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Contos de Lima Barreto
Lima Barreto
Três gênios de secretaria
O meu amigo Augusto Machado, de quem acabo de
publicar uma pequena brochura aliteratada Vida e morte
de M. J. Gonzaga de Sá mandou-me algumas notas
herdadas por ele desse seu amigo, que, como se sabe, foi
oficial da Secretaria dos Cultos. Coordenadas por mim,
sem nada pôr de meu, eu as dou aqui, para a meditação
dos leitores:
“ESTAS MINHAS memórias que há dias tento começar, são deveras difíceis de
executar, pois se imaginarem que a minha secretaria é de pequeno pessoal e pouco nela
se passa de notável, bem avaliarão em que apuros me encontro para dar volume às
minhas recordações de velho funcionário. Entretanto, sem recorrer a dificuldade, mas
ladeando-a, irei sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando com a
ordem das coisas e fatos, narrando o que me acudir de importante, à proporção de
escrevê-las. Ponho-me à obra.
Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para
empregado público. Foi a reflexão que fiz, ao me julgar tão em mim, quando, após a posse e o
compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram. Nada
houve que fosse surpresa, nem tive o mínimo acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e
nela me abanquei como se de há muito já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei
nascido para ofício de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua
missão de regular a marcha e a atividade da nação.
Com familiaridade e convicção, manuseava os livros grandes montões de papel
espesso e capas de couro, que estavam destinados a durar tanto quanto as pirâmides do
Egito. Eu sentia muito menos aquele registro de decretos e portarias e eles pareciam
olhar-me respeitosamente e pedir-me sempre a carícia das minhas mãos e a doce
violência da minha escrita.
Puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito
papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das coisas
governamentais.
Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário público. Aquela placidez do ofício, sem
atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela
mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre tudo isso vai muito bem
com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto,
não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente,
sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e
portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto
facultativo, invenção das melhores da nossa República.
De resto, tudo nele é sossego e quietude. O corpo fica em cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não
tem efervescências nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas.
Pensei até em casar, não só para ter uns bate-bocas com a mulher, mas, também, para ficar mais
burro, ter preocupações de “pistolões”, para ser promovido. Não o fiz; e agora, já que não digo a ente
humano, mas ao discreto papel, posso confessar porque. Casar-me no meu nível social, seria abusar-me
com a mulher, pela sua falta de instrução e cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos
figurões, para darem-me cargos, propinas, gratificações, que satisfizessem às exigências da esposa. Não
queria uma nem outra coisa. Houve uma ocasião em que tentei solver a dificuldade, casando-me, ou coisa
que o valha, abaixo da minha situação. É a tal história da criada... Aí foram a minha dignidade pessoal e o
meu cavalheirismo que me impediram.
Não podia, nem devia ocultar a ninguém e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e
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era mãe dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a minha
narração...
Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, não há
novidade de espécie alguma e, já da pena, escreve devagarinho: “Tenho a honra”, etc., etc.; ou,
republicanamente, “Declaro-vos, para os fins convenientes”, etc., etc. Se há mudança, é pequena e o
começo é já bem sabido: “Tenho em vistas”... ou “Na forma do disposto”...
Às vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os
mais difíceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável.
O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas não é dos outros gênios da Secretaria dos
Cultos. Xisto é estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar
da sua pulhice bacharelesca e a sua limitação intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em
todos os atos de sua vida, mesmo como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar;
não bajula, nem recebe gratificações.
Os dois outros, porém, são mais modernizados. Um é “charadista”, o homem que o diretor
consulta, que dá as informações confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses.
Este ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez
amigo e, em pouco, subiu três passos na hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou
extraordinárias. Não é má pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só
amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoções. Há
casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa inferência burocrática, em que o seu amor primitivo
a charadas, ao logogrifo e aos enigmas pitorescos pôs-lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma
necessidade de impor aos outros adivinhação sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do “auxiliar de
gabinete”. É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer coisa;
pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de
Santa Catarina, estudou no Rio qualquer coisa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro
que o levasse maciamente para o fundo da terra, donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse
possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.
Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para
conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer coisa,
solidamente. Quem como ele faz de sua vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um
lugar em uma secretaria qualquer serve. Há os que vêem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a
quintessência da espécie.
Na Secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre “auxiliar de gabinete”, arranjou o sogro dos seus
sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristães,
irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal
eclesiástico.
O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do
estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.
Tinha ele uma filha a casar e o “auxiliar de gabinete”, logo viu no seu casamento com ela, o mais
fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro.
Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o “sogro”, sem escrúpulo algum, fez-se nomear
examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele “o noivo”.
Que se havia de fazer? O rapaz precisava.
O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o
lugar de “auxiliar de gabinete” do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro formula se
despedir do novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro bateu na testa e
gritou:
Quem é aí o doutor Mata-Borrão?
O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum tremor na voz e esperança nos olhos:
Sou eu, excelência.
O senhor fica. O seu “sogro” já me disse que o senhor precisa muito.
É ele assim, no gabinete, entre os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, é de
uma prosápia de Napoleão, de quem se não conhecesse a Josefina.
A todos em que ele vê um concorrente, traiçoeiramente desacredita: é bêbedo,
joga, abandª a mulher, não sabe escrever “comissão”, etc. Adquiriu títulos literários,
publicando a Relação dos Padroeiros das Principais Cidades do Brasil; e sua mulher
quando fala nele, não se esquece de dizer: “Como Rui Barbosa, o Chico ou “Como
Machado de Assis, meu marido só bebe água.” Gênio doméstico e burocrático, Mata-
Borrão, não chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a entrar nem no inferno. A
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vida não é unicamente um caminho para o cemitério; é mais alguma coisa e quem a
enche assim, nem Belzebu o aceita. Seria desmoralizar o seu império; mas a burocracia
quer desses amorfos, pois ela é das criações sociais aquela que mais atrozmente tende a
anular a alma, a inteligência, e os influxos naturais e físicos ao indivíduo. É um
expressivo documento de seleção inversa que caracteriza toda a nossa sociedade
burguesa, permitindo no seu campo especial, com a anulação dos melhores da
inteligência, de saber, de caráter e criação, o triunfo inexplicável de um Mata-Borrão
por aí”.
Pela cópia, conforme.
Brás Cubas, Rio, 10-4-1919.
O único assassinato de Cazuza
HILDEGARDO BRANDÂO, conhecido familiarmente por Cazuza, tinha
chegado aos seus cinqüenta anos e poucos, desesperançado; mas não desesperado.
Depois de violentas crises de desespero, rancor e despeito, diante das injustiças, que
tinha sofrido em todas as coisas nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de
santo e uma calma grave de quem se prepara para a morte.
Tudo tentara e em tudo mais ou menos falhara. Tentara formar-se, foi reprovado;
tentara o funcionalismo, foi sempre preterido por colegas inferiores em tudo a ele,
mesmo no burocracismo; fizera literatura e se, de todo, não falhou, foi devido à audácia
de que se revestiu, audácia de quem “queimou os seus navios”. Assim mesmo, todas as
picuinhas lhe eram feitas. Às vezes, julgavam-no inferior a certo outro, porque não tinha
pasta de marroquim; outras vezes tinham-no por inferior e determinado “antologista”,
porque semelhante autor havia, quando “encostado” ao consulado do Brasil, em Paris,
recebido como presente do rei do Sião, uma bengala de legítimo junco da índia. Por
essas e outras, ele se aborreceu e resolveu retirar-se da liça. Com alguma renda, tendo
uma pequena casa, num subúrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos,
para nunca mais ver o mundo, como o herói de Jules Verne, no seu “Náutilus”.
Comprou os seus últimos livros e nunca mais apareceu na Rua do Ouvidor. Não se
arrependeu nunca de sua independência e da sua honestidade intelectual.
Ao cinqüenta e três anos, não tinha mais um parente próximo junto de si. Vivia,
por assim dizer, só, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos quais ele
sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente.
A sua vida, nos dias de semana, decorria assim: pela manhã, tomava café e ia até
a venda, que supria a sua casa, ler os jornais, sem deixar de servir-se, com moderação,
de alguns cálices de parati, de que infelizmente abusara na mocidade. Voltava para a
casa, almoçava e lia os seus livros, porque acumulara uma pequena biblioteca de mais
de mil volumes. Quando se cansava, dormia. Jantava e, se fazia bom tempo, passeava a
esmo pelos arredores, tão alheio e soturno que não perturbava nem um namoro que
viesse a topar.
Aos domingos, porém, esse seu viver se quebrava. Ele fazia uma visita, uma
única e sempre a mesma. Era também a um desalentado amigo seu. Médico, de real
capacidade, nunca o quiseram reconhecer porque ele escrevia “propositalmente” e não
“propositadamente”, “de súbito” e não “às súbitas”, etc., etc.
Tinham sido colegas de preparatórios e, muito íntimos, dispensavam-se de usar
confidências mútuas. Um entendia o outro, somente pelo olhar.
Pelos domingos, como já foi dito, era costume de Hildegardo ir, logo pela
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manhã, após o café, à casa do amigo, que ficava próximo, ler lá os jornais e tomar parte
no “ajantarado”, da família.
Naquele domingo, o Cazuza, para os íntimos, foi fazer a visita habitual a seu
amigo doutor Ponciano.
Este comprava certos jornais; e Hildegardo, outros. O médico sentava-se a uma
cadeira de balanço; e o seu amigo numa dessas a que chamam de bordo ou de lona. De
permeio, ficava-lhes a secretária. A sala era vasta e clara e toda ela adornada de quadros
anatômicos. Liam e depois conversavam. Assim fizeram, naquele domingo.
Hildegardo disse, ao fim da leitura dos quotidianos:
Não sei como se pode viver no interior do Brasil!
Porque?
Mata-se à toa por dá cá aquela palha. As paixões, mesquinhas paixões
políticas, exaltam os ânimos de tal modo, que uma facção não teme eliminar o
adversário e por meio do assassinato, às vezes o revestindo da forma mais cruel. O
predomínio, a chefia da política local é o único fim visado nesses homicídios, quando
não são a questões de família, de herança, de terras e, às vezes, causas menores. Não
leio os jornais que não me apavore com tais notícias. Não é aqui, nem ali; é em todo o
Brasil, mesmo às portas do Rio de Janeiro. É um horror! Além desses assassinatos,
praticados por capangas que nome horrível! há os praticados pelos policiais e
semelhantes nas pessoas dos adversários dos governos locais, adversários ou tidos como
adversários. Basta um boquejo, para chegar uma escolta, varejar fazendas, talar
plantações, arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que, pelo seu trabalho, devia
merecer mais respeito. Penso, de mim para mim, ao ler tais notícias, que a fortuna dessa
gente que está na câmara, no senado, nos ministérios, até na presidência da república se
alicerça no crime, no assassinato. Que acha você?
Aqui, a diferença não é tão grande para o interior nesse ponto. Já houve quem
dissesse que, quem não mandou um mortal deste para o outro mundo, não faz carreira
na política do Rio de Janeiro.
É verdade; mas, aqui, ao menos, as naturezas delicadas se podem abster de
política; mas, no interior, não. Vêm as relações, os pedidos e você se alista. A estreiteza
do meio impõe isso, esse obséquio a um camarada, favor que parece insignificante. As
coisas vão bem; mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou por aquilo, rompe com o
seu antigo chefe. Você, por lealdade, o segue; e eis você arriscado a levar uma estocada
em uma das virilhas ou a ser assassinado a pauladas como um cão danado. E eu quis ir
viver no interior! De que me livrei, santo Deus!
Eu já tinha dito a você que esse negócio de paz na vida da roça é história.
Quando cliniquei, no interior, já havia observado esse prurido, essa ostentação de
valentia de que os caipiras gostam de fazer e que, as mais das vezes, é causa de
assassinatos estúpidos. Poderia contar a você muitos casos dessa ostentação de
assassinato, que parte da gente da roça, mas não vale a pena. É coisa sem valia e só pode
interessar a especialistas em estudos de criminologia.
Penso observou Hildegardo que esse êxodo da população dos campos para
as cidades, pode ser em parte atribuído à falta de segurança que existe na roça. Um
qualquer cabo de destacamento é um César naquelas paragens que fará então um
delegado ou subdelegado? É um horror!
Os dois calaram-se e, silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa
mesma coisa: em encontrar remédio para um tão deplorável estado de coisas. Mal
acabavam de fumar, Ponciano disse desalentado:
E não há remédio.
Hildegardo secundou-o.
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Não acho nenhum.
Continuaram calados alguns instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e,
dirigindo-se ao amigo, disse:
Deus não me castigue, mas eu temo mais matar do que morrer. Não posso
compreender como esses políticos, que andam por ai, vivam satisfeitos, quando a
estrada de sua ascensão é marcada por cruzes. Se por ventura matasse creia que eu, a
que não tem deixado passar pela cabeça sonhos de Raskólnikoff, sentiria como ele: as
minhas relações com a humanidade seriam de todo outras, daí em diante. Não haveria
castigo que me tirasse semelhante remorso da consciência, fosse de que modo fosse,
perpetrado o assassinato. Que acha você?
Eu também; mas você sabe o que dizem esses políticos que sobem às alturas
com dezenas de assassinatos nas costas?
Não.
Que todos nos matamos.
Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda a serenidade:
Estou de acordo. Já matei também.
O médico espantou-se e exclamou:
Você, Cazuza!
Sim, eu! confirmou Cazuza.
Como? Se você ainda agora mesmo...
Eu conto a coisa a você. Tinha eu sete anos e minha mãe ainda vivia. Você
sabe que, a bem dizer, não conheci minha mãe!
Sei.
Só me lembro dela no caixão quando meu pai, chorando, me carregou para
aspergir água benta sobre o seu cadáver. Durante toda a minha vida, fez muita falta.
Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida,
se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu
caráter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento,
por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém
o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio,
o cansaço da vida e uma certa misantropia.
Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoção muito forte e os
olhos úmidos, cortou-lhe a confissão dolorosa com um apelo alegre:
Vamos, Carleto; conta o assassinato que você perpetrou.
Hildegardo ou Cazuza conteve-se e começou a narrar:
Eu tinha sete anos e minha mãe ainda vivia. Morávamos em Paula Matos...
Nunca mais subi a esse morro, depois da morte de minha mãe...
Conte a história, homem! fez impaciente o doutor Ponciano.
A casa, na frente, não se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à
diferença de nível, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente
tinha que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia,
descendo a escada, distraído, no momento em que punha o pé no chão do quintal, o meu
pé descalço apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando,
soluçando e gritando: “Mamãe, mamãe! Matei, matei.. .“ Os soluços me tomavam a fala
e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando: “O que é, meu filho!
Quem é que você matou?” Afinal, pude dizer: “Matei um pinto, com o pé”.
E contei como o caso se havia passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de
água de flor e mandou-me sentar a um canto: “Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia.”
E eu fiquei muito sossegado a um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua,
pois esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que não é
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da natureza daqueles que nos erguem às altas posições políticas, porque, até hoje, eu...
Dª Margarida, mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a conversa,
avisando-os que o “ajantarado” estava na mesa.
Revista Sousa Cruz, Rio, fevereiro, 1922.
O número da sepultura
QUE PODIA ela dizer, após três meses de casada, sobre o casamento?
Era bom? Era mau?
Não se animava a afirmar nem uma coisa, nem outra. Em essência, “aquilo” lhe
parecia resumir-se em uma simples mudança de casa.
A que deixara não tinha mais nem menos cômodos do que a que viera habitar;
não tinha mais “largueza”; mas a nova possuía um jardinzito minúsculo e uma pia na
sala de jantar.
Era, no fim de contas, a diminuta diferença que existia entre ambas.
Passando da obediência dos pais, para a do marido, o que ela sentia, era o que se
sente quando se muda de habitação.
No começo, há nos que se mudam, agitação, atividade; puxa-se pela idéia, a fim
de adaptar os móveis à casa nova” e, por conseguinte, eles, os seus recentes habitantes
também; isso, porém, dura poucos dias.
No fim de um mês, os móveis já estão definitivamente “ancorados”, nos seus
lugares, e os moradores se esquecem de que residem ali desde poucos dias.
Demais, para que ela não sentisse, profunda modificação, no seu viver, advinda
com o casamento, havia a quase igualdade de gênios e hábitos de seu pai e seu marido.
Tanto um como outro, eram corteses com ela; brandos no tratar, serenos, sem
impropérios, e ambos, também, meticulosos, exatos e metódicos. Não houve, assim,
abalo algum, na sua transplantação de um lar para outro.
Contudo, esperava, no casamento alguma coisa de inédito até ali, na sua
existência de mulher: uma exuberante e contínua satisfação de viver.
Não sentiu, porém, nada disso.
O que houve de particular na sua mudança de estado, foi insuficiente para lhe dar
uma sensação nunca sentida da vida e do mundo. Não percebeu nenhuma novidade
essencial...
Os céus cambiantes, com o rosado e dourado de arrebóis, que o casamento
promete a todos, moços e moças; não os vira ela. O sentimento de inteira liberdade, com
passeios, festas, teatros, visitas tudo que se contém para as mulheres, na idéia de
casamento, durou somente a primeira semana de matrimônio.
Durante ela, ao lado do marido, passeara, visitara, fora a festas, e a teatros; mas
assistira todas essas coisas, sem muito se interessar por elas, sem receber grandes ou
profundas emoções de surpresa, e ter sonhos fora do trivial da nossa mesquinha vida
terrestre. Cansavam-na até!
No começo, sentia alguma alegria e certo contentamento; por fim, porém, veio o
tédio por elas todas, a nostalgia da quietude de sua casa suburbana, onde vivia à négligé
e podia sonhar, sem desconfiar que os outros lhe pudessem descobrir os devaneios
crepusculares de sua pequenina alma de burguesinha, saudosa e enfumaçada.
Não era raro que também ocorresse saudades da casa paterna, provocadas por
aquelas chinfrinadas de teatros ou cinematográficas. Acudia-lhe, com indefinível
sentimento, a lembrança de velhos móveis e outros pertences familiares da sua casa
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paterna, que a tinham visto desde menina. Era uma velha cadeira de balanço de
jacarandá; era uma leiteira de louça, pintada de azul, muito antiga; era o relógio sem
pêndula, octogonal, velho também; e outras bugigangas domésticas que, muito mais
fortemente do que os móveis e utensílios adquiridos recentemente, se haviam gravado
na sua memória.
Seu marido era um rapaz de excelentes qualidades matrimoniais, e não havia, no
nebuloso estado da alma de Zilda, nenhum desgosto dele ou decepção que ele lhe
tivesse causado.
Morigerado, cumpridor exato dos seus deveres, na seção de que era chefe seu
pai, tinha todas as qualidades médias, para ser um bom chefe de família, cumprir o
dever de continuar a espécie e ser um bom diretor de secretaria ou repartição outra, de
banco ou de escritório comercial.
Em compensação, não possuía nenhuma proeminência de inteligência ou de
ação. Era e seria sempre uma boa peça de máquina, bem ajustada, bem polida e que,
lubrificada convenientemente, não diminuiria o rendimento daquela, mas que precisava
sempre do motor da iniciativa estranha, para se pôr em movimento.
Os pais de Zilda tinham aproximado os dois; a avó, a quem a moça estimava
deveras, fizera as insinuações de praxe; e, vendo ela que a coisa era do gosto de todos,
por curiosidade mais do que por amor ou outra coisa parecida, resolveu-se a casar com o
escriturário de seu pai. Casaram-se, viviam muito bem. Entre ambos, não havia a menor
rusga, a menor desinteligência que lhes toldasse a vida matrimonial; mas não existia
também, como era de esperar, uma profunda e constante penetração, de um para o outro
e vice-versa, de desejos, de sentimentos, de dores e alegrias.
Viviam placidamente numa tranqüilidade de lagoa, cercada de altas montanhas,
por entre as quais os ventos fortes não conseguiam penetrar, para encrespar-lhe as águas
imotas.
A beleza do viver daquele novel casal, não era ter conseguido de duas fazer uma
única vontade; estava em que os dois continuassem a ser cada um uma personalidade,
sem que, entanto, encontrassem nunca motivo de conflito, o mais ligeiro que fosse. Uma
vez, porem... Deixemos isso para mais tarde... O gênio e a educação de ambos muito
contribuíam para tal.
O marido, exato burocrata, era cordato, de temperamento calmo, ponderado e
seco que nem uma crise ministerial. A mulher era quase passiva e tendo sido educada na
disciplina ultra-regrada e esmerilhadora de seu pai, velho funcionário, obediente aos
chefes, aos ministros, aos secretários destes e mais bajuladores, às leis e regulamentos,
não tinha assomos nem caprichos, nem fortes vontades. Refugiava-se no sonho e, desde
que não fosse multado, estava por tudo.
Os hábitos do marido eram os mais regulares e executados, sem a mínima
discrepância. Erguia-se do leito muito cedo, quase ao alvorecer, antes mesmo da criada,
a Genoveva, levantar-se da cama. Pondo-se de pé, ele mesmo coava o café e, logo que
estava pronto, tomava uma grande xícara.
Esperando o jornal (só comprava um), ia para o pequeno jardim, varria-o,
amarrava as roseiras e craveiros, nos espeques, em seguida, dava milho às galinhas e
pintos e tratava dos passarinhos.
Chegando o jornal, lia-o meticulosamente, organizando, para uso do dia, as suas
opiniões literárias, científicas, artísticas, sociais e, também, sobre a política
internacional e as guerras que havia pelo mundo.
Quanto à política interna, construía algumas, mas não as manifestava a ninguém,
porque quase sempre eram contra o governo e ele precisava ser promovido.
Às nove e meia, já almoçado e vestido, despedia-se da mulher, com o clássico
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beijo, e lá ia tomar o trem. Assinava o ponto, de acordo com o regulamento, isto é,
nunca depois das dez e meia.
Na repartição, cumpria religiosamente os seus sacratíssimos deveres de
funcionário.
Sempre foi assim; mas, após o casamento, aumentou de zelo, a fim de pôr a
seção do sogro que nem um brinco, em questão de rapidez e presteza no andamento e
informações de papéis.
Andava pelas bancas dos colegas, pelos protocolos, quando o serviço lhe faltava
e se, nessa correição, topava com expediente em atraso, não hesitava: punha-se a
“desunhar”.
Acontecendo-lhe isto, ao sentar-se à mesa, para jantar, já em trajes caseiros,
apressava-se em dizer à mulher:
Arre! Trabalhei hoje, Zilda, que nem o diabo!
Porque?
Ora, porque? Aqueles meus colegas são uma pinóia...
Que houve?
Pois o Pantaleão não está com o protocolo dele, o da Marinha, atrasado de uma
semana? Tive que o pôr em dia...
Papai foi quem te mandou?
Não; mas era meu dever, como genro dele, evitar que a seção que ele dirige,
fosse tachada de relaxada.
Demais não posso ver expediente atrasado...
Então, esse Pantaleão falta muito?
Um horror! Desculpa-se com estar estudando direito. Eu também estudei,
quase sem faltas.
Com semelhantes notícias e outras de mexericos sobre a vida íntima, defeitos
morais e vícios dos colegas, que ele relatava à mulher, Zilda ficou enfronhada no viver
da diretoria em que funcionava seu marido, tanto no aspecto puramente burocrático,
como nos da vida particular e famíliar dos respectivos empregados.
Ela sabia que o Calçoene bebia cachaça; que o Zé Fagundes vivia amancebado
com uma crioula, tendo filhos com ela, um dos quais com concurso e ia ser em breve
colega do marido; que o Feliciano Brites das Novas jogava nos dados todo o dinheiro
que conseguia arranjar; que a mulher do Nepomuceno era amante do General T., com
auxílio do qual ele preteria todos nas promoções, etc., etc.
O marido não conversava com Zilda senão essas coisas da repartição; não tinha
outro assunto para palestrar com a mulher. Com as visitas e raros colegas com quem
discutia, a matéria da conversação eram coisas patrióticas: as forças de terra e mar, as
nossas riquezas naturais, etc.
Para tais argumentos tinha predileção especial e um especial orgulho em
desenvolvê-los com entusiasmo. Tudo o que era brasileiro era primeiro do mundo ou, no
mínimo, da América do Sul. E ai! de quem o contestasse; levava uma sarabanda que
resumia nesta frase clássica:
É por isso que o Brasil não vai para adiante. O brasileiro é o maior inimigo de
sua pátria.
Zilda, pequena burguesa, de reduzida instrução e, como todas as mulheres, de
fraca curiosidade intelectual, quando o ouvia discutir assim com os amigos, enchia-se de
enfado e sono; entretanto, gostava das suas alcovitices sobre os lares dos colegas...
Assim ela ia repassando a sua vida de casada, que já tinha mais de três meses
feitos, na qual, para quebrar-lhe a monotomia e a igualdade, só houvera um
acontecimento que a agitara, a torturara, mas, em compensação, espantara por algumas
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horas o tédio daquele morno e plácido viver. É preciso contá-lo.
Augusto Augusto Serpa de Castro tal era o nome de seu marido tinha um ar
mofino e enfezado; alguma coisa de índio nos cabelos muito negros, corredios e
brilhantes, e na tez acobreada. Seus olhos eram negros e grandes, com muito pouca luz,
mortiços e pobres de expressão, sobretudo de alegria.
A mulher, mais moça do que ele uns cinco ou seis anos, ainda não havia
completado os vinte. Era de uma grande vivacidade de fisionomia, muito móbil e vária,
embora o seu olhar castanho claro tivesse, em geral, uma forte expressão de melancolia
e sonho interior. Miúda de feições, franzina, de boa estatura e formas harmoniosas, tudo
nela era a graça do caniço, a sua esbelteza, que não teme os ventos, mas que se curva à
força deles com mais elegância ainda, para ciciar os queixumes contra o triste fado de
sua fragilidade, esquecendo-se, porém, que é esta que o faz vitorioso.
Após o casamento, vieram residir na Travessa das Saudades, na estação de ***.
É uma pitoresca rua, afastada alguma coisa das linhas da Central, cheia de altos e
baixos, dotada de uma caprichosa desigualdade de nível, tanto no sentido longitudinal
como no transversal.
Povoada de árvores e bambus, de um lado e outro, correndo quase exatamente de
norte para sul, as habitações do lado do nascente, em grande número, somem-se na grota
que ela forma, com o seu desnivelamento; e mais se ocultam debaixo dos arvoredos em
que os cipós se tecem.
Do lado do poente, porém, as casas se alteiam e, por cima das de defronte, olham
em primeira mão a aurora, com os seus inexprimíveis cambiantes de cores e matizes.
Como no fim do mês anterior, naquele outro, o segundo término de mês depois
do seu casamento, o bacharel Augusto, logo que recebeu os vencimentos e conferiu as
contas dos fornecedores, entregou o dinheiro necessário à mulher, para pagá-los, e
também a importância do aluguel da casa.
Zilda apressou-se em fazê-lo ao carniceiro, ao padeiro e ao vendeiro; mas, o
procurador do proprietário da casa em que moravam, demorou-se um pouco. Disso,
avisou o marido, em certa manhã, quando ele lhe dava uma pequena quantia para as
despesas com o quitandeiro e outras miudezas caseiras. Ele deixou o importe do aluguel
com ela.
Havia já quatro dias que ele se havia vencido; entretanto, o preposto do
proprietário não aparecia.
Na manhã desse quarto dia, ela amanheceu alegre e, ao mesmo tempo
apreensiva.
Tinha sonhado; e que sonho!
Sonhou com a avó, a quem amava profundamente e que desejara muito o seu
casamento com Augusto. Morrera ela poucos meses antes de realizar-se o seu enlace
com ele; mas ambos já eram noivos.
Sonhara a moça com o número da sepultura da avó 1724; e ouvira a voz dela,
da sua vovó, que lhe dizia: “Filha, joga neste número!”
O sonho impressionou-a muito; nada, porém, disse ao marido. Saído que ele foi
para a repartição, determinou à criada o que tinha a fazer e procurou afastar da memória
tão estranho sonho.
Não havia, entretanto, meios para conseguir isso. A recordação dele estava
sempre presente ao seu pensamento, apesar de todos os seus esforços em contrário.
A pressão que lhe fazia no cérebro a lembrança do sonho, pedia uma saída, uma
válvula de descarga, pois já excedia a sua força de contensão. Tinha que falar, que
contar, que comunicá-lo a alguém...
Fez confidência do sucedido à Genoveva. A cozinheira pensou um pouco e
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disse:
Nhanhã: eu se fosse a senhora arriscava alguma coisa no “bicho”.
Que “bicho” é?
24 é cabra; mas não deve jogar só por um lado. Deve cercar por todos e fazer
fé na dezena, na centena, até no milhar. Um sonho destes não é por aí coisa à toa.
Você sabe fazer a lista?
Não, senhora. Quando jogo é o seu Manuel do botequim quem faz “ela”; mas a
vizinha, dª Iracema, sabe bem e pode ajudar a senhora.
Chame “ela” e diga que quero lhe falar.
Em breve chegava a vizinha e Zilda contou-lhe o acontecido.
Dª Iracema refletiu um pouco e aconselhou:
Um sonho desses, menina, não se deve desprezar. Eu, se fosse a vizinha,
jogava forte.
Mas, dª Iracema, eu só tenho os oitenta mil-réis para pagar a casa. Como há de
ser?
A vizinha cautelosamente respondeu:
Não lhe dou a tal respeito nenhum conselho. Faça o que disser o seu coração;
mas um sonho desses...
Zilda que era muito mais moça que Iracema, teve respeito pela sua experiência e
sagacidade. Percebeu logo que ela era favorável a que ela jogasse. Isto estava a
quarentona da vizinha, a tal dª Iracema, a dizer-lhe pelos olhos.
Refletiu ainda alguns minutos e, por fim, disse de um só hausto:
Jogo tudo.
E acrescentou:
Vamos fazer a lista não é Dª Iracema?
Como é que a senhora quer?
Não sei bem. A Genoveva é quem sabe.
E gritou, para o interior da casa:
Ó Genoveva! Genoveva! Venha cá, depressa!
o tardou que a cozinheira viesse. Logo que a patroa lhe comunicou o
embaraço, a humilde preta apressou-se em explicar:
Eu disse a nhanhã que cercasse por todos os lados o grupo, jogasse na dezena,
na centena e no milhar.
Zilda perguntou à dª Iracema:
A senhora entende dessas coisas?
Ora! Sei muito bem. Quanto quer jogar?
Tudo! Oitenta mil-réis!
É muito, minha filha. Por aqui não há quem aceite. Só se for no Engenho de
Dentro, na casa do Halavanca, que é forte. Mas quem há de levar o jogo? A senhora tem
alguém?
A Genoveva.
A cozinheira, que ainda estava na sala, de pé, assistindo os preparativos de tão
grande ousadia doméstica, acudiu com pressa:
Não posso ir, nhanhã. Eles me embrulham e, se a senhora ganhar, a mim eles
não pagam. É preciso pessoa de mais respeito.
Dª Iracema, por aí, lembrou:
É possível que o Carlito tenha vindo já de Cascadura, onde foi ver a avó... Vai
ver, Genoveva!
A rapariga foi e voltou em companhia do Carlito, filho de dª Iracema. Era um
rapagão dos seus dezoito anos, espadaúdo e saudável.
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A lista foi feita convenientemente; e o rapaz levou-a ao “banqueiro”.
Passava de uma hora da tarde, mas ainda faltava muito para as duas. Zilda
lembrou-se então do cobrador da casa. Não havia perigo. Se não tinha vindo até ali, não
viria mais.
Dª Iracema foi para a sua casa; Genoveva foi para a cozinha e Zilda foi repousar
daqueles embates morais e alternativas cruciantes, provocados pelo passo arriscado que
dera. Deitou-se já arrependida do que fizera.
Se perdesse, como havia de ser? O marido... sua cólera... as repreensões... Era
uma tonta, uma doida... Quis cochilar um pouco; mas logo que cerrou os olhos, lá viu o
número 1724. Tomava-se então de esperança e sossegava um pouco da sua ânsia
angustiosa.
Passando, assim, da esperança ao desânimo, prelibando do a satisfação de ganhar
e antevendo os desgostos que sofreria, caso perdesse Zilda, chegou até à hora do
resultado, suportando os mais desencontrados estados de espírito e os mais hostis ao seu
sossego. Chegando o tempo de saber “o que dera”, foi até à janela. De onde em onde,
naquela rua esquecida e morta, passava uma pessoa qualquer. Ela tinha desejo de
perguntar ao transeunte o “resultado”; mas ficava possuída de vergonha e continha-se.
Nesse ínterim, surge o Carlito a gritar:
Dª Zilda! Dª Zilda! A senhora ganhou, menos no milhar e na centena.
Não deu um “ai” e ficou desmaiada no sofá da sua modesta sala de visitas.
Voltou em breve a si, graças às esfregações de vinagre de dª Iracema e de
Genoveva. Carlito foi buscar o dinheiro que subia a mais de dois contos de réis.
Recebeu-o e gratificou generosamente o rapaz, a mãe dele e a sua cozinheira, a
Genoveva. Quando Augusto chegou, já estava inteiramente calma. Esperou que ele
mudasse de roupa e viesse à sala de jantar, a fim de dizer-lhe:
Augusto: se eu tivesse jogado o aluguel da casa no “bicho”, você ficava
zangado?
Por certo! Ficaria muito e havia de censurar você com muita veemência, pois
que uma dª de casa não...
Pois, joguei.
Você fez isto, Zilda?
Fiz.
Mas quem virou a cabeça de você para fazer semelhante tolice? Você não sabe
que ainda estamos pagando despesas do nosso casamento?
Acabaremos de pagar agora mesmo.
Como? Você ganhou?
Ganhei. Está aqui o dinheiro.
Tirou do seio o pacote de notas e deu-o ao marido, o que se tornara mudo de
surpresa. Contou as pelegas muito bem, levantou-se e disse com muita sinceridade,
abraçando e beijando a mulher:
Você tem muita sorte. É o meu anjo bom. E todo o resto da tarde, naquela casa,
tudo foi alegria.
Vieram dª Iracema, o marido, o Carlito, as filhas e outros vizinhos.
Houve doces e cervejas. Todos estavam sorridentes, palradores; e o
contentamento geral só não desandou em baile, porque os recém-casados não tinham
piano. Augusto deitou patriotismo
com o marido de Iracema. Entretanto, por causa das
dúvidas, no mês seguinte, quem fez os pagamentos domésticos foi ele próprio, Augusto
em pessoa.
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Revista Sousa Cruz, Rio, maio 1921.
Manel Capineiro
QUEM CONHECE a Estrada Real de Santa Cruz? Pouca gente do Rio de
Janeiro. Nós todos vivemos tão presos à avenida, tão adstritos à Rua do Ouvidor, que
pouco ou nada sabemos desse nosso vasto Rio, a não ser as coisas clássicas da Tijuca,
da Gávea e do Corcovado.
Um nome tão sincero, tão altissonante, batiza, entretanto, uma pobre azinhaga,
aqui mais larga, ali mais estreita, povoada, a espaços, de pobres casas de gente pobre, às
vezes, um chácara mais assim ali, mas tendo ela em todo o seu trajeto até Cascadura e
mesmo além, um forte aspecto de tristeza, de pobreza e mesmo de miséria. Falta-lhe um
debrum de verdura, de árvores, de jardins. O carvoeiro e o lenhador de há muito tiraram
os restos de matas que deviam bordá-la; e, hoje, é com alegria que se vê, de onde em
onde, algumas mangueiras majestosas a quebrar a monotonia, a esterilidade decorativa
de imensos capinzais sem limites.
Essa estrada real, estrada de rei, é atualmente uma estrada de pobres; e as velhas
casas de fazenda, ao alto das meias-laranjas, não escaparam ao retalho para casas de
cômodos.
Eu a vejo todo dia de manhã, ao sair de casa e é minha admiração apreciar a
intensidade de sua vida, a prestança do carvoeiro, em servir a minha vasta cidade.
São carvoeiros com as suas carroças pejadas que passam; são os carros de bois
cheios de capim que vão vencendo os atoleiros e os “caldeirões”; as tropas e essa
espécie de vagabundos rurais que fogem à rua urbana com horror.
Vejo-a no Capão do Bispo, na sua desolação e no seu trabalho; mas vejo também
dali os Órgãos azuis, dos quais toda a hora se espera que ergam aos céus um longo e
acendrado hino de louvor e de glória.
Como se fosse mesmo uma estrada de lugares afastados, ela tem também seus
“pousos”. O trajeto dos capineiros, dos carvoeiros, dos tropeiros é longo e pede
descanso e boas “pingas” pelo caminho.
Ali no “Capão”, há o armazém “Duas Américas” em que os transeuntes param,
conversam e bebem.
Pára ali o “Tutu”, um carvoeiro das bandas de Irajá, mulato quase preto, ativo,
que aceita e endossa letras sem saber ler nem escrever. Ë um espécime do que podemos
dar de trabalho, de iniciativa e de vigor. Não há dia em que ele não desça com a sua
carroça carregada de carvão e não há dia em que ele não volte com ela, carregada de
alfafa, de farelo, de milho, para os seus muares.
Também vem ter ao armazém o Senhor Antônio do Açougue, um ilhéu falador,
bondoso, cuja maior parte da vida se ocupou em ser carniceiro. Lá se encontra também
o “Parafuso”, um preto, domador de cavalos e alveitar estimado. Todos eles discutem,
todos eles comentam a crise, quando não tratam estreitamente dos seus negócios.
Passa pelas portas da venda uma singular rapariga. Ë branca e de boas feições.
Notei-lhe o cuidado em ter sempre um vestido por dia, observando ao mesmo tempo que
eles eram feitos de velhas roupas. Todas as manhãs, ela vai não sei onde e traz
habitualmente na mão direita um bouquet feito de miseráveis flores silvestres.
Perguntei ao dono quem era. Uma vagabunda, disse-me ele.
“Tutu” está sempre ocupado com a moléstia dos seus muares. O “Garoto” está
mancando de uma perna e a “Jupira” puxa de um dos quartos. O “seu” Antônio do
açougue, assim chamado porque já possuiu um muito tempo, conta a sua vida, as suas
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perdas de dinheiro, e o desgosto de não ter mais açougue. Não se conforma
absolutamente com esse negócio de vender leite; o seu destino é talhar carne.
Outro que lá vai é o Manel Capineiro. Mora na redondeza e a sua vida se faz no
capinzal, em cujo seio vive, a vigiá-lo dia e noite dos ladrões, pois os há, mesmo de
feixes de capim. O “Capineiro” colhe o capim à tarde, enche as carroças; e, pela
madrugada, sai com estas a entregá-lo à freguesia. Um companheiro fica na choupana
no meio do vasto capinzal a vigiá-lo, e ele vai carreando uma das carroças, tocando com
o guião de leve os seus dois bois “Estrela” e “Moreno.
Manel os ama tenazmente e evita o mais possível feri-los com a farpa que lhes
dá a direção requerida.
Manel Capineiro é português e não esconde as saudades que tem do seu
Portugal, do seu caldo de unto, das suas festanças aldeãs, das suas lutas a varapau; mas
se conforma com a vida atual e mesmo não se queixa das cobras que abundam no
capinzal.
Ai! As cobras!... Ontem dei com uma, mas matei-a!
Está ai um estrangeiro que não implica com os nossos ofídios o que deve
agradar aos nossos compatriotas, que se indignam com essa implicância.
Ele e os bois vivem em verdadeira comunhão. Os bois são negros, de grandes
chifres, tendo o “Estrela” uma mancha branca na testa, que lhe deu o nome.
Nas horas do ócio, Manel vem à venda conversar, mas logo que olha o relógio e
vê que é hora da ração, abandª tudo e vai ao encontro daquelas suas duas criaturas, que
tão abnegadamente lhe ajudam a viver.
Os seus carrapatos lhe dão cuidado; as suas “manqueiras” também. Não sei bem
a que propósito me disse um dia:
Senhor fulano, se não fosse eles, eu não saberia como iria viver. Eles são o
meu pão.
Imaginem que desastre não foi na sua vida, a perda dos seus dois animais de tiro.
Ela se verificou em condições bem lamentáveis. Manel Capineiro saiu de madrugada,
como de hábito, com o seu carro de capim. Tomou a estrada pra riba, dobrou a Rua José
dos reis e tratou de atravessar a linha da estrada de ferro, na cancela dessa rua.
Fosse a máquina, fosse um descuido do guarda, uma imprudência de Manel, um
camboio, um expresso, implacável como a fatalidade, inflexível, inexorável, veio-lhe
em cima do carro e lhe trucidou os bois. O capineiro, diante dos despojos sangrentos do
“Estrela” e do “Moreno”, diante daquela quase ruína de sua vida, chorou como se
chorasse um filho uma mãe e exclamou cheio de pesar, de saudade, de desespero:
Ai mô gado! Antes fora eu!...
Era Nova, Rio, 21-8-1915.
Milagre do Natal
O BAIRRO DO ANDARAÍ é muito triste e muito úmido. As montanhas que
enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetação
que as devia adornar com mais força em tempos idos. O tom plúmbeo das árvores como
que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.
Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra a
monotomia do quadro e o Sol se espadana mais livremente, obtendo as coisas humanas,
minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que se
percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas
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“vilas” de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela alta
montanha e sua sombria vegetação.
Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de
seção do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na
cimalha este dístico pretensioso: “Vila Sebastiana”. O gosto da fachada, as proporções
da casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um
jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além da
fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a correr todo o prédio.
Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mãos popudas e dedos curtos.
Não largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com
o fito de não lê-los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda. Pesado
e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos
“Minas Gerais” da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda-
chuva de “ouro”. Usava chapéu de côco e cavanhaque.
Morava ali com uma mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.
A mulher, dª Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era
mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão um artificial, um
aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha,
com trancelim de seda. Não nascera com ele, mas era como se tivesse nascido, pois
jamais alguém havia visto dª Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz, fosse
de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar alguém ou alguma coisa com jeito e
perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dª Sebastiana tomava um entono de magistrado
severo.
Era baiana, como o marido, e a única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não
haver aqui bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela
sabia preparar com perfeição, auxiliada pela preta Inácia, que, com eles, viera do
Salvador, quando o marido foi transferido para São Sebastião. Se se oferecia portador,
mandava-os buscar; e, quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca,
esquecia-se de tudo, até que estava muito longe da sua querida cidade de Tomé de
Sousa.
Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que por lá nascera:
cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes,
mais alta que o pai, entestando com a mãe, bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram
os seus olhos de topázio com estilhas negras. Nela, não havia nem invento, nem
novidade como as outras.
Eram estes os habitantes da “Vila Sebastiana”, além de um molecote que nunca
era o mesmo. De dois em dois meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro,
mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.
Em certos domingos, o Sr. Campossolo convidava alguns dos seus subordinados
a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e
sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo
que fosse empregado de fazenda.
Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários
Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na seção. Aquele era
bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o
último chefe do protocolo da sua seção, cargo de extrema responsabilidade, para que
não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua sub-diretoria de relaxada e
desidiosa. Eram eles dois os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos
de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...
Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na
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classe que pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com
outros militares; os médicos com outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar,
portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público
que fosse da sua repartição e até da sua própria seção.
Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares
salientes, face curta, mento largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as
pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a
delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva
faculdade de Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja
uma. Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e, desta repartição, para o
Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz forte, de
ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino, peito pouco
saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.
Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e sem nenhuma
intromissão de políticos na sua nomeação.
Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru, a audácia
deste o superava, não no coração de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta
no casamento da filha. Na mesa, todas as atenções tinha dª Sebastiana pelo hipotético
bacharel:
Porque não advoga? perguntou dª Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar
altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.
Minha senhora, não tenho tempo...
Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria não é Felicianinho?
Campossolo fazia solenemente:
Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.
Simplício, à esquerda de dª Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada
dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira razão estava em não ser a tal
faculdade “reconhecida”, negaceava:
Os colegas podiam reclamar.
Dª Sebastiana acudia com vivacidade:
Qual o que! O senhor reclamava, Senhor Simplício?
Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com
espanto:
O que, dª Sebastiana?
O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir
advogar?
Não.
E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio
de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e dª Sebastiana insistia:
Eu, se fosse o senhor ia advogar.
Não posso. Não é só a repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro
de grandes proporções.
Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; dª Sebastiana levantou mais a
cabeça com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava esse quadro célebre
nas salas burguesas, representando uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendant
com a ceia do Senhor Simplício, dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e
Campossolo perguntou:
Sobre o que trata?
Direito administrativo brasileiro.
Campossolo observou:
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Deve ser uma obra de peso.
Espero.
Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo
isto, o mato-grossense apressou-se:
Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo?
Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:
Quero.
O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:
Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo
português. Há muita gente que pensa que no antigo regímen não havia um Direito
administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa época, no que toca a
Portugal. Vou ver as funções dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de
letra-morta dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do
Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao
influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com d. João VI, se
adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das idéias da
Revolução.
Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: “Quem teria ensinado
isto a ele?”
Guaicuru, porém, continuava:
Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição de alvarás, portarias,
etc. Será uma coisa inédita. Será coisa viva.
Por aí, parou e Campossolo com toda a gravidade, disse:
Vai ser uma obra de peso.
Já tenho editor!
Quem é? perguntou o Simplício.
É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar livros a respeito.
Sei; é a livraria dos advogados, disse Simplício sem querer sorrir.
Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dª Sebastiana.
Queria publicar antes do Natal, porque as promoções serão feitas antes do
Natal, mas...
Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho?
O marido respondeu:
Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei as minhas ao
diretor.
Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.
Essas coisas não se dizem às nossas mulheres; são segredos de Estado,
sentenciou Campossolo.
O jantar foi acabando triste, com essa história de promoções para o Natal.
Dª Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:
Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o
promovido o doutor Fortunato ou... o “Seu” Simplício, e eu estaria prevenida para a
uma “festinha”.
Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café.
Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que
procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde olhar mais
duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado
sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi. O colega Fortunato ficou, mas tudo estava tão
morno e triste que, em breve, se foi também Guaicuru.
No bonde, Simplício pensava unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no
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“Direito” de Guaicuru. Quando pensava nesta, perguntava de si para si: “Quem lhe
ensinou aquilo tudo? Guaicuru é absolutamente ignorante”. Quando pensava naquilo,
implorava: “Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse...”
Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque era muito mais
antigo na classe que Guaicuru. O ministro não atendera a pistolões nem a títulos de
Goiás.
Ninguém foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro,
ficou furioso sem nada dizer.
Dª Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru,
como de hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando dª Sebastiana, com pince-
nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:
Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o “Seu” Simplício.
Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados ainda
teimam.
Ele diz:
Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.
Ela obtempera:
Foi a promoção.
Fosse uma coisa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra
de Guaicuru, porém, é que até hoje não saiu...
Careta, Rio, 24-12-1921.
A Sombra do Romariz
DIZER QUE não trabalho mais à noite, no jornal, não é bem verdade. Licenciei-
me por alguns meses, para lá não ir à noite. Quando há desses turumbambas políticos,
na cidade, fujo do trabalho noturno. E faço semelhante coisa principalmente quando
vejo certos nomes metidos neles.
Quem expunha isto era o tipografo Brandão a seu colega Barbalho que tinha
observado àquele a sua ausência das oficinas do Diário Carioca, naqueles últimos dias.
Brandão continuou:
Quando vejo tais nomes fico cheio de pavor, meu ânimo se estiola, não tenho
coragem para nada, toda a minha personalidade é atingida de seca. Há dias, a mulher me
pediu que fosse reconhecer a firma de um papel necessário a ela, a fim de receber uma
pensão. Fui para a oficina, de manhã, hesitei, tive medo, afinal dei uma gorjeta a um
aprendiz, para ir ao tabelião.
Então, sempre estás trabalhando de dia?
Que fazer? Preciso de algum dinheiro para as despesas inadiáveis; mas, à noite,
nunca.
Porque isto?
É a sombra do Romariz.
Quem é ou quem foi esse Romariz?
Eu te conto. Em 1890, acabava-se de proclamar a República. Isto há trinta
anos. Eu tinha vinte e poucos. De dia, trabalhava na Casa Mont’Alverne; e, a noite,
fazia uns bicos, na Tribuna Liberal. Um jornal apaixonadamente monarquista que
atacava o governo provisório sem peso, nem medida. A bem dizer, não o lia ou mal o
lia, porque, quando deixava a oficina da Tribuna, para pegar o último bonde de Vila
Isabel, onde morava, ele ainda não estava impresso.
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A campanha da Tribuna era superiormente feita e levada com rijeza, no dizer de
todos. Começou-se a falar que iam empastelar a folha. O governo desmentiu,
assinalando que era seu ponto de honra manter a liberdade de pensamento e de
imprensa.
Continuei a trabalhar com mais coragem e sossego. Vi senão quando, aí pelas
oito ou nove horas, entrar pela oficina adentro o aprendiz assustado e avisando cheio de
terror: “Fujam! Fujam! Lá vêm eles!” Perguntado o que havia, contou que descia pela
Rua do Ouvidor um magote de gente, fardados e outros à paisana, a gritar: “Morram os
sebastianistas! Morra a Tribuna Liberal! Viva o Marechal Deodoro!” etc., etc.
À vista da narração do pequeno, todos trataram de fugir. Em nenhuma seção do
jornal ficou viva alma. Redatores, revisores, compositores, impressores todos fugiram.
Só ficou no edifício o Romariz, um pobre revisor que dormia profundamente,
descansando a cabeça sobre os braços cruzados e estes sobre a mesa de trabalho.
Por mais que o sacudissem e o chamassem, não foi possível despertá-lo. O
tempo urgia; e o infeliz revisor lá ficou abandªdo. Ele vivia tresnoitado; trabalhava dia e
noite para manter a mãe e os irmãos. Tinha um pequeno emprego na estrada de ferro,
que mal lhe dava para pagar a casa em subúrbio longínquo; lançara mão do ofício de
revisor de provas, para acrescentar sua renda. Saía tarde do jornal; havia poucos trucks
naquele tempo; e, muitas vezes, só ia em casa para mudar o colarinho, comer um pouco
e voltar à cidade, a fim de assinar o ponto na Central.
Como te disse, foi ele o único que ficou, devido a seu profundo sono,
perfeitamente explicável como tu já viste. Os assaltantes foram entrando, quebrando
balcões, máquinas, derramando as caixas de tipos no chão, enquanto outros subiam ao
primeiro andar cheios de raiva que, neles, nada explicava. Topando com o Romariz
dormindo, nem se deram ao trabalho de despertá-lo. Foram-no desancando de cacete e
de coices de armas na cabeça e ele mesmo sem saber porque. Vi-lhe o cadáver, estava
hediondo; vi-lhe a família, que ficava na maior miséria: vi...
E daí?
Daí é que quando há desses turumbambas políticos, vejo a sombra do Romariz
que me diz: “Não vás trabalhar, à noite”.
És espírita?
Não; mas há muito mistério nesta nossa triste vida terrena.
Careta, Rio, 14-1-1922.
Quase ela deu o “sim” ; mas...
JOÃO CAZU era um moço suburbano, forte e saudável, mas pouco ativo e
amigo do trabalho.
Vivia em casa dos tios, numa estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida,
roupa, calçado e algum dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os
cigarros.
Ele, porém, não os comprava; “filava-os” dos outros. “Refundia” os níqueis que
lhe dava a tia, para flores a dar às namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos vários
“mafuás”, mais ou menos eclesiásticos, que há por aquelas redondezas.
O conhecimento do seu hábito de “filar” cigarros aos camaradas e amigos, estava
tão espalhado que, mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de
saudá-lo, dizia:
Toma lá o cigarro, Cazu.
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Vivia assim muito bem, sem ambições nem tenções. A maior parte do dia,
especialmente a tarde, empregava ele, com outros companheiros, em dar loucos
pontapés numa bola, tendo por arena um terreno baldio das vizinhanças da residência
dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos.
Contudo, ainda não estava satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de
encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse as calças e outras peças do
vestuário, cerzisse as meias, etc., etc.
Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa, adaptável ao seu jeito
descansado.
Tinha visto falar em sujeitos que se casam com moças ricas e não precisam
trabalhar; em outros que esposam professoras e adquirem a meritória profissão de
“maridos da professora”; ele, porém, não aspirava a tanto.
Apesar disso, não desanimou de descobrir uma mulher que lhe servisse
convenientemente.
Continuou a jogar displicentemente, o seu football vagabundo e a viver cheio de
segurança e abundância com os seus tios e padrinhos.
Certo dia, passando pela porteira da casa de uma sua vizinha mais ou menos
conhecida, ela lhe pediu:
“Seu” Cazu, o senhor vai até à estação?
Vou, dª Ermelinda.
Podia me fazer um favor?
Pois não.
É ver se o “Seu” Gustavo da padaria “Rosa de Ouro”, me pode ceder duas
estampilhas de seiscentos réis. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre
coisas do meu montepio, com urgência, precisava muito.
Não há dúvida, minha senhora.
Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: “É um bom partido. Tem montepio, é
viúva; o diabo são os filhos!” dª Ermelinda, à vista da resposta dele, disse:
Está aqui o dinheiro.
Conquanto dissesse várias vezes que não precisava daquilo o dinheiro o
impenitente jogador de football e feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por
causa das dúvidas.
Fez o que tinha a fazer na estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-
las à viúva.
De fato, dª Ermelinda era viúva de um contínuo ou coisa parecida de uma
repartição pública. Viúva e com pouco mais de trinta anos, nada se falava da sua
reputação.
Tinha uma filha e um filho que educava com grande desvelo e muito sacrifício.
Era proprietária do pequeno chalet onde morava, em cujo quintal havia
laranjeiras e algumas outras árvores frutíferas.
Fora o seu falecido marido que o adquirira com o produto de uma “sorte” na
loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara das garras de escrivães, escreventes,
meirinhos, solicitadores e advogados “mambembes”, devia-o à precaução do marido
que comprara a casa, em nome dela.
Assim mesmo, tinha sido preciso a intervenção do seu compadre, o capitão
Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos “águias” começavam a pôr,
para impedir que ela entrasse em plena posse do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu
chalezito humilde.
De volta, Cazu bateu à porta da viúva que trabalhava no interior, com cujo
rendimento ela conseguia aumentar de muito o módico, senão irrisório montepio, de
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modo a conseguir fazer face às despesas mensais com ela e os filhos.
Percebendo a pobre viúva que era o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou:
Entre, “Seu” Cazu.
Estava só; os filhos ainda não tinham vindo do colégio. Cazu entrou.
Após entregar as estampilhas, quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por
Ermelinda nestes termos:
Espere um pouco, “Seu” Cazu. Vamos tomar café.
Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infusão da “preciosa rubiácea”,
como se diz no estilo “valorização”.
A viúva, tomando café, acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o
companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se amável e galante, demorando em
esvaziar a xícara. A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou com
os seus botões: “Está aí um bom partido: casa própria, montepio, renda das costuras; e
além de tudo, há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da
tia...
Essa vaga tenção ganhou mais corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa,
perguntou:
“Seu “ Cazu, se eu lhe disser uma coisa, o senhor fica zangado?
Ora, qual, dª Ermelinda?
Bem. A sua camisa está rasgada no peito. O senhor traz “ela” amanhã, que eu
conserto “ela”.
Cazu respondeu que era preciso lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em
fazer isso também. O player dos pontapés, fingindo relutância no começo, aceitou
afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma “entrada”, para obter uma lavadeira em
condições favoráveis.
Dito e feito: daí em diante, com jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se
fizesse a sua lavadeira bem em conta.
Cazu, após tal conquista, redobrou de atividade no football, abandonou os
biscates e não dava um passo, para obter emprego. Que é que ele queria mais? Tinha
tudo...
Na redondeza, passavam como noivos; mas não eram, nem mesmo namorados
declarados.
Havia entre ambos, unicamente um “namoro de caboclo”, com o que Cazu
ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente.
Um belo dia, após ano e pouco de tal namoro, houve um casamento na casa dos
tios do diligente jogador de football. Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou:
“Porque também eu não me caso? Porque eu não peço Ermelinda em casamento? Ela
aceita, por certo; e eu...”
Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na
terça, cheio de coragem, chegou-se à Ermelinda e pediu-a em casamento.
É grave isto, Cazu. Olhe que sou viúva e com dois filhos!
Tratava “eles” bem; eu juro!
Está bem. Sexta-feira, você vem cedo, para almoçar comigo e eu dou a
resposta.
Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dois estiveram a conversar; ela, com toda
a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade e apreensivo.
Num dado momento, Ermelinda foi até à gaveta de um móvel e tirou de lá um
papel.
Cazu disse ela, tendo o papel na mão você vai à venda e à quitanda e
compra o que está aqui nesta “nota”. É para o almoço.
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Cazu agarrou trêmulo o papelucho e pôs-se a ler o seguinte:
1 quilo de feijão........................................................ 600 rs.
1/2 de farinha............................................................ 200 ”
1/2 de bacalhau..................................................... 1$200 ”
1/2 de batatas............................................................ 360 ”
Cebolas..................................................................... 200 ”
Alhos........................................................................ 100 ”
Azeite....................................................................... 300 ”
Sal............................................................................ 100 ”
Vinagre.................................................................... 200 ”__
3$260 rs.
Quitanda:
Carvão..................................................................... 200 rs.
Couve...................................................................... 200 ”
Salsa........................................................................ 100 ”
Cebolinha................................................................ 100 ”_
Tudo................................ 3$860 rs.
Acabada a leitura, Cazu não se levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a
olhar de um lado a outro, parecia atordoado, estuporado.
Anda Cazu, fez a viúva. Assim, demorando, o almoço fica tarde...
É que...
Que há?
Não tenho dinheiro.
Mas você não quer casar comigo? É mostrar atividade meu filho! Dê os seus
passos... Vá! Um chefe de família não se atrapalha... É agir!
João Cazu, tendo a lista de gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não
mais voltou...
Careta, Rio, 29-1-1921.
Foi buscar lã...
A SUA APARIÇÃO nos lugares do Rio onde se faz reputação, boa ou má, foi
súbita.
Veio do Norte, logo com a carta de bacharel, com solene pasta de couro da
Rússia, fecho e monograma de prata, chapéu-de-sol e bengala de castão de ouro, enfim,
com todos os apetrechos de um grande advogado e de um sábio jurisconsulto. Não se
podia dizer que fosse mulato; mas também não se podia dizer que fosse branco. Era
indeciso. O que havia nele de notável era o seu olhar vulpino, que pedia escuridão para
brilhar com força; mas que, à luz, era esquivo e de mirada erradia.
Aparecia sempre em roda de advogados, mais ou menos célebres, cheio de
morgue, tomando refrescos, chopes, mas pouco se demorando nos botequins e confeita-
rias. Parecia escolher com grande escrúpulo as suas relações. Nunca se o viu com
qualquer tipo aboemiado ou mal vestido. Todos os seus companheiros eram sempre
gente limpa e de vestuário tratado. Além do convívio das notabilidades do bureau
carioca, o doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva apreciava também a companhia de
repórteres e redatores de jornais, mas desses sérios, que não se metem em farras, nem
em pândegas baratas.
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Aos poucos, começou a surgir seu nome, subscrevendo artigos nos jornais
diários; até, no Jornal do Comercio, foi publicado um, com quatro colunas, tratando das
“Indenizações por prejuízos resultantes de acidentes na navegação aérea”.
As citações de textos de leis, de praxistas, de comentadores de toda a espécie,
eram múltiplas, ocupavam, em suma, dois terços do artigo; mas o artigo era assinado
por ele: doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva.
Quando passava solene, dançando a cabeça como cavalo de coupé de casamento
rico, sobraçando a rica pasta rabulesca, atirando a bengala para adiante, muito para
adiante, sem olhar para os lados, havia quem o invejasse, na Rua do Ouvidor ou na
avenida, e dissesse:
Este Praxedes é um “águia”! Chegou noutro dia do Norte e já está ganhando
rios de dinheiro na advocacia! Esses nortistas...
Não havia nenhuma verdade nisso. Apesar de ter carta de bacharel pela Bahia ou
por Pernambuco; apesar do ouro da bengala e da prata da pasta; apesar de ter escritório
na Rua do Rosário, a sua advocacia ainda era muito “mambembe”. Pouco fazia e todo
aquele espetáculo de fraques, hotéis caros, táxis, cock-tails, etc., era custeado por algum
dinheiro que trouxera do Norte e pelo que obtivera aqui, por certos meios de que ele
tinha o segredo. Semeava, para colher mais tarde.
Chegara com o firme propósito de conquistar o Rio de Janeiro, fosse como fosse.
Praxedes era teimoso e, até, tinha a cabeça quadrada e a testa curta dos teimosos; mas
não havia na sua fisionomia mobilidade, variedade de expressões, uma certa irradiação,
enfim, tudo o que denuncia inteligência.
Muito pouco se sabia dos seus antecedentes. Vagamente se dizia que Praxedes
fora sargento de um regimento policial de um Estado do Norte; e cursara como sargento
a faculdade de Direito respectiva, formando-se afinal. Acabado o curso, deu um
desfalque na caixa do batalhão com a cumplicidade de alguns oficiais, entre os quais,
alguns eram esteios do situacionismo local. Por único castigo, tivera baixa do serviço,
enquanto os oficiais lá continuaram. Escusado é dizer que os “dinheiros” com que se
lançava no Rio, vinham em grande parte das “economias lícitas do batalhão tal da força
policial do Estado *** ”.
Eloqüente a seu modo, com voz cantante, embora um tanto nasalada, senhor de
imagens suas e, sobretudo, de alheias, tendo armazenado uma porção de pensamentos e
opiniões de sábios e filósofos de todas as classes, Praxedes conseguia mascarar a
miséria de sua inteligência e a sua falta de verdadeira cultura, conversando como se
discursasse, encadeando aforismas e foguetões de retórica.
Só o fazia, porém, entre os colegas e repórteres bem comportados. Nada de
boêmios, poetas e noctívagos, na sua roda!
Advogava unicamente no cível e no comercial. Isto de “crime”, dizia ele com
asco, “só para rábulas”.
Pronunciava “rábulas” quase cuspindo, porque devem ter reparado que os mais
vaidosos com os títulos escolares são os burros e os de baixa extração que os possuem..
Para estes, ter um pergaminho, como eles pretensiosamente chamam o diploma,
é ficar acima e diferente dos que o não têm, ganhar uma natureza especial e superior aos
demais, transformar-se até de alma.
Quando fui empregado da Secretaria da Guerra, havia numa repartição militar,
que me ficava perto, um sargento amanuense com um defeito numa vista, que não
cessava de aborrecer-me com as suas sabenças e literatices. Formou-se numa faculdade
de Direito por aí e, sem que nem porque, deixou de me cumprimentar.
São sempre assim...
Praxedes Itapiru da Silva, ex-praça de pré de uma polícia provinciana, tinha em
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grande conta, como coisa inacessível, aquele banalíssimo trambolho de uma vulgar carta
de bacharel; e, por isso, dava-se à importância de sumidade em qualquer departamento
do pensamento humano e desprezava soberbamente os rábulas e, em geral, os não
formados.
Mas, contava eu, o impávido bacharel nortista tinha um grande desdém pela
advocacia criminal; à vista disso, certo dia, todos os seus íntimos se surpreenderam
quando ele lhes comunicou que ia defender um dado criminoso, no júri.
Era um réu de crime hediondo, cujo crime deve estar ainda na lembrança de
todos. Lá, pelas bandas de Inhaúma, num lugar chamado Timbó, vivia num “sítio”
isolado, quase só, um velho professor jubilado da Escola Militar, muito conhecido pelo
seu gênio estranhamente concentrado e sombrio. Não se lhe conheciam parentes; e isto,
há mais de quarenta anos. Jubilara-se e metera-se naquele ermo recanto do nosso
município, deixando mesmo de freqüentar o seu divertimento predileto, por deficiência
de condução. Consistia este no café-concerto, onde houvesse anafadas mulheres
estrangeiras e saracoteios de raparigas no palco. Era um esquisitão, o doutor Campos
Bandeira, como se chamava ele. Vestia-se como ninguém se vestiu e se vestirá: calças
brancas, em geral; colete e sobrecasaca curta, ambos de alpaca; chapéu mole, partido ao
centro; botins inteiriços de pelica; e sempre com chapéu-de-chuva de cabo de volta. Era
amulatado, com traços indiáticos e tinha um lábio inferior muito fora do plano do
superior. Pintava e, por sinal, muito mal, os cabelos e a barba; e um pequeno pince-nez,
sem aros, de vidros azulados, acabava-lhe a fisionomia original.
Todos o sabiam homem de preparo e de espírito; tudo estudava e tudo conhecia.
Dele contavam-se muitas anedotas saborosas. Sem amigos, sem parentes, sem família,
sem amantes, era, como examinador, de uma severidade inexorável. Não cedia a
empenhos de espécie alguma, viessem donde viessem. Era o terror dos estudantes. Não
havia quem pudesse explicar o estranho modo de vida que levava, não havia quem
atinasse com a causa oculta que o determinava. Que desgosto, que mágoa o fizera
assim? Ninguém sabia.
Econômico, lecionando, e muito particularmente, devia possuir um pecúlio
razoável. Os rapazes calculavam em cento e tantos contos.
Se era tido como estranho, ratão original, mais estranho, mais ratão, mais
original pareceu ele a todos, quando se foi estabelecer, depois de jubilado, naquele
cafundó do Rio de Janeiro:
Que maluco! diziam.
Mas o doutor Campos Bandeira (ele não o era, mas assim o tratavam), por não os
ter, não ouviu amigos e meteu-se no Timbó. Hoje, há lá uma magnífica estrada de
rodagem, que a prefeitura em dias de lucidez construiu; mas, naquele tempo, era um
atoleiro. A maioria dos cariocas não conhece essa obra útil da nossa municipalidade;
pois olhem: se fosse em São Paulo, já os jornais e revistas daqui teriam publicado
fotografias, com artigos estirados, falando da energia paulista, dos bandeirantes, de José
Bonifácio e da valorização do café.
O doutor Campos Bandeira, apesar da péssima estrada que lá havia, por aquela
época, e vinha trazê-lo ao ponto dos bondes de Inhaúma, lá se estabeleceu, entregando-
se de corpo e alma aos seus trabalhos de química agrícola.
Tinha quatro trabalhadores para a roça e tratamento de animais; e, para o interior
de casa, só tinha um serviçal. Era um pobre diabo de bagaço humano, espremido pelo
desânimo e pelo álcool, que acudia, nas vendas dos arredores, pelo apelido de “Casaca”,
por andar sempre com um fraque rabudo.
O velho professor o tinha em casa mais por consideração do que por qualquer
outro motivo. Quase não fazia nada. Bastava-lhe possuir alguns níqueis, para que não
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voltasse a casa a fim de procurar serviço. Deixava-se ficar pelas bodegas. Pela manhã,
mal varria a casa, fazia o café e moscava-se. Só quando a fome apertava aparecia.
Campos Bandeira, que fora tido, durante quarenta anos, por frio, indiferente,
indolor, egoísta e, até, mau, tinha, entretanto, por aquele náufrago da vida ternuras de
mãe e perdões de pai.
Uma manhã, “Casaca” despertou e, não vendo o seu amo de pé, foi até os seus
aposentos receber ordens. Topou-o na sala principal, amarrado e amordaçado. As
gavetas estavam revolvidas, embora os móveis estivessem nos seus lugares. “Casaca”
chamou por socorro; vieram os vizinhos e desembaraçando o professor da mordaça,
verificaram que ele ainda não estava morto. Fricções e todo o remédio que lhes veio à
mente empregaram, até tapas e socos. O doutor Campos Bandeira salvou-se, mas estava
louco e quase sem fala, tal a impressão de terror que recebeu. A polícia pesquisou e
verificou que houvera roubo de dinheiro, e grosso, graças a um caderno de notas do
velho professor. Todos os indícios eram contra o “Casaca”. O pobre diabo negou.
Bebera, naquela tarde, até os botequins fecharem-se, por toda a parte, nas proximidades.
Recolhera-se completamente embriagado e não se lembrava se tinha fechado a porta da
cozinha, que amanhecera aberta. Dormira e, daí em diante, não se lembrava de ter
ouvido ou visto qualquer coisa.
Mas... tamancos do pobre diabo foram encontrados no local do crime; a corda,
com que atacaram a vítima, era dele; a camisa, com que fizeram a mordaça, era dele.
Ainda mais, ele dissera a “Seu” Antônio “do botequim” que, em breve, havia de ficar
rico, para beber na casa dele, Antônio, uma pipa de cachaça, já que ele recusava fiar-lhe
um “calisto”. Foi pronunciado e compareceu a júri. Durante o tempo do processo, o
doutor Campos Bandeira ia melhorando. Recuperou a fala e, ao fim de um ano, estava
são. Tudo isto se passou no silêncio tumular do manicômio.
Chegou o dia do Júri. “Casaca” era o réu que o advogado Praxedes ia defender,
quebrando o seu juramento de não advogar no “crime”. A sala encheu-se para ouvi-lo.
O pobre “Casaca”, sem pai, sem mãe, sem amigos, sem irmãos, sem parati,
olhava tudo aquilo com o olhar estúpido de animal doméstico num salão de pinturas. De
quando em quando, chorava. O promotor falou.
O doutor Felismino Praxedes Itapiru da Silva ia começar a sua estupenda defesa,
quando um dos circunstantes, dirigindo-se ao presidente do tribunal, disse com voz
firme:
Senhor juiz, quem me quis matar e me roubou, não foi este pobre homem que
ai está, no banco dos réus; foi o seu eloqüente e elegante advogado.
Houve sussurro; o juiz admoestou a assistência, o popular continuou:
Eu sou o professor Campos Bandeira. Esse tal advogado, logo que chegou do
Norte, procurou-me, dizendo-se meu sobrinho, filho de uma irmã, a quem não vejo
desde ‘quarenta anos. Pediu-me proteção e eu lhe pedi provas. Nunca mas deu, senão
alusões a coisas domésticas, cuja veracidade não posso verificar. Vão já tantos anos que
me separei dos meus... Sempre que ia receber a minha jubilação, ele me escorava nas
proximidades do quartel-general e me pedia dinheiro. Certa vez, dei-lhe quinhentos mil-
réis. Na noite do crime, à noitinha, apareceu-me, em casa, disfarçado em trajes de
trabalhador, ameaçou-me com um punhal, amarrou-me, amordaçou-me. Queria que eu
fizesse testamento em favor dele. Não o fiz; mas escapou de matar-me. O resto é sabido.
O “Casaca” é inocente.
O final não se fez esperar; e, por pouco, o “Casaca” toma a si a causa do seu ex-
patrono.
Quando este saía, entre dois agentes, em direitura à chefatura de polícia, um
velho meirinho disse bem alto:
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E dizer-se que este moço era um “poço de virtudes”!
América Brasileira, Rio, maio 1922.
O jornalista
A RANULFO PRATA
A CIDADE DE Sant’Ana dos pescadores fora em tempos idos uma cidadezinha
próspera. Situada entre o mar e a montanha que escondia vastas vargens férteis, e muito
próximo do Rio, os fazendeiros das planuras transmontanas preferiam enviar os
produtos de suas lavouras, através de uma garganta, transformada em estrada, para, por
mar, trazê-los ao grande empório da corte. O contrário faziam com as compras que aí
faziam. Dessa forma, erguida à condição de uma espécie de entreposto de uma zona até
bem pouco fértil e rica, ela cresceu e tomou ares galhardos de cidade de importância. As
suas festas de igreja eram grandiosas e atraíam fazendeiros e suas famílias, alguns tendo
mesmo casas de recreio apalaçadas nela. O seu comércio era por isso rico com o
dinheiro que os tropeiros lhe deixavam. Veio, porém, a estrada de ferro e a sua
decadência foi rápida. O transporte das mercadorias de “serra-acima” se desviou dela e
os seus sobrados deram em descascar como velhas árvores que vão morrer. Os
mercadores ricos a abandªram e os galpões de tropa desabaram. Entretanto, o sítio era
aprazível, com as suas curtas praias alvas que foram separadas por desabamentos de
grandes moles de granito da montanha verdejante do fundo do vilarejo, formando
aglomerações de grossos pedregulhos.
A gente pobre, após a sua morte, deu em viver de pescarias, pois o mar aí era
rumoroso e abundante de pescado de bom quilate.
Tripulando grandes canoas de voga, os seus pescadores traziam o produto de sua
humilde indústria, vencendo mil dificuldades, até Sepetiba e, daí, à Santa Cruz, onde ele
era embarcado em trem de ferro até o Rio de Janeiro.
Os ricos de lá, além dos fabricantes de cal de marisco, eram os taverneiros que,
nessas vendas, como se sabe, vendem tudo, mesmo casimiras e arreios, e são os
banqueiros. Lavradores não havia e até frutas iam do Rio de Janeiro.
As pessoas importantes eram o juiz de direito, o promotor, o escrivão, os
professores públicos, o presidente da Câmara e o respectivo secretário. Este, porém, o
Salomão Nabor de Azevedo, descendente dos antigos Nabores de Azevedo de “serra-
acima” e dos Breves, ricos fazendeiros, era o mais. Era o mais porque, além disto, se
fizera o jornalista popular do lugar.
A idéia não fora dele, a de fundar O Arauto, órgão dos interesses da cidade de
Sant’Ana dos Pescadores; fora do promotor. Este veio a perder o jornal, de um modo
curioso. O doutor Fagundes, o tal de promotor, começou a fazer oposição ao doutor
Castro, advogado no lugar e, no tempo, presidente da Câmara. Nabor não via com bons
olhos aquele e, certo dia, foi ao jornal e retirou o artigo do promotor e escreveu um
descabelado de elogios ao doutor Castro, porque ele tinha suas luzes, como veremos.
Resultado: Nabor, o nobre Nabor, foi nomeado secretário da Câmara e o promotor
perdeu a importância de melhor jornalista local, que coube, daí por diante e para
sempre, a Nabor. Como já disse, este Nabor recebera luzes num colégio de padres de
Vassouras ou Valença, quando os pais eram ricos. O seu saber não era lá grande; não
passava de gramaticazinha portuguesa, das quatro operações e umas citações históricas
que aprendera com Fagundes Varela, quando este foi hóspede de seus pais, em cuja
fazenda chegara, certa vez, de tarde, numa formidável carraspana e em trajes de
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tropeiro, calçado de tamancos.
O poeta gostara dele e lhe dera algumas noções de letras. Lera o Macedo e os
poetas do tempo, daí o seu pendor para coisas de letras e de jornalismo.
Herdou alguma coisa do pai, vendera a fazenda e viera morar em Sant’Ana, onde
tinha uma casa, também pela mesma herança. Casou aí com uma moça de alguma
pecúnia e vivia a fazer política e a ler os jornais da corte, que assinava. Deixou os
romances e apaixonou-se por José do Patrocínio, Ferreira de Meneses, Joaquim Serra e
outros jornalistas dos tempos calorosos da abolição. Era abolicionista, porque... os seus
escravos, ele os tinha vendido com a fazenda que herdara; e os poucos que tinha em
casa, dizia que não os libertava, por serem da mulher.
O seu abolicionismo, com a Lei de 13 de maio, veio dar, naturalmente, algum
prejuízo à esposa...
Enfim, após a República e a Abolição, foi várias vezes subdelegado e vereador
de Sant’Ana. Era isto, quando o promotor Fagundes lembrou-lhe a idéia de fundar um
jornal na cidade. Conhecia aquele a mania do último, por jornais, e a resposta confirmou
a sua esperança:
Boa idéia, “Seu” Fagundes! A “estrela do Abraão” (assim era chamada
Sant’Ana) não ter um jornal! Uma cidade como esta, pátria de tantas glórias, de tão
honrosas tradições, sem essa alavanca do progresso que é a imprensa, esse fanal que
guia a humanidade não é possível!
O diabo, o diabo... fez Fagundes.
Porque o diabo, Fagundes?
E o capital?
Entro com ele.
O trato foi feito e Nabor, descendente dos Nabores de Azevedo e dos
famigerados Breves, entrou com o cobre; e Fagundes ficou com a direção intelectual do
jornal. Fagundes era mais burro e, talvez, mais ignorante do que Nabor; mas este
deixava-lhe a direção ostensiva porque era bacharel. O Arauto era semanal e saía
sempre com um artiguete laudatório do diretor, à guisa de artigo de fundo, umas
composições líricas, em prosa, de Nabor, aniversários, uns mofinos anúncios e os editais
da Câmara Municipal. Às vezes, publicava certas composições poéticas do professor
público. Eram sonetos bem quebrados e bem estúpidos, mas que eram anunciados como
“trabalhos de um puro parnasiano que é esse Sebastião Barbosa, exímio educador e
glória da nossa terra e da nossa raça”.
Às vezes, Nabor, o tal dos Nabores de Azevedo e dos Breves, honrados
fabricantes de escravos, cortava alguma coisa de valia dos jornais do Rio e o jornaleco
ficava literalmente esmagado ou inundado.
Dentro do jornal, reinava uma grande rivalidade latente entre o promotor e
Nabor. Cada qual se julgava mais inteligente por decalcar ou pastichar melhor um autor
em voga.
A mania de Nabor, na sua qualidade de profissional e jornalista moderno, era
fazer do O Arauto um jornal de escândalo, de altas reportagens sensacionais, de
enquêtes com notáveis personagens da localidade, enfim, um jornal moderno; a de
Fagundes era a de fazê-lo um quotidiano doutrinário, sem demasias, sem escândalos
um Jornal do Comércio de Sant’Ana dos Pescadores, a “Princesa” do “O Seio de
Abraão”, a mais formosa enseada do Estado do Rio.
Certa vez, aquele ocupou três colunas do grande órgão (e achou pouco), com a
narração do naufrágio da canoa de pescaria Nossa Senhora do Ó”, na praia da
Mabombeba. Não morrera um só tripulante.
Fagundes censurou-lhe:
27
Você está gastando papel à toa!
Nabor retrucou-lhe:
É assim que se procede no Rio com os naufrágios sensacionais. Demais:
quantas colunas você gastou com o artigo sobre o direito de cavar “tariobas”, nas praias.
É uma questão de marinhas e acrescidos; é uma questão de direito.
Assim, viviam aparentemente em paz, mas, no fundo, em guerra surda.
Com o correr dos tempos, a rivalidade chegou ao auge e Nabor fez o que fez
com Fagundes. Reclamou este e o descendente dos Breves respondeu-lhe:
Os tipos são meus; a máquina é minha; portanto, o jornal é meu.
Fagundes consultou os seus manuais e concluiu que não tinha direito à sociedade
do jornal, pois não havia instrumento de direito bastante hábil para prová-la em juízo;
mas, de acordo com a lei e vários jurisconsultos notáveis, podia reclamar o seu direito
aos honorários de redator-chefe, à razão de 1:800$000. Ele o havia sido quinze anos e
quatro meses; tinha, portanto, direito a receber 324 contos, juros de mora e custas.
Quis propor a causa, mas viu que a taxa judicial ia muito além das suas posses.
Abandonou o propósito; e Nabor, o tal dos Azevedo e dos Breves, um dos quais
recebera a visita do imperador, numa das suas fazendas, na da Grama, ficou único dono
do jornal.
Dono do grande órgão, tratou de modificar-lhe o feitio carrança que lhe
imprimira o pastrana do Fagundes. Fez inquéritos com o sacristão da irmandade; atacou
os abusos das autoridades da Capitania do Porto; propôs, a exemplo de Paris, etc., o
estabelecimento do exame das amas-de-leite, etc., etc. Mas, nada disso deu retumbância
a seu jornal. Certo dia, lendo a notícia de um grande incêndio no Rio, acudiu-lhe a idéia
de que se houvesse um em Sant’Ana, podia publicar uma notícia de “escacha”, no seu
jornal, e esmagar o rival O Baluarte que era dirigido pelo promotor Fagundes, o
antigo companheiro e inimigo. Como havia de ser? Ali, não havia incêndios, nem
mesmo casuais. Esta palavra abriu-lhe um clarão na cabeça e completou-lhe a idéia.
Resolveu pagar a alguém que atacasse fogo no palacete do doutor Gaspar, seu protetor,
o melhor prédio da cidade. Mas, quem seria, se tentasse pagar a alguém? Mas... esse
alguém se fosse descoberto denunciá-lo-ia, por certo. Não valia a pena... Uma idéia! Ele
mesmo poria fogo no sábado, na véspera de sair o seu hebdomadário O Arauto. Antes
escreveria a longa notícia com todos os “ff” e “rr”. Dito e feito. O palácio pegou fogo
inteirinho no sábado, alta noite; e de manhã, a notícia saía bem feitinha. Fagundes, que
era já juiz municipal, logo viu a criminalidade de Nabor. Arranjou-lhe uma denúncia-
processo e o grande jornalista Salomão Nabor de Azevedo, descendente dos Azevedos,
do Rio Claro, e dos Breves, reis da escravatura, foi parar na cadeia, pela sua estupidez e
vaidade.
Revista Sousa Cruz, Rio, julho 1921.
O tal negócio de “Prestações”
O SENHOR JOSÉ DE ANDRADE era contramestre de uma oficina do Estado,
situada nos subúrbios.
Era ele o único homem da casa, pois, do seu casamento com dª Conceição, só lhe
nasceram filhas, que eram quatro: Vivi, Loló, Ceci e Lili.
Era homem morigerado, sem vícios, exemplar chefe de família, que ele
governava com acerto e honestidade. Só tinha um fraco: jogar no bicho; mas, isso
mesmo, não era diariamente; fazia-o de longe em longe.
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Um belo dia, ganhou na centena. Adquiriu, por quinhentos mil-réis, um terreno,
em Inhaúma; comprou algumas peças de uso doméstico e distribuiu cem mil-réis,
igualmente, entre a mulher e as quatro filhas. dª Conceição tinha visto nas mãos do
Benjamim, vendedor ambulante, por prestações, uma saia de casimira muito boa. Quis
comprá-la, mas não tinha de mão a quantia que devia dar de sinal. Entretanto, agora,
com aqueles vinte mil-réis, estava de posse dela.
Nem de propósito! No dia seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando
o sinal e obrigando-se a pagar doze mil-réis, mensalmente.
Vivi também tinha visto nas mãos de Sárak uns borzeguins de cano alto, de
pelica, muito bons; mas não tivera o dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro
adiantamento.
Esperou Sárak e adquiriu dois pares: um preto e outro amarelo.
Estava no dever de pagar doze mil-réis por mês, que ela esperava obter com o
produto de suas costuras.
Loló, essa gostava de jóias e vivia sonhando com um relogiozinho-pulseira que o
Nicolau lhe quisera vender a prestações de quinze mil-réis. Avisou a sua amiga Eurídice
que, quando ele lhe fosse cobrar, o mandasse falar com ela, Loló.
Assim foi feito; e, no domingo seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado
que logo se desarranjou.
Pagaria as prestações com o dinheiro que os bordados lhe dariam.
Ceci e Lili não eram lá muito inclinadas para esse negócio de prestações; mas o
exemplo das irmãs animou-as.
Ceci tinha uma linda saia de voile azul-marinho, que o papai lhe dera no mês
passado, quando fizera dezessete anos; mas não gostava da blusa que era branca. Queria
uma creme; e, justamente, o Ivã, um ambulante de prestações, que lhe não deixava a
porta, tinha uma em condições, e magnífica. Ficou com ela; e a sua contribuição era
modesta: seis mil-réis mensais, quantia ínfima que o pai lhe daria certamente.
Lili, a mais moça, não tendo ainda dezesseis anos, parecia resistir à atração, à
fascinação de obter um adorno ou uma peça de vestuário, por meio de quotas mensais.
Guardou, durante uma semana, os vinte mil-réis intactos; mas apareceu-lhe no
portão, pela primeira vez, um vendedor ambulante de jóias, a prestações; e ela, dando-
lhe o dinheiro, que tinha reservado, fez dª de umas “africanas” com a promessa de pagar
dez mil-réis por mês. Chama-se o ambulante José Síki.
Ela ajudava a mais velha, a Vivi, nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte
do que ganhava.
O mês correu e não bem para os cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não
pudera trabalhar na “Singer”. A moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia
da família, pois houve aumento de despesas com medicamentos, dieta, etc. dª Conceição
não pôde fazer economias nas compras, pois tinha que atender ao acréscimo de despesa
com o aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar da irmã, não foi permitido
bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da mais velha, não foi dado
oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e, finalmente, não tendo Vivi
trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a primogênita lhe dava.
No começo do mês seguinte, um atrás do outro, lá batiam à porta, Benjamim,
rak, Nicolau, Ivã, José Síki, a cobrar as prestações de dª Conceição, de Vivi, de Loló,
de Ceci e de Lili.
Desculparam-se do melhor modo e os homens se foram resignadamente.
No mês que se seguiu, as coisas não correram tão bem como elas esperavam.
Fizeram alguma coisa, mas insuficiente para pagar aos russos das prestações.
Não ficaram estes contentes e procuraram indagar quem era o dono da casa. José
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de Andrade não sabia da história de prestações e ficou espantado quando eles o
procuraram, para a cobrança. No começo pensou que era só um; mas quando viu que
eram cinco, e que as prestações alcançavam a respeitável soma de cinqüenta e nove mil-
réis o pobre homem quase ficou louco.
Ainda quis restituir os objetos; mas as peças de vestuário estavam usadas, o
relógio desarranjado e, até, as “africanas” precisavam de consertos no fecho.
Não houve remédio senão pagar, e, ainda hoje, quando o modesto operário
encontra um homem de prestações, diz com os seus botões:
Não sei como a polícia deixa essa gente andar solta... Só se lembra de
perseguir o “bicho” que é coisa inocente.
O Malho, Rio, 10-1-1920.
O meu carnaval
MAS FÔSTE mesmo recrutado?
Fui; e comi fogo que não foi graça.
Como foi a história?
Aproximava-se o carnaval. Como era meu costume, vim para a oficina, onde
trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina, pelas bandas do Largo do Rio Comprido.
Ao chegar à oficina, na Rua dos Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você
hoje tem um serviço externo. Você vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas
d’água de um prédio novo.” Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela
zona e, a fim de poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua
tranversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do mais
curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo comandante, um
cabo, era um preto. E que preto engraçado! Desengonçado, pernas compridas e
arqueadas, pés espalhados era mesmo um macaco. A farda, blusa e calça, estava toda
pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito... Enfim, era um verdadeiro jagodes,
um “Judas”.
Que é que eles te disseram?
O cabo veio direito a mim e perguntou-me com toda a empáfia: “Onde é que
você vai?” Disse-lhe; mas a feroz autoridade parecia ter implicado comigo, tanto que
me intimou: “Você vai à presença do senhor capitão Lulu.” “Mas não fiz nada”, objetei.
Ele foi inabalável e não quis atender os meus rogos. Chorei, roguei, mas nada! Num
dado momento, um dos soldados disse: “Seu cabo está com muitos luxos. Se fosse
comigo, esse paisano ia já.” E fez menção de desembainhar um enorme sabre de
cavalaria que tinha à cinta.
Mas que soldados eram estes?
Não estás vendo logo? Eram guardas nacionais.
Percebo. Foste?
Fui. Que remédio?
Que te fizeram?
Vou contar-te tintim por tintim. Levaram-me a presença do oficial. Era um
mulato forte, simpático, e o seria intensamente se não fosse a sua presunção e
pernosticidade. Era assim o capitão Lulu. Muito apurado no seu uniforme, disse-me
num tom imperativo: “Você é um reles desertor. É um ignóbil brasileiro que recusa
servir a sua pátria.” Objetei-lhe cheio de susto: “Mas, senhor capitão, nunca fui soldado,
como posso ser desertor?” O capitão Lulu não respondeu diretamente à minha
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interrogativa, mas perguntou-me: “Como é que você se chama?” Disse-lhe. Indagou
ainda: “Onde é que você mora.” Indiquei: “Rua tal, em Santa Alexandrina.” Isto
pareceu-lhe contrariar; mas nada disse. Pôs-se a escriturar num livro e, por fim, falou-
me: “Encontrei os seus assentamentos. Você está há muito tempo qualificado neste
batalhão 01.723.436. regimento de cavalaria da Guarda Nacional. Apesar de reiteradas
intimações, você não se tem apresentado. Está preso disciplinarmente por oito dias.”
Fiquei tonto, atordoado: “Mas senhor”, fiz eu, a tremer. “Cabo”, gritou o Lulu, “cumpra
as ordens. Já sabe!”
Puseram-te na cadeia?
Não. Revistaram-me, tiraram-me as ferramentas e o dinheiro que levava. Isto
tudo, na presença do marcial Lulu. Quando este viu os cobres, gritou: “Dá cá! Esses
cobres vão para a caixa do regimento.” Após o que, levaram-me para um outro
compartimento, onde me fizeram despir a roupa e vestir uma calça e blusa do uniforme.
Das peças que lá havia, a única blusa que me chegava, tinha as divisas de cabo. Não
quiseram arrancá-las e fui feito cabo de esquadra. Isto não impediu, porém, que me
pusessem em serviço árduo.
Qual foi?
Meteram-me uma enxada na mão e fizeram-me capinar a chácara durante
quase oito dias, passando fome.
Como?
A comida era café ralo e pão duro, pela manhã; e, às duas horas, um ensopado
de mamão verde, muito mal feito, no qual encontrar uma pastilha de carne seca era uma
raridade de fazer alegria até chorar. Na sexta-feira que precedia o sábado, véspera do
carnaval, descansei. Ordenaram-me que lavasse a farda e a roupa branca, o que fiz
vestindo em cima do corpo a fatiota com que fora preso. Mandaram passar a roupa
lavada a ferro; e, no sábado, ordenaram-me que a envergasse e fosse à presença do
comandante. Apresentei-me, fiz a continência que me haviam ensinado e esperei as
ordens. O Lulu disse para o superior: “Está aí coronel, o desertor que capturei.” O
comandante recostado na cadeira, acariciou o ventre proeminente com as duas mãos e
disse com sotaque italiano: “Que vai ele fare?” O capitão Lulu respondeu: “Vai ser
minha ordenança, no patrulhamento do carnaval.” O coronel ítalo-brasileiro só se
limitou a dizer: “Bene!” À tarde, no sábado, Lulu, antes de sairmos, mandou-me chamar
e aconselhou-me: “Você me parece boa pessoa, disciplinada. Procede muito bem. ‘A
submissão é a base do aperfeiçoamento’, disse Victor Hugo. Se sou oficial, se cheguei à
posição em que estou, devo, não só ao meu esforço, como também a ser obediente aos
meus superiores. Você veio, acompanhou-me; porte-se bem que não terá de arrepender-
se.”
O que era esse tipo, além de guarda nacional?
Era servente do Senado.
Que magnata!
Não te rias. À hora marcada, saímos, eu e Lulu, para a ronda. Deu-me cinco
mil-réis, para despesas; mas não os pude gastar em uma feijoada, porque o aguerrido
Lulu não me dava tempo. Andamos pelas ruas e, à noite, fomos aos clubes, onde pude
beber e comer à vontade. No domingo foi a mesma coisa e já tinha ganho a intimidade
de Lulu, a ponto de bebermos os nossos calistos juntos. Na segunda-feira, deu-me
licença de ir até em casa; e eu que já estava ensoberbado de ser guarda nacional, fui de
farda, facão e tudo! Quando cheguei ao Largo do Rio Comprido, saltei para tomar
alguma coisa. Topei logo com um conhecido que, surpreendido e cheio de espanto, me
disse: “Valentim! Que é isso? Você pode ser ‘pegado’ !” “Porque?” “Ninguém se pode
fantasiar com os trajes militares do país.” Mal tinha dito isto, quando fui preso
31
imediatamente por um polícia que me levou à delegacia onde não me quiseram ouvir e
me meteram no xadrez até quarta-feira de cinzas. Está em que deu a Guarda Nacional e
como foi o meu carnaval, naquele ano.
Careta, Rio, 8-1-1921.
Fim de um sonho
FOI MESMO um sonho, mergulhado no qual vivi cerca de três meses, meu caro.
Durante eles, sonhei dia e noite. De dia, então eu nada percebia com nitidez. A luz do
Sol, dura e crua, me era estranha, feria-me, fazia-me mal. Discernia com dificuldade as
fisionomias e as coisas. Eu me havia transformado em um animal noturno muito
especial que só pode viver em luz elétrica. Só, sob incidência dessa luz artificial, é que o
mundo das coisas e dos entes saía, para os meus olhos, da bruma, da caligem, da
hesitação de formas; fora daí, houvesse o mais radiante Sol que houvesse, tudo era
pastoso, turvo e mal tomavam corpo e figura as vidas e os objetos.
Erguia-me sempre tarde, porque me deitava alta madrugada. Vinha para casa em
automóvel que o clube punha à minha disposição. Metia-me no quarto da pensão
chique, que era hermeticamente fechado como convém a essas pensões, e arejado
astuciosamente pelo rodapé e pelo teto. Dormia até às três horas, tomava banho e
almoçava quando os outros iam jantar. Saía à boca da noite, fazia horas pelos botequins
até ir jantar num restaurante do centro e, depois, encaminhava-me para o clube, o lindo
“Incroyable-Club”, decorado luxuosamente, com um luxo e gosto nem sempre de
grande aprumo, mas que a profusão de luz elétrica, derramada aos jorros, fazia suntuoso
e maravilhoso que nem um palácio de Mil e uma Noites.
Nunca vira aquilo tudo; e embora, por conhecer alguma coisa de arte, detestasse
as duvidosas pinturas das paredes, gostava, entretanto, das mulheres que não me
pareciam ser tão artificiais assim. Em começo, fazia o meu serviço, bebendo cerveja;
por fim, champanha; e, afinal, travei conhecimentos com cavalheiros amáveis. Eram
todos estrangeiros e chamavam-se: Wassíli Alexandróvich Sóbonoff, engenheiro russo,
de grande capacidade em coisas elétricas, emigrado de sua pátria, por causa do “Soviet”,
e contratado para dirigir uma poderosa usina de produção elétrica em Mambocaba, a fim
de extrair mecanicamente turfa, que abundava naquela localidade, e beneficiá-la
também.
O outro era dinamarquês ou tcheco e só o conheci pelo nome de Peteo. Pretendia
servir-se de um pouco da força da usina de Wassíli, para obter matérias corantes dos
resíduos da turfa deste; e o terceiro era o barão de Hermeny, magiar com muitos
quarteirões de nobreza, descendente de Santo Estêvão e não sei quem mais. Corria
mundo enquanto não se restabelecia o trono do seu augusto e santo avô, para então
retomar os seus cargos e as suas fartas rendas.
Nunca conheci cavalheiros tão amáveis e educados. Sempre corretamente
vestidos, enjoiados discretamente, conversavam comigo sobre todos os assuntos com
conhecimento profundo de causa. Sabiam todo o movimento político do mundo e as
suas previsões eram sempre seguras. Desde que os conheci, nunca mais paguei
champanha nem ceias. Para estas, eles traziam variadas damas que lhes falavam numa
gerigonça arrevesada que mesmo não sei que língua era. Eu ficava babado diante
daquelas carnaduras rijas, daqueles colos azuis que nos são pouco familiares e daqueles
rostos polpudos, daquelas sobrancelhas negras a poder de ingredientes, daquelas orelhas
cheias de bichas e daquelas ancas... Por momentos, vendo aquelas mulheres, aquelas
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luminárias, aqueles tapetes, aqueles jarrões com pequenas palmeiras, esquecendo as
figuras das paredes, eu me julgava um sultão ou pelo menos, um aprendiz desse ofício,
mas que já podia tirar o lenço...
Um dia saí com o barão húngaro e convidei-o para tomar o “meu” automóvel.
Quando ele ia entrar, chegou-se um sujeito, apresentou-lhe uma carteira e disse-lhe:
O senhor está convidado a ir à Polícia Central.
O barão não relutou e respondeu galantemente:
Deve ser algum engano. Vamos.
Depois, dirigindo-se a mim:
O doutor me desculpe... As autoridades brasileiras ainda não estão bem
informadas de quem sou...
Quer ir no “meu” automóvel?
Não; seria incomodá-lo. Vou mesmo num táxi aqui com o senhor, disse,
voltando-se para o agente.
No dia seguinte, soube que o tal barão era um terrível ladrão de bancos que a
polícia do Chile perseguia, por ter roubado, com grande audácia, a um de Santiago, em
cerca de cento e cinqüenta contos. Não era húngaro, como se intitulava: era rumaico ou
coisa que o valha.
Continuei, porém, no meu sonho de nada pensar de sério na vida. Quase não lia
jornais; livros e revistas esperavam que lhes apontasse as páginas, em cima da mesa;
não respondia às cartas ou mal as respondia, às pressas. Que mais queria? Tinha
encontrado, ao mesmo tempo, os “Campos Elísios”, o “Éden”, o “Paraíso” cristão e o de
Maomé. O clube de jogo juntava-me tudo isto no meu sentir e para o meu gozo. Vivia
num arrebatamento deste mundo, fora dele e das suas coisas triviais, num encantamento
divino... Que delícia!
Como acabou, meu caro? perguntou-lhe o amigo que o ouvira calado até aí.
Uma noite destas, fui para o serviço do clube, como de costume, e o porteiro,
logo à entrada, me avisou: “A ‘casa’ fechou doutor; a emenda do senador Sá foi avante:
não há mais jogo”.
Não quis subir, pus-me na rua e acendi o último dos “havanas” que o tal
engenheiro russo me havia dado, na véspera. Fumei-o com volúpia e vagar, sacudindo
as cinzas com pena as cinzas do meu sonho! Certamente, esse seria o último que
fumaria na minha vida... Foi um sonho!
Careta, Rio, 21-1-1922.
Lourenço, o Magnífico
1
QUEM CONHECEU, antes de 1914, o corretor Lourenço Caruru, hoje não o
conhecerá mais.
Lembram-se todos que ele ia ali, ao Colombo, todas as tardes, tomar um ou dois
cock-tails; e, se lhe apareciam amigos, logo raspava-se para não pagar mais. Tinha
horror aos filantes; hoje, ele os procura, mas aos de alta escola que aprendem com os
modestos pilhérias e ditos.
Lourenço Caruru, só no ano de 1917, ganhou líquido oitocentos contos.
Nos seus belos tempos dos dois cock-tails por tarde de Colombo, Caruru era um
homem morigerado que, das “francesas”, só queria o cheiro; e, se por acaso, uma delas
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lhe sentava à mesa, logo punha-se a tremer com medo que a cara-metade lhe aparecesse.
Era homem da família.
Depois dos dois cock-tails saía a bongar frutas, bonbons e quejandos, para levar
para os filhos e netos.
Ganhando tanto dinheiro no curto espaço de um ano, Lourenço ficou estonteado
e julgou-se um príncipe magnífico.
A primeira coisa que arranjou foi uma princesa coisa que não lhe foi difícil nos
mercados do Flamengo e do Catete.
Correu a um estufador e disse-lhe:
Preciso mobiliar um appartement com gosto. É para uma senhora estrangeira
de fino trato.
Essa “senhora estrangeira de fino trato” começara modestamente como caixeira
de botequim em Estrasburgo, passara-se para Paris com a profissão e tudo; e, daí,
tentara fazer a “América do Sul”, no que foi muito feliz, como se está vendo.
O tapeceiro, depois de ouvir o homenzinho e pedir-lhe mais detalhes, disse-lhe o
custo do appartement.
Vinte contos.
O homenzinho indignou-se:
Mas, então, o senhor pensa que eu sou um “pronto” por aí?! Que eu sou algum
funcionário público?!
Meu caro senhor, disse-lhe o negociante, eu fiz o orçamento médio. Havia nele
todo o mobiliário para os quartos de dormir, boudoir, sala de visitas, etc., etc. Mas, se o
senhor quer coisa melhor...
Por certo! exclamou o corretor.
Vou, então, organizar coisa mais requintada.
Faça e mande a conta. A senhora virá examinar e combinar com o senhor tudo.
Dito e feito: o tapeceiro fez a mesma coisa ou pouco mais do que aquilo que ia
custar-lhe vinte contos, cobrou-lhe cem, de acordo com a “madama”, que levou vinte
por cento na transação.
Mas, Lourenço não estava satisfeito. Queria passar como homem de gosto junto
da “madama”. Queria quadros, estátuas... arte!
De vista, ele conhecia vários rapazes pintores; mas, por conhecê-los, não os
julgava capazes de fazerem qualquer trabalho de préstimo.
“Então, aquele tipo que vive na porta da ‘Galeria’ pode fazer alguma coisa que
preste? Qual !”
Nesse meio tempo, desembarca um afamado pintor egípcio, Sádi Ben Álfari,
cujos méritos os jornais gabam com os mais ternos adjetivos. Lourenço, que, naquele
ano de 1918, ganhara num negócio de cereais e praça de navios, cerca de mil contos,
compra-lhe a carregação toda de quadros, ainda encaixotados na alfândega.
O tal pintor da terra dos faraós musca-se logo; e, quando Lourenço manda
desencaixotar os quadros, fica admirado de só encontrar neles, apesar de ser quase uma
centena, a reprodução das pirâmides e da ilha de File, à tarde, ao meio-dia e pela manhã.
“Madama” que não tinha levado nada na transação, passa-lhe uma grande
descompostura e refuga-lhe os quadros. Lourenço os distribui com os amigos, parentes
e, até, leva alguns para a casa da família.
Meses depois, os jornais anunciam que o Sr. Ramkjolk, de Estocolmo, ia expor
uma grande coleção de mármores artísticos, dos mais célebres escultores da Suécia, no
armazém de uma casa da Avenida Central.
O magnífico Lourenço lê a notícia e a “madama” também.
Dias depois, resolvem ir ver os mármores suecos que fizeram o ingente sacrifício
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de atravessar tantos mares bravios, para nos edificar esteticamente; e os dois vão até
eles, não só para receberem um frisson de arte superior, pois os nervos de Lourenço não
suportavam outro, como também para adquirirem alguns.
Essa última parte foi logo alvitrada por “madama” que, a sós, já tinha examinado
a exposição.
No automóvel de príncipes, vão arrulhando, ele e “madama”. Chegam,
“madama” quer este, Lourenço quer aquele; e ambos querem aqueloutro.
Resultado: gastam duzentos contos em estátuas.
Lourenço, o Magnífico, sai radiante com a revelação inesperada da sua cultura
artística; mas, subitamente, ao transpor a porta de saída, lembra-se de alguma coisa e
volta-se de repente, para reentrar.
“Madama” assusta-se.
Que é Lourenço?
É preciso pôr o meu cartão em cada um daqueles “calungas”.
II
Quando Lourenço Caruru, o corretor nouveau-riche, deu balanço dos seus
lucros, em 1919, e viu que tinha ganho mais de mil contos, procurou gastar o mais que
pudesse, com repercussão, porém, nos jornais e nas altas rodas. Vimos como ele gastou
duzentos contos em mármores suecos, a que ele, pitorescamente, denominou
“calungas”. Embora fizesse outros gastos tão avultados, a sua fortuna em nada se
ressentiu deles, pois os ganhos em especulações da “praça” de navios, de compra e
venda de cereais, de carnes e, até, na declaração de guerra do Brasil à Alemanha, foram
tais que cobriram todas as suas dissipações e as de “madama”, a princesa de brasserie,
para quem montara uma luxuosa moradia.
Verificando tão extraordinários lucros, Caruru pôs-se a pensar em que devia
gastar dinheiro.
Ele estava na situação daquele sujeito a quem o diabo dera uma carteira,
contendo certa avultada quantia que ele devia gastar totalmente até à meia-noite. Toda a
manhã, ela amanhecia cheia.
O sujeito supôs a coisa fácil e, durante os primeiros meses, cumpriu o pacto.
Jogava, bebia, viajava, galanteava, etc., etc.; mas vieram o enfado e o cansaço dessas
coisas todas, e, numa bela noite, chega-lhe a hora fatal das doze e ele não tinha gasto
todo o dinheiro da carteira.
O diabo surge-lhe e pergunta-lhe:
Então? A tua alma é minha... Não soubeste gastar o dinheiro...
É que ... estou doente.
Qual, doente! Qual nada! objeta o demônio. Se o soubesses gastar, terias
escapado do inferno por toda a eternidade.
Como?
Fazendo o bem.
Naqueles começos do ano de 1919, Lourenço, o Magnífico, estava em situação
semelhante. Ele não sabia como gastar a cobreira que ganhara... Deu em mudar o estilo
do mobiliário da casa; e fazia as maiores extravagâncias.
“Madama” não tinha também grande força de fantasia. No fundo, ela era uma
pequena burguesa, de gostos simples, que fazia, com aqueles fingimentos de aventureira
de alto coturno, de Lady Hamilton de um “rasta” brasileiro, numa cidade mais ou menos
cheia de selvagens, que fazia, explicava, o seu pecúlio com que, na sua segunda velhice,
pois estava na primeira, ficasse a coberto de necessidades, auxiliasse os parentes e
35
fizesse obras pias e de caridade que a levassem direitinho ao céu dos justos, apesar de
tudo.
Ambos sem fantasia, não atinavam como gastar a melgueira, cujo ganho na algibeira de Caruru
representava a morte, a dor, o penoso trabalho de centenas de miseráveis.
A história de mudança do mobiliário já estava cacete. Eram andorinhas pra cá;
eram andorinhas pra lá. A vizinhança, no contar dos criados, já troçava. “Madama”
gostava, porque sempre “refundia” o preço de venda da que se ia; mas, apesar de tal,
teve medo do ridículo e parou com a coisa.
Lourenço, o Magnífico, muito menos fértil de imaginação fantasista, estava
atarantado, mesmo porque, como o tal sujeito da lenda, não sabia fazer bem.
Os seus princípios de economia e subordinação a um ganho restrito junto ao seu
natural visceralmente seco, tinham-no feito viver à parte da caridade. Sempre embirrara
com os mendigos:
É uma vergonha, dizia ele, que, numa cidade como esta, um homem não possa
andar, sem que não encontre dez pobres, para lhe estender a mão. Que faz a polícia? O
governo não cria asilos?
Há pessoas que têm medo de defuntos; Lourenço, o Magnífico, sempre tivera
ojeriza aos pobres e miseráveis. Eram-lhe como espectros...
Não sabia, portanto, como aplicar os seus desmedidos lucros; e tão enleado
estava nessa atroz cogitação que até pensou em arranjar outra “madama”. Era como ele
sabia gastar... Mas... teve medo. “Madama” n
o
1 era uma fera de ciúmes (ela é quem
sabia de quem os tinha); e bem podia fazer uma das suas. Lourenço, o Magnífico, não
quis levar o propósito avante; mas... precisava gastar dinheiro, fosse como fosse.
Uma tarde, em que ele chegara ao seu appartement, antes de “madama”, esta
veio encontrá-lo, ao chegar ela da rua, sentado a ler os jornais vespertinos. Falou-lhe
“madama” com o seu português bordelengo em que ela queria, na ocasião, pôr muita
meiguice:
Sabes, Lourenço, de uma coisa?
Que é?
Acabo de vir de uma exposição de tapeçarias. Que coisas lindas! Dizem que
foi de uma grande casa russa, cujos membros conseguiram salvar do saque dos
sangüinários socialistas que tomaram conta da Rússia. Há até um autêntico gobelino;
mas não foi deste que eu gostei. O que gostei mais, foi de um “Hércules e Onfale”.
Queres comprá-lo?
Quanto custa?
Vinte contos.
Estás doida, filha! Ainda se fosse em outra coisa; mas dar tanto dinheiro, para
se pôr os pés... Nessa não vou eu!...
“Madama” pôs-se de pé e disse com todo desprezo:
Burro! Selvagem! Sale singe! Pois você pensa que é um tapete qualquer? Ora,
bolas! É um verdadeiro quadro que se estende na parede. Aprenda, macaquito!
o sabia, acudiu o corretor humildemente, mas, se é assim, amanhã terá você
o tapete.
Não só comprou esse, como mais outros; e a “madama” ganhou dezoito contos
de comissão.
III
Lourenço Caruru, o Magnífico, depois que a guerra e a Liga pelos Aliados lhe
fizeram ganhar centenas de contos por ano, teve desejos de mostrar-se um homem fino,
artista e apreciador de belas coisas.
36
Já temos visto como ele se mostrou conspícuo em matéria de artes plásticas e
aplicadas; mas o que não contei ainda, foi como ele inaugurou, com grande orgulho
monetário, a sua biblioteca.
Caruru tinha por camarada um adestrado leiloeiro com quem almoçava todo o
dia, no restaurant mais caro do centro comercial e mais banal do universo, enquanto
“madama” sarandava por aí, à cata de compras vultuosas em que ela ganhasse gordas
comissões meio magnífico que encontrara para passar grande parte da fortuna do
“Magnífico” para as suas algibeiras.
Esse leiloeiro, o Cosme, viu bem que, até então, só havia ganho com os
estupendos lucros ao Caruru almoços e charutos. Era preciso ganhar mais alguma coisa.
Falou-lhe em móveis antigos, em curiosidades de mobiliário, de toda a ordem. Caruru,
porém, seguindo o conselho da princesa, “madama” só gostava de coisas novas. Esses
objetos antigos, dizia ele, consoante a sabedoria da Saúde Pública, têm germens de
várias moléstias transmissíveis e ele não ia nisso de morrer agora, quando ganhava
dinheiro a rodo e tinha ao lado aquela deliciosa “madama” que o fizera ressuscitar da
sepultura do lar burguês e honesto.
Cosme, entretanto, não desanimou de ganhar algum dinheiro graúdo do seu
“comensal riquíssimo” de opíparos almoços.
Havia morrido um manipanso célebre do foro, dos pareceres e dos apedidos do
Jornal do Comércio, e Cosme tinha que lhe vender a biblioteca em leilão. Era de fato
preciosa, mas os livros preciosos e caros estavam virgens, até de traças.
Cosme, logo que pôs a livraria no armazém, tratou de seduzir o amigo para lhe
comprar uns lotes.
Não sabes Caruru que livros raros há na biblioteca do conselheiro
Encerrabodes!
Estrangeiros?
Não; nacionais. Os livros nacionais, quando rareiam, são mais raros do que os
estrangeiros.
Porque?
Porque, aqui, não há amor aos livros, de forma que eles não são conservados
de pais a netos. Ao contrário do que acontece na Europa, onde os herdeiros quase
sempre guardam as relíquias, inclusive os livros, dos avós, sendo por isso fácil encontrar
duplicatas, triplicatas e mais.
Então tens verdadeiras preciosidades?
Tenho.
Quando é o leilão?
Amanhã.
Vou lá, disse Caruru com o ar de um valentão que diz para outro: “Comigo é
nove e tu não tiras farinha.”
Despediram-se e Cosme logo tratou de achar um comparsa que “picasse” os
lances de Caruru.
No dia seguinte, o corretor lá estava, Cosme distraiu-o até começar o leilão.
Puseram em lotação uma obra cujo título ele não ouviu bem. Um sujeito disse:
Dois contos de réis.
Cosme, piscando o olho para Caruru, gritou:
Quem dá mais?
O “Magnífico” berrou:
Dois contos e quinhentos.
O comparsa do leiloeiro berrou:
Três contos!
37
O duelo continuou assim e a obra coube a Lourenço pela ninharia de nove
contos. Eram as leis e decisões do Brasil, desde a Independência até um ano próximo
àquele de tão memorável compra. Dessa forma, comprou muitos outros.
Quando Caruru ia saindo orgulhoso da vitória, alguém perguntou:
O senhor deve ganhar muito dinheiro na advogacia não é?
Absolutamente não. Ganho muito dinheiro com a guerra que os outros fazem e
na qual morrem aos milheiros.
Achou a resposta irônica e sentiu que tinha esmagado o idiota que pretendera
debochá-lo.
Dias depois, possuía no famoso apartamento o núcleo de uma bela e luxuosa
biblioteca, para a qual era perfeitamente analfabeto e que faria dormir o mais resistente
a leituras soporíferas.
Careta, Rio, 5-3-1921.
O falso d. Henrique V
(Episódio da história da Bruzundanga)
NAS NOTAS da minha viagem à República da Bruzundanga, que devem
aparecer brevemente, eu me abstive, para não tornar enfadonho o livro, de tratar da sua
história. Não que ela deixe, por isso ou aquilo, de ser interessante; mas por ser
trabalhosa a tarefa, à vista das muitas identificações das datas de certos fatos, que
exigiam uma paciente transposição de sua cronologia para a nossa e também porque
certas formas de dizer e de pensar são muito expressivas na língua de lá, mas que numa
tradução instantânea para a de cá ficariam sem sal, sem o sainete próprio, a menos que
não quisesse eu deter-me anos em tal afã.
Conquanto não seja rigorosamente científico, como diria um antigo aluno da
École Nationale des Chartes, de Paris; conquanto não seja assim, eu tomei a resolução
heróica de aproximar a grosso modo, nesta breve notícia, os mais peculiares à
Bruzundanga dos nossos nomes portugueses e nomes típicos assim como, do nosso
calendário usual, as datas da cronologia nacional da República da Bruzundanga, que
seria obrigado a fazer referência.
É assim que o nome do principal personagem desta narração não é bem o
germano-luso Henrique Costa; mas, no falar da República de que trato, Henbe-en-
Rhinque.
Avisados disso os eruditos, estou certo de que não tomarão por inqualificável
ignorância da minha parte esse traduzir fantástico às vezes, mesmo, só se baseando na
simples homofonia dos vocábulos.
A história do falso d. Henrique, que foi imperador da Bruzundanga, é muito
semelhante à daquele falso Demétrio que imperou na Rússia onze meses. Mérimée
contou-lhe a história em um livro estimável.
O imperador d. Sajon (Shah-Jehon) reinava desde muito e o seu reinado parecia
não querer tomar termo. Todos os seus filhos varões tinham morrido e a sua herança
passava para os seus netos varões, os quais nos últimos anos do seu governo, se haviam
reduzido a um único.
Lá, convém lembrar, havia uma espécie de lei sálica que não permitia princesa
no trono, embora, em falta do filho do príncipe varão, pudessem os filhos delas governar
e reinar.
O imperador d. Sajon, conquanto fosse despótico, mesmo, em certas vezes, cruel
38
e sanguinário, era amado do povo, sobre o qual a sua cólera quase nunca se fazia sentir.
Tinha no coração que a sua gente pobre fosse o menos pobre possível; que no
seu império não houvesse fome; que os nobres e príncipes não esmagassem nem
espoliassem os camponeses. Espalhava escolas e academias e, aos que se distinguiam,
nas letras ou nas ciências, dava as maiores funções do Estado, sem curar-lhes da origem.
Os nobres fidalgos e mesmo os burgueses enriquecidos do pé para a mão
murmuravam muito sobre a rotina do imperante e o seu viver modesto. Onde é que se
viu, diziam eles, um imperador que só tem dois palácios? E que palácios imundos! Não
têm mármores, não têm “frescos”, não têm quadros, não têm estátuas... Ele,
continuavam, que é dado à botânica, não tem um parque, como o menor do rei da
França, nem um castelo, como o mais insignificante do rei da Inglaterra. Qualquer
príncipe italiano, cujo principado é menos do que a sua capital, tem residências dez
vezes mais magníficas do que esse bocó de Sanjon.
O imperador ouvia isso da boca dos seus esculcas e espiões, mas não dizia nada.
Sabia o sangue e a dor que essas construções opulentas custam aos povos. Sabia quantas
vidas, quantas misérias, quanto sofrimento custou à França Versalhes. Lembrava-se bem
da recomendação que Luiz XIV, arrependido, na hora da morte, fez a seu bisneto e
herdeiro, pedindo-lhe que não abusasse das construções e das guerras, como ele o fizera.
Serviu assim o velho imperador o seu longo reinado sem dar ouvidos aos
fidalgos e grandes burgueses, desejosos todos eles de fazer parada das suas riquezas,
títulos e mulheres belas, em grandes palácios, luxuosos teatros, vastos parques,
construídos, porém, com o suor do povo.
Vivia modestamente, como já foi dito, sem fausto, ou antes com um fausto
obsoleto, tanto pelo seu cerimonial propriamente quanto pelos apetrechos de que se
servia. O carro de gala tinha sido do seu bisavô e, ao que diziam, as librés dos
palafreneiros ainda eram da época do pai, vendo-se até em algumas os remendos mal
postos.
Perdeu todas as filhas, por isso veio a ficar sendo, afinal, o único herdeiro o seu
neto d. Carlos (Khárlithos). Era este um príncipe bom como o avô, mas mais simples e
mais triste do que Sanjon.
Vivia sempre afastado, fora da corte e dos fidalgos, num castelo retirado,
cercado de alguns amigos, de livros, de flores e árvores. Dos prazeres reais e feudais só
guardava um: o cavalo. Era a sua paixão e ele não só os tinha dos melhores, como
também, ensaiava cruzamentos, para selecionar as raças nacionais.
Enviuvara dois anos após um casamento de conveniência e do seu enlace
houvera um único filho o príncipe d. Henrique.
Apesar de viúvo nada se dizia sobre os seus costumes que eram os mais puros e
os mais morais que se podem exigir de um homem. O seu único vício era o cavalo e os
passeios a cavalo pelos arredores do seu castelo, às vezes com um amigo, às vezes com
um criado, mas quase sempre só.
Os amigos íntimos diziam que o seu sofrimento e a sua tristeza vinham de pensar
em ser um dia imperador. Ele não disse, mas bem se podia admitir que raciocinasse com
aquele príncipe do romance que confessa ao primo: “Pois você não vê logo que eu tenho
vergonha, nesta época, de me fingir de Carlos Magno, com o tal manto de arminho,
abelhas, coroas, cetro você não vê mesmo? Fique você com a coroa, se quiser!”
D. Carlos não falava assim, pois não era dado a blagues, nem a boutades; mas,
de quando em quando, ao sair dos rápidos acessos de mutismo e melancolia a que era
sujeito, no meio da conversação, dizia como num suspiro:
No dia em que for imperador, o que farei, meu Deus!
Um belo dia, um príncipe tão bom como este aparece assassinado num caminho
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que atravessa uma floresta do seu domínio de Cubahandê, nos arredores da capital.
A dor foi imensa em todos os pontos do império e ninguém sabia explicar
porque pessoa tão boa, tão ativamente boa, seria trucidada assim misteriosamente.
Naquela manhã, saíra a cavalo, na Hallumatu, a sua égua negra, de um ébano reluzente,
como carbúnculo; e ela voltava desbocada, sem o cavalheiro, para as estrebarias.
Procuraram-no e foram encontrá-lo cadáver com uma punhalada no peito.
O povo perquiriu os culpados e boquejou que o assassínio devia ter sido a
mandado de uns parentes longínquos da família imperial, em nome da qual, há vários
séculos, o seu chefe e fundador tinha desistido das suas prerrogativas e privilégios
feudais, para traficar com escravos malaios. Enriquecidos, aos poucos, entraram de novo
na hierarquia de que se tinham degradado voluntariamente, mas não obtiveram o título
de príncipes imperiais. Eram somente príncipes.
O assassinato ficou esquecido e o velho rei Sanjon teimava em viver. Fosse
enfraquecimento das faculdades, originado pela velhice, fosse o emprego de sortilégios
e feitiços, como querem os incrédulos cronistas de Bruzundanga, o fato é que o velho
imperador entregou-se de corpo e alma ao mais evidente representante da família
aparentada, a dos Hjanlhianes, o tal que se havia degradado. Fazia este e desfazia no
império; e falou-se mesmo em permiti-los voltar às dignidades imperiais, mediante um
senatusconsultum. A isso, o povo e sobretudo o exército se opuseram e começaram a
murmurar. O exército era republicano, queria uma república de verdade, na sua
ingenuidade e inexperiência política; os Hjanlhianes logo perceberam que, por aí,
podiam chegar a altas dignidades e muitos deles se fizeram republicanos.
Entretanto, o bisneto de Sanjon continuava seqüestrado no castelo de
Cubahandê. Devia ter sete ou oito anos.
Quando menos se esperava, num dado momento em que se representava, no
Teatro Imperial da Bruzundanga, o Brutus de Voltaire, vinte generais, seis coronéis,
doze capitães e cerca de oitenta alferes proclamaram a república e saíram para a rua,
seguidos de muitos paisanos que tinham ido buscar as armas de flandres, na arrecadação
do teatro, a gritar: Viva a república! Abaixo o tirano! etc., etc.
O povo, propriamente, vem assim, àquela hora, nas janelas para ver o que se
passava; e, no dia seguinte, quando se soube da verdade, um olhava para o outro e
ambos ficavam estupidamente mudos.
Tudo aderiu; e o velho imperador e os seus parentes, exceto os Hjanlhianes,
foram exilados. Ficou também o pequeno príncipe d. Henrique como refém e sonhou
que os imperiais parentes dele não tentariam nenhum golpe de mão contra as
instituições populares, que acabavam de trazer a próxima felicidade da Bruzundanga.
Foi escolhida uma junta governativa, cujo chefe foi aquele Hjanlhianes, Tétrech,
que era favorito do imperador Sanjon.
Começou logo a construir palácios e teatros, a pôr casas abaixo, para fazer
avenidas suntuosas. O dinheiro da receita não chegava, aumentou os impostos, e
vexações, multas, etc. Enquanto a constituinte não votava a nova Constituição,
decuplicou os direitos de entrada de produtos estrangeiros manufaturados. Os espertos
começaram a manter curiosas fábricas de produtos nacionais da seguinte forma, por
exemplo: adquiriam em outros países solas, sapatos já recortados. Importavam tudo
isso, como matéria-prima, livre de impostos, montavam as botas nas suas singulares
fábricas e vendiam pelo triplo do que custavam os estrangeiros.
Outra forma de extorquir dinheiro ao povo e enriquecer mais ainda os ricos eram
as isenções de direitos alfandegários.
Tétrech decretou isenções de direitos para maquinismos, etc., destinados a usinas
modelos de açúcar, por exemplo, e prêmios para a exportação dos mesmos produtos. Os
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ricos somente podiam mantê-los e trataram de fazê-lo logo. Fabricaram açúcar à
vontade, mas mandavam para o exterior, pela metade do custo, a quase totalidade da
produção, pois os prêmios cobriam o prejuízo e o encarecimento fatal de produto, nos
mercados da Bruzundanga, também. Nunca houve tempo, em que se inventassem com
tanta perfeição tantas ladroeiras legais.
A fortuna particular de alguns, em menos de dez anos, quase que quintuplicou;
mas o Estado, os pequenos burgueses e o povo, pouco a pouco, foram caindo na miséria
mais atroz.
O povo do campo, dos latifúndios (fazendas) e empresas deixou a agricultura e
correu para a cidade atraído pela alta dos salários; era, porém, uma ilusão, pois a vida
tornou-se caríssima. Os que lá ficaram, roídos pelas doenças e pela bebida, deixavam-se
ficar vivendo num desânimo de agruras.
Os salários eram baixíssimos e não lhes davam com o que se alimentassem
razoavelmente; andavam quase nus; as suas casas eram sujíssimas e cheias de insetos
parasitas, transmissores de moléstias terríveis. A raça da Bruzundanga tinha por isso
uma caligem de tristeza que lhe emprestava tudo quanto ela continha: as armas, o
escachoar das cachoeiras, o canto doloroso dos pássaros, o cicio da chuva nas cobertas
de sapê da choça tudo nela era dor, choro e tristeza. Dir-se-ia que aquela terra tão
velha se sentia aos poucos sem viver...
Antes disso, porém, houve um acontecimento que abalou profundamente o povo.
O príncipe d. Henrique e o seu preceptor, d. Hobhathy, foram encontrados numa tarde,
afogados num lago do jardim do castelo de Cubahandê. A nova correu célere por todo o
país, mas ninguém quis acreditar no fato, tanto mais que Tétrech Hjanlhianes mandou
executar todos os servidores do palácio. Se ele os mandou matar, considerava a gente
humilde, é porque não queria que ninguém dissesse que o menino tinha fugido. E não
saiu dai. Os padres das aldeias e arraiais, que se viam vexados e perseguidos os das
cidades sempre dispostos a esmagar aqueles, para servir os potentados nas suas
violências e opressões contra os trabalhadores rurais não cessavam de manter
veladamente essa crença da existência do príncipe Henrique. Estava oculto, havia de
aparecer...
Sofrimentos de toda a ordem caíram sobre o pobre povo da roça e do sertão;
privações de toda a natureza caíram sobre ele; e colaram-lhe a fria sanguessuga, a
ventosa dos impostos, cujo produto era empregado diretamente, num fausto
governamental de opereta, e, indiretamente, numa ostentação ridícula de ricos sem
educação nem instrução. Para benefício geral, nada!
A Bruzundanga era um sarcófago de mármore, ouro e pedrarias, em cujo seio,
porém, o cadáver mal embalsamado do povo apodrecia e fermentava.
De norte a sul, sucediam-se epidemias de loucuras, umas maiores, outras
menores. Para debelar uma, foi preciso um verdadeiro exército de vinte mil homens. No
interior era assim; nas cidades, os hospícios e asilos de alienados regurgitavam. O
sofrimento e a penúria levavam ao álcool, “para esquecer”; e o álcool levava ao
manicômio.
Profetas regurgitavam, cartomantes, práticos de feitiçaria, abusos de toda a
ordem. A prostituição, clara ou clandestina, era quase geral, de alto a baixo; e os
adultérios cresciam devido ao mútuo engano dos nubentes em represália, um ao outro,
fortuna ou meios, de obtê-la. Na classe pobre, também, por contágio. Apesar do luxo
tosco, bárbaro e bronco, dos palácios e “perspectivas” cenográficas, a vida das cidades
era triste, de provocar lágrimas. A indolência dos ricos tinha abandªdo as alturas dela, as
suas colinas pitorescas, e os pobres, os mais pobres, de mistura em toda espécie de
desgraçados criminosos e vagabundos, ocupavam as eminências urbanas com casebres
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miseráveis, sujos, frios, feitos de tábuas de caixões de sabão e cobertos com folhas
desdobradas de latas em que veio acondicionado o querosene.
Era a coroa, o laurel daquela glacial transformação política...
As dores do país tiveram eco num peito rústico e humilde. Surgiu num domingo
o profeta, que gemia por todo o país.
Rapidamente, pela nação toda, foram conhecidas as profecias, em verso, do
professor Lopes. Quem era? Numa aldeia da província de Aurilândia, um velho mestiço
que tivera algumas luzes de seminário e vivera muito tempo a ensinar as primeiras
letras, apareceu alistando profecias, umas claras, outras confusas. Em instantes,
espalharam-se pelo país e foram do ouvido do povo crédulo ao entendimento do burguês
com algumas luzes.
Todos os que tinham “a fé no coração” ouviram-nas; e todos queriam o
reaparecimento d’Ele, do pequeno imperador d. Henrique, que não fora assassinado. A
tensão espiritual chegava ao auge; a miséria batia em todos os pontos, uma epidemia
desconhecida de tal forma foi violenta que, na capital da Bruzundanga, foi preciso
apelar para a caridade dos galés, a fim de enterrar os mortos!...
Desaparecida que ela foi, muito tempo, a cidade, os subúrbios, até as estradas
rurais cheiravam a defunto...
E quase todas recitavam como oração, as profecias do professor Lopes:
Este país da Bruzundanga
Parece de Deus deslembrado.
Nele, o povo anda na canga
Amarelo, pobre, esfaimado.
Houve fome, seca e peste
Brigas e saques também
E agora a água investe
Sem cobrir a guerra que vem.
No ano que tem dois sete
Ele por força voltará
E oito ninguém sofrerá.
Pois flagelos já são sete
E oito ninguém sofrerá.
Estes toscos versos eram sabidos de cor por toda a gente e recitados em uma
unção mística. O governo tentou desmoralizá-los, por intermédio dos seus jornais, mas
não conseguiu. O povo acreditava. Tentou prender Lopes mas recuou, diante da ameaça
de uma sublevação em massa da província de Aurilândia. As coisas pareciam querer
sossegar, quando se anunciou que, nesta penúria, aparecera o príncipe d. Henrique. Em
começo, ninguém fez caso; mas o fato tomou vulto. Todos por lá recebiam-no como tal,
desde o mais rico até o mais pobre. Um velho servidor do antigo imperador jurou
reconhecer, naquele mancebo de trinta anos, o bisneto do seu antigo imperial amo.
Os hjanlhianes, com estes e aquele nome, continuavam a suceder-se no governo,
espenicando o saque e a vergonha do país em regra. Tinham, logo que esgotavam as
forças dos naturais, apelado para a imigração, a fim de evitar velhaduras nos seus
latifúndios. Vieram homens mais robustos e mais cheios de ousadia, sem mesmo
dependência sentimental com os dominadores, pois não se deixavam explorar
facilmente, como os naturais. Revoltavam-se continuadamente; e os hjanlhianes,
esquecidos do mal que tinham dito dos seus patrícios pobres, deram em animar estes e a
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tanger o chocalho da Pátria e do Patriotismo. Mas, era tarde! Quando se soube que a
Bruzundanga tinha declarado guerra ao Império dos Oges para que muitos hjanlhianes
se metessem em grandes comissões e gorjetas, que os banqueiros da Europa lhes davam,
não foi mais a primazia de Aurilândia que se conheceu naquele mancebo desconhecido,
o seu legítimo imperador d. Henrique V, bisneto do bom d. Sajon: foi todo país,
operários, soldados, cansados de curtir miséria também; estrangeiros, vagabundos,
criminosos, prostitutas, todos enfim, que sofriam.
O chefe dos hjanlhianes morreu como um cão, envenenado por ele mesmo ou
por outros, no seu palácio, enquanto os seus criados e fâmulos queimavam no pátio, em
auto-de-fé, os tapetes que tinham custado misérias e lágrimas de um povo dócil e bom.
A cidade se iluminou; não houve pobre que não pusesse uma vela, um coto, na janela do
seu casebre...
D. Henrique reinou durante muito tempo e, até hoje. os mais conscienciosos
sábios da Bruzundanga não afirmam com segurança se ele era verdadeiro ou falso.
Como não tivesse descendência, quando chegou aos sessenta anos, aquele sábio
príncipe proclamou por sua própria boca a república, que é ainda a forma de governo da
Bruzundanga mas para a qual, ao que parece, o país não tem nenhuma vocação. Ela
espera ainda a sua forma de governo...
Eficiência militar
(Historieta chinesa)
LI-HUANG-PÔ, vice-rei de Cantão, Império da China, Celeste Império, Império
do Meio, nome que lhe vai a calhar, notava que o seu exército provincial não
apresentava nem garbo marcial, nem tampouco, nas últimas manobras, tinha
demonstrado grandes aptidões guerreiras.
Como toda a gente sabe, o vice-rei da província de Cantão, na China, tem
atribuições quase soberanas. Ele governa a província como reino seu que houvesse
herdado de seus pais, tendo unicamente por lei a sua vontade.
Convém não esquecer que isto se passou, durante o antigo regímen chinês, na
vigência do qual, esse vice-rei tinha todos os poderes de monarca absoluto, obrigando-
se unicamente a contribuir com um avultado tributo anual, para o erário do Filho do
Céu, que vivia refestelado em Pequim, na misteriosa cidade imperial, invisível para o
grosso do seu povo e cercado por dezenas de mulheres e centenas de concubinas. Bem.
Verificado esse estado miserável do seu exército, o vice-rei Li-Huang-
começou a meditar nos remédios que devia aplicar para levantar-lhe o moral e tirar de
sua força armada maior rendimento militar. Mandou dobrar a ração de arroz e carne de
cachorro, que os soldados venciam. Isto, entretanto, aumentou em muito a despesa feita
com a força militar do vice-reinado; e, no intuito de fazer face a esse aumento, ele se
lembrou, ou alguém lhe lembrou, o simples alvitre de duplicar os impostos que pagavam
os pescadores, os fabricantes de porcelana e os carregadores de adubo humano tipo
dos mais característicos daquela babilônica cidade de Cantão.
Ao fim de alguns meses, ele tratou de verificar os resultados do remédio que
havia aplicado nos seus fiéis soldados, a fim de dar-lhes garbo, entusiasmo e vigor
marcial.
Determinou que se realizassem manobras gerais, na próxima primavera, por
ocasião de florirem as cerejeiras, e elas tivessem lugar na planície de Chu-Wei-Hu o
que quer dizer na nossa língua: “planície dos dias felizes”. As suas ordens foram
obedecidas e cerca de cinqüenta mil chineses, soldados das três armas, acamparam em
Chu-Wei-Hu, debaixo de barracas de seda. Na China, seda é como metim aqui.
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Comandava em chefe esse portentoso exército, o general Fu-Shi-Tô que tinha
começado a sua carreira militar como puxador de tílburi em Hong-Kong. Fizera-se tão
destro nesse mister que o governador inglês o tomara para o seu serviço exclusivo.
Este fato deu-lhe um excepcional prestígio entre os seus patrícios, porque,
embora os chineses detestem os estrangeiros, em geral, sobretudo os ingleses, não
deixam, entretanto, de ter um respeito temeroso por eles, de sentir o prestígio sobre-
humano dos “diabos vermelhos”, como os chinas chamam os europeus e os de raça
européia.
Deixando a famulagem do governador britânico de Hong-Kong, Fu-Shi-Tô não
podia ter outro cargo, na sua própria pátria, senão o de general no exército do vice-rei de
Cantão. E assim foi ele feito, mostrando-se desde logo um inovador, introduzindo
melhoramentos na tropa e no material bélico, merecendo por isso ser condecorado com
o dragão imperial de ouro maciço. Foi ele quem substituiu, na força armada cantonesa,
os canhões de papelão, pelos do Krupp; e, com isto, ganhou de comissão alguns bilhões
de taels, que repartiu com o vice-rei. Os franceses do Canet queriam lhe dar um pouco
menos, por isso ele julgou mais perfeitos os canhões do Krupp, em comparação com os
do Canet. Entendia, a fundo, de artilharia, o ex-fâmulo do governador de Hong-Kong.
O exército de Li-Huang-Pô estava acampado havia um mês, nas “planícies dos
dias felizes”, quando ele se resolveu a ir assistir-lhe as manobras, antes de passar-lhe a
revista final.
O vice-rei, acompanhado do seu séquito, do qual fazia parte o seu exímio
cabeleireiro Pi-Nu, lá foi para a linda planície, esperando assistir a manobras de um
verdadeiro exército germânico. Antegozava isso como uma vítima sua e, também, como
constituindo o penhor de sua eternidade no lugar rendoso de quase rei da rica província
de Cantão. Com um forte exército à mão, ninguém se atreveria a demiti-lo dele. Foi.
Assistiu as evoluções com curiosidade e atenção. A seu lado, Fu-Shi-
explicava os temas e os detalhes do respectivo desenvolvimento, com a abundância e o
saber de quem havia estudado Arte da Guerra entre os varais de um cabriolet.
O vice-rei, porém, não parecia satisfeito. Notava hesitações, falta de élan na
tropa, rapidez e exatidão nas evoluções e pouca obediência ao comando em chefe e aos
comandados particulares; enfim, pouca eficiência militar naquele exército que devia ser
uma ameaça à China inteira, caso quisessem retirá-lo do cômodo e rendoso lugar de
vice-rei de Cantão. Comunicou isto ao general que lhe respondeu:
É verdade o que Vossa Excelência Reverendíssima, Poderosíssima,
Graciosíssima, Altíssima e Celestial diz; mas os defeitos são fáceis de remediar.
Como? perguntou o vice-rei.
É simples. O uniforme atual muito se parece com o alemão; mudemo-lo para
uma imitação do francês e tudo estará sanado.
Li-Huang-Pô pôs-se a pensar, recordando a sua estadia em Berlim, as festas que
os grandes dignatários da corte de Potsdam lhe fizeram, o acolhimento do Kaiser e,
sobretudo, os taels que recebeu de sociedade com o seu general Fu-Shi-Pô... Seria uma
ingratidão; mas... Pensou ainda um pouco; e, por fim, num repente, disse
peremptoriamente:
Mudemos o uniforme; e já!
Careta, Rio, 9-9-1922.
O pecado
44
QUANDO NAQUELE dia São Pedro despertou, despertou risonho e de bom
humor. E, terminados os cuidados higiênicos da manhã, ele se foi à competente
repartição celestial buscar ordens do Supremo e saber que almas chegariam na próxima
leva.
Em uma mesa longa, larga e baixa, um grande livro aberto se estendia e
debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a
escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos
traziam de toda a extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas
letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro caráter
caligráfico.
Assim páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas nos mais preciosos tipos
de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si
guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro. O nome
era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico, tinha um ar religioso,
antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.
Ao entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e, à
reclamação da lista d’almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do
ofício) que viesse à tarde buscá-la.
Aí pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta
encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa e
entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos
no dia seguinte.
Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de
antemão a lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em
diante, para o resto das idades quem sabe? o Céu ficasse de todo estragado. Leu São
Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista das explicações
apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim:
P. L. C., filho de... neto de... bisneto de... Carregador, quarenta e oito anos.
Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco
de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.
Deveras, pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional; como tão
extraordinárias qualidades bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per
saecula .saeculorum, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo...
E porque não ia? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.
Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado...
Veja bem nos assentamentos. Não vá ter você se enganado. Procure, retrucou
por sua vez o velho pescador canonizado.
Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o
enorme Registro até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha
adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:
P. L. C., filho de... neto de... bisneto de... Carregador. Quarenta e oito anos.
Casado. Honesto. Caridoso. Leal. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco
de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.
Levando o dedo pela pauta horizontal e nas “Observações”, deparou qualquer
coisa que o fez dizer de súbito:
Esquecia-me... Houve engano. É! Foi bom estra- você falar. Essa alma é a de
um negro. Vai para o purgatório.
Revista Sousa Cruz, Rio, agosto 1924.
45
Um que vendeu a sua alma
A ANEDOTA QUE lhe vou contar, tem alguma coisa de fantástica e pareceria
que, como homem de meu tempo, eu não devia dar-lhe crédito algum. Entra nela o
Diabo e toda a gente de certo desenvolvimento mental está quase sempre disposta a
acreditar em Deus, mas raramente no Diabo.
Não sei se acredito em Deus, não sei se acredito no Diabo, porque não tenho as
minhas crenças muito firmes.
Desde que perdi a fé no meu Lacroix; desde que me convenci da existência de
muitas geometrias a se contradizerem nas suas definições e teoremas mais vulgares;
desde então deixei que a certeza ficasse com os antropologistas, etnólogos, florianistas,
sociólogos e outros tolos de igual jaez.
A horrível mania da certeza de que fala Renan, já a tive; hoje, porém, não. De
modo que posso bem à vontade contar-lhes uma anedota em que entra o Diabo.
Se os senhores quiserem acreditem; eu, cá por mim, se não acredito, não nego
também.
Narrou-me o amigo:
Certo dia, uma manhã, estava eu muito aborrecido a pensar na minha vida. O
meu aborrecimento era mortal. Um tédio imenso invadia-me. Sentia-me vazio. Diante
do espetáculo do mundo, eu não reagia. Sentia-me como um toco de pau, como qualquer
coisa de inerte.
Os desgostos da minha vida, os meus excessos, as minhas decepções, me haviam
levado a um estado de desespero, de aborrecimento, de tédio, para o qual, em vão,
procurava remédio. A Morte não me servia. Se era verdade que a Vida não me
agradava, a Morte não me atraía. Eu queria outra Vida. Você se lembra do Bossuet,
quando falou por ocasião de mlle de la Vallière tomar o véu?
Respondi:
Lembro-me.
Pois sentia aquilo que ele disse e censurou: queria outra vida. E então só me
daria muito dinheiro.
Queria andar, queria viajar, queria experimentar se as belezas que o tempo e o
sofrimento dos homens acumularam sobre a terra, despertavam em mim a emoção
necessária para a existência, o sabor de viver.
Mas dinheiro! como arranjar? Pensei meios e modos: Furtos, assassinatos,
estelionatos sonhei-me Raskólnikoff ou coisa parecida. Jeito, porém, não havia e a
energia não me sobrava.
Pensei então no Diabo. Se ele quisesse comprar-me a alma? Havia tanta história
popular que contava pactos com ele que eu, homem cético e ultramoderno apelei para o
Diabo, e sinceramente!
Nisto bateram-me a porta. Abri.
Quem era?
O Diabo.
Como o conheceste?
Espera. Era um cavalheiro como qualquer, sem barbichas, sem chavelhos, sem
nenhum atributo diabólico. Entrou como um velho conhecimento e tive a impressão de
que conhecia muito o visitante. Sem cerimônia sentou-se e foi perguntando: “Que diabo
de spleen é esse?” Retorqui: “A palavra vai bem mas falta-me o milhão.” Disse-lhe isso
sem reflexão e ele sem se espantar, deu umas voltas pela minha sala e olhou um retrato.
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Indagou: “É tua noiva?” Acudi: “Não. É um retrato que encontrei na rua. Simpatizei e”.
“Queres vê-la já?” perguntou-me o homem. “Quero”, respondi. E logo, entre nós dois
sentou-se a mulher do retrato. Estivemos conversando e adquiri certeza de que estava
falando com o Diabo. A mulher foi-se e logo o Diabo inquiriu: “Que querias de mim?”
“Vender-te minha alma”, disse-lhe eu.
E o diálogo continuou assim:
Diabo Quanto queres por ela?
Eu Quinhentos contos.
Diabo Não queres pouco.
Eu Achas caro?
Diabo Certamente.
Eu Aceito mesmo a coisa por trezentos.
Diabo Ora! Ora!
Eu Então, quanto dás?
Diabo Filho, não te faço preço. Hoje, recebo tanta alma de graça que não me
vale a pena comprá-las.
Eu Então não dás nada?
Diabo Homem! Para falar-te com franqueza, simpatizo muito contigo, por isso
vou dar-te alguma coisa.
Eu Quanto?
Diabo Queres vinte mil-réis?
E logo perguntei ao meu amigo:
Aceitaste?
O meu amigo esteve um instante suspenso, afinal respondeu:
Eu... Eu aceitei.
A Primavera, Rio, julho 1913.
Carta de um defunto rico
“MEUS CAROS amigos e parentes. Cá estou no carneiro n.
o
7..., da 3ª quadra, à
direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João
Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo
fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de
roda não diminuiu em nada a imponência da antigüidade da rocha dominante nelas. Há
certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa
que nem o Sol glorioso espanca... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário,
uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco,
unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas
recordações; mas anda em toda a parte.
Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas
mórbidos, purificar-me no ar superior e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro
que enche os límpidos espaços.
Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a
inteligência de tanta gente.
Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador
do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para
autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes
herdeiros coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não
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sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a
andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas e pedir a literatos das ante-salas
palacianas, que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de
bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser
avivado.
Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas
não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos
que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos
seus primitivos donos.
Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa
haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos
seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as
costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas
criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores,
dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com as
vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.
É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do
personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem
em si, etc., etc. Estando ela ausente, por incapacidade do autor, o drama não vale nada.
Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e
cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes,
porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é
supremamente sacrílego.
De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não
se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco
esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades
e grão-senhores no castigo dos seus escravos.
Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente
eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a
digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos...
Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os mortos não perseguem ninguém; e só podem gozar da beatitude da
superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma
todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.
Os que não conseguem isso ai deles!
Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era
outra.
O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto
sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é
propriamente meu, mas de vocês; e não há mal algum que um vivente tenha um naco de
vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de
Letras.
Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas
por vivos para vivos.
É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser
enterrados. Cada um enterra seu pai como pode é uma sentença popular, cujo
ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes
a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no
fundo.
O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os
48
cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram
lindas. Do Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras,
das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior
parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João
Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não parasse
para contemplá-lo, descobrindo-se ritualmente; não havia quem não perguntasse quem
ia ali.
Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma
população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última
pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios
parentes.
Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no
fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.
Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas
pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei,
a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu.
Adivinhei isto e fiquei a matutar como é que ele gozava de tanta consideração
fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...
Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez
as sabatinas por “tuta-e-meia”; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que
tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti!
Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação
matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.
Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação
deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes profundamente bom. Atualmente, sou
sempre...
Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que
havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão,
quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.
Agradeço a vocês o cuidado que tiveram como o meu enterro; mas, seja-me
permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico;
mas um cuidado vocês não tiveram. Porque vocês não forneceram librés novas aos
cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira
andrajosa que causava dó?
Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os
pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O
brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.
Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que
estou sempre junto de vocês. É tudo isto do
José Boaventura da Silva.
N.B. Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista da
Lagoa; e, segundo a sabedoria universal, em toda a parte. J. B. S.”
Posso garantir que trasladei esta carta para aqui, sem omissão de uma vírgula.
A.B.C., Rio, 22-1-1921.
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