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ANTONIO EUZÉBIOS FILHO
CONSCIÊNCIA, IDEOLOGIA E POBREZA:
SOCIABILIDADE HUMANA E DESIGUALDADE SOCIAL
PUC - Campinas
2007
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Ficha Catalográfica
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas e
Informação - SBI - PUC-Campinas
t302 Euzébios Filho, Antonio
E91c Consciência, ideologia e pobreza: Sociabilidade humana e desigualdade social.
/Antonio Euzébios Filho. - Campinas: PUC-Campinas, 2007.
160p.
Orientadora: Raquel Souza Lobo Guzzo.
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de
Ciências da Vida, Pós-Graduação em Psicologia.
Inclui anexos e bibliografia.
1. Psicologia social. 2. Classes sociais. 3. Sociabilidade. 4. Pobreza. I. Guzzo, Raquel
Souza Lobo. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências da Vida.
Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.
22ed. CDD - t302
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CONSCIÊNCIA, IDEOLOGIA E POBREZA:
SOCIABILIDADE HUMANA E DESIGUALDADE SOCIAL
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Psicologia do Centro de Ciências
da Vida da PUC-Campinas, como
parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia:
profissão e Ciência.
Orientadora: Dra. Raquel Souza Lobo Guzzo
PUC - Campinas
2007
CONSCIÊNCIA, IDEOLOGIA E POBREZA:
SOCIABILIDADE HUMANA E DESIGUALDADE SOCIAL
Campinas, 11 de dezembro de 2007
Banca Examinadora
Presidente: Prof. Dra. Raquel Souza Lobo Guzzo
________________________________________
Prof. Dra. Maria Adelina Biondi Guanais
________________________________________
Prof. Dr. Robério Paulino Rodrigues
PUC - Campinas
2007
AGRADECIMENTOS
Este estudo não é apenas resultado do meu esforço e dedicação, é também resultado
do esforço de muitas pessoas, do apoio de muitas delas e das exigências de outras tantas.
Inicío os agradecimentos por aqueles que, sem eles, nada disto poderia ser realizado.
Minha mãe Magali e meu pai Antonio, obrigado pela força, por acreditarem e investirem na
minha carreira.
Agradeço meus irmãos, Amílcar, Aníbal e Arthur. Obrigado pela força!
Obrigado Léa, minha tia querida!
Agradecimento especial a uma pessoa que influenciou (e ainda influencia) minha
forma de ver o mundo. Obrigado Fernando.
Agradecimento especial àquela pessoa que é mais que uma orientadora, é uma
amiga e companheira de luta. Obrigado por tudo Raquel.
Agradeço a minha companheira Daniela, pelo apoio e pela cumplicidade cotidiana.
Luis, companheiro de estudo e amigo: obrigado pela disposição em ensinar e pelas
conversas.
Agradeço aos amigos que me ajudam a pensar sobre a vida: Diego, Paulão e Caruso.
Adinete, companheira de trabalho: obrigado pela serenidade da sua exigência e pelo
carinho.
Agradecimento aos demais membros do grupo de pesquisa: Izabella, Camila, Leila,
Neila, Taís, Mara, Carmem e Carol.
Agradeço ao professor Robério Paulino e Fernando González Rey pelas reflexões
no momento da qualificação e também um agradecimento à professora Maria Adelina pelas
suas contribuições na banca de defesa desta dissertação.
Agradeço aos participantes desta pesquisa.
As funcionárias da secretaria da pós-graduação pela atenção e gentileza com que
atendem as nossas solicitações.
Ao CNPq pelo apoio financeiro.
A todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste
trabalho.
Euzébios Filho, A. (2007). Consciência, ideologia e pobreza: Sociabilidade humana e
desigualdade social. Programa de pós-graduação em psicologia. PUC-Campinas.
Este trabalho surge de uma prática estabelecida em um contexto marcado pela desigualdade
social. A inserção em uma escola pública, situada em Campinas, deu-se por meio do
projeto "Risco à Proteção", financiado pelo CNPq. Um dos objetivos do projeto é contribuir
para o fortalecimento das redes de apoio social, tendo como foco as crianças acompanhadas
na referida instituição escolar. Neste contexto, da atuação profissional nos diferentes
espaços (escola, comunidade e coordenadoria de assistência social), identificou-se uma
compreensão que culpabiliza o pobre pela situação em que ele se encontra. O objetivo deste
trabalho foi compreender como a desigualdade social interfere na maneira das pessoas
perceberem a si mesmas e aos outros, de distintos segmentos sociais. Para tanto, foram
realizadas entrevistas com duas técnicas da assistência social sobre a forma como percebem
a desigualdade social e as famílias assistidas pelos programas governamentais. Por outro
lado, foram feitas entrevistas com dois pais de alunos (da referida escola) sobre como
compreendem suas condições de vida e a desigualdade social. As entrevistas foram
realizadas respeitando os procedimentos éticos de pesquisa, a partir de um roteiro semi-
estruturado que buscou abordar alguns temas relevantes para esta pesquisa. Uma análise
intensiva das entrevistas permitiu extrair categorias de sentidos que buscaram retratar o
sentido que os participantes traziam em suas análises. Os participantes relacionaram suas
trajetórias profissionais com suas trajetórias de vida. Eles também compreenderam a
desigualdade social a partir das diferenças das condições de vida de determinada população
(desigualdade de renda, acesso à serviços como Educação e saúde, condição de moradia,
etc.). As características individuais foram tomadas como uma das principais causas da
desigualdade social, ou seja, a condição de vida da pessoa é compreendida como resultado
da presença ou ausência de uma força interna capaz, por si mesma, de modificar a realidade
em que se vive. As perspectivas para o futuro limitam-se às perspectivas imediatas de
melhoria das condições de vida. Os participantes ficaram limitados à elaboração de
perspectivas de mudança social focais e individualizadas.
Palavras chave: Classes sociais, desigualdade social, subjetividade, consciência e alienação.
Euzébios Filho, A. (2007). Consciousness, ideology and poverty: human sociability and
social inequality. Programa de pós-graduação em psicologia. PUC-Campinas.
This study comes from an established practice in a context marked by social inequality. The
inclusion in a public school, located in Campinas, has been through by the project, “From
Risk to Protection", sponsored by CNPq. This is a project which one of the goals is to
contribute to the empowerment of the networks of social support, with the focus children
together in that institution school. In this context, from the professional performance in
different areas (school, community and social assistance), we identified an understanding
that blames the poor for the situation in which it finds itself. The objective of this work was
to understand how social inequality influences the way of people perceive itself and the
other, of different social segments. For the deepening of this analysis, interviews were
conducted with two professionals of social assistance about the way that they perceive
social inequality and life’s condition of families assisted by the government. In addition,
interviews were made with two children´s parents (of that school) on how to understand
their living conditions and the social inequality. The interviews were conducted regarding
the procedures of ethical research, from a semi-structured roadmap that sought address
some issues relevant to this search. An intensive analysis of interviews helped constructed
categories of directions that sought portraying the sense that the participants brought in
their discourses. The participants related their trajectories with their professional paths of
life, also understood the social inequality from the differences in living conditions of a
population (inequality of income, access to services such as education and health, condition
of housing, expectation of life, etc.). The individual characteristics have been taken like one
of the mains causes of social inequality. The life’s condition were perceived, by the
participants, as result the presence or absence of a capable force inside,
which were
understood as enough to change the reality in which they live. The prospects for the future
are limited to the prospects for immediate improvement of living conditions. The
alternatives for improvement of living need of a structural analysis of reality, therefore, the
participants were limited to the development of focal and individualized perspectives.
Keywords: social classes, social inequality, subjectivity, consciousness and alienation.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
ÍNDICE DE ANEXOS
ÍNDICE DE QUADROS
APRESENTAÇÃO E JUSTIFICATIVA.........................................................................................................1
I. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................................................ 9
1. Trabalho e sociabilidade humana: a perspectiva da ontologia do ser social. ..........................................9
1a. Perspectiva da ontologia do ser social..............................................................................................9
1b.Unidade dialética entre subjetividade e objetividade: sujeito histórico e essência
humana................................................................................................................................................ 15
2. Trabalho e sociabilidade humana: classes sociais e conceito de pobreza e riqueza.............................. 21
2.a. Capitalismo e Classes sociais....................................................................................................... 22
2.b. Classes sociais no Brasil: uma breve contextualização................................................................ 29
2.c. Classes sociais e conceito de pobreza e riqueza. ..........................................................................33
3.
Capitalismo e sociabilidade humana: o exercício da dominação psicossocial........................................ 35
3a.Capitalismo, sociabilidade e gênero humano. ....................................................................... ........36
3b. Ideal liberal de consumo, mobilidade social e fetichismo da mercadoria......................................41
3c. Capitalismo e dominação psicossocial: ideologia e difamação da figura do pobre.......................45
3.d.Ideologia de culpabilização do pobre: contexto
brasileiro...............................................................................................................................................52
3.e. Ideologia de culpabilização do pobre: uma síntese.......................................................................55
OBJETIVOS (geral e específicos).................................................................................................................. 57
II. MÉTODO.................................................................................................................................................... 58
1. Abordagem teórico-metodológica................................................................................................... 58
2. Cenário de pesquisa. ....................................................................................................................... 60
3. Contexto de pesquisa....................................................................................................................... 61
4. Participantes.....................................................................................................................................63
5.Material............................................................................................................................................,.65
6..Procedimentos................................................................................................................................. 69
6a. Procedimentos éticos....................................................................................................... 69
6b. Procedimentos de coleta...................................................................................................70
III. RESULTADOS E DISCUSSÃO............................................................................................................. 72
1. Introdução e justificativa................................................................................................................. 72
2. Procedimentos e estrutura de análise................................................................................................73
ANÁLISE DOS RESULTADOS: DISCUSSÃO............................................................................................75
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................................ 136
IV - REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................. 141
ANEXOS
ÍNDICE DE ANEXOS
Anexo 1: roteiro socioeconômico.................................................................................p. 148
Anexo 2: carta de consentimento livre e esclarecido.................................................p. 149
Anexo 3: roteiro de perguntas para as entrevistas....................................................p. 150
INDICE DE QUADROS
QUADRO I: dados demográficos dos participantes....................................................p. 64
QUADRO II: dados socioeconômicos dos participantes.............................................p. 64
QUADRO III: Questões/dimensões investigadas.........................................................p. 66
1
APRESENTAÇÃO E JUSTIFICATIVA.
A escolha de um objeto de estudo não é uma decisão fácil, trata-se de um longo
processo de reflexão, em que, aos poucos, o pesquisador passa a externar suas motivações,
seus interesses e aspirações.
Em vista disso, ao apresentar do que se trata esta dissertação, não poderia deixar de
externar minhas motivações, meus interesses e contar um pouco da minha trajetória desde a
graduação no curso de psicologia da PUC-Campinas.
Desde a graduação, deparei-me com uma psicologia indiferente para com a
realidade brasileira. Preocupada mais em classificar, deduzir e predizer do que analisar os
processos reais que se colocam no cotidiano das pessoas, a psicologia dominante mostra-se
limitada no envolvimento e na compreensão das questões sociais de maior relevância.
No caminhar dos meus estudos e da minha prática, a caracterização da psicologia
hegemônica foi tomando corpo e se contrapondo a uma outra forma de enxergar a
psicologia e o próprio fenômeno psicológico.
Pude elaborar, graças aos debates ao longo do curso e a todo processo de imersão no
campo da psicologia, um recorte entre as perspectivas que julgava, do ponto de vista
político, mais ou menos progressista, tomando como referencial a realidade brasileira e
latino-americana. Com o passar do tempo pude observar que esta distinção não era tão
simples quanto imaginava. não mais me cabia a idéia de duas psicologias (uma
hegemônica não engajada e outra não hegemônica engajada). Comecei a notar o fato de que
todas elas são engajadas, cada qual à sua maneira, e notei também que não se tratava
apenas de duas visões de mundo distintas, e sim de muitas delas, as quais em hipótese
alguma, tenho a intenção, nem a pretensão, de analisar.
O fato é que não mais enxergava a psicologia dividida em duas. Notadamente havia
percebido a existência de um modelo dominante, engajado na manutenção da ordem social.
Por outro lado passei a observar, mesmo no campo da psicologia não hegemônica, uma
psicologia dotada de várias formas, muitas vezes antagônicas umas das outras, ainda que
dentro de um mesmo campo de atuação (psicologia comunitária e suas várias vertentes é
um exemplo da ‘variedade’ da psicologia) (Alfaro, 2001).
Ainda assim, a variedade das teorias psicológicas o impediu a predominância de
um modelo positivista, mesmo no campo da psicologia hegemônica. Trata-se daquela
2
psicologia cuja tradição experimental e empiricista permitiram o desenvolvimento da
psicologia como profissão a chamada psicologia moderna, marcadamente norte-
americana.
1
. Tal psicologia, praticista e referenciada em interesses corporativos, contribuiu
para a falta de consistência teórica e para a pobreza de debates filosóficos no campo da
psicologia (Dazinger, 2002).
O movimento do positivismo, predominante até os dias de hoje, exerceu a sua
dominação no campo hegemônico e alternativo e formatou a psicologia enquanto ciência e
profissão (Dazinger, 2002). A profissão foi inicialmente elaborada sob uma premissa que se
baseia em uma concepção de sujeito fundada em esquemas herméticos e superficiais.
Assim, a hegemonia do modelo positivista tem resultado em uma reflexão inconsistente
sobre a própria natureza do fenômeno psicológico, conduzindo a um instrumentalismo
ateórico (González Rey, 2006), ao culto ao método (a ‘metodolatria’, nas palavras de
Dazinger, 2002), em suma, a fragmentação e a simplificação das análises psicológicas.
Além da psicologia positivista, o amplo campo da psicologia dominante abarca as
grandes vertentes do pensamento psicológico, em suas expressões mais clássicas: a
psicanálise ortodoxa, o humanismo e o comportamentalismo de Pavlov e Skinner. O ponto
comum destas teorias é uma concepção fragmentada do fenômeno psicológico são
concepções que privilegiam uma dimensão da vida humana em detrimento da outra (ou
focalizam suas análises nos aspectos subjetivos ou nos objetivos) e que, portanto encontram
dificuldades para compreender como se estabelece uma dada relação entre sujeito e
sociedade.
Em vista desta caracterização da psicologia dominante, um segundo passo ainda
teria que ser dado: ao reconhecer a psicologia dominante associada as concepções
positivistas ou fragmentadas sobre o sujeito, teria de posicionar-me frente às variantes
críticas da própria ciência psicológica.
Particularmente fazia, bem ou mal, uma caracterização mais elaborada da
psicologia dominante e das suas diferentes variantes, portanto, tinha um caminho em vista:
o vasto campo da psicologia critica, onde encontrava um ambiente mais propício para o
debate e para a realização de uma ruptura com os modelos psicológicos positivistas e
1
Para González Rey (2004), o marco da psicologia moderna correspondeu à estruturação da psicologia
enquanto profissão, que ocorreu no fim do século 19 nos Estados Unidos.
3
fragmentados (em conseqüência, abria-se caminho para a construção de uma psicologia
voltada às necessidades reais da população brasileira e latino-americana).
Esta ruptura, que se inclusive no plano da chamada psicologia crítica (Brandão,
1999; Montero, 2002, 2004; Prado, 2002 entre outros) não foi realizada somente por
motivações meramente científicas, havia uma intenção prática e política em que emergia o
sentido da psicologia da libertação, empreendida por Martín-Baró (1998; 2000; 2003). O
objeto de estudo desta dissertação é, portanto, parte de um processo de reflexão sobre a
realidade, reflexão essa que tomou corpo a partir do contato com a psicologia de Martín-
Baró e, mais adiante, o desvelar do próprio substrato filosófico desta psicologia: o
marxismo.
Para Martín-Baró, uma ruptura efetiva com a psicologia dominante é aquela
realizada no campo da política, por isso, neste caso, tratamos psicologia dominante como
uma expressão da psicologia burguesa (que aglutina as diferentes vertentes da psicologia
hegemônica e algumas ditas críticas) uma vez que o modelo dominante conquistou sua
hegemonia, primeiramente, no campo político (Martín-Baró, 1998; 2000). A hegemonia de
uma compreensão científica reflete, em primeiro plano, a hegemonia política do grupo que
a empreende. No caso da psicologia dominante, trata-se de uma hegemonia de uma
concepção sobre o mundo em que vivemos e o sujeito que analisamos. É por isso que
Martín-Baró sentia a necessidade de uma reconfiguração da psicologia quanto aos seus
objetivos e suas formas de analisá-los. Para o autor, era preciso libertar-se dos vícios da
psicologia hegemônica, o que significa, em primeiro plano, libertar-se do modelo de
pensamento burguês, fato que implica, necessariamente, na ruptura com o positivismo e
com as diferentes expressões da psicologia dominante.
Assumindo esta premissa, a desigualdade social passou a orientar os meus estudos
pelo simples fato deste fenômeno assolar grande parte da população; também pela
necessidade de compreender o fenômeno psicológico em interação dialética com a
realidade concreta e o primeiro atributo da realidade concreta neste país me parece ser a
desigualdade social. Posto isso, a psicologia não pode ficar alheia a um entendimento
científico de como opera o capitalismo, ao mesmo tempo em que esta compreensão não
pode ser construída sem o seu próprio fundamento: o sujeito histórico.
4
Ao tomar contato com o marxismo, pude observar que, mais do que a relação entre
desigualdade social e fenômeno psicológico, o desafio central da psicologia é compreender
a articulação dialética entre subjetividade e objetividade.
Esta articulação, por refletir a natureza do fenômeno psicológico, também interfere
sobre a prática psicológica, sendo ela o cerne de toda e qualquer intervenção profissional.
Dessa maneira, surgem também inquietações sobre os limites e as possibilidades de atuação
do psicólogo, em contextos onde a desigualdade social atinge diretamente grande parte da
população. A intervenção em uma região marcada por diferentes formas de opressão exigiu
do pesquisador um posicionamento teórico e prático diante da adequação do trabalho do
psicólogo e da própria ciência psicológica em função das circunstâncias concretas da
realidade brasileira (Guzzo, 2004).
Este trabalho nasce a partir de uma intervenção realizada em uma escola pública,
localizada em Campinas, em uma unidade territorial que apresenta um baixo índice de
inclusão social (PMC, 2004). As reflexões surgiram em meio a um contexto marcado pela
desigualdade social, onde moradores de bairros populares e de condomínios de alto padrão
aglutinam-se em um mesmo espaço geográfico. Trata-se do entorno da escola pública
mencionada, na qual desenvolvemos um trabalho por meio do projeto ‘Risco à Proteção:
uma intervenção preventiva na comunidade’
2
.
Um dos principais objetivos do projeto “Risco à Proteção” é contribuir para o
fortalecimento das redes de apoio social, tendo como foco as crianças acompanhadas na
referida instituição escolar. Em quatro anos de atuação neste contexto, pude observar como
vêm sendo implementados os programas assistenciais e a organização das redes de apoio na
região. Em meio a uma caracterização da situação econômica das famílias, a nossa atuação
profissional nos diferentes espaços (escola, comunidade e as reuniões da intersetorial
reuniões estas promovidas pelo Centro de Referência da Assistência Social - CRAS) passou
a ser guiada pelas necessidades sentidas e percebidas pelas famílias acompanhadas (Guzzo,
2004). Por outro lado, deu para notar que as necessidades da população nem sempre são
respeitadas e suas condições de vida, muitas vezes, passam despercebidas na elaboração das
políticas de ação. A prática de alguns destes profissionais está subsidiada por uma
2
Um projeto desenvolvido por psicólogos e estudantes de psicologia, financiado pelo CNPq (Guzzo, 2004),
do qual participo desde o início do segundo ano da graduação.
5
determinada compreensão de sujeito e de mundo, o qual se busca contrapor, inclusive, no
plano particular da ciência psicológica.
A compreensão dominante nos espaços referidos culpabiliza o pobre pela situação
em que ele se encontra. Esta concepção trata de maneira simplificada questões complexas
que exigem uma análise profunda acerca do impacto que as condições econômicas exercem
sobre as relações sociais e sobre a própria constituição psicológica do sujeito.
Diante disto, tendo como referência a prática dos diferentes profissionais os quais
temos tomado contato por via da Intersetorial
3
, buscamos contribuir para uma reflexão
sobre a noção da pobreza e da riqueza, sobretudo tendo como ponto de partida os resultados
obtidos no projeto de iniciação científica realizado no meu último ano da graduação, cujo
objetivo principal era analisar a desigualdade social a partir da visão dos seus atores
(Euzébios Filho & Guzzo, 2006). Este projeto apresentou a percepção de uma moradora de
um bairro popular e de uma moradora de um condomínio de alto padrão (ambas moradoras
de uma área próxima da escola referida anteriormente) acerca da desigualdade social. Esta
reflexão demonstrou que as participantes justificaram as suas condições de vida e a própria
desigualdade social tendo como base uma compreensão de culpabilização do pobre.
A convivência entre os moradores desta região serviu como pano de fundo para que
as participantes expressassem suas opiniões sobre o tema. Um dos resultados obtidos a
partir das falas das entrevistadas é que as participantes referiam-se às suas condições de
vida de maneira naturalizada. A situação econômica estável dos moradores do condomínio
foi atribuída à competência e à capacidade individual destas pessoas. A condição de
pobreza (assim as participantes referiam-se à condição econômica e social dos moradores
do bairro) pareceu atrelada às características individuais do pobre, como se ele fosse dotado
de uma personalidade estática e imutável, sendo o principal responsável pela situação em
que se encontra. (Euzébios Filho & Guzzo, 2006).
A visão trazida pelos participantes da referida pesquisa, a respeito da pobreza e da
desigualdade social, pode ser observada, por diferentes proporções, como já havíamos
adiantado, no contato com alguns profissionais que participam da reunião da intersetorial
3
Reuniões instituídas por regiões de atuação dos CRAS cujo objetivo é o trabalho interdisciplinar e sua
proposta consiste em reuniões periódicas que reúnem médicos, agentes de saúde, enfermeiros, psicólogos,
assistentes sociais, etc. que atuam em uma mesma localidade.
6
espaço em que se reúnem representantes dos equipamentos públicos e privados que se
instalam e desenvolvem seus trabalhos em uma área delimitada do município de Campinas.
Um dos objetivos deste espaço, na nossa concepção, seria o de discutir casos
individuais, mas, essencialmente, o de tirar uma política de ação coletiva e coordenada para
a atuação dos profissionais em rede. No entanto, o que se observa é que este espaço limita-
se a discutir casos pontuais de maneira extremamente individualizada e fragmentada.
Em torno disto, as questões que surgiram foram: como realizar uma análise no plano
individual, sem olhar para o contexto em que este indivíduo esta inserido? Por outro lado,
como podemos empreender uma ação sem que sejam considerados os sujeitos, seus valores
e crenças que marcam o contexto em que vivem?
Nas discussões em torno dos encaminhamentos propostos - encaminhamentos estes
restritos à forma como cada profissional deve agir individualmente com determinada
criança, adolescente ou família – existe um embate entre aqueles que defendem uma
concepção mais integrada e contextualizada, no nível de uma intervenção mais amplificada
e que impacte de maneira mais decisiva a vida das pessoas. Outros profissionais se
acomodam com uma intervenção mais simplificada e individualizada, realizando uma
análise fragmentada da vida de uma determinada pessoa ou grupo social, especialmente
uma população pobre, usuária do sistema público.
Esta compreensão sobre a realidade, sobre os outros e sobre si mesmo coloca a
ciência psicológica diante de pelos menos dois grandes desafios: (1) analisar o impacto da
estrutura social sobre a constituição psicológica (2) compreender os fenômenos
psicológicos a partir de uma perspectiva histórica; (González Rey, 1995, 2003; González
Rey & Mitjáns, 1989 Martín-Baró, 2000; Martins, 2004; Seve, 1979 a;b;c; Sloan, 1984).
Neste sentido, tomando a situação concreta de vida das famílias assistidas pelos
programas sociais do governo (a maioria esmagadora dos casos que discutimos na reunião
da intersetorial) buscamos compreender como duas profissionais da assistência social e
duas pessoas que têm seus filhos estudando na escola pública mencionada (e que foram
beneficiados pelos programas de transferência de renda) refletiram sobre suas condições de
vida, sobre a desigualdade social, sobre a pobreza e riqueza, como estabeleceram uma
relação entre suas condições de vida e visão que fazem de si mesmos ou dos segmentos
sociais os quais pertencem.
7
A visão sobre o outro pode contribuir para compreender como algumas pessoas
concebem determinados aspectos relacionados à consciência acerca da desigualdade social.
Ademais, a análise acerca das características mais marcantes de si mesmo e dos outros
deflagra uma concepção acerca da própria dinâmica social em que vivemos.
Diante do exposto e pela intenção de aprofundar meus estudos para a compreensão
desta realidade, a realização da pós-graduação se colocou em minha vida como
fundamental. Pelas características deste estudo, ele se incorporou à linha de pesquisa do
programa de pós-graduação em psicologia da PUC-Campinas, denominada “Prevenção e
intervenção psicológica”. Também está inserido na linha do grupo de pesquisa que faço
parte, denominada “Avaliação e intervenção psicossocial: Prevenção, comunidade e
libertação”.
Nesta direção, para que pudesse dar continuidade à construção teórica e prática que
vimos conduzindo, este projeto foi elaborado com a proposta de focalizar a atenção às
questões pertinentes aos elementos que estão envolvidos na percepção de diferentes
segmentos sociais sobre a desigualdade social e suas condições de vida.
Este estudo buscou compreender como algumas pessoas percebem a desigualdade
social e suas próprias trajetórias de vida. Para tanto, foram realizadas quatro entrevistas
com que temos tomado contato nos campos de atuação profissional. Esta análise foi
realizada a partir de uma leitura aprofundada das entrevistas. Com isso buscamos extrair
dos discursos dos participantes, da compreensão que eles traziam sobre determinados
assuntos, categorias de sentido com a finalidade de realizar uma investigação aprofundada
em torno das temáticas que surgiram ao longo das entrevistas.
Os resultados atestam que, não diferente da concepção predominante, os dois
participantes profissionais da assistência social - prenderam-se, quando buscaram
compreender a desigualdade social, a uma compreensão fragmentada da pobreza. Da
mesma maneira, os dois pais entrevistados, que se caracterizaram eles mesmos como
pobres, acreditam estarem na condição de pobreza por falta de iniciativa ou vontade
própria. Sendo assim, rebaixam suas expectativas em relação às melhorias futuras das suas
condições de vida; é também uma visão que interfere na forma como os participantes
percebem as alternativas para melhoria das condições de vida da população.
8
A fundamentação teórica propriamente dita serviu para gerar um posicionamento
frente às questões abordadas, de uma maneira ou de outra, nas entrevistas que, por sinal,
foram estruturadas pensando englobar os objetivos deste estudo. Assim, iniciamos por
tratar de um tema central quando se discute qualquer fenômeno social, como desigualdade
social, por exemplo. De que sujeito estamos falando? Essa foi primeira questão que
buscamos responder para fundamentar as reflexões ulteriores. Dessa forma, o primeiro eixo
de reflexão teórica refere-se à ontologia do ser social, no sentido de uma compreensão
acerca da unidade dialética entre objetividade e subjetividade (a qual o trabalho é o fio
condutor), que se apresenta como elemento chave nesta perspectiva para a compreensão das
relações sociais, das percepções que uns fazem dos outros e da própria constituição do
sujeito. O segundo eixo de fundamentação teórica expõe o conceito de classe social como
forma de compreender as bases das relações sociais no capitalismo e contextualizar a
atividade humana por meio da análise da contradição entre capital e trabalho. Esta
perspectiva fornece as bases para uma compreensão mais aprofundada acerca da pobreza,
da riqueza e de alguns aspectos da realidade social vivida. O conceito de classe social
também é fundamental e por isso é apresentado como segundo eixo de fundamentação, pois
ele permite compreender, em linhas gerais, como a tensão entre trabalho e capital interfere
na forma de organização social em que vivemos. Nota-se que o foco de análise são as
relações sociais, mas também buscamos entender como esse padrão de relacionamento
afeta a individualidade das pessoas, ou melhor, a forma como as pessoas percebem a si
mesmas e aos outros. A percepção sobre si mesmo e sobre o outro é tema de análise do
terceiro e último eixo desta fundamentação. Procuramos demonstrar como a realidade
objetiva das classes sociais interfere na percepção que se faz de si, dos outros e do contexto
em que se vive. Aqui a ideologia dominante foi analisada sob a forma de dominação
psicossocial (em sintonia com a dominação de classe) exercida sobre a camada pobre da
população. Compreendido, assim, alguns aspectos que tratam da dimensão política e
ideológica da dominação de classe, finalizamos a fundamentação teórica com uma reflexão
a respeito de uma concepção que tanto afeta a maioria da população: a concepção
cristalizada do pobre, dos trabalhadores menos abastados e do sujeito, em geral.
9
I. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.
1. Trabalho e sociabilidade humana: a perspectiva da ontologia do ser social
A elaboração de uma teoria psicológica pressupõe uma concepção mais ampla sobre
o sujeito (González Rey, 2003; Martín-Baró; 2000 Séve, 1979). Sendo assim e
compreendendo a necessidade de um posicionamento ontológico frente ao objeto de estudo
da psicologia, iniciamos expondo uma concepção marxista acerca do ser social (Costa,
2005; Lessa, 2003; Oldrini, 1995; Tonet, 2005).
Este tópico aborda elementos centrais da noção marxista acerca do sujeito,
destacando dois elementos desta compreensão: (1) o trabalho como fundamento da
sociabilidade humana, como elemento estrutural das relações em sociedade e (2) a
compreensão acerca da unidade dialética entre subjetividade e objetividade e sua
implicação teórica para a análise acerca da essência humana. Em primeiro lugar, buscamos
compreender como o trabalho e a sociabilidade humana articulam-se para a constituição do
ser social. Em um segundo momento, o conceito de essência humana é tomado como foco
de análise, em decorrência de uma compreensão acerca do eixo fundante da sociabilidade
o trabalho e de sua expressão humana dialética, que expressa a causalidade posta entre
subjetividade e objetividade.
1a. A perspectiva da ontologia do ser social
A ontologia corresponde ao fundamento dos fundamentos, aquilo que expressa a
natureza de um determinado fenômeno (Lessa, 2003; 2005). No caso de uma compreensão
acerca do ser social, o fundamento dos fundamentos para Marx é o trabalho, uma vez que
ele representa a condição primeira para a reprodução humana: o intercâmbio orgânico com
a natureza (Lessa, 2003; 2005; Tonet, 2005).
O trabalho é a atividade que tem por finalidade a subsistência humana, ou seja, para
o indivíduo se alimentar, para construir sua moradia, proteger-se do frio, das condições
adversas do meio ambiente etc, ele precisa intervir sobre a natureza e extrair dela os
elementos necessários para sua sobrevivência. Para Marx (1867/2004a), a produção dos
valores de uso corresponde a uma condição inalienável da vida humana, assim ele comenta:
O processo de trabalho é a atividade orientada a um fim para produzir valores de
uso, a apropriação natural para satisfazer as necessidades humanas, condição
universal do metabolismo entre homem e a natureza, condição natural eterna da vida
10
humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo comum a
todas as suas formas sociais (p. 46).
O processo de trabalho ao qual Marx se refere nesta passagem decorre do próprio
intercâmbio orgânico com a natureza. Assim, uma vez sendo o processo de trabalho a
“atividade orientada a produzir valores de uso”, conseqüentemente ele figura como o
elemento “comum a todas as suas formas sociais”. Dessa maneira, o trabalho figura como o
ato teleológico primário e a economia, consequentemente, corresponde ao momento
predominante na constituição do ser social e nas diferentes formas de reprodução da vida
humana (Tonet, 2005).
A economia não deve ser confundida com a sua forma histórica específica, quer seja
com sua manifestação mercantil, tal como no capitalismo. Trata-se de um fenômeno
inerente à toda forma de organização social, pois se refere ao modo como os sujeitos
organizam a produção e a distribuição dos valores de uso. A economia é o processo de
organização da estrutura material de uma dada sociedade. Por economia compreendemos,
portanto, um conjunto de relações sociais concretamente estabelecidas pela qualidade do
modo de produção vigente em uma dada sociedade (Tonet, 2005). Todavia, isto não
significa que a economia seja um fator impeditivo para o desenvolvimento humano,
tampouco que este último seja meramente um resultado das condições objetivas. Assim,
Costa (2005) argumenta que a concepção marxiana sobre o trabalho e sobre a própria
economia deve estar articulada com uma compreensão acerca do sujeito, efetuada pelo
próprio Marx. Da mesma maneira, Pires (2004) e Séve (1979a) defendem que a teoria
marxiana estabelece como eixo central de sua análise, uma compreensão sobre o sujeito
articulada com as bases objetivas de sua existência.
O trabalho (isto é, a ação humana sobre a natureza) possibilitou o aparecimento e a
formação do ser social, mas, certamente, não podemos considerá-lo como uma categoria
capaz de resumir o amplo espectro das atividades humanas, tampouco permite que dele
sejam deduzidas todas elas.
È preciso enfatizar, face às inúmeras deformações, que Marx não reduz o homem ao
trabalho, nem afirma que o trabalho é o elemento que determina inteiramente a vida
humana. Quem faz estas informações, incorre no equívoco (...) de entender o
trabalho como trabalho abstrato, cuja base de valor é a troca, ignorando que o fio
11
condutor do pensamento marxiano é o processo de autoconstrução do homem
tomado sempre em nível ontológico (Tonet, 2005 p. 40).
O trabalho é o intercâmbio orgânico com a natureza, mas a forma como ele se
organiza socialmente, a partir de sua complexificação, corresponde à uma situação histórica
específica, um modo de vida concreto. Trabalho, em sua dimensão ontológica, não
compreende apenas ao ato de sobrevivência, tampouco se resume à sua expressão
mercantil, trata-se do fio condutor do processo de autoconstrução do homem pelo homem.
Marx e Engels tratam como uma verificação empírica o fato de que a consciência é
sempre a consciência de algo e que seu nascimento ocorreu a partir de uma finalidade
prática - a sobrevivência humana (Marx e Engels, 1845/2005). Trata-se de uma
compreensão ontológica a respeito da forma como objetividade e subjetividade articulam-
se, mas esta articulação, longe de negar, confirma a natureza dialética destas duas
dimensões inalienáveis da vida humana.
O trabalho representa a síntese da ação humana sobre a realidade objetiva e quem
opera essa síntese são os indivíduos em um processo de objetivação de suas vidas e, ao
mesmo tempo, de subjetivação da realidade concreta (Costa, 2005, Pires, 2004; ve
1979a).
Nesta perspectiva, amparada na ontologia do ser social em Luckás, Costa (2005)
coloca que o ser humano se desenvolve em duplo sentido: o da reprodução histórica (da
reprodução dos meios de vida) e o da transformação do gênero humano em individualidade.
Sendo assim, a autora coloca que o sujeito opera a objetivação dos meios de vida e o seu
ato teleológico.
Em vista disso, Costa (2005) argumenta que o tornar ser social é, ao mesmo tempo,
expandir a individualidade e essa expansão não se por outra via senão pelo próprio
processo da exteriorização (em outras palavras: o processo de objetivação de sua posição
teleológica). É a partir do ato do trabalho que os sujeitos se mostram tal como são, deixam
suas marcas pessoais no processo de trabalho e nas relações sociais. Neste sentido, o
processo de exteriorização é capaz de tornar a própria objetivação um ato singular. Mas o
fato é que os processos de objetivação/exteriorização são imanentes, uns aos outros, e
correspondem à dimensão social da subjetividade resguardando sua autonomia relativa
frente ao processo de objetivação da vida humana.
12
Assim, Costa (2005) coloca que, em um primeiro momento “por força das
exigências do trabalho, quer seja, do próprio processo de trabalho, a objetivação se dirige
justamente à homogeneização de certos comportamentos” (p. 14). Por outro lado, este
processo de objetivação, que permitiu a generalização da vida humana, deu-se senão pela
elaboração “de conceitos abstratos capazes de substituir as coisas em uma realidade
imediata” (Tonet, 2005, p.39).
Os indivíduos elaboram conceitos abstratos não no sentido de uma abstração inócua,
mas de uma abstração voltada para uma finalidade, qual seja “substituir as coisas em uma
realidade imediata” (op. cit). Dessa forma, a abstração parte de uma necessidade concreta
imposta como condição para o desenvolvimento da vida humana no plano individual e
social. O duplo sentido que este processo adquire (Costa, 2005) corresponde ao processo de
tornar-se ser social em um movimento de distanciamento de sua condição natural e
estritamente genérica. Neste sentido, o processo de exteriorização/objetivação comporta
não apenas uma realidade socialmente imposta, mas uma realidade construída socialmente,
via ação dos sujeitos particulares. O processo de exteriorização/objetivação guarda uma
ligação com o ato de valorar dos indivíduos singulares, mas não se resume a isto visto que a
singularidade ali presente também expressa “a exteriorização real de uma existência
humana presente no plano social” (Costa, 2005; p. 67).
Trata-se de uma compreensão dialética da unidade entre subjetividade e
objetividade, sendo estas duas dimensões consideradas interdependentes uma da outra, d
a objetivação ser encarada como o processo que deflagra o processo de exteriorização que,
por sua vez, não se limita à realidade objetiva, bem como é parte dela. Assim, o processo de
trabalho é reconhecido pelo seu próprio valor objetivo, sendo que a valoração é um
processo que perpassa por uma construção da subjetividade. Em outros termos, a
objetivação é possível, pois os indivíduos foram capazes de manipular, por meio do
trabalho, as condições naturais que antes os sufocavam e são capazes de conhecer, por meio
dos sentidos e da emocionalidade, a realidade concreta, ainda que de formas distintas.
Assim é que o processo unitário de exteriorização/objetivação assume uma dupla função: a
construção do sujeito histórico e, simultaneamente, a construção da individualidade
concreta (Costa, 2005).
13
A expansão da individualidade humana foi possível dado o distanciamento da
condição natural de vida dos indivíduos, quer seja, a partir do próprio desenvolvimento das
formas de organização social. Dessa maneira, Costa (2005) afirma:
É no processo de objetivação realizado no trabalho que o homem converte a
realidade existente em realidade somente existente no mundo dos homens. Com este
ato singular, o homem opera a síntese entre a prévia ideação (teleologia) e a relação
natural (causalidade dada), dado origem a uma causalidade posta (o ser social)
(p.41).
Assim, a necessidade imposta naturalmente (referente à objetivação da vida
humana) dá lugar a uma necessidade imposta socialmente. Esta imposição social constitui o
fato de que o patrimônio social passa a sobrepor-se sobre o natural sem que isto signifique
que o último desapareça. Assim, ao passo em que a exteriorização é compreendida como
parte do processo de objetivação da realidade, a consciência assume um papel fundamental,
sem que ela deixe de renunciar os seus atributos inerentemente sociais. No entanto, em
determinado momento desta relação, a consciência passa a orientar permanentemente o
processo de objetivação da vida social, o que significa uma brutal ruptura com a natureza
no sentido da conquista de uma autonomia frente a ela. Trata-se da relação entre teleologia
e causalidade compreendida ao nível ontológico da constituição do ser social.
A integração entre o natural e o social, bem como entre objetivação e subjetivação,
impôs a sociabilidade como momento progressivamente dominante dado que as categorias
sociais passaram a se sobrepor sobre as naturais, o que coadunou com o distanciamento do
ser social em relação à natureza.
Esse processo de transformação qualitativa do ser natural para o ser social é descrito
pela análise de Engels (1876/2004) sobre O papel do trabalho na transformação do
macaco em homem. Segundo o autor, a atividade humana era guiada pelas condições
naturais que ainda se sobrepunham sobre o ser social em formação. Ao desenvolverem o
trabalho, seus instrumentos e seu processo produtivo, “os homens em formação chegaram a
um ponto em que sentiram a necessidade de dizer algo uns aos outros” (p.18) e daí se
desencadeou o processo de hominização (desenvolvimento da linguagem/pensamento, da
consciência, da criatividade etc). Mas o que importa nesse momento é demonstrar que
Marx, ao se referir à relação entre teleologia e causalidade, no marco da ontologia do ser
14
social, sendo este constituído no processo de exteriorização/objetivação, coloca a prioridade
ontológica da práxis na vida humana (Oldrini, 1995; Pires, 2004; Tonet, 2005).
O que se tem claro nesta compreensão é que o trabalho não esgota o ser social, pelo
contrário: o desenvolvimento do processo de trabalho representa a afirmação do patrimônio
social sobre o natural, ou, em outros termos, a sobreposição do ser social sobre o ser
natural. Neste sentido, não oposição entre desenvolvimento do processo de trabalho e o
processo de autoconstrução do ser social, uma vez que a produção dos meios de vida
representa um salto qualitativo da vida social, um fenômeno que diferencia o macaco do
homem, o ser natural do ser social (Engels, 1876/2004). Sobre esta questão, Marx e Engels
(1845/2005) colocam:
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, religião e tudo o que
mais se quiser, mas essa distinção só começa a existir quando os homens começam
a produzir os seus meios de vida (p. 17).
Nesta passagem de A Ideologia Alemã fica claro que Marx e Engels distinguem o
ser social do ser natural em nível de uma caracterização ontológica. Assim, o trabalho,
enquanto causalidade posta corresponde à passagem do ser natural para o ser social (a
objetivação da vida humana). E mais: gera as bases para o desenvolvimento da
particularidade do gênero humano e da expansão da individualidade.
Sendo assim, o é mais a consciência nem são as condições objetivas que
assumem, separadamente, um papel preponderante na História. A própria gênese do ser
social é um processo dialético entre objetividade e subjetividade, mas o fato é que a
identidade entre generidade e sujeito é o que impulsionou o desenvolvimento do ser social
e, por outro lado, assume um importante papel na constituição das individualidades.
A busca pela conciliação destas duas dimensões da vida humana não é uma busca
harmoniosa e, tampouco, ela é possível de ser realizada em completa ausência de
contradições. Por isso, não se trata aqui de analisar a relação entre generidade e
individualidade, dado que este dilema, de caráter ontológico, constitui não apenas o
objetivo mais geral deste trabalho, como de qualquer outro no campo das ciências sociais.
O que queremos enfatizar, em face de uma reflexão acerca da ontologia do ser social, é que
a compreensão de Marx sobre este processo não tem a pretensão de compreender o
15
movimento histórico a partir de leis invariáveis e que se estabelecem dentro de uma lógica
especulativa ou racionalista (Séve, 1979).
É verdade que Marx não compreende a História como um processo meramente
caótico, uma vez que ele reconhece a sobreposição (não a anulação) de uma dimensão da
vida humana sobre a outra. Em primeiro lugar, Marx reconhece o processo de trabalho
como uma condição inalienável da vida humana e que, portanto, é um momento
predominante em relação à forma como a sociedade se organiza. Todavia, não podemos
confundir momento predominante com prioridade ontológica. O momento predominante é
um conceito que serve para verificar quais aspectos da realidade interferem de maneira
mais decisiva em uma dada situação concreta de vida (Lessa e Tonet, 2004). Por isso, o
período revolucionário corresponde, por exemplo, a um período em que a consciência
aparece como o momento predominante, uma vez que este momento é caracterizado pela
transformação das bases reais de vida.
De qualquer maneira, sem pretender compreender o momento predominante de um
período ou de outro (o que só poderia ser efetuado tendo como base em uma análise
profunda de uma determinada situação concreta) nota-se que a concepção acerca do que
seja a História compreende, em seu fundo, uma concepção sobre a própria essência
humana
4
.
1b. Unidade dialética entre subjetividade e objetividade: sujeito histórico e
essência humana
Em que pese o fato de o materialismo histórico e dialético possibilitar uma análise
mais acurada do movimento da História e da própria essência humana, uma vez que se trata
de uma superação filosófica das correntes de pensamento que o antecedem (Lowy, 1989;
Meszáros, 2006; Tonet, 2005), Marx assim como seus predecessores, o nega a idéia de
essência humana. É certo que a perspectiva do trabalho em Marx permite até mesmo uma
compreensão sobre a continuidade histórica, o que justificaria o aparecimento do
capitalismo e, com isso, o desenvolvimento de uma essência humana individualista e
mesquinha. Todavia, esta análise deve vir acompanhada do reconhecimento da
4
Para Lowy (1989) e Meszáros (2006) esta foi a grande sacada de Marx em relação à Hegel. A ruptura com
Hegel não corresponde apenas a uma compreensão diferenciada acerca da História. Trata-se de uma crítica ao
nível do ‘sujeito pressuposto’ idealmente concebido por Hegel, que é o que vai determinar a concepção mais
ampla sobre a História, sobre sua procesualidade e sobre a possibilidade ou não de superação da alienação.
16
historicidade da natureza humana e de sua qualidade inerentemente social e relacional, o
que pressupõe a relação entre sujeitos e deles com a natureza (Costa, 2005; Lowy, 1989;
Meszáros, 2006; Tonet, 2005).
O conceito de essência humana, nesta perspectiva, reconhece a natureza social do
indivíduo, mas isto não significa que esta natureza possa definir o momento posterior do
desenvolvimento individual e da sociedade. O que Marx coloca é a inexistência de uma
essência fora da História. Marx não atribui uma essência estática aos indivíduos justamente
porque o conceito de essência humana apresenta, ao fundo, uma compreensão da História
fundada a partir da unidade dialética entre subjetividade e objetividade. Assim, a essência
humana, segundo Marx (1845/2004b), é dada pelo conjunto das relações sociais, sendo
estas modificantes e modificadas pelos sujeitos particulares.
Marx (1845/2004b) afirma, na VI tese sobre Feuerbach, que a essência humana é o
conjunto das relações sociais, mas em nenhum momento ele entende as relações sociais
dotados, elas próprias, de uma essência (Costa, 2005). A essência só pode ser captada
dentro do próprio processo histórico, o que significa ter a afirmação de Marx na VI tese
sobre Feuerbach representado um avanço no conhecimento filosófico, pois nos fornecem
possibilidade para conhecer, ainda que abstratamente, uma dada essência humana.
Em toda sua obra intitulada Marxismo e a teoria da personalidade, em especial nos
dois primeiros volumes, Séve (1979a; b; c) busca demonstrar que a grande contribuição do
marxismo para a filosofia foi a de abrir caminho para uma compreensão, ainda que abstrata,
mas consistente, acerca da essência humana.
Séve (1979a) adverte para os perigos que uma determinada concepção marxista
pode nos conduzir ao tratar do conceito de trabalho e de essência humana de uma forma
meramente formal e genérica. Assim, ele coloca:
Exactamente porque a filosofia é a filosofia, isto é, uma reflexão que se situe ao
nível das categorias e dos princípios mais genéricos da concepção do mundo, não é
possível dela deduzir, mesmo se possui qualidade científica, verdades particulares, a
menos que se imagine que o concreto pode ser engrendado a partir do abstracto, o
que equivaleria a regressar à ilusão idealista, característica do hegelianismo (p. 65).
A respeito da articulação entre ciência e marxismo, Séve admite que o conceito de
essência humana, tal como descrito pela VI tese sobre Feuerbach, não passa de uma
17
concepção geral do ser humano, mas que, por outro lado, exatamente por identificar a
essência desse objeto, permite que se alcancem compreensões mais particulares acerca do
sujeito concreto.
O conceito de essência está intimamente ligado a uma análise acerca do campo de
possibilidades humanas, prescrito por um determinado conjunto de relações sociais. Esta
reflexão nos conduz a pensar a liberdade humana não como uma livre ação humana sobre a
realidade, mas como um processo que se pauta pela realidade material e que inclui as
relações sociais como parte desta mesma realidade. Em outras palavras: não podemos na
perspectiva que assumimos, tratar da liberdade humana como um fenômeno em si mesmo.
Toda ação humana reflete uma tensão entre a ação consciente, os limites e as possibilidades
do contexto social onde se vive, portanto, a liberdade da qual dispomos para efetuar nossas
ações e comportamentos é, invariavelmente, relativa e socialmente referenciada (Costa,
2004).
Nesta perspectiva, a constituição da individualidade não é antagônica à própria
condição de sujeito histórico. Tal como a liberdade humana é um fenômeno social, a
essência também (Costa, 2005). A liberdade humana, como a expressão da individualidade,
passa a ser compreendida, portanto, no âmbito de um campo de possibilidades inerente a
um dado contexto histórico e a uma realidade específica. Estas possibilidades históricas de
atuação frente à realidade são, por sua vez, compreendidas no marco da tensão inerente ao
processo de teleologia/causalidade. Esta tensão representa a ação consciente do sujeito, que
esta permanentemente operando intencionalmente sobre realidade posta. Isso significa, no
plano de uma definição do que seja a essência humana, especialmente em sua acepção
abstrata, que a essência humana, mesmo que demarcada pelo conjunto das relações sociais,
assume no pensamento marxista uma dimensão de imprevisibilidade, que se refere ao
processo criativo e transcendental (no sentido ir além da realidade posta) da subjetividade.
Com isso, Séve (1979a) admite que Marx reconhece, na VI tese sobre Feuerbach, a
essência humana objetiva (que não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado) e a
existência da individualidade humana (que é o conjunto das relações sociais onde se inclui
o sujeito como operador destas relações)
5
.
5
Esta análise sobre o caráter social da essência humana trata, ao fundo, de uma distinção entre essência e
fenômeno. Neste sentido, Lessa, em exposição realizada em uma atividade do nosso grupo de pesquisa,
ressaltou que o fato de Marx compreender essência e fenômeno de maneira unitária (o que corresponde a um
18
Assim, Séve (1979a) deduz da VI tese que “são as relações sociais que constituem a
essência real das relações entre as coisas” (p.139). O trabalho, portanto, sendo o eixo
fundante da sociabilidade humana, passa a ser concebido não como limite, mas como
possibilidade da criação humana: as relações sociais tomam corpo a partir das relações
entre as coisas, mas estas últimas, acima de tudo, são relações entre indivíduos concretos,
que vivem, sentem e se apropriam da realidade em que vivem. Da mesma maneira, não
podemos deduzir do trabalho todo o tipo de atividade humana, assim como não se pode
reduzir a História ao domínio da subjetividade ou da objetividade sem compreender como
ambas as dimensões articulam-se, bem como a predominância de uma esfera ou de outra se
processa em um dado contexto histórico.
Isto posto, Meszáros (2006) compreende a proposta de essência em Marx como
parte de um sistema teórico complexo e em movimento, uma vez que daí nasce uma
preocupação em compreender o social não como limitação que se impõe ao indivíduo, mas
como possibilidade deste se constituir enquanto sujeito.
A unidade dialética entre subjetividade e objetividade conforma-se em uma relação
entre dois pólos distintos que se entrelaçam na constituição do ser social. Neste sentido, não
podemos compreender o contexto social sem olhar para os sujeitos que o constitui. Por
outro lado, analisar a subjetividade como um fenômeno que se encerra em si mesmo é
também ignorar a dimensão social da própria subjetividade.
A compreensão dialética entre subjetividade e objetividade exige que o investigador
saiba distinguir essas duas dimensões da vida humana, compreendendo o que elas são e
como minimamente se articulam. Neste sentido, analisar a História por etapas previamente
estabelecidas seria traçar um mapa da essência humana no longo percurso da história, o que
corresponderia a uma regressão à dialética hegeliana, que compreende o todo como soma
das partes, sendo as partes desvendadas por um simples devaneio filosófico, carente de uma
articulação concreta entre objetividade e subjetividade e vice-versa (Séve, 1979).
avanço no campo da filosofia), isto não significa que ambas sejam a mesma coisa. Em primeiro lugar,
essência não é algo dado e segundo que o fenômeno também não se caracteriza como sendo uma transposição
mecânica da essência humana, ou melhor, do conjunto das relações sociais. Esta articulação, em nível da
unidade dialética entre subjetividade e objetividade, refere-se ao caráter social do individual e o caráter
singular do social. Isso também não significa que a essência e o fenômeno não possam constituir-se em uma
unidade mais sólida, quando no caso das crenças, da moral e da própria configuração subjetiva e as ações
sofrerem forte influencia do meio social. Trata-se, neste caso, da consubstanciação da essência e do
19
Dessa maneira, não é mais a fenomenologia da essência humana que permite o
estudo das relações sociais, como acreditava Hegel, mas o estudo das relações sociais que
abre acesso a um estudo, sempre parcial e incompleto, da essência humana em sua
particularidade histórica (Séve, 1979a; b; c).
Por conseqüência, é impossível traçar a fronteira da ciência econômica sem, ao
mesmo tempo, esboçar a teoria do indivíduo concreto; e ao mesmo tempo, em
muitos casos, de analisar a fundo uma relação econômica sem traçar as linhas gerais
da análise de um processo social, de vida individual por meio da qual esta se
manifesta (Séve, 1797a, p. 176).
Tal como sugere a passagem acima, a análise de uma relação econômica específica
não pode ser enriquecida senão pela compreensão da essência humana em seu atributo
histórico-concreto. Da mesma forma, não podemos compreender o sujeito sem observar a
relação que ele estabelece com seu contexto mais imediato e mediato.
A articulação entre o particular e o universal, operada em nível abstrato, não
pretende atribuir maior peso a uma esfera ou outra da vida humana, tampouco minimizar a
participação de uma delas em um processo de constituição da personalidade. Por outro
lado, a situação das classes sociais no capitalismo, que reflete uma disputa econômico-
política muito complexa e variada, atua como momento predominante no processo de
individuação no sentido de que, nela reside a estrutura da dinâmica social em que vivemos.
Dessa forma, esta compreensão que tem como fundamento a articulação entre
objetividade e subjetividade, entre o macro e o micro social, não de se furtar de refletir
sobre o funcionamento estrutural da sociedade capitalista para, posteriormente, analisar
como o modo de organização social interfere na visão dos sujeitos sobre a realidade, sobre
si mesmo e sobre os outros, a partir das particularidades das relações sociais estabelecidas
no contexto de um capitalismo avançado, que dispõe mais do que nunca da ideologia
6
dominante como instrumento de dominação psicossocial cuja finalidade é a exploração
econômica.
fenômeno, ou a despersonalização da atividade humana. Lessa, S. Ontologia do ser social. 7ª reunião
cientifica do programa de pós-graduação strictu sensu em psicologia. Março, 2007.
6
A ideologia é compreendida aqui, em seu sentido restrito, como um conjunto de idéias que representam os
interesses de uma classe ou de um grupo social. (Eagleton, 1997; Santos, 1982). Não tendo, entretanto, a
pretensão de apresentar as diferentes compreensões sobre ideologia presentes no marxismo, limitar-nos-emos
20
Não raras vezes, a ideologia dominante incidiu sobre os oprimidos de maneira a
taxá-los como a “escória da humanidade”. Esta ideologia, ao tratar a essência humana sem
considerar sua dimensão histórica, concebe uma natureza humana imutável e determinada
pelas relações sociais capitalistas. Trata-se de uma ideologia que tem como objetivo
naturalizar as relações capitalistas e, portanto, minimizar o confronto entre as classes
sociais e, sendo esta ideologia uma expressão dos interesses da classe dominante, não
podemos nos furtar em considerar a dimensão política desta concepção, que trata o sujeito
pobre como ser desprovido de sua capacidade reflexiva. Aqui nos referimos à ideologia
dominante como aquela que propaga a idéia de justaposição da essência humana ao
conjunto de relações sociais capitalistas, ou seja, a essência humana como simples produto
das relações mercantis, sendo estas consideradas inerentes à própria natureza humana.
Trataremos da questão da ideologia dominante e sua incidência em torno da
constituição do sujeito mais adiante, visto que as crenças e os significados sociais
certamente contribuem para alterar a qualidade das relações sociais, processo este que será
analisado sob o viés da culpabilização do pobre, ou melhor, da compreensão naturalizada
sobre a pobreza.
Este processo reflete as sérias divergências que existem ao nível da concepção do
sujeito no plano filosófico e científico, no que diz respeito, também, a compreensão sobre a
personalidade.
Assim, para debruçarmo-nos mais adiante em torno de questões mais específicas,
como a ideologia da culpabilização do pobre, para não nos furtar em compreender natureza
de classe desta ideologia, atentamos em um primeiro momento para o antagonismo de
classes presentes na sociedade em que vivemos reconhecendo ser este um elemento de
grande importância para se estudar a qualidade das relações sociais de um dado contexto.
O trabalho persiste como eixo central desta fundamentação, uma vez que, sendo
uma condição inalienável da vida humana ele também se apresenta como o elemento
fundante de todas as formas de organização social, inclusive do capitalismo.
a citar algumas das obras que contribuíram para o nosso aprofundamento acerca desta questão (Augoustinos,
1999; Dobles, 1999, Eagleton, 1997, Santos, 1982 e Teo, 1999).
21
Neste sentido, Séve (1979c) atenta para as duas significações concretas e opostas
que o conceito de trabalho pode adquirir no processo histórico: trabalho enquanto meio
alienado de ganhar a vida, ou, pelo contrário, enquanto livre manifestação de si.
Enquanto que, para o marxismo (tanto no campo filosófico como político) o
trabalho deveria se apresentar, no contexto atual, como livre manifestação de si, dado seu
próprio caráter inerentemente social, os liberais, por exemplo, consideram o trabalho nada
mais do que um meio alienado de ganhar a vida ou, por outro lado, o meio de exploração de
um indivíduo sobre o outro, sob o véu da separação entre trabalho manual e trabalho
intelectual.
A qualidade das relações sociais no capitalismo, fato que buscaremos nos
aprofundar neste momento, não pode ser analisada senão, em um primeiro momento, à luz
do conceito de classe social, o que nos obriga, de uma vez, a analisar o trabalho em sua
manifestação social concreta.
Tal como vimos, na perspectiva do marxismo, a categoria do trabalho foi tomada
como protoforma da atividade humana, ou seja, aquela que exprime a condição humana
entre teleologia e causalidade e que permitiu o desenvolvimento do ser social. Sendo assim,
a sociabilidade humana também é tomada a partir da unidade dialética entre subjetividade e
objetividade. A essência humana, por sua vez, deve ser compreendida, nesta perspectiva,
como conjunto das relações sociais (que englobam um determinado campo de
possibilidades) e não propriamente como individualidade. Mas a individualidade assume
como princípio este conjunto de relações sociais que, compreendidas em nível amplo,
recorre, nos dias de hoje, à realidade das classes sociais no capitalismo.
Neste aspecto, analisando a manifestação concreta do trabalho no capitalismo, sem
abandonar a fundamentação que vimos adotando até o momento, buscaremos refletir, em
maior profundidade, sobre o conceito de classe social.
2. Trabalho e sociabilidade humana: classes sociais e conceito de pobreza e riqueza
Este tópico visa analisar e compreender o conceito de classes sociais em dois
sentidos (1) de iniciar uma reflexão mais pormenorizada sobre a qualidade das relações
sociais no capitalismo e sua estrutura na realidade brasileira (será apresentada uma breve
análise da situação histórica da luta de classes no Brasil), como (2) compreender a
22
amplitude do conceito de pobreza e riqueza, que também que nos ajudará a prosseguir na
análise acerca da qualidade das relações sociais no sistema social vigente.
2a.Capitalismo e classes sociais
O ponto de partida para a compreensão das classes sociais, no campo do marxismo,
é o conceito de propriedade privada, embora não se trate meramente de um conceito uma
vez que se refere à própria forma como a sociedade se organiza. O conceito de propriedade
privada em Marx assume uma conotação negativa, pois é compreendida como um elemento
importante que impede a livre expressão da humanidade. O caráter essencialmente negativo
da propriedade privada pode ser analisado em dois sentidos: (1) histórico-concreto, que
analisa as condições históricas particulares da propriedade privada diante dos atrasos e
possibilidades conquistadas pelo gênero humano. Todavia, sua manifestação não remete
somente ao plano estrutural; por isso, um segundo aspecto que atesta para a negatividade da
propriedade privada é o (2) sentido de sua manifestação no próprio conjunto das relações
sociais e o impacto que isso gera para a constituição das individualidades (Meszáros, 2006).
Com tudo isso, retoma-se a compreensão negativa de que a propriedade privada
pressupõe, necessariamente, uma relação entre classes sociais, quer seja, pressupõe uma
sociedade de classes. Sendo assim, a propriedade privada nesta perspectiva é tratada como
elemento fundante das classes sociais e pressupõe a apropriação da riqueza socialmente
produzida, a exploração econômica e a dominação político-ideológica (Engels, 1884; s/d).
Este tópico se limita a analisar, de uma maneira geral, as classes sociais no
capitalismo e deixa para um segundo momento (para os próximos tópicos) uma análise
mais aprofundada sobre como a sociedade de classes atual interfere diretamente nos sonhos
e aspirações humanas.
As formas específicas de manifestação da propriedade privada no capitalismo
impõem uma questão importante para uma compreensão acerca das classes sociais na
atualidade; trata-se da diferenciação entre trabalho e trabalho abstrato.
Em vista de uma caracterização do que sejam as classes sociais no capitalismo,
procuramos definir, inicialmente, o que compreendemos por trabalho e trabalho abstrato e,
posteriormente, as conseqüências práticas da fragmentação entre uma e outra dimensão do
processo de organização do trabalho.
23
Qualquer outra forma de trabalho que não seja a de um intercâmbio orgânico com a
natureza ou que não possui conexão direta com a produção da mercadoria social passa a ser
considerado, então, como trabalho abstrato, não nos termos do idealismo, considerando este
desconexo de toda a realidade do sistema produtivo, mas antes, um trabalho que não
apresenta, necessariamente, no capitalismo, vínculo com a produção direta da riqueza
material e social (riqueza compreendida não no sentido mercantil, mas referente à produção
dos valores de uso e dos meios de vida)
7
(Lessa, 2005).
O trabalhador que realiza intercâmbio orgânico com a natureza com a finalidade da
produção dos meios de subsistência humana e aquele que trabalha na produção dos
produtos essenciais ao funcionamento da sociedade pode ser denominado como trabalho
em seu sentido mais estrito (Lessa, 2005). Esse é o caso de um trabalhador que trabalha no
chão da fábrica, por exemplo. Ele produz valores de uso que se transformarão, na economia
capitalista, em objetos de troca. O fato é que o patrimônio humano encontra sua fonte de
riqueza maior na produção material e, portanto, estes trabalhadores desempenham um papel
fundante no processo produtivo, uma vez que os valores de uso, produzidos na relação do
ser humano com a natureza, são essenciais a toda e qualquer forma de organização social,
lembrando que a reprodução da vida humana não é aqui considerada apenas no âmbito das
relações sociais, mas também na relação dos sujeitos com as coisas e com valores de uso
que lhe são indispensáveis para viver.
De uma maneira qualitativamente distinta da de um operário, que não apenas
produz, mas também valoriza o próprio capital, o trabalhador abstrato, por exemplo, que
gera lucro ao patrão, não pode ser enquadrado aqui como um operário.
Mesmo com as transformações em curso, uma distinção ontológica fundamental
entre trabalho assalariado do operário e os outros trabalhos assalariados. È o
primeiro que produz o conteúdo material da riqueza que sustenta todas as outras
atividades humanas. O fato de serem todos assalariados não faz idênticos todos os
7
Isso não significa que todo trabalho abstrato é improdutivo. Visto que o conceito de produtividade esta
relacionado à dinâmica das relações de trabalho no capitalismo, o trabalho produtivo é todo trabalho que gera
mais valia (Marx, 1987/2004a). De qualquer maneira, a análise que se segue não tem a pretensão de analisar
qual trabalho é caracterizado como produtivo e improdutivo na lógica do capital. Trata-se, neste momento, de
realizar uma distinção entre trabalho e trabalho abstrato com vistas a uma melhor compreensão acera do
conceito marxista de classes sociais.
24
trabalhadores. uma distinção essencial entre a função social que eles exercem
(Lessa, 2005, p.29)
Assim, seguindo esta linha de fundamentação, Lessa (2005) apresenta sua segunda
preocupação acerca da caracterização do que seja trabalho e trabalho abstrato:
Não há identidade entre trabalho abstrato e trabalho que realiza o intercâmbio
orgânico com a natureza. O trabalho abstrato se relaciona com a produção e
realização da mais valia e, como a mais valia pode ser produzida fora da
transformação da natureza, nem todo o trabalho abstrato é trabalho. Não , assim,
qualquer possibilidade de identidade entre trabalho e trabalho abstrato (p. 30).
O que significa, para quem quer refletir o conceito de classe social no capitalismo,
sob o viés do marxismo, que nem todo o trabalho abstrato é trabalho? Segundo Lessa, esta
diferenciação serve para: (1) Situar a classe operária como eixo central do sistema
produtivo, uma vez que é ela quem produz os valores de uso; (2) Diferenciar o trabalho
intercâmbio orgânico com a natureza do trabalho abstrato, sendo que não existe
necessariamente, no capitalismo, que opera a cisão entre trabalho manual e intelectual,
identidade entre trabalho e trabalho abstrato; (3) Dessa maneira, não poderíamos considerar
todos os trabalhadores assalariados dotados de uma qualidade imanente, porque sendo tudo
igualmente trabalhador não haveria mais a diferenciação entre trabalho e trabalho abstrato,
o que serviria para ocultar a própria dinâmica da produção da riqueza socialmente
produzida na sociedade; (4) Notada esta diferenciação podemos observar que a distinção
que se faz entre trabalho e trabalho abstrato não corresponde, necessariamente, à distinção
entre trabalho produtivo e improdutivo, embora todo operário seja um trabalhador
produtivo, nem todo trabalhador produtivo para o capital opera o intercâmbio orgânico com
a natureza para produção dos valores de uso. Assim, no capitalismo, o trabalho manual não
pressupõe, necessariamente, a elaboração do próprio processo de trabalho e, por outro lado,
nem todo trabalhador produtivo opera o trabalho manual.
A caracterização acerca do caráter de classe de um indivíduo ou grupo social baseia-
se, em um primeiro momento, em uma concepção sobre o próprio sistema produtivo. O fato
(ontológico) de o operariado constituir-se como sendo o eixo central da classe trabalhadora
refere-se ao simples fato desta classe realizar um intercambio orgânico com a natureza e,
fundamentalmente porque este intercâmbio desenvolveu-se nas fábricas e indústrias, o que
25
permitiu a produção em larga escala, empreendida pelo capitalismo, em que pese o
processo urbanização desenfreada promovida pelo sistema social vigente.
A caracterização sobre as classes sociais pressupõe uma análise objetiva do modo
como a sociedade se organiza para produzir seus meios de vida e a forma dela se apropriar
dos valores de uso. Todavia, a caracterização das classes sociais não é uma tarefa formal,
ela deve compreender a forma como determinados grupos se manifestam e as funções que
eles exercem em um dado contexto. Por isso, trata-se de um caracterização essencialmente
política
8
, pois tal como Marx e Engels (1848/2001) afirmam no Manifesto comunista, a luta
de classe é uma luta essencialmente política.
Assim, a classe trabalhadora no capitalismo pode estar representada por meio de três
elementos básicos: (1) são aqueles que, no seu foco central, realizam um intercambio
orgânico com a natureza com vistas à produção dos valores essenciais à reprodução da vida
individual e em sociedade: (2) aqueles que vendem sua força de trabalho e, portanto, são
assalariados; (3) aqueles, enquadrados como pequena burguesia, que, ao mesmo tempo em
que são assalariados, não ascendem socialmente e estão sempre mais suscetíveis à pressão
exercida pelo capitalismo (salário baixo, juros crescente, impostos, taxas, desemprego,
invisibilidade social e política, em suma, sua condição histórica não lhe permite ascender
socialmente, seu campo de possibilidades é restrito, dificultando também sua organização
política à medida que o tempo livre lhe é escasso).
A burguesia, por outro lado, pode ser caracterizada pelos diferentes ramos da
produção e pelas diferentes modalidades do capital. De qualquer forma, sendo este um
proprietário rural, ou um proprietário industrial, para citar alguns exemplos, a burguesia
apresenta um ponto em comum: a propriedade privada dos meios de produção
9
. Mais do
8
A este respeito considero de fundamental importância a análise de Trotski em O programa de transição
(1938/1996) sobre o papel do campesinato no processo da revolução russa, ocorrida no início do século XX.
9
Esta também é uma questão polêmica no seio do marxismo. Alguns autores como Bettelhein (1974), ao
analisar o processo de transição no período da revolução russa e, ao tratar da luta de classes da União
Soviética considera que, para caracterizar a classe burguesa o basta apenas compreender a propriedade
privada dos meios de produção. Para o autor, o elemento fundamental desta análise remete ao controle efetivo
dos meios de produção. Com isso, Bettelhein argumenta que a revolução russa e a condução do partido neste
processo retratam o aparecimento de uma burguesia de Estado na União soviético, pois, uma vez
considerando o Estado soviético, sobretudo com a ascenção do Estalinismo, como um Estado capitalista, ele
compreende a constituição de uma classe social dominante (referente aos membros do partido bolchevique)
pelo fato de que esta passou a exercer o controle efetivo dos meios de produção. É sabido que Trotski analisa
de maneira diferente este processo ao tratar o Estado soviético como um Estado proletário degenerado, pois
26
que isso, a burguesia apresenta-se como a detentora do controle sobre o fluxo do capital,
embora isso depender da natureza deste mesmo capital (imobiliário, comercial,
industrial etc).
Com o controle sobre o fluxo do capital, o capitalista tem o controle sobre os
investimentos, sobre a produção e sobre a circulação de mercadorias, assim, realiza além do
mais a compra da força de trabalho. A compra da força de trabalho é exclusividade do
proprietário privado, mas a simples compra da força de trabalho não faz do proprietário
necessariamente um capitalista. Um pequeno comerciante (pequeno burguês) pode também
contratar dois ou três funcionários, embora isto não signifique a obtenção de um lucro
maciço, tampouco significa que este comerciante esteja isento de exercer uma dupla
função: a de um funcionário e a de proprietário do comércio. De qualquer maneira, este
proprietário não é um trabalhador assalariado, o que representa em si uma diferença
qualitativa no âmbito das relações de trabalho e que poderia supostamente gerar
conseqüências políticas em torno da organização coletiva dos interesses dos pequenos
comerciantes.
Toda prova, a caracterização da burguesia e da classe trabalhadora decorre do fato
de que o sistema produtivo opera por meio da relação de interdependência entre classes
sociais antagônicas. Sendo assim, o aparecimento da burguesia e da classe trabalhadora
10
não pode ser analisado senão a partir das relações sociais historicamente estabelecidas,
especialmente no que diz respeito à coexistência de dois grandes grupos sociais que
representam interesses específicos, interligados, sobretudo antagônicos e que decorrem do
papel que exercem no modo de produção capitalista (Hirano, 2002; Martín-Baró, 2000).
A respeito da caracterização das duas principais classes sociais do capitalismo,
Hirano (2002) coloca que ela nos permite visualizar, além da contradição entre capital e
trabalho, também o eixo estrutural das relações sociais no capitalismo. Assim, o autor
compreende que o (amplo) conceito de classe social serve a uma formulação preliminar do
investigador, a uma sistematização dos componentes teóricos básicos para uma análise
para o autor a constituição de uma classe social dá-se quando um grupo exerce uma forma particular de
propriedade e um papel independente na economia, fatos estes que não correspondiam à realidade do que
autor compreendia como sendo a casta burocrática estatal o Estalinismo (ver Trotski, 1936;s/d).
10
Não é o objetivo de este trabalho analisar o aparecimento da burguesia e do assalariado, fato este que
incorreria certa maneira em analisar o processo de transição do feudalismo para o capitalismo, o que
27
cientifica da sociedade. Tal definição prévia não tem por pretensão analisar (não por sua
importância, mas dada a impossibilidade de captar, em sua totalidade, as especificidades
das relações sociais) todos os elementos envolvidos em um dado contexto, nem as
especificidades dos grupos intermediários, como a pequena burguesia, sem que esteja
contemplada uma análise sobre consciência social e política de um determinado grupo
social. A respeito dos limites e das possibilidades que estão circunscritas neste campo de
conceituação teórica, Séve (1979b) coloca:
O capitalista, o operário, não são personalidades de base, tipos psicológicos,
sistemas de modelos culturais ou conjuntos de funções, mas sim a lógica social
objetiva da atividade de tal ou tal indivíduo concreto, na medida em que se
desenvolva sua atividade no seio das correspondentes relações sociais e na medida
em que a sua atividade seja encarada adentro desses limites (p. 368).
Certamente que a posição de classe de um indivíduo ou grupo social determina o
campo de possibilidade de atuação do sujeito frente à realidade e, portanto, determina em
certa medida a individualidade concreta da pessoa. Mesmo assim, não se pode extrair do
conceito de classe social todo o fundamento para a elaboração de uma teoria das formas da
individualidade concreta. Como bem ressaltou Séve (1979b), as classes sociais
correspondem à lógica social objetiva, em outros termos, à relação de produção no seio do
capitalismo. Assim, enfatiza o autor, uma coisa é que o conceito de classe social permite
compreender o papel de um indivíduo ou grupo social no âmbito da realidade concreta, em
sua dimensão estrutural, outra coisa é deduzir daí uma compreensão acerca do indivíduo
enquanto ser singular, isso seria o mesmo que atribuir uma essência estática àquelas
pessoas que se inserem em uma ou outra classe social.
A articulação entre o conceito de classe social e a teoria do indivíduo compreende,
ao fundo, uma preocupação presente em todo este trabalho. Dessa forma, não podemos
incorrer no erro de ignorar a articulação proposta por Séve (1979b) e, assim, fundamental é
buscar conciliar os fatores subjetivos e objetivos, compreendendo os limites desta
articulação no âmbito das classes sociais.
proporcionaria uma compreensão mais detalhada da formação das classes sociais, suas ramificações etc. Para
desenvolvimento desta questão, consultar Hirano (2002).
28
O caminho para articulação entre o conceito de classes sociais e a teoria do
indivíduo concreto, em que pese os limites contidos nesta articulação (uma vez que a
condição humana não se resume, de forma alguma, ao pertencimento a uma classe social),
seria o de vincular a infraestrutura e a supersetrutura de maneira a analisar o nível de
consciência política, da disputa a nível ideológico, articulado à natureza econômica da
própria ideologia.
Neste sentido, Saes (2003) considera o conceito de classes sociais como aquele
responsável pela mediação entre os aspectos da infraestrutura (papel que um grupo social
exerce no sistema produtivo) e da superestrutura (aspectos subjetivos e consciência de
classe).Posto isso, é importante atentar para a fragmentação do próprio conceito de classe
social apresentada, inclusive, no próprio terreno do marxismo.
Pereira (2003) e Saes (2003) identificam dois equívocos fundamentais a respeito da
omissão da unidade entre subjetividade e objetividade, no limite da definição do conceito
de classe social: um que se instaura sob o véu do economicismo, analisando os aspectos
econômicos da formação das classes em si, ou, por outro lado, uma compreensão
subjetivista que considera somente os aspectos ideológicos e da consciência na definição
das classes sociais.
A articulação entre objetividade e subjetividade, no tocante ao limite que ela pode
ser estabelecida no campo da conceituação teórica das classes sociais, Pereira (2003) e
Ponce (2004) fazem uma distinção entre “consciência de classe em si” e “consciência de
classe para si”. Para os autores, a “classe em si” corresponde a uma classe “para si” em
potencial, pelo fato de seus agentes cumprirem um papel semelhante no sistema produtivo,
mas não constituem uma “classe para si” quando da ausência de uma consciência de classe
que permita a construção de uma organização política classista
11
.
Assim, mesmo sendo o trabalhador consciente da exploração exercida pelo
capitalismo, sua tarefa fundamental é se reconhecer enquanto membro de uma classe e,
11
Existem inúmeros debates sobre a definição das classes sociais no marxismo. Uma das controvérsias que se
estabelece neste plano de conceituação teórica refere-se ao conceito de “consciência em sie de “consciência
para si”. Boito Júnior (2003a), por exemplo, não considera (ao contrário de autores como Saes, 2003; Lessa,
2003, 2005; Martín-Baró, 2000; Pereira, 2003; Ponce, 2002), o conceito de “classe em si”. Para este autor,
não existe classe em potencial, ela pode ser identificada somente a partir da constatação de uma consciência
de classe (“consciência para si”) e sua expressão prática no contexto da luta de classes. Também é importante
compreender o conceito de consciência de classe “para si” sabendo dos perigos que está analise nos coloca
29
assim, enquanto membro de uma coletividade que se une, fundamentalmente, a partir da
identificação de necessidades comuns, das tarefas que se colocam no âmbito da produção
da vida material e pauta-se pela necessidade de organização política em torno dos interesses
específicos de uma classe.
A consciência de classe figura como uma práxis política em que se construa uma
posição intencional (em nível social amplo) voltada para o confronto, fato este, aliás, que
esteve presente em todas as formas de organização social desde a forma primitiva
12
, o que
também explica, em parte, as diversas disputas políticas travadas no curso da História com
a finalidade de conquistar o poder (político e econômico) de uma dada sociedade. O fato é
que temos relatos na História em que os sujeitos se negaram historicamente a compreender
a realidade de maneira naturalizada, grande exemplo é a própria consolidação da burguesia
enquanto classe dominante. Maior exemplo ainda, foi a ascensão das massas na revolução
russa de 1917 (ascensão esta que, como discute Lênin (1917; s/d) foi resultado da
espontaneidade das massas, sobretudo combinada à organização do partido revolucionário,
o que se configura como uma ação intencional de derrubada do Estado e tentativa de
transformação da realidade posta).
Posto isso, a definição de classes sociais passa a englobar, portanto, uma série de
elementos que devem ser analisados em um determinado momento histórico e em um
determinado contexto de luta de classes. Sendo assim, com o intuito de compreender, de
maneira grosseira, o fenômeno da luta de classes no Brasil e para contextualizar a análise
que vimos empreendendo, buscaremos compreender, em linhas gerais, como este fenômeno
se desenvolveu em vias da consolidação do capitalismo no país.
2b.Classes sociais no Brasil: uma breve contextualização
Tratando de aproximar o conceito de classe social à realidade mais próxima a qual
esta dissertação foi elaborada, nos arriscaremos a esboçar uma breve contextualização das
classes sociais no Brasil, retratando, exclusivamente, a classe urbana e operária, suas
relações políticas e transformações ao longo de um curto período histórico.
diante da preocupação em compreender de maneira não linear como se processam estes níveis (Duarte, 1999;
Freire, 2001).
12
Em sua admirável exposição, em uma atividade do grupo de pesquisa que faço parte, Sérgio Lessa versou
sobre o surgimento das classes sociais ainda na sociedade primitiva, quando da socialização da produção, o
fortalecimento das tribos, a exploração e violência de todo o processo de consolidação da propriedade privada
30
A instauração do capitalismo no Brasil foi lenta e gradual e, comparado aos países
desenvolvidos, inacabada, fato este, que nunca vivenciamos o Estado de bem estar social
(Antunes, 1982). Uma transição do escravismo para o capitalismo feita sem qualquer
possibilidade efetiva de participação popular, por se tratar de uma transição feita de cima
para baixo.
Antunes (1982) destaca que, no Brasil, o próprio latifúndio tem origem colonial e
não apenas feudal assim, o desenvolvimento ficou subordinado ao capitalismo em sua
fase monopolista, o que caracteriza, na visão do autor, um capitalismo hipertardio. Um
capitalismo hipertardio e feito “às pressas” (isto é, sem antes ter ultrapassado o escravismo)
em que a máquina foi introduzida antes do trabalho de artesanato industrial e a indústria
sem a manufatura. Trata-se de um capitalismo desenvolvido sob as bases dos grandes
latifúndios dos antigos senhores de escravos (Antunes, 1982).
A expansão da indústria gerou contradições no interior da burguesia nacional. A
agricultura e a indústria passaram a disputar terreno” na disputa pelo mercado interno e o
processo de industrialização nos grandes centros urbanos fez com que os produtos
industriais (mais refinados do ponto de vista tecnológico) ganhassem destaque por serem
produzidos em maior escala e contando com uma maior variedade de produtos (Antunes,
1982).
A industrialização permitiu o aparecimento de uma massa considerável de
proletários antes de 1930. Até então, a classe trabalhadora não contava com uma
organização efetiva, tratava-se, segundo Antunes (1982), de um movimento espontâneo,
sem articulação e focado em lutas pontuais.
O estado republicano nacional, por outro lado, encontrava-se em formação. Ainda
existiam disputas frontais entre a burguesia industrial e a latifundiária. Neste contexto, a
tomada do poder por Vargas favoreceu, no campo desta disputa, ainda mais a
industrialização no país (Antunes, 1982).
Segundo Antunes (1982), o caráter centralizador e intervencionista do Estado
varguista inaugurou no país um Estado moderno e corporativista. Um Estado subordinado
aos interesses do capital monopolista e, neste sentido, a ação repressora fazia-se sentir de
como marca presente desde então até os dias de hoje. Lessa, S. Ontologia do ser social. 6ª reunião científica
do programa de pós-graduação em psicologia, Outubro, 2006.
31
maneira brutal quando a classe trabalhadora mais “robusta” e organizada – confrontava
os interesses das grandes indústrias nacionais e internacionais.
A política intervencionista permeou a constituição dos sindicatos que se submetiam
às imposições políticas e econômicas do Estado varguista. Assim, o ministério do trabalho
funcionava como o órgão regulador dos sindicatos os estatutos dos sindicatos, as formas
de financiamento, as legalizações, tudo dependia do aval do ministério, ou seja, para o
sindicato ser constituído enquanto tal deveria se submeter ideologicamente ao Estado
varguista, na propagação de um discurso de colaboração entre as classes, típico do
paternalismo (Antunes, 1982).
Neste contexto, muitos sindicatos perdiam e reconquistavam sua legalidade. De
qualquer maneira, como relata Antunes (1982), a temática das greves neste período
limitava-se à questão salarial. Por outro lado, a classe trabalhadora obteve neste período
conquista importantes que se estendem até hoje e podem ser resumidas pela consolidação
das leis do trabalho (CLT). O movimento de esquerda cresceu no país, os sindicatos se
proliferaram e, aos poucos, foram conquistando mais espaços no cenário político
nacional
13
.
No auge do movimento operário e popular, a burguesia nacional e (principalmente)
internacional passou a apoiar a implantação da ditadura militar, que se deu em meados da
década de 60. Neste período a classe trabalhadora foi desmantelada, perdendo não seus
direitos trabalhistas, mas sua liberdade de expressão e de organização política.
Segundo Boito Júnior (1999), o período da ditadura militar, no campo econômico,
foi marcado pela expansão do mercado internacional em terras brasileiras, o que coadunou
com uma política de favorecimento de entrada do capital estrangeiro.
As indústrias brasileiras perdiam lugar para as estrangeiras, que dispunham de uma
série de benefícios e vantagens (isenção de taxas, mão de obra barata, reserva de mercado e
maior poder de investimento). Assim, forjou-se mais uma disputa no interior da burguesia
nacional (Boito Júnior, 1999).
O fim da ditadura deu-se não pelo descontentamento da burguesia nacional, mas
por uma retomada das ações populares. O período de redemocratização, o país encontrava-
13
Neste contexto, a Aliança nacional libertadora constitui um dos marcos de uma revolta política da classe
trabalhadora. Para ver mais sobre a questão, consultar Antunes (1982).
32
se tomado pela euforia liberal da construção de um Estado de bem estar social. A
constituição de 1988 foi um marco neste sentido, pois aferiu condições formais para o
fortalecimento do Estado nacional e para a liberdade de expressão e de organização
política.
De qualquer forma, como podemos observar atualmente, o Estado de bem estar
social não saiu do papel, o que observamos é o contrário: o aprofundamento da política
neoliberal em decorrência também da fragmentação da esquerda após a década de 90.
O neoliberalismo iniciou-se no país na década de 90, com a política de abertura do
mercado interno procedida pelo governo Collor. Essa abertura promoveu uma redução de
empregos (a indústria do país restringiu-se a produzir produtos primários e, portanto,
limitou-se a produzir mercadorias baratas, as quais, quem extrai delas valor agregado, são
as indústrias estrangeiras), do salário (devido à desindexação do mínimo ao crescimento
inflacional) e dos direitos trabalhistas (contratos precários e flexibilização da CLT) (Boito
Júnior, 2003b).
O neoliberalismo no Brasil caracterizou-se pela desnacionalização, devido à
privatização, pelos lados do Estado e, pelos lados da indústria nacional, à redução da
produção, ficando o consumo centralizado nos produtos importados.
Com isso, Boito Júnior (1999) coloca que houve um enfraquecimento do
proletariado e da burguesia e um crescimento da burguesia agroexportadora nacional,
apesar do aumento do investimento do capital estrangeiro em detrimento da burguesia
nacional.
O mesmo autor expõe que, embora existissem protestos da burguesia nacional
quanto à desnacionalização, visto que perderam mercado, em meados da década de 90 a
burguesia passou a reivindicar a flexibilização das leis trabalhistas e as privatizações.
Neste contexto, pelo lado dos trabalhadores, o que ocorreu não foi apenas a redução
do emprego, mas o crescimento de uma massa de desempregados e dos trabalhadores do
mercado informal. Isso dificultou a organização política dos trabalhadores, que se
encontram espalhados entre o desemprego, o mercado informal e o formal.
Estando a conjuntura favorável a burguesia (seja ela nacional ou internacional), o
governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) encontrou todas as possibilidades para fazer
avançar o neoliberalismo no país. O que se viu neste período foi o desmantelamento do
33
Estado e a venda de diversas empresas estatais (Vale do Rio Doce, empresas da telefonia
fixa, venda dos ativos da Petrobrás etc) (Boito Júnior, 1999). A burguesia nacional, antes
controladora do aparato estatal, agora dispõe de ativos das empresas privatizadas (mesmo
que parcialmente). O estado, por sua vez, limitou-se a ser um mero administrador do
cambio e dos juros (Boito Júnior, 2003b).
Sem dúvida que, anterior à década de 90, a central única dos trabalhadores (CUT) e
o partido dos trabalhadores (PT), fundados na cada de 80, contribuíram para a
reaglutinação da classe trabalhadora e para o enriquecimento de uma cultura de esquerda no
país que fosse capaz de enfrentar, minimamente, o crescente neoliberalismo no país. No
entanto, com a eleição do presidente Lula, a CUT e o PT expuseram claramente as
contradições de algum tempo (assim como outros sindicatos, entidades e partidos
também capitularam, mas tomamos o exemplo do PT e da CUT como ilustrativo deste
processo). As vacilações do PT e da CUT na defesa dos direitos dos trabalhadores (basta
citar o apoio desta central e do partido na reforma da previdência, nas reformas sindical e
trabalhista e no projeto de lei que regulamenta a parceria público-privado) passam a ser
constantes e mais facilmente evidenciadas (Boito Júnior, 2003b). Neste sentido, CUT e PT
perdem sua independência e o que se observa na conjuntura atual é que forças políticas e
correntes sindicais, que se mantêm firmes na defesa dos direitos trabalhistas e sindicais,
buscam caminhos, ainda que difíceis e contraditórios, para a construção de novas entidades
representativas da classe trabalhadora no país.
2c. Classes sociais e conceito de pobreza e riqueza
Exposto um panorama geral sobre o contexto de luta de classes sociais no Brasil,
trataremos de prosseguir (diante da tarefa de analisar mais detalhadamente a qualidade das
relações sociais no capitalismo), com uma reflexão sobre o conceito de pobreza e riqueza
com base na conceituação anterior que versava sobre as classes sociais.
Da mesma forma que as classes sociais não devem ser analisadas pelo aspecto
meramente econômico (considerando somente a dimensão meramente quantitativa da
questão), a pobreza e riqueza não podem ser, por outro lado, analisadas sem que se leve em
conta o fenômeno das classes sociais.
A definição de pobreza e de riqueza é posterior a uma análise acerca das classes
sociais e das suas relações porque nelas residem as especificidades da divisão social do
34
trabalho que, em larga medida, determinam a desigualdade de renda. Por isso, a definição
do que seja pobre e riqueza não se basta por estabelecer uma análise quantitativa e, acima
de tudo, a-histórica como faz a Organização das Nações Unidas (ONU) (PNDU, 2003) que,
ao que parece, não tem algum interesse em reconhecer a existência das classes sociais e,
assim, incorre no erro de não diferenciar, por exemplo, fruição de produção (Lessa, 2005).
Ao passo que não se reconhece a diferenciação entre fruição e produção, ou, mais
especificamente, entre nível de consumo e a produção da vida material (a forma como ela é
dada, quem controla os meios de produção etc.), tão menos reconhece a articulação entre
estes dois fenômenos. Assim, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU
conjunto de indicadores que avalia a condição econômica e social de uma determinada
população (UNDP, 2003) peca em pelo menos dois aspectos: (1) confunde consumo
individual com participação nos lucros; (2) por outro lado, não reconhece que o consumo
esteja diretamente ligado ao processo produtivo do capitalismo e suas variantes concretas,
como as classes sociais e, assim, por último; (3) coloca o poder de consumo como elemento
que justifica (e não simplesmente evidencia) a pobreza e a riqueza, ou seja, em outras
palavras, tratam a desigualdade de renda como causa e não conseqüência do modo de
funcionamento da economia capitalista. Em suma, trata-se de uma análise fragmentada do
próprio processo produtivo, bem como omite as possibilidades de articulação entre
consumo individual e lucro. Ao mesmo tempo, omitem as raízes de dinâmica social
baseada na existência de grupos sociais antagônicos.
A este respeito, Maricato (2003) argumenta que a caracterização da pobreza a partir
de números mensuráveis relativos à carência material obscurece o cerne político deste
fenômeno, à medida que ser pobre não é apenas não “ter”, mas, sobretudo é aquele que está
impedido de “ter”, o que aponta mais para uma questão do “ser” do que do “ter”.
O capitalismo não se resume ao intercambio de capital e de dinheiro. Trata-se de um
conjunto de relações sociais e, por isso, o conceito de classe social não pode ser substituído
pela sua manifestação fenomênica (quantidade de renda variada) (Lessa, 2003 e Ridenti,
2001). A quantidade de renda é um elemento chave para compreender as condições de vida
de uma população, mas ela pressupõe uma análise acerca das origens históricas da
desigualdade social. A renda interfere diretamente em todas as dimensões da vida do
indivíduo as relações sociais estabelecidas, o local de moradia, o nível de instrução, os
35
esquemas culturais, as necessidades produzidas etc. Entretanto, o que explica a quantidade
de renda não são os números em si, mas o que eles representam na realidade.
A importância da renda na vida das pessoas em uma sociedade capitalista é um
fenômeno notável e aparente. A “simples” carência de renda estende-se a diferentes esferas
da vida cotidiana, que não apenas a financeira, pois muitas angústias e dificuldades estão
relacionadas, diretas ou indiretamente, a esta questão. Trata-se de um sistema social em que
a economia, mais do que nunca, responde ao momento predominante das relações sociais.
Sendo assim, nos dias atuais o dinheiro é um elemento chave para se ter o mínimo de
dignidade, não é apenas um simples elemento da vida cotidiana, pois este assume um papel
central na dinâmica social em que vivemos (Abramovay, 2003; Martín-Baró, 2000;
Martins, 2004 Pochmann e cols, 2004).
A definição da pobreza e da riqueza, sustentada a partir da quantidade de renda,
pode ser útil para uma análise imediata da realidade e para estabelecer uma distinção
generalizada entre segmentos sociais, definidos a partir da condição financeira e do poder
de consumo (fruição) de um indivíduo ou de uma família. O conceito de classe social, no
entanto, deve servir como pano de fundo desta análise.
A desigualdade social, tomando este objeto de maneira ampla, pressupõe uma
análise sobre o modo de vida das pessoas, sobre a condição de existência humana em uma
dada forma de sociabilidade, em suma, sobre o capitalismo enquanto conjunto de relações
sociais.
Compreender o fenômeno da desigualdade social em sua totalidade exige uma
compreensão dialética e não economicista das classes sociais. Para tanto, é preciso destacar
a amplitude desta compreensão e, por isso, seguimos destacando o aspecto da alienação e
da dominação psicossocial como dois elementos relacionados à existência das classes
sociais e que ilustram a qualidade das relações sociais no capitalismo, em termos da
realidade atual.
3.Capitalismo e sociabilidade humana: o exercício da dominação psicossocial.
Trataremos neste tópico de aprofundar a análise que vimos empreendendo sobre a
qualidade das relações sociais no capitalismo. Aqui, a exemplo das análises anteriores,
quando se discutiu aspectos referentes as classes sociais, a compreensão sobre a
36
propriedade privada continua sendo o pano de fundo desta análise. Analisamos, assim,
neste momento, como o capitalismo gera um padrão de relacionamento social com base na
exploração econômica e dominação psicossocial. O primeiro eixo capitalismo,
sociabilidade e gênero humano – procura fundamentar uma compreensão acerca do impacto
das classes sociais no conjunto das relações sociais, destacando a dicotomia que se
estabelece entre produção x meios de vida privado x público e, por fim, a cisão do eu x
outro. O segundo eixo trata da propagação dos ideais liberais de consumo, tomando a
questão do fetichismo da mercadoria como uma característica marcante deste processo.
Outra preocupação foi diferenciar o fetichismo da vontade de melhorar de vida. Buscamos
compreender porque o fetichismo da mercadoria adquire uma conotação negativa, também
por se tratar de uma manifestação da ideologia dominante; por isso, o terceiro eixo deste
tópico buscou analisar sua implicação para a compreensão sobre si mesmo e sobre outro,
ainda tomando como destaque a cisão entre eu x outro. Este tópico nos permitirá
compreender alguns mecanismos ideológicos que versam sobre naturalização dos
fenômenos sociais e cultuam o modo de vida atual. Trata-se de um primeiro passo para
compreender esta sociabilidade alienada para aprofundarmos, mais adiante, em uma
compreensão sobre como ela interfere na forma como as pessoas olham para si mesmos e
para os outros.
3a. Capitalismo, sociabilidade e gênero humano.
A estrutura social do capitalismo apresenta uma realidade específica, uma forma
qualitativamente nova das relações entre as classes. Esta relação abriu novos campos de
possibilidade (tanto no sentido da exploração, como da ascensão social), permitiu os
indivíduos visualizarem, de certa maneira, a possibilidade de uma mobilidade social, algo
concretamente impossível no sistema escravista e no feudalismo, por exemplo. Além disto,
o capitalismo representou um movimento progressivo na história da humanidade, posto que
o desenvolvimento das forças produtivas alcançado foi superior a qualquer outro modo de
produção (primitiva, escravista, ou feudal), o que corresponde ao desenvolvimento sem
precedentes do campo tecnológico, científico, da produtividade, em suma, do próprio
patrimônio social.
Neste contexto de expansão do capitalismo, a divisão social do trabalho exerceu um
papel progressivo, pois correspondeu a um avanço na forma de organização social que, por
37
sua vez, refletiu um desenvolvimento das forças produtivas e do próprio processo de
trabalho, que foi se tornando cada vez mais complexo e interligado (Costa, 2005).
O capitalismo constitui-se como um marco na História da humanidade onde nunca
se havia produzido tanta variedade de produtos e em tamanha escala. Além disso, pelo fato
de o trabalhador passar a enxergar a possibilidade de ascensão social, as relações sociais
tomaram uma dinâmica histórica específica, caracterizada pela expansão do campo de
possibilidades e pela complexificação da forma de organização social. Mas, ao passo em
que a divisão social do trabalho configura-se no capitalismo como um fenômeno que
impede a socialização do trabalho e da riqueza social produzida, visto que a propriedade
privada assume uma forma jurídico-política “intocável” dentro da estrutura do Estado
burguês
14
, o trabalhador, por mais que tenha alcançado uma relativa emancipação política,
passa a estar condicionado aos ditames do mercado e aos interesses individuais de uma
pequena parcela da população.
Trata-se de um cenário em que a divisão social do trabalho impera como forma de
dominação de uma classe sobre a outra, em que o trabalho (mesmo o abstrato) está cada vez
fragmentado, onde, para muitos indivíduos, a produção e mesmo a fruição da riqueza não
existe, o trabalho não passa da obtenção de um dinheiro para sobreviver, onde se perdeu o
contato com a produção dos meios de vida, tarefa exclusiva da classe operária que, mesmo
assim, como o assalariado, em geral, no capitalismo, não tem acesso ao que ele mesmo
produziu, seja no referente ao lucro, seja referente ao próprio valor de uso produzido. Neste
contexto, a classe trabalhadora (os assalariados de uma maneira geral) assume uma função
meramente serviçal, voltada para interesses que não lhe são próprios e que lhe tomam boa
parte do tempo de suas vidas.
A produção em larga escala foi alcançada pelo capitalismo a custo dos
trabalhadores, dos seus esgotamentos físicos, da venda de suas forças de trabalho e não da
apropriação da riqueza por parte destes. Trata-se da apropriação privada da riqueza
produzida socialmente, o que representa uma limitação da atividade social à satisfação de
interesses privados.
14
Neste sentido, o Estado é compreendido como expressão da organização de uma classe – no caso, a
burguesia. Para uma discussão sobre a natureza do Estado (e do Estado burguês) consultar Lênin, Estado e
revolução, 1917; s/d. Para consultar uma análise marxista acerca do papel do Estado na regulação da vida do
capital, ver Boito Júnior (1999; 2003a) e Tonet (2005).
38
A sobreposição dos interesses privados sobre os interesses coletivos é a marca da
organização social empreendida pelo capitalismo. As conseqüências deste processo inferem
diretamente sobre a própria condição de existência dos trabalhadores. Assim, no
capitalismo, estes se sentem livres somente nas suas funções “bestiais” como comer, beber,
ter uma casa, a reprodução sexual, sua saúde corpórea etc. (Marx, 1844/2004c). No mais, o
trabalhador, nas suas funções inerentemente humanas, corre o risco de estar equiparada à
uma condição animalizada: as funções humanas mais elementares tornam-se um fim na
vida de milhares de pessoas e as aspirações humanas acabam reduzidas à reprodução da
mercadoria privada e das necessidades mais imediatas.
Em um contexto onde a produção da riqueza social e o desenvolvimento do
patrimônio humano estão limitados a produção da mais valia, Costa (2005) coloca que a
divisão social do trabalho reuniu possibilidades para que a produção atingisse grande
escala, mas o trabalho, via de regra, limitou-se à sua forma mecânica, irrefletida, ausente de
uma marca pessoal é a tendência histórica da despersonalização dos produtos, da
impessoalidade e desumanização das relações sociais.
Neste sentido, a alienação no capitalismo é compreendida por Marx, em primeiro
lugar, como resultado da forma de organização da sociedade. Para Marx, alienação é tudo
aquilo que impede o livre desenvolvimento humano (Lessa e Tonet, 2004). O trabalho,
primeira condição que determina a qualidade deste desenvolvimento, quando se torna
estranho ao sujeito que o executa, como uma negação de si mesmo (quando o trabalho não
lhe pertence, ao contrário, lhe esgota e lhe oprime), então estamos nos referindo ao trabalho
alienado, que não apenas gera conseqüências negativas no plano individual, da constituição
do sujeito, como no plano social, do ponto de vista de uma sociedade que coloca o capital a
frente da vida humana e da natureza (Meszáros, 2006).
O capitalismo é uma organização social complexa, mas, de qualquer maneira, o
núcleo central da crítica marxiana, quando este trata da desumanização deste sistema,
refere-se à cisão entre trabalho e apropriação social do trabalho (Lowy, 1989). Essas cisões
geram conseqüências no plano constitutivo do sujeito histórico uma vez que o capitalismo
tolhe suas alternativas de escolha, sua capacidade de exteriorização e objetivação da
realidade (Costa, 2005). Assim, a alienação sobre o processo de trabalho corresponde não a
um estado meramente inconsciente, mas a uma articulação desigual entre objetividade e
39
subjetividade, ou seja, o trabalho explorado se impõe ao indivíduo como uma necessidade
que lhe é externa, não lhe pertence, ao mesmo tempo em que é a única via de
sobrevivência, estando ele consciente ou não disto (Costa, 2005; Eagleton, 1997; Lessa e
Tonet, 2004; Meszáros, 2006).
A natureza da alienação encontra-se no próprio processo produtivo, daí seu caráter
contraditório, pois, como podemos pensar que os sujeitos estão inconscientes de um
processo que eles mesmos ajudam a construir?
A constituição do sujeito não está fadada, de modo algum, a um imaginário
inconsciente que se abre, por vezes, ao vel da consciência. Tampouco, por outro lado, a
desigualdade entre objetividade e subjetividade significa a sobreposição plena de uma dada
dimensão da vida humana. A alienação sobre o processo de trabalho é um processo real,
por outro lado, ele gera conseqüências nem sempre observadas no seu plano imediato e este
fenômeno também é passível de superação, pois é histórico, isto é, a consciência pode
assumir um papel central em um processo de superação deste tipo de sociabilidade.
Como colocamos anteriormente, a alienação em Marx não é compreendida como
uma categoria que se refere a um estado absoluto de inconsciência ou da consciência.
Estando ou não consciente da realidade da produção, ela interfere de forma frontal na vida
dos indivíduos, visto que ela altera a qualidade das relações sociais. Assim, a alienação não
pode ser superada, em sua completude, senão pela revolução das relações sociais, cujo seu
núcleo constituinte no capitalismo é o trabalho alienado.
A categoria da alienação, no entanto, não se presta somente a uma analise da
produção do trabalho alienado. Ela assume como foco central uma análise das relações
sociais cujo fenômeno em quentão passa a ser compreendido em sua totalidade, a partir da
maneira como ela interfere na vida íntima, sobre a visão que se faz si mesmo e sobre os
outros. Neste sentido, Marx (1848/2004d) comenta:
A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal pois o que é
a vida senão a atividade como uma atividade voltada contra ele mesmo,
independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento
15
de si, tal qual acima o
estranhamento da coisa (p.182).
15
A título de esclarecimento: este trecho foi extraído dos manuscritos econômicos filosóficos, traduzido por
Jesus Ranieri, Boitempo. Nesta tradução, Ranieri define estranhamento (Entfremdung) por aquilo que estamos
nos referindo à alienação, ou seja, conotando um sentido negativo no tocante a apropriação do próprio gênero
40
Nota-se nesta passagem que Marx compreende o estranhamento de si em articulação
com o estranhamento da coisa, ou seja, o processo de exteriorização, a qual o indivíduo
externaliza sua singularidade, encontra no processo de produção capitalista possibilidades
escassas de serem objetivadas, o que representa um determinado campo de possibilidades
concretas cuja maior característica é contribuir para tolher o desenvolvimento da
individualidade e a cooperação entre as pessoas.
Neste sentido, a alienação sobre o processo de trabalho não se limita a uma
compreensão da objetividade em seu sentido restrito, delimitado pela divisão social do
trabalho. Como já foi colocado, a compreensão marxista acerca da alienação possibilita que
se avance na análise sobre como se processa a desumanização das relações sociais no
capitalismo. Neste sentido, Marx (1848/2004d) coloca que:
O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a
sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria
tão mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização do mundo das
coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (p.
176).
O capitalismo não se resume ao capital. Trata-se de um conjunto de relações sociais
e por isso a concentração da riqueza funciona como um ‘termômetro’ para se analisar a
quantas anda aquilo que Marx considera como a “desvalorização do mundo dos homens”.
Engrendando o trabalho uma relação instrumental entre os indivíduos, as relações
sociais passam a ser estabelecidas sob as bases da competitividade e da impessoalidade
16
-
ou seja, as pessoas alienam-se umas das outras, não reconhecem a si e aos outros enquanto
ser genérico, mas como mercadoria, ou como alguém com quem se compete no
capitalismo a alienação sobre o processo de trabalho acirra as contradições entre indivíduo
e sociedade, sujeito e gênero humano, público e privado, razão e emoção (Costa, 2005).
Assim entendido, a alienação também é, em grande medida, a alienação do próprio
gênero humano. Os sujeitos vão construindo suas identidades, valores, sentidos, emoções
humano. Para Ranieri, a alienação (Entausserung) é uma categoria que denota um aspecto positivo para o
desenvolvimento da individualidade e da sociabilidade, ou seja, aquilo que estamos denominamos aqui de
exteriorização (Costa, 2005).
16
Esse raciocínio rebate a idéia de que um fenômeno como a violência, por exemplo, marca das relações
sociais atuais, seja produzida pela pobreza, mas sim pelo próprio funcionamento da sociedade capitalista.
41
etc sem estarem descolados do processo de trabalho que sufoca o trabalhador, que se
diante de uma atividade que lhe é externa e que nenhum sentido faz a ele. Neste processo
este indivíduo perde parte de si mesmo, aliena-se do gênero humano por meio de sua
postura individualista, o que conduz ao refreamento da sua própria capacidade criativa. Mas
o capitalismo, mais do que atuar no sentido da alienação acerca do gênero humano,
corresponde ao próprio nero humano alienado. As relações sociais no capitalismo
estabelecem como pano de fundo a alienação sobre o próprio processo produtivo, mas além
disso, estas relações são marcadas, em diferentes dimensões da vida humana, inclusive as
mais íntimas, pela impessoalidade e pela alienação de si e dos outros, em suma, do gênero
humano.
Entorpecidos pela moral individualista, os indivíduos tanto mais reconhecem o
outro como um sujeito, quanto mais ele dispor de uma condição favorável dentro divisão
social do trabalho. A visão sobre o outro passa a ser condicionada pela posição que ele se
encontra na divisão social do trabalho. Dessa forma, a riqueza (em sua forma meramente
mercantil) passa a ser valorizada e admirada, uma vez que lhe é conferida uma valoração
moral, estritamente associada a uma vida de sucessos somente alcançados pela via da
riqueza, que, todavia, acaba por diferenciar as pessoas mais abastadas da massa popular em
seu entorno.
Assim, a desigualdade social assume uma dimensão para além do seu caráter
estritamente objetivo, pois é mediada por uma dimensão simbólica, subjetiva (ao mesmo
tempo em que concreta) à medida que o indivíduo passa a ser valorizado (e muitas vezes
percebe a si mesmo e aos outros) de acordo com o valor socialmente atribuído ao seu
trabalho, estando parte da atividade humana atrelada à sua condição de classe.
3b. Ideal liberal de consumo, mobilidade social e fetichismo da mercadoria.
A segregação social e econômica fez com que o capitalismo tivesse sempre que
recorrer a recursos ideológicos para forjar uma naturalização do próprio desenvolvimento
do capitalismo, das suas relações sociais e, consequentemente, da desigualdade social. Para
tanto, em uma das suas formas de expressão, a ideologia dominante equipara a idéia de
dignidade ao nível de consumo. Trata-se do parâmetro de dignidade da burguesia, em
(Para uma discussão mais detalhada acerca do fenômeno da violência, ver Guzzo, Lacerda Júnior, Euzébios
Filho, 2006).
42
outras palavras, da moral burguesa. Tal moralidade estabelece uma relação direta e
intencional entre as possibilidades de consumo do indivíduo e a honra deste mesmo
cidadão. Neste sentido, define-se dignidade, tendo como marco um determinado padrão de
consumo – estando este atrelado à figura do mais rico, do “cidadão ideal” (Tonet, 2002).
Este fenômeno de valorização do sujeito rico é analisado por Freire (1989) como um
processo que deflagra a redução dos sonhos e dos ideais humanos (ou de qualquer tentativa
de aproximação não alienada ao gênero humano) aos elementos imediatos da realidade do
sujeito. Neste processo, o projeto de vida do indivíduo fica limitado à idéia de consumo, ou
melhor, à busca incessante dos oprimidos para alcançar a posição inversa e oposta: a do
opressor.
Nos padrões liberais as pessoas somente podem se sentirem dignas quando
usufruírem do mesmo poder financeiro do rico e estiverem em condições de dar à sua
família todas as exigências burguesas de consumo. A necessidade de visar sempre o topo,
ou seja, de “subir na vida”, no entanto, não se configura como uma é tarefa fácil, pois se
contrapõe ao próprio desenvolvimento do capitalismo, que perpetua a pobreza como forma
de garantia dos privilégios da burguesia.
A necessidade de ‘subir na vida’ a que estamos nos referindo aqui não está
relacionada ao fato de o indivíduo buscar gozar de uma melhor condição de vida. Aliás,
essa é uma tarefa inalienável que se coloca no capitalismo, mesmo que ela também se
constitua fundamental para o desenvolvimento do sistema social vigente. De qualquer
maneira, não se trata de responsabilizar todos aqueles que são jogados a competirem uns
com os outros. Ainda assim, uma suposta alienação do indivíduo em relação à necessidade
econômica que se impõe no capitalismo pode levar, sob a pena da sua própria degradação
física e psicológica, à alienação do indivíduo sobre a própria base real de vida. Desta forma,
quando tratamos da busca incessante do oprimido em alcançar a situação inversa a do
opressor é fundamental que diferenciemos o fetiche da mercadoria um aparato
ideológico que se reflete no âmbito da atividade humana no sentido não apenas de fomentar
o sistema produtivo, mas também ideológico do capitalismo -, da necessidade do indivíduo
prover de melhores condições de vida, ou mesmo de subir na vida (melhorar o rendimento,
conseguir um emprego que lhe pagem melhor, construir uma moradia mais segura para sua
família etc).
43
Posto isso, é importante atentar para o fato de que, não podendo compreender a
produção de sentido sem que este fenômeno esteja relacionado à realidade concreta a qual
ela é posta à prova, assim, fica muito difícil estabelecer um julgamento que identifica os
iludidos e os não iludidos em relação às suas próprias condições de vida. Isto seria ignorar a
condição humana expressa pela relação entre teleologia e causalidade. Assim, Eagleton,
1997, reflete: “alguém que fosse vítima da ilusão ideológica sequer seria capaz de
reconhecer uma reivindicação emancipatória sobre si” (p. 13).
É evidente que reconhecemos a existência de uma ideologia capaz de ocultar a
realidade (o fetichismo é uma delas), mas temos de atentar para o fato de que a falsa
consciência não se contrapõe a uma espécie de desejo autêntico que está acobertado. Por
outro lado, se a pessoa estivesse supostamente iludida não se acobertaria um desejo que
nem lhe é consciente.
O fetichismo da mercadoria corresponde a um processo contraditório, que não
remete a uma inconsciência e a uma consciência absolutas. No âmbito da valorização em si
da mercadoria e da propriedade privada, este processo corresponde uma inversão de valores
onde o gênero humano é relegado a um segundo plano. Por outro lado, a busca por uma
vida melhor não representa, todavia, um desejo autêntico, mas uma imposição que se
coloca e que incide diretamente sobre a maioria da população, para a melhoria das suas
condições materiais de vida.
A busca por melhores condições de vida limita a aproximação do sujeito frente ao
gênero humano e isso ocorre de maneira efetiva, isto é, no nível da produção social. O
fetichismo não se destaca quando, em uma escala de prioridades sociais, a produção dos
valores de uso é posta à frente dos valores de troca, a expressão da individualidade à frente
da homogeneização, a vida à frente do consumo, em suma, a economia à frente da política
(Trotski 1936;s/d). O fetichismo da mercadoria atua no sentido inverso, ou seja, o consumo
é tido como um fim em si mesmo, da mesma forma, a propriedade privada, sob a pena de o
não proprietário ser considerado um ser (dotado de uma essência) inferior ao proprietário.
De qualquer maneira, a efetivação do fetichismo corresponde ao fato de que o consumo e a
posse passam a exercer um papel predominante no plano da elaboração dos projetos de vida
de um indivíduo e a busca pela riqueza passa a ser um fim em si mesmo, mesmo que isso
signifique ignorar a vida de outras pessoas e o próprio limite imposto pelo meio ambiente
44
(o que diz respeito, inclusive, à degradação da vida natural no capitalismo que, para
Meszáros (2006) constitui o grau máximo de alienação da humanidade).
Neste caso do fetichismo a consciência sobre o nero humano (pois todos nós
somos parte do gênero humano, independente da ideologia, da situação concreta das classes
sociais etc) não ultrapassa o limite da realidade imediata. Trata-se de uma relação
superficial com o gênero humano em que a posse sobre as coisas não se constitui um fim
primeiro, mas o fim último da vida. Da mesma forma, o trabalho no capitalismo, como
havíamos ressaltado anteriormente, passa a ser visto como um meio de ganhar a vida e de
exploração de uns sobre os outros. A ascensão social que caracteriza o fetichismo não é
qualquer ascensão social, é um planejamento de vida tendo como projeto último de vida a
obtenção da riqueza individual em detrimento da riqueza do patrimônio social e humano
(mesmo o natural), ignorando as contradições entre a individualidade e o nero humano
que se estabelecessem neste processo.
Assim, tomada a ascensão social não como um fenômeno que se encerra em si
mesmo, mas em conexão com os valores dominantes do capitalismo, podemos
compreender como uma classe ou um segmento social comporta-se diante de uma realidade
que lhes sufoca. Trata-se de um fenômeno de contemplação (não necessariamente
consciente e, também, por outro lado, não meramente inconsciente) dos ideais de vida
burguesa e de negação da própria condição das classes subalternas.
Nesta perspectiva, Martín-Baró (1980) destaca, por exemplo, em sua investigação
sobre as aspirações da pequena burguesia salvadorenha, que os níveis de aspirações deste
segmento deflagram uma hegemonia das aspirações burguesas. É certo que o ascenso
econômico da pequena burguesia contribuiu para a incidência da ideologia burguesa de
consumo. Todavia, o nível de aspiração do grupo estudado não correspondia as
possibilidades concretas de consumo deste grupo específico, pois foram elaborados com
base em um ideal de vida burguês.
Com isso Martín-Baró conclui que o fortalecimento dos ideais burgueses parece
atingir diferentes segmentos da população que, por sua vez, encontram dificuldades de
obter um determinado padrão de vida, o que contribui para que o estabelecimento de um
sentimento de frustração e para o acirramento das relações competitivas e violentas.
45
Por outro lado, a burguesia encontra-se em uma situação favorável, de
fortalecimento dos seus ideais e da manutenção da dominação social. A opinião da elite
frente à desigualdade social e a pobreza são reveladoras neste sentido. Reis (2000) buscou
compreender como a elite percebe a pobreza e a desigualdade. Para isso, ela ouviu aqueles
que a autora considera como quatro amplos setores da elite brasileira, a saber: políticos,
burocratas, líderes empresariais e líderes sindicais. Esta pesquisa mostra que a visão dos
participantes ampara–se em uma determinada concepção de democracia e na efetivação dos
direitos e deveres da população. Os entrevistados consideram que o governo tem um papel
decisivo para a garantia da democracia e da melhoria das condições de vida da população.
Para isso, entendem o investimento em Educação e saúde como fundamentais para a
redução da desigualdade. O combate ao egoísmo das elites e o fomento da participação
popular nas decisões políticas, por outro lado, aparecem como dois elementos
insignificantes para se alcançar uma determinada democracia no país.
A culpa pelo crescimento da pobreza parece recair sempre sobre a figura do mais
pobre, que é tido como o principal responsável pela situação em que se encontra (Euzébios
Filho e Guzzo, 2006). Esse fenômeno de culpabilização do pobre pela sua própria condição
social e econômica revela uma das formas com que à ideologia dominante se expressa, o
que gera as bases para uma determinada forma de dominação psicossocial.
3c. Capitalismo e dominação psicossocial: ideologia e difamação da figura do
pobre
As relações sociais no capitalismo, por serem construídas com base na hostilidade
de classe, são também espaços onde se propagam falsas compreensões a respeito da própria
natureza do ser humano.
Conforme havíamos adiantado, o capitalismo encontra dificuldade em dispor de
novas formas de ocultamento da desigualdade social, uma vez que a mobilidade social
torna-se um fenômeno cada vez mais restrito. Em outras palavras: a exploração capitalista
atingiu tal nível insuportável e insustentável que a maneira mais eficaz de mantê-la e
intensificá-la é sob via da ideologia.
A propagação ideológica tem se intensificado cada vez mais e, neste sentido,
buscaremos analisar, neste momento, o processo de dominação psicossocial, especialmente
o que diz respeito à propagação da ideologia da difamação do pobre - um conjunto de idéias
46
que são difundas por vários mecanismos e instituições e que são responsáveis pela negação
do sujeito pobre. Elas são baseadas em uma concepção mecanicista da história e do próprio
ser social e exercem impacto na vida das pessoas.
Este eixo discute o preconceito em relação à população de baixa renda como um
processo de dominação psicossocial em que se nega a condição de opressão e a própria
condição histórica que afronta a integridade do gênero humano.
Tratando-se de um fenômeno ideológico, a consciência assume um papel
fundamental e, por isso, compreendemos a manifestação da ideologia de difamação do
pobre como um processo de dominação psicossocial passível, no entanto, de ser
modificado. Por psicossocial entende-se aquele intercâmbio simbólico que surge e constitui
o processo de interação, negociação e reciprocidade (Alfaro, 2001). Neste caso, o fenômeno
da dominação psicossocial constitui-se como um elemento de inteligibilidade política entre
os diferentes grupos sociais. Neste sentido, este fenômeno interfere na representação que
um indivíduo faz de si mesmo, por se tratar de um processo simbólico-concreto que busca
delimitar um sentido psicológico para um acontecimento social (Alfaro, 2001).
Posto isso, atenta-se para o fato de que a ideologia dominante não serve apenas para
delimitar um sentido psicológico, mas para ocultar a realidade em sua totalidade. Mas, por
outro lado, a ideologia dominante pode servir como via de acesso para o sujeito ter um
conhecimento mais amplo sobre o processo de vida real que se estabelece no campo das
relações sociais (Costa, 2005).
A ideologia dominante, neste sentido, não corresponde simplesmente à falsificação
da realidade, ela também apresenta um componente concreto em que encontra suporte real
para sua propagação. Dessa maneira, a ideologia dominante não assume a faceta de uma
falsificação da realidade em si, como coloca Eagleton (1997):
A força do termo ideologia reside em sua capacidade de distinguir entre as lutas de
poder que são até certo ponto centrais a toda uma forma de vida social e aquelas que
não o são. (p. 21).
havíamos dito que a concepção acerca da ideologia adotada aqui é aquela
compreendida não como qualquer conjunto de idéias a não ser aquela associado ao poder
econômico e político. Por isso, a ideologia dominante ao mesmo que tem o poder de ocultar
47
a realidade também pode servir para melhor compreender os pontos centrais a toda uma
forma de vida social e seus mecanismos econômicos e políticos.
A associação da ideologia à economia e à política não nos exime, todavia, da
complexidade de todo este processo. Em primeiro lugar, a ideologia não é uma mera
transposição do concreto para o subjetivo ou uma apreensão sensorial da realidade. Neste
sentido, Eagleton (1997) coloca:
O fato então é que o mesmo fragmento de linguagem pode ser ideológico ou não em
um contexto e não em outro; a ideologia é uma função da relação de uma elocução
com seu contexto social.
Sobre a ideologia, podemos observar tratar-se de um fenômeno complexo e
multideterminado. Assim, a ideologia não se resume a linguagem, mas ao sentido que ela
traz do concreto e, ao mesmo tempo, não se resume ao sentido gerado pelos indivíduos
singulares, pois abarca a relação entre o sentido produzido e a finalidade política e
econômica de uma classe sobre a outra. Neste sentido, Eagleton (1997) apresenta uma
preocupação em não confundir política com ideologia (em que pese a articulação entre
estes dois elementos), da necessidade de uma concepção mais ampla sobre o sujeito, que
engloba a relação entre sujeito e sociedade, no marco de uma ação intencional de
enfrentamento e/ou contestação política. Posto isso, Eagleton continua a refletir sobre esse
problema quando diz que não se pode:
(...) Afirmar que política e ideologia são a mesma coisa. Uma forma de distingui-lás
seria sugerir que a política se refere aos processos de poder mediante os quais as
ordens sociais são mantidas ou desafiadas, ao passo que a ideologia diz respeito aos
modos pelos quais esses processos de poder ficam presos no reino dos significados
(p. 24).
Eagleton recorre a essa interpretação didática da distinção entre ideologia e política
para demonstrar, em contexto de embate com os pós-modernos, que não se pode
compreender a política em si, tampouco a ideologia em si, senão a partir da operação dos
sujeitos sobre a realidade, o que envolve a produção de sentidos, significados e percepções
políticas das mais diversas.
Eagleton, mais adiante em sua reflexão sobre o significado da ideologia, ilustra em
um exemplo para demonstrar como compreende a articulação entre ideologia e política:
48
Dizer que existe uma monarquia constitucional na Inglaterra é enunciado político;
se torna ideológica quando começa a envolver crenças quando, por exemplo,
traz implícito e anexo “o que é uma boa coisa” (p. 24).
Assim, a ideologia não é tão somente uma leitura da situação política, mas um
posicionamento político carregado de sentidos e significados. Além disso, conforme
ressalta Eagleton (1997): “se as ideologias não são tão puras e unitárias quanto elas próprias
gostariam de acreditar, isso ocorre porque, em parte, existem somente em relação com
outras” (p.51).
A ideologia é (...) um campo de significado complexo e conflitivo, no qual alguns
temas estarão intimamente ligados à expansão de classes particulares, enquanto
outros estarão mais à “deriva”, empurrados ora para um lado, ora para outro na luta
entre os poderes contendores. A ideologia é um domínio de contestação e
negociação, em que um tráfego intenso e constante; significados e valores são
roubados, transformados, apropriados através da fronteira de diferentes classes e
grupos, cedidos, recuperados, irrefletidos (p.96).
Eagleton considera que a divergência a respeito de uma manifestação da ideologia
dominante pode gerar uma crise de legitimidade e, caso a contestação às idéias
politicamente dominantes venha a se expandir, esse fenômeno pode conduzir a uma nova
formulação teórica e prática a respeito da realidade social e sua articulação com o gênero
humano. Com isto se explicaria, em parte, como se daria um processo de passagem de
consciência de classe “em si” para o nível de consciência de classe “para si” (Freire, 2001)
Contundo, apesar da complexidade da ideologia, não podemos negar a existência de
uma dominação social e, portanto, de uma ideologia dominante. Dessa forma, tratado-se da
ideologia dominante, reconhecemos uma ideologia ampla cuja função central é a
manutenção da dinâmica engrendada pelo capitalismo, mas que nem por isso deixa de gerar
significado dos mais diversos, os quais nos limitaremos a analisar alguns aspectos mais
adiante, sobre uma manifestação específica (não isolada) da ideologia dominante, que se
refere à culpabilização do pobre sobre sua própria condição de vida.
Os ideais liberais propagam a idéia de que o sucesso alcançado pelas pessoas deve
ser alcançado a partir do esforço individual, ou seja, depende unicamente do próprio
indivíduo. Dessa forma, o rico é um ser valorizado socialmente, uma pessoa digna e
49
respeitada, pois teve competências e vontade própria para "subir na vida". Em contraponto,
o pobre é visto como um perdedor, um ser desvalorizado socialmente, uma vez que ele é
visto como desprovido de competências individuais para alcançar um determinado patamar
financeiro.
Essa análise do segmento mais pobre da população reflete uma visão condicionada
pelos traços mais marcantes da ideologia burguesa (Coimbra, 2001; Euzébios Filho e
Guzzo, 2007; Martín-Baró, 1998; Patto, 1997), tais como: (a) a culpabilização dos
indivíduos pelos seus fracassos (quando a sociedade atribui o fracasso a uma simples
questão de valores, os quais estão presentes nas famílias pobres); (b) discurso da
competência (no caso de o pobre ser menos competente do que o rico na obtenção de um
determinado padrão de vida); (c) associação da pobreza à violência.
A necessidade de construir uma ideologia de difamação da figura do pobre, isto é,
um aparato de comunicação que gera um conhecimento cristalizado sobre si mesmo, serve
para ocultar as atrocidades produzidas pelo sistema capitalista, tem a intenção de manter
uma convivência “pacífica” entre as diferentes classes sociais e, portanto, minimizar a
existência dos mecanismos de exploração, a partir da naturalização dos fenômenos
históricos e sociais (Martín–Baró, 1998; 2000; Santos, 1982).
Assim, a dominação psicossocial funciona como um importante instrumento de
dominação política e econômica, à medida que desenvolve um aparato de comunicação
intencionalmente voltado para bloquear a capacidade reflexiva dos indivíduos. No caso da
culpabilização do pobre, a representação que os sujeitos fazem de si mesmo sofre influência
do sistema de relações sociais que se estabelecem, com base em estereótipos elaborados
dentro de um determinado processo comunicativo (Alfaro, 2001; Martín-Baró, 2000; Patto,
1993; 1997).
Neste campo de comunicação ideológica, a melhoria do poder aquisitivo é tratada
como regra e não como exceção. Sabemos que a melhoria das condições de vida constitui-
se cada vez mais como uma exceção, especialmente nas camadas mais pobres da
população. Esta constatação empírica, pelo contrário, é usada para reforçar uma idéia de
que o pobre é – supostamente - incapaz de reagir diante de suas próprias condições
concretas, ou seja, o problema do indivíduo é que explica a desigualdade social. Nesta
direção, está enrustida a idéia de que as relações capitalistas são as únicas possíveis (não
50
apenas as únicas, como a mais avançada possível) e esta ideologia ganhou força
principalmente com o fim do regime da URSS e com a fragmentação dos grupos
organizados da classe trabalhadora. Forja-se, portanto, a consciência de que o sistema
social e a as relações capitalistas são as únicas alternativas para o bem estar da sociedade e,
portanto, são culpabilizados aqueles que não conseguem adaptar-se à ordem “natural” das
coisas (Augoustinos, 1999; Tonet, 2005; 2002).
Na concepção dominante, o capitalismo apresenta-se como um sistema
fundamentalmente livre e igualitário (Tonet, 2002; 2005) A desigualdade social, por outro
lado, justifica-se pela ineficiência técnica e econômica que impede um país ou uma
população de captar toda a potencialidade do capitalismo, sob o ponto de vista da melhoria
das condições de vida da população. No entanto, este mesmo discurso omite as
intencionalidades da estrutura econômica vigente ao passo em que a economia passa a ser
vista como uma entidade autônoma em relação à própria vida humana. A compreensão
ideológica que coloca a economia com uma identidade própria, contribui para forjar uma
noção de que o responsável pela trajetória de sucessos e insucessos, ou melhor, da obtenção
ou não da riqueza, é a própria pessoa, que teve ou não competência para adaptar-se ao
“poderoso” mercado de trabalho.
O sistema capitalista conta com diferentes aparelhos institucionais que ajudam a
sustentar suas idéias mais gerais (as quais se insere a culpabilização do pobre) e a ocultar
suas contradições mais aparentes (Dobles, 1999). A ideologia dominante é refletida e
disseminada de maneira ostensiva nas escolas, universidades, nos investimentos do Estado,
na legislação, nos meios de comunicação etc (Coimbra, 2001; Freire, 1973, Patto, 1997;
Montaño, 2002, Yamamoto, 2003 Faleiros, 2004; Ponce, 2005).
A culpabilização do pobre é difundida ao longo do desenvolvimento do capitalismo
por diferentes maneiras. Ponce (2005) atenta para o papel central das instituições
educacionais neste processo. Para o autor, a partir da sua análise sobre o contexto das luta
de classes e seu impacto na Educação, as instituições educacionais se fortaleceram quando
o grupo social dominante sentiu a necessidade de se armar de uma explicação científica”
para justificar a desigualdade e a exploração social. Assim, a função primordial das
instituições educacionais seria contribuir de forma efetiva para a segregação social por
meio de uma ofensiva ideológica de afirmação da inferioridade do pobre e da sua
51
incapacidade intelectual. O autor conclui ainda em sua reflexão acerca da relação existente
entre Educação e luta de classes, que as instituições educacionais sempre estiveram longe
de serem neutras e serviram, incondicionalmente, aos interesses de um grupo restrito nas
idas e vindas pela obtenção do poder político e econômico.
A respeito do papel das instituições educacionais modernas, Patto (1997) demonstra
que o conhecimento pedagógico tradicional contribui de maneira decisiva para a noção de
inferioridade do pobre à medida a pobreza passa a estar associada à uma suposta limitação
do indivíduo, a uma insuficiência cultural o que corresponde à base da teoria da carência
cultural.
No caso da psicologia dominante, ela contribui para propagar informações que
exercem impacto no campo da prática política. Assim, Séve (1979a) coloca que as
simplificações das análises tradicionais da personalidade
17
, por exemplo, serviram a
interesses práticos e objetivos, de classificação de grupos sociais superiores e inferiores. A
psicologia dominante, até pela forma que se desenvolveu como ciência, desenvolve suas
análises com forte ranço classificatório e comparativo e não estabelece uma integração
complexa entre os fenômenos históricos, sociais e subjetivos (Séve, 1979a).
Na verdade, a psicologia dominante emerge em um contexto de ofensiva ideológica,
individualista e competitivista. Por isso, não é a psicologia (ou a pedagogia, que tratamos
anteriormente) que contribui por si mesmas para a culpabilização do pobre, mas trata-se de
um contexto onde os valores da classe dominante se propagam em larga medida e cuja
formação depende também de diferentes apropriações de distintas teorias científicas
(muitas delas já elaboradas para servir explicitamente ao capital).
De todo modo, o pobre, distante de qualquer possibilidade objetiva de ascensão
profissional, uma vez que ocupa uma posição desprivilegiada na divisão social do trabalho,
encontra na realidade uma base objetiva para difusão da ideologia de culpabilização que
17
A teoria da personalidade é tratada aqui como um caminho para a psicologia se contrapor às tendências
individualistas e mecanicistas, observadas inclusive no plano do marxismo. A crítica dirigida às correntes
hegemônicas do pensamento psicológico são elaboradas com base no materialismo histórico e dialético.
Martín-Baró (1998; 2000), por exemplo, polemiza com as grandes correntes de pensamento (psicanálise,
humanismo e comportamentalismo), com a chamada antropologia cultural (Durkein, Escola de Chicago entre
outros) e com a psicanálise, quando critica o conceito de personalidade de base. Séve (1979a;b;c), por sua
vez, refletindo sobre uma teoria marxista da personalidade, polemizou com Pavlov e com os idealistas. Nesta
perspectiva adotada por Martín-Baró e Lucien Séve, para uma discussão mais aprofundada sobre a
personalidade, ver também (González Rey, 1995; 1998; 1999; 2002; 2003; 2005; González Rey & Mitjáns,
1989) e Costa (2005).
52
reafirma a idéia de que ele é portador de uma inexplicável “carência cultural”. Isso ocorre,
pois sua condição econômica não lhe permite o privilégio da “humanização”, que, por
suposto, refere-se ao poder de consumo dos objetos e serviços, que determinem
minimamente seu padrão de convívio social.
Com o intuito de enriquecer e contextualizar a análise a respeito da ideologia de
culpabilização do pobre, passaremos a refletir, sob linhas gerais, como a compreensão
individualizada dos fenômenos sociais é difundida no contexto brasileiro contemporâneo
em suas instituições de controle social.
3d. Ideologia de culpabilização do pobre: contexto brasileiro
Com o intuito de contextualizar minimamente este fenômeno a propagação
ideológica voltada para a difamação do pobre acreditamos ser necessário adentrar alguns
aspectos relevantes de sua manifestação na realidade brasileira.
No Brasil, longe de uma crise de legitimidade, a ideologia dominante está em plena
expansão. Tratando-se de um capitalismo hipertardio, ele foi implantado no país sem que
este deixasse de ser uma colônia, dessa vez do imperialismo, o que é retratado pela
dependência cultural, política e econômica deste país em relação aos paises ricos (Antunes,
1982).
Não seria estranho que um Estado atrasado como o brasileiro, do ponto de vista
econômico e social, atrelasse seus investimentos aos interesses da burguesia estrangeira.
Trata-se de uma burguesia nacional que não teve capacidade de cumprir com uma tarefa
central da sua existência: conquistar a soberania nacional. Assim, a burguesia brasileira
também é guiada pelos valores, pela cultura e pelos interesses econômicos da burguesia
estrangeira. Trata-se de uma burguesia que não constitui uma cultura política nacional
sólida e ficou limitada a uma visão corporativa de mercado, enxergando o Estado brasileiro
como moeda de troca dos investimentos internacionais. A única corporação que defende é a
si própria, aos seus interesses restritos, os seus investimentos particulares, etc (Antunes,
1982).
A fragmentação da burguesia nacional (que mesmo assim não deixa de lucrar e
expandir seu capital) coexiste com o enfraquecimento das políticas sociais e com a
inoperância de uma legislação típica de um Estado de bem estar social, que não chegou
sequer a ser iniciado. Assim, o assistencialismo tomou corpo e nele está contida uma
53
compreensão ideológica sobre a pobreza que permeou a relação entre Estado e a maioria
popular.
Desde o período varguista, o assistencialismo tem sido a marca da ação do Estado
brasileiro. Paradoxalmente, neste período também é que ficou marcada a regulamentação
das leis trabalhistas e do sindicalismo. Na verdade, tratou-se de concessões do Estado à
pressão dos trabalhadores, mas este fenômeno foi tomado, em sua acepção populista, como
uma ação de caridade do Estado, querendo este transparecer como um Estado depositário
dos anseios da maioria popular (Antunes, 1982).
De para cá, apesar de algumas conquistas importantes, do ponto de vista dos
trabalhadores, serem materializadas na constituição de 1988, que é uma constituição
avançada em nível de Estado de bem estar social, a ação do Estado brasileiro nunca foi
efetivada na garantia destes direitos. Sabemos que a manutenção da criança na escola
pública, por exemplo, não ocorre da maneira para garantir que, quando adolescentes ou
mesmo quando crianças, estes estejam estudando. A evasão escolar e a defasagem
idade/série parecem estar diretamente relacionadas com a necessidade de complementação
da renda familiar. De acordo com o IBGE (2000) dos jovens de 15 anos de idade, apenas
16,53% estão na escola, enquanto 22% trabalham e estudam, 8% só estudam, 7% estudam e
estão a procura de emprego e 10% não estudam.
A resposta do Estado brasileiro a esta questão reflete-se pela criação, nos últimos
anos, de diversos programas sociais. Trata-se de programas de transferência de renda, por
fazer crer que problemas destes alunos e famílias limitam-se à quantidade de renda. Mas,
então, como explicar a falta de renda? Neste contexto é que a ideologia de culpabilização
do pobre ganha terreno para sua propagação.
A responsabilidade do Estado no cumprimento da legislação é meramente formal e
por isso necessita de recursos ideológicos para ocultar a contradição entre o que está posto
no papel e o que se cumpre na prática. Neste sentido é que o sistema educativo assume um
papel central para forjar conceitos e opiniões a respeito da pobreza. Segundo Patto (1993;
1997) a teoria da carência cultural, fortemente enraizada na pedagogia tradicional
brasileira, age no sentido de explicar os descaminhos desta criança ou daquele adolescente
na escola.
54
A teoria da carência cultural aplicada a uma análise sobre as condições de vida da
maioria da população, que seja a análise individualizante dos fenômenos sociais, constitui a
base de sustentação ideológica para a criação dos programas assistencialistas e como
fundamento da relação entre política social e cidadão (Costa, 2005).
Estando de uma maneira geral todo o aparato do Estado voltado para uma política
estreita e interessada na realização dos projetos de uma parcela ínfima da população (um
grupo de famílias), foi forjada uma compreensão ideológica a respeito da desigualdade
social, fomentada pela culpabilização do indivíduo sobre as condições em que ele vive. A
mídia, neste sentido, cumpriu um papel importante na retratação da pobreza como um
fenômeno descolado dos seus elementos fundantes.
É sabido que o Estado brasileiro exerce um papel central no controle da mídia. Uma
estação de rádio ou televisão, por exemplo, pode funcionar se o Estado der concessão a
este ou aquele órgão de imprensa (Magalhães, 2003). Neste sentido, o controle dos meios
de comunicação serviria como uma referência para compreender a natureza do Estado
brasileiro. Assim, para Magalhães (2003), 73,75% das 3.315 concessões de radiodifusão
foram destinadas a políticos representadas da alta oligarquia – 37,5% das concessões foram
cedidas, pelo governo Lula, aos membros do antigo PFL (partido da frente liberal, agora
incorporada ao partido democrata), 17,5% a membros do PMDB (partido do movimento
democrático brasileiro), 12,5% PPB (partido progressista brasileiro) e 6,25% PSDB
(partido social democrata brasileiro).
Coimbra (2001) traça um retrato da comunicação brasileira e afirma que sete
famílias brasileiras comandam o aparato comunicacional do país. Estas famílias, ligadas ao
alto poder de cúpula do Estado, “prestam serviço” à sociedade buscando associar a pobreza
ao fenômeno da violência, por exemplo, como uma forma de desvalorização do pobre.
Neste sentido, a pesquisa de Coimbra (2001) acerca da concepção sobre a pobreza traz
elementos interessantes para essa análise. A autora fez uma investigação, por meio de
artigos de jornais, revistas e dos próprios documentos governamentais dos órgãos de
segurança pública, acerca da concepção de pobreza presente na sociedade. Com isto,
concluiu que existe uma noção preconceituosa do pobre, o que ela chama de “mito da
classe perigosa”, - uma visão na qual a pobreza passa a ser vista como a principal
responsável pela violência e pela insegurança pública.
55
Algumas redes de rádio e televisão também são responsáveis pela divulgação das
idéias deste ou daquele grupo religioso (Magalhães, 2003). Estas idéias difundidas também
se constituem como parte do cenário de culpabilização da pobreza, pois se trata de uma
doutrinação liberal com revestimento espiritual, que ocupa um espaço na sociedade
brasileira uma vez que a maioria da população não encontra motivos lógicos para justificar
sua condição de pobreza.
Neste caso, as brigas familiares, o desemprego e o uso de drogas são sempre
analisados como um problema meramente espiritual, sem alguma conexão com os
processos reais da vida cotidiana. Essas igrejas atingem, em geral, a camada pobre da
população e a fazem crer que a pode ser medida pelo grau de adaptação do indivíduo às
normais sociais e a imposição econômica do capital (Martín-Baró, 1998).
Assim, a ideologia de culpabilização, que incide sobre a condição pobreza, alcança
dimensões cada vez maiores. O pobre passa a ser culpabilizado não somente pela sua
condição social, mas também pela suposta falta de espiritualidade de uma nação, pela
violência e pela desordem social.
3e. Ideologia de culpabilização do pobre: uma síntese
A ideologia, dentro de um campo de disputa política, engloba a integração de
determinados aspectos simbólicos e emocionais, responsáveis pela elaboração e difusão de
um sentido psicológico que exerce impacto na forma como as pessoas se percebem e ao
mundo (González Rey, 2003). Neste sentido, a noção de culpabilização do pobre pode
contribuir para a aparição e para o desenvolvimento de comportamentos cristalizados e
despersonalizados, pela difusão de uma falsa crença que o próprio sujeito internaliza e
reconhece em si mesmo a sua incapacidade de agir sobre o mundo.
A ideologia de culpabilização do pobre corresponde à propagação de estereótipos,
que, segundo González Rey e Mitjáns (1989), representam normas e valores que se
caracterizam pela pouca mobilidade e pelo baixo nível de operacionalização da
personalidade, ou seja, pela incapacidade de o sujeito integrar as informações e transcender
aos processos simbólicos e emocionais que o impedem de atualizar seus pensamentos, por
meio de uma reflexão crítica a respeito de um determinado aspecto. Neste nível, as
informações aparecem de maneira fragmentada, associada à elevadas cargas emocionais em
diferentes tipos de unidade psicológica.
56
Sendo assim, as formas como as pessoas se percebem e aos outros, especialmente de
segmentos sociais distintos, suscita questões relacionadas à realidade cotidiana que se vive,
sobre si mesmo e os outros (mesmo estas visões sejam elaboradas balizadas pelo senso
comum). Essas concepções serão analisadas tendo como pano de fundo uma análise a
respeito de como as pessoas e grupos se articulam com o nero humano, uma vez
compreendida a culpabilização do pobre como uma forma de se negar o gênero humano (de
negar a si mesmo e ao outro, ou melhor, de compreender os outros e a si mesmo enquanto
mercadoria ou tendo como referência o consumo e a valorização do mundo das coisas).
A percepção das pessoas acerca da articulação entre individualidade e gênero
humano, materializada em uma reflexão sobre a desigualdade social, partiu de como as
pessoas entrevistadas percebiam as suas condições sociais e econômicas, como elas
estabeleceram relação entre suas condições de vida e a visão que fazem de si mesmos ou de
um determinado segmento ou classe social.
57
OBJETIVOS
O objetivo geral deste trabalho é compreender como a desigualdade social interfere
na maneira como as pessoas se percebem e aos outros, especialmente aqueles que são
provenientes de segmentos sociais distintos.
Por isto, as análises anteriores buscaram compreender o fenômeno da desigualdade
social de uma maneira ampla, atentando para a realidade das classes sociais como um
aspecto inalienável das relações sociais no capitalismo. Dado a importância deste conceito,
que diz sobre si mesmo e sobre os outros, buscamos (1) conhecer como e se as pessoas
caracterizam a si próprias enquanto membro de um determinado segmento social e
econômico. Reconhecer-se ou não enquanto membro de uma coletividade também reflete
como as pessoas compreendem suas condições de vida e, para que isso ficasse mais claro,
buscamos: (2) analisar se os sujeitos estabelecem relações entre a visão que fazem sobre si
mesmo e sua condição econômica por acreditar se tratar, em última instância, de uma
análise sobre as causas da desigualdade social, que poderiam ser atribuídas aos indivíduos,
à sociedade ou a ambos. Para aprofundamento desta análise, outro objetivo deste estudo foi:
(3) entender se existem diferenças expressas entre a caracterização de si mesmo e a dos
membros de um segmento social distinto (focalizando, especialmente, as relações que se
estabelecem no contexto de vida e de trabalho das pessoas entrevistadas). Por fim, com
base nos pontos anteriores, um dos objetivos foi: (4) entender como os participantes desta
pesquisa elaboram seus projetos futuros e como percebem as alternativas para redução da
desigualdade social.
58
II. MÉTODO
1. Abordagem teórico-metodológica
Na perspectiva dialética quem vimos adotando, a unidade entre
subjetividade/objetividade não se estabelece de maneira simples e linear. Pelo contrário: se
expressa pela contradição entre dois elementos que se distinguem e, ao mesmo tempo, um
modifica o outro. A unidade entre subjetividade/objetividade assume formas históricas de
desenvolvimento que se diferenciam qualitativamente pela maneira como os aspectos da
realidade influenciam e são influenciados pela subjetividade humana.
Segundo Konder (1981) o método dialético não reconhece a predição como
princípio da ciência, mas por outro lado, não desconsidera a previsibilidade e a regularidade
de determinados fenômenos. Trata-se de uma concepção filosófica sobre a realidade, que
assume está última como ponto de partida para elaboração do seu conhecimento e não o
contrário: a realidade meramente como uma confirmação da teoria.
Por isso, a dialética marxista, fundamentada em preceitos filosóficos do ser social,
não atribui maior importância à subjetividade ou a objetividade, tampouco coloca ambas no
patamar da igualdade ontológica. O conhecimento é compreendido a partir da unidade entre
subjetividade e objetividade, analisada como um processo contraditório que se nega a si
mesma, mas se que complementa a partir da tensão entre sujeito e sociedade.
Na ciência, quando se pesquisa uma determinada dimensão da realidade, é preciso
saber sobre o quê se pesquisa, sobre o quê o pesquisador pretende se debruçar. Por isso, um
princípio da dialética marxista é que a natureza do objeto estudado deve orientar os
procedimentos de investigação, pautados por pressupostos ontológicos e não simplesmente
metodológicos. Neste caso dispomos de uma análise ontológica sobre os fenômenos
psicológicos empreendida por González Rey, que nos parece responder à algumas questões
metodológicas que coadunam, de certa maneira, com a concepção de sujeito que adotamos
aqui. Tratamos da concepção do autor sobre a subjetividade (presente em toda sua obra)
aplicada à aquilo que, em decorrência, o autor chama de epistemologia qualitativa
(González Rey, 1998; 1999; 2003; 2005).
Com base no conceito de subjetividade, González Rey (1999) destaca três
fundamentos da epistemologia qualitativa: (1) o conhecimento entendido como produção
59
construtivo-interpretativa; (2) caráter interativo da produção de conhecimento; (3) o
reconhecimento da singularidade como fonte legítima de conhecimento.
As implicações destes pressupostos a nível metodológico são diversas. A começar
pelo fato de que González Rey (1999) não considera a subjetividade como uma entidade
psicológica metafísica, pois ela se caracteriza por sua natureza social, contextual e
inerentemente humano, oriunda da comunicação entre os sujeitos e, especialmente, da
capacidade de o indivíduo gerar sentido para aquilo que ele vivencia.
Neste sentido, González Rey (1999, 2005) afirma que a pesquisa não adquire valor
somente à medida que se apresenta uma determinada quantidade de dados. O valor
empírico de uma pesquisa corresponde à qualidade com que se apreende o fenômeno
estudado e não à soma de dados coletados. A metodologia qualitativa interessa-se pela
maior compreensão de certos casos, posto que sua finalidade não seja de generalizar os
resultados de uma população, tampouco os resultados da pesquisa adquirem valor de
produtos finais e acabados. Isto posto, a conclusão de uma pesquisa deve ser estabelecida
com base em hipóteses, resguardando suas limitações contextuais, teóricas e empíricas
(González Rey, 2003).
González Rey (1999), considerando como aspecto fundamental para o
estabelecimento de uma epistemologia qualitativa, a interação entre o momento empírico
(de absorção do fenômeno estudado) e o momento teórico (de reflexão acerca do vivido),
deflagra a natureza interativa da produção de conhecimentos e a importância de se
estabelecer procedimentos de pesquisa que favoreçam a expressão do sujeito sobre o
fenômeno estudado. Nesta perspectiva, a prática de pesquisa é considerada como um
momento privilegiado de diálogo entre pesquisador e sujeito investigado.
O diálogo engloba a liberdade de o sujeito investigado falar e expressar como ele
sente e percebe um determinado fenômeno. Por outro lado, o pesquisador também é uma
instância geradora de sentidos, que elabora as suas hipótese (sempre inconclusas, mas que
indicam uma direção) a partir dos seus valores e posicionamentos.
Trata-se, portanto, para o desenvolvimento deste trabalho, de uma opção pela
metodologia qualitativa, fundada no diálogo, na captação do sentido subjetivo e na
participação do pesquisador no contexto de pesquisa.
60
2. Cenário de pesquisa
A preocupação em criar espaços de convívio diferenciados para os distintos
segmentos sociais e econômicos da população caracterizou o desenvolvimento dos grandes
centros urbanos, como Campinas, cidade onde foi realizado o presente estudo. A
configuração das cidades tem se apresentado como elemento de manifestação da
desigualdade social, na medida em que o espaço geográfico traz resquícios da divisão social
do trabalho (Martín-Baró, 1990).
Segundo Maricato (2003), o processo de urbanização no Brasil acentuou-se em
meados de 1850, época em que a industrialização começou a aflorar no país e o fim da
escravidão impulsionou o desenvolvimento do comércio. Neste contexto, a ocupação de
terras era considerada legítima, uma vez que a aristocracia fundiária tinha um aparato de
repressão que assegurava o “direito” à propriedade privada. Por outro lado, a
industrialização contribuiu para o aparecimento de uma quantidade considerável de
trabalhadores livres e também de imigrantes que chegavam ao país à procura de oferta de
emprego. Isso obrigou o Estado a desenvolver, no início do século XIX, uma legislação
sobre a terra que garantia a continuidade do domínio dos latifundiários sobre a produção
(Campos, Pochmann, Amorin e Silva, 2003; Maricato, 2003).
A legislação sobre a terra subordinou certas áreas ao capital imobiliário, acarretando
a expulsão da massa trabalhadora da região central, o que culminou com o crescimento das
áreas periféricas das cidades. A nova normativa contribuiu para a ordenação do solo, mas
também para a segregação espacial e para o aparecimento das favelas, caracterizadas pela
ocupação das terras e pela situação jurídica de não propriedade (Luz, 2000; Maricato,
2003).
A segregação espacial ou ambiental, no entanto, nem sempre tem dado conta de
aparar as seqüelas do desenvolvimento do capitalismo. O crescimento das cidades vem
acompanhado dentro de uma gica produtiva, que se reproduz pela crescente concentração
de renda e pelo aumento da população pobre. Esse processo contribuiu para acirrar a
convivência entre a elite, pobres e miseráveis
18
, na medida em que diferentes segmentos da
18
A linha de pobreza e de miséria segue o padrão da ONU. A linha da pobreza no Brasil é fixada em R$
121,00 per capita (aproximadamente 60 dólares mensais). Miseráveis são aqueles que vivem com uma renda
mensal inferior a esta. Mais informações ver Campos et all (2003).
61
população passaram a se aglomerar em algumas unidades territoriais (Luz, 2000; Maricato,
2003).
A convivência entre pobres e ricos tem se tornado cada vez mais comum nas
cidades brasileiras, que não conseguem mais esconder suas mazelas e a elite encontra
dificuldades para se isolar em espaços restritos, distantes da maioria da população. Como
conseqüência deste processo, a segurança privada e o número de condomínios de alto
padrão têm crescido (Buoro, Schilling, Singer, e Soares, 1999). A sofisticação dos aparatos
de segurança atende à crescente necessidade da elite esquivar-se da convivência com a
maioria da população, o que muitas vezes não é possível, uma vez que o número de pobres
e miseráveis cresce em uma mesma proporção do que a concentração de renda. Um dos
dados que ilustram essa realidade é que as cinco mil famílias mais ricas do Brasil, o
equivalente a 0,001% das famílias brasileiras, detém 40% do produto interno bruto (PIB).
Em contrapartida, das 34 milhões de pessoas entre quinze e vinte e quatro anos de idade,
40% vivem em situação de extrema pobreza (Pochmann et all, 2004).
O número de pobres e miseráveis corresponde à mais da metade da população do
país. Estudos recentes atestam que 29,8% da população pobre no Brasil localiza-se em 9
regiões metropolitanas (Campos et all, 2003), o que tem contribuído para ofuscar a beleza
das grandes cidades, que não mais se destacam pelos prédios modernos ou pelas elegantes
avenidas, mas pela a imensa quantidade de favelas, pelo crescimento do trabalho informal
(que se estende, inclusive nos semáforos) e pelo número de pedintes que se espalham pelas
ruas (Maricato, 2003). Essa realidade se apresenta como a marca dos centros urbanos
brasileiros, tal como Campinas que, assim como adiantamos, é a cidade onde este trabalho
se desenvolveu.
3. Contexto de pesquisa
Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000),
Campinas tem uma população estimada em 969.386 pessoas e caracteriza-se como um
centro de desenvolvimento tecnológico e industrial, que se estende a uma região
metropolitana, constituída por 19 municípios com uma população de 2.333.022 habitantes.
Apesar de Campinas figurar no cenário nacional como uma cidade de imenso
potencial econômico, a desigualdade social tem se caracterizado como a marca deste
62
município. O Mapa de exclusão/ inclusão de Campinas revela uma distância social
19
de 98
vezes entre os moradores de um bairro da região Noroeste (o de maior exclusão) e de outro
situado na região Leste (um dos maiores índices de inclusão), no que diz respeito ao
indicador dos chefes de família com renda entre 1 e 2 salários mínimos. Os dados do mapa
revelam ainda uma distância social de 491 vezes no indicador dos chefes de família com
renda superior a 20 salários mínimos, entre a região Noroeste (a que apresenta o maior
índice de exclusão) e a região Leste (que apresenta o maior índice de inclusão) (PMC,
2004).
O índice de exclusão/inclusão varia entre -1,00 e +1,00 e mesmo a região mais rica
da cidade apresenta uma discrepância social e econômica considerável, pois possui bairros
com grau máximo de inclusão (+1,00) e, ao mesmo tempo, congregam outros com índices
que representam uma situação de exclusão social (-0, 29, por exemplo) (PMC, 2004).
Este trabalho nasce de uma intervenção realizada em uma escola pública situada em
uma dada região da cidade de Campinas, em uma unidade territorial caracterizada pela
aglomeração de pobres e ricos, que convivem em um mesmo espaço geográfico. A escola
pública mencionada encontra-se em meio a condomínios privados e bairros populares que
dividem terreno em uma mesma região. Esta escola corresponde a uma unidade de ensino
infantil, que recebe crianças de zero a cinco anos de idade. Caracteriza-se como centro
integrado de Educação infantil (CIMEI). O CIMEI é composto por uma EMEI (Escola
Municipal de Educação Infantil) que atende crianças de 2 a 5 anos, e por uma CEMEI, que
é a creche de educação infantil e atende crianças de 2 meses a 2 anos. Este centro é
composto por aproximadamente 55 profissionais e atende atualmente em torno de 450
crianças nos turnos da manhã e da tarde. O CIMEI conta com duas professoras de educação
especial, que devem acompanhar os casos de inclusão escolar realizados neste local e com
uma orientadora pedagógica (Costa, Weber e Beckman, 2005).
Também se constitui como cenário de pesquisa, localizado próximo à referida
escola, o Centro de referência da assistência social (CRAS), que funciona em uma casa de
diversos cômodos. Neste espaço atuam 5 profissionais, sendo dois psicólogo(a)s, duas
assistentes sociais e uma secretária.
19
Distancia social medida a partir do índice de discrepância, baseado na relação entre a maior e a menor
expressão de uma mesma variável (PMC, 2004).
63
4. Participantes
Para facilitar a reflexão sobre a desigualdade social e para torná-la mais
contextualizada, optamos pela escolha de participantes com quem temos contato e que
estão envolvidos diretamente com os programas assistenciais destinados à população de
baixa renda. Dessa forma, partindo do contexto de atuação prática do pesquisador, foram
chamados a participar desta pesquisa os executores destes programas assistenciais
(profissionais da assistência social), que representam uma camada dia da população, do
ponto de vista socioeconômico e os beneficiados pelos programas, representantes da
camada pobre da população. Assim, a escolha dos participantes, em que pese os objetivos
desta pesquisa, procurou atender à alguns critérios: (1) que fossem participantes dos grupos
de trabalho realizados com pais dos alunos e que recebam algum auxílio financeiro ou
material da prefeitura (mais especificamente da assistência social) ou que foram
contemplados por algum programa assistencial; (2) e profissionais da assistência social
(uma assistente social e uma psicóloga da CRAS) que trabalham diretamente com as
famílias assistidas.
Participaram desta pesquisa dois pais de alunos, sendo um homem e uma mulher,
também uma psicóloga e uma assistente social da CRAS. Os nomes dos participantes são
fictícios. Os quadros I e II sintetizam uma caracterização prévia destes participantes que
variou de acordo com as informações obtidas sobre cada sujeito.
64
Quadro I. Dados demográficos dos participantes.
*NF: não informado.
Quadro II. Dados socioeconômicos dos participantes.
Participantes Grau de
escolaridade
Profissão Vínculo
empregatício
Renda familiar
Ana Superior Psicóloga Concursada
serviço público
R$. 3.000,00
Carla Superior Assistente
social
Concursada -
serviço público
R$ 4.000,00
Maria 7ª série Doméstica Bico R$ 600,00
Caio Ensino médio
incompleto
Lavador de
carros
Bico R$ 940,00
Participantes
Idade
Etnia Estado
civil
Filhos
Religião Tipo de
moradia
No de
adultos na
moradia**
No total
de
pessoas
na
moradia
Cômodos
Ana NF* Branco
Casada 1 NF Alvenaria
2 3 5
Carla 45 Branco
Casada
1 Evangélica
Alvenaria
2 3 6
Maria 25 Negro Casada
2 NF Alvenaria
2 4 2
Caio 22 Negro Solteiro
1 NF Alvenaria
3 3 7
65
5. Material
Pelos dados que trazemos de cada participante, nota-se que foi utilizado um roteiro
socioeconômico (anexo 1) com dados referentes à condição de moradia, à renda mensal da
família, às condições de trabalho da pessoa, ao nível de escolaridade e outros elementos que
constituem o índice de desenvolvimento humano da organização das nações unidas (UNDP,
2003). Além disso, esse instrumento dispunha de um espaço em branco para as observações
do pesquisador durante a interação com o (a)s participantes.
Outro material que foi utilizado, em conformidade com a lei no. 196/96 que
regulamenta a pesquisa com seres humanos, é o termo de consentimento livre e esclarecido
(anexo 2). Para coleta das informações e transcrição dos diálogos com os participantes foi
utilizado um gravador.
Um roteiro de perguntas serviu para balizar o diálogo com os (as) participantes
(anexo 3). Este roteiro foi dividido em picos que contemplam os objetivos deste trabalho
e representam as dimensões a serem investigadas. São dois roteiros que foram utilizados. O
primeiro continha questões mais específicas ao contexto de trabalho dos profissionais da
assistência social. O segundo roteiro continha questões mais relacionadas à vida dos
participantes, pais dos alunos da referida escola pública e beneficiários dos programas
assistenciais. As diferentes questões tinham como objetivo trazer elementos do contexto da
pessoa para que ele pudesse avançar em uma reflexão comum a todos os participantes.
Como podemos observar no quadro III, a descrição das perguntas foram elencadas em
conformidade com as dimensões investigadas e aos objetivos que elas corresponderam.
66
Quadro III. Questões/dimensões investigadas
Dimensões gerais
(objetivos)
Dimensões
específicas
Tópicos Questões
Contexto de vida e
trajetória
profissional
Percepção sobre o
emprego
Análise sobre o
contexto de vida.
Percepção sobre as
redes de apoio social
na comunidade.
Trabalho na rede de
assistência social
Análise dos
programas
assistenciais que
executa e
operacionaliza
Percepção sobre a
escola dos filhos
Análise dos serviços
públicos
O que acha do seu
trabalho? Qual a
função que exerce?
O que é ser
assistente social
para você?
O que acha dos
programas
assistenciais de
maneira geral?
O que acha da
escola do seu filho?
Você acha que a
escola oferece
condições pra seu
filho estudar? Acha
que a escola pode
melhorar? Você se
sente seguro com a
escola?
Você acha que o seu
bairro tem uma
estrutura boa para
atender a população
(posto de saúde,
esgoto, escola,
67
Inserção nos
programas de
transferência de
renda / Condições
dos serviços
públicos da região.
creche etc)? No que
poderia melhorar?
Participa de algum
programa do
governo? Qual sua
avaliação sobre esse
programa?
Percepção sobre a
desigualdade social
Desigualdade social
e sociedade
Desigualdade social
e indivíduo.
Percepção das suas
condições de vida e
dos outros.
Caracterização do
pobre e do rico
Manifestações
cotidianas.
Características
individuais e
condição econômica
Diferenças e
semelhanças entre as
condições de vida
dos participantes
Análise da sua
condição de vida e
de outros segmentos.
*Como a
desigualdade social
se expressa na
sociedade? E em
seu cotidiano?
Porque você acha
que existe a
desigualdade
social?
Quais diferenças
existem entre sua
vida e a das famílias
assistidas pelos
programas
assistenciais?
Como descreveria
uma pessoa pobre?
Como descreveria
uma pessoa rica?
Relações sociais e
contextos de vida
Experiências
cotidianas e
desigualdade social.
Sentimentos sobre as
condições de vida.
Como se sente
vivendo da maneira
como vive? Você
tem vontade de
68
possuir ou viver de
alguma forma
diferente da que
vive?
Expectativas sobre
o futuro.
Melhoria das
condições de vida
Perspectivas para
redução da
desigualdade social
Plano individual
Plano coletivo.
Plano individual e
coletivo.
Quais são suas
expectativas em
relação à sua
condição futura de
vida?
Quais são suas
expectativas em
relação à condição
futura de vida da
população?
Qual alternativa
você enxerga para a
melhoria da sua
condição de vida e
da população?
* questões em negrito: comum a todos os participantes.
69
6. Procedimentos
6a. Procedimentos éticos
Psicólogos que realizam pesquisas com seres humanos devem obedecer à legislação
em vigor, especialmente a Resolução 196 de 1996 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
As presentes orientações desta resolução interpretam e expandem os artigos referentes à
ética na pesquisa do Código de Ética do conselho federal de psicologia (CFP) e qualificam
ou complementam o disposto na Resolução 196 do CNS.
Neste sentido, atenta-se para o cumprimento dos parâmetros éticos colocados pelo
CFP (resolução CFP nº. 016/00). Para tanto, serão detalhados os procedimentos éticos
realizados para fins desta pesquisa.
Como parte do procedimento ético a ser adotado, foi entregue aos participantes um
protocolo de pesquisa que contempla: os objetivos, a justificativa da necessidade da
pesquisa, os procedimentos de pesquisa e as salvaguardas éticas, incluindo o
consentimento informado, os limites quanto ao uso de informações e os procedimentos de
divulgação dos resultados (resolução CFP nº. 016/00).
O termo de consentimento livre e esclarecido utilizado (anexo 2), aprovado pelo
comitê de ética de pesquisa da PUC-Campinas, contém a informação em linguagem
apropriada (e foi lido, no caso de uma participante que não conseguiu ler). Ele informa a
utilidade dos dados, bem como o respeito ao sigilo das informações, da privacidade do
indivíduo e do direito deste desistir da pesquisa assim que desejar.
A resolução do CFP sobre a ética na pesquisa com seres humanos ressalta a
necessidade de o pesquisador avaliar a relevância social da pesquisa, ou seja, como e se ela
exerce impacto na vida dos participantes (resolução CFP nº. 016/00).
Conforme as orientações éticas procedidas, o pesquisador preocupou-se com o
impacto da sua pesquisa para os participantes e para a comunidade em que se desenvolveu
o estudo. Neste sentido, o centro das atenções do pesquisador foi os participantes (por
exemplo: se a pesquisa provoca um impacto emocional no participante, o diálogo entre o
psicólogo e este indivíduo pode se prolongar para além da coleta das informações da
70
pesquisa, como, de fato, ocorreu em um dos casos). O pesquisador procurou proporcionar
um ambiente em que os participantes sentissem–se à vontade para participar da pesquisa.
Destaca-se como procedimento ético da análise dos dados, a preocupação do
pesquisador em não generalizar os resultados e não submeter, na apresentação dos
resultados de pesquisa, os participantes a nenhum tipo de situação constrangedora, ou que
quebre o sigilo e a impessoalidade dos resultados (resolução CFP nº. 016/00).
A apresentação dos dados à comunidade a aos participantes também deve
resguardar princípios éticos, objetivando proteger os participantes de possíveis represálias
da comunidade pelo fato de eles terem expressado uma opinião polêmica ou que segue de
encontro com as opiniões dominantes de um determinado contexto (resolução CFP nº.
016/00).
6b. Procedimentos de coleta
O pesquisador buscou, antes da realização de cada entrevista, certificar-se de que os
participantes estivessem cientes dos objetivos desta pesquisa, autorizassem a gravação das
conversas e que assinassem o termo de consentimento livre e esclarecido, que foi lido para
uma participante que demonstrou dificuldades em ler e compreender o documento. Foi
entregue uma cópia assinada do termo de consentimento livre e esclarecido a todos os
participantes desta pesquisa. Também foi preenchido o roteiro socioeconômico, com o
objetivo de enriquecer os dados da pesquisa.
As entrevistas foram realizadas por meio de um roteiro de perguntas semi-
estruturado, que procurou delimitar as dimensões a serem estudadas, resguardando, no
entanto, a importância da interação e do diálogo entre o pesquisador e participante, como
um momento que facilitasse a livre expressão do sujeito e a reflexão contínua a cerca de
determinado tema (González Rey, 1999). Esse procedimento corresponde àquilo que
García, Giuliani e Wiesenfeld (2002) denominam de ‘entrevista em profundidade’. Dessa
forma, a flexibilidade do uso das perguntas e a utilização das mesmas como mediadoras da
discussão buscou respeitar a livre expressão do sujeito.
O contato com os participantes ocorreu nos espaços de trabalho onde o pesquisador
desenvolve suas atividades profissionais, por meio do projeto “Risco à Proteção”. No caso
da psicóloga e da assistente social da CRAS, o contato deu-se por meio das reuniões da
71
intersetorial e as entrevistas foram realizadas nas instalações desta coordenadoria. No caso
dos pais das crianças, o contato aconteceu no contexto da escola e as entrevistas foram
realizadas nesta mesma instituição.
A quantidade das entrevistas realizadas dependeu das informações trazidas pelos
participantes e do contexto de interação que foi estabelecido entre pesquisador e
pesquisado. Em nenhum dos casos as entrevistas excederam mais de um encontro, variando
o tempo de cada entrevista individual.
Por fim, serão apresentados, a cada um dos participantes, os resultados dessa
pesquisa em formas de tópicos gerais que representam as análises empreendidas pelo
pesquisador.
72
III. RESULTADOS E DISCUSSÃO
1. Introdução e justificativa
Esta análise buscou respeitar os princípios metodológicos da epistemologia
qualitativa, que considera o conhecimento dotado de uma produção dinâmica, construtiva e
interpretativa (González Rey, 1999). Para isso, as falas dos participantes foram tomadas
dentro do contexto em que foram produzidas e analisadas dentro daquilo que faz sentido
para os entrevistados. Neste sentido, as transcrições das entrevistas individuais foram lidas
e relidas até o momento em que se pudesse desvendar a temática e o sentido subjetivo de
cada frase ou argumento.
Na perspectiva metodológica adotada, a análise das contradições aparece como a
forma de captar a tensão existente entre sujeito e sociedade e o que conforma os resultados
e as hipóteses de pesquisa são as sínteses que o pesquisador desenvolve a partir de uma
análise compreensiva e interpretativa das contradições apreendidas e das questões expostas
nas falas dos participantes (Konder, 1981).
Segundo Jacques (1993), o método dialético, fundado no diálogo, anuncia a
possibilidade de o pesquisador estabelecer conexões, mediações e contradições que
constituem a problemática estudada. Mediante esta reflexão, ressalta ainda a autora, vão se
identificando as determinações fundamentais e secundárias. Neste processo de análise das
informações, procurou-se captar alguns temas que compreendem unidades de sentido,
extraídas do sentido que os próprios participantes atribuíram a determinado tema. Estas
unidades de sentido sustentaram a construção de categorias/temas que foram analisados.
Para facilitar a extração destas unidades de sentido, foi realizada, conforme sugere
Jacques (1993), a divisão por temas, que corresponderam à divisão do conteúdo das
informações como unidades intencionais do discurso. As unidades de sentido compreendem
um arcabouço teórico que buscou ser utilizado com o objetivo de aprofundar o tema
deflagrado pelos participantes.
Assim, como ressalta Jacques (1993), os resultados da pesquisa advieram da
capacidade de o pesquisador estabelecer relações entre as dimensões estudadas, bem como
das relações estabelecidas entre as particularidades e o caráter estrutural dos temas trazidos
pelos participantes. Neste sentido destaca-se a possibilidade de considerar o conteúdo da
73
pesquisa como um fluxo de informações encadeadas entre si e não como um conjunto de
partes com um conteúdo isolado.
Ao invés de hipóteses apriores, o estabelecimento de questões norteadoras procurou
propor caminhos e direções, mais do que por chegar a conclusões herméticas e definitivas
(González Rey, 1999).
2. Procedimentos e estrutura da análise
Em princípio, os discursos foram transcritos e analisados separadamente,
totalizando a extração de categorias distintas para cada um dos participantes. As análises
das entrevistas foram, portanto primeiramente realizadas separadamente. Por outro lado,
alguns temas pareceram convergir em sentido e direção, o que explicou a repetição de
categorias na análise dos diferentes participantes. Essa repetição de categorias caracterizou-
se como uma via para captar um sentido comum sobre algumas questões, o que possibilitou
a realização de uma síntese envolvendo uma análise conjunta do discurso dos quatro
participantes.
Em resumo, após as análises das entrevistas individuais foi realizada uma síntese
das reflexões de cada entrevista, um cruzamento de informações, apreciação das questões
comuns e divergentes dentre os discursos dos participantes.
A análise conjunta das entrevistas compreende, simultaneamente, os resultados e as
discussões deste estudo. Para iniciar esta análise, começamos por compreender as
semelhanças e as diferenças das trajetórias de vida dos quatro participantes desta pesquisa.
Em seguida, retomando os objetivos deste trabalho, podemos considerar que questões mais
específicas como “O que acha do seu trabalho?” “Qual a função que exerce?” permitiram
conhecer um pouco sobre a trajetória profissional dos participantes, especialmente das
profissionais da assistência social. Questões relacionadas à percepção geral sobre a
desigualdade social e sobre as famílias assistidas como “O que pensa da população assistida
pelos programas?” “Como a desigualdade social se expressa na sociedade?”. E outras mais
específicas, tipo: “Que diferenças existem entre a sua vida e a de outras pessoas com
melhores condições financeiras (o professor da escola, o chefe etc)?” permitiram
compreender como os participantes observam as diferenças e semelhanças entre
determinados segmentos sociais e como eles caracterizam a si próprios enquanto membro
de um determinado segmento social e econômico.
74
Questões amplas permitiram analisar situações específicas de vida: uma pergunta
como: “Porque você acha que existe a desigualdade social?” em que os participantes
apontaram alguns argumentos que para eles justificariam a desigualdade social. Dentre
várias argumentações prevaleceu uma justificativa que supostamente explicaria este quadro
de desigualdade social. Uma questão específica como “Por que você acha que vive da
maneira como vive?” permitiu aos participantes analisarem relações entre suas condições
econômicas e a visão que fazem de si mesmos, ou seja, assim perceberam as melhoras de
vida como méritos de competência estritamente individuais e, por outro lado enxergam que
a responsabilidade para melhorar de vida é quase que exclusivamente do indivíduo;
Questões como: “Você tem vontade de possuir ou viver de alguma forma diferente da que
vive?” e Quais são suas expectativas em relação à sua condição futura de vida?”
permitiram conhecer alguns aspectos relacionados à forma como os participantes elaboram
expectativas para seus futuros e de suas famílias.
Buscando aprofundar a reflexão sobre as expectativas, as questões “Quais são suas
expectativas em relação à condição futura de vida da população?” “Qual alternativa você
enxerga para a melhoria da sua condição de vida e da população?” contribuíram para que os
participantes expressassem, finalizando esta síntese, algumas reflexões sobre perspectivas
para melhoria das condições de vida da população em geral.
Para finalizar a seção de resultados e discussões, em seguida a apresentação dos
eixos de análise, que constituem uma síntese das informações colhidas nesta pesquisa, foi
elaborada uma conclusão geral sobre o que foi trazido pelos participantes e apontamentos
sobre temas que poderão ser aprofundados em uma outra ocasião, questões, hipóteses e
futuros delineamentos de pesquisa.
75
ANÁLISE DOS RESULTADOS: DISCUSSÃO
Esta síntese foi elaborada a partir do discurso dos participantes, mas dado que as
questões elaboradas coadunavam com os objetivos deste estudo, as informações obtidas nas
entrevistas também apresentaram relação com os fundamentos teóricos, cuja finalidade
nada mais era do que esclarecer o leitor acerca de como compreendemos as questões que os
próprios objetivos deste estudo suscitaram e, portanto, como posicionamo-nos frente às
mesmas questões que foram feitas aos participantes. Por isso, esta análise está estruturada
em seis eixos que conformam similaridades entre alguns temas destacados na nossa
fundamentação teórica e na visão dos participantes sobre as questões que lhes foram
apresentadas. Estes eixos comportam uma discussão em torno dos objetivos deste estudo,
são eles: (1) Trajetória profissional e de vida (este eixo fornece uma caracterização geral
dos participantes); (2) Percepção da desigualdade social: percepção das diferenças e
semelhanças entre as condições dos participantes (este eixo possibilitou aprofundar a
discussão sobre a amplitude do fenômeno da desigualdade social, sobre o tema das classes
sociais e sobre a consciência de classe); (3) caracterização do pobre (este eixo de análise
nos permitiu aprofundar a discussão em torno da categoria da alienação alienação frente
ao outro e frente à própria condição de vida. Também permitiu aprofundar o tema da
ideologia e sobre a própria essência humana); (4) Relações de poder e convivência entre
patrão e empregado (em destaque para as experiências vivenciadas na qualidade de
empregada doméstica, este eixo permitiu aprofundar uma análise acerca das relações
sociais no capitalismo, da alienação frente ao outro e a si mesmo, em torno da dominação
psicossocial e exploração econômica) (5) Perspectivas para o futuro (este eixo possibilitou
aprofundar a discussão sobre o fetichismo x busca por melhores condições de vida); (6)
Alternativas para redução da desigualdade social (este eixo permitiu aprofundar uma
análise sobre alguns aspectos relacionados à consciência política dos participantes, analisar
o que se compreendeu por transformação social, superação da alienação e capitalismo.
Também possibilitou o aprofundamento da questão da essência humana a partir da reflexão
de uma das participantes).
76
1. Trajetória profissional e de vida
Este eixo teve por finalidade contextualizar este estudo e introduzir as discussões
subseqüentes. Para tanto, foram selecionados trechos iniciais das entrevistas realizadas com
as duas profissionais da assistência social. Estes trechos tornam explícitas as formas como
ambas refletem sobre alguns aspectos de suas trajetórias profissionais, estritamente ligadas
às suas trajetórias de vida. Sobre este aspecto, foram relatadas conversas no contexto da
escola, estabelecidas entre o pesquisador e os dois pais de alunos, também participantes
desta pesquisa. Disposto uma caracterização geral dos participantes, observamos
similaridades dentre as condições de vida das duas profissionais. O mesmo ocorre com os
dois pais. Diferenças existentes e marcantes são mesmo observadas dentre as condições de
vida destes profissionais e destes pais.
Carla e Ana trabalham na CRAS e são profissionais concursadas pela prefeitura. Ao
contrário de Ana, Carla sempre quis trabalhar como profissional (assistente social) da
prefeitura. Ao discorrer sobre sua trajetória de vida e sobre como chegou a exercer sua
profissão, Carla relata ter encontrado dificuldades econômicas para atingir seu principal
objetivo: ser assistente social da prefeitura. Segundo afirma, ela conseguiu este feito por
meio de muito esforço (Carla), igualmente, com muito esforço, conseguiu se formar na
faculdade e passar no concurso público para a vaga que tanto desejava. Por isso, por ter
sido realizado um sonho, Carla gosta de sua profissão. Assim, ela coloca, quando
questionada sobre o que acha do seu trabalho:
Que eu acho do trabalho que....eu desenvolvo?! Ah.....eu me identifico muito
com ele! Foi a minha primeira opção na faculdade, sempre pensei em
trabalhar nessa área é.....acho que é um trabalho, assim, difícil, né, no
sentido que a pessoa sempre espera alguma coisa de você que vai resolver
os problemas dela, né. E....é isso! (Carla)
Nesta passagem podemos extrair duas hipóteses: que a colocação profissional de
Carla concretizou um sonho e que este sonho era ser uma profissional que pudesse
contribuir como acredita que contribui, para resolver os problemas dos outros,
especialmente os mais necessitados. Neste sentido, complementa:
Ah, pessoalmente é....eu...aquilo que eu falei, me sinto realizada, porque eu
tenho essa coisa de...de querer faze alguma coisa pelas pessoas.
77
É....profissionalmente também não é isso, né. A questão também de....da
cidadania, né, de ta.....de ta...assim...presente no mundo.....não ta alheia,
entendeu?! Você ta preocupada, né, com a situação das pessoas, ta
preocupada com o que ta acontecendo no....no....politicamente no Brasil,
né....ta preocupada com o desenvolvimento ai do ser humano....eu acho
muito....me sinto assim, muito bem....podendo ta envolvida nesse...nessa
linha (Carla).
Carla acredita que sua profissão pode ser uma via para ajudar as pessoas. Isso faz
sentir-se realizada, uma vez caracterizada sua profissão e sua área de atuação como
promotoras da cidadania, fato este fundamental para que ela possa sentir-se presente no
mundo, preocupada, né, com a situação das pessoas, (...) com o que ta
acontecendo....politicamente no Brasil (Carla). Em suma, sua profissão é a forma que ela
encontrou para tomar contato com a realidade brasileira e, mais do que isso, é uma maneira
de poder ajudar a melhorar o quadro social e econômico do país. Para Ana, sua profissão
também proporcionou satisfação pessoal e esta satisfação parece estar ligada à
possibilidade de ajudar os mais necessitados. Quando questionada sobre o que achava do
seu trabalho, Ana responde:
Eu gosto do meu trabalho! Acho que ele me traz uma gratificação. A pessoa
vai ter uma realização pessoal muito grande né. È uma área que...na minha
informação né...no tipo de formação que eu tive eu não imaginava trabalhar
(aponta para o chão)....foi acontecendo né...e hoje eu acho que assim....eu
não me imagino fazendo outra coisa....a não ser ta trabalhando né, na área
sócia (Ana).
Como vimos Ana afirma que trabalhar na área social é muito gratificante e
motivante para ela. No entanto, ela não pretendia trabalhar na área da assistência social, foi
algo que aconteceu casualmente em sua vida. A trajetória profissional de Ana foi resumida
por ela mesma, quando esta trata, de maneira sucinta, sua história de vida recente. Assim,
ela conta:
Olha eu tive minha formação em psicologia (...) Ai fui fazer mestrado nessa
área (...) de psicologia do trabalho (...). E ai eu tava dentro da universidade,
né...longe de casa, fazendo a UNB...tava em Brasília...fazendo meu
78
mestrado....tava trabalhando lá, em pesquisa...tava com um filho...uma filha
de meses...(...) Ai, assim, eu tive um período de estresse muito grande, falei:
chega! Larguei tudo e voltei pra casa (...) assim, (...) na perspectiva de
um tempo e mandar currículo pra todo lado (...) ai veio o concurso da
prefeitura...eu tava por aqui...eu fiz meio que assim: pra ver, vamo
como é que eu to, vamos treinar um pouco....não precisa estuda...passei. Ai
passei... (Ana)
E Ana continua:
Ai passei, comecei a trabalhar em núcleo de criança e adolescente, né(...)E
não...não conseguia entender o que é que um psicólogo tava fazendo ali,
porque assim: não conseguia entender mesmo, era meramente
administrativo (...) Ai, teve uma oportunidade de sair do núcleo e ir, na
verdade, entrar na ação comunitária, que tava começando né...ai me achei,
acho que me achei...fui ficando...acho que as coisas vão passando por
transformações...a gente tava numa luta agora de...podendo que estar,
provendo da...provendo da implantação do SUAS né...acho que o grande
marco ai de mudança da área social... (Ana)
Nesta passagem Ana refere-se à implantação do SUAS (serviço único de assistência
social) como um marco de mudança na área social (Ana). Este marco de mudança parece
ser coerente com aquilo que ela desejava que acontecesse na área da assistência e também
em sua profissão. A passagem do núcleo para a ação comunitária corresponde a um período
em que Ana saiu de um núcleo educacional, onde se limitava a exercer, segundo ela,
atividades administrativas e foi transferida para a CRAS, quando passou a poder exercer, de
fato, sua profissão. A ação comunitária possibilitou que Ana desenvolvesse sua ão
profissional e com o SUAS as condições tornaram-se ainda mais propícias, dado que ele se
apóia na dita ação comunitária, que na verdade é uma realocação institucional para que os
espaços de atendimento pudessem ser fisicamente próximos às famílias assistidas, com o
adendo da contratação de mais profissionais, que na maioria são contratados temporários.
O SUAS parte do princípio da universalidade, de que todos têm direito de usufruir
os serviços da assistência social. Para tanto a descentralização administrativa (lembrando
que a descentralização financeira é realidade no país e a administrativa, resultado da
79
primeira forma de descentralização, também existe em Campinas, mas sofreu alterações
com a recente implantação do SUAS) foi a forma encontrada para atingir esta meta, que
seria almejada a partir da contratação de profissionais (ainda que precariamente), melhoria
e reconfiguração dos espaços de atendimento e a divisão em distritos de assistência, para os
profissionais ficarem, como adiantamos, fisicamente mais próximos à comunidade (Luz,
2000). Em suma, as regiões de Campinas que contavam antes com uma coordenadoria de
assistência social centralizada, agora contam com distritos espalhados em uma mesma
região, dependendo das especificidades. Tudo isso fomentou ainda mais a dita ão
comunitária, tal como Ana pretendia e desejava que fosse.
A própria implantação da CRAS possibilitou a Ana exercer uma função específica
de psicólogo, o que a fez sentir que estava, de fato, dando sua contribuição junto à equipe
da intersetorial. Da mesma maneira, o foco na intervenção comunitária (segundo a visão de
Ana) adotado pela rede de assistência social na cidade de Campinas, permitiu que ela
desenvolvesse suas qualidades profissionais no âmbito das exigências específicas da sua
profissão. Assim, relata:
Eu sou psicóloga, né. Acho que a gente tem um trabalho comum, da equipe e
a minha função é exatamente trazer esse olhar da psicologia, ta dando um
outro olhar pro acompanhamento de famílias, pro....pra trabalhar a questão
de grupos, até pra dar um atendimento bem individuais a todos...um
suporte...nada clínico, mas assim, é a visão da psicologia
contribuindo....agora assim eu vejo contribuindo bastante, que eu não
conseguia ver quando eu tava lá no núcleo, né (Ana).
Conta Ana que, quando estava no núcleo, limitava-se a exercer uma função
administrativa, por outro lado, quando ingressou na ação comunitária passou a ampliar seu
campo de atuação, o que possivelmente contribuiu para que ela observasse as famílias
assistidas de uma outra maneira, em situações diferenciadas e sob outros pontos de vista.
Nota-se, na passagem abaixo, que Ana reconhece o clientelismo como marca da relação da
assistência social com a população atendida. Mas, em seguida, Ana coloca que esta relação
também é fomentada pela população, que se acomoda perante os benefícios.
Posteriormente, completando seu pensamento, ela admite que as famílias não chegam até a
assistência somente para suprir a necessidade financeira, mas também para suprir outras
80
necessidades, como a necessidade de um suporte psicológico, para enfrentar problema em
família, das drogas e tantos outros.
Acho que uma coisa muito marcada de vim em busca de benefício. É aquela
coisa....é um pouco a visão do....assistencialismo, né...eu vou pedi, eu vou
pra o que a assistente social pode me dá, (...) Mas com o tempo, acho
que eu devo ter começado isso...muitos anos aqui...essa é....acho que é um
pretexto pra vir, porque daí você consegue ver tantas outras...necessidades
das famílias entrarem, que elas vem....principalmente que vem uma, duas,
três, quatro vezes, começa a ...não é isto que a família ta procurando,
né. Ela ta precisando de uma orientação, ela precisando de um apoio...
(Ana).
Ao mencionar o suporte da assistência social, Ana exemplifica quais são estes
suportes e, para tanto, apresenta uma situação ilustrativa que atesta, inclusive, para a
maneira como Ana exerce sua profissão de psicóloga e quais os desafios no contato com a
população assistida. Assim, ela relata:
Ontem, duas vizinhas botaram o velho no carro e trouxeram ele aqui, né (...)
tipo assim: olha a situação dele...o que que a gente faz, não sei o que (...) É,
acho que é uma feita de ajuda, de possibilidades...concretamente, o que que
a gente oferece? Acho que é essa orientação, de busca: olha, então é uma
ajuda jurídica que você precisa? (...) Ou ééé...sabe, assim....questão das
drogas é uma coisa que tem muito, aparece muito isso...os filhos que tão
começando a entrar pro caminho das drogas e as mães ficam
completamente desesperadas, perdidas...então é escuta, é orientação, vamos
conversar sobre isso?... (Ana).
Como não poderia deixar de ser, os desafios profissionais estão inscritos na
qualidade da atividade social exercida, ou seja, neste caso, os desafios apontados por Ana
estão inscritos em um contexto caracterizado por um conjunto de atividades que podem ser
operacionalizadas no âmbito profissional, dentro dos limites da assistência social e da
própria psicologia. De qualquer maneira, o importante a suscitar neste momento é que os
desafios não podem ser compreendidos sem os limites, por isso, são evidentes os limites da
atuação profissional observados por Ana.
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Para Carla, a função principal dos profissionais da CRAS não se resume à promoção
da cidadania, mas essencialmente sua tarefa enquanto profissional é despertar nas famílias
assistidas o “espírito” da cidadania. Aqui, o objetivo de despertar as famílias assistidas para
cidadania também parece ocultar, ao fundo, uma visão messiânica de que somente pessoas
mais instruídas são capazes de mostrar o caminho certo para os menos favorecidos, sendo
que este caminho desemboca em um imediatismo de melhorar, de maneira pragmática, a
condição de pobreza. Ademais, este despertar para cidadania nem sempre se torna realidade
no contato com as famílias assistidas, conforme a passagem abaixo revela:
Porque eu assim sempre vi o meu trabalho, o nosso trabalho, muito pra
aquela pessoa, pra aquela família, né. Ele não é medido em quantidade,
né....ele é medido o quanto que a gente consegue na vida de algumas
famílias e...e...muitas a gente não consegue também, né. Vamos dizer assim
que, o que eu posso dizer que a maioria não consegue, ta! (Carla)
Nota-se que os limites do seu emprego ficam evidenciados nas dificuldades em
conseguir despertar nas famílias um espírito da cidadania. Aliás, Carla parece atribuir o não
sucesso de sua intervenção profissional, em grande medida, à incapacidade da maioria da
população em melhorar sua própria condição de vida. Embora reconheça que os programas
sociais oferecem pouco para as famílias assistidas, acredita que pobreza também é fruto da
acomodação dos pobres frente aos benefícios recebidos. Assim, destaca:
E o programa social, o que acontece? É....ele oferece muito pouco, né, pro
desenvolvimento dessa família, né. Ela precisa ter uma força maior dela
mesma, se ela num....num ter, se a gente não conseguir um click nela ai
fala: não, eu tenho oitenta reais, mas isso não vai mudar minha vida. Eu
tenho coisas que eu tenho que fazer pra conseguir não depender mais esse
dinheiro, então a hora que acaba o programa social é um desespero pra
nessas famílias que.....não tem essa.....essa força de ta procurando melhoria
pra própria vida (Carla).
E completa:
Bom, hoje em dia a gente se contenta, né, quando a gente consegue, em
algumas famílias é....diminuir o sofrimento de algumas famílias, com
algumas ações, né, com....aquilo que a gente tem de instrumento pra
82
trabalhar, né....e sempre com esse objetivo da autonomia da família,
resgatar essa autonomia, ela vai ter que batalhar, não vai ser fácil! É isso
que é difícil nessas famílias assumirem, entendeu?! (Carla)
Novamente Carla discorre sobre os limites de sua intervenção profissional com
vistas à promoção da cidadania. Por outro lado, reconhece acertadamente a importância das
famílias se envolverem e se engajarem em alternativas para melhoria de suas condições de
vida. Para Carla, a promoção da cidadania não pode ser realizada sem que as famílias
estejam alertas e conscientes sobre seus direitos, o que, segundo ela, não acontece com
freqüência.
Exercendo esta função, Carla tem contato direto com uma população de baixa renda
que vive em uma determinada localidade do município de Campinas e, segundo, ela:
Esse (...) contato acontece espontaneamente tanto quando as
famílias....é...procuram, né, nos procura.....não aqui, porque aqui a gente
ta trinta dias, né. É....ou através de algum acompanhamento, de algum
serviço, né. E....a princípio sempre a família vem em busca de alguma coisa
é....mais concreta, né, de necessidade básica dela, mas é....eu sempre
procuro ta além, né, de....na medida dos recursos você ta, né, facilitando
esse acesso (...) (Carla)
Nota-se que a relação com as famílias assistidas se dá tanto por iniciativa dos
profissionais, como por iniciativa da própria população, que procura estes serviços tendo
como objetivo suprimir suas necessidades mais básicas. Neste sentido, sobre sua relação
com a população assistida, Carla comenta:
E eu acho que eu tenho uma relação assim, com as famílias, uma relação
positiva, tenho vínculo... elas sentem, assim, eu acho que eu consigo
passar pra elas essa minha é....esse meu compromisso de
que....as...é....caminhem, né. (Carla).
Dessa passagem, atentamos para o fato de que, mesmo com as dificuldades, Carla
diz ter se encontrado profissionalmente. O mesmo ocorreu com Ana (ainda que não tivesse
planejado sua carreira profissional). Embora relatem diferenças entre as trajetórias de vida,
ambas trabalham no mesmo local, apresentam condições semelhantes de vida e vivem em
uma condição social razoável em relação à maioria da população brasileira.
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Ana e Carla apresentam condições similares de vida, ou seja, condições semelhantes
de empregabilidade. Também apresentam convergência na maneira como concebem a
profissão e como se percebem como profissionais da cidadania.
Similaridades também são observadas dentre os outros dois participantes desta
pesquisa, Maria e Caio que apresentam condições semelhantes de vida, porém, diferentes
em relação às duas profissionais da assistência social.
A família de Maria foi beneficiada por um programa de transferência de renda,
porém, atualmente, não é contemplada por nenhum programa social. Solicitou auxílio da
prefeitura quando nasceu sua primeira filha, período em que Maria encontrou sérias
dificuldades em conciliar o trabalho dentro e fora de casa. Trabalhando como doméstica em
uma casa de família, ela vivia a faltar do trabalho para dar atenção e cuidados aos filhos
(duas meninas que estudam na creche). Segundo relata, sua patroa passou a não mais
aceitar as faltas e as saídas antes do horário estabelecido. Maria conta que a patroa chegou a
duvidar da natureza de suas faltas e abstenções, alegando displicência da doméstica. Dessa
maneira, a relação ficou insustentável. Maria não suportou a falta de confiança e de
compreensão da sua patroa e optou por sair do emprego para dedicar-se integralmente às
suas filhas - essa foi uma decisão do casal, que o marido tem um emprego estável e eles
não pagam o aluguel, pois vivem na casa da sogra da Maria.
De qualquer maneira, Maria continua a trabalhar como diarista (antes o trabalho era
registrado) fazendo “bicos” em casas de família. Diz que não esta sendo fácil arrumar um
emprego e confessa que começou a pensar em arrumar um emprego fixo, uma vez que a
situação econômica está “apertando”. Maria conta que seu marido está fazendo uma obra na
casa deles para construir mais um cômodo, que a casa dispõe de apenas um cômodo,
mais o banheiro.
Em várias ocasiões em que conversamos (no contexto da escola), Caio também
expressou insatisfação a respeito das suas condições de trabalho e de vida. Descobri que
Caio havia saído da prisão poucos meses e que isto o atormentava. Caio relatou as
transformações que ocorreram na sua vida. Disse que a notícia de que teria uma filha deu-se
na mesma época em que foi preso. Quando saiu da prisão, sentiu-se mal na condição de ex-
presidiário, relata que tinha vergonha de sair de casa, o que acarretou em uma depressão
não queria mais comer, só pensava em dormir – e posteriormente em uma anemia profunda.
84
Caio ‘melhorou’ da depressão e foi procurar emprego. No momento da assinatura da
carteira de trabalho, o futuro patrão descobriu sua condição de ex-presidiário e não deu
prosseguimento aos procedimentos de contratação. Segundo relata, ele foi demitido antes
mesmo de ser contratado.
Atualmente, Caio trabalha em uma pequena empresa de lavagem de carros e realiza
trabalhos voluntários em um órgão da prefeitura, como condição para cumprir a pena em
liberdade.
Assim, enquanto Ana e Carla trabalham na prefeitura atendendo às necessidades da
maioria da população da cidade, enquanto técnicas contratadas pela prefeitura, Maria está
desempregada e Caio trabalha na informalidade (assim como Maria, por vezes). Ambos
encontram-se em situação oposta a destes técnicos: são aqueles que vão até a CRAS para
pedir e não para prover recursos, ou seja, são aqueles que concorrem a uma vaga nos
programas de transferência de renda, ou melhor, fazem parte da população carente que Ana
e Carla atendem.
A primeira diferença observada entre os participantes refere-se às condições de
emprego dos mesmos. Ademais da situação empregatícia diferenciada entre os
participantes, a função profissional de cada um deles também varia e essa variação
apresenta conexão com a condição de vida destas pessoas. Analisaremos a seguir as
diferenças e semelhanças das condições de vida dos participantes. Trata-se, na verdade, de
uma análise da percepção dos participantes sobre a desigualdade social, sendo ela
observada por meio das diferenças sociais existentes entre suas vidas e dos outros,
especialmente de um segmento social distinto.
2. Percepção da desigualdade social: diferenças e semelhanças entre as condições dos
participantes
Este eixo de análise possibilitou aprofundar a discussão sobre a amplitude do
fenômeno da desigualdade social, sobre o tema das classes sociais e conhecer aspectos
ligados à consciência de classe dos participantes.
Colocamos anteriormente ter reconhecido semelhanças e diferenças dentre as
condições de vida dos participantes. As impressões iniciais foram confirmadas na seqüência
dos discursos dos participantes. Uma das questões respondidas era: como percebem a
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desigualdade social em seus cotidianos? Veremos que Ana e Carla reconheceram essa
desigualdade por meio das diferenças dentre suas condições e as das famílias assistidas.
Também analisamos mais adiante que Caio e Maria reconhecem-se enquanto membros de
um segmento pobre da população. Em meio a esta caracterização que fizeram todos
participantes sobre suas próprias condições de vida, chamamos a atenção para a amplitude
do fenômeno da desigualdade social isto é, para a complexidade social com que ele se
manifesta e a historicidade deste processo.
2a. Classes sociais x segmentos sociais: percepção acerca das próprias
condições de vida e de outros
Todos os participantes foram chamados a refletir sobre como eles se percebem
enquanto membros de um dos diferentes segmentos ou classes sociais. Assim, Ana e Carla
olham para si mesmo e enxergam diferenças das suas condições de vida em relação às
famílias assistidas. Maria e Caio, por suas vezes, olham para si mesmos, definem suas
condições sociais e eles mesmos observam a desigualdade social manifestada na diferença
entre suas condições de vida e a das camadas mais abastadas.
Ana foi chamada para refletir sobre como ela percebia a si mesma enquanto
membro de um dos diferentes segmentos ou classes sociais. Assim, ela olha para si mesma
e enxerga diferenças entre sua condição de vida e das famílias assistidas.
Veremos agora que Ana tratou das diferenças e semelhanças entre suas condições de
vida e da maioria da população como um fenômeno histórico, por outro lado, notaremos
mais adiante que essa análise desemboca em uma concepção fragmentada do fenômeno da
pobreza. De qualquer maneira, em um primeiro momento, Ana parece reconhecer que as
diferenças sociais existentes remetem a uma compreensão da desigualdade social como um
fenômeno histórico, quando diz sobre sua condição de vida e do porque dela poder dispor
de uma condição financeira relativamente estável:
Assim, vem de uma situação....meus pais também eram....trabalharam no
serviço público, então eu tive condições de estudar numa escola particular,
de condição de ter....Naquela mesma situação: você estuda a vida inteira
numa escola particular, então chega na hora da faculdade você tem
condições de fazer uma boa faculdade pública, né. Uma boa pós-graduação
numa faculdade pública e ai vai....ai isso me deu condições também de
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passar na frente de um série de outras pessoas no concurso público, né.
Então isso me da a chance de ta aqui hoje.... (Ana)
Ana reconhece sua condição social privilegiada quando compara sua condição de
vida à condição de vida das famílias assistidas. No entanto, sem perder de vista a amplitude
da desigualdade social, Ana observa, diante de outras variáveis e de outros níveis
comparativos, que ela não é privilegiada, apesar de reconhecer que foi favorecida pelo seu
contexto de vida. De qualquer maneira, Ana não se reconhece como membro de um
segmento favorecido da população e coloca:
(...) Eu tava...eu tava falando isso que...que gerem a casa sozinhas e que
são sozinhas....são sozinhas pelos filhos e tudo mais. Aum tempo atrás eu
acho que eu me inseria...me igualava a elas. Hoje eu to numa outra situação
e casada e tudo mais, né. Mas, assim, eu inclusa né, nessas famílias
chefiadas por mulheres....hoje não. Eu to das mulheres acho que
trabalham, né, que batalham....e que se enquadra.....cem por cento ai das
mulheres que...que tem dupla ou tripla jornada né...e casa, filhos,
trabalho.....fora isso nenhum segmento especial assim...não...não...acho
que...to na faixa assalariada ai (...) (Ana).
Mesmo que existam semelhanças entre as condições de vida de Ana e das famílias
assistidas (o que reside no fato de não gozarem de um padrão de vida semelhante ao da elite
ou mesmo da classe média alta), Ana reconhece que vive de maneira diferente se
comparada ao modo de vida da população assistida e isto basta para caracterizar-se
enquanto membro de um segmento distinto, em relação a esta população.
Ana tampouco compreende a faixa assalariada como uma dimensão da classe
trabalhadora. Aqui ela trata apenas de uma camada econômica da população, sem qualquer
identidade política com outros segmentos de nível socioeconômico semelhantes ao dela
(outros segmentos assalariados, por exemplo) até porque, segundo ela parece compreender,
os segmentos sociais distinguem-se rigidamente uns dos outros. O segmento social é
compreendido pela constatação de diferentes necessidades econômicas, entretanto, estas
necessidades são compreendidas no plano imediato, sem qualquer conexão com uma
realidade social mais ampla, visto que, embora se identifique com parte das reivindicações
das famílias assistidas, a existência dos segmentos sociais, em sua forma de existência
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empírica, parece substituir a noção de classe social, que pretende compreender a
desigualdade de renda como resultado do modo de organização da sociedade e não como
resultado imediato da própria desigualdade de renda (compreendida em si mesma) que,
apesar de suas variantes concretas, não substitui a realidade estrutural da exploração
econômica. (Lessa, 2003, Ponce, 2005; Ridenti, 2001; Saes, 2003). Uma vez não
compreendida a dinâmica de exploração, fica difícil reconhecer a existência de classes
sociais, neste caso, a análise prende-se à naturalidade dos fatos. Assim, quando Ana
reconhece estar inscrita em uma população que goza de uma determinada faixa assalariada,
isto basta para que ela se considere, na imediaticidade do discurso, como membro de uma
faixa econômica privilegiada.
Ademais de uma análise fragmentada acerca da sua própria condição social, Ana,
por outro lado, atentando para a condição econômica das famílias assistidas, parece
reconhecer o impacto do aumento da informalidade e do desemprego para a maioria da
população do país, por isso é que ela se considera, de certa forma, como uma assalariada
privilegiada. Assim, as diferenças entre suas condições de vida e destas famílias são
observadas por Ana na passagem que reproduzimos abaixo, que é um trecho em que ela
trata das diferenças existentes entre sua condição de vida e a das famílias assistidas. Neste
sentido, ela expõe:
Acho que as posições são....as dimensões são outras . As exigências são
outras....eu tenho uma família...eu tenho uma situação que não vou dizer
confortável, mas eu tenho um emprego garantido, né. Então, de uma forma
ou de outra meu salário ta todo mês. Ai você vai dizer: ah ta bom, as
famílias assistidas também tem seu benefício todo mês. Por isso que eu
digo que as proporções são, mas algumas coisas acabam sendo suficientes,
né. Então, eu ter uma faixa salarial que nos condição, por exemplo, de ter
um plano de saúde (...) tenho uma situação que me a condição de ter que
fazer uma escola particular, né (...) Neste sentido, as dimensões, as
proporções são outras, mas, né...depende do lado que você olha. Eu acho
que, assim: as dificuldades são as mesmas pra todos que inseridos neste
país, mas as proporções são outras, como eu falei, é diferente... (Ana).
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Como observamos no trecho acima, Ana reconhece a desigualdade social como um
fenômeno relativo, ou seja, em relação aos pobres ela é privilegiada, mas em relação à
classe média alta, por exemplo, isto já não é verdade. Para Ana, a vida das famílias
assistidas e suas condições de vida representam duas dimensões distintas da realidade. Esta
demarcação está inscrita no modo de vida de cada segmento social. A situação familiar, a
escola, os estudos, a condição de trabalho, em suma, o modo de vida corresponde, em
grande medida, aos níveis econômicos da população e isso Ana parece reconhecer quando
identifica duas dimensões distintas que constituem uma mesma realidade. Uma análise dos
dados do IBGE (IBGE, 2000) e da ONU (UNDP, 2003), por exemplo, é reveladora neste
sentido: a carência de renda esta diretamente associada à falta de acesso a serviços básicos,
como a saúde e a Educação, por isso, o analfabetismo e o alto índice de mortalidade infantil
constituem parte da realidade desta população, ou seja, os pobres são aqueles que não têm
uma renda necessária para viver dignamente, o que se agrava com a expansão do setor
privado na área social, em detrimento da expansão e qualificação do setor público
(Euzébios Filho e Guzzo, 2007).
As dificuldades sentidas pela maioria da população estão retratadas pela luta diária
pela sobrevivência a qual os moradores da região próxima à escola estão submetidos
(Euzébios Filho e Guzzo, 2007; Guzzo, Lacerda Júnior, Gorchacov, Catani e Ito, 2002).
Trata-se de uma luta cuja principal característica reside na supressão das necessidades
básicas para sobrevivência.
Imersa em uma realidade de carência material, não diferente da maioria da
população brasileira (IBGE, 2000), Maria relata na passagem abaixo as dificuldades que
tem de enfrentar cotidianamente, bem como as formas de enfrentamento destas
dificuldades.
(...) Porque tem vezes também que agente passa apuro, assim, tipo: ah ele
vai receber daqui uns vinte dias, tudo. Ah não tem como pedir vale,
porque pediu e tal....então o patrão não num, né, não solta vale pra ele.
Ai....eu...eu do meus pulos e tipo é...eu cato é....se for preciso eu sair
daqui....é...eu ir...tipo até meu pai, né, que tem meu pai, ele sempre me
uma força, me ajuda, tudo, me ajuda. Quando num....não tem jeito eu cato
vo na assistência social, converso com ela (...) vocês podem me ajudar? Ele
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ajudam, né! Assim, da maneira que eles que eles podem ajudar eles
ajudam (Maria).
As dificuldades cotidianas deixam evidentes para Maria que são dificuldades
cotidianas típicas de quem se encontra em uma situação de pobreza. Assim, Maria
considera-se:
Pobre mesmo, porque, assim, pobre, mas é...é rico de....de saúde, né!
É....pobre porque, assim, tipo......é.....o que....meu marido ganha tudo,
agente bate cabeça aqui, ali, tal....dá pra poder agente,
né...é...tipo.....é....dividir certinho pras coisa: pra....pra comer, pra poder
beber, né, pra poder é....ter uma alimentação baseada, assim, pras menina,
pra poder pagar uma água, pagar uma luz, né... (Maria)
Como o poderia deixar de ser, Caio, submetido às mesmas condições de vida de
Maria, também se caracteriza enquanto pobre. Assim, ele diz: Olha a minha categoria é
pobre, vamos se diz assim: categoria. Mas eu num...nem acreditaria ser um rico não
(Caio). Ambas as compreensões reconhecem que o déficit das necessidades mais básicas
da população não é apenas “privilégio” de suas famílias, situação semelhante ocorre com a
maioria das famílias que ela convive diariamente. Assim, Maria observa:
Ás vezes a gente fica pensando, assim, por causa que agente o dos outros
agente acha que é agente, , que tá, assim, tipo no aperto e que
num....tipo agente nem anda pra frente nem pra trás, fica no mesmo
lugar, né. E é isso! (Maria).
Em um primeiro momento, Maria, assim como Caio, que o faz de maneira implícita
em seu discurso, analisa a similaridade entre a sua situação social e a condição de vida da
maioria dos moradores do seu bairro e da própria região. Posteriormente, iremos observar
que Maria atenta para o contraste entre a sua realidade e a realidade vivida por uma camada
econômica média e alta da população. De qualquer forma, ela reconhece similaridade entre
suas condições de vida e dos mais pobres, mas esta identidade, segundo o que
compreendemos no seu discurso, é estabelecida em um plano meramente empírico e não no
campo político e ideológico (Ponce, 2005; Saes, 2003).
De qualquer maneira, Carla reconhece que sua condição social é típica de uma
camada menos favorecida da população e, assim, coloca:
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Eu me caracterizo em termos financeiros, como classe baixa, ta?! Então
assim, é....acho que é a mesma, em outro, em outro patamar, né, é a mesma
reivindicação até de....das famílias que queria ter uma vida mais
tranqüila....financeiramente..... (Carla).
Para Carla, sua condição de vida em termos financeiros é similar às condições em
que as famílias assistidas estão submetidas. Esta análise poderia ser um primeiro indicativo
de que Carla teria uma consciência de classe “para si”, nos moldes de uma compreensão
política que reconhece as diferenças sociais dentro da semelhança das condição de vida de
uma classe. Carla analisa, entretanto, esta questão de modo fragmentado, ou seja, as
semelhanças não impedem, todavia, que sejam ocultadas quando Carla continua a refletir
sobre si própria enquanto membro de um segmento social. Em outras dimensões, que não a
financeira esta caracterização pode assumir novas formas.
Mas....é...é em questão de nível intelectual e tudo mais eu não sei se
existe essa caracterização, mas eu me sinto é....como classe média,
ta?! Eu estudei até um limite que eu pude....eu não
pude.......não....não tive condições de....poderia fazer um mestrado,
entendeu?! Poderia fazer outras coisas que eu não consegui chegar,
por conta de condições mesmo.....financeira e tudo mais. Então, eu
me coloca ai numa classe dia, acho que eu preciso estudar mais
(Carla).
Aqui observamos uma total confusão acerca do conceito de classe (baixa, média,
alta etc). Para ela, a questão que difere uma classe da outra é o nível intelectual, cujo nível
econômico é conseqüência direta. Esta compreensão atesta para uma análise fragmentada
da realidade, à medida que, excluída a identidade econômica de uma classe, não se
compreende a necessidade de uma organização política neste nível, como não é possível
reconhecer interesses comuns entre si mesmo e a maioria da população brasileira (Martín-
Baró, 2000; Ponce; 2005 Saes, 2003). De qualquer forma, para ela, existe possivelmente
um núcleo comum entre suas expectativas e as das famílias assistidas, que se resume a uma
vida financeira estável. Mesmo assim, esta semelhança não compreende uma identidade de
classe, uma vez que sequer ela reflete nesta direção, até porque a estabilidade é resultado da
ação individual, subjetiva.
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Nesta perspectiva, Carla prossegue a respeito das diferenças entre si mesma e as
famílias assistidas. Assim, quando questionada sobre se o nível intelectual da classe média
era superior, por exemplo, ao da classe baixa, Carla reconsidera esta questão e afirma que
não é o nível intelectual em si o fator que caracteriza ou não a condição de pobreza, mas a
compreensão de mundo. Assim, afirma:
Não...não....num....num acho até nisso, assim, sabe acho que....acho que
sim! Algumas pessoas, né, não vou dizer.....tem.....tem pessoas de classe
baixa como eu....eu acho que....estudar é muito importante, mas tem pessoas
também, por exemplo, conheço pessoas que não fez uma faculdade, mas ele
tem, né, consegue ter uma visão de tudo isso, uma questão de educação, uma
questão da escola que ele estudou, uma questão da família dele é....eu acho
que, eu não digo nem, posso dizer, acho que eu me expressei mal, não é de
estudar, mas de....de vel intelectual de....de compreensão de mundo,
entendeu?! Eu acho....sei lá (Carla).
Esta compreensão de mundo pode ser adquirida, segundo relato, por meio da
família, da escola e dos próprios valores passados de geração para geração. Carla considera
que tem essa compreensão de mundo necessária, isto é, capaz de justificar sua ascensão
social. Essa compreensão de mundo caracteriza-se pela consciência, da qual muitos não
dispõem, acerca dos desafios e das possibilidades que estão colocados para alcançar uma
melhoria de vida.
Mesmo a semelhança entre todos participantes, que reside no fato de serem
assalariados e não gozarem de um padrão de vida semelhante ao da elite ou mesmo da
classe média alta, Ana e Carla reconhecem que vivem de maneira diferente se comparada
ao modo de vida da população assistida. Estas diferenças entre as condições de vida de Ana
e Carla em relação à Maria e Caio, por exemplo, são notadas pelas primeiras, quando estas
relatam as diferenças entre as suas condições de vida e da população assistida. Estas
diferenças são observadas pelas distintas condições de empregabilidade, pela trajetória de
vida, pelas condições de moradia e o acesso aos serviços como saúde e Educação.
Ana utiliza-se do exemplo da assistência médica como forma de evidenciar a
desigualdade social existente, manifestada pela diferença entre sua condição de vida e da
maioria da população. Maria, por sua vez, também reconhece que a desigualdade social se
92
manifesta no campo da saúde e da Educação. Assim, as diferenças dentre os que podem
gozar do serviço privado e daqueles que dependem da assistência pública, evidenciado
como fator que contribui para acirrar a desigualdade social, ficam ainda mais evidentes
quando Maria relata o descaso do poder público para a supressão das suas necessidades
mais básicas. É a desigualdade social sentida cotidianamente e não apenas percebida.
Outro fator que, para Maria, reflete a condição social de cada família e, portanto,
constitui-se como um indicador da desigualdade social na região é a moradia. Sobre as
distintas condições de moradia e tratando de retratar os segmentos mais favorecidos, ela
diz:
Ah, a diferença é que a maioria tem casa, assim, tem, como que eu posso dizer?
É....é...ai meu deus.......ah, tem casa...é....tem cômodo....é....tem casa.....tem
casa....como que eu posso dizer? É...grande, né, tudo....(Maria)
Para Maria, ter casa e cômodos por si mesmo configura-se como elementos de
destaque e que evidenciam uma condição melhor de vida. Esta compreensão, assim como
Maria reconhece, é típica de quem vive em uma casa apertada, de quem busca estar
construindo mais cômodos para que suas filhas possam dormir em quartos separados e
possam também ter espaço para brincar em casa. É uma concepção típica também de quem
vive de favores (no caso, sua família depende dos favores da sogra e do próprio Estado) e
sob a ditadura das migalhas. Para Maria, outro indicador de uma boa condição de vida é a
condição financeira, assim ela diz.
Ah que, tipo, eles tem mais, assim, pelo que agente olha e aparenta de ver é
que eles têm mais condições, né, tem mais condições de vida, né...é....até de
criança na escola é...como que eu posso dizer? Trabalho também, né, a
maioria todos trabalha....é...possa...é...comprar material essas coisa pra
poder mexer na casa, reformar, né, e é isso! (Maria)
Para Caio, assim como para Maria, o dinheiro assume um papel fundamental para a
compreensão sobre quem é o rico e quem é o pobre, assim Caio define pobreza e riqueza,
quando diz que uma pessoa se diferencia da outra: Pelo fato do dinheiro né! Uma pessoa
que ganha 300 reais por mês e te que cata na rua pra comer e uma pessoa ganha 5 mil,
esbanja, jogar comida fora (Caio).
93
O elemento central que para Caio caracteriza a desigualdade social é a situação
econômica das pessoas. Para ele, a desigualdade social existe pelo fato de uns serem mais
pobre e outros mais ricos (Caio).
A condição de pobreza fica clara para Caio quando ele reflete também sobre as
condições de moradia da população Assim, ele considera que a desigualdade social reside
também no fato de alguns morarem em condomínio e outros em favelas. Caio caracteriza o
bairro onde vive como sendo uma favela. Apesar de ser asfaltado e composto por casas de
alvenaria e não por barracos, os moradores do bairro não possuem a posse da terra, vivem
em situação parcialmente ilegal e em condições de vida semelhantes às dos moradores de
uma favela. Talvez por isso, quando se refere ao seu bairro, Caio fala como se morasse em
uma favela. Assim, ele coloca que o fato de que alguns moram em condomínios (...) e os
outros morarem em favela (Caio) é um fenômeno que torna a desigualdade social aparente.
2b. Percepção sobre a desigualdade social: causas estruturais
No tópico anterior, partiu-se da percepção dos participantes para compreender a
manifestação da consciência de classe “em si”, como ausência de uma consciência de classe
“para si”. Notamos que a caracterização social e econômica que fazem de si mesmos e de
outros não ultrapassa uma compreensão imediatizada da desigualdade social, ou seja,
confundem a aparência deste fenômeno (expressa pela desigualdade de renda) com a
essência deste objeto (luta de classes). O problema é que o poder aquisitivo parece ser o
bastante para resumir a qualidade de vida e as relações sociais no capitalismo. O
capitalismo tem como base o intercâmbio de capitais e de dinheiro, mas este intercâmbio
não se reflete em uma relação estritamente econômica, senão que a economia é um modo
de organização em sociedade, um conjunto de relações sociais. Por isso, o dinheiro é a
conseqüência de uma organização social e não resume ela própria (Marx, 1844/2004c).
Os participantes não refletem ou não conseguem observar o dinheiro como
conseqüência, mas como causa em si mesma trata-se de uma compreensão que ofusca a
essência do objeto da reflexão (a desigualdade social) e toma a realidade imediata como
essência (desigualdade de renda).
De qualquer modo não seria justo dizer que os participantes são dotados de uma
visão estritamente limitada e fragmentada acerca da desigualdade social. Ana e Carla
trataram de caracterizar suas próprias condições de vida e das famílias assistidas e também
94
apontaram para questões fundamentais para a compreensão da desigualdade social, como,
por exemplo, quando Ana reconhece as diferenças históricas entre os segmentos sociais,
especialmente quando se refere às condições de vida de sua família como um fator central
que favoreceu, desde muito cedo em sua vida, sua trajetória profissional e de vida.
Neste tópico observamos que Ana, Carla e Caio atentaram para questões mais
amplas, quando buscam compreender as causas da desigualdade social. Assim, estes
participantes criticam, de uma maneira ou de outra, o quadro político atual. Todos os
participantes atentam para a responsabilidade do Estado e da prefeitura como instituições
que contribuem para a manutenção da desigualdade social.
Caio, por exemplo, ao ser questionado sobre porquê que existe a desigualdade
social, Caio diz:
Ai a gente vai entrar em um esquema de política, né, de governo, que não
o mesmo conceito de estudo pra o pessoal pobre da escola pública estadual,
do que numa escola particular, que a gente muito hoje é que numa escola
estadual você, por exemplo, não tem merenda pra todos (Caio).
A ação do Estado apresenta-se por um lado como necessária para que se reduza a
pobreza. Dessa forma, se os pobres pudessem usufruir uma Educação pública de qualidade
talvez eles não estivessem na condição em que eles estão. Por outro lado, a precarização
dos serviços públicos, como a Educação e a própria assistência social, se apresenta para
Caio, assim como para Maria e para Ana, como um elemento que contribui para a
manutenção do quadro de desigualdade atual. Talvez Maria e Caio estejam buscando
reconhecer a importância da Educação para a melhoria das condições de vida da população
pobre. Para Ana, a precarização da secretaria de assistência social também é um fator que
contribui para a manutenção deste quadro social atual.
Por sua vez, Carla reconhece que a vontade política contribui para a manutenção da
desigualdade social, assim, ela coloca que (...) a questão política é muito séria e a vontade
política, né, ela favorece isso, né.....é a corrupção, né (Carla). E completa:
Olha o bom seria que....que...ah... politicamente as coisas fossem diferentes,
né. Acho que ai as pessoas iam se sentir muito mais incentivadas, né, a
buscar, né, as coisas pra vida dela, mas hoje em dia, né, do jeito que as
coisa estão, né, o cenário político atual não favorece ta?! (Carla)
95
Para Carla o cenário político atual favorece e isto parece ser incontestável. De que
maneira favorece e como favorece isto talvez fique claro mais adiante, quando ela trata de
refletir sobre perspectivas para redução social. No momento podemos adiantar que, devido
ao fato de não reconhecer as classes sociais como estrutura do modo de organização social
atual, Carla, assim como todos os participantes, apresentam dificuldades para compreender
uma melhora efetiva do cenário político. Ao que parece, para resolver esta questão, a
promoção da cidadania parece ser a alternativa encontrada por Ana e Carla. Novamente
aqui parece se tratar de uma compreensão que entende a melhoria das condições de vida
como resultado direto da melhoria do poder aquisitivo das pessoas.
De uma maneira geral, os participantes demonstraram, de certa maneira, sem tocar
na questão de classes, que compreendem a desigualdade social como um fenômeno social e
histórico. Ana aponta para debilidade do Estado e da própria secretaria de assistência social
como fatores que contribuem para manutenção desigualdade social. Carla chama a atenção
para a desigualdade social como um fenômeno político. Maria atenta para falta de
organização do bairro e o descaso da prefeitura como dois elementos que contribuem para a
desigualdade social.
3. Desigualdade social e caracterização do pobre.
Vimos inicialmente como os participantes percebem as diferenças e semelhanças
dentre suas condições de vida e de pessoas de diferentes segmentos sociais. Em seguida,
passamos a compreender como os participantes explicam está desigualdade social sentida e
percebida em seus cotidianos. Em um primeiro momento, os participantes destacaram o
cenário político atual como principal elemento que justifica a desigualdade social.
Seguimos neste eixo por aprofundar uma análise sobre como os participantes
percebem a desigualdade social. Com isso, observamos que os argumentos (que parecem,
predominantemente, ofuscar os discursos anteriores) utilizados para justificar a
desigualdade social não tratam de aprofundar uma análise acerca das questões estruturais
(relacionadas ao cenário político atual) deste fenômeno. Pelo contrário: a tendência
observada neste momento é uma compreensão fragmentada da pobreza, que se reflete na
individualização dos fenômenos sociais e na forma como a ideologia culpabilização dos
pobres incide sobre o discurso dos quatro participantes.
96
Estes discursos poderiam ser considerados, neste momento, dotados de uma função
social similar às teorias tradicionais da personalidade, quando estas são aplicada para
ofuscar a dimensão histórica do fenômeno psicológico. Segundo González Rey (2003),
González Rey e Mitjáns (1989), a teoria de traços da personalidade, difundida pela
psicologia hegemônica, exerce grande influência nas análises do senso comum, que
propagam uma noção gida da personalidade considerando que a influência do ambiente
ocorre de uma mesma maneira para todos os indivíduos. Neste sentido, o fato de o pobre
não conseguir subir na vida ou cair na criminalidade apenas confirmaria uma tendência
natural deste indivíduo. Os traços da personalidade correspondem a um conjunto de
características estáticas que corresponde à individualidade do sujeito. Isso não significa que
os traços da personalidade representem características personalizadas: além de as
qualidades individuais serem compreendidas no limite da causalidade e não da
intencionalidade, os modelos de personalidade absolutizam o momento empírico, o que
exclui o sujeito do processo de análise. A teoria dos traços da personalidade limita-se à
análise da superficialidade, pois não estabelece como princípio a processualidade dialética
das relações sociais (González Rey e Mitjáns, 1989).
A linha tênue entre o mecanicismo e o idealismo é colocada à prova, ao passo que a
teoria dos traços da personalidade, logo que compreende o sujeito como reflexo do
ambiente, facilmente compreende a modificação do ambiente como fruto da vontade
individual (assim se explica o fenômeno da ascensão social por meio do “dom” ou da
capacidade de um indivíduo “excepcional”) (Séve, 1979a). Esta noção sobre a pobreza e a
riqueza é marcante na visão dos participantes sobre a desigualdade social.
A negação do sujeito pobre é uma das manifestações das relações sociais de
dominação e se propaga, dentre tantas outras formas, como um artifício ideológico que
justifica a desigualdade social pela “deficiência” individual de tal ou tal pessoa (Patto,
1997). Esta maneira de pensar a problemática da desigualdade social reflete-se no discurso
dos participantes, como vemos a seguir de maneira mais detalhada.
Retomamos aqui, por exemplo, a análise de Carla sobre suas responsabilidades
profissionais. Ela compreende que a promoção da cidadania não pode ser realizada sem que
as famílias estejam alertas e conscientes sobre seus direitos, o que não acontece com
freqüência. Este fator parece justificar, em grande medida, a existência da desigualdade
97
social, no entanto, ela explica este fenômeno de maneira fragmentada. Assim, a
acomodação dos pobres, a dificuldade que é para eles tomarem consciência sobre seus
direitos (de ter aquela compreensão de mundo a que ela se refere) e a dificuldade que é
fazer estas famílias despertarem para suas vidas, conforme analisa Carla, justifica-se,
principalmente, por uma suposta deficiência imanente dos pobres, no que diz respeito ao
fato deles não conseguirem, via de regra, proverem melhores condições de vida. Ademais,
o fato de não conseguirem melhorar as condições de vida, isso reforça o discurso da
culpabilização do pobre assimilado à maneira de Carla, o que resulta em uma análise, como
veremos a seguir, que omite elementos históricos que, de fato, determinam a condição de
pobreza.
A caracterização que Carla faz sobre os pobres não pode ser compreendida sem que
se compreenda a compreensão que ela tem de si mesma enquanto membro de um segmento
social. Esta análise é fundamental, pois observamos que Carla diferencia o pobre consciente
de sua capacidade, que, assim como ela, encontra força de vontade para melhorar suas
condições de vida, do pobre incapaz de encontrar essa força interna (Carla) e que, portanto,
é considerado, neste momento, como plenamente culpado pela condição social em que se
encontra.
De qualquer maneira, a compreensão de mundo a que Carla se referiu anteriormente
corresponde à compreensão de que é preciso um esforço individual para poder melhorar
suas condições de vida. Neste sentido, o simples fato de ter expectativa para o futuro
caracteriza-se, para Carla, como um fator preponderante para diferenciar sua condição de
vida (não necessariamente sua condição econômica, pois para ela, esta é similar à condição
das famílias assistidas), da condição de vida destas famílias. Para ela, o fator diferencial
parece ser o da compreensão de mundo, quer seja, o da consciência acerca da necessidade
de um planejamento familiar, de ter de correr atrás dos objetivos como estudar, trabalhar
etc. Segundo Carla, ter ou não essa consciência é algo que depende do indivíduo. Por isso,
nota-se na passagem abaixo que Carla acredita que a questão central que justifica a
manutenção da pobreza é a falta de planejamento das famílias assistidas em relação ao
futuro e essa falta parece ser atribuída somente ao indivíduo. Assim, quando Carla é
questionada sobre suas expectativas de vida, ela trata de se diferenciar das famílias
assistidas pelo simples fato dela ter expectativas em relação ao futuro, elemento que, para
98
ela, inexiste nas famílias mais pobres e isto justifica a condição de pobreza por si mesma.
Desta forma, ela coloca:
Ah eu tenho! Tenho expectativa, é importante você ter expectativas, ter
planos, né, acho que é isso que falta pra essa.....pra essas famílias, né. Essa
visão de futuro, eles vivem o dia a dia mesmo, né. Hoje eu tenho dinheiro
pra comer, hoje eu tenho a cesta básica, quando ela acaba eu não sei o que
vai ser, né. Eu não vou ter, eu vou ter que virar, né! Então, eu tenho planos
pro futuro (Carla).
Nesta passagem observamos uma generalização de experiências particulares, assim
Carla acredita que, como ela, quem formular planos e se esforçar para pô-los em prática,
consegue viver em uma melhor condição de vida. Para ela, a solução está no indivíduo e se
ele conseguiu melhorar de vida, por méritos individuais, é porque todos os outros podem
seguir, sem ressalvas, o mesmo caminho que, por sinal, parece ser o único a ser traçado.
Por outro lado, Carla utiliza-se de uma experiência profissional para realizar uma outra
generalização: a partir de algumas experiências com as famílias assistidas, ela passa a
acreditar que o pobre encontra-se nesta condição porque não se esforçou ou porque ainda
pode se esforçar para melhorar. O positivo (o sucesso) e o negativo (o fracasso) são, para
Carla, como que duas estruturas psíquicas internas, prontas para serem alavancadas por
indivíduos que seguem o caminho “certo” ou “errado”. Trata-se de duas tipologias
psicológicas distintas, dois modelos previamente estabelecidos cujo indivíduo adere
naturalmente (dependendo da natureza tipológica de sua classe) a um ou a outro sistema de
pensamento e comportamento (Freire, 1989; Patto, 1997; Séve, 1979a). O que Carla não
enxerga, neste momento, é que a mobilidade social é para poucos, o pobre que sobe na vida
não é regra e sim exceção. Além disso, por determinar a desigualdade social este esforço
individual é tido, por isto mesmo, como condição primeira de sua “redenção” econômica.
Para Carla, ela conseguiu sair de uma condição difícil, vivida no passado, pois foi
prudente o bastante para formular seus planos para sua vida e também devido à sua força de
vontade. Assim, ela coloca:
Ah, porque eu fui até onde eu consegui, né. Não deu pra conseguir mais, né,
pra frente do que isso, então, é.....eu tento que batalhar dentro daquilo que é
possível. Não me conformei com o que eu tinha, batalhei, consegui acho que
99
o suficiente, não é mais do que o suficiente! Então, eu acho que é isso (...)
Então, tem sido uma luta muito grande, né, mas, assim, nós não desistimos,
né. (Carla).
Carla parece justificar sua mobilidade social pelo fato de dispor de força de vontade
e de um projeto de vida. Trata-se de uma visão internalista e centrada no indivíduo
(Coimbra, 2001; Costa, 2005; Euzébios Filho e Guzzo, 2007; Martín-Baró, 1998; Patto,
1997) em que a falta de mobilidade social dos pobres atesta para o fato deles não disporem
de projetos de vida e daquela força interna (Carla) necessária. Aqui, a existência de um
projeto de vida parece ser reconhecida como o principal elemento que justifica a
desigualdade social. Na verdade, o projeto de vida em si mesmo parece configurar-se como
a condição única para a mobilidade social. As dificuldades concretas inerentes à realidade
das famílias assistidas são ignoradas ou relegadas a um segundo plano, muitas vezes esta é
compreendida desconecta da própria elaboração de perspectivas para o futuro, por parte
desta população.
A caracterização de ambas sobre as famílias assistidas não é de toda impregnada
pela ideologia dominante, uma vez que Ana, por exemplo, consegue descrever fielmente
esta população, caracterização esta que reflete, de certo modo, o modo de vida de Maria e
Caio:
É uma população de classe baixa, da pra perceber que é de baixa renda....que ta,
na maior parte, não ta inserida no mercado formal...de...vínculos assim, né. Não
consegue ter muita perspectiva pros filhos....que tem baixa escolaridade. Maioria
mulheres...chefe de família, né, sozinhas com isto, né, praticamente matriarcal
(Ana).
Trata-se de uma descrição rasa das condições de vida da maioria da população que
reflete, de fato, apenas a realidade material (imediata) destas famílias. A concepção
naturalizante da desigualdade social parece tomar corpo quando Ana busca justificar a
condição de pobreza das famílias assistidas. Na verdade, trata-se de uma caracterização da
pobreza, estabelecida com base em alguns argumentos que, tomada a percepção de Ana,
desembocam em uma compreensão a-histórica da desigualdade social. Os argumentos
centrais que atestam para este tipo de concepção, notadamente no que diz respeito à
justificativa da condição de pobreza, são evidenciados quando Ana trata: (a) da falta de
100
preparo para o mercado de trabalho; (b) do imediatismo das famílias assistidas e das suas
gerações anteriores; (c) da falta de planejamento familiar destas mesmas famílias e (d) da
falta de percepção do real por parte dos pobres.
Os argumentos que buscam justificar a condição de pobreza das famílias assistidas
refletem alguns traços da ideologia dominante de culpabilização do pobre (Coimbra, 2001;
Martín-Baró, 1998; Patto, 1997), a saber: (1) culpabilização dos indivíduos pelos seus
fracassos (veremos em seu discurso que a falta de preparo para o mercado é atribuída aos
indivíduos isolados); (2) discurso da competência (no caso da falta planejamento familiar,
como algo que atenta para a incompetência dos pobres de planejarem o futuro); (3)
desvalorização da figura do mais pobre (quando identifica a pobreza como algo não digno e
essa indignidade é imanente aos pobres, devido à incapacidade de “subir na vida”). Todas
estas características atentam para uma compreensão estática da essência humana e da
própria personalidade. Isso porque, tal como fica evidenciado ao longo do discurso de Ana,
ela compreende o pobre como sujeito dotado de características naturais, que parece
acompanhar este tipo de população desde sua nascença. Trata-se de identificar no pobre um
conjunto de comportamentos gidos que, por si mesmo, ou seja, naturalmente, são capazes
de justificar sua condição de pobreza. (Meszáros, 2006; Séve, 1979a; b; c). Assim, Ana
compreende a condição de pobreza apoiada em um misticismo, quer seja, naturaliza a
condição de vida das famílias assistidas em nome de uma suposta essência a-histórica e
predeterminada destas pessoas e essa concepção baseia-se em uma visão esteriotipada
acerca do pobre (uma concepção que atribui ao pobre uma personalidade abstrata,
idealmente concebida (Séve, 1979a) e que ocupa a centralidade de sua análise acerca da
condição de pobreza), que parece justificar, por si mesma, a realidade concreta desta
população.
Analisaremos a visão da Ana sobre as famílias assistidas, a iniciar por aquilo que ela
entende pela falta de preparação desta população para o mercado de trabalho. Sobre esta
questão, Ana coloca que a falta de preparo para o mercado de trabalho é um elemento
central que justifica a condição de pobreza das famílias assistidas. Segundo relata, esta falta
de preparo fica evidente desde a condição de higiene dessas famílias até a forma deles
falarem e se expressarem, o que não condiz com as exigências deste mesmo mercado de
trabalho.
101
E tanto é que assim: são pessoas que tão complemente despreparadas pro
mercado de trabalho. Não adianta falar: ah, se vira, vai fazer faxina, faz
não sei o que. Ás vezes, você...outro dia mesmo tinha uma pessoa assim,
tinha um profissional pra te ajudar, né. Ai peguei, ai fui perguntar...ai
peguei, perguntei assim: você contrataria ela pra fazer faxina na sua casa?
Não! Porque você acha que outra pessoa chamaria, né? Acho que vai desde
a aparência, da forma como você fala, da higiene pessoal...essas coisas
afastam as pessoas do mercado de trabalho. Afasta! (Ana)
Para Ana, a falta de preparo para o mercado de trabalho não é apenas uma questão
de higiene e da forma como a pessoa fala e se expressa. É também resultado do
imediatismo da população pobre, o que para esta participante está fortemente atrelada à
falta de planejamento familiar. Segundo Ana, a falta de planejamento familiar deve ser
compreendida como uma herança que passa de geração para geração, assim, ela diz:
Acho que as pessoas tão....tão habituadas a...as coisas vão acontecendo a
gente se vira, né....que assim: os filhos crescem e ai agente vai montando
cômodos aqui no fundo e....e....e.....acho que...........porque não é na verdade,
num...assim: agente ta numa sociedade que não oferece nenhuma
perspectiva eu acredito né....é as pessoas tem assim um....os próprios
adolescentes que trabalham com nós nas escolas, que eu atendo,
enfim....né....as famílias que acompanho.....não existe expectativa e isso é um
coisa da Educação, da formação....isso é uma coisa que....é transferida de
pai pra filho, assim. O que é transferido de pai pra filho é
o...imediato.....isso de geração em geração é o imediato pra essas famílias
(Ana).
De fato, o histórico familiar condiciona a condição de vida das gerações seguintes,
uma vez que ascensão social é privilégio de poucas famílias que, por intermédio de uma
ascensão financeira, conseguem livrar seus pares da condição de pobreza. Por outro lado,
esta situação caracteriza-se mais como exceção do que como regra. Ainda assim,
consideramos que o histórico familiar nos permite compreender a situação histórica de
pobreza das pessoas, mas, em primeiro lugar, esta situação não pode ser analisada de
maneira naturalizada, tampouco como fato que justifica por si mesmo a desigualdade
102
social. Na análise de Ana sobre as famílias assistidas, o histórico familiar aparece como
fator preponderante, mas, fundamentalmente, como fator preponderante da essência natural
do pobre, enquanto essência imutável passada de geração para geração, marcadamente
constituída pelo imediatismo, o que parece explicar, por exemplo, o fato das famílias
pobres supostamente terem muitos filhos para criar sem condições de sustento.
Tomada a pobreza como fato consumado, Ana parece compreender uma realidade
específica (que vivenciou com algumas famílias) como realidade absoluta, ou seja, em
outras palavras, Ana generaliza uma situação particular e estende esta compreensão a todas
as outras famílias. Mesmo assim, a generalização não se constitui, por si mesma, como um
problema. A questão é que Ana generaliza uma situação particular (a falta de planejamento
familiar ou a falta de preparo para o mercado de trabalho) e esta generalização serve para
ocultar (e não como tentativa de compreender) a totalidade do fenômeno que a análise da
particularidade, em si mesma, oculta. Para Meszáros (2006), a percepção alienada da
realidade configura quando generalizamos um fenômeno particular sem que esta
generalização seja feita em conexão com uma análise do todo, quer seja, sem que se
estabeleça uma relação entre o todo e as partes que o constitui. Neste sentido, a
generalização nem sempre é compreendida como algo negativo. Quando, por exemplo,
generaliza-se uma condição social específica com vistas a se identificar com uma classe
social portadora de uma realidade econômica semelhante, o fazemos analisando a
particularidade e a totalidade do fenômeno, avançando, assim, em uma análise não imediata
da problemática que se instaura diante de nossos olhos. Quando, por outro lado,
generalizamos uma situação particular para fragmentar ainda mais a análise do todo então
estamos diante de uma percepção alienada da realidade. A absolutização da realidade vai de
encontro a uma análise complexa desta mesma realidade. Segundo Meszáros (2006), a
totalidade não é tomada como uma simples generalização da realidade, uma vez que,
considera o autor, tanto mais a análise é rica quanto mais ela refletir as contradições de um
sistema complexo, suas variantes e especificidades e mais ainda: é preciso que se estabeleça
relação entre as diferentes dimensões deste sistema como parte de um todo, sendo este
compreendido não meramente a soma das partes, tal que se configura como uma realidade
histórica e ao mesmo tempo específica.
103
Apoiada nesta compreensão, a universalização do particular torna-se imperativa
para justificar, de maneira a-histórica e natural, o fenômeno da pobreza. Desta forma, a
passagem a seguir nos leva a crer que, para Ana, o que justifica a desigualdade social é,
principalmente, o fato de a população pobre não batalhar para melhorar de vida. Para Ana,
a maioria da população não se preocupa, de fato, em querer melhorar a vida. Para ela,
(...) O pessoal não ta fazendo nenhum movimento, né, neste sentido de...de
procurar um emprego. Você que é uma expectativa mais socialmente
imposta do que uma expectativa da pessoa mesmo. Eu tendo muito a
acreditar que não existem expectativas....que...que as pessoas estão vivendo
em função do...do dia a dia, né (Ana).
Mas, conforme Carla pondera, existem famílias pobres que parecem não estarem
imersas no imobilismo. Assim, ela diz:
Mas, tem algumas famílias que quando você atende você que ela tem
um outro perfil, né, que é as famílias que a gente chama de proativa,
né....que é a família que procura recursos pra....é progredir, né ai quando eu
falo é...é recursos é....é uma força mesmo interna que....também vem de
famílias isso às vezes, uma coisa que o avô passou pros pais... (Carla).
Para Carla, as chamadas famílias proativas parecem, no entanto, constituírem-se
enquanto uma minoria dentre uma maioria que vive acostumada em viver de benefícios e
acomodada pela vida que levam. Assim, ela complementa: Então....atualmente é....a
questão é.....da...de geração de família é.....é uma questão forte, entendeu?! (Carla) De
qualquer forma, Carla novamente pondera:
Nem culpo elas também, acho que... é uma questão também que....é
uma questão de educação, de tudo, né, é uma questão de
conhecimento, é uma questão de entender, né, toda essa engrenagem,
né, política....(Carla).
Como vimos, a questão política aparece no discurso de Carla como um elemento
que contribui para a desigualdade social, no entanto, este fator parece estar relegado a um
segundo plano, quando da análise desta participante sobre as famílias assistidas. De acordo
com Carla, o fator central que diferencia os que conseguiram subir na vida e os que ficaram
104
estacionados na condição de pobreza é a consciência de que é preciso melhorar de vida e
também a força de vontade, assim, ela diz:
Olha.....a gente pode falar em relação a nossa vida aqui do CRAS. Isso pode
ser diferente em outro CRAS, depende do nível socioeconômico, né, dos
outros profissionais, né. É...a única diferença é.....é que nós conseguimos ter
essa consciência de batalhar, de ir à luta, de buscar as coisas.....e isso a
gente tenta passar. Então, a única diferença que eu vejo é isso, ta! O pouco,
o que a gente conquistou foi batalhando muito (Carla).
Esta passagem nos leva a crer que, para Carla, o que justifica a desigualdade social é
principalmente o fato de a maioria da população não batalhar para melhorar de vida.
A falta de planejamento familiar, outro fator, volta a aparecer como elemento
característico da maioria da população, o que parece justificar plenamente a situação de
pobreza da mesma. Assim, Ana coloca:
Às vezes eu me pego pensando numas coisas, por exemplo: ah eu adoro
criança, porque eu não tenho mais filho? Ah, porque eu não tenho mais
filho? Porque hoje (...) eu to numa situação onde um outro filho envolveria
uma série de outros gastos (...)! E...e as pessoas não pensam (...). Então isso
é uma coisa que pega...que eu pensa assim: ah...se eu tenho filho eu quero
cuidar melhor, né. Elas não pensam assim: o que que eu posso oferecer pros
meus filhos? Então....que seja dois, ter, quatro, ou quantos vem....não existe
essa preocupação com o que vai ser com essas crianças mais pra frente. De
repente: ah tem uma vô, né. Então, eu tendo muito a acha que não existem
muitas expectativas (...) de mudança (Ana).
Para Ana, estas expectativas de mudanças não são reais, ou não são consistentes
uma vez que são baseadas em uma falta de projeto de vida das famílias. Dessa forma, Ana
complementa:
Quando existe é uma coisa de fantasia, né: ah eu queria ter uma casa, eu
queria....né...da tudo que meus filhos querem. Não é uma expectativa, não é
um projeto de vida...não é uma expectativa concreta! Muito por conta de
que questões...foi assim que essas pessoas cresceram também, né. Os pais
também não tinham um projeto, uma expectativa de vida. É assim: você vive
105
o presente, você vive o dia a dia de acordo com que o dia a dia te oferece
(...) Não sei se to assim...talvez....ainda não tenha conseguido, mas não
surge, não consigo achar estas expectativas lá no fundinho delas....não
consigo!(Ana)
Mesmo buscando no fundinho delas (Ana), a técnica da assistência social não
consegue achar as expectativas de melhoria de vida das famílias assistidas, talvez porque as
mesmas famílias têm plena consciência de que não vão conseguir melhorar de vida por
meio da ação psicológica ou assistencialista e, assim, desanimam, ou, talvez, porque o
próprio preconceito com relação à figura do pobre torna Ana incapaz de compreender as
reais expectativas dessas famílias. De qualquer forma, a percepção de Ana e Carla sobre as
famílias assistidas não parecem destoar, no essencial, da compreensão que Maria e Caio
fazem de si mesmos. A falta de planejamento familiar, por exemplo, também é tida por
Maria como um fator que justifica sua própria condição de vida. Assim, ela diz que não
conseguiu dispor de uma melhor situação financeira.
(...) Porque eu e meu marido tipo agente num planejo, né! Se a gente
planejasse primeiro ter nossa casa, tal....situação bem, né, bem controlada
tudo assim...podia ser um pouco mais melhor (Maria).
Nota-se que a ideologia dominante também penetra nas famílias de baixa renda de
maneira tão eficiente que as faz acreditar que a pobreza é fruto de questões individuais ou
familiares e nunca de uma questão estrutural e de fundo. De fato, a falta de planejamento
familiar não justifica por si mesma a condição de pobreza de uma família, no entanto,
Maria conta como este não planejamento acarretou em conseqüências danosas para sua
vida.
Ah, eu não tenho essa oportunidade porque eu...tipo...eu casei cedo, né,
tudo, eu tive um filho cedo...e....é.....num terminei os estudo, era pra poder
ter terminado num consegui terminar... (Maria).
As conseqüências da falta de planejamento do casal, no entanto, não justificam por
si mesmas a condição de vida de Maria. De qualquer forma, as conseqüências da falta de
planejamento do casamento dela foram muitas, a começar pelo fato de ela ter que parar de
trabalhar para cuidar das filhas. Maria, no entanto, sofre pressão do marido para que voltar
a trabalhar, bem como tem um sonho que é voltar a estudar, pois acredita que somente por
106
meio do estudo é que se consegue um bom emprego, o que ajudaria nas finanças de casa,
que é a principal cobrança do marido. Maria diz que não pode estudar, pois:
(...) Eu casei cedo, né, tudo, eu tive um filho cedo...e....é.....num terminei os
estudo, era pra poder ter terminado num consegui terminar, porque quando
que eu tava casada, tinha as menina pequena (Maria).
Para Maria, resta suportar a jornada tripla (casa, trabalho e estudo), a única condição
concreta de poder melhorar sua condição de vida. Essa compreensão de que tem de
submeter-se à tripla jornada de trabalho demonstra que Maria, de uma forma ou de outra,
está ciente de suas necessidades, da forma como suprimi-las e das dificuldades que tem de
enfrentar para melhorar a sua condição de vida. Dessa forma, o discurso da acomodação ou
da fantasia, que se utilizam Ana e Carla quando se referem às condições das famílias
assistidas, parece não condizer com a realidade vivenciada por Maria e por outras pessoas
que trabalham e estudam dia e noite para simplesmente conseguir sobreviver de migalhas.
Para Maria, no entanto, a melhora das condições de vida depende de vontade e do
esforço também (Maria). Além disso, reconhece que (...) depende de outros fatores sim
(Maria), tais como:
(...) Depende das, do marido, né, das minhas filhas...que eu penso
assim....é....agora que ta pequena a gente faz de tudo, a gente busca, a gente
faz de tudo, ai depois que vai crescendo as coisas vão mudando (Maria).
Os outros fatores que Maria acredita serem necessários para melhorar a sua
condição de vida não são fatores externos e, sim, mais uma vez, são fatores que remetem ao
esforço individual dela e da sua família. Apesar de Maria anteriormente ter destacado que a
redução da desigualdade social também decorre da falta de organização dos moradores do
bairro, este fator externo parece ser omitido quando a participante analisa os fatores que
contribuiriam para a melhoria das suas condições de vida. Assim, o que se observa é que,
apesar de lampejos de uma análise mais ampla sobre a realidade, o que impera (e isto em
todos os participantes) é uma concepção individualizada de um fenômeno social. Da
mesma maneira, apesar de destacar a questão política como elemento que contribui para a
manutenção da desigualdade social, Caio parece compreender o sucesso como sendo
pautado pela vontade individual e a inferioridade do pobre, portanto, afirma-se pelo simples
107
fato de ele viver na pobreza, uma vez que sua condição de vida da-se pela sua própria
incapacidade de ‘subir na vida’ e não pelas condições que lhe são impostas socialmente.
Quando Caio afirma que o filho de pobre e o filho de rico têm a mesma condição de
chegar a um lugar, ser doutor ou um médico como qualquer outra pessoa (Caio), ele
coloca duas questões: (a) de que obter sucesso é alcançar um nível de vida semelhante ao
do rico e (b) de que o fato de os ricos e os pobres terem as mesmas condições para a
obtenção do sucesso atesta para a incapacidade de os últimos obterem uma melhor
condição de vida. Assim, Caio segue sua argumentação a respeito do pobre e diz: Se a
pessoa achar que não dá, isso pra mim a própria pessoa já ta discriminando ela mesma.
Caio reconhece a capacidade de o sujeito pobre transcender sua condição imediata
de pobreza. Mas até que ponto esta argumentação não se caracteriza como uma
argumentação a favor dos ricos?
Veja o que diz Caio a respeito do porque ele acha que os pobres estão na situação
em que estão. Para ele, a pobreza é:
Problema da própria pessoa que acha que ela não deve acreditar ou se
deixar levar por pessoas que não esta no cotidiano dela, ela deve seguir a
carreira dela e não prestar atenção ao que as pessoas falam, ou deixam de
falar (Caio).
Assim, Caio justifica a pobreza não pela relação de exploração e pela dominação
ideológica, mas isso ocorre por problema da própria pessoa (Caio). Além disso, nesta
mesma linha de pensamento, Caio destaca: Ó, na minha opinião, é a força de vontade,
porque muitos pessoas se vê pobre e acha que não vai conseguir (Caio).
A meta de Caio é conseguir alcançar um padrão melhor de vida. No entanto,
enquanto não ascende socialmente, resta a ela conviver com a humilhação de ser pobre.
Para Caio, a humilhação decorre do fato de o próprio pobre sentir-se humilhado, mas isto se
justifica somente em termos da sua consciência individual e não pelo fato de a sociedade
valorizar aqueles que têm em detrimento daqueles que nada têm. Caio considera que essa
humilhação pode ser justificada pela própria consciência que o pobre faz de si mesmo,
como se a sua condição de pobreza fosse resultado somente deste processo.
108
A humilhação que incide sobre os pobres acerca do fato de viverem como vivem
parece não ter sido algo que somente Caio sentiu em sua vida cotidiana. Maria também
relata algumas situações constrangedoras em que se sentiu humilhada pela patroa.
A partir de agora, buscamos compreender esse fenômeno como decorrência: (1) da
própria condição social e econômica concreta em que o pobre se encontra; (2) da
caracterização dominante que se faz do pobre e (3º) da aceitação desta caracterização,
inclusive por parte dos despossuídos. Refletiremos a seguir sobre algumas experiências
relatadas por Maria e Caio que versam sobre as relações entre patrão e empregado, o lado
bom que eles avaliam desta relação, mas, sobretudo o lado perverso não apenas da relação
de emprego, bem como das relações sociais em diferentes dimensões da vida cotidiana.
4. Relações de poder e convivência entre patrão e empregado.
Este eixo discute como Maria e Caio refletem sobre as experiências
cotidianas que indicam relações de poder estabelecidas, principalmente, entre patrão e
empregado. A humilhação e a indiferença, ilustradas pelas experiências retratadas,
compreendem a qualidade das relações sociais no capitalismo. Palas informações que
dispusemos, podemos observar que a humilhação e indiferença com que são tratados são
tomadas para si (para Maria e Caio) como ofensas.
A humilhação sentida por Caio, seja na relação cotidiana entre pobres e ricos, ou
seja na relação entre patrão e empregado, pode estar relacionada à questão material e a
condição mesmo do pobre, sendo este considerado como um indivíduo de baixa renda
devido a sua própria incapacidade individual de “subir na vida”.
Para Caio a convivência entre ricos e pobres não se torna evidente somente em seu
cotidiano, visto que este fato está presente em toda a sociedade. Assim ele destaca que a
relação entre diferentes segmentos sociais ta no meu dia a dia, no seu dia a dia, no
cotidiano de todos hoje (Caio).
De todo modo, Caio reflete sobre a convivência entre ricos e pobres a partir do seu
cotidiano. Para ele, essa relação, que se insere no âmbito de uma visão preconceituosa da
pobreza por ele mesmo assimilada, pode ser expressa de uma maneira: a relação patrão x
empregado.
109
A convivência entre ricos e pobres pode ser analisada por meio da relação que o
patrão estabelece com o empregado. Assim, ele apresenta uma situação vivida por sua irmã.
Olha vou dizer pra voassim que teve um caso até com a minha irmã, que
a patroa dela disse a ela assim: vopode fazer comida somente para o seu
patrão? Então o faça muito! Ela pegou e fez pouca comida....a patroa
mandou ela embora porque ela achou que não...que deveria ter feito mais,
que na casa dela não tem economia, não precisa economizar. Sendo que
tinha uma pessoa pra comer, pra que fazer mais comida? Se ela fizesse
mais, ia jogar fora! Ela fez o tanto exato, que era só pra ele comer. A patroa
achou que não. Isso é um absurdo! Totalmente, é um absurdo! Não tem o
que dizer... (Caio)
Caio destaca a relação de poder estabelecida pelo patrão e que incide sobre o
empregado. Dessa forma, o patrão parece ser compreendido aqui como o sujeito rico que
manda e desmanda e isso parece se estabelecer como uma forma de justificar sua
superioridade perante o pobre. Assim, ele complementa sua análise sobre este fato, quando
questionado por que considera isto um absurdo.
Poxa se fizer a quantia exata, como os pobres costumam fazer, do almoço
faze a janta, né! Pra ter que economiza porque falta dinheiro, falta recurso.
A pessoa fazer poxa bastante comida pra uma pessoa só, sabendo que vai
ter que jogar fora, vai estraga, a pessoa não guarda pra janta, porque é uma
pessoa rica, que não economiza, isso é...desumano (Caio).
A relação entre patrão e empregado para Caio pode ser considerada, em certa
medida, como uma relação desumana pelo fato de que os ricos são desumanos. Assim ele
diz: Eu acho que a riqueza sobe a cabeça do ser humano e transforma ela em uma pessoa
desumana, vamos dizer assim (Caio). Em outras palavras, Caio parece compreender, à sua
maneira e em seu cotidiano, uma das formas de distanciamento do gênero humano
travestido de um individualismo exacerbado e uma indiferença perante os pobres (Lessa e
Tonet, 2004). Mas Caio não considera todos os ricos desumanos, trata-se de uma
desumanidade a nível pessoa. A bondade das pessoas parece excluir o fenômeno da
exploração. A respeito dos ricos, ele argumenta:
110
São poucos os ricos que são desumanos. Tem pessoas que tem dinheiro, mas
ela conquistou como a gente, então ela entende o porque da favela, porque a
pessoa tem começar realmente de baixo, não são todas que nasce num berço
de ouro né...num cesto de cetim (Caio).
A diferença entre uma pessoa que vem de ‘baixo’ e outra que nasceu em um “berço
de ouro”, como dizem, traz conseqüências para a forma como as relações entre ricos e
pobres se estabelece.
O fato de Caio considerar que são poucos os ricos que são desumanos (Caio), não
anula o fato de ele considerar, apesar das exceções, os ricos como sujeitos arrogantes e
indiferentes frente à pobreza. Isso ele sente em sua relação de trabalho, quando afirma que
várias vezes eu me senti humilhado (Caio). Essa humilhação é sentida no seu cotidiano e, a
respeito disso, Caio completa: O patrão acha que tem mais que o empregado sendo que é o
empregado que dá o dinheiro pra ele né! (Caio)
Caio parece compreender a irracionalidade do sistema diante da relação entre patrão
e empregado, à medida que a riqueza do primeiro é obtida por meio da exploração do
trabalho do segundo. Caio, no entanto, não se estende sobre esta questão. Ele reflete apenas
sobre a forma como os ricos vêem os pobres e considera que os primeiros apresentam uma
visão preconceituosa da pobreza. Assim, ele coloca que a relação entre pobres e ricos se
por interesse deste último na busca pela obtenção dos prazeres da vida cotidiana.
Ah, hoje com essa revolução, ah globalização mundial: droga, vício, balada,
clubes, bares, o pessoal se mistura um pouco, mas não que os pais aceitem,
o pessoal que vem da parte mais alta, vamos se dizer assim, do do
morro, o pessoal quer pegar drogas este tipo de coisa, não igualdade
nenhuma. Somente interesse (Caio).
A humilhação a que Caio se refere pode ser descrita pela relação utilitária que o rico
estabelece com o pobre, seja na relação entre patrão e empregado como meio de obtenção
da riqueza deste último, seja por meio da relação da obtenção da droga para a satisfação do
prazer individual.
A relação entre ricos e pobres passa a ser compreendida como uma relação mediada
pelos interesses dos primeiros sobre os segundos. Neste sentido, Caio avalia que a relação
111
entre estes segmentos sociais distintos fica limitada aos interesses econômicos e pela
obtenção do prazer dos ricos.
A humilhação que Caio sente nesta relação pode também estar associada à visão
sobre si mesmo, quer seja, à percepção que ele mesmo tem sobre os pobres. Isso se reflete
no fato de que Caio sente-se constrangido na relação com o rico e, neste sentido ele destaca
que se sente constrangido perto das pessoas e às vezes você não consegue nem conversar,
fazer uma amizade (Caio).
Esse constrangimento se expressa pelo olhar, pelo fato da pessoa passa do seu lado
e esnobar você (Caio) e ai é que está a contradição: Caio critica as pessoas que assumem a
posição de inferioridade frentes aos ricos, por outro lado, sente-se, de fato, inferior quando
os outros o esnobam ou o humilham, o que exerce impacto sobre a forma como ele enxerga
a si mesmo.
Esta mesma relação entre patrão e empregado, em que pese suas conseqüências
sobre a percepção que as pessoas fazem de si mesmas e dos outros, parece ser semelhante
nas análises de Maria.
Tal como foi dito anteriormente, a condição social de Maria não difere da de Caio,
assim, ambos parecem estar sujeitos aos mesmos problemas, especialmente no que se refere
à relação entre patrão e empregado e a percepção dessa relação.
Maria relata suas experiências enquanto empregada doméstica. Para ela, a relação
entre patrão e empregado é desgastada devido à própria condição social da empregada
versus a condição de patrão. Assim, ela destaca que este último trata mal o primeiro:
Porque, não sei...agente é empregada, né! Eles acham que empregada é...é
empregada, n, não é igual um patrão, né! (...) com visita ali, chega visita
tudo, eles fala: Ah minha empregada ta ai, você fala pra minha empregada
faze tal coisa pra você. Ai eu tenho, você tem que....tipo acata as ordem: Ir,
faze....e ainda é obrigada a leva pra pessoa, se você não leva, você é
mandada embora, ai você tem que....tipo acata, né, porque você é
empregada (Maria).
Desta passagem podemos extrair alguns aspectos para análise. Primeiro que Maria
parece estar acomodada diante do fato de a empregada ser tratada com indiferença pelo
patrão, o que se justifica pela própria condição social de cada um. Para ela, empregada é
112
empregada, né! Não é igual um patrão, né! (Maria). Por outro lado, ela tem consciência de
que tem de submeter-se às ordens do patrão, caso contrário é mandada embora (Maria).
Trata-se, portanto, de um lado, de uma submissão ideológica, que parece estar atrelada à
caracterização de inferioridade do pobre e, por outro lado, uma submissão de base objetiva,
que corresponde à sua condição concreta de vida.
É...é...porque é....tipo, assim porque....é....a gente fica, tipo....é....a gente tipo
não tem escolha, né, porque se você ta trabalhando numa casa, qualquer
lugar que votrabalhar você é uma empregada! Independente que for você
é empregada. Agora, tem lugar que votrabalha, que os patrões não
que você é empregada, que você ta ali só pra ajuda. Tipo, ele vai pagar,
mas você ta ali pra ajuda. Tipo, ele ta te ajudando pra...que vai te paga e
você ta ajudando ele que ta, né, cumprindo as orde, fazendo é....e limpando.
Mas têm outros que não (Maria).
Apesar da relação entre patrão e empregado ser marcada pela indiferença e
submissão, Maria relata uma diferença existente entre os patrões que a tratam como
membros da família e aqueles que a tratam como mera empregada. Assim, ela relata:
Mas só que tem uns que eu trabalhei já, principalmente essa ex-patroa
minha que eu trabalhei, que me tratava como se fosse da família, né. Tem
uns que tratam como se fosse da família, têm outros que não, que trata como
se fosse uma empregada mesmo. (Maria)
Para Maria, os patrões que a tratam bem não a tratam como empregada e aqueles
que a tratam mal tratam-na como você fosse uma....uma....como eu posso dizer? Uma
empregada! (Maria).
Em relação aos patrões que tratam Maria como se ela não fosse uma empregada e
aqueles que a tratam como mera empregada, ela completa:
Ah eu...sinto bem, né! Sinto bem! Fica a assim é...contente porque eu
chego em...assim, quando acontece eu chego em casa falo pro meu marido:
Nossa, olha tal....tal patrão me tratou tão bem, nossa me tratou como se
fosse da família e nada de assim, tipo assim, não fica te....é....vendo
diferença, tipo assim, tipo amparando: Ah é...ah ela é empregada? Então
ela vai ficar no canto dela, fazer o serviço dela... (Maria).
113
Para Maria, o bom trato dos patrões contribui para que ela mesma não se sinta como
empregada e sim como membro da família. Para ela, assim como Caio de forma menos
explícita que Maria - o bom tratamento parece ocultar o fato objetivo de que, mesmo sendo
tratada com respeito, continua a ser explorada. Assim ela relata:
Quando, assim, a gente não é empregada, o patrão não trata você como
uma empregada, trata você como da casa, tipo: Você ta limpando a casa
dele, você é uma empregada, que eles não trata como uma empregada,
trata como se fosse da família... (Maria).
Quando é tratada com indiferença e arrogância pelos patrões, Maria relata que
sente-se rejeitada e completa: Me sinto, assim, como se....a pessoa, assim, tipo....é...te acha
que você é um lixo, que você é um.....é....que você não é nada! (Maria)
Por outro lado, quando questionada sobre o fato de um patrão a tratar bem, se isso a
exime de ser mesmo uma empregada, Maria responde com firmeza.
Ai muda! Muda porque, tipo, quando um....um patrão gosta de você assim,
gosta do seu serviço, tudo, assim, te trata bem, você trabalha com ânimo,
você sabe, assim, você limpa a casa com aquele gosto de limpar, porque....ô
o patrão foi bom com você, tal....tudo, paga certinho, tudo. Agora, o
patrão.....que num.....que tipo.....não gosta assim da gente, a gente fica meio
chateada, a gente começa limpa a casa assim tudo assim, a gente não a
hora de termina logo pra ir embora, porque o patrão não foi com a sua
cara, o patrão não gosta de você, te trata mal, sabe?... (Maria)
Notamos que a humilhação e a indiferença na relação entre patrão e empregado são
sentidas tanto por Maria quanto por Caio. Por outro lado, Maria diz que se um patrão a trata
com respeito isso a exime de sua condição de empregada, fazendo com que ela suba ao
posto de membro da família. Caio, por sua vez, admite que nem todos os ricos são
indiferentes com os pobres e que isso também muda a relação entre eles. Ambos parecem
compreender suas posições sociais com uma falta de clareza a respeito da realidade mais
ampla, mas incomodam-se sobre a forma como, às vezes, são vistos. De qualquer maneira,
a causa disto parece estar atrelada à própria condição social dos pobres, que deve mesmo
ser tratado como inferior visto que não conseguiu, por vontade própria, “subir na vida”. Por
outro lado, outro fator que caracteriza a maneira como Maria e Caio são tratados é o
114
desprezo individual de um ou outro patrão e esse fato não decorre, para estes participantes,
da forma como são produzidas, objetiva e ideologicamente, as relações sociais de
dominação enquanto padrão de relacionamento da sociedade capitalista.
De qualquer maneira, Caio compreende a manifestação da desigualdade social no
âmbito das relações sociais, dessa forma ele compreende, à sua maneira, a desigualdade
social também a partir da distância existente entre os diferentes segmentos sociais, distância
essa observada em diferentes aspectos que não apenas o financeiro. Assim, Caio percebe
que os pobres e ricos vivem e estudam em locais separados e esta separação não se pelo
simples fato de uns serem mais ricos que os outros. Para Caio, a desigualdade social
manifesta-se no próprio padrão de relacionamento entre os diferentes segmentos sociais e
isso se dá devido à ética de muitos, que se acham mais que os outros (Caio).
A ética a que Caio se refere parece estar relacionada à maneira como os ricos tratam
os pobres. Esta ética parece refletir-se em determinadas situações, tal como ele relata
abaixo:
A desigualdade é muito grande porque muitos pais de colegas nossos que
são ricos não aceita, por exemplo, a nossa presença no ambiente deles. Eles
querem ter um cotidiano só pra eles... (Caio).
Tal ética a que Caio se refere reflete a moral burguesa de valorização do Ter em
detrimento do Ser (Tonet, 2002). No entanto, para ele esta ética o é fruto de um padrão
de relacionamento social instituído pela forma de organização social em que vivemos. Para
Caio, tal ética parece ser fruto da intenção de um indivíduo isolado - o problema é
individual, de um sujeito rico que se acha mais do que o sujeito.
Esta ética caracteriza-se pelo fato de que os ricos querem ter um cotidiano pra
eles (Caio). Neste sentido, Maricato (2003) afirma que ‘a segregação urbana ou ambiental é
uma das fases mais importantes da desigualdade social e parte promotora da mesma’ (p.
152). O fenômeno da desigualdade social pode assim ser caracterizado a partir das
condições de moradia e da região geográfica ocupada por um dado grupo social, que
cumpre um determinado papel na dinâmica de produção capitalista.
Segundo Caio, os ricos se distanciam propositadamente dos pobres e, por isso, se
ocupam em morar longe deles e em estudar em escolas particulares, por exemplo, restritas
somente às pessoas que têm condição de pagar o estudo dos seus filhos. Além disso, Caio
115
atenta para a questão de uns se acharem mais do que os outros no sentido de que os ricos,
provedores de uma condição financeira mais estável, são indiferentes ou preconceituosos
em relação aos pobres, pelo simples fato de eles serem pobres
.
As relações de opressão marcam a convivência entre diferentes segmentos sociais.
Isso gera um desconforto e uma angústia por parte daqueles que são tratados com
desrespeito e indiferença, o que gera também uma necessidade de usufruir uma condição
social mais favorável que os livraria da pobreza e, por “mérito”, estariam livres dos
preconceitos dos outros, pois, de fato, os participantes compreendem ao fundo suas
condições sociais como resultado da falta de vontade e despreparo individuais.
Sendo assim, visto que os participantes não estão satisfeitos com as suas condições
de vida, Ana e Carla porque querem melhorar suas condições profissionais e de vida e
Maria e Caio porque também querem melhorar de vida, mas, sobretudo, querem poder
conquistar o respeito dos outros, especialmente dos ricos, trataremos a seguir das
perspectivas que os participantes têm, tanto em relação às suas condições de vida, o que
passa pela redução da desigualdade social.
5. Perspectivas para o futuro.
Todos os participantes têm algumas perspectivas para a melhoria de suas vidas e
elas variam de acordo com a visão que fazem sobre si mesmos e sobre as suas condições
sociais e econômicas.
Quando vamos analisar as perspectivas das pessoas sobre as melhorias futuras das
condições de vida, é preciso salientar as diferenças que se estabelecem entre a vontade de
dispor de um melhor poder aquisitivo e o fetichismo da mercadoria. O fetichismo da
mercadoria não se trata de um fenômeno fragmentado, em que o problema maior é o
consumo individual e que, portanto, os culpados seriam os consumidores. Muitas vezes, a
necessidade de subir na vida remete-se a um melhor poder aquisitivo e não uma condição
de relação ativa ao capital. Trata-se de um fenômeno complexo em que, muitas vezes, os
indivíduos perdem o controle sobre suas próprias vidas, pois são obrigados a participar
desta dinâmica e, por outro lado, não podemos acreditar que não necessitam consumir (no
sentido mercantil) para sobreviver. Da mesma forma que muitas vezes não encontrar
alternativa senão vender sua força de trabalho, na esperança de dias melhores, é a solução
116
mais imediata na resolução dos problemas cotidianos que estão colocados para uma grande
maioria (Eagleton, 1997; Lessa, 2003).
Pois bem, não se trata de uma divisão mecânica entre o bem e o mal, é a dinâmica
capitalista em seu conjunto, não necessariamente o comportamento individual de cada um,
que evidencia uma situação de exploração e opressão, que incinde, especialmente, sobre a
figura do mais pobre, seja ele operário, trabalhador em geral, desempregado, etc.
Ao se referir ao fetichismo da mercadoria, no âmbito da dialética entre opressor e
oprimido (Freire, 1989) é importante situá-lo, mesmo que em linhas gerais, como sendo
parte da economia capitalista em seu conjunto, considerando os dispositivos ideológicos
que acabam por favorecer o fortalecimento e a dependência de uma classe sobre a outra,
uma vez que este sistema se desenvolve senão a partir da exploração e dominação de uns
sobre outros, em outras palavras: o capitalismo enseja um enfraquecimento da articulação
do sujeito com o próprio nero humano (em resumo: os valores do individualismo e da
competitividade impregnam de tal maneira que a esfera social mais ampla passa
despercebida, o indivíduo não mais se percebe e se reconhece para além dos seus interesses
individuais e mercantis) (Costa, 2005).
Neste sentido, não podemos enquadrar a visão dos participantes sobre seus projetos
de vida como visões marcadas pelo fetichismo da mercadoria. Mesmo tomando o padrão de
vida burguês como referência na elaboração das perspectivas para o futuro, devemos
compreender este processo não como uma aceitação cega ao consumismo, mas como modo
de sobrevivência e como a única alternativa posta a estes sujeitos, em especial para Maria e
Caio.
Para Caio, o pobre tem que seguir pra frente e ser uma pessoa, um cidadão ideal,
vamos dizer assim... (Caio) O que seria um cidadão ideal? Pergunta o pesquisador, ao que
Caio responde: Ah, como disse antes, correr atrás dos seus ideais, estudar, não importa
o que aconteça e é isso ai, procurar seus ideais e não se levar pelos outros (Caio).
Cidadão ideal para Caio é, em outras palavras, um cidadão que supera sua condição
de pobreza, a começar pela própria percepção que faz de si. Mas o conceito de cidadão
ideal também esta atrelado à idéia de ascensão econômica, o que também não seria de se
estranhar dado que se considera o indivíduo por aquilo que ele tem e não por aquilo que ele
é. Sendo assim, Caio sobre suas perspectivas de futuro.
117
Meu ideal...bom, currículo eu não tenho né! (riso) Mas eu queria ser um
psicólogo, psicólogo e músico. Esse é meu sonho né! Meu ideal....tem um
carro também, ter uma condição melhor de vida (Caio).
Ter uma vida melhor é ter um carro e melhorar seu currículo. Isso de fato reflete a
necessidade concreta que se coloca não apenas para Caio, como para a maioria da
população. Com um carro, o sujeito pode se locomover com mais facilidade devido
especialmente ao fato de o transporte coletivo ser custoso e problemático. Além disso, ter
um carro representa ter uma vida melhor, um currículo melhor qualificado também, pois
isto significa que, provavelmente, Caio teria mais opções de emprego e poderia exercer
aquilo que gosta.
Caio tem uma visão cida sobre sua condição de vida e sobre as necessidades que
estão colocadas socialmente. O fato de ele desejar fazer uma faculdade e ter um carro não
reflete por si mesmo que Caio esteja domado pelo fetichismo da mercadoria. Ser psicólogo,
ser músico ou ter um carro pode corresponder a uma compreensão realista acerca do
caminho para se alcançar uma vida melhor. Dessa forma, devemos diferenciar fetichismo
da mercadoria do descontentamento acerca de uma dada condição de vida. Esse
descontentamento é legítimo e essa legitimidade se exprime na própria vida de escassez de
Caio e da maioria da população brasileira, enquanto poucos neste país vivem em uma
situação de abundância. O fetichismo não se manifesta simplesmente no fato de um sujeito
expressar que quer mudar de vida (Eagleton, 1997). Ele começa a operar quando
conscientemente se adere ao modo vida burguesa (Duarte, 1999; Tonet, 2002). É evidente
que em muitos casos esta adesão nunca é absoluta e muitas vezes é confusa e irregular. Não
se trata, assim, necessariamente, de uma adesão proposital e planejada, tampouco de uma
adesão político-ideológica. O fato que queremos chamar a atenção é que, de toda esta
complexidade, o fetichismo da mercadoria muitas vezes nasce de uma necessidade concreta
e isto pode revelar um pouco da forma como se delineia um projeto de vida e da forma
como se compreende o cidadão ideal, que, no caso de Caio, certamente não é o cidadão
pobre. Caio compreende o cidadão ideal fora da pobreza e isso não é reprovável. O que
pode configurar um ponto de vista ideológico é quando este ideal representa um ideal
burguês de vida, mesmo que inconscientemente. Vejamos o exemplo de Maria.
118
No caso de Maria, quando questionada se gostaria de ser uma patroa, ela responde:
Ah eu....eu seria! Mas uma patroa boa, não uma patroa ruim! (Maria).
Não podemos também simplesmente compreender essa perspectiva como uma
adoração ao padrão de vida do patrão. De fato, o cidadão ideal para Maria, a exemplo de
Caio, é aquele que consegue por esforço próprio alcançar o posto do patrão. Por outro lado,
não se trata apenas de uma concepção fetichizada, uma vez que ser patrão é, de fato, ser
respeitado e também significa uma melhoria significativa (e objetiva) das condições de
vida, talvez a única via que eles visualizam para poderem melhorarem suas situações
econômicas.
Maria não parece estar totalmente descontente com sua condição de vida e, assim,
coloca:
Aí eu to contente sim, com a minha família, com, né....assim, não com o jeito
de...de vida que a gente vive, assim, financeira, né, porque...que desse pra
poder, assim, tipo melhorar um pouco, tudo, a gente faz pra poder melhorar,
né (Maria).
Maria gostaria de mudar sua condição de vida e isso não ocorre por acaso, ou por
uma mera introjeção da ideologia consumista. Trata-se de visualizar uma vida mais humana
em que se possa viver para além da luta cotidiana pela sobrevivência. Ao ser questionada
sobre se gostaria de melhorar e em quais aspectos, Maria prossegue em seu discurso.
(...) A principal que...mesmo, assim, que faltando pra gente, eu queria
possuir é...ter uma casa, que a gente ta na minha sogra, tipo....é dela! Né,
tal....é....eu queria ter um lugar, porque agente tendo, agente pode mexer,
agente pode fazer o que quiser, as meninas vai ter espaço pra poder brincar,
né. E é isso! (Maria)
Trata-se de expectativas básicas de melhoria das condições de vida: ter uma casa
própria para morar com espaço para as crianças brincarem, não depender dos outros e
assim, não estar sujeito às humilhações de ter de viver na casa de uma casa da sogra. A
respeito de suas modestas perspectivas de melhoria, Maria completa:
Assim, às vezes pra muitas pessoas assim como eu também não precisa
ganha....muito, não precisa ganhar muito! Você ganhando o suficiente que
119
pra você conviver é...com sua família, com o ritmo de vida que...que
agente leva, isso ai tá bom! (Maria)
Nota-se que as modestas perspectivas estão fortemente atreladas à visão que Maria
tem de si. Para ela pessoas assim como ela (...) não precisa ganhar muito (Maria). O
rebaixamento de suas expectativas parece, portanto, estar relacionado ao rebaixamento da
sua visão sobre si mesma. Assim, porque ela teria de pensar em conquistar uma vida
melhor se não estudou e se não planejou sua vida? Trata-se da ideologia de culpabilização
incidindo sobre a própria visão de futuro. Maria exprime nas passagens abaixo seus planos
para o futuro:
Não sei...........ah, penso assim comigo, né, meu futuro é de me te minha
casa, tudo, né. Pode cria minhas filhas, tem um serviço, um serviço bom, né,
assim, um serviço bom, assim: que...que...que você ganhe, tipo o serviço que
você faz você ganha por aquilo... (Maria)
Maria também tem um sonho:
Eu tenho! O meu é.....volta a estuda a noite, termina meus estudo
e.....e...realiza um sonho que eu tenho de pode faze é....estágio, né,
e....é...como pode dizer? Ser enfermeira! (Maria)
Tanto Maria quanto Caio fazem plano para o futuro. Maria quer voltar a estudar e se
formar como enfermeira para trabalhar e ajudar no sustento das filhas. Caio quer estudar e
se formar em psicologia ou música, e assim conciliar seu gosto à sua necessidade de ganhar
dinheiro. Como veremos adiante, Caio e Maria apesar de não estarem acomodados com a
situação em que se encontram, não atentam para soluções coletivas e tampouco encontram,
neste momento, caminhos que seguem em direção a uma vida melhor. Obviamente que
formar-se na faculdade, por exemplo, não depende apenas da vontade individual das
pessoas, pois como sabemos o ensino superior no país é um privilégio para poucos. De
qualquer forma, Maria e Caio almejam romper algumas barreiras sociais (em outras
palavras, ampliar seu campo de possibilidades) impostas nas suas vidas cotidianas, mesmo
que não tenham clareza de como podem fazer isso.
Maria e Caio enxergam possibilidades de mudanças em suas vidas, Por outro lado,
para Ana essas possibilidades são mínimas. Marcada por extremo ceticismo, tanto em
relação à figura do pobre quanto à situação política mais ampla, Ana demonstra na
120
passagem abaixo quais são suas expectativas em relação à melhoria das condições de vida
da maioria da população brasileira.
Acho que assim....é umas melhorias na situação de moradia.....problema do
lugar....entendeu? A legalização de alguns lugares agora.....que ainda não
tão, né. Situação meio precária de...de saneamento e tudo mais. Acredito de
que daqui dez anos as coisas vão ter melhorado. Vão ter melhorado, mas
assim....acho que as mudanças se ocorreram seriam pequenas e com poucas
pessoas (Ana)
Ana talvez tenha razão quando aponta as dificuldades que os pobres encontram para
melhoria das suas condições de vida, especialmente por compreender as próprias
debilidades políticas que o país enfrenta. Por outro lado, a desigualdade social parece ser
compreendida por Ana mais em função de uma suposta debilidade natural das famílias
assistidas, que encontra, ao fundo, uma concepção preconceituosa do pobre, do que uma
clareza acerca da forma estrutural como a sociedade funciona.
Ana, no entanto, se por um lado critica as famílias assistidas por uma suposta
imobilidade das mesmas, mas por outro lado parece não ter grandes expectativas em
relação à melhoria de suas condições de vida. Assim, ela coloca:
Não tenho...não tenho grandes ambições. Se me perguntasse hoje: você
gostaria de ter uma vida muito diferente da vida que você tem hoje? Eu
gostaria pelo menos que quitar minhas dívidas, né. Ah, queria ter um salário
melhor, não! Ah, assim....acho que pra viver, né. Da pra viver! (...) Não
tenho a melhor das profissões já e queria ter um carro tal e queria morar em
ta tal lugar. Não sou consumista a este ponto: ai eu queria, né. Não! (Ana)
Além disso, a exemplo dos pobres, que para ela estão nesta condição porque não
detém grandes expectativas profissionais, Ana também comenta sobre si mesma:
Profissionalmente, acho que eu....deixei um pouco, assim, acho....parei um
pouco de pensar nisso...não sei...to....você pergunto agora e....se tivesse
condições eu gostaria de fazer um trabalho paralelo......montar uma ONG,
sabe?! (risos) Uma coisa que eu pudesse me dedicar. É não sei......falam que
agente tem uma expectativa, talvez acaba não tendo muita, né.....(Ana)
121
As expectativas de Ana não parecem destoar, de maneira geral, das expectativas de
Carla, porém, esta estabelece alguma relação entre suas expectativas e as expectativas das
famílias assistidas e talvez isso ocorra, pois como anteriormente havia dito, suas
condições de vida assemelhavam-se as condições de vida desta população.
Apesar de considerar suas condições de vida semelhantes à condição de vida das
famílias assistidas, Carla expressa o que ela considera como sendo uma diferença
fundamental: a ausência de expectativa de vida por parte dos pobres. Assim, ela diz:
(...) É importante você ter expectativas, ter planos, né, acho que é isso que falta pra
essa.....pra essas famílias, né (...) Então, eu tenho planos pro futuro é....ter uma vida
mais tranqüila, né, ainda vou trabalhar muito pra demorar pra aposentar.....isso
não me preocupa, eu gosto de trabalhar, gosto do meu trabalho, meu filho termine
os estudos, essas coisas....passear bastante....viaja....um pouco (Carla).
Nota-se que a visão preconceituosa em relação às famílias assistidas perpassa todo o
discurso de Carla, até mesmo quando esta trata de suas expectativas de vida. Por outro lado,
essa percepção (que Ana também compartilha) não parece condizer com a realidade, visto
que Maria e Caio, por exemplo, não sofrem com ausência de perspectivas e sim com a
ausência de condições concretas para operacionalizá-las.
Tendo refletido sobre as expectativas de vida dos participantes, passaremos agora
para uma análise acerca da percepção dos participantes sobre as alternativas para redução
da desigualdade social.
6. Alternativas para redução da desigualdade social.
As percepções dos participantes sobre as alternativas para a redução da
desigualdade social carecem de uma perspectiva global de mudança da realidade. Essa
avaliação ocorre, pois os participantes referem-se somente a questões de ordem imediata e
individual. Trataremos no final deste tópico como esta falta de perspectiva de mudança
global se apresenta de maneira mais clara na visão de alguns participantes. O que podemos
adiantar é que esta falta de perspectiva global perpassa o discurso dos participantes,
exatamente por tenderem a compreender os fenômenos sociais como naturais ou como
frutos do sucesso ou fracasso individual. Sendo assim, as alternativas para redução da
desigualdade social podem ser elencadas em três subitens: (a) alternativas profissionais
122
para redução da desigualdade social: (b) alternativas comunitárias e (c) terceiro setor. Estas
alternativas expressam, de uma forma ou de outra, as conseqüências da falta de uma
alternativa global de mudança social e, assim, por fim, analisaremos como essa a falta de
alternativa global se expressa de maneira clara e evidente na fala de alguns participantes.
6a. Alternativas profissionais para redução da desigualdade social
Este tópico limita-se a uma compreensão sobre como Ana e Carla entendem que,
por meio de suas profissões, podem contribuir para reduzir a pobreza. De fato, tratamos
brevemente deste tema quando analisamos a percepção de ambas sobre suas trajetórias
profissionais, as dificuldades e desafios inscritos no âmbito da assistência social. Tratamos
agora com maior profundidade desta questão.
Tanto Ana quanto Carla parecem acreditar ser possível contribuir para a redução da
desigualdade social por meio de suas profissões. Neste sentido, criticam a forma como são
operacionalizados os programas assistenciais de transferência de renda. Ambas também
criticam o foco excessivo da assistência social na execução destes programas. Dessa forma,
a visão destes profissionais sobre as alternativas para redução da desigualdade social
reconhece a importância de encontrar melhores caminhos para a execução dos programas
assistenciais e também a necessidade de encontrar caminhos para garantir a
empregabilidade daqueles que procuram a assistência social.
Apesar de demonstrarem convicção do que fazem e o orgulho com que se referem
às suas profissões, Ana e Carla conseguem enxergar as dificuldades deste emprego e as
debilidades da área social incidindo diretamente na atuação prática do cotidiano
profissional. Assim, Ana coloca:
O que é ser profissional da assistência? Bom, acho que não da pra você
responde isso sem dizer que, assim, você ta numa secretaria de menos
recursos, né.... e que...você sempre trabalha com...o mínimo do mínimo (...)
Então é...você para pra pensar, poxa né....que secretaria pobre (risos).
Então, acho que não dá pra dizer o que é trabalhar sem você pensa nisso
(Ana).
O fato de reconhecer que trabalha em uma secretaria pobre parece ser uma
evidência de que Ana esta ciente das suas condições de empregabilidade e também das suas
atribuições profissionais. Para Ana, a desvalorização da secretaria de assistência social
123
configura-se como uma inversão de valores, quando para ela esta secretaria seria estratégica
para a promoção da cidadania.
Por que eu acho que não é valorizado. Não é um trabalho que status (...)
Eu acho uma inversão total de valores (risos). Eu acho que a assistência
social, ela...que pode pra agente não tem na faculdade a gente aprende
que tem na área....do serviço social não né, mas de psicologia...éééé a
base assim, as famílias que tão por aqui....você chegou agora e viu que ta
cheio de gente fora...eles precisam da assistência tanto quanto eles
precisam da assistência de saúde, tanto quanto eles precisam da escola pra
levar os filhos...não da pra monta uma hierarquia nisso, né. É um serviço de
base...por isso uma inversão total...de valores...acho que....não sei se é
possível mudar isto neste país, né. Ta invertido com certeza (Ana).
Se por um lado a inversão a qual Ana se refere contribui para que a secretaria de
assistência social continue pobre, o boom (Ana) dos programas sociais redirecionou as
atenções para o lado desta mesma secretaria: ela passou de coadjuvante a uma secretaria
estratégica, não para a promoção da cidadania, mas para a promoção do assistencialismo.
Neste sentido, Ana estende-se sobre a forma como são executados os programas de
transferência de renda, sendo mesmo este o foco principal da secretaria de assistência
social.
(...) dois anos, faço parte do grupo que ta estudando, agente ta
fazendo uma pesquisa sobre o impacto do renda mínima nas famílias, né, no
programa municipal (...) A gente ta falando de um programa, de um
programa com [interrupção] de transferência de renda, né. Apesar de ser,
né, pela lei, ser um...ser um...ser um direito daquela pessoa que ta
recebendo, acaba indo isso como um favor....um favor tanto pelo lado de
quem ta recebendo, como, infelizmente, na visão de muitos dos profissionais
que estão do outro lado viabilizando que a pessoa receba (Ana).
Ana segue com seu discurso e apresenta alternativas que para ela poderiam melhorar
a execução destes programas de transferência de renda. Assim, ela diz:
A assistência social da um dinheiro e não quer nada em troca, né. A pessoa
devia trabalhar algumas vezes na semana, né. Devia prestar serviço pra
124
prefeitura, devia fazer não sei o que, porque se você ta dando o dinheiro
você não...não incentiva a pessoa a trabalhar, muito pelo contrário, você
incentiva o ócio e um discurso todo neste sentido (Ana).
Apesar das críticas em relação às formas como são conduzidos os programas
assistenciais, nota-se que Ana não se incomoda tanto com o fato destes programas
constituírem-se como o foco do serviço prestado pela secretaria de assistência social. Para
ela, a questão central seria encontrar a melhor forma de viabilizá-los pela via de tornar o
benefício um salário por um determinado serviço prestado. Assim, ela completa:
Então esses programas de transferência de renda acabam sendo, né, meio
de muleta, assim: vou agüentar mais um pouco. Ah é um ano e meio o
programa? Ah legal, então por um ano e meio eu to segura! (Ana)
Nesta passagem, Ana trata a população assistida como uma população acomodada
com os benefícios que recebe. Ana reconhece, no entanto, que essa acomodação é fruto da
relação clientelista que o governo estabelece com a população de baixa renda e pela própria
forma como são executados estes programas, mas prevalece ainda em sua análise, uma
visão esteriotipada dos pobres, como aqueles que não saem do círculo vicioso da pobreza
devido à acomodação própria destes. Carla trata esta questão da mesma maneira: embora
reconheça que os programas sociais oferecem pouco para as famílias assistidas, acredita
que pobreza também é fruto da acomodação dos pobres frente aos benefícios recebidos.
Assim, destaca:
Bom, hoje em dia a gente se contenta, né, quando a gente consegue, em
algumas famílias é....diminuir o sofrimento de algumas famílias, com
algumas ações, né, com....aquilo que a gente tem de instrumento pra
trabalhar, né.... (Carla)
De qualquer forma, para Carla, assim como para Ana, a profissão é uma maneira de
ajudar os outros e também uma oportunidade de ser uma “profissional da cidadania”, além
da realização pessoal que isso gera. Dessa maneira, Carla segue relatando com suas
atribuições enquanto assistente social da prefeitura.
(...)A gente ainda tem....tem esse grande desafio que é...é que a população
perceba que o CRAS, né, o CRAS não é um local que ela vai ter acesso a
direitos de sobrevivência, né, que a questão da alimentação....que é a
125
questão de inclusão em programas, né, mas que ela tenha oportunidade de
se perceber como cidadão, né, que tem direitos... que tem deveres....lutar
por eles, né, pela comunidade esse é o grande desafio (Carla).
Para Carla, a função principal dos profissionais da CRAS é trabalhar para a
promoção da cidadania e também despertar nas famílias o espírito da cidadania. Neste
sentido, nota-se que Ana, por sua vez, apresenta discurso convergente e, assim, destaca que
o papel dela enquanto profissional é o de orientar as famílias assistidas e fazer com que elas
reconheçam seus direitos na sociedade.
(...) Acho que é este suporte que a assistência social pode ta dando....de
orienta, uma série de coisas, de...até de abrir um leque, propor: ó você tem
essas opções aqui, né. Ás vezes o leque não é tão grande assim, infelizmente
não deu certo, né. Mas, agente...tenta inserir a pessoa, assim ó: você ta aqui
nesse mundo e esse mundo oferece tantas coisas, porque as vezes as pessoas
não tem acesso nenhum mesmo, né (Ana).
Seja por meio dos grupos comunitários coordenados por psicólogos (ou por outros
profissionais), seja pelo atendimento individual realizado pelos assistentes sociais, de
qualquer maneira a população alvo da CRAS é a de baixa renda e sua função é buscar
suprimir suas necessidades mais básicas.
Nota-se nesta passagem que Carla, assim como Ana, acredita que, por meio da
profissão pode fazer avançar (...) a vida das famílias (Carla). Fazer avançar a vida dessas
famílias significa promover a cidadania por meio da inclusão em programas, por meio da
capacitação profissional e pela disponibilização de espaços de reflexão sobre a vida. Aqui o
objetivo de despertar as famílias assistidas para cidadania também parece ocultar, ao fundo,
uma visão messiânica de que somente pessoas mais instruídas são capazes de mostrar o
caminho certo para os menos favorecidos, sendo que este caminho desemboca em um
imediatismo de melhorar, de maneira pragmática, a condição de pobreza.
De qualquer maneira, as alternativas que os participantes enxergam para redução da
desigualdade social não se limitam ao campo profissional, mas também comunitário e da
parte da prefeitura. Ana acredita que, para que a população garanta seus direitos, é
necessário que exista uma organização comunitária mais coesa e ativa. Maria também se
estende sobre esta questão e estabelece algumas críticas acerca da forma como se organiza
126
a associação de moradores do seu bairro. Também, ela acredita que a prefeitura poderia
exercer um papel importante para a redução da desigualdade social, ou pelos menos dos
problemas mais imediatos que encontra em seu cotidiano.
6b. Alternativas comunitárias e da prefeitura para redução da desigualdade
social.
Este tópico buscou analisar, das informações que dispusemos das entrevistas, como
Ana e Maria, especialmente, compreendem a importância da ação comunitária, da
organização popular e das ações da prefeitura para redução da desigualdade social.
A percepção de Ana sobre as alternativas para redução da desigualdade social
perpassa pela noção de que existe necessidade de uma organização social mais consistente.
No entanto, o fato de não existir este nível de organização de fato nas comunidades da
região parece servir como mais um argumento em favor de uma compreensão, observada
no discurso de Ana em várias ocasiões, que remete a culpabilização do pobre.
Precisa organizar, né. E...e de busca mesmo e de propor, né. Ta propondo
programas pro poder público, pra própria empresa...que vai....se junta....ai
pede ajuda pro poder público e diz: ó nós estamos aqui, nós o desistimos,
nós temos que fazer alguma coisa. Ou tem uma visão....um projeto
próprio do que eles querem, ou assim: ó nós não sabemos o que a gente que,
mas a gente quer fazer alguma coisa, né, nós precisamos de ajuda, de
sugestão, de busca de idéia. Acho que tem que ser um movimento de todos
usuários, mas, enfim...acho que hoje é uma parcela pequena que consegue
ter essa visão... (Ana)
A conscientização parece ser compreendida como um atributo que a população
pobre carece, o que justificaria a condição de vida dessas pessoas. Por outro lado, a
conscientização é, de fato, reconhecida como um elemento importante, tratando-se de
alternativas para reduzir a desigualdade social. Carla também reconhece que a
conscientização é um fenômeno importante neste processo de mudança das condições de
vida, mas minimiza sua importância tratando esta questão de maneira secundária, visto que,
para ela, essa é uma questão meramente teórica, sem muita importância para a prática. Para
ela, (...) esta questão de transformação (Carla) é uma questão teórica.
127
Para Maria a transformação social é uma necessidade prática, assim, ela atenta para
a necessidade de melhor organização da associação de moradores do seu bairro, mesmo que
ela não traduza isso em ação política. Em primeiro lugar, Maria reconhece a associação de
moradores como um instrumento de ascenção social, quando coloca:
Mas eu acho que pode ser o presidente, né, do bairro mesmo....que talvez
pode te, tipo, acomodo e....não quer, né, tipo: ajuda na casa deles e pra
gente ali que somos moradores, né, ficam de lado (Maria).
Posto as críticas, Maria segue por propor soluções e, dessa forma, ela coloca que
seria necessário
(...) Junta todo mundo, né?! Assim, tipo assim: fazer uma reunião, junta todo
mundo, conversar e entrar em acordo com todo mundo ali, tudo e cada
ajudar como pode, né, cada da um pouquinho pra poder ajudar, porque
aqui....todos cooperassem com isso, ai ia...já solucionava, assim, um
pouco do....como é que eu posso dizer? È...um pouco do problema (Maria).
Sobre a prefeitura, Maria acredita que:
A prefeitura também que ajudasse também....até o....a...a asfaltar, ! Que
todos moradores catassem, conversassem, fossem naquela...é...fosse na
prefeitura conversar com eles tudo,né, entrar num acordo pra poder asfaltar
a rua.... (Maria).
Como podemos observar, Maria compreende que a prefeitura tem o papel não
necessariamente de reduzir a desigualdade social, mas de suprimir algumas necessidades
básicas da maioria da população do seu bairro. Ana, por sua vez, apresenta uma visão mais
cética quanto à possibilidade de o poder público contribuir para promoção da cidadania.
Lembremos que Ana havia dito que a secretaria da assistência social é pobre e a
impossibilidade de mudar esse quadro seria tão grande quanto seria impossível mudar algo
que é natural. Somado a isso, uma falta de perspectiva de mudança, tanto para sua vida
quanto para a vida das famílias assistidas. Assim, Ana não acredita, por exemplo, sequer na
possibilidade de empregar todos os adolescentes que tem contatos. Para ela isso seria uma
utopia (Ana).
Para Ana a própria via institucional pública não daria conta de suprimir todas as
demandas das famílias assistidas. Isso seria totalmente tomado como natural. Assim, o
128
caminho que Ana encontra para buscar contribuir para melhoria de vida da população é o
terceiro setor.
6c. Terceiro setor.
Ana, quando questionada sobre os caminhos para melhoria das condições das
famílias assistidas, diz sem hesitar: Eu colocaria acho que a iniciativa privada ai,
entendeu?! As grandes empresas e tudo mais (Ana). E justifica essa afirmação pelo fato das
empresas estarem preocupadas com a responsabilidade social. Assim, afirma:
Acho que...eu acho assim: as empresas hoje em dia, algumas, têm uma
preocupação e as que não tem pelo menos tem uma exigência de que tem
uma preocupação, né...social. (Ana).
Além disso, Ana acredita que todos teriam de contribuir para reduzir a desigualdade
social e, assim, conclui com um exemplo sobre uma experiência para ela bem sucedida no
que diz respeito à colaboração mútua de todos os setores da sociedade neste sentido.
A iniciativa privada doa alguma coisa, o poder público entra com essa
coisa, a população entra com outra coisa, como eles têm tentado fazer umas
cooperativas, né. Tem uma cooperativa de reciclagem que eu...que eu
acompanhei um pouco mais de perto no início da formação, mas ela era
assim: a prefeitura dava algumas coisas e ai tinha parceria com algumas
ONG´s que, então, separavam material, né, pra doar pra eles e...se não for
isso não existe exigência, não existe esta parceria (Ana).
Em primeiro lugar, Ana oculta as responsabilidades do poder público na execução
de políticas sociais. Em segundo plano e não menos importante, Ana crê na parceria
público-privado como fator decisivo para aumentar o poder de ação dos agentes sociais,
uma vez que o setor público parecesse sofrer de uma debilidade “genética” que lhe impede
de ser amplo e eficiente. Em terceiro, o discurso da colaboração mútua disfarça o motivo
dessa não colaboração, que é devido a uma questão de classe e não meramente de boa
vontade e piedade perante o próximo. Trata-se, portanto, de mais um exemplo da forma
como a ausência de um projeto de mudança estrutural se expressa na fala dos participantes.
Veremos isso com mais detalhes.
129
6d. Ausência de um projeto de mudança global da sociedade.
As alternativas encontradas para redução da desigualdade social expressam, de uma
maneira ou de outra, como o sujeito se aproxima das questões ligadas ao gênero humano, o
que seria ou não parte de um processo de tomada de consciência no nível do gênero
humano “para si” (Duarte, 1999). Ser parte ativa e não passiva do gênero humano é um
processo que envolve necessariamente a tomada de consciência histórica entendendo o
quanto é decisiva a participação efetiva de todos aqueles que intervêm no contexto social
em que vivemos com vistas à preservação da integridade do próprio gênero humano e
mesmo para evitar a extinção da própria humanidade e da natureza, que estão sendo
ameaçadas de extinção pelo capitalismo o que figura um nível de extrema alienação em
relação ao gênero humano (Meszáros, 2006).
Por análise estrutural da realidade compreendemos aquela cujo imperativo é o
recorte de classe, ou seja, uma análise que identifica, prioritariamente, a realidade do
sistema produtivo como eixo fundante da alienação e desumanização das relações sociais,
de si e dos outros (Hirano, 2002; Martín-Baró, 1998; Meszáros, 2006; Lessa, 2003; Tonet,
2005). Por isso, por não identificar resquícios de um recorte de classe no discurso dos
participantes, suas percepções sobre as alternativas para a redução da desigualdade social
carecem de uma perspectiva global de mudança da realidade.
A ausência de uma perspectiva de mudança estrutural da realidade se mostra
evidente na própria caracterização que Ana e Carla fazem sobre as famílias assistidas e nas
análises de Maria e Caio sobre suas perspectivas de vida e para redução da desigualdade
social. Em segundo lugar, esta ausência ficou evidente quando Carla expôs sua percepção
sobre o que seria a conscientização, limitando este fenômeno ao seu plano meramente
individual. Em terceiro, a limitação de sua percepção, sobre as alternativas para melhoria
do quadro social e econômico em que vivemos, mostra-se em definitivo quando trata da
transformação e da própria conscientização como questões simplesmente teóricas, presente
somente no mundo das idéias. Em quarto, esta ausência de um projeto global fica
evidenciada quando observamos que Ana e Carla identificam a via da cidadania como a
única responsável para trazer dignidade às famílias assistidas. Uma crítica em relação ao
limite da cidadania, que é, em última instância, caracterizado pelo evidente limite da
sociedade capitalista em prover condições dignas de vida para a maioria da população
130
(Tonet, 2002; 2005) não é efetuada por Ana e Carla. Talvez tudo isso reflita uma análise
pessimista da realidade, caracterizada por certo ceticismo quanto qualquer mudança mais
ampla na sociedade, pico do idealismo (Martín-Baró, 1998; Meszáros, 2006; Séve,
1979a). Este ceticismo esconde por trás uma visão fatalista da realidade, de que nada pode
mudar e que o que vivemos é fruto de uma fatalidade do destino.
Trata-se (dentre todos os participantes) de um reflexo da consciência política média
de um indivíduo que vive a atual conjuntura brasileira, onde o refluxo dos movimentos
populares e partidos de esquerda é evidente, onde assistimos há pouco tempo uma completa
desarticulação da esquerda, onde a população é esmagada pela necessidade da
sobrevivência, o imediatismo e a busca pelo prazer individual imperam sobre a
preocupação e a organização coletivas.
Em um primeiro instante, a frase trazida abaixo parece contradizer aquilo que
acabamos de afirmar: que Ana, bem como os participantes de uma maneira geral, carece de
refletir sobre um projeto de mudança global e que sua análise fica presa nas questões
particulares. Na referida passagem, Ana atenta para a dimensão estrutural da desigualdade
social. Assim, discorre:
Ai eu acho que, assim, se tivesse uma......uma fórmula de resolver
isso....assim...já teria....já estaria resolvido.....e não existe também um
interesse junto... conveniente ter, né, uma parcela da população dependente
e....sem entrar em questões partidárias, mas assim....isso rende voto, né. O
candidato bonzinho oferece uma série de programas sociais....é...acho que a
gente....o mercado capitalista, o sistema capitalista convém que exista uma
população, sabe?! É conveniente manter uma faixa da população assim, é
conveniente manter também uma outra faixa da população endividada,
pagando juros no banco, por exemplo, como a minha faixa, né. o sei se a
gente caminha pra uma mudança, não. Sinceramente (Ana).
Ana parece ter clareza sobre as causas fundamentais da desigualdade social. Por
outro lado, afirma:
Não tinha pensado, outras eu não tenho....não tenho uma solução clara, a
porque se eu tivesse uma solução, acho que ia ganhar o premio Nobel de
Economia....da área social (risos). Sei lá. (Ana).
131
Ana também diz não ter uma solução clara e afirma claramente que muito difícil
uma mudança global. Assim, ela diz:
Você concorda, você é...pode até mudar, né, consegui que algumas famílias,
que uma comunidade, né...né....que um bairro, sei lá....é...consiga evoluir em
algumas coisas eu acho. Ter uma participação melhor...é...politicamente, na
mudança do bairro, no asfalto, na praça, essas coisas, né, que a gente tenta,
né, mas.....se a gente for pensar numa visão assim muito global, né, de...de
Campinas, de Brasil......eu acho muito difícil!(Ana)
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Ana afirma:
Muito utópica se eu dissesse que agente tem que....mudar a distribuição de
renda deste país, né. Romper com este capitalismo, assim...acho que eu não
vou tão longe assim não.....acho que seria muito...só ideológico....acho que
eu vou ficar devendo pra você uma resposta assim nesse sentido... (Ana)
Ao ser questionada sobre o quanto seria utópico acreditar no fim do capitalismo,
Ana responde:
Eu acredito na visão do direito, né. Aquela ali, aquela, aquele dinheiro vem
de um dinheiro que é arrecadado, que é do país e que é de todos e que as
pessoas tem direito a ele, né. Então...eu acho que o que gera essa
dependência não é isso...é que acaba sendo a única alternativa destas
pessoas, né (Ana).
Se Ana diz crer na visão do direito, mas por outro lado, crê que melhorar a condição
de vida da população ou é utópico ou é quase impossível, podemos afirmar que as
perspectivas de transformação social, se existem, são muito confusas em Ana.
Para ela, mesmo que inconscientemente, parece que os obstáculos objetivos para
melhoria das condições de vida são intransponíveis, talvez porque os considere típicos da
natureza humana. Assim, o individualismo e a competitividade seriam explicados como
uma manifestação natural da essência humana. Ana não coloca isso, embora reconheça que
é utópico qualquer tipo de mudança. Carla, por sua vez, atenta diretamente para esta
questão, quando diz:
Acho que....é uma....é a ganância do ser humano, né. É....é uma coisa que já
vem já...dos tempos primitivos, né, aquelas coisas de rei, rainha de não sei o
132
que, de pobre ter que ser pobre e...isso foi evoluindo. Eu acho que é....de
certa forma eu vejo como um atraso do ser humano, né...não acho que é
uma evolução, pelo contrário, né, a gente tem medo do ser humano, a gente
tem medo que a pessoa te mate na esquina, você tem medo de ser assaltado,
né, você tem medo.....então...eu...é acho que é um....atraso mesmo! O homem
não evoluiu em nada, como a guerra, né?! É, no dia de hoje tem que se
matar, um país e outro, pra resolver umas coisas, né. É um absurdo isso eu
acho! Ih...é a ganância, as pessoas querem mais pra elas do que pro outros,
é num pensar, é....então, acho que isso (Carla).
A questão é se Carla considera a ganância como um atributo natural do ser humano
ou como um atributo histórico. Ela mesma apresenta esta dúvida, quando afirma que talvez
o mundo poderia ser diferente se a essência egoísta fosse também distinta.
se fosse né (...) Não sei se seria uma nova essência, uma essência
diferente. Acho que talvez precisasse disso, o ser humano não pensa nisso,
não para pra refletir porque que é assim, né, se nós somos todos iguais,
ninguém é melhor do que ninguém. É muito triste eu acho. Se você for parar
pra pensar... (Carla).
De qualquer maneira, Carla não apresenta uma clara perspectiva de transformação e
não parece acreditar nesta possibilidade: Ó....politicamente....eu num....eu num tenho....eu
não me sinto com a esperança politicamente de mudar....por tudo que eu tenho visto até os
dias de hoje (Carla).
Ademais, Carla trata a idéia de uma sociedade melhor como uma idéia de uma
sociedade imaginária que somente pode ser efetivada no mundo dos sonhos: Ah, o mundo
evoluído seria esse sonho de todo mundo ter os mesmo direitos, né, de todo mundo viver
bem (...) (Carla).
Consequentemente, Carla afirma não ter uma alternativa clara e afirma
que seria muito difícil uma mudança global. Assim, ela diz:
Você concorda, você é...pode até mudar, né, consegui que algumas famílias,
que uma comunidade, né...né....que um bairro, sei lá....é...consiga evoluir em
algumas coisas eu acho. Ter uma participação melhor...é...politicamente, na
mudança do bairro, no asfalto, na praça, essas coisas, né, que a gente tenta,
133
né, mas.....se a gente for pensar numa visão assim muito global, né, de...de
Campinas, de Brasil......eu acho muito difícil!(Carla)
Tal passagem poderia caracterizar uma posição fatalista perante a realidade, pois a
humanidade compreendida a-historicamente é tida de maneira naturalizada e que, sendo
mesmo natural, a realidade torna-se imutável, fruto da fatalidade (Martín-Baró, 1998;
Meszáros, 2006). Assim, o individualismo e a competitividade seriam explicados como
manifestação natural da essência humana e isso serve também para justificar o imobilismo,
a falta de compromisso com um projeto de mudança social em nível mais amplo, ou para
justificar a opressão e a exploração econômica. Carla, assim, diante de sua posição fatalista,
reconhece que é utópico qualquer tipo de mudança, mesmo no campo da garantia da
cidadania e dos direitos básicos. Carla atenta diretamente para a questão da essência,
quando busca explicar o quadro social e econômico que vivemos atualmente. Dessa forma,
ela diz:
Acho que....é uma....é a ganância do ser humano, né. É....é uma coisa que já
vem já...dos tempos primitivos, né, aquelas coisas de rei, rainha de não sei o
que, de pobre ter que ser pobre e...isso foi evoluindo. Eu acho que é....de
certa forma eu vejo como um atraso do ser humano, né...não acho que é
uma evolução, pelo contrário, né, a gente tem medo do ser humano, a gente
tem medo que a pessoa te mate na esquina, você tem medo de ser assaltado,
né, você tem medo.....então...eu...é acho que é um....atraso mesmo! (Carla).
A questão é se Carla considera a ganância como um atributo natural do ser humano
ou como um atributo histórico. Ela mesma apresenta esta dúvida, quando afirma que talvez
o mundo pudesse ser diferente se a essência egoísta fosse também distinta.
se fosse né (...) Não sei se seria uma nova essência, uma essência
diferente. Acho que talvez precisasse disso, o ser humano não pensa nisso,
não para pra refletir porque que é assim, né, se nós somos todos iguais,
ninguém é melhor do que ninguém. É muito triste eu acho. Se você for parar
pra pensar... (Carla).
Toda prova, Carla parece não ter clareza de seu posicionamento anterior. Assim, em
seguida, reflete:
134
Não sei....então, porque nem todo mundo é assim, né?! Não sei também. Não
sei te dizer isso, se é da essência ou não. Acho que eu o tinha pensado
nisso, se é da essência ou não é (Carla).
Carla parece reconhecer que esta despreparada para refletir sobre a História, sobre a
própria essência humana e acerca da realidade social e política. Assim, ela prossegue
demonstrando perplexidade em torno do fato de sua falta de reflexão sobre o assunto e
como resultado de sua parca compreensão acerca da desigualdade social.
Ah, eu acho que é importante. Até pro próprio ser humano refletir sobre
isso, né. Acho que sim. Muito importante! É uma coisa que as pessoas não
pensam, né.....o porque....encontrar.....encontrar algumas respostas a
quem sabe pra....pra propor, tentar algumas mudanças, né...porque é muito
injusto, muito injusto eu acho. Você vê, não aqui no Brasil, na África,
né....os paises, meu deus do céu, tão adiantado, com tanto dinheiro e o ser
humano morrendo de fome em outro lugar, sabe?! Isso me choca ainda, né.
Não só lá, como no Brasil a gente tem essas coisas também, mas, assim, é de
conhecimento do mundo inteiro. Ninguém faz nada, né. Quem tem poder pra
fazer, então....eu acho muito grave, acho que a vida vale muito pouco. O que
tem valor é o que a pessoa tem, então, a vida não vale nada. Acho que esse é
um mundo atraso, não é um mundo evoluído não (Carla).
Carla parece encontrar sérias dificuldades para buscar indícios que justifiquem a
situação de desigualdade social. Ora atribui esse fenômeno à essência humana, ora à
injustiça social, mas não tem clareza se esta injustiça é resultado de um imanente
individualismo que, por sua vez, justificaria a existência da desigualdade social. De
qualquer maneira, nota-se que ela não apresenta uma clara perspectiva de transformação e
não parece acreditar nesta possibilidade. Ademais, Carla trata a idéia de uma sociedade
melhor como uma idéia de uma sociedade imaginária, que somente pode ser efetivada no
mundo dos sonhos. Isso fica claro quando coloca: Ah, o mundo evoluído seria esse sonho
de todo mundo ter os mesmo direitos, né, de todo mundo viver bem (...) (Carla)
.
Para ela, vivemos em um mundo em que todos não têm os mesmos direitos. Por
isso, como profissional seu papel é reduzir esta desigualdade, desigualdade essa que
poderia ser eliminada no mundo dos sonhos, o que caracteriza uma posição idealista
135
fortemente relacionada ao nível de alienação acerca da própria superação deste fenômeno o
que, portanto, elimina as possibilidades de uma ação política mais ampla (Meszáros, 2006).
Assim, da mesma maneira como se limita a analisar a desigualdade social em sua
manifestação imediata, quando trata das alternativas para redução da desigualdade social
limita-se a compreender esta redução no plano da cidadania e, mais ainda, essa cidadania
parece ser impossível de ser plenamente efetivada, somente em alguns casos pontuais e
particulares. Tudo isso denota uma ausência de uma perspectiva mais ampla da mudança
deste quadro social e econômico em que nos situamos.
Carla e Ana parecem não crer na possibilidade de alguma mudança social, somente
imaginam melhorias no plano mais imediato. Embora elas reflitam sobre a desigualdade
social como um fenômeno social e histórico, ambas sofrem de uma carência de alternativas
para a redução da desigualdade social, uma pobreza ideológica e política das mais
preocupantes que tratam a transformação social como um sonho guardado no ideal de uma
sociedade imaginária. Maria e Caio, por suas vezes, parecem estar imersos nas
contingências imediatas de sobrevivência, o que lhes dificulta mesmo a visualização de
uma alternativa estrutural de mudança. Ambos participantes não se alongaram sobre o
tema.
Em que pese a compreensão histórica da desigualdade social, que às vezes veio à
tona no discurso dos participantes, este fenômeno parece ser tratado, predominantemente,
como um fenômeno natural, a competitividade e o egoísmo como atributos naturais da
essência humana e as condições de vida como conseqüências do esforço individual. Assim,
a percepção dos participantes sobre suas condições sociais e sobre a desigualdade social
refletem concepções, por mais diferentes que sejam, que assumem, no entanto, um ponto
central e comum: uma difusa assimilação da ideologia da naturalização da história expressa
por diferentes vias e de diferentes maneiras.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, a análise das quatro entrevistas realizadas suscitou algumas
questões, levantou algumas hipóteses e proporcionou perspectivas de investigações futuras.
Para finalizar, apresentaremos uma síntese geral, em forma de tópicos que indicam os
resultados desta pesquisa, sendo que alguns deles levantaram questões que poderão ser
aprofundadas futuramente.
1 Os participantes desta pesquisa, ao relatarem suas trajetórias de vida, atentam
para as diferenças e semelhanças existentes entre os diferentes segmentos sociais;
2 As semelhanças são identificadas pelo fato de serem assalariados e devido às
dificuldades de ordem material que nenhum participante, de uma forma ou de outra,
está livre de enfrentar no seu cotidiano;
3 As diferenças entre as condições de vida dos participantes puderam ser
observadas, segundo eles mesmos relatam, pela situação econômica de cada família,
pelo nível educacional, pelo acesso a serviços sicos como a Educação, pela
condição de moradia, pelas necessidades sociais e pelas expectativas em relação ao
futuro de suas vidas;
4 Cada participante olhou para si como membro de um determinado segmento
social. Ana e Carla, embora sejam assalariadas e disponham de um padrão
socioeconômico mediano, reconhecem que, se comparado ao nível de vida das
famílias assistidas, são privilegiadas. Maria e Caio, os não privilegiados (embora
este seja um conceito relativo e poderíamos investigar como as pessoas percebem,
de maneira mais aprofundada, suas condições de vida em relação a outros
segmentos ou classes), vivem para sobreviver. Por isso, por reconhecerem esta
situação, ambos identificam-se enquanto membros de um segmento pobre da
população. Neste sentido, talvez fosse interessante aprofundar, em estudos futuros,
essa noção de segmento social (centrada no aspecto quantitativo do fenômeno da
desigualdade social) em contraste com a noção de classe social (que também leva
em conta o fenômeno da renda, mas que avalia, prioritariamente, o papel de um
grupo social na divisão social do trabalho e que analisa o capital como padrão de
organização e relacionamento social).
137
5 A caracterização dos indivíduos enquanto membros de uma classe ou segmento
social serviu para uma avaliação dos níveis de consciência política destas pessoas.
Os participantes disseram assemelhar-se a determinados segmentos sociais por uma
questão financeira e não por uma identidade político-ideológica. Outro estudo
interessante neste sentido seria o de analisar quais são as dificuldades que o
indivíduo enfrenta para que ele possa se enxergar enquanto membro de uma classe
social, em que medida e que por que caminho as pessoas poderiam aderir a um
projeto político cuja identidade de classe seja o principal motivo desta adesão;
6 – A consciência média da população pode ser retratada pela consciência dos
participantes sobre suas condições de vida e sobre a desigualdade social. Ela é
observada, também nos participantes, levando em conta a massificação ideológica
que contribui para ocultar as raízes históricas da desigualdade social, a moral
individualista e mesquinha, manifestada de diferentes maneiras, pelo cotidiano
marcado pela luta pela sobrevivência, pela falta de horizonte para as lutas e a
ausência de uma consciência de classe aguda;
7 Assim, a consciência política dos participantes também se refletiu, de certa
forma, quando da análise acerca das causas que originam e mantém o quadro social
atual. O principal argumento encontrado para justificar a desigualdade social
apoiou-se em uma compreensão esteriotipada do pobre.
8 O pobre é visto, de uma maneira geral, em parte, inclusive, por aqueles que se
consideram pobres (no caso da Maria e do Caio), como indivíduos isolados
incapazes, por questões de ordem subjetiva, de melhorar suas condições de vida.
Assim, a condição de pobreza é justificada pela falta de uma força mobilizadora
interna, pela herança cultural que é passada de geração para geração, no âmbito
familiar, pelo imediatismo de pensar somente o aqui e agora e pela displicência e
descompromisso com a tarefa de mudar de vida. Dessa forma, conhecer a quais
valores e a que estilo de vida conceitos como dignidade e cidadania estão atrelados
é uma via de acesso para uma reflexão acerca da moral burguesa. Qual a visão das
pessoas sobre estas questões? Como as pessoas elaboram tais conceitos? Sente-se ou
não dignos? Qual grau de desumanização que as pessoas acham estar submetidas?
Como enfrentam esta situação?
138
9 Dado que a ideologia de culpabilização do pobre marca o discurso dos
participantes, um estudo interessante consistiria em investigar como essa ideologia
se propaga na sociedade e porque as pessoas podem aderir a este discurso, mesmo
sendo vítimas dele próprio. O estudo sobre a personalidade, suas variantes teóricas
dentro da psicologia, por exemplo, seria de fundamental importância para
compreender como a ciência psicológica posiciona-se diante da problemática da
culpabilização, para compreender se ela contribui para essa situação ou como a
psicologia encontra formas de combater a ideologia dominante;
10 Ao culpabilizarem (os participantes) o indivíduo (e, em alguns casos, a si
mesmos) pela situação em que se encontram, os participantes tenderam a generalizar
as experiências particulares, observadas (no caso de Ana e Carla) ou vividas (para
Maria e Caio), tomando-as como universais. Essa generalização não se estende a
uma perspectiva de classe, pelo contrário serve como argumento místico para
justificar a desigualdade social. Neste sentido, seria uma alienação, ao fundo, frente
à realidade histórica específica do capitalismo;
11 A culpabilização do pobre incide diretamente na vida de Maria e Caio,
especialmente quando estes relatam experiências constrangedoras que vivenciaram
(como a humilhação sentida pela Maria e por Caio em seus empregos, na relação
entre empregado e patrão e a submissão do primeiro em relação ao segundo). Seria
interessante investigar estas vivências de culpabilização e as experiências de
humilhação. Como as pessoas reagem às ofensas cotidianas, o que pensam do
preconceito e da dominação. Acham mesmo que eles são oprimidos? Como uma
experiência mal sucedida influenciou no curso da vida e como eventos traumáticos
podem ser enfrentados e superados.
12 A desigualdade social parece ser compreendida, muitas vezes, como um
fenômeno impossível de ser suprimido, visto que sua existência confirmaria a
ascendência de uma natureza humana naturalmente egoística, individualista e
mesquinha. O aprofundamento desta questão, ligando o fenômeno da desigualdade
social à concepção que se faz acerca da essência humana, seria de vital interesse
para quem desejar estudar a percepção dos sujeitos sobre o sistema social vigente,
sobre a função do Estado e do próprio indivíduo na sociedade;
139
13 - Pela compreensão da desigualdade social como fenômeno inevitável e
impossível de ser superado, os participantes não enxergam possibilidades concretas
de ruptura com o capital, pelo contrário: reforçam sua lógica uma vez que as
alternativas para a melhoria das condições de vida da população são analisadas
dentro das possibilidades (ainda que remotas) estabelecidas pelo próprio sistema, na
melhor das hipóteses, uma alternativa reformista limitada ao campo da promoção da
cidadania. A transformação das estruturas sociais foi analisada como uma mera
utopia. Da mesma maneira Maria e Caio encontraram dificuldades para refletir a
respeito de alternativas que visariam superar (ou mesmo diminuir) a desigualdade
social.
14 Desta maneira seria de fundamental importância investigar como as pessoas
adaptam-se a este sistema social e econômico, se elas sentem a necessidade de
mudança e se sentem, qual a visão que elas m sobre as perspectivas de mudança
social, a qual mudanças elas se referem, em que nível compreendem esta
problemática e quais as formas que a população encontra para melhorar de vida e
para se proteger da situação de dominação e exploração. Por fim, as questões
suscitadas nesta pesquisa nos levam a reconhecer a necessidade de aprofundar uma
investigação sobre a forma como a população avalia as alternativas de mudança
social colocadas na sociedade (como a questão do socialismo, do partido e dos
movimentos sociais, para citar alguns exemplos) e qual o papel das emoções em um
processo de adesão política a uma causa ou uma ação reivindicatória;
Nossa investigação futura passa pela análise dos níveis de consciência dos sujeitos
acerca de suas condições de classe e de vida, tendo como foco central os processos
psicossociais contra a alienação e o fatalismo. Diante do quadro político e econômico que
vivemos, chama-nos atenção como as pessoas reagem ás situações desfavoráveis que lhes
custam a perda de direitos conquistados.
São muitas as justificativas que poderiam refletir sobre o quadro de apatia da
população brasileira, alguma delas abordamos nesta investigação, vejamos: (a) uma delas é
a confusão para identificar as causas da desigualdade social. Observamos nesta pesquisa
como os participantes compreenderam as semelhanças e diferenças das condições de vida
140
da população e vimos que o quadro atual de desigualdade social se explica,
predominantemente, pela análise do indivíduo isolado, ainda que compreendam fragmentos
de uma realidade mais ampla; (b) Outro questão aqui retomada remete a moral burguesa.
Trata-se da negação de si mesmo e do outro; relações estabelecidas com base na hostilidade
e individualismo certamente contribuem para a falta de visibilidade de alternativas
coletivas. Mas o individualismo, por exemplo, não é simplesmente um fenômeno moral, ele
encontra, no capitalismo, base objetiva para sua propagação, uma vez que as pessoas são
“jogadas” a competirem uma com as outras, por isso; (c) Outro fator que contribui para a
apatia da população é a própria condição social em que ela vive. Vimos as profissionais da
assistência social vivem do próprio salário, sem muita margem para o lazer e para dispor de
tempo livre. Vimos também que os dois pais entrevistados travam uma luta diária para
sobreviver. Em suma, a dinâmica de vida dos participantes está imersa na realidade
imediata, em uma espécie de individualismo prático que é o melhor método que dispõem
para melhorar imediatamente de vida e de ajudar a família. (d) Sendo assim, as
possibilidades de elaborar uma ampla perspectiva de transformação social ficam limitadas,
não apenas porque os participantes não se engajam em movimentos ou ações
reivindicatórias, mas também porque o contexto político de expansão do neoliberalismo e
contexto econômico de degradação da vida humana não contribuem para visualizar um
horizonte de uma efetiva redução da desigualdade social.
141
IV. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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147
ANEXOS
148
ANEXO 1: roteiro de análise socioeconômica
20
I - Dados gerais:
Idade: sexo: etnia: negro ( ) branco ( ) pardo ( ) amarelo ( ) indígena ( )
outro:
Local de nascimento:
Estado civil:
Filhos:
Religião:
Local da moradia atual:
Tempo da moradia no local:
Numero de pessoas que moram junto:
Tipo de moradia: ( ) alvenaria barraco( ) outro ( ) qual?
Número de cômodos:
Recursos materiais: TV ( ) som ( ) vídeo ( ) carro( ) cama( ) armário ( ) móvel ( )
Eletrodoméstico ( )
Grau de escolaridade:
Profissão:
Vínculo empregatício:
Renda familiar total:
II - Observações do pesquisador: dia, como foi agendado, local, pessoas presentes,
duração, dificuldades, contexto da entrevista etc.
20
Este roteiro foi elaborado com base nos indicadores de desenvolvimento humano, elaborados pela ONU
(UNDP, 2003).
149
ANEXO 2: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Eu, _____________________________________________________________________
RG: _______________________________, sei que estou participando e concordo em
participar da pesquisa DESIGUALDADE SOCIAL E CARACTERÍSTICAS PESSOAIS:
UM ESTUDO SOBRE A CONVIVÊNCIA ENTRE RICOS E POBRES, coordenada por
Antonio Euzébios Filho e orientada pela professora Dra. Raquel Souza Lobo Guzzo (ambos
da PUC-Campinas) e que tem como objetivo geral entender como a desigualdade social
interfere na maneira como as pessoas percebem a si mesmos e aos outros de outras classes
sociais.
Estando ciente das intenções desta pesquisa, da realização das conversas em grupo e
individuais e de que não haverá identificação nas conversas, mesmo sendo gravadas e que o
conteúdo servirá para uma compreensão sobre a visão das pessoas sobre a realidade que
vivem e sobre a desigualdade social de modo a ajudar em programas sociais e preventivos
nesta comunidade, sei que posso desistir de participar, retirando meu consentimento, se
assim eu desejar e que o trabalho não trará prejuízos para mim ou minha família.
Campinas......../........../.............
Assinatura
Telefone para contato: comitê de ética PUC-Campinas: 3735-5910/ serviço de psicologia (‘projeto risco à
proteção’): 3729-6867
150
ANEXO 3: roteiro de perguntas para as entrevistas.
O que acha do seu trabalho? Qual a função que exerce? O que é ser profissional da
assistência social para você? O que acha dos programas assistenciais de maneira geral? O
que pensa da população assistida pelos programas? Porque acha que elas necessitam de
ajuda financeira? (questões específicas para profissionais da assistência social)
O que acha da escola do seu filho? Você acha que a escola oferece condições pra seu filho
estudar? Acha que a escola pode melhorar? Você se sente seguro com a escola? Você acha
que o seu bairro tem uma estrutura boa para atender a população (posto de saúde, esgoto,
escola, creche etc)? No que poderia melhorar? Participa de algum programa do governo?
Qual sua avaliação sobre esse programa? Por que você acha que vive da maneira como
vive? (questões específicas para pais dos alunos)
Quais diferenças existem entre sua vida e a das famílias assistidas pelos programas
assistenciais? Como descreveria uma pessoa pobre? Como descreveria uma pessoa rica?
Como você se sente vivendo da maneira como você vive? Você tem vontade de possuir ou
viver de alguma forma diferente da que vive? Como a desigualdade social se expressa na
sociedade? E em seu cotidiano? Porque voacha que existe a desigualdade social?
Quais
são suas expectativas em relação à sua condição futura de vida? Quais são suas expectativas em
relação à condição futura de vida da população?Qual alternativa você enxerga para a melhoria da
sua condição de vida e da população?
(questões gerais)
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