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priação e adequação de algo que surgiu fora des-
se contexto.
Para explicar melhor essa transposição, vamos
pedir ajuda à etimologia: a palavra disciplina, de
origem latina, mantém os dois sentidos originá-
rios: a) saber (quando nos referimos a “discipli-
nas”, tais como Filosofia, Música ou Ginástica); b)
poder (quando dizemos “disciplina militar”). Em
latim, embora se trate de uma etimologia discu-
tida, disciplina parece uma forma abreviada do
termo discipulina, de denotação educativa, liga-
da à aprendizagem (disci) da criança (puer), num
duplo processo de saber-poder: apresentar deter-
minado saber à criança e produzir estratégias para
manter a criança nesse saber (Hoskin, 1993: 34).
Vamos agora à filosofia. O que faz um filóso-
fo, qual é sua atividade? A atividade filosófica, dis-
se Deleuze, tem a ver com situar problemas e cri-
ar conceitos que ajudem a pensar esses proble-
mas. O conceito de disciplina – pelo menos uma
forma de entendê-lo – foi criado por Michael
Foucault nos anos 1970 para responder à pergun-
ta “como funcionam as sociedades modernas?”,
no sentido de “quais são os mecanismos que re-
gulam, o estatuto e o regime que adquirem as re-
lações entre o saber e o poder nas sociedades
modernas?”. A partir do sentido comum do ter-
mo, retratado na etimologia sugerida, Foucault
fará um uso especial do conceito e o aplicará em
suas análises das sociedades modernas, às quais
chamou de sociedades disciplinares.
Esse nome se deve a que essas sociedades es-
tão estruturadas sobre a base de grandes centros
de isolamento – a escola, o quartel, a fábrica, o
hospital, a cadeia –, unidades fechadas e auto-su-
ficientes, que disciplinam os indivíduos. As insti-
tuições das sociedades disciplinares – que, segun-
do Foucault, se desenvolvem ao longo dos sécu-
los XVII a XIX e alcançam seu apogeu no começo
do século XX – cobiçam dispositivos de governo
dos indivíduos que as atravessam, no sentido de
que nelas sempre há um “outro” que determina o
campo de ação próprio (Foucault, 1983: 221),
sempre é outro que diz o que se pode fazer (por
exemplo, na escola, o professor determina o cam-
po de ação do aluno, o diretor o do professor, o
inspetor o do diretor etc.).
Essas instituições são, ao mesmo tempo, for-
midáveis dispositivos de produção de subjetivi-
dade. Os instrumentos principais do poder disci-
plinar são a vigilância hierárquica, a sanção
normativa e o exame (Foucault, 1976: 175-198).
Por meio dessas técnicas de saber-poder cada
uma dessas instituições produz mudanças signi-
ficativas naqueles que por elas passam: de fato,
não somos os mesmos quando deixamos a esco-
la, o hospital ou a cadeia, não só pelos efeitos vi-
síveis que essas instituições têm sobre nós, pelos
conhecimentos que adquirimos numa escola,
pelos curativos que são feitos sobre nosso corpo
nos hospitais ou pela perda de pigmentação na
pele que sofremos nos presídios, senão, sobretu-
do, porque nelas transformamos a relação que
temos com nós mesmos.
O caso da escola é especialmente interessan-
te, na medida em que se trata de uma instituição
interessada explicitamente na “formação” de seus
visitantes; ela se propõe não só a ensinar conhe-
cimentos, divulgar saberes e capacidades – habi-
lidades e competências, dir-se-ia hoje –, senão
que busca, mais do que nada, formar pessoas,
produzir certo tipo de subjetividades. Por um
lado, a escola moderna reflete a sociedade disci-
plinar: se a escola é uma instituição na qual “a dis-
ciplina constitui o eixo da formação do indivíduo”
(Noyola, 2000: 113) é porque se situa numa socie-
dade com inspirações disciplinares. Por outro
lado, esse reflexo nunca é fiel, no sentido em que
o poder disciplinar adquire uma forma específica
e determinada na escola em relação a outras ins-
tituições. Assim, para entender a escola moder-
na, temos de olhar dentro e fora dela. Fora, é pre-
ciso entender o dispositivo social mais comple-
xo, um conjunto heterogêneo, uma rede de dis-
cursos, instituições, organizações arquitetônicas,
normas, saberes que têm como função estratégi-
ca, na modernidade, a imposição do poder disci-
plinar (Foucault, 1979: 244). Dentro, é preciso
compreender a forma específica que adquire o
poder disciplinar nos diferentes dispositivos pe-
dagógicos. Das formas do poder disciplinar, o exa-
me é a técnica educacional mais clara (Hoskin,
1993: 35). Nos últimos anos, diversos estudos têm
mostrado essa dimensão (veja, por exemplo, Da
Silva, 1994).
Para entender o duplo processo de saber-po-
der da disciplina nas sociedades modernas, é ne-
cessário perceber o crescente processo de espe-