estradas e
portos, crear uma grande navegação maritima e fluvial, organisar os
serviços urbanos correspondentes á população accrescida e á
mivimentação da producção.
Vêde que bellas perspectivas vos apresenta o Brasil futuro e como
elle exige que vos prepareis pare essa obra gigantesca.
Na epoca d'esse Brasil de cem milhões de habitantes, as velocidades
de circulação de hoje vos parecerão ridiculas e o tempo passará tão
rapido, impellido pelos acontecimentos, que o medeiará muito
espaço entre o estudo e a execução.
Devereis formar um cabedal de conhecimentos tal que as soluções
dos problemas que a vida technica vos apresentar tenham solução
quasi instantanea. (...)
Trabalhando e estudando, na Escola e na profissão, estareis fazendo
o bom serviço, cooperando para o desenvolvimento do Brasil que a
vossa geração ha de ver grande e rico, hombreando com os maiores e
mais ricos paizes do mundo. (ALMEIDA, 1936)
Repousaria enfim, nos ombros dos engenheiros, a responsabilidade de
catapultar o país para o rol das grandes potências mundiais. Bastaria, para tanto, que
os profissionais detivessem os devidos conhecimentos, e a solução para quaisquer
problemas que enfrentassem seria quase instantanea desde que os estadistas,
poupando o supérfluo e gastando com o necessário, é claro, os proviessem com os
meios e a liberdade de aproveitar os amplos recursos do país.
Algumas considerações podem, então, ser feitas sobre esses discursos,
convergentes em seus enunciados e na ideologia que transmitem, ainda que
separados por três décadas tempo de atuação de toda uma geração de profissionais
e proferidos uns em São Paulo, centro da atividade econômica e industrial do país, e
outro no Rio de Janeiro, centro do poder político.
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 51
Inicialmente, pode-se refletir, respondendo questionamentos de Foucault
quanto à busca da lei das enunciações, que impelem o historiador a identificar os
pronunciantes do discurso, aqueles que têm o direito espontaneamente aceito de
proferi-lo (FOUCAULT, 2002). Os discursantes citados, A.F. Paula de Souza e Luiz
Cantanhede de Almeida, são, de fato, engenheiros, que se utilizando da linguagem da
experiência de uma longa vida profissional (FOUCAULT, 1996, p.79) falam aos
moços, ainda alheios aos caminhos da atuação profissional; ademais, eles são
professores, de elevado status dentro de suas próprias instituições, que falam a seus
alunos com a autoridade que a relação tutor-pupilo os concede. O lugar institucional
de onde falam, a escola de engenharia, é o próprio meio no qual os espectadores
convivem e do qual participam. Por seu papel triplo de técnicos atuantes, docentes, e
escritores de artigos e editoriais para periódicos de engenharia, pode-se dizer que
ocupam uma posição nodal na rede de informações em que estão inseridos,
absorvendo, criando e transmitindo conhecimento de acordo com suas próprias
convicções. Esse conjunto de situações, junto à ausência de grandes cisões ideológicas
entre as gerações, pode-se aferir, torna improvável a refutação dos enunciados
discursivos por parte dos ouvintes do discurso: os novos engenheiros incorporam,
utilizam, e posteriormente, irão reproduzir as produções discursivas a que foram
expostos, mantendo coerente a cultura profissional do engenheiro, e seu status frente
à sociedade. A educação é, enfim, uma maneira política de manter ou modificar a
apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que estes trazem consigo
(FOUCAULT, 2006), e nas escolas politécnicas essa posição não era diferente.
Uma outra característica dos discursos aqui citados, para a qual Foucault chama
a atenção, é a ritualização. Ainda que todo enunciado se relacione a uma regularidade,
não podendo ser qualificado de pura criação nem de decalque inativo (FOUCAULT,
2002, p. 168), os textos pronunciados nas ocasiões de início dos períodos letivos, e
especialmente de colação de grau ocasiões por si próprias ritualizadas orbitam
invariavelmente em torno de certos temas: a relevância da ciência e da prática da
engenharia; o poder transformador e produtor de riqueza detido pelo engenheiro; a
perspectiva otimista de progresso para o futuro; e o apelo ao sentimento patriótico do
engenheiro, que com seu trabalho poderia tornar reais as promessas de grandeza da
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 52
Nação. Esse tipo de ritualização atende, segundo Foucault, um desejo de não ter de
começar, um desejo semelhante de se encontrar, de imediato, do outro lado do
discurso, sem ter de ver do lado de quem está de fora aquilo que ele pode ter de
singular, de temível, de maléfico mesmo (FOUCAULT, 2006). Reproduzia-se, através
do discurso incrementado por uma retórica solene e pelo status de autoridade
científica e técnica, uma estratégia de dominação; naturalizava-se, dessa forma, um
conjunto de condutas previamente construídas que serviam ao intento de manter ou
ampliar o poder detido por um grupo intelectual, que ao concentrar saberes e
monopolizar práticas, é tornado indispensável para o mais básico funcionamento da
sociedade humana moderna.
Considerou-se até agora apenas uma das situações em que esteve evidente o
discurso dos engenheiros: o discurso pronunciado dentro da própria instituição de
ensino, e direcionado primariamente aos jovens alunos, futuros engenheiros. Diversas
outras situações, nas quais os interlocutores estavam envolvidos em outros ambientes,
falando a outras audiências, poderiam ser escrutinizados em busca das técnicas de
persuasão e legitimação que eram por eles utilizadas: discursos ao Clube de
Engenharia e outras associações similares, ou ao Congresso ou Senado nacionais, ou
relatórios de obras, memoriais descritivos de projetos, artigos em revistas de
divulgação, todos eram utilizados para traduzir e levar adiante os interesses dos
engenheiros. A análise de cada um desses documentos, ou de outros tantos, poderia
expor outras regularidades (e talvez uma série de exceções) que constituem seus
discursos, abordando outros temas e direcionados a outras audiências. Outros vieses
de análise, igualmente, poderiam ser adotados na leitura desses textos, como, por
exemplo: o questionamento sobre o sujeito submerso pelo discurso da objetividade
positivista (FOUCAULT, 1996); ou (para não cometer o erro que Foucault atribui à
história das idéias): onde e até onde existiram diferenças, arrependimentos e
polêmicas (FOUCAULT, 2002)
no discurso da engenharia?
Mesmo sem adentrar nesses outros territórios da análise do discurso da
engenharia, já se torna possível ter uma noção básica de seu funcionamento, das
relações de influência, luta, autorização e repressão que envolvia. O interesse desse
trabalho, no entanto, está nos conteúdos desses discursos que poderiam originar
2 . O H o m e m : e n g e n h a r i a e p o d e r | 53
intervenções espaciais, mais do que na análise das redes de poder que os
coordenavam. Foi, até este momento, buscada a compreensão sobre os homens que
viriam a propor essas intervenções. O próximo passo será compreender mais sobre o
espaço sobre o qual eles viriam a intervir.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 54
3. A Terra: Engenharia e Natureza
(...) todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as
filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se,
repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma
flora tolhiça -- dispondo-se em cenários em que ressalta
predominante, o aspecto atormentado das paisagens.
Euclides da Cunha, 1902
3.1. Ferro e fogo
Existe uma discussão corrente acerca da divisão ou mesmo oposição entre
cultura (portanto homem) e natureza, que pode ser abordada por diversos enfoques:
filosóficos, históricos, geográficos, antropológicos, psicológicos, sócio-econômicos, ou
outros tantos. Não surpreendentemente, inexiste um consenso acerca dos numerosos
aspectos que esse tema envolve. Alguns estudiosos consideram, por exemplo, que a
convivência harmônica entre homem e ambiente estava finda no momento em que os
primeiros grupos deixaram as cavernas, tornaram-se sedentários e passaram a cultivar
a terra utilizando-se de ferramentas (SCHAMA, 1996). Warren Dean, em seu A Ferro e
Fogo (2004), expõe evidências de que os próprios habitantes do Brasil anterior à
colonização, a despeito de tradições e mitos destinados a manter certo equilíbrio
ambiental e da primitiva tecnologia que dispunham, provocaram mudanças largas e
profundas na paisagem da mata primordial.
Foi a partir do período de revoluções científicas e industriais ocorridas entre os
séculos XVI e XVIII, no entanto, que o poder destrutivo associado com as novas
técnicas e ferramentas, aliado a um pensamento ao mesmo tempo centrado na
produção de material e ignorante da seriedade das consequências adversas das
medidas extremadas adotadas, adquiriu uma velocidade e escala que viriam a ameaçar
não apenas a natureza, mas a própria civilização humana, que dela dependia.
Enquanto a atividade industrial caminhava para seu auge nas potências hegemônicas,
surgiam vozes dissidentes das posturas iluministas dominantes acerca da forma como
deveria se explorar os recursos naturais. Uns poucos intelectuais, que não
compartilhavam do sonho do terreno perfurado por incontáveis minas e do céu
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 55
tomado pela fumaça das fundições, chamavam a atenção para a conservação dos
recursos naturais, dos riscos do dessecamento e da desertificação, e da necessidade da
manutenção de um equilíbrio no ciclo da natureza (PÁDUA, 2002).
O Brasil do século XIX assim como o resto da América Latina , contando com
vasto território e recursos naturais, mas praticamente isento da intensa
industrialização dos países economicamente mais avançados, não esteve, no entanto,
livre das práticas devastatórias. Uma parcela de intelectuais que discutiam a realidade
brasileira, dentre os quais o mais notório foi certamente José Bonifácio, denunciavam
o sistema monocultor e escravagista como principal algoz das matas e rios do país, e
engajavam-se em disputas políticas no sentido de criarem-se regulamentos que
garantissem uma exploração racional da terra e a manutenção, a longo prazo, de sua
capacidade de produzir recursos e riqueza para o Império (PÁDUA, 2002).
No último quartel do século XIX, a expansão da cultura técnica e do positivismo
no Brasil adicionaria mais um elemento a esse cenário: ferramentas e conhecimentos
modernos e uma ânsia pelo progresso traziam novas condições de domínio da
natureza. No centro dessa situação e concentrando esse poder, essa vontade e uma
autoridade virtualmente inquestionada, figuravam os engenheiros, símbolos da
modernização da nação. Em suas mãos estava, em grande parte, o destino da natureza
brasileira nas décadas que se seguiriam.
José Augusto Pádua explorou em Um Sopro de Destruição (2002) textos
escritos por intelectuais brasileiros entre as décadas de 1760 e 1880 (o mais lebre
dos quais foi certamente José Bonifácio), que mostravam um certo pioneirismo
ambientalista ao dar conta da relação que o homem e as forças produtivas da
sociedade brasileira tinham com a natureza relação invariavelmente detrimental à
conservação ambiental. Ao longo desse capítulo, será dado prosseguimento
cronológico a esse trabalho, mantendo o enfoque sobre o pensamento dos
engenheiros sobre a natureza brasileira, e particularmente a natureza do Nordeste.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 56
3.2. Uma nação por fazer
Dentro do vasto currículo das escolas politécnicas, em meio a disciplinas
dedicadas às matemáticas, às técnicas industriais, à economia, às construções, estava
disponível também uma gama de conhecimentos que lidavam diretamente com o
reconhecimento da natureza. Sem precisar ir além dos muros da sua escola, o aluno
poderia estudar sobre geografia, geologia, botânica, zoologia e mineralogia, para citar
alguns tópicos curriculares. Essa formação pode ser avaliada através da obra de um
dos mais célebres desses alunos, o jornalista Euclydes da Cunha: formado na Escola
Polythecnica do Rio de Janeiro, ingressou posteriormente na Escola Superior de
Guerra, obtendo diplomas de artilharia, engenharia militar, estado-maior, matemática,
ciências físicas e ciências naturais (CUNHA, 2004). Euclydes iria, mais tarde, utilizar
esses conhecimentos, aliados ao seu talento literário, para descrever suas viagens ao
Nordeste brasileiro e à Amazônia, compondo relatos paisagísticos seminais publicados
na primeira década do século XX (baseados em anotações tomadas desde a década
anterior), cuja linguagem seria emulada e citada em diversos outros trabalhos que
procuravam descrever a natureza dos ermos do Norte e seus habitantes.
Não é necessário, entretanto, buscar a obra de Euclydes da Cunha, para
encontrar os primeiros indícios da avaliação que os engenheiros faziam da natureza
brasileira. Os próprios discursos de início de curso e formatura das escolas de
engenharia, abordados no capítulo anterior deste trabalho, destacavam a imagem
de um Brasil cheio de riquezas naturais inexploradas, esperando para serem
aproveitadas pela industriosa mão da engenharia. Era o que anunciava Antonio
Francisco de Paula Souza na inauguração da Escola Polythecnica de São Paulo (1894):
Sim, Senhores, fossem comesinhos ao nosso povo os conhecimentos
technicos, teriamos graças á reconhecida intelligencia e natural
perspicacia dos filhos desta terra, uma industria variada, prospera e
bem dirigida. Essas riquezas fabulosas que existem occultas no nosso
solo e sub-solo, nas nossas extensas mattas e campinas, nos nossos
caudalosos rios e impetuosos ribeiros seriam convenientemente
aproveitados; em nosso proprio lar encontrariamos facilmente o que
hoje, com grande dispendio, necessitamos importar do estrangeiro!
(REVISTA POLYTECHNICA, 1918)
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 57
Assim se apresenta, naquele momento, para aqueles homens, o Brasil: um país
transbordante de riquezas naturais em rios, campos, matas e minas; riquezas que
estavam, no entanto, abandonadas, que eram forças perdidas. A natureza, desta
forma, apresentava-se como algo desprovido de valor e de proveito, enquanto ainda
não se encontrava transformada pelo homem (pelo engenheiro). Uma situação que
não deveria durar, no entanto: o conhecimento técnico que a partir de então seria
transmitido, ao ser aplicado pelos engenheiros naquela luta pelo domínio da terra,
transformaria o Brasil em um país rico e auto-suficiente.
Em novo discurso que Paula de Souza pronunciaria em 1901, o Brasil mais uma
vez aparecia como uma tela em branco, terra com tudo por fazer, discurso que ao
mesmo tempo lançava esperança e cobrança sobre os novos engenheiros. Neste
mesmo ano, por exemplo, fora apresentado um mapa do Estado de o Paulo que
apresentava uma grande área de terrenos pouco explorados a noroeste. Esse mapa
seria motivo de veementes protestos, em 1904, por parte de parlamentares
indignados com o desconhecimento geográfico das redondezas de uma área
considerada uma das mais dinâmicas e modernas do país. A resposta política e técnica
a esse desconforto seria o comissionamento, no ano seguinte, de quatro expedições
de reconhecimento ao extremo sertão do Estado, nas quais figuravam engenheiros
que portavam equipamento de batalha para enfrentar os selvagens. Nenhuma
intervenção fora levada adiante e o levantamento nem mesmo fora completo, mas o
preenchimento do mapa sossegaria por algum tempo os ânimos dos intelectuais
progressistas do estado (ARRUDA, 2000).
Não era somente em São Paulo, e não foi somente naquele período, no
entanto, que o Brasil aparecia como tela em branco. Em 1936, o engenheiro Luiz
Cantanhede de Almeida discursava, pela ocasião do início do ano letivo na Escola
Polythecnica do Rio de Janeiro:
Os elementos naturaes conquistados, os meios technicos de acção
que dispomos hoje, fazem prever verdadeiras maravilhas para o
futuro. (...)
Vêde que bellas perspectivas vos apresenta o Brasil futuro e como
elle exige que vos prepareis pare essa obra gigantesca. (ALMEIDA,
1936. p. 83)
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 58
Cantanhede refletia sobre os avanços trazidos por toda uma geração de
engenheiros justamente aquela que se formara nos primeiros anos do século e
ouvira discursos similares aos que Paula de Souza proferira na Polythecnica de São
Paulo. Falava das ferrovias e rodovias construídas, da aviação, do início do
aproveitamento do potencial hidroelétrico. Mais de trinta anos haviam se passado,
muito mais se sabia e se explorava do território brasileiro, porém, continuava presente
talvez porque mitificado o enunciado da fartura de riquezas naturais no Brasil e
de seu sub-aproveitamento e do papel fundamental que os engenheiros teriam para
corrigir tal situação.
Em Memória e Paisagem (1996), Simon Schama fez uma reflexão sobre o
mito da natureza intocada um lugar, imaginário (como uma Arcádia) ou construído
sobre uma realidade (como um Yellowstone Vale), em que o homem reencontraria sua
ligação com a natureza. Seria um lugar de pureza e tranquilidade, de transcendência
espiritual e conexão com as forças telúricas, cuja grande virtude seria exatamente a
ausência de qualquer intervenção humana. É uma imagem romântica, presente em
diversas culturas e em diferentes períodos do tempo. Pois bem; aqueles engenheiros
não sonhavam com a Arcádia, e não aparentavam ter qualquer interesse em criar um
Yellowstone tropical. A natureza intocada, para eles, era uma natureza desperdiçada. O
Brasil a tinha em abundância, e isso era bom; não por seu valor transcendente ou
paisagístico, no entanto, e sim por seu potencial de criação de riquezas. Seu mito
particular era esta virtual infinidade de uma rica natureza, e eles não demonstravam
pudores em pilhá-la. Nem todas as visões sobre a natureza brasileira eram tão
otimistas, no entanto, e nem todos tinham as mesmas opiniões sobre como a
sociedade deveria relacionar-se com ela: é o que se expõe a seguir.
3.3. Em berço nem sempre esplêndido
Como a cigárra da vélha fábula, cantavamos na despreocupação
feliz da vida simples o hino da gratidão etérna ao sol gloriozo, cujo
calor fecunda nossa terra, cuja luz eríza nossos inumeráveis minerais
e cujo brilho tonifica nossa gente, enquanto cuidavam nossos
vizinhos quais próvidas formigas prover a vida dos elementos
concretos que lhe são primordialmente imprecindíveis. (REIS, 1920,
p. 228-229)
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 59
Com essas palavras o engenheiro Aarão Reis, ex-inspetor de obras contra as
secas, protestava em seu artigo de 1919 As sêcas do nordeste
27
, contra o que
percebia ter sido uma incapacidade do regime imperial em mobilizar o Brasil, através
do trabalho, em direção ao progresso. O Brasil tinha recursos abundantes, sim, mas
isso era ruim; o excesso de fartura, aliado à imprevidência dos governantes,
acreditava, acabara por tolher o espírito laborioso dos brasileiros o que não
acontecia, por exemplo, com seus vizinhos de continente (provável referência aos
argentinos), que, contando com menos exuberantes recursos naturais, haviam
avançado mais no fomento da produção e na circulação de produtos. Esse
pensamento, de fato, não se originara naquelas reflexões de Aarão Reis; estas eram
ecos de uma hipótese que fora usada, por exemplo, pelos colonizadores
portugueses para explicar a suposta indolência dos indígenas, ou por europeus
duvidosos da possibilidade de desenvolvimento de uma verdadeira civilização nos
trópicos.
Ademais, Reis duvidava da dádiva que recebera o Brasil, onde a natureza
acentuára seu capricho eriçando o sólo de alterozas cordilheiras, encachoeirando as
mais vultuozas caudais, impenetralizando pela excessiva exuberancia as densas
florestas, afastando os mares pela amplidão do território. E acrescenta:
Fôssem os nossos S. Francisco, Tocantis e Araguaya francamente
navegáveis, e outra sería, ao certo, a prosperidade do sertão do
nosso planálto central do interior, onde se teria já dezinvolvido com
passo igual a produção das couzas e a dos entes humanos, tão
riquezas êstes como aquelas, porque igualmente úteis e adaptáveis á
satisfação das múltiplas e variadíssimas necessidades humanas. Não
fôssem tão impenetráveis as bravías florestas que ainda virjens
fêcham aaos raios solares, o ubérrimo vále do nosso majestozo e
colossal Amazonas, e, com a facilidade circulatória, teria a
produção da riqueza adquirido -- em couzas e em pessoas -
exuberancia proporcional á dêsse sólo de maravilhas e de milágres.
(REIS, 1920. p. 228)
27
Publicado como anexo a seu relatório das obras contra as secas realizadas pela Inspetoria de Obras
Contra as Secas, sob seu comando, de 1915 a 1918.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 60
O engenheiro falava de uma natureza que se apresentava como obstáculo à
intervenção humana justamente por sua excessiva exuberância. De uma natureza que,
menos de uma década antes, mostrara-se ferrenha inimiga do progresso, tornando
dolorosamente difíceis todos os esforços humanos, consumindo vorazmente materiais
e vidas na construção da ferrovia Madeira-Mamoré e na instalação de linhas
telegráficas em território amazônico (HARDMAN, 2005).
Mas não era apenas a mata densa do extremo norte que se impunha contra o
crescimento econômico da nação; o fenômeno da estiagem periódica no nordeste
brasileiro era tema constante de discussões e o combate a seus efeitos era destino de
muitos dos esforços dos engenheiros. Aarão Reis encontrava na periodicidade irregular
das chuvas a verdadeira origem dos problemas da região:
Temos nós, no Brazil, infelizmente, vasta rejião do nosso prodijioso
sólo sujeita á ação nefasta dêsse fenômeno: - o nósso nordéste semi-
árido (...)
E, entretanto, dificil, bem dificil, será apontar-se, no vastíssimo
território brasileiro, rejião mais fértil e mais aprazivel á vida do que
êsses dous Estados - do Rio Grande do Nórte e do Ceará, exatamente
os mais sujeiros ás inclemencias de tão calamitoza periódicidade.
Corrêssem regulares e normais, por essa rejião nordéste do nosso
paiz, águas perênes, levanto a todos os seus recantos encantadores a
fertilidade da terra e, com esta, a vida, em plena louçanía e franca
prosperidade, de todos os sêres do vejetal ao ente humano que
nella se ajitam, e, ao certo, nem uma outra, das mais bem fadadas
na partilha dadivoza da natureza, se lhe avantajaria, de prezente, no
Brazil, sinão na América do Sul, em riqueza econômica reprezentada
por nível bastante elevado do confôrto e do bem-estar generalizados.
(REIS, 1920. p. 231)
Desde a generalização da imprensa no Brasil, nas últimas décadas do século
XIX, as secas especialmente os relatos de levas de retirantes famintos que sofriam e
morriam em sua fuga das regiões afetadas haviam obtido visibilidade a nível
nacional. No último quartel do século XIX, os engenheiros trabalhavam na região,
construindo as ferrovias, símbolo de uma modernidade que seria trazida àqueles
confins do Brasil. Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, ao realizar em 1892 o
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 61
reconhecimento do terreno de Quixeramobim ao Crato, para o prolongamento da
Estrada de Ferro Baturité descrevia a paisagem e a topografia locais:
Até Maria Pereira o terreno apresenta a mesma conformação que em
quase toda a extensão da linha construida: das serras principais
descem contrafortes, que imediatamente se abaixam, atingindo uma
altura média comum a todos, e se prolongam, sem grande
modificação em altura, até as confluências das águas que uma
imensa superfície corrugada e da qual bruscamente emergem, aquí e
alí, sem a menor consoância de continuidade, eriçadas pontas de
pedra nua; manchando o horizonte e enfeixando as ondulações
amplas e longas, as serras de cada sistema orográfico parcial se
mostram erguidas rudemente sobre a uniformidade da grande
extensão ondulada. (BRITO, 1944. p. 113)
Uma década depois, Euclydes da Cunha, ao escrever Os Sertões, descreveria,
através de uma mescla de vocabulário técnico e literário semelhante, uma paisagem
agressiva, de superfícies ásperas e picos afiados, visão da paisagem do hinterland
nordestino que alcançaria um número considerável de leitores entre os quais,
engenheiros das escolas politécnicas de São Paulo e Rio de Janeiro. A criação de
comissões técnicas incumbidas de estudar o fenômeno das secas, no governo de
Rodrigues Alves (1902-1906), e a posterior criação da Inspetoria de Obras Contra as
Secas (1909), colocava um maior número de engenheiros em contato direto com a
natureza da região, e somavam novos relatos que a descreviam. Luiz Mariano de
Barros Fournier, maranhense, engenheiro de formação militar, ao publicar seu livro
contendo um plano que, segundo ele, resolveria definitivamente o problema das secas
do nordeste, discorria sobre os aspectos físicos e climáticos do nordeste, em meio a
comparações com a Tunísia e o Egito:
Tudo, por alli, é brutalmente impressionador, por toda a parte; desde
a superficie a a contextura intima da terra, eternamente
martyrisada pela fantastica violencia dos instaveis agentes exteriores.
Ora é a extrema seccura dos ares no estio, do que deriva, em
consequencia da intensissima irradiação nocturna, a perda do calor
obsorvido durante o dia e d'ahi, as alternativas e repentinas
elevações e quédas thermometricas; ou é o subitaneo regimen
torrencial e corrosivo, que vem abruptamente fechar o cyclo da secca
adurentemente demolidora. (FOURNIER, 1920, p. 105-106)
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 62
A chuva torrencial era considerada, desta forma, tão nociva quanto a estiagem;
fato com o qual concordava Garibaldi Dantas, engenheiro agrônomo norte-
riograndense, que publicava na segunda parte de seu artigo Pelo Sertão, no jornal A
República, de seu Estado natal:
A declividade accentuada dos leitos dos rios, chegando a ter, para
todo o Seridó, uma media de quasi dois por cento, a
impermeabilidade do solo e sub-solo, a nudez triste dos campos, a
violencia das precipitações pluviaes, tudo isto explica o regime
caudaloso, inutil e prejudicial dos rios do Sertão. (DANTAS, 1922)
Eram inquestionadas as adversidades que o meio impunha à atividade humana
no semi-árido nordestino. Não deixavam de existir, mesmo assim, as oportunidades
em que os engenheiros podiam testemunhar no nordeste uma aparência menos hostil,
que no entanto se mostrava ainda mais surpreendente do que o próprio terreno
esturricado e morto, já costumeiramente associado com aquele sertão:
Para o viajante que percorre o Estado neste tempo de seca, para o
filho do Sul, surpreendido desagradavelmente pelo aspecto da
vegetação que parece morta, sem ver, durante a viagem, uma folha
verde nas árvores, sem passar um filete dágua nos rios, é o Cariri um
oasis pelo aspecto ridente que oferece a vegetação verde, os
esplêndidos tapetes formados pelas plantações de cana, estendendo-
se das fraldas aos baixios, a água corrente... enfim, um acanhado
panorama daquilo que temos exuberantemente no Sul. (BRITO, 1944,
p. 116)
Saturnino de Brito então declarou, ao final de 41 dias de viagem e após
testemunhar o renascimento da paisagem com a chegada das chuvas, seu
deslumbramento com o ciclo daquela extraordinária natureza, relato que garantia
aos leitores não era um quadro fantasioso, mas a apreciação de fenômenos que se
reproduzem anualmente, de verão a inverno. Atitude similar teve Garibaldi Dantas,
fechando seu artigo, após descrever batatais e feijoais e capinzais que rebrotariam
alimentando-se da água absorvida no subsolo, com o reconhecimento de que é este
contraste que ao sertão e às suas coisas esta belleza eterna que faz seu encanto
(DANTAS, 1922). Por um momento, desaparecia a representação da seca como o
flagelo devastador.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
Tais reflexões, no entanto
engenheiros, afinal,
fenômeno das secas; sua
patriótica missão
sertaneja e trazer desenvolvimento à região e, portan
3.4. Secas e Florestas
Como José Augusto Pádua demonstra em seu trabalho Um sopro de
destruição (2002), a consciência da devastação ambiental no Brasil não é um
desenvolveu apenas recente
mente
conhecimentos que, se não podem ser chamados de uma ecologia propriamente dita,
demonstram um certo entendimento das relações naturais e uma preocupação com
a conservação das matas e rios. Pensadores inf
engenheiro André Rebouças discursaram no século XIX contra o modo de produção
agrícola escravista e os seus efeitos e propuseram reformas políticas e sociais para
tentar debelar o problema. Ainda que o sistema escravista ten
em 1888, a modernização das técnicas e a expansão industrial do país fizeram com que
a devastação
continuasse acelerada
Figura 4:
Carnaubal atravessado pela estrada de rodagem de Fortaleza a Soure. A engenharia abre
caminhos em meio à natureza.
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
Tais reflexões, no entanto
, não eram predominantes
não era encontrar beleza no equilíbrio natural,
e sim
combater
patriótica missão
era dar fim ao sofrimento da população
sertaneja e trazer desenvolvimento à região e, portan
to, ao país.
Como José Augusto Pádua demonstra em seu trabalho Um sopro de
destruição (2002), a consciência da devastação ambiental no Brasil não é um
mente
; textos surgidos no século XVIII apontam para
conhecimentos que, se não podem ser chamados de uma ecologia propriamente dita,
demonstram um certo entendimento das relações naturais e uma preocupação com
a conservação das matas e rios. Pensadores inf
luentes como José Bonifácio e o
engenheiro André Rebouças discursaram no século XIX contra o modo de produção
agrícola escravista e os seus efeitos e propuseram reformas políticas e sociais para
tentar debelar o problema. Ainda que o sistema escravista ten
ha tido fim oficialmente
em 1888, a modernização das técnicas e a expansão industrial do país fizeram com que
continuasse acelerada
, fato para o qual não deixaram de dar sua
Carnaubal atravessado pela estrada de rodagem de Fortaleza a Soure. A engenharia abre
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
| 63
: o trabalho dos
combater
o
era dar fim ao sofrimento da população
Como José Augusto Pádua demonstra em seu trabalho Um sopro de
destruição (2002), a consciência da devastação ambiental no Brasil não é um
se
; textos surgidos no século XVIII apontam para
conhecimentos que, se não podem ser chamados de uma ecologia propriamente dita,
demonstram um certo entendimento das relações naturais e uma preocupação com
luentes como José Bonifácio e o
engenheiro André Rebouças discursaram no século XIX contra o modo de produção
agrícola escravista e os seus efeitos e propuseram reformas políticas e sociais para
ha tido fim oficialmente
em 1888, a modernização das técnicas e a expansão industrial do país fizeram com que
, fato para o qual não deixaram de dar sua
Carnaubal atravessado pela estrada de rodagem de Fortaleza a Soure. A engenharia abre
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 64
contribuição as obras dos engenheiros: indústrias, ferrovias e outras, que
alimentavam, com a destruição do Brasil natural, a construção do Brasil moderno.
Mas não haviam sido perdidas as palavras de Bonifácio e Rebouças. Ao
introduzir seu relatório de viagem de 1892, já citado neste artigo, Saturnino de Brito o
fazia transcrevendo exatamente os conselhos de Bonifácio a respeito da conservação
das matas virgens do Brasil, sem a qual o país se reduziria, em menos de dois séculos,
aos páramos e desertos da Líbia. Escrevia, então, a respeito da necessidade de
intervenção em propriedades particulares para conservação das matas:
devem ser garantidos os interesses da comunhão, e estes exigem que
cada indivíduo contribua com o seu contingente de esforços
orgânicos, de sacrifícios, para conservar e desenvolver no Planeta o
regime conveniente à vida e o aperfeiçoamento das espécies, e neste
caso está justamente a conservação e plantio das matas que
retenham a umidade necessária para a sucessão das chuvas
regulares, para a distribuição normal das águas, prendendo-as na
rede das raizes e não permitindo que se escoem de enxurrada pelas
encostas, lavando-as assim da camada de humus. (BRITO, 1944. p.
117)
Saturnino reafirmava a importância da vegetação na manutenção da
umidade atmosférica, em um enunciado que se remete diretamente às preocupações
de Bonifácio acerca do dessecamento, e demonstra a importância do regime de
chuvas e da vegetação na manutenção da qualidade do solo. Suas sugestões, no
entanto, não tiveram reflexo na prática, e o Brasil entrou no século XX sem que fosse
criada uma maneira de garantir os interesses da comunhão na conservação das matas.
Mas Brito não foi o único a classificar a conservação como estratégia contra as
secas. Ao criar a Inspetoria de Obras Contra as Secas em 1909, o engenheiro Francisco
Sá, senador e ministro de Viação e Obras Públicas, enumerava dez itens destinados, se
atendidos com continuidade, a resolver o problema das secas. Destes itens, dois eram
os seguintes:
III. Conservação e restituição das florestas, com ensaios
sistêmatizados das culturas que melhor se prestem ás condições
especiais dessa rejião. (...)
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 65
X. Outros trabalhos tais como a picicultúra, os hortos florestais etc,
que possam contribuir para ativar e dezinvolver a ação da
INSPETORÍA. (REIS, 1920. p. 233)
Neste momento estabeleciam-se na legislação brasileira, por meio do decreto
n. 7.619 de 21 de outubro de 1909, orientações oficiais para ações de proteção
ambiental. O cumprimento de tais orientações, no entanto, não foi satisfatório: Aarão
Reis, em seu relatório de 1919, culpava falhas na política governamental pela falta
de êxito da iniciativa.
A preocupação ambiental não era, tampouco, restrita ao Brasil: o engenheiro
Lourenço Baeta Neves, participando do 16° Congresso de Irrigação, nos EUA, em 1912,
divulgou entre os presentes um texto de Saturnino de Brito citado anteriormente ,
que mereceu sempre os aplausos de todos que a leram, visto que o que ali se
continha, Neves dizia, era a perfeita doutrina do que então se advogava em toda a
América do Norte.
28
Em Secas e Florestas, publicado após seu retorno do evento, o
engenheiro comentava o discurso do ex-presidente Theodore Roosevelt em uma
conferência dos governadores norte-americanos sobre a Conservação, citando
decisões da Corte Suprema dos Estados Unidos, que determinavam:
O Estado, como quase soberano e representante dos interesses
públicos, tem em Corte o direito de proteger a atmosfera, as águas e
as florestas, dentro de seus territórios, independente de
assentimento ou não dos proprietários particulares a quem as terras
pertencem. (NEVES, 1944, p. 162)
Baeta Neves, naquele Secas e Florestas, após declarar a conservação das
florestas medida de segurança pública, e de urgente necessidade para manter a
permanência e abundância não das fontes como dos lençóis subterrâneos,
aventava seis necessidades básicas para a conservação das florestas:
Leis estaduais protegendo a cabeceira dos mananciais (...)
criação da reserva florestal nacional nas cabeceiras dos grandes rios e
cursos navegáveis (...)
28
O próprio Baeta Neves apresentava um trabalho naquele evento, intitulado Preservation of Forests
and Irrigation in Brazil, em que abordava os assuntos tocados por Brito
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 66
Publicação e divulgação de artigos reunidos a propósito das matas,
seus efeitos e utilidade, conservação e exploração metódica.
(...) desenvolvimento do ensino da silvicultura e criação de hortos
florestais
Replantio progressivo de espécies resistentes à seca (...)
Prêmios a que melhor e mais econômico processo apresentar de
conservação da madeira branca. (NEVES, 1944. p. 163-164)
Apelava também às escolas e às mães para que se educassem os mais jovens
para a necessidade da conservação e sugeria, mais uma vez inspirado no modelo
norte-americano, o estabelecimento de uma festa das árvores anual, para despertar
nas crianças o interesse pelas florestas. Em resposta ao trabalho publicado por Neves,
Saturnino de Brito escreve:
Devo dizer que a doutrina relativa à consideração das florestas como
patrimônio social é uma simples aplicação da doutrina positiva
relativa ao capital, sistematizando a fórmula socialista: o capital é
social em sua fonte e deve ter aplicações sociais; o capitalista é um
depositário da fortuna pública, e este reconhecimento orgânico não
importa na denegação da propriedade legitima.
Quando se firmar a doutrina positiva, ensinada por Aug. Comte, as
nossas fórmulas práticas serão meras e relativas conseqüências da
sintese científica; o apela à educação substituirá, com melhor razão
eficácia, o atual apelo às leis jurídicas, as quais o às vêzes
clamorosamente ilegítimas embora tornadas legais... por decretos de
agentes de poderes, que, não raro, ignoram as mais rudimentares leis
científicas. (...)
Assim como o se pode represar as águas de um curso em domínio
particular e repentinamente romper as barragens, deixando que a
torrente avassale os domínios de jusante, destruindo benfeitorias e
vidas, assim também não se pode concorrer para a seca pela
destruição das florestas e nem corromper as águas que sejam
bebidas a jusante ou que contaminem os ares, as terras, as
povoações. As leis de proteção dos cursos são necessárias, porque
infelizmente ainda são precários os recursos da educação para a qual
tão acertada e nobremente apela o meu distinto colega e a
migo.
(NEVES, 1944. p. 164)
Esse segmento denota, além das filiações ideológicas de Saturnino, o
surgimento de uma discussão mais profunda e generalizada acerca da conservação
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 67
ambiental, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, país utilizado como modelo e
inspiração para propostas dos nossos engenheiros. No entanto, ainda que aqueles
homens tivessem consciência do problema e da importância da educação da
população para sua solução, e mesmo que os primeiros regulamentos estivessem
sendo adotados, o rebatimento destes discursos sobre a realidade era praticamente
nulo. Nas décadas que se seguiram, a atividade agrícola e industrial expandiu-se no
país, em detrimento do meio-ambiente. E ainda que o Brasil não se tenha tornado ao
menos por enquanto o deserto da Líbia, tampouco se solucionaram os problemas do
desequilíbrio ambiental e das secas no nordeste.
Os engenheiros politécnicos associaram-se incontestavelmente à idéia do
progresso. Eles foram os agentes que, detendo o conhecimento técnico, foram
responsáveis por transformações na produção de materiais e na mentalidade, e
através desses na sociedade, de um Brasil que se industrializava e se urbanizava.
Progresso, cujos interesses opunham-se, na maior parte das ocasiões, à preservação
do meio-ambiente. A abundância de natureza virgem era vista com bons olhos pelos
engenheiros, geralmente, apenas quando considerada como uma grande fonte de
recursos e imenso campo de atuação, garantia de que o país teria um rico e próspero
futuro, se exercida sobre ela o trabalho da ciência moderna; era esse o discurso de
otimismo transmitido aos alunos e recém-formados dentro das escolas de engenharia.
O contato com a natureza, em especial durante os trabalhos nas florestas do extremo
norte ou no sertão do nordeste, no entanto, logo a revelava como um empecilho, e
colocava os engenheiros em conflito direto com um ambiente que o progresso
precisava derrotar.
Mas engenharia e natureza nem sempre se mantiveram uma relação de
completa oposição: engenheiros como Saturnino de Brito e Baeta Neves deram
prosseguimento e desenvolveram as idéias conservacionistas que haviam surgido
ainda no século XVII. Mesmo que seus interesses não estivessem na preservação
natureza por si só, eles tinham em mente não apenas a sustentabilidade de seu uso
como o faziam os pensadores ambientalistas da América portuguesa e do Império ,
mas a compreendiam como crucial para a manutenção e melhoramento do clima, da
qualidade do solo e das águas dos rios e lençóis freáticos. O avanço do conhecimento
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 68
científico e a ampliação da discussão do assunto entre os profissionais de engenharia
iniciava, assim, o desenvolvimento de um pensamento ecológico (que por décadas não
obteria, no entanto, resultados práticos no país).
Os engenheiros não tinham, portanto, uma visão unificada da natureza do
Brasil. Diferentes concepções existiam, que não eram mutuamente exclusivas
tampouco; não vem como surpresa o fato de que a diversidade ambiental do país,
assim como a diversidade de funções exercidas por aqueles homens, pudesse suscitar
sentimentos mistos de deslumbramento, otimismo e frustração, e que tivessem que
conciliar seus esforços em favor do progresso e da crescente consciência ambiental
que (alguns) abraçavam. Em seguida, discutem-se as concepções relacionadas a um
ambiente em particular, central para a discussão dos engenheiros em torno do
combate às secas: o sertão nordestino.
3.5. Delimitando o território das secas
O interior do Nordeste, quando da chegada dos colonizadores europeus, era
conhecido e trilhado pelos grupos indígenas que migravam periodicamente em busca
de alimento. A conquista e a transformação do seu espaço pelos portugueses ocorreu
gradualmente, com a interiorização da fronteira pecuarista e a fundação de
aldeamentos e vilas estrategicamente posicionadas durante os dois primeiros séculos
da história colonial, durante os quais uma população considerável passou a habitar
aquele território. O sertão não era, portanto, um desertão. No entanto, foi essa a
impressão que teve o viajante inglês Henry Koster quando, em 1810 durante um
período seco , percorreu os caminhos do hinterland nordestino em uma viagem de
Natal a Fortaleza. Koster descreveu um ambiente árido e infértil, de medidas e
fronteiras imprecisas, e cujos poucos indícios de civilização eram modestos e sempre
vulneráveis à devastação das secas.
Um dos primeiros relatos a identificar um marco físico a serra Dois Irmãos
para as fronteiras do sertão pertence ao francês Alcide DOrbigny, que qualificou a
região como um ingrato deserto em sua viagem de 1820 à região, associando o
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 69
espaço do sertão diretamente com o espaço das secas (FERREIRA, DANTAS e FARIAS,
2006). Mas não era apenas para os viajantes estrangeiros que o sertão aparecia como
uma terra incógnita, como demonstrado pela preocupação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, sediado na Corte, em enviar uma comissão científica de estudos
para explorar o interior do Ceará, em 1859 expedição que, mesmo criticada por
alguns setores da época
29
, daria origem aos pareceres e projetos de Giacomo Gabaglia,
que, como já visto, foram de vital importância para a discussão acerca das secas no
final do século XIX. As propostas de André Rebouças, apresentadas em 1877 no
Instituto Politécnico, tomando por base o trabalho de Gabaglia, referiam-se, portanto,
primariamente à província do Ceará, e foi para aquela província que o governo
Imperial enviou em 1879 uma comissão encarregada de estudar e realizar a construção
de açudes, que resultaria no projeto do reservatório do Cedro. Naquele momento, seja
pelo grande contingente populacional afetado, seja pela vigorosa pressão que seus
representantes políticos exerciam na Corte, o Ceará figurava como epicentro da
discussão sobre as secas.
Foi também a partir desse momento o último quartel do século XIX que, de
forma paralela, uma série de imagens (principalmente literárias, sociais e políticas,
que os dados científicos levantados anteriormente tiveram divulgação restrita) do
sertão e dos sertanejos das províncias do Norte principiou ser absorvida pelo público
letrado do Brasil. Em 1875 e 1876, duas obras, precursoras do que viria a ser chamado
de uma literatura regionalista, foram publicadas: o romântico O Sertanejo, de Jo
de Alencar, e o naturalista O Cabeleira, de Franklin Távora ambos de autores
cearenses, e com enredos ambientados no sertão do século XVIII , mostravam em
diferentes versões as vicissitudes da vida sertaneja. Entre 1877 e 1880, relatos de
fome, morte e desordem causadas pela seca vieram a ocupar o primeiro plano nos
noticiários nacionais: mais uma vez, estavam associados o sertão e as secas. Na última
década daquele século, a região ressurgiu como palco de conflito, com os eventos
relacionados à construção, o sítio e a destruição do arraial de Canudos, e os relatos de
29
Foi denominada comissão das borboletas por seus detratores, que não viam mérito ou necessidade
em enviarem-se cientistas da corte para estudar o terreno, fauna e flora daquela erma parte do Império.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 70
fanatismo religioso e resistência à modernidade (naquele caso, ao sistema
republicano) se assomavam aos outros que já eram atribuídos os sertanejos.
Esses diferentes aspectos sobre a terra e o homem do sertão, muitos dos quais
foram abordados pelo engenheiro Saturnino de Brito em seu mencionado relato
de 1892, foram reunidos, reiterados e representados para uma larga população
através de Os Sertões, do engenheiro e jornalista Euclides da Cunha, publicado em
1902. O autor apresentou as imagens das agruras da terra, da força do sertanejo e de
seu fervor religioso, envoltas em um relato que se propunha jornalístico, com
linguagem científica e narrativa literária, transmitindo-as ao leitor com força imagética
e verossimilhança, criando um texto que seria referência virtualmente obrigatória para
a composição ou leitura das representações posteriores acerca da região.
A colonização da Amazônia incentivada principalmente pela exploração da
borracha , por sua vez, evidenciava uma distinção entre dois grupos de províncias do
Norte. O Nordeste, das secas e da cana, começava então a figurar nos discursos em
separado do Noroeste ou extremo Norte amazônico. Foi a partir dessa divisão que
o engenheiro Raymundo Pereira da Silva, por exemplo, abordou, frente ao Clube de
Engenharia, em 1907, os temas de O Noroéste e as endemias em separado de O
Nordeste e as secas, reunidos no entanto sob uma mesma conferência intitulada O
Problema do Norte ambas as regiões, embora distintas, deveriam ser tratadas
conjuntamente, pois as populações que seriam atendidas no Noroeste eram,
ressaltava, aquelas mesmas que emigravam do Nordeste em tempos de seca (REVISTA
DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909).
A experiência de ações técnicas, o acúmulo de discussões entre os engenheiros,
as ações políticas, a exposição jornalística e literária, todos podem ser considerados
fatores contribuintes para a criação, em 1909, da Inspetoria de Obras Contra as Secas,
órgão que, apesar de pertencer à esfera Federal, atuou exclusivamente na parcela
semi-árida do Nordeste do país. Enquanto se oficializava assim o combate às secas,
eram dados os primeiros passos no sentido de oficializar-se a região Nordeste, à
medida que se tornava necessário delimitar precisamente o espaço de atuação desse
órgão. Raymundo Pereira da Silva resumia a área afetada pelas secas resumidamente
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 71
como sendo aquela entre os rios Parnaíba e São Francisco, e mais detalhadamente
como uma zona de aproximadamente 600 mil quilômetros quadrados,
(...) que poderia ser limitada por uma curva, partindo de um ponto
qualquer do littoral do Ceará, na distancia média de 30 kilometros da
costa, contornando de perto o littoral do Rio Grande do Norte,
inclinando-se nas divisas deste Estado com a Parahyba em direcção a
Campina-Grande, cortando Pernambuco na altura mais ou menos de
Pesqueira, atravessando o S. Francisco nas proximidades da
Cachoeira de Paulo Affonso, passando por Jacobina e Barra do Rio
Grande, na Bahia, entrando o Estado do Piauhy pelo municipio de
Paranaguá, seguindo pelo divisor das aguas do Parnahyba e do
Itapicurú até as proximidades do littoral e, dahi, continuando, a
fechar no ponto de origem. (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA,
1909, p.23)
O engenheiro relativizava, no entanto, a interpretação dessa delimitação, pois
A intensidade do phenomeno não é, comtudo, a mesma em toda a
zona assolada. Tendo o seu maximo nos sertões do Ceará, Rio Grande
do Norte e parte da Parahyba, decresce mais ou menos
gradativamente para o littoral e para os lados de Pernambuco, Bahia
e Piauhy, a desapparecer por completo no interior da Bahia, de
Goyaz e do Maranhão. (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909,
p.25)
As tentativas de determinar limites físicos mensuráveis para a zona das secas
continuaram ao longo das primeiras décadas do século XX e, pode-se dizer, ainda
persistem , devido principalmente à atenção especial e os recursos a mais que as
terras nela circunscritas recebem do governo e dos órgãos responsáveis pelo combate
às secas. Foi dessa forma que se determinou, em lei de 1936, uma área que seria
oficialmente considerada o Polígono das Secas, para a qual seriam destinados os
recursos (fixados e garantidos pela constituição de 1934) destinados às obras contra as
secas, área essa determinada
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
pela poligonal cujos vértices são os seguintes: cidades de Aracati,
Acaraú e Camocim, no Ceará; interseção do meridiano de 44.º
com o paralelo de 9
paralelo 11
Traipu, no Estado de Alagoas; cidade de Caruaru, no Estado de
Pernambuco; cidade de Campina Grande, no Estado da Paraíba; e
ci
dade de Natal, no Estado do Rio Grande do Nort
p. 28)
O polígono foi sucessivamente ampliado, atendendo a pedidos de
administrações locais
a delimitação atual equivalente ao polígono, chamada Semi
Árido Brasileiro, atualizada em 20
quadrados distribuídos por nove Estados da
De forma paralela deu
Inicialmente determinada pelo recém
Estatística (IBGE), em 1941, pertenciam à região os Estados do Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. O Nordeste oficial expandiu
zonas fisiográficas
de 1945, quando
Ocidental, e tomou a atual conformação com a inclusão, em 1969, de Bahia e Sergipe
criando um único Nordeste, abrangendo nove Estados.
Figura 5:
Polígono das secas (1936) e Semi
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
pela poligonal cujos vértices são os seguintes: cidades de Aracati,
Acaraú e Camocim, no Ceará; interseção do meridiano de 44.º
com o paralelo de 9
°;
interseção do mesmo meridiano, com o
paralelo 11
° e cidade de Amargosa, no Estado da
Bahia; cidade de
Traipu, no Estado de Alagoas; cidade de Caruaru, no Estado de
Pernambuco; cidade de Campina Grande, no Estado da Paraíba; e
dade de Natal, no Estado do Rio Grande do Nort
e.
(AGUIAR, 1983
O polígono foi sucessivamente ampliado, atendendo a pedidos de
a delimitação atual equivalente ao polígono, chamada Semi
Árido Brasileiro, atualizada em 20
05, engloba aproximadamente 970 mil quilômetros
quadrados distribuídos por nove Estados da
Federação (Figura 5).
De forma paralela deu
-
se a determinação oficial da região Nordeste do país.
Inicialmente determinada pelo recém
-criado Instituto Brasileiro de
Geografia e
Estatística (IBGE), em 1941, pertenciam à região os Estados do Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. O Nordeste oficial expandiu
-
se na divisão de
de 1945, quando
se
incluíram Piauí e Maranhão como N
Ocidental, e tomou a atual conformação com a inclusão, em 1969, de Bahia e Sergipe
criando um único Nordeste, abrangendo nove Estados.
Polígono das secas (1936) e Semi
-Árido Brasileiro (2005)
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
| 72
pela poligonal cujos vértices são os seguintes: cidades de Aracati,
Acaraú e Camocim, no Ceará; interseção do meridiano de 44.º
W.G.,
interseção do mesmo meridiano, com o
Bahia; cidade de
Traipu, no Estado de Alagoas; cidade de Caruaru, no Estado de
Pernambuco; cidade de Campina Grande, no Estado da Paraíba; e
(AGUIAR, 1983
,
O polígono foi sucessivamente ampliado, atendendo a pedidos de
a delimitação atual equivalente ao polígono, chamada Semi
-
05, engloba aproximadamente 970 mil quilômetros
se a determinação oficial da região Nordeste do país.
Geografia e
Estatística (IBGE), em 1941, pertenciam à região os Estados do Ceará, Rio Grande do
se na divisão de
incluíram Piauí e Maranhão como N
ordeste
Ocidental, e tomou a atual conformação com a inclusão, em 1969, de Bahia e Sergipe
,
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 73
Assim como ocorrera quando em fins do século XIX as imagens do sertão
nordestino despontaram na consciência nacional, a invenção do Nordeste nas
décadas de 1920 e 1930 foi fruto de esforços direcionados, operados nas esferas
política e cultural. Enquanto as elites canavieiras, situadas principalmente em
Pernambuco, buscavam maneiras de refrear sua decadência econômica e política e
reconquistar atenção e auxílio do Estado nacional, a criação de uma identidade a partir
da exaltação de um passado idílico de suave dominação senhorial, atrelada a uma
unidade com o Nordeste sertanejo, destinatário das verbas de combate às secas,
surgia como uma opção viável (ALBUQUERQUE JR, 1994). Ao mesmo tempo,
intelectuais modernistas que procuravam construir uma arte essencialmente
brasileira, descobriam no sertão um reduto de pureza cultural, protegido pelo seu
próprio isolamento do mundo moderno.
Surgiram assim ensaios etnográficos e sociológicos como Nordeste, de
Gilberto Freyre
30
, ode ao mundo (e ao tempo) dos engenhos de cana publicada em
1937; ou como O Turista Aprendiz, no qual Mário de Andrade descreveu sua
passagem em 1928-1928 pelo sertão, destacando, por exemplo, a capacidade do poeta
Chico Antônio em criar poesia e música de qualidade sem ter acesso à educação
formal, ao mesmo tempo em que reiterava as imagens de uma natureza agressiva e
inóspita presentes em Os Sertões; ou ainda como Viajando o Sertão, de Luís da
Câmara Cascudo, que, relatando fatos ocorridos em sua viagem ao interior do Rio
Grande do Norte, em 1934, fez o elogio aos aspectos culturais (língua, culinária,
arquitetura, etc) e à hospitalidade do sertanejo.
Artigos nos jornais apresentaram outros relatos de viagem à região,
colaborando com a desmistificação da terra antes desconhecida, e com a mitificação
de uma identidade em formação. Uma literatura regionalista, abordando temas
nordestinos, floresceu no mesmo período, enriquecida pelo trabalho de autores
excepcionais como José Lins do Rêgo e Graciliano Ramos. As discussões sobre a
natureza do clima da região e o combate aos efeitos das secas também tiveram
30
Obra que teve sua contraparte em O outro Nordeste (1937), de Djacir Menezes, que tratava do
Nordeste dos sertanejos e da civilização do couro.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
continuidade, e as teor
ias e discussões sobre as qualidades raciais do nordestino
ganharam força a partir da década de 1920, quando muitos migraram para as
plantações de café, onde disputavam espaço com imigrantes estrangeiros.
O resultado dessas construções foi a formação de
Nordeste e a da área das secas, agregada à tradicional zona canavieira de grande
concentração de renda, e posteriormente destilada em uma imagem de zona
essencialmente subdesenvolvida (ANDRADE,
Foi dessa forma que,
co
terra e o
homem, e pela pátina de uma produção literária que buscava
profundas e quase-
imutáveis raízes culturais e sociais, os conceitos de sertão
nordestino
e do próprio Nordeste tornaram
demarcadas. E e
ssa transformação é particularmente notável no caso do sertão
Em su
a essência, o sertão, enquanto conceito aplicável de forma geral,
refere a um tipo geográfico específico, como explica Antônio Carlos Robert Moraes
(2003).
Historicamente, o termo sertão foi aplicado a diversos espaços, como rótulo
que carrega e
m si uma série de significados:
(tomando a distância aqui como relativa, dependendo das condições de acesso
Figura 6:
A comitiva de Mário de Andrade no sertão
FONTE: Acervo do grupo HCUrb.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
ias e discussões sobre as qualidades raciais do nordestino
ganharam força a partir da década de 1920, quando muitos migraram para as
plantações de café, onde disputavam espaço com imigrantes estrangeiros.
O resultado dessas construções foi a formação de
uma conexão entre a idéia de
Nordeste e a da área das secas, agregada à tradicional zona canavieira de grande
concentração de renda, e posteriormente destilada em uma imagem de zona
essencialmente subdesenvolvida (ANDRADE,
2005).
co
bertos pelo verniz científico
das teorias sobre o clima,
homem, e pela pátina de uma produção literária que buscava
imutáveis raízes culturais e sociais, os conceitos de sertão
e do próprio Nordeste tornaram
-se realidades oficiais
, cartograficamente
ssa transformação é particularmente notável no caso do sertão
a essência, o sertão, enquanto conceito aplicável de forma geral,
refere a um tipo geográfico específico, como explica Antônio Carlos Robert Moraes
Historicamente, o termo sertão foi aplicado a diversos espaços, como rótulo
m si uma série de significados:
aparece como
um espaço distante
(tomando a distância aqui como relativa, dependendo das condições de acesso
A comitiva de Mário de Andrade no sertão
do Rio Grande do Norte (1929).
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a
| 74
ias e discussões sobre as qualidades raciais do nordestino
ganharam força a partir da década de 1920, quando muitos migraram para as
uma conexão entre a idéia de
Nordeste e a da área das secas, agregada à tradicional zona canavieira de grande
concentração de renda, e posteriormente destilada em uma imagem de zona
das teorias sobre o clima,
a
homem, e pela pátina de uma produção literária que buscava
expor
imutáveis raízes culturais e sociais, os conceitos de sertão
, cartograficamente
ssa transformação é particularmente notável no caso do sertão
.
a essência, o sertão, enquanto conceito aplicável de forma geral,
não se
refere a um tipo geográfico específico, como explica Antônio Carlos Robert Moraes
Historicamente, o termo sertão foi aplicado a diversos espaços, como rótulo
um espaço distante
(tomando a distância aqui como relativa, dependendo das condições de acesso
que
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 75
são, em geral, precárias nos sertões), não-civilizado, geograficamente pouco
conhecido, esparsamente habitado por uma população exótica em costumes e
composição racial. É, ademais, um espaço não determinado em si mesmo, mas
identificável apenas na oposição com o não-sertão. Acima de tudo, os sertões o
fronteiras de expansão civilizatória, alvo imediato para a colonização e exploração
econômica. Dessa forma, qualificar uma área como sertão surge como o primeiro
passo para dessertanizá-la, ou seja, ocupar seu espaço, modernizar sua estrutura
produtiva e social, integrá-la ao não-sertão. É o que ocorreu, por exemplo, com o
noroeste de São Paulo, que de vazio cartográfico habitado por indígenas hostis, no
início do século XX, foi alvo de políticas direcionadas e tornou-se uma parte
constituinte do Estado, transformada pela modernização de comunicações e pela
colonização, diluindo-se sua
distinção com o restante do
território paulista e perdendo,
assim, a qualificação comum de
sertão (ARRUDA, 2000).
O sertão nordestino,
ainda que se encaixe em muitas
das características referentes ao
ente geográfico sertão, destoa
em outros pontos. Por um lado, o
isolamento relativo, a cartografia
por vezes imprecisa, a ocupação
basicamente rural e a população
mestiça de costumes peculiares
apontam o hinterland nordestino
da virada para o século XX como
um sertão no sentido mais
geral da palavra. Por outro lado,
mesmo em meados do século
XIX, como comentado, já era uma
Figura 7: Viajando o Sertão (capa da edição de 1985). O sol
e os cactos tornaram-se imagens comumente relacionadas ao
sertão; o automóvel meio de transporte utilizado por
Cascudo em sua viagem também figura com proeminência.
FONTE: Acervo do grupo HCUrb.
3 . A T e r r a : e n g e n h a r i a e n a t u r e z a | 76
região razoavelmente populosa; a primeira onda de ocupação expulsara ou
exterminara os nativos décadas e a região produzia riqueza, exportável inclusive,
a partir do gado e do algodão
31
. A associação desse espaço com o fenômeno das secas
alimentada pelos discursos técnico, literário e político surgiu, então, como imagem
definidora da natureza e mesmo das fronteiras do sertão nordestino. À medida que a
região sujeita às secas e o sertão do Nordeste tornaram-se conceitos
intercambiáveis, seu rótulo sertanejo ganhou permanência, e persiste na atualidade.
Ainda que as ações contra as secas e o avanço das comunicações e transportes tenham
provocado um crescimento populacional e econômico e integrado o sertão nordestino
ao litoral, e a despeito das mudanças culturais e produtivas ocorridas ao longo do
século XX, o sertão não perdeu sua denominação
32
. Pelo contrário, expandiu-se
geograficamente, avançando junto com a abrangência oficial do polígono das secas,
podendo ser considerado determinante mesmo na determinação da região Nordeste
oficial.
Para os engenheiros envolvidos no então incipiente combate às secas, o
contato com a realidade natural e humana do sertão nordestino foi certamente um
choque, e talvez um estimulante desafio: entender aquela realidade, mais do que uma
pitoresca viagem a um Brasil desconhecido, foi o primeiro passo em direção à sua
transformação. Dominar a instável natureza do sertão ou ao menos adaptar a
civilização local para resistir aos seus cruéis arbítrios era a missão que eles viam pela
frente, de modo a atingir seu objetivo final, a resolução do problema das secas.
31
Sobre a economia algodoeira no Rio Grande do Norte, cf. TAKEYA (1985)
32
Da mesma forma, pode-se inferir a título de digressão a hipótese de que, caso o problema das secas
tivesse sido efetivamente erradicado, o sertão nordestino poderia ter seguido o mesmo caminho de
outros sertões, e, privado de sua principal característica, ter sido tragado pelo não-sertão circundante.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 77
4. A Luta: Engenharia e Seca
Não sei por que eu aceitei este trabalho. Acho que foi o meu
sangue irlandês. A natureza é o lutador mais justo que existe e
eu queria lutar. Quando eu a vi, me olhando na cara, não pude
me afastar... Não queria desistir e admitir que tinha medo
porque eu nunca tive nem por um segundo.
William Mulholland
33
, 1907
4.1. Seca: um problema nacional
Os primeiros registros de estiagens prolongadas no nordeste do Brasil
remontam ao século XVII, quando a colonização do interior era ainda incipiente,
resumindo-se a fazendas, principalmente de gado, e algumas vilas que paulatinamente
avançavam a fronteira do domínio português. Os registros continuam e a despeito da
deficiência estatística apontam uma grande seca iniciada no ano de 1777, considerada
uma das mais graves manifestações do fenômeno na história da região. Por mais outro
século, no entanto, as secas seriam tratadas basicamente como um desastre natural,
contra o qual a população pouco podia fazer para resistir, além de retirar-se em busca
de água e alimento
34
.
A seca foi anunciada mais uma vez em 1877; inicialmente, não lhe foi conferida
muita importância na Corte, e as notícias de levas de migrantes rumando para as
cidades litorâneas foram tomadas como exageradas. O fluxo, no entanto, não parou, e
logo os retirantes tornaram-se dezenas de milhares, residindo, pedindo e morrendo
nas ruas dos centros urbanos. A magreza, sujeira e nudez dos retirantes causavam
profundo desconforto nos citadinos, ao ir contra a imagem de civilização na qual as
elites urbanas procuravam espelhar-se; as multidões famintas causavam-lhes também,
e talvez de forma mais contundente, temor por sua segurança e por suas posses, na
medida em que os grupos colocavam em xeque a ordem social, exigindo mantimentos
33
Engenheiro autodidata, construtor de obras hidráulicas. Herói público em 1913 ao prover de água a
cidade de Los Angeles, em pleno deserto; renegado em 1928 quando uma de suas represas rompeu
ante a força das águas, matando centenas de pessoas.
34
Relatos clássicos sobre a história das secas podem ser encontrados em ALVES (2003) e POMPEU
SOBRINHO (1982)
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 78
e saqueando armazéns públicos, quando não eram atendidos. Os abarracamentos em
péssimas condições sanitárias em que se abrigavam os retirantes eram também focos
de epidemias que ameaçavam as cidades.
As elites políticas locais foram persistentes em seus pedidos de auxílio, e logo a
imprensa da Corte começou a circular as notícias da miséria, desordem e morte
trazidas pela seca, e a questão passou a ser nacionalmente reconhecida. Recursos
começaram a ser enviados aos governos das províncias afetadas, que os utilizavam
predominantemente de três formas: com a doação de mantimentos aos retirantes,
com o pagamento de passagens para que emigrassem em direção ao extremo norte
a desabitada região amazônica do país, ou com a construção de melhoramentos
urbanos nas capitais, obras nas quais os retirantes arem utilizados como mão-de-
obra
35
. Essas medidas aliviaram em parte as tensões sociais e amenizaram a fome e
mortalidade, mas não puderam evitar grandes perdas humanas e econômicas. Apesar
de as estatísticas não serem confiáveis devido à inexatidão e à tendência de inflar ou
subestimar os números de acordo com as necessidades políticas, aceita-se que entre
200 e 500 mil pessoas sucumbiram à fome, sede e doenças naquela seca (numa época
em que a população nacional total era da ordem de 12 milhões de pessoas). No âmbito
da economia, tem-se que o valor total arrecadado pelo dízimo, um imposto direto
sobre a produção bovina no Ceará, por exemplo, que alcançara uma média de 85
contos de réis nos anos anteriores, caiu para oito contos em 1877 e um conto em
1878, tendo uma lenta recuperação a partir de então em 1882 alcançava apenas 34
contos (FERREIRA NETO, 2006). Os relatos da imprensa local procuravam expressar a
seriedade da situação, como no case da seguinte reportagem sobre Mossoró, então
uma pequena cidade com cerca de dois mil habitantes:
Mossoro foi nesta província, o theatro das mais tristes scenas da meseria.
A nudez a fome, as epidemias ceifavam grande numero de vidas, e iam
abrindo espaço aos recém-chegados. De janeiro de 1878 até agora (27 de
outubro de 1879) foram sepultados no cemitério publico daquella cidade,
conforme a relação de óbitos organisada pelo respectivo e muito digno
vigário, 31 mil vidas (...) convem notar que esses numeros não se referem
35
É fato conhecido que os recursos enviados eram, não raro, desviados para fins que pouca relação
tinham com o combate às secas, e as queixas quanto ao mal-uso desse dinheiro são comuns a boa parte
da discussão acerca do tema. Essa questão não será enfocada, no entanto, dentro deste trabalho.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 79
ao obtuario do primeiro anno da sêcca, 1877, nem aos dois últimos mezes
de seu último ano,79, mezes que offereceram as mais elevadas cifras da
calamitosa epocha. Não é, portanto, exagero computar o numero de
mortos, em Mossoró, durante os tres annos da sêcca que analysamos, en
quarenta mil (...) (GUERRA, 1929, p.1)
O ano de 1877 surge, então, como marco de uma mudança na forma com que
as secas eram expostas e pensadas no Brasil. Atingidos pelas notícias dos horrores
causados pelo fenômeno nas províncias do norte e impulsionados pela corrente
necessidade de conhecimento e construção da nação, os mais influentes técnicos da
capital do Império reuniram-se para discutir nos salões do Instituto Politécnico do Rio
de Janeiro as causas das secas e as medidas que poderiam ser adotadas para combatê-
las. As secas passavam então a ser problematizadas como uma questão nacional,
empecilho para o progresso e, principalmente, um fator que poderia ser enfrentado e
ter seus efeitos controlados a partir da ação técnica e racional patrocinada pelo Estado
e comandada pelos engenheiros.
4.2. Seca: por que combatê-la
O debate sobre as secas que então tomava forma era justificado, basicamente,
a partir de duas inquietações que afetavam a parcela da sociedade na qual se inseriam
os engenheiros. Por um lado se colocava a questão humanitária, a necessidade de
dar socorro às populações que sofriam diretamente com a fome e as epidemias
resultantes da seca e da migração. Por outro, estava a questão econômica, o desejo de
tornar permanentemente produtiva e lucrativa a região afetada pelas secas. Estes
seriam os dois pontos centrais mais frequentemente abordados no discurso dos
engenheiros, em redor dos quais se construíam as propostas para ação em curto,
médio e longo prazo. Estas questões, entretanto, encerravam dentro de si diversas
outras, que explícita ou implicitamente eram veiculadas dentro daquele debate
36
.
A ação humanitária aparecia como uma resposta direta ao sofrimento dos
retirantes, com o qual os engenheiros tinham contato indireto através de relatos nos
periódicos que circulavam nas capitais do sudeste, ou direto ao vivenciarem a
realidade nordestina quando eles próprios participavam da construção de obras na
36
Para familiarizar-se com algumas perspectivas das primeiras décadas do culo XX a respeito das
secas, cf. GUERRA (1980; 1983; 1987; 1989) e GUERRA e GUERRA (2001).
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 80
região. Mesmo que fosse sincera a empatia que as elites intelectuais de Rio e São
Paulo sentiam para com os sertanejos, com quem se irmanavam em pátria e religião,
outros incômodos éticos e morais transpareciam e adicionavam-se como motivação
para obras que reduzissem a migração. A presença dos retirantes na cidade, em sua
nudez, sujeira e miséria, era uma afronta aos princípios de civilização e modernidade,
de importância central para uma sociedade urbana que se moldava nos ideais
europeus.
Os retirantes personificavam a imagem da seca dentro das cidades: Um
phantasma de cabellos compridos, olhos cavernosos, bocca aberta, mão esticada, em
atitude de quem pede, coberto de andrajo se nos manifesta, a todos aterrorizando. É a
secca (A REPÚBLICA, 1900, p.1). Esses fantasmas traziam ainda outro estigma de
morte que ia além das aparências; aglomerados de forma precária e sem preceitos de
higiene pelas ruas das cidades, sem nutrição ou cuidado médico adequado, acabavam
por criar focos epidêmicos que poderiam espalhar-se e atingir a toda a população
urbana. A vontade de ver-se livre destes problemas em muitas ocasiões superava,
afinal, o sentimento humanitário, e o autoritarismo sobrepujava a solidariedade,
levando à determinação da construção de colônias ou campos de concentração
37
,
como eram chamados à época os acampamentos onde, longe das cidades, os
retirantes eram obrigados a ficar. As condições de vida nessas aglomerações não eram
melhores do que nas ruas das cidades, no entanto, e o mórbido resultado não era
diferente para os retirantes lá instalados.
Além do aspecto de tragédia humana, a perda de vidas durante as secas
figurava também nos artigos e discursos como um empecilho econômico para a região
e para o país. À parte da ameaça que as multidões famintas representavam para a
ordem social reunidos em números que superavam as próprias populações urbanas
os retirantes tinham um considerável poder de barganha frente ao governo, e
articulistas e políticos reconheciam que mesmo os sertanejos de natureza mais pacata
37
Sobre esses campos de concentração, cf. LIRA (1995) e RIOS (2006).
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 81
recorreriam a saques e invasões antes de deixarem-se morrer por inanição
38
, a perda
de trabalhadores, de animais e de culturas agrícolas agravava o estado de atraso
produtivo e as dificuldades financeiras do Nordeste.
A alta taxa de mortalidade, somada à emigração para as cidades e para o
território amazônico, praticamente nulificava as expressivas taxas de natalidade e
impedia o maior crescimento populacional da região, privando as fazendas locais de
uma mão-de-obra que seria abundante e barata. Esse prejuízo chegou, de fato, a ser
quantificado, quando em 1906 o deputado norte-riograndense Eloy de Souza usou de
cálculos estatísticos, considerando a produtividade esperada de cada homem válido
entre os 270.000 habitantes perdidos no Ceará e Rio Grande do Norte durante a seca
de 1877-79, para alcançar o montante de 113.400:000$000 de perdas à economia
nacional. Ao considerar as secas dos 30 anos anteriores em todo o Norte, sua projeção
era de assombrosos 1.050.000:000$000 desperdiçados. Citando esses números e
diversos aspectos das secas, o engenheiro Raymundo Pereira da Silva falava, em 1907,
aos seus colegas de clube:
Propomos que o Club de Engenharia estude a serie de medidas que
mais convêm adoptar para attenuar os effeitos das seccas e resolver
de um modo geral o problema do povoamento e desenvolvimento
economico dos Estados do Norte, cuja população é disimada pelo
temeroso flagello na região entre os rios Parnahyba e S. Francisco e
pela malaria e outras causas no valle do Amazonas, onde vai procurar
trabalho, e offereça ao Governo Federal as conclusões a que tiver
chegado como subsidio para o esclarecimento de um questão que
tão profundamente interessa ao progresso geral da nação. (REVISTA
DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909, p. 5)
Intrinsecamente inserida nos debates sobre a migração estava a necessidade
daqueles homens urbanos de conhecer quem eram os sertanejos nordestinos a quem
deveriam oferecer auxílio; como se pareciam, qual era sua índole, como poderiam,
afinal, contribuir para o crescimento do país. Se os relatos da seca de 1877 difundiram
largamente a imagem do retirante moribundo, a caracterização que Euclides da Cunha
38
Durante a seca de 1877, o temor provocado pela concentração de retirantes em Fortaleza levou o
governo local a pedir o deslocamento de um navio de guerra para o porto da cidade, de forma a impor
respeito aos sertanejos. O pedido foi prontamente atendido pelo governo central (CÂNDIDO, 2005).
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 82
fez do homem nordestino em Os Sertões mostrava ao público leitor o sertanejo em
seu ambiente natural: lânguido e subitamente explosivo, arguto e fanático, primitivo e
resistente, ele parecia um ser humano completamente diferente dos civilizados e
racionais engenheiros. As teorias deterministas vigentes naquela virada de século, o
Darwinismo Social, a Eugenia, enfatizavam essa aparente distinção comportamental e
as diferenças físicas, e usando de um discurso racista coberto por um verniz de
cientificidade seus proponentes tentavam explicar o caráter do sertanejo.
No cerne dessas explicações estava a herança racial: o sertanejo era uma
criatura mestiça, genuinamente nacional, amálgama ainda informe dos cruzamentos
entre brancos, pretos e aborigenes, em todos os gráos de sub-mestiçagem, sem
predominancia collectiva de qualquer typo caracterizado (REVISTA BRASILEIRA DE
ENGENHARIA, 1923, p. 49). A característica resultante dessa mestiçagem era, para
alguns, a indolência ou mesmo a incapacidade para o trabalho organizado; o sertanejo
imprevidente passaria os anos bons balançando-se em sua rede, nada armazenando
ou construindo para suportar os inevitáveis períodos de seca por vir. Isso o tornava
não apenas de pouca valia no combate às secas e na agricultura irrigável, mas também
indesejável nas plantações de café do sul do país, onde por vezes disputava espaço
com os imigrantes estrangeiros. Para resolver tal problema, alguns sugeriam a
introduzir no sertão agricultores estrangeiros europeus mediterrâneos, japoneses,
ou mesmo indianos e egípcios, dada a semelhança climática que a curto prazo
poderiam aumentar a produção da região, a médio prazo doutrinar os locais para o
cultivo organizado, e com o tempo inserir elementos superiores no caldeirão
racial nordestino.
Não faltavam, por outro lado os defensores da raça sertaneja (note-se que,
mesmo possuindo uma visão favorável, não escapam da classificação racista). O
engenheiro Chrockatt de Sá, após visita ao sertão com o fim de fazer estudos para a
construção da Estrada de Ferro de Mossoró, discursava, em 1910:
Quando penso nesse povo, sobro, intelligente, jovial, como só o
sabem e podem ser os fortes, corajoso, resignado, cheio de, de um
amor entranhado ao sólo (...) lembro-me de tal modo da calma e
coragem, da energia, da intelligencia, do desprezo pela morte, do
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 83
heroico povo japonez, que me habituei a considerar o sertanejo o -
Japonez brazileiro" (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1910, p. 6)
Em uma série de artigos intitulada Colonos Nacionais, publicada em edições
dA República (editada em Natal) de 1929, Felipe Guerra, intelectual norte-
riograndense, discutiu a situação dos migrantes nordestinos e respondeu às críticas
que haviam sido feitas em São Paulo. Guerra elogiava no sertanejo as virtudes de
mansidão, obediência e dedicação, e apontava as vantagens destes sobre os
imigrantes europeus: os nordestinos eram genuinamente brasileiros, mais baratos (por
não receber auxílios financeiros do governo) e intocados por males como a lepra, o
trachoma, communismo, bolshevismo, e outras semelhantes desgraças (GUERRA,
1929, p.01), dando um vislumbre do ambiente político vivido em seu tempo. Tanto
Felipe Guerra quanto Chrockatt de e outros destacavam como positiva a grande
fertilidade do sertanejo, que a despeito das dificuldades impostas pela seca, servia
como provedor de braços para a conquista da Amazônia e exploração da borracha e
para suprir o exército em tempos de necessidade. Já Mário de Andrade observava o
nordestino sob outra ótica, e encontrava na artisticidade inata e nos atributos culturais
suas maiores qualidades (ANDRADE, 1929). Luís da Câmara Cascudo também centra
seu relato de viagem, de 1934, nos aspectos que considerava notáveis na cultura
sertaneja, como artesanato e culinária (CASCUDO, 1985).
Considerações raciais e culturais à parte, a principal atuação que os sertanejos
iriam exercer durante as obras contra as secas seria a de trabalhadores cumprindo
funções simples, basicamente braçais, na construção de açudes, poços e estradas,
especialmente durante a época de secas, função para a qual se mostraram adequados.
Finalizadas as obras, esperava-se que trabalhassem para incrementar a produção da
região, não tornando-se capazes de sustentar-se, mas criando riqueza a partir da
exportação de produtos e provendo o resto do país de recursos essenciais.
Essa preocupação econômica, aliás, permeava todo o discurso das obras contra
as secas. Em suas propostas de obras, tendo enfatizado devidamente como seriam
essenciais no socorro às vítimas da seca, os engenheiros geralmente faziam questão de
dar as devidas justificativas financeiras. Utilizando tabelas e estatísticas, os
proponentes tentavam provar que cada obra era, mais do que um melhoramento
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 84
local, um investimento que se bem consolidado e administrado poderia compensar seu
próprio custo e ainda trazer bons retornos aos cofres blicos e particulares. Essa
projeção de crescimento econômico iniciava-se por uma avaliação dos produtos
disponíveis e cuja exploração as obras propostas poderiam potencializar, e por vezes
incluíam sugestões de novas culturas que seriam possibilitadas pelos novos
equipamentos, métodos e recursos introduzidos pelas obras.
Entre as culturas praticadas na região, o algodão era sem dúvida a que recebia
maior atenção. Apesar de altos e baixos provocados por mudanças na demanda
externa e problemas de produção relacionados ao clima e a doenças de lavoura, o
algodão, por sua adaptação ao clima e solo manteve-se por quase um século, desde
meados do XIX, como o principal produto de exportação do sertão nordestino. Ao
algodão somavam-se, produzidos em menor escala, a cana-de-açúcar, produto do
litoral, e os produtos de subsistência como o feijão e a mandioca; algumas propostas
incluíam o cultivo de palmeiras oleaginosas como fator diversificador da produção,
com potencial para exportação. Açudes, poços e sistemas de irrigação seriam
essenciais para o incremento dessa atividade agrícola, provendo alguma solução de
subsistência a partir da pesca e garantindo também melhores condições para as terras
de pastagem, base da mais tradicional atividade da região, a pecuária extensiva. Os
caminhos do charque e a criação do gado bovino e ovino foram fatores definidores da
ocupação do sertão desde o início da colonização. Com a crise decorrente da
mortandade animal durante a seca de 1877-79, o gado caprino ganhou importância,
devido à sua fácil adaptação ao ambiente (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1889,
p. 20). A avaliação do potencial econômico da região podia incluir também
características específicas da área à qual estavam associadas as obras em questão: o
caráter primariamente pecuarista do Piauí, a produção salineira do Rio Grande do
Norte e as possibilidades da agricultura nas margens do rio São Francisco, por
exemplo, eram elementos que direcionavam os projetos dedicados às suas respectivas
imediações.
O comércio dos derivados da pecuária, em especial couros e queijos, e dos
produtos agrícolas se tornou fator definidor do crescimento de vilas e cidades situadas
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 85
ao longo das estradas, seja daquelas já existentes ou das criadas como parte das obras
contra as secas. O escoamento da produção para exportação e para o comércio
regional eram, dessa forma, uma das principais justificativas para a construção de
ferrovias, estradas de rodagem e obras portuárias. O resultado dessas ações seria,
portanto, a criação, dentro da própria área sertaneja, de povoações bem-equipadas e
bem-supridas, que poderiam não apenas resistir melhor aos efeitos das secas mas
também, ao absorver as populações retirantes, retardar a tendência de migração em
direção ao litoral. Resolvidos assim os problemas humanitários e econômicos causados
pelas secas, estaria efetivamente vencida, pode-se dizer, a seca em si. E ainda que esse
objetivo final fosse geralmente compartilhado pelos engenheiros que discutiam o
tema, não havia consenso sobre como alcançar tal resultado. A forma de combater as
secas e as prioridades nesse processo eram foco de controvérsia e disputas, que se
estendiam até o conceito mais fundamental que envolviam: a compreensão das
causas, dos sinais, dos efeitos, e da própria natureza, enfim, do fenômeno.
4.3. Seca: como entendê-la
A uma primeira vista, poder-se-ia supor o entendimento das secas como sendo
uma relação bastante simples: a seca seria a ausência de águas, uma anomalia
climática que atingiria certas áreas do nordeste brasileiro. Esta resposta não era
suficiente, entretanto, para os engenheiros, que pretendiam a partir das ferramentas
da ciência desvendar o fenômeno, combatê-lo e vencê-lo. Os estudos meteorológicos
e geológicos empreendidos principalmente no Ceará, província mais afetada pelas
secas na segunda metade do século XIX possibilitavam alguma compreensão do
clima local e traziam uma conclusão importante: uma seca era definida não tanto pela
falta de chuvas ao longo do ano, mas pela sua irregularidade que impossibilitava o
aproveitamento pela população. O clima do sertão nordestino (fato naturalmente
conhecido pelos seus habitantes) segue em condições normais um ciclo de duas
estações:
A estação invernosa normal começa ordinariamente, conforme os
logares, entre dezembro e março, e termina entre fins de abril e
começo de junho. Ha, portanto, cinco mezes de chuvas e sete mezes
de verão, no qual apenas se registram em raros districtos os
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 86
chuviscos chamados chuvas de cajú (porque coincidem com a
floração dos cajueiros). (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909,
p. 22)
Nos anos em que esse padrão se mantinha, apesar da secura constatada
durante o verão, a população era capaz de cultivar a terra e praticar a pecuária sem
grandes problemas, aproveitando a estação chuvosa para o plantio mais expressivo e,
durante o verão, usando as margens e o leito dos rios intermitentes para fazer a
chamada agricultura de vazante. O que as observações científicas demonstravam era
que o nível total de chuvas em anos de seca não era radicalmente inferior ao dos anos
normais o posto meteorológico em Quixadá registrara em 1898, ano seco, 312mm
de chuvas, frente a 338mm em 1891, ano considerado normal (REVISTA DO CLUBE DE
ENGENHARIA, 1909, p. 25). nos anos de seca, no entanto, a chuva ocorria de forma
mais esparsa e torrencial, impossibilitando o planejamento das culturas agrícolas e
impedindo a absorção pelo solo das águas pluviais, que escoavam rapidamente em
direção às terras mais baixas, carregando consigo os nutrientes do curso dos riachos
efêmeros por ela formadas. O engenheiro Joanny Bouchardet tentava explicar
didaticamente o processo:
Si representarmos hypotheticamente por um millimetro de altura
d'agua a capacidade de absorpção de um terreno em matto virgem
por cada minuto, e por 30 millimetros o seu estado de saturação
poderemos perfeitamente comprehender o phenomeno, dizendo
que toda a chuva cuja intensidade não passar de um millimetro por
minuto e cuja duração total, sem intermittencia, não exceder de 30
minutos, se toda absorvida, sendo parte evaporada e parte
conduzida mais tarde pelas infiltrações ao talweg dos Corregos, e
sendo a maior parte retida pela sucção das arvores.
Se houver uma chuva d'esta intensidade diariamente, como no Rio
de Janeiro antigamente, os corregos serão constantemente
alimentados por estas infiltrações seu volume se mais ou menos
constante, e não haverá que receiar enchentes. Se porém a chuva
tiver uma intensidade de 2 millimetros de altura por cada minuto, e a
sua duração fôr apenas de 15 minutos, embora o volume total da
chuva seja portanto o mesmo, o terreno cuja capacidade de
absorpção fôr apenas de um millimetro por minuto, deixará escoar
metade para os corregos, e essa metade, além de produzir uma
enchente, poderá prejudicar os terrenos.
Por sua vez a terra, que absorvêo
ficará mais resecada, o possuirá a reserva sufficiente para
alimentar na estação cca, não somente as arvores como os
pequenos corregos. (BOUCHARDET, 1905, p88
Esse fa
to foi verificado e apresentado em outro momento e outros termos por
Garibaldi Dantas, num artigo de jornal em que relatava sua viagem pelo sertão do Rio
Grande do Norte, em 1922:
Impetuosas, barrentas, as aguas desciam, arrastando galhos seccos,
pedaços d
humilde que passava: era uma torrente que se despejava leito
abaixo, arrazando tudo na sua descida infrene. (...)
Como este, o quasi todos os rios sertanejos. Num instante,
transformam
vezes, leitos inteiramente differentes dos antigos. Em poucas horas,
as aguas baixam e não o raros os que, no mesmo dia, depois de
cheia formidavel, dão passagem a todo mundo.
Faz pena ver
que fica retida no leito arenoso, guardada nos lençoes do sub
reser
va das seccas infalliveis.
Figura 8:
Imagens de satélite mostram o ciclo climático normal do nordeste, com a alternância das
estações chuvosa (esq., março/2004) e seca (dir., novembro/2004).
FONTE: Imagem-
base © NASA, 2004.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
Por sua vez a terra, que só absorvêo
metade
das aguas da chuva,
ficará mais resecada, não possuirá a reserva sufficiente para
alimentar na estação cca, não somente as arvores como os
pequenos corregos. (BOUCHARDET, 1905, p88
-89)
to foi verificado e apresentado em outro momento e outros termos por
Garibaldi Dantas, num artigo de jornal em que relatava sua viagem pelo sertão do Rio
Impetuosas, barrentas, as aguas desciam, arrastando galhos seccos,
pedaços d
e terras cahidas, troncos de arvores. Já não era um rio
humilde que passava: era uma torrente que se despejava leito
abaixo, arrazando tudo na sua descida infrene. (...)
Como este, são quasi todos os rios sertanejos. Num instante,
transformam
-se em caudaes
, arrazando tudo, chegando a cavar, as
vezes, leitos inteiramente differentes dos antigos. Em poucas horas,
as aguas baixam e o são raros os que, no mesmo dia, depois de
cheia formidavel, dão passagem a todo mundo.
Faz pena ver
tanta agua a descer para o mar, inutilmente, a não ser
que fica retida no leito arenoso, guardada nos lençoes do sub
va das seccas infalliveis.
(DANTAS, 1922)
Imagens de satélite mostram o ciclo climático normal do nordeste, com a alternância das
estações chuvosa (esq., março/2004) e seca (dir., novembro/2004).
base © NASA, 2004.
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das aguas da chuva,
ficará mais resecada, não possuirá a reserva sufficiente para
alimentar na estação sêcca, não somente as arvores como os
to foi verificado e apresentado em outro momento e outros termos por
Garibaldi Dantas, num artigo de jornal em que relatava sua viagem pelo sertão do Rio
Impetuosas, barrentas, as aguas desciam, arrastando galhos seccos,
e terras cahidas, troncos de arvores. Já não era um rio
humilde que passava: era uma torrente que se despejava leito
Como este, são quasi todos os rios sertanejos. Num instante,
, arrazando tudo, chegando a cavar, as
vezes, leitos inteiramente differentes dos antigos. Em poucas horas,
as aguas baixam e o são raros os que, no mesmo dia, depois de
tanta agua a descer para o mar, inutilmente, a não ser
a
que fica retida no leito arenoso, guardada nos lençoes do sub
-solo -
Imagens de satélite mostram o ciclo climático normal do nordeste, com a alternância das
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 88
Ainda que esses conhecimentos apontassem para certo entendimento a
respeito da natureza das secas, não bastavam para prever ou mesmo reconhecer
consistentemente a ocorrência do fenômeno, passos essenciais para seu combate
efetivo. Ao analisar séries históricas, geralmente baseadas na memória popular e nos
registros de perdas agrícolas e humanas, era comum haver discordâncias sobre quais
teriam sido anos normais, irregulares, ou efetivamente secos. As tentativas de
encontrar uma periodicidade nas secas, portanto, eram geralmente desencontradas e
pouco conclusivas. Tentativas de correlação entre o ciclo de intensidade de manchas
detectadas na superfície solar chegaram a criar algum entusiasmo na comunidade
científica internacional, ocasionando discussões inclusive nos salões do Instituto
Politécnico do Rio de Janeiro, mas acabaram postas por terra na década de 1890 com a
utilização de todos estatísticos mais sofisticados, e a partir das próprias
contradições e falhas de previsão que o sistema exibia (DAVIS, 2002). Parecia inútil,
portanto, tentar prever a seca; o melhor que se podia fazer era detectá-la em seus
estágios iniciais de forma mais ou menos precisa quando, passado o equinoxio de
março, as chuvas ou faltam completamente ou apresentam-se fracas ou
irregularmente espaçadas (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909, p. 25) o que
não era mais do que uma ratificação ligeiramente científica da tradição popular então
bem estabelecida de considerar o dia de São José, 19 de março, como marco que,
dependendo da presença de chuva, anuncia um ano seco ou chuvoso.
O passo inicial para o combate das secas seria, então, a compreensão de suas
causas, empreitada que dependeria fundamentalmente dos conhecimentos e
ferramentas meteorológicas disponíveis, e que poderia ditar os rumos das
intervenções a seguir. As análises climáticas, verificadas desde o século XIX e ainda em
franca discussão no século XX, tendiam a apontar uma série de fatores físicos como
responsáveis pela escassez de chuvas: a posição da área afetada em relação às
correntes aéreas em escala continental, o relevo majoritariamente plano, a velocidade
dos ventos, a dinâmica rmica nas diversas camadas da atmosfera, todos contribuíam
para uma dificuldade de formação de nuvens de chuva, por tornarem raras as
correntes ascendentes e o acúmulo de umidade no ar. Se por um lado se possuía esse
tênue conhecimento básico do mecanismo causador de pluviosidade, as causas das
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 89
anomalias que caracterizavam as secas eram ainda uma incógnita, sobre a qual poucos
indícios científicos se podia mensurar. Sampaio Ferraz discursava ao Clube de
Engenharia em 1919, acerca das explicações meteorológicas expostas ao longo dos
anos para as causas da seca no nordeste:
Basta-nos dizer que sómente em parte são acceitáveis as que
procuram esclarecer o regimen normal, e quanto ás que procuram
justificar as anomalias das seccas, quasi nada adiantam de positivo,
embora se revelem algumas muito bem orientadas.
Por que esse insucesso? Mesmo após uma excellente rie de
observações como foi a do meu mallogrado collega Oswaldo Weber,
realizada em pleno sertão do Ceará, durante annos e annos, optimos
apparelhos, esplendida aptidão e inquebrantavel assiduidade, como
explicar, ainda assim, a impossibilidade de solver o enigma? Muito
simplesmente. É que grandes factores de importancia capital, restam
ainda desconhecidos ou inapreciados. As observações communs não
os logram revelar embora os denunciem, por vezes indirectamente.
(REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1931, p. 218-219)
O próprio Sampaio Ferraz encontrava na variação dos ventos, alcançando na
quadra seca o dobro da velocidade verificada na quadra chuvosa, a única relação que
podia ser positivamente relacionada às secas. Não podia, porém, explicar com certeza
como tal alteração ocorria, apenas levantar suspeitas sobre o mecanismo de correntes
marítimas no Atlântico Sul e seu efeito atmosférico. Entre outros fatores apresentados
como agravantes da situação climática estavam a formação geológica do solo, em
grande parte granítico, que aliado ao alto coeficiente de evaporação ocasionado pelo
ar seco e pelas altas temperaturas dificultava a absorção de umidade pela terra.
Era de entendimento geral de que características como a circulação dos ventos,
o relevo e a composição do solo não podem ser debelladas por nem um esforço
humano (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1889, p. 18). Eram também fatos
naturais, sobre os quais o homem não tinha controle ou responsabilidade. Mas existia
um fator que era constante alvo de controvérsia e que configurava um caso à parte: a
influência da vegetação na situação climática e a contribuição humana na devastação
da cobertura florestal. Um grupo de engenheiros, ligados à corrente ambientalista
que remontava às preocupações de José Bonifácio acerca do dessecamento,
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 90
acreditava que a ausência de florestas causava a perda de umidade no solo e no ar, e
que a situação se agravava com a derrubada e queimada da vegetação. A substituição
das bárbaras formas de cultivo baseadas na queimada, a conservação e replantio das
matas nativas, a introdução de novas espécies resistentes à estiagem eram, para eles,
condições fundamentais para a melhoria do clima e combate às secas na região. Mas
esta opinião não era compartilhada por todos; discordando dos métodos de análise e
dos resultados projetados pelos ambientalistas, alguns afirmavam categoricamente:
A devastação das mattas não influe sobre o phenomeno climaterico
chamado secca. A prova é que em 1600, quando se presume o Estado
coberto por uma floresta virgem, houve a maior secca de que ha
noticia; tão grande foi, que matou tribus e tribus selvagens. (REVISTA
BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1924, p. 51)
Enquanto debatia-se sobre quais causas das secas se é que alguma podiam
ser combatidas e minoradas e como isso poderia ser feito, algumas reflexões eram
feitas no sentido de entender quais eram os reais efeitos do fenômeno sobre a
população e a economia. Que eram impostas sérias dificuldades à agricultura era
evidente, mas seriam as secas o único fator culpável pela miséria que afetava o
nordeste semi-árido, como muitas vezes alegavam os governantes locais? O geógrafo e
professor Giagocomo Raja Gabaglia, em seu trabalho escrito em 1860, negava essa
hipótese, e advertia:
O calamitoso resultado atribuído às secas do Ceará e o estado
relativamente atrasado da província, também imputado à mesma
origem, resultam mais do complexo de muitas outras circunstâncias e
motivos o discutidos, do que unicamente do fantasma - secas ou
falta de chuvas. (CAPANEMA e GABAGLIA, 2006, p. 86)
Gabaglia via em elementos como violência e insegurança incontidas,
imprevidência da população, a ignorância de métodos de agricultura, e a política de
socorros esmolas que alimentam o ócio , e não na seca em si, os maiores
empecilhos para a prosperidade no Ceará. Comparava também a seca no Brasil às
enchentes ocasionais ocorridas na França, em seu ver ainda mais nocivas por ocorrer
de forma repentina causando enormes estragos, sem no entanto paralisar as regiões
onde ocorriam, para argumentar que no Ceará de então o problema partilha mais de
questões sócio-econômicas do que da sica terrestre (CAPANEMA E GABAGLIA, 2006,
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 91
p129). Em 1907, Raymundo Pereira da Silva (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA,
1909) acusava a desordem do sistema fundiário, sem delimitação precisa, de contribuir
para a falta de investimento para a melhoria das terras. Expunha também outros
fatores agravantes dos efeitos das secas: reconhecia que a falta de comida com a
perda das lavouras, e não a falta de água para uso humano em si, era o que
desencadeava as migrações em massa. Migrações essas que por sua vez eram
responsáveis pela expansão da crise para áreas não diretamente afetadas pela
estiagem, como o litoral e as serras. O artigo de L. Raul de Sena Caldas, de 1924 ecoava
a caracterização da seca como antes de tudo um problema social, dentro do qual está
um de riqueza, e tendo como nucleo de solução um problema technico - o da
distribuição dagua ou de irrigação (REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1924, p.
224).
O problema das secas se apresentava então em toda a sua complexidade:
climático, social, econômico, humanitário, político, ambiental, afetando uma área que
englobava (em 1924) cerca de um quarto da população nacional; ficava evidente que
não teria solução cil ou imediata. Os engenheiros que se envolveram na questão
aceitaram mesmo assim o desafio, e se mostravam convencidos de que a partir de
ações técnicas bem fundamentadas e executadas poderiam deixar para trás o
fantasma que assombrava o Brasil, trazendo penúria e atraso e trazendo a morte a
bater às portas da nação moderna em formação. A busca pela forma mais eficaz de
travar esse combate se colocava, então, no centro das atenções, e as propostas para
tal fim seriam tão diversas quanto eram os pontos de vista sobre o problema.
4.4. Seca: como combatê-la
Dois elementos básicos eram necessários no sentido de formular propostas de
obras contra as secas: o conhecimento do problema em questão e o conhecimento das
soluções aplicáveis. Foram discutidas acima as formas como o primeiro foi
estabelecido e transmitido nos meios técnicos e científicos; resta compreender como o
segundo foi construído, e que tipo de propostas originou. A leitura da descrição e
justificativa das próprias propostas, dos pareceres que receberam, de relatórios de
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 92
obras e de outras considerações publicadas nas revistas de engenharia servirá aqui
como base para a busca dessa compreensão.
Giacomo Raja Gabaglia, em sua pioneira avaliação técnica do problema escrita
em 1860, entendia a questão essencialmente como uma deficiência na distribuição das
águas e indicava como possíveis soluções a construção de fontes artesianas, poços,
açudes e canais. As fontes, supunha que seriam insuficientes e dispendiosas; os poços,
considerava sua utilidade restrita à menor escala das propriedades particulares; os
açudes, pela grande quantidade de terra, materiais e mão-de-obra necessários,
acreditava que só seriam úteis para os grandes proprietários e impraticáveis para
construção e uso públicos; os canais, criados utilizando-se das valas que formavam o
leito dos rios intermitentes e auxiliados por barragens para estabilização do nível e
movimento das águas, escolhia como o melhor recurso, por ser mais econômico e por
melhor aproveitar as condições locais. Essas soluções eram todas de caráter hidráulico:
buscavam atendendo à concepção do problema que Gabaglia expunha distribuir
regularmente e perenizar para toda a população o acesso à água. Gabaglia mencionava
também um esforço de conservação e embora reconheça as dificuldades de
replantio das matas como importantes para a melhoria da situação. Caso seu plano
fosse seguido fielmente, previa, o problema das secas seria resolvido dentro de 15
anos (CAPANEMA E GABAGLIA, 2006).
Pioneirismo à parte, as propostas de Gabaglia, cientista e professor, não
poderiam ter surgido da especulação pura. Apoiavam-se em experimentação e
discussão anterior, e eram adaptadas à realidade que conheceu em primeira mão
durante sua estadia no Ceará. Sua preocupação com as florestas encaixa-se na
corrente de cientistas ambientalistas, discutida. Fontes artesianas, poços e açudes
eram soluções cuja tecnologia e efeitos eram conhecidos no Brasil; talvez por isso e
por não considerá-los opções ótimas para o Ceará, não se esforçou em explicá-los ou
entrar em detalhes sobre seu funcionamento. Ao defender sua proposta de canais, no
entanto, não deixou de citar os canais e barragens que vira em sua viagem à França,
ainda que deixando explícito que seu projeto era muito mais simples e econômico, em
concordância com as possibilidades do Brasil e as condições do Ceará.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 93
Por mais que as muitas propostas posteriores fossem diferentes em seu
escopo, direcionamento e exposição, o trabalho de Gabaglia introduz elementos que
seriam fundamentais nos projetos de obras de combate às secas no Brasil. As obras
hidráulicas, nas variações apresentadas por Gabaglia e em outras tantas, foram as mais
comumente sugeridas, talvez por serem as que atacariam mais diretamente os efeitos
da estiagem, ao contribuir para tornar possível a cultura do solo
39
. Ao colocar à
disposição dos agricultores os recursos hídricos necessários à sobrevivência e à
produção, em uma estrutura que resistisse mesmo a estiagens prolongadas, assegurar-
se-ia a produção de alimentos local, prevenindo-se assim o sofrimento pela inanição,
assim como a migração e todos os males dela decorrentes. A busca por experiências de
obras em outros países, seja para orientar os projetos ou para exemplificar e justificá-
los, seria também uma constante.
Em uma série de conferências realizadas em 1889 no Clube de Engenharia, o
engenheiro Newton Burlamaqui abordou o tema das secas retomando como ponto
inicial o plano do falecido Gabaglia que, por gigantesco de mais, entrou para a
poeira dos arquivos para não mais ser desenterrado (REVISTA DO CLUBE DE
ENGENHARIA, 1889, p. 21). Após fazer suas considerações sobre a situação das
províncias do Piauí e Ceará e brevemente recapitular alguns estudos sobre o assunto
realizados desde 1860, o engenheiro sugere três ões que, reunidas, nulificariam os
terriveis efeitos das seccas: a plantação de árvores resistentes à estiagem, a
construção em larga escala de açudes em sistema de parceria entre Estado e
particulares, e a construção de estradas de ferro ligando o interior das provincias
flagelladas. Caracterizava-se, então, o trio de propostas que guiariam o combate às
secas durante as décadas seguintes: obras hidráulicas (especialmente a açudagem);
estradas (principalmente ferrovias até a década de 1910); e gerenciamento florestal. O
regulamento oficial da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), em 1909 reflexo
de décadas de discussão e estudos, que iam desde a comissão de que Gabaglia fizera
39
J. S. de Castro Barbosa considerava que esse deveria ser o lema a ser gravado no alto das tendas de
trabalho das campanhas contra as secas (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1910, p. 85)
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 94
parte até as incursões do Serviço Geológico e Mineralógico Brasileiro
40
no interior do
Ceará, em 1907 , consolidava definitivamente esse conjunto de propostas:
Art. 1° Os serviços de estudos e obras, destinados a prevenir e a
atenuar os efeitos das secas que assolam alguns Estados do Norte do
Brasil, são os seguintes:
I. Estradas de ferro de penetração
II. Estradas de ferro afluentes das estradas principais;
III. Estradas de rodagem e outras vias de comunicação entre pontos
flagelados e os melhores mercados e centros produtores;
IV. Açudes e poços tubulares, os artesianos e canais de irrigação;
V. Barragens transversais submersas e outras obras destinadas a
modificar o regime torrencial dos cursos de água;
VI. Drenagem dos vales desaproveitados no litoral e melhoramento
das terras cultiváveis do interior;
VII. Estudo sistematizado das condições meteorológicas, geológicas e
topográficas das zonas assoladas;
VIII. Instalação de observatórios meteorológicos e de estações
pluviométricas;
IX. Conservação e restituição das florestas, com ensaios
sistêmatizados das culturas que melhor se prestem ás condições
especiais dessa rejião.
X. Outros trabalhos
tais como a picicultúra, os hortos florestais etc,
que possam contribuir para ativar e dezinvolver a ação da
INSPETORÍA. (REIS, 1920. p. 233)
40
Sobre a participação do SGMB na exploração dos sertões brasileiros, cf. FIGUEIRÔA, 2007.
O núcleo das ações esperadas
da IOCS, constata-se, refletia
propostas destacadas por Burlamaqui
duas décadas antes, aquelas que após
décadas de amadurecimento através
de discussões e experiências
desfrutavam de ma
ior consenso
acerca de sua utilidade e adequação à
situação do Nordeste e do Brasil.
Estavam assim definidos os principais
rumos de ação, notavelmente
direcionados ao combate dos efeitos
e não das causas
do fenômeno. As
possibilidades para estudos e
ex
perimentação, no entanto,
continuaram abertas, e de fato
propostas as mais diversas
continuaram a ser levantadas.
O projeto de canalização das águas do rio São Francisco até o Ceará
objetivando regularizar o regime de rios intermitentes naquele estado foi
exemplo, peça central de discussões acirradas, desde suas primeiras proposições ainda
no século XIX. O assunto ocasionalmente retornava à pauta em trabalhos que
tentavam comprová-
lo como impraticável devido à diferença de altitude entre o ponto
de to
mada de águas e a desembocadura do canal, ou em outros que alegavam que o
avanço das técnicas e materiais ou o uso de um traçado diferente o tornariam possível.
Talvez ainda mais grandiosos
considerados por alguns e
ram outros projetos que pretendiam, através da criação de
açudes em larga escala, modificar a dinâmica atmosférica da região e erradicar as
condições climáticas que causavam o problema das secas. Era o caso do longo (com
mais de 160 páginas) e minucioso tr
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
O núcleo das ões esperadas
o trio de
propostas destacadas por Burlamaqui
duas décadas antes, aquelas que após
décadas de amadurecimento através
de discussões e experiências
ior consenso
acerca de sua utilidade e adequação à
situação do Nordeste e do Brasil.
Estavam assim definidos os principais
rumos de ação, notavelmente
direcionados ao combate dos efeitos
do fenômeno. As
possibilidades para estudos e
perimentação, no entanto,
continuaram abertas, e de fato
propostas as mais diversas
continuaram a ser levantadas.
O projeto de canalização das águas do rio São Francisco até o Ceará
objetivando regularizar o regime de rios intermitentes naquele estado foi
exemplo, peça central de discussões acirradas, desde suas primeiras proposições ainda
no século XIX. O assunto ocasionalmente retornava à pauta em trabalhos que
lo como impraticável devido à diferença de altitude entre o ponto
mada de águas e a desembocadura do canal, ou em outros que alegavam que o
avanço das técnicas e materiais ou o uso de um traçado diferente o tornariam possível.
Talvez ainda mais grandiosos
ou mesmo megalomaníacos, como foram
ram outros projetos que pretendiam, através da criação de
açudes em larga escala, modificar a dinâmica atmosférica da região e erradicar as
condições climáticas que causavam o problema das secas. Era o caso do longo (com
mais de 160 páginas) e minucioso tr
abalho publicado em 1920 por Luiz Mariano de
Figura 9:
Um poço público construído pela IFOCS
FONTE
: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
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O projeto de canalização das águas do rio São Francisco até o Ceará
objetivando regularizar o regime de rios intermitentes naquele estado foi
, por
exemplo, peça central de discussões acirradas, desde suas primeiras proposições ainda
no século XIX. O assunto ocasionalmente retornava à pauta em trabalhos que
lo como impraticável devido à diferença de altitude entre o ponto
mada de águas e a desembocadura do canal, ou em outros que alegavam que o
avanço das técnicas e materiais ou o uso de um traçado diferente o tornariam possível.
ou mesmo megalomaníacos, como foram
ram outros projetos que pretendiam, através da criação de
açudes em larga escala, modificar a dinâmica atmosférica da região e erradicar as
condições climáticas que causavam o problema das secas. Era o caso do longo (com
abalho publicado em 1920 por Luiz Mariano de
Um poço público construído pela IFOCS
Barros Fourier, engenheiro maranhense formado pela Escola Militar que acreditava ter
desvendado os segredos da formação climática no Nordeste. Ao criar um gigantesco
açude, um verdadeiro mar interior na zona a
segurança que seus detalhados estudos científicos lhe conferiam, poderia produzir
chuvas abundantes na região e resolver o problema das secas do Nordeste.
O conceito de obra contra as secas também continuou a expandir
medida que a atuação da IOCS
Federal de Obras Contra as Secas
secas organizado pela IFOCS em 1923 listava em seu orçamento além dos poços,
açudes e estradas (de rodagem, carroçáveis e ferrovias), tradicionalmente
associados à atuação da Inspetoria, a construção e reforma de
rede telefônica e a criação de um serviço de coordenadas geográficas no Nordeste. Em
1935, um novo plano considerava como serviços de execução normal e permanente,
além construção de uma série de obras hidráulicas e de rodovias, a p
cultura de hortos florestais. Esses serviços regulares, determinava o plano, deveriam
receber financiamento equivalente a 3% do orçamento federal anual, acrescidos de
uma reserva de mais 1% destinada à execução de obras emergenciais na even
de uma seca prolongada. Era o preço que o governo se dispunha a pagar para evitar o
custo humanitário e econômico que a seca vinha cobrando desde o início da ocupação
do nordeste.
Figura 10:
Escritório da IFOCS no Rio: sede da seção de
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
Barros Fourier, engenheiro maranhense formado pela Escola Militar que acreditava ter
desvendado os segredos da formação climática no Nordeste. Ao criar um gigantesco
açude, um verdadeiro mar interior na zona a
fetada, dizia e demonstrava com a
segurança que seus detalhados estudos científicos lhe conferiam, poderia produzir
chuvas abundantes na região e resolver o problema das secas do Nordeste.
O conceito de obra contra as secas também continuou a expandir
medida que a atuação da IOCS
transformada a partir de 1919 em IFOCS, Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas
se consol
idava. O plano geral de obras contra as
secas organizado pela IFOCS em 1923 listava em seu orçamento além dos poços,
açudes e estradas (de rodagem, carroçáveis e ferrovias), tradicionalmente
associados à atuação da Inspetoria, a construção e reforma de
portos, a expansão da
rede telefônica e a criação de um serviço de coordenadas geográficas no Nordeste. Em
1935, um novo plano considerava como serviços de execução normal e permanente,
além construção de uma série de obras hidráulicas e de rodovias, a p
iscicultura e a
cultura de hortos florestais. Esses serviços regulares, determinava o plano, deveriam
receber financiamento equivalente a 3% do orçamento federal anual, acrescidos de
uma reserva de mais 1% destinada à execução de obras emergenciais na even
de uma seca prolongada. Era o preço que o governo se dispunha a pagar para evitar o
custo humanitário e econômico que a seca vinha cobrando desde o início da ocupação
Escritório da IFOCS no Rio: sede da seção de
projetos e orçamentos
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
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Barros Fourier, engenheiro maranhense formado pela Escola Militar que acreditava ter
desvendado os segredos da formação climática no Nordeste. Ao criar um gigantesco
fetada, dizia e demonstrava com a
segurança que seus detalhados estudos científicos lhe conferiam, poderia produzir
O conceito de obra contra as secas também continuou a expandir
-se á
transformada a partir de 1919 em IFOCS, Inspetoria
idava. O plano geral de obras contra as
secas organizado pela IFOCS em 1923 listava em seu orçamento além dos poços,
açudes e estradas (de rodagem, carroçáveis e ferrovias), tradicionalmente
portos, a expansão da
rede telefônica e a criação de um serviço de coordenadas geográficas no Nordeste. Em
1935, um novo plano considerava como serviços de execução normal e permanente,
iscicultura e a
cultura de hortos florestais. Esses serviços regulares, determinava o plano, deveriam
receber financiamento equivalente a 3% do orçamento federal anual, acrescidos de
uma reserva de mais 1% destinada à execução de obras emergenciais na even
tualidade
de uma seca prolongada. Era o preço que o governo se dispunha a pagar para evitar o
custo humanitário e econômico que a seca vinha cobrando desde o início da ocupação
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 97
Eram então passados 75 anos desde que Gabaglia escrevera seu ousado plano
de canais para o Nordeste, e embora sua previsão para a rápida superação do
problema não tivesse se confirmado, a institucionalização e regularização do trabalho
de obras contra as secas tinha se tornado uma realidade, e seus efeitos podiam ser
verificados nos diversos projetos concretizados por toda a zona sujeita às secas no
Nordeste. Direcionadas como foram para alterar a dinâmica populacional da região,
objetivando conter as migrações e reduzir a mortalidade, era de se esperar que obras
como poços e sistemas de irrigação tivessem um efeito sobre a configuração territorial
dos estados nordestinos. Esse efeito, entretanto, é difuso e limitado pela própria
escala das ações, pontuais, dispersas e ainda pouco numerosas dentro da grande área
afetada, tornando-se portanto difícil avaliá-lo a partir dos dados disponíveis. Mas
houve propostas que, devido a seu escopo e alcance e aos fins para os quais foram
concebidos e os engenheiros que os projetaram mostravam ter consciência disso
teriam efeitos marcantes sobre o espaço regional: os açudes e as estradas.
4.5. Açudes: primeiros projetos
Como mencionado anteriormente, os açudes, construções nas quais uma
barragem contém um curso fluvial formando um lago artificial que serve de
reservatório hídrico, eram do conhecimento dos engenheiros, existindo em
propriedades rurais no nordeste quando Gabaglia escreveu seu projeto de canalização,
em 1860. Esses açudes eram em geral construídos pelos próprios proprietários,
beneficiando apenas as suas terras particulares e requerendo recursos consideráveis,
razão pela qual Gabaglia via a medida como mais profícua para os abastados e
prediletos da fortuna, que para a massa do povo (CAPANEMA e GABAGLIA, 2006, p.
132). Quanto à construção pública de açudes, considerava-a demasiado dispendiosa,
avaliava que haveria carência de mão-de-obra e previa conflitos de difícil resolução na
definição de sua distribuição dentro da província. Sua opinião, porém, o parecia ser
compartilhada pelo Ministério da Agricultura, que enviou ao Ceará uma Comissão de
Açudes, chefiada pelo engenheiro inglês Julian John Revy
ainda em 1879, sob os efeitos da seca iniciada dois anos antes (o que fez com que a
comissão assumisse também a função de distribuidora de socorros na província). O
projeto resultante desses estudos
aliás, um tanto diferente dos udes particulares existentes que Gabaglia
considerara. Marcou, acima de tudo, um novo tipo de intervenção no Brasil: a
construção de grandes açudes, construídos pelo Estado e destinados a atender u
área extensa e uma grande população.
Com projeto delineado pelo próprio Revy em 1882 e construído em meio a
secas e outras atribulações entre 1890 e 1906, o Cedro foi a primeira experiência com
esse tipo de obra no país. Composto por quatro barramentos fechando uma bacia
hidrográfica que cobr
e 224 km² e com capacidade para 125 milhões de metros cúbicos
de água, foi sem dúvida uma obra grandiosa, que demonstrava claramente a presença
do Governo da República
seria visitado ainda em 1906 pelo presidente Afonso Pena
41
O engenheiro surge às vezes com o nome Jules Jean Revy, atribuindo
Não obstante, a maior parte das fontes o aponta como sendo inglês. Os ofí
como J. J. Revy
eram escritos no idioma inglês ou em português (esses últimos possivelmente
traduzidos, not
ada a diferença na caligrafia). Adicionalmente, uma busca por referências
um certo Julian John Revy, que p
articipou do projeto de um túnel ferroviário sob o Canal da Mancha, em
1867, e de estudos sobre as bacias dos rios Paraná, Uruguai e de La Plata, em 1874.
Figura 11:
Vista da barragem do açude do Cedro
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
Açudes, chefiada pelo engenheiro inglês Julian John Revy
41
, cujos estudos iniciaram
ainda em 1879, sob os efeitos da seca iniciada dois anos antes (o que fez com que a
comissão assumisse também a função de distribuidora de socorros na província). O
projeto resultante desses estudos
o açude do Cedro, no muni
cípio de Quixadá
aliás, um tanto diferente dos açudes particulares existentes que Gabaglia
considerara. Marcou, acima de tudo, um novo tipo de intervenção no Brasil: a
construção de grandes açudes, construídos pelo Estado e destinados a atender u
área extensa e uma grande população.
Com projeto delineado pelo próprio Revy em 1882 e construído em meio a
secas e outras atribulações entre 1890 e 1906, o Cedro foi a primeira experiência com
esse tipo de obra no país. Composto por quatro barramentos fechando uma bacia
e 224 km² e com capacidade para 125 milhões de metros cúbicos
de água, foi sem dúvida uma obra grandiosa, que demonstrava claramente a presença
seria visitado ainda em 1906 pelo presidente Afonso Pena
O engenheiro surge às vezes com o nome Jules Jean Revy, atribuindo
-se-
lhe nacionalidade francesa.
Não obstante, a maior parte das fontes o aponta como sendo inglês. Os ofí
cios que assinava
eram escritos no idioma inglês ou em português (esses últimos possivelmente
ada a diferença na caligrafia). Adicionalmente, uma busca por referências
online
articipou do projeto de um túnel ferroviário sob o Canal da Mancha, em
1867, e de estudos sobre as bacias dos rios Paraná, Uruguai e de La Plata, em 1874.
Vista da barragem do açude do Cedro
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
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, cujos estudos iniciaram
-se
ainda em 1879, sob os efeitos da seca iniciada dois anos antes (o que fez com que a
comissão assumisse também a função de distribuidora de socorros na província). O
cípio de Quixadá
foi,
aliás, um tanto diferente dos açudes particulares existentes que Gabaglia
considerara. Marcou, acima de tudo, um novo tipo de intervenção no Brasil: a
construção de grandes açudes, construídos pelo Estado e destinados a atender u
ma
Com projeto delineado pelo próprio Revy em 1882 e construído em meio a
secas e outras atribulações entre 1890 e 1906, o Cedro foi a primeira experiência com
esse tipo de obra no país. Composto por quatro barramentos fechando uma bacia
e 224 km² e com capacidade para 125 milhões de metros cúbicos
de água, foi sem dúvida uma obra grandiosa, que demonstrava claramente a presença
seria visitado ainda em 1906 pelo presidente Afonso Pena
lhe nacionalidade francesa.
cios que assinava
sempre
eram escritos no idioma inglês ou em português (esses últimos possivelmente
online
revela
articipou do projeto de um túnel ferroviário sob o Canal da Mancha, em
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 99
em pleno sertão cearense. Foi também uma grande decepção para os seus
idealizadores e defensores que em 1907, o viam baixar seu nível de suas águas a zero
e abaixo de zero de sua comporta, fato pelo qual se considerava responsável a
excessiva evaporação provocada pelo sol, como demonstrado por dados
climatológicos recolhidos no observatório de Quixeramobim, a poucos quilômetros do
Cedro. Era mais um dado que deveria ser tomado em conta pelo engenheiro ao
projectar obras de udagem na região assolada pelas seccas (REVISTA DO CLUBE DE
ENGENHARIA, 1907, p. 89).
Essa decepção continuava ainda em 1922, quando a comissão liderada pelo
general Candido Rondon, enviada para avaliar as obras no nordeste, constatava,
surpresa, que sua bacia hidráulica ainda não havia sido completamente cheia
42
, não
obstante a média pluviométrica anual de 920 milímetros registrada nos dez anos
precedentes. O relator da comissão, Paulo de Moraes Barros, lamentava ainda que não
se tivesse aproveitado a experiência do Cedro para melhor estudar as condições
climáticas relativas ao ude, que poderiam auxiliar a avaliação e projeto de outras
obras do tipo:
Esse açude poderia já fornecer uma base de precisão pare certa
ordem de calculos, se além dos dados existentes, houvesse o registro
de direcção e intensidade dos ventos e do estado hygroscopico do ar
a diversas alturas. As oscillações diarias do nivel dagua sobre a regua
graduada, reduzidas a volumes e referiudos estes aos alludidos
factores, permittiriam com auxilio do plano cotado da bacia
hydraulica, a avaliação da influencia de cada um desses elementos do
phenomeno da evaporação, facilitando a fixação dos respectivos
coefficientes.
Taes coefficientes praticos, serviriam para o planeamento das futuras
obras, caso houvesse nas diversas bacias, em projecto ou em
execução, postos meteorologicos semelhantes.
Desde o inicio, e, vai em cerca de 13 annos, devia ter sido
organizado nesse açude, o serviço systematico de aerologia bem
como os referentes a pesquizas sobre os terrenos adjacentes; uma
estação meteorologica completa e um campo experimental de
42
Os dados do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas registram as primeiras sangrias
(cheias completas, com transbordação) do açude em 1924 e 1925, e uma seca completa da bacia no
período de 1930-32. O Cedro só voltaria a sangrar em 1974-75 (www.dnocs.gov.br).
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 100
culturas com laboratorio annexo, para analyses de aguas, terras,
forragens, etc., permittiriam a apreciação exacta do valor economico
das plantações realisadas.
Esses quadros, esses exemplos, teriam instruido a administração
sobre a viabilidade de obras semelhantes no territorio flagellado.
(REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1923, p. 60)
As dúvidas sobre o funcionamento do Cedro, no entanto, não impediram que a
política de construção de udes fosse levada adiante. Dentro do regulamento para
execução de obras da IOCS, de 1909 (REIS, 1920), eram os primeiros a ser listados,
classificando-se em grandes açudes (capacidade superior a dez milhões de metros
cúbicos e profundidade média maior que seis metros), médios (capacidade entre dois
e dez milhões de metros cúbicos, profundidade de no mínimo cinco metros) e
pequenos (capacidade mínima de meio milhão de metros cúbicos e profundidade não
inferior a quatro metros. Os açudes médios e pequenos eram em geral equivalentes
aos açudes particulares que Gabaglia citara; o regulamento trazia, inclusive, mecânicas
que resolveriam as principais preocupações que o engenheiro levantara sobre seu
funcionamento.
De acordo com esse sistema, os proprietários particulares poderiam solicitar ao
governo auxílio para a construção de açudes em suas terras, explicando as condições
locais e justificando a utilidade da obra naquele caso em particular. Em caso de
aprovação, o projeto e orçamento seriam feitos gratuitamente por técnicos da
Inspetoria, e após completa a construção e comprovado o uso do açude, o proprietário
receberia uma compensação financeira equivalente a metade do valor para a qual a
obra fora orçada. O plantio e conservação de árvores junto ao açude receberia
compensação semelhante. Ao participar do sistema, no entanto, o proprietário
comprometia-se a fornecer água para as necessidades domésticas das populações
circunvizinhas (REIS, 1920): os açudes, mesmo os menores, passavam então a ser
elementos favorecedores de concentração populacional para a área onde eram
erigidos. O regulamento foi, de fato, posto em prática, sendo responsável por um
grande número de obras na região ainda que a decisão sobre que propriedades
seriam contempladas fosse por vezes influenciada por pressões políticas e influência
oligárquica (AVELAR JR, 1994) , como no caso do ude de pequeno porte Cipó,
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 101
situado em Quixeramobim, cujo pedido de aprovação, de 1929, é aqui tomado como
exemplo:
O açude cuja construcção pretende fazer, offerece as seguintes
vantagens: a) ser situado em terra irrigaveis e excellentes para
plantações de canna de assucar, algodão, etc., etc., b) ser distante,
algumas leguas, de outros açudes, c) ser centro de muita criação e
elevada população. (DNOCS, Arquivo da sede regional 2, pasta
Quixeramobim n.28)
4.6. Açudes: grandes obras
Se os pequenos e dios açudes eram capazes de estabilizar e potencializar o
crescimento de uma população existente, as grandes obras como o Cedro podiam
trazer mudanças ainda mais dramáticas para as povoações circunvizinhas
43
.
Diferentemente dos pequenos e médios açudes, no entanto, sua localização era em
grande parte definida pelas possibilidades oferecidas pelo terreno, mais do que pela
ocupação humana existente. Era o que explicava o relatório da comissão de 1923, ao
afirmar que
taes obras não podem ser facilmente diffundidas, pois dependem de
condições naturaes para as barragens, impondo-se, assim a
concentração dos nucleos populosos, em uma área relativamente
pequena, a que todos são forçados a achegar-se nas seccas
prolongadas. (REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1923, p. 60)
O próprio processo de construção desses açudes, "os serviços preparatorios,
transporte de material custoso e pesado, construcções para casas de machinas, para
habitação do pessoal, pois que quasi sempre as obras se fazem distante dos centros
povoados (Illustração Brasileira, 1922) originava assentamentos humanos em meio ao
sertão. Era o que descrevia o artigo intitulado Seis mil cento e quarenta e cinco
kilometros pelo Nordeste Brasileiro: As obras contra as seccas vistas por um leigo",
publicado na revista Ilustração Brasileira, comemorativa do centenário da
Independência:
43
A alteração da paisagem ocasionada por sua construção, com a inundação de dezenas ou centenas de
quilômetros quadrados, e a forte influência percebida na construção identitária das povoações próximas
são ambas casos à parte, que não serão discutidos neste trabalho.
Em S. Gonçalo as casas para operarios formam uma verdadeira
cidade, onde ha posto medico, pharmaci
potavel, fabrica de gelo, etc.
As casas não são construcções ligeiras para atravessar uma estação.
Cuidadosamente construidas, servirão mais tarde como agora estão
servindo provisoriamente, para residencias definitivas, porque
pontos em que hoje se fazem essas vastas obras hydraulicas, hão de
futuramente erguer
a attrahir até os moradores de povoações próximas.
De S. Gonçalo fomos ao Piranhas, uma das mais importantes obras
ini
ciadas. (...) A povoação operaria é muito maior que a de S.
Gonçalo, dada a importancia das
(ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922)
Por mais que essas obras fossem vistas por um leigo e que a reportagem
estivesse inserida em uma publicação claramente propagandista, não se pode ignorar
a estrutura que o autor relatava ter encontrado, planejada e organizada pela IFOCS. E
embora não haj
a evidência conclusiva, tudo leva a crer que seu comentário sobre o
potencial de crescimento e atração populacional das povoações é um eco do conteúdo
discursivo que teria recebido de seus guias em sua expedição, o engenheiro da IFOCS
Frederico Draenert Fi
lho e o Dr. Benjamin Thayer, um dos technicos norte
Figura 12:
Barragem em construção no açude Acarapé
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
Em S. Gonçalo as casas para operarios formam já uma verdadeira
cidade, onde ha posto medico, pharmaci
a, escola, fitro para a agua
potavel, fabrica de gelo, etc.
As casas o são construcções ligeiras para atravessar uma estação.
Cuidadosamente construidas, servirão mais tarde como agora estão
servindo provisoriamente, para residencias definitivas, porque
pontos em que hoje se fazem essas vastas obras hydraulicas, hão de
futuramente erguer
-
se vasto centro de povoação, destinados muitos
a attrahir até os moradores de povoações próximas.
De S. Gonçalo fomos ao Piranhas, uma das mais importantes obras
ciadas. (...) A povoação operaria é muito maior que a de S.
Gonçalo, dada a importancia das
obras, o vulto dos trabalhos.
(ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922)
Por mais que essas obras fossem vistas por um leigo e que a reportagem
estivesse inserida em uma publicação claramente propagandista, não se pode ignorar
a estrutura que o autor relatava ter encontrado, planejada e organizada pela IFOCS. E
a evidência conclusiva, tudo leva a crer que seu comentário sobre o
potencial de crescimento e atração populacional das povoações é um eco do conteúdo
discursivo que teria recebido de seus guias em sua expedição, o engenheiro da IFOCS
lho e o Dr. Benjamin Thayer, um dos technicos norte
-
americanos
Barragem em construção no açude Acarapé
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 102
Em S. Gonçalo as casas para operarios formam uma verdadeira
a, escola, fitro para a agua
As casas o são construcções ligeiras para atravessar uma estação.
Cuidadosamente construidas, servirão mais tarde como agora estão
servindo provisoriamente, para residencias definitivas, porque
nos
pontos em que hoje se fazem essas vastas obras hydraulicas, hão de
se vasto centro de povoação, destinados muitos
De S. Gonçalo fomos ao Piranhas, uma das mais importantes obras
ciadas. (...) A povoação operaria é muito maior que a de S.
obras, o vulto dos trabalhos.
Por mais que essas obras fossem vistas por um leigo e que a reportagem
estivesse inserida em uma publicação claramente propagandista, não se pode ignorar
a estrutura que o autor relatava ter encontrado, planejada e organizada pela IFOCS. E
a evidência conclusiva, tudo leva a crer que seu comentário sobre o
potencial de crescimento e atração populacional das povoações é um eco do conteúdo
discursivo que teria recebido de seus guias em sua expedição, o engenheiro da IFOCS
americanos
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 103
que superintendem as obras no Nordeste. O artigo ainda ia mais a fundo na defesa do
investimento na estrutura das povoações, quando da descrição das obras no açude
Poço dos Páos:
Sempre que se constróem as casas para residencia delles e de suas
familias, singelas mas confortaveis, ha uma casa que não é esquecida
a escola destinada a extinguir esse outro flagello dos nossos
sertões o analphabetismo. E mais - o posto medico, que entregue a
abalisados profissionaes vao debellando uma porção de molestias
que enfraquecem o sertanejo, incutindo-lhes as noções da hygiene,
immunizando-os contra as epidemias devastadoras. (...)
Com os preceitos de hygiene incutidos á familia sertaneja, presa até
hoje de medos praticos supersticiosos, com o ensino do alphabeto,
com a facilidade da vida e do trabalho pelas obras do Nordeste,
dentro de poucos annos tornar-se-ão essas regiões, desoladas hoje,
um dos pontos mais prosperos do Brasil, capazes de contribuir tanto
para o desenvolvimento do paiz, tanto como as famosas terras roxas
de São Paulo, o planalto paranaense e catharinense, as coxilhas
gaúchas ou as zonas agricolas e pastoris de Minas ou da Bahia.
(ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922)
É possível perceber nesse segmento a preocupação de introduzir-se, naquelas
povoações, um conceito fundamental do urbanismo que se tentava, então, generalizar
nas cidades brasileiras: a higiene como método de alcançar a salubridade urbana. A
educação, tanto para o trabalho quanto para a higiene, participava como fator
essencial na transformação do sertão em uma peça participante na produção e no
desenvolvimento econômico do Brasil, fixando e qualificando a população levada ao
nomadismo pelas secas.
Os grandes udes em construção eram, portanto, formadores de núcleos
urbanos em si. Seu impacto, porém, era ainda mais amplo. Os engenheiros
reconheciam a influência que as obras finalizadas tinham sobre a distribuição
populacional no território:
O nordeste tem população relativamente vultuosa, cerca de 2 1/2
milhões de habitantes, que se disseminam um pouco por toda a
parte onde existem aguas mais duradouras, distribuindo-se as
agglomerações urbanas do sertão e das chapadas pelas immediações
dos açudes mais consistentes, de aguas profundas. (REVISTA
BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1923, p. 49)
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 104
A consciência dessa influência não era tampouco tomada como uma mera
impressão. Havia de fato um domínio dos números envolvidos: quantificadores como
área, capacidade e população afetada apareciam sempre relacionados entre si, até
mesmo com o intuito de justificar os vultosos custos daquelas obras. O engenheiro
Eduardo Parisot, da IFOCS, por exemplo, em seu estudo para possíveis obras no Rio
Grande do Norte tomou como base os açudes a serem construídos no estado e
considerou a extensão de terras próprias para agricultura de vazante que seriam
disponibilizadas, chegando ao cálculo de uma população de 40.000 habitantes a serem
instalados na área contemplada. E suas projeções iam além:
Considerando a densidade da população do Egypto, de 480
habitantes por kilometro quadrado em terras irrigaveis, concluimos
poder localisar em épocas de calamidade, cerca de 140 mil
habitantes. (REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1925, p. 21)
Esse modelo de intervenção espacial, fundamentado em estudos cuidadosos e
voltado para um desenvolvimento em longo prazo, denota um verdadeiro esforço no
sentido de planejar o território. Os açudes eram descritos em contraste com os
antigos serviços de socorros, precários e paliativos como obras que visavam
constituir futuros centros de cultura e abastança, que sirvam de apoio ás populações,
na hypothese, sempre ameaçadora, das calamidades (REVISTA BRASILEIRA DE
ENGENHARIA, 1923, p. 60). Mais do que combater os efeitos das secas, havia um
interesse em criar núcleos urbanos perfeitamente funcionais nos anos normais, mas
também adaptados para reagir às dificuldades criadas pela calamidade.
Indícios que remontem à origem desse planejamento são encontrados no
próprio conhecimento que possibilitou a construção dos udes. Os pequenos udes
cujas barragens eram construídas com terra, requerendo pouca sofisticação
matemática podiam ser executados pelos próprios agricultores da região, que
buscavam as técnicas necessárias dentro da própria tradição local. os
empreendimentos maiores requeriam recursos materiais, mão-de-obra e
conhecimento de engenharia que somente o Estado podia disponibilizar. As primeiras
grandes barragens, como as do Cedro, em Quixadá, foram construídas em alvenaria de
pedra. Embora não houvesse lições específicas direcionadas a esse tipo de
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 105
construção
44
, o currículo do curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica (e,
presume-se, das demais escolas que ofereciam esse curso) contemplava os
fundamentos da construção em alvenaria, da arquitetura residencial às pontes e
viadutos, assim como da hidráulica, que deveriam possibilitar aos engenheiros
brasileiros executar os projetos de barragens. A Escola oferecia também cadeiras de
meteorologia e topografia, ferramentas utilizadas para analisar as características do
sítio que deveria receber o açude. Não obstante, observa-se a contratação de J. J. Revy
para liderar a Comissão de Açudes para o Ceará estrangeiro que não viria sem trazer
consigo uma carga de teorias e experiências trazidas de seu país de origem, que se
refletiriam no trabalho da Comissão
45
.
Ainda que fossem importantes as possibilidades proporcionadas pela
construção de açudes em alvenaria, elas seriam minimizadas por uma inovação que
criaria uma verdadeira revolução na técnica de construção de barragens: o concreto
armado. Era o que anunciava J. S. de Castro Barbosa em 1910, ao tratar da
possibilidade de uso do concreto nas grandes obras contra as secas:
De facto, o novo systema, permittindo distribuir muito mais
utilmente a força do material do que o antigo, aos constructores
campo vasto de combinações que resultam, com grande reducção de
despeza, todas as condições de estabilidade e de resistência aos
empuxos das terras e das aguas, ao mesmo tempo que absoluta
estanqueidade nos reservatorios e conductos diversos. (...)
A reducção consideravel do custo alarga na mesma proporção o
campo de sua acção benéfica. O que se não podia tentar até poucos
annos, por exceder de muito os recursos locaes, será hoje uma obra
ordinaria inteiramente compativel com as forças orçamentarias.
(REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1910, p. 86-88)
44
Tomado como base o plano curricular da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, de 1879.
45
É importante notar que a interação entre trabalhadores locais e engenheiros estrangeiros nunca
esteve livre de conflitos. Gilberto Freyre, comentando as anotações deixadas durante a passagem do
engenheiro francês Vauthier em terras brasileiras entre 1840 e 1846, notava o desajustamento entre a
personalidade do europeu, dinâmico e inquieto, e a sociedade brasileira, patriarcal e quase parada
(FREYRE, 1960). Os registros de memorandos durante as obras do açude de Quixadá, cadas mais
tarde, revelam dificuldades de adaptação dos operários ao temperamento e à rigidez de trabalho
imposto pelo engenheiro Revy que, por sua vez, relatava ao governo sua profunda insatisfação com o
desempenho de seus trabalhadores.
O engenheiro destacava que o concreto armado já era utilizado com sucesso no
Brasil desde 1905,
em obras no Rio de Janeiro e em São Paulo dirigidas por José
Rebouças, Saturnino de Brito, Luiz Betim, Aarão Reis e Sampaio Correia. Listava
também uma série de grandes barragens no oeste dos Estados Unidos, chamando
atenção para a barragem do Snake River,
norte-
americanos haviam conseguido desthronar a India e o proprio Egypto nesse
ramo de trabalhos (
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1910, p
O novo material construtivo
iria, de fato, aumentar em tamanho
e em
quantidade os grandes udes
projetados (Figura 12)
, ainda que
mais uma vez estivessem muitos dos
trabalhos sob o comando de
estrangeiros, como Benjamin
Thayer, R. A. Manwaring e J. A.
Sargent (Illustração Brasileira, 1922).
O financiamento das obras era,
também, proporcionado pelo
governo através de banqueiros
estrangeiros. Somando a isso o fato
de que para diversas obras eram
contratadas firmas estrangeiras
Norton Griffith & Co., Dwight P.
Robinson & Co. e C. H. Walker & Co
são algumas mencionadas
surpreendente que tenham havido
protestos por parte de engenheiros brasileiros. Paulo de Frontin, em discurso
pronunciado perante a Câmara dos Deputados, em novembro de 1920, reclamava de
irregularidades nesse processo de contratação e do não
regulamentos que previam o estabelecimento de concorrência, com notificação de
empresas nacionais:
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
O engenheiro destacava que o concreto armado já era utilizado com sucesso no
em obras no Rio de Janeiro e em São Paulo dirigidas por José
Rebouças, Saturnino de Brito, Luiz Betim, Aarão Reis e Sampaio Correia. Listava
também uma série de grandes barragens no oeste dos Estados Unidos, chamando
atenção para a barragem do Snake River,
em Twin Falls, Idaho, através da qual os
americanos haviam conseguido desthronar a India e o proprio Egypto nesse
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1910, p
. 95).
O novo material construtivo
iria, de fato, aumentar em tamanho
quantidade os grandes açudes
, ainda que
mais uma vez estivessem muitos dos
trabalhos sob o comando de
estrangeiros, como Benjamin
Thayer, R. A. Manwaring e J. A.
Sargent (Illustração Brasileira, 1922).
O financiamento das obras era,
também, proporcionado pelo
governo através de banqueiros
estrangeiros. Somando a isso o fato
de que para diversas obras eram
contratadas firmas estrangeiras
Norton Griffith & Co., Dwight P.
Robinson & Co. e C. H. Walker & Co
não é
surpreendente que tenham havido
protestos por parte de engenheiros brasileiros. Paulo de Frontin, em discurso
pronunciado perante a Câmara dos Deputados, em novembro de 1920, reclamava de
irregularidades nesse processo de contratação e do não
-
cumprimen
regulamentos que previam o estabelecimento de concorrência, com notificação de
Figura 13: Mapa de
Construção de grandes
públicos (segundo informações presentes em
www.dnocs.gov.br)
FONTE: Elaboração própria a partir de dados de
www.dnocs.com.br. Imagem-base ©
NASA, 2004.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 106
O engenheiro destacava que o concreto armado já era utilizado com sucesso no
em obras no Rio de Janeiro e em São Paulo dirigidas por José
Rebouças, Saturnino de Brito, Luiz Betim, Aarão Reis e Sampaio Correia. Listava
também uma série de grandes barragens no oeste dos Estados Unidos, chamando
em Twin Falls, Idaho, através da qual os
americanos haviam conseguido desthronar a India e o proprio Egypto nesse
protestos por parte de engenheiros brasileiros. Paulo de Frontin, em discurso
pronunciado perante a Câmara dos Deputados, em novembro de 1920, reclamava de
cumprimen
to de
regulamentos que previam o estabelecimento de concorrência, com notificação de
Construção de grandes
açudes
públicos (segundo informações presentes em
FONTE: Elaboração própria a partir de dados de
NASA, 2004.
Parece que ainda somos colonia e que devemos dar graças a Deus
que os da metropole legitima ou illegitima venham aqui incumbir
de trabalhos para os
(...) lavrado o seu protesto contra a fórma pela qual vão ser
executadas as obras contra as ccas no Nordeste; a engenharia
nacional, apezar de ver postergados os seus direitos e sacrificados os
seus interesses, lamenta unicament
concurso e ter parte das glorias da solução final do ingente problema
das seccas do Nord
fervoros
ENGENHARIA, 1932,
A influência estrangeira não se limitava tampouco à presença dos técnicos e
firmas responsáveis pelas barragens; os próprios engenheiros brasileiros
de congressos internacionais e faziam viagens de estudos para atualizar
soluções de açudagem e irrigação; livros e periódicos importados ou traduzidos
estavam sempre presentes nas bibliografias citadas nos currículos dos cursos e n
revistas de engenharia. Não é
ainda possível afirmar que a
conjugação de planejamento
territorial
e mesmo urbano
com as obras de açudagem teria
sido trazida ao Brasil e filtrada e
adaptada à realidade nacional
junto aos demais conhecimentos
acerca d
a construção de
barragens e de irrigação, mas os
dados levantados podem levar a
crer que isso tenha ocorrido. O
que se pode afirmar com
segurança, com base nos
documentos analisados, é que os
açudes exerceram um importante
efeito sobre a ocupação do sertão
nordestino.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
Parece que ainda somos colonia e que devemos dar graças a Deus
que os da metropole legitima ou illegitima venham aqui incumbir
de trabalhos para os
escravos coloniaes. (...)
(...) lavrado o seu protesto contra a fórma pela qual vão ser
executadas as obras contra as sêccas no Nordeste; a engenharia
nacional, apezar de ver postergados os seus direitos e sacrificados os
seus interesses, lamenta unicament
e não poder prestar seu efficiente
concurso e ter parte das glorias da solução final do ingente problema
das seccas do Nord
este, para cujo feliz e completo exito dirige
fervoros
as preces á Providencia Divina. (
REVISTA DO CLUBE DE
ENGENHARIA, 1932,
p. 251-255)
A influência estrangeira não se limitava tampouco à presença dos técnicos e
firmas responsáveis pelas barragens; os próprios engenheiros brasileiros
participavam
de congressos internacionais e faziam viagens de estudos para atualizar
-
se sobre as
soluções de açudagem e irrigação; livros e periódicos importados ou traduzidos
estavam sempre presentes nas bibliografias citadas nos currículos dos cursos e n
revistas de engenharia. Não é
ainda possível afirmar que a
conjugação de planejamento
e mesmo urbano
com as obras de açudagem teria
sido trazida ao Brasil e filtrada e
adaptada à realidade nacional
junto aos demais conhecimentos
a construção de
barragens e de irrigação, mas os
dados levantados podem levar a
crer que isso tenha ocorrido. O
que se pode afirmar com
segurança, com base nos
documentos analisados, é que os
açudes exerceram um importante
efeito sobre a ocupação do sertão
Figura 14:
Casa de força do açude Quixeramobim
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
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Parece que ainda somos colonia e que devemos dar graças a Deus
que os da metropole legitima ou illegitima venham aqui incumbir
-se
(...) lavrado o seu protesto contra a fórma pela qual vão ser
executadas as obras contra as sêccas no Nordeste; a engenharia
nacional, apezar de ver postergados os seus direitos e sacrificados os
e não poder prestar seu efficiente
concurso e ter parte das glorias da solução final do ingente problema
este, para cujo feliz e completo exito dirige
REVISTA DO CLUBE DE
A influência estrangeira não se limitava tampouco à presença dos técnicos e
participavam
se sobre as
soluções de açudagem e irrigação; livros e periódicos importados ou traduzidos
estavam sempre presentes nas bibliografias citadas nos currículos dos cursos e n
as
Casa de força do açude Quixeramobim
Uma outra faceta da influência do combate às secas sobre o planejamento do
território pode ser encontrada em um outro tipo de obra, fundamentalmente
diferente dos udes, mas a eles sempre articulado em sua construção e utilização: as
estradas, tanto as fe
rrovias quanto as estradas de rodagem.
4.7. Estradas: ferrovias
Como resultado de uma colonização voltada principalmente para o litoral, a
estrutura de transportes terrestres no interior do Nordeste era bastante precária em
meados do culo XIX. Em 1860
funcionavam no país, os caminhos encontrados pela Comissão Científica de Exploração
no Ceará eram com poucas exceções as trilhas abertas pelas boiadas das fazendas
pecuaristas espalhadas pela região. Sinuosas
longas e intransitáveis para veículos (carruagens e carros de boi) no verão e mesmo
para pedestres e animais no inverno; as ladeiras, por sua vez, eram de trânsito lento e
penoso na época seca e perigoso ou impossíve
contribuía também para a confusão dos guias, tornando
dependentes de informantes
Essa situação era desfavorável ao combate às secas por vários motivos:
primeiro, nos tempos de seca, o trânsito de víveres em direção às áreas afetadas
tornava-se mais lento,
assim como se dificultava
o deslocamento das
populações afetadas em
direção a áreas melhor
guarnecidas de alimento e
água, o que resultava em
uma potencialização da
mortalidade por inanição
ou sede causada pelo
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
Uma outra faceta da influência do combate às secas sobre o planejamento do
território pode ser encontrada em um outro tipo de obra, fundamentalmente
diferente dos udes, mas a eles sempre articulado em sua construção e utilização: as
rrovias quanto as estradas de rodagem.
Como resultado de uma colonização voltada principalmente para o litoral, a
estrutura de transportes terrestres no interior do Nordeste era bastante precária em
meados do culo XIX. Em 1860
, quando as primeiras ferrovias, bem ou mal,
funcionavam no país, os caminhos encontrados pela Comissão Científica de Exploração
no Ceará eram com poucas exceções as trilhas abertas pelas boiadas das fazendas
pecuaristas espalhadas pela região. Sinuosas
e irregulares, Gabaglia as considerava
longas e intransitáveis para veículos (carruagens e carros de boi) no verão e mesmo
para pedestres e animais no inverno; as ladeiras, por sua vez, eram de trânsito lento e
penoso na época seca e perigoso ou impossíve
l em tempos de chuva. O traçado
contribuía também para a confusão dos guias, tornando
-
se as viagens incertas e
dependentes de informantes
(CAPANEMA E GABAGLIA, 2006, p. 63).
Essa situação era desfavorável ao combate às secas por vários motivos:
primeiro, nos tempos de seca, o trânsito de víveres em direção às áreas afetadas
Figura 15: Tropas de jumentos
eram o transporte predominante no
sertão
nordestino, mesmo nas primeiras décadas do século XX.
FONTE: Acervo do grupo HCURB
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 108
Uma outra faceta da influência do combate às secas sobre o planejamento do
território pode ser encontrada em um outro tipo de obra, fundamentalmente
diferente dos udes, mas a eles sempre articulado em sua construção e utilização: as
Como resultado de uma colonização voltada principalmente para o litoral, a
estrutura de transportes terrestres no interior do Nordeste era bastante precária em
, quando as primeiras ferrovias, bem ou mal,
funcionavam no país, os caminhos encontrados pela Comissão Científica de Exploração
no Ceará eram com poucas exceções as trilhas abertas pelas boiadas das fazendas
e irregulares, Gabaglia as considerava
longas e intransitáveis para veículos (carruagens e carros de boi) no verão e mesmo
para pedestres e animais no inverno; as ladeiras, por sua vez, eram de trânsito lento e
l em tempos de chuva. O traçado
se as viagens incertas e
Essa situação era desfavorável ao combate às secas por vários motivos:
primeiro, nos tempos de seca, o trânsito de víveres em direção às áreas afetadas
eram o transporte predominante no
nordestino, mesmo nas primeiras décadas do século XX.
fenômeno. Em tempos normais, a dificulda
impedia o fortalecimento da economia, e as próprias obras contra as secas que fossem
iniciadas sofreriam problemas logísticos ao tentar trazer os materiais necessários ao
sítio onde deveriam ser utilizados. O isolamento er
dos fatores responsáveis pelo caráter supostamente indolente dos sertanejos:
Segregado no interior do sertão, onde a falta de communicações o
permitte chegar o conhecimento dos processos adiantados de
trabalho, sem capital,
profissional outra que a pratica rotineira dos methodos de cultura e
criação introduzidos pelos portuguezes na fundação da colonia, sem
ter ao menos as terras demarcadas de modo a saber que es
melhorando e benef
como
onde encontrem trabalho, estimulo e aperfeiçoamento os miseros
caipiras que o rodeiam? (
p. 29)
Dadas as opções disponíveis à época
carroças e carros de boi ou construir ferrovias
estradas de ferro como forma de reverter o isolamento do sertão. A grande velocidade
e capacidade de carga dos trens
indústria e da engenharia
corporificação, junto à
navegação a vapor e ao
telégrafos,
de uma segunda
revolução industrial (SOUSA
NETO, 2004, p.17)
pareciam
qualificar a ferrovia como
solução ideal para
fortalecer a
estrutura econômica da região,
integrando
o interior
nordestino ao movimento
comercial e de exportação e à
mo
dernidade técnica e cultural
ao mesmo tempo em que
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
fenômeno. Em tempos normais, a dificulda
de de movimentação de mercadorias
impedia o fortalecimento da economia, e as próprias obras contra as secas que fossem
iniciadas sofreriam problemas logísticos ao tentar trazer os materiais necessários ao
sítio onde deveriam ser utilizados. O isolamento er
a também considerado como um
dos fatores responsáveis pelo caráter supostamente indolente dos sertanejos:
Segregado no interior do sertão, onde a falta de communicações o
permitte chegar o conhecimento dos processos adiantados de
trabalho, sem capital,
sem credito, sem mercados, sem instrucção
profissional outra que a pratica rotineira dos methodos de cultura e
criação introduzidos pelos portuguezes na fundação da colonia, sem
ter ao menos as terras demarcadas de modo a saber que está
melhorando e benef
iciando o que é seu, para bem da sua familia,
como
esse fazendeiro poderá constituir um centro de actividade
onde encontrem trabalho, estimulo e aperfeiçoamento os miseros
caipiras que o rodeiam? (
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909,
Dadas as opções disponíveis à época
expandir e melhorar as vias para
carroças e carros de boi ou construir ferrovias
, não houve dúvidas sobre a
escolha das
estradas de ferro como forma de reverter o isolamento do sertão. A grande velocidade
e capacidade de carga dos trens
então símbolo encarnado do progresso e da força da
indústria e da engenharia
,
corporificação, junto à
navegação a vapor e ao
s
de uma segunda
revolução industrial (SOUSA
pareciam
qualificar a ferrovia como
fortalecer a
estrutura econômica da região,
o interior
nordestino ao movimento
comercial e de exportação e à
dernidade técnica e cultural
,
ao mesmo tempo em que
Figura 16: Construção de uma estrada
de ferro no Cariri, alto
sertão cearense
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 109
de de movimentação de mercadorias
impedia o fortalecimento da economia, e as próprias obras contra as secas que fossem
iniciadas sofreriam problemas logísticos ao tentar trazer os materiais necessários ao
a também considerado como um
dos fatores responsáveis pelo caráter supostamente indolente dos sertanejos:
Segregado no interior do sertão, onde a falta de communicações não
permitte chegar o conhecimento dos processos adiantados de
sem credito, sem mercados, sem instrucção
profissional outra que a pratica rotineira dos methodos de cultura e
criação introduzidos pelos portuguezes na fundação da colonia, sem
ter ao menos as terras demarcadas de modo a saber que está
iciando o que é seu, para bem da sua familia,
esse fazendeiro poderá constituir um centro de actividade
onde encontrem trabalho, estimulo e aperfeiçoamento os miseros
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909,
expandir e melhorar as vias para
escolha das
estradas de ferro como forma de reverter o isolamento do sertão. A grande velocidade
então símbolo encarnado do progresso e da força da
de ferro no Cariri, alto
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 110
serviria, em ocasiões de estiagemm como via rápida para levar mantimentos ou escoar
a população afetada.
O Nordeste teve sua primeira experiência com estradas de ferro ainda na
década de 1850; a Estrada de Ferro de Recife ao Cabo, segunda no Brasil, e
relativamente curta (com 37,1km), foi inaugurada em 1858 após um processo de
construção caro e problemático, trazendo escasso retorno financeiro. A Estrada de
Ferro da Bahia ao São Francisco (que cobria 123km de Salvador a Alagoinhas,
terminando a quase 300km do rio propriamente dito), quinta do país e inaugurada em
1863, foi também um empreendimento deficitário e afetado por problemas de
funcionamento. Apesar do desempenho financeiro decepcionante, ambas seriam
estendidas posteriormente, chegando a alcançar o interior, mas naquele momento
atendiam apenas à zona da mata canavieira, faixa mais próxima ao litoral.
A primeira das ferrovias nordestinas a realizar de fato a penetração em direção
ao sertão foi a Estrada de Ferro de Baturité, iniciativa de uma companhia brasileira,
cuja construção iniciou-se em 1873. O progresso das obras foi lento, e, deparando-se
com a situação crítica decorrente da forte seca iniciada em 1877, a companhia
encontrou-se financeiramente impossibilitada de continuar o empreendimento. Em
1878, atendendo aos pedidos do governo provincial e à pressão de políticos e
intelectuais preocupados com a situação dos retirantes no Ceará, a estrada foi
encampada pelo governo imperial, que deu prosseguimento às obras em caráter de
socorro emergencial, visando proporcionar ocupação e remuneração à população
migrante afetada pela seca. Esse tipo de ação, diziam seus defensores em geral
alinhados à política liberal , deveriam substituir as tradicionais doações de
mantimentos, consideradas esmolas que incentivariam o ócio, pelo trabalho
assalariado, que a um tempo serviria para possibilitar melhoramentos sicos na
província, educaria os sertanejos para o sistema de trabalho moderno dando-lhes a
dignidade que não teriam como meros pedintes, lhes mantendo, ao mesmo tempo,
ocupados e afastados dos centros urbanos já sem condições de absorver população.
As obras de prolongamento da E.F. Baturité
iniciaram-
se em maio de 1878, com a contratação dos primeiros retirantes, a serem
comandados por uma comissão de engenheiros enviada do Rio de Janeiro. O cargo de
chefe da comissão f
oi ocupado até junho pelo engenheiro Julius Pinkas, que foi então
substituído pelo norte-
americano Carlos Alberto Morsing. Os retirantes que se
apresentavam para o serviço eram divididos em turmas, permanentemente
monitoradas em seu trabalho e acesso a fer
obras e em sua remuneração. Apesar desses cuidados, as obras não ocorreram sem
atribulações: o pesado e rígido regime de trabalho, quando combinado com a
distribuição de alimentos em más condições de conservação ou a
pagamentos fez com que os operários paralisassem os serviços ou se retirassem da
obra em várias ocasiões. Os engenheiros, que personificavam as exigências de trabalho
e o racionamento de mantimentos, eram alvo de freqüentes reclamações de
a
utoritarismo e eram por vezes ameaçados por seus operários. As obras, mesmo
assim, avançaram, com os retirantes
em abarracamentos ao longo da linha que formavam cidades de palha de palmeira,
contando com ofi
cinas, hospitais, lazaretos, mercados, armazéns, poços, e outros
equipamentos. Durante a construção, os sertanejos, antes isolados da sociedade
moderna, entraram em contato com pessoas e materiais de outras partes do Brasil ou
mesmo do exterior, e muitos o
durante a construção. Quando a seca teve fim em 1880, os 59 quilômetros do
prolongamento haviam sido devidamente concluídos, incluindo
Figura 17:
Estação Central da Rede
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
As obras de prolongamento da E.F. Baturité
trecho de Pacatuba a Canoa
se em maio de 1878, com a contratação dos primeiros retirantes, a serem
comandados por uma comissão de engenheiros enviada do Rio de Janeiro. O cargo de
oi ocupado até junho pelo engenheiro Julius Pinkas, que foi então
americano Carlos Alberto Morsing. Os retirantes que se
apresentavam para o serviço eram divididos em turmas, permanentemente
monitoradas em seu trabalho e acesso a fer
ramentas e rações, em sua presença nas
obras e em sua remuneração. Apesar desses cuidados, as obras não ocorreram sem
atribulações: o pesado e rígido regime de trabalho, quando combinado com a
distribuição de alimentos em más condições de conservação ou a
interrupção dos
pagamentos fez com que os operários paralisassem os serviços ou se retirassem da
obra em várias ocasiões. Os engenheiros, que personificavam as exigências de trabalho
e o racionamento de mantimentos, eram alvo de freqüentes reclamações de
utoritarismo e eram por vezes ameaçados por seus operários. As obras, mesmo
assim, avançaram, com os retirantes
que em 1879 chegaram a ser 28 mil
em abarracamentos ao longo da linha que formavam cidades de palha de palmeira,
cinas, hospitais, lazaretos, mercados, armazéns, poços, e outros
equipamentos. Durante a construção, os sertanejos, antes isolados da sociedade
moderna, entraram em contato com pessoas e materiais de outras partes do Brasil ou
mesmo do exterior, e muitos o
perários, de fato, aprenderam ofícios especializados
durante a construção. Quando a seca teve fim em 1880, os 59 quilômetros do
prolongamento haviam sido devidamente concluídos, incluindo
-
se igual extensão de
Estação Central da Rede
de Viação Cearense em Fortaleza
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 111
trecho de Pacatuba a Canoa
se em maio de 1878, com a contratação dos primeiros retirantes, a serem
comandados por uma comissão de engenheiros enviada do Rio de Janeiro. O cargo de
oi ocupado até junho pelo engenheiro Julius Pinkas, que foi então
americano Carlos Alberto Morsing. Os retirantes que se
apresentavam para o serviço eram divididos em turmas, permanentemente
ramentas e rações, em sua presença nas
obras e em sua remuneração. Apesar desses cuidados, as obras não ocorreram sem
atribulações: o pesado e rígido regime de trabalho, quando combinado com a
interrupção dos
pagamentos fez com que os operários paralisassem os serviços ou se retirassem da
obra em várias ocasiões. Os engenheiros, que personificavam as exigências de trabalho
e o racionamento de mantimentos, eram alvo de freqüentes reclamações de
utoritarismo e eram por vezes ameaçados por seus operários. As obras, mesmo
que em 1879 chegaram a ser 28 mil
alojados
em abarracamentos ao longo da linha que formavam cidades de palha de palmeira,
cinas, hospitais, lazaretos, mercados, armazéns, poços, e outros
equipamentos. Durante a construção, os sertanejos, antes isolados da sociedade
moderna, entraram em contato com pessoas e materiais de outras partes do Brasil ou
perários, de fato, aprenderam ofícios especializados
durante a construção. Quando a seca teve fim em 1880, os 59 quilômetros do
se igual extensão de
linhas telegráficas,
além de pontes, poços e
construídas pelos braços dos retirantes (CÂNDIDO, 2005).
Em 1892, por ocasião da exposição de Chicago, o engenheiro Ernesto Antônio
Lassance Cunha apresentava a Estrada de Ferro de Baturité como tendo os seguintes
objetivos:
1
. Ligar o Ceará ao Sul da República por meio do Rio São Francisco.
2. Proporcionar o maior desenvolvimento da lavoura e indústria do
Estado do Ceará atrofiada pela falta de meios fáceis de transportes
para a condução dos produtos do interior para a Capital
3. É também uma estrada estrangeira, permita
minorar os efeitos das secas periódicas que assolam este Estado.
(
DOCUMENTOS,
Outras ferrovias foram iniciadas ou prolongadas nos anos seguintes e até o
início do século XX, com base no mesmo interesse de conectar as regiões produtoras
do sertão aos portos e consequentemente aos mercados consumi
Estrada de Ferro de Sobral a Camocim (no Ceará), da Estrada de Ferro Central do Rio
Grande do Norte
46
e de seções
e Pernambuco, todas no entanto sofrendo com dificuldades para constr
manutenção.
46
Sobre as redes ferroviária
s no Rio Grande do Norte e seu efeito na formação das redes urbanas, cf.
MEDEIROS (2007)
. Sobre a influência da rede ferroviária sobre a configuração urbana da cidade de Natal
e sobre as relações da capital com o estado do
Figura 18:
Engenheiros inspecionam construção de estrada de ferro, em São João do Rio do Peixe
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
além de pontes, poços e
uma grande estação em Canoa,
construídas pelos braços dos retirantes (CÂNDIDO, 2005).
Em 1892, por ocasião da exposição de Chicago, o engenheiro Ernesto Antônio
Lassance Cunha apresentava a Estrada de Ferro de Baturité como tendo os seguintes
. Ligar o Ceará ao Sul da República por meio do Rio São Francisco.
2. Proporcionar o maior desenvolvimento da lavoura e indústria do
Estado do Ceaatrofiada pela falta de meios ceis de transportes
para a condução dos produtos do interior para a Capital
.
3. É também uma estrada estrangeira, permita
-
se a expressão, para
minorar os efeitos das secas periódicas que assolam este Estado.
DOCUMENTOS,
2005)
Outras ferrovias foram iniciadas ou prolongadas nos anos seguintes e até o
início do século XX, com base no mesmo interesse de conectar as regiões produtoras
do sertão aos portos e consequentemente aos mercados consumi
dores. Foi o caso da
Estrada de Ferro de Sobral a Camocim (no Ceará), da Estrada de Ferro Central do Rio
e de seções
da Great Western of Brazil Railway Company
e Pernambuco, todas no entanto sofrendo com dificuldades para constr
s no Rio Grande do Norte e seu efeito na formação das redes urbanas, cf.
. Sobre a influência da rede ferroviária sobre a configuração urbana da cidade de Natal
e sobre as relações da capital com o estado do
Rio Grande do Norte, cf. RODRIGUES (2006).
Engenheiros inspecionam construção de estrada de ferro, em São João do Rio do Peixe
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 112
uma grande estação em Canoa,
Em 1892, por ocasião da exposição de Chicago, o engenheiro Ernesto Antônio
Lassance Cunha apresentava a Estrada de Ferro de Baturité como tendo os seguintes
. Ligar o Ceará ao Sul da República por meio do Rio São Francisco.
2. Proporcionar o maior desenvolvimento da lavoura e indústria do
Estado do Ceaatrofiada pela falta de meios fáceis de transportes
se a expressão, para
minorar os efeitos das secas periódicas que assolam este Estado.
Outras ferrovias foram iniciadas ou prolongadas nos anos seguintes e até o
início do século XX, com base no mesmo interesse de conectar as regiões produtoras
dores. Foi o caso da
Estrada de Ferro de Sobral a Camocim (no Ceará), da Estrada de Ferro Central do Rio
na Paraíba
e Pernambuco, todas no entanto sofrendo com dificuldades para constr
ução e
s no Rio Grande do Norte e seu efeito na formação das redes urbanas, cf.
. Sobre a influência da rede ferroviária sobre a configuração urbana da cidade de Natal
Engenheiros inspecionam construção de estrada de ferro, em São João do Rio do Peixe
Os problemas financeiros
não eram exclusividade daquelas
ferrovias nordestinas. Apesar de o
interesse de instalação das estradas
de ferro no Brasil e as discussões a
respeito remontarem aos anos
1830, as primeiras décadas de sua
implementação foram contur
por discordâncias técnicas e legais.
Uma das discussões revolvia em
torno da bitola (distância entre
trilhos) mais favorável à aplicação
nas ferrovias brasileiras:
estreitistas defendiam a bitola de
1,00m como mais econômica,
possibilitando estrada
s mais longas
e rentáveis; larguistas preferiam a bitola de 1,60m, que acomodaria maior tráfego,
atual ou futuro. Sem resolução desse dilema, construíram
sistemas, incompatíveis entre si, dificultando a integração entre as estra
e tornando o trânsito mais lento e mais custoso. A legislação brasileira, que
determinava subsídios à construção baseados no comprimento das estradas, levava as
empresas, despreocupadas com a economia de recursos, a criar ferrovias que não
seguiam o caminho mais curto ou favorável, ao invés disso traçando meandros em
trajetos definidos mais pela influência política de certos proprietários de terras do que
pela eficiência de transporte. Como resultado, à
de
ferro instaladas nas zonas cafeeiras do sudeste, a incipiente rede ferroviária
brasileira era tomada por problemas funcionais e financeiros (TELLES, 1994).
investimento realizado pelo Estado na criação e manutenção de estradas de ferro
também sign
ificava que cerca de metade do orçamento Imperial destinado
infra-estrutura, a partir
de meados do século XIX, era permanentemente
comprometido com os gastos ferroviários (CARVALHO, 1996).
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
Os problemas financeiros
não eram exclusividade daquelas
ferrovias nordestinas. Apesar de o
interesse de instalação das estradas
de ferro no Brasil e as discussões a
respeito remontarem aos anos
1830, as primeiras décadas de sua
implementação foram contur
badas
por discordâncias técnicas e legais.
Uma das discussões revolvia em
torno da bitola (distância entre
trilhos) mais favorável à aplicação
nas ferrovias brasileiras:
estreitistas defendiam a bitola de
1,00m como mais econômica,
s mais longas
e rentáveis; larguistas preferiam a bitola de 1,60m, que acomodaria maior tráfego,
atual ou futuro. Sem resolução desse dilema, construíram
-
se ferrovias com ambos os
sistemas, incompatíveis entre si, dificultando a integração entre as estra
das individuais
e tornando o trânsito mais lento e mais custoso. A legislação brasileira, que
determinava subsídios à construção baseados no comprimento das estradas, levava as
empresas, despreocupadas com a economia de recursos, a criar ferrovias que não
seguiam o caminho mais curto ou favorável, ao invés disso traçando meandros em
trajetos definidos mais pela influência política de certos proprietários de terras do que
pela eficiência de transporte. Como resultado, à
exceção de algumas poucas estradas
ferro instaladas nas zonas cafeeiras do sudeste, a incipiente rede ferroviária
brasileira era tomada por problemas funcionais e financeiros (TELLES, 1994).
investimento realizado pelo Estado na criação e manutenção de estradas de ferro
ificava que cerca de metade do orçamento Imperial destinado
de meados do culo XIX, era permanentemente
comprometido com os gastos ferroviários (CARVALHO, 1996).
Figura 19:
Rede da Great Western of Brazil Railway
Company (1914).
FONTE: REVISTA BRAZIL-FERRO-
CARRIL, 1914.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
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e rentáveis; larguistas preferiam a bitola de 1,60m, que acomodaria maior tráfego,
se ferrovias com ambos os
das individuais
e tornando o trânsito mais lento e mais custoso. A legislação brasileira, que
determinava subsídios à construção baseados no comprimento das estradas, levava as
empresas, despreocupadas com a economia de recursos, a criar ferrovias que não
seguiam o caminho mais curto ou favorável, ao invés disso traçando meandros em
trajetos definidos mais pela influência política de certos proprietários de terras do que
exceção de algumas poucas estradas
ferro instaladas nas zonas cafeeiras do sudeste, a incipiente rede ferroviária
brasileira era tomada por problemas funcionais e financeiros (TELLES, 1994).
O grande
investimento realizado pelo Estado na criação e manutenção de estradas de ferro
a obras de
de meados do culo XIX, era permanentemente
Rede da Great Western of Brazil Railway
CARRIL, 1914.
Os engenheiros
por
mais que muitos dependessem
das fer
rovias, boas ou ruins,
para conseguir empregos,
como se comentou
estavam cientes dessas
deficiências. A raiz dos
problemas econômicos
das
ferrovias nordestinas do século
XIX, argumentava Raymundo
Pereira da Silva ao Clube de
Engenharia em seu relatóri
o de 1907
estava em terem sido traçadas sem objetivo bem definido, sofrendo constantes
atrasos das obras, que avançavam lenta e dolorosamente
todas as vezes que um período chuvoso applaca
eram nelas empregados. Os dados expostos pelo engenheiro davam conta de que as
primeiras estradas de ferro do nordeste
pesavam annualmente no orçamento com
cancelar prolongamentos e arrendar muitas linhas em 1889. A situação se tornou
ainda mais crítica quando nesse mes
seca e os arrendatários decidiram especular sobre a situação, elevando os preços das
passagens e encarecendo os alimentos ao cobrar mais por seu transporte, anulando
portanto o intuito de utilizar as ferrovias n
fracasso da política de arrendamento, por outro lado, fizera o governo reconsiderar os
seus planos e, a partir de 1903, retomar a expansão das linhas com o intuito de criar
ligações entre as várias estradas exis
novas ferrovias que deveriam conectar os diversos estados da região entre si, assim
como seu interior ao litoral.
Como se , começa finalmente a ser esboçado um plano de viação
ferrea interessando o grupo de Esta
surge a idéa de mais uma ligação interna entre o Nordeste e o Sul,
por uma linha mais ou menos parallela ao littoral (...)
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
por
mais que muitos dependessem
rovias, boas ou ruins,
para conseguir empregos,
como se comentou
estavam cientes dessas
deficiências. A raiz dos
das
ferrovias nordestinas do século
XIX, argumentava Raymundo
Pereira da Silva ao Clube de
o de 1907
(
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909
estava em terem sido traçadas sem objetivo bem definido, sofrendo constantes
atrasos das obras, que avançavam lenta e dolorosamente
que eram paralisadas
todas as vezes que um período chuvoso applaca
va os clamores dos famintos que
eram nelas empregados. Os dados expostos pelo engenheiro davam conta de que as
primeiras estradas de ferro do nordeste
"tinham custado o triplo do seu valor e
pesavam annualmente no orçamento com
deficits
avultados, o que levara o Estado a
cancelar prolongamentos e arrendar muitas linhas em 1889. A situação se tornou
ainda mais crítica quando nesse mes
mo ano o Nordeste foi acometido por uma nova
seca e os arrendatários decidiram especular sobre a situação, elevando os preços das
passagens e encarecendo os alimentos ao cobrar mais por seu transporte, anulando
portanto o intuito de utilizar as ferrovias n
a minoração dos efeitos do fenômeno. Esse
fracasso da política de arrendamento, por outro lado, fizera o governo reconsiderar os
seus planos e, a partir de 1903, retomar a expansão das linhas com o intuito de criar
ligações entre as várias estradas já exis
tentes, e aprovar projetos de uma série de
novas ferrovias que deveriam conectar os diversos estados da região entre si, assim
Como se vê, começa finalmente a ser esboçado um plano de viação
ferrea interessando o grupo de Esta
dos do Maranhão até a Bahia e
surge a idéa de mais uma ligação interna entre o Nordeste e o Sul,
por uma linha mais ou menos parallela ao littoral (...)
Figura 20:
Engenheiros, repórter e um Ford, em visita a obra
de estrada de ferro.
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 114
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909
),
estava em terem sido traçadas sem objetivo bem definido, sofrendo constantes
que eram paralisadas
va os clamores dos famintos que
eram nelas empregados. Os dados expostos pelo engenheiro davam conta de que as
"tinham custado o triplo do seu valor e
avultados, o que levara o Estado a
cancelar prolongamentos e arrendar muitas linhas em 1889. A situação se tornou
mo ano o Nordeste foi acometido por uma nova
seca e os arrendatários decidiram especular sobre a situação, elevando os preços das
passagens e encarecendo os alimentos ao cobrar mais por seu transporte, anulando
a minoração dos efeitos do fenômeno. Esse
fracasso da política de arrendamento, por outro lado, fizera o governo reconsiderar os
seus planos e, a partir de 1903, retomar a expansão das linhas com o intuito de criar
tentes, e aprovar projetos de uma série de
novas ferrovias que deveriam conectar os diversos estados da região entre si, assim
Como se , começa finalmente a ser esboçado um plano de viação
dos do Maranhão até a Bahia e
surge a idéa de mais uma ligação interna entre o Nordeste e o Sul,
Engenheiros, repórter e um Ford, em visita a obra
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 115
Se traçarmos essas differentes linhas no mappa do Brasil e
estudarmos detidamente as zonas a servir por cada uma e as ligações
que estabelecerão entre os Estados, veremos que, apenas com
ligeiras alterações (...) ellas satisfarão cabalmente ás necessidades
locaes da região, faltando sómente a criação da de que deve ter
origem no porto de Belém, para que fique constituido o grande
systema de viação ferrea de interesse geral, que é necessario
estabelecer no Norte. (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1909, p.
39)
A idéia que se transmitia era de que um plano geral de viação que permitisse
a formação de redes era essencial para o sucesso das ferrovias
47
, que seriam
responsáveis pelo desenvolvimento economico da região e conseqüente augmento
da riqueza (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, p. 37). Para Raymundo Pereira da
Silva, não bastava construir as estradas de ferro, mas garantir que oferecessem tarifas
acessíveis, e que seus traçados obedecessem mais às direções propostas pelos
engenheiros do que à politicagem inconsciente, que os tem por toda parte alongado
além dos limites razoaveis". Seu plano de viação incluía a indicação para construção de
47
Não era uma idéia nova; diversos planos de viação foram propostos no período imperial, a maioria
deles baseados em sistemas ferroviários com troncos principais e linhas secundárias regionalizados
segundo as condições naturais; uma exceção foi a proposta de André Rebouças, que, seguindo o modelo
norte-americano, propunha uma série de linhas paralelas cortando o território de leste a oeste,
descentralizando o tráfego, e ao mesmo tempo integrando o sistema aos países vizinhos. Uma análise
detalhada a respeito dos planos de viação para o Império foi realizada por Manoel Fernandes de Sousa
Neto (2004)
Figura 21: João Chrockatt de Pereira de Castro (esq.) e André Gustavo Paulo de Frontin (dir.),
membros especialmente ativos nas discussões do Clube de Engenharia, envolveram-se com as
propostas de vias férreas, entre outros temas.
FONTE: Acervo do grupo HCUrb.
13.260 quilômetros de estradas de ferro (dos quais 9.260 nas redes maranhense,
bahiana e paraense; um comprimento consider
relevo majoritariamente plano da região, e pelo fato de que as direcções dos grandes
troncos estão tão indicadas pela natureza, que as populações e os interesses
economicos administrativos e politicos por ellas criados
inconscientemente nos caminhos que elles tem de percorrer (
ENGENHARIA, p. 50)
. Realizados os estudos sobre a economia e a natureza daquela
região, restava à engenharia, então, o trabalho de aproveitar os elementos disponíve
para transformar a ferrovia em um instrumento de desenvolvimento.
O plano de Pereira da Silva não foi inteiramente colocado em prática, mas
certos prolongamentos e conexões seriam realizadas nos anos seguintes.
propostas de malha surgiriam, compartilhando o mesmo objetivo de proporciona
rápido acesso a todo o território. J. S. de Castro Barbosa descrevia, em 1909, uma
proposta na qual duas linhas, ligando o Recife a São Luiz e a Bahia a Fortaleza, se
cruzariam no centro da Paraíba, em Leopoldina ou Ouricury
poder-se-
ia alcançar Natal (o
porto do Nordeste do qual estava
mais distante) em 36 horas, ou o
Rio de Janeiro em 5 dias. A
sugestão de Castro Barbosa seria,
então, a instalação em tal
localidade de todas as forças
militares dispersas por a
quelles
Estados. Além das vantagens de
economia de manutenção, da
facilidade de treinamento e
estudo das tropas, do
distanciamento dos militares da
política e de outras distracções
das capitais, da possibilidade de
seu rápido envio em defesa do
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
13.260 quilômetros de estradas de ferro (dos quais 9.260 nas redes maranhense,
bahiana e paraense; um comprimento consider
ável, mas que seria facilitado pelo
relevo majoritariamente plano da região, e pelo fato de que as direcções dos grandes
troncos estão tão indicadas pela natureza, que as populações e os interesses
economicos administrativos e politicos por ellas criados
gruparam
inconscientemente nos caminhos que elles tem de percorrer (
REVISTA DO CLUBE DE
. Realizados os estudos sobre a economia e a natureza daquela
região, restava à engenharia, então, o trabalho de aproveitar os elementos disponíve
para transformar a ferrovia em um instrumento de desenvolvimento.
O plano de Pereira da Silva não foi inteiramente colocado em prática, mas
certos prolongamentos e conexões seriam realizadas nos anos seguintes.
propostas de malha surgiriam, compartilhando o mesmo objetivo de proporciona
rápido acesso a todo o território. J. S. de Castro Barbosa descrevia, em 1909, uma
proposta na qual duas linhas, ligando o Recife a São Luiz e a Bahia a Fortaleza, se
cruzariam no centro da Paraíba, em Leopoldina ou Ouricury
(Figura 22)
. Desse ponto,
ia alcançar Natal (o
porto do Nordeste do qual estava
mais distante) em 36 horas, ou o
Rio de Janeiro em 5 dias. A
sugestão de Castro Barbosa seria,
então, a instalação em tal
localidade de todas as forças
quelles
Estados. Além das vantagens de
economia de manutenção, da
facilidade de treinamento e
estudo das tropas, do
distanciamento dos militares da
política e de outras distracções
das capitais, da possibilidade de
seu rápido envio em defesa do
Figura 22:
Representação do plano de J. S. de Castro.
Marcada em vermelho, a cidade central.
FONTE: Elaboração própria a partir de dados de REVISTA DO
CLUBE DE ENGENHARIA (1910). Imagem-
base © NASA, 2004.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
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13.260 quilômetros de estradas de ferro (dos quais 9.260 nas redes maranhense,
ável, mas que seria facilitado pelo
relevo majoritariamente plano da região, e pelo fato de que as direcções dos grandes
troncos estão tão indicadas pela natureza, que as populações e os interesses
gruparam
-se
REVISTA DO CLUBE DE
. Realizados os estudos sobre a economia e a natureza daquela
região, restava à engenharia, então, o trabalho de aproveitar os elementos disponíve
is
O plano de Pereira da Silva não foi inteiramente colocado em prática, mas
certos prolongamentos e conexões seriam realizadas nos anos seguintes.
Outras
propostas de malha surgiriam, compartilhando o mesmo objetivo de proporciona
r
rápido acesso a todo o território. J. S. de Castro Barbosa descrevia, em 1909, uma
proposta na qual duas linhas, ligando o Recife a São Luiz e a Bahia a Fortaleza, se
. Desse ponto,
Representação do plano de J. S. de Castro.
FONTE: Elaboração própria a partir de dados de REVISTA DO
base © NASA, 2004.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 117
Norte, do Sul ou da costa brasileira, Castro Barbosa adicionava:
A permanencia de um corpo de exercito em qualquer logar constitue
por si um grande elemento de prosperidade, pelo consideravel
augmento de transacções de toda a especie que determina.
O primeiro effeito dessa concentração seria, portanto, fundar no
coração do sertão um emporio commercial importante, interessando
a toda a região, visto como ficaria situado no centro de uma
circumferencia cujos raios seriam os caminhos de ferro que o
ligariam aos diversos portos. Considere-se bem todo o alcance deste
facto.
O segundo effeito seria a facilidade e a economia com que o Governo
Federal poderia executar as grandes obras necessarias á parte mais
flagellada da zona. Os soldados que compõem as forças a mobilizar
são quasi todos filhos da terra, identificados com o clima e
familiarizados com as difficuldade e provações da vida sertaneja; (...)
Pagando-lhes, portanto, apenas uma pequena diaria como
gratificação, o Governo encontraria nelles os melhores e mais
baratos trabalhadores para as grandes obras de viação e açudagem,
utilizando-os, sobretudo, nos periodos normaes, em que os
sertanejos fazem falta aos trabalhos da agricultura e da creação.
(REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1910, p. 77-78)
Essa proposta (nunca realizada de fato), mais do que demonstrar as
preocupações de defesa e de suprimento de mão-de-obra regular e não somente
emergencial e barata para as obras contra as secas, demonstra uma intenção de
utilizar a estrada de ferro não apenas como ligação entre centros populacionais, mas
como constituinte, em si mesma, de núcleos urbanos. A idéia de utilizar as estradas de
ferro como aglomeradoras da população não era tampouco restrita aos estudos sobre
o Nordeste. Frederico Liberalli, em sessão de 1909, apresentou ao Clube de Engenharia
uma proposta em prol da fixação do colono agricola nas margens e percursos da
Estrada de Ferro Central do Brasil e outras que a ela se ligavam. Era um plano aplicado
à realidade do Sudeste do país, cujo objetivo era povoar, não agglomerando, mas
estendendo (...) encarado também o lado pinturesco unido ao uttil, ao problema da
colonização do territorio brasileiro (
60).
48
Entre os projetos que foram
linha em particular
a ligação férrea entre Mossoró, no Rio Grande do Norte, e o rio
São Francisco
aparecia com destaque nas discussões do Clube de Engenharia, não
por seu bom ou mau
desempenho, mas porque, após décadas de explicações e
p
edidos insistentes efetuados por um grupo de defensores, ainda não se tornara
realidade. Esses discursos, ao tentar convencer a audiência da importância da
proposta, expõem muito do que se esperava de uma ferrovia projetada para
atravessar o centro da zona
das secas e das razões pelas quais esses empreendimentos
eram considerados fundamentais para o futuro da região.
Atendendo aos
pedidos levantados em 1875, o primeiro contrato para
construção da Mossoró-
São Francisco foi acertado em 1878 com o suíço Ulrich Graff,
comerciante residente em Mossoró. Tendo, porém, falecido o proponente, o contrato
foi declarado caduco em 1882 sem qu
proposta foi considerada em 1888, com um traçado ligeiramente alterado.
Apresentada em 1903 ao Senado recebeu parecer em que era considerada uma
necessidade indeclinável, além de inadiável. Não obstante, a decis
de mandar construir a estrada seria emitida em dezembro de 1909. O primeiro
trecho, de apenas 38 km
longe, portanto, de atingir o objetivo final às margens do
48
Era algo semelhante, pode-
se dizer, a uma versão em escala territorial
linear, que Arturo Soría y Mata propugnava no sécul
dos anos 1920 (HALL, 2002).
Figura 23:
Locomotiva tipo Consolidation, com identificação da IFOCS
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
colonização do territorio brasileiro (
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1925, p.
Entre os projetos que foram
ao menos parcialmente postos e
m prática, uma
a ligação rrea entre Mossoró, no Rio Grande do Norte, e o rio
aparecia com destaque nas discussões do Clube de Engenharia, não
desempenho, mas porque, após décadas de explicações e
edidos insistentes efetuados por um grupo de defensores, ainda não se tornara
realidade. Esses discursos, ao tentar convencer a audiência da importância da
proposta, expõem muito do que se esperava de uma ferrovia projetada para
das secas e das razões pelas quais esses empreendimentos
eram considerados fundamentais para o futuro da região.
pedidos levantados em 1875, o primeiro contrato para
São Francisco foi acertado em 1878 com o suíço Ulrich Graff,
comerciante residente em Mossoró. Tendo, porém, falecido o proponente, o contrato
foi declarado caduco em 1882 sem qu
e tivessem sido iniciadas as obras. Nova
proposta foi considerada em 1888, com um traçado ligeiramente alterado.
Apresentada em 1903 ao Senado recebeu parecer em que era considerada uma
necessidade indeclinável, além de inadiável. Não obstante, a decis
ão do Congresso
de mandar construir a estrada só seria emitida em dezembro de 1909. O primeiro
longe, portanto, de atingir o objetivo final às margens do
se dizer, a uma versão em escala territorial
ou agrária
linear, que Arturo Soría y Mata propugnava no sécul
o XIX e que receberia respaldo na União Soviética
Locomotiva tipo Consolidation, com identificação da IFOCS
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 118
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1925, p.
m prática, uma
a ligação férrea entre Mossoró, no Rio Grande do Norte, e o rio
aparecia com destaque nas discussões do Clube de Engenharia, não
desempenho, mas porque, após décadas de explicações e
edidos insistentes efetuados por um grupo de defensores, ainda o se tornara
realidade. Esses discursos, ao tentar convencer a audiência da importância da
proposta, expõem muito do que se esperava de uma ferrovia projetada para
das secas e das razões pelas quais esses empreendimentos
pedidos levantados em 1875, o primeiro contrato para
São Francisco foi acertado em 1878 com o suíço Ulrich Graff,
comerciante residente em Mossoró. Tendo, porém, falecido o proponente, o contrato
e tivessem sido iniciadas as obras. Nova
proposta foi considerada em 1888, com um traçado ligeiramente alterado.
Apresentada em 1903 ao Senado recebeu parecer em que era considerada uma
ão do Congresso
de mandar construir a estrada seria emitida em dezembro de 1909. O primeiro
longe, portanto, de atingir o objetivo final às margens do
da cidade
o XIX e que receberia respaldo na União Soviética
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 119
São Francisco , iniciado em 1912, passaria a funcionar três anos depois. Em mais
um protesto contra os atrasos e diante de mais uma seca, falava o engenheiro Cesar de
Campos ao Clube, em 1915, pedindo a imediata construção daquele amparo aos
flagellados que lutam com a assoladora crise que devasta os nossos sertões:
Parece que os deuses do Olympo, os santos do nosso crédo e os
curupiras dos antigos selvicolas da região se uniram em tacito e
incompreensivel accôrdo contra os seus habitantes e a execução
desta estrada de ferro. (...)
Já enche um pedaço de estante a litteratura desta estrada: João
Ulrich Graff, Drs. Felippe Guerra, Matheus Brandão, Chrockatt de Sá,
Pereira da Silva, Rodrigo Crandal, Ralph Sopper, Tavares de Lyra...;
representações a cuja frente vêm governadores, juizes, sacerdotes,
commerciantes; discursos na Camara e no Senado: Meira e Sá,
Thomaz Cavalcanti, Studart, Lauro Sodré...; na imprensa: Correio da
Manhã, Tribuna, O Paiz... Eu não acabaria, a cital-os... (REVISTA DO
CLUBE DE ENGENHARIA, 1930, p. 19-20)
A importância dessa estrada, que justificava todos os protestos em seu favor,
residia em grande parte em características percebidas na localidade de Mossoró.
Chrockatt de Souza, engenheiro e um dos principais proponentes da ferrovia, expôs ao
Clube de Engenharia em sessão de 1910 dados que davam conta do grande tráfego da
estação telegráfica de Mossoró e do volume de correspondências de sua agência de
correios, detentora do maior movimento no Rio Grande do Norte; elogiou a qualidade
do porto, profundo e livre de temporais e mau tempo; destacou que, nas seccas é
Mossoró o ponto de apoio para a grande zona central do Estado e dos Estados
visinhos. Concluía que, por todos esses motivos, Mossoró se tornara naturalmente o
emporio do sertão, ponto comercial convergente de Rio Grande do Norte, Ceará,
Paraíba e Pernambuco (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1910, p. 14-15).
Somando-se a esses atributos desfrutados por Mossoró, dizia o engenheiro,
estava a riqueza existente e latente da região a ser cortada pela estrada: o solo fértil, a
energia da população e a produção do melhor algodão do país e de couros aptos para
a exportação eram elementos de vida que garantiriam à estrada permanente
movimento e importantes lucros. O principal produto para o qual se destinaria a
estrada era o sal, de alta qualidade e extraído com facilidade em toda a faixa que ia de
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 120
Mossoró a Macau (ponto que chegou a ser considerado como alternativa para início da
linha férrea), e em quantidade suficiente para abastecer todo o país. A distribuição
desses produtos, cumprido o programa original, se daria com a extensão da linha até o
rio São Francisco, de onde, embarcadas, poderiam seguir por via fluvial até a Estrada
de Ferro Central do Brasil, assim efetivamente integrando Mossoró e o sertão cruzado
pela ferrovia à capital federal e ao resto do Sul do país, constituindo assim uma
importantissima rêde de communicações interiores (REVISTA DO CLUBE DE
ENGENHARIA, 1889, p. 13). Essa integração poderia ser utilizada também para o
movimento de pessoas, e era especificamente mencionada a abertura ao transporte
do soldado nortista, correndo ao primeiro apello da pátria: o Norte, palco de
numerosas rebeliões ao longo da história do Brasil (Confederação do Equador,
Sabinada, Balaiada, Praieira, Quebra-Quilos, etc), era considerado naquele
momento como potencial ponto fornecedor de tropas para defesa do Sul, seja
contra vizinhos hostis a guerra do Paraguai ainda era memória recente ou contra
revoltas internas.
Demonstrava-se, com discursos como esses, a relevância econômica e
estratégica dessa ferrovia, considerado o potencial produtivo da região. Seriam esses
os elementos que, durante os anos normais, na ausência da seca, poderiam
fortalecer os núcleos urbanos e as propriedades agrícolas do sertão. A utilidade que
teria nos períodos de estiagem, por sua vez, iniciava-se no próprio processo de
construção. O próprio Chrockatt de Sá, ao ver anunciada uma nova seca em 1889,
defendia o início das obras da estrada em caráter de emergência. Esses trabalhos, ele
acreditava, resolveriam imediatamente o problema da fixação ao solo da população,
ao prover de emprego dos sertanejos, tanto na construção da ferrovia em si, quanto
de açudes instalados ao longo da linha,
porque é claro, que o inicio dos trabalhos fará nascer uma troca de
permutas e relações de toda a ordem, porquanto a empreza terá de
distribuir cerca de 5.000:000$000 em fórma de salarios e despezas
diversas; grandes depositos de generos serão necessariamente
creados; d'ahi a tranquilidade, a falta de receio no futuro, e
conseguintemente, sem razão de ser o panico, causa principal do
exodo em massa. (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1889, p. 11)
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 121
A preocupação em atender à população da área do sertão cruzada pela
estrada, que Chrockatt de Sá projetava em cerca de 450 mil habitantes, foi fator
definidor também do trajeto definitivo da estrada, que tinha de servir o sertão dos
tres Estados, Rio Grande do Norte, Parahyba e Pernambuco, conciliando-se a exigencia
do traçado com a necessidade do maior numero possivel de centros povoados
flagellados pela secca, como reza o projecto de lei apresentado (REVISTA DO CLUBE
DE ENGENHARIA, 1910, p. 16).
A Estrada de Ferro de Mossoró nunca chegou às margens do São Francisco,
como pretendido pelo projeto original, tendo alcançado sua parada final em Souza, na
Paraíba, em 1933, por onde se conectava à Estrada de Ferro de Baturité através do
Ramal da Paraíba e à malha litorânea da Great Western of Brazil Railway através do
Ramal de Campina Grande. Ainda que não fosse essa a rede que Chrockatt de e os
outros haviam preconizado décadas antes, a estrada se tornava então, afinal, parte
integrada de uma malha ferroviária que cruzava com seus ramais grande parte do
Nordeste, do litoral ao interior.
Mesmo que pouco do que se tenha discutido nos salões do Clube de
Engenharia tenha se tornado realidade de forma direta, o movimento dos
engenheiros, não apenas dentro do Clube, mas em contato direto com os meios
políticos da República parecia render frutos nas primeiras décadas do século XX. O
congresso nacional decretava em parecer de 1912
que o desenvolvimento da viação ferrea geral brasileira, tendo
principalmente em vista os centros populosos e a zona de maior
densidade depopulação e o aproveitamento das ligações e
prolongamento que pela sua natureza e condições satisfizerem ao
progresso e riqueza economica do Brasil , deve ser levado a e effeito
com a maxima urgencia e para isso é necessario encetar
immediatamente os estudos da estrada de ferro que na direcção
Norte Sul reunirá a maior parte dos Estados entre si e com a Capital
Federal (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1927, p. 145-146)
A rede ferroviária brasileira começava a evoluir no sentido de criar a malha
integrada exigida pelos engenheiros; naquele ano, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas
Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Espírito Santo estavam conectados entre si por vias
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 122
férreas; a Bahia desfrutava da ligação Norte-Sul através da navegação fluvial do rio
São Francisco e esperava-se para breve a ligação desta com Sergipe; as capitais de
Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte estavam conectadas e já se
construía o ramal entre estas e a rede que atendia ao Ceará, Maranhão e Piauí; outras
conexões eram planejadas entre Maranhão e Pará, Santa Catarina e Rio Grande do Sul
(REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1927, p. 147). A Estrada de Ferro Madeira-
Mamoré havia sido concluída, um custoso triunfo da engenharia sobre a natureza
amazônica. O interesse dos engenheiros, naquele momento, era de expandir essa
rede para além das fronteiras nacionais, conectando-se aos países vizinhos da América
do Sul, constituindo uma grande viação internacional.
Mas o problema ferroviário brasileiro, dizia Paulo de Frontin ao clube em 1912,
não era mais somente administrativo, comercial e agrícola, mas passara a ter como
principal aspecto a considerar a defesa nacional. Os temores dos engenheiros nesse
período eram fundados principalmente na doutrina imperialista lançada nos Estados
Unidos e que originou a conquista do territorio do canal do Panamá, a sua intervenção
em Cuba e bem assim o seu modo de agir no Mexico, em Honduras, na Colombia, etc
(REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1927, p. 148). O noroeste, especificamente a
ligação da Capital Federal com a Amazônia para possibilitar o transporte de tropas
para a região, tomava posição central em seu discurso.
4.8. Estradas: rodovias
O ímpeto ainda recente para a construção e integração de redes de estradas de
ferro, entretanto, arrefeceu-se gradativamente a partir de meados dos anos 1910.
No período das Obras Novas Contra as Secas (1915-1918), por exemplo, a IOCS, sob
o comando do engenheiro Aarão Reis, não realizou nenhum projeto de construção ou
prolongamento de ferrovias. O motivo para esse abandono era claramente exposto no
relatório de Aarão Reis: a tecnologia automobilística tornara as rodovias preferíveis às
ferrovias. O inspetor-chefe de obras contra as secas considerava que a economia,
rapidez e facilidade de construção das estradas de rodagem justificavam o
investimento exclusivo nessa modalidade de transporte.
As estradas de
rodagem eram, na
realidade, evolução direta
das antigas estradas para
carroças e carros de boi;
poucas dessas vias no Brasil
tinham boas condições
técnicas, e seu
desenvolvimento fora
praticamente paralisado
quando teve início a
adoção das ferrovias no
país. O surgimento
do automóvel no princípio do século XX e o encarecimento dos
materiais e máquinas ferroviárias com o início da guerra na Europa em 1914 alteraram
rapidamente as preferências funcionais e econômicas em favor das rodovias, e as
obras contra as secas não fora
ENGENHARIA, 1922, p. 255-
256).
Os primeiros regulamentos da IFOCS, de 1919 e 1920, eram vagos no que dizia
respeito às rodovias; eram sempre construídas como forma de dar acesso aos sítios
onde seriam realiza
das grandes obras de açudagem, mas não continham um plano
rodoviário definido para o Nordeste. Segundo dados publicados em 1922, apenas a
Bahia tinha uma série de linhas principais projetadas, formando uma rede mais
completa; nos demais estados, existiam e
entanto seguir um projeto geral. Sergipe tinha 19 de seus 30 municípios atendidos por
rodovias; Alagoas, 29 de 35; Paraíba, 17 de 38; Rio Grande do Norte, 5 de 37; Ceará, 32
de 84; Piauí, 4 de 37; e Maranhão, 12 de
ENGENHARIA, p. 261-262
). A Comissão Rondon, de 1923, afirmava, por sua vez, que
estava sendo cumprido o intuito da IFOCS, qual seja, o de
49
O artigo não trazia dados relativos a Pernambuco.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
do automóvel no princípio do século XX e o encarecimento dos
materiais e máquinas ferroviárias com o início da guerra na Europa em 1914 alteraram
rapidamente as preferências funcionais e econômicas em favor das rodovias, e as
obras contra as secas não fora
m exceção nesse processo (
REVISTA BRASILEIRA DE
256).
Os primeiros regulamentos da IFOCS, de 1919 e 1920, eram vagos no que dizia
respeito às rodovias; eram sempre construídas como forma de dar acesso aos sítios
das grandes obras de açudagem, mas não continham um plano
rodoviário definido para o Nordeste. Segundo dados publicados em 1922, apenas a
Bahia tinha uma série de linhas principais projetadas, formando uma rede mais
completa; nos demais estados, existiam e
stradas de maior ou menor alcance, sem no
entanto seguir um projeto geral. Sergipe tinha 19 de seus 30 municípios atendidos por
rodovias; Alagoas, 29 de 35; Paraíba, 17 de 38; Rio Grande do Norte, 5 de 37; Ceará, 32
de 84; Piauí, 4 de 37; e Maranhão, 12 de
55 municípios
49
. (
REVISTA BRASILEIRA DE
). A Comissão Rondon, de 1923, afirmava, por sua vez, que
estava sendo cumprido o intuito da IFOCS, qual seja, o de
O artigo não trazia dados relativos a Pernambuco.
Figura 24:
Uma curva na estrada de rodagem de Massapé a
Meruoca FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 123
do automóvel no princípio do século XX e o encarecimento dos
materiais e máquinas ferroviárias com o início da guerra na Europa em 1914 alteraram
rapidamente as preferências funcionais e econômicas em favor das rodovias, e as
REVISTA BRASILEIRA DE
Os primeiros regulamentos da IFOCS, de 1919 e 1920, eram vagos no que dizia
respeito às rodovias; eram sempre construídas como forma de dar acesso aos sítios
das grandes obras de açudagem, mas não continham um plano
rodoviário definido para o Nordeste. Segundo dados publicados em 1922, apenas a
Bahia tinha uma série de linhas principais projetadas, formando uma rede mais
stradas de maior ou menor alcance, sem no
entanto seguir um projeto geral. Sergipe tinha 19 de seus 30 municípios atendidos por
rodovias; Alagoas, 29 de 35; Paraíba, 17 de 38; Rio Grande do Norte, 5 de 37; Ceará, 32
REVISTA BRASILEIRA DE
). A Comissão Rondon, de 1923, afirmava, por sua vez, que
Uma curva na estrada de rodagem de Massapé a
dotar a região de uma rêde vasta e bem urdida de vias de
communicação que,
fórma de trabalho, ás populações flagelladas, viessem
de futuro, meios rapidos de assistencia e retirada, ao mesmo tempo,
objectivaram assegurar o transporte dos materiaes necessários á
construcção d
complemento destas o desenvolvimento economico daquella
parcella do
1923, p. 56
Não obstante a existência
N
ordeste, onde estava tudo por fazer, ainda era quase nula a viação de rodagem, e
até que fosse consolidado o desenvolvimento agrícola e comercial da região as
estradas carroçáveis
de construção e manutenção menos dispendiosas
ferrovias, er
am ainda a melhor opção na maioria dos casos (
ENGENHARIA, 1923, p. 62).
Apenas na década de 1930 seria delineado um plano geral para o Nordeste, no
qual figuravam quatro grandes linhas rodoviárias: Recife
Central do Rio Grande do Norte (de Natal/RN a Limoeiro/CE) e Central do Piauí (de
Icó/CE a
Floriano/PI). Essas linhas e diversas subsidiárias começaram a ser construídas
em caráter emergencial em 1932, como socorro aos sertanejos deslocados pela seca
que se iniciara naquele ano. As estradas existentes naquela ocasião foram
creditadas como r
esponsáveis da salvação de mais de um milhão de nordestinos, ao
Figura 25:
Construção da estrada junto ao riacho Natuba
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
dotar a região de uma rêde vasta e bem urdida de vias de
communicação que,
proporcionando, de prompto socorro, sob a
fórma de trabalho, ás populações flagelladas, viessem
-
lhes garantir,
de futuro, meios rapidos de assistencia e retirada, ao mesmo tempo,
objectivaram assegurar o transporte dos materiaes necessários á
construcção d
as grandes barragens, visando também como
complemento destas o desenvolvimento economico daquella
parcella do
territorio nacional.(
REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA,
1923, p. 56
)
Não obstante a existência
dessas obras, a própria Comissão reconhecia que no
ordeste, onde estava tudo por fazer, ainda era quase nula a viação de rodagem, e
até que fosse consolidado o desenvolvimento agrícola e comercial da região as
de construção e manutenção menos dispendiosas
am ainda a melhor opção na maioria dos casos (
REVISTA BRASILEIRA DE
Apenas na década de 1930 seria delineado um plano geral para o Nordeste, no
qual figuravam quatro grandes linhas rodoviárias: Recife
-
Fortaleza, Fortaleza
Central do Rio Grande do Norte (de Natal/RN a Limoeiro/CE) e Central do Piauí (de
Floriano/PI). Essas linhas e diversas subsidiárias começaram a ser construídas
em caráter emergencial em 1932, como socorro aos sertanejos deslocados pela seca
que se iniciara naquele ano. As estradas existentes naquela ocasião foram
esponsáveis da salvação de mais de um milhão de nordestinos, ao
Construção da estrada junto ao riacho Natuba
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 124
dotar a região de uma rêde vasta e bem urdida de vias de
proporcionando, de prompto socorro, sob a
lhes garantir,
de futuro, meios rapidos de assistencia e retirada, ao mesmo tempo,
objectivaram assegurar o transporte dos materiaes necessários á
as grandes barragens, visando também como
complemento destas o desenvolvimento economico daquella
REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA,
dessas obras, a própria Comissão reconhecia que no
ordeste, onde estava tudo por fazer, ainda era quase nula a viação de rodagem, e
até que fosse consolidado o desenvolvimento agrícola e comercial da região as
aliadas às
REVISTA BRASILEIRA DE
Apenas na década de 1930 seria delineado um plano geral para o Nordeste, no
Fortaleza, Fortaleza
-Terezina,
Central do Rio Grande do Norte (de Natal/RN a Limoeiro/CE) e Central do Piauí (de
Floriano/PI). Essas linhas e diversas subsidiárias começaram a ser construídas
em caráter emergencial em 1932, como socorro aos sertanejos deslocados pela seca
que se iniciara naquele ano. As estradas existentes naquela ocasião foram
esponsáveis da salvação de mais de um milhão de nordestinos, ao
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 125
facilitar o transporte de operários e familias flagelladas e o abastecimento de material
e viveres a centenas de centros de serviço (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA,
1936, p. 1050). O próprio ritmo de construção dessas estradas era relacionado à
ocorrência das secas, recebendo um importante impulso com o influxo de mão-de-
obra retirante e recursos emergenciais. Era, afinal, um sistema que equipamentos e
funcionamento à parte era para os efeitos práticos do combate às secas muito
semelhante ao sistema ferroviário.
A convivência dos dois tipos de estradas, apesar disso, encontrava
empecilhos, com a situação do paralelismo, ou seja, a existência em um mesmo
trajeto de linhas férreas e rodovias, sofrendo severas críticas encetadas pelo deputado
e engenheiro Plínio Pompeu. Se para alguns o paralelismo parecia um desperdício,
outros, como o engenheiro Luiz Vieira, acreditavam que poderia haver uma
complementaridade e articulação entre os dois tipos de estradas, que transportariam
cada uma as cargas mais adequadas a seu sistema. Seria também ilógico, diziam seus
defensores, forçar uma via a desviar dos caminhos mais diretos e apropriados com o
intuito único de afastar-se de sua contraparte férrea ou rodoviária (REVISTA DO CLUBE
DE ENGENHARIA, 1936, p. 1050). Questões semelhantes, aliás, eram levantadas sobre
o paralelismo entre ferrovias e navegação fluvial, também respondidas com o
argumento de que a cooperação entre ambas era possível e desejável (REVISTA
BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1931, p. 21)
No nível nacional, as rodovias também consolidavam-se como obra
preferencial. O presidente do Clube de Engenharia, Paulo de Frontin, que delineara
quinze anos antes um plano de viação férrea para conectar todo o território nacional,
expunha em 1927 um Plano Rodoviário do Brasil, composto por 17 linhas-tronco
(quatro delas no Nordeste), cobrindo todo o país, incluindo a região amazônica desde
o Acre até a fronteira com as Guianas e o Xingu, conectada diretamente ao Rio de
Janeiro e São Paulo por um grande tronco central
50
. Frontin esperava, ainda assim, que
50
Possivelmente por limitações tipográficas ou por algum outro motivo, representações gráficas desses
e outros planos não foram, infelizmente, publicadas nas revistas de engenharia ainda que se
mencionasse por vezes que um mapa havia sido exibido em uma determinada seção, apenas as
descrições verbais, nem sempre precisas, eram incluídas na publicação.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 126
as rodovias contribuíssem sem antagonismo para o aumento do tráfego nas ferrovias,
explicando porém que nos Estados Unidos, "onde as estradas de rodagem atingiram o
maximo de perfeição no seu traçado e construcção verifica-se que por ellas se escôa o
duplo do que transportam as ferrovias" (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1927, p.
142).
Nem todos os engenheiros, porém, concordavam com a priorização absoluta
das estradas de rodagem. Analisando a situação dos transportes terrestres frente ao
Clube em 1931, Henrique de Novaes percebia
um periodo de quasi estagnação das construcções ferroviarias; um
surto nem sempre bem orientado de empreendimentos rodoviarios;
a falta do espirito de cooperação entre as estradas de rodagem e as
de ferro, começa consequente perturbação de regimen de
exploração de varias dessas ultimas. Longe nos achamos ainda,
entretando, da realização do arcabouço indispensavel de vias ferreas
que hão de constituir sempre as grandes linhas de transporte geral, e
os laços mais fortes entre as diversas unidades da federação.
(REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1932, p. 303)
Novaes seguiu propondo prolongamentos e junções de estradas de ferro, como
entre a Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte e a Great Western of Brazil
Railway. Defendia também o investimento em melhorias técnicas nas ferrovias, como
a eletrificação das linhas e o aperfeiçoamento dos métodos de tração. No concernente
às estradas de rodagem, considerava que o Brasil ainda não havia se emancipado das
tendências esportivas ou turísticas para entrar no terreno verdadeiramente
prático. Não acreditava na eficácia de uma rede nacional geral de rodovias como
solução para os transportes terrestres; considerava que o transporte automobilístico
não compensaria o movimento de mercadorias pesadas e baratas e que deveria atuar
não como substitutivo, mas como complemento do transporte ferroviário. Ao invés
disso, percebia como resultado da política voltada para as rodovias uma idéia falsa de
progresso, de conforto e de um transporte ideal, cuja concorrência desequilibrava os
mercados das estradas de ferro, causando dificuldades nos sertões distantes. Negava
também, citando exemplos, que a idéia de que a execução das rodovias fosse
necessariamente mais barata do que a de linhas férreas equivalentes. Mas não negava
a utilidade que as estradas de rodagem poderiam ter, se construídas pelos governos
estaduais
de forma a melhor atender os se
comunicação
e gerenciadas pela União, com o sentido de criar uma rede
harmônica (
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1932, p. 306).
A discussão dos prós e contras de ferrovias e rodovias continuaria por décadas.
O que se verificou, de fato, foi a lenta decadência d sistema de estradas de ferro e o
domínio completo do modelo ro
contribuíram, não obstante, para diminuir o isolamento da zona afetada pelas secas,
tendo sempre como meta possibilitar a circulação: de retirantes, de operários, de
mercadorias, de materiais construti
informação, que seriam responsáveis pela modernização cnica e cultural do sertão.
As propostas formuladas pelos engenheiros demonstravam que aqueles homens não
tinham plena consciência desse potencial, mas
que as estradas eram um
tipo de
espaço na escala regional, fortalecendo ou mesmo criando núcleos populacionais
através do comércio, hierarquizando esses núcleos através de su
direcionando a colonização do território ao longo de suas linhas. No Nordeste em
particular, as estradas estiveram sempre associadas às obras hídricas de combate às
secas, o que a um só tempo facilitava a construção de ambas e aumentava a influ
que, conjugadas, exerceriam sobre seu entorno.
Figura 26: Caminhões carregam
, através de uma estrada de rodagem,
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
de forma a melhor atender os se
rtões, asfixiados com a falta de
e gerenciadas pela União, com o sentido de criar uma rede
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1932, p. 306).
A discussão dos prós e contras de ferrovias e rodovias continuaria por décadas.
O que se verificou, de fato, foi a lenta decadência d sistema de estradas de ferro e o
domínio completo do modelo ro
doviarista no Brasil a partir da década de 1950. Ambas
contribuíram, não obstante, para diminuir o isolamento da zona afetada pelas secas,
tendo sempre como meta possibilitar a circulação: de retirantes, de operários, de
mercadorias, de materiais construti
vos, de água, de mantimentos, e circulação de
informação, que seriam responsáveis pela modernização técnica e cultural do sertão.
As propostas formuladas pelos engenheiros demonstravam que aqueles homens não
tinham plena consciência desse potencial, mas
também estavam convencidos de
tipo de
ferramenta que poderia ser utilizada para moldar o
espaço na escala regional, fortalecendo ou mesmo criando núcleos populacionais
através do comércio, hierarquizando esses núcleos através de su
as redes, e
direcionando a colonização do território ao longo de suas linhas. No Nordeste em
particular, as estradas estiveram sempre associadas às obras hídricas de combate às
secas, o que a um só tempo facilitava a construção de ambas e aumentava a influ
que, conjugadas, exerceriam sobre seu entorno.
, através de uma estrada de rodagem,
material para
obras contra as secas.
FONTE: ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA, 1922.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a
| 127
rtões, asfixiados com a falta de
e gerenciadas pela União, com o sentido de criar uma rede
A discussão dos prós e contras de ferrovias e rodovias continuaria por décadas.
O que se verificou, de fato, foi a lenta decadência d sistema de estradas de ferro e o
doviarista no Brasil a partir da década de 1950. Ambas
contribuíram, não obstante, para diminuir o isolamento da zona afetada pelas secas,
tendo sempre como meta possibilitar a circulação: de retirantes, de operários, de
vos, de água, de mantimentos, e circulação de
informação, que seriam responsáveis pela modernização técnica e cultural do sertão.
As propostas formuladas pelos engenheiros demonstravam que aqueles homens não
também estavam convencidos de
ferramenta que poderia ser utilizada para moldar o
espaço na escala regional, fortalecendo ou mesmo criando núcleos populacionais
as redes, e
direcionando a colonização do território ao longo de suas linhas. No Nordeste em
particular, as estradas estiveram sempre associadas às obras dricas de combate às
secas, o que a um só tempo facilitava a construção de ambas e aumentava a influ
ência
obras contra as secas.
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 128
Assim como no caso dos açudes, a origem dessa dupla utilização das estradas
no combate às secas e no planejamento territorial pode estar relacionada ao
processo de importação das técnicas de combate às secas. Nota-se inicialmente que
no relatório de Gabaglia, composto em 1860, as estradas de ferro então já existentes
no Brasil, e mesmo no Nordeste não apareciam como uma medida no sentido de
solucionar para o problema. De fato, a decisão de utilizar-se da construção de estradas
de ferro como obras emergenciais, dando emprego e comida aos retirantes,
ocorreria durante a seca de 1877-79, na Estrada de Ferro de Baturité. Sabe-se que
quando o mesmo fenômeno climático mundial abateu-se causando uma seca
semelhantemente devastadora na Índia, os colonizadores ingleses recusaram-se a
ceder mantimentos gratuitos à população afetada, requerendo que trabalhassem na
construção de estradas de ferro para serem recompensadas com rações de
sobrevivência. Essa iniciativa foi aplaudida por engenheiros no Brasil, entre os quais
incluía-se André Rebouças, que concordavam ser os socorros nada mais que esmolas,
cuja aplicação promovia a eterna indolência dos sertanejos e nada fazia para amenizar
a situação futura da região. Considerando-se que os primeiros engenheiros ferroviários
e boa parte das companhias de estradas de ferro no Brasil eram de origem inglesa, e
que os projetos de irrigação para a Índia eram comumente discutidos como
exemplares para aplicação no Nordeste, é provável que a política de construção de
ferrovias como obras contra as secas no Brasil tenha tido como fonte de inspiração o
exemplo inglês, filtrado através de uma rede de influências e comunicações
51
.
O efeito de transferência se torna ainda mais evidente à medida que a
influência ferroviária estadunidense sobrepõe-se à inglesa no Brasil, com a substituição
de modelos e materiais nas últimas décadas do século XIX. O sucesso que as ferrovias
haviam alcançado no desenvolvimento do desértico oeste dos Estados Unidos era uma
constante inspiração aos engenheiros que tentavam combater as secas no Nordeste.
51
Sabe-se, por outro lado, que algumas políticas inglesas para a Índia, como o teste de distância que
forçava o migrante a deslocar-se por dezenas de quilômetros até o local onde poderia trabalhar,
falecendo muitos no caminho e aproveitando-se apenas os sobreviventes de tais testes nas obras não
foram postos em prática no Brasil, e que as refeições oferecidas aos retirantes brasileiros eram bastante
adequadas e até muito fartas, se comparadas às rações mínimas fornecidas aos trabalhadores
indianos, mal suficientes para mantê-los esquálidos, mas vivos (DAVIS, 2002).
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 129
Era com admiração que a Revista de Engenharia relatava em 1883 que os Estados
Unidos possuíam então uma extensão de linhas férreas equivalentes a quase todo o
resto do mundo combinado, e que com o crescimento que ostentavam, em 1887
ultrapassariam a soma dos demais países.
Uma grande parte d'esta extensão foi construida em territorios
novos, abrindo d'esta fórma novos campos para a producção e
fornecendo meios de transporte aos milhares de trabalhadores que
pelos portos americanos chegam continuamente da Europa e que
começam desde logo a contribuir para a riqueza nacional do paiz.
As novas estradas de ferro construidas actualmente têm um fim
definido, para abrir um novo e productivo territorio, para ligar
alguma linha principal a um districto de mineração, a uma
inaccessivel região florestal, ou a uma promettedora região agrária.
(REVISTA DE ENGENHARIA, 1883, p.312)
Essa dinâmica produtiva era desejável, não só para o Nordeste, mas para todo o
Brasil, que ainda possuía vastas regiões inabitadas que precisavam ser ocupadas e
cultivadas para gerar riqueza para o país. A influência americana no combate às secas
demonstrava-se então nas ferrovias, nas obras hidráulicas, nas propostas de irrigação e
colonização, na conservação florestal, e logo levaria também à adoção generalizada do
automóvel e do sistema de rodovias no país. Os engenheiros brasileiros concordavam
com a acepção de que os Estados Unidos deviam o seu progresso á rapidez, barateza
e sufficiencia dos seus transportes (REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1925, p.
25), e era natural que se tentasse aplicar métodos semelhantes no Brasil, afim de
replicar seus resultados.
Mas o Brasil é diferente dos Estados Unidos e o semi-árido nordestino é
diferente do oeste norte-americano. O engenheiro da IFOCS Eduardo Parisot resumia:
Por estarmos em condições bem differentes da arida e deshabitada
região secca norte-americana, precisámos agir, impellidos pelo
flagello, mesmo com os elementos geraes que possuiamos para
obedecer á necessidade de socorrer promptamente uma região tão
povoada como a que se desejava acudir. (REVISTA BRASILEIRA DE
ENGENHARIA, 1925, p. 21)
4 . A L u t a : e n g e n h a r i a e s e c a | 130
O pensamento técnico do combate às secas no Nordeste brasileiro foi, então, o
resultado da leitura de experiências estrangeiras, primariamente anglo-americanas,
discutidas e reestruturadas de forma a tornarem-se compatíveis com as condições do
país, e com os recursos disponibilizados pelo Estado em que pesasse a influência
oligárquica sobre a destinação de tais recursos. A imprevisibilidade das secas, a
ausência de leis e instituições, a precariedade de equipamentos, a diversidade cultural,
a inconstância do valor dos produtos nacionais nos mercados externos, todos foram
empecilhos que os engenheiros enfrentaram ao formular e tentar pôr em prática suas
propostas e que podem ter influído sobre os resultados de seus trabalhos. O quanto a
influência externa contribuiu para a concepção de planejamento regional da zona das
secas no Nordeste e o quanto desse modelo foi criado ou modificado pelos
engenheiros brasileiros, não se pode afirmar com certeza sem que seja realizado um
exame de como tais conteúdos apareciam na literatura estrangeira especializada que
chegava aos meios nacionais, atividade que excede os objetivos e os meios disponíveis
durante esta pesquisa.
O material que foi analisado foi suficiente, mesmo assim, para alcançar uma
compreensão do pensamento dos engenheiros sobre o combate às secas e avaliar as
consequências espaciais de suas propostas. O desenvolvimento do planejamento
regional e territorial será discutida na parte seguinte deste trabalho, permitindo por
fim analisarem-se as relações entre essa categoria de ação interventiva e as propostas
aqui expostas.
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 131
5. Epílogo: Planejamento Territorial
5.1. Planejamento regional: prelúdio
Como visto nas partes anteriores deste trabalho, as propostas de combate às
secas no Nordeste brasileiro não surgiram espontaneamente, nem foram fruto de
súbitas epifanias de um ou outro engenheiro genial. A doutrina de ataque ao problema
em sua raiz um fenômeno climático, mas, como percebido, com influência
exacerbada por circunstâncias sociais e econômicas através de intervenções
espaciais de estruturação do território surgiu paulatinamente ao longo de décadas de
discussões, articuladas por dezenas de profissionais, e foi fortemente influenciada por
experiências estrangeiras na solução de problemas similares. Ao procurar situá-la
dentro de um quadro geral das doutrinas de planejamento desenvolvidas no mesmo
período, é possível notar que outras soluções espaciais estavam sendo construídas
para lidar com situações diversas, a partir das quais se podem traçar linhas de
continuidade que conduzem até o moderno Planejamento Territorial.
Na Europa ocidental de meados do século XIX, a principal questão a ser
resolvida estava na situação das cidades. As grandes cidades européias, transformadas
pelo modo de produção capitalista-industrial, tiveram que lidar com novos problemas
e com a exacerbação de outros existentes, entre os quais estavam a
superpopulação, doenças epidêmicas e endêmicas e inquietações sociais alimentadas
por novas vertentes de pensamento econômico e político. Essas cidades, assim como
sua relação com o espaço ao seu redor e com outras cidades, tornaram-se alvo
privilegiado de teorizações de pensadores que pretendiam entender com
racionalidade científica a sociedade e fundamentar propostas de alterações ou
revoluções que, esperavam, pudessem corrigir o curso da humanidade e amenizar os
conflitos, as injustiças e as angústias da existência moderna. Não é intenção desse item
esgotar as discussões promovidas pelos considerados clássicos no estudo do
desenvolvimento do planejamento regional e territorial, nem mesmo daqueles que
mais tarde os interpretaram e sobre eles contribuíram com novos aportes à questão. O
desenvolvimento do planejamento será, assim, discutido resumidamente, tocando-se
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 132
nos pontos chaves que levaram de suas concepções iniciais, através de consolidação
teórica e transformações, até sua aplicação no Brasil e no Nordeste brasileiro.
Paulo Linhares (1992) sintetiza a discussão acerca das cidades entre meados e
fins do século XIX a partir da obra de quatro alemães, que podem ser considerados
precursores do planejamento urbano e regional. Georg Simmel foi um dos primeiros
a professar uma filosofia da vida na metrópole. Simmel via a sociedade moderna,
criada pela liberação de laços históricos e costumes em processo desde o século XVIII,
como um mundo de movimento incessante; movimento físico, conceitual, e
econômico. Sua visão da metrópole, considerada por alguns excessivamente negativa,
exprimia uma angústia individual frente a essa perda de referências mentais. Karl Marx
e Friedrich Engels, por sua vez, percebiam a cidade industrial como campo de batalha
no conflito de classes, e em seu projeto social para o comunismo, previam o fim da
dicotomia campo/cidade como resultado da solução desses conflitos. Max Weber
tentou também desvendar, estudando o processo de individualização advindo do
espírito burguês, os elementos que originavam a angústia do cidadão na metrópole
descrita por Simmel (LINHARES, 1992).
O pensamento de precursores como esses viria a ser a base para a discussão e
proposição de soluções para uma questão que era de acordo virtualmente unânime: a
grande cidade não era um bom lugar para se morar, seja para os operários, sujeitos às
mazelas da dominação capitalista e da moradia precária, seja para as classes
dominantes, temerosas de insurreições populares provocadas por tais condições, seja
para qualquer ser humano despreparado para lidar com a dinâmica de uma sociedade
que fora completamente transformada em poucas décadas.
A saída para essa situação, defendiam os grupos de filosofia socialista,
anarquista ou comunista, era a completa reformulação social e econômica, destinada a
criar uma utopia sem conflitos ou males. Os grupos dominantes, naturalmente avessos
a tais idéias, propunham maneiras de aliviar as tensões sociais sem acarretar
mudanças nas estruturas de poder, em propostas que frequentemente passavam pela
reformulação urbana. Melhorando-se assim as condições de vida das massas
proletárias, controlar-se-iam os ânimos e arrefecer-se-ia a chama revolucionária, ao
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 133
mesmo tempo em que seriam contidos os riscos sanitários causados pela aglomeração
desordenada. Esse pensamento esteve na raiz da maior parte das intervenções no
espaço urbano a partir de meados do século XIX, tendo seu expoente maior na
reforma de Haussman em Paris, e deixando como legado o urbanismo modernista.
Uma outra doutrina, cujo símbolo maior foi o professor escocês Patrick Geddes
(1854-1932) formalmente biólogo e botânico, mas na prática um teórico dos mais
diversos temas , propunha uma melhoria das condições nas cidades também através
de intervenções espaciais, não restritas ao espaço intra-urbano, mas criando uma
mescla entre campo e cidade, ao mesmo tempo operando sutis subversões na ordem
social. O pensamento de Geddes daria origem a uma disciplina, que veio a ser
conhecida como Planejamento Regional. Peter Hall acompanha essa trajetória em seu
trabalho Cidades do Amanhã (2002).
Derivando suas idéias do trabalho de anarquistas como os franceses Pierre-
Joseph Proudhon e Élisée Reclus e os russos Mikhail Bakunin e Pyotr Kropotkin,
Geddes também partiu de uma visão socioeconômica sistemática para avaliar as
regiões naturais um dos conceitos que Geddes assumira através do contato com
geógrafos franceses (HALL, 2002, p. 162). Segundo Geddes, o planejamento deveria
iniciar-se pelo levantamento (ou, em suas palavras: O Levantamento precede o
Plano) das características de uma região natural, definida por características
geográficas físicas especialmente as bacias hidrográficas. Uma peça fundamental
desse trabalho seria a confecção de uma seção de vale, diagrama que representa um
corte transversal da região apresentando o relevo, vegetação e vida animal, conjunção
de fatores através da qual poderiam ser localizadas todas as ocupações ligadas à
natureza que se organizavam naquela região: mineiros, lenhadores, caçadores,
pastores, camponeses, pescadores, e no chamado vale da cidade jardineiros. Era,
na análise de Peter Hall (2002, p. 166) um esquema de distribuição de trabalho na
região que assumia qualidades propositadamente arcaicas, privilegiando as
ocupações tradicionais em uma sociedade dominada pela atividade industrial e
urbana, reflexo de uma intenção de resgatar a vida urbana do passado. Mais do que
objeto de levantamento, a região era para Geddes a base para a transformação social
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 134
e política. Geddes tratava também da evolução das cidades e da expansão,
agregação e conglomeração das grandes metrópoles (GEDDES, 1994).
As orientações mais claramente transformadoras aventadas por Geddes foram
fruto de seu entendimento do que chamava, em 1900, de era neotécnica
(possibilitada por avanços técnicos na cadeia de produção, em contraste com o início
da era industrial, que denominava era paleotécnica). Condizente com o espírito da
Belle Époque e o otimismo generalizado pela Europa na virada entre os séculos XIX e
XX, Geddes via a possibilidade de utilizar o novo patamar de conhecimento humano
na evolução, e não na dissipação de vidas alheias (GEDDES apud HALL, 2002, p169).
Acreditava demonstrando influência de anarquistas como Kropotkin que através de
um esforço conjunto que partiria de todas as comunidades, cidades e regiões, seria
possível reconstruir uma sociedade melhorada, uma Eutopia.
Em termos práticos, Geddes percebia que as então recentes inovações na
geração de energia permitiriam a descentralização da indústria, tornando
desnecessárias as grandes aglomerações urbanas paleotécnicas. Defendia a
aproximação entre cidade e campo, e uma regulação para que houvesse um
crescimento botânico alternando urbano e campo das cidades dentro da região,
ao contrário da expansão como manchas de gordura que ocorria a partir da ordem
paleotécnica. Dando um passo além do que haviam feito os supracitados precursores
alemães, Geddes procurava espacializar suas idéias, utilizando com freqüência
diagramas e gráficos explicativos de suas propostas. Não obstante isso, e apesar de ser
bastante extensa, sua obra carece de um nível de coerência que a tornasse mais
diretamente aplicável. Suas idéias foram, no entanto, a base para a ação de
planejamento regional que surgiria nos Estados Unidos, sob a orientão de Lewis
Mumford e a Regional Planning Association of America (HALL, 2002).
5.1. Planejamento Regional: primeiras iniciativas
A Cidade-Jardim, conceito desenvolvido pelo britânico Ebenezer Howard (1850-
1928) nas duas últimas décadas do século XIX, preconizava a construção de cidades
planejadas, de crescimento limitado a um determinado nível populacional, interligadas
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 135
entre si e a uma cidade central, cercadas por faixas de jardins e separadas por áreas
campestres (HOWARD, 1946). Esse modelo, ainda que submetido a consideráveis
transformações teóricas e espaciais, veio a ser experimentado em diversas partes do
mundo nas décadas seguintes. Mais prevalecente do que sua aplicação, no entanto, foi
sua influência sobre gerações de planejadores urbanos, desde desenhistas de bairros-
jardim dos anos 1920 a proponentes do new urbanism dos 1980.
O americano Lewis Mumford (1895-1990), historiador e estudioso de cidades,
já estava familiarizado com o tópico das cidades-jardim quando, no início da década de
1920, reuniu-se com outros interessados por planejamento urbano no sentido de criar
a Regional Planning Association of America (RPAA), organização de membros pouco
numerosos, com sede principal em Nova York e dedicada a desenvolver e aplicar
modelos para planejamento espacial em escala regional condizente com a realidade
norte-americana. Tendo se empenhado desde 1923 em obter uma aproximação em
relação aos planejadores britânicos, dentre os quais tinha destaque o professor Patrick
Geddes, a RPAA pôde expor publicamente em número especial da revista Survey de
1925 suas idéias sobre o Planejamento Regional. Nesse manifesto da Associação
ressoavam tanto o interesse de Mumford pelas cidades-jardim quanto a priorização
dos levantamentos regionais e a descentralização industrial advindos do discurso de
Geddes.
A RPAA via o automóvel como a tecnologia-chave que permitiria a dispersão
das indústrias e da população, e defendia um planejamento nacional para o
posicionamento racionalizado de indústrias, que deveriam situar-se em posições de
mais fácil acesso às matérias primas e mercados consumidores, tornando o transporte
mais eficiente. O economista da RPAA Stuart Chase avaliava que cada região
delimitada com base em entidades geográficas naturais deveria ser tão auto-
suficiente quanto possível, havendo apenas o nimo indispensável de trocas inter-
regionais, conservando-se assim tempo, energia e dinheiro. Ao desmantelarem-se
dessa forma os grandes pólos industriais, deveria arrefecer-se a pressão de
crescimento dos centros urbanos. Como demonstra Peter Hall (2002), o objetivo do
planejamento regional, para a RPAA, não estava em melhorar de forma direta as
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 136
condições de vida nas grandes cidades, mas sim criar novos centros devidamente
equipados para receber e acomodar o excedente populacional, evitando os males
decorrentes da superpopulação urbana.
Essa vertente norte-americana do planejamento regional, para a formação da
qual o manifesto da RPAA na Survey foi a principal base, exibia em seu discurso a
preocupação de nas palavras de Mumford pensar o povo, a indústria e a terra
como uma única unidade (MUMFORD apud HALL, 2002, p. 177), integrando a
melhoria da qualidade de vida através dos elementos neotécnicos com uma política de
conservação da natureza e cultivo de florestas; conciliando o ambiente primevo da
América do norte e as cidades modernas, interligadas por um sistema de autovias e
uma rede de estradas vicinais (HALL, 2002, p. 180).
Apesar de bem fundamentada e debatida, a filosofia da RPAA tinha como
obstáculo principal para a implementação a sua própria escala, de caráter
profundamente transformador. Essa dificuldade ficou evidente na disputa que se
organizou entre essa organização e o planejador britânico Thomas Adams (1871-1940),
nomeado em 1923 diretor de uma comissão que deveria estudar uma intervenção a
nível regional na cidade de Nova York e arredores. Adams tinha uma visão pragmática
do planejamento, dando mais importância à construção de planos concretos de
gerenciamento e ajuste das áreas existentes, diretamente aplicáveis à realidade, do
que a teorizações mais amplas que necessitassem de recursos que dificilmente
estariam disponíveis. Essa diferença criou atritos entre a equipe de Adams e a de
Mumford, que propôs um plano alternativo seguindo os preceitos da RPAA; de fato, o
plano de Adams foi adotado e veio à fruição com resultados positivos, enquanto o de
Mumford, dependente de forte atuação estatal para a criação de novas cidades, foi
descartado e nunca realizado.
Mesmo durante o período do New Deal (1933-1943), quando o governo
federal dos Estados Unidos adotou posições similares às da RPAA em relação à
ocupação da terra e aceitou o planejamento regional como uma necessidade, os
planos da Associação não foram concretizados, tendo como única exceção (e ainda
assim parcialmente) a experiência realizada no vale do Tennessee. Região delimitada
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 137
por uma bacia hidrográfica e caracterizada como uma das mais pobres dos Estados
Unidos após a crise de 1929, esse vale recebeu um plano que tinha como elementos
centrais grandes barragens, em torno das quais se organizaram programas agrícolas e
uma estrutura de geração energética. A população seria distribuída em pequenas
cidades, ou agrovilas, administradas em regime comunitário, com atenção especial
aos serviços de saúde, educação e instrução profissional. Os programas de infra-
estrutura, em particular as barragens, realizados pela Tennessee Valley Authority (TVA)
foram implementados com sucesso, enquanto que os resultados do planejamento para
as cidades ficaram restritos a uma pequena agrovila experimental, ainda assim não
sendo completamente realizados e descaracterizados pelo tempo (HALL, 2002, p.191).
Ao longo do século XX a TVA assumiu, basicamente, um caráter de empresa geradora
de eletricidade, função que cumpre na atualidade.
Os esforços da RPAA e mesmo o apoio do presidente Franklin Delano Roosevelt
não foram, ainda assim, suficientes para impulsionar o planejamento regional à
aplicação em grande escala nos Estados Unidos. Os primeiros resultados significativos
do planejamento espacial a nível regional vieram, por fim, em terras inglesas. O
próprio Thomas Adams, que fizera o plano pragmático para Nova York, introduziu
com sua equipe diversas idéias do planejamento americano em oito planos regionais
para a Inglaterra, entre 1924 e 1932. Outros quatro planos ficaram a cargo da equipe
de Patrick Abercrombie (1879-1957), com destaque para o plano para a região da
Grande Londres, cujo desenho definitivo foi concluído em 1944. Determinando a
criação de comunidades celulares separadas por vastas áreas livres e terras
cultiváveis ao redor do centro urbano londrino, foi o primeiro grande plano regional a
verdadeiramente trazer à prática as principais propostas sugeridas por Geddes e
desenvolvidas pela RPAA, atendendo ao objetivo de descentralizar a população de
uma grande metrópole e promover um certo nível de integração entre cidade e
natureza (HALL, 2002).
O planejamento para o gerenciamento da relação cidade/região, que tomara
forma na Inglaterra com raízes filosóficas alemãs e francesas, e se enriquecera com a
discussão nos Estados Unidos da América, completava assim um círculo com essa
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 138
intervenção sobre a mesma metrópole que inspirara em grande parte o discurso de
Simmel, Marx e Engels.
Tendo sido o planejamento regional em grande escala definitivamente
transformado em realidade, a organização de seus conceitos e sua propagação
mundial teve como grande marco a Carta do Planejamento Territorial, redigida em
1952 em La Tourette, França. A relação entre aglomerações urbanas e rurais havia
sido reconhecida como objeto do urbanismo no Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna (CIAM) de 1928, e a Carta de Atenas, documento seminal do
urbanismo moderno editado no CIAM de 1933 situava a cidade como parte de um
conjunto econômico, social e político, definido pela região. O que o Grupo Economia
e Humanismo fez em La Tourette foi dar um passo adiante e procurar sistematizar as
idéias existentes, delineando as fases de ação necessárias para que o planejamento
territorial atendesse ao que definiam como suas funções primárias: a organização
racional do espaço, a implantação de equipamentos, a valorização da terra, e o
desenvolvimento humano da população.
É possível perceber que, se por um lado a filosofia de La Tourette remetia à de
Geddes, frisando a necessidade de um levantamento da vocação econômica do
território determinada pelo potencial natural e humano da região antes de iniciar-
se o planejamento, por outro ela representava uma nova tendência ao sugerir que
eram essas características econômicas e humanas, mais do que a geografia, que teriam
maior importância na delimitação da área de intervenção. Partindo assim do território,
definindo e planejando cada uma de suas regiões, as relações campo-cidade e a
interconexão entre cidades e chegando ao planejamento urbano de cada uma delas, a
Carta de La Tourette alargou o campo de atuação do planejamento (BIRKHOLS, 1983).
Durante as décadas de 1950 e 1960, o planejamento ganhou reconhecimento
nos países industrializados como uma ferramenta pra lidar com problemas causados
por desequilíbrios regionais, como a concentração urbana, o desemprego rural e a
estagnação econômica de áreas desenvolvidas. Décadas de discussões teóricas e
experiência prática permitiram a formulação de diversos de instrumentos políticos,
econômicos e legais adotados para responder a essas necessidades na Europa e
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 139
Estados Unidos. O Brasil e outros países em desenvolvimento, por sua vez,
enfrentavam alguns problemas semelhantes, mas divergiam em muitos aspectos da
realidade das grandes potências mundiais. Por vezes tendo que enfrentar dificuldades
financeiras e turbulências políticas, esses países precisavam desenvolver vastas áreas
com recursos naturais inexplorados e criar a base para economias regionais
diversificadas (FERNANDES e MEDEIROS, 1978), e para isso precisariam utilizar a
experiência internacional para desenvolver suas próprias soluções.
A contínua consolidação teórica do planejamento regional teve reflexo na
América Latina em 1958, em Bogotá, quando foi redigida durante um Seminário de
Técnicos e Funcionários em Planejamento Urbano a chamada Carta dos Andes. O
documento chamou a atenção para as particularidades das cidades latino-americanas,
particularmente o crescimento urbano desordenado, problemas habitacionais,
especulação imobiliária, desigualdade social e superpopulação nas grandes cidades. As
orientações da carta envolveram a regulamentação fundiária urbana, em especial no
combate ao aparecimento e crescimento de favelas, a organização de serviços públicos
básicos e a limitação das áreas urbanizáveis por zoneamento de uso da terra na escala
urbana e regional. Em todas as etapas, foi destacada a importância da intervenção do
Estado, atuando no planejamento territorial, provendo de recursos e administrando as
ações (BIRKHOLS, 1983). No mesmo período em que ocorria o Seminário, eram dados
no Brasil passos definitivos para um planejamento em escala nacional, sob a égide do
governo federal desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek.
5.2. Planejamento Regional no Brasil: economia e desenvolvimento
O Estado brasileiro adotou, durante o século XIX, algumas ações que podem ser
consideradas como passos em direção a um planejamento regional em território
nacional
52
. Além de intervenções no sistema financeiro, equilibrando tarifas de
importação e oferecendo empréstimos a indústrias do país, a atitude mais destacada
52
Não se devem negligenciar, enquanto propostas de ocupação do espaço, iniciativas tomadas durante
o domínio português sobre o país, como o programa de novas vilas para o Brasil-Colônia, adotado
durante o período da administração Pombalina, no século XVIII (NELSON, 1997). Toma-se, no entanto, o
final do século XIX como ponto de partida para a evolução de um Planejamento Regional moderno,
como referenciado ao longo deste capítulo.
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 140
do governo foi o desenvolvimento de planos para a exploração do sistema de viação
nacional ferroviário e fluvial , principalmente a partir de um decreto específico, de
junho de 1890. A participação estatal no sistema viário se incrementaria ainda mais a
partir de 1901, quando se iniciou um processo de nacionalização de ferrovias. As ações
de combate às secas, que ganharam importância a partir de 1877, foram outro sinal da
disposição do Estado de intervir sobre a economia e a estrutura produtiva do país. De
modo geral, no entanto, a política do laissez-faire, que preconizava a mínima
intervenção do Estado, predominou até a revolução de 1930 (MENDES, 1978).
O final da primeira república, em 1930, somou-se à crise decorrente da
depressão econômica mundial e à mudança do modelo de acumulação capitalista do
Brasil, de agrário-exportador para urbano-industrial, servindo como divisor de águas
para a transformação das políticas de intervenção do Estado. Ao longo dos anos 1930,
instituições ministérios, comissões, companhias, etc. foram criados para estender a
capacidade interventiva estatal; através dessa estrutura, planos isolados, dedicados a
aspectos específicos da economia de certas áreas do país foram desenvolvidos. No
âmbito legal, avanços ocorreram quando artigos das constituições de 1934 e 1937
deram ao Estado maior controle sobre os recursos minerais e hídricos do país, em um
surto modernizante no Estado brasileiro (MORAES, 2005).
Em 1939, o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa
Nacional, primeiro plano quinquenal" do Estado Novo brasileiro, determinou a
industrialização como objetivo principal a ser buscado pela administração e forças
produtivas do país. Nesse momento, um viés econômico de planejamento assumia
posição de destaque nas discussões, fato que foi reforçado no I Congresso Brasileiro de
Economia, realizado em 1943. Durante o congresso, que contou com a participação de
representantes de diversos setores da estrutura administrativa e produtiva brasileira,
foi sugerida uma participação ainda maior do Estado na dinâmica industrial,
participando ativamente da organização das indústrias básicas e atuando no controle
da oferta de produtos aos consumidores. (MENDES, 1978). A participação do Brasil na
Segunda Guerra Mundial, por sua vez, tornou necessária a atuação direta do Estado na
administração da capacidade industrial do país, dada a impossibilidade da iniciativa
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 141
privada suprir todas as exigências de capital, tecnologia, know-how, capacidade de
organização, liderança, etc (IANNI, 1977, p.55).
O período imediatamente posterior à Segunda Guerra trouxe um aumento da
influência americana através de iniciativas como a Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos, ou Missão Abbink de cooperação técnica para estudos da economia
brasileira, instituída em 1948 e uma diminuição do intervencionismo estatal no
Brasil. Planos isolados continuaram surgindo, como no caso do Plano de Recuperação
Econômica e Fomento da Produção, concebido para o Estado de Minas Gerais, em
1947. É importante notar que, apesar do caráter primariamente econômico denotado
pela sua própria denominação, foi um plano elaborado não por economistas, mas por
engenheiros, típico de uma fase de planos sem planejamento’” (FERNANDES e
MEDEIROS, 1978, p. 22). Em 1948 foi criada a Comissão do Vale do São Francisco
(CVSF), cujas atribuições incluíam a regulamentação do rio, o controle das enchentes,
o uso da terra, a irrigação, a produção de energia elétrica, a melhoria dos sistemas de
transporte fluvial e rodoviário e das comunicações além de projetos de natureza
social (MENDES, 1978, p. 126).
A partir de 1951, a relativa liberalização que ocorrera no pós-guerra se
retraiu, e o governo voltou a tomar ações mais firmes para guiar o país rumo à
industrialização, lançando nesse mesmo ano um novo plano qüinqüenal, o Plano
Nacional de Reaparelhamento Econômico. No ano seguinte, foram fundados o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e o Banco do Nordeste do Brasil
(BNB). Em 1953, foi criada a Petrobrás, com o objetivo de manter o controle estatal
sobre a exploração do petróleo no país; dissolveu-se a Missão Abbink, e iniciou-se uma
cooperação entre o BNDE e a Comissão de Estudos para a América Latina (CEPAL)
essa última fazendo parte da Organização das Nações Unidas, e não conectada
diretamente ao governo dos Estados Unidos, como era a Missão Abbink; foi também
criada uma superintendência responsável pela administração do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia. Estava, enfim, sendo posta em funcionamento a estrutura
necessária para um sistema de planejamento regional permanente (MENDES, 1978).
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 142
O desenvolvimento foi tema principal do governo de Juscelino Kubitschek
iniciado em 1956; desenvolvimento que se esperava alcançar predominantemente
através da industrialização do país. Neste mesmo ano, foi lançado o Plano de Metas,
um plano nacional de desenvolvimento de grande porte, que utilizava como
instrumento iniciativas e intervenções primariamente econômicas, com o objetivo de
criar uma estrutura industrial integrada no país. Pragmático e imediatista (como
exibido no próprio lema que o representava: Cinquenta anos em cinco), a
implementação de tal plano viria a aumentar ainda mais os desequilíbrios regionais e
disparidades sociais, favorecendo a concentração de renda e de industrialização. O
mesmo governo iria, no entanto, tomar uma iniciativa objetivando reduzir esse
desequilíbrio, ao criar a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE),
em 1959, órgão que seria de vital importância na história do planejamento regional no
Brasil (COHN, 1976).
5.3. Planejamento no Nordeste: política e economia
Como visto no item 3.5 deste trabalho, a definição do que hoje se chama
oficialmente de região Nordeste, entidade política bem definida e demarcada, não
existia até finais dos anos 1930, surgindo a partir de movimentos culturais e políticos
ao longo das primeiras décadas do século XX. Mesmo considerando-se as províncias,
posteriormente estados, que formam o núcleo do que se chamava de Nordeste
Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba , nota-se que existia uma sensível
diferença entre duas regiões nele contidas: o Nordeste litorâneo, ucareiro; e o
Nordeste do interior, de produção pecuária, e posteriormente algodoeira, área de
clima semi-árido ocasionalmente afetada pelas secas. Uma avaliação com viés
econômico dessa realidade (OLIVEIRA, 1977) confirma essa divisão de regiões
econômicas, caracterizadas por diferentes modos de reprodução do capital e
estruturas produtivas, que por sua vez se opunham ao Sul, de produção cafeeira, e
posteriormente industrial. A atividade pecuária do interior desenvolveu-se
tradicionalmente de forma secundária à produção do litoral, organizada a partir dos
latifúndios açucareiros.
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 143
A estrutura econômica simples e pouco estratificada do interior pecuarista
seria modificada com a expansão da cultura algodoeira a partir de meados do século
XIX, em um sistema dedicado inteiramente a atender à dinâmica do mercado
internacional. A despeito de percalços causados tanto pelas mudanças no mercado
quanto pelas variações climáticas, a cotonicultura expandiu-se e tomou o lugar do
antigo sistema de produção pecuária, criando na região uma elite agrária que
concentraria o poder econômico e político local nas décadas que se seguiram.
Quando, a partir das discussões iniciadas em 1877, o Estado voltou a sua
atenção para a situação das secas nas províncias do norte, a influência das
oligarquias que se formaram no interior algodoeiro se fez sentir. Se, ao demonstrar
uma disposição a intervir, as obras contra as secas podem ser consideradas as
primeiras manifestações do planejamento da atividade governamental no sentido de
fortalecer a economia do Nordeste, seus reais efeitos nesse sentido são muitas vezes
diminuídos ou descartados, devido ao controle que as elites locais exerciam sobre a
destinação das verbas de socorro e obras hidráulicas (AVELAR JR, 1994). Mesmo após a
criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas, em 1909, posteriormente Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas (1919), com a finalidade de organizar os
investimentos no combate às secas, as obras de emergência continuaram sendo
utilizadas de forma a fortalecer o latifúndio e a oligarquia, ocupando empregados dos
latifúndios, e investindo nas terras privadas dos grandes produtores. Era uma situação
que contrariava a própria finalidade com que se criaram esses órgãos, e motivava
protestos de funcionários da própria Inspetoria, que, críticos da estrutura cio-
econômica da região, esperavam vê-la alterada. (OLIVEIRA, 1977).
A agricultura no Nordeste passou por um período de franca decadência nas
primeiras décadas do século XX, principalmente após sofrer dois grandes reveses:
fortes geadas no Sul, em 1918, fizeram com que produtores daquela região passassem
a diversificar a sua produção, plantando cana e algodão, e competindo assim com os
agricultores nordestinos; e em 1929, como resultado da crise mundial, grandes
quantidades de capitais do Sul se transferiram da produção de café para a de algodão,
acirrando essa competição. As indústrias têxteis e usinas açucareiras do Nordeste
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 144
nesse momento não podiam competir em produtividade com aquelas baseadas no
Centro-Sul, liderado por São Paulo. As transformações econômicas ocorridas após a
revolução de 1930, por sua vez, resultaram na nacionalização e centralização do capital
no Centro-Sul urbano-industrial, deixando o Nordeste em uma posição ainda mais
periférica no sistema produtivo e comercial nacional (OLIVEIRA, 1977).
A resposta das elites nordestinas tanto as açucareiro-têxteis do litoral quanto
as algodoeiro-pecuárias do interior foi unir-se em esforços políticos para, utilizando-
se da seca como justificativa e consolidando a idéia de um Nordeste, cujo
desenvolvimento seria um problema nacional, exigir do governo central o crescente
envio de verbas para a região contribuíam assim para o crescimento da chamada a
chamada indústria da seca.
Os esforços políticos da bancada nordestina criaram um virtual monopólio
dentro do Ministério de Viações e Obras Públicas (AVELAR JR, 1994); durante a década
de 1930, houve um aumento quantitativo na construção de açudes e rodovias, e
esforços foram tomados para que se delimitasse oficialmente um polígono das secas
área destinada a receber obras e verbas de combate às secas , ponto central de
mais disputas políticas pela inclusão desta ou daquela área sob controle oligárquico.
A transformação da IFOCS em Departamento Nacional de Obras Contra as
Secas (DNOCS), em 1945, pouco fez para diminuir a influência das elites sobre a ação
do órgão. Francisco de Oliveira (1977), em sua avaliação sobre a ação do DNOCS no
período, relata um relativo sucesso na construção de estradas de rodagem, mas
denuncia um fracasso nas políticas de irrigação e a restrita utilidade de açudes e poços
situados em terras privadas. Para esse autor, o Estado mostrava-se imobilista no que
dizia respeito às tentativas de equilibrar as relações econômicas regionais, então
fortemente dominadas pelo Centro-Sul.
Amélia Cohn (1976) defende que se, por um lado, a imobilidade do Estado
era incentivo à manutenção do status quo, foi durante essa segunda metade da
década de 1940 que principiaram a surgir forças populares organizadas no Nordeste,
que questionavam a hegemonia burguesa e tornaram-se personagem importante no
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 145
jogo da ação política regional, ora independentes, ora aliados à oligarquia agrária ou às
elites industriais, sempre buscando alcançar seus objetivos (COHN, 1976).
Os eventos mais significativos deste envolvimento político popular foram
relacionados à atuação das ligas camponesas. Ativas desde 1955 em Pernambuco
onde foram encabeçadas pelo deputado Francisco Julião, questionavam a ordem
vigente e organizavam manifestações, ganhando força política e suscitando temor
entre as elites nacionais. As mensagens oficiais do governo federal de então
demonstravam claramente que as tensões sociais existentes no Nordeste eram
percebidas pelo Estado como um risco para a segurança e integridade nacional.
Representação essa que era, de fato, resultado da superestimação do potencial
revolucionário das ligas pelos proprietários de terra, ainda influentes na política; as
ligas, agindo juntamente com membros da igreja que acompanhavam o movimento
camponês, tinham na verdade preocupações muito mais práticas do que ideológicas, e
estavam preocupadas principalmente com a melhoria das condições de vida e trabalho
no campo (COHN, 1976).
As transformações ocorridas no Nordeste durante a década de 1950 não se
limitaram ao campo político. Principalmente a partir da fundação do Banco do
Nordeste do Brasil, começou a tomar forma uma nova era da atuação do Estado no
Nordeste: o impacto atribuído aos efeitos da seca sobre a vida na região diminuiu, à
medida em que os problemas do Nordeste passaram a ser pensados mais como
econômicos do que como hidráulicos. Em 1953, a convite do BNDE, o economista
alemão Hans Wolfgang Singer redigiu um relatório de conteúdo estritamente técnico
diagnosticando as deficiências e desequilíbrios do Nordeste. Em 1956, o governo
Kubitschek criou o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN),
dedicado a fazer um estudo exaustivo da região e das atividades e dispêndios federais
efetuados (COHN, 1976, p. 63). À frente do GTDN, o economista Celso Furtado
criticou a atuação do DNOCS até então, chamando a atenção para o desequilíbrio
entre o aumento populacional sem o equivalente ajuste de produção alimentícia, que
tendia a agravar o problema das secas. Furtado afirmava também que, pela
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 146
inadequação da atuação do Estado, a seca não era então um problema social menos
grave do que quando se iniciara o combate a seus efeitos (COHN, 1976).
Quando, no ano de 1958, uma nova seca assolou o Nordeste, as obras do
DNOCS foram mais uma vez associadas aos interesses oligárquicos e fins eleitoreiros. O
resultado das eleições daquele ano, no entanto, influenciado pela forte participação
dos movimentos populares, significou a queda de diversas oligarquias nordestinas
(COHN, 1976). No início de 1959, o GTDN foi transformado em Conselho de
Desenvolvimento do Nordeste (CODENO), embrião do que seria a Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), oficializada no final do mesmo ano, sempre
sob a direção de Celso Furtado. A SUDENE deveria ser uma ferramenta de aceleração
da integração do nordeste à economia nacional o que, por conseguinte, significava
uma extensão do poder do Centro-Sul industrial sobre a região. Para Francisco de
Oliveira (1977), ao preconizar o desenvolvimento do Nordeste, o órgão favorecia uma
expansão do capitalismo nacional, que ocorreria de forma planejada, com a
participação do Estado. As transformações assim suscitadas não buscavam atender às
necessidades de um mercado local, mas à realização de um objetivo de dominação
nacional, mantendo sob controle tanto as oligarquias quanto os movimentos
populares (OLIVEIRA, 1977).
A implantação da SUDENE, exemplo ilustrador da nova prática de planejamento
regional amparada pelo Estado (MORAES, 2005) não ocorreu sem atritos e disputas; a
natureza do programa técnico da Superintendência suscitou conflitos de interesses e
pressões políticas. Amélia Cohn (1976) explica a situação: por um lado, as oligarquias
agrárias não concordavam que o órgão passasse a ter controle sobre o DNOCS, sobre o
qual ainda tinham importante influência; por outro, engenheiros do próprio DNOCS
criticavam o quadro de funcionários da SUDENE, formado em sua maioria por jovens
economistas, que os primeiros não consideravam aptos a determinar os rumos de
ações como as obras contra as secas, pertencentes ao âmbito técnico da engenharia. A
SUDENE teve êxito, apesar disso, em se firmar como o principal órgão planejador da
região, voltado para industrializar o nordeste, assim como modernizar o setor agrícola
5 . E p í l o g o : p l a n e j a m e n t o t e r r i t o r i a l | 147
da região, ao mesmo tempo em que retirava das mãos das oligarquias regionais o
poder político que determinaria essa expansão econômica.
Por sua ampla abrangência, seus detalhados planos técnicos e pela repercussão
de suas ações, a SUDENE é tida como um dos mais amplos programas de
planejamento regional implantados no país (RONCA, 1983, p.177), e muitas vezes
considerada o próprio ponto de partida do planejamento regional no Brasil. Suas
características de órgão de planejamento nacional e organizador da intervenção
estatal e seu enfoque detalhado sobre o caráter econômico do planejamento
53
refletem, de fato, preocupações levantadas pelas Cartas de La Tourette e dos Andes.
Mesmo que, como coloca Francisco de Oliveira (1977), não houvesse uma teoria do
planejamento econômico capitalista no período de existência da IOCS/IFOCS/DNOCS,
não se pode descartar as décadas de desenvolvimento teórico e de propostas que
precederam à criação da SUDENE. Recuando-se até a década de 1940, por exemplo, é
interessante constatar a semelhança de abrangência e objetivos entre a proposta para
a Companhia do Vale do São Francisco e a Tennessee Valley Authority, fundada quinze
anos antes nos Estados Unidos. Eram ambas iniciativas de planejamento econômico e
espacial concentradas em regiões de pouco desenvolvimento econômico delimitadas
pelo vale e adjacências de um grande rio, com potencial agrícola e hidroelétrico.
Semelhança que não é de forma alguma surpreendente, dado o contato existente
entre técnicos brasileiros e americanos.
O fato que este trabalho procurou demonstrar, ainda assim, é que as
intervenções espaciais com o intuito de planejar o território do Nordeste não tiveram
início no período do desenvolvimentismo e de Planejamento Regional economicista,
ou mesmo nos anos 1940 pós-guerra, mas eram um recurso estabelecido no
combate às secas da virada para o século XX. Assim como os diagramas de Geddes e a
RPAA de Mumford foram respostas aos problemas das cidades industriais, os projetos
dos engenheiros brasileiros foram uma ferramenta para a transformação da realidade
das regiões afetadas pela estiagem.
53
Alguns estudos de caráter primariamente espacial continuaram sendo feitos, como os trabalhos de
DAVIDOVICH, ALVES e NATAL; de CORREA et al.; e de GALVÃO et al., publicados pelo BNB em 1977.
C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s | 148
Considerações Finais
As secas foram para o Brasil, muito mais do que um efeito climático adverso, a
raiz de movimentos migratórios, de relações de dominação política e social, de
dinâmicas econômicas e de representações culturais que vieram por definir as
especificidades do Nordeste como região distinta dentro do território nacional. A
construção do conhecimento sobre o que levava à ocorrência das secas e como
enfrentar o problema foi um incentivo à exploração e conhecimento da própria
natureza da região e ao questionamento das estruturas sociais que, descobriu-se,
agravavam e perpetuavam os efeitos do fenômeno.
No centro da produção e da aplicação desses conhecimentos estavam os
engenheiros. Instruídos para tornarem-se técnicos e homens de ciência, tiveram
mesmo assim uma destacada participação na vida política nacional; importaram e
desenvolveram idéias, preocupados permanentemente em manter o Brasil atualizado
com as tendências de modernização internacionais, o que ao mesmo tempo forneceria
a base para o engrandecimento da nação perante o mundo e garantiria a eles
próprios, engenheiros, uma posição de destaque dentro da sociedade nacional,
guiando as transformações e sempre à frente desse movimento. A sua atuação no
combate às secas, nas obras contra as secas é fácil perceber as conotações de
embate presentes nos discursos, nos títulos de livros e artigos e relatórios e mesmo
nos nomes das instituições: IOCS, IFOCS, DNOCS, transformando o contra as secas
em mais que um mote, quase um mantra é uma mostra exemplar da cultura
heróica
54
que marcou gerações de intelectuais nas últimas décadas do século XIX e
primeiras do século XX.
A resposta que esses engenheiros receitaram para a situação do Nordeste, que
o observavam e analisavam utilizando de uma ampla gama de conhecimentos que iam
da geografia à economia passando por todas as especialidades técnicas da construção,
foi muito além da solução hidráulica que lhes é comumente atribuída. Previam, sim,
a construção de poços, obras de irrigação e açudes, mas estavam cientes do impacto
54
Utilizando a expressão de Maria Alice Rezende de Carvalho (2005)
C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s | 149
espacial que tais obras poderiam ter, fixando populações e criando aglomerações
humanas. Demonstrando que não entendiam a seca meramente como falta dágua,
delineavam também projetos de vias de transporte, promovendo sempre a idéia de
um sistema integrado, conectando os centros produtores rurais aos centros
comerciais urbanos e aos grandes centros do país e do mundo, que consumiam os
produtos do interior e para ele exportavam idéias e modernidade. Advogavam
também a educação e qualificação para o trabalho das populações locais. Proposta a
proposta, sugeriam a organização de uma rede urbana planejada para a região.
Pretendiam, com essas iniciativas, transformar o Nordeste em uma região que
poderia contribuir com suas próprias forças para o enriquecimento da nação,
superando os problemas humanitários e econômicos causados pela seca. Ao
pensar em soluções para diminuir as diferenças entre essa região, representada pelo
flagelo natural, o atraso ideológico e o regime oligárquico, e o Centro-Sul, simbolizado
pelo dinamismo e industrialização de São Paulo, os engenheiros estavam sugerindo
ações e objetivos inerentes a uma ão sistematizada sobre o território objetivando
alterá-lo para alcançar fins específicos estavam, pode-se dizer, planejando a região.
A origem desse pensamento espacial não é única: ele se desenvolveu ao longo
das décadas estudadas, de forma paralela ao desenvolvimento dos saberes sobre as
secas, e foi o resultado de constantes discussões internas e da incorporação de idéias
estrangeiras. Se inicialmente a ão britânica na Índia e Egito inspirou a construção de
ferrovias e o socorro em forma de trabalho para os atingidos pela seca, sua influência
foi logo suplantada pela da experiência estadunidense na colonização do oeste dos
Estados Unidos, com suas obras hidráulicas de irrigação e geração de energia, seu
pensamento ambiental de conservação das florestas e o modelo de transportes
rodoviário-automobilístico. O contato com as idéias norte-americanas e européias
ocorria através de bibliografia e revistas importadas, participação em congressos e
viagens de observação realizadas e relatadas pelos engenheiros brasileiros em suas
próprias revistas. O intercâmbio entre técnicos do Brasil e dos Estados Unidos se
tornaria ainda maior mais tarde, após a aproximação entre os dois países durante a
Segunda Guerra Mundial, e culminaria em iniciativas como a Missão Abbink.
C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s | 150
Estaria incorreta, então, a noção de que o planejamento regional teve início
no Brasil na década de 1950, e em especial com a fundação da SUDENE, em 1959?
Seria, na verdade, um tanto inexato classificar as propostas dos engenheiros no
período estudado (1877-1938) como Planejamento Regional, pois elas não seguiam
preceitos disciplinares unificados; não estavam anexadas a um plano unificado maior;
e muitas daquelas que foram realizadas pelo órgão de intervenção estatal responsável
(o IOCS/IFOCS), afetadas pela influência de interesses particulares, não atendiam ao
interesse maior de fortalecer a estrutura econômica e estabilizar as relações campo-
cidade da região como um todo. Se faltavam a essas propostas a unidade, organização
e poder executivo de que a SUDENE pôde desfrutar, elas contavam, no entanto, com
um aspecto de proposição espacial mais desenvolvido: os grandes açudes e as
ferrovias projetados pelos engenheiros eram, como vimos, intervenções
essencialmente espaciais destinadas a alterar a realidade regional, enquanto os
incentivos à industrialização propostos pelos economistas da SUDENE buscavam
alcançar o mesmo resultado através de intervenções primariamente econômicas. As
obras contra as secas foram, assim, planos sem planejamento
55
, que demonstraram
mesmo assim, ao tornarem-se elementos para análise e organização do espaço, um
alto nível de consciência dos engenheiros acerca da situação com que lidavam e do
que deveriam fazer para modificá-la.
Não é apropriado tampouco avaliar essas propostas como sugere Janice
Theodoro Silva (1978) como meros artifícios das elites, que, apresentados e nunca
realizados, procuravam esvaziar o discurso das oposições. Na realidade, apesar de
limitados em sua capacidade de colocar em prática seus planos devido à dependência
de órgãos subordinados aos interesses oligárquicos, os engenheiros, desde o final do
século XIX e até meados do século XX, foram os principais propositores de soluções de
planejamento regional, abarcando tanto aspectos sico-espaciais quanto econômicos,
para o Nordeste brasileiro.
55
Termo usado por Fernandes e Medeiros (1978) para classificar os planos feitos por engenheiros para
Minas Gerais, na década de 40 como visto no capítulo 5 deste trabalho.
C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s | 151
Ademais, se a influência estrangeira esteve realmente difusa, e não se
encontraram ligações diretas entre o Planejamento Regional em desenvolvimento nos
países centrais do capitalismo e o trabalho desenvolvido pelos engenheiros
brasileiros naquela época, controverte-se a tendência de avaliação da produção de
intelectuais da periferia como mimese atrasada, e pode-se encontrar um exemplo de
uma verdadeira modernidade periférica em construção fato que pode ser
explorado em maior profundidade a partir de estudos futuros.
É importante notar que, ao trabalharmos aqui com as propostas de açudagem e
vias de transportes terrestres, deixamos de lado outras modalidades de obras contra
as secas que poderiam ter efeitos espaciais, talvez não com a mesma força
estruturadora, mas mesmo assim consideráveis. Os engenheiros aprofundaram-se no
tema da irrigação, inclusive das leis concernentes à posse e uso das águas e das terras,
propuseram a colonização de vales férteis, e discutiram soluções para o fortalecimento
do tráfego por navegação fluvial e pelos portos marítimos do Nordeste. Ao Rio São
Francisco, em especial, foi atribuída uma importância crescente ao longo desse
período: era visualizado como ponto de destino de quase todas as ferrovias que
cruzavam o sertão, símbolo da integração da região com o centro econômico do país
ao sul; foi alvo de planos de irrigação e posteriormente geração de energia
hidroelétrica; veio posteriormente a ser a peça central da experiência da CVSF, e
atualmente ainda é fonte de controvérsia, com o retorno dos projetos de transposição
de águas para o sertão. O trabalho com esses temas, dada a oportunidade, poderia
trazer novos elementos para a discussão aqui iniciada, consolidando teses ou abrindo
novos vieses de investigação. O alargamento da base documental
56
, da mesma forma,
poderia criar outras perspectivas de estudo: a busca de publicações adicionais, mais
relatórios, ou outras modalidades de registro, traria novos fatos e evidências sobre os
projetos ou as circunstâncias práticas que possibilitaram ou impediram a execução de
obras contra as secas; a extensão do recorte temporal até a criação da SUDENE
elucidaria o desenvolvimento ocorrido na fase de transição para uma idéia diversa de
56
Dado o grande volume de dados, este trabalho não exauriu o material levantado em arquivo. Na
intenção de manter-se a estrutura do trabalho, algumas evidências levantadas e em processo de
análise não foram incluídas na discussão.
C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s | 152
Planejamento Regional; a busca aprofundada pelos vínculos teóricos e práticos dos
engenheiros com as matrizes do pensamento do combate às secas e do planejamento
no exterior poderia responder questões sobre a transferência e adaptação de idéias
estrangeiras pelos técnicos nacionais.
Por enquanto, no entanto, devemos refletir sobre os resultados alcançados
pela pesquisa. Se por um lado as ações dos engenheiros não constituíram-se de fato
como Planejamento Regional, por outro serviram para colocar a dimensão espacial no
cerne da discussão e da ão, possibilitando o posterior desenvolvimento e absorção
de teorias espaciais por categorias como a dos geógrafos cabe notar que os
engenheiros eram, acima de tudo, profissionais práticos, interessados em realizar
concretamente intervenções sobre o espaço, possível razão pela qual não tenham
organizado suas teorias em um corpo disciplinar, esforço esse que ficou a cargo de
outros profissionais e intelectuais.
Quando relacionado ao estado do avanço disciplinar do planejamento regional
ou territorial, o Brasil mostrou um certo atraso em relação aos grandes centros
mundiais, fato compreensível dada a posição periférica que o país ocupava dentro do
desenvolvimento do capitalismo mundial e as diferenças nas formas de produção e
ocupação do espaço verificadas entre os Estados Unidos e o Nordeste brasileiro, por
exemplo. Não surgiu no Brasil, dessa forma, uma organização como a RPAA norte-
americana capaz de sistematizar e publicar os conhecimentos sobre Planejamento
Regional, ou grupos como o de Thomas Adams, capazes de pôr em prática esse
pensamento. Os engenheiros brasileiros, no entanto, como o próprio Adams sugeria,
não se limitaram a teorizar, e fizeram o possível dentro de suas próprias condições
para colocar em prática as propostas que desenvolveram: se não foi possível criar uma
grande malha ferroviária panamericana, trabalharam em prol de vias menores, como a
Estrada de Ferro de Mossoró ao São Francisco; se não puderam atender a todas as
necessidades hidráulicas do sertão, esforçaram-se para garantir condições de construir
grandes açudes públicos e construíram outros menores, mesmo que em terras
privadas, garantindo um nimo de recursos de sobrevivência para a região, questão
que sempre levantou polêmica entre políticos, intelectuais e a população em geral.
C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s | 153
A luta dos engenheiros brasileiros, que assumiram a responsabilidade não
pela compreensão do fenômeno como pela sua solução, resultou, assim, num difuso e
intercambiável conceito de planejamento territorial como combate às secas e combate
às secas como planejamento territorial, rumo a um objetivo definido de desenvolver o
Nordeste em prol da Nação. Foi uma luta que para manter a analogia apresentava
como oponente, a uma primeira vista, a natureza, feroz e indecifrável; mas que
tornou-se cada vez mais um combate contra condições sociais e políticas
incapacitantes. Condições que não foram capazes de impedir os engenheiros de
empreender esforços e transformar ciência, ideologia, discurso, estudo e experiência
em projetos de transformação para o território das secas.
R e f e r ê n c i a s B i b l i o g r á f i c a s | 154
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Artigos, matérias e relatórios diretamente referenciados
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______, Natal, a.14, 1904.
ALMEIDA, Luiz Cantanhede de. O ensino de engenharia e o que o Brasil espera dos seus novos
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Engenharia Technica, Commercial, Industrial e Financeira. Rio de Janeiro: Typographia do
Annuario do Brasil, 1936. Tomo 31, n.03, mar. 1936.
DANTAS, Garibaldi. Pelo Sertão
. A República, Natal, 05 e 09 abr. 1922, n. 76 e 80, p.01.
DNOCS, Arquivo da sede Regional 02, pasta Quixeramobim n.28
GUERRA, Phelippe. Colonos Nacionais. A República. Natal, n.68, p. 01, 24 mar. 1929
ILLUSTRAÇÃO BRASILEIRA. Rio de Janeiro: Commissão Executiva do Centenario da
Independencia, 1922.
REIS, Aarão.
Obras novas contra as sêcas (executadas de 3 de setembro de 1915 a 31 de
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REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA. Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, nov. 1922.
______. Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, ago. 1923.
______. Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, nov. 1924.
______. Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, jan. 1925.
______. Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, jan. 1931.
______. Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, jan. 1934.
______. Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, out. 1936.
REVISTA DE ENGENHARIA. Rio de Janeiro: [s.n.], nov. 1883.
REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA. Rio de Janeiro: typ. de G. Leusinger & Filho, a.03, v.01,
1889.
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______. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, n. 16, 1907.
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______. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, n. 19, 1909.
______. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, n. 22, 1910.
______. Rio de Janeiro: Jornal do Comercio, n. 27, 1925.
______. Rio de Janeiro: Jornal do Comercio, n. 29, 1927.
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REVISTA POLYTHECNICA. São Paulo: Secção de Obras do Estado de São Paulo, número
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Outras revistas e relatórios pesquisados
Revista de Engenharia
(Rio de Janeiro: [s.n.], 1879 a 1891);
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Nacional\ Jornal do Comercio, 1887 a 1944);
Revista Brazil Ferro-Carril (Rio de Janeiro: [s.n.], 1910-1923);
Revista Brasileira de Engenharia (Rio de Janeiro: typ. do Annuario do Brasil, 1920 a 1935);
Revista Polytechnica (São Paulo: Typographia Brazil\ Typographia e Papelaria de Vanorden &
Cia., 1906 a 1935);
Revista de Engenharia do Mackenzie College (São Paulo: [Mackenzie College?], 1918 a 1938)
DNOCS, Arquivo da sede regional 02 (pastas diversas)
BAGGI, Jacome Martius et al.
Estado da Bahia: Parecer apresentado á consideração do senado
pela maioria da commissão incumbida de estudar o melhor plano de viação geral. Salvador:
Imprensa Popular, 1891
COMMISSÃO Central de Socorros aos Indigentes Victimas da Secca. Recife: Typographia
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COUTINHO, J. M. da Silva.
Estrada de Ferro do Recife ao S. Francisco: Estudos definitivos de
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COUTO, Joaquim da Costa.
Analyse do projecto do Açude de Quixa. Rio de Janeiro: Typ. de
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CRANDALL, Roderic.
Geographia, Geologia, Supprimento d'Agua, Transportes e Açudagem
nos estados orientaes do norte do Brazil: Ceará, Rio Grande do Norte, Parahyba. Rio de
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CUNHA, Ernesto Antonio Lassance.
Estudo descriptivo da viação ferrea do Brazil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1909.
ESCOLA Politécnica. Programa de Aulas. Rio de Janeiro: Escola Politécnica, 1879
ESCOLA Politécnica. Programa de Aulas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1897
R e f e r ê n c i a s B i b l i o g r á f i c a s | 163
GABAGLIA, Giacomo Raja. A Questão das Sêccas na Provincia do Ceará. Rio de Janeiro: Typ. do
Correio Mercantil, de M. Barreto, Filhos & Octaviano, 1861
LEÃO, Manoel Joaquim da Silva e MOITINHO, Domingos. Breve noticia sobre a Provincia das
Alagôas e memoria justificativa dos planos organisados pelo enhenheiro Hermillo Alves e
apresentados ao governo imperial para a construcção da Estrada de Ferro Central da mesma
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MEDEIROS, Viriato de. Ponderações sobre a memoria do dr. André Rebouças: A secca nas
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NOVAES, Henrique de. Estudos preliminares para um plano de recuperação do Vale do São
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REBOUÇAS, André.
Programa do Ensino das Cadeiras e aulas da Escola Polytechnica: 1878. Rio
de Janeiro: Escola Polythecnica, 1877.
RELATORIO e contas da subscripção em favor das victimas da Sêcca do Cea. Rio de Janeiro:
Typ. e lith. de Soares & Reis, 1879.
ROHAN, Henrique de Beaurepaire.
Considerações acerca dos melhoramentos de que, em
relação ás seccas são susceptiveis algumas provincias do Norte do Brazil. 2ª. Ed. Rio de
Janeiro: Typographia do Globo, 1877.
WARING, Geraldo A.
Supprimento d'agua no Nordéste do Brasil. Rio de Janeiro: Ministerio da
viação e obras publicas, 1912
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