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Brasília, agosto de 2005
Livro Construção__Volume 3__Final.p65 29/11/2005, 14:571
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Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem
como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem
comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação do material ao
longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas
autoridades, ou da delimitação de suas fronteiras ou limites.
Education Sector
Division of Educational policies and Strategies
Section for Support for National Educational Development/ UNESCO-Paris
UNESCO 2005 Edição publicada pelo Escritório da UNESCO no Brasil
Livro Construção__Volume 3__Final.p65 29/11/2005, 14:572
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ORGANIZAÇÃO:
Departamento de Educação de
Jovens e Adultos/Secad e Rede
de Apoio à Ação Alfabetizadora do
Brasil – RAAAB
Livro Construção__Volume 3__Final.p65 29/11/2005, 14:573
Construção coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos. — Brasília :
UNESCO, MEC, RAAAB, 2005.
362p. – (Coleção educação para todos; 3).
ISBN: 85-7652-049-4
1. Educação de Adultos 2. Educação Universal 3. Democratização da Educação
I. UNESCO II. Brasil. Ministério da Educação III. RAAAB
CDD 379.2
edições MEC/UNESCO
Conselho Editorial da Coleção Educação para Todos
Adama Ouane
Alberto Melo
Célio da Cunha
Dalila Shepard
Katherine Grigsby
Osmar Fávero
Ricardo Henriques
Coordenação Editorial da UNESCO no Brasil: Célio da Cunha
Assistente Editorial do MEC: Fernanda Frade
Assistente Editorial da UNESCO: Larissa Vieira Leite
Revisão: Reinaldo Lima
Diagramação: Fernando Brandão
Projeto gráfico e capa: Edson Fogaça
UNESCO, 2005
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COLEGIADO EXECUTIVO DA RAAAB
Instituto Paulo Freire
Rua Cerro Corá, 550, 2º andar , Cj. 22 Alto da Lapa
CEP: 05061-100 São Paulo, SP
Fone: (11) 3021-5536 Fax: (11) 3021-5589
DIÁLOGO - Pesquisa e Assessoria em Educação Popular
Rua Vigário José Inácio, 399, sala 411 Centro
CEP: 90020-100 POA/RS
Fones: (51) 3221-7476 e 9917-1788
Projeto Escola Zé Peão – Paraíba
Centro de Educação – Ambiente dos professores, 13 e 14 Campus I UFPB Castelo Branco
João Pessoa - PB
Sintricom - Rua Cruz Cordeiro 75 Varadouro CEP 58010-120 – João Pessoa PB
Fones: (83) 3216 7687 e 3221 1807
COMISSÕES
Comunicação
Coordenadora: Jane Paiva - Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Fone: (21) 2587-7881 – e-mail: [email protected]
Políticas de formação
Coordenadora: Eliane Dayse Furtado - Universidade Federal do Ceará - UFCE
Fone: (85) 3281-5188 – e-mail: [email protected]
Intercâmbio e mobilização
Coordenador: José Edson de Oliveira Lima - Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisa
Centro de Educação da UFPE
Fone: (81) 21268809 - e-mail: [email protected] / [email protected]
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SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................... 11
Políticas públicas de educação de jovens e adultos: trajetórias .... 15
Um balanço da evolução recente da educação de jovens e
adultos no Brasil ............................................................................... 17
Maria Clara Di Pierro
Parceria: uma faca de muitos gumes ................................................. 31
Antonio Munarim
Educação de jovens e adultos: fios e desafios na construção
de sua identidade ............................................................................... 49
Zenaide Maria Santos
Reconhecendo alguns conceitos .................................................... 61
Um sonho que não serve ao sonhador............................................. 63
José Carlos e Vera Barreto
Os direitos humanos na história....................................................... 69
Margarida Bulhões Pedreira Genevois
Alfabetização: a ressignificação do conceito ..................................... 87
Magda Soares
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8
Por dentro do mundo do trabalho ................................................... 95
Uma prática educativa com operários da construção....................... 97
Timothy Ireland
Educação básica de jovens e adultos e trabalho.............................. 109
Marisa Brandão
Contribuições da CUT para uma educação emancipadora............ 121
Maristela Miranda Bárbara
Movimentos na diversidade .......................................................... 129
Uma política para educação indígena: as amarras
da especificidade .............................................................................. 131
Marina Kahn
Identidades juvenis e escola............................................................. 153
Paulo César Rodrigues Carrano
As práticas educativas do movimento negro e a educação
de jovens e adultos .......................................................................... 165
Joana Célia dos Passos
Vinte anos do MST: sempre é tempo de aprender ......................... 175
Maria Cristina Vargas
Educadores em formação ............................................................. 189
Para pensar sobre a linguagem escrita do Mova-SP ........................ 191
Ana Lúcia Silva Souza
Formação de educadores: aprendendo com a experiência.............. 201
Cláudia Lemos Vóvio
Maurilene de Souza Bicas
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9
Avaliação emancipatória no Seja: no tempo do fazer
e do aprender .................................................................................. 213
Anézia Viero
Cléa Penteado
Sandra Rangel Garcia
O currículo e o ambiente escolar ................................................. 219
A educação de jovens e adultos em tempos de exclusão ................ 221
Miguel Arroyo
Tendências recentes dos estudos e das práticas curriculares........... 231
Inês Barbosa de Oliveira
O currículo das escolas do MST ..................................................... 243
Roseli Salete Caldart
Da oralidade à escrita.................................................................... 259
Oralidade e escrita: notas para pensar as práticas
de alfabetização ............................................................................... 261
Tânia Dauster
Experiências de leitores e ouvintes de folhetos de cordel ............... 275
Ana Maria de Oliveira Galvão
Roda de leitura: a leitura no centro do processo de formação de
alfabetizadores de jovens e adultos ................................................. 287
Graça Helena Silva de Souza
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10
Entender-se com a matemática.................................................... 299
Explorando o uso da calculadora no ensino de matemática
para jovens e adultos....................................................................... 301
Antônio José Lopes (Bigode)
Educação matemática e EJA ........................................................... 321
Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca
A matemática e a apropriação dos códigos formais ........................ 333
Lucillo de Souza Junior
Epílogo ........................................................................................... 345
A política de educação de jovens e adultos no governo Lula ......... 347
Ricardo Henriques
Timothy Ireland
Autores ........................................................................................... 359
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11
APRESENTAÇÃO
A educação pública de qualidade é uma das principais vias para
construção de uma sociedade mais justa, solidária e democrática.
Nesse sentido, constitui-se em uma poderosa ferramenta para a
mudança social. Em primeiro lugar, porque a educação é o elemento
fundamental para o desenvolvimento pessoal e para a realização da
vocação de ser humano. Segundo, porque é o caminho para formar
pessoas sensíveis para as questões que afetam a todos e a grupos
minoritários, para a prática da liberdade e para o exercício da cidadania.
Terceiro, porque é uma das vias para a ampliação do processo
produtivo e desenvolvimento tecnológico do país. Quarto, porque
é o caminho para a mobilização social, sem a qual as mudanças não
se viabilizam, a modernização não distribui seus frutos e não se
superam as desigualdades e a exclusão.
Essa perspectiva tem influenciado o desenho de políticas e o
enfrentamento dos desafios que se avolumam no campo educacional
brasileiro. Em especial, a Educação de Jovens e Adultos – EJA –
constituiu-se, nos últimos anos, como um campo estratégico para fazer
frente à exclusão e à desigualdade social e assumiu novos contornos,
sendo vista como modalidade educativa que transborda os limites do
processo de escolarização formal, que abarca aprendizagens realizadas
em diversos âmbitos e ao longo de toda a vida, que se orienta para a
inclusão de milhões de pessoas jovens e adultas que não puderam
iniciar ou completar os estudos na educação básica.
O processo de construção coletiva da EJA, refletido no título
da publicação, não apenas indica o processo de organização dos
textos que compõem esta publicação, elaborada em parceria com
a Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil – RAAAB, mas
reflete os caminhos de construção coletiva da política pública
nacional de educação de jovens e adultos, iniciada pela Secretaria
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12
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – Secad com
seus diversos interlocutores.
A RAAAB, originada de uma articulação de organizações não-
governamentais (ONGs), na década de oitenta, hoje abrange
educadores e coordenadores de programas de educação de adultos,
pesquisadores, administrações públicas, movimentos sociais,
sindicatos e outras entidades ligadas à área no Brasil. A Rede teve
ativa participação em vários eventos e mobilizações ocorridos na
última década destacando o seu papel na articulação dos Encontros
Nacionais de Educação e Jovens e Adultos – Enejas, realizados
anualmente desde 1999.
No processo de construção, os educadores são agentes sociais
fundamentais, responsáveis por concretizar princípios em práticas
educativas, sem os quais os desafios ainda presentes no campo
educacional brasileiro não poderiam ser enfrentados. Esta coletânea
se destina aos educadores de jovens e adultos, pelo reconhecimento
do papel central que desempenham na educação e no
desenvolvimento humano, com o objetivo de apoiar e fortalecer as
ações que empreendem.
Os textos aqui reunidos — artigos, relatos de experiências e
práticas — foram publicados nos dezoito números da Revista
Alfabetização e Cidadania, publicação da RAAAB. Desde 1994, este
periódico tem se constituído em um importante espaço para o
intercâmbio de experiências, a sistematização de práticas e a
disseminação de princípios e idéias por parte de pesquisadores,
gestores de políticas, representantes de movimentos sociais,
educadores e educandos que se inserem no campo da EJA.
Entretanto mais importante, ao longo de sua história, a Revista
tornou-se fundamental nos processos de formação de educadores.
Diferentemente da publicação original, aqui os textos foram
reagrupados em oito blocos, acrescido o epílogo, perpassando
dimensões e temas relevantes para todos os envolvidos diretamente
na EJA. Em especial, abordam conceitos, informações e
experiências que, além de orientar e inspirar educadores em suas
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13
práticas, também servem como eixos para a ação reflexiva desses
profissionais, tanto para análise crítica das políticas no contexto
nacional e local em que a EJA se insere quanto para fundamentar e
inspirar a elaboração de propostas educativas e exercitar o pensar
sobre o fazer pedagógico.
Esse trajeto começa com um balanço das políticas e diretrizes
traçadas para EJA no Brasil, a partir da V Conferência Internacional
de Educação de Adultos (1997) e se encerra com uma apresentação
das principais diretrizes da política de educação de jovens e adultos
no Governo Lula, texto que se diferencia por ser o único inédito
no livro.
Esperamos que esta coletânea ganhe vida nas mãos dos educadores,
e que a leitura desses textos e o debate em torno de idéias e
proposições alimentem a reflexão e fortaleçam as práticas pedagógicas
que empreendem junto às pessoas jovens e adultas.
Timothy Ireland
pela Secad
Cláudia Lemos Vóvio
pela RAAAB
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15
Políticas públicas de educação de
jovens e adultos: trajetórias
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17
UM BALANÇO DA EVOLUÇÃO RECENTE DA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL
Maria Clara Di Pierro
1
As Conferências Internacionais de Educação de Adultos são convocadas pela UNESCO
periodicamente, a cada dez ou doze anos: a primeira ocorreu em Elsinore, na Dinamarca,
em 1949; a segunda transcorreu em Montreal, no Canadá, em 1960; a terceira realizou-
se em Tóquio, no Japão, em 1972; a quarta foi sediada em Paris, em 1985.
2
Por educação de adultos entende-se o conjunto de processos de aprendizagem, formal ou
não, graças ao qual as pessoas consideradas adultas pela sociedade a que pertencem
desenvolvem as suas capacidades, enriquecem os seus conhecimentos e melhoram as suas
qualificações técnicas ou profissionais, ou as reorientam de modo a satisfazerem as suas
próprias necessidades e as da sociedade. A educação de adultos compreende a educação
formal e a educação permanente, a educação não-formal e toda a gama de oportunidades
de educação informal e ocasional existentes numa sociedade educativa multicultural, em
que são reconhecidas as abordagens teóricas e baseadas na prática. (Art. 3º da Declaração
de Hamburgo sobre Educação de Adultos, versão portuguesa).
Em julho de 1997 a UNESCO realizou em Hamburgo, na Alemanha,
a V Conferência Internacional de Educação de Adultos – Confintea
1
,
em que 1.500 representantes de 170 países assumiram compromissos
perante o direito dos cidadãos de todo o planeta à aprendizagem ao
longo da vida, concebida para além da escolarização ou da educação
formal, incluindo as situações informais de aprendizagem presentes nas
sociedades contemporâneas, marcadas pela forte presença da escrita,
dos meios de informação e comunicação
2
.
A Declaração de Hamburgo aprovada na V Confintea atribui à
educação de jovens e adultos o objetivo de desenvolver a autonomia
e o sentido de responsabilidade das pessoas e comunidades para
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18
enfrentar as rápidas transformações socioeconômicas e culturais por
que passa o mundo atual, mediante a difusão de uma cultura de paz
e democracia promotora da coexistência tolerante e da participação
criativa e consciente dos cidadãos.
Dentre os temas abordados com prioridade pela Agenda para o
Futuro aprovada na Conferência, consta a garantia do direito universal
à alfabetização e à educação básica, concebidas como ferramentas
para a democratização do acesso à cultura, aos meios de comunicação
e às novas tecnologias da informação. A educação de jovens e adultos
foi valorizada também por sua contribuição à promoção da igualdade
entre homens e mulheres, à formação para o trabalho, à preservação
do meio ambiente e da saúde.
Passados seis anos, a UNESCO realizou em setembro de 2003 uma
reunião de balanço intermediário, com os objetivos de avaliar o
desenvolvimento da educação de adultos após a V Confintea, identificar
novas tendências e preparar a próxima Conferência, que será em 2009.
Esse encontro, realizado em Bangcoc, Tailândia, reuniu cerca de
trezentas pessoas, entre representantes de quarenta organizações não-
governamentais e delegações oficiais de cinqüenta países
3
. O balanço
da educação de adultos realizado na ocasião, sintetizado no Chamado à
ação e à responsabilização, não foi otimista. Em quase todos os países houve
redução do financiamento público para a aprendizagem dos adultos,
em grande medida decorrente da prioridade concedida por agências
internacionais (como o Banco Mundial) e governos nacionais à educação
primária das crianças e adolescentes. O potencial de contribuição da
educação de adultos à solução dos conflitos globais, ao combate à
pobreza, à redução da violência, à preservação do meio ambiente e à
prevenção da aids não tem sido adequadamente aproveitado.
3
O Brasil não enviou delegação oficial à V Confintea + 6, embora o governo tenha
remetido um documento de balanço. Um pequeno grupo de especialistas brasileiros
provenientes de universidades, institutos, fundações e organizações não- governamentais
participou da Reunião de Balanço Intermediário, a convite da UNESCO.
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19
A TRAJETÓRIA BRASILEIRA ENTRE HAMBURGO E BANGCOC
Neste artigo, procura-se avaliar os seis anos transcorridos após a
V Confintea percorrendo rapidamente dois percursos. Primeiro,
analisa-se em que medida as concepções e propostas gerais da
Conferência foram assimiladas e influenciaram a educação de jovens
e adultos no Brasil. A seguir, reúnem-se alguns resultados da
educação de jovens e adultos, aferindo se as metas e compromissos
assumidos em Hamburgo estão sendo alcançados.
1. A renovação conceitual e suas implicações para as políticas
educacionais
Na Declaração de Hamburgo e na Agenda para o Futuro, a alfabetização
é mencionada como necessidade de aprendizagem relacionada ao
contexto sociocultural, que serve de ferramenta para processos de
transformação dos indivíduos e coletividades, especialmente quando
vinculada a outros domínios da vida social como a saúde, a justiça, o
desenvolvimento urbano e rural.
Nos anos recentes, a concepção de alfabetização como processo
de letramento, que guarda similaridade com o conceito adotado em
Hamburgo, ganhou terreno entre os estudiosos brasileiros
4
, mas
programas e campanhas de curta duração que adotam práticas de
alfabetização centradas na decodificação do sistema alfabético ainda
constituem a estratégia de política pública mais difundida no país.
São evidências disso: a insistência do Programa Alfabetização Solidária
em manter um módulo de alfabetização de cinco meses, mesmo
contra a opinião de muitos de seus participantes; o fato de o Programa
Brasil Alfabetizado ter adotado, a princípio, temporalidade semestral;
4
Sobre este assunto, consulte o artigo SOARES, M. B. Alfabetização: a ressignificação do
conceito, Alfabetização e Cidadania, n. 16, s.d.
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20
e o prestígio que ainda desfrutam em certos meios políticos e
intelectuais projetos de alfabetização ainda mais breves
5
.
O alargamento que o conceito de formação de adultos adquiriu a
partir da V Confintea, passando a compreender uma multiplicidade
de processos formais e informais de aprendizagem e educação
continuada ao largo da vida, também não foi plenamente assimilado
entre nós. É verdade que a Declaração de Hamburgo influenciou o
Parecer do relator das Diretrizes Curriculares Nacionais
6
, mas a
concepção ainda predominante entre educadores e gestores da
educação brasileiros continua a ser a visão compensatória que atribui
à educação de jovens e adultos a mera função de reposição de
escolaridade não realizada na infância ou adolescência. Essa
concepção está por trás da constituição do ensino supletivo, que
continua a ser a referência comum para pensar a educação de jovens
e adultos no Brasil. Um exemplo da dificuldade que temos de cogitar
outros meios, ambientes e processos formativos extra-escolares com
adultos é o baixo grau de utilização da televisão e do rádio com fins
educativos, apesar de sua larga difusão territorial e sua evidente
influência sociocultural.
Conferir prioridade à escolarização é uma postura razoável em
um país com elevado analfabetismo e população pouco instruída,
mas a hegemonia da concepção restrita de educação de pessoas adultas
dificulta explorar o potencial formativo dos ambientes urbanos e de
trabalho e dos meios de comunicação e informação, e inibe a adoção
de políticas intersetoriais que articulem o ensino básico às políticas
culturais, de qualificação profissional e geração de trabalho e renda,
de formação para a cidadania, de educação ambiental e para a saúde.
5
A metodologia difundida pelo Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa
e Ação – Geempa, por exemplo, preconiza a alfabetização de jovens e adultos em apenas
três meses.
6
O Conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury relatou o Parecer 11 que subsidiou a Resolução
1/2000 do Conselho Nacional de Educação, instituindo as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos.
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21
Nos anos que sucederam à Conferência de Hamburgo, o Brasil
aprovou e implementou planos e programas de alfabetização,
elevação de escolaridade, qualificação profissional, saúde preventiva,
educação ambiental, educação em direitos humanos, educação na
reforma agrária, sem que, contudo, se tenha logrado articular
minimamente tais iniciativas em favor de uma aprendizagem integral
das pessoas jovens e adultas. A desarticulação dessas iniciativas leva
à dispersão de recursos escassos e limita o impacto social dos
programas. Assim, não é incomum que programas de prevenção
de doenças sexualmente transmissíveis, de preservação do
patrimônio histórico ou do meio ambiente desenvolvam
metodologias e materiais educativos que são desconhecidos dos
professores e jamais chegam às escolas. De outro lado, insiste-se
em implementar programas de qualificação profissional ou extensão
rural desarticulados da formação básica, que não alcançam os
resultados esperados em razão do reduzido domínio de leitura,
escrita e cálculo dos beneficiários.
2. Comparando as metas da V Confintea e os resultados das políticas
públicas
2.1. Alfabetização e educação básica
Umas das metas da Agenda para o Futuro é a garantia do direito
universal à alfabetização e à educação básica. Entre 1996 e 2001 o
índice médio de analfabetismo no Brasil caiu de 14,7% para 12,4%,
o analfabetismo funcional
7
regrediu de 32,6% para 27,3%, e a
escolaridade média dos jovens e adultos elevou-se de 5,8 anos para
6,4 anos. Foram progressos modestos, que não podem ser atribuídos
7
O IBGE considera analfabetos funcionais as pessoas que possuem menos de quatro anos
de estudos.
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22
apenas ao sucesso das políticas de educação de jovens e adultos,
pois se devem em grande parte à ampliação de oportunidades
escolares para as novas gerações.
Para alcançar a meta estipulada em Hamburgo, de reduzir em
cinqüenta por cento o índice de analfabetismo, e cumprir o que
determina o Plano Nacional de Educação – superar o analfabetismo
até 2011 –, é necessário acelerar esse ritmo de alfabetização, criando
novas oportunidades para os jovens e adultos e melhorando a
qualidade do ensino das crianças e adolescentes. Será preciso
também adotar estratégias para alcançar os grupos sociais e as
regiões do país que apresentam taxas de alfabetização mais baixas,
como são as populações muito pobres, das zonas rurais,
nordestinos, afro-descendentes e mulheres com mais de quarenta
anos. A inclusão dos jovens e adultos nos programas nacionais de
renda mínima, livro didático, alimentação, transporte e saúde
escolar poderá reduzir algumas das barreiras que dificultam o acesso
desses grupos à educação.
Mas não basta promover apenas a alfabetização inicial. A maioria
dos educadores concorda que uma alfabetização de qualidade requer
mais tempo que aquele proporcionado pelas campanhas para jovens
e adultos, e que a consolidação da alfabetização requer a
continuidade de estudos em níveis mais elevados, dentre outras
oportunidades de utilização das habilidades recém-adquiridas na vida
cotidiana. Isso suscita a pergunta: após a V Confintea, ampliaram-
se as oportunidades de estudo para a maioria dos adultos brasileiros
(58,8%) cuja escolaridade é inferior ao ensino fundamental
completo?
Segundo o IBGE, a proporção da população jovem e adulta que
tem baixa escolaridade e participa do ensino fundamental cresceu
de 13% em 1996 para 21% em 2000, mas a maioria desses estudantes
era de jovens com atraso de escolaridade que freqüentavam escolas
organizadas para atender crianças e adolescentes.
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23
De acordo com o Censo Escolar, entre 1997 (quando se registraram
2,3 milhões de inscritos) e 2003 (ano em que as matrículas somaram 3,3
milhões), a oferta de vagas no ensino fundamental presencial de jovens
e adultos cresceu 43%, acolhendo um contingente adicional de um
milhão de estudantes. É um aumento expressivo (que se deve sobretudo
à atuação crescente dos municípios
8
), mas ainda insuficiente para garantir
os direitos de 66 milhões de brasileiros com baixa escolaridade.
Para aumentar, flexibilizar, diversificar e qualificar as oportunidades
educacionais, o lugar da educação de jovens e adultos na agenda da
política educacional terá de ser revisto, e pelo menos dois desafios
enfrentados: formar educadores e ampliar o financiamento público.
2.2. A legislação e a reforma educativa
Com o objetivo de melhorar as condições de desenvolvimento da
educação de pessoas adultas, os países presentes à V Confintea
comprometeram-se a adotar leis e políticas de reconhecimento do
direito à aprendizagem ao longo da vida.
Brasil: População com quinze Anos ou Mais por Anos de Estudo e
Freqüência à Escola - 2000
Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000/Inep. Sinopse estatística 2000.
8
Nos anos que se seguiram à V Confintea, consolidou-se no Brasil a tendência à descentralização
da oferta escolar para os jovens e adultos: a participação dos municípios na oferta de matrículas
de ensino fundamental elevou-se de cerca de 25% em 1997 para 57,6% em 2002.
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24
A educação de jovens e adultos ocupou um lugar marginal na
reforma da educação brasileira empreendida na segunda metade da
década de noventa, pois os condicionamentos do ajuste econômico
levaram o governo a adotar uma estratégia de focalização de
recursos em favor da educação fundamental de crianças e
adolescentes. Não se pode atribuir isso à falta de um marco jurídico
adequado, pois as leis e normas vigentes – Constituição Federal,
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei do Plano
Nacional de Educação, Diretrizes Curriculares para a Educação de
Jovens e Adultos – asseguram o direito público subjetivo à educação,
independentemente de idade, e concedem a necessária flexibilidade
para organizar o ensino de acordo com as necessidades de
aprendizagem dos jovens e adultos. O problema não está nas leis,
mas na política educacional.
2.3. A formação das educadoras
Os países signatários da Agenda para o Futuro comprometeram-se
a melhorar as condições de formação, as perspectivas profissionais
e as condições de trabalho dos educadores de adultos.
As estatísticas nacionais (Inep, 2000) dão conta da existência de
quase 190 mil professores atuando na educação básica de jovens e
adultos (40% dos quais não têm formação superior), aos quais se
somam alguns milhares de voluntários engajados em projetos de
alfabetização no meio popular. Em ambos os casos, esses
educadores (a esmagadora maioria de mulheres) têm uma formação
inicial insuficiente, que vem sendo complementada em programas
continuados de formação em serviço.
Esse contingente de cerca de duzentas mil educadoras com alguma
experiência prévia em educação de jovens e adultos é insuficiente
para fazer frente aos desafios de ampliação da oferta escolar, mas
quase não há cursos superiores dedicados a habilitar educadores
para esse campo. Uma prova disso é que, dos 1.306 cursos de
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25
Pedagogia existentes em 2003, apenas dezesseis ofereciam
habilitação em educação de jovens e adultos. Para superar esse
déficit seria desejável que os governos incentivassem as instituições
de ensino superior a ampliar a capacidade de habilitar professores/
as para o ensino de jovens e adultos, proporcionando também aos
profissionais em exercício novas oportunidades de elevação de
escolaridade, certificação e aperfeiçoamento profissional.
2.4. O financiamento
No tópico dedicado aos aspectos econômicos, a Agenda para o
Futuro lembra que o investimento em educação de adultos favorece
o desenvolvimento humano, motivo pelo qual o setor deveria
receber mais recursos e ser poupado das restrições orçamentárias
nos processos de ajuste estrutural. Devemos, então, perguntar:
como se comportou o financiamento público da educação de jovens
e adultos no Brasil a partir de 1997?
Sabemos que as restrições ao gasto público decorrentes do ajuste
fiscal atingiram, sim, os recursos aplicados em educação, que foram
direcionados prioritariamente ao ensino fundamental de crianças
e adolescentes. A educação de jovens e adultos viveu à míngua,
por força do veto presidencial à lei que regulamentou o Fundef
9
,
mas também por não ser beneficiada com os empréstimos
concedidos pelos Bancos Mundial e Interamericano para a melhoria
do ensino básico.
Não há dados recentes sobre o gasto dos estados e municípios,
que são os principais mantenedores da educação de jovens e adultos.
9
Em fins de 1996 o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso vetou
parcialmente a lei que regulamentou o Fundo de Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e Valorização do Magistério, impedindo a contagem das matrículas em
educação de jovens e adultos para efeito dos cálculos do Fundef, o que desestimulou o
investimento de estados e municípios nessa modalidade de ensino.
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26
A contribuição da União para o financiamento da educação de
jovens e adultos sempre foi modesta, mas teve a capacidade de
influenciar as demais esferas de governo
10
. No período posterior à
V Confintea, os gastos do governo federal com o ensino de jovens
e adultos continuaram a ser reduzidos, mas a partir de 2001 eles
tiveram um aumento significativo, decorrente da criação do
Programa Recomeço que, entretanto, não alcança todo o país
11
:
10
Sobre este assunto, ver o artigo BEISIEGEL, C. de R. A educação de jovens e adultos
analfabetos no Brasil. Alfabetização e Cidadania, n.16, s.d.
11
Criado em 2001, Recomeço foi um Programa pelo qual catorze estados do Norte e
Nordeste e cerca de quatrocentos municípios com baixo Índice de Desenvolvimento
Humano receberam transferências federais proporcionais ao número de jovens e adultos
matriculados no ensino fundamental. O valor per capita era inferior ao gasto mínimo
por aluno calculado pelo Fundef. O governo Lula manteve o Programa, mudando seu
nome para Fazendo Escola.
12
Os artigos 70 e 71 da LDB definem o que são e o que não são despesas com a manutenção
e o desenvolvimento do ensino, ou seja, os gastos realizados nos objetivos básicos das
instituições educacionais (remuneração e aperfeiçoamento dos profissionais da educação,
instalações e equipamentos de ensino, material didático, transporte escolar, estatísticas e
pesquisas visando à melhoria da qualidade e à expansão do ensino, concessão de bolsas de
estudo a alunos de escolas públicas e privadas, dentre outros).
Brasil: Despesas da União com Manutenção e DesenvolvimentoBrasil: Despesas da União com Manutenção e Desenvolvimento
Brasil: Despesas da União com Manutenção e DesenvolvimentoBrasil: Despesas da União com Manutenção e Desenvolvimento
Brasil: Despesas da União com Manutenção e Desenvolvimento
do Ensinodo Ensino
do Ensinodo Ensino
do Ensino
1212
1212
12
e com o Pr e com o Pr
e com o Pr e com o Pr
e com o Pr
oo
oo
o
grama de Educação de Jgrama de Educação de J
grama de Educação de Jgrama de Educação de J
grama de Educação de J
oo
oo
o
vv
vv
v
ens e ens e
ens e ens e
ens e
Adultos –Adultos –
Adultos –Adultos –
Adultos –
1997-20011997-2001
1997-20011997-2001
1997-2001
(em milhares de R$, valores correntes)
Fonte: Ministério da Fazenda. STN. SIAF. CCONT.
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27
O estabelecimento de bases adequadas de financiamento da
educação de jovens e adultos implica um tratamento eqüitativo no
acesso aos recursos públicos, a começar pela inclusão das matrículas
dessa modalidade de ensino fundamental nos cálculos do Fundef ou
do rápido estabelecimento de um Fundo para o conjunto da educação
básica. Isso só será possível se houver crescimento da despesa
nacional com educação, o que depende, de um lado, da retomada do
desenvolvimento econômico e, de outro, da prioridade conferida às
políticas sociais vis-à-vis à dívida pública.
2.4. Parcerias, participação e gestão democrática das políticas educativas
Ao mesmo tempo que reafirmava o papel do Estado na garantia
do direito de todos à educação continuada ao longo da vida, a
Declaração de Hamburgo saudava a tendência ao estabelecimento de
parcerias entre as instituições governamentais e os organismos da
sociedade civil com vistas à educação de adultos. A experiência
brasileira recente confirmou essa tendência, em experiências tais
como os Movimentos de Alfabetização – Mova, o Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária, o Plano Nacional de Qualificação
Profissional, o Programa Alfabetização Solidária e, mais
recentemente, também o Programa Brasil Alfabetizado.
As parcerias comportam certa ambigüidade: enquanto transferem
a responsabilidade pela garantia de direitos universais para a sociedade
civil (que não tem condições para responder a essa demanda com a
amplitude necessária), também canalizam a contribuição da sociedade
organizada para a universalização da alfabetização e democratização
da educação de jovens e adultos, ampliando os canais de controle
social sobre as ações governamentais.
No Brasil, a difusão da estratégia de parceria nem sempre garantiu
maior participação social na gestão das políticas governamentais. A
Comissão Nacional de Educação de Jovens e Adultos, por exemplo,
foi desativada unilateralmente pelo Ministério da Educação em 1997.
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28
O rompimento do canal de diálogo com o governo federal não
impediu o crescimento do movimento em prol da educação de
adultos, que encontrou nos Fóruns estaduais e regionais sua forma
de organização
13
. O processo de monitoramento dos compromissos
assumidos na V Confintea foi liderado por uma articulação de fóruns
e redes da sociedade civil com a UNESCO, o Consed e a Undime, à
qual o governo federal por vezes aderiu. Essa articulação
multiinstitucional tem sido responsável pela realização anual de
Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adultos (Curitiba,
1998; Rio de Janeiro, 1999; Campina Grande, 2000; São Paulo, 2001;
Belo Horizonte, 2002; Cuiabá, 2003), realizados em data próxima
ao Dia Internacional da Alfabetização.
3. Uma avaliação incompleta
A Declaração de Hamburgo e a Agenda para o Futuro tratam de diversos
temas que não puderam ser analisados neste artigo, como o papel da
educação de jovens e adultos na formação para a cidadania
participativa, para o trabalho, a saúde, o meio ambiente e a
democratização do acesso às novas tecnologias da informação.
Também não se avaliou o alcance da meta de promoção de uma
educação de jovens e adultos inclusiva, sensível às necessidades de
mulheres, idosos, indígenas, pessoas com deficiência e presidiários.
Até 2009 há bastante tempo para avaliar esses aspectos, mas cinco
anos é um tempo curto para cumprir os compromissos pendentes e
chegar à VI Confintea com um balanço mais positivo.
13
Sobre este assunto, consultar (SOARES, 2003) e o artigo de SILVA, E. J. L. da.
Alfabetização e Cidadania, n. 54, nov./dez. 2003.
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29
BIBLIOGRAFIA
BALANÇO INTERMEDIÁRIO DA V CONFERÊNCIA
INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO DE ADULTOS, Bangcoc,
Tailândia, 8-11 set. 2003. Chamado à ação e à responsabilização.
Informação em Rede. São Paulo: Ação Educativa, n. 59, encarte, out.
2003. Disponível em: <www.acaoeducativa.org>.
DI PIERRO, M. C. (Coord.) Seis anos de educação de jovens e adultos no
Brasil: os compromissos e a realidade. São Paulo: Ação Educativa,
2003.
____; GRACIANO, M. A educação de jovens e adultos no Brasil: informe
apresentado à Oficina Regional da UNESCO para América Latina
e Caribe. São Paulo: Ação Educativa, 2003.
IRELAND, T. D. A história recente da mobilização pela educação
de jovens e adultos no Brasil, à luz do contexto internacional.
Alfabetização e Cidadania. São Paulo: n. 9, pp. 9-22, mar. 2000.
____. De Hamburgo a Bangcoc: a V Confintea revisitada. João Pessoa:
s.n., 2003. (mimeo).
SOARES, L. J. G. Os fóruns de educação de jovens e adultos:
articular, socializar e intervir. Presença Pedagógica. Belo Horizonte: n.
54, nov./dez. 2003.
UNESCO. Declaração de Hamburgo e agenda para o futuro: V Conferência
Internacional sobre Educação de Adultos, Hamburgo, Alemanha,
1997. Lisboa: UNESCO, Ministério da Educação, Ministério do
Trabalho e Solidariedade, 1998. 61 p.
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30
SIGLAS
CONSED – Conselho de Secretários de Educação dos Estados
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LDB – Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência
e Cultura
UNDIME – União dos Dirigentes Municipais de Educação
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PARCERIA: UMA FACA DE MUITOS GUMES
Antonio Munarim
O uso da palavra parceria, hoje, é moda. Governos, empresas,
organizações da sociedade civil, cada um a seu modo, todos defendem
a importância das parcerias. Mais que isso, para ser (ou, pelo menos,
parecer ser) moderno, no sentido de atualizado, é comum o
entendimento de que, de algum modo, toda e qualquer organização
tem que trabalhar em parceria. Parece até que é passado o tempo de
competição, de concorrência. Agora, a voga parece ser a
(re)descoberta da ação solidária.
No Brasil, diversos órgãos do governo federal propõem parcerias
com empresas e com organizações não-governamentais (ONGs) para
a realização de serviços de interesse da sociedade, especialmente na
área da educação, saúde e assistência social. São serviços que antes
eram executados exclusivamente pelo Estado, através de suas esferas
municipal, estadual e federal, como políticas de governo ou mesmo
como políticas de Estado. Do mesmo modo, os governos estaduais
e os governos municipais propõem “parcerias” com empresas e
ONGs para a prestação dos mais diversos serviços públicos. As
proposições são feitas independentemente de quais sejam os partidos
políticos que sustentam esses governos, levando a pensar que o termo
parceria e a própria prática que dela decorre é algo asséptico, que
serve para qualquer gosto e qualquer tendência política, seja esta
progressista ou conservadora.
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32
Empresas privadas, por sua vez, propõem-se à execução de
projetos de cunho social, socioambiental, cultural, de caráter
filantrópico e, para tanto, buscam parceiros na comunidade, gerando
a “filantropia empresarial”.
Por outro lado, tem sido comum que tradicionais organizações da
sociedade civil, as ONGs, conhecidas por suas histórias de luta contra
o Estado autoritário – lutas pela democratização e/ou pela destruição
do Estado capitalista - bem como por suas histórias de luta contra o
capital personificado nas empresas e nas instituições empresariais,
agora aceitem compor parcerias com esses seus inimigos históricos.
Mais do que só aceitar compor, muitas ONGs tradicionalmente de
esquerda propõem, também elas, parcerias com os governos e mesmo
com instituições representantes do mundo empresarial.
Ao mesmo tempo, formam-se ou forjam-se inúmeras organizações
na sociedade civil – também estas classificadas como ONGs, em seu
amplo e contraditório espectro – com objetivos já pré-concebidos por
seus fundadores no sentido de estabelecer certas parcerias. Receio que
a maioria destas que agora se forjam – diferentemente daquelas ONGs
tradicionais, que têm história de luta por direitos de cidadania – só o
fazem por conta da possibilidade de acesso a recursos financeiros
diretamente do Estado, das empresas (por meio de incentivos fiscais),
ou dos organismos internacionais; eis que essas fontes estão propondo
parcerias e repassando recursos àquelas ONGs que se dispõem a
executar os serviços, como dissemos antes, que anteriormente cabiam
ao Estado executar. Assim, pipocam ONGs por todo o lado, e as
parcerias que têm essas ONGs de última hora, ou mesmo ONGs
tradicionais, como uma das contrapartes, proliferam a cântaros.
O QUE ESTARIA OCORRENDO NESSE UNIVERSO DE RELAÇÕES?
Parceria é a nova panacéia? Serve ao fim de motivar a sociedade
civil desmobilizada e desorganizada a se constituir em sociedade de
cidadãos? A resposta parece ser positiva, porque à medida que qualquer
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organização da sociedade civil, em princípio, pode ter acesso a recursos
financeiros, é de se imaginar que os indivíduos (cidadãos?) se sintam
“motivados” a se organizarem em algum tipo de entidade social.
É preciso clarear o meio de campo. Em primeiro lugar, proponho-
me a discutir a questão de parceria como relação que se estabelece
entre Estado e sociedade civil organizada. Não cogito neste espaço,
portanto, discutir as parcerias como relações que se estabelecem no
universo das organizações diversas da sociedade civil – entidades civis
de direito privado e sem fins lucrativos – entre si, ou destas com
empresas e suas organizações representativas, ou de empresas entre
si, ou destas com governos.
Embora admita que nesse outro universo de relações também se
estabelecem pactos aos quais se dá o nome de parceria, e que têm se
constituído, não raro, em novidade construtiva, não tenho dúvida
de que é essencialmente na relação Estado-sociedade civil organizada
que reside um potencial capaz de imprimir à tese e à prática das
parcerias um caráter inovador, marcado por processos de construção
da democracia e da justiça com sentido universal.
Relações restritas a entidades privadas entre si – mesmo entre
aquelas “sem fins lucrativos” –, em que pese serem portadoras de
potencial construtivo, são mais propensas a sofrerem do mal da falta
de capacidade de universalização de seus resultados; isto é, de se
restringirem a poucos beneficiários. Isso na melhor das hipóteses, já
que, em muitos casos, essas relações podem muito bem servir de
álibi a interesses privatistas escusos.
O QUE É PARCERIA: SEU SENTIDO HISTÓRICO
Em sentido bem geral, abstraído de realidades históricas, parceria
pode ser definida como sistema de alianças relativamente estáveis
entre dois ou mais atores, que decidem operar em sinergia para atingir
um ou mais objetivos que não podem atingir por seus próprios meios
(VIDAL, 1994, citado por FISCHER et alii, 1996).
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34
Para se discutir o conceito de parceria vinculado a situações
históricas concretas (no caso, situações que envolvem a relação
Estado-sociedade civil), é necessário considerar outros elementos.
Por exemplo: como encaminhar parcerias determinadas no sentido
de que os objetivos comuns aos atores envolvidos não se restrinjam
a esses atores diretamente envolvidos, mas que se tornem e atendam
a interesses gerais da sociedade? Dito de outro modo: mais do que
atender a objetivos ligados diretamente aos interesses das contrapartes
na condição de corporações, as parcerias entre Estado e organizações
determinadas da sociedade civil deveriam ou não visar o interesse de
terceiros, o bem comum? Seria isso uma idealização sem nenhuma
base concreta, excessivamente despojada de pragmatismo?
A parceria como relação entre o Estado (qualquer que seja a
instância e a forma de sua materialidade institucional) e a sociedade
civil organizada em instituições e movimentos sociais
reconhecidamente de interesse público se constitui, portanto, em
tema de debates teóricos e políticos relevantes.
Pelo menos duas correntes historicamente divergentes entre si,
no campo teórico e político, propõem a prática de parcerias e, para
perplexidade de muitos, essas correntes convergem, aparentemente
até no essencial, sobre a definição do termo.
De um lado, temos as forças políticas e sociais (intelectuais,
políticos, militantes de movimentos sociais) historicamente vinculadas
ao pensamento de esquerda. Essas forças, como sempre o fizeram,
continuam a defender a abertura do Estado à participação da sociedade
civil na elaboração e execução de políticas de interesse público. Mais
que isso, essas forças querem, elas mesmas, participarem. Entendo
que, mesmo que o nome parceria nem sempre seja usado, nem sempre
seja o mais adequado, é, de alguma forma, exatamente isso que tais
forças propõem: parcerias entre órgãos do Estado e organizações da
sociedade civil em termos que garantam a democratização dos
resultados. Ou seja, em termos pelos quais se garanta que os benefícios
das parcerias não sejam usufruídos por grupos privados vinculados
estritamente ao capital ou a quaisquer outras corporações.
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35
É diverso o leque de forças de esquerda que propõem a
descentralização do poder do Estado capitalista, de modo que grupos
subalternos da sociedade civil galguem instâncias desse poder
condensado no Estado e/ou, ao mesmo tempo, construam sua
própria fonte e estrutura de poder. No horizonte, embora com
nomes e propostas de atuação às vezes diferentes, todas as correntes
vislumbram pontos em comum: democracia radical, democracia
integral, ou simplesmente democracia, que, como tal, é vista como
intrinsecamente incompatível com o capitalismo; socialismo
democrático ou simplesmente socialismo; bem comum realizado;
políticas sociais universais etc. Via de regra, as parcerias são vistas
como meios para se experimentar tal horizonte, seja como mera tática
temporária – algo de que se lança mão para o alcance de outro fim e
que tão logo quanto possível deverá ser descartado –, seja como
estratégia de exercício do poder nas sociedades democráticas, onde
os papéis das partes são clara e democraticamente definidos.
Do outro lado, estão as forças chamadas neoliberais que, a
exemplo das esquerdas, também desde há muito, e recentemente
fortalecidas com a derrocada do chamado “socialismo real” e com a
crise dos paradigmas marxistas, propõem a participação efetiva da
sociedade civil na execução de tarefas que se tinham como dever do
Estado e sob sua gestão.
Essa noção de dever do Estado e direito do cidadão, que tem suas
raízes na revolução liberal contra o absolutismo, ganhou força
especial no movimento baseado nas idéias de Keynes, a partir de
meados da década de quarenta. Foi a partir daí que se criou o conceito
e se firmaram as políticas do que veio a ser chamado de “Estado do
Bem-Estar Social”. Os princípios keynesianos conduzem a políticas
de intervenção direta do Estado no desenvolvimento econômico e
social. O Estado é entendido como o coordenador e planejador da
macroeconomia, como empreendedor em setores estratégicos e,
principalmente, como provedor social, garantindo para todos a
educação, segurança, saúde etc. No confronto da Guerra Fria, os
países do bloco capitalista introduziram idéias keynesianas em seu
planejamento, procurando guarnecer-se contra os riscos de
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contaminação de suas sociedades, combalidas pela guerra, pelas idéias
que sopravam dos países do bloco socialista. Através do
planejamento centralizado no Estado, as sociedades socialistas
alcançavam naquela situação histórica verdadeiros milagres no
processo de desenvolvimento econômico e social.
No entanto, os liberais intervencionistas liderados por Keynes
enfrentaram desde o início oposição interna, liderada por ideólogos
como Friedrich August von Hayek e, depois, da década de cinqüenta,
também por Milton Friedman, da chamada Escola de Chicago. Essa
corrente interna ao liberalismo – ultraliberal – virá a ser chamada de
neoliberalismo. Impõem-se, como objeto fundamental de disputa entre
ambas as correntes, os papéis que cabem ao Estado e ao mercado.
Dito de outra forma, estabelece-se uma tensão entre duas formas de
agregação das preferências individuais: de um lado, os neoliberais
propondo as iniciativas descentralizadas, isto é, “coordenadas” pela
“mão invisível” do mercado; de outro lado, a intervenção deliberada,
identificada como planificação.
Em que exatamente coincidem e em que exatamente divergem as
forças de esquerda em contraposição aos chamados neoliberais sobre
a questão da parceria?
Entendo que para se traçar tal paralelo é necessário que sejam
abordados outros conceitos ou relações teórico-políticas além dos
já citados, como descentralização-centralização do poder político e
cidadania. Do mesmo modo, é necessário que se demarque como
ponto de partida qual o entendimento sobre o que seja Estado e
qual, portanto, a perspectiva de futuro que norteia a discussão.
DESCENTRALIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO
No Brasil, a Constituição de 1988 instituiu a política de
descentralização de poder e descentralização administrativa que tem
viabilizado as parcerias entre organizações da sociedade civil e o
Estado nos mais diversos níveis. A chamada “Constituição Cidadã”
de Ulisses Guimarães, estabelece princípios de participação
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comunitária na definição e execução das políticas sociais do Estado
e reforça o princípio do fortalecimento dos municípios – a
municipalização das ações do Estado em áreas diversas, como saúde,
educação, assistência social etc.; já se discute hoje a municipalização
até da reforma agrária que, caso seja aprovada, também terá amparo
constitucional, tal é a amplitude do princípio de descentralização/
municipalização que permeia a Carta Magna.
Sem dúvida o “Movimento Pró-Participação Popular na
Constituinte” e o “Movimento Municipalista”, este último constituído
de Prefeitos e Deputados Constituintes, foram decisivos – cada qual a
seu modo – para que tais princípios fizessem parte da Constituição
promulgada. Não há por que, pelo menos em princípio, negar a esses
dois movimentos uma conotação progressista na luta pela
descentralização. Entretanto, as reivindicações pró-descentralização
provavelmente não teriam alcançado tal status se não houvesse uma
intencionalidade invisível a favorecê-las e, em princípio, eu não
classificaria tal intencionalidade exatamente como “progressista”.
O que devemos observar é que premissas defendidas tanto por
socialistas ou democratas radicais (ou seja lá nome que for), quanto
por liberais ou neoliberais ou neoconservadores (ou seja lá também
que nome for), convergem surpreendentemente num movimento
internacional de modernização da administração pública no qual a
descentralização de poder e descentralização executiva são diretrizes
consensuais.
É consenso, por exemplo, conforme nos ensina Sposati (1990),
entre as forças opostas o entendimento de que se deve:
aproximar o Estado do ‘locus’ cotidiano de sua população, seja para um maior
controle, seja para uma maior participação dos cidadãos na gestão pública;
garantir maior racionalidade e ação interinstitucional no que refere aos níveis federal,
estadual e municipal;
democratizar as estruturas estatais compartilhando as decisões nos três níveis;
reduzir e simplificar o aparelho do Estado;
reaproximar o Estado da sociedade civil pela via municipalizante, espaço privilegiado
de ação conjunta.
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38
O QUE DIFERENCIA AS PARTES SE HÁ TANTO CONSENSO?
Para responder a essa indagação é de se perguntar, primeiro, quais
os sujeitos sociais concretos (mesmo que às vezes invisíveis) que estão
atuando nas decisões orgânicas da sociedade capitalista. A nosso ver,
não há dúvidas de que os chamados “Organismos Internacionais”
(OI), do lado dos interesses do capital, estão no comando da
elaboração de propostas aparentemente “socializantes” que visam,
na verdade, uma renovação do capitalismo. Particularmente o Banco
Mundial (BM), a julgar por seus documentos publicados, é o sujeito
histórico principal que está a propor e, mais que isso, a fomentar
políticas de descentralização. Justamente o BM, que foi criado no
bojo das políticas keynesianas de centralização do planejamento no
Estado, propõe agora políticas de descentralização. Aparentemente,
estaríamos diante de uma contradição. Veremos que esta é, de fato,
só aparente, pois os sujeitos do capital mudam de estratégia
conforme a situação histórica exige, mas não mudam seus objetivos
de preservação do capitalismo em tudo o que ele representa.
Assim, nessa nova estratégia, o BM propõe, inclusive, parcerias
diretas com municípios associados ou singulares e com ONGs de
ação local. Nessas parcerias ele entra com os recursos financeiros e,
obviamente, com a definição das políticas financiáveis. Do mesmo
modo, o BM recomenda (determina) aos Estados-Nação devedores
do sistema financeiro internacional qual a política que estes devem
seguir. O instrumento de força utilizado é extraído da relação credor-
devedor. Por esse caminho é que, no caso brasileiro, por exemplo,
as políticas sociais do Estado são reflexos da cartilha do BM.
Se é sabido que o BM existe para resguardar e promover os
interesses do grande capital transnacional e, por que não dizer, dos
Estados-Nação que continuam com papel dominante no cenário das
relações internacionais, é pois, igualmente difícil de aceitar que o
BM, de repente, tenha se transformado em “agente da democracia e
promotor do bem comum a todos os cidadãos do planeta”. Por
conseguinte, causa estranhamento que o mesmo BM, para dar
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conseqüência prática à (suposta) nova postura esteja buscando se
identificar de forma sincera com as diretrizes estratégicas do
socialismo e propondo parcerias com grupos norteados por
princípios socialistas.
Por mais que admitamos – e assim o entendemos – que o BM é
uma instituição também ela suscetível a pressões sociais externas e a
contradições internas, e que não é um bloco monolítico de poder,
entendo ser mais correta a interpretação que o vê como instrumento
de defesa do status quo. A renovação das políticas vem no sentido do
“renovar para não mudar”.
Ajuda-nos a compreender melhor essa dinâmica o esquema que
nos propõe o Prof. José Luís Coraggio para analisar as políticas
sociais conforme as propõe o BM. Para Coraggio, em síntese, as
políticas sociais do BM são orientadas por três palavras-força:
continuar, compensar e instrumentalizar.
De acordo com essa interpretação, as políticas sociais do BM são
dirigidas, em primeiro lugar, a continuar o processo de
desenvolvimento de recursos humanos do jeito que o conhecemos,
apesar da falência industrial e econômica. Assim, importaria
conseguir que o capital humano seja aumentado e caminhe para a
especialização. Isso implica alcançar a universalização de um patamar
de sobrevivência e reprodução às custas das camadas médias urbanas,
que têm assim deteriorada sua qualidade de vida.
Em segundo lugar, as políticas sociais são dirigidas a compensar os
efeitos da revolução tecnológica e econômica. São mecanismos
utilizados para assegurar a continuidade dos ajustes estruturais. Esses
ajustes implicam a liqüidação da cultura dos direitos universais. Por
essa interpretação, programas do tipo “Comunidade Solidária” são
exemplos acabados de política compensatória. Ainda no exemplo brasileiro,
enquanto se distribui “sopão” para parte dos mais miseráveis, se faz
aprovar no Congresso Nacional reformas contra direitos sociais que
faziam parte do rol das já tão poucas conquistas dos cidadãos
brasileiros. Assim, as políticas sociais conformadas às diretrizes do
BM são políticas para compensar os não-direitos dos não-cidadãos.
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40
Em terceiro e último lugar, são políticas sociais dirigidas a
instrumentalizar a política econômica. O BM, ao propor políticas para
os Estados-Nação e financiá-las, está dando um “presente de grego”.
O objetivo subjacente e real dessas políticas é a desestruturação dos
governos e dos Estados nacionais pelo instrumento da descentralização
do poder e da administração. Importa diminuir os Estados, reduzi-los
a “Estados mínimos”; passar os recursos às mãos competitivas da
sociedade civil, ou seja, privatizar. Tal processo vai gerar excluídos?
Bem, isso é inevitável. Alguns sempre ficarão de fora. Para esses, crie-
se a filantropia, a caridade; criem-se as parcerias com a sociedade civil
para que esta dê conta de seus pobres. E é melhor que seja através de
parcerias, e não da ação direta de um “Estado Caritativo”, até porque
as organizações da sociedade civil são mais eficientes e eficazes que o
Estado na aplicação dos recursos, que são poucos. Para todos os efeitos,
a atividade dessas parcerias resulta beneficência, jamais o
reconhecimento de direitos de cidadania.
Nessa perspectiva, a descentralização é um instrumento político
que serve, na verdade, a uma concentração maior ainda de poder
nas mãos de instituições do capital transnacional. Ou seja, para o
grande capital, já não mais serve a estratégia da concentração do poder
nos “Estados-nacionais capitalistas”; estes, agora, têm de ser
destruídos. Os Estados-Nação nas economias desenvolvidas haviam
se transformado em “Estados do Bem-Estar Social” ou “Estado
previdência”, e isso custa caro aos capitalistas à medida que impõe
taxas menores de lucro. Nas zonas periféricas do capitalismo, bem
ou mal – certamente mal, mas ainda assim existente – parte dessas
características de “Estado previdência” também tinham sido
instituídas. Tanto nos países centrais como nos periféricos, as
políticas keynesianas foram potencializadas por lutas e conquistas
populares, especialmente dos trabalhadores. Por essa lógica, também
nas zonas periféricas, e principalmente aí, o Estado deve ser
destruído, mas de forma “soft”, com aparência de que se está
promovendo a democracia pela descentralização do poder do Estado.
Note-se, entretanto, que, pela vontade dos agentes do capital, nem
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41
tudo se quer destruído no Estado-Nação. Interessa sim, em
particular, destruir aquela faceta que se constituiu direito dos
trabalhadores diante do capital e dos cidadãos na sociedade; importa
preservar (centralizado) o poder de polícia – governos fortes para
impor a ordem conveniente ao novo modelo de desenvolvimento.
CONCEITOS REVISITADOS
Conceitos como o de cidadania são, assim, revisitados. Se
tomarmos o termo cidadania pela sua origem histórica, veremos que
se trata de conceito que sempre disse respeito à relação do cidadão
com o Estado. Passa pelas cidades Estado da antiga Grécia, onde
cidadão era aquele que participava das decisões da pólis, tomadas em
praça pública, cuja força se impunha a toda a coletividade. Passa
por Roma antiga, onde a expressão civita, que quer dizer cidade, dá
origem à palavra cidadania. Cidadão romano é aquele que, não sendo
escravo, encontra-se protegido pelas leis de Roma.
Ao chegar ao liberalismo, os direitos e os deveres do cidadão
continuam sendo definidos na relação com o Estado. No liberalismo,
entretanto, tal processo de definição ganha característica genuína.
O Estado é o Estado moderno, no interior do qual se produzem e se
instituem deveres e direitos. Assim, o pleno gozo dos direitos e, do
mesmo modo, o cumprimento dos deveres, se dão sob a vigilância
do Estado onipresente, que mantém o monopólio do uso da força
em nome da lei. É uma relação, sem dúvida, sempre desigual. Ou
seja, o cidadão é sujeito passivo de direitos e deveres. O Estado é o
sujeito ativo definidor dos direitos e deveres.
Mas, de que “Estado Moderno” estamos falando?
Entendemos que, no capitalismo, o Estado materializado em
instituições, burocracias, governos, leis etc., tem que ser pensado
numa perspectiva de múltiplas determinações. O Estado não é apenas
um sujeito autônomo, propositor e fomentador de processos de
desenvolvimento em favor do capital. Não é apenas um objeto, uma
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coisa, um instrumento que é utilizado pelos capitalistas em favor de
seus empreendimentos privados. Não é apenas um locus, um espaço
asséptico e neutro de disputa entre classes e segmentos de classes
antagônicas. Não é apenas o guardião da moral e da razão, promotor
do bem comum que interessa a toda a sociedade.
De algum modo, o Estado é, sim, tudo isso simultaneamente, ora
mais isso ou aquilo, a depender sempre das circunstâncias históricas.
O Estado é uma relação, ele mesmo, de forças contraditórias que se
materializam, que se condensam (POULANTZAS) e que têm
existido, no capitalismo, sob a hegemonia dos interesses do capital.
O Estado surge para assegurar as condições de reprodução do capital.
Surge para atenuar as crises cíclicas do capitalismo. Mas, ao fazê-lo,
destrói a unidade da burguesia, conforme nos ensina o professor
Francisco de Oliveira. Desse modo, o Estado é também um “espaço”,
ou “o espaço” por excelência, da contradição. Nele se aguçam os
elementos contraditórios da sociedade dividida em classes e
segmentos de classe. As lutas de classes são absorvidas pelo Estado
e, nesse processo, elas saem do plano privado e ascendem ao status
do plano público. O planejamento como processo de instituição de
políticas econômicas e sociais e a luta pelas políticas públicas, enfim,
as lutas por direitos de cidadania, são as formas novas, transformadas,
de luta de classes; são as lutas de classes que se publicizaram.
Ora, com a derrocada daquilo que foi chamado de socialismo real,
o capitalismo ficou sem ameaça alguma e livre, portanto, para propor
a destruição do Estado do Bem-Estar Social como conceito e como
sujeito histórico; como vimos, este impunha, de algum modo, uma
certa promoção de justiça distributiva e de cidadania. Do mesmo
modo, é necessário destruir a cidadania, conceitual e historicamente
e, em seu lugar, instituir “direitos de consumidor”, políticas
compensatórias e filantropia.
Em certo sentido, as lutas que as forças de esquerda travam hoje
dão-se para a continuidade (quem diria?) de políticas nascidas ontem
nas hostes da direita. Ou seja, as políticas keynesianas, lapidadas no
processo histórico, tornaram-se conquistas, por cuja manutenção
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as forças populares percebem que vale a pena lutar, e que as forças
neoconservadoras – a nova direita – querem destruir.
Faz parte da estratégia neoconservadora a defesa da globalização
dos mercados e das reformas estruturais dos Estados-Nação. Estas,
talvez, sejam as marcas mais profundas da ideologia da moda,
produtora da exclusão social, que está sendo chamada de
neoliberalismo. Na perspectiva do neoliberalismo, ao mesmo tempo
que se defende a globalização dos mercados, se propõe a aparente
antítese da (re)valorização do local, do comunitário. Assim, a volta
ao local pode significar uma excrescência do processo neoconservador
na medida em que pode potencializá-lo.
QUE ALTERNATIVA RESTA?
Diante de estratégia tão avassaladora dos agentes do capitalismo,
cerca-nos, às vezes, uma sensação de impotência seguida de desânimo.
Outras vezes, somos tomados por uma espécie de revolta, que nos
leva ao propósito de não acreditar em qualquer via pacífica,
processual ou qualquer nome que se queira dar à construção de uma
sociedade mais justa e democrática. Vivemos, às vezes, a tentação de
ver o Estado de maneira simplificada, direta, restrita, como uma
organização fechada, monolítica e guardiã exclusiva dos interesses
do capital e, por isso mesmo, um comitê que deve ser destruído. A
única estratégia viável seria a sua destruição e a instalação, em seu
lugar, da ditadura do proletariado (ditadura só por algum tempo, até
que se eliminem na raiz os resquícios de todos os males oriundos do
capitalismo etc.). Enfim, cerca-nos, às vezes, a tentação de nos
lançarmos à aventura da repetição da tragédia histórica.
Felizmente, parece que são cada vez menos os que acreditam nessa
alternativa e, depois de momentos de perplexidade, parece também
que é cada vez maior o número dos que recuperam o ânimo e a
lucidez e se lançam a proposições alternativas e criativas à hecatombe
neoliberal. Dentre as elaborações alternativas, no campo intelectual
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e de práticas políticas em todos os níveis, quero destacar, até para
voltar ao tema principal deste trabalho, as parcerias que vêm sendo
praticadas e estudadas no âmbito do local – do município.
Se de um lado, a (re)valorização do lugar, nos termos propostos
pelo Banco Mundial, deixa a impressão de um processo de
fragmentação política das forças que se articulam (articulavam) em
torno de projetos nacionais e universais, de outro lado vemos que
se generaliza um processo de ampliação do sentido da política a partir
das bases da sociedade.
O município transforma-se justamente no “espaço” mais propício
à construção pela experimentação concreta, já, da democracia. As
parcerias que entraram em moda nos municípios são, pois,
alternativas de dupla face. De um lado, podem, sim, significar um
instrumento político manipulado de acordo com os interesses
dominantes de classe através de um prefeito qualquer e seus ajudantes
de plantão, representantes do autoritarismo. Então, em vez de
democracia pela descentralização e transferência de poder, o que pode
ocorrer é uma simples transferência de encargos à sociedade; coisas
que já eram direito do cidadão e dever do Estado executar. Em vez
de novas parcerias – numa relação de iguais – onde houvesse decisões
conjuntas sobre os fundos públicos, pode ocorrer uma transferência
de migalhas de recursos públicos, e ainda como se fosse uma benesse
de quem está no poder para com seus clientes; poderíamos chamar
tal mecanismo de “neoclientelismo”. No entanto, de outro lado, as
parcerias no município podem, também, significar um jeito novo e
eficiente de produção de uma nova cultura política que
potencialmente funda bases de transformação da relação Estado-
sociedade no todo. Essa nova cultura política implicaria, inclusive, a
manutenção das conquistas do Estado do Bem-Estar Social.
Sabemos que não é suficiente, mas é indispensável para a
transformação geral da sociedade capitalista que se comece, ou ainda,
que se faça a defesa da cidadania a partir do município
concomitantemente às lutas gerais. Encarar a política municipal não
mais como inimiga, a priori, das classes populares, mas como locus
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potencial de construção de um novo poder, um poder local, é um
bom começo.
Não mais se justifica, no nosso entendimento, que organizações
tradicionais da sociedade civil de cunho popular, nos municípios,
rejeitem estabelecer parcerias com governos municipais sob alegação
de não quererem “fazer o jogo do poder”. É uma política pouco
inteligente, até porque esconde que, de qualquer modo, não aceitar
parcerias é uma forma de fazer parte do jogo, deixando que o outro
decida sozinho, ou pior, se alie a outras organizações nada populares
para decidir e executar políticas que dizem respeito a todos.
Há sim que se buscar a participação efetiva, exigindo o poder de
decidir e não só de executar políticas; participar da elaboração e
execução das políticas públicas, e não da execução de políticas
governamentais ou mesmo estatais. Só assim se estará imprimindo
um sentido novo ao conceito de cidadania e ao sentido de local.
Cidadania será entendida, então, como cidadania ativa, isto é, para
além do gozo de direitos e cumprimento de deveres instituídos pelo
Estado – sem descartar as conquistas. Cidadania ativa significa o
direito de participar da construção dos próprios e novos direitos,
através da democracia direta, com participação do cidadão individual
e, principalmente, coletivo. Só a democracia representativa é
insuficiente e muitas vezes traiçoeira; ela precisa ser articulada e
permeada às formas de democracia direta, mais vigilante e propositiva.
Entendo que isso é mais factível no lugar, no local. Grupos locais
de cidadãos que se relacionam diretamente com o governo local
exigem, fiscalizam e propõem ao governo que está próximo. Planejam
junto com o governo as políticas e executam a sua parte de maneira
articulada e coerente com o todo que foi pensado para o lugar.
O poder local é pois, o resultado dessa relação que se dá no lugar.
Relação, que é, sem dúvida, conflituosa, porque muito mais
participativa, mas que também é muito rica em possibilidades de
futuro (até porque o conflito tem aí a oportunidade de se explicitar).
Assim, o poder local é o Estado em dimensão plena que se faz
Estado no lugar. Mas é também, e ao mesmo tempo, mais que o
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Estado no seu sentido histórico, real, tal como o conhecemos nas
esferas superiores ao município (as esferas regional e nacional).
Portanto, a ação política municipal cria a possibilidade concreta, real,
próxima, de transformação radical do Estado como relação de poder,
com vistas a valores como justiça, igualdade, liberdade. Cria também
a instância na qual grupos de cidadãos organizados podem estabelecer
parcerias com governos preservando o sentido etimológico da palavra
parceiro que (do latim, patiariu) quer dizer semelhante, igual.
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BIBLIOGRAFIA
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EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
FIOS E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO
DE SUA IDENTIDADE
Zenaide Maria Santos
ALAGOINHAS – BAHIA – BRASIL
Segundo o Censo de 2000 (IBGE), Alagoinhas é um município
com cerca de 130.095 habitantes, sendo 112.440 população urbana
e 17.655 população rural; e observa-se ainda a taxa de urbanização
de 84,3%, a mais elevada do litoral norte baiano, embora toda a
região, à semelhança da maioria dos municípios brasileiros,
apresente diminuição de crescimento da população urbana nos anos
noventa.
O município fica situado a 107 km da capital Salvador, e dele
fazem parte os distritos de Riacho da Guia, Boa União e os
povoados de Narandiba, Sauípe, Estêvão e Quizambu.
Alagoinhas detém uma posição significativa no aspecto
econômico, ocupando a 16ª posição na classificação dos municípios
baianos. As atividades econômicas são diversificadas: às atividades
comerciais incorporam-se as ações no segmento de lazer; as
atividades agrícolas são significativas, pois abastecem não só a área
urbana como também a região circunvizinha.
Quanto ao aspecto educacional, o município atende na sua rede
aos segmentos de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação
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de Jovens e Adultos, Ensino Profissionalizante e Educação
Especial, sendo este último em regime de parcerias com instituições
especializadas.
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) atende um número
reduzido da população sem escolaridade e/ou que abandonou a
escola ao longo dos anos, considerando-se o índice de
aproximadamente 13,50% de jovens e adultos analfabetos, a partir
de quinze anos (Censo 2000 – IBGE). Para minimizar esse quadro,
a Seduc tem empreendido esforços para estruturar a Rede Municipal
a fim de receber mais alunos, além de firmar parceria com o governo
federal e com o Programa Brasil Alfabetizado.
UM POUCO DE HISTÓRIA
A Educação de Jovens e Adultos, em Alagoinhas, passou por
momentos distintos como o Mobral e a Fundação Educar, que
tiveram grande significado para o município, porque foi a partir
daí que a história da EJA teve início.
Enquanto a Fundação Educar subsidiava a EJA com suporte
didático e pedagógico, aproximadamente cinqüenta escolas
funcionavam no município, distribuídas nas zonas urbana e rural.
Após esse momento, não houve sequer um investimento em
políticas públicas voltadas para o jovem e o adulto, que resultou
no fechamento de várias classes de EJA, chegando a um total de
onze escolas funcionando em 1997 e obrigando o órgão
competente, a Seduc, a uma tomada de posição.
1997-1999: a EJA sob um novo olhar
Em 1997 a equipe responsável pela Educação de Jovens e
Adultos na Secretaria Municipal de Educação empreendeu esforços
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para sensibilizar a administração daquele momento, a fim de que a
EJA fosse repensada e redimensionada. Apesar da falta de recursos,
pensou-se em reestruturar esse segmento, construindo-se então o
Projeto Político Pedagógico da Seduc, o Projeto de Aprendizagem
para Jovens e Adultos em Ciclos –Prajac, com o objetivo de dar à
EJA características específicas a fim de se construir uma identidade
própria, pois ao longo dos anos esse público viveu à luz de uma
pedagogia que, além de tradicional, era voltada para atender aos
objetivos do Ensino Fundamental regular, ou seja, jovens e adultos
eram tratados como crianças.
Com a criação do Prajac, o segmento de Educação de Jovens e
Adultos foi reestruturado; o primeiro segmento do Ensino
Fundamental (de 1ª à 4ª série) foi redistribuído em dois Ciclos de
Aprendizagem: o Ciclo 1, equivalente às 1ª e 2ª séries, com
quatrocentos dias letivos, e o Ciclo 2, equivalente às 3ª e 4ª séries,
com duzentos dias letivos, totalizando três anos e não mais quatro.
Além disso o Prajac definiu os princípios teóricos e metodológicos
da EJA e firmou a necessidade de oferecer curso de formação
continuada para os educadores.
O referido Projeto foi apreciado e aprovado pelo Conselho
Municipal de Educação da época, sendo então oficializado na Rede
Pública Municipal e implantado, parcialmente, em 2000 e,
totalmente, em 2001.
Vale ressaltar que a construção do Prajac aconteceu em 1997/
1998/1999 pela equipe da Seduc, com a colaboração dos educadores
de EJA; foi feito em 1997 um estudo diagnóstico que subsidiou as
ações de 1998/1999. Porém, a falta de investimentos prejudicou a
aplicação total do Projeto, uma vez que era necessário construir
módulos (os anexos do Projeto) e capacitar os educadores, o que
não aconteceu até o final daquela gestão (2000), mesmo assim ele
foi implantado e todos os esforços para mantê-lo foram de
iniciativas da Coordenação Pedagógica da EJA.
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PRAJAC – O IMPACTO NA REDE PÚBLICA MUNICIPAL
Princípios norteadores do Projeto
Considerando-se as observações e análises realizadas sobre a EJA
no município de Alagoinhas em 1997/1998, a partir de dados
coletados na rede municipal e da exigência legal prevista na
Constituição Federal e na LDB 9.394/96, capítulo da Educação de
Jovens e Adultos, fez-se necessário dar a essa realidade um caráter
científico.
Para isso buscaram-se concepções teóricas relacionadas à realidade
educacional, fundamentando-se na concepção interacionista do
conhecimento que discute e analisa a aprendizagem a partir da
interação do sujeito com o objeto que deseja conhecer, seja em uma
dimensão epistemológica/cognitiva, segundo Piaget, seja em uma
dimensão emocional em que o sujeito é integral, como defende Henri
Wallon, e a partir de uma prática pedagógica mediada, como focaliza
Vigotsky.
Essa prática consiste em reflexões sobre a capacidade de mediação
do educador, assim o profissional toma consciência do seu papel e
organiza situações em que os educandos estabelecem relações entre
o saber cotidiano (real) e o saber científico escolar (potencial),
considerando as zonas de desenvolvimento do sujeito na construção
do conhecimento: a real, a proximal e a potencial. E é justamente na
zona proximal que o educador tem papel relevante, pois a ele caberá
mediar a construção do conhecimento, de forma que o educando dê
o “salto qualitativo”, transpondo de uma zona a outra.
Buscou-se também inspiração teórica em Paulo Freire no sentido
de discutir a EJA, trazendo a vivência do sujeito como ponto de
partida para a aprendizagem escolar, com a clareza de que a educação
de qualidade se faz com profissionais politicamente comprometidos
e profissionalmente competentes, e partindo da compreensão de que
todos são resultado de um “sistema perverso”, mas com possibilidades
de mudanças por meio da luta socioistórica.
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Vale ressaltar que as teorias apresentadas se complementam entre
si e contribuem para a compreensão do sujeito como uma totalidade
de relações.Assim, o Projeto de Aprendizagem para Jovens e Adultos
em Ciclos fundamentou-se na concepção dialética da aprendizagem
– aprender a aprender–, na qual o sujeito é o agente do seu
conhecimento, e o professor é o problematizador e mediador,
promovendo momentos de aprendizagem, de trocas, de saberes e
conhecimentos, numa relação amorosa necessária nas relações entre
educandos e educadores.
Orientações metodológicas
Com o objetivo de redimensionar a práxis pedagógica, o Prajac
trouxe como proposta a Pedagogia de Projetos, que consiste em um
trabalho pedagógico voltado para a construção de projetos
educativos a partir de eixos temáticos discutidos e selecionados pelo
conjunto: educando–educador–escola–comunidade, pautados na
realidade local.
A Coordenação Pedagógica da Seduc subsidia o educador para
que essa ação seja eficaz. Com essa prática a escola se aproximou da
comunidade e vice-versa, estabelecendo uma relação de parceria
necessária à ação educativa; os projetos são apresentados ao público
que participa ativamente deles.
Considerando-se os objetivos e os princípios norteadores da EJA,
os componentes curriculares e conteúdos partiram da proposta dos
PCNs que se fundamenta nos ideais da “pedagogia crítico-social dos
conteúdos”; esta “assegura a função social e política da escola
mediante o trabalho com conhecimentos sistematizados, a fim de
colocar as classes populares em condições de uma efetiva participação
nas lutas sociais” (PCN, v. 1, p. 42). Partindo-se desse princípio e do
estabelecimento de condições mínimas para a chamada Base Nacional
Comum (LDB, art. 9º), os conteúdos trabalhados, estruturados em
blocos de forma complementar entre eles na sua proposta, abrangem
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as áreas do conhecimento: Língua Portuguesa, Matemática,
Geografia, História e Ciências. Tais componentes e conteúdos
ganharam uma ressignificação, ampliando-se para além dos fatos e
conceitos, passando a incluir valores, normas e atitudes.
Acompanhamento e capacitações
Com a implantação do Prajac fez-se necessário garantir o
acompanhamento às ações do educador e a formação continuada
segundo os princípios norteadores do Projeto.
Em 2000 a gestão criadora do Projeto terminou; em 2001, com o
início de um novo momento político, foi feita uma avaliação
diagnóstica com os educadores para serem analisadas as possibilidades
de continuação, ou não, do Projeto. Foi unânime a sua aprovação,
cabendo à Seduc criar condições para a sua sustentação.
A Secretaria Municipal de Educação, por meio da Coordenação
Pedagógica da EJA, cuidou do acompanhamento das ações dos
educadores por:
núcleos de estudos mensais;
planejamentos mensais;
visitas semanais às escolas.
Em 2001/2002 a Seduc firmou parcerias com o governo federal,
aderindo aos Programas Profa, PCN e Recomeço. Com essa ação
foi possível oferecer a formação continuada PCN-EJA e a capacitação
para os professores alfabetizadores pelo Programa de Formação para
Professor Alfabetizador – Profa-EJA, atendendo cem por cento dos
educadores de EJA. Além disso, em 2003 o município recebeu a verba
do Recomeço, o que permitiu desenvolver ações como:
parceria com a Universidade Federal da Bahia para
acompanhamento, análise, avaliação e redimensionamento do
Prajac (em processo);
realização de seminários de EJA;
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organização de um fórum intermunicipal de EJA em parceria
com a UFBA/Pradem;
participação do Fórum Estadual de EJA/BA;
implantação de cursos de Elevação de Escolaridade para Jovens
e Adultos – Semear e Integrar (parceria com a Fase/Semear e
com o Instituto Integrar);
participação do V Eneja;
participação do 3º Telecongresso Internacional de EJA (Sesi);
participação no Seminário de Alfabetização em Brasília.
Essas participações nas discussões de EJA no cenário nacional e
no internacional têm contribuído para aproximar e situar Alagoinhas
no universo sociopolítico e histórico da Educação de Jovens e
Adultos, além de colaborar para a mudança na concepção de EJA,
levando todos os atores sociais envolvidos com a Educação no
município a (re)pensarem a sua prática para responder aos desafios
propostos pela educação no século 21.
Avaliação da aprendizagem
A avaliação do ensino-aprendizagem na EJA foi organizada e
sistematizada partindo-se de uma postura dialética, tratando a avaliação
com um caráter diagnóstico retroalimentador. Para isso, são analisadas
construções dos educandos produzidas durante todo o processo, sendo
significativos a sua auto-avaliação e os registros dos educadores que
serão pressupostos para o estabelecimento do resultado final. Tais
registros são feitos a partir de indicadores que mostram o desempenho
real do aluno no processo ensino-aprendizagem e se os critérios
preestabelecidos para cada ciclo foram alcançados.
Além disso, a avaliação leva em conta o alcance dos objetivos
propostos para a Educação de Jovens e Adultos, considerando que,
ao término de cada Ciclo, o educando deverá ter construído, pelo
menos, cinqüenta por cento das capacidades exigidas para o ciclo.
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Para que a avaliação da aprendizagem seja satisfatória, é necessário
que o educador a conceba como práxis pedagógica, utilizando
instrumentos diversificados para ela e transformando o ato avaliativo
em vivência prazerosa de descoberta e troca de conhecimentos,
considerando o educando, trabalhador ou não, um ser histórico e
social, como um todo indivisível que pensa e sente.
Visando ainda possibilitar ao educando o avanço nos ciclos, será
realizada quando necessário, nos meses de março, julho e dezembro,
uma avaliação em curso, que consiste na verificação da aprendizagem
do educando para comprovar condições favoráveis no
acompanhamento do ciclo que está cursando, conforme prevê o artigo
24, inciso V, alíneas b e c da Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/96.
O RESULTADO EM NÚMEROS
O final de 2003 foi marcado por saldos positivos para a EJA em
Alagoinhas.
Foram matriculados ainda:
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Ainda é alto o índice de evasão na EJA, o que reflete as questões
socioeconômicas, políticas e culturais que envolvem esse segmento
de ensino, demonstrando a necessidade de (re)avaliação do Prajac, a
fim de ressignificar a Educação de Jovens e Adultos, pois as
necessidades atuais desse público, assim como o cenário nacional
para os jovens e para os adultos, diferem da necessidade e do cenário
de 1998/1999.
ALAGOINHAS NA BATALHA CONTRA O ANALFABETISMO
Ainda em 2003, o município de Alagoinhas aderiu ao Programa
de Combate ao Analfabetismo, considerando-se que existem no
município cerca de catorze mil analfabetos acima de quinze anos
(dados do IBGE, 2000), equivalentes a aproximadamente 13,50% da
população urbana e rural.
Para isso, a Seduc encaminhou o Projeto de Alfabetização para o
MEC/FNDE e firmou parceria com o Programa Brasil Alfabetizado.
Foram cadastradas oitenta turmas distribuídas nas zonas urbana e
rural, com um total de 1.908 alfabetizandos.
Antes disso, houve em 2001, em parceria com a Secretaria Estadual
da Bahia, o Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos – AJA
Bahia, que foi a última turma do convênio firmado em 1999. Também
em 2001, foi consolidada uma parceria com a Fundação Banco do
Brasil para alfabetizar jovens e adultos, porém só foi possível atuar
em um semestre, pois o município não tinha estrutura financeira e
foi necessário estabelecer uma bolsa-incentivo ao alfabetizador,
apesar de o caráter do curso ser com voluntários.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A EJA em Alagoinhas enfrentou os desafios e vem conseguindo
fortalecer os seus fios condutores para uma nova era. Hoje, o olhar
lançado a esse segmento é o olhar apaixonado e apaixonante, não o
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olhar ingênuo, mas o olhar da paixão crítica; professores, diretores,
secretarias do governo, sociedade, enfim o sentimento é de que a
fala é comum: a EJA é um direito;
é a chave para o século 21; é tanto conseqüência do exercício da cidadania
como condição para uma plena participação na sociedade. Além do
mais, é um poderoso argumento em favor do desenvolvimento
ecológico sustentável da democracia, da justiça, da igualdade entre os
sexos, do desenvolvimento socioeconômico e científico, além de um
requisito fundamental para a construção de um mundo onde a violência
cede lugar ao diálogo e à cultura de paz baseada na justiça”. (Declaração
de Hamburgo, 1997).
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Reconhecendo alguns conceitos
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UM SONHO QUE NÃO SERVE AO SONHADOR
José Carlos e Vera Barreto
1. O ALUNO TRAZ COM ELE UMA IDÉIA DE ESCOLA
O fato de nunca ter posto os pés numa escola, não significa que
“seu” João não tenha idéias bem precisas a respeito da escola. Para
ele, assim como para a imensa maioria dos adultos analfabetos, a
escola é o lugar onde os que não sabem vão aprender com quem
sabe (o professor) os conhecimentos necessários para ter um
trabalho melhor (menos pesado, mais bem pago) e um lugar social
mais valorizado.
Sabendo por que busca a escola, o adulto elege também seu
conteúdo. Espera encontrar, lá, aulas de ler, escrever e falar bem.
Além, é claro, das operações e técnicas aritméticas. Espera obter
informações de um mundo distante do seu, marcado por
nomenclaturas que ele considera próprias de quem sabe das coisas.
Mas não é só em relação ao que a escola ensina que “seu” João e
seus companheiros trazem muitas informações. Eles têm também
muitas idéias a respeito de como a escola ensina.
A aprendizagem, na visão popular, está centrada na ação do
professor. É ele que coloca o conhecimento dentro dos alunos. Para
isso, o professor usa alguns recursos como: explicações, correções,
“Seu” João nunca tinha ido à escola. Agora, com dois filhos criados, ele
ficou sabendo de um curso que ensinava a ler e escrever perto de sua
casa. Como os compadres seus vizinhos estavam estudando lá, “seu”
João resolveu estudar também.
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cópias, repetições... Para essas idéias contribui, também, a
distribuição das carteiras, todas voltadas para o professor. Afinal,
todo o conhecimento virá dessa figura central.
Também existem idéias consagradas sobre a atitude que os alunos
devem ter para poder aprender. Como imaginam que o professor é o
único detentor do conhecimento que vão buscar, acham que devem
prestar toda a atenção naquilo que o professor diz. Costumam achar
pura perda de tempo quando um colega fala. Na opinião, o
conhecimento vem do professor, nunca dos colegas. Por isto, irritam-
se, quando a professora estimula a discussão entre os alunos.
Por outro lado, acham que o professor ensina, só quando fala de
coisas sobre as quais eles não tenham a menor idéia. Quanto menos
estiverem entendendo mais acreditam que o professor esteja
ensinando. Se não entendem a culpa é deles (“que não já têm muita
cabeça”) o professor, coitado, está se esforçando...
Por isso, sentem-se frustrados quando a professora fala de coisas
do seu dia-a-dia. Não vieram para aprender melhor o que está
próximo deles. Querem saber sobre o que está distante. Na sua
imaginação, é o conhecimento desse distante que permitirá a melhoria
de sua vida.
Outra idéia muito forte que trazem sobre como aprender melhor
é a crença cega no poder de repetição. Baseados em sua experiência
de vida, em que na quase totalidade das vezes aprenderam as coisas
vendo os outros fazerem e tentando fazer depois, acreditam piamente
que irão aprender se repetirem muitas vezes o que estão procurando
aprender.
Apresentamos aqui algumas das idéias muito presentes entre os
alunos adultos que ingressam na escola. Trata-se, evidentemente de
uma generalização, e as exceções podem ser encontradas. Para os
leitores que acharam ingênuas essas idéias, gostaria de lembrar que
elas estão presentes também na maioria dos professores. Afinal, essas
concepções são ideológicas e se introjetam na população de forma
sutil e delas só estão a salvo aqueles que as analisam de forma crítica
e cuidadosa.
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2. A ESCOLA IDEALIZADA PELOS ALUNOS ADULTOS PRODUZ
O CONTRÁRIO DO QUE ELES ESPERAM DA ESCOLA
Vimos acima que o aluno que procura a escola acredita que ela
deverá ajudá-lo a obter os conhecimentos necessários a uma vida
melhor e socialmente mais valorizada. Ideologizado pela sociedade,
assumiu que é o culpado pela situação indesejável em que vive e que
quer superar. Se tivesse estudo não estaria assim...
Nem de leve desconfia que vive em uma sociedade de classes cujas
relações interferem significativamente nos destinos individuais. Que
pertencer a classes socialmente privilegiadas dá uma vantagem inicial
na ocupação de posições sociais vantajosas. E que, inversamente,
fazer parte de classes inferiorizadas significa uma desvantagem inicial
na ocupação dessas posições que dificilmente é superada pelo estudo
ou escolarização.
Não percebendo isso, acredita que o sucesso ou fracasso é
resultado apenas do seu esforço individual. Entrar na escola ou
retornar a ela, representa um esforço adicional para mudar sua sorte.
Embora sem perceber, o passo dado pode ser importante nesse
processo de mudança. Desde que não se limite a atingir objetivos
apenas individuais, mas se estenda também na direção de mudanças
sociais. Para ser possível, o sonho não deveria restringir-se a um
sucesso pessoal, mas a uma melhoria coletiva de vida.
Quanto ao conteúdo que espera da escola, isto é, ler, escrever e
falar bem não é possível colocar nenhum reparo. Sua sensibilidade
lhe permitiu perceber que uma das causas de sua fragilidade social é
a sua exclusão do código lingüístico dominante. Tem, portanto, o
direito de esperar isso da escola.
A demanda por informações de um mundo distante do seu se
explica quando sabemos que ele aspira a ascender de seu pequeno
mundo. Trata-se de aspiração legítima já que horizontes mais amplos
estimulam a produção do conhecimento. Mas essa legitimidade não
invalida o fato de que à escola não compete apenas a transmissão de
informações distantes e curiosas. Podem ser transmitidas de forma
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mais viva por outros veículos de comunicação principalmente rádio
e televisão. A escola tem papel mais amplo: produzir conhecimento.
E conhecimento se produz no estabelecimento de relações entre as
informações obtidas. E como as relações não podem ser transmitidas
(pois nesse caso seriam apenas novas informações), precisam ser
reproduzidas por quem quer conhecer através da reflexão um
trabalho pessoal e intransferível.
Assim, é possível perceber o equívoco dos alunos quando esperam
por um professor que coloque o conhecimento dentro deles.
Professor algum tem tal poder, pelo simples fato de que
conhecimento (como produto de relações) não se transmite. O
professor pode e deve transmitir informações, desafiar e estimular
os alunos no estabelecimento das relações. Mas a produção do
conhecimento é exclusiva dos que realizaram esse trabalho. E esse
exercício de pensar, isto é, de estabelecer relações não se restringe
ao que é dito pelo professor. Pode acontecer e acontece a todo
momento, inclusive a partir do que é dito pelos colegas. Assim, ao
imaginar como perda de tempo a fala de seus colegas, o aluno está,
na verdade, desperdiçando valiosas oportunidades de conhecer.
Igualmente equivocada é a atitude de restringir o conhecimento
apenas ao totalmente desconhecido e socialmente valorizado,
segundo sua opinião.
É mesmo impossível atingir o totalmente desconhecido a não ser
partindo do que já é conhecido.
Na realidade, sempre será possível conhecer melhor o que já se
sabe. Em outras palavras, mesmo o já-sabido possui aspectos que
são desconhecidos. Saber melhor o que já se sabe e saber o que ainda
não se sabe são objetivos da atividade escolar.
Mas o grande equívoco dos alunos (e muitas das vezes também
do professor) é atribuir à repetição mecânica o poder de ensinar.
Curiosamente, não se dão conta de que em sua própria experiência
de vida a aprendizagem não se deu pela mera repetição mecânica.
Que ao observarem os outros fazerem com o objetivo de aprender,
estavam estabelecendo relações, comparando com outras formas
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possíveis de fazer etc. Enfim, estavam pensando sobre aquilo que
queriam aprender.
Da mesma forma, ao tentar fazer o que tinham visto ser feito,
também não se tratava de mera repetição. Pensaram sobre os
movimentos a serem feitos, compararam os resultados obtidos com
os desejados, imaginaram novas alternativas, pensaram enfim sobre
o que estavam fazendo. Só depois que aprenderam, foi possível
repetir mecanicamente, isto é, sem pensar, o que então já sabiam.
Não tendo se debruçado sobre esse processo de aprendizagem
que viveram, parece-lhes que tudo se deu pela mera repetição e tratam
de pôr essa crença em prática, na escola. Quem já alfabetizou adultos
deve lembrar-se dos alunos que, levando caderno e lápis já no
primeiro dia de aula, se põem a copiar e re-copiar mecanicamente
qualquer coisa que o professor escreva no quadro negro.
3. A AÇÃO DO PROFESSOR
A disparidade entre a visão que o aluno tem do que seja a escola e
uma educação que efetivamente sirva a esse aluno pode gerar conflito.
Não são incomuns casos até de desistência do curso. Não
encontrando uma escola que corresponda às suas expectativas, o
aluno se frustra e como não é uma criança que os pais levam
obrigatoriamente à escola, acaba abandonando o curso. Para resolver
essa situação não basta que o professor faça um discurso no primeiro
dia de aula avisando dessa diferença. O poder de um discurso, por
melhor que seja, é muito pequeno para se contrapor a uma imagem
gerada pela cultura em que o aluno está inserido durante uma vida
inteira...
Os professores que têm obtido maior sucesso em trabalhar essa
situação costumam ter presente que é a partir do conhecimento que
se atinge o desconhecimento. Por isso, nas primeiras semanas de
aula preocupam-se em que o aluno “reconheça” na escola que está
entrando, a escola que ele imaginava.
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Qual o problema de as carteiras estarem dispostas de forma
tradicional nos primeiros dias? (Mesmo porque em muito pouco
tempo surge alguém que não enxerga ou escuta bem, criando a
situação favorável à reorganização da sala para o favorecimento de
todos).
Que mal existe em que o aluno tente copiar o que o professor
escreve? Principalmente quando é possível ligar o copiado ao seu
significado ou criar situações onde o objeto da cópia tem um sentido
especial para quem o realiza: seu próprio nome, nome dos seus
filhos,...
O objetivo do educador não é chocar o aluno, mas desencadear
um processo de descobertas.
Existiriam problemas se o professor se conformasse com essa visão
do aluno e não captasse nela situações capazes de gerar uma nova
visão, e não desse oportunidade para que o aluno experimentasse
uma concepção educativa mais adequada a seus próprios interesses.
Isso não precisa acontecer nos primeiros momentos. Poderá ocorrer
no decorrer do processo. Compete ao professor desafiar o aluno
para outras atividades além daquelas que ele espera da escola. É no
exercício delas que ele irá percebendo sua utilidade e irá modificando
a sua visão escolar. Igualmente, quando o educador desenvolve
atitudes frente ao conhecimento dos alunos, diferente da esperada
por eles, os alunos podem mudar a sua visão sobre o papel do
professor e dos colegas na construção desse conhecimento.
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OS DIREITOS HUMANOS NA HISTÓRIA
Margarida Bulhões Pedreira Genevois
Os direitos humanos são fundamentais ao homem pelo fato de
ele ser homem. Não resultam de uma concessão da sociedade,
política, mas constituem prerrogativas inerentes à condição
humana.
Os direitos humanos não são estáticos, mas acompanham o
processo histórico. Este não é linear: conhece saltos e retrocessos.
Apenas no século XX, sobretudo depois da Segunda Guerra
Mundial, os direitos humanos definiram-se explicitamente e
adquiriram o reconhecimento mundial. A noção de direitos
humanos, todavia é muito antiga, perdendo-se no tempo.
DAS ORIGENS DO CONCEITO
O código de Hammurabi (1 700 a.C. aproximadamente)
menciona leis de proteção aos mais fracos e de freio para a
autoridade. A civilização egípcia, especialmente na era dos faraós
(dinastia XVIII), já concebia o poder como serviço.
Há divergência quanto ao surgimento dos direitos humanos na
história, mas muitos autores situam-no na Grécia, quando eles foram
aludidos em um texto de Sófocles, no qual Antígona, em resposta ao
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rei que a interpela em nome de quem havia sepultado contra suas
ordens, o irmão que fora executado, proclama: “Agi em nome de uma
lei que é muito mais antiga do que o rei, uma lei que se perde na origem
dos tempos, que ninguém sabe quando foi promulgada”.
Os profetas judeus vinculam o exercício do poder a deveres
fundados em princípios religiosos que inspiram uma ética baseada
na responsabilidade de todos os homens pelos seus atos. Buda,
Confúcio e Zoroastro pregam a supremacia do direito e da justiça, o
ensino da fraternidade e da generosidade. Visam à plena realização
da natureza humana e à formação de uma sociedade pacífica e justa.
Entre os séculos VII a.C. e XVIII da nossa era, a humanidade faz
progressos no controle dos governantes, que exercem e distribuem
a justiça. Na Grécia do século V a.C., os cidadãos já controlam as
ações do Estado (pólis); o limite do poder é dado pelo direito que
exercem os cidadãos ao participar dos assuntos públicos. Os gregos
desenvolvem o conceito da liberdade como expressão máxima da
dignidade humana, baseada na idéia da igualdade. Os estóicos
defendem a existência de princípios morais, universais, eternos e
imutáveis que conferem direitos inerentes ao homem.
O cristianismo, considerando o homem à imagem e semelhança de
Deus, prega a igualdade entre todos os homens. Essa igualdade não se
limita ao usufruto individual dos direitos, mas supõe o dever do amor
ao próximo. O cristianismo vai ter influência decisiva, ora benéfica,
ora maléfica, quando a Igreja passar a associar-se ao poder temporal.
O Islã, na vida política, tem uma concepção similar da relação
entre os homens: a de sua igualdade primordial “baseada em sua
identidade essencial, em sua origem única, e em seu destino comum”
(SORONDO, 2005).
DIREITOS HUMANOS E DIREITOS DIVINOS NA IDADE MÉDIA
Na idade Média, a partir das famílias daqueles que lutaram contra
as invasões dos bárbaros (e com isso haviam se tornado proprietários
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de terras), nasce uma aristocracia associada ao poder real que buscava
fundamento no direito natural para os seus privilégios. Aquele
período tem uma importância significativa: é um momento de revisão
de valores, de confronto entre objetivos temporais e permanentes,
que vão cristalizar-se ao final do período, quando já surge uma nova
realidade histórica: a burguesia.
No final da Idade Média, São Tomás de Aquino discute
diretamente a questão dos direitos humanos, retomando Aristóteles
e dando à filosofia deste uma face cristã. A fundamentação de São
Tomás é teológica: o ser humano tem direitos naturais que fazem
parte de sua natureza, pois lhe foram dados por Deus. A partir disso
desenvolve sua argumentação teórica e política.
A utilização do direito divino, no entanto, ocasionará na prática
justificativas ambíguas, como a de que o direito dos reis era um direito
natural de origem divina, o que justificava o absolutismo. Abriu-se
caminho para toda espécie de violências, e em última análise, até para
a negação dos direitos humanos. O poder armado, o poder econômico
e os proprietários de terras justificavam a exploração de outros homens
com base no direito divino dos estratos sociais superiores, não
respeitando os que não desfrutavam desses privilégios.
Cessadas as invasões dos bárbaros e conseqüentemente afastados
os grandes riscos, a proteção dos senhores feudais se tornou
dispensável, e as pessoas voltaram para as cidades. Os burgos
começaram a se desenvolver. A burguesia enriqueceu-se e fortificou-
se, mas ainda era mantida à margem do poder político que reivindicava
para defender os seus poderes pessoais e o seu patrimônio.
A época do Iluminismo e dos enciclopedistas revoluciona as idéias
tradicionais da idade media afirmando a dignidade humana e a fé na
razão. Gesta-se a idéia de que o homem é concebido como detentor
de direitos sagrados e inalienáveis e de que o governo não pode
prescindir da vontade dos cidadãos. Rousseau desenvolve a teoria
da igualdade natural entre os homens. Voltaire insiste na tolerância
religiosa e na liberdade de expressão, pois a religião já não pode
explicar tudo.
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Até então os direitos humanos vinham sendo concebidos como
direitos naturais, impostos por Deus, sendo utilizados contra a
burguesia em favor dos reis e aristocratas, para justificar a violência
que estes praticavam. Os burgueses não rejeitam esses direitos, mas
reclamam também para si. Surgem pensadores considerados liberais
como Espinoza, Locke, Rousseau, Montesquieu, que pregam a
existência dos direitos fundamentais como a igualdade e a liberdade.
Sobre este último, foi inaugurado na modernidade pela conjuntura
que uniu burguesia e pensamento liberal; a liberdade era exaltada
como um valor para além dos condicionantes de estratos sociais,
condicionantes estes nos quais a burguesia era desfavorecida.
A Inglaterra pode ser considerada a nação onde a influência da
burguesia no poder teve seu inicio. Em 1215, na Inglaterra, os bispos
e barões haviam imposto ao rei João-sem-terra a carta magna, que
limitava o poder do soberano. Havia também um parlamento desde o
século XIV, embora formado somente por nobres e prelados, todos
proprietários. A burguesia impõe posteriormente a criação da câmara
dos comuns, que perdura até hoje. O crescimento político da
burguesia, dessa forma, favorece o resgate dos direitos humanos. A
petição de direitos de 1628 é imposta pelo parlamento ao monarca. O
habeas corpus de 1669, que consagrou o amparo à liberdade pessoal,
determinava que a pessoa acusada fosse apresentada para julgamento
público. Até então, os nobres e aristocratas prendiam e faziam a sua
própria justiça.
Foi sobretudo o Bill of Rights de 1689, o mais importante
documento constitucional da Inglaterra, que fortaleceu e definiu
as atribuições legislativas do parlamento frente à coroa, que
proclamou a liberdade da eleição dos membros do parlamento,
consagrando algumas garantias individuais.
Ainda neste século XVIII, dois acontecimentos sedimentam
princípios fundamentais para a moderna concepção de direitos
humanos.
Em 1776 fundam-se os Estados Unidos da América, através de
uma revolução eminentemente burguesa. A Inglaterra impunha
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sucessivas e crescentes restrições à vida econômica das colônias
através da imposição de taxas sobre o comercio exterior. Isso
fomentou nos colonos um forte espírito de desobediência e
insubordinação.
Embora parte do império britânico, as colônias da América
foram desde cedo conquistando o direito de autogoverno e
assumindo certa auto-suficiência. O anseio de libertação alastrou-
se pelas treze colônias que, unidas, proclamam a declaração de
independência dos Estados Unidos, também conhecida como
declaração de Filadélfia. Nela, são expostas as razões fundamentais
que levam à independência: “Todos os homens foram criados iguais.
Os direitos fundamentais foram conferidos pelo criador; entre eles
estão o da vida, o da liberdade e o da procura da própria felicidade”.
Por essa declaração, sempre que qualquer forma de governo tenta
destruir esses direitos, assiste ao povo o direito de mudá-lo ou aboli-
lo e de instituir um novo governo. O documento serviu de
referencial para todos os movimentos de independência dos povos
colonizados. No entanto, a constituição norte-americana ainda é
uma constituição feita por comerciantes para comerciantes.
Em 1789, a revolução francesa cria uma carta que se torna base
fundamental do direito constitucional moderno: a declaração dos
direitos do homem e do cidadão. Em seu primeiro artigo já afirma
um direito social fundamental: o fim da sociedade é a felicidade
comum. A essência da declaração apóia-se na idéia de que, ao lado
dos direitos do homem e do cidadão, existe apontada a obrigação
de o estado respeitar e garantir os direitos humanos.
Todavia o movimento burguês não pode ser analisado com as
lentes contemporâneas. O conceito de igualdade naquela época,
por exemplo, não era o mesmo que o de hoje, pois a constituição
norte-americana, por exemplo, admitia a escravidão. De fato, a
mudança fundamental empreendida pelos filósofos racionalistas foi
a passagem da justificativa divina para uma justificativa baseada na
razão. Diz Hugo Grocis que “ainda que Deus não existisse o
homem teria direitos naturais”.
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DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Desde a Carta Magna de 1215 até a Carta das Nações Unidas,
mais de setecentos anos se passaram. Muitos documentos legislativos,
declarações e resoluções versaram sobre direitos humanos. Nenhum
deles foi tão abrangente e atingiu tantas pessoas quanto a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada em 10 de
dezembro de 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
O mundo inteiro, chocado com o genocídio e as barbaridades
cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, sentiu a necessidade
de algo que impedisse a repetição desses fatos. Organizadas e
incentivadas pela ONU, 148 nações se reuniram e redigiram a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Direitos dos Povos e
das Nações.
A Declaração foi subscrita por todos os países membros da ONU,
com abstenção dos países alinhados à União Soviética (8 abstenções
dentre os 58 países membros). Em seus trinta artigos, essa Declaração
de caráter internacional contém uma súmula dos direitos e deveres
fundamentais do homem sob os aspectos individual, social, cultural
e político.
A conferência de Teerã de 1968 completou e reafirmou a
indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos e o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e culturais fortificou
os artigos da Declaração.
Seguiram-se várias outras convenções. Entre elas, destacam-se as
seguintes: Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial, Convenção contra Discriminação
da Mulher, Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e Convenção sobre os
Direitos da Criança.
Esses pactos, tratados e convenções nem sempre foram aprovados
facilmente, mas foram o resultado de árduos, longos e aprofundados
debates. Com a aceitação da universalidade e da transnacionalidade
dos direitos humanos, reconhece-se que o ser humano sempre
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possuirá direitos fundamentais, independentemente da sua
nacionalidade, raça, situação de refugiado ou de apátrida.
Os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos
estão inseridos em todas as constituições do mundo moderno e
constituem parâmetros para a democracia. Constituíram-se pactos
que completaram e ampliaram a declaração, concretizando os direitos
humanos e estabelecendo medidas obrigatórias para os Estados.
Entre eles estão o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos e
Sociais e o Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos.
GERAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS
Na evolução histórica dos direitos, consideram-se três gerações
de direitos humanos.A primeira geração corresponde aos direitos
civis e políticos: as liberdades individuais, o direito à vida, segurança,
igualdade de tratamento perante a lei, o direito de propriedade e de
ir e vir. A segunda compreende os direitos econômicos e sociais como
direito à saúde, educação, moradia, trabalho, lazer e os direitos
trabalhistas. A terceira é a dos chamados direitos dos povos, que
correspondem a direitos tais como o direito ao desenvolvimento, à
paz e à participação no patrimônio comum da humanidade. Está
representada especialmente na declaração de Argel, em 1977.
As três gerações de direitos não são categorias que se excluem,
mas que se completam. As convenções definem o conteúdo de
alguns direitos ou grupo de direitos estabelecendo sistemas para
protegê-los e controles para assegurar-lhes o cumprimento. Na
América Latina, por exemplo, a Organização dos Estados
Americanos (OEA) aprovou em 1969 a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, pelo Pacto de San José da Costa Rica,
vigente desde 1978; além disso, ficou instituída a Corte
Internacional de Direitos Humanos, uma instância judicial
autônoma cuja finalidade é estudar os desníveis e a violação de
direitos humanos na América Latina.
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Em 1993, o Congresso de Viena ressaltou que os direitos são
universais, inalienáveis, invioláveis, iguais e indivisíveis.
Os países que ratificaram a Declaração de 1948 reconheceram ser
essencial a “consciência moral da humanidade”; cinqüenta anos
depois, mais do que nunca, os direitos humanos representam o
horizonte dos povos; são a única forma de a humanidade poder
alcançar relações justas e pacíficas.
As organizações não-governamentais têm uma função essencial
de defesa e promoção dos direitos humanos, pois tal tarefa não pode
limitar-se aos Estados. No congresso de Viena, em 1993, as ONGs
foram reconhecidas como interlocutoras e suas opiniões levadas em
consideração.
DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL
No Brasil de hoje, fala-se muito em direitos humanos; tornou-se
politicamente correto mencioná-los. No entanto, há pouco mais de
quinze anos, abordá-los em nosso país era considerado subversão e
seus divulgadores eram malvistos e até execrados como “defensores
de bandidos”.
A deturpação do significado dos direitos humanos era proposital
por parte de grupos de extrema direita, aos quais interessava a
consolidação do status quo e do autoritarismo. Essas facções exploravam
o medo da violência crescente e sobretudo a tomada de consciência
das classes populares esmagadas ao longo de 22 anos de ditadura.
Mesmo depois do fim da ditadura militar e do restabelecimento da
democracia, certos setores da sociedade ainda encaram com
desconfiança aqueles que afirmam: “Fazemos um esforço enorme para
prender um criminoso e quando o fazemos, os ‘Direitos Humanos’
atrapalham tudo, pois não permitem torturar e bater”.
A acirrada incompreensão e a campanha contra os direitos
humanos provêm do desconhecimento daquilo que eles representam
ou até mesmo de posições egoístas dos interessados em manter
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situações de privilégios. No entanto, interessam a todos e a cada um
em particular. Sem respeito a eles, não pode haver sociedade justa,
tampouco democracia sólida.
O CONCEITO DE “DIREITO” NO BRASIL
Direito, no Brasil, sempre foi um conceito vago, significando
privilégios para alguns. Em seus quinhentos anos de história, o
autoritarismo, e não o Direito, permeou as relações na sociedade e
entre ela e o Estado. A finalidade da colonização foi o enriquecimento
europeu com a exploração predatória de recursos naturais – como
o pau-brasil e o ouro – e de seus recursos humanos – a mão-de-obra
indígena e a negra. A escravidão, durante três séculos, forneceu mão-
de-obra barata e fortaleceu o autoritarismo.
Para a maioria da classe dominante, o escravo era um objeto sem
necessidades nem quaisquer direitos. O dono do escravo podia
conceder-lhe regalias por mera generosidade, e não como direito ou
respeito à dignidade de sua pessoa. O escravo não era nem cidadão
de segunda classe (como eram consideradas as mulheres, por
exemplo), mas meros instrumentos, cujo destino era o trabalho a
serviço dos mais poderosos. As populações do campo, isoladas em
imensas extensões de terra e também dependentes diretamente dos
donos do poder, não cogitavam em exigir direitos, mas ansiavam
por dádivas e favores. A elite, única considerada capaz de dirigir a
nação e de estabelecer a ordem, forjava leis que defendiam, antes de
mais nada, os seus próprios interesses.
O trabalho, sutilmente, era considerado desprezível, sobretudo o
trabalho manual. O preconceito vinha disfarçado e diluído em
sentimentos de generosidade, calcados numa idéia de superioridade.
O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, e ela
deixou marcas profundas na cultura do país. Numa sociedade
hierarquizada, dissimulada por uma ideologia de conciliação, “direito”
era sinônimo de privilégios que não alcançavam a maioria.
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Com a República, a situação mudou apenas na teoria. No início
do século, as greves eram tidas como “um acinte”, e as questões
sociais, uma “questão de polícia”. Ocorreram progressos, mas ainda
perdura no povo a idéia de que tudo se deve esperar do governo,
particularmente favores. Na relação Estado/sociedade, ainda grassam
os critérios do paternalismo e clientelismo.
Quando, no Brasil dos anos sessenta, a população começou a
exigir direitos, os militares impuseram “ordem” e, inspirados na
doutrina da segurança nacional, instalaram uma ditadura que durou
22 anos. Com lutas, sacrifício e dor, a sociedade conquistou as
eleições diretas e o sufrágio universal. Mas os direitos sociais ainda
não estão em vigor.
AMÉRICA LATINA
A HISTÓRIA VIVIDA PELO POVO BRASILEIRO É BASICAMENTE A
MESMA DE TODOS OS POVOS DA AMÉRICA LATINA.
Alguns países, mais do que o Brasil, foram submetidos a episódios
ainda mais graves: genocídio de índios, revoluções sangrentas e
ditaduras cruéis (cem mil mortos e desaparecidos na Guatemala e
América Central, nos últimos quinze anos; trinta mil no Chile,
Argentina e Uruguai, durante as ditaduras militares), como atestam
os relatórios da instituição America’s Wacth.
Paralelamente, cresce a pobreza no continente americano. Ela
atinge hoje, quase a metade da população latina, o que representa
cerca de 460 milhões de pessoas. Desde as reformas que frearam a
hiperinflação na Argentina, México e Brasil, o número de pobres
aumentou em sessenta milhões. O desemprego, fruto do
neoliberalismo globalizante, aumentou. Os direitos sociais como o
da habitação, saúde e educação continuam precários.
A violência disseminada leva ao preconceito difuso de que o
inimigo agora é o pobre, perigoso porque incomoda com sua
presença feia e degradante, e que a qualquer momento pode revoltar-
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se e tornar-se violento; a identidade do pobre está cada vez mais
relacionada com a do bandido, marginal. “Os excluídos, na
terminologia dos anos noventa, não são residuais nem temporários,
mas contigentes populacionais crescentes que, não encontrando
espaço no mercado, vagueiam pela cidade, sem emprego e sem teto”,
como afirma Elimar Pinheiro Nascimento.
A pobreza, resultado do apartheid social num país onde convivem
um primeiro e um quarto mundo é fruto, no Brasil, da segunda maior
concentração de renda do mundo. Mas essa acentuada concentração
de rendas está disseminada por todo o continente. Documento da
Comissão Econômica para a Améria Latina – Cepal constata que os
10% mais ricos latino-americanos ganham significativamente mais
do que os 10% mais pobres: 70% mais, no Brasil; 50% no México;
42% na Colômbia e 26%, na Argentina. Segundo esse documento,
duzentos milhões de pessoas ainda vivem em estado de pobreza na
América Latina, apesar de o percentual ter caído de 44% para 39%
entre 1990 e 1994. O consultor do BID, Bernardo Kliksberg, prevê
que na virada do milênio seis de cada dez latino-americanos viverão
na pobreza, e afirma que a pobreza mata, na América – Latina, 1
milhão e 500 mil pessoas, entre as quais 900 mil crianças.
O relatório de 1997 da America’s Watch, por exemplo, denuncia
freqüentes e graves violações de dreitos humanos na Colômbia, onde
grupos militares, paramilitares, guerrilheiros e traficantes digladiam-
se dizimando a população civil. A percentagem de pobres subiu
para 49% da população; esse índice passou de quize para dezessete
milhões, em dois anos. A história do país é um rosário de violências
de todos os tipos: desde a proclamação da república, houve quarenta
revoluções; a guerra interna, entre 1948 e 1953, matou trezentas mil
pessoas; as guerrilhas, surgidas no começo dos anos sessenta,
persistem atuantes até hoje.
No México, aconteceram e acontecem perseguições nas áreas
rurais, desaparecimentos e assassinatos. Os zapatistas continuam a
mostrar ao mundo o verdadeiro país: entre 1994 e 1996, a cifra dos
desaparecidos passou de 1 300.
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Nem o México, nem o Peru, nem o Chile, três países que se
manifestaram oficialmente como discípulos triunfantes do ajuste
neoliberal, superaram a miséria, a violência e a indignação popular.
A Guatemala, que assinou há poucos meses um tratado de paz, depois
de anos de guerras fratricidas, poderá esquecer as dezenas de milhares
de torturados, desaparecidos, assassinados, os setenta por cento da
população indígena eliminados? No Peru e na Venezuela, a tortura é
empregada oficial e abertamente contra terroristas e criminosos comuns.
A pobreza endêmica, a marginalização, o desemprego, o porte ilegal
de armas, o tráfico de drogas são problemas preocupantes para todos
os países da América Latina. Nas prisões de todo o continente, milhares
de presos vivem em condições degradantes, muitos sem julgamento.
No Brasil, os massacres de Corumbiara, Carandiru, Candelária,
Eldorado, Diadema, Cidade de Deus e muitos outros, que nos
envergonham, ainda permanecem impunes.
A leitura do relatório da America’s Watch, que analisa a vigência dos
direitos humanos na América Latina evidencia que há muito por
fazer. Seqüestros, assassinatos, torturas, execuções sumárias,
corrupção, tráfico de drogas, prisões desumanas: esta sucessão de
dramas aberrantes, agravados pela impunidade que os dilui, acabam
no esquecimento. Todos esses problemas não aconteceram num
passado longínquo, mas são fatos do presente, estão acontecendo
nos dias atuais. Basta lembrar o assassinato do bispo Juan Gerardi,
baleado em El Salvador, em 26 de abril deste ano, dois dias depois de
ter divulgado um documento denunciando as execuções e prisões
arbitrárias dos últimos anos em seu país.
A COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ E A REDE BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS
Diante de um quadro tão sombrio da situação da América Latina
e do Brasil, o que podemos fazer, nós, cidadãos conscientes,
preocupados com a justiça e o bem comum? Evidentemente não
existem fórmulas nem respostas prontas.
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O primeiro grande passo é a preocupação com essas questões.
As soluções virão com o interesse e a participação de todos. Porém
a tomada de consciência da responsabilidade social de cada um não
nasce gratuitamente na nossa sociedade egoísta, individualista e
consumista. Daí a importância da educação e particularmente da
Educação em Direitos Humanos.
Há 26 anos, a Comissão Justiça e Paz de São Paulo luta contra
injustiças, participando no Brasil de todas as lutas populares de apoio
e defesa dos presos políticos, pela anistia, contra a Doutrina de
Segurança Nacional, pela Constituinte, contra a pena de morte,
sempre na primeira linha de defesa pela justiça e em prol dos
perseguidos. Também atuou junto a refugiados latino-americanos,
fugitivos das ditaduras vizinhas, do Chile, Uruguai e Argentina. Mais
de mil perseguidos passaram por seus escritórios. A partir da
fundação dessa Comissão, muitas outras organizações, com
preocupações específicas, foram surgindo.
Com a volta do Estado democrático, a responsabilidade evoluiu
e compreendemos que não basta existirem eleições livres e não bastam
leis justas, se elas não forem reconhecidas e respeitadas. Não é
suficiente que os governos eleitos democraticamente tenham boas
intenções se não existir espírito cívico e participação popular.
É preciso que o povo conheça seus direitos e deveres, é preciso
educação.
Em contato com várias organizações não-governamentais da
América Latina, constatamos que o trabalho mais útil a ser feito era
o de Educação em Direitos Humanos, cuja base fosse o diálogo, em
que todos os envolvidos são considerados sujeitos.
Em 1995, um grupo de militares, convencidos da importância de
uma educação humanizadora, fundou a Rede Brasileira de Educação
em Direitos humanos, junto com outras ONGs de todo o Brasil. É
uma entidade suprapartidária, supra-religiosa e sem fins lucrativos,
que tem como objetivo a educação em direitos humanos para a
construção de justiça, de democracia e da paz. Tem compromissos
permanentes com a urgência de uma sociedade mais justa, com o
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respeito à pluralidade e diversidade de pessoas e de grupos sociais e
culturais, com a vigência da cidadania para todos os brasileiros e
com a tolerância e a paz. Partindo da dignidade da pessoa procuramos
mostrar nos cursos os direitos de cada um, que são também direitos
do próximo. A partir desse conhecimento nasce o respeito a direitos
e deveres.
Educar, como diz o educador uruguaio Luiz Perez Aguirre, é
modificar as atitudes e as condutas atingindo os corações, os estilos
de vida, as convicções. Para transformar a realidade é necessário
trabalhar o cotidiano em toda a sua complexidade. Por isso, a
educação em direitos humanos, mais do que conteúdos, deve
transmitir uma postura da pessoa no mundo. Não deve ser uma
disciplina ensinada apenas em sala de aula, mas deve ser transversal
a todas as matérias e a todo conhecimento. É um estado de espírito
que deve permear todas as nossas atitudes no dia-a-dia.
1
Desenvolver uma prática social solidária e participativa é um
imperativo ético para aqueles que acreditam no ser humano, que
aspiram por um mundo de paz, justiça e fraternidade. Os setores
médios têm uma grande responsabilidade na educação daqueles que
não têm voz, que não sabem que têm direitos, dos excluídos, da nossa
sociedade injusta. Preocupados com a crise sombria em que vivemos,
sentimos todos o dever de buscar algo maior que dê sentido de luta
para a vida e sentido à nossa esperança.
Há muita coisa positiva sendo feita. É um desafio discernirmos as
sementes de esperança já plantadas e já dando frutos. São sementes
fundamentais da pessoa o clamor contra as várias formas de injustiças
e a sensibilidade pela situação de miséria. Cada um tem um papel e
uma responsabilidade, mas é preciso que todos sejamos semeadores
de esperança.
1
“Educar em direitos humanos é uma tomada de posição, é uma maneira de ser perante o
acinte mais devastador e humilhante, que é a situação de pobreza desumana em que
vivem milhões na América Latina”. (Luiz Perez Aguirre).
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Temos o dever de lutar pela fraternidade, esquecida no mundo de
hoje, pela solidariedade entre os povos, pela tolerância entre as
pessoas, pelo desarmamento das mentes e dos corações, pela aceitação
do outro, diferente, mas igual, sempre nosso irmão. Não importa
que essas belas idéias sejam um trabalho a longo prazo. Sem utopias,
a vida não vale a pena ser vivida.
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BIBLIOGRAFIA
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HERKENHOFF, J. B. Curso de direitos humanos. São Paulo: Editora
Acadêmica, 1994.
SILVA, H. P. da. Educação em direitos humanos: conceitos, valores e
hábitos. 1995. Dissertação (Mestrado) – São Paulo.
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/www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/sorondo/
index.html>. Acesso em: 10/8/2005.
WEIS, C. Os direitos humanos contemporâneos. 1998. Dissertação
(Mestrado) - São Paulo.
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ALFABETIZAÇÃO: A RESSIGNIFICAÇÃO DO
CONCEITO
Magda Soares
Comecemos por analisar o título deste texto: por que
ressignificação de um conceito cuja significação, até bem pouco tempo,
não suscitava dúvidas nem insegurança? Até meados dos anos
oitenta do século passado — portanto, até há apenas duas décadas
—, as palavras alfabetização, alfabetizado, correntes na linguagem
cotidiana, tinham um significado consensual entre profissionais da
educação e também entre leigos: alfabetização, sabiam todos,
definia-se como o processo de ensinar e/ou aprender a ler e a
escrever; alfabetizado era aquele que aprendera a ler e a escrever. É
o que diziam — e ainda dizem — os dicionários. Por exemplo, o
recente Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define alfabetização
como “ato ou efeito de alfabetizar, de ensinar as primeiras letras”;
por sua vez, define alfabetizar como “ensinar (a alguém) ou
aprender as primeiras letras”; a expressão primeiras letras, segundo
esse mesmo dicionário, designa as “noções elementares do
conhecimento, como saber ler, escrever e contar, ministradas
durante o período de instrução primária”. Ainda, alfabetizado é
“aquele que aprendeu a ler e a escrever”.
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Essas significações, porém, vêm sofrendo expressivas alterações
ao longo das últimas décadas. Podem-se buscar indicadores dessas
alterações em várias fontes. Uma delas são os censos demográficos;
os questionários por eles utilizados ao longo do tempo, e a própria
apresentação dos resultados censitários revelam uma progressiva
ampliação do conceito de alfabetização.
Assim, até os anos quarenta do século passado, os questionários
do censo indagavam, simplesmente, se a pessoa sabia ler e escrever,
servindo, como comprovação da resposta afirmativa ou negativa, a
capacidade ou não de assinatura do próprio nome. A partir dos anos
cinqüenta e até o último censo (2000), os questionários passaram a
indagar se a pessoa era capaz de “ler e escrever um bilhete simples”,
o que já evidencia uma ampliação do conceito de alfabetização: já
não se considera alfabetizado aquele que apenas declara saber ler e
escrever, genericamente, mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita
para exercer uma prática social em que a escrita é necessária.
Essa ampliação do conceito revela-se mais claramente em estudos
censitários desenvolvidos a partir da última década, em que são
definidos índices de alfabetizados funcionais (e a adoção dessa
terminologia já indica um novo conceito que se acrescenta ao de
alfabetizado, simplesmente), tomando como critério o nível de
escolaridade atingido ou a conclusão de um determinado número de
anos de estudo ou de uma determinada série (em geral, a quarta do
ensino fundamental), o que traz, implícita, a idéia de que o acesso ao
mundo da escrita exige habilidades para além do apenas aprender a
ler e a escrever. Ou seja: a definição de índices de alfabetismo funcional
utilizando-se, como critério, anos de escolaridade evidencia o
reconhecimento dos limites de uma avaliação censitária baseada
apenas no conceito de alfabetização como “saber ler e escrever” ou
“saber ler e escrever um bilhete simples”, e a emergência de um
novo conceito, que incorpora habilidades de uso da leitura e da escrita
desenvolvidas durante alguns anos de escolarização.
Em outra fonte se pode buscar a comprovação da progressiva
ampliação do significado da alfabetização: a mídia, particularmente
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a mídia impressa. Nesta, identifica-se, sobretudo ao longo da última
década (os anos noventa do século XX), novos modos de mencionar
e caracterizar a alfabetização, os alfabetizados, os analfabetos, o que revela
um despertar para os limites do significado tradicional desses termos
e a necessidade de ampliar o significado — de ressignificá-los. Tomemos
apenas alguns poucos exemplos: dois do início da década e um do
seu final, todos do mesmo veículo da mídia impressa.
O fato de a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação,
Ciência e Cultura) ter definido o ano de 1990 como Ano Internacional da
Alfabetização foi, em grande parte, responsável por suscitar, naquele
momento, uma discussão a respeito do verdadeiro significado da
alfabetização, discussão que se refletiu na mídia. Assim, no final de 1990, a
Folha de S. Paulo publica matéria com manchete de impacto:
ANALFABETISMO AFETA MAIS DE 31% EM SP
Folha de S. Paulo, 27 de dezembro de 1990. Caderno Cidades, p. 6
Um terço da população paulista analfabeta?! O trecho inicial da
matéria esclarece:
Cerca de 31% da população acima de 10 anos do Estado de São
Paulo é “analfabeta funcional”. O termo, usado por educadores,
indica pessoas com menos de três anos de escolaridade. Baseada
nesse termo e em projeções a partir da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD), feita pelo IBGE em 1987, a
Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) elaborou
relatório divulgado neste final de ano onde afirma que “do total de
24 milhões de habitantes de 10 anos e mais (em São Paulo), 7,5
milhões não estão preparados para viver em uma sociedade
grafocêntrica (que está centrada na escrita)”. (grifos meus)
Folha de S. Paulo, 27 de dezembro de 1990.
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Embora a manchete use o termo analfabetismo, a matéria introduz
a expressão analfabeto funcional, que, em seguida, considera necessário
esclarecer: atribuindo-a ao círculo restrito dos educadores, a quem,
realmente, ela se limitava à época, define-a, a fim de trazê-la para o
domínio público. A citação do trecho do relatório da então
denominada FDE (hoje, FNDE) visa não só a informar o número
de analfabetos funcionais em São Paulo a que chegara a pesquisa,
mas também a justificar por que são considerados analfabetos
funcionais: com menos de três anos de escolaridade, a pessoa não
teria se apropriado das habilidades necessárias para participar
efetivamente das práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita —
para “viver em uma sociedade grafocêntrica” (centrada na escrita).
No ano seguinte, 1991 os primeiros resultados do censo realizado
naquele ano trazem de novo a questão aos jornais. A mesma Folha
de S. Paulo publica matéria com esta surpreendente manchete:
ANALFABETOS NO PAÍS JÁ SOMAM 60 MILHÕES
Folha de S. Paulo, 2 de setembro de 1991.
Manchete surpreendente, se se considerar que, segundo o mesmo
censo, a população acima de cinco anos, portanto, já em condições
de se alfabetizar, era de pouco mais de 130 milhões — quase metade
dela seria analfabeta? O lide corrige, em seguida, a surpresa,
apresentando a percentagem de analfabetos, no conceito mais
amplamente conhecido de analfabetismo, e introduzindo um adjetivo
para se referir a um outro e novo conceito de analfabeto:
ANALFABETOS NO PAÍS JÁ SOMAM 60 MILHÕES
Dados do IBGE dizem que apenas 18% são analfabetos, mas o
número de desqualificados é muito maior
Folha de S. Paulo, 2 de setembro de 1991
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“Desqualificados” — pode-se não estar entre os dezoito por cento
caracterizados como analfabetos, mas não estar qualificado para
responder às demandas do contexto social; é o que explica o parágrafo
inicial da matéria:
O Brasil mergulha fundo no analfabetismo. Dados do IBGE dão
18% da população como “analfabetos”, ou cerca de 26 milhões de
pessoas. Este índice, ainda elevado, só vale se for levado em conta
um mal aplicado critério de “saber escrever um bilhete simples”.
É pouco para um país que pretende se tornar rapidamente
competitivo no exterior. No Brasil, três em cada quatro pessoas
economicamente ativas não têm o 1º grau completo. Um conceito
de alfabetização mais exigente incluiria 60 milhões de brasileiros
na categoria de analfabetos. (grifos meus)
Folha de S. Paulo, 2 de setembro de 1991.
“Saber ler e escrever um bilhete simples”, critério utilizado pelo
IBGE para identificar os analfabetos no censo, é considerado “um
mal aplicado critério” e “pouco” para as demandas do país; cobra-se
um conceito “mais exigente”, que seria a conclusão do ensino
fundamental. Reafirma-se, assim, a importância e necessidade de ser
ampliado o conceito de alfabetização e de alfabetizado, a fim de que
sejam incluídas habilidades para além do simplesmente “saber ler e
escrever um bilhete simples”.
Esse discurso de crítica a um conceito restrito de analfabetismo e de
analfabeto está presente na mídia impressa ao longo de toda a década
de noventa, e as expressões alfabetismo e analfabetismo funcional, analfabeto
funcional, alfabetização funcional vão aparecendo cada vez com mais
freqüência. É exemplar e representativa do discurso da mídia a
manchete abaixo, com que, já no fim da década, a mesma Folha de S.
Paulo anunciou os resultados de uma pesquisa sobre habilidades de
leitura da população de jovens e adultos de São Paulo, realizada pela
organização não-governamental Ação Educativa:
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Aqui, já não se trata de advogar uma ampliação do conceito de
analfabetismo, como nas matérias citadas anteriormente; o conceito
de analfabetismo funcional é assumido e contraposto a um “conceito
tradicional”, como se pode ver em trechos da matéria:
ANALFABETISMO FUNCIONAL ATINGE 1/3 EM SÃO PAULO
Folha de S. Paulo, 12 de fevereiro de 1998.
As transformações no mercado de trabalho em curso no
mundo todo mudam radicalmente a concepção que se tinha
até há pouco sobre o que é ser alfabetizado.
Pelo conceito tradicional, hoje 14,7% da população brasileira
com 15 anos ou mais é analfabeta – segundo a última Pnad
(Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), de 1996.
[...] Mas, para levantar esse índice, o IBGE (Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) pergunta:
“Você sabe ler e escrever um bilhete simples?”
Só que agora não basta ler ou escrever um bilhete simples
para se inserir com alguma perspectiva no mercado de
trabalho. Cada vez mais, as profissões exigem tarefas
complexas, que dependem do processamento de informações
– interpretação de textos, uso de mapas, cálculos
matemáticos. [...] A única pesquisa já concluída no país
abordando essa capacidade apurou que um terço da
população da cidade de São Paulo é analfabeta funcional.
O termo inclui tanto aqueles que não sabem nem assinar
seus nomes quanto as pessoas que freqüentaram uma escola,
mas não conseguem, por exemplo, localizar um endereço em
um anúncio de emprego. (grifos meus)
Folha de S. Paulo, 12 de fevereiro de 1998.
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Vê-se que, no fim da década de noventa, quase se chega a negar o
“tradicional” conceito de analfabetismo, propondo-se que o conceito
de analfabetismo funcional inclua não só aqueles “tradicionalmente”
chamados analfabetos, mas também aqueles que, sabendo ler e escrever,
não sabem fazer uso da leitura e da escrita. Além disso, a matéria
desvincula o alfabetismo funcional da freqüência à escola, de certa
forma rejeitando o critério de considerar anos de escolaridade para
definir alfabetizados funcionais; a ênfase é posta diretamente no
domínio de habilidades de uso da leitura e da escrita em práticas sociais,
domínio que a pesquisa que se comenta na matéria procurou avaliar.
Os exemplos analisados — poucos, mas representativos do discurso
da mídia ao longo dos anos noventa — reforçam a conclusão, que já
se pôde anteriormente tirar da análise dos questionários dos Censos
Demográficos, de que o conceito de alfabetização foi-se ampliando ao
longo do tempo: à medida que foram se intensificando as demandas
sociais e profissionais de leitura e de escrita, apenas aprender a ler e a
escrever foi-se revelando insuficiente, e tornou-se indispensável incluir
como parte constituinte do processo de alfabetização também o
desenvolvimento de habilidades para o uso competente da leitura e da
escrita nas práticas sociais e profissionais. É essa ampliação do conceito
— essa ressignificação do conceito — que trouxe também a palavra
letramento, usada com aproximadamente o mesmo sentido de
alfabetismo funcional. Em todos esses novos termos — alfabetização
funcional, alfabetizado funcional, analfabeto funcional, alfabetismo funcional,
letramento — está presente o conceito de que a inserção no mundo da
escrita se dá através de dois processos: a aprendizagem do sistema de
escrita (o sistema alfabético e o sistema ortográfico) — o que se poderia
denominar alfabetização, em sentido restrito — e o desenvolvimento de
competências (habilidades, conhecimentos, atitudes) de uso efetivo
desse sistema em práticas sociais que envolvem a língua escrita — a
alfabetização (ou alfabetismo) funcional, o letramento.
Esses dois processos são indissociáveis — não se trata de primeiro
aprender a ler e a escrever para só depois usar a leitura e a escrita,
mas aprende-se a ler e a escrever por meio do uso da leitura e da
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escrita em práticas reais de interação com a escrita. Ou seja, a
alfabetização, em seu sentido restrito – a aquisição do sistema
alfabético e ortográfico da escrita — não precede nem é pré-requisito
para o alfabetismo funcional, ou letramento, isto é, para a
participação em práticas sociais de escrita: os dois processos são
simultâneos e interdependentes.
De tudo isso uma inferência se pode tirar: a ressignificação do
conceito de alfabetização, agora enriquecido com o conceito de
alfabetismo funcional ou letramento, torna o processo de
alfabetização parte integrante e inseparável do processo de educação:
no quadro desse conceito ressignificado de alfabetização, é um
equívoco considerar que a inserção no mundo da escrita possa se
fazer de forma dissociada e independente do processo educativo mais
amplo. Ao se falar, pois, hoje, de alfabetização – seja de crianças,
seja de adultos – esse processo não pode ser dissociado do processo
educativo, que o inclui e lhe dá sentido.
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Por dentro do mundo do trabalho
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UMA PRÁTICA EDUCATIVA
COM OPERÁRIOS DA CONSTRUÇÃO
Timothy Ireland
Nas práticas educativas que se proponham a inovar existe
sempre uma tensão entre a proposta e a sua execução, entre o
desejado e o realizável, entre o idealizado e o concreto. O projeto
Escola Zé Peão não é diferente. Em uma breve sistematização dessa
experiência, buscaremos identificar a tensão que permeia as suas
várias dimensões, tentando fugir à tendência de se descreverem
práticas da forma como gostaríamos que fossem e não da forma
como elas são. Tanto na prática cotidiana da escola aqui relatada
como no ato de tentar registrar e analisar tal experiência, o grande
desafio é enfrentar, e não esconder, a distância entre o real e o
desejado e buscar compreender quais são os fatores, os
impedimentos, os limites que dificultam a implantação da proposta
na forma em que a concebemos.
O projeto Escola Zé Peão é uma prática educativa desenvolvida
pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e
do Mobiliário de João Pessoa e por um grupo de professores e
estudantes do Centro de Educação da Universidade Federal da
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Paraíba. Teve sua inspiração numa política educacional
desenvolvida pelo grupo, que conquistou a direção do Sindicato
em 1986, baseada, entre outros fatores, na constatação de que o
baixo nível de escolarização entre os operários da categoria se
configurava como um impedimento à construção de um sindicato
democrático e participativo. Assim, a escola foi concebida como
forma de diminuir a tensão entre a proposta de uma organização e
estrutura sindicais democráticas e participativas e a dura realidade
de uma categoria condenada ao silêncio durante longos anos,
silêncio esse incentivado por uma direção sindical pelega, que o
novo grupo veio substituir (IRELAND, 1988).
Mas em que sentido se considerava que o domínio do
conhecimento podia contribuir para mudar esse quadro? Em
primeiro lugar, entendia-se que o domínio do conhecimento
instrumentaliza as relações de poder e, na medida em que o operário
se apropria, com a mediação da escola, desse conhecimento,
potencializa suas formas sociais de luta. Em segundo lugar,
compreendia-se que esse mesmo conhecimento contribui para a
formação da identidade subjetiva do operário como ser humano e
como cidadão; nesse sentido, a escola se configura como um direito
básico constitucional do trabalhador. Em terceiro lugar, acreditava-
se que a escola, como mediadora potencial de conhecimento,
contribuía de maneira fundamental para a formação profissional do
trabalhador. Essa terceira contribuição da escola tem sido cada vez
mais reforçada pelo crescente processo de modernização tecnológica
constatada na indústria da construção, que vem exigindo níveis cada
vez maiores de escolarização formal de seus operários. Assim, o
domínio do conhecimento potencialmente fortalece a capacidade de
luta do operário como sujeito coletivo, representa um direito básico
seu como cidadão e, crescentemente, se torna um imperativo para
resguardar o seu emprego.
A Escola Zé Peão abriu as suas primeiras seis salas de aula em
canteiros de obras da cidade de João Pessoa em 1991, depois de ter
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garantido o espaço necessário para a sua implantação na convenção
coletiva da categoria de 1990. Iniciada com o intuito de alfabetizar
aquele segmento social e educacionalmente mais discriminado da
categoria – os serventes alojados nos canteiros de obras –, a escola
enfrentou, já no processo de matrícula, a primeira tensão entre o
proposto e a realidade, quando surgiu uma demanda forte por parte
dos operários que já tinham um domínio mínimo da leitura e da
escrita. A proposta passou então a englobar três programas básicos:
Alfabetização na Primeira Laje (APL), para operários sem escolarização
prévia, Tijolo sobre Tijolo (TST), para aqueles com certo domínio de
leitura e da escrita e da matemática, e Varanda Vídeo (VV), que
objetivava contribuir para a formação cultural mais ampla do
trabalhador-aluno, por meio da exibição e discussão de vídeos. Desde
1995, a escola também oferece uma oficina de arte como parte do
seu programa e conta com o apoio de uma biblioteca volante, além
de um programa de atividades e visitas culturais.
As aulas nos canteiros de obras ocorrem de segunda à quinta-
feira, no horário noturno, depois do segundo turno de trabalho. A
sexta-feira, quando a maioria dos operários volta para a sua cidade
de origem, é dedicada a atividades de planejamento e formação da
equipe pedagógica. Os professores são todos estudantes de vários
cursos da Universidade Federal da Paraíba, que recebem uma bolsa
de estudos como remuneração para o seu trabalho. Atualmente, a
escola conta com doze salas de aula implantadas em sete canteiros
de obras, com uma matrícula inicial de 203 operários. Esse número
varia em conseqüência da política da escola de não negar acesso a
nenhum trabalhador que queira estudar.
Para se entender as tensões que a escola enfrenta é fundamental
buscar as suas raízes na indústria em que o projeto se insere. A
indústria da construção civil em João Pessoa encontra-se em um
momento de mudanças, exigidas em parte pelo processo de
modernização tecnológica e em parte pelo processo de modernização
das relações de trabalho, ambos os movimentos reflexos do processo
de internacionalização que caracteriza a economia e do programa de
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100
estabilização que dá sustento ao Plano Real. O setor é conhecido
por empregar um grande contingente de trabalhadores, com baixos
índices de produtividade e altos índices de rotatividade.
A rotatividade de mão-de-obra não é um fenômeno simples ou
linear. Em parte, é gerada pela própria estrutura da indústria da
construção, em que o local de produção sofre constantes mudanças:
quando se termina um prédio, o produtor sai de cena, e o local de
produção se desloca para um novo espaço físico. Contribuem
também para a rotatividade as formas de financiamento comuns na
indústria: a decisão de se iniciar obras grandes freqüentemente
depende de financiamentos públicos federais. A título de exemplo, a
média mensal de rotatividade nessa indústria, em 1994, era de 4,06,
enquanto nos outros setores da economia urbana era de 1,56
(IDEME, 1995).
A forma tradicionalmente utilizada para compensar a baixa
produtividade da indústria é o prolongamento da jornada de trabalho.
A jornada básica ainda é de 44 horas semanais, quase sempre
acrescida de horas extras e serão. O trabalho se destaca pelas
demandas físicas que faz ao corpo e à mente do operário, não
compensadas pelo salário. O trabalhador qualificado (profissional)
em João Pessoa ganha R$ 0,95 por hora e o trabalhador não-
qualificado (servente) R$ 0,64. Outra característica da indústria
pessoense é a alta porcentagem de trabalhadores migrantes que
emprega. A maioria desses trabalhadores – expulsos do campo pela
falta de terra ou pela falta de emprego – continua vivendo a dicotomia
rural-urbano. Passam a semana alojados nos canteiros de obras,
voltando à cidade de origem nos finais de semana. Os alunos-
operários da escola são, portanto, na sua maioria, oriundos do
campo, não-qualificados (pelos padrões urbanos), com baixa
escolaridade formal, relativamente jovens e todos homens.
Evidentemente a proposta de se conjugar a função ‘tradicional’
da escola – a de veicular e socializar aquele saber sistematizado que
faz parte da herança da humanidade – com a necessidade de tomar
como ponto de partida para o processo de aprendizagem a experiência
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de vida e a realidade de trabalho do operário cria determinadas
tensões. O fato de o projeto ser conduzido por parceiros
aparentemente tão diferentes como dirigentes sindicais, professores
e estudantes universitários, acrescenta outra camada de
complexidade.
Como, então, caracterizar essa escola, que não pretende ser uma
escola sindical, embora seja uma escola do sindicato? Destacamos o
lugar central que a alfabetização ocupa no processo de ensino-
aprendizagem e o papel que a reflexão crítica sobre a experiência
complexa do operário (como produtor, pai de família, potencial sócio
do sindicato e homem originalmente do campo, na maioria das vezes)
representa como conteúdo desse processo. Em resumo, há uma
preocupação de trabalhar o saber escolar, mas sem perder o
compromisso com a realidade concreta dos operários da indústria
da construção.
Traduzindo essa preocupação em termos metodológicos, a
coordenação considera que “o problema do método (...) não foi
resolvido através de uma tomada de decisão ocorrida em um
momento específico, de uma vez por todas (...).” (IRELAND, 1993,
p. 59) O que houve, e ainda há, é um processo que se desenvolve
dentro da orientação geral definida à época da elaboração do
projeto, uma seqüência contínua de tomadas de decisões
condicionadas pela realidade vivida em cada fase da escola. Assim,
foi-se criando um método caracterizado por três princípios básicos:
o da contextualização, o da significação operativa e o da
especificidade escolar.
Quanto à contextualização, entende-se que a escola situa-se em
um contexto concreto em que se destacam as condições de vida e de
trabalho dos alunos-trabalhadores, as lutas do sindicato que
representa a categoria e a localização da equipe responsável pelo
Projeto no atual espectro de teorizações sobre educação de um modo
geral e sobre alfabetização em particular. Por significação operativa,
compreende-se a busca e o confronto entre o desejado e o possível,
e pelo princípio da especificidade escolar defende-se o compromisso
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do projeto como prática escolar dedicada ao ensino da leitura e da
escrita stricto sensu. Dessa forma, a escola busca um equilíbrio entre a
significação, no sentido da organização de atividades escolares
inteligentes, significativas e politicamente corretas, e a mecânica, no sentido
de atividades que favorecem a aquisição pelo trabalhador de certos
automatismos referentes ao modo como se lê e se escreve
(IRELAND, 1993).
Na prática do cotidiano da sala de aula, a proposta teórico-
metodológica enfrenta as constantes limitações impostas pela
dimensão tempo. Não há tempo para tudo que se considera desejável.
A importância de se alfabetizar para não frustrar mais uma vez o
adulto-aluno cria uma tensão necessária com o entendimento de que
a educação não se limita somente a ler, escrever e contar e às noções
básicas das ciências exatas e naturais. Existem outras linguagens que
exigem uma aprendizagem e que são também importantes para a
geração de novos conhecimentos. As oito horas semanais de
atividades escolares se tornam insuficientes.
Em acréscimo às tensões próprias do processo pedagógico, o
espaço da escola se encontra constantemente invadido física e
temporalmente pela atividade predatória da indústria: os materiais e
a sujeira da construção invadem as salas de aula, e o serão rouba o
tempo de escola do operário, da mesma forma que, em muitos casos,
a necessidade de iniciar atividades econômicas precocemente roubava
da criança a chance de freqüentar a escola na idade adequada. A
própria atividade sindical também compete em certas épocas do ano
com a escola: no período anterior à data base e à convenção coletiva,
o número de assembléias cresce e ocupa o tempo da escola, embora
se reconheça o potencial educativo desse espaço para o operário.
Por último, a própria escola ocupa uma parte do tempo necessário
ao operário para repor as suas forças depois da longa e estafante
jornada de trabalho. O descanso e o lazer são componentes
necessários da vida humana. Embora a escola não seja fisicamente
exigente, da mesma forma que o trabalho na obra, também exige do
operário-aluno. O esforço intelectual é uma atividade que precisa de
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treino e de exercício. Reclamar que o ato de aprender às vezes faz “a
cabeça doer” é bastante comum em experiências de educação de
adultos.
O espaço físico da escola se configura como uma dimensão
conflituosa em muitas práticas educativas com adultos. Ou o adulto
tem que se adaptar a mesas e cadeiras feitas para pessoas bem menores
ou a sala de aula é um espaço improvisado e emprestado. No projeto
Escola Zé Peão achamos relevante levar a escola ao canteiro de obra
por várias razões. Julgamos que assim facilitaríamos em muito a
participação do operário na escola. De fato, a presença da escola no
canteiro pode ser considerada positiva. Porém tivemos que
reconhecer que esse espaço ocupado pela escola não é isento de
contradições. A sala ocupa um espaço à noite depois de as atividades
produtivas terem terminado, mas o espaço da obra, por mais que o
enfeitemos com cartazes, mapas, desenhos dos alunos e outros
materiais pedagógicos, ainda é um espaço regido por regras impostas
pelas relações sociais de produção.
A recriação da proposta pedagógica no cotidiano da sala de aula
depende da equipe pedagógica, tanto dos coordenadores como dos
professores. Para a maioria, a Escola Zé Peão é a sua primeira
experiência como professor-alfabetizador de adultos. Nesse sentido
ela é um espaço de formação e experimentação e não deve deixar de
ser, embora tenha que assumir os riscos implícitos nessa opção. O
projeto também tem que conviver com outras demandas no tempo
do professor e dos coordenadores. Ninguém pode oferecer dedicação
exclusiva à escola. Sempre lembramos dos efeitos perniciosos da
rotatividade do aluno sobre o processo de ensino-aprendizagem, mas
raramente consideramos o efeito da rotatividade de professores sobre
o mesmo processo. Queremos exigir compromisso, competência e
permanência do professor, quando a própria natureza da escola
como projeto, que renova os contratos com as agências financiadoras
de ano em ano, gera um clima de instabilidade incoerente com o
processo pedagógico. Acreditamos que essas questões estão presentes
em muitos projetos e experiências.
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Então, quando falamos da distância entre a proposta escrita e o
projeto concreto, constantemente re-elaborado na prática diária de
sala de aula de cada professor e na prática diária de cada coordenador,
estamos falando da realidade deste projeto e da maioria dos outros.
Existe uma tensão potencialmente criativa, mas sempre um espaço
em movimento.
Nesses cinco anos do projeto, passaram pela escola mais de mil
operários-alunos. Evidentemente, nem todos conseguiram
permanecer durante os nove meses do ano letivo. Como já indicado,
a demissão e a rotatividade tiram muitos deles da escola. Outros
fatores também contribuem para o que se convencionou chamar de
“evasão”: serão, cansaço, a concorrência com outras formas de lazer
como o dominó e o baralho, a televisão ou rádio, a cachaça e o
namoro e a concessão da carteira de estudante. O processo de
avaliação contínua que se emprega revela que, mesmo com evasão,
há significativos ganhos escolares de aprendizagem mesmo para
aqueles que não puderam permanecer na escola.
Se a escolarização do operário é considerada de fundamental
importância, a contribuição dos operários no crescimento e
fortalecimento da organização democrática do sindicato também é
um indicador importante para avaliar o trabalho. Embora não seja
possível afirmar que a escola é a única responsável por certas
mudanças, existem indicações de que ela criou um campo fértil em
que a discussão de novas idéias se tornou mais factível. A participação
nas assembléias sindicais aumentou significativamente (nas últimas
quatro assembléias participaram em média 432 operários, em 1990 a
média era de 194). É mais comum os operários fazerem demandas
em defesa de seus direitos no seu canteiro de obra sem depender da
intervenção da direção do sindicato. Vários ex-alunos já fazem parte
da direção sindical. Dentro da escola, há cada vez mais interesse em
participar do conselho de representantes de sala de aula, que se reúne
uma vez por mês para discutir assuntos da escola. Por último, houve
uma importante inversão de papéis com relação aos primeiros anos
do projeto: iniciada como uma provocação da direção do sindicato
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à categoria, a escola se tornou uma demanda ativamente articulada e
procurada pelos operários.
Como então interpretar essa demanda pela escola? Representa
ela uma oportunidade de recuperar o que foi, para a maioria dos
trabalhadores-alunos, uma experiência curta e frustrada, até mesmo
uma experiência negada? Representa isso, mas representa mais que
isso. Significa uma oportunidade que, nas palavras de Oliveira (1992,
p. 40), permite ao operário “um pequeno salto: passar da prática
empírica para uma outra, cuja empiria seja sistematicamente refletida;
passar da vida expressa dominantemente pela oralidade, para a vida
expressa através da escrita.” Sem dúvida a escola significa isso também
para o operário. Realisticamente, não existe muita expectativa de
que os novos conhecimentos adquiridos na escola vão redundar em
melhorias na qualidade material de vida, melhores salários ou uma
mudança de profissão para um setor econômico “mais nobre”. Acima
de tudo, a escola representa uma contribuição para o soerguimento
da auto-estima e da dignidade do trabalhador, para o fortalecimento
de sua identidade num coletivo de operários e como cidadão que
tem nome e não mais o dedão sujo de tinta.
A prática educativa desenvolvida pela Escola Zé Peão exemplifica
a complexidade característica de outras experiências semelhantes. A
complexidade é conseqüência da necessidade de levar em
consideração e conciliar, contemplar e reconhecer as tensões
inerentes ao processo de ensino-aprendizagem. Reforça a necessidade
de sonhar com os pés plantados firmemente no chão. É necessário
basear uma prática em uma proposta teórico-metodológica guiada
por princípios, porém tal proposta não pode se tornar uma camisa
de força a ser implementada a todo custo. Ela tem que interagir com
os interesses e necessidades de aprendizagem dos operários-alunos,
como sujeitos coletivos e como indivíduos, e com o contexto
concreto em que a prática se desenvolve – no caso específico, a
indústria da construção civil. No processo, a proposta original fica
sujeita à avaliação do concreto e, nessa relação, cria-se e se recria. A
distância entre o proposto e o concreto do cotidiano, quando
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entendida, reconhecida e cuidadosamente analisada por todos os
atores envolvidos no empreendimento, torna-se uma tensão criativa
e não um impedimento ao desenvolvimento de uma prática coerente,
comprometida e eficiente.
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107
BIBLIOGRAFIA
IDEME. Anuário Estatístico da Paraíba. João Pessoa: Ideme, 1995.
IRELAND, T. D. Adult Education and Trade Unionism in North-East
Brazil: a study of a practice of popular education. 1988. Tese
(Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação da Universidade
de Manchester, Inglaterra.
IRELAND, V. E. J. da C. Alfabetização de adultos: ainda a questão
do método. 1993. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. pp.57-70. (Temas em
educação;. 3).
______; OLIVEIRA, M. de L. B. de. Aprendendo com o trabalho. 2. ed.
João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1996.
OLIVEIRA, M. de L. B. de. A educabilidade do trabalho: seu realismo
em uma experiência educativa com trabalhadores. 1992. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa. p.35-52. (Temas em educação;. 2).
_____. Benedito: um homem da construção. 2. ed. João Pessoa:
Universidade Federal da Paraíba, 1996.
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EDUCAÇÃO BÁSICA DE JOVENS E ADULTOS E
TRABALHO
1
Marisa Brandão
Este texto tem como objetivo colaborar com as discussões sobre as
relações entre trabalho e educação realizadas por alfabetizadores e
monitores populares que trabalham com jovens e adultos. Na primeira
parte, relembramos alguns aspectos em relação ao desenvolvimento
científico-tecnológico, para então tecermos comentários, na perspectiva
da educação de jovens e adultos, sobre a discussão mais recente acerca
da reforma da educação profissional e o modelo de competências que
vem sendo proposto.
DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICO COMO
RESULTADO DO TRABALHO HUMANO
O desenvolvimento científico e tecnológico que tem possibilitado a
reestruturação produtiva sob as relações sociais capitalistas, tem
significado um reforço às desigualdades sociais. Não estando voltado
para as múltiplas necessidades humanas, mas sim tendo como objetivo
a acumulação e o lucro, esse desenvolvimento torna-se um elemento de
exclusão, pois nesse contexto o seu incremento não significa a melhoria
das condições de vida para todos.
1
Parcialmente baseado na dissertação de mestrado da autora, defendida na Universidade Federal
Fluminense, Faculdade de Educação, em 1997, sob o título “Das artes e ofícios ao ensino
industrial: continuidades adaptações e rupturas na construção da identidade do Cefet/RJ”.
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110
No entanto é preciso perceber que o problema não está no
desenvolvimento tecnológico propriamente dito, pois não é este que
determina as relações sociais. A ciência e a técnica devem ser
compreendidas como produtos históricos da atividade humana e,
portanto, sua aplicação ao processo produtivo não é neutra. E, se
por um lado, devemos ter cautela com teses que defendem o fim dos
conflitos de classe – a formação de uma sociedade harmônica – como
conseqüência quase natural da aplicação do desenvolvimento
científico-tecnológico ao processo produtivo, por outro, também não
podemos nos deixar levar pelas teses que caem no extremo oposto.
Estas últimas defendem a idéia de que o processo de reestruturação
produtiva estaria acarretando uma grande desorganização social. O
desenvolvimento científico-tecnológico para elas seria, em última
instância – por possibilitar a substituição de trabalhadores por
máquinas –, o causador do aumento do desemprego estrutural devido
à eliminação de postos de trabalho, e o responsável, assim, pela maior
exploração capitalista.
Ocorre que não é o uso de uma máquina automática que garante
relações de produção capitalista. O processo de trabalho capitalista,
ou as relações de produção que aquele estabelece, não são
fundamentalmente determinadas pelas técnicas e pelos instrumentos
materiais de produção, e sim pelos interesses do capital em confronto
com os interesses dos trabalhadores. Portanto, a questão é de como o
capital se apropria da tecnologia (que é resultado do desenvolvimento
científico, isto é, do trabalho humano), usando-a para realizar sua
dominação, para impor todo um sistema de normas que buscam
garantir, seja através da coerção, do consenso ou de uma combinação
de ambos, o poder e controle sobre a produção. Como escreveu Marx,
“É mister tempo e experiência para o trabalhador aprender a distinguir
a maquinaria de sua aplicação capitalista e atacar não os meios materiais
de produção, mas a forma social em que são explorados”.
2
2
MARX, K. O capital: maquinaria e grande indústria, v. 1, tomo 2. Londres: The British
Museum, 1893. cap. 15.
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111
Se em sua forma capitalista, a grande indústria tem levado ao
sacrifício da classe trabalhadora, há que se admitir os avanços que
traz consigo, como processo de desenvolvimento social que exige
transformações na produção e nas relações sociais em geral. Assim,
é preciso reconhecer que a utilização e a melhoria da base científico-
tecnológica na produção leva à necessidade do desenvolvimento do
conhecimento científico e de sua socialização. A produção com base
científico-tecnológica traz, portanto, a tendência a se exigir do
trabalhador em geral um conhecimento mais amplo. A racionalização
da produção caminha para a adoção de procedimentos flexíveis, que
exigem reforço a normas genéricas. Isso é a base para que, mais tarde,
a escola – espaço privilegiado de sistematização do conhecimento
científico socialmente produzido – se torne uma instituição com um
importante papel na formação dos trabalhadores.
Podemos observar aqui uma contradição. Ela está no fato de que
o desenvolvimento da grande indústria capitalista, por se basear na
aplicação de princípios científicos, requer um conhecimento teórico
e prático por parte dos trabalhadores. Ou seja, se por um lado, o
capitalismo necessita de trabalhadores cada vez mais desenvolvidos
de uma forma completa (e não fragmentada), por outro lado, essa
conquista da socialização do conhecimento por parte dos
trabalhadores permite-lhes, cada vez mais – ao menos potencialmente
– a compreensão crítica de sua inserção na sociedade capitalista e,
portanto, a busca da superação dessas relações sociais.
O desenvolvimento científico e tecnológico, as novas bases
técnicas do processo produtivo, a nova demanda de qualificação e
de educação básica por elas gerada podem ou não significar uma
ruptura no processo histórico. Não se trata de uma relação simples
e direta, mas pode ser um momento de contradição.
As novas demandas de qualificação podem ser um avanço, se
forem tomadas na perspectiva de ruptura da ordem social capitalista,
se forem compreendidas como formação voltada para a construção
de uma sociedade que desenvolve a ciência e a tecnologia com o
objetivo de atender às necessidades humanas.
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EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, “MODELO DE COMPETÊNCIAS” E
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
A reforma da educação profissional
O atual governo federal, como resultado de um projeto que já
vinha sendo articulado antes mesmo da aprovação da LDB (Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em dezembro de 1996),
implantou uma reforma da educação voltada especialmente para os
cursos de formação profissional
3
. As características da reforma que
destacamos aqui são: a separação entre “educação profissional” e
“educação escolar”; a complementaridade destas no nível técnico; e
a possibilidade de realização da formação profissional de nível técnico
em módulos independentes (que conferem certificados de
qualificação) e em diferentes instituições de ensino. Tentaremos
mostrar o que vem sendo proposto em termos gerais e, nas condições
de um país economicamente dependente como o Brasil, vislumbrar
seus limites e possibilidades.
É importante destacar que educação profissional não é sinônimo
de formação profissional de nível técnico – aquela equivalente ao
ensino médio e que, ao final, conferia ao aluno uma habilitação
profissional de técnico. Além deste, temos o nível básico (“destinado
à qualificação, requalificação e reprofissionalização de trabalhadores,
independente de escolaridade prévia”) e o tecnológico (“corresponde
a curso de nível superior na área tecnológica, destinado a egressos
do ensino médio e técnico”); este último não é objeto de análise
neste texto.
O nível básico, definido em lei como não-formal, de duração
variável e não sujeito à regulamentação curricular, confere ao
trabalhador um certificado de qualificação profissional, e não um
diploma com uma habilitação profissional regulamentada por lei. O
3
BRASIL. Decreto n. 2208, de 17 de abril de 1997. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil. Poder Executivo. Brasília, 20 abr. 1997. ; BRASIL. Ministério da Educação.
Portaria n. 646, de 14 de maio de 1997. Brasília: MEC, 1997.
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113
que parece ser novidade é o incentivo que vem sendo dado às
instituições, públicas ou privadas, no sentido de organizarem cursos
deste nível da educação profissional, de pequena duração, na grande
maioria financiados pelo FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador)
4
.
Em relação à rede federal de Educação Profissional, esse incentivo
toma a forma de obrigatoriedade legal.
É com esses cursos que o governo pretende tornar a “educação
profissional [...] acessível a toda a população que dela precise”
5
. Esse
projeto, utilizando também a rede federal, reservaria cem horas anuais
de educação profissional por trabalhador, tendo a capacidade de
atingir a cada ano cerca de vinte por cento da PEA (população
economicamente ativa)
6
. Se fizermos as contas, veremos o que essas
cem horas anuais significam: em um ano letivo de dez meses, cada
trabalhador teria aproximadamente duas horas e trinta minutos de
educação profissional por semana!. Após cinco anos, toda a PEA
poderia ter sido atendida nas mesmas condições! Esse é o tempo
para “educação” (ou “qualificação”, ou ainda desenvolvimento de
“competências”?) que o governo reserva àqueles que “dela precisam”.
E, mais ainda, essa é a formação que, segundo, o mesmo governo,
garantiria ao país competitividade no mercado globalizado, cujo
processo produtivo tem sofrido intensas transformações.
Não pretendemos negar a oportunidade que cursos de pequena
duração podem significar para os trabalhadores desempregados, ou
em vias de perder seu emprego. Mas isso não implica afirmar que
seja a solução para elevação da qualificação profissional do país. O
acesso a cada hora de educação/formação profissional por parte
dos trabalhadores sempre será uma conquista, mas todo cuidado é
4
BRASIL. Ministério do Trabalho. Secretaria de Formação e Desenvolvimento
Profissional. Fundo público gerenciado através da Sefor/MTb. Brasília: Sefor/MTb, s.d.
5
BRASIL. Ministério do Trabalho. Entrevista concedida pelo Secretário da Secretaria de
Educação Média e Tecnológica, Átila Lira. Jornal do MEC, a. 9, n. 1, p. 9, ago. 1996.
6
MEHEDFF, N. O triste exército de Brancaleone. Jornal, s. n., 20.ago.1996. Ver também
ENTREVISTA ao Secretário da Sefor, Boletim Unitrabalho Informa, a. 2, n. 94, fev. 1998.
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114
pouco para não cairmos no que pode vir a ser uma “fábrica de
diplomas”, onde o trabalhador não encontra a educação que
reivindica.
Com relação ao nível técnico da Educação Profissional, deve-se
ressaltar a separação curricular em relação à formação geral: de
um lado, há o ensino médio (antigo segundo grau e etapa final do
que hoje se considera a educação básica) e, de outro, tem-se o curso
técnico, que habilita profissionalmente. São dois cursos
independentes, porém complementares – o diploma de técnico só
é conferido a quem apresentar a conclusão do Ensino Médio. Por
um lado, essa estrutura poderá significar uma certa democratização
em relação ao acesso às “escolas técnicas” (em especial às federais,
por serem as mais disputadas), pois ao tornar-se um complemento
em relação à educação básica, os cursos da educação profissional
de nível técnico só serão procurados, a princípio, por quem desejar
obter uma habilitação profissional antes do ingresso no nível
superior de ensino
7
, por outro lado, a realidade educacional do país
não garante sequer o acesso ao ensino médio ( público e gratuito),
quanto mais sua qualidade. Sendo assim – sem entrar aqui na
discussão sobre a necessária articulação entre teoria e prática,
ciência e tecnologia, trabalho e vida –, mesmo que o discurso
governamental proclame educação básica para todos, dada nossa
realidade, que tipo de profissionais poderemos formar? Além disso,
a reforma propõe que esse nível de ensino seja organizado em
módulos independentes, que poderão ser cursados em diferentes
momentos e instituições, sendo que a conclusão de cada módulo
garantirá ao estudante/trabalhador um certificado de qualificação
profissional, e a soma de um número determinado de módulos
garantirá um diploma de técnico. Mais uma vez perguntamos, qual
educação estará sendo democratizada?
7
É preciso lembrar que se estes cursos, reconhecidamente de qualidade, são procurados
com outros objetivos, a principal causa é o abandono do sistema público de educação.
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115
Essa separação entre educação básica e educação profissional,
existindo uma secretária no Ministério do trabalho dedicada a esta
interferindo nos seus rumos, enquanto a primeira permanece a cargo
do Ministério da Educação, parece lembrar outro momento da
história do país, em 1906. Naquele momento, o trabalho e a formação
profissional, por estarem desvinculados da educação, apareciam na
máquina estatal também em ministério distinto desta – o Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio cuidava da formação
profissional e o Ministério da Justiça, da educação. Essa divisão
refletia assim uma concepção em que a formação profissional volta-
se para aqueles que ocupam postos de trabalho produtivo, enquanto
a educação volta-se para a formação das classes dirigentes, aqueles
que ocupam os cargos de comando ou burocráticos.
8
O modelo de competências
Atualmente, a palavra-chave na discussão da educação e, em
especial, da educação profissional, tem sido “competência”. Temos
assistido à construção e divulgação de termos como reengenharia,
qualidade total, gestão participativa, competitividade,
empregabilidade, educação básica, qualificação – todos voltados para
as mudanças no processo produtivo, para o trabalhador que aquele
requer e, conseqüentemente, para a educação e/ou formação
profissional necessária. Hoje, é o modelo de competências que está
em pauta, o que não quer dizer que todos os outros termos se
esgotaram. Mas o que esse termo em especial quer significar? Em
quais contextos tem aparecido? O que traria de novo e de velho?
Ainda que existam imprecisões nas discussões sobre seu
significado, devido à novidade do conceito, podemos destacar o
que parece ter se tornado consensual. O trabalhador que as novas
bases do processo produtivo estariam demandando seria aquele com
8
A este respeito ver dissertação de mestrado da autora.
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116
competências relacionadas menos a uma qualificação para um posto
específico de trabalho, a um saber técnico (o saber-fazer), e mais a
características gerais e essencialmente comportamentais (o saber-
ser). Isso não significa que a “competência exclua conhecimentos
teóricos ou técnicos, mas sim que esses conhecimentos devem ser
mobilizados por uma maneira específica de se comportar, por um
saber-ser voltado para um fim específico. De fato, aqueles que vêm
acompanhando esse debate podem perceber que a demanda desse
perfil de trabalhador não é tão nova assim. Empresários e alguns
intelectuais reivindicam – e os projetos governamentais parecem
tentar atender – uma formação que garanta um trabalhador capaz
de realizar diferentes tarefas, atividades em equipe, capaz de
colaborar, se engajar, resolver problemas inesperados, que tenha
iniciativa e autonomia, que se envolva e participe nas diferentes
situações de trabalho ( e às vezes da empresa de uma forma geral) –
sempre buscando uma produção melhor e com mais qualidade.
Quero tecer uma crítica ao conceito e à sua utilização, mesmo
que ainda de forma incipiente. Em primeiro lugar, e mais uma vez,
seguindo a tradição liberal, foca-se no indivíduo todas as possibilidades
de êxito ou fracasso social, numa correlação direta com seu méritos
pessoais. Nesse modelo, são as capacidades (ou competências)
individuais do trabalhador que determinam, de forma direta, se ele
tem um lugar no mercado de trabalho ou não. E é principalmente o
seu comportamento, individual, que determina se ele é competente
ou não. Dessa forma, recai completamente sobre o indivíduo a
responsabilidade sobre sua trajetória social, escamoteando as
determinações sociais de construção do próprio indivíduo.
Em segundo lugar, e talvez aqui esteja o cerne da questão, devemos
nos perguntar: competência para qual objetivo? Parece já estar claro
que, para aqueles que defendem uma educação /formação do ponto
de vista dos interesses do trabalhador, competência deveria ser para
todas as dimensões da vida, numa perspectiva de liberdade, que amplie
horizontes. No entanto, parece também já estar claro que, para os
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que vêm defendendo a importância de nos guiarmos por esse “novo”
conceito, “ competente” é aquele que se adapta às relações de produção
capitalista, é aquele que atende especificamente às necessidades do
mercado de trabalho – capitalista. Para eles, competente é aquele que
se comporta, sabe ser, da maneira esperada pelo capital, isto é,
se mobiliza, em última instância, na direção da valorização do capital.
Por fim, uma questão de fundo. Podemos perceber que, através desse
conceito de competência que tem sido construído, se reentroniza, por
um lado, o discurso de naturalização das relações sociais capitalistas e,
por outro o fim dos conflitos de classes no interior dessas relações.
Naturalização no sentido de ser considerada a única possibilidade de
organização social. O socialismo não teria dado certo, então nos restaria
escolher apenas qual o tipo de inserção que desejamos ter no mundo
naturalmente capitalista, nos restaria escolher entre capitalismo ou...
capitalismo. Assim, não se questiona se o capitalismo dá certo. Se essas
relações são tidas como naturais, então não se tem o objetivo de modificá-
las, porém tem-se a necessidade de que os trabalhadores vistam a camisa
das empresas, comportem-se de maneira adequada à valorização do
capital, saibam ser. Como consegui-lo? Proclamando o fim dos conflitos
de classes (como se esse fim fosse uma conseqüência da introdução das
novas tecnologias no processo produtivo), mas não o fim das relações
sociais capitalistas (já que elas é que garantem e legitimam o lucro).
Proclamando que ser moderno é saber negociar, alcançando resultados
que se traduzem em qualidade, produtividade, competitividade, enfim,
em melhorias para todos. Sabemos que essa harmonia entre o capital e
o trabalho é impraticável, pois trata-se não apenas de interesses
diferentes, mas antagônicos – o atendimento aos interesses de um
implicará o não-atendimento aos interesses do outro.
Mas se a discussão acadêmica realiza uma análise crítica ao conceito,
buscando desvendar as idéias subjacentes a ele, a reforma do governo
procura maneiras de concretizar o conceito (e as idéias subjacentes)
no campo educacional. Dessa forma, pressupõe como dada a
necessidade de o indivíduo ser competente nos termos acima
discorridos e, sem nenhuma análise crítica, parte para a discussão de
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questões como: quais competências o indivíduo deve ter para cada
área profissional, e de como construir, no processo pedagógico, o
desenvolvimento delas. Se, como vimos, os competentes são aqueles
que se adaptam aos interesses do capital, então o simples
levantamento das competências (feito a partir da definição de funções
e subfunções observadas diretamente nas empresas) com objetivo
de determinar o conteúdo pedagógico de cursos de educação
profissional, só pode ter um resultado garantido: significará restringir
esses cursos aos interesses de uma classe social, tomando-os, mais
uma vez, como se fossem interesses de toda a nação.
EDUCAÇÃO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA PARA TODOS
Indo pelo caminho aberto pelas contradições, cabe aqui uma
regressão, uma pequena lembrança do que significa o trabalho para
o ser humano e sua relação com a educação.
Através do trabalho o ser humano constrói sua própria história,
acumulando conhecimentos científicos e transformando
concretamente a natureza e a sociedade. Portanto, se a lógica que hoje
norteia a vida é científica, isso significa que, a partir das mudanças que
o desenvolvimento da indústria traz para a natureza do trabalho –
mudanças ocorridas devido ao desenvolvimento científico –
tecnológico produzido pelos homens e sua aplicação ao processo
produtivo –, mudam também as formas de vida e de organização social.
Como conseqüência, a realidade exige um novo homem, que se
conforme às necessidades dessa realidade e, portanto, exige também
uma nova formação. É nesse sentido que o trabalho moderno,
industrial, a partir do momento que não dissocia ciência e tecnologia,
teoria em prática, pode se tornar um princípio educativo; e isso, não
apenas para a produção na fábrica, mas para a produção na vida.
Ter o trabalho como princípio educativo significa levar à
compreensão de que a ciência e a sociedade, da forma como estão
dadas, são o resultado de um construção social, humana, realizada
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pelos homens em suas relações concretas e históricas. Significa,
portanto, compreender que, se a realidade social que está dada foi
determinada historicamente, existe um movimento onde o futuro
não está definido a priori, mas sim, depende da ação teórico -prática
dos homens que a constroem no presente.
Dessa forma, se o objetivo é a educação numa perspectiva política
realmente democrática, deve-se então voltar-se para a construção de
uma escola que possibilite, por um lado, uma formação científico-
tecnológica do especialista e, por outro, uma formação que garanta a
aprendizagem necessária para as atividades diretivas na sociedade.
É nesse sentido que o projeto de uma escola democrática deve buscar
unir a dimensão tecnológica e a dimensão diretiva, levantando a bandeira
de uma formação científico-tecnológica para todos, em todos os níveis.
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CONTRIBUIÇÕES DA CUT PARA
UMA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA
Maristela Miranda Bárbara
1. INTRODUÇÃO
Historicamente, pelo menos três fatores têm determinado as
condições em que são desenvolvidos os programas de Educação de
Jovens e Adultos – EJA em nosso país: a falta de uma política
pública permanente, a prevalência de uma visão assistencialista e a
insuficiência de teorias sobre o processo de aprendizado dos
adultos.
A falta de uma política pública permanente e, conseqüentemente,
de financiamento específico para EJA, afasta essa modalidade de
ensino do campo do direito social. Essa situação permanece mesmo
agora que oficialmente a EJA passou a ser uma modalidade do
ensino básico.
A visão assistencialista, que tem guiado muitos dos programas
oferecidos, acaba resultando em baixa qualidade de ensino e na
utilização de instalações improvisadas ou mesmo precárias.
Freqüentemente, os programas acontecem em espaços inadequados,
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sem os requisitos mínimos para a realização das atividades, como
os utilizados por crianças no período diurno que ficariam ociosos
à noite. Quando isso acontece, os adultos têm que se acomodar
em carteiras infantis ou juvenis, o que lhes causa uma sensação de
estranhamento, como se estivessem fora do tempo e do lugar
adequado. Sem contar o desconforto físico, principalmente após
horas de trabalho.
Quanto à EJA oferecida por instituições privadas, quase sempre
são propostas aligeiradas de ensino, por exemplo, a de certificação
do ensino fundamental em três meses. Muitos trabalhadores,
acreditando numa solução individual para o desemprego, acabam
caindo nessas armadilhas, seduzidos pelo discurso da empregabilidade
como se o certificado fosse garantia de um posto de trabalho.
As exigências do mercado têm se mostrado desproporcionais
em relação às tarefas a serem executadas, mesmo para as vagas e
ocupações com pouca complexidade. Para a classe trabalhadora, a
educação passou a ser condição necessária para garantir o emprego,
mas não suficiente, porque essa relação não está claramente definida.
Entretanto, em razão da crescente competitividade no mundo do
trabalho, muitos se sentem pressionados a correr atrás da
“qualificação”, independentemente do quanto tenham estudado,
impelidos pelo sentimento de que seria a garantia de permanência
no emprego ou de acesso a ele.
O terceiro ponto a ser abordado é o da falta de estudos teóricos
sobre o processo de aprendizagem dos adultos, outro grande fator
de limitação do sucesso dos programas. Muitas vezes, as teorias sobre
o processo de aprendizagem da criança são simplesmente transpostas
para o adulto, em função da carência de metodologias próprias para
esse público. Tal procedimento acaba rebaixando e banalizando os
conteúdos, desconsiderando que os adultos não estiveram parados
no tempo. Embora não tenham freqüentado espaços formais de
ensino ou tenham freqüentado por pouco tempo, foram acumulando
conhecimentos ao longo das suas experiências sociais, de trabalho e
familiares, isto é, nos espaços informais de formação.
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123
Hoje dispomos de um farto suporte teórico sobre o processo de
desenvolvimento e aprendizagem da criança, mas que são
inadequados para os adultos. A maioria das pesquisas acadêmicas
produzidas no país tem como objeto o processo de aprendizagem
da criança e apenas uma pequena parte está voltada para a educação
do adulto, mas costuma limitar-se a estudos de casos que implicam
um baixo grau de generalização. O mercado editorial acaba refletindo
essa tendência, com um número muito pequeno de publicações de
material teórico sobre o tema.
Esse conjunto de fatores associados à dificuldade de se manter na
escola uma parte da população que teve acesso à matrícula, mas que
por vários motivos abandona os estudos a cada ano, tem feito com
que cresça, permanentemente, a demanda por EJA, aumentando
também a necessidade de políticas destinadas a esse público. A
superação desse quadro transforma-se numa verdadeira tarefa de
Sísifo: enquanto os programas destinados aos jovens e adultos não
conseguem suprir as necessidades desse público, o sistema regular
de ensino, com as evasões, produz novas demandas.
Fatores históricos e socioeconômicos, que não são objeto desta
reflexão, colocaram o nosso país numa situação única. Ao mesmo
tempo em que temos uma economia altamente desenvolvida e
competitiva, parcelas cada vez maiores da população são colocadas
à margem dos direitos sociais. Enquanto países como a Suécia
conseguiram alfabetizar toda a população ainda no século XIX, e os
países de economia planejada resolveram essa questão durante o
século XX, o Brasil encontra-se em uma situação sui generis. Somos
um país rico, mas com um enorme déficit social. Uma parcela da
população não teve acesso à educação fundamental regular e outra
não pôde, por vários fatores, permanecer na escola.
O direito à educação formal tem sido negado a aproximadamente
sessenta milhões de jovens e adultos que, ou são analfabetos em
termos absolutos, ou são analfabetos funcionais – sabem ler e
escrever, mas não conseguem compreender o que lêem. Esses fatores
nos infligem um enorme desafio.
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2. A EXPERIÊNCIA DA CUT
A Central Única dos Trabalhadores – CUT, desde a sua criação,
tem na formação dos trabalhadores uma de suas políticas estratégicas.
A partir do acúmulo metodológico obtido na formação sindical,
desde a década de oitenta, a Central pôde se propor a desenvolver
programas de educação destinados a trabalhadores jovens e adultos
e contribuir na formulação de metodologias de ensino, um de seus
objetivos. Essas ações de educação foram desenvolvidas no âmbito
do Plano Nacional de Formação – Planfor
1
, e a maioria dos
programas, desenvolvidos no período de 1996 a 2002.
O Programa Integração foi uma das propostas efetivadas pela
CUT visando a elevação de escolaridade e profissionalização dos
trabalhadores. Desenvolvido sob a responsabilidade da Secretaria
Nacional de Formação, teve abrangência nacional e foi realizado
em parceria com diversas confederações, federações e sindicatos
nacionais.
Sempre pareceu à Central que a tarefa de formular propostas
pedagógicas para os trabalhadores não poderia dispensar a
contribuição da própria classe trabalhadora, já que ela tem interesses
específicos. Esse foi um dos principais fatores que pautaram a decisão
de inserir a CUT na formulação de propostas de educação para
trabalhadores jovens e adultos a serem assumidas e financiadas pelo
poder público, mas que, para terem uma gestão democrática, devem
contar sempre com a participação ativa dos trabalhadores nas
definições político-pedagógicas e na gestão de recursos a elas
destinados. Sempre reafirmando a necessidade de se colocar a
educação de jovens e adultos como um direito de fato.
1
Instituído pela Resolução nº 126/96 do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao
Trabalhador (Codefat), está subordinado ao Ministério do Trabalho e Emprego e opera
com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
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125
Para a CUT, a construção de uma proposta de educação integral
vem romper com o hiato histórico entre o trabalho material e
intelectual, entre concepção e execução.
A combinação da educação com a produção material da existência
deve ter como objetivo explícito a busca da compreensão integral
dos processos que regulam a sociedade e não um melhor preparo
vocacional, tampouco a transmissão da ética do trabalho das
sociedades de mercado. Além disso, o objetivo é propiciar aos
educandos um percurso formativo centrado nas relações entre os
conhecimentos produzidos e acumulados historicamente pela
humanidade e a vida concreta dos próprios trabalhadores.
Assim, os conhecimentos trazidos pelos educandos são elementos
fundamentais para promover a reflexão sobre a realidade, tanto
aquela em que estão inseridos mais imediatamente quanto a realidade
social mais abrangente. Ainda que a educação dos trabalhadores deva
germinar do núcleo sadio do senso comum e dele partir, precisa, no
entanto, ter o objetivo de superá-lo, já que o conhecimento não será
conhecimento se ficar restrito à compreensão da realidade imediata,
sem atentar para o fato de que ela faz parte de uma totalidade.
Com a concepção de educação integral, buscamos superar a lógica
da abordagem por disciplinas, porque ela não permite apreender o
conhecimento como construção histórica que diz respeito à
totalidade social. O que se pretendeu foi entender a educação como
unitária, articulando trabalho, ciência e cultura na perspectiva da
emancipação humana e da cidadania plena.
Nessa perspectiva, procuramos mostrar que somos sujeitos
históricos, produtores de conhecimento, de cultura e de riqueza por
meio do trabalho, resgatando assim seu sentido ontológico.
Resumidamente, o trabalho como atividade exclusivamente humana
que permite a troca de seu produto pelo produto de outros trabalhos,
fundando assim a sociabilidade. Ao realizar essa atividade o homem,
agindo no dia-a-dia, simultaneamente constrói a si mesmo como
individualidade e contribui para a reprodução material e cultural da
sociedade. Portanto, por meio do trabalho o homem se constitui
como ser único e genérico.
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126
Dentro da concepção de educação integral buscamos trabalhar os
conhecimentos historicamente acumulados, mostrando que todo o
conhecimento organizado cientificamente é parte do acúmulo de
experiências realizadas pelos homens a partir do constante ato de agir
conscientemente sobre a natureza, segundo suas necessidades.
Partindo, então, da concepção de sujeito que se constitui
historicamente, desencadeamos o processo de ensino-aprendizagem,
mostrando que, por mais que nossas experiências pareçam singulares e
únicas, a construção da personalidade de cada indivíduo é fruto de uma
construção histórica: o processo de formação humana.
Assim, a partir das próprias vivências dos educandos, pudemos
promover uma reflexão sobre um conjunto maior de relações que nos
afetam, isto é, pudemos pensar criticamente o próprio mundo e a
maneira como nele nos inserimos. Essas reflexões possibilitaram a
compreensão das determinações às quais todos nós estamos submetidos
e que não são naturais nem eternas, pois podem ser transformadas.
Dessa forma, foi possível estabelecer relações entre as experiências
cotidianas individuais dos educandos e as questões macroeconômicas e
sociais. Ao tomar o processo de ensino-aprendizagem dessa maneira,
pudemos efetivamente atuar na perspectiva de ampliação da autonomia
e da capacidade crítica dos sujeitos, o que acaba trazendo reflexos para
as práticas sociais imediatas ou potenciais.
As ampliações da autonomia intelectual e da capacidade crítica foram
os resultados que mais claramente pudemos perceber. A diversidade de
textos que passaram a fazer parte do dia-a-dia dos educandos também
foi outro elemento bastante animador. Muitos nunca tinham tido acesso
a poesia e outros gêneros literários e passaram não somente a ler como
também a produzir poesias e crônicas.
Para que tais resultados fossem alcançados, os educadores cumpriram
um papel estratégico. Mais do que o domínio de conteúdos por parte
de cada um, foi necessário comprometimento político com a proposta
desenvolvida e com a formação continuada, tendo em vista o
aprofundamento metodológico pretendido.
Nos espaços de formação de educadores, pudemos dialogar com
diferentes entendimentos e enfoques sobre o projeto político-pedagógico
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127
e perceber as resistências e inseguranças em relação à metodologia
proposta, isso em função das mudanças significativas propostas em
relação à educação formal. Os desafios enfrentados na atuação prática
dos educadores, no decorrer das experiências pedagógicas, foram
componentes constitutivos da formação dos educadores e promoveram
a reflexão sobre a proposta que estava sendo executada, o que
freqüentemente redundava em alterações na maneira de atuar e produzir
novas reflexões sobre as mudanças. Esse movimento foi
consubstanciando uma proposta metodológica.
A formação de educadores tornou-se um importante espaço de
construção coletiva de conhecimento, pois, a partir das reflexões sobre
as questões metodológicas, criaram-se circunstâncias privilegiadas para
as discussões sobre as dificuldades enfrentadas no cotidiano. Inúmeros
desafios se divisaram ao longo do desenvolvimento da experiência, já
que não se tratava de oferecer apenas mais um curso de educação
profissional com escolarização para trabalhadores jovens e adultos, mas
de propor novos métodos de abordagem de conteúdos na perspectiva
de educação integral.
Foi de extrema importância o envolvimento das direções sindicais
para que a gestão política e pedagógica estivesse em sintonia com o
intuito de potencializar o trabalho coletivo entre as equipes e, assim,
possibilitar a efetivação da proposta metodológica em consonância com
a concepção de educação que balizou o Programa.
A apresentação da proposta cutista de educação integral aos setores
da educação – secretarias de educação municipais e estaduais,
universidades e escolas técnicas federais – objetivou, inicialmente, a
validação de novas metodologias, mediante o reconhecimento do projeto
político-pedagógico via certificação dos cursos realizados. E significou,
sobretudo, a ampliação das discussões com outros atores em torno da
necessidade de se construir propostas inovadoras de educação para
trabalhadores jovens e adultos e recolocar a EJA no campo do direito.
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Movimentos na diversidade
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UMA POLÍTICA PARA EDUCAÇÃO INDÍGENA:
AS AMARRAS DA ESPECIFICIDADE
Marina Kahn
O Brasil é – e nossa Constituição o reconhece – um país
pluriétnico e multilíngüe, onde, além do português e das línguas
trazidas pelos diversos povos que colonizaram esta parte do
continente, está registrada a existência de outras 170 línguas nativas.
São responsáveis por essa diversidade lingüística as 206 etnias que
se espalham por todo o território nacional e cuja maioria, por
razões históricas, foi se concentrando na região da Amazônia Legal.
Piauí e Rio Grande do Norte são os únicos estados que não abrigam
alguma comunidade indígena em seu território. Além dessas, estima-
se que ainda existam 54 grupos indígenas sem contato regular com
a sociedade brasileira (RICARDO, 1996). Embora numerosas, essas
etnias constituem-se em microssociedades que totalizam 270 mil
índios aldeados, ou seja, 0,2% da população nacional. Apenas cinco
grupos têm entre 15 e 30 mil pessoas, enquanto 77% deles têm
uma população que não ultrapassa mil indivíduos.
É difícil, então, discorrer sobre educação indígena sem cair no
lugar comum de caracterizá-la, de saída, pelo que implica de desafios.
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132
Na realidade, a temática indígena ainda é, por si própria, um desafio,
não pelo que traz de específico, mas pelo desconhecimento que se
tem sobre o assunto. Refiro-me a um desconhecimento básico, que
começa pelos números e pela identificação de quem e quantos são
os índios no Brasil de hoje. No caso particular deste artigo, seria de
se esperar iniciá-lo por um balanço geral da situação escolar dos
índios em nosso país: quantos alunos, quantas escolas, quantos
professores indígenas e assim por diante. Os dados existentes não
são inteiramente confiáveis, pois foram recolhidos sem uma base
conceitual comum. Quem o faz é a Funai (Fundação Nacional do
Índio), cujos critérios de coleta de informações baseiam-se na
estrutura burocrático-administrativa do órgão, que não corresponde
nem à malha de municípios brasileiros nem à figura jurídica mínima
que orienta o foco para a realidade indígena brasileira, que são as
terras indígenas
1
.
O quadro de diversidade inicialmente apontado não pode ser visto,
porém, apenas como uma das excentricidades culturais do país. Ele
contém em si aquilo que caracterizei como desafios: o de se admitir
a convivência e manutenção das diferenças e, sobretudo, o de se
estabelecer políticas oficiais que revertam em ações para garantia do
direito dessas minorias de existirem enquanto tal. A lei lhes assegura
não apenas os direitos de cidadania dos demais brasileiros, como
políticas específicas que salvaguardem suas particularidades culturais.
Este artigo buscará ilustrar como são as orientações atuais para
instalar um processo de educação indígena mais sintonizado com os
propósitos constitucionais (tomando como referência o período pré-
1988). Para ilustrar as dificuldades enfrentadas no processo de
definição e consolidação dessas políticas, o artigo se apoiará nas
1
Reproduzo os dados da Funai para 1995. Havia 69.713 alunos índios (não se sabe se
incluídos apenas os alunos em aldeias ou também os que estudavam nas cidades). Desse
total, 914 finalizaram o ensino fundamental e 24 alcançaram o ensino médio. Eram
1.235 escolas, das quais 95 estão hoje desativadas, 84 são mantidas pela Funai, 221 pelos
estados, 448 por municípios, 18 por organizações religiosas e 29 por ONGs leigas.
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particularidades de três situações, cada uma numa região da Amazônia
brasileira: (1) a área do alto Rio Negro, que congrega dezoito etnias
com uma história bastante peculiar de trocas interétnicas e de
relacionamento com os religiosos salesianos e com a sociedade
brasileira tradicional da região; (2) o Parque do Xingu, com suas
dezessete etnias, algumas autóctones, outras ‘adotadas’, outras
historicamente incorporadas, além de um contexto totalmente
diferente de contato com os brancos; e (3) um pequeno grupo
indígena localizado no Amapá, os Waiãpi, únicos ocupantes nativos,
a porção sudoeste do estado vizinha à mina de manganês da Serra do
Navio e de garimpeiros interessados em adentrar seu território, rico
em jazidas de ouro. Os três casos ilustram a quase impossibilidade
de definir-se um paradigma de ação educacional escolar que contemple
a genérica realidade dos “índios” no Brasil.
Quero ressaltar, porém, que a necessidade de traçar estratégias de
ação específicas, que resguardem e respeitem as peculiaridades
culturais de cada etnia, não pode justificar a ausência de algumas
medidas pragmáticas que garantam a implementação imediata de
políticas de educação para os grupos indígenas, que enxergam na
escola a melhor forma de aprenderem os códigos que ainda
desconhecem da nossa sociedade – que é majoritária – para julgá-los
e utilizá-los com autonomia.
A ATUAL POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PARA AS SOCIEDADES
INDÍGENAS
Como já apontei, a Constituição de 1988 é um marco para o
reconhecimento dos direitos indígenas. Para orientar o rumo das
políticas educacionais voltadas a essas sociedades, ela reconhece o
direito de o ensino básico ser ministrado em sua língua materna.
Uma nova legislação ordinária, que substitua o ultrapassado Estatuto
do Índio, em processo de reformulação, ainda não foi aprovada no
Congresso. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), também em fase de
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134
aprovação, faz menção à necessidade de garantir às comunidades
indígenas escolas e currículos adequados à sua realidade.
Em fevereiro de 1991, uma série de decretos presidenciais
descentralizaram a Funai, até então única responsável pela definição e
implantação da política indigenista brasileira. A Funai foi criada nos
anos sessenta como responsável pela tutela dos índios, definidos como
relativamente incapazes, em processo de transição cultural, fadados a
desaparecerem e, portanto, necessitando da assistência compensatória
do Estado, até que se integrassem à comunhão nacional. Toda a
trajetória que culminou na definição da atual Constituição colaborou
para tornar pública uma nova visão dos povos indígenas existentes
no território nacional. Foi naquele período que algumas ONGs se
mobilizaram para demonstrar que “índios” não existem como
totalidade conceitual uniforme e genérica, e o Estado teve que
reconhecer a necessidade de incorporar as diferenças étnicas, ao invés
de apagá-las num discurso assimilacionista.
A descentralização da Funai outorgou ao Ministério da Educação
(Decreto nº 26, de 5/2/91) a tarefa de coordenar as ações voltadas à
escolarização das sociedades indígenas, o que significaria que, a partir
de então, estados e municípios se responsabilizariam por essa educação,
já que inscrita na categoria de ensino fundamental. A descentralização
criou um impasse. De um lado, o próprio desconhecimento do MEC
sobre o assunto e, de outro, a fragilidade das relações políticas das
comunidades indígenas com os poderes locais e regionais,
tradicionalmente antiindígenas, principalmente na Amazônia. A Funai,
mesmo com todos os seus defeitos, conseguia neutralizar conflitos entre
índios e brancos ou até driblar obstáculos administrativos e políticos
provocados por interesses opostos aos índios. Impunha-se, no caso
específico das escolas indígenas, que o MEC definisse, normatizasse e
fiscalizasse uma política de educação escolar para as comunidades
indígenas que desse conta daquela realidade adversa.
A prática educacional para as comunidades indígenas oferecida pela
Funai era ainda a transposição da ideologia missionária catequética
que, tradicionalmente, incumbiu-se de evangelizar os índios para
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absorvê-los na nossa sociedade como mão-de-obra. Essa ideologia se
modernizou com o discurso das igrejas protestantes de cunho
fundamentalista que implementaram programas de educação bilíngüe
destinados a traduzir a Bíblia nas línguas nativas brasileiras. Além de
viabilizar essa prática, por meio de convênios com as missões religiosas,
a Funai limitava-se a suprir as escolas com material didático ou fornecer
bolsas de estudo para estudantes índios que se dirigiam às cidades para
cursar o ensino médio ou superior, ou mesmo terminar o fundamental.
AS DIRETRIZES DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Dois anos depois de haver assumido oficialmente a função, o MEC
conseguiu definir e divulgar entre os estados e municípios suas
diretrizes de educação indígena. Na sede em Brasília criou-se uma
instância administrativa específica para lidar com o assunto: uma
Coordenadoria, subsidiada por um Comitê consultivo
interinstitucional, integrado por representantes indígenas (um de cada
região), antropólogos, lingüistas, representante de ONGs, da Funai,
do próprio MEC e das secretarias estaduais e municipais de educação.
As diretrizes do MEC assumem como ponto de partida para uma
política adequada de educação para as comunidades indígenas o
estabelecimento de uma escola indígena específica e diferenciada,
intercultural e (multi)bilíngüe, ou seja, dirigida especificamente às
particularidades culturais de dada etnia, resguardada da genérica
atribuição “escola indígena” e voltada para a realidade de contato dos
índios com a sociedade brasileira. As diretrizes recomendam a
globalidade do processo de aprendizagem, no qual o conhecimento tanto
do professor quanto do aluno são construídos coletivamente. Em sendo
diferenciado, o currículo da escola indígena deve ser elaborado a partir de
investigação e pesquisa de equipe multidisciplinar, que irá compô-lo
não como uma grade de matérias, mas por componentes básicos
constantemente reelaborados pelo grupo indígena, garantindo
concomitantemente o saber escolar. Embora delimitando como disciplinas
básicas as línguas indígenas, Português, Matemática, História e Geografia,
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136
Educação Artística e Educação Física (que compõem a estrutura básica
das escolas oficiais), as diretrizes postulam a sua adequação à
especificidade da escola indígena. Sugere uma relação dialógica entre
professor-aluno-comunidade, de forma a garantir a consolidação de uma
escola que responda às necessidades e expectativas de todos esses atores.
Quanto à avaliação, indica diagnósticos dinâmicos, que impliquem
compreensão das relações sociais que se estabelecem na comunidade e
na sociedade mais ampla. Sugerem como material didático-pedagógico livros,
vídeos, fitas, dicionários, gramáticas etc., tanto para a alfabetização,
quanto para leitura, incluindo aí os conhecimentos dos próprios grupos
indígenas. Quanto à organização da escola, deverá resguardar o poder da
comunidade de decidir sobre o local e o calendário, visando adequar
seu funcionamento ao cotidiano da aldeia e propiciar o exercício da
gestão da escola de acordo com os padrões culturais da comunidade.
Os recursos humanos devem ser preferivelmente indígenas (pesquisadores,
alfabetizadores, escritores, redatores, professores de segunda língua,
administradores e gestores, assessores professores, técnicos assessores),
o que acarretaria ao Estado criar condições para formar quadros
funcionais indígenas e capacitar formadores. Conseqüentemente, as
diretrizes recomendam que a carreira do magistério também seja diferenciada
para professores indígenas.
Como se vê, trata-se de um conjunto de recomendações bastante
sofisticadas conceitualmente. Para se ter uma idéia, entretanto, da
fragilidade dessas formulações (pois considero que elas se tornam
mais uma carta de princípios do que a definição de uma política
pública de educação para comunidades indígenas) passo a ilustrar a
situação de três casos específicos.
ALTO RIO NEGRO
A região do alto Rio Negro reúne grupos indígenas de três famílias
lingüísticas diferentes (Tukano, Aruák e Maku), compondo dezoito
diferentes grupos étnicos que se distribuem em cerca de quinhentas
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aldeias. Os Tukano e Aruák vivem em comunidades dispersas ao
longo dos principais rios e tributários, e os Maku ocupam o interior
da mata, longe das margens dos rios. Os índios da área somam cerca
de 25 mil indivíduos, dez por cento do total da população indígena
no Brasil (ANDRELLO, 1996).
A história do contato desses grupos remonta ao século XVIII,
com as primeiras incursões dos portugueses à área, acompanhadas
da vinda de missionários. Uma sistemática exploração de mão-de-
obra indígena teve seu ápice com a exploração da borracha, entre
1870 e 1920. No início do século XX, a Missão Salesiana instalou-se
em diversos pontos do território, construindo escolas, hospitais e
internatos para promover programas de integração dos índios, em
oposição às práticas culturais tradicionais. Hoje, um dos resquícios
mais evidentes desse processo civilizatório é o alto índice de
alfabetização que se verifica na região, além de um número de índios
com ensino médio completo significativamente maior que outras
etnias no país.
Além da marcante presença dos salesianos na região, mais dois
elementos importantes definiram as relações políticas dos índios do
alto Rio Negro com o mundo dos brancos, mostrando sua
mobilização para resguardar seus direitos territoriais. Nos anos
oitenta, chegaram garimpeiros e empresas de mineração na região e
implantou-se o programa Calha Norte, do extinto Conselho de
Segurança Nacional, incumbido de fiscalizar as fronteiras
internacionais do Brasil. Igreja e exército continuam atuantes e
patrocinam o mesmo discurso civilizatório das antigas frentes de
colonização. Nesse contexto foram surgindo em toda a bacia, a partir
de meados dos anos oitenta, organizações indígenas que se
posicionam diante das autoridades de Brasília para a demarcação de
suas terras. Em 1987 fundaram a Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (Foirn), composta atualmente de 21
organizações de base, cada uma delas representando um número
variável de comunidades indígenas dispersas ao longo dos principais
rios formadores da bacia do alto Rio Negro. Não há associações
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específicas de professores, mas estes se fazem representar na
Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre
(Copiar), para canalizar suas reivindicações. Contam com uma
diretoria multiétnica, de maneira que cada membro possa se
responsabilizar pelo acompanhamento de diferentes sub-regiões. O
nível de escolaridade relativamente alto dos índios da região permite
que eles mantenham um padrão de controle administrativo e
financeiro bastante eficiente da rotina burocrática de suas
organizações e maior independência de órgãos oficiais como Funai
e secretarias de educação que, por sua vez, nunca se esforçaram por
intensificar sua atuação na região, sequer como forma de neutralizar
o papel assistencial da Missão Salesiana.
A escola é um fator que vem influenciando significativamente a
escolha por parte dos índios entre a permanência nas comunidades
ou a partida para a cidade. Além da escolarização básica, que é
fornecida aos índios nas 160 escolas instaladas pela secretaria de
educação nas próprias comunidades e administradas pelas Irmãs
Auxiliadoras, a continuidade dos estudos só é viabilizada nos centros
missionários de Pari-Cachoeira, Taracuá e Iauaretê. A extrema
valorização da escola, transmitida aos índios em décadas de
missionamento, levou a que esses centros passassem a concentrar
uma grande população indígena após a desativação dos internatos
para as crianças em idade escolar; ou seja, famílias inteiras que não
dispunham mais da infra-estrutura missionária para abrigar seus
filhos, passaram a se estabelecer permanentemente em torno das
missões. Um fenômeno decorrente desse processo é a corrida de
muitos jovens para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, onde vão
prosseguir estudos de ensino médio. A ideologia do “sucesso através
do estudo” é arraigada na região, e a reversão desse processo levaria
anos para se concretizar. A maioria das organizações indígenas é
dirigida justamente por aqueles que freqüentaram escolas.
Significativamente, o rio Içana, a região mais desprovida de escolas,
é, também, a que tem menor número de organizações indígenas.
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O elevado índice de letramento entre os índios do Rio Negro pode
ser avaliado com alguma restrição. O que fazer com tanta “mão-de-
obra qualificada” ociosa, ávida por trabalho (o qual, pela concepção
civilizatória veiculada pelas Missões, deve ser urbano, desvinculado
da forma tradicional de ocupação econômica e política da área)? O
que resta aos índios a não ser refugiar-se nas favelas de Manaus, ou
alojar-se em São Gabriel da Cachoeira ou Iauaretê, em torno das
Missões, e dependendo, para sobreviver, do abastecimento ocasional
das aldeias de origem? Os próprios índios e suas associações não podem
fazer um diagnóstico isento quanto aos efeitos perversos produzidos
por esse alto grau de escolarização. Instala-se, então, um problema a
ser enfrentado não só pela Foirn, mas pelos salesianos, pelo estado e
também pelo MEC.
No que diz respeito à situação específica das escolas, o quadro é
paradoxal. De um lado, a forte institucionalização sedimentada pelos
salesianos; de outro, quase inexistem escolas com um perfil mais
adequado à realidade multilíngüe da região. No Içana, por exemplo,
apesar do alto índice de bi ou trilingüismo, professores que falam
Tukano dão aulas em português para alunos que falam Baniwa ou
Nheengatu. Para o triângulo Tukano já foi feito um trabalho de
padronização de ortografia, coordenado pela lingüista Odile Lescure,
mas não resultou ainda em algum desdobramento para formalizar um
currículo ajustado à situação dos alunos. Há apenas dois anos a Missão
Salesiana contratou um lingüista francês para fazer um diagnóstico sobre
a situação sociolingüística da região e implantar um ensino mais
adequado à realidade do Rio Negro.
Como se vê, não foram mencionadas a Funai e as secretarias de
educação ou o MEC. Embora a região seja paradigmática em termos de
diversidade étnica e da presença de diversas agências de contato, não se
retira do relato acima qualquer informação sobre alguma sistemática de
trabalho em educação indígena que reflita os propósitos da política
nacional para essa questão. O que existe já havia sido sedimentado há
anos, e a Foirn não tem desenvolvido qualquer estratégia mais agressiva
que enfrente as contradições criadas no rastro do ensino convencional.
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PARQUE DO XINGU
O Parque Indígena do Xingu estende-se por 25 mil km
2
que
abrigam 17 etnias distribuídas em 27 aldeias, que totalizam em torno
de 3.908 índios. A maioria da população é monolíngüe, sendo o
português dominado pelos adultos de algumas etnias. Esse é o quadro
de diversidade que qualquer trabalho com educação formal deve
enfrentar dentro do Parque, delimitado em 1961.
A iniciativa mais recente de implantação de educação formal
começou em 1992, por meio de uma organização não-governamental
que tenta responder à demanda por escolas feita pelos diferentes
grupos. A população alvo do projeto é de 46 professores indígenas
que já lecionam (com diferentes graus de proficiência) para
aproximadamente oitocentos alunos, distribuídos em 27 escolas. Não
é o primeiro trabalho de escolarização iniciado no Parque. Todos,
até então, eram implantados pela Funai e interrompiam-se pela
instabilidade dos professores brancos na área. Até 1992, apenas a
região do médio Xingu vinha formando professores Suyá e Kayabi,
enquanto no alto Xingu e entre os Kayapó Metuktire esse processo
foi sendo adiado por razões que podem ser relacionadas com a
própria história do Parque, criado a partir de um projeto concebido
nos anos cinqüenta por intelectuais brasileiros como Eduardo Galvão
e Darcy Ribeiro, que reconheciam a importância de se preservar
aquela região, zona de transição do cerrado para a floresta amazônica,
rica em biodiversidade e em populações nativas ainda sem contato
com a sociedade nacional. A articulação desses intelectuais com
militares, profissionais liberais esclarecidos e o governo federal foi
realizada pelos irmãos Villas Bôas, que representam, por sua vez, a
elite do indigenismo no Brasil. Essa conjunção de cenário,
personagens, princípios humanitários e fundamentação sociológica
culminou na criação do Parque, em torno do qual criou-se a imagem
símbolo do “Brasil indígena”, exuberante e exótico, que divulgava
para o país e para o mundo a possibilidade de resguardar do contato
tribos consideradas exemplares em sua integridade cultural. Essa
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proposta seletiva e direcionada de contato dos índios com a sociedade
urbana brasileira se concretizava com uma administração do Parque
do Xingu localizada num escritório na capital de São Paulo; o Correio
Aéreo Nacional ligava o Parque diretamente ao hospital da Escola
Paulista de Medicina, dentistas e médicos do Rio de Janeiro e São
Paulo faziam excursões regulares ao Parque e para lá se dirigiam
artistas, cineastas, fotógrafos, etnógrafos e museólogos do mundo
todo. Ou seja, uma classe média urbanizada, informada,
intelectualizada e cosmopolita foi o parâmetro de mundo colocado
no ângulo de visão dos índios do Parque. Os grupos do Alto Xingu,
pela exuberância dos seus rituais, requinte e diversidade da cultura
material, foram os que mais se confrontaram com esse padrão
sofisticado de contato com os brancos. Conseqüentemente,
expressaram resistência em aceitar um trabalho que implicasse
desatrelarem-se desse esquema paternalista, que foi decaindo à medida
que os Villas Bôas já não podiam garantir o padrão de tutela por eles
implementado, e a Funai ia perdendo seu poder. O desafio, hoje, é
sedimentar um trabalho de formação de quadros indígenas no Parque
do Xingu, seja no campo da educação, seja no da saúde ou nas
atividades econômicas que conduzam à autonomia e auto-
sustentação.
O fato de jamais qualquer missão religiosa ter assumido,
oficialmente, alguma atividade educacional no Parque facilita o
encaminhamento de uma metodologia apoiada na participação dos
índios na constituição do currículo da escola, segundo os parâmetros
traçados pelas diretrizes do MEC. No entanto, seria um processo de
longo prazo e algumas lideranças, respondendo a expectativas
imediatas, têm enviado jovens adolescentes para as escolas municipais
vizinhas ao Parque (Canarana, Colíder e São José do Xingu) ou para
Brasília. Não existe acompanhamento desses alunos índios na cidade,
tampouco qualquer trabalho voltado a comprometê-los com uma
formação que repercuta na vida da comunidade. A Funai fornece
bolsas de apoio, e o MEC não assume o problema, atribuindo a
responsabilidade ao estado ou ao município. Recebendo os índios
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como alunos regulares, as escolas regionais não são cobradas, e
portanto, não implementam metodologias que garantam um
tratamento minimamente orientado para a realidade desses alunos
especiais. Em 1995, o governo do Mato Grosso implementou um
trabalho oficial de formação de professores índios no estado,
dispondo-se a trabalhar em parceria com o Instituto Socioambiental
no Parque do Xingu. A orientação dos professores e técnicos das
secretarias que atendem alunos índios nas cidades seria recomendável,
mas isso não depende apenas de instrumentalização técnica, mas de
vontade política do poder local.
A ESCOLA DOS WAIÃPI
A relação oficial dos Waiãpi com os brancos é recente. A passagem
da rodovia Perimetral Norte por suas terras acelerou o trabalho de
contato da Funai com o grupo nos anos setenta. Antes dessa
“pacificação” planejada, os Waiãpi já mantinham relações
intermitentes com garimpeiros. Hoje eles somam cerca de
quatrocentos índios e têm uma população em idade escolar que chega
a duzentas pessoas. O conhecimento do português é limitado a alguns
homens maduros e adolescentes que vivem nas aldeias maiores.
As escolas situam-se em cinco principais aldeias e atendem em
torno de 110 alunos na faixa dos 10 aos 14 anos (GALLOIS, 1995).
O território indígena, com 607 mil hectares, abriga 13 aldeias quase
sempre habitadas ou visitadas por dois ou três jovens Waiãpi
alfabetizados que vêm passando por um processo de treinamento
denominado “Curso de Formação de Professores Waiãpi”, de forma
a poderem repassar seus conhecimentos de leitura e escrita a qualquer
pessoa da comunidade interessada em adquiri-los. É uma proposta
informal de repasse de informações sobre o universo dos brancos,
implantado por uma organização não-governamental (Centro de
Trabalho Indigenista – CTI) e coordenado por Dominique Gallois.
Essa ação tenta dar uma resposta à insatisfação dos Waiãpi com a
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falta de periodicidade de professores brancos em suas aldeias e a
ineficácia do ensino escolar até hoje oferecido ao grupo. A proposta
tem sido avaliada positivamente pelos índios, pois o estado já havia
propiciado a contratação, entre 1992 e 1996, de mais de doze
professores brancos, que jamais permaneceram por um período
superior a três meses seguidos nas aldeias.
O processo de letramento de alguns Waiãpi, embora lento, já fora
viabilizado logo depois do contato do grupo. A Funai propiciara
que o antigo Instituto Lingüístico de Verão (hoje Sociedade
Internacional de Lingüística) promovesse o estudo da língua Waiãpi
com vistas à tradução da Bíblia e para subsidiar outros missionários,
os da Missão Novas Tribos do Brasil, para o trabalho de educação
bilíngüe, tido como o mais justo para integrar gradativamente os
índios na sociedade brasileira. Apesar disso, os índios demonstravam
grande frustração por não conseguirem compreender aquilo que os
brancos lhes diziam, dependendo sempre da Funai para adquirem os
bens manufaturados que foram introduzidos em sua vida. O CTI
prepararia jovens Waiãpi – os potenciais professores indígenas – para
se tornarem os interlocutores do mais velhos junto à sociedade
brasileira e para introduzirem os jovens monolíngües interessados
em aprender as coisas do mundo dos brancos nas técnicas de escrita
e cálculo matemático, por intermédio dos professores contratados
pela secretaria estadual de educação, quando estes estivessem nas
aldeias. Era uma forma de garantir que os alunos maiores de doze
anos tivessem oportunidade de falar português e aprender as
principais operações aritméticas, como desejam seus pais. Ao mesmo
tempo, aqueles que quisessem enviar seus filhos menores de oito
anos à escola deveriam aceitar apenas os jovens Waiãpi como
professores, estes sim em condições de estabelecer uma verdadeira
alfabetização em língua indígena para alunos monolíngües. A Funai
se propõe a colaborar, quando tem recursos, viabilizando o
transporte dos professores dentro da Área Indígena ou em seus
deslocamentos para a cidade. Isso permitiu que os missionários da
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Missão Novas Tribos fossem proibidos, pela Funai, desde 1992, de
atuar na escola da aldeia Ytuwassu, onde estava plantada a sua sede.
No Amapá, no entanto, a resistência à mudança tem sido um dos
maiores entraves para viabilizar parcerias entre governo e instituições
não-governamentais. Enquanto o CTI formulava para as escolas
Waiãpi uma proposta de trabalho de letramento para apenas alguns
índios visando dar-lhes meios para alcançarem, junto com seu povo,
instrumentos próprios para autonomia, o objetivo da secretaria era
implantar um arremedo de escola rural dentro das aldeias, referenciadas
na figura do professor. Um exemplo: a não obrigatoriedade dos Waiãpi
em freqüentarem as escolas não é aceita por parte de alguns
funcionários da Funai ou da própria secretaria, que se juntam à voz
dos missionários, inconformados por não terem mais possibilidade
de assumir o trabalho educativo convencional. Os Waiãpi, por sua
vez, têm claro, nesse cenário, o limite entre quererem compreender
os brancos – para controlar seu relacionamento com eles – e terem
íntegro o direito de permanecerem Waiãpi, fazerem suas roças e
expedições de caça, celebrarem festas, beberem muito caxiri e
embebedarem-se, enfim, permanecerem em suas terras, único lugar
que reúne todas as características necessárias para eles continuarem
sendo como sempre foram. Para os brancos, fazer festa, ficar bêbado
e “passar fome comendo só beiju” é estranho e condenável. Substituir
o beiju de todo dia por uma ocasional merenda escolar é tudo o que o
técnicos brancos dimensionam como benéfico aos índios.
A inconstância da presença dos professores da secretaria nas
aldeias e a ocorrência apenas bianual de cursos de formação de
professores índios inviabilizam uma resposta às necessidades
apresentadas pelas comunidades. Os resultados obtidos não são
evidentemente muito satisfatórios para o grupo todo, mas
extremamente positivos para os treze Waiãpi em processo de
formação, já que recebem uma carga de informações voltadas
especificamente para as demandas por eles formuladas ao longo dos
cursos ou por ocasião das viagens de acompanhamento de sua prática
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escolar: são eles que administram a conta bancária da organização
indígena, comercializam os produtos explorados na área para
adquirirem os bens manufaturados para uso cotidiano nas aldeias e
interagem com as autoridades governamentais no processo de
negociação para o reconhecimento de seu território. Os professores
brancos, quando na aldeia, têm dado menos ênfase no português
oral do que se desejaria, tendo em vista que foram preparados para
formular aulas baseadas nos materiais didáticos convencionais,
formulados para crianças urbanas. Por outro lado, como existe um
discurso oficial que apregoa o uso “obrigatório” de material didático
“diferenciado e bilíngüe”, esses professores sentem-se paralisados por
não conseguirem criar alternativas às cartilhas regulares das escolas
brasileiras e não terem nada para colocar no lugar. Enquanto os
Waiãpi queixam-se da pouca assiduidade dos professores em sala de
aula, eles também jamais cumprem à risca os horários convencionais
da aula. Primeiro, porque priorizam suas atividades cotidianas,
colocando saudavelmente a escola em segundo plano. Depois, porque
não ficam mais de três horas seguidas num banco de escola com
aulas tradicionais (ressalte-se que isso está de acordo com a exigência
dos próprios índios, porque se é assim com branco, tem que ser
assim com eles). O resultado é uma sucessão de desencontros em
que professor branco se desmotiva pela “desatenção dos alunos”, e
alunos não se conformam com as dificuldades enfrentadas para
“aprender bem”. Mas pais e alunos continuam querendo a escola, e
o professor não-índio, que precisa do emprego, continua insistindo
no modelo em que ele não se vê na obrigação de transformar.
Essa situação não se supera enquanto não existirem cursos de
formação também para professores não-índios que ainda são
necessários em diversas escolas indígenas no Brasil. Quem viabilizaria
essa formação? O MEC? O governo estadual? Os municípios? Todas
essas instâncias julgam, separadamente, que a outra é a responsável.
Quando pressionadas a tomarem uma providência, elas acusam as
ONGs de não assumirem o trabalho.
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EM BUSCA DA OPERACIONALIZAÇÃO DAS DIRETRIZES
Apresentados os casos, tentemos avaliar de que formas as
diretrizes traçadas pelo MEC correm certo risco de anacronismo.
Comecemos pelo caráter de interculturalidade e multilingüismo.
As regiões do Rio Negro e do Parque do Xingu são o melhor
exemplo de como se expressa a interculturalidade não só entre
brancos e índios, mas entre diferentes etnias entre si, sendo o
multilingüismo fator indissociável desse inter-relacionamento. As
escolas do Rio Negro não são satisfatórias em termos do que se
espera delas no sentido de fazerem com que as comunidades
indígenas alcancem autonomia política e econômica. Pelo contrário,
o trabalho educativo foi sempre feito no sentido de apagar as
diferenças. A força cultural sobrevive, mas a ideologia de “ser como
os brancos para melhorar de vida” (ou seja, por meio da
profissionalização e urbanização) é patente. Depois de duzentos
anos, nada “melhorou” substantivamente. Quanto ao Xingu, o
interculturalismo é tão forte que o movimento é exatamente o de
terem melhores instrumentos nas mãos para dominarem o mundo
do branco. Uma escola bilíngüe é válida na medida em que fortalece
nos índios seu poder de construírem por si próprios o alfabeto de
suas línguas maternas, reforçando o desejo de preservarem suas
tradições, mas perde sentido quando se conhece a ansiedade dos
índios em dominarem mais uma língua, no caso o português, com
a mesma perfeição e rigor que eles dominam as outras. Deveríamos
falar então, tanto no caso do Xingu como no do Rio Negro, em
escolas trilíngües, ou até quadrilíngües, se pensarmos que, no
último caso, há índios com pai e mãe de diferentes etnias e que,
além do português também falam a língua geral (Nheengatu, língua
criada pelos missionários brancos no início da colonização
portuguesa). No caso dos Waiãpi, a escola bilíngüe já é fato se
considerarmos que os professores indígenas só se dirigem aos seus
alunos em Waiãpi. Mas isso corresponde a uma redução do conceito
de bilingüismo. Não é possível, por exemplo, aprenderem
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matemática utilizando a língua materna, pois muitos conceitos
matemáticos da cultura ocidental são intraduzíveis, e se tentássemos
fazê-lo, correríamos o mesmo risco dos missionários, tentando
traduzir a noção do Deus ocidental para o equivalente indígena.
Nesse aspecto, a escola não pode ser “bilíngüe”.
As diretrizes reportam-se à “globalidade do processo de
aprendizagem”, elemento já existente nos processos tradicionais de
transmissão de conhecimento indígenas. Mas olhemos para nossas
escolas brancas e perguntemos: qual escola pública conseguiu
estabelecer isso como prática? A dúvida já começa ao procurarmos
a integração das disciplinas curriculares e a realidade do aluno.
Algumas escolas privadas de elite o conseguem, com professores
treinados e melhor pagos do que os da rede pública. Como construir
uma escola indígena que siga esse padrão: fazê-los esperar resolver-
se a crise de ensino no país? Não seria melhor garantir já uma escola
convencional de qualidade e tornar os próprios índios, a médio e
longo prazo, agentes consolidadores de uma escola que eles vão
estabelecer como ideal para suas necessidades?
As diretrizes propõem ainda uma “relação dialógica” entre
professor-aluno-comunidade. O diálogo já existe na demanda. Os
índios querem escolas que lhes sirvam como instrumento de
comunicação com o mundo dos brancos. A resposta são escolas
trôpegas, sem professores, sem infra-estrutura. No Rio Negro, os
índios apelam para as escolas missionárias, no Parque do Xingu
esperam pacientemente algum resultado com seus professores ainda
em formação, embora haja casos de rapazes que foram morar em
cidades vizinhas, por não quererem mais esperar. Houve muito
diálogo e pouco resultado para suas expectativas. Waiãpis “desistem”
simbolicamente, abandonando as escolas e refugiando-se em sua vida
tradicional, sem elas. Corre-se o risco de, algum dia, se refugiarem
nas escolas urbanas, por absoluta falta de respostas imediatas para a
formalização de uma escola convencional em suas aldeias.
Poderíamos nos delongar nessas questões, mas o espaço é
restrito. O que eu gostaria de registrar é o anacronismo das
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propostas das diretrizes, sem tirar o mérito de sua concepção. Há
que se considerar a distância abismal que separa quem as formulou
– pessoas envolvidas no processo de reflexão e revisão do modelo
de ensino brasileiro – e aquelas que estão encarregadas de
concretizá-las.
Até agora, fins de 1996, não se tem claro ainda como encaminhar
procedimentos básicos para o funcionamento das escolas indígenas.
Esta é, então, a primeira questão a ser levantada ao analisar a política
de educação indígena no Brasil: não existe uma prática sedimentada
pelo próprio ministério da educação que, incumbido de coordenar
as ações previstas na lei, não consegue interferir na atuação dos
estados e municípios. Além de não ter informações sequer sobre
quantas são e onde estão as escolas indígenas, o MEC não tem
qualquer controle sobre quem atua com educação indígena no país,
seja por parte das ONGs leigas ou das organizações religiosas.
Conseqüentemente, tampouco conseguiu estabelecer uma
metodologia de repasse de recursos para as escolas nas aldeias
compatível com o nível de especificidade apregoado pelas diretrizes.
A inexistência desse cadastramento repercute no adiamento de
práticas necessárias a algumas escolas, como distribuição de
merenda escolar ou livros didáticos.
Além disso, a necessária articulação com o crescente e fortificado
movimento de professores indígenas parece ter, para o MEC,
importância secundária. Quantas e quais são as organizações dos
professores indígenas no Brasil também não é informação que
consta de seu cadastro. A representação indígena no Comitê de
Educação Escolar, por sua vez, não recebe qualquer apoio que
legitime a sua presença em Brasília, por ocasião das reuniões.
Tratamento diferenciado deveria começar aí, simplesmente pelo
fato de serem índios e não terem necessariamente correio, telefone
ou fax em suas aldeias. Mas isso é inviabilizado pelo funcionamento
da máquina burocrática que não consegue adaptar-se a essas novas
situações operacionais.
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CONCLUSÃO
É imprescindível destacar que esse panorama de dificuldades
enfrentadas para implantar as políticas educacionais indígenas não
pode ficar à sombra da crise geral que enfrenta a educação no Brasil,
ou seja, falta de recursos, inadequação de métodos e da pedagogia
para as necessidades dos alunos espalhados pela imensidão do
território nacional.
Educação indígena não é específica porque a lei assim o diz, mas
porque ela reflete um longo período de negociações entre índios, brancos
e estudiosos do tema, sobre o que deveria estar sendo garantido a esse
segmento da sociedade brasileira que deseja marcar sua diferença e
preservar sua existência com dignidade. Por essa razão, é necessário
enfrentar com os índios uma discussão sobre o significado e alcance:
do conceito de universalização e democratização do ensino na
sociedade ocidental, em oposição ao acesso a conhecimentos
específicos e direcionados, como acontece em sociedades
tradicionais; e
do ensino básico para as comunidades indígenas pois, tal como
formulado no Brasil, no limite ele prepara mão-de-obra
desqualificada (e portanto barata) propícia ao mercado de
trabalho urbano. Se o projeto das comunidades indígenas é
defenderem seus territórios para garantirem a integridade e
autonomia das gerações futuras, o ensino regular que eles
reivindicam – e lhes é potencialmente oferecido – deve ser
totalmente redimensionado.
Políticas públicas de educação para índios deveriam considerar,
antes de mais nada, que uma educação “verdadeiramente indígena”,
como apregoam as diretrizes atuais, não é, como vem ocorrendo,
um arremedo de escola cuidadosamente adaptada do modelo escolar
dos brancos, mas o efetivo questionamento desse tipo de linguagem
pedagógica para grupos indígenas fortemente estruturados na
oralidade e, sobretudo, na transmissão ritualizada (e portanto
absolutamente formal) de conhecimentos.
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_____. (Ed.). Povos indígenas no Brasil, 1991-1995. São Paulo: ISA, 1996.
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1995. p. 150-151.
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153
IDENTIDADES JUVENIS E ESCOLA
Paulo César Rodrigues Carrano
Existe uma significativa diferença entre dialogar com educadores
ou apenas com professores de escola; essa é a tensão principal que
gostaria de dar a este texto. Se falamos simplesmente como
professores de escola, reduzimos nosso campo de reflexão aos
processos formativos institucionais. Ao dialogarmos como
educadores, nos abrimos para a totalidade do processo educativo do
qual a escola e seus sujeitos são partes indissociáveis.
Os trabalhadores da educação necessitam estar atentos às
transformações que ocorrem na composição do tecido social, no
qual suas práticas estão imersas.
Uma das questões centrais que afligem os responsáveis pela
educação de jovens e adultos hoje é a composição das turmas, que
expressa modificações da estrutura política, econômica, social e
cultural do mundo e da sociedade brasileira.
A heterogeneidade etária e o caráter cada vez mais urbano dos alunos
transformam o perfil de um trabalho que, durante um bom tempo,
caracterizou-se pela presença quase exclusiva de adultos e idosos com
fortes referências aos espaços rurais. A acentuada mistura entre jovens
e adultos e a rurbanização (FREYRE, 1982)
1
de determinadas turmas da
1
Gilberto Freyre utilizou a expressão rurbanização para definir os processos sociais que
evidenciavam a integração econômica, social e cultural de espaços urbanos e rurais.
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educação de jovens e adultos representam desafios que podem
transformar-se tanto em dificuldades insolúveis como em potencialidades
orientadas para o seu sucesso educativo e social.
Inicio nossa conversa trazendo elementos para ajudar na
compreensão das tensões reais entre aquilo que se costuma
denominar como o conflito entre o “mundo da escola” e o “mundo
dos jovens e alunos”. Abordarei mais à frente questões relacionadas
com a especificidade do ser jovem no mundo de hoje e, por fim,
discutirei a importância do reconhecimento das múltiplas identidades
da juventude para a comunicação nos espaços escolares.
AS CULTURAS DA ESCOLA E DA JUVENTUDE NA CIDADE
Seria errôneo pressupor a existência de uma única cultura juvenil
na escola que não fosse também originária de uma cultura do entorno,
no caso, cultura da cidade. A instituição escolar é, sem dúvida, uma
das mais fortes expressões do sentido de urbanidade. A escola
representou no curso do desenvolvimento da modernidade capitalista
a universalidade cultural que faltava ao campo.
2
Num mundo globalizado, onde as informações – não o
conhecimento, diga-se de passagem – circulam com grande velocidade
e atingem lugares cada vez mais distantes, o sentido de isolamento
geográfico e cultural torna-se cada vez mais improvável; neste
mundo, as principais características dos processos culturais são a
sua alta capacidade integradora e o seu hibridismo
3
. Nessa
perspectiva, considero um grande risco sociológico falarmos na
existência de uma possível separação entre o mundo da escola e o
mundo dos jovens alunos.
2
Antonio Candido preocupava-se, já em 1957, com as diferenças e contradições entre
cidade e campo, e os seus significados para a educação.
3
O que é mais característico do hibridismo nas culturas é a complexidade gerada pela mistura
de elementos diversos, numa convivência de múltiplas lógicas e práticas heterogêneas no
mesmo espaço social. Sobre as culturas híbridas ver (CANCLINI , 1998).
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155
O escritor uruguaio Eduardo Galeano nos lembra que o melhor do
mundo está na quantidade de mundos que o mundo contém (GALEANO, 2000).
Em plena era da globalização hegemônica, os jovens de nossas cidades
têm demonstrado a possibilidade de articulação de muitas identidades
culturais que não se constituem, necessariamente, em mundos
incomunicáveis. À escola impõe-se o desafio de derrubar os muitos
muros materiais e simbólicos que foram construídos ao longo da
história e que, em última instância, são os principais responsáveis
pelas interferências na comunicação entre os jovens alunos, seus
colegas mais idosos e seus professores.
ESCOLAS E CULTURAS
Torna-se impossível falar da cultura da escola sem considerá-la
no contexto da existência das instituições modernas que surgiram
para realizar o processo de transformação da subjetividade popular.
O processo de escolarização foi também um amplo processo de
mudança de prioridades culturais. A escola surge não apenas para
ensinar saberes, mas fundamentalmente para adaptar e sujeitar os
corpos dos trabalhadores da modernidade industrial capitalista. A
educação escolar seguiu um longo caminho, rejeitando outras formas
de convívio social e transmissão de conhecimentos que não
espelhavam a reprodução cultural institucionalizada nos ambientes
escolares. Ainda hoje, muito do que se entende como currículos
multiculturais se aproxima daquilo que Pierre Bourdieu denominou
“estratégias de condescendência” ante às culturas não-escolares, ou
seja, a instituição escolar seria tolerante com manifestações culturais
extra-escolares, desde que estas confirmassem, ou mesmo não
atrapalhassem em demasia, os tempos, os espaços e lógicas
organizadoras da instituição.
Proponho que retomemos a forma histórica como o processo
educativo foi se configurando, apontando não para a existência de
culturas separadas – da escola e da cidade –, mas para a configuração
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de um sistema territorial de formação no qual a própria convivência
na cidade se apresenta como espaço educativo com características
próprias. Quando a escola não reconhece a existência de outros
processos culturais educadores, ela fecha-se em si mesma. O
comunitário não é somente o extra-escolar, considerado como o
espaço dos saberes do senso comum; ele é também o território social
e simbólico no qual a prática popular elabora aquilo que Paulo Freire
chamou de saber da experiência feito (FREIRE, 1995).
É preciso inverter o processo atual, extremamente conservador,
de constituição das escolas como “celas de aula” (CARRANO, 1999).
Esse processo, que revela uma violência especificamente escolar de
vigilância e fechamento, surge, no meu entender, como alternativa
ao cenário de violência das cidades. Não parece contraditório que
tentemos educar para a liberdade num ambiente de aprisionamento?
Concordo com o cineasta Roberto Rosselini: ‘Um espírito livre não
deve aprender como escravo”.
O que torna a aprendizagem humana singular não é a assimilação
direta da realidade, mas o contato e a troca com outras consciências
e sensibilidades. A escola se afirma como o espaço e tempo dos
encontros entre os muitos sujeitos culturais que a fazem existir; assim,
como educadores, faz parte de nossa tarefa levarmos em conta
fundamentalmente aqueles que pretendemos educar.
O Professor Moacyr de Góes contou uma história muito
interessante sobre um padre que ensinava latim para crianças muito
pobres na cidade de Natal. Quando lhe perguntaram como fez para
ensinar latim ao João, ele disse: “Para ensinar latim ao João? Primeiro
foi preciso conhecer o João. O latim veio depois”.
A história serve para nos mostrar que esse conhecimento do aluno
não envolve apenas o aspecto racional, mas uma predisposição para
sentir, entender e julgar com ele. Estamos sempre querendo saber o
que o aluno sabe ou deixa de saber; entretanto, o que ele sente é
algo indissociável daquilo que ele é como sujeito cultural. Proponho
que a escola deveria ser também um espaço privilegiado para os
muitos jogos sociais; o jogo instaura o espaço da liberdade, da
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diferença e do diálogo. Até que ponto nossas escolas têm se
caracterizado por esses valores?
A discussão sobre a dificuldade do diálogo entre jovens e adultos
nas escolas lembrou-me uma passagem do livro Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carrol; sobre o ronronar dos gatos, Alice
comentou: “É um hábito muito inconveniente dos gatinhos
responderem sempre com um ronrom a qualquer coisa que se diga
(...) como conversar com alguém que sempre diz a mesma coisa?”
CONDIÇÕES SOCIAIS DA JUVENTUDE CONTEMPORÂNEA
Mesmo diante dos graves problemas de sobrevivência e da falta de
horizontes, muitos grupos juvenis procuram contornar a precariedade
material elaborando alternativas culturais nos múltiplos e também
conflituosos territórios da cidade. Ao atribuírem novos sentidos a esses
espaços, os jovens os transformam cultural e simbolicamente em
lugares marcados por suas próprias identidades. A juvenização das
cidades cria, em certo sentido, a consciência de que os jovens não
vivem nos mesmos lugares que os adultos; alguns chegam a admitir
que os jovens parecem viver em outro mundo. Um desafio que se
apresenta para o campo educacional é o de conseguir os necessários
“vistos” e “passaportes” para a viagem que é dialogar e mesmo
compartilhar dos sentidos culturais que são elaborados nas múltiplas
redes sociais da juventude (CARRANO, 2000).
Os gostos, as atitudes e comportamentos dos jovens se identificam
atualmente pela multiplicidade e a ambivalência. É impossível reunir
diversas condições sociais de existência em diferentes contextos e
caracterizar uma única cultura da juventude. Num mesmo ambiente,
em uma mesma festa de família, se pode encontrar o jovem punk e o
executivo; o ateu e o evangélico; o sério e o irônico; o que não fala
com os pais e aquele que, ao contrário, estabelece com eles uma
relação intensa; o que adora o estudo ou a escola e o que considera
o esforço intelectual ou a vida escolar um aborrecimento ou perda
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de tempo. Essas distintas tipologias também não são fixas, caso
consideremos os jogos de relações que compõem os processos de
formação das muitas identidades de um mesmo indivíduo ou grupo.
A juventude é uma categoria sociológica inventada pelos adultos;
entretanto, torna-se cada vez mais difícil defini-la. Quando muito,
podemos elaborar provisórios mapas relacionais.
Os conflitos que envolvem a juventude não são marcados por
adesões ou contraposições a utopias e ideologias sociais distantes.
As questões emergentes dos jovens relacionam-se ao nascimento, à
morte, à saúde, à sobrevivência imediata, ao prazer e ao divertimento
e colocam em primeiro plano as relações com a natureza, a identidade
sexual, os recursos comunicativos e a estrutura do seu agir individual.
Diferentemente daquilo que acontecia em sociedades tradicionais,
nas quais os filhos eram levados a seguir os destinos familiares e
educacionais para eles traçados os jovens de hoje encontram-se mais
disponíveis para dispor de sua própria vida encontrando mais
disponibilidade para fazer escolhas, flexibilizar os seus projetos de
futuro e experimentar novas identidades culturais. Esse sentido de
fluidez e abertura se estende em todas as áreas da vida. Os contextos
da vida social que se apresentam resistentes aos fluxos comunicativos
da juventude são identificados por ela como ultrapassados. O que se
evidencia nas práticas culturais da juventude nas cidades é que o
corpo expressa uma síntese de práticas, estilos e atitudes
compartilhadas no interior de grupos de identidade; esse é o caso,
por exemplo, dos rappers em São Paulo e dos funkeiros no Rio de
Janeiro. O corpo (gestos, expressões e movimentos) é constituído
por várias redes de subjetividades interdependentes. Nesse sentido
haveria uma corporicidade (CARRANO, 1999) jovem que apostaria
em outras formas de ser, sentir e pensar que, em grande medida,
torna-se incompreensível para pais e professores. Isso não é,
necessariamente, algo negativo.
Evidencia-se uma resposta de desconfiança nas instituições e
ideologias do progresso – a escola aí incluída. O racionalismo da
modernidade parece não convencer que tem condições de colocar
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os meios tecnológicos a serviço das finalidades humanas. Talvez
algumas atitudes dos jovens que consideramos irracionais sejam, em
verdade, críticas ao racionalismo que caracterizou durante muito
tempo o ser humano moderno e ocidental. Os jovens que não
compartilham das ideologias do progresso são hostis às doutrinas e
às fórmulas que se voltam para as promessas de um futuro melhor.
O acento é colocado muito mais na brevidade e na emergência do
tempo. Os dias, semanas, meses são breves, e o futuro, incerto. O
futuro distante passou a ser considerado por sua imprevisibilidade.
A juventude grita/canta/dança que o futuro é agora!
Os jovens estabelecem com o trabalho, por exemplo, um sentido
ambivalente que oscila entre o desejo e a desconfiança. O trabalho
regular já não pode ser considerado como uma garantia para todos
nas sociedades organizadas pelo modo de produção capitalista. A
desvinculação entre desenvolvimento econômico e oferta de
empregos e a conseqüente realidade da desocupação ou da ocupação
precária transformou radicalmente as relações da juventude com o
sentido do trabalho. A realidade do trabalho precário, em suas
distintas formas, reserva para o jovem o forte vínculo entre trabalho
e incerteza.
O tempo livre para a juventude não é mais uma promessa do
capital. Ele já é uma realidade neste fim de século. No entanto, esse
tempo livre não significa a democratização da era dos lazeres para
todos, mas precarização social, que empobrece material e
espiritualmente uma gigantesca parcela da humanidade. A
instabilidade em que o capitalismo lançou o trabalho debilitou a
própria ética que o viu nascer. O trabalho, transformado em
existência precária, vê também diminuído o seu valor social. A
mística que o justificou historicamente – o trabalho enobrece o homem
dissolve-se em larga escala.
Um dos efeitos mais perversos desse processo é, para os jovens,
terem que estabelecer seus projetos de futuro e erigir seus valores e
símbolos no contexto de um tempo livre desocupado. Não falo da
utópica sociedade do tempo livre prometida pelos defensores do
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capitalismo ou mesmo do mundo da liberdade socialista, mas sim do
tempo precário de uma sociedade com muitos símbolos de riqueza
para todos e dignidade material para poucos.
O JOVEM NA ESCOLA
Firma-se hoje o consenso de que as escolas não são iguais; elas
possuem distintas condições físicas, professores com diferentes níveis
formativos, interesses, práticas e ideologias. Nesse sentido, tornou-
se “politicamente correto” defender a diversidade de projetos
pedagógicos entre as escolas. Isso representou um avanço
significativo no relacionamento entre as diferentes instâncias de
poder institucional nas redes de ensino. Entretanto, parece-me que
ainda precisamos avançar muito no sentido da extensão do direito à
pluralidade aos próprios jovens que, em muitas circunstâncias, são
tratados como uma massa uniforme de alunos sem identidade.
As dificuldades em lidar com a diversidade parecem algo congênito
na constituição da idéia de escolarização. A homogeneidade ainda é
muito mais desejável à cultura escolar do que a noção de
heterogeneidade, seja ela de faixa etária, de gênero, de classe, de
cultura regional ou étnica.
Uma possibilidade que vejo para começar a transformar essa
situação é a mudança de postura dos educadores para diminuir seu
afã em transmitir os conhecimentos que portam, da forma como o
fazem, em benefício de prestar mais atenção aos outros conteúdos
culturais e linguagens que circulam pelos espaços escolares.
O educador atento precisa ser capaz de indagar o que os grupos
culturais da juventude têm a nos dizer. Não estariam eles provocando-
nos – de muitas e variadas maneiras – para o diálogo com práticas
culturais que não encontram espaço para habitar a instituição escolar?
Aquilo que consideramos como apatia ou desinteresse do jovem não
seria um desvio de interesse para outros contextos educativos que
poderíamos explorar, desde que nos dispuséssemos ao diálogo?
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A evasão escolar não tem sido precedida de uma silenciosa evasão da
“presença” por inteiro do jovem na escola?
A atenção com as culturas dos grupos da juventude pode permitir
que falemos de dimensões normalmente negligenciadas na escola: a
festa, a leveza, a sensibilidade, a identidade coletiva e a solidariedade
que recompõe vínculos comunitários numa sociedade que promove
e cultua o isolamento, mas contraditoriamente condena a violência.
É preciso sair da armadilha cultural e política dos que só enxergam
delinqüência e violência nos grupos da juventude.
Uma outra atitude que pode contribuir para a mudança das
relações entre jovens e adultos nas escolas é a discussão sobre o lugar
que é reservado ao corpo nas práticas escolares. O trabalho corporal
na escola precisa ser encarado não como técnica de controle
disciplinar ou ferramenta acessória de rendimento, mas como política
de conhecimento de si e de comunicação com o outro. A educação
da juventude na escola deveria ser pensada como uma estratégia de
libertação dos seus sentidos.
Uma das tarefas mais urgentes de todos os educadores é a
descolonização ou desaprendizado da sensibilidade educada para a
sociedade de consumo; isso se torna vital quando tratamos da
educação da juventude. Em geral, acreditamos que a escola deve ser
o lugar de aprender coisas. De fato ela o é; entretanto, deveria ser
também o espaço-tempo cultural onde seríamos estimulados a
desaprender (dediscere), ou questionar, os vários condicionamentos
sociais que nos afastam da autoconsciência e da solidariedade. A
racionalidade das nossas pedagogias quer nos fazer crer que a
aprendizagem restringe-se apenas a saberes situados fora de nosso
corpo. Quantas vezes nos importamos mais com o que o nosso aluno
sabe sobre os conhecimentos científicos do que sobre o seu
conhecimento de si?
Não é só no pensamento, mas através de todos os sentidos, que o
homem se afirma no mundo objetivo, ensinou-nos Karl Marx (1989).
A sensibilidade humana é resultante da educação dos sentidos, que
precisam ser entendidos e vividos de forma cada vez mais consciente.
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Uma atenção ao corpo pode contribuir para que os jovens dialoguem
entre si e com as gerações adultas. É possível ajudar na construção
de pontes para o outro, derrubando as portas dos “apartamentos”
que nos deixam à parte da comunicação com o mundo.
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163
BIBLIOGRAFIA
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AS PRÁTICAS EDUCATIVAS DO
MOVIMENTO NEGRO E A EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Joana Célia dos Passos
1. MOVIMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO
O Movimento Negro tem sido um protagonista histórico na luta
pela democratização da educação e da sociedade brasileira. À revelia
da história da educação oficial, que torna invisíveis suas ações
educativas e em alguns momentos nem o considera movimento
social, o movimento negro apresenta-se como um importante ator
social no desenvolvimento de processos pedagógicos, tanto em sua
prática organizativa e militante que possibilita a afirmação da
identidade negra, a formação para cidadania no combate ao racismo
e a luta pelo direito de igualdade e oportunidades, quanto pelas
ações e práticas educativas que têm a escolarização de crianças,
jovens e adultos como centralidade.
As organizações criadas por negros e negras ao longo da história
da sociedade brasileira apresentam formas diferenciadas de
expressão, trajetórias e experiências educativas, entre elas
destacamos os quilombos, os terreiros, as insurreições urbanas
(Alfaiates, Balaiada, Cabanagens, Farroupilha, Revolta dos Búzios,
Chibata etc.), as irmandades, os grupos culturais, as associações
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beneficentes e recreativas, as sociedades carnavalescas, as
organizações políticas e a imprensa negra. Dentre essas
organizações é importante destacar as experiências da Frente Negra
Brasileira e do Teatro Experimental do Negro.
Criada na década de trinta em São Paulo, a Frente Negra
Brasileira teve como propósito a construção de uma articulação
política nacional e a sua transformação em partido político em
1936. Editou de 1936 a 1938 o jornal A Voz da Raça e, em 1937, o
golpe que instaurou o Estado Novo dissolveu seu partido político
juntamente com os demais existentes. A Frente Negra Brasileira
chegou a criar uma escola.
O Teatro Experimental do Negro (TEN) foi criado em 1944 no
Rio de Janeiro por Abdias do Nascimento. Seu projeto político-
pedagógico articulava a educação como estratégia para a visibilidade
e inserção de negros e negras, e o teatro como instrumento.
Organizou cursos noturnos de alfabetização de adultos com
conhecimentos gerais sobre história, geografia, matemática,
literatura e noções de teatro, entre outros, para trabalhadores,
operários, desempregados e empregadas domésticas.
A exclusão de crianças, jovens e adultos negros no e do sistema
educacional brasileiro fez com que o movimento negro
desenvolvesse inúmeras experiências educativas com o objetivo de
suprir a ausência da escola e integrar a população negra à sociedade
brasileira.
Nos dias atuais, organizações do movimento negro reafirmam a
educação como estratégia e promovem uma série de experiências,
seja através de escolas próprias, cursinho pré-vestibular,
alfabetização de jovens e adultos, educação profissional para geração
de emprego e renda, formação de professores, seja por meio da
articulação com o poder público e universidades.
Em diferentes tempos e espaços, a afirmação da identidade de
mulheres e homens negros, o combate ao racismo e a promoção
da igualdade racial sempre foram as principais bandeiras de luta do
povo negro.
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Passados mais de cem anos da abolição formal da escravatura,
apesar da aparente harmonia construída pelo mito da “democracia
racial”, as relações raciais ainda estão encobertas por um racismo
de fato, implícito e altamente eficaz quanto aos seus objetivos, e
caracterizado pela exclusão sistemática de negros e negras em vários
setores da vida nacional. Esse racismo prejudica fortemente o
processo de formação da identidade coletiva da qual resultariam a
conscientização e mobilização de suas vítimas.
Contudo, podemos vislumbrar a partir da década de noventa o
posicionamento de partidos políticos, imprensa, pesquisadores e
alguns setores governamentais, que timidamente confessam o que
vem sendo negado durante mais de um século: a existência de um
racismo de fato e de uma desigualdade racial extrema entre negros
e brancos.
A contestação do mito da democracia racial pelo movimento
negro tem sido fundamental para a explicitação do racismo na
sociedade brasileira e também para a sua politização.
2. A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E A QUESTÃO RACIAL
Discutir a educação de pessoas jovens e adultas significa falar de
práticas e vivências de um público muito particular e com
características específicas: são homens e mulheres que foram
excluídos do sistema escolar, possuindo, portanto, pouca ou
nenhuma escolarização; sujeitos que possuem certas especificidades
socioculturais, como expressões de suas origens, grupos populares;
sujeitos que já estão inseridos no mundo do trabalho, normalmente
ocupando funções não qualificadas; e sujeitos que se encontram
em uma etapa de vida diferente da infância (OLIVEIRA, 1999).
Nesse universo, encontra-se um grande número de jovens e
adultos, negras e negros, que excluídos no e do processo de
escolarização regular passam a freqüentar a Educação de Jovens e
Adultos (EJA).
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As desigualdades sofridas pela população negra no processo de
escolarização vêm sendo denunciadas há vários anos, pelo movimento
social negro ou por estudiosos da temática racial e mais recentemente
por organismos governamentais.
Essas denúncias baseiam-se em estudos que analisam os livros
didáticos utilizados em escolas brasileiras, os dados fornecidos pelo
IBGE/PNAD, as observações empíricas do tratamento dispensado
às crianças negras na escola, os conteúdos veiculados nos programas
de ensino, a relação professor-aluno, os números do fracasso escolar.
Dessa maneira, fica cada vez mais difícil negar que o sistema educacional
brasileiro é excludente. Do mesmo modo, esses estudos não deixam
dúvidas de que a desigualdade econômica e a má-distribuição de renda
têm suas bases no racismo e na discriminação racial.
Em estudo recente, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira – Inep constatou que o desempenho
dos estudantes negros na escola tem sido qualitativamente inferior ao
dos estudantes brancos, tanto em escolas públicas como em escolas
privadas (INEP, 2003). Isso indica que o racismo existente em nossa
sociedade extrapola as classes sociais. Somente doze por cento dos
alunos de 4ª série se autodeclararam negros ao contrário dos 44% de
brancos. Na 8ª série são oito por cento e na 3ª série do ensino médio
são seis por cento. Foram esses meninos e meninas negras e negros
que alcançaram um desempenho médio inferior ao desempenho dos
meninos e meninas brancos. A média obtida pelos alunos brancos da
4ª série do ensino fundamental em Língua Portuguesa, em 1995, era
de 193,4 pontos, enquanto a dos alunos negros era de 173,8 pontos.
A diferença era de 19,6 pontos na escala que vai de 125 a 425. Já em
2001, a média entre os brancos foi de 174 e a dos negros, de 147,9,
uma diferença de 26,1 pontos. Percebe-se um perverso aumento da
desigualdade nos últimos anos. Esses dados denunciam que 74,4% dos
estudantes negros apresentam desempenho classificado como crítico
ou muito crítico. Entre os alunos brancos esse índice é de 51,7%. Nas
escolas privadas não é diferente, os alunos negros da 4ª série atingiram
179 pontos e os brancos, 214,9. Em Matemática, os negros apresentam
189,2 pontos e os brancos, 227,8 pontos.
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O racismo também se manifesta de forma perversa na escola em
relação aos estudantes negros e negras. A invisibilidade sofrida por
essas crianças e jovens tem levado muitos deles ao abandono e ao
fracasso na escola. Os meninos e meninas negros e pobres que não
correspondem às exigências homogeneizantes da escola e não se
mostram interessados nos conteúdos escolares, têm sido classificados
como carentes de tudo, agressivos, desinteressados, indisciplinados, rebeldes,
violentos, lentos, sem referência, terão seu percurso escolar mais dificultado
e acidentado.
Isso significa que a escola reflete o modelo social no qual está
inserida. Nela, portanto, também estão presentes as práticas das
desigualdades sociais, raciais, culturais e econômicas a que
determinados grupos sociais ainda estão submetidos na sociedade
brasileira. Existem possibilidades para a superação das formas mais
variadas de preconceito e desigualdades, principalmente porque os
sujeitos sociais que a constituem, por meio dos movimentos
populares, têm exigido reparação da condição de excluídos do direito
à escolarização de qualidade.
A pesquisa Desigualdade Racial no Brasil: evolução das condições de
vida na década de noventa, realizada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – Ipea, constatou que em 1999:
8% dos jovens negros/as entre 15 e 25 anos eram analfabetos,
em relação a 3% de brancos;
5% dos jovens negros entre 7 e 13 anos não freqüentaram a
escola e somente 2% dos jovens brancos da mesma faixa etária
não o fizeram;
não concluíram o ensino médio 84% dos jovens negros/as e
63% de jovens brancos entre 18 e 23 anos ;
75,3% dos adultos negros não concluíram o ensino
fundamental, em relação a 57,4% dos adultos brancos;
12,9% dos brancos e 3,3% dos negros completaram o ensino
médio;
98% dos jovens negros e 89% dos jovens brancos não
ingressaram na universidade.
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A mesma pesquisa constatou também que “a escolaridade média
de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos
de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos
de estudo. O diferencial é de 2,3 anos. Apesar da escolaridade de
brancos e negros crescer de forma contínua ao longo do século, a
diferença de 2,3 anos de estudos entre jovens brancos e negros de
25 anos de idade é a mesma observada entre os pais desses jovens.
E, de forma assustadoramente natural, 2,3 anos é a diferença entre
os avós desses jovens. Além de elevado, o padrão de discriminação
racial expresso pelo diferencial na escolaridade entre brancos e
negros, mantém-se perversamente estável entre as gerações” .
(IPEA, 2001, p. 90).
Os índices apresentados mostram que as meninas e meninos negros
têm um processo de escolarização mais precário, de pior qualidade
e, portanto, desigual. As marcas das desigualdades em sua trajetória
têm contribuído para que negros e negras se mantenham em
desvantagem nos diferentes aspectos de atuação de sua vida, no
mercado de trabalho ou nos demais direitos básicos, como, saúde,
habitação, saneamento, segurança, alimentação, lazer etc.
Passados alguns anos, muitos dos estudantes negros e negras que
foram negligenciados pelo sistema educacional e pela sociedade
brasileira retornam à escolarização, desta vez em programas de
Educação de Jovens e Adultos. Para muitos, a EJA se constitui na
única possibilidade de conclusão da escolaridade básica.
Como a EJA tem lidado com a trajetória de exclusão dos
estudantes negros? Os educadores da EJA percebem a presença dos
jovens negros? As propostas pedagógicas possibilitam o estudo e o
debate sobre as desigualdades raciais na sociedade brasileira? Que
interlocução existe entre o movimento negro e a EJA?
Talvez ainda não tenhamos respostas positivas para todas essas
questões. Mas os jovens e adultos negros e negras estão lá. E na
complexidade das relações sociais, jovens e adultos, negros e negras,
vivem na EJA sua identidade de raça, classe e geração, mesmo que
clandestinamente.
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171
Com a vinda dos jovens e adultos negros para a EJA, o sistema
educacional brasileiro tem uma nova chance de rever seu papel e
assegurar a escolaridade básica com qualidade, além de reparar a
dívida social que tem para com essa população. Para isso, é preciso
garantir o acesso e a permanência de todos os estudantes, escolas
com instalações adequadas para o trabalho com jovens e adultos,
equipamentos de qualidade e adequados, formação continuada e
permanente de professores e, principalmente, assegurar essa
modalidade de ensino como política, entendendo que toda política
precisa de investimentos e financiamentos.
Um aspecto importante a ser considerado é que cada vez mais a
EJA se caracteriza como educação de jovens. A maioria, jovens que
passaram pela escola e mesmo assim não obtiveram aprendizagem
suficiente para participar plenamente da vida econômica, social,
política e cultural do país. Essa realidade aponta para modificações
no cotidiano da EJA, quer nas relações entre os sujeitos (professores
e estudantes), quer no currículo.
Temos dialogado com jovens negros para identificar o que os
mobiliza para a escolaridade, haja vista que sua trajetória escolar
anterior está marcada pelas interrupções, reprovações e abandonos.
E o que temos percebido é que o desejo de saber, o gosto pelo estudo, a
socialização, a busca do direito e a conquista da cidadania plena, têm disputado
com a lógica de que o mercado de trabalho é o grande propulsor
dessa demanda. Os jovens têm sonhos e projetos de futuro que
incluem a escolarização.
Nesse sentido a EJA precisa se constituir num tempo-espaço de
direitos e de desejos de aprender e de ensinar, de prazer e de com(n)
vivência para negros e não-negros.
Como materializar uma prática pedagógica que considere os jovens
e adultos negros e não-negros e sua identidade de gênero, de raça, de
religiosidade e de gerações numa escola em que a lógica organizacional
do cotidiano está marcada pela homogeneização, hierarquia,
impessoalidade, universalidade? Como fazer com que as diferenças
fortaleçam a humanização do processo ensino-aprendizagem?
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172
Destacamos aqui, como uma possibilidade entre tantas outras, a
Pedagogia Multirracial e Popular que vem sendo formulada pelo Núcleo
de Estudos Negros (NEN). Para o desenvolvimento e elaboração de
uma pedagogia multirracial e popular o NEN buscou fundamentar-
se em suas próprias práticas educativas e nas práticas do movimento
negro, em estudiosos da temática racial das mais diferentes áreas e
em estudiosos da educação.
A pedagogia é multirracial porque compreende que a escola, assim
como a sociedade brasileira, é constituída pelas diferentes matrizes
étnico-raciais que compõem a nação brasileira e, por isso, trabalha
na perspectiva da superação da discriminação racial. É popular porque
tem as pessoas e sua trajetória, vida, sentimentos, alegrias, dores,
gostos e desgostos, como centro da relação pedagógica. Porque se
compromete com a construção de uma escola pública que privilegia
a história e a cultura das populações que constituem a sociedade
brasileira, seus valores, formas de agir e sentir. Em que a vida
cotidiana dos grupos étnicos, raciais e culturais seja a base do
conhecimento curricular e das relações pedagógicas. E também
porque utiliza metodologias da educação popular.
Essa pedagogia não pretende apenas resgatar as raízes culturais
do povo negro, mas, sim, recuperar a humanização dos processos
pedagógicos chamando a atenção para as diferentes manifestações
de discriminação, sexismos e racismos no interior da escola. A
preocupação não é ensinar somente os conteúdos curriculares na
perspectiva do negro brasileiro, mas também analisar e desconstruir
os conteúdos das práticas racistas que, na maioria das vezes, não são
percebidas pelos estudantes nem pelo professores, em função de sua
trajetória de vida ou pela lógica da escola que ofusca as desigualdades
e diferenças porque tem como princípio a homogeneização.
O desafio que se impõe para todos nós é a construção de práticas
pedagógicas produzidas a partir dos princípios da solidariedade, da
tolerância, da ética, da estética, da amorosidade, do direito, da
igualdade de oportunidades, da alegria, entre tantos outros.
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BIBLIOGRAFIA
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VINTE ANOS DO MST: SEMPRE É TEMPO
DE APRENDER
1
Maria Cristina Vargas
No ano de 2004 o Movimento Sem Terra – MST completa seus
vinte anos de história na luta pela terra no Brasil. Ele é fruto do
processo histórico de resistência dos camponeses de vários estados
brasileiros que tiveram a oportunidade de socializar as suas experiências
e ousaram unir suas forças em uma luta comum pela terra.
Hoje, o Movimento está organizado em 23 estados brasileiros,
tem 1.783 assentamentos com um total de 110.240 famílias assentadas
e, mais ou menos, oitocentos acampamentos com duzentas mil
famílias acampadas. São vinte anos de lutas e, também, de conquistas.
É uma história marcada não só pela conquista da terra, mas em vários
outros campos do direito dos sujeitos envolvidos, como educação, saúde
e produção. Um resgate completo de cidadania e dignidade.
A educação é um dos grandes desafios do Movimento. Em áreas
de assentamento e acampamento, existem duas mil escolas para as
séries iniciais do ensino fundamental, duzentas escolas de 5ª a 8ª
séries e somente vinte que atendem ao ensino médio, todas escolas
públicas. Muito já foi feito, o que traz a certeza de que muito mais
1
Texto elaborado a partir de uma construção coletiva que está publicada no Caderno de
Educação, n. 11 do MST – Educação de Jovens e Adultos Sempre é Tempo de Aprender.
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ainda deve ser feito. Construímos uma cultura de que adquirir
conhecimento é um direito de todos e todas.
A Educação de Jovens e Adultos é um exemplo disso. Hoje, nos
acampamentos e assentamentos, os jovens e adultos têm a
oportunidade de aprender a ler, escrever, calcular sua vida, seu dia-
a-dia, enfim, sua história.
Somos sujeitos coletivos e em movimento. Nesta marcha aprendemos a cada passo dado.
Aprendemos a romper cercas: a do latifúndio, a do capital e a da ignorância. Aprendemos
que temos uma raiz e que podemos ir forjando em nós a identidade Sem Terra. Aprendemos
a sonhar com os pés no chão e a ir construindo historicamente um projeto. Aprendemos
a resistir contra a ideologia do capital e a violência do latifúndio. Aprendemos a cultivar
valores fundamentais do ser humano que se assume como lutador e lutadora do povo.
Aprendemos a festejar as vitórias, por pequenas que sejam, e a examinar as derrotas
para aprender com elas. Aprendemos a construir caminhos que forjam o novo e nos
educam. Aprendemos que podemos e temos o direito de aprender.
(Caderno de Educação, n. 11 do MST)
Em meio a tais convicções, desde o início do Movimento existe a
preocupação com a educação, geralmente a das crianças, em razão
das características históricas de nosso país no estabelecimento de
uma idade escolar.
Nos assentamentos e acampamentos, mesmo timidamente no
começo do Movimento, a EJA já estava presente em práticas isoladas
e não articuladas pelo MST, realizadas por voluntários que se
identificavam com essa atividade e tinham o objetivo de alfabetizar.
Além do interesse pelo jornal Sem Terra e os cadernos de formação
do Movimento, o que mais estimulava a alfabetização era,
principalmente, a consciência de mais um direito a ser conquistado.
O constante incentivo do MST em democratizar as informações,
em fortalecer toda a base social dando a ela condições de formar sua
opinião, de ser sujeito nos rumos de sua organização, fez surgir a
necessidade de apropriação do conhecimento, não para o mercado
de trabalho apenas, mas para a conquista da cidadania.
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A partir de 1990, o enfrentamento da cerca do analfabetismo no
MST se dá em duas linhas: na política, através da luta pelo direito de
acesso à alfabetização/educação de jovens e adultos; e, na linha
pedagógica, através do processo de elaboração de uma proposta de
Educação de Jovens e Adultos.
Um marco importante para a EJA no MST foi o curso de
preparação dos educadores, que começou em 1991 e foi até 1993,
para implementar um projeto de alfabetização nos assentamentos
do Rio Grande do Sul. Esse projeto foi financiado pelo convênio
entre o Instituto Cultural São Francisco de Assis – ICSFA e o MEC,
com participação de outras entidades como a Cáritas e a Associação
de Educação Católica – AEC, envolvendo cerca de cem turmas de
alfabetizandos.
Seu lançamento aconteceu em 25 de maio de 1991 no
assentamento Conquista da Fronteira, Hulha Negra, município de
Bagé, com a presença do educador Paulo Freire para um dia de debate
sobre a educação popular e a reforma agrária. Na ocasião, Paulo
Freire disse:
(...) esta tarde é o começo de algo que já começou. Começou até no momento mesmo das
primeiras posições de luta que vocês assumiram, mas esta tarde marca o começo mais
sistematizado de um novo processo ou de um desdobramento do primeiro, de um grande
processo da luta que é um processo político, que é um processo social e que é também um
processo pedagógico. Não há briga política que não seja isso. Mas o começo mais sistemático
a que me refiro, que hoje se inicia, tem a ver exatamente com dois direitos fundamentais
que poucos têm e pelos quais temos que brigar. O direito a conhecer, a conhecer o que já
se conhece, e o direito a conhecer o que ainda não se conhece.
Realmente aquele período foi um marco decisivo para dar o
impulso que levaria o Movimento Sem Terra a assumir a EJA como
uma estratégica bandeira de luta. Isso é demonstrado quando, em
julho de 1995, é publicado o Programa de Reforma Agrária que, além
das características da reforma agrária necessárias, ressalta a
alfabetização de todos, jovens e adultos, como um dos pilares para o
desenvolvimento social.
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178
No mesmo período, com muito mais acúmulo em virtude das
práticas realizadas em vários estados, é criado o lema Sempre é Tempo
de Aprender, com o objetivo de contribuir para a conscientização e
mobilização de toda a base sobre a importância de todos e todas
participarem dessa luta. E não ficou só no lema, o período forte de
muito trabalho também trouxe a concepção em forma de música do
poeta Zé Pinto:
Quem é que tem interesse em participar,
Quem é que se prontifica para ensinar
Está lançado o desafio e o refrão vamos cantar
Sempre é tempo de aprender
Sempre é tempo de ensinar.
Quando criança nos negaram
Este saber, depois de grande
Vamos pôr os pés no chão,
Há quem não sabe o dever de
Repartir, todos na luta pela alfabetização.
Jovens e adultos papel e lápis na mão
Unificando educação e produção
Num gesto lindo de aprender e ensinar
Se educando com palavra e com ação.
Na nossa conta um mais um tem que crescer,
A liberdade vai além do ABC,
Um conteúdo dentro da realidade,
Vai despertando o interesse de saber.
O setor de educação do Movimento produziu vários cadernos
visando sistematizar as experiências construídas na história do MST
e as concepções que estão sendo afirmadas.
No início, a EJA era entendida no MST como processo de
alfabetização; hoje percebida em sua totalidade. Começa com a
alfabetização, mas o objetivo é a continuidade, que chamamos de
escolarização. Esse avanço levou o Movimento a traçar uma nova
etapa e também um grande desafio.
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179
A organização do início da etapa de alfabetização no Movimento
é bem diversificada. Muitas vezes os acampamentos e assentamentos
iniciam o processo de levantamento da realidade ou de formação
das turmas antes mesmo de ter algum recurso para o trabalho. Nessa
fase, a comunidade discute a importância da educação na vida das
pessoas. Quando possível, escolhe quem tem disposição para ser
um educador de EJA e organiza os educandos interessados em
participar da alfabetização.
O resultado desse trabalho de levantamento e organização,
realizado pelos coletivos locais de educação, possibilita ao
Movimento visualizar a demanda e buscar as parcerias necessárias.
Os parceiros têm sido diversos, como governos estaduais,
municipais e, desde 2003, também, o MEC através do Programa Brasil
Alfabetizado, mas a maioria dos convênios é firmada com o Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária – Pronera, que
proporciona o envolvimento do Movimento com as universidades.
Ao mesmo tempo em que essas parcerias enriquecem o processo,
apresentam, também, aspectos negativos: não existe uma perspectiva
clara de continuidade, visto que preestabelecem uma data para início
e término do processo de alfabetização. Essa já é uma característica
que marca o processo histórico da EJA em nosso país e não seria
diferente no Movimento.
O desafio da EJA no MST é avançar na escolarização, já que muitas
pessoas passaram pelo processo de alfabetização e hoje têm vontade
e condições de continuar. Os programas proporcionam a
alfabetização, mas não atendem a essa demanda, e a maioria dos
estados não oferece alternativas para essa realidade do campo.
A dificuldade começa durante as negociações. Os estados e
municípios oferecem um processo avaliativo que, em primeiro lugar,
não tem a participação dos educadores que acompanharam os alunos
durante todo o processo de alfabetização, causando um sentimento
de desvalorização da realidade em que esses sujeitos estão inseridos
e da caminhada que realizaram até ali; em segundo lugar, os educandos
precisam se deslocar para uma escola da cidade, gerando uma grande
dificuldade estrutural e emocional.
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OS EDUCADORES E EDUCADORAS
A EJA é uma grande possibilidade de crescimento dos sujeitos e
uma descoberta em meio a grandes desafios. Não só para quem não
sabe codificar e decodificar as letras, mas sobretudo para aqueles
que se percebem socializando o que sabem com os outros sujeitos
de convívio e companheiros de luta. Eles se descobrem educadores
e educadoras que, mesmo com limites, encontram as possibilidades
para desenvolver um processo educacional em que todos constroem
esse novo momento em sua vida.
Os nossos educadores são sem terra, moradores de assentamentos
e acampamentos que partilham dos ideais de construção de uma
sociedade melhor e mais justa. São, portanto, indivíduos inseridos
na mesma luta, buscando com seu trabalho assegurar os direitos que
lhes foram sendo negados e agora, com a atuação do movimento
social, têm como ser concretizados.
Evidentemente, de acordo com a região e sua realidade local, nem
sempre há condições de identificar profissionais capacitados.
Buscamos assim, as pessoas mais qualificadas de cada localidade.
Convivendo com a incrível diversidade presente no país e a
vergonhosa diferença socioeconômica existente entre nossos estados,
muitos não completaram o ensino médio; outros, nem o ensino
fundamental, mas realizam seu trabalho com bravura e generosidade,
passando à frente o que conseguiram aprender no decorrer de sua
vida escolar e nos processos de formação interna do Movimento.
É com essa compreensão da realidade de exclusão que nossos
educadores se dispõem a realizar seu trabalho. A vontade política e o
compromisso social acima de qualquer coisa são, portanto, o que
impulsiona a prática do ensino. A força motriz da alfabetização é o
desejo de compartilhar e ajudar o outro. Normalmente, é o primeiro
passo, pois esse sentimento cresce quando os frutos do trabalho são
colhidos. Esse educador começa a se ver como agente transformador
de sua realidade, percebe sua importância para a vida de diversas pessoas
e passa a ser sujeito da concretização de uma luta política mais ampla e
efetiva, vislumbrando inclusive a continuidade de seus estudos.
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181
Entretanto, sabemos que só a boa vontade não é o bastante para
garantir a alfabetização de outras pessoas. Disso advém a necessidade
de capacitação e de acompanhamento freqüente, feito por
coordenadores do setor de educação do Movimento que contribuem
com o planejamento e a avaliação dos trabalhos.
Nesse sentido, a formação dos educadores e educadoras de jovens
e adultos é um grande desafio para o MST em razão da demanda
existente em sua base social, resultado dos anos de trabalho de
conscientização sobre a importância da educação e da alfabetização
para todos e todas.
ALGUNS PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS
Respeitar o jeito de aprender de cada tempo da vida.
Nas turmas de EJA há jovens, jovens adultos, adultos e, em alguns
lugares, idosos. O adulto deve aprender como adulto, por isso temos
de ter cuidado com os materiais didáticos. A questão não é separar,
mas respeitar e valorizar as diferenças.
O importante é que todos se envolvam e se expressem numa
linguagem que lhes seja mais próxima e, ao mesmo tempo, respeitem
as diferenças, interagindo com as diversas linguagens e trajetórias.
Partir da necessidade: a pessoa se interessa em aprender quando necessita.
O processo educativo só é possível quando parte das necessidades
reais. Não de qualquer necessidade, mas das que batem mais forte,
que tocam na sobrevivência das pessoas, ou que se identificam com
as especificidades do movimento de classe.
O ponto de partida é o concreto (a necessidade), o particular, o
próximo, o parcial, que depois se alarga e se articula com outras
necessidades. Vai avançando até chegar ao geral, ao distante e à totalidade,
sem perder as relações que existem entre uma coisa e outra.
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Educar as pessoas para que se apropriem da história e se tornem sujeitos.
É essencial entender o ser humano e o seu desenvolvimento, como
e por que ele se desenvolve de um jeito e não de outro. A história
das pessoas ou da comunidade precisa ser resgatada, relembrada,
compartilhada com os outros, cada pessoa ou cada grupo, para
compreender a sua contribuição dentro do Movimento e, dali, extrair
significados para sua vida.
Relacionar os processos de EJA com o processo de formação da consciência.
A EJA é um trabalho de educação popular, e o educador deve ser
um formador que atue com a comunidade e contribua na formação
de seus educandos. As aulas, além de incentivar a leitura e o debate
sobre temas abordados em jornais, revistas e cadernos de formação,
devem trazer reflexões que ajudem a organização da comunidade.
Conhecer os sujeitos em sua realidade e o contexto social em que
estão inseridos.
Aqui o importante é a valorização dos sujeitos, conhecer de fato
quem são nossos educandos, de onde vêm, quais são seus sonhos.
Valorizar os saberes construídos em sua trajetória de vida.
Reconhecer a importância de refletir sobre o momento que estão
vivenciando e a realidade local na qual estão inseridos.
A arte e a cultura camponesas são aspectos assumidos, pois
significam um retomar das tradições e um retorno às raízes. As
oficinas de arte são fortes aliadas nesse processo de aprendizagem e
o desenvolvimento da leitura, da escrita e do cálculo tende a ser,
cada vez mais, um atrativo para os educandos. Nesse sentido é
importante destacar que as atividades desenvolvidas pelos educadores
de EJA ultrapassam a sala de aula ou o barraco–escola, abrangendo
toda a vivência da comunidade para construir um saber alicerçado
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na sua realidade social. Assim, os mutirões de roça ou de construção,
o trabalho voluntário na organização dos centros de formação, as
mobilizações e as marchas, entre outras, são consideradas atividades
pedagógicas, pois retratam a participação da turma no contexto dos
assentamentos e acampamentos.
De acordo com a realidade de cada local, os educadores se utilizam
de diferentes recursos pedagógicos para suas aulas, como vídeos
educativos, músicas cantadas pela comunidade, poesias, hortas
comunitárias e o processo produtivo, além de diferentes textos,
livros, recortes de jornais, imagens e até bulas de remédios.
Cabe ressaltar que, em virtude de o MST estar organizado em 23
estados, apresenta um resultado surpreendente como reflexo da
diversidade existente em nosso país. Os princípios e concepções são
comuns, mas de acordo com cada realidade, com formas diversas de
organizar e planejar, o resultado é um trabalho muito rico em práticas
pedagógicas.
A demonstração dos símbolos, das ferramentas de trabalho dos
sem terra, como a enxada, a foice e a bandeira se entrelaçaram com
os cadernos de EJA. Assim como se aprende com a leitura de Paulo
Freire, a aula dá espaço à realidade, facilitando o aprendizado. Os
frutos colhidos nos assentamentos e acampamentos vieram
demonstrar que a alfabetização dos sem terra é muito mais do que
decodificar letras e dominar a escrita. Todos esses elementos,
presentes na realidade de cada um e de todos, se complementam e se
transformam em novos temas geradores.
OS PRINCIPAIS OBJETIVOS DO MST COM O TRABALHO DE EJA.
Superar a exclusão por ser analfabeto, tornando os assentamentos
territórios livres do analfabetismo.
Ao longo da história do Brasil e da educação, a condição de
analfabeto tem sido uma das formas de dominação política e
ideológica sobre os oprimidos. Para que eles se libertem, devem
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começar rompendo as correntes da opressão: uma delas é o
analfabetismo. Por isso, para o MST é uma questão de coerência
com seu projeto de sociedade transformar os assentamentos e
acampamentos em territórios livres do analfabetismo.
Lutar por políticas públicas de EJA.
Estar unido a todos aqueles que lutam por políticas públicas para
a EJA no Brasil, desde a alfabetização de jovens e adultos até o ensino
superior.
Superar o analfabetismo como uma forma de criar condições para
enfrentar os desafios políticos e organizativos do MST.
Neste momento histórico, o Movimento enfrenta quatro grandes
desafios: derrotar o modelo neoliberal na agricultura brasileira;
construir um projeto popular para o Brasil; desenvolver ações com
a sociedade para vincular a luta por reforma agrária e por mudanças
sociais a um maior número de pessoas; e formar militantes,
fortalecendo o MST e sua organicidade.
Implementar na EJA a pedagogia do Movimento como uma referência
para o campo.
A pedagogia do Movimento é o jeito como ele se organiza, com
vários espaços de convívio que se tornam educativos, pois são
espaços de participação constante. Todos e todas têm uma tarefa
importante: fazer parte de setores de educação, saúde, cultura,
comunicação, produção e outros. As instâncias de coordenação, bem
como a organização dos grupos de famílias denominados núcleos de
base, são considerados, também, importantes espaços de discussão
e de estudo.
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185
O legado pedagógico, forjado por nossas práticas e pelo estudo
das práticas de outros educadores, não só nos descortina o desafio
de qualificar a forma de implementar a pedagogia do Movimento na
EJA, mas também de constituir elementos que possam contribuir
para a construção de um processo amplo de alfabetização na base
de todos os movimentos sociais do campo.
Fortalecer a organicidade do MST pela EJA e, em especial, pela
alfabetização.
A EJA por meio da alfabetização contribui diretamente na
organicidade dos acampamentos e assentamentos e ajuda no
fortalecimento da organização dos sem terra. A partir do processo
de tomada de consciência das pessoas que dela participam, alimenta
a organização com mais conhecimento, aglutina as pessoas e fortalece
as lutas. A EJA é também trabalho de base, assim como o núcleo de
base é um espaço educativo.
O Brasil tem uma dívida social com a Educação de Jovens e
Adultos, e o MST também quer assumir um compromisso social
com a população analfabeta. O Movimento luta pela implementação
de políticas públicas enquanto fortalece iniciativas concretas de
alfabetização.
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187
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Caderno de Educação, São Paulo: n. 11, 2003.
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Educadores em formação
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PARA PENSAR SOBRE A LINGUAGEM ESCRITA
DO MOVA-SP
Ana Lúcia Silva Souza
Atualmente, pelas ondas da antena parabólica e outros meios,
nos chegam informações de todas as partes do mundo. Em plena
revolução tecno-científica, alteram-se rapidamente as noções de
tempo e de espaço, engendrando símbolos, valores e outras
linguagens para a população mundial. A leitura dessa realidade
institui e aciona diversos signos lingüísticos que fazem coexistir o
lápis, o papel, elétrons, bytes e computadores, produzindo novas
exigências para quem pretende, em todos os aspectos, continuar a
participar e atuar cultural e economicamente. Contudo é possível
afirmar que a palavra escrita continua ocupando posição destacada,
constituindo-se como um dos elementos fundamentais para a
compreensão da nova ordem que se instaura.
Socioistoricamente, o surgimento e o desenvolvimento da escrita
associa-se ao saber e ao poder, dotando de prestígios e autoridade quem
dela usufrui. Ainda hoje, dominar essa competência cultural representa
Antes mundo era pequeno
porque terra era grande
hoje mundo é muito grande
porque terra é pequena
do tamanho da antena parabolicamará
é, volta ao mundo, camará
e, mundo dá volta camará
Gilberto Gil. Parabolicamará
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uma importante possibilidade de interagir e marcar presença no
intrincado jogo das relações sociais que se estabelece. Necessidade
também explicitada neste final de século, assinalado pela versatilidade
das transformações dos meios de comunicação. Para o Brasil, uma
das questões do momento diz respeito às dificuldades de acesso e uso
de toda a complexa rede informativa por parte de um significativo
número de pessoas. Principalmente as analfabetas ou aquelas que mal
dominam a escrita e leitura de textos considerados simples. Para estas,
a distância que permite alcançar as transformações aumenta quase na
mesma proporção e velocidade em que se faz, conturbando ainda mais
um território onde está inscrita uma série de problemas políticos e
sociais, entre os quais os altos índices de analfabetismo. O panorama
alinhavado acirra o desafio que compõe, de maneira diferenciada, a
experiência vivida de cada indivíduo: saber e poder explorar, também
através da linguagem escrita, o complexo mundo que o circunda.
É dessa perspectiva que, neste texto, se objetiva discutir sobre a
relação de um grupo de alfabetizadores do Movimento de
Alfabetização de Jovens e Adultos – Mova-SP com a linguagem escrita,
principalmente a produção de seus próprios textos. Por um lado,
enfatizo a necessidade de conferir ao alfabetizador de adultos também
a dimensão de alfabetizando e, por outro, chamo a atenção para que
na elaboração das propostas de formação sejam repensados o papel
e o lugar da linguagem escrita em nossa sociedade.
O interesse pela temática deve-se ao fato de que há vários anos
desenvolvo atividades de leitura e de escrita para agentes sociais,
professores e alfabetizadores. De 1989 a 1995, atuei como uma das
coordenadoras de uma equipe de comunicação escrita. Nessa
condição, desenvolvi várias atividades de leitura e produção de textos
para grupos de alfabetizadores atuantes no Mova-SP, em várias
regiões do município de São Paulo.
1
1
Parte da experiência é registrada em minha dissertação: SOUZA, A. L. S. Escrita e ação
educativa : visão de um grupo de alfabetizadores do Mova-SP. 1996. Dissertação (Mestrado
em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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193
Ao recuperar as condições de produção e análise de textos escritos
por um dos grupos de alfabetizadores atuantes na zona sul da cidade
de São Paulo, procuro apreender os sentidos da escrita e de ação
educativa, buscando desvendar algumas das tensões existentes entre
o saber socialmente legitimado, representado pela escrita, e o saber
popular, pela linguagem oral.
UM POUCO SOBRE O MOVA-SP
Para contextualizar é necessário discorrer brevemente sobre o
Mova-SP. O programa nasceu no município de São Paulo sob
administração do Partido dos Trabalhadores, de 1989 a 1992, e
desenvolveu-se por meio de convênio estabelecido entre a Secretaria
Municipal de Educação e grupos dos movimentos populares da
cidade. É importante ressaltar que a proposta, concretizada nessa
gestão, já vinha sendo discutida por educadores populares,
principalmente os atuantes nas regiões leste e sul de São Paulo, que
já apresentavam experiência e vínculos com projetos dessa natureza.
Equivalente às quatro séries iniciais, o programa foi criado de forma
a articular a prática pedagógica com a prática política mais explícita
dos grupos participantes, apoiando projetos de alfabetização
existentes e incentivando o surgimento de outros. Pretendia-se com
isso o estabelecimento de novas formas de atuação para
alfabetizadores e alfabetizandos e a organização dos moradores nos
bairros.
Se inegavelmente a alfabetização de adultos é parte da história da
educação popular, o Mova-SP, como herdeiro desses
empreendimentos, configurou-se como uma proposta singular
trazendo uma política de gestão em parceria onde os alfabetizadores
eram também co-gestores, participando e deliberando, juntamente
com representantes do poder público, sobre questões burocráticas
e pedagógicas.
Livro Construção__Volume 3__Final.p65 29/11/2005, 14:57193
194
Outra singularidade, a que mais interessa para a discussão aqui
proposta, apareceu quando o Mova-SP buscou integrar as referências
teórico-metodológicas do construtivismo e da sociolingüística à
experiência acumulada pelos alfabetizadores. Acompanhando sua
implantação e desenvolvimento, foi possível perceber que a
orientação, a princípio recebida com um misto de curiosidade e
entusiasmo, foi também razão de tensões e resistências, visto que a
maioria dos atuantes identificava-se, até então, com o paradigma
freireano de educação popular. Com as novas diretrizes, entre outros
aspectos, tratava-se de manter a dimensão política concedida à
alfabetização, abandonar práticas como o “confortável” e tradicional
uso de cartilhas escolares e levar para a sala de aula um discurso e
prática reformulados que privilegiassem a manipulação intensa de
escrita e leitura de textos significativos.
FORMAÇÃO DE ALFABETIZADORES, A PEDRA DE TOQUE
Considerando-se a sofisticação da proposta político-pedagógica
apresentada pelo Mova-SP e a heterogeneidade do conjunto de
alfabetizadores
2
, a formação destes tornou-se pedra de toque. Foi
exigido dos gestores forte empenho a fim de subsidiar os participantes
com elementos que permitissem a compreensão e incorporação das
novas concepções às suas práticas pedagógicas. Obviamente a
2
Segundo dados de pesquisa realizada pela Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura
Municipal de São Paulo, a maioria dos alfabetizadores eram mulheres cuja única atividade
remunerada era a participação no programa. Do conjunto 60% nunca haviam desenvolvido
atividades educativas anteriormente. Quanto ao grau de escolarização 11,9% possuíam o
ensino fundamental incompleto, 13,9% o ensino fundamental completo, 12,5% o ensino
médio, sem contudo concluir e 20,3% haviam-no concluído. Do total 22,1% possuíam o curso
de magistério concluído ou não, 3,1% não declararam, e pouco mais de 16% possuíam o nível
superior completo ou incompleto. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DA
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Construindo a avaliação do Mova-SP. São
Paulo: Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de São Paulo , dez. 1992.
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195
absorção das orientações variava de grupo para grupo, sendo que
muitos encontravam sérias dificuldades, principalmente no que se
refere ao trabalho com a linguagem escrita junto aos alunos semi-
alfabetizados.
Sem acompanhar o cotidiano das salas de aula, assessorei vários
grupos de alfabetizadores e assim pude constatar que entre eles as
perguntas recorrentes eram: “Como trabalhar o texto escrito com
meus alunos? Como incentivá-los a ler e escrever?” Interrogações
que escondiam, quase sempre, a própria relação conflituosa dos
alfabetizadores com a linguagem escrita. Para grande parte deles, a
leitura e a elaboração de seus próprios textos constituía uma
dificuldade em si mesma e ensinar ao outro implicava enfrentar
duplamente um universo pouco dominado, causando insegurança.
É justamente esse enfrentamento duplo da questão que geralmente
os programas de formação pouco alcançam. A estrutura básica dos
cursos direciona-se muito mais para o ensino e aprendizado do aluno
e relegam ou deixam para um segundo plano o fazer e o repensar do
alfabetizador como escritor e leitor. Considerar os alfabetizadores
como membros de um determinado grupo social que detém crenças
e valores sobre a escrita, os quais precisam ser reinterpretados, pode
contribuir para que os programas de alfabetização desenvolvidos
sejam mais eficazes.
A BUSCA DO FIO DA MEADA
Dentre outros, um aspecto que sem dúvida merece ser mais
enfatizado nos programas de formação voltados para os
alfabetizadores, corresponde aos diferentes lugares e papéis atribuídos
à linguagem escrita, tanto por quem aprende quanto por quem ensina.
É o que diz a minha experiência com o assunto. Embora em nossa
cultura o saber socialmente legitimado concentre-se muito mais na
linguagem escrita, a oralidade, ainda que nem sempre valorizada, é a
modalidade mais difundida entre as diferentes classes sociais. Inserida
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196
no cotidiano, é a fala o principal transmissor de saber, tornando
legíveis pensamentos e opiniões. Já a modalidade escrita da linguagem,
não necessariamente consumida e produzida na mesma proporção,
funda-se num modo de vida onde nem sempre possui função mais
delineada.
Para a maioria das pessoas, a experiência particular de leitura e
escrita restringe-se à passagem pelo contexto escolar, espaço em que
o uso da língua escrita destina-se ao cumprimento de tarefas não
raramente sem sentido e permeadas por autoritários mecanismos
avaliativos. É também dessa relação, na qual o texto é apenas pretexto
para outras atividades, que emergem representações que caracterizam
a relação com a linguagem escrita como algo difícil e desprazeroso.
Com a análise de depoimentos e textos produzidos nos vários
cursos de leitura e produção de textos por mim coordenados junto
a alfabetizadores participantes do Mova-SP, posso afirmar que para
muitos ler e interpretar textos era considerada atividade cansativa e
difícil. Escrever, ato ainda mais restrito e seletivo, era muitas vezes
entendido como exercício limitado, acessível apenas para os sujeitos
altamente letrados, ou então fruto de dom ou inspiração. Os
depoimentos de duas alfabetizadoras ilustram essa concepção
Me sinto totalmente enrolada. Como um caracol. A gente tem idéia,
mas na hora de colocar no papel é a maior dificuldade. ( R., 33 anos,
ensino fundamental completo)
Quando eu sento pra produzir um texto, eu me sinto como uma espiral
assim... não sei por onde começar, onde é o meio, onde é o fim. Tudo
é muito confuso. As idéias são ótimas, só que na hora de colocar no
papel não consigo transformar em letra, na hora de redigir é difícil.
(A., 31 anos, ensino superior incompleto)
Nota-se nos depoimentos que, para as alfabetizadoras, há ao
mesmo tempo um desejo de escrever e também a desorientação, a
sensação de impotência por não dominar o processo de produção
de um texto. Para elas as idéias pouco se encaixam no papel e o fio
da meada não aparece para transformar as idéias existentes em um
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197
material passível de ser lido e entendido por outros. Para a maioria
dos participantes dos cursos, tal dificuldade de organização não faz
parte da elaboração do discurso oral, como depõe outra
alfabetizadora:
... pra escrever a gente fica tão preocupada que não raciocina direito,
falar é fácil, mas colocar no papel é muito difícil. Nas escolas quase a
gente não fazia isso. Os professores só corrigiam e não falavam o que
estava errado. (N., 43 anos, ensino fundamental incompleto )
“Falar é fácil” porque consiste em um exercício diário e já
conhecido, aprendido no convívio social, principalmente para quem
está acostumado a expor-se em reuniões e sala de aula. Com algumas
variações, os depoimentos indicam que muitos alfabetizadores,
mesmo responsáveis por conduzir o ensino de outros, nem sempre
se viam como sujeitos capazes de produzir sua própria escrita,
experiência ainda escassa e distante. Cabe então uma outra
interrogação: como ensinar o que não se sabe?
Assim, é imprescindível que se criem condições efetivas para que
os alfabetizadores ocupem também o lugar de usuários e produtores
de linguagem. Que se propiciem ocasiões em que, ao discutir sobre
seus saberes e suas carências, experimentar situações conflituosas,
prazerosas ou ainda ambíguas, tenham oportunidade de melhor
desenvolver suas competências. Mesmo considerando as urgências
quanto à implantação, prazos e números a cumprir vivem programas
de alfabetização como o Mova-SP.
Nesse sentido, dois aspectos devem ser enfatizados. Um deles é
que os alfabetizadores atuantes em movimentos sociais tornam-se
praticamente os únicos interventores, num cenário em que a
socialização de saberes, construídos social e historicamente, a
exemplo de outros bens culturais, desconhece a justa e necessária
distribuição. Junta-se a isso o fato de que as políticas públicas
voltadas para o combate ao analfabetismo de adultos estão escassas.
Outro aspecto relevante é que a cada dia torna-se mais urgente o
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“saber ler e escrever”. Não apenas para assinar o nome, mas para
interpretar, sistematizar, recriar e produzir informações e posturas,
imprimindo de alguma maneira diferentes perspectivas e significados
para o “mundo grande” e cada vez mais letrado. Ontem, esse texto
era escolar. Hoje, o texto é a sociedade. Tem a forma urbanística,
industrial, comercial ou televisiva”. (CERTEAU, 1994, p. 261).
Considerando o que diz Michel de Certeau, em A invenção do
cotidiano, que se pense na linguagem que cria e tira vida, na linguagem
percuciente.
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199
BIBLIOGRAFIA
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 1994.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DA
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Construindo a
avaliação do Mova-SP. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação da
Prefeitura Municipal de São Paulo, dez. 1992.
SOUZA, A. L. S. Escrita e ação educativa : visão de um grupo de
alfabetizadores do Mova-SP. 1996. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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201
FORMAÇÃO DE EDUCADORES: APRENDENDO
COM A EXPERIÊNCIA
Cláudia Lemos Vóvio
Maurilene de Souza Bicas
Este relato enfoca o processo de formação de educadores,
desenvolvido nos últimos três anos pela equipe do programa
Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa,
1
junto a educadores
e coordenadores em educação de jovens e adultos, em quatro projetos
comunitários, na região Metropolitana de São Paulo: os Conselhos
Comunitários de Educação, Cultura e Ação Social
2
de Cangaíba,
Ferraz de Vasconcelos, Cidade Tiradentes e da Zona Norte da capital.
Ao narrar a experiência, buscar-se-á destacar as lições acumuladas
no processo, especialmente as aprendizagens que puderam ser
vivenciadas pela equipe formadora.
1
Ação Educativa Assessoria, pesquisa e informação é uma organização não-
governamental, com sede em São Paulo, que realiza atividades de assessoria, pesquisa,
informação e formação e produz matérias e subsídios a educadores, jovens e outros
agentes sociais.
2
No Estado, existem 22 conselhos Comunitários organizados, atendendo a cerca de
28.500 educandos, em um projeto educativo organizado e desenvolvido pelo Instituto
Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), com recursos do FNDE e da
Secretária Estadual de Educação Básica de jovens e adultos na periferia da cidade de
São Paulo e no município Ferraz de Vasconcelos (correspondendo ao primeiro ciclo do
ensino fundamental).
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202
O cenário onde as ações de formação se desenvolvem reflete o
quadro da educação de jovens e adultos observado em várias partes
do país: a maior parte dos projetos assessorados funciona em condições
adversas, com carência de fontes regulares e suficientes de
financiamento, de formação inicial específica para os educadores e de
materiais que apóiem seu desenvolvimento, entre outros.
As ações de formação continuada de educadores procuram cingir-
se à específica da EJA, como modalidade educativa, e às necessidades
de aprendizagem do público jovem e adulto que a demanda. Além do
tratamento da EJA como uma modalidade educativa com
características próprias, sempre se tem em mente o pressuposto de
que o educador deve constituir-se num profissional capaz de produzir
conhecimentos por meio da reflexão sobre seu fazer docente, de
transformar sua prática e de gerir seu próprio processo de
desenvolvimento e aprendizagem. Assim, espera-se que os educadores
ampliem recursos e realizem aprendizagens que se prestem à atribuição
de sentido próprio à experiência educativa que empreendem, à
investigação sobre as situações de ensino aprendizagem que oferecem
e ao diálogo com seus pares e com sua própria prática.
A FORMAÇÃO EM SERVIÇO DAS EDUCADORAS E
COORDENADORAS PEDAGÓGICAS
Com esses pressupostos em mente, os encontros com as educadoras
e coordenadoras (normalmente mensais e com três horas de duração)
foram concebidos como espaços privilegiados para a reflexão sobre o
fazer docente, para o estudo de temáticas relevantes de EJA, para a
troca de experiências, planejamento e avaliação de aulas, para a busca
de alternativas para solucionar as questões advindas da prática
cotidiana, entre outros aspectos.
Constitui-se numa equipe de sete formadoras, com experiência em
processos formativos e conhecimentos sobre o ensino e sobre as áreas
curriculares de educação fundamental em programas de EJA, a qual se
encontra mensalmente para supervisão e planejamento das suas atividades.
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203
AS CLASSES E AS EDUCADORAS
As turmas de EJA funcionam sempre em locais cedidos pela
comunidade local. Há turmas no período noturno e diurno, com
aproximadamente 25 educandos em cada uma e cerca de três horas
diárias de aula. O público é de jovens e adultos pertencentes às
classes populares. Muitos estão desempregados e, entre os
empregados, cerca de um terço recebe até dois salários mínimos.
Os recursos materiais para o trabalho em sala de aula são
escassos. Conta-se com uma pequena verba para compra de
materiais escolares; raras vezes dispõe-se de acervos próprios ou
bibliotecas que atendam às educadoras e seus alunos. Também não
estão disponíveis equipamentos para reprodução de materiais
didáticos. Restam o quadro de giz, as folhas para cartazes e a
necessária disposição e criatividade para atuar em tais condições.
A maior parte das educadoras tem o ensino médio, às vezes
incompleto. Poucas têm habilitação específica para o magistério;
muitas exercem outras atividades comunitárias. Para muitas, o
trabalho como educadoras de jovens e adultos é a primeira
experiência docente. As coordenadoras pedagógicas, responsáveis
pelo apoio às educadoras e pelo monitoramento das atividades, têm
instrução superior; algumas já trabalham com a EJA ou no ensino
regular.
As condições para o exercício de suas funções são precárias.
Trabalhando em caráter voluntário, recebem uma ajuda de custo
mensal que, embora reduzida,
3
para uma parcela significativa é a
única renda pessoal, apontada por muitas como fundamental para
o orçamento familiar.
Outro agravante é a breve permanência de muitas educadoras.
Muitas deixam de atuar nos projetos, em busca de melhores
condições de trabalho, o que dificulta uma ação continuada e
sistemática no seu processo de formação.
3
Em 2001, as educadoras recebiam 135 reais, e as coordenadoras 235.
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204
Dois aspectos do funcionamento do projeto concorrem
diretamente para apoiar o trabalho docente: as reuniões pedagógicas
semanais, nas quais coordenadoras e educadoras reúnem-se para
planejar, trocar experiências e buscar soluções para os desafios com
os quais se defrontam, e a oferta de um conjunto de subsídios para
apoiar o fazer docente, contendo desde referenciais curriculares a
coletâneas de texto e materiais didáticos
4
.
O INÍCIO DA FORMAÇÃO: UM DESCOMPASSO ENTRE
INTENÇÕES E DESEJOS
De início percebeu-se que as educadoras e coordenadoras
envolvidas neste projeto eram sensíveis às especificidades da EJA e
disponíveis para discutirem o fazer docente. Suas experiências como
alunas constituíam a principal fonte para a organização de planos de
ensino, mesmo quando revelavam histórias desastrosas e frustrações
no processo de aprendizagem. Outra referência eram os materiais
didáticos do ensino regular ou as fichas obtidas com professoras do
ensino regular.
Considerando que jovens e adultos têm as necessidades de
aprendizagem diferenciadas e que é preciso considerá-las na seleção
de conteúdos e opções didáticas, os encontros de formação
começaram por abordar as áreas curriculares e as orientações didáticas
para planejar o processo de aprendizagem de jovens e adultos. Os
encontros tinham um caráter de estudo, sendo de certo modo
prescritivos, pois a ênfase residia na forma como as educadoras
deveriam desenvolver o processo de ensino adequado aos educandos.
4
Tanto educadoras como coordenadoras receberam os seguintes materiais para estudo e
consulta: RIBEIRO, V. Educação de jovens e adultos: proposta curricular para o primeiro
segmento do ensino fundamental. São Paulo: Ação Educativa, MEC, 1997. VÓVIO, C.
Viver e aprender: livros 1, 2, 3 e 4. Brasília: Ação Educativa, MEC, 2001. BARRETO,
V. Historiando, confabulando e poetizando. São Paulo: Vereda, MEB, 1994.
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205
Logo se percebeu um descompasso entre as intenções das
formadoras, as atividades desenvolvidas no projeto e os desejos das
educadoras e coordenadoras. As formadoras consideravam
fundamental o domínio sobre os conteúdos e conhecimentos que
deveriam ser abarcados no programa. As educadoras e coordenadoras
esperavam modelos de atividades, instrumentos que lhes oferecessem
pistas de como fazer em sala de aula. As perguntas das educadoras
consistiam em como se faz isso numa aula com jovens e adultos, e a
resposta das formadoras era o que é preciso saber para ensinar. As
formadoras apresentavam e propunham-se a discutir o quê, e por
que ensinar, e as educadoras esperavam descobrir como ensinar.
O diagnóstico desse descompasso fez o projeto tomar uma nova
rota, pautando-se pelo princípio de que qualquer ação de formação
destinada às educadoras deveria propiciar a mesma educação que se
quer para os alunos. O processo de formação ganhou contornos
mais precisos e passou a ser entendido como uma situação de
aprendizagem, cujo motor é a reflexão sobre a própria ação e a busca
de conhecimentos e informação para descrever, tomar consciência e
justificar as estratégias de sucesso que se empreendem. Além disso,
deve servir à superação dos problemas enfrentados no fazer
pedagógico.
REORIENTANDO A FORMAÇÃO: A ARTICULAÇÃO ENTRE AS
NECESSIDADES DE FORMAÇÃO E OS PRODUTOS POSSÍVEIS
A transformação da prática pedagógica tornou-se possível a partir
do momento em que as coordenadoras passaram a exercer, de
maneira sistemática e contínua, seu papel – o acompanhamento
pedagógico junto às educadoras – e tomaram como tarefa a
elaboração de um projeto pedagógico de maneira coletiva. Outro
elemento que colaborou foi a mudança no foco de atuação das
formadoras junto às educadoras: o ponto de partida para o
planejamento de suas ações passou a ser os conhecimentos prévios
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206
e as disposições para aprender dessas educadoras. Além disso, foram
traçadas metas a serem atingidas no projeto de formação, a cada ano.
No segundo ano, decidiu-se investir na sistematização da proposta
pedagógica de cada Conselho. Partiu-se de um roteiro elaborado
coletivamente para sistematizar a função social e educativa, o
histórico e a realidade local, os objetivos gerais da EJA, a
caracterização de espaços físicos da equipe e dos educandos que
atendem. Delineou-se o tipo de educação que se quer oferecer,
abarcando desde a estrutura e o funcionamento do programa até as
áreas curriculares, o planejamento, os instrumentos e as estratégias
para o monitoramento e apoio das educadoras.
Ao final do período, concluiu-se a primeira versão desses
documentos, o que possibilitou uma rica troca de especificidades do
processo de aprendizagem da EJA. O estudo das áreas curriculares
passou a ter um significado compartilhado: tornou-se necessário em
razão da proposta pedagógica estabelecida.
No terceiro ano (2001), deu-se continuidade à elaboração coletiva
da proposta. O processo de sistematização, mais uma vez, impactou
o conteúdo e as estratégias de formação selecionadas. Nos encontros
de formação, o planejamento didático foi o mote das atividades.
Foram propostas oficinas que abordaram a função e os componentes
de um planejamento bem como a organização do ensino por eixos
temáticos e a definição de objetivos de aprendizagem esperados. Ao
final de cada oficina, todas tinham tarefas nas quais aplicavam os
conhecimentos e informações abordados, tendo em vista fomentar
a reflexão sobre a prática educativa com jovens e adultos.
Para as coordenadoras, os encontros pautaram-se pela reflexão
e análise das tarefas definidas nas oficinas. Para subsidiar esse
trabalho, elaborou-se coletivamente um instrumento para orientar
o olhar das coordenadoras sobre a produção das educadoras. A
análise inicia-se com a observação dos pontos positivos e das
estratégias de sucesso desenvolvidas. A seguir, voltava-se para a
utilização dos subsídios oferecidos nas oficinas e a forma como
esses conhecimentos, informações e procedimentos compartilhados
Livro Construção__Volume 3__Final.p65 29/11/2005, 14:57206
207
eram apropriados pelas educadoras em suas produções. Por fim,
eram definidos os pontos que mereciam ser re-estudados e
retomados pelas educadoras nas reuniões pedagógicas, para o
aprimoramento de sua atuação.
A partir dessa reorientação, as reuniões pedagógicas e os encontros
de formação passaram a ser planejados com base nas necessidades
das educadoras e a contemplar momentos de estudo e debate.
Demandaram a organização de dinâmicas, a elaboração e seleção de
materiais de apoio à ação das educadoras. Novas estratégias foram
traçadas para a formação, que coordenadoras e formadoras passaram
a compartilhar. As reuniões e encontros tornaram-se instâncias para
descrever e justificar o fazer docente. O motivo e o conteúdo desses
momentos foram as produções das educadoras, suas dúvidas e os
desafios enfrentados por elas no delineamento do plano de aula e
nos resultados obtidos junto às suas turmas.
O QUE APRENDEMOS COM A EXPERIÊNCIA
Essa experiência de formação trouxe de volta para a equipe
formadora questões que já vêm sendo inquiridas à formação docente
há algum tempo. Com que tipo de educador os Programas de EJA
devem contar? Como formá-los durante o exercício de sua prática
pedagógica?
Na busca de respostas para algumas dessas questões, firmou-se a
noção de que o processo de formação de educadoras deve propiciar
a mesma educação que se quer para os alunos. Sistematizou-se, a
partir dessa experiência, três orientações básicas, que devem
fundamentar tal processo:
1. O ponto de partida para a formação é o conhecimento das
educadoras e suas necessidades de formação.
2. A estratégia para as práticas que empreendem.
3. É necessário planejar produtos a serem sistematizados
coletivamente.
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208
CONHECER O EDUCADOR: PONTO DE PARTIDA
PARA A FORMAÇÃO
O processo de formação é entendido como processo de
aprendizagem. Se acreditarmos que a promoção de uma aprendizagem
significativa deve se pautar pelo conhecimento da realidade dos
educandos (suas condições de vida, de trabalho, sua experiência escolar
anterior, sua bagagem cultural e seus conhecimentos prévios, entre
ouros aspectos), o mesmo deve nortear a formação das educadoras. É
preciso conhecer as concepções educativas que carregam e as
representações que têm de aluno, de aprendizagem e de ensino.
Tais informações normalmente são coletadas pelas formadoras
por meio de dinâmicas de grupo, entrevistas e questionários. Mas
isso não basta. A cada reflexão ou nova aprendizagem que se deseja
promover, organizam-se situações-problema nas quais as educadoras
expõem e refletem sobre suas concepções, representações e ações
pedagógicas e, além disso, avaliam a necessidade de buscar novas
informações e conhecimentos.
A AÇÃO REFLEXIVA: ESTRATÉGIA PARA O EDUCADOR APRENDER
A ação reflexiva envolve a investigação das situações de ensino que
se oferecem. Requer método, disciplina, uma busca que se fundamente
em saberes e na interação entre pares e grupos. Essa tem sido a
inspiração para desenvolver ações de formação em serviço, tanto nos
encontros mensais com as formadoras quanto nas reuniões pedagógicas
organizadas pelas coordenadoras com o apoio das formadoras.
Nesses encontros, as educadoras falam sobre os alunos, seus
interesses, a prática de sala de aula, o planejamento, a avaliação, suas
dúvidas e até sobre sua vida. É o momento em que explicam as razões
para o modo como realizaram atividades, analisam os resultados obtidos,
mostram a produção dos alunos, refletem sobre as experiências,
planejam novas atividades e estudam temas de que necessitam para inovar
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209
e transformar sua ação. O processo poderia ser descrito em quatro
momentos: descrição, interlocução, confronto e reconstrução.
Descrição (relato) da experiência
O que faço? Quais são as minhas praticas? – É a partir dos relatos das
educadoras sobre como organizaram o ensino, de quais estratégias
lançaram mão e os resultados que obtiveram, que as formadoras,
educadoras e coordenadoras estabelecem o diálogo. É o momento
em que podem perceber as regularidades como organizam suas
práticas e as contradições entre o que foi planejado e desencadeado
na sala de aula.
Interlocução
Quais os significados do que faço? O que minha prática expressa? – A
intervenção das formadoras é fundamental neste momento e deve
revelar as teorias e concepções que se expressam na prática
pedagógica. Aqui, necessariamente, a educadora precisa de um
interlocutor com quem possa discutir e debater as razões que a levam
a agir desse ou daquele modo. Isso tem ensinado as educadoras a
encontrarem justificativas para o que fazem. É um momento de
articulações das práticas que desenvolvem com as teorias e
concepções que as informam.
Confrontação
Quais os limites e avanços nas concepções que assumo e nas práticas que
empreendo? – É neste momento que a formadora e seus pares podem
questionar, indagar e problematizar os aspectos das atividades que
se mostram contraditórios aos objetivos e às opções metodológicas
Livro Construção__Volume 3__Final.p65 29/11/2005, 14:57209
210
descritas pela educadora. A problematização deve levar à confirmação
ou à busca de novos conhecimentos e informações, que colaborem
para a reconstrução de prática da educadora. Essa estratégia motiva
e proporciona o estudo, a leitura e os debates no grupo de educadoras.
Reconstrução
É preciso mudar? Em que poderia aprimorar minha prática? – A partir de
estudos, leituras, seminários e debates, chega-se ao momento de
reorientar o fazer pedagógico. As perguntas feitas anteriormente
devem ser respondidas com base nas conclusões a que se chegaram
coletivamente. Nesse momento, elaboram-se modos de atuar,
firmam-se acordos, definem-se metas que devem ser coletivamente
observadas e avaliadas.
A SISTEMATIZAÇÃO E O REGISTRO
Ao questionar sua prática, baseando-se nos próprios
conhecimentos e na experiência pessoal, as educadoras fogem das
receitas prontas. Educadoras e formadoras constroem conhecimentos
pedagógicos, tomam decisões sobre como agir diante dos alunos e
junto a seus pares, avaliam suas necessidades de aprendizagem,
estabelecem parcerias com outros colegas e pesquisam aquilo que
precisam conhecer. O registro escrito tem como função demarcar o
percurso de aprendizagem do grupo, os acordos firmados, as
orientações e princípios pedagógicos assumidos coletivamente.
Como em todo processo de aprendizagem, tanto formadoras
como educadoras apresentam ritmos e necessidades de aprendizagem
diversos. Há uma constante busca de alternativas para solucionar
os desafios que elas encontram no processo de formação de um
profissional capaz de produzir conhecimentos, de analisar e avaliar
suas práticas e ações. Essa é a principal lição que temos aprendido.
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211
BIBLIOGRAFIA
ALARCÃO, I. (Org). Formação reflexiva de professores: estratégias de
supervisão. Porto: Porto Editora, 1996.
BARRETO, V. Historiando, confabulando e poetizando. São Paulo:
Vereda, MEB, 1994.
CONTERAS, J. Condiciones y contrariedades del professional
reflexivo al intelectual critico. In: CONTERAS, J. La autonomia del
professorado. Madrid: Morata, 1997.
PIMENTA, S. G. Formação e docente: identidade e saberes da
docência. In: PIMENTA, S. G. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade
docente. São Paulo: Cortez, 1999.
RIBEIRO, V. M. M.o. Alfabetismo e atitudes: pesquisa com jovens e
adultos. Campinas: Papirus; São Paulo: Ação Educativa, 1999.
_____. (Coord.) Educação de jovens e adultos: proposta curricular para o
primeiro segmento do ensino fundamental. São Paulo: Ação Educativa; MEC,
1997.
VÓVIO. C. L. (Coord.). Viver e aprender: livros 1, 2, 3 e 4. São Paulo:
Ação Educativa; Brasília: MEC, 2001.
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AVALIAÇÃO EMANCIPATÓRIA NO SEJA:
NO TEMPO DO FAZER E DO APRENDER
Anézia Viero
Cléa Penteado
Sandra Rangel Garcia
Nós, o Seja
1
, buscamos em nossa história construir um processo
pedagógico que contemple o campo da educação de jovens e adultos,
tendo como filosofia o diálogo. Por meio desse exercício
democrático, construímos um modo de avaliar que nos exige uma
vigilância epistemológica e política constante. Essa vigilância é que
possibilita o distanciamento necessário para olhar criticamente o
cotidiano de trabalho nas suas diversas instâncias: na equipe de
coordenação e assessoria, sobre a política de educação de jovens e
adultos no ensino fundamental, na escola, com seu projeto político-
pedagógico concretizado no currículo por Totalidades de
Conhecimento
2
, e na prática cotidiana do educador, no que tange à
sua formação e em sua relação com o educando.
Nosso modo de avaliar busca explicitar os limites, a fim de
viabilizar soluções criadoras para os problemas identificados, ao
mesmo tempo em que busca conhecer e compreender o processo e
imprime um movimento permanente em nosso currículo,
1
Seja - Serviço de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria Municipal de Educação de
Porto Alegre,RS.
2
Sobre o currículo sobre Totalidades de Conhecimento, consultar (BORGES, 1996).
Livro Construção__Volume 3__Final.p65 29/11/2005, 14:57213
214
possibilitando avanços que tensionam para a transformação dos
tempos e dos espaços da escola existente. É uma prática de avaliar
que tem como referência uma concepção de conhecimento que está
em permanente movimento e que desafia para a superação de uma
visão linear, cumulativa e classificatória do processo pedagógico e,
portanto, de avaliação.
Esse ponto de vista exige uma avaliação que dialogue com o que
os alunos trazem, ou seja, com os conhecimentos que eles constroem
em sua experiência de vida e de trabalho, acolhendo-os como sujeitos
que criam cultura ao organizar o mundo segundo suas necessidades.
Nesse contexto, a avaliação emancipatória
3
no Seja fundamenta-se
na história dos sujeitos que ensinam e aprendem e que aprendem
ensinando. Por isso, acompanha o processo educativo que acontece
nas experiências significativas dos educadores e dos educandos, em
que ambos aprendem por meio da reflexão sobre o seu fazer. Ao
mesmo tempo em que avançam no seu processo, educadores e
educandos contribuem para o avanço do projeto político-pedagógico
no qual se encontram envolvidos. Logo, a intervenção pedagógica é
organizada a partir dos desafios que o processo avaliativo estabelece,
e a partir do sujeito da aprendizagem. Nesse enfoque, as práticas
classificatórias perdem o sentido, já que a avaliação propõe qualificar
os processos de conhecimento, garantindo que educandos e
educadores avaliem tanto as suas práticas pedagógicas como o seu
processo de aprendizagem.
Uma avaliação dessa natureza enfatiza a importância do registro,
pois este permite um distanciamento para a reflexão e os
questionamentos que desencadeiam processos políticos e
pedagógicos mais qualificados. Para registrar é necessário contemplar
a realidade do sujeito na sua relação com o outro e com o mundo,
compreendendo que, historicamente, predomina a oralidade na
cultura dos educandos jovens e adultos que buscam a escolarização
3
Sobre o conceito de Avaliação Emancipatória, ver (SAUL, 1999).
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215
básica. Além disso, é necessário dialogar com as diferentes narrativas
de vida apresentadas na prática educativa, o que é uma forma de
sistematizar os conhecimentos construídos e enxergar os caminhos
não conhecidos que permitem identificar uma pluralidade de
significados, instigando a invenção e a criação que não são
contempladas nos modelos socialmente legitimados.
O movimento permanente que caracteriza as turmas de jovens e
adultos torna o espaço de sala de aula necessariamente dinâmico e
vivo, no qual a avaliação é o suporte para entender as diferentes
caminhadas e apontar as possibilidades nos diferentes momentos
desse processo. Nesse sentido, os erros são compreendidos como
possibilidades de expressão em um dado momento, sendo, portanto,
inerentes à construção do conhecimento. E, sob o ponto de vista de
que o conhecimento é um processo em permanente construção, a
avaliação do educando aponta para a elaboração mais complexa do
seu conhecimento, de forma que este avance para outra Totalidade
de Conhecimento. Assim, considerando a categoria de ingresso
permanente
4
, a avaliação é uma prática que emancipa o sujeito da
aprendizagem, garantindo a todos o avanço a qualquer tempo dentro
do seu processo de aprender, sendo o educando o parâmetro de si
mesmo na relação com o outro e com o mundo.
Esse processo de avanço decorrente do ingresso permanente, que se
soma à realidade dos alunos que se afastam quando a vida os desafia
para o afastamento, retornando quando esses desafios são superados,
traz contribuições para o trabalho pedagógico. Em primeiro lugar, exige
uma dinâmica de sala de aula que acolha os educandos que vão e que
voltam. Em segundo lugar, exige uma problematização do trabalho
escolar deslocado do mundo da vida. Esse movimento exige dos
educadores uma postura de pesquisa para explorar a riqueza que existe
no ingresso de novos educandos. O ingresso deve povoar o mundo da
4
São categorias da proposta do Seja os conceitos de ingresso e avanço permanentes. Para
maiores esclarecimentos, consultar (BORGES, 1996).
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escola com os saberes produzidos no mundo da vida, no qual a escola é
também o lugar de sistematização desses saberes, por meio do
estabelecimento de novas relações que o diálogo com os referenciais
teóricos já sistematizados possibilita. Por conseguinte, ao ampliar as
relações, educadores e educandos criam condições de dizer sua palavra.
Na mesma medida, ao se relacionarem os referenciais teóricos com as
práticas, aqueles se transformam simultaneamente, imprimindo novos
sentidos ao conhecimento teórico e enriquecendo a prática.
A avaliação assim concebida remete necessariamente para a
ressignificação dos tempos presentes nos calendários escolares,
rompendo com as datas pré-fixadas para a verificação da aprendizagem,
já que é uma avaliação contínua e processual, assim como é a
aprendizagem. Portanto, educadores e educandos se educam e se avaliam
permanentemente, e de forma sistemática, e os educandos avançam de
Totalidade a qualquer tempo, opondo-se a avaliações no final de etapas.
Nesse enfoque, avanço e permanência são vistos como processos
compartilhados de responsabilidades entre educadores e educandos e
não como instâncias de poder de um sobre o outro, ou de submissão a
esse poder. São, portanto, dimensões compartilhadas de
responsabilidade em direção a objetivos comuns: o conhecimento e a
autonomia dos sujeitos. Assim, os critérios de avaliação no Seja traduzem
a decisão de todos os envolvidos, efetivada em práticas em que todos
tenham voz, pois temos como compromisso político e pedagógico
contribuir para superar a cultura do silêncio que permanece viva nas relações
entre professor e aluno.
É com essa intenção que buscamos reorganizar os espaços e tempos,
concretizando em ações que favorecem a participação e a formação
permanente dos educandos e educadores, olhando os processos com
lentes que buscam descobrir os diferentes jeitos de aprender. Para isso,
planejamos o trabalho a partir de um distanciamento que possibilite a
crítica e que qualifique o processo, tendo no presente a possibilidade de
outro futuro. Isso nos remete à contradição entre a afirmação e a negação
de nossas convicções de professores, gerando em nós um processo que
desestabiliza e transforma a educação de jovens e adultos, povoada por
gente que vive num tempo histórico e, por isso, inacabado.
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217
BIBLIOGRAFIA
BORGES, L. Em busca da totalidade perdida: totalidade de
conhecimento, um currículo em educação popular. Cadernos Pedagógicos
da SMED. Porto Alegre: n. 8, 1996.
SAUL, A. M. Avaliação emancipatória: desafios à teoria e à prática de
avaliação e reformulação de currículo. São Paulo: Cortez, 1999.
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O currículo e o ambiente escolar
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A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM TEMPOS DE EXCLUSÃO
Miguel Arroyo
A educação de jovens e adultos – EJA tem sua história muito
mais tensa do que a história da educação básica. Nela se cruzaram
e cruzam interesses menos consensuais do que na educação da
infância e da adolescência, sobretudo quando os jovens e adultos
são trabalhadores, pobres, negros, subempregados, oprimidos,
excluídos. O tema nos remete à memória das últimas quatro décadas
e nos chama para o presente: a realidade dos jovens e adultos
excluídos.
Os olhares tão conflitivos sobre a condição social, política,
cultural desses sujeitos têm condicionado as concepções diversas
da educação que lhes é oferecida. Os lugares sociais a eles reservados
– marginais, oprimidos, excluídos, empregáveis, miseráveis... – têm
condicionado o lugar reservado a sua educação no conjunto das
políticas oficiais. A história oficial da EJA se confunde com a
história do lugar social reservado aos setores populares. É uma
modalidade do trato dado pelas elites aos adultos populares.
Entretanto, não podemos esquecer que o lugar social, político,
cultural pretendido pelos excluídos como sujeitos coletivos na
diversidade de seus movimentos sociais e pelo pensamento
pedagógico progressista tem inspirado concepções e práticas de
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222
educação de jovens e adultos extremamente avançadas, criativas e
promissoras nas últimas quatro décadas. Essa história faz parte
também da memória da EJA. É outra história na contramão da
história oficial, com concepções e práticas por vezes paralelas e até
freqüentemente incorporada por administrações públicas voltadas
para os interesses populares.
A educação popular, um dos movimentos mais questionadores
do pensamento pedagógico, nasce e se alimenta de projetos de
educação de jovens e adultos colados a movimentos populares nos
campos e nas cidades, em toda a América Latina. Administrações
públicas estão assumindo essa herança sem descaracterizá-la.
Olhando para a história da EJA, é fácil perceber que essa herança
tem sido mais marcante do que a das políticas oficiais. Pretendo nestas
reflexões, retomar alguns traços dessa herança popular e interrogar
as possibilidades e limites de incorporá-la nas tentativas postas hoje
de inserir EJA no corpo legal ou de tratá-la como modo de ser do
ensino fundamental e do ensino médio.
Minhas análises estão marcadas pela sensação de que não será fácil
preservar esse rico legado popular em qualquer tentativa de inserir a
EJA no corpo legal e tratá-la como um modo de ser do ensino
fundamental e do ensino médio. Ou os ensinos se redefinem
radicalmente ou esse legado perde sua radicalidade.
UM LEGADO A SER REMEMORIZADO E RADICALIZADO
Podemos rememorar alguns traços do legado acumulado nas
últimas décadas para não perdê-lo, antes radicalizá-lo.
Primeiro traço: a atualidade do legado da EJA.
Parto do suposto de que a herança legada pelas experiências de
educação de jovens e adultos inspirada no movimento de educação
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popular não apenas é digna de ser lembrada e incorporada quando
pensamos em políticas e projetos de EJA, mas continua tão atual
quanto nas origens de sua história, nas décadas de cinqüenta e
sessenta, porque a condição social e humana dos jovens e adultos
que inspiraram essas experiências e concepções continua atual.
A educação popular, a EJA e os princípios e as concepções que
as inspiraram na década de sessenta continuam tão atuais em tempos
de exclusão, miséria, desemprego, luta pela terra, pelo teto, pelo
trabalho, pela vida. Tão atuais que não perderam sua radicalidade,
porque a realidade vivida pelos jovens e adultos populares continua
radicalmente excludente.
Segundo traço: olhar primeiro para os educandos, para sua condição
humana – um dos traços mais marcantes dessa herança.
A EJA nomeia os jovens e adultos pela sua realidade social:
oprimidos, pobres, sem terra, sem teto, sem horizonte. Pode ser um
retrocesso encobrir essa realidade brutal sob nomes mais nossos, de
nosso discurso como escolares, como pesquisadores ou formuladores
de políticas: repetentes, defasados, aceleráveis, analfabetos,
candidatos à suplência, discriminados, empregáveis... Esses nomes
escolares deixam de fora dimensões de sua condição humana que
são fundamentais para as experiências de educação.
Podemos mudar os nomes, mas sua condição humana, suas
possibilidades de desenvolvimento humano, entretanto, continuaram
as mesmas ou piores. Não aumentou apenas o número de
analfabetos, mas de excluídos. E não apenas dos jovens e adultos,
mas de infantes e adolescentes também. Seria ingênuo pensá-los
excluídos porque analfabetos. Na década de oitenta já tínhamos
superado essas visões tão ingênuas.
Como nomear os educandos populares em tempos de exclusão?
Esta foi uma questão primeira, o primeiro olhar, o foco central de
qualquer proposta pedagógica de EJA.
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224
Possivelmente aí, comecem a diferenciar-se as concepções e
propostas de EJA: como os vemos, como eles se vêem. Aí podem
começar os limites de propostas que pretendem converter a educação
de jovens e adultos em uma modalidade de educação básica nas etapas
de ensino fundamental e médio. A questão será apenas reconhecer a
especificidade etária nessa modalidade e nessas etapas? Não é essa a
rica herança de quatro décadas da EJA.
A nova LDB fala apropriadamente em educação de jovens e
adultos. Quando se refere à idade da infância, da adolescência e da
juventude não fala em educação da infância e da adolescência, mas
de ensino fundamental. Não fala em educação da juventude, mas de
ensino médio; não usa, lamentavelmente, o conceito educação, mas
ensino; não nomeia os sujeitos educandos, mas a etapa, o nível de
ensino. Entretanto, quando se refere a jovens e adultos, nomeia-os
não como aprendizes de uma etapa de ensino, mas como educandos,
ou seja, como sujeitos sociais e culturais, jovens e adultos. Essas
diferenças sugerem que a EJA é uma modalidade que construiu sua
própria especificidade como educação, com um olhar sobre os
educandos.
A defesa da inclusão da EJA na nova LDB trazia as marcas da
concepção mais radical das experiências de educação popular – não
de ensino escolar. Reinterpretar legalmente a EJA como uma
modalidade das etapas de ensino fundamental e médio é um
lamentável esquecimento dessa radicalidade acumulada. É violentar
a lei.
A trajetória poderia ser inversa, repensar o ensino fundamental
e o ensino médio a partir dessa radicalidade acumulada na EJA.
Nomear os sujeitos de direito, a infância, adolescência e juventude
concretos, com sua história popular e assumir seu direito à educação
básica, à concepção de educação ampla, plural, que sabemos não
cabe no termo restritivo, ensino.
O legado histórico da concepção de formação humana básica
perdido no conceito estreito de ensino foi recuperado pela concepção
de educação presente nas experiências populares de EJA.
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225
A trajetória mais progressista não é institucionalizar a EJA como
modalidade dos ensinos fundamental e médio, mas como modalidade
própria que avançou em concepções de educação e formação
humana que pode ser enriquecedora para a educação da infância e
da adolescência, sobretudo dos setores populares que freqüentam
as escolas públicas. Quanto menos institucionalizada for a EJA nas
modalidades das etapas de ensino, maior poderá ser sua liberdade de
avançar no movimento pedagógico e de contribuir para um diálogo
fecundo com essas modalidades de ensino, até para enriquecê-lo e
impulsioná-lo para se reencontrarem como modalidades de educação
e formação básica. Que falta nos faz recuperar a concepção moderna
de educação como direito humano! A EJA popular traz esse legado.
Terceiro traço: reencontro com as concepções humanistas de educação.
Chegamos a mais um traço das experiências populares de EJA:
ter estado na fronteira do reencontro com as concepções humanistas
de educação. Ter o ser humano e sua humanização como problema
pedagógico. Não reduzir as questões educativas a conteúdos
mínimos, cargas horárias mínimas, níveis, etapas, regimentos, exames,
avanços progressivos, verificação de rendimentos, competências,
prosseguimentos de estudos etc... Institucionalizar a EJA nesses
estreitos horizontes será pagar o preço de secundarizar os avanços
na concepção de educação acumulados nas últimas décadas.
O mérito das experiências de EJA tem sido não confundir os
processos formadores com essas formalidades escolares que parecem
ser o foco inevitável de qualquer tentativa de incorporar o direito à
educação básica no corpo legal e nas modalidades de ensino.
Possivelmente, a história da EJA mostre que os avanços
pedagógicos somente foram possíveis com liberdade para criar.
É curioso constatar que no momento em que a concepção
ampliada de educação e formação básica se traduz em propostas
educativas escolares mais abertas, mais próximas do legado do
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226
movimento de renovação pedagógica do qual a educação popular e
a EJA fazem parte, exatamente neste momento, a própria EJA é
estruturada, é repensada como modalidade de ensino. Que preço
pagará por essa estruturação? Terá de recuar ou abandonar sua
história de reencontro com concepções perenes de formação
humana?
As propostas educativas escolares sabem que para incorporar
concepções ampliadas de educação têm de violentar a estrutura
escolar. Mas a EJA não vem dessa tradição, pois aprendeu a educar
fora das grades. Podemos supor que sucumbirá atrás das grades e
dos regimentos escolares e curriculares se neles for enclausurada.
Dará conta ela de manter a concepção ampliada de educação que
aprendeu em sua tensa história?
A educação popular e a EJA enfatizam uma visão totalizante do
jovem e adulto como ser humano, com direito a se formar como ser
pleno, social, cultural, cognitivo, ético, estético, de memória...
Não seria mais aconselhável para avançarmos na garantia de todos
a essa concepção moderna, universal, incorporar a universalidade
das dimensões formadoras e estimular formas de educar os jovens e
adultos que continuem ou assumam essa concepção ampliada?
Estimular o diálogo com experiências nas escolas e redes de educação
básica que tentam abrir os rígidos sistemas de ensino para incorporar
essa concepção e prática educativa?
Entretanto, esse diálogo fecundo somente será possível se a EJA
não for forçada a se encaixar em modelos e concepções de educação
próprios das clássicas modalidades de ensino.
A história nos mostra que as experiências mais radicais de educação
de jovens e adultos não aconteceram à margem dos sistemas de ensino
pelo anarquismo de grupos de educadores progressistas, mas porque
a concepção de jovem e adulto popular e de seus processos
educativos, culturais, formadores não cabiam nas clássicas
modalidades de ensino. Trata-se de matrizes pedagógicas diferentes
que por décadas se debatem fora e dentro dos sistemas de ensino.
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227
Há uma história pouco contada de propostas educativas que nas
últimas décadas tentam, também, incorporar no ensino fundamental
e médio concepções mais ampliadas de educando e de seu direito à
educação, à cultura, à identidade, à formação plena. As dificuldades
de diálogo e de inserção nas redes de ensino são enormes, ficando
inúmeros projetos na periferia das grades, dos conteúdos mínimos,
das cargas horárias, dos processos escolares de avaliação de
rendimentos... Projetos lindos, progressistas, inspirados em
concepções totalizantes de formação que têm vida curta porque não
cabem na rigidez das etapas de ensino. Por que não questionar essa
rigidez instituída em vez de encaixar nela a EJA?
Olhando a vida curta desses projetos, talvez possamos antever a
vida curta de experiências avançadas de EJA, se incorporadas nas
modalidades de ensino. Podemos esperar que a inclusão da EJA nessas
modalidades possa representar uma implosão do corpo legal tão
zelosamente defendido? Ou ao contrário, podemos prever que os
sistemas de ensino e seu corpo legal serão expertos para detonar a
tempo esses projetos explosivos?
Em nome da igualdade de oportunidades no prosseguimento de
estudos regulares também para os defasados escolares, podemos estar
negando aos jovens e adultos populares espaços educativos e culturais
possíveis para a sua condição de subempregados, pobres, excluídos...
Não é a EJA que ficou à margem ou paralela aos ensinos nos cursos
regulares, é a condição existencial dos jovens e adultos que os condena
a essa marginalidade e exclusão. O mérito dos projetos populares de
EJA tem sido adequar os processos educativos à condição a que são
condenados os jovens e adultos. Não o inverso, que eles se adaptem
às estruturas escolares feitas para a infância e adolescência
desocupada.
Por que não assumir esses projetos, essa experiências e essa
herança acumulada e tirá-la da marginalidade? Reconhecê-la como
válida para o prosseguimento de estudos, inclusive. Por que não
assumi-la como processos legítimos públicos com direito a espaços,
profissionais e recursos públicos? Igualdade é isso.
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Quarto traço: aproximar-se do campo dos direitos.
Aproximamo-nos a um dos traços onde o movimento de
renovação pedagógica mais tem avançado, distanciando-se da lógica
do mercado e superando a estreiteza de concepções impostas na Lei
n° 5.692/71. A nova LDB abre outras perspectivas, incorpora uma
concepção de formação mais alargada, acontecendo na pluralidade
de vivências humanas. Essa visão acompanhou as experiências de
EJA. A defesa dos saberes, conhecimentos e da cultura popular é
sua marca e não apenas para serem aproveitados como material bruto
para os currículos e os saberes escolares refinados.
Há algo de mais profundo nessa percepção e valorização dos saberes
e da cultura popular. Trata-se de incorporar uma das matrizes mais
perenes da formação humana, da construção e apreensão da cultura e
do conhecimento: reconhecer a pluralidade de tempos, espaços e
relações, onde nos constituímos humanos, sociais, cognitivos,
culturais... Reconhecer a cultura como matriz da educação.
A tensão sempre posta entre experiências de educação popular
de jovens e adultos e a escola tem aí um dos desencontros. Enquanto
a escola pensa que fora dela, dos seus currículos e saberes não há
salvação – nem cidadania e conhecimentos, nem civilização e cultura
–, a educação popular já nos alerta que o correto é entender a escola
como um dos espaços e tempos educativos, formadores e culturais.
Tempo imprescindível, porém não único.
Temos de reconhecer que muitas experiências de EJA acumularam
uma herança riquíssima na compreensão dessa pluralidade de
processos, tempos e espaços formadores. Aprenderam metodologias
que dialogam com esses outros tempos. Incorporam nos currículos
dimensões humanas, saberes e conhecimentos que forçaram a
estreiteza e rigidez das grades curriculares escolares.
Tudo isso foi possível porque essas propostas ousadas estavam fora
das grades, sem o fantasma de verificação de aproveitamento de estudos,
da seqüenciação curricular seriada, do cumprimento de cargas horárias
por disciplina, área etc. As lógicas foram outras. Esses avanços seriam
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possíveis por trás das grades? Não foram sequer nas modalidades do
ensino. Como esperar que sejam na modalidade de EJA?
Quinto traço: a educação como direito humano.
Esse traço poderia englobar todos os comentados e outros mais: não
podemos esquecer que as experiências mais radicais de EJA nascem,
alimentam-se e incentivam movimentos sociais ou sujeitos coletivos
constituindo-se como sujeitos de direitos. Nesses movimentos se
descobrem analfabetos, sem escolarização, sem o domínio dos saberes
escolares, sem diploma, porém, não só, nem principalmente. Se
descobrem excluídos da totalidade de direitos que são conquistas da
condição humana. Excluídos dos direitos humanos mais básicos, onde
se jogam as dimensões mais básicas da vida e da sobrevivência.
As lutas das décadas de cinqüenta e sessenta, quando são gestadas
as propostas mais radicais de educação de adultos nos campos e nas
cidades, trazem os direitos para essa base material mais básica da
condição e formação humana.
A EJA tem como sujeitos as camadas rurais, os camponeses
excluídos da terra e as camadas urbanas marginalizadas, excluídas
dos espaços, dos bens das cidades. Essa realidade de opressão e de
exclusão e os saberes e as pedagogias dos oprimidos passaram a ser
os conteúdos, conhecimentos e saberes sociais trabalhados nas
experiências de EJA.
A educação popular e de jovens e adultos reflete os movimentos
populares e culturais da época. A intuição dos educadores
progressistas foi captar nesses movimentos por espaços urbanos,
moradia, escola saúde, terra... o sentido humano, cultural,
pedagógico. A Pedagogia do Oprimido, da Libertação, da
Emancipação, do fazer-se humanos. A sensibilidade foi mais
pedagógica do que escolar. Nesse aspecto, enraíza seu conhecimento
mundial, como um dos movimentos pedagógicos mais radicais dos
últimos cinqüenta anos.
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230
Os saberes e competências escolares não são ignorados. Eles
reencontram outro horizonte quando vinculados aos processos de
humanização, libertação, emancipação humana. Os conteúdos
curriculares não são os mesmos. A alfabetização, por exemplo, adquire
outra qualidade em que a apropriação da leitura se vincula com uma
nova condição humana, com a capacidade de se envolver e participar
em nova práticas políticas, sociais e culturais. Isto é, de se desenvolver
como sujeitos, de se humanizar. Os vínculos entre alfabetização de
adultos e libertação, emancipação, são marcantes nessas experiências
de EJA. Uma vinculação bem mais radical do que com as possibilidades
do prosseguimento de séries, de passar no concurso... Não é por aí
que vem caminhando a produção mais avançada nas áreas do
conhecimento?
O tema de nossa reflexão nos repõe a condição existencial da
maioria dos jovens e adultos que freqüentam os programas de EJA. A
exclusão, uma constante nestas décadas, não foi um traço perdido,
superado. Está aí e com maior brutalidade. Não foi a educação popular
nem de jovens e adultos que inventaram nomes como oprimidos,
excluídos. É só olhar para os corpos do educandos de EJA para ver as
marcas. Diante dessa realidade mais brutal do que nos anos sessenta,
como equacionar o seu direito à formação como humanos ao
conhecimento, à cultura, à emancipação, à dignidade? Sendo fiéis a
essa herança e exigindo seu reconhecimento público. Não redefinindo-
a em velhos moldes escolares que terminarão por aprisioná-la.
Pela herança e o legado acumulado em tantas experiências, os jovens
e adultos e seus mestres merecem mais do que estruturar seu direito à
cultura, ao conhecimento e à formação humana em modalidades ou
moldes de ensino.
As riquíssimas experiências da Educação de Jovens e Adultos que
na atualidade continuam se debatendo com essas inquietações merecem
ser respeitadas, legitimadas e assumidas como formas públicas de
garantir o direito público dos excluídos à educação.
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TENDÊNCIAS RECENTES DOS ESTUDOS E DAS
PRÁTICAS CURRICULARES
Inês Barbosa de Oliveira
O desafio de discutir os estudos e as práticas curriculares, sejam
elas ligadas à educação de jovens e adultos ou ao chamado ensino
fundamental regular é, em primeiro lugar, o de responder à questão
sobre o que estamos entendendo por currículo e de que modo esse
entendimento vai influenciar o cotidiano das classes e escolas nas
quais atuamos.
Podemos dizer que, historicamente, a mais tradicional e utilizada
forma de se entender um currículo é aquela que o percebe como o
conjunto dos conteúdos programáticos estabelecidos para as
disciplinas e séries escolares, idéias já incorporadas ao senso comum
e repetidas como base do trabalho pedagógico em inúmeras
situações. Essa visão, embora presente ainda nos dias de hoje, é
precária do ponto de vista do que chamamos de práticas
curriculares, pois deixa de considerar as práticas concretas daqueles
que transmitem esses conteúdos cotidianamente, bem como o
caráter dinâmico e singular dos currículos efetivamente
desenvolvidos nas escolas e classes do Brasil e vem sendo
questionada por muitos educadores nos últimos anos.
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Na tentativa de ampliar e aproximar-se da realidade, estudos
curriculares mais recentes evidenciam tendências a considerar os
procedimentos metodológicos e avaliativos preconizados nas
propostas curriculares e nos planejamentos específicos também
como currículo, o que corresponderia a levar em consideração os
processos reais de transmissão dos conteúdos e de avaliação da
aprendizagem como elementos dos currículos. Essa concepção de
currículo, dominante nos dias de hoje, tem servido de base para a
formulação de propostas e para a organização do trabalho pedagógico
na maior parte das escolas brasileiras, sejam elas públicas ou privadas.
Porém, também aqui vamos encontrar limites a serem debatidos
e superados a partir de outros estudos sobre currículos, conhecidos
como Estudos Críticos, oriundos do pensamento de pesquisadores
e profissionais da área de vários países e tendências filosóficas,
sociológicas e políticas. A partir desses estudos, tentativas vêm sendo
feitas de se traçar propostas de trabalho que contribuam não só para
pensar o currículo, sobretudo na EJA, mas também para reconhecer
as práticas curriculares como espaço de criação curricular e não
apenas como momentos de aplicação de currículos pré-fabricados.
Superar a concepção formalista de currículo e incorporar elementos
mais dinâmicos do cotidiano das escolas e classes nas quais os
currículos ganham sua real existência é um grande desafio. Superá-
lo depende do reconhecimento da riqueza das práticas cotidianas, da
impossibilidade de trabalharmos do mesmo jeito em classes, escolas,
espaços distintos, nos quais mudam todo o ambiente espacial, além
dos alunos com os quais nos deparamos. Como poderia o currículo
real, a prática cotidiana serem idênticos em situações tão diversas?
Entendo currículo dessa outra forma, podemos considerar as
tendências que observamos nos trabalhos que vêm sendo
desenvolvidos pelos professores que atuam na área como novidades
curriculares produzidas a partir do cotidiano das salas de aula e, com
isso, desenvolver estudos sobre currículo, não apenas a partir dos
elementos teóricos que os fundamentam, mas também a partir das
realidades das práticas curriculares desenvolvidas nas nossas classes.
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Com isso, pode-se chegar ao desenvolvimento de novas idéias a
respeito das formas possíveis e desejáveis que podem assumir
propostas curriculares para a EJA, em diálogo com o que vem sendo
já produzido por aqueles que atuam na área, e que possa contribuir
de modo mais efetivo para os processos de ensino e de aprendizagem
nesse campo. Aprofundando o estudo aqui proposto, observemos o
significado das propostas oficiais para além do discurso que a respeito
delas é feito, questionando-os e buscando politizar o seu significado.
AS PROPOSTAS OFICIAIS: NORMATIZAÇÃO E CONTROLE DA
ATIVIDADE PEDAGÓGICA.
Em primeiro lugar é preciso perceber que aquilo que,
tradicionalmente, é entendido como criação curricular é o processo
oficial de elaboração de um documento formal, a ser posteriormente
implementado nas escolas. A difusão do novo currículo, em geral, se
faz com atividades de sensibilização e capacitação para a utilização do
material. Quase sempre essa atitude propositiva não se refere apenas
ao guia curricular, associando-se com todo o aparato jurídico que o
cerca, agentes normatizadores da atividade pedagógica dos professores.
Esse tipo de prática faz parte do que se reconhece como mecanismos
formais de controle curricular e pedagógico. Entretanto, apesar desse
aparato jurídico, no cotidiano escolar uma série de atividades e
experiências não previstas ou sugeridas pelos guias curriculares são
desenvolvidas por professores e alunos, o que permite afirmar que,
na realidade das salas de aula, as propostas e normas curriculares
oficiais são saudável e inevitavelmente contaminadas pelos professores
e alunos que as vivenciam cotidianamente.
As propostas de conteúdos e ou habilidades a serem
desenvolvidas pelo currículo funcionam como um procedimento
de controle da atividade pedagógica, buscando criar uma quase
identidade entre currículo e listagem de conteúdos e/ou habilidades,
conforme o pensamento dominante ao qual se fazia referência
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anteriormente. Essa quase identidade acaba se tornando presente
na maior parte das discussões sobre currículos, na medida em que
esse pensamento é ainda dominante entre os professores e outros
profissionais que atuam nas escolas e classes. Cada vez que se pensa
em discutir currículo, a primeira idéia que surge é a de que é preciso
definir fundamentalmente que conteúdos ou habilidades precisam
ser trabalhados. Ou seja, o que minimamente precisa ser tratado
pelo currículo para que os alunos possam ser considerados
escolarizados. Essa preocupação é compreensível e válida, pois a
escola sempre se ocupou do processo de transmissão, assimilação
e construção do conhecimento. No entanto, esse conhecimento é
apenas uma das facetas da cultura trazida e tecida no ambiente
escolar, e que, portanto, faz parte dos currículos em ação nas escolas
e classes, sejam eles destinados ao ensino dito regular ou ao trabalho
na EJA. A valorização dessa faceta também é parte dos mecanismos
de controle do currículo, na medida em que valoriza a dimensão
reprodutiva da escola.
Os guias curriculares que organizam as propostas oficiais quanto
a conteúdos de ensino, metodologias a serem adotadas e
procedimentos de avaliação têm funcionado como tecnologias de
organização do trabalho pedagógico. São normalmente estruturados
de modo mais ou menos semelhante: periodização do tempo escolar
em anos ou semestres; organização do conhecimento em disciplinas,
temáticas ou projetos; plano geral no qual estão presentes as
tentativas de integração entre os conteúdos de um mesmo período
ou de períodos subseqüentes. Para cada unidade assim estabelecida,
são, então, determinados os diversos componentes curriculares:
objetos, conteúdos, procedimentos metodológicos e de avaliação.
Historicamente, essas escolhas e prescrições têm sido consideradas
como fruto de decisões técnicas e, por isso, tratadas por especialistas.
No entanto, elas se relacionam a formas de conceber a sociedade, a
escola, o conhecimento; a padrões de comportamento e de
conhecimento considerados desejáveis. Elas são formas culturais de
organização da escolarização, e essas formas configuram o currículo.
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Entender, portanto, o currículo como guia curricular é uma forma
de compreensão que privilegia a dimensão produto do currículo,
deixando de fora todo o processo de produção sóciocultural que se
estabelece no cotidiano das escolas e classes, no qual interagem com
as formas culturais dominantes, permanentemente, outras formas,
as dos sujeitos envolvidos no processo de efetivação das propostas.
Tradicionalmente, têm sido numerosas as tentativas de domesticar
as potencialidades do cotidiano escolar por meio de materiais
curriculares formais, sejam eles os próprios guias, os livros didáticos
ou os materiais audiovisuais pré-produzidos. No entanto, os
procedimentos de domesticação, embora bastante fortes, não são
capazes de eliminar a multiplicidade característica dos ambientes
sociais, entre eles a escola, nos quais são tecidas diferentes
experiências de que participam os sujeitos. Tais experiências formam
redes de conhecimentos que constituem o cotidiano das diversas
instituições, fazendo emergir, em diferentes momentos, uma série
de alternativas de ação.
Encarando a realidade por essa ótica, assume posição de relevo a
prática diária dos sujeitos, pois é ao estarem nela inseridos que esses
sujeitos usam e recriam cotidianamente os conhecimentos que a sua
própria inserção social lhes provê. Ou seja, ao participarem da
experiência curricular cotidiana, ainda que supostamente seguindo
materiais curriculares preestabelecidos, professores(as) e alunos(as)
estão tecendo alternativas praticas com os fios que as suas próprias
atividades cotidianas, dentro e fora da escola, lhes oferecem. As
experiências de vida mais diversas surgem na atividade pedagógica e
interferem no trabalho curricular, trazendo ao cotidiano da escola
uma multiplicidade e uma riqueza cultural e social não controláveis
pelas propostas curriculares.
Sendo assim, poder-se-ia dizer que existem muitos currículos em
ação nas escolas, apesar dos diferentes mecanismos homogeneizadores.
Infelizmente, boa parte das propostas curriculares tem sido incapaz
de incorporar essas experiências, pretendendo pairar acima da atividade
prática diária dos sujeitos que constituem a escola. A cientifização das
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explicações do mundo e dos processos sociais tem permitido a
legitimação dos processos sociais de dominação em nossa sociedade.
Assim, o currículo é definido formalmente, proposto por
especialistas a partir do estudo de modelos idealizados da atividade
pedagógica e dos processos de aprendizagem dos que a ela serão
submetidos, bem como da escolha daquele que melhor se adapte aos
objetivos, também idealizados, da escolarização e avaliado segundo
sua adequação ao modelo proposto. Contrariamente a esse tipo de
entendimento que congela e negligencia toda a riqueza dos processos
reais da vida social e, portanto, escolar, seria necessário desenvolver
novos modos de compreensão revertendo-se a tendência dominante
de entendimento do currículo.
POR UM OUTRO ENTENDIMENTO DOS CURRÍCULOS
Para superar esse entendimento formalista e cientificista do
currículo, é necessário entendê-lo como oriundo de múltiplos e
singulares processos curriculares locais. Uma prática curricular
consistente pode ser encontrada somente no saber dos sujeitos
praticantes do currículo, sendo, portanto, sempre tecida em todos
os momentos e espaços. Nessa perspectiva, emerge uma nova
compreensão de currículo. Não se fala de um produto que pode ser
construído seguindo modelos preestabelecidos, mas de um processo
por meio do qual os praticantes do currículo ressignificam suas
experiências a partir das redes de saberes e fazeres das quais
participam.
É preciso, portanto, repensar algumas das máximas aceitas como
base das propostas curriculares, tais como as formas e critérios de
agrupamento de alunos, bem como as formas tradicionais de
organização dos conteúdos, dos métodos de ensino e dos
procedimentos de avaliação que lhes são subjacentes. Esse aspecto
torna-se particularmente relevante quando se quer refletir sobre a
educação de jovens e adultos, campo da educação formal dos mais
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atingidos pelo formalismo, na medida em que as inadequações
produzem conseqüências geralmente ainda mais danosas que na
escolarização chamada regular.
Em primeiro lugar, por mais que se busque associar os alunos em
níveis, séries ou turmas por características semelhantes, tais
conjuntos sempre serão formados por uma multiplicidade de
sujeitos, em si mesmos múltiplos. Nenhum professor lida em uma
mesma sala de aula – e todos conhecem bem isso por experiência
própria – com um grupo homogêneo de sujeitos, sejam quais forem
os mecanismos de ordenação utilizados. Isso significa que, a despeito
de todo o aparato legal e formal do currículo, o trabalho pedagógico
sempre se realizará tendo por fundamento essa multiplicidade. Um
currículo formal precisa, ao invés de prescrever uma experiência
escolar, dialogar com as redes cotidianas da escola e classes.
A segunda questão relacionada à organização curricular diz
respeito à seleção e organização dos saberes que farão parte do
currículo escolar. Ao longo dos anos, a organização mais tradicional
dos saberes escolares se fez em matérias ou disciplinas. Na verdade,
pode-se dizer que as matérias escolares são grandes classes segundo
as quais se agrupam alguns dos saberes que penetram na escola. Os
critérios de criação dessas classes e de inserção de um determinado
saber nessa ou naquela classe são sempre históricos e se constroem
na redes de relações que se estabelecem entre esses saberes escolares
e os demais saberes sociais, e não nas chamadas disciplinas científicas
como se poderia supor.
Não existem, portanto, critérios que possam ser chamados de
científicos para a seleção e organização dos saberes escolares. Essa
constatação leva a uma série de questionamentos que precisam ser
considerados em qualquer processo de organização curricular e,
particularmente, no desenvolvimento de uma proposta curricular
para a EJA. Questionar o caráter supostamente cientifico da
organização curricular tradicional envolve não apenas integrar
conteúdos de áreas diversas, mas repensar a própria seleção de
conteúdos e a disciplinarização à qual são submetidos os saberes
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que integram essas propostas. Em resumo: essas questões apenas
nos indicam que a seleção de conteúdo e sua inserção em campos
disciplinares específicos da escola nada têm de técnico, fazendo-se
como um processo histórico e conflituoso.
Ao longo da história, formas alternativas de organização curricular
foram desenvolvidas, desde a busca da integração entre as disciplinas
numa perspectiva interdisciplinar, passando pelos currículos
organizados em projetos ou centros de interesse, até o uso da idéia
de que se deve sempre partir daquilo que o aluno já conhece para
chegar aos chamados saberes formais. Mais recentemente, outras
alternativas têm-se pautado no questionamento mais radical da idéia
disciplinar. Uma dessas alternativas apresenta o princípio da
transversalidade no currículo, argumentando que o conhecimento
não se cria nos campos de saber previamente delimitados, mas
segundo a lógica das redes, ou seja, saberes diversos, sob a forma de
informações explícitas ou de observação e vivência práticas se
articulam com outros, dos quais já se dispunha anteriormente,
modificando os sujeitos e as formas de compreensão do mundo que
cada um possui. Dessa forma, a navegação por diversos campos de
sentido passa a ser central no processo de conhecimento do mundo.
Restitui-se, assim, a legitimidade de um conjunto de redes de saberes,
poderes e fazeres presentes no cotidiano, mas normalmente expulsos
do ambiente escolar.
A metáfora da rede aqui utilizada requer alguns esclarecimentos.
A idéia da tessitura do conhecimento em rede busca superar não
só o paradigma da árvore do conhecimento, como também a
própria forma como são entendidos os processos individuais e
coletivos de aprendizagem – cumulativos e adquiridos – segundo o
paradigma dominante. A forma da árvore pressupõe linearidade,
sucessão e seqüenciamento obrigatório, do mais simples ao mais
complexo, dos saberes aos quais se deve ter acesso. Além disso,
pressupõe a ação externa como elemento fundador da construção
de conhecimento. A idéia da tessitura do conhecimento em rede
pressupõe, ao contrário, que as informações às quais são
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submetidos os sujeitos sociais só passam a constituir conhecimento
para eles quando podem se enredar a outros fios já presentes nas
redes de saberes de cada um ganhando, nesse processo, um sentido
próprio, não necessariamente aquele que o transmissor da
informação pressupõe. Isso significa que dizer algo a alguém não
provoca aprendizagem nem conhecimento, a menos que aquilo que
foi dito possa entrar em conexão com os interesses, crenças, valores
ou saberes daquele que escuta. Ou seja, os processos de
aprendizagem vividos, sejam eles formais ou cotidianos, envolvem
a possibilidade de atribuição de significado, por parte daqueles que
aprendem, às informações recebidas do exterior – da escola, da
televisão, dos amigos, da família etc.
Considerando a singularidade das conexões que cada um
estabelece, em função de suas experiências e saberes anteriores, não
faz sentido pressupor um trajeto único e obrigatório para todos os
sujeitos em seus processos de aprendizagem. Esse entendimento traz
novas exigências àqueles que pretendem formular propostas
curriculares que possam romper com o formalismo e incorporar os
saberes, valores, crenças e experiências de todos como fios presentes
nas redes dos grupos sociais, das escolas e classes, dos professores e
dos alunos e, portanto, relevantes para a ação pedagógica.
Os currículos em redes, embora pareçam uma novidade de difícil
elaboração e excessivamente complexa, já estão em andamento hoje.
Deste modo, o movimento necessário não é o de fazer uma proposta
curricular em rede, mas de fazer emergir os muitos currículos já
existentes. Criar alternativas de organização curriculares que, em vez
de buscar silenciar as experiências em curso, ajudem na legitimação
de espaços e tempos variados e múltiplos. Esta parece ser a função
de um currículo oficial: dar sentido às experiências curriculares que
se realizam na escolas e classes – sentido de uma experiência tecida
coletivamente por sujeitos que recriam a sua própria prática na
atividade.
Pensar no desenvolvimento das alternativas de organização
curricular para a EJA envolve, portanto, discussões, efetivamente
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coletivas, a respeito dos mecanismos e práticas curriculares já em
curso nas classes, reorganizando-as de modo mais explícito,
entendendo-as como constituídas não apenas pelas propostas de
conteúdo a ensinar, mas também por todos os demais aspectos da
realidade escolar.
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241
BIBLIOGRAFIA
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OLIVEIRA, I. B. de. Alternativas curriculares e cotidiano escolar.
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SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós –
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O CURRÍCULO DAS ESCOLAS DO MST
Roseli Salete Caldart
A palavra “currículo” não é muito comum nas discussões dos
educadores do MST. Talvez porque seu uso tenha uma origem mais
acadêmica ou oficial, ou talvez pelo antigo costume de associá-la a
procedimentos formais e redutores do processo educativo. Quem
não se lembra das famosas “grades curriculares” com significado
vinculado à falta de liberdade pedagógica e ao desrespeito pelos
educandos e pelos educadores como verdadeiros sujeitos do
processo educativo? E quando se associa currículo apenas com lista
de matérias e de conteúdos de ensino, por que, afinal, sofisticar a
linguagem?
Mais recentemente passamos a usar no MST a expressão
ambiente educativo para indicar nossa preocupação pedagógica
como conjunto da dimensões da formação a ser trabalhado em
nossos educandos sem terra e a forma de organização das relações
sociais, dos tempos, espaços e conteúdos educativos da escola. Por
“Pedimos a vocês (nossos professores) que façam um esforço e se interes-
sem pela nossa luta, nossa história. Estudem mais e se informem mais,
só assim poderão entender, valorizar e até admirar este movimento que
é tão importante para nós”
(Trecho de carta escrita por crianças de um assentamento
do MST para seus professores, durante o 4° Encontro
Estadual dos Sem Terrinha do RS em 12 de outubro 2000)
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ambiente educativo entendemos tudo o que acontece na vida da
escola, dentro e fora dela, com uma determinada intencionalidade
educativa. Não é apenas o dito: é também o visto, o vivido, o
sentido, o participado, o produzido.
Neste relato, aproximo os dois conceitos: ambiente educativo e
currículo. Tento responder a duas questões que me parecem
especialmente importantes nessa reflexão, até porque indicam já
uma determinada concepção de educação, de escola e de currículo:
que dimensões da formação humana são consideradas fundamentais
no trabalho pedagógico desenvolvido pelas escolas do MST? Quais
as práticas do cotidiano escolar ajudam a garantir que essas
dimensões sejam trabalhadas de modo mais adequado?
LIÇÕES DA PEDAGOGIA DO MOVIMENTO
Deste diálogo entre as práticas do Movimento e as reflexões
sobre a formação humana construídas ao longo da história da
humanidade, um primeiro produto diz respeito à própria concepção
de educação. Quando tratamos de prática de humanização dos
trabalhadores do campo como uma obra educativa, estamos na
verdade recuperando um vinculo essencial para o trabalho em
educação: educar é humanizar. Não nascemos humanos, nos
fazemos. Aprendemos a ser... Em todos os tempos e lugares,
lutar pela humanização, fazer-nos humanos é a grande tarefa
da humanidade.
A partir dessa concepção de educação, há lições de pedagogia
que temos conseguido extrair nesse contraponto reflexivo entre o
cotidiano do MST, as diversas teorias e práticas sobre formação
humana e as preocupações de como fazer a educação dos sem terra.
São essas lições que nos ajudam a pensar e a repensar o currículo
da escola.
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As pessoas se educam aprendendo a ser
Uma das coisas que costumam chamar a atenção nas ações do MST
é o brio das pessoas que dele participam. Esse brio, ou sentimento de
dignidade, se produz à medida que essas pessoas aprendem a ser sem
terra, e a ter orgulho do nome. E ao assumir essa identidade social,
coletiva: somos sem terra, somos o MST, as pessoas aos poucos vão
descobrindo também outras dimensões de sua identidade pessoal e
coletiva: sou mulher, sou negra, sou jovem, sou educadora... São novos
sujeitos que se formam e que passam a exigir seu lugar no mundo, na
história.
As pessoas se educam na ações que realizam e nas obras que produzem
A pessoas se educam nas ações porque é o movimento das ações que
vai conformando o jeito de ser humano. As ações produzem e são
produzidas no meio de relações sociais, ou seja, elas põem em movimento
um outro elemento pedagógico fundamental que é o convívio entre as
pessoas, a interação efetiva que se realiza entre elas, mediada pelas
ferramentas herdadas de quem já produziu outras ações antes (cultura).
Nessas relações, as pessoas se expõem como são, e ao mesmo tempo
vão construindo e revisando sua identidade, seu jeito de ser. Não estamos
falando de qualquer ação, ou do agir, sem intencionalidade alguma.
Estamos falando de ações que produzem outras obras (materiais ou
espirituais) que se tornam espelho onde as pessoas podem olhar para o
que são, ou ainda querem ser; estamos falando também do trabalho e
da produção material de nossa existência. Não há verdadeira educação
sem ações, sem trabalho, e sem obras coletivas.
As pessoas se educam produzindo e reproduzindo cultura
Um dos grandes desafios pedagógicos do MST tem sido justamente
ajudar as pessoas a fazer uma nova síntese cultural, que junte seu
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passado, presente e futuro numa nova e enraizada identidade coletiva
e pessoal. Viver como se luta, lutar como se vive... Essa é uma
coerência que tem sido vista como necessária aos objetivos de
transformação social do Movimento: também em seus conflitos e
desafios permanentes. Memória, mística, discussão de valores, critica
e autocrítica, estudo da história, são algumas ferramentas culturais
que o Movimento vem utilizando nessa construção.
Podemos refletir então que educar é também partilhar significados
e ferramentas de culturas; é ajudar as pessoas no aprendizado de
significar ou ressignificar suas ações, de maneira a transformá-las
em valores, comportamentos, convicções, costumes, gestos,
símbolos, arte, ou seja, em um modo de vida escolhido e refletido
pela coletividade de que fazem parte.
As pessoas se educam aprendendo a conhecer para resolver
Nas ações de uma luta social também se aprendem e se produzem
conhecimentos e eles são uma dimensão muito importante da
estratégia da humanização das pessoas. Mas uma das lições de
pedagogia que temos extraído do dia-a-dia do Movimento, é que o
processo de produção do conhecimento que efetivamente ajuda na
formação das pessoas é aquele que se vincula com as pequenas e
grandes questões da sua vida. Quando um sem terra precisa conhecer
cálculos de área para saber medir a área de terra onde será feita a
agrovila de seu assentamento, certamente esse conhecimento terá
mais densidade humana e social para ele.
Educar é socializar conhecimento e também ferramentas de como
se produz conhecimento que afeta a vida das pessoas, em suas
diversas dimensões, de identidade e de universalidade. Conhecer para
resolver significa entender o conhecimento como compreensão da
realidade para transformá-la; compreensão da condição humana para
torná-la mais plena. Uma lição bem antiga, que a pedagogia do
Movimento apenas recupera.
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As pessoas se educam em coletividade
O MST é uma coletividade. E nela os sem terra aprendem que o
coletivo é o grande sujeito da luta pela terra e também o seu grande
educador. Ninguém conquista sua terra sozinho; as ocupações, os
acampamentos, os assentamentos são obras coletivas. A força de
cada pessoa está em sua raiz, que é a sua participação numa
coletividade com memória e projeto de futuro. É fazendo parte do
coletivo e de suas obras que as pessoas se educam; não sozinhas,
mas na relação de umas com as outras, o que potencializa o seu
próprio ser pessoa, singular, único.
Educar é ajudar a enraizar as pessoas em coletividades fortes; é
potencializar o convívio social, humano na construção de
identidades, de valores, de conhecimentos, de sentimentos. Um
ambiente educativo é fundamentalmente uma coletividade educadora,
acionada ou planejada pelos educadores de ofício, mas compartilhada
por todos os seus membros.
A ESCOLA CONCEBIDA COMO UMA OFICINA DE FORMAÇÃO
HUMANA
Sujeitos não se formam só na escola. Há outras vivências que
produzem aprendizados até mais fortes. A Pedagogia do Movimento
não cabe na escola, porque o Movimento não cabe na escola, e porque
a formação humana também não cabe nela. Mas a escola cabe no
Movimento e em sua pedagogia; cabe tanto, que historicamente, o MST
vem lutando tenazmente para que todos os sem terra tenham acesso a
ela. A escola que cabe na Pedagogia do Movimento é aquela que reassume
sua tarefa de origem: participar do processo de formação humana.
Pensar na escola como uma oficina de formação humana quer
dizer pensá-la como um lugar onde o processo educativo ou o
processo de desenvolvimento humano acontece de modo
intencionalmente planejado, conduzido e refletido para isso;
processo que se orienta por um projeto de sociedade e de ser humano,
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e se sustenta pela presença de pessoas com saberes próprios do ofício
de educar, pela cooperação sincera entre todas as pessoas que ali estão
para aprender e ensinar, e pelo vínculo permanente com outras práticas
sociais (seja para estar em sintonia ou em contradição com elas) que
começaram e continuaram essa tarefa.
A expressão também nos ajuda a repensar a lógica pedagógica, ou o
método pedagógico da escola. Estamos dizendo que escola não é apenas
lugar de ensino, e que método de educação não é igual a método de
ensino. É preciso planejar estratégias pedagógicas diversas, em vista dos
diferentes aprendizados que compõem o complexo processo de
formação humana.
Dimensões fundamentais do trabalho educativo da escola.
Das lições de pedagogia chegamos então à reflexão específica sobre
que dimensões devem compor a intencionalidade da escola que quer
ser, na perspectiva do MST, uma oficina humana. Essas dimensões são
o que Miguel Arroyo chama de conteúdos de nossa humana docência,
que não são os ditos conteúdos de ensino (geralmente entendidos como
lista de conhecimentos a serem trabalhados), mas sim os conteúdos do
processo educativo como um todo.
As dimensões que indicamos a seguir certamente não esgotam toda a
complexidade do processo de formação humana e nem acontecem de
forma estanque. Como se trata de um movimento educativo, sempre
aparecerão dimensões novas, ou exigências de maior ênfase em algumas
delas, e necessariamente sua prática será entrelaçada. O destaque tem
em vista nos ajudar como educadores a planejar estratégias pedagógicas.
Formação de valores e educação da sensibilidade
Valores têm ocupado pouco espaço na agenda pedagógica da escolas.
Costumam fazer parte do chamado “currículo oculto”, geralmente
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programado pelo formato das relações sociais e humanas hegemônicas
na sociedade atual.
Numa escola pensada como lugar de formação humana os valores
passam a ter lugar central. São valores que movem nossas praticas,
nossa vida, nosso ser humano. E a associação entre os valores e
educação da sensibilidade nesse contexto não é arbitrária. Os
sentimentos são a terra de cultivo dos valores.
O MST espera de suas escolas que ajudem na educação da
sensibilidade de seus educandos para a dimensão dos valores, que
trabalhem as relações sociais e afetivas entre as pessoas nessa perspectiva;
e, que em seu dia-a-dia, educandos e educadores recuperem e cultivem
valores humanos como a solidariedade, a lealdade, o companheirismo,
o espírito de sacrifício pelo bem do coletivo, a liberdade, a sobriedade,
a beleza, a disciplina, a indignação diante das injustiças, o compromisso
com a vida, com a terra e com a identidade sem terra.
Cultivo da memória e aprendizado da história
A terra guarda a raiz, diz uma das canções do MST. A escola
também pode guardar a raiz do Movimento, ajudando no cultivo
da memória do povo na formação de sua consciência histórica. Foi
aprendendo com o passado que o MST se fez como é: aprendendo
com os lutadores que vieram antes, cultivando a memória de sua
própria caminhada. A história se faz projetando o futuro a partir
das lições do passado cultivadas no presente.
O MST espera de suas escolas que ajudem a cultivar sua memória
e que também se responsabilizem pela continuidade da formação da
identidade sem terra, ajudando as novas gerações nesse cultivo, e na
sensibilização para esse jeito de ser humano que o Movimento
projeta. Também espera que as escolas encontrem métodos
adequados de fazer o estudo da história, de modo que ele passe a ser
uma necessidade e um prazer, e que o próprio dia-a-dia da escola
seja uma oficina de fazer e aprender história.
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250
Produção de conhecimentos humanamente significativos
O estudo é um dos princípios organizativos do MST, e é
exatamente o princípio que reforça a importância do conhecimento:
quem não conhece a realidade não consegue participar como sujeito
de sua transformação. Mas também nos indica que não se trata de
qualquer conhecimento; nem do conhecimento pelo conhecimento.
O MST espera de suas escolas que desenvolvam em seus
educadores e educandos o valor da apropriação e produção séria de
conhecimentos; que reconheçam e desenvolvam os diversos tipos
de conhecimentos; que façam das questões da realidade (no sentido
mais amplo possível do termo) a base da produção desses
conhecimentos; que usem como critério de escolha dessas questões
os seus significados no conjunto de aprendizados de que necessitam
os educandos, como seres humanos e como lutadores do povo em
formação; e também o MST espera dos educadores que saibam
construir, coletivamente, métodos de ensino que garantam o
aprendizado não apenas dos conhecimentos em si mesmos, mas do
modo de produzi-los, e um modo capaz de apreender a complexidade
cada vez maior das questões da realidade em que vivemos.
Formação para o trabalho
No MST, os sem terra se educam tentando construir um novo
sentido para o trabalho do campo, novas relações de produção e de
apropriação dos resultados do trabalho; uma experiência que começa
no acampamento e continua depois em cada assentamento
conquistado.
O MST espera de suas escolas que se ocupem seriamente também
desta dimensão – educando para o trabalho e pelo trabalho: que
incluam as questões do mundo da produção como conteúdo de seus
tempos e práticas; que desenvolvam conhecimentos, habilidades e
posturas necessárias aos processos de trabalho que vêm sendo
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251
produzidos na luta pela reforma agrária; que cultivem o trabalho
como um valor humano; e que façam dele um dos seus métodos de
educar seres humanos.
Formação organizativa
A organização é uma das chaves da existência do MST até hoje,
que integra a Pedagogia do Movimento. É por meio da participação
na organização do MST e da vivência na materialidade das relações
sociais que constituem uma coletividade forte que os sem terra
voltam a ter raiz, ou seja, memória e projeto.
O MST espera de suas escolas uma intencionalidade pedagógica
específica nessa dimensão; que ajudem no enraizamento dos
educandos em diferentes coletividades; que proporcionem práticas
onde o objetivo seja desenvolver a consciência organizativa dos
educandos e também dos educadores. Para isso, em vez de apenas
inventar artifícios didáticos, é preciso fazer da própria escola uma
coletividade onde os tipos de relações sociais e as diversas situações-
problemas sejam um convite permanente à organização e à ação
coletiva.
Formação econômica
Uma das dimensões da luta do MST é a inserção das famílias dos
trabalhadores sem terra em novos processos econômicos, ou novas
relações sociais de produção, distribuição e apropriação de bens e
serviços necessários ao desenvolvimento humano. E o movimento
de construção coletiva desses processos econômicos, que começa
no acampamento e se aprofunda no desafio de viabilização dos
assentamentos, é uma das pedagogias da formação dos sem terra,
que ao mesmo tempo se produz como demanda de formação
específica a ser trabalhada nas atividades de educação do Movimento.
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252
O MST espera de suas escolas que ajudem no desenvolvimento
da consciência econômica de seus educadores e de seus educandos,
propiciando sua participação reflexiva nos processos econômicos
de sustentação da escola; também incluindo em seu planejamento
pedagógico práticas econômicas suficientemente complexas para o
avanço do nível atual de consciência da comunidade em que se insere.
Formação política
O MST tem um objetivo político bem definido: quer ajudar a
construir um Brasil sem latifúndios. No formato estrutural do
capitalismo brasileiro, isso tem significado por ser um movimento
de luta social que se prepara para ser duradouro e fazer
enfrentamentos fortes. Por isso mesmo, a formação dos sem terra
precisa reforçar ainda mais o que já é um aprendizado histórico da
classe trabalhadora: a dimensão política da educação de seres
humanos. Consciência política é o que nos exige participar das lutas
sociais por um mundo melhor, que nos desafia a relacionar as ações
do dia-a-dia com essa participação e com o projeto político que a
sustenta e constrói.
O MST espera de suas escolas que ajudem a politizar o cotidiano
das comunidades sem terra, para que consigam fazer de suas ações e
questões do dia-a-dia, práticas que se somem à luta maior, ao projeto
maior. Politizar o cotidiano quer dizer aprender a relacionar uma
coisa com outra, e em cada atividade, realizar o projeto, a utopia
que afirmamos acreditar e que nos move...
Práticas do ambiente educativo da escola
A partir das lições de pedagogia da Movimento e da reflexão das
dimensões principais do trabalho educativo da escola, podemos
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253
compreender que a centralidade do currículo ou do ambiente
educativo de uma escola está nas práticas (e nas relações sociais que
as constituem) de que se ocupam seus educandos e educadores. Em
outras palavras, isso quer dizer olhar para a escola ou pensar o
planejamento pedagógico de uma escola como um lugar de práticas,
de atividades diversas capazes de dar conta da complexidade do
processo de formação humana.
O critério para escolha das práticas é, nesse raciocínio, exatamente
sua potencialidade pedagógica em relação às dimensões da formação
humana apontadas. Não se trata de escolher uma prática para cada
dimensão, o que seria simplista, redutor do processo educativo,
sempre complexo. Trata-se de pensar em um conjunto de práticas
entrelaçadas que podem mais facilmente garantir essa formação
multidimensional pretendida. E não é uma escolha que pode ser feita
de uma vez para sempre; o processo de escolha é ele mesmo um dos
elementos fundamentais do movimento pedagógico da escola, que
precisa estar em sintonia com o movimento da realidade e do processo
de formação de seus sujeitos.
Aulas
Essa é a prática que costuma caracterizar de forma quase exclusiva
o tempo de escola. Consideramos sua importância especial, mas não
absoluta; tem maior valor pedagógico se combinada com outras
práticas educativas, de onde pode extrair sua própria matéria-prima.
Na escola, as aulas são o tempo específico para o estudo. Não
acontecem somente dentro de sala de aula; podem acontecer como
práticas entrelaçadas às demais e em atividades específicas de leitura,
passeios de observação, projetos de pesquisas, seminários de
discussão, trabalhos em grupo; também por meio das consagradas
aulas expositivas, pelo professor, por representantes da comunidade
ou por meio do estudo de bons textos.
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254
Oficinas
São práticas que podem atravessar ou complementar o tempo das
aulas. O importante é prestar a atenção em sua lógica pedagógica
diversa. Oficinas são tempos e espaços voltados para a capacitação,
ou seja, são atividades centradas no aprendizado de habilidades
(aprender a fazer...), construídas pela prática direta dos próprios
educandos (...fazendo), orientada ou monitorada por mestres daquelas
habilidades em questão. São atividades que geralmente envolvem
habilidades ligadas à produção, à gestão e às expressões culturais e
artísticas diversas.
Trabalho e produção
Tempos e espaços para a participação dos educandos e dos
educadores na realização de tarefas ligadas ao funcionamento e
manutenção material da escola; e, quando possível, na criação e
execução de unidades de produção mais complexas que possibilitem
aprendizados também mais complexos no campo da formação
organizativa e econômica, bem como na capacitação técnica em
determinados tipos de trabalho.
O tipo de trabalho e de processo produtivo depende das condições
objetivas de cada local, da idade e experiências anteriores dos educandos
envolvidos e também da criatividade do conjunto da coletividade
escolar. Em algumas de nossas escolas isso que dizer, por exemplo,
que são as crianças as responsáveis pela construção e manutenção do
parque de brinquedos da escola ou do acampamento, assentamento;
em outras, tem sido o cuidado com a horta.
Gestão coletiva
São práticas ligadas à participação dos educadores e dos educandos
na estrutura orgânica da escola, ajudando a tomar decisões, a administrar
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255
e comandar a execução das tarefas sob sua responsabilidade, a avaliar o
desempenho de cada pessoa e do coletivo no conjunto dos tempos e
espaços educativos da escola; são também práticas de auto-organização
dos educandos em vista de sua coletividade específica e para viabilizar
suas iniciativas de turma ou grupo de educandos. Em termos de
quantidade e caracterização dos tempos, depende muito do nível de
participação dos educandos, de sua idade, condições objetivas de cada
escola, envolvimento da comunidade. Envolvem tempo específico de
reuniões em grupos menores, plenárias de turma, assembléias da escola...
Envolvem também tempos conjuntos com a comunidade, que também
participa dos processos de gestão.
Atividades artísticas e lúdicas
Práticas que combinam desenvolvimento cultural e lúdico, em nosso
caso, geralmente misturando a pedagogia do símbolo, do gesto, da
mística do Movimento com o cultivo da necessária alegria de viver e
de celebrar pequenas vitórias diante de conjunturas políticas
desfavoráveis. São práticas, em sua maioria celebrativas, que podem
acontecer permeando outras práticas, outros tempos ou ter momentos
específicos para que aconteçam.
Participação em ações do Movimento fora da escola
Exatamente porque já sabemos que não é apenas dentro da escola
que se aprende e que o Movimento tem sido nossa escola maior, e que
a própria escola pode provocar e organizar a participação de
educandos e educadores em ações do movimento da luta maior. Pode
ser integrar-se diretamente a algumas atividades de jornadas de lutas,
participando de marchas, atos públicos, ocupações...; pode ser ajudar
a organizar, no próprio assentamento ou acampamento, campanhas
ou comemorações promovidas pelo MST; ou fazer visitas de
solidariedade em acampamentos ou em locais de pobreza das cidades.
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256
Sistematização das práticas
Registrar e refletir sobre as demais práticas é também uma prática
que ajuda a garantir a qualidade do processo pedagógico. Em algumas
de nossas escolas, isso pode ser percebido a partir de atividades como
a organização de um tempo diário específico, chamado de “reflexão
escrita”, até o desafio de elaboração sistemática de textos sobre o
cotidiano da escola, e a realização de pesquisas que resgatem a
memória e façam análises mais rigorosas do processo educativo
vivido na escola, e fora dela. Em todos os lugares, no entanto, o
maior desafio é fazer dessa prática um bom hábito dos educadores,
de modo que a compreendam como parte de sua formação
pedagógica.
E assim, nesse movimento de práticas, vamos prosseguindo na
construção de nossa oficina de formação humana, de educandos e
educadores comprometidos com causas sociais e humanas que valem
nossa vida... E, para encerrar, sem concluir, a continuação da fala de
nossos Sem Terrinha: Pedimos a vocês (professores) que estejam sempre prontos
pra nos ensinar e sempre dispostos a escutar o que temos a dizer, respeitando
nossas idéias e tendo paciência e muito carinho conosco. Também pedimos que
vocês tragam mais brinquedos para a Escola...
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BIBLIOGRAFIA
ARROYO, M. G. Ofício de mestre. Petrópolis: Vozes, 2000. p.53, 240.
MOVIMENTO SEM TERRA. Nossos valores. [São Paulo]: MST, jun.
2000. (Coleção pra soletrar a liberdade).
_____. Como fazemos a escola de educação fundamental. Caderno de
Educação, n. 9, 1999.
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Da oralidade à escrita
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ORALIDADE E ESCRITA – NOTAS PARA PENSAR
AS PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO
Tânia Dauster
Com o intuito de subsidiar a reflexão sobre a prática da
alfabetização apresentarei a seguir uma breve discussão sobre
aspectos conceituais ligados a oralidade e a escrita, assim como a
problemática que fundamenta a investigação intitulada Cotidiano,
práticas sociais e valores nos setores populares urbanos – a difusão diferencial
da escrita e da leitura e o significado da imagem entre os jovens
1
tendo em
vista comentar as possíveis contribuições de um olhar
antropológico sobre o tema.
Para precisar ainda mais o significado desta proposta de pesquisa,
esclareço que ela está associada a duas dentre as linhas de pesquisa
do Programa de Pós–Graduação em Educação da PUC – Rio, a
saber: “Cultura, Educação”. Ademais, decorre da pesquisa
intitulada “O valor social da educação e do trabalho em camadas
populares urbanas”, da autoria de Maria Lutgarda Mata e Tania
Dauster, recém-finalizada.
1
Pesquisadores responsáveis: Tania Dauster, Maria lutgarda Mata e Pedro Benjamin Garcia,
Departamento de Educação, PUC-Rio.
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262
No desenrolar deste estudo, cujo objetivo era o de compreender o
valor social da escola e do trabalho para os jovens que faziam parte de
nosso universo de pesquisa, recorrentemente surgiram menções à
questão da leitura e da escrita, como pode ser exemplificado através de
algumas falas:
“escrever serve para assinar o nome”
(Janete, 11 anos).
“Faz diferença ler e escrever, mas não sei por quê”
(Sueli, 9 anos)
“Eu gosto de ler, não quero ser burro como essas pessoas, eu quero ser
inteligente, como meu pai diz. Escrever é legal, a gente se diverte, inventa
muita coisa”
(Fábio, 9 anos).
Tais falas mostram um ponto de vista que reconduzem para
questões e problemáticas mais amplas e universais como as palavras
de Jack Goody e Lan Watt
2
expressam, em uma tradução livre, ao
discutirem os efeitos do letramento na Grécia: “No desenvolvimento
da democracia na Grécia, o acesso à escrita e à leitura alfabética foi
um importante fator a ser considerado. A democracia, como a
conhecemos, é desde o início associada com a difusão do letramento”.
Essas considerações, evidentemente, não podem ser transpostas
mecanicamente para a nossa sociedade. Contudo, os seus ecos
permitem perguntar seguindo os mesmos autores: “em que proporção
uma sociedade deve ler e escrever para que a cultura como um todo
seja considerada como letrada? Pode-se falar em sociedades letradas?
Ou melhor seria falar em uma relação heterogênea e diferenciada entre
os diversos setores sociais e a escrita e a leitura?” Além dessas questões
podemos acrescentar outras: Qual a relação entre democracia e
letramento? Como interage com a oralidade e a escrita?
2
GOODY, J.; WATT, L. (Ed.). Literacy in Traditional Societies. London: Cambridge
University Press, 1968.
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263
Seguindo as mesmas pistas propomos como problema a ser
investigado, no contexto do modo de vida de setores populares
urbanos, a difusão social da escrita e da leitura.
Recorrendo ao aporte antropológico, abre-se um campo de
problematização à construção deste objeto. Assim é que a escrita e
leitura como artefatos culturais, serão estranhadas. O que induz a
perceber que formas estão implicadas nos modos sociais de
organização, nos sistemas classificatórios, nas praticas sociais e nas
representações que tecem o cotidiano desses setores.
Por assim dizer, falar em artefato cultural a propósito da escrita e
da leitura já implica um determinado posicionamento teórico, já
conduz a um campo de problematização no qual se dá a lógica da
descoberta como busca de significados pari passu ao entendimento
daqueles sistemas mencionados.
1. NOTAS PARA UMA DISCUSSÃO TEÓRICA – ORALIDADE E
ESCRITA
Será estabelecido a seguir, um mapa de leituras e um roteiro de
autores de relevância indiscutível para abordar a questão da leitura e
da escrita, iluminando assim o caminho a ser percorrido.
Cabe registrar que o enfoque dado à problematização da oralidade
x escrita passa por uma renovação bastante recente e muito pouco
estudada no Brasil, possibilitando o exercício da interdisciplinaridade,
conjugando antropólogos, historiadores, lingüistas, psicólogos e
pedagogos.
Segundo Havelock a relação oralidade/escrita é tanto um
problema que pode ser contextualizado na Grécia Antiga quanto na
modernidade, sendo que os estudos sobre a antigüidade grega servem
para lançar luzes sobre a questão na atualidade.
Havelock deve ao trabalho realizado por Walter J. Ong a base
para o painel que constrói a propósito da passagem entre a cultura
oral grega e a cultura letrada, mostrando como a transformação se
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deu, o seu significado e quais as suas ressonâncias hoje, até porque a
literatura e a filosofia gregas representam as primeiras expressões
desse tipo tendo em vista a palavra escrita e marcam as relações entre
as suas origens e a invenção da escrita. É oportuno lembrar que Ong
comenta, ainda, a importância do surgimento da imprensa na Europa
e seu efeito sobre o uso restrito da escrita que passa a um uso mais
generalizado.
Ao mesmo tempo a crise de comunicação grega e sua similar
moderna é tratada por Havelock como um processo sutil, nada linear,
tampouco de substituição, que poderá, portanto, significar tensões,
colisões ou convivência entre os códigos da oralidade e do letramento.
Entretanto tais códigos são apresentados como configurações culturais.
Uma primeira aproximação a essa problemática nos levaria a associar
a oralidade, por definição, às sociedades sem escrita. Tendo em vista o
modelo de oralidade que emerge dos estudos realizados sobre a Grécia
Antiga, desenha-se uma combinação cultural na qual o canto, a
recitação e a memória são fatores cruciais para a transmissão dos
costumes e para a continuidade cultural. Do outro lado, a configuração
cultural representada pelo artefato da escrita envolvendo hábitos de
registro, documentação e leitura, redundando em novos modos de
organização social e de transmissão.
Para Havelock a pesquisa sobre oralidade/escrita tomou impulso
nas três ultimas décadas. No inicio dos anos sessenta a publicação
simultânea de livros e ensaios na França, na Inglaterra e nos Estados
Unidos configuraram uma problemática e um verdadeiro programa
de investigação. Havelock aponta os seguintes autores: LÉVI-
STRAUSS, C. O pensamento selvagem; GOODY, J.; WATT, J. The
consequences of literacy; MCLUHAN, M. The Gutenberg Galaxy; MAYR,
E. Animal superior and evolution, HAVELOCK E. A. Preface to Plato.
Estes cinco trabalhos são fundadores que, a partir de diferentes
ângulos, refletem sobre o lugar da oralidade na história da cultura e,
ainda, as suas relações com a escrita e a leitura.
Lévi-Strauss pensa as relações entre os mitos tribais e sua lógica
em confronto com a linguagem falada contemporânea. Em Goody e
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265
Watt, destaca-se a questão da oralidade no mundo moderno e a relação
oralidade – escrita na Grécia Antiga. Para esses autores, a escrita, em
nossa civilização, não é um substituto, mas uma alternativa para a
transmissão oral, sendo que as relações entre as tradições orais e
escritas devem ser vistas como um problema relevante. Nas suas
investigações, a discussão sobre a escrita é contextualizada em
sociedades pensadas na condição de totalidades em contraste com o
estudo do controle e do poder do uso da escrita por parte de grupos
privilegiados. Já McLuhan mostra os efeitos da invenção de
Gutemberg na transformação cultural; e na mídia eletrônica, a
emergência de formas não-lineares de comunicação, características
da cultura oral. Segundo Havelock, é a mídia que nos joga face a
face, desde a Primeira Guerra Mundial, com a questão da oralidade.
Contudo, longe de podermos entender esse conceito aproximando-
o da noção de oralidade primária própria às sociedades sem escrita.
Seus argumentos levam a constatar que a tecnologia é fruto da
configuração cultural que encompassa o alfabeto, o letramento, a
documentação escrita. Se, evidentemente, a mídia eletrônica não
reconduz de volta a uma cultura de oralidade primária, ela bebe das
fontes da palavra falada e da escrita e do uso da audição e da vista
para produzir a comunicação.
Tais encaminhamentos mostram as formas culturais do rádio e
da televisão como fusão de racionalidade do tipo oral e letrado.
Outras questões são relevantes para situar histórica e culturalmente
a problemática. Por exemplo, para Mayr a linguagem é o fator que
diferencia o humano de outras espécies, e em Havelock o lugar da
poesia nas culturas orais associa-se à construção da memória através
do ritmo e da narrativa. A lógica da cultura escrita, entretanto, não
se funda na associação entre ritmo e narrativa.
Essas discussões abrem outras perspectivas de olhar para se
investigar o significado do oral e do escrito na época contemporânea,
tendo em vista a comunicação de massa. Uma outra via de reflexão
que emerge de Havelock diz respeito às possibilidades de captar a
oralidade através do texto escrito, até porque uma indagação
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pertinente que está posta consiste na hipótese de vocabulários e
sintaxes diversas para esses dois códigos.
Se nos primeiros textos de Homero e Hesíodo, os comentadores
percebem a presença e o uso de recursos da oralidade, um efeito de
transcrição do oral para o escrito, no decurso do tempo, uma outra
lógica foi sendo inventada, que confere especificidades distintas a
essas formas de linguagem.
Havelock nos apresenta, portanto, estas indagações instigantes:
Qual a relação entre a palavra falada e o texto escrito? O que acontece
à estrutura da língua falada quando passa a artefato escrito? A
comunicação oral corresponde a um estado de consciência distinto
do letramento? Até que ponto, os textos escritos “falam”?
Peter Burke nos diz que o aumento da alfabetização na Idade
Moderna foi resultado de crescentes facilidades educacionais, sendo
que tais facilidades eram parte do movimento pela reforma da cultura
popular. Segundo ele,
os reformadores de mentalidade secular eram ambivalentes quanto à
alfabetização popular. Desconfiavam muito da cultura oral tradicional
(...), mas também temiam que a educação pudesse tornar os pobres
descontentes com sua posição na vida e estimular os camponeses a deixar
a terra. Alguns, como Voltaire, achavam que a maioria das crianças
simplesmente não devia aprender a ler e escrever; outros, como
Jovellanos, achavam que os camponeses deviam aprender os rudimentos
da leitura, da escrita, da aritmética, mas só. (BURKE, 1989).
Por outro lado, foi grande a influência da religião na alfabetização:
“os devotos tinham maior fé na alfabetização, que viam como um
passo à via da salvação”.
Destaco, ainda, na leitura de Burke, três problemas sobre o acesso
aos livros, relativos ao período por ele estudado, que nos parecem
pertinentes na contemporaneidade:
problema físico. Como se faz a distribuição social dos livros?
Problema econômico. Até que ponto os setores populares
(artesãos e camponeses) podiam comprar material impresso?
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267
Acesso lingüístico. Os folhetos e livretos eram escritos de
maneira suficientemente simples para homens e mulheres com
pouco mais que os rudimentos das letras?
Burke estabelece relação entre a cultura popular, através da
representação teatral, e o texto impresso:
A longo prazo o livro era um concorrente perigoso e um aliado
traiçoeiro. Um concorrente perigoso porque o comprador do texto
impresso poderia dispensar totalmente a apresentação; ele perdia o
incentivo para ficar de pé durante uma hora na praça, ouvindo um
cantor ambulante. A difusão da alfabetização e o declínio do épico
foram simultâneos na Europa Ocidental, enquanto o analfabetismo e
o épico sobreviveram juntos na Sicília, Bósnia, Rússia. Nesta linha
sugere-se que a alfabetização embota a capacidade de improvisação, da
mesma forma que retira parte do incentivo a ela. (BURKE, 1989).
Caminhando, ainda, nessa busca de algumas conceituações: das
raízes latinas da palavra oral aprendemos que não somente a idéia da
oralidade articula-se à região da boca, mas que se associa também ao
que é emitido pela boca, ao que é vocalizado, verbalizado, em suma,
a um som oral. Nessa linha de pensamento, o oral adjetiva a linguagem
que é falada ou que se caracteriza pela expressão verbal, que encerra
um mundo de significações na comunicação com o outro.
Sem querer reduzir a idéia da escrita ao “seu sentido estrito de
notações linear e fonética” (BARTHÈS; MAURIÈS, 1987), deve
ser lembrado que a linguagem escrita na Idade Clássica é extensiva à
representação da própria natureza, metáfora que simboliza as coisas
do mundo que aí estão para ser lidas e interpretadas e que tal qual
signos encerram constelações de significados.
Eis que uma visão mínima desses significantes derruba qualquer
ilusão simplificadora e evoca a complexidade a ser encarada. Noções
que parecem tão próximas, familiares e cotidianas – o oral e a escrita,
a leitura – têm uma miríade de significações. Como estranhá-las e
por quê? Como interpretar, como decifrar o modo pelo qual um
universo social desenha signos, comunica significados?
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Nos ensinam Barthès e Mauriès que os significados da escrita são
numerosos e diferentes. Além dos reducionismos, antes de mais nada
a escrita é produto do ato físico de desenhar signos seja com a mão,
seja mecanicamente. Tais quais são vários os sentidos dados ao termo
escrita, são igualmente diversificados os saberes que focalizam a escrita
como objeto de investigação.
Uma vez estabelecido esse recorte, serão comentadas outras
noções pertinentes aos estudos sobre as práticas de alfabetização
entendidas como artefatos culturais.
2. E AS PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO?
Gnerre sugere que nos últimos vinte anos o conjunto crescente
de contribuições sobre pesquisa da escrita decorre de pressões
históricas e socioculturais, destacando-se a ênfase em programas de
alfabetização e educação em diferentes sociedades, e, ainda, a
padronização escrita de muitas línguas até então sem tal tradição.
Advogando, ademais, o interesse de se fazer uma reflexão sobre as
representações que outros segmentos sociais e outros grupos de idade
produzem sobre a escrita e a leitura, tendo em vista desvendar as
interpretações presentes nas situações de alfabetização.
Chartier, em um brilhante capítulo da coleção de Ariès e Duby
sobre a “História da vida privada: da renascença ao século das luzes”,
entende os processos de alfabetização associados à circulação e
difusão de competências especificas de escrita e leitura, e também a
outras relações de sociabilidade, outras relações do indivíduo consigo
mesmo, com a comunidade e com a palavra escrita seja a mão ou
impressa. As relações com os livros e o material impresso
possibilitadas pelo advento da imprensa reinventam, por sua vez, os
limites entre o público e coletivo e os modos de vida íntimos. Lembro,
entretanto, que sua visão não tem um cunho evolucionista. As
descobertas e os costumes que se vão engendrando não percorrem
trajetórias contínuas e lineares nem eliminam antigas práticas. Tendo
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269
em vista a temática em pauta, por exemplo, a escrita e a leitura, não
são partilhadas igualmente por todos no contexto sociocultural.
Apresenta-se no horizonte histórico um quadro diversificado de
comportamentos, atitudes e competências partilhadas
diferencialmente, que pode ser transposto para um corte sincrônico
sobre a vida social de nosso próprio tempo e sociedade. É esse o
propósito que aqui se descortina, centrado nas práticas de
alfabetização. E mais: na trilha dessas indagações, outras perguntas
específicas se fariam: qual a relação entre a alfabetização (leitura e
escrita) e modo de vida dos indivíduos? Qual o significado que tomam
no cotidiano? Como os usuários representam e praticam a leitura e
a escrita? Quais as formas culturais que emergem quando são
socialmente apropriadas pelos setores populares? Como se dá a
difusão/circulação da leitura e escrita e da alfabetização? Afinal, o
quando? o como? o para quê? o quê? o como quem? e o com quê?
a propósito da leitura e da escrita (CHARTIER, 1990).
As discussões que ocorrem sobre as possibilidades de avaliar e
definir as dimensões da alfabetização seguem rumos, por vezes,
análogos ontem e hoje, levando os interessados a se perguntar sobre
a preeminência da aprendizagem da leitura ou da escrita nesse
processo. As diferenças alimentam o pensamento de Chartier.
Diferenças que dizem respeito à familiaridade com a escrita e a leitura
por parte de homens e mulheres, ofícios e condições sociais, cidade
e campo, bem como a relação diferencial da escrita e da leitura vis-à-
vis às modalidades de recolhimento e intimidade individual,
modalidades de relações com os outros e com os poderes
constituídos. A importância desses múltiplos fatores que vão
inscrever-se no cotidiano, no modo de vida e na auto-representação
que os indivíduos fazem de si mesmos; assumindo proporções mais
amplas tendo em vista que o Estado moderno se apóia na escrita.
Chartier reporta o leitor às relações com o livro e às práticas de
leitura e escrita que se vão inscrevendo no tecido social desde o
século XV – a leitura visual, silenciosa, privada; a leitura “intensiva”
ou dos mesmos livros recorrentes; a leitura na intimidade conjugal;
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a escrita da leitura; a leitura em família que se desdobra em
sociabilidades distintas.
O autor que narra e descreve essas formas de relações em uma
série de ensaios (CHARTIER, 1990) apresenta outras noções
pertinentes para o exame das práticas de alfabetização. Vejamos, de
forma sucinta.
Em primeiro lugar, Chartier convida o pesquisador a trabalhar
com as representações e práticas, enfatizando a relacionamento
dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza,
considerando-se os esquemas geradores próprios de cada grupo ou
meio como instituições sociais, defendendo um retorno a Mauss e
Durkheim, ou seja, incorporando sob a forma de categorias mentais
e representações coletivas as demarcações da própria organização
social.
Ademais, indica a noção de apropriação e põe significativamente
em relevo a pluralidade dos modos de emprego ao articular práticas
diferenciadas e utilizações contrastadas, ainda, que os usos sociais
constroem uma produção de outra modalidade, ou seja, uma
ressignificação do artefato cultural. Em outras palavras, a
alfabetização não tem um significado em si mesmo, mas o seu sentido
é uma produção que emerge de práticas e apropriações que geram
ordenamentos, distâncias e diferentes interpretações, tendo em vista
usos plurais e específicos.
No cerne dos debates atuais, Chartier desconfia das delimitações
rígidas que indicam os pares de oposição do tipo erudito/popular,
criação/consumo, realidade/ficção, leitura/escrita, mostrando que
eram elas próprias o produto de divisões móveis e temporais.
O importante, então, é identificar a maneira como, mas práticas,
nas representações ou nas produções se cruzam e se imbricam
diferentes formas culturais. Assim sendo, por exemplo, o letrado e
o popular não devem ser entendidos como conjuntos estabelecidos
em relações de exterioridade, mas como ligas culturais cujos
elementos, tais quais as ligas metálicas, encontram-se solidamente
incorporados uns nos outros.
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271
Afinal, voltamos às questões iniciais, a saber: o que é alfabetizar,
o que é ler, o que é escrever.
Evidentemente, a postura antropológica é o tear que constrói a
forma pela qual as referências que até aqui foram amealhadas, e outras
que foram sugerindo, serão costuradas. Por quê?
O olhar antropológico tem como uma de suas dimensões o estudo
da diversidade e heterogeneidade culturais na sociedade e, voltando-
se para o estudo dos universos sociais, pretende conhecer as práticas
sociais e as representações, a partir de uma dèmarche relativizadora,
sem hipostasiá-la.
Com essas palavras pretendo indicar que o conhecimento a ser
construído deve centrar-se no campo investigado, buscando entendê-
lo na sua racionalidade, através de seus próprios termos, valores e
lógica ordenadora. Pressuponho, também, as distâncias que emergem
das diferentes posições sociais ocupadas pelos grupos na sociedade
que vão produzir significações específicas e singulares, que
informarão as práticas de alfabetização e os usos que delas serão
feitos. A partir desta noção de distância estarão sendo pensadas
tanto as características comuns como as diferenças entre os universos
sociais quanto ao significado da alfabetização.
O olhar relativizador, então, conduzirá à desconstrução de
determinados estereótipos e percepções homogeneizadoras sobre os
processos de alfabetização. Sugiro, finalmente, que, ao estranhar as
práticas de alfabetização, seja considerado que ela emerge de relações
sociais concretas e do significado a elas emprestado, levando-se em
conta a tensão entre as suas facetas genéricas e universais e as
especificidades culturais em que se situa.
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275
EXPERIÊNCIAS DE LEITORES E OUVINTES DE
FOLHETOS DE CORDEL
Ana Maria de Oliveira Galvão
INTRODUÇÃO
Este texto busca refletir acerca da leitura e de suas práticas entre
adultos analfabetos, ou com uma experiência restrita de
escolarização, tomando por base a discussão de alguns resultados de
pesquisa (GALVÃO, 2000), cujo principal objetivo foi (re)construir
o público leitor/ouvinte e os modos de ler/ouvir literatura de cordel,
entre 1930 e 1950, em Pernambuco.
No Brasil, dá-se o nome de literatura de cordel a uma forma de poesia
impressa em pequeno formato, produzida e consumida, original e
predominantemente, em alguns estados do Nordeste, mais comumente
denominada folheto, entre poetas, editores, folheteiros e o público que a
consome. As origens do cordel brasileiro estão, por um lado,
relacionadas ao seu semelhante português, trazido para o Brasil pelos
colonizadores, e, por outro, a uma tradição de canto de poemas orais —
desafios, pelejas e cantorias —, já existente no Nordeste brasileiro na
época em que o cordel se desenvolveu (CASCUDO, 1988)
1
.
1
O apogeu da literatura de cordel, no Brasil, deu-se entre os anos 30 e 50.
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Na pesquisa, foram utilizados, como principais fontes,
entrevistas, autobiografias, romances, os próprios folhetos e outros
documentos. Neste texto, enfocarei sobretudo os resultados
decorrentes do trabalho realizado especificamente com nove
entrevistas.
Dos nove entrevistados, três declararam-se analfabetos, três
tiveram experiências de escolarização de até um ano, e três
passaram de dois a cinco anos na escola. Quase todos os que
freqüentaram a instituição escolar não trazem boas recordações
dessa experiência: humilhações públicas, castigos físicos, tédio e
falta de utilidade do conteúdo aprendido são lembranças que
expressam esse sentimento.
Entre os nove entrevistados, quatro afirmaram não ter tido outras
experiências de leitura/audição de impressos em sua trajetória, além
dos folhetos. Crispim, Ana Maria e Zé Mariano, analfabetos — os
dois primeiros, moradores de uma cidade sertaneja até pouco tempo
antes da realização das entrevistas —, nunca experimentaram a
sensação de ler ou ouvir notícias, histórias, descrições, poesias, fora
do suporte do cordel. Delita alfabetizou-se já adulta e, embora
moradora do Recife durante a maior parte da sua vida, teve uma
experiência de leitura/audição de impressos restrita aos folhetos.
Os outros cinco entrevistados revelaram ter experimentado
leituras de outros objetos impressos. Zé Moreno, Edson, Antônio
e Zezé moraram no Recife durante a maior parte de sua vida e
passaram por experiências de escolarização. Zeli morou
predominantemente em pequenas cidades do interior do estado;
suas outras experiências de leitura, assim como as de Zezé,
praticamente se restringiram às cartilhas e aos livros didáticos dos
primeiros anos de instrução. Dois dos homens desse grupo foram
os que revelaram maior intimidade com a leitura e maior diversidade
de experiências com diferentes objetos impressos e não-impressos.
Entre os gêneros preferidos por eles estão aqueles que, de modo
geral, são considerados populares, como histórias em quadrinhos,
romances policiais e almanaques.
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PRÁTICAS DE LEITURA ENTRE ADULTOS ANALFABETOS OU COM
ESCOLARIZAÇÃO RESTRITA: O CASO DOS FOLHETOS
Comprados ou tomados de empréstimo, os folhetos eram lidos
pelo vendedor ainda nas feiras e, posteriormente, em reuniões, nas
quais ocorriam, em muitos casos, narrações de contos e cantorias.
Os poemas eram lidos de maneira intensiva — o mesmo folheto era
lido diversas vezes pela mesma pessoa ou grupo — e a memorização,
facilitada pela própria estrutura narrativa e formal dos poemas, era
considerada fundamental nos processos de apropriação das leituras.
A leitura ou audição dos folhetos está relacionada, na maior parte
dos casos, ao lazer. A dimensão estética e literária das histórias
aparece como o ponto principal para a maior fruição do objeto de
leitura. Embora se saiba que o tema predominante no cordel eram
os problemas do cotidiano, essa dimensão de tomar maior
consciência da vida em que estavam inseridos não foi citada por
nenhum entrevistado. Pelo contrário, o papel da leitura e da audição
dos folhetos parecia situar-se sobretudo no desejo de esquecer a rotina
e mergulhar em uma outra dimensão, diferente da que viviam.
Alguns entrevistados ressaltaram a importância das competências
de leitura daquele que, nas reuniões, lia em voz alta para os demais.
Saber manter o ritmo, destacar bem algumas frases e palavras foram
características apontadas para maior fruição da leitura/audição.
Assim, além da história ser bonita, seu leitor deveria ter habilidades
específicas para que os demais desfrutassem de sua leitura da maneira
mais prazerosa possível. O aspecto coletivo da leitura dos folhetos
também foi destacado pelos entrevistados: o folheto parecia ser um
pretexto para reunir os vizinhos, contar histórias, ter diversão
conjunta. Desse modo, o fato de os folhetos, em muitos casos, serem
lidos em reuniões parecia ser um atrativo a mais para a fruição e o
deleite das histórias.
Os entrevistados também realçam os folhetos como fonte de
informação. A análise dos próprios cordéis indica que, muitas vezes,
o poeta colocava-se na posição de porta-voz das novidades. Muitas
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histórias foram escritas com base em notícias de jornais, cuja narrativa
o autor, habilmente, transformava em versos. Por que os leitores/
ouvintes preferiam saber sobre os diversos acontecimentos por
intermédio do folheto? Inicialmente, porque os principais meios de
comunicação da época eram escassos, de difícil acesso e pouco
familiares. O que parece sobressair, no entanto, pelo menos na
memória dos leitores/ouvintes de folhetos, é a possibilidade de
também se ter prazer no momento de se informar.
O folheto era, sobretudo, uma fonte de informação capaz de
divertir. Nesse aspecto, destaca-se a habilidade do poeta em
transformar a notícia em história, em narrativa, em fábula. Essa sua
dimensão explica, em grande parte, a razão por que, mesmo no caso
dos folhetos noticiosos, se realizam leituras intensivas do mesmo
poema. O que menos parece importar é a notícia veiculada ou a
atualidade do fato; o que parece sobressair é a possibilidade de
reafirmação de certos valores considerados universais, relacionados
principalmente a aspectos morais: a falsidade, a honra, a vingança, o
perdão, a justiça. Ao lado do rádio e do jornal, embora de maneira
diferente, os folhetos contribuíam para que as notícias fossem
divulgadas entre alguns segmentos da população.
Muitos estudos realizados sobre literatura de cordel no Brasil
apontam o papel dos folhetos na alfabetização de um significativo
número de pessoas, sobretudo na época de seu apogeu. Entre as
pessoas entrevistadas, a maioria conhecia alguém ou tinha ouvido
falar sobre a aprendizagem inicial da leitura com a utilização de
folhetos. Os depoimentos parecem indicar que a alfabetização das
pessoas por meio do cordel dava-se de maneira autodidata: pela
memorização dos poemas, lidos ou recitados por outras pessoas, o
alfabetizando, em um processo solitário de reconhecimento das
palavras e versos, atribuía, ele mesmo, significados a esse novo
sistema de representação — a escrita. Aos poucos, esse processo se
estendia a outros objetos de leitura. Em outros casos, o folheto
apareceu como o principal motivador para que os meios formais de
aprendizado da leitura e da escrita fossem procurados. A maioria
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dos entrevistados destacou, no entanto, a leitura de folhetos como
fundamental para o desenvolvimento das competências de leitura,
contribuindo para sua formação como leitores.
A pesquisa mostrou, também, que as formas de leitura geradas
pelos impressos e/ou pelos textos dos poemas não coincidiam,
necessariamente, com os usos e as apropriações que os leitores/
ouvintes deles faziam. Em outras palavras, os conteúdos dos poemas
lidos — muitos deles preconceituosos, sobretudo em relação a negros,
mulheres e matutos — não eram passivamente assimilados pelos
leitores/ouvintes entrevistados. Vários depoimentos mostram que
os textos dos folhetos pareciam ser, a um só tempo, incorporados e
rejeitados por seus leitores — cada um deles imerso em uma
experiência individual e social diferente.
ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DAS EXPERIÊNCIAS DE LEITURA
Que reflexões poderiam ser consideradas por educadores e
educadoras de jovens e adultos tomando-se por base os resultados da
pesquisa aqui apresentados? Inicialmente, considero importante discutir
a questão referente à oposição entre as supostas “boa” e “má” leituras.
Na época à qual a pesquisa se detém — décadas de 1930 e 1940 —
o cordel era um tipo de impresso considerado subliteratura, ou seja,
não era visto, entre os intelectuais do período, como uma “boa”
leitura, como uma leitura recomendável. Na escola, onde, na visão
de um dos entrevistados, “só se aprendia bobagem”, não se ouvia
falar em folhetos. De modo semelhante ao que ocorria com outros
objetos de leitura referidos pelos entrevistados — histórias em
quadrinhos, romances policiais e almanaques —, os poemas não eram
considerados edificantes, portadores de mensagens positivas e de
qualidade estética e literária. Contribuíam, no entanto, efetivamente,
como busquei mostrar aqui, para o desenvolvimento das
competências de leitura e a formação de leitores, na medida em que
provocavam prazer, deleite e fruição estética em quem lia.
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O trabalho mostrou, também, que a leitura não constitui um ato
passivo. Os leitores não se apropriam exatamente daquilo que está
escrito: um texto pode ser classificado, por alguns, como portador
de “más” mensagens; no entanto, é por certo re-elaborado, em razão
de diversos fatores, por aquele que o lê. Entre aquilo que o autor
escreve, o editor adapta, e o leitor lê, e aquilo que da leitura é
verdadeiramente apropriado, há uma grande e misteriosa distância.
As situações de leitura — no caso do cordel, naquela época, coletiva
e em voz alta — também contribuem para o processo de produção
de sentidos.
Hoje o cordel ocupa outro lugar entre os intelectuais, em um
contexto de revalorização das diversas formas de cultura popular.
Quanto aos educadores, estes já não o consideram, como faziam
seus antepassados, como “má” leitura: alguns até utilizam folhetos
em salas de aula. Mas, poderíamos nos perguntar, será que,
atualmente, o cordel ocupa um lugar importante na experiência dos
alunos ou, mais uma vez, estamos nos distanciando daquilo que os
jovens e adultos vivenciam no contato cotidiano com os diversos
objetos escritos — e mesmo orais — que caracterizam o mundo
letrado?
Considero fundamental conhecer as práticas de leitura — não só
as que cumprem um papel informativo e utilitário, mas também
aquelas que provocam prazer — que os alunos experimentam
cotidianamente, sobretudo fora da escola. Pode ser que eles não
gostem de ler a parte de política do jornal, mas se deleitem com as de
esporte ou a policial. Quem sabe não conheçam nenhuma obra
pertencente aos consagrados cânones literários, mas sejam
compositores de rap.
É preciso conhecer os gostos e os hábitos dos alunos, mesmo que
não sejam exatamente os nossos nem considerados verdadeiramente
literários ou portadores de “boas” mensagens. Essas práticas já
vivenciadas podem ser um ponto de partida para a diversificação, o
contato com um número cada vez maior de textos, o conhecimento de
outros gêneros, de outros objetos de leitura.
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Além de haver essa tendência em separar a “boa” da “má” leitura, a
escola — e até mesmo os pesquisadores — muitas vezes considera os
alunos, sobretudo aqueles pertencentes às camadas populares, como
incapazes de usufruir esteticamente de alguns objetos de leitura, como
tendemos a fazer, mesmo que não saibamos dessa polêmica teórica, com
os leitores não habituados à leitura de obras consagradas pela literatura
universal. Além disso, julgamos as “más” obras como incapazes de
provocar prazer estético em qualquer leitor. A pesquisa mostrou, no
entanto, que leitores pertencentes às camadas populares, e em contato
com um tipo de texto considerado subliteratura, não só julgam esteticamente
os poemas que lêem como fruem do prazer que provocam.
Segundo esses leitores, os bons poemas são dotados de beleza,
que se traduz em rimas bem estruturadas, no ritmo cadenciado dos
versos e em uma narrativa convincente, capaz de evocar valores e
sentimentos e de transportá-los para outros espaços e tempos, mesmo
quando se referem à descrição de notícias, de acontecimentos reais.
Tal beleza extrapola a estrutura interna dos próprios poemas,
estendendo-se à possibilidade de partilhar a leitura, pela realização
de encontros que congregam um grande número de pessoas e em
que a habilidade e a competência para ler ou recitar o poema em voz
alta desempenham um papel fundamental. A função pragmática do
folheto, como aprender a ler ou ter informações, por sua vez, tem
caráter secundário nos depoimentos.
Como último ponto de reflexão, acredito que a realização de
pesquisas, como a que aqui discuti, contribui para dar complexidade
às visões correntes na sociedade a respeito do analfabeto ou do
pouco-escolarizado, ao buscar apreender as trajetórias de vida e de
leitura dos sujeitos. Vítima, digno de piedade, incapaz de elaborar
articuladamente o pensamento e a fala, atrasado, o analfabeto ou
semi-alfabetizado é visto como alguém que precisa da ajuda do
alfabetizado (do intelectual, em particular), capaz de retirá-lo da
situação em que se encontra. Esses pressupostos assumidos, em
grande medida, nos programas educativos promovidos por diferentes
esferas do governo vêm norteando as políticas de combate ao
analfabetismo, especialmente as campanhas.
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Por mais que seja criticado na literatura especializada, o mito do
alfabetismo (cf. HARVEY GRAFF, 1994) parece constituir-se base dessas
ações governamentais: o papel dos agentes alfabetizadores afigura-se
como o de salvadores das populações que vivem nas trevas do analfabetismo.
Apesar de a aprendizagem inicial da leitura e da escrita ser
considerada um fator importante para a fruição de objetos de leitura,
a formação dos leitores não está diretamente associada à escola, nem
a níveis de escolarização. Zé Moreno, um dos entrevistados,
considerado um leitor fluente na medida em que é capaz de reconhecer
e definir signos da cultura letrada, como o prefácio e o índice de um
livro, e de consumir sofregamente diversos objetos de leitura, passou
menos de um ano na escola. Sua trajetória como leitor, iniciada com
folhetos ainda no engenho onde nasceu e morou até os dezesseis
anos, intensificou-se com a experiência urbana: cinema, livros de
detetive, histórias em quadrinhos, bem como os folhetos, o tornaram
um leitor incansável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intenção deste texto foi a de ao menos provocar algumas
reflexões que, acredito, podem suscitar debates entre aqueles que
trabalham em programas de educação de jovens e adultos, com base
nos resultados de uma pesquisa. Não se pretendeu indicar, por
exemplo, que os folhetos ou outras formas de literatura semelhantes
devam ou não ser utilizados em sala de aula como um instrumento
para a alfabetização ou o ensino da leitura e da escrita. Certamente,
em algumas situações, podem ser uma excelente ferramenta de
trabalho; em outras, talvez se revelem inócuos. O ponto de partida
para distinguir papéis tão diversos, possíveis de ser atribuídos à
presença dos folhetos de cordel na escola, é um conhecimento mais
aprofundado das diferentes práticas de leitura dos alunos — de
letreiros de ônibus a livros didáticos, passando por jornais, letras de
música e obras literárias —, dentro e fora do universo escolar, em
seu cotidiano e na sua trajetória pessoal anterior.
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Para aqueles que tiveram vivências prazerosas de leitura de folhetos
em algum momento de sua vida, será provavelmente significativo
retomá-las e torná-las um instrumento na reconstrução dessa trajetória
de vida. Refiro-me, por exemplo, às experiências de alguns migrantes.
Em contrapartida, parecerá forçado trabalhar com esse objeto de leitura
em sala de aula quando os alunos forem jovens moradores de centros
urbanos, mesmo do Nordeste, para quem o cordel é um objeto
desconhecido ou não significativo — entre as pessoas com quem
conversei na pesquisa, muitos jovens, moradores do Recife e de sua
região metropolitana, nunca haviam ouvido falar de cordel.
O fato é que, na história da educação — e certamente na atualidade
—, processos educativos, muitos deles ainda pouco conhecidos, têm
contribuído acentuadamente para a inserção de homens e mulheres
em determinados mundos culturais, de maneira independente da
escola, das políticas públicas e dos movimentos sociais organizados.
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RODA DE LEITURA: A LEITURA NO CENTRO
DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE
ALFABETIZADORES DE JOVENS E ADULTOS
Graça Helena Silva de Souza
A RODA DE LEITURA E O ATO DE ENSINAR E APRENDER A LER
E A ESCREVER
A roda de leitura é uma experiência de alfabetização de jovens e
adultos, que coloca a leitura no centro do processo alfabetizador.
Surge como um novo referencial para orientar as alfabetizadoras
na construção de práticas pedagógicas significativas para a aquisição
das competências de leitura e de escrita considerando a formação
de sujeitos que aprenderão ao longo de toda a vida.
Os sentidos que tenho buscado para direcionar meu trabalho
sobre as práticas da alfabetização e as reflexões em torno dessas
práticas , como orientadora pedagógica de um grupo de
alfabetizadoras, apontam para a compreensão de que o ato de ler e
escrever não é um mero desempenho mecânico adquirido pela repetição
e cópia. É, sim, um ato que se inscreve no universo de um projeto e
de um processo em que a linguagem é marca de humanização e de
singularização dos sujeitos. Esse ato diz respeito a ser ou tornar-se
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sujeito e autor, com intuito de praticar diferentes intervenções na
vida e no mundo com autonomia.
O processo de ensino e aprendizagem da leitura não se dá pela
mera conexão de letras, que, magicamente, mediante intensos
exercícios de repetição, produzem palavras com significados e
sentidos. Dessignificadas e descontextualizadas, tais palavras não
vão muito longe como possibilidade de constituir textos
significativos. Quando a leitura de diferentes textos permite ao
leitor a produção de sentidos e significações, ele certamente o fará
tomando por base as referências que o constituem como sujeito
histórico e singular.
Pensando nos sentidos do ato de ler e escrever em uma sociedade
que se organiza prioritariamente por meio da escrita (grafocêntrica),
percebe-se que o sujeito letrado não-alfabetizado (TFOUNI, 1995)
não participa dessa sociedade em iguais condições às dos letrados
alfabetizados. O sujeito letrado alfabetizado, de fato, tem mais
poder, e “(...) muitas vezes, como conseqüência do letramento,
vemos grupos sociais não-alfabetizados abrirem mão do próprio
conhecimento, da própria cultura, o que caracteriza mais uma vez
essa relação como de tensão constante entre poder, dominação,
participação e resistência (...)” (TFOUNI, 1995).
Sendo assim, superar a histórica interdição à leitura e à escrita é
um trabalho que se inscreve em uma perspectiva de libertação. Essa
interdição tem sido também responsável por relações de profunda
desigualdade em nossa sociedade.
O desafio que se vislumbra para a alfabetização é o de construir
práticas de autoria, de singularização dos sujeitos e de possibilitar
a construção de uma coletividade de pessoas para as quais o ato de
ler e escrever seja vital ao longo de suas trajetórias. Contrapondo-
se a uma perspectiva que reduz esse ato ao acesso a uma parcela do
código escrito, por meio de experiências pouco ou nada
significativas.
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289
ONDE SE REALIZA A EXPERIÊNCIA DA RODA DE LEITURA
A roda de leitura é uma das experiências desenvolvidas por
orientadores pedagógicos no Programa de Alfabetização de Jovens e
Adultos, da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro
Mova/RJ. O Programa estabelece diferentes parcerias com igrejas,
associações, ONGs, entre outras, constituindo uma alternativa à
educação de jovens e adultos fora da rede escolar. As turmas estão
localizadas em espaços informais, nas próprias entidades, ou em
diferentes locais e comunidades.
Nesse programa, venho apreendendo alguns aspectos sobre sua
construção e desenvolvimento. Destaco aquele que diz respeito à
ressignificação de espaços informais em salas de aula. Há um movimento
de invenção de relações e práticas pedagógicas de alfabetização que indica
que todo conhecimento implica uma construção, quanto à reprodução
de alguns modelos de relações de poder e de ensino, ao mesmo tempo
que revela um entendimento de que o conhecimento é algo a ser
transmitido por meio de práticas lineares e mecanicistas. Desse modo,
observo que em alguns grupos ainda predomina a lógica tradicional,
enquanto em outros predomina uma postura de maior abertura para
práticas inovadoras na alfabetização.
AS ALFABETIZADORAS E O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
As alfabetizadoras com quem atuo formam um grupo
heterogêneo quanto à formação e às vivências. Algumas têm o ensino
médio completo, outras não; outras têm o curso de magistério (escola
normal), e aquelas poucas que possuem nível superior, por diferentes
motivos, não atuam na área em que se formaram. Quase todas
participam, no entanto, de grupos ou de associações comunitárias.
Estar ligada a um desses contextos e modos de participação implica
ter diferentes práticas sociais, visão de mundo, de mulher, de homem,
de educação, entre outros.
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290
Essas alfabetizadoras trazem também em sua bagagem as
representações acerca da alfabetização, construídas tanto por suas
experiências anteriores, como alfabetizadoras, quanto por seus próprios
processos de alfabetização. Sua formação propõe a reflexão sobre essas
diferentes representações, que se revelam por meio de suas práticas,
bem como a avaliação sobre quais dessas práticas mais favorecem a
formação de sujeitos capazes de aprender por toda a vida e de se
constituírem leitores e escritores de diferentes textos em diferentes
contextos. Nessa diversidade é que a orientação pedagógica se organiza,
se articula, se desenrola.
A dinâmica de trabalho constituiu-se basicamente de visitas constantes
às vinte turmas e de reuniões semanais com o grupo de alfabetizadoras,
nas quais elas sempre manifestavam uma ansiedade que parece ser comum
aos docentes: como fazer? Apesar de essa ansiedade gerar uma grande
preocupação para aqueles que lidam com processos de formação, a
condução do trabalho teve como prioridade teorizar as práticas, valorizar
as intervenções pedagógicas, com permanentes avaliações coletivas sobre
elas, e valorizar, ainda, a autoria de novas práticas.
O fato de termos construído uma identidade como grupo de estudos
fez com que o conhecer adquirisse posição de centralidade na vida de cada
uma de nós. Assim, passou a ter significativo espaço em nossos
encontros o debate sobre os diferentes projetos de voltar a estudar. Nessas
conversas, nunca deixaram de ser visíveis as dificuldades que temos
nós, mulheres de articular e dar conta de nossos diferentes papéis.
O processo de formação que procurei construir é, especialmente,
um processo de desejo e de investimento no outro. Percebo que isso
contagia não só as alfabetizadoras, como também os alunos.
A RODA DE LEITURA
Não é uma experiência solta, sem referenciais. É inédita na sua
inscrição histórica em relação a este grupo e nas dinâmicas que a
constituem. No entanto, não deixa de refletir diferentes experiências
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291
de leitura e de alfabetização, em diferentes tempos e espaços. Como
metodologia para o processo de alfabetização, tal atividade propõe
e supõe inúmeras questões:
a) a leitura como produção de sentidos por e para sujeitos
(PFEIFFER, 1998);
b) a leitura como possibilidade de construção de sentidos por
sujeitos específicos, inscritos em condições socioistóricas
próprias;
c) a leitura oral coletiva como situação privilegiada para a
realização de uma multiplicidade de interações;
d) a leitura na roda como uma prática que contribui para que as
alfabetizadoras e os alunos, ambos sujeitos da alfabetização,
reconheçam-se como sujeitos históricos.
Valendo-se desses pressupostos, alguns encontros de formação
pautaram-se pelo relato de diferentes experiências de leitura entre
jovens e adultos e pelo estudo de diversos textos teóricos sobre a
importância da leitura. Superada essa etapa, as grandes perguntas
eram: Como fazer a roda? Que dinâmica a roda deveria ter em uma classe de
alfabetização?
A DINÂMICA DA RODA DE LEITURA PELAS ALFABETIZADORAS
Entre nós, buscando concretizar em práticas os resultados de
nossos estudos e reflexões, a roda de leitura assumiu a seguinte
dinâmica:
a) socialização de diferentes textos: para cada roda, um texto;
b) leitura oral coletiva, feita por uma de nós, para o grupo
acompanhar em leitura silenciosa;
c) leitura oral coletiva, em que cada uma lia um pequeno trecho
do texto (quando seu tamanho o possibilitava);
d) troca das diferentes produções de sentidos e significações que
o texto possibilita.
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A RODA DE LEITURA PELOS ALUNOS
Ao apresentar aos alunos a proposta da roda de leitura, as
alfabetizadoras precisavam, sobretudo, estar aptas a argumentar em
defesa da experiência, para negociar com as expectativas que estes
revelavam ter sobre o processo de alfabetização. Não poderia ser
conduzida como uma atividade a se realizar sem questionamentos,
sem legítima adesão, mas como uma proposta a ser discutida,
movimento pelo qual já se obtém um rico aprendizado para ambas
as partes: o desenvolvimento da capacidade de negociar e de construir
novas práticas de autoria coletiva.
A maior preocupação que um certo número de alunos manifestou
foi de se passar a dar maior importância à leitura, em detrimento da
escrita. As educadoras argumentaram que o trabalho com a leitura,
ao contrário das preocupações evidenciadas, propiciaria ocasiões de
produções escritas mais ricas e diversificadas, sem perspectiva alguma
de serem abandonadas ou relegadas a um segundo plano.
Na roda de leitura, os alunos passaram a vivenciar a condição de
autoria, essencial para a construção da autonomia. Resgata-se, nessa
atividade, o reconhecimento de que essa condição se realiza tanto
no discurso oral quanto no escrito. A face emancipatória da
experiência encontra-se, especialmente, no fato de possibilitar, aos
sujeitos, uma vivência de confronto e superação das profundas
interdições ao código escrito, pela prática solidária e significativa
propiciada pela leitura na roda. Além disso, permite percepção crítica
dos alunos sobre as condições em que se encontram e as relações
que mantêm com o conjunto da sociedade, o que faz ressurgir o fio
condutor de sua trajetória individual e coletiva, conferindo, à
educação, uma dimensão mais autêntica e legítima — o vínculo com
a vida e com a condição humana.
A dinâmica da roda de leitura, com os alunos, desenvolve-se da
seguinte maneira:
a) leitura oral, feita pela educadora, de forma pausada e com rica
expressividade;
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293
b) leitura oral coletiva, como um momento em que todos lêem
tanto aqueles que já têm alguma autonomia quanto os que não
a possuem. Essa leitura ainda é conduzida pela educadora;
c) leitura oral, feita pelos alunos individualmente e, depois, por
todos ao mesmo tempo. Nessa etapa, as alfabetizadoras
aproximam-se daqueles que não lêem com autonomia, e os
alunos com maior domínio de leitura também se colocam à
disposição para ajudar os colegas;
d) troca das diferentes produções de sentidos e significações que
o texto possibilita.
O JOGO DA RODA DE LEITURA NA PARÓQUIA DE SANTA SOFIA
Nessa paróquia, da Zona Oeste do Rio de Janeiro, funcionam
três turmas. As alfabetizadoras Jane, Tânia e Sílvia são pessoas muito
atuantes nas atividades da Igreja. Atuam em grupos de casais, em
pastorais, na organização de eventos festivos e na alfabetização de
jovens e adultos. Suas classes são muito procuradas, com um
movimento de busca permanente por parte de jovens e adultos.
Apesar de as turmas estarem localizadas em uma igreja católica, todos
entram e todos ficam.
As educadoras sempre tiveram a preocupação de escolher
diferentes tipos de texto, significativos para o grupo de alunos. Nessas
turmas, a roda de leitura adquiriu um grande vigor, em especial
porque o grupo tem perfil receptivo para a realização de experiências
inovadoras.
Meu relato toma por base uma filmagem da roda de leitura,
realizada por uma das alfabetizadoras, Sílvia, numa turma composta
basicamente por mulheres com idade acima dos 35 anos. Entre elas
há uma grande incidência de origem no norte e nordeste do país. O
texto escolhido foi a letra da música Asa Branca, de Luiz Gonzaga. A
escolha desse texto ocorreu por causa das ricas possibilidades de
produção de sentidos e significações pelo grupo.
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A dinâmica da roda cumpriu-se tal como descrita, em suas
diferentes etapas. Após a provocação da educadora Tânia
questionando o porquê da existência da seca e de ela continuar a
existir apesar de tantos avanços tecnológicos os depoimentos
começaram a surgir e, com eles, diferentes esforços para refletir
sobre essa realidade, resgatando a memória de sua própria vida,
das lembranças dos pais, das famílias, da infância e da juventude
no ambiente de seca, das privações da saciedade da sede e da fome.
Ricas e críticas análises foram elaboradas. Todos lembravam da
fome que a seca impôs à sua infância e adolescência. Lembravam-
se do trabalho na terra, de detalhes do que comiam e de como
carregavam a água por quilômetros, do modo como a extraíam de
diferentes cactos. Em todos, a lembrança das expectativas de vir
para a cidade grande, para o Rio de Janeiro ou São Paulo a
perspectiva da vida melhor. Nesse momento, a roda de leitura
cumpria um dos objetivos da aprendizagem: possibilitar o exercício
de saber ouvir o outro com atenção, com respeito e com cuidado.
As alfabetizadoras incentivavam os alunos a produzirem cada vez
mais reflexões.
Estela, uma aluna de mais de cinqüenta anos, refletindo sobre a
seca, relatou que, uma vez, o marido lhe contou que a seca existe
porque colocaram uma santa em um barco para fazer uma espécie
de procissão rio abaixo; o barco virou, e a santa se perdeu. E que a
seca existe desde então, como castigo pela perda da santa. Luzia,
aluna de mais de sessenta anos, muito crítica e reflexiva, fez várias
intervenções durante a discussão. Dentre elas, destaco: “A seca não
é um problema do governo de agora, é um problema que existe há
muito tempo e que sempre interessou aos políticos mantê-la, pois
a seca dá dinheiro. E nós bem sabemos que não dá só dinheiro, dá
poder”.
A roda possibilita que ressurja o fio condutor das trajetórias
individuais e coletivas dos alunos. Permite que eles aprofundem
suas percepções sobre as condições históricas e sociais, mas sempre
com uma perspectiva de superação e transformação, nunca de
estéril constatação.
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Quando vi pela primeira vez a fita gravada, pensei, profundamente
emocionada: “Eis a roda de leitura. Não é somente uma riquíssima
experiência de alfabetização, tendo a leitura como centro, é também
uma experiência humanizadora”. No movimento que as educadoras
fazem, de mediar as leituras e reflexões, elas sempre procuram indicar
os múltiplos olhares possíveis sobre o mesmo objeto. Desse modo,
ainda evidenciaram, na letra da música Asa Branca, que, no sertão da
seca, Luiz Gonzaga descreve alguém que deixa um amor Rosinha.
O amor também brota na vida árida do sertão e da seca.
A roda terminou, como era de se prever, com o grupo cantando
a música. Sem que estivesse previsto, uma aluna, Neumes, de mais
de cinqüenta anos, dirigiu-se para o centro da roda, dançando
alegremente um xaxado. Carregou a vida inteira o estigma de não
conseguir aprender a ler ou escrever, mas ali, na Paróquia de Santa
Sofia, nesse espaço ressignificado como sala de aula, ela não só está
se encontrando com o conhecimento, como, principalmente,
reencontrando a alegria, a auto-estima e a esperança.
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297
BIBLIOGRAFIA
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1999. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
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moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo.
5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São
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TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995.
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Entender-se com a matemática
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301
EXPLORANDO O USO DA CALCULADORA
NO ENSINO DE MATEMÁTICA PARA JOVENS E
ADULTOS
Antônio José Lopes (Bigode)
Demorou, mas enfim chegou. O debate, já antigo, mas sempre
incipiente, sobre o uso da calculadora no ensino de matemática
por fim ocupa a atenção daqueles(as) que se dedicam à educação
matemática, e em especial à educação matemática para adultos. Para
provar que não se trata de coisa nova: Malba Tahan já propunha
em 1961 que os cálculos trabalhosos e intrincados fossem feitos
por máquinas de calcular. Isso num tempo em que as máquinas
eram movidas a manivela. Mais recentemente há registros de
diversas experiências com educandos adultos explorando
calculadoras no ensino de matemática, como as de Gelsa Knijnik
com os trabalhadores sem-terra do Rio Grande do Sul, ou as de
Eduardo Sebastiani com povos indígenas do Brasil Central, só para
citar alguns membros da comunidade da educação matemática
brasileira que trabalharam o tema da calculadora.
Houve um tempo em que se alegava, para não explorar a
calculadora, tratar- se de um objeto caro. No meu entender isso
era mera desculpa, além do que já atropelada pelo fatos. Hoje uma
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302
calculadora custa menos do que um maço de cigarros, não polui e
nem faz mal à saúde. Esse discurso, com aparentes intenções sociais,
só serviu par aumentar ainda mais o fosso entre dirigentes, que têm
acesso ao conhecimento e à tecnologia, e os dirigidos, privando estes
últimos do acesso e domínio dessa mesma tecnologia. No entanto, o
que sempre emperrou uma tomada de posição mais firme sobre a
presença das calculadoras no ensino foram as crenças, não firmadas
por investigações consistentes, de que alunos e alunas, não importa
a faixa etária ou condição social, “ficariam preguiçosos”,
“desaprenderiam os algoritmos” ou “deixariam de raciocinar” caso
usassem calculadoras na escola. Isso é tão verdadeiro quanto o velho
mito de que “manga com leite faz mal à saúde”.
Não basta, porém, combater esses mitos. Muitos educadores,
libertos da idéia de que a calculadora não traz malefícios ao ensino,
inverteram a questão: “Se o estudo da matemática com calculadora
não faz mal, por que faria bem?
Eis uma boa questão para refletir e tomar posição a fim de se
ajustar aos tempos atuais.
PROBLEMAS REALMENTE REAIS E NÚMEROS MAL COMPORTADOS
A calculadora possibilita aos indivíduos enfrentar os problemas
realmente reais com números verdadeiros. Esses são geralmente
números “mal comportados”, com muitas casas decimais ou frações
com seus denominadores esquisitos, tais como aparecem na vida
cotidiana e nas atividades profissionais.
Em nossa tradição curricular desenvolveu-se o mau hábito de
“esconder o perigo”. A realidade é mascarada em nome de uma certa
facilitação. Os textos didáticos, em sua maioria, evitam colocar seus
leitores frente às situações com seus números verdadeiros, atualizados
e realistas. Entretanto os indivíduos do nosso mundo real, ao abrir
um jornal, consultar uma tabela ou ler um relatório, encontram pela
frente números como 365 (número de dias de um ano); preços como
R$ 3,72 por quilo de um certo corte de carne; porcentagens do tipo
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0,25% que corresponde ao desconto do IPMF; ou ainda fatores como
1,0234 para corrigir uma certa prestação. Os números mal
comportados são implacáveis para todos os que administram os
descontos de seus salários para pagar as contas cotidianas.
Qualquer nível de ensino deve promover a aproximação da
atividade matemática com a realidade onde estão os problemas com
que professores e alunos se defrontam.
CALCULADORAS: UMA FERRAMENTA EM EXTINÇÃO?
Por outro lado, as operações com os chamados números mal
comportados são trabalhosas e demoradas, se utilizados os algoritmos
usuais. Os sistemas financeiros e administrativos dos setores comercial,
industrial e de serviços que dominam a maioria das atividades
profissionais já se deram conta disso há décadas, e cálculos como 1,0234
x R$38,57 são feitos por máquinas, calculadoras ou computadores,
pela rapidez e economia de tempo que proporcionam. No mundo
atual, saber fazer cálculos com lápis e papel é uma competência com
importância relativa, que deve conviver solidariamente com outras
modalidades de cálculos como estimular, calcular mentalmente e usar
adequadamente uma calculadora simples. Os indivíduos não podem
ser privados de operar e dominar uma tecnologia que interfere em sua
vida. Esse processo evolutivo é histórico: hoje são as calculadoras e
computadores, ontem foram as tabelas e as réguas de cálculo; quanto
ao amanhã podemos apenas especular – as máquinas leitoras de barras
com seus sensores ópticos estão aí para instigar nossa imaginação.
Devemos fazer bom proveito das calculadoras enquanto elas forem
úteis e ainda estiverem à nossa disposição.
O uso da calculadora possibilita que os indivíduos, libertos da
parte enfadonha, repetitiva e pouco criativa dos algoritmos de
cálculos, centrem sua atenção nas relações entre as variáveis dos
problemas que têm pela frente. Possibilita ainda que possam verificar,
fazer hipóteses, familiarizar-se com certos padrões e fatos, utilizando-
os como ponto de referência para enfrentar novas situações. Libertos
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304
da execução do cálculo, os indivíduos se aventuram com mais
disponibilidade a colocar as coisas em relação; esboçar, simular e executar
projetos; investigar hipóteses. Em outras palavras, um bom uso dos
instrumentos de cálculo contribui para que os indivíduos desenvolvam
estruturas cognitivas de mais alto nível.
Arquitetura das calculadoras
Se estamos de acordo que o uso da calculadora tem o poder de
oxigenar a atividade matemática, então é importante conhecer a natureza
do objeto calculadora, compreender seus mecanismos e tirar o máximo
proveito de sua arquitetura e funções.
A maioria das calculadoras tem em comum o fato de permitirem
realizar as quatro operações básicas. Daí em diante, as possibilidades de
uso vão depender da arquitetura dos sistemas de cada uma, com suas
respectivas capacidades de memória, funções e outros atributos. Há
uma grande diversidade de calculadoras disponíveis. Para conhecer uma
calculadora e suas possibilidades recomenda-se explorar certas atividades,
cada uma com objetivos específicos.
Teclado e visor
Comunicamos às calculadoras o que queremos fazer por meio do
teclado. A calculadora comunica o que está realizando ou o que realizou
por meio do visor. Uma calculadora simples tem teclas numéricas, de
operações, de memória e de limpeza.
As teclas numéricas, de operação e o visor.
As teclas numéricas não têm segredos, as de operações é que diferem
de acordo com o modelo. Para os objetivos deste artigo omitirei uma
discussão sobre operações e funções especiais para concentrar o foco
do texto nas calculadoras básicas.
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305
O visor, de modo geral, comporta oito posições. As calculadoras
científicas ou financeiras podem ter dez ou doze posições. Uma vez
que a quantidade de dígitos que o visor comporta é limitada nas
calculadoras elementares, não é possível obter o valor verdadeiro de
um número com mais do que sete casas decimais, como é o caso do
número 0,123456789, ou ainda de dízimas periódicas ou números
irracionais. Nesse caso elas só podem exibir aproximações, truncando
ou arredondando.
Para saber se uma calculadora trunca ou arredonda pode-se propor
aos(às) alunos(as) tentar obter o resultado de frações (associando-as
à divisão) cujas expansões decimais sabemos que são infinitas, como
1/3 ou 2/3
Ao teclar 1÷3 o visor vai exibir 0,3333333
Nesse caso não é possível saber se a máquina truncou ou
arredondou.
Teclando 2÷3 o visor vai exibir 0,6666666 (se truncar) ou
0,6666667 (se arredondar).
Atente para o fato de que a exploração da calculadora para
compreender seu funcionamento possibilita mergulhar os alunos(as)
na introdução ou aprofundamento de conceitos ou procedimentos
tais como frações, números decimais, representações numéricas,
idéias de operações, dízimas, aproximações etc.
As teclas de memória
As calculadoras têm dispositivos conhecidos como memória. As
memórias da calculadora são ativadas pelo teclado. Numa calculadora
simples há três tipos de memória.
A memória aditiva é ativada quando a tecla M
+
é apertada. Ao
apertar essa tecla pela primeira vez a calculadora guarda o número
registrado pelo visor na memória, que funciona como uma espécie
de acumulador. Quando apertada pela segunda ou terceira vez, a
calculadora adiciona o número registrado no visor ao conteúdo que
está acumulado na memória.
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306
A memória subtrativa é ativada quando é apertada a tecla M
-
(M
-
ou M- dependendo do modelo). Essa tecla executa uma tarefa
semelhante à anterior. Entretanto, ao acioná-la, o valor registrado
no visor é subtraído do conteúdo acumulado na memória.
Como recuperar ou chamar o conteúdo acumulado na memória?
A tecla que recupera o acumulado na memória pode ser
identificada por qualquer uma das seqüências de letras seguintes,
dependendo do modelo: RM, MR, RCL.
Investigações mostraram que a maioria dos adultos que utilizam
calculadoras desconhecem a função das teclas de memória e não as utiliza.
RM: (Recall Memory: chamar a memória)
MR: (Memory Recall)
RCL:(Recall)
MRC:(Memory Recall and Clear: chama a memória e limpa)
Eis aqui uma situação comum parecida com muitas das que
encontramos pela frente. Suponha que você precisa comprar três
dúzias de lápis, 15 blocos de papel e 18 calculadoras para um
curso sobre “uso inteligente das calculadoras de bolso”. O cálculo
que deve ser feito para encontrar o gasto totol é:
36x0,30+15x0,75+18x1,20
Nos cálculos com lápis e papel, costuma-se fazer quatro contas:
36 x 0,30 (o que você vai gastar com os lápis);
15 x 0,75 (o que você vai gastar com os blocos de papel);
18 x 1,20 (o que será gasto com as calculadoras);
10,8 + 11,25 + 21,6 (a soma dos resultados, para obter o gasto
total).
Utilizando as teclas de memória obtém-se o gasto total teclando
a seguinte seqüência:
36 x 0,30= M+ 15 x 0,75= M+ 18 x 1,20 M+MR
1 2 3 4
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Algumas calculadoras exigem que, antes de enviar o resultado de
uma operação para a memória deve-se teclar = para obter o resultado
da operação, caso contrário ela envia o último registro. Há outras
máquinas que efetuam o cálculo tão logo se tecla M+ ou M-.
As teclas de limpeza, como o próprio nome indica, servem para
limpar os conteúdos do visor ou da memória.
As teclas C ou CE limpam a última entrada digitada. Para limpar
o conteúdo acumulado na memória deve-se teclar MC ou CM. As
teclas AC ( AII Clear) ou CA limpam todos os registros.
Ainda na fase da aprendizagem do funcionamento das calculadoras,
merece destaque o tópico sobre a hierarquia das operações.
1. Ao apertar M+, a máquina envia o valor 10,8 [resultado da
operação 36 x 0,30], para a memória.
2. A máquina soma o valor 11,25 [resultado da operação 15 x
0,75] ao valor 10,8 já acumulado na memória. O total é 22,05.
3. Novamente, a máquina soma o valor 21,6 [resultado da
operação 18 x 1,20] aos 22,05 acumulados na memória.
4. A tecla MR exibe o total acumulado na memória [43,65].
Se você deu uma nota de R$ 50,00 e quer saber quanto vai
receber de troco, basta acionar a seqüência: 50 M+ 36 x 0,30=
M- 15 x 0,75= M- 18 x 1,20 M- MR
O resultado 6.35 deve surgir no visor em menos de dez
segundos.
Tente executar, na ordem em que estão escritas, as operações da
expressão: 2+3x5
Um matemático, seguro da velha ordem das coisas em que
primeiro vêm as operações multiplicativas e depois as aditivas,
esperaria 17 como resultado. Mas a maioria das calculadoras vai
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exibir o numero 25, isso porque as calculadoras estão
programadas a executar os cálculos na ordem em que eles são
teclados.
É importante reconhecer esse fato para poder fazer um bom
uso das calculadoras. Imagine um conferente que controla os
valores de uma tabela com cinco colunas de entrada: com uma
mão ele opera a calculadora e com a outra ele anota o resultado
final, na última coluna:
Como indica a fórmula, para calcular o preço, o conferente
deve somar os valores de A e B e dividir o resultado pela soma
dos valores de C e D. Portanto, para obter o preço é necessário
calcular:
147,28+23.47
237+378
Sabendo que a calculadora não segue a ordem usual das
operações tal como aprendemos na escola, devemos “deixar
pronto” na memória o resultado da soma do denominador,
para aí sim somar as parcelas do numerador e dividi-las
acionando a memória. A seqüência de teclas a serem acionadas
a fim de produzir o resultado diretamente no visor é, portanto:
237+378= M+ 147,28+23,47= ÷MR
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309
A tecla de operador constante
Um importante recurso das calculadoras é a tecla de operador
constante, desconhecida da maioria das pessoas, incluindo aí usuários
tradicionais como bancários e professores. A tecla de operador
constante é a tecla [=].
Experimente teclar: 2+3= = = = =
Teclas acionadas: 2+3 = = = = =
[o que aparece no visor] 5 8 11 14 17
teclando 3+2 = = = = = a seqüência gerada é 5, 7, 9, 11,13,...
teclas acionadas: 2x3 = = = = =
aparece no visor: 6 12 14 48 96
teclando 3x2 = = = = = .. a seqüência gerada é 6,18,54,192,486.
Esse recurso é bastante útil para enfrentar certos problemas que
envolvem taxas fixas. Imagine um país que tem inflação mensal de
20% ao mês. De quanto em quanto os preços dobram?
Se tomamos uma das idéias da porcentagem, a de taxa, o fator
multiplicativo 1,2 permite obter o valor final de um produto após
o aumento de 20%.
Teclando 1,2x = = = = =..
O fator 1,2 funciona como operador constante. Basta ficar de
olho no visor para saber quando é que se atinge o número 2,
contando ainda o número de tecladas do “=” (na primeira teclada
obtemos 1,2
2
= 1,44). Assim, podemos descobrir que na virada
do quarto para o quinto mês os preços dobram.
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310
Esse artifício serve também para prever quando uma dívida (sobre
a qual incidem juros a uma taxa de 10% ao mês) vai dobrar. Aqui o
fator multiplicativo que corrige a dívida é 1,1. Fazendo 1.1x= = =
= = = = descobrimos que em sete meses somos duplamente mais
devedores.
A calculadora possibilita o estudo de conceitos complexos antes
reservados às séries mais avançadas. Com o recurso da tecla de fator
constante, os juros compostos deixam de ser assunto inacessível para
qualquer indivíduo que tenha uma cultura mínima sobre números
racionais e porcentagem.
Certos profissionais utilizam raízes quadradas ou cúbicas para
avaliar medidas.
Seja por exemplo um pedreiro que tem que avaliar as dimensões
de um reservatório aproximadamente cúbico com 2000 m
3
de
capacidade. Não existe a tecla
3
nas calculadoras elementares. O
problema pode ser resolvido pelo método das aproximações
sucessivas. Para elevar um número x ao cubo teclamos: x x = =
(por exemplo 2
3
pode ser obtido teclando 2x = =. O resultado
no visor será 8)
Voltemos ao problema do pedreiro e vamos tentar descobrir quais
são as dimensões do reservatório através de aproximações, usando
a tecla de fator constante:
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311
ESTIMATIVA E CÁLCULO MENTAL
A calculadora pode ser utilizada para desenvolver habilidades de
estimativa e cálculo mental. No modelo de escola tradicional que
temos hoje o cálculo mental e as estimativas perderam prestígio,
provavelmente devido à onda da Matemática Moderna
1
, que assolou
a maior parte do mundo nos anos sessenta e setenta. Paradoxalmente,
nesta virada de século, outras modalidades de cálculos ganham
importância. Chamarei aqui de competências de cálculos às
capacidades dos indivíduos para estimar, fazer cálculo mental,
compreender as operações e executar os algoritmos e por fim operar
com inteligência uma calculadora. Uma vez que as máquinas
realizarão os cálculos, caberá aos indivíduos controlá-los.
Numa análise superficial do cotidiano de uma pessoa comum (não
especialista), vamos nos dar conta de que são cada vez mais escassas
as situações em que se tem que realizar um cálculo na ponta do lápis.
Por outro lado, fazemos com freqüência estimativas e cálculos de
cabeça. Rareiam os indivíduos que têm o habito de conferir todas as
contas (extratos bancários, notas de supermercados, contas de luz
etc.), dada a confiança mítica que as máquinas provocam. É muito
mais comum ver uma pessoa controlando seus extratos ou contas
com um simples passar de olhos.
Sabemos, portanto, que a raiz cúbica de 2000 está entre 12,59 e
12,6. Essa resposta talvez forneça um grau de precisão bastante
elevado para as necessidades do pedreiro, para quem a informação
de que 12<
3
2000 <13, eventualmente,basta.
* O Movimento da Matemática Moderna influiu nos currículos e no ensino da matemática
da maioria dos países ocidentais nas décadas de sessenta e setenta. Caracterizou-se por
uma ênfase exagerada na linguagem da teoria dos conjuntos, na prevalência da álgebra
sobre a geometria, no estudo das estruturas dos conjuntos numéricos, na perda de
significado das situações pela pouca atenção às aplicações e relação com a matemática do
cotidiano e por privilegiar um rigor além das necessidades e capacidades dos alunos.
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312
Para a maior parte das necessidades cotidianas basta saber que
123,76 + 875,33 é aproximadamente 1000. Este é um ponto
importante: qualquer proposta de ensino que pretenda levar o
alunos(as) a aprender a realizar cálculos tem que equilibrar a relação
entre essas quatro modalidades de cálculos.
A estimativa pode ser potencializada com o auxílio da calculadora.
Atividade 1)estime, sem fazer os cálculos, qual o resultado
mínimo e máximo possível das contas a seguir.
Os alunos escolhem os intervalos e em seguida utilizam a
calculadora para conferir se suas estratégias de estimação de resultados
estão refinadas.
Atividade 2) Dê o valor aproximado de 78,35.
Aqui é importante ter pontos de referência como 64 e 81, que
são quadrados perfeitos.
64< 78,35 <81, então 8< 78,35 <9 é um bom intervalo.
Tal como na atividade 1), a calculadora é utilizada para confirmar
e valorar a estratégia utilizada.
O cálculo mental pode ser explorado através de atividades que
põem em evidência as propriedades operatórias, tais como:
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313
Agora, temos este outro:
Atividade 3)Realize os cálculos abaixo sem acionar as teclas
indicadas como “quebradas”:
Atividade 4) Encontrar o resto de 1432 ÷ 13.
Este último é um tipo de problema que as calculadoras comuns
não têm estrutura (refiro-me à arquitetura dos circuitos) para
resolver, uma vez que o visor é único e não tem duas saídas para
exibir o quociente e o resto. Enquanto o problema pode ser resolvido
desde que resgatemos as principais idéias da divisão e a estrutura do
algoritmo usual. Acompanhe:
Ao teclar 1432 ÷ 13 =
Obtém-se no visor o número 110.15384
A partir daí, há duas estratégias que permitem obter o resto:
a) 110 x 13 = 1430
1432 – 1430 = 2
O resto é 2
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Do que foi visto até agora, conclui-se que a calculadora contribui,
e muito, para consolidação de conceitos e procedimentos aritméticos,
o que coloca abaixo o mito de que não se raciocina quando se utiliza
a calculadora. Sem raciocínio, os problemas aqui colocados não
seriam resolvidos. Caberá ao(à) professor(a) preparar-se e decidir
como utilizará a calculadora, se para introduzir conceitos e
procedimentos ou aprofundá-los através de atividades e problemas
significativos.
CALCULADORA COMO FERRAMENTA PARA A INVESTIGAÇÃO
MATEMÁTICA
Este artigo não pretende esgotar as possibilidades de trabalho com
a calculadora; no entanto, deixaríamos uma lacuna se não fizéssemos
referência às possibilidades de investigação matemática com o auxílio
da calculadora.
Essa estratégia realça a estrutura do algoritmo:
D d D = Q x d + R, logo
R Q R = D – Q x d
b) 110.15384 – 110 = 0,15384
0,15384 x 13 = 1.99992
O resto é 2.
Essa estratégia realça o significado da parte decimal do resultado da
divisão (0,15384) como sendo o resto dividido pelo divisor. Assim,
multiplica-se a parte decimal pelo antigo divisor (13), obtendo-se
1,99992. Conhecendo os limites das calculadoras comuns que, em
sua maioria, truncam, pode-se entender que esse resultado é uma
aproximação do resto, que sempre é um número inteiro.
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315
Em outro de seus paradoxos, embora a calculadora como objeto
matemático por excelência tenha um uso e uma função utilitária
ilimitada, pode e deve ser usada com finalidades nada utilitárias, voltadas
para aspectos recreativos de fortes componentes afetivos estéticos
associados à investigação matemática. Acompanhe a seguinte atividade
inspirada nos livros de matemática recreativa de Malba Tahan:
Quadrados invertíveis.
Pense um número qualquer;
Eleve-o ao quadrado;
Inverta a ordem do resultado;
Ache a raiz quadrada deste número;
Inverta a ordem do resultado.
Se o número obtido é o número que você pensou então ele é um quadrado invertível.
Acompanhe os passos.
Um número : 12
Seu quadrado : 12
2
=144
Invertendo a ordem dos algoritmos: 441
a raiz quadrada de 441 é: 21
invertendo a ordem do resultado: 12
Ahá!
12 e 21 têm quadrados invertíveis.
Atividades:
1) Descreva algumas condições para que um quadrado perfeito seja invertível..
2) Estude entre as dezenas menores do que 20 quais têm quadrados invertíveis.
(Solução 13
2
= 169 e 961 = 31
2
3) Mostre que 102
2
e 201
2
são quadrados invertíveis.
4) Mostre que 112
2
e 211
2
são quadrados invertíveis.
5) Descubra outros quadrados invertíveis.
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Essas atividades ilustram alguns dos aspectos do que se entende
que seja a atividade de investigação no ensino da matemática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As idéias aqui discutidas sobre calculadora são apenas uma amostra
de um conjunto bastante rico de atividades significativas, cujo
propósito é levar os indivíduos de qualquer idade, sexo ou condição
social extrair o máximo de sua capacidade cognitiva. Cabe ao(à)
professor(a) explorar por si as calculadoras e as atividades a elas
associadas para propor aos alunos situações didáticas que os
preparem verdadeiramente para enfrentar problemas reais que
encontram na escola, no trabalho ou nas atividades cotidianas.
Devemos estar preparados(as) para desafios bem mais complexos
que já estão vislumbrados pela presença cada vez maior das novas
tecnologias em nossa vida. Cabe à escola, formal ou não, ter os
olhos no futuro para melhor agir sobre o presente. No momento
presente não há mais lugar para o adestramento de alunos(as) para
resolver problemas ou executar técnicas obsoletas. A aceitação das
calculadoras no ensino põe tudo isso em questão.
Novas ferramentas: novos problemas e novos conteúdos conceituais e
procedimentais
No que se refere especificamente à formação de adultos, cabe
alertar para a tentação utilitária que caracteriza a maioria da
experiências. É fato que o adulto já está inserido no mundo do
trabalho e, portanto, deve ser preparado para resolver os problemas
“técnicos” próprios de suas atividades profissionais. De outro lado,
merece atenção a mudança do perfil profissional exigido pelo
desenvolvimento da tecnologia. Nesse novo cenário ganham espaço
aqueles indivíduos com formação para a diversidade, preparados para
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enfrentar problemas novos, com capacidade para simular, fazer
relações complexas, articular variáveis, elaborar modelos, investigar,
codificar e decodificar, comunicar-se, tomar decisões e aprender por
si. Todos esses atributos são necessários para a formação do homem
de hoje, não importando se ele é marceneiro, metalúrgico, bancário
ou empresário.
Uma conseqüência disso é que atividades com objetivos estritos
de desenvolver o pensamento matemático, tal como proposto nos
exemplos de exploração das propriedades de suporte do cálculo
mental ou ainda no tópico final sobre investigação matemática,
devem ter seu lugar ao sol, na hora de selecionar e organizar os
problemas e conteúdos a serem trabalhados.
Dentro de dez ou quinze anos a ação humana estará em franca
extinção. As calculadoras de hoje serão peças de museu. Quais serão
as novas ferramentas, os novos problemas e os novos conteúdos?
Preparar indivíduos para esse cenário, queiramos ou não, é um desfio
que qualquer educador(a) tem que enfrentar.
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BIBLIOGRAFIA
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1989.
BIGODE, A. J. L. Matemática atual. São Paulo: Atual Editora, 1995.
(Coleção de 5ª a 8ª série com vários capítulos sobre o uso de
calculadoras).
CASTRO, E. et alii. Estimación en calculo y medida. Madrid: Editorial
Síntesis, 1989.
GIMENEZ, J.; GIRONDO, L. Cálculos en la escuela. Barcelona: Graó,
1993.
LINS, R.; GIMENEZ, J. Perspectivas em aritmética e álgebra para o século
XXI. Campinas: Papirus, 1997.
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EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E EJA
Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca
Não é raro alunos jovens e adultos relembrarem experiências
de matemática que vivenciaram numa passagem anterior pela
escola. Seus alunos já explicitaram essas lembranças nas suas aulas
de matemática? Neste artigo, você compreenderá a importância
desses conhecimentos escolares de matemática trazidos pelos jovens
e adultos. Identificará como essas reminiscências facilitam e
justificam a inserção dos alunos no espaço escolar e os constituem
em verdadeiros sujeitos de ensino e aprendizagem. Perceberá
também que existem momentos na sala de aula dedicados a reviver
experiências escolares de matemática, para que se possa
reorganizar, re-significar e relacionar essas memórias com outros
conhecimentos já dominados ou completamente novos.
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Pode-se dizer que a discussão sobre a educação matemática veio
ganhando, nos últimos anos, um espaço significativo entre as
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preocupações de professores e alunos da educação de jovens e
adultos (EJA), dos pesquisadores e dos responsáveis pela elaboração
e implementação de propostas institucionais desta área. De certa forma,
isso reflete um deslocamento dessas preocupações: antes mais fortemente
concentradas na luta pelo direito à escola, elas agora se voltam mais
intensamente para as questões de ensino-aprendizagem, buscando
aprimorar a qualidade das iniciativas implementadas, especialmente
pela consideração das especificidades do público a que atendem.
Por outro lado, também na comunidade da educação matemática,
professores, pesquisadores, responsáveis pela formação de educadores
ou por parâmetros e propostas curriculares, entre outros, passaram a
preocupar-se mais com a adequação do trabalho pedagógico às
características, demandas, expectativas e desejos dos aprendizes,
tomados como um dos aspectos definidores do projeto educativo a
ser desenvolvido. Nessa perspectiva, a caracterização do público da
EJA, não apenas por um corte etário, mas por suas especificidades
socioculturais (OLIVEIRA, 1999), tem inserido a educação
matemática de jovens e adultos em linhas de trabalho da educação
matemática que procuram resgatar tanto a intencionalidade dos sujeitos
que produzem, usam ou divulgam o conhecimento matemático quanto
as influências da cultura e das relações de poder impressas e manifestas
nos modos de produção, uso e divulgação desse conhecimento. O
propósito desse resgate é promover um aprendizado mais significativo
não apenas do ponto de vista de uma compreensão individual, mas
delineado pelo processo de construção coletiva e histórico-cultural
do conhecimento matemático, de sua utilização social e da crítica
política que define as posições dos sujeitos nesses processos.
É claro que estamos falando de tendências e que em muitas
iniciativas de EJA tais preocupações ainda não permearam o ensino
da matemática. Mas hoje já se tem bem estabelecido, pelo menos no
nível do discurso, o reconhecimento da importância da matemática
para a solução de problemas reais, urgentes e vitais nas atividades
profissionais ou em outras circunstâncias do exercício da cidadania
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vivenciadas pelos alunos da escola básica, especialmente quando se
trata de alunos jovens e adultos. Assim, não são raras as advertências
quanto ao cuidado com esse aspecto nos textos analíticos ou
prescritivos produzidos pela comunidade da educação matemática
e, particularmente, naqueles destinados a ações de EJA (DUARTE,
1986; CARRAHER, 1988; MONTEIRO, 1991; MST, 1994;
CARVALHO, 1995; KNIJNIK, 1996; RIBEIRO, 1997; ARAÚJO,
2001; WANDERER, 2001). Todos esses trabalhos não apenas trazem
uma análise da relevância social do conhecimento matemático como
enfatizam a responsabilidade das escolhas pedagógicas que devem
evidenciar essa relevância na proposta de ensino de matemática que
se vai desenvolver. Para isso, a proposta deverá contemplar
problemas realmente significativos para os alunos da EJA em vez de
insistir nas situações hipotéticas, artificiais e enfadonhamente
repetitivas, forjadas tão-somente para o treinamento de destrezas
matemáticas específicas e desconectadas umas das outras, inclusive
de seu papel na malha do raciocínio matemático.
REMINISCÊNCIAS DA MATEMÁTICA ESCOLAR DOS ALUNOS DA EJA
Mas se a preocupação com o reconhecimento e de alguma maneira
com o tratamento das experiências da vida cotidiana do aluno já se
estabeleceu no discurso de educadores e pesquisadores da EJA, pouco
ou nada se tem dito sobre as experiências escolares anteriores de seu
público, muito embora a maioria de nós, professores que trabalhamos
com adultos, e principalmente os que trabalhamos com o ensino da
matemática, não raro nos refiramos à insistência de nossos alunos em
tentar resgatar essas experiências.
Se chamamos aqui a atenção do leitor para a recorrência desse
procedimento adotado pelos alunos da EJA nas interações de ensino-
aprendizagem, é por considerar que a recordação dos conhecimentos
escolares é muito mais do que uma tentativa de abreviar o processo
de aprendizagem do presente aproveitando o que se lembra do passado.
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Compreendemos esse esforço de resgate e manifestação dessas
lembranças como ação social organizada e, como tal, como um dos
elementos definidores da identidade sociocultural dos alunos da EJA.
Com efeito, os conceitos e as proposições, as estratégias e os
procedimentos, os termos e as representações gráficas, as aplicações e as
avaliações do conhecimento matemático que se resgatam e se reestruturam
no discurso dos alunos da EJA devem ser tomados como versões
pragmáticas, intencionais, e não só como fragmentos de conhecimentos
adormecidos ou mutilados. Quando os alunos falam de suas lembranças
da matemática escolar, quando se baseiam nelas para construir uma linha
de argumentação ou quando as questionam para formatar um novo quadro
para a organização de suas idéias, mas, sobretudo, quando as compartilham
com seus colegas e professores, as motivações, os conteúdos, os formatos
e as repercussões dessas reminiscências ultrapassam a natureza e as
vicissitudes da cognição individual. As lembranças da matemática, ou
melhor, aquilo que os alunos dizem do que lembram, podem ter sido
resgatadas da experiência individual de um sujeito; mas também se
formaram a partir de experiências de outras pessoas, que lhes foram
narradas ou sugeridas, e ainda a partir de inferências que se constroem na
combinação e no conflito de tantas representações de escola e de
matemática escolar que circulam na sociedade.
Uma vez inseridas nas interlocuções que acontecem na sala de aula,
essas lembranças tornam-se versões coletivas, porque são forjadas num
modo de conceber e lidar com a matemática que foi construído histórica
e culturalmente e com a mediação decisiva da instituição escolar. Essa
mediação não agiu apenas no passado, determinando os conteúdos e
algo dos formatos das lembranças. A cena escolar presente, os valores
da escola, seu papel social e o papel que desempenha na história de vida
do sujeito, aluno da EJA, é que determinam as condições de produção
e a realização dos enunciados que veiculam essas reminiscências: as
oportunidades em que o sujeito pode e se dispõe a lembrar e a falar do
que lembra; as intenções dessas lembranças e desse dizer; a seleção do
material lembrado e as escolhas dos termos, da entonação, do
interlocutor preferencial que definem o modo como se fala; as
repercussões esperadas e seu acontecimento; enfim, a inserção das
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lembranças no jogo das interlocuções que acontece na sala de aula e
que se constitui no espaço de negociação de significados no qual se
estabelecem os processos de ensino e aprendizagem.
A NATUREZA SOCIOCULTURAL DA RECORDAÇÃO
Se assumimos como decisiva para a definição de um projeto
educativo na EJA a caracterização de seu público como grupo
sociocultural é porque acreditamos que a essa identificação
corresponde também uma identidade nos modos de relação com as
instituições sociais. Como grupo sociocultural, os alunos da EJA têm
perspectivas e expectativas, demandas e contribuições, desafios e
desejos próprios em relação à educação escolar. Em particular, nas
interações que têm lugar, ocasião e estrutura oportunizadas pelo
contexto escolar e, mais do que isso, num contexto de retomada da
vida escolar os sujeitos tendem a privilegiar os modos de relação com
a escola que possam ser social e culturalmente compartilhados e, a
partir desse marco sociocultural, valorizados.
A reflexão que queremos propor aqui considera, pois, que os alunos
da EJA compartilham uma memória matemática coletiva, sociocultural,
ao mesmo tempo presumida e construída no âmbito das interações
discursivas. Eles não lembram por acaso, nem lembram qualquer coisa,
nem lembram de qualquer jeito, nem lembram sozinhos. Ao expressar
suas lembranças da matemática escolar, justamente aquelas lembranças
e naquelas situações específicas, o aluno da EJA mobiliza os temas e os
estilos que ele julga que aparecerão na atenção do ouvinte por efeito da
interação verbal, efeito que ele antecipa e quer causar.
Aos educadores preocupados com a constituição dos alunos e
das alunas da EJA como sujeitos de ensino e aprendizagem caberia,
portanto, dispensar um cuidado especial às situações em que tais
lembranças emergem nas aulas de matemática ou de qualquer outro
assunto, tomando-as como instâncias de negociação de significados
do saber escolar, como uma demanda do presente, do jogo
interlocutivo, que pede uma reativação seletiva do passado.
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LEMBRANÇA, METACOGNIÇÃO E NEGOCIAÇÃO DE SIGNIFICADOS
Para melhor compartilhar com o leitor essa nossa reflexão, trago
aqui um pequeno trecho de uma discussão sobre as expressões
aritméticas, que teve lugar numa sessão realizada com alunos que
iniciavam o equivalente à 5
ª
série, no Projeto de Ensino Fundamental
de Jovens e Adultos da UFMG
1
, depois de no mínimo onze anos
sem freqüentarem a escola. Os alunos haviam resolvido a expressão
proposta pela pesquisadora, a título de sondagem, sem que qualquer
um deles tivesse logrado chegar ao resultado correto. Atendendo à
solicitação desses alunos, a pesquisadora pôs-se a orientá-los sobre
os procedimentos para resolvê-la:
# 20/5/98
943. Pesq.: Primeiro, eu faço as contas de dentro dos parênteses,
tá vendo?
944. Orlanda: (...) que, às vezes, pode ser outra...
945. Pesq.: É, faz as contas de dentro dos parênteses.
946. Lu(Luduvina): (sussurrando) Elimina os parênteses
947. ZE(José Eustáquio): Em qualquer hipótese você tira, faz
primeiro os parênteses?
948. Pesq.: Os parênteses.
949. Lu: Tinha isso mesmo: “primeiro eliminar os parênteses”
950. ZE: Anrã!
951. Orlanda: Depois, multiplico!
952. Pesq.: Não, depois os colchetes, depois as chaves.
(...)
955. Pesq.: Agora, entre as operações...
956. Orlanda: Eu sempre multiplico.
1
Com a autorização dos alunos e, em alguns casos, por solicitação deles, seus nomes reais
foram mantidos neste artigo. Na identificação dos turnos, foi preservada a numeração
que receberam na transcrição completa das sessões em que se deram as interações aqui
apresentadas. Parte desse material foi analisado em (FONSECA, 2001).
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327
957. Pesq.: Não, resolvo os parênteses, por exemplo, (no quadro)
dois mais três vezes cinco.
958. Lu: Pra eliminar os parênteses.
959. Pesq.: Pois é, mas como é que você vai “eliminar os
parênteses” aqui neste caso? Primeiro eu faço a conta de
vezes.
(...)
1023. AC (Antônio Carlos): Você fazendo aí que eu lembrei
vagamente, assim muito por alto.
1024. Lu: Tinha isso mesmo: ‘o que fazer primeiro’
1025. AC: Tinha isso. Eu lembrei, mas aguça a memória fazer
também.
1026. Lu: Você lembrou disso aí também porque viu em algum
lugar.
1027. AC: Porque eu vi fazendo. Fazer eu não sabia.
1028. Lu: Isso é da quarta série.
1029. Pesq.: Às vezes não se vê isso na quarta série.
1030. AC: A única escola que eu voltei.
Logo na primeira seqüência, é interessante observar que, apesar
da afirmação da pesquisadora no turno 943, garantindo a prioridade
para a resolução da expressão entre parênteses, ainda paira dúvida
sobre a correção ou, ao menos, sobre a universalidade desse
procedimento: “Em qualquer hipótese você tira, faz primeiro o
parênteses?” (turno 947).
Mas quando a aluna Luduvina resolve mobilizar sua lembrança,
o jogo interlocutivo se redesenha e, como sujeito, Lu assume um
novo lugar: o de portadora do selo de legitimação do procedimento,
pelo re-conhecimento (e re-significação) da existência e da necessidade
de obediência a certas convenções na matemática formalizada. Com
efeito, a lembrança da aluna, ensaiada timidamente no turno 946 e
afirmada na formulação consagrada: primeiro eliminar os parênteses,
veicula-se também num enunciado evocativo que ao mesmo tempo
a resgata e confirma: “Tinha isso mesmo.” (turno 949). É essa
enunciação, mais do que o enunciado informal escolhido pela
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pesquisadora no turno 943, que confere ali legitimidade ao
procedimento de priorizar as operações entre parênteses,
introduzindo no discurso uma voz que não é a de uma professora, de
um livro didático ou de uma anotação no caderno, mas é a voz do
ensino escolar da matemática, a voz e a autoridade culturalmente
constituídas da memória da matemática escolar.
Flagramos, ainda, neste episódio, o que podemos chamar de
formulações metacognitivas, por meio das quais os sujeitos organizam e
expressam sua compreensão e observações sobre suas reminiscências
da matemática escolar e sobre os processos que as desencadeiam.
Pelo menos três hipóteses emergem com clareza considerável: aquela
que reconhece no aprendizado escolar uma fonte privilegiada das
lembranças (isso é da quarta série); a que aponta a recorrência, como
responsável pelas lembranças (você viu em algum lugar); e uma terceira
que enfatiza a influência do fazer ou do ver fazer, no presente, aguçando
a memória (defendida por AC nos turnos 1023, 1025, 1027).
É comum, entre as alunas e os alunos adultos (mais do que entre
jovens, adolescentes ou crianças), identificarmos um certo cuidado
e mesmo um certo prazer em se pôr a pensar sobre o que pensam,
e sobre como pensam. Essa disposição reflexiva pode estar
associada a uma fase da vida em que se buscam razões, em oposição
ao imediatismo que caracteriza e reflete a velocidade nas
transformações na vida dos mais jovens. Mas os educadores devem
prestar atenção e analisar com cuidado os comentários de natureza
metacognitiva de seus alunos, pois essas formulações não se
produzem apenas como compreensão ou observações do sujeito
sobre a natureza de seus próprios processos mentais, mas “emergem
de forma intencional em certos tipos de contextos discursivos”
(MIDDLETON; EDWARDS, 1990, p. 44). Em geral, os sujeitos,
alunos e alunas da EJA, mobilizam essa ou aquela formulação sobre
o processo de rememoração diante de uma situação de alguma forma
conflituosa, envolvendo dificuldades, divergências ou
estranhamento em relação ao material lembrado ou ao fato de
lembrá-lo. Dessa maneira, a formulação metacognitiva insere-se no
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discurso para justificar, socializar ou domesticar os processos e os
produtos da rememoração (e do esquecimento). Particularmente
os alunos adultos da EJA parecem se debruçar sobre o próprio
processo de aprendizagem, como que a procurar reconstituir uma
malha de significados para os saberes escolares e, por essa
reconstituição, conferir sentido à própria escolarização.
Gênero discursivo, inserção na cultura escolar e constituição
de sujeitos de ensino e aprendizagem
Nesse mesmo movimento, os alunos da EJA também se remetem
à mobilização das reminiscências matemáticas não só como um
exercício de resgate de conceitos, procedimentos, diagramas, termos
ou proposições da matemática, mas como oportunidade de reviver
os sentimentos que envolveram sua relação com aquela matemática
e de (re)elaborá-los a partir de uma reconstrução coletiva, realizada
na interação discursiva da sala de aula: são “ocasiões de ‘re-sentir’
certos acontecimentos, às vezes de ser capaz de re-ordenar esses
sentimentos para imaginar novas relações entre coisas conhecidas
ou mundos completamente novos” (SHOTTER, 1990, p. 152).
Esse aspecto do processo de rememoração adquire um sentido
particularmente relevante quando se desvela nas reminiscências da
matemática escolar dos alunos da EJA. Falamos aqui de adultos
que se dispõem a um novo esforço de aprendizagem, que não
podem, naturalmente, desconsiderar seu passado escolar. O desafio
de retomar esse passado não se identifica, no entanto, como um
esforço de resgatar fatos matemáticos como se eles se encontrassem
depositados nas memórias individuais, desligados uns dos outros e
não envolvidos no emaranhado de relações tecidas por fatores
ideológicos, pragmáticos, cognitivos, afetivos, lingüísticos,
culturais, históricos. São essas múltiplas inter-relações, processadas
e (re)elaboradas na participação dos diversos sujeitos nas interações
discursivas de ensino-aprendizagem da matemática na escola, que
compõem um gênero discursivo próprio da matemática escolar,
cujo domínio é condição e expressão das possibilidades e limites
de trânsito do sujeito nas malhas desse conhecimento.
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330
Portanto, a relativa estabilidade dos enunciados que se produzem
nas aulas, nos livros, na mídia ou em outras situações em que se fala
de matemática escolar ou sobre matemática escolar nos sugere
considerar um gênero discursivo próprio do ensino e da aprendizagem
da matemática no contexto da escola e reconhecer na enunciação
das reminiscências da matemática escolar, protagonizada pelos alunos
da EJA, uma atitude de manifestação, de exercício ou de busca do
acesso a esse gênero, tomado como uma das marcas de sua inclusão
nesse universo socialmente valorizado da cultura escolar.
Ao enunciar suas reminiscências da matemática escolar, o aluno
adulto poderá de algum modo facilitar o trânsito na disciplina
matemática; porém, mais do que isso (e até para isso), esse aluno
reconstrói e exibe uma certa intimidade com o gênero discursivo próprio
daquela instituição (que tem nos enunciados didáticos de matemática
uma expressão típica), elemento decisivo para justificar ou forjar
sua inclusão nela. É como se falar um pouco de matematiquês escolento
legitimasse a inserção daquele aluno adulto na escola, revelando que,
por ele compartilhar dos modos de expressar o pensar e o fazer da
matemática escolar, não seria apenas justo, mas também adequado
ocupar ali um lugar — de sujeito.
Se na escolarização de jovens e adultos se busca garantir um
espaço de conquista, manifestação, confronto e exercício desse
gênero, assumindo, mas problematizando sua valorização social,
cabe, portanto, aos educadores, reconhecê-lo como tal, para que
possam potencializar as possibilidades daquele espaço e os esforços,
coletivos e individuais, mas sempre socioculturais, dos educandos
jovens e adultos, constituindo-se como sujeitos de ensino e
aprendizagem.
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331
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333
A MATEMÁTICA E A APROPRIAÇÃO DOS
CÓDIGOS FORMAIS
Lucillo de Souza Junior
A experiência em foco resulta da minha vivência como educador
do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos do Centro Pedagógico
da Universidade Federal do Espírito Santo (Neja/Ufes), que atende
jovens e adultos, funcionários da universidade ou moradores da
comunidade externa.
Em 2000, minha turma de alunos ocupava uma sala no Hospital
das Clínicas da Universidade, e sua constituição foi marcada pela
presença de cinco mulheres, que assumiam papel decisivo no
orçamento doméstico, e um homem.
Tomarei como referência para este trabalho a produção de uma
aluna
1
— Neide, de 33 anos — que não havia freqüentado uma sala
de aula formal até então, mas que foi adquirindo o domínio do código
alfabético por meio da experiência escolar dos filhos e por motivação
Quem nunca teve em sala de aula um aluno jovem ou adulto que sabe
fazer contas de cabeça, mas não sabe passar para o papel? Leia este
relato de experiência e descubra as estratégias utilizadas pelo autor
para trabalhar o aprimoramento e a transposição de registros pessoais
em códigos formais utilizados pela matemática. Aproveite e acompanhe
as produções de uma de suas alunas.
Neide.
1
A aluna participou da apresentação de parte deste trabalho no II Encontro do Fórum de
Educação de Jovens e Adultos do Espírito Santo em nov. 2000.
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334
religiosa. Mesmo não tendo passado pela escola na infância ou por
turmas de alfabetização de adultos, a aluna demonstrava domínio
no uso da letra cursiva e lia pequenos textos.
A participação neste grupo foi de fundamental importância para
a minha formação profissional. Como graduando (Licenciatura em
Matemática), eu não conseguia ver sentido na ênfase com que o curso
estava sendo oferecido, limitando-se à exploração de conteúdos do
ensino fundamental e médio. Com minha entrada no Neja em 1999,
pude ter contato com uma área da educação que não precisava
somente de mais um professor de matemática. Percebi que na EJA o
profissional de matemática possui um amplo caminho a seguir, pois
está diante de algo ainda pouco estudado.
As concepções da EJA como formação humana e como direito à
educação foram determinantes para a realização do trabalho. Durante
o processo, fui ampliando a visão por meio do estudo e da prática.
Fui deixando de lado as concepções que estão enraizadas em cada
um de nós, no que se refere à educação de adultos como suprimento
da escolarização perdida na infância, como suplência e mesmo sua
redução à alfabetização. Pude ver que não estava trabalhando com
alunos que queriam somente o certificado de conclusão de 1ª a 4ª
séries. Na sala em que atuava, e em outras salas do Neja, havia alunos
que estavam em busca de outro espaço de formação. Com isso, o
trabalho foi diferente do realizado no ciclo regular e requereu a
ampliação das concepções de conteúdo e currículo, uma vez que
cada grupo apresentava suas especificidades.
Pude perceber que não seria um professor de matemática, mas
um educador de jovens e adultos, ou seja, um profissional capaz de
transitar por todas as áreas (Linguagem, Matemática e Estudos da
Sociedade e da Natureza), tendo domínio de uma em especial, a
Matemática.
Para os alunos, saber que quem estava na sala de aula era um
professor de matemática era tudo. A minha presença era o ideal para
eles, pois poderiam trabalhar a matéria com mais freqüência e de
forma próxima ao modelo escolar. Para a maioria de nossos alunos,
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335
matemática é fazer contas, contas e mais contas, deixando de lado
momentos mais criativos, como o desenvolvimento de estratégias
para a resolução de problemas, o cálculo mental, a representação
gráfica do pensamento e outras coisas que o modelo escolar não
trabalha com o aluno adulto.
CONTEXTUALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
A partir da mobilização que foi desencadeada para a realização do
Plebiscito da Dívida Externa, o Neja começou a se inteirar e a
participar das discussões sobre o tema, o que levou o coletivo de
educadores a decidir pela sua inclusão para estudo nas salas de aula.
Em agosto de 2000, iniciei o trabalho com essa temática. Durante os
planejamentos, decidimos fazer um resgate histórico do processo de
endividamento pelo qual passou e passa o Brasil. Utilizamos para isso o
livro O Brasil Endividado
2
, que traz referências históricas e econômicas
da dívida, bem como outros materiais utilizados na campanha. Com
várias leituras, analisamos as formas de crescimento da dívida externa.
Mas isso não era o suficiente; faltava mais consistência na análise.
Para isso, elaboramos um trabalho que envolveria a matemática, pois
concluímos que era o que faltava para fortalecer os elementos
analisados anteriormente, ou seja, para mostrar como a dívida externa
comportou-se em situações de pagamento ou não. Utilizamos essa
situação, pois, para alguns, a questão da dívida não os atingia e por
isso não conseguiam entendê-la.
Com base na discussão do grupo, criamos uma família com padrões
semelhantes à dos alunos, ou seja, com dois ou três filhos, renda entre
três e seis salários mínimos e que sempre faz compras no crediário.
2
GONÇALVES, R.; POMAR, V. O Brasil endividado: como a nossa dívida externa
aumentou mais de 100 bilhões de dólares nos anos 90. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2000.
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336
Resolvemos pautar o trabalho na resolução de problemas por
considerarmos a estratégia de análise ideal, já que permitiria aos
alunos uma libertação maior das amarras da escola formal e de seus
problemas convencionais. Para tal, observamos alguns princípios,
como, por exemplo, a elaboração de problemas que pudessem ser
resolvidos pelo uso de vários algoritmos ou observando a análise de
questões temporais.
Problema 01
Em 1º de janeiro de 2000, fiz, por necessidade, uma dívida de
R$ 100,00, pela qual pagaria R$ 20,00 de juros por mês. Até o dia 1° de julho,
eu não pude pagar nada pelo empréstimo. No dia 2 de julho, fiz um acordo
com o credor e pagarei R$ 25,00 por mês.
a) Qual o valor da dívida em 1º de julho?
b) Qual o valor da dívida em 31 de dezembro?
A aluna, por não possuir o domínio dos algoritmos, foi orientada
a registrar o que pensava; com isso, ela registrou todo um processo
de cálculo mental, que é a forma utilizada por ela no cotidiano
para resolver as situações.
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337
A solução do item (a) utiliza o agrupamento de parcelas (duas a
duas) para representar os meses que ficou sem pagar a dívida, e depois
soma esses agrupamentos, criando outros três valores, determinando
por fim o resultado final. Veja que o registro do resultado não é R$
220,00, mas R$ 240,00. O registro desse valor não influenciará o
resultado do item seguinte, pois serviu apenas como uma
representação gráfica do pensamento.
A solução do item (b) tem uma sutileza observada pela aluna: ela
interpreta que, mesmo pagando R$ 25,00 durante os outros seis
meses, a dívida continuaria a crescer R$ 20,00 todo mês.
Conversando sobre as possibilidades de resolução, observou que a
dívida total diminuiria R$ 5,00 por mês, registrando para cada mês
R$ 5,00. A forma de registro segue a do item (a), ou seja, agrupamento
e cálculo mental. Ao final, ela obtém como resultado o valor de R$
190,00, mas escrito de forma não padronizada, ou seja, a aluna faz a
representação gráfica da forma como fala (10090).
É possível observar que o item (b) depende do item (a), e que o registro
da resposta do item (a) (R$240,00) não influenciou a resposta correta
do item (b). Assim, começam a surgir escritas fora do padrão formal.
Problema 02
Em 1º de janeiro de 2001, passei por problemas financeiros e pude pagar
apenas R$ 15,00 por mês. Pagando essa quantia, em quantos meses a dívida
seria de R$250,00?
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338
Problema 03
Se a dívida parasse em R$ 250,00, em quantos meses seria paga, utilizando
para tal R$ 15,00 por mês?
Veja que a aluna inicia a resolução do problema com a transcrição
do diálogo entre os monitores e a turma. Por meio do diálogo, são
feitas indagações, a fim de que todos percebam o que está
acontecendo com a dívida. O registro acontece com a utilização de
uma tabela onde estão representados, na primeira linha, os meses,
na segunda, os juros cobrados por mês e, na terceira, a soma R$ 190
+ R$ 20. Só que a partir da terceira coluna esta operação fica perdida,
e a quarta linha representa o valor final da dívida todo mês, isto é:
190 + 20 – 15 = 195
195 + 20 – 15 = 200
200 + 20 –15 = 205
Dessa forma, percebe-se a seqüência criada (195, 200, 205,
210...250), ou seja, a dívida cresce R$ 5,00 por mês. A resposta será
dada pela quantidade de parcelas obtidas, sendo que cada parcela
representa um mês.
A representação de alguns números terminados em zero é feita
de forma inadequada (22 para 220, 23 para 230 e 24 para 240),
enquanto a escrita dos números 200 e 210 está dentro do padrão.
Contudo, em momento algum essa escrita inadequada impede a
solução adequada do problema.
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339
A resolução desse problema por dois alunos envolveu a utilização
do algoritmo da divisão, mas a obtenção da resposta esperada não
foi possível: a interpretação do resultado foi inadequada, pois tinha
resto diferente de zero. Para esses alunos, a utilização do algoritmo
correto não foi associada à interpretação do resultado obtido. Já a
aluna Neide, utilizando a mesma forma de resolução dos itens
anteriores, obteve a resposta desejada, considerando um mês a mais,
em que teria que pagar R$ 10,00 ou R$ 15,00.
A soma das parcelas agrupadas duas a duas tem como resultado
R$ 30, mas escreve 13. E ao somá-las obtém-se o total de R$ 255,00.
Ao final deste período, conseguimos colher algumas impressões
sobre a relação entre a dívida da família e a dívida externa: “Dessa
forma, a dívida do Brasil e da família não acabam nunca.”.
Com os elementos de registro indicados, constatamos a necessidade
de trabalhar com alguns integrantes do grupo a escrita dos números,
pois essa não era uma necessidade apenas da aluna em destaque. A
forma escolhida foi a utilização do Quadro Valor de Lugar (QVL),
com cédulas falsas no lugar de palitos.
EXPLORANDO A DESCONTEXTUALIZAÇÃO
Este foi um momento em que não utilizamos a contextualização,
porque entendemos que é um momento específico para um trabalho
sem uma situação problema.
Utilizamos o QVL sem marcar as posições da unidade, da dezena
e da centena para que as alunas utilizassem o conhecimento que
possuíam sobre o valor posicional dos números, utilizado durante
o cálculo mental.
Com o final do Plebiscito da Dívida Externa, começamos a
explorar um item comum em sala de aula, ligado a problemas de
estrutura óssea. O primeiro tema foi a osteoporose.
Com uma matéria de jornal, trabalhamos as questões levantadas
pela turma: vitaminas, sais minerais, alimentos saudáveis etc., e
utilizamos a matemática como suporte para algumas situações.
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340
Novamente a resolução de problemas foi explorada. Utilizando os
dados da reportagem, elaboramos o seguinte problema:
A primeira dúvida foi saber como trabalhar a porcentagem. Por isso
procurei saber como faziam para identificar 10% de algum valor, por
ser este um valor de domínio comum. Por fim, eles responderam que
13% de 100 é igual a 13.
Com esse valor, informei que poderiam somar parcelas iguais a 100
desde que somassem a mesma quantia de parcelas de 13, ou seja,
estávamos utilizando o princípio da proporção. Se estivessem em uma
escola formal, este seria um conteúdo não visto nesta etapa de
certificação.
A aluna Neide utilizou esta relação para resolver o problema:
Problema 04
Sabe-se que 13% dos homens do mundo possuem tendência a ter osteoporose.
Em uma cidade com 5000 (cinco mil) homens, quantos tendem a ter
osteoporose?
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341
Utilizando a estratégia dos problemas anteriores, agrupou a
relação 100 – 13 em dez tabelas, com duas colunas e cinco linhas
cada, totalizando em cada tabela 500 habitantes e 65 pessoas com
tendência a osteoporose.
Ao organizar os dados em tabela, ordena os números da forma
padrão, ou seja, unidade sob unidade, dezena sob dezena e centena
sob centena.
A soma das parcelas de 100 é feita por cálculo mental, mas a soma
das parcelas 13 é feita pelo registro escrito. A aluna soma unidade
com unidade e dezena com dezena. Com isso, pode-se perceber o
seu domínio do valor posicional dos algarismos.
Problema 05
Sabe-se também que 40% das mulheres do mundo possuem tendência à
osteoporose. Em uma cidade com 5000 (cinco mil) mulheres, quantas tendem
a ter osteoporose?
Para a resolução desse problema, propus um desafio à aluna: que
o registro fosse reduzido, pois ela possuía o domínio de estratégias
para resolver o problema. E ela conseguiu: realizou a atividade
organizando a informação – de cada 100 mulheres, 40 tendem a ter
osteoporose, em 1000 – 400.
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342
3
Em todos os textos expostos à turma, os números são escritos por extenso.
Nessa atividade, vimos que o trabalho com o QVL, com a leitura
de textos com números significativos e com a escrita por extenso
dos números em nossos textos
3
(ver problemas 04 e 05) são
estratégias válidas.
Pudemos também observar que todo o trabalho se desenvolveu
de forma diferente dos padrões escolares. Em momento algum foi
mostrado à aluna como deveriam ser resolvidos os problemas, nem
houve a preocupação com operações, mas sim com a valorização
do cálculo mental. Essa valorização não vem com a abertura de
tempos definidos para tal, mas com a aceitação do cálculo mental
como um recurso utilizado constantemente pelo aluno para a
resolução de muitas situações.
Em grande parte deste trabalho exploramos conteúdos escolares
que não estão restritos à certificação almejada pela educanda — 1ª a
4ª séries. Foi possível trabalhar com os seguintes itens:
Estatística – não houve o trabalho de confecção de gráficos,
mas de organização de informações. As informações em questão
eram o próprio pensamento, que precisava ser registrado de
forma organizada para que uma outra pessoa pudesse ler e
entender. No início, a aluna organizava as informações em
forma de tabelas com apenas duas linhas, pois estas atendiam à
situação. Depois, passou a organizá-las em forma de colunas,
só que com muito mais linhas, pois a situação exigia.
Resolução de problemas e cálculo mental – com a utilização
de problemas que envolvem situações do cotidiano, a aluna
pôde utilizar o cálculo mental como uma ferramenta
importante: sendo uma situação real, conseguiu dominar todas
as operações que realizava, mesmo que os registros não fossem
apresentados na forma padrão. A utilização de problemas do
cotidiano foi significativa, pois pôdem-se estudar situações
vivenciadas no gerenciamento do orçamento doméstico.
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343
Proporção – noção utilizada continuamente com a turma, pois
é de uso cotidiano e não podemos limitar o seu uso a algumas
etapas da certificação. A proporção receberá em momentos
diferentes nomes diferentes: proporção, regra de três, função
do 1º grau, progressão aritmética etc.
A atuação do profissional deve ser de troca com o educando, já
que as situações exploradas e os resultados obtidos só foram possíveis
porque houve um diálogo constante entre a aluna e a dupla de
monitores.
Esse diálogo é entendido como o principio básico de uma relação
pedagógica que incentiva a autonomia do pensamento e da expressão
desse pensamento. O respeito entre as partes no que se refere à
produção da aluna e aos objetivos que eu buscava como educador
foi fator fundamental para a transposição e o aprimoramento do
código pessoal da aluna para o código formal. Não buscava neste
momento apenas as respostas corretas para as situações propostas,
mas o desenvolvimento de estratégias adequadas para resolvê-las.
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345
Epílogo
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A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS NO GOVERNO LULA*
Ricardo Henriques
Timothy Ireland
1. INTRODUÇÃO
O sistema educacional brasileiro representa um dos mais
importantes instrumentos da promoção do desenvolvimento com
igualdade em nosso país. Hoje ele ainda não atende com qualidade à
exigência de democratização. A desigualdade marca os sistemas de
ensino: desigualdades regionais, sociais, étnicas, que parecem
perpetuar, através da educação, a desigualdade da sociedade brasileira.
O ensino fundamental atinge a mais de 96% de nossas crianças, mas
sua qualidade está abaixo do necessário. O ensino médio é restritivo
e carece de resolutividade. O ensino técnico e profissional ainda não
está ao alcance da grande maioria dos jovens que dele devem se
beneficiar. O sistema de ensino superior conta com ampliação de
oferta sem garantia de qualidade e, nele, o sistema federal, embora
dotado de grande competência, enfrenta restrições imensas tanto de
financiamento quanto de autonomia.
* Texto extraído do Relatório sobre o programa brasileiro de Educação de Jovens e Adultos,
apresentado pelo Ministério da Educação no encontro South-South Policy Dialogue on Quality
Education for Adults and Young People, realizado em junho de 2005, na cidade do México. Na
elaboração deste Relatório, o Ministério da Educação contou com o apoio da
Representação da UNESCO no Brasil e das professoras Eliane Ribeiro Andrade e Jane
Paiva. O presente texto contou com a colaboração da gestora Andréa Oliveira.
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348
O diagnóstico da educação brasileira aponta a urgente necessidade
de renovação da agenda e de ampliação do empenho, de toda a
sociedade e dos governos, para superar suas limitações evidentes e
amplamente identificadas. Vale lembrar que o sistema de educação é
organizado em níveis complementares de competência. Portanto, a
agenda para a educação brasileira deve também resultar de uma ampla
articulação entre os três níveis de governo – federal, estadual e
municipal – para que os esforços sejam conjugados de modo a
produzir resultados no menor tempo possível. A transformação da
educação é tarefa de gerações, e o futuro deve começar agora.
Alguns princípios orientam as diretrizes das políticas que estão
sendo implementadas no campo da educação:
a) a educação é um bem comum e fator estratégico para a nação,
para valorização de seu passado, fortalecimento de seu presente
e criação de seu futuro;
b) como direito subjetivo, é fator de transformação pessoal e de
participação na cidadania, devendo ser acessível a todos, em
todas as fases da vida;
c) deve ser fator de justiça social, oferecendo equidade de
oportunidades a todos os cidadãos, contribuindo para a
redução das desigualdades regionais, sociais e étnico-culturais;
d) a qualidade é indispensável para a garantia do papel social e
político da educação.
Discutir a renovação da agenda da educação no Brasil exige
enfrentarmos os elementos que sustentam a desigualdade no país.
Desigualdade que remete a forte heterogeneidade na distribuição da
educação de qualidade entre os brasileiros ao longo da história.
Desigualdade elevada e persistente. Discutir a educação implica,
portanto, discutir as bases de um projeto de nação e de um modo de
desenvolvimento.
O Ministério da Educação organiza sua estratégia de ação a partir
de quatro eixos principais que, associados ao acompanhamento de
diversos elementos de nossa agenda de trabalho, concedem nitidez à
prioridade política e institucional de criação de novas bases de um
modelo de educação para o país:
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349
a) em primeiro lugar, estabelecimento de um pacto de qualidade
pelo ensino básico associado a uma redefinição do seu
financiamento;
b) a articulação entre inclusão educacional e alfabetização define
uma abordagem prioritária de superação do elevado passivo
histórico em termos de desigualdade educacional;
c) a educação profissional e tecnológica assume um novo papel
diante dos parâmetros da sociedade do conhecimento;
d) a reforma do ensino superior apresenta-se como reordenadora
dos campos de produção do saber e definição dos marcos de
um processo de desenvolvimento sustentável.
Os quatro eixos de ação do Ministério da Educação são articulados
e se combinam num círculo virtuoso de transformação a partir dos
princípios enunciados. É fundamental que a educação seja
compreendida como um sistema, tanto na trajetória de cada
indivíduo dentro de cada nível, como na exigência de uma articulação
entre os níveis. O sistema também está expresso na distribuição das
responsabilidades constitucionais entre os entes federativos
1
.
2. ALFABETIZAÇÃO E INCLUSÃO EDUCACIONAL
O governo brasileiro reconhece que, embora o país tenha
conseguido, nas últimas décadas, significativos avanços no campo da
educação, notadamente em relação à educação de jovens e adultos,
muito ainda há por fazer, especialmente no enfrentamento dos diversos
tipos de analfabetismos: da educação, da cultura, da política e da cidadania.
Nesse sentido, os números da exclusão educacional são contundentes.
São 65 milhões de jovens e adultos, com mais de 15 anos de idade,
sem o ensino fundamental completo. Desses 65 milhões, 33 milhões
são analfabetos funcionais que sequer completaram a 4ª série, e 14,6
1
GENRO, T. Diretrizes para a agenda em educação no Brasil. In: REIS, V. Fórum Nacional,
2004 Brasília: MEC, 2004. (mimeo).
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350
milhões são analfabetos absolutos (PNAD, 2003). Especificamente
entre 15 e 24 anos de idade — uma faixa geracional significativa, jovem,
que prenuncia a massa crítica futura do país – 19 milhões não
completaram o ensino fundamental e quase três milhões são
analfabetos absolutos. Números que ilustram a necessidade de resgatar
a educação como direito de todos, de jovens e adultos excluídos dos
sistemas de ensino. No ensino fundamental, de cada 100 alunos que o
iniciam apenas 51 concluem a 8ª série. Cerca de sessenta por cento
das crianças que concluem a 4ª série não são leitores fluentes. E essa
é uma média nacional: se retirarmos da amostra as capitais e alguns
dos maiores municípios do país esse indicador atinge níveis ainda mais
inquietantes. Quando se considera o ensino médio, tem-se 42% dos
jovens concluintes em estágios crítico e muito crítico de
desenvolvimento de habilidades de leitura. Tal realidade, fortemente
associada a restrições culturais, econômicas, de desemprego e
habitacionais, define o quadro que reserva à educação de jovens e
adultos uma demanda de cerca de sessenta milhões de brasileiros.
Os dados do analfabetismo não são, entretanto, homogêneos. Há
diferenças nessas taxas quando se analisa o recorte geográfico, de
gênero e de raça/etnia. As maiores taxas de analfabetismo encontram-
se na região Nordeste. Na média nacional, o analfabetismo entre os
negros (12,9%) é mais de duas vezes superior ao verificado entre os
brancos (5,7%). O problema se agrava na região Nordeste, onde se
encontra um analfabeto em cada cinco pessoas negras. Com relação
ao gênero, não se verificam grandes discrepâncias: do total de
analfabetos, 52% são do sexo feminino.
Nesse contexto, a alfabetização expressa a prioridade política
definida pelo presidente Lula, desde o início do governo.
Alfabetização como portal de entrada à condição cidadã, que promove
o acesso à educação como um direito de todos em qualquer momento
da vida. Para a população jovem e adulta que não teve acesso à escola,
não se pretende reservar apenas uma etapa abreviada de alfabetização.
A alfabetização passa a ser diretamente articulada com o aumento
da escolarização de jovens e adultos.
De 2003 até 2005, as mudanças mais significativas nos critérios
adotados se referem à mudança de concepção política sobre o direito
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351
de todos, reconhecendo o direito à educação como um direito humano
fundamental, que exige, em certos momentos, um atendimento especial
para segmentos da população estruturalmente fragilizados. Como o
direito é de todos, e a concepção ética e histórica que o embasa entende
que assegurar esse direito impõe o reconhecimento da diversidade de
realidades e de sujeitos, as políticas para a área exigem o concurso da
sociedade e do poder público, buscando redizer o sentido de parceria,
desgastado ao longo dos anos. Educação tratada como parte do
processo de construção de cidadania consciente e ativa, respeitando a
pluralidade e a especificidade dos sujeitos.
A agenda para a educação brasileira, para isso, está sendo
construída a partir de uma ampla articulação entre os três níveis de
governo – federal, estadual e municipal – e da sociedade como um
todo, para que esforços conjugados produzam resultados no menor
tempo possível, buscando enfrentar os principais desafios da dívida
histórica do país no que se refere à educação, não de forma pontual,
mas na perspectiva da educação continuada, estabelecendo
compromissos que remetam à democratização dos sistemas de ensino
e à criação de instrumentos que garantam a educação para todos.
O Ministério da Educação organiza sua estratégia de ação dando
prioridade à articulação entre inclusão educacional e alfabetização.
Além de direito, a articulação entre alfabetização e os programas de
inclusão social é estratégica e reordenadora dos horizontes de
cidadania. Articulação no interior da esfera federal e também com
os programas locais de estados e municípios; articulação da
alfabetização com o Programa Bolsa Família, permitindo significativo
foco sobre a população em condição de extrema pobreza. A agenda
de alfabetização e de educação de jovens e adultos compõe,
efetivamente, a dimensão estrutural de inclusão. A articulação com
cursos de profissionalização explicita o papel da alfabetização como
portal de entrada da inclusão e da cidadania.
O tratamento de destaque concedido à modalidade de ensino
Educação de Jovens e Adultos, contemplando a alfabetização e todo
o processo de aprendizagem – formal ou informal – expressa,
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352
portanto, os contornos de uma agenda orientada pela articulação
entre o aumento da qualidade dos sistemas de ensino e a construção
das bases para a eqüidade e a inclusão educacional, considerando, de
forma prioritária, os elementos da diversidade étnica, racial, cultural
e regional da população brasileira.
Nessa perspectiva, como primeiro passo, o MEC inaugurou, pela
primeira vez na história de sua estrutura administrativa, uma
secretaria destinada ao campo. A Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – Secad traduz eixos organizadores de
ação. Educação Continuada expressa a centralidade da agenda para
jovens e adultos, que extravasa os limites da escolarização formal e
destaca a de educação para toda a vida, sobretudo para os milhões
de brasileiros que ainda não se beneficiaram do ingresso e da
permanência na escola. Alfabetização expressa a prioridade política
e o foco na cidadania, determinados pelo presidente Lula.
Diversidade, enfim, para explicitar uma concepção forte não só de
inclusão educacional, mas, sobretudo, de respeito, tratamento e
valorização dos múltiplos contornos de nossa diversidade étnico-
racial, cultural, de gênero, social, ambiental e regional.
3. O PROGRAMA BRASIL ALFABETIZADO: INCLUSÃO E
CONTINUIDADE
O Ministério da Educação – MEC, por meio da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – Secad vem
investindo progressivamente em programas, projetos e ações destinados
a conferir a jovens e adultos brasileiros a oportunidade de ingressar na
escola e concluir a educação básica. Ao Ministério, como representante
da União, cabe uma atuação redistributiva
2
e articuladora, conforme a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº. 9.394/96.
2
Entende-se por ação redistributiva da União o suporte financeiro a programas, projetos
e ações educacionais, visando minorar as disparidades econômicas, políticas e sociais.
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353
Nesse sentido, uma das estratégias do MEC é de apoio e
financiamento de ações de alfabetização de jovens e adultos, junto a
secretarias estaduais de educação, prefeituras municipais,
organizações não-governamentais e empresas privadas, entre outras,
em todas as unidades da federação brasileira, por meio do Programa
Brasil Alfabetizado. Lançado pelo Governo Federal em 2003, o Brasil
Alfabetizado tem como objetivo prioritário a inclusão educacional,
pelo caminho da efetiva alfabetização de jovens e adultos com quinze
anos ou mais que não tiveram acesso à leitura e à escrita, com vistas
a promover a perspectiva do direito à educação, iniciando o caminho
de continuidade no nível do ensino fundamental. O Programa
pretende, assim, ser um portal de entrada à cidadania, articulado
diretamente com o aumento da escolarização de jovens e adultos e
promovendo o acesso à educação como direito de todos, em qualquer
momento da vida.
Partindo da compreensão de que os programas de alfabetização
não devem ter um fim em si mesmos, o MEC adotou uma concepção
de Educação de Jovens e Adultos, tendo como meta a continuidade
que garanta a ampliação da escolaridade da população brasileira
3
.
Nessa perspectiva, em articulação com o Programa Brasil Alfabetizado,
o MEC vem desenvolvendo também o Programa de Apoio aos Sistemas
de Ensino para Atendimento à Educação de Jovens e Adultos - Programa Fazendo
Escola, destinado ao cidadão que não teve a oportunidade de acesso
ou permanência no ensino fundamental na idade escolar “própria”
(dos sete aos catorze anos), tendo como objetivo contribuir para enfrentar
o analfabetismo e a baixa escolaridade em bolsões de pobreza do país,
onde se concentra a maior parte da população de jovens e adultos
que não completaram o ensino fundamental.
3
Embora a maioria absoluta das crianças de sete a catorze anos (97%) tenha acesso à
escola regularmente, menos de setenta por cento conseguem concluir a 8ª série do
ensino fundamental, o que contribui para rebaixar a média de anos de estudo da população
(IPEA, 2005).
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354
O Programa é oferecido pelo Ministério da Educação em conjunto com
os governos estaduais e municipais, por meio da transferência, em caráter
suplementar, de recursos referenciados ao número de alunos
matriculados no sistema. A Secad é responsável pela formulação das
políticas para a melhoria da qualidade da educação de jovens e adultos,
para o estímulo e o acompanhamento da implantação da educação de jovens e
adultos nos sistemas estaduais e municipais de ensino e em subsídio
às decisões dos executores quanto à utilização dos recursos.
O desafio que se impõe, na atualidade, é articular a alfabetização
com as demais etapas da Educação de Jovens e Adultos, considerando
que essa fase deve ser compreendida como o início de um processo
autônomo de aquisição da leitura e da escrita, na perspectiva de
contribuir para avançar no campo dos direitos à educação, do
conhecimento, da cultura, da memória, da identidade, da formação
e do desenvolvimento pleno dos sujeitos jovens e adultos.
4
4. RECONFIGURANDO O CAMPO DA EJA
O momento é de construção de um novo desenho para a
alfabetização e para a EJA como um todo, e vem sendo feito a partir
de um amplo diálogo que aponta para uma reconfiguração mais
pública da educação de jovens e adultos. Quanto às concepções de
EJA correntes, ainda que saiba da distância entre as formulações e
as práticas, o MEC vem adotando enfoques de alfabetização e de
educação de jovens e adultos mais amplos, intersetoriais, visando a
incorporá-las ao sistema nacional de educação, pelo fato de não ser
mais possível tratá-las de forma isolada dos sistemas de ensino (formal,
4
ARROYO, M. Educação de jovens-adultos: um campo de direitos e de responsabilidade
pública. In: SOARES, L.; GIOVANETTI, M. A. G. de C.; GOMES, N. L. Diálogos em
educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 22.; LDB n. 9.394/96,
Arts. 1º e 2º.
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355
governamental), e também por não ser razoável excluir o não-formal,
pelas inúmeras possibilidades e riqueza que apresentam para essa
importante área da educação.
Para atender a essa forma de pensar a alfabetização e a EJA, o MEC
está orientado por uma agenda que busca articular o aumento da
qualidade dos sistemas de ensino e a construção das bases para a eqüidade
e a inclusão educacional, considerando, de forma prioritária, os
elementos da diversidade étnica, cultural e regional da população
brasileira. Em 2005, o Programa Brasil Alfabetizado atenderá a 2,2
milhões de jovens e adultos, em mais de 4.000 municípios, investindo
R$220 milhões, dos quais setenta por cento para estados e municípios e
trinta por cento para ONGs e IES. Ao mesmo tempo, o redesenho do
Programa Fazendo Escola garante o atendimento de todos os 3.342.531
alunos matriculados em EJA (conforme Censo Escolar Inep/2004), em
4.175 municípios, com um investimento de R$486 milhões.
Vale resgatar, para compreender o compromisso do Ministério,
um excerto da Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos:
Os objetivos da educação de jovens e adultos, vistos como um processo
de longo prazo, desenvolvem a autonomia e o senso de responsabilidade
das pessoas e das comunidades, fortalecendo a capacidade de lidar com
as transformações que ocorrem na economia, na cultura e na sociedade
como um todo; promove a coexistência, a tolerância e a participação
criativa dos cidadãos em suas comunidades, permitindo assim que as
pessoas controlem seus destinos e enfrentem os desafios que se
encontram à frente.
5
Para isso, o MEC/Secad vem construindo uma nova
institucionalidade para a educação de jovens e adultos baseada num
processo de articulação, concertação, reconhecimento e interlocução
com um conjunto de órgãos, entidades e atores sociais que
desempenham diversos papéis no campo da EJA. No plano
5
UNESCO. Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos: agenda para o futuro da
educação de adultos; Confintea V, Hamburgo, l997. Brasília: MEC, 1998.
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356
governamental, desenvolve ações junto com os Ministérios do
Trabalho e Emprego (MTE), da Saúde (MS), do Desenvolvimento
Social (MDS) e da Justiça (MJ) bem como as Secretarias de
Aqüicultura e Pesca, de Igualdade Racial, de Juventude e de Direitos
Humanos. No âmbito da sociedade civil, criou, em 2003, a Comissão
Nacional de Alfabetização e, posteriormente, ampliou a sua
abrangência para incluir a educação de jovens e adultos. Do ponto
de vista da oferta, um elemento fundante da consolidação da EJA é a
necessária orquestração entre a atuação dos governos federal,
estaduais e municipais, articulando, entre outros órgãos
representativos, o MEC, o Conselho Nacional dos Secretários
Estaduais de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (Undime) como parceiros na construção
da política pública de EJA. Isso significa, além da prioridade no
acesso aos recursos federais destinados a essa modalidade, uma busca
de construção coletiva das alternativas para a expansão da EJA, bem
como para uma reconfiguração dessa modalidade de ensino, visando
atender às especificidades dos alunos jovens e adultos.
Essa articulação não se restringe aos entes federativos, pelo
contrário, busca aliados entre todos aqueles que historicamente já
atuam em EJA, reconhecendo que os verdadeiros sujeitos da história
da EJA no Brasil, além dos próprios jovens e adultos, são coletivos,
representantes de governos, organizações não-governamentais,
organismos internacionais, trabalhadores e patrões, sindicalistas e
movimentos sociais, que de alguma forma estão fazendo a EJA, na
complexa e diversa realidade brasileira. Esses coletivos são muito
bem representados pelos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos,
uma experiência rica que tem sido vivida nos movimentos internos
do Brasil desde 1996
6
.
6
IRELAND, T.; MACHADO, M. M.; IRELAND, V. E. Os desafios da educação de
jovens e adultos: vencer as barreiras da exclusão e da inclusão tutelada. In: KRUPPA, S.
M. P. (Org.). Economia solidária e educação de jovens e adultos. Brasília: Inep, 2005. p. 94-95.
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357
No reverso, o MEC busca melhorar as competências
profissionais da área: pesquisas, avaliações, documentações,
comunicação, formação, publicações. Ao mesmo tempo, envida
esforços para formar uma nova geração de quadros profissionais
em EJA, em níveis federal, estadual e municipal, concorrendo, para
isso, com linhas de financiamento que possibilitam a autonomia
de desenhos para projetos locais, em atendimento às exigências da
contemporaneidade e da concepção de formação do professor, de
longos anos constituída e recriada por associações nacionais que
se debruçam sobre a questão e que interferem, pelo acúmulo de
conhecimento produzido, nas políticas da área, tanto em nível de
graduação como de pós-graduação. A certeza que anima o governo
é a de que, após um longo período de negligência e descrença em
torno da alfabetização e educação de jovens e adultos, existe um
espírito de revitalização e renovação. Concepções e práticas mais
amplas, trazendo novos elementos, vêm sendo disputadas para todo
o cenário da educação e da aprendizagem, desafiando paradigmas
convencionais em todas as esferas, considerando que o alcance e
as necessidades da vida dos sujeitos e dos grupos sociais se
transformaram essencialmente nas últimas décadas e, portanto, que
é necessário criar ambiente e sociedades letradas.
Os desafios centrais do MEC/Secad, hoje, estão em saldar a
enorme dívida histórica do país no tocante à educação,
comprometendo-se com a democratização dos sistemas de ensino
e a criação de instrumentos que garantam a educação para todos
como direito humano fundamental. Não se trata apenas de oferecer
alfabetização ou escolarização por um curto tempo, mas fazer valer
os sentidos da EJA fixados em Hamburgo, que assentam a educação
como chave para o século XXI e consideram a humanização dos
sujeitos como uma resultante de aprendizagens que se dão ao longo
de toda a vida.
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AUTORES
Maria Clara Di PierroProfessora da Faculdade de Educação da
USP. Doutora em Educação. E-mail: [email protected]
Antonio Munarim – Coordenador de Educação no Campo –
SECAD/MEC. Doutor em Educação pela PUC/SP. E-mail: antonio
Zenaide Maria Santos – Coordenadora Pedagógica da EJA da
Secretaria Municipal de Educação de Alagoinhas. Licenciada
em Letras e especialista em Estudos Literários pela Uneb-BA.
José Carlos Barreto e Vera Barreto – Assessores e pesquisadores
do Vereda – Centro de Estudos em Educação. Graduação em
Pedagogia e em Ciências Sociais, respectivamente. E-mail:
Margarida Bulhões Pedreira Genevois – Coordenadora da Rede
Brasileira de Educação em Direitos Humanos e membro da Comissão
Justiça e Paz de São Paulo.
Magda Becker Soares – Professora da Faculdade de Educação da
UFMG. Graduação em Letras, Pós-graduação em Educação. E-mail:
Timothy Ireland – Diretor do Departamento de Educação de Jovens
e Adultos – SECAD. Professor cedido da Universidade Federal da
Paraíba. E-mail: [email protected]
Marisa Brandão – Professora do Centro Federal de Educação
Tecnológica – Cefet/RJ. Mestre em Educação pela UFF. E-mail:
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360
Maristela Miranda Bárbara – Assessora da Secretaria Nacional de
Formação da CUT. Psicóloga pela PUC-SP. E-mail:
Maria Kahn – Instituto Socioambiental – ISA. Antropóloga.
Paulo César Rodrigues CarranoProfessor da Faculdade de
Educação da UFF. E-mail: [email protected]
Joana Célia dos PassosConsultora da Coordenação-Geral de
Educação no Campo – Secad/MEC. Mestre em Educação. E-mail:
Maria Cristina Vargas – Membro do Coletivo Nacional de Educação
do Movimento Sem Terra. E-mail: [email protected]
Ana Lúcia Silva Souza – Assessora e pesquisadora do Litteris –
Instituto de Assessoria e Pesquisa em Linguagem.
Cláudia Lemos Vóvio e Maurilene de Souza Bicas – Assessoras da
Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação. Mestre e
Doutoranda em Educação pela USP, respectivamente. E-mail:
Anézia Viero, Cléa Penteado e Sandra Rangel Garcia – Equipe de
coordenação do Seja de Porto Alegre-RS. E-mail: anezia@smed.
prefpoa.com.br
Miguel Arroyo – Professor titular da Faculdade de Educação da
UFMG. E-mail: [email protected]
Inês Barbosa de Oliveira – Professora da Faculdade de Educação
da UERJ. Doutora em educação pela Université des Sciences
Humaines de Satrasbourg. E-mail: [email protected] ou
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Roseli Salete Caldart – Pertence ao Coletivo Nacional de Educação
do MST e à Coordenação Pedagógica do Iterra. Doutora em educação
pela UFRS. E-mail: [email protected]
Tânia Dauster – Professora e Pesquisadora da PUC-Rio. Doutora
em Antropologia Social - Museu Nacional (UFRJ).
Ana Maria de Oliveira Galvão – Professora da Faculdade de Educação
da UFMG. Graduação em Pedagogia (UFPE), Mestrado e Doutorado
em Educação (UFMG). E-mail: [email protected]
Graça Helena Silva de Souza – Profissional da UERJ - Programa
Invest/UERJ de escolarização básica para funcionários da
Universidade. Pedagoga com habilitação em Educação de jovens e
adultos pela UERJ. E-mail: [email protected]
Antônio José Lopes (Bigode) – Professor de matemática e autor de
livros didáticos. Doutorando na Universidad Autónoma de
Barcelona.
Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca – Professora doutora
da Faculdade de Educação da UFMG. Licenciada em matermática.
Mestre em educação matemática e doutora em educação. E-mail:
Lucillo de Souza Júnior – Educador do Núcleo de Jovens e Adultos
– Neja do Centro Pedagógico da UFES. Licenciado em matemática.
Ricardo Henriques – Secretario de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Professor licenciado da Universidade
Federal Fluminense. E-mail: [email protected]
Timothy Ireland – Diretor do Departamento de Educação de Jovens
e Adultos – SECAD. Professor cedido da Universidade Federal da
Paraíba. E-mail: [email protected]
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