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era mãe dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a minha
narração...
Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, não há
novidade de espécie alguma e, já da pena, escreve devagarinho: “Tenho a honra”, etc., etc.; ou,
republicanamente, “Declaro-vos, para os fins convenientes”, etc., etc. Se há mudança, é pequena e o
começo é já bem sabido: “Tenho em vistas”... – ou “Na forma do disposto”...
Às vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os
mais difíceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável.
O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas não é dos outros gênios da Secretaria dos
Cultos. Xisto é estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar
da sua pulhice bacharelesca e a sua limitação intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em
todos os atos de sua vida, mesmo como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar;
não bajula, nem recebe gratificações.
Os dois outros, porém, são mais modernizados. Um é “charadista”, o homem que o diretor
consulta, que dá as informações confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses.
Este ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez
amigo e, em pouco, subiu três passos na hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou
extraordinárias. Não é má pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só
amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoções. Há
casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa inferência burocrática, em que o seu amor primitivo
a charadas, ao logogrifo e aos enigmas pitorescos pôs-lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma
necessidade de impor aos outros adivinhação sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do “auxiliar de
gabinete”. É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer coisa;
pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de
Santa Catarina, estudou no Rio qualquer coisa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro
que o levasse maciamente para o fundo da terra, donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse
possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.
Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para
conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer coisa,
solidamente. Quem como ele faz de sua vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um
lugar em uma secretaria qualquer serve. Há os que vêem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a
quintessência da espécie.
Na Secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre “auxiliar de gabinete”, arranjou o sogro dos seus
sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristães,
irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal
eclesiástico.
O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do
estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.
Tinha ele uma filha a casar e o “auxiliar de gabinete”, logo viu no seu casamento com ela, o mais
fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro.
Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o “sogro”, sem escrúpulo algum, fez-se nomear
examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele “o noivo”.
Que se havia de fazer? O rapaz precisava.
O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o
lugar de “auxiliar de gabinete” do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro formula se
despedir do novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro bateu na testa e
gritou:
– Quem é aí o doutor Mata-Borrão?
O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum tremor na voz e esperança nos olhos:
– Sou eu, excelência.
– O senhor fica. O seu “sogro” já me disse que o senhor precisa muito.
É ele assim, no gabinete, entre os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, é de
uma prosápia de Napoleão, de quem se não conhecesse a Josefina.
A todos em que ele vê um concorrente, traiçoeiramente desacredita: é bêbedo,
joga, abandª a mulher, não sabe escrever – “comissão”, etc. Adquiriu títulos literários,
publicando a Relação dos Padroeiros das Principais Cidades do Brasil; e sua mulher
quando fala nele, não se esquece de dizer: “Como Rui Barbosa, o Chico ou “Como
Machado de Assis, meu marido só bebe água.” Gênio doméstico e burocrático, Mata-
Borrão, não chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a entrar nem no inferno. A