Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
Deivy Ferreira Carneiro
CONFLITOS, CRIMES E RESISTÊNCIA:
UMA ANÁLISE DOS ALEMÃES E TEUTO-DESCENDENTES ATRAVÉS DE
PROCESSOS CRIMINAIS (JUIZ DE FORA – 1858/1921)
Dissertação de Mestrado
RIO DE JANEIRO
2004
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
CONFLITOS, CRIMES E RESISTÊNCIA:
UMA ANÁLISE DOS ALEMÃES E TEUTO-DESCENDENTES ATRAVÉS DE
PROCESSOS CRIMINAIS (JUIZ DE FORA – 1858/1921)
Deivy Ferreira Carneiro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da
Fonseca.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em História Social
RIO DE JANEIRO – MARÇO DE 2004
ads:
3
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A dissertação intitulada Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos
alemães e teuto-descendentes através de processos criminais (Juiz de Fora – 1858/1921),
elaborada por DEIVY FERREIRA CARNEIRO, como pré-requisito parcial para a obtenção
do Título de Mestre em História, foi aprovada por todos os membros da Comissão
Examinadora designada pelo Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, ______de _________________________________ de 2004.
_______________________________________
Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca
Orientador
_______________________________________
Prof.a Dr.a Cláudia Maria Ribeiro Viscardi
_______________________________________
Prof.a Dr.a Jacqueline Hermann
4
CARNEIRO, Deivy Ferreira.
Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos alemães e teuto-descendentes através
de processos criminais (Juiz de Fora – 1858/1921) / Deivy Ferreira Carneiro. – Rio de
Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2004.
Marcos Luiz Bretas da Fonseca. Dissertação de Mestrado, UFRJ, IFCS, PPGHIS, 2004, 222
p.
1 – Brasil-História. 2 – Imigrantes alemães-História. 3 – Criminalidade-História. I –
Fonseca, Marcos Luiz Bretas da. II – Universidade Federal do Rio de Janeiro / Programa de
Pós-Graduação em História Social. III – Título.
5
RESUMO
O presente trabalho procura, dentre outras coisas, relativizar as representações
elaboradas pela historiografia local sobre os germânicos que foram contratados, em meados do
século XIX, pela Companhia União e Indústria e que formaram a colônia agrícola D. Pedro II
em Juiz de Fora. As atitudes destas pessoas foram analisadas, em quase todos os trabalhos, sob
uma perspectiva relativamente racial (na qual o elemento ariano era visto como sinônimo do
desenvolvimento econômico e social local em virtude de uma operosidade quase natural
projetada sobre o europeu de cor branca) e também anacrônica, pois tiveram suas vidas
interpretadas apenas sob a luz dos empreendimentos fabris que não mais de 50 indivíduos de
origem teuta criaram no decorrer do século XIX. Em outras palavras, a maior parte dos
pesquisadores procurou somente enfatizar as possíveis contribuições que tal grupo prestou ao
processo de modernização e industrialização de Juiz de Fora.
Neste sentido, analisamos os conflitos interpessoais empreendidos pelos germânicos
como uma forma de contra-argumentar a visão histórica limitada construída a respeito desta
etnia. Utilizamos os processos criminais como fonte documental com o objetivo de resgatar
algumas ações de um grupo que vivenciou novas experiências em momentos de tensão numa
cidade em transformação. Procuramos observar o perfil dos envolvidos, as relações entre eles,
os locais, horários e motivos dos crimes relatados nos processos para tentarmos apreender e
compreender alguns valores e normas sociais que regiam seus comportamentos. Os dados
contidos nos processos criminais auxiliaram também na percepção dos motivos alegados pelas
partes envolvidas para cometerem tais ações, possibilitando a percepção das relações entre os
germânicos e outras etnias, as relações dos germânicos entre si e também a compreensão da
relação que o aparato jurídico-policial manteve com esse grupo.
Por último, com o objetivo de propiciar uma unidade maior para uma compreensão
global do tema, realizamos também uma análise mais qualitativa de um processo criminal
envolvendo uma tentativa de sublevação na colônia agrícola D. Pedro II. Fizemos uma
radiografia da revolta tentando perceber todas as suas motivações e conseqüências, analisando
as expressões ditas e vivenciadas pelos colonos para que, através delas, pudéssemos
compreender o porque de suas ações.
6
ABSTRACT
The purpose of this work is to challenge the representation of Germans built by local
historians in Juiz de Fora. This Germans, hired in mid-nineteenth century by Cia. União
Indústria, were presented in ethnic terms as synonim of social and economic development, due
to the natural characteristics of white Europeans. Their history was presented through the
history of no more than fifty individuals who developed factories in the region. Most works
ignored the problems of moving to a new country, and adapting to new language and customs,
privileging their supposed role in modernizing Juiz de Fora.
We will privilege interpersonal conflicts, as a way to show a different view of this
ethnic group. Using criminal trial records we will present how they behaved in difficult
situations in this fast changing society. Those records permitted that we knew some of the
Germans, how they behaved and why, understanding their relationship with other ethnic
groups. It is also possible to see how they related with judicial institutions.
In the last chapter we attempt na analysis of the trial records of a rebellion in the
German agricultural colony D. Pedro II. We try to present its reasons and results,
understanding, through the wording and acts of the rebelious Germans, the motifs behind their
acts.
7
Aos meus amados pais Carlos e Eliane; pelo
exemplo de vida deixado na minha formação;
Para minhas avós Isolina e Maria; a primeira
por ter ensinado à sua família a mais
importante das histórias, e a segunda por ter
sempre demonstrado amor e orgulho por seus
netos.
8
AGRADECIMENTOS
Ao longo dessa pesquisa contraí dívidas de gratidão com inúmeras pessoas. Em
primeiro lugar, gostaria de agradecer aos meus primos Aline e André e também a minha tia
Elza por terem me proporcionado uma estadia extremamente agradável por ocasião das
minhas viagens semanais ao Rio de Janeiro. Sem o apoio, a amizade e o carinho de vocês
tenho certeza que meus estudos teriam sido muito mais cansativos.
Gostaria de registrar também minhas dívidas com os funcionários do Arquivo
Histórico Municipal de Juiz de Fora. A ajuda e a paciência de Henrique, Elione, Cecília e
“Chicão”, bem como de todos os estagiários que passaram por lá, foram elementos
fundamentais para transformar as cansativas manhãs e tardes de pesquisa em momentos
agradáveis e descontraídos. Minha gratidão a Tarcísio Mancini pelas preciosas dicas a respeito
da história de Juiz de Fora e da imigração alemã e italiana. Aproveitando este momento, devo
registrar também meus agradecimentos ao CNPq e a CAPES por terem financiado
parcialmente este trabalho através da concessão de bolsas de estudos.
As dívidas e conhecimentos que obtive com Marcos Luiz Bretas, meu orientador,
foram tantas que ficam até difíceis de serem enumeradas aqui. Com a sua gentileza e seriedade
acadêmica, além de fornecer incentivo e apoio em momentos importantes, sempre demonstrou
paciência e bom humor com meus “excessos de análise” quando eu tentava retirar o máximo
possível dos processos criminais. Além disso, devo-lhe também agradecimentos pela ajudas
prestadas na formulação do projeto de doutorado. Sem suas críticas pontuais, sem dúvida, eu
não teria conseguido alcançar meus objetivos.
Agradeço também à Jacqueline Hermann pelas preciosas considerações feitas a
respeito dos capítulos entregues para a qualificação. Espero que suas críticas tenham me
ajudado a ponderar a visão condescendente que estava sendo formulada em torno dos
imigrantes germânicos despossuídos. Já à Cláudia Viscardi, devo mais que agradecimentos.
Desde meus primeiros períodos da graduação ela auxiliou no meu amadurecimento teórico e
metodológico e também me ajudou, indiretamente, a definir meu tema de pesquisa. Obrigado
por sempre ter me recebido com bom humor em sua sala e nos corredores da Universidade
quando eu aparecia empolgado com a “História Vista de Baixo” e com as leituras de História
Social.
9
Meus pais, Carlos e Eliane, e meu irmão Diego agüentaram as variações diárias do meu
humor com muita paciência e souberam entender meus momentos de angústia e ansiedade.
Minha eterna gratidão pelo amor e pelo apoio e é a vocês que eu dedico este trabalho.
Finalmente, gostaria de agradecer a Ana Paula por ter lido e discutido, com enorme
paciência e carinho, todos os textos produzidos no decorrer dessa pesquisa. Entretanto, minha
maior dívida está no fato dela ter compartilhado comigo seu amor e alguns dos momentos
mais importantes da sua vida. Obrigado por dividir comigo seus sonhos e esperanças.
A todos, meus sinceros agradecimentos.
10
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS............................................................................................ i
EPÍGRAFE.............................................................................................................. iii
INTRODUÇÃO...................................................................................................... 14
1. AS REPRESENTAÇÕES ACERCA DO IMIGRANTE GERMÂNICO.
1.1 A figura do alemão através das lentes dos pesquisadores locais................... 33
1.2 O alemão na literatura e nas ciências sociais do século XX.......................... 48
2. A CRIMINALIDADE GERMÂNICA EM JUIZ DE FORA – OS CRIMES
CONTRA A VIDA E A HONRA: HOMICÍDIOS E TENTATIVAS DE
HOMICÍDIOS, OFENSAS FÍSICAS E OFENSAS VERBAIS.
2.1 Homicídios e Tentativas de homicídios......................................................... 71
2.2 As Ofensas Físicas.......................................................................................... 99
2.3 As Ofensas Verbais....................................................................................... 129
3. OS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE: FURTOS, ROUBOS E DANOS.
3.1 – O perfil dos envolvidos e dos crimes........................................................ 155
3.2 – Perfil dos locais e dos objetos roubados................................................... 166
3.3 – O resultado dos julgamentos..................................................................... 177
4. UMA RADIOGRAFIA DA SUBLEVAÇÃO ALEMÃ DE 1858.
4.1 Os atores...................................................................................................... 186
4.2 A sublevação................................................................................................ 191
4.3 As Transcrições Públicas e Ocultas.............................................................. 198
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 209
FONTES................................................................................................................. 215
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 219
11
LISTA DE TABELAS
Tabela
1. Religião, Idade e Sexo dos imigrantes alemães de 1858.......................... 23
2. Origem Regional dos Imigrantes.............................................................. 25
3. Crimes de Sangue em Juiz de Fora (1851-1900)...................................... 73
4. Idade dos Réus (Homicídios e Tent. de Homicídios)............................... 74
5. Nacionalidade dos réus e das vítimas....................................................... 75
6. Profissão das vítimas (Homicídios e Tent. de Homicídios)..................... 75
7. Homicídios – Instrumentos empregados, 1890 – 1909............................ 77
8. Homicídios – Relação entre vítimas e agressores.................................... 83
9. Relação agressor-vítima segundo a etnia................................................. 83
10. Crimes de ofensas físicas em Juiz de Fora (1851-1900)......................... 101
11. Profissão das vítimas e réus..................................................................... 103
12. Ofensas físicas por etnia.......................................................................... 104
13. Relacionamento entre vítimas e réus....................................................... 106
14. Arma ou meio utilizado no crime............................................................ 110
15. Local e horário dos crimes...................................................................... 115
16. Crimes de injúria em Juiz de Fora........................................................... 134
17. Profissão dos Réus................................................................................... 134
18. Idade dos Réus......................................................................................... 135
19. Nacionalidade de autores de processos contra alemães........................... 136
20. Nacionalidade dos réus processados por alemães................................... 136
21. Profissão das vítimas............................................................................... 137
22. Os temas dos insultos.............................................................................. 145
23. Relação entre os envolvidos.................................................................... 148
24. Local onde os insultos foram proferidos................................................. 149
25. Insultos coletados nos processos de ofensas verbais (1868-1917).......... 153
26. Criminalidade em Juiz de Fora (1851-1890)........................................... 156
27. Criminalidade em Juiz de Fora (1891-1900)........................................... 157
28. Atividades profissionais das vítimas de furto e roubo............................. 158
29. Nacionalidade das vítimas de furto e roubo............................................ 160
12
30. Profissão dos réus de furto e roubo....................................................... 161
31. Objetos furtados ou roubados................................................................ 166
32. Locais dos crimes.................................................................................. 175
33. Crimes de Furto/Roubo por década....................................................... 176
13
“Cada idade, ou cada praticante, pode fazer novas
perguntas à evidência histórica, ou pode trazer à luz
novos níveis de evidência. Nesse sentido, a “história”
(quando examinada como produto da investigação
histórica) se modificará, e deve modificar-se, com as
preocupações de cada geração [...]. Mas isso não
significa absolutamente que os próprios
acontecimentos passados se modifiquem a cada
investigador, ou que a evidência seja indeterminada.
As discordâncias entre os historiadores podem ser de
muitos tipos, mas continuarão sendo meros
intercâmbios de atitude, ou exercícios de ideologia,
se não se admitir que são conduzidas dentro de uma
disciplina comum que visa o conhecimento
objetivo.”
Edward Palmer Thompson
14
INTRODUÇÃO
A partir de meados do século XIX, os estados, principados e grão-ducados germânicos
passaram a enfrentar grandes rupturas relacionadas ao processo de desagregação tardia da sua
estrutura feudal. O capitalismo foi introduzido, na agricultura e na indústria, através de uma
“Revolução Pacífica” vinda de cima, conhecida como modernização conservadora ou via
prussiana
1
. Este processo, somado a uma enorme pressão demográfica e à concentração de
terras nas mãos de poucos, impossibilitava aos camponeses a manutenção de suas
propriedades e forçava-os a emigrarem em massa
2
. De fato, em seu estudo sobre o
pangermanismo no sul do país, Marionilde Magalhães observou que boa parte dos emigrantes
que se deslocaram para o Brasil no século XIX, provinham de regiões rurais ameaçadas pela
concentração fundiária
3
.
Relacionada diretamente com a concentração fundiária, a organização familiar rural
dos grupos germânicos foi outro fator que ajudou a expulsar os camponeses de suas terras. Em
regiões em que o direito de herança se fundava no primogênito, os demais filhos que não
quisessem permanecer na dependência do irmão mais velho eram obrigados ao êxodo, quer
para as cidades, quer para outros estados ou continentes. Já em regiões em que o direito de
sucessão obrigava os pais a repartirem seus pertences entre os filhos, as pequenas propriedades
eram de tal forma divididas que, mesmo em épocas de estabilidade sócio-econômica, não
comportava mais o número de pessoas que constituíam as famílias
4
.
Não era somente a pressão demográfica que expulsava a população teuta de suas
localidades. A industrialização latente e a necessidade da criação de um mercado de mão-de-
obra impulsionava mais e mais artífices e camponeses à proletarização. Como exemplo deste
processo, podemos citar o caso de algumas famílias de artífices e operários de Chemnitz, na
Saxônia. Em 1859, estes carpinteiros, serralheiros, costureiras, meeiros etc. emigraram para o
Brasil não porque suas situações econômicas estivessem precárias, mas porque não queriam
1
MOORE, Barington. Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: senhores e camponeses na construção de
um mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
2
HOBSBAWN, Eric. A Era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 213.
3
MAGALHÃES, Marionilde Brepohl de. Pangermanismo e Nazismo: a trajetória alemã rumo ao Brasil.
Campinas: Editora da UNICAMP/FAPESP, 1998. p. 30-31.
4
WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes alemães e
seus descendentes no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. p. 33
15
trabalhar em fábricas
5
. Boa parte das emigrações observadas nesta camada social foram
causadas pelas mudanças que a industrialização crescente provocava no status social destes
artífices e pequenos comerciantes. Um reflexo desta situação é a variedade profissional dos
imigrantes alemães que chegaram em Juiz de Fora em 1858. Sapateiros, alfaiates, barbeiros,
carpinteiros, pedreiros, parteiras, padeiros, carroceiros, relojoeiros, marceneiros, ferreiros,
funileiros, pintores, ferreiros, carpinteiros de carros, serralheiros, entre outros, foram
empregados nas obras da estrada União e Indústria e na construção da Estação de Diligências
6
.
Outro fator que parece ter contribuído para a emigração coletiva de parcelas
significativas da população, foi o aumento da carga tributária. Alguns dos pequenos Estados
germânicos do período, sob um regime monárquico-reacionário inspirado pela orientação
política da Restauração, aumentaram as taxas e impostos sobre a população, forçando-a ao
êxodo e até mesmo à fuga em localidades onde a imigração estava proibida
7
.
Assim, percebe-se que nesta época os emigrantes germânicos fugiam do crescente
Pauperismus, aumento populacional sem o correspondente desenvolvimento dos métodos de
produção agrícola
8
. Os artesãos sofriam com a falta de mercado para os seus produtos e de sua
decorrente proletarização devido à substituição da produção manufatureira pela industrial. Os
agricultores e pequenos proprietários de terras, sem condições de concorrer com os latifúndios,
almejavam ocupar terras no oeste americano. No Estado de Hessen, o fim das terras
comunitárias fazia com que, gradualmente, o campesinato perdesse o vínculo sentimental para
com sua pátria, acrescido do iminente desemprego, ou quando muito, de eventuais trabalhos
assalariados
9
. Tecelões e fiadores domésticos, junto com os artífices, sofriam com o processo
da produção industrial a vapor e conseqüente trabalho mecânico e não-qualificado. Perdendo
a sua atividade autônoma, a sua posição na comunidade, só lhes restava adequar-se ao
anonimato das cidades industriais, à disciplina do trabalho nas fábricas, enfim, à
proletarização, ou emigrar para o estrangeiro
10
.
5
Idem., p. 33.
6
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os Alemães. Juiz de Fora:
FUNALFA, 1979. p. 166-7.
7
WILLEMS, Emílio. A aculturação... op. cit., p. 34.
8
Cf. definição de SMOLKA, Georg. 1953. Die Auswanderung als politisches Problem in der Ära des deutschen
Bundes (1815-1866).Speyer: Speyerer Forschungsberichte, 1993, p. 48. Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades
hanseáticas e Prússia: uma história social dos alemães no Rio de Janeiro (1815-1866). Tese de Doutorado.
Niterói: UFF, 1999. p. 79.
9
Ibidem, p. 14.
10
Ibidem, p.15. Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e Prússia... op. cit. 80.
16
Desta maneira, a maioria emigrava fugindo do empobrecimento decorrente das grandes
mudanças sócio-econômicas com a industrialização. No mínimo, esperavam manter ou elevar
seu status social e aumentar o padrão de vida no estrangeiro
11
. Para tanto, dispunham de um
pequeno capital e/ou bens; ou mesmo da ajuda financeira de parentes emigrados ansiosos por
reagrupar suas famílias no estrangeiro. Assim, não só marginalizados emigravam, como
também pequenos empreendedores que levavam, consigo, sua força de trabalho, bens e
moedas
12
.
Não foram somente questões sócio-econômicas ou politico-administrativas que
impulsionaram as emigrações em massa do século XIX. A propaganda feita pelos agentes das
companhias de emigração, tanto estatais quanto privadas, enriqueceu consideravelmente o
contigente de migrantes. Em 1857, Mariano Procópio, presidente da Cia. União e Indústria
enviou o engenheiro Giobert à Alemanha para contratar colonos (cerca de 400 famílias)
através da Casa Mathias Christian Schroder, de Hamburgo. Segundo Stehling, o número
previsto de famílias nunca foi atingido, tendo chegado em Juiz de Fora cerca de 1.162
imigrantes
13
. Boa parte daquilo que os aliciadores prometiam não era cumprido, gerando
conflitos entre estes e os imigrantes. Um dos principais motivos que originou o
descontentamento por parte dos alemães foi o abismo profundo entre as promessas firmadas e
a realidade degradante vivenciada pela comunidade teuta nos primeiros meses de estadia na
Colônia agrícola D. Pedro II.
A vinda destes alemães para o Brasil corresponde a uma porcentagem reduzida do total
de imigrantes europeus e asiáticos que entraram no país, isto é, apenas 7 % dos quatro milhões
que vieram entre 1824 e 1930. O país recebeu uma parcela mínima dos cinco milhões que
deixaram a Alemanha neste período, ou seja, cerca de 223.000 indivíduos. Se compararmos
este contigente com aquele que se deslocou para os EUA, lembramos que num único ano, em
1882, 250.630 imigrantes alemães entraram neste país.
14
Mesmo recebendo um número
11
Segundo Turner, a oportunidade de emigrantes alemães e escandinavos estabelecidos no centro oeste
americano significava: “... to destroy the bonds of social caste that bound them in their older home, to hew out for
themselves in a new country a destiny proportioned to the powers that God had given them, a chance to place
their families under better conditions and to win a larger life than the life that they had left behind.” Apud:
LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e Prússia... op. cit. 81.
12
MOLTMANN, Günter.Deutsche Amerikaauswanderung im 19. Jahrhundert. Sozialgeschichtliche Beiträge.
Stuttgart: Metzleische u. Carl E. Poeschel, 1976., p. 293. Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e
Prússia... op. cit. 81.
13
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit., p. 161-165.
14
WILLEMS, Emílio. A aculturação... op. cit., p. 41.
17
comparativamente reduzido de imigrantes de origem teuta, o Brasil se destaca como o segundo
país das Américas a receber tais contingentes
15
.
Até o final da primeira metade do século XIX, objetivava-se com a imigração,
principalmente de europeus, o povoamento de certas regiões brasileiras através da formação
de núcleos coloniais, visando compor uma população intermediária entre escravos e
latifundiários, isto é, de pequenos proprietários que teriam a função de produzir artigos – bens
de consumo não duráveis – para o mercado interno, para centros urbanos e fazendas. A
coordenação desta política esteve a cargo da Sociedade Central de Imigração. Sua
preocupação central não se referia apenas à obtenção de mão-de-obra livre, “... mas com mão-
de-obra que seria, por assim dizer, regeneradora e civilizadora”
16
. Tal órgão ponderava que
somente a imigração pautada na distribuição de pequenos lotes de terra para os colonos seria
capaz de atrair estes indivíduos obtendo efeitos realmente civilizadores
17
.
O marco da imigração teuta para o Brasil foi a fundação da colônia de São Leopoldo
em 1824 no Rio Grande do Sul; anos mais tarde, foram criados, em Santa Catarina e Paraná,
outros núcleos coloniais. Segundo Magalhães, foram criadas durante todo o século XIX, cerca
de 37 núcleos de colonização de língua alemã no Sul do Brasil
18
.
No Rio de Janeiro, o município de Petrópolis foi vastamente povoado por estes
imigrantes e a cidade de Nova Friburgo foi fundada com destacada presença de grupos
germânicos que atuaram nas mais variadas atividades tais como: parcela do mercado de mão-
de-obra, comerciantes ligados a importação etc., levando assim à criação de vários
estabelecimentos industriais
19
.
Já no Espírito Santo, a existência de colônias alemãs esteve centrada no povoamento
do interior, ligadas à produção de subsistência e à produção mercantil de café. Somente na
transição para o século XX é que a imigração, nesta província, passou a atender à demanda de
braços
20
.
15
MAGALHÃES, Marionilde B. de. Pangermanismo... op. cit., p. 20.
16
CARDOSO, F. H. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977,
p. 190.
17
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1966. p. 103.
18
MAGALHÃES, Marionilde B. de. Pangermanismo... op. cit., p. 30-1.
19
CORRÊA, Heloísa. Nova Friburgo: o nascimento da indústria (1890/1930). Dissertação de Mestrado. Niterói:
UFF, 1985.
20
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Imigração e Industrialização: os alemães e os italianos em Juiz de Fora
(1854-1920). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1991. p. 58.
18
Se em São Paulo as experiências com núcleos coloniais de imigrantes alemães foram
insignificantes até meados do século XIX, em 1935 este estado contabilizava o terceiro maior
contigente de germânicos e descendentes do país – 90.000 – perdendo apenas para Rio Grande
do Sul e Santa Catarina
21
. Contudo, foi São Paulo o estado que mais sofreu com críticas
públicas a respeito do tratamento que dispensava a seus colonos. Denúncias de escravização e
maus tratos, veiculadas na imprensa européia por escritores como Thomas Davatz
22
,
juntamente com a manutenção do sistema escravista e a manutenção da fé católica como
religião oficial, restringindo assim os direitos dos imigrantes luteranos (legitimação dos
casamentos e regulamentação de heranças principalmente) levaram, posteriormente, à
proibição da imigração. Em Novembro de 1859, através da lei “Von Der Heydt” a Prússia
proibiu a emigração de seus cidadãos para o Brasil
23
. Além disso, um dos grandes problemas
envolvendo os imigrantes e seus patrões paulistas foi gerado pelas dificuldades advindas do
sistema de parceria.
O sistema que vigorou nas fazendas paulistas no início da imigração particular foi o de
parceria. Consistia em pagar o trabalho do colono com uma porcentagem sobre a colheita.
Embora fosse muito utilizado nas primeiras colônias do tipo das fundadas pelo senador
Vergueiro, foi substituído pelo pagamento de salário prefixado, muito mais eqüitativo para o
colono que ficava mais garantido contra as oscilações de preço do café e outros riscos. O
sistema de parceria teve uma influência enorme sobre as condições subseqüentes do trabalho
nas fazendas. Serviu de experiência, de método provisório até fazendeiro e colono
encontrarem uma fórmula de contrato que satisfizesse ambas as partes, Esse período de
“ensaio” não passou sem agitações.
Nesse sistema os adiantamentos feitos para ao transporte e sustento dos colonos
deveriam ser pagos dentro de certo prazo e com juros de 6% ao ano. A cada família cabia o
número de cafeeiros que pudesse cultivar, colher e beneficiar, além das roças para o plantio de
mantimentos. O produto da venda do café era partido entre colono e fazendeiro, devendo
prevalecer o mesmo princípio para as sobras de mantimentos que o colono viesse a vender.
Tal como foi aplicada na lavoura paulista, a parceria representou uma espécie de
conciliação entre o regime dos serviços assalariados, como se pratica em geral nas fazendas, e
21
MAGALHÃES, Marionilde B. de. Pangermanismo... op. cit., p. 39.
22
Thomas Davatz foi um imigrante suíço que liderou um levante na fazenda de Ibicaba, na província de São
Paulo, em 1857, contra o tratamento recebido pelos seus patrões.
19
o das pequenas propriedades, peculiar aos núcleos coloniais. Isso explica a aceitação fácil,
segundo Sérgio Buarque de Holanda, que obteve entre os colonos de estirpe germânica sempre
zelosos com suas tradições, ao passo que os portugueses e os imigrantes do sul da Europa se
inclinavam de preferência para o sistema de salários fixos ou para as empreitadas. Como
forma de transição entre os tipos de colonização rural suscetíveis até certo ponto de atender às
nossas necessidades econômicas, o regime de parceria pretendia resolver o difícil problema da
adaptação dos imigrantes do norte da Europa ao trabalho nas nossas grandes propriedades
agrícolas
24
.
Na realidade o sistema de parceria excluía quase que totalmente a fiscalização do
colono sobre as operações realizadas com o café entre a colheita e o ajuste de contas num
intervalo que se prolongava por meses. Todo o seu fundamento era assim o vago pressuposto
de uma absoluta confiança do colono em seu empresário. Foi esse sem dúvida, um dos pontos
vulneráveis do sistema. Aos erros freqüentes que se introduziam nos cálculos efetuados por
diretores incompetentes e algumas vezes pouco escrupulosos acrescentavam-se outros motivos
importantes para perturbar aquela confiança. Era difícil senão impossível a um fazendeiro bem
intencionado explicar com minúcias aos colonos todas as numerosas despesas que implicava
necessariamente a manutenção das lavouras e o transporte do café até o porto de Santos.
O primeiro cuidado dos fazendeiros foi, por conseguinte, modificar os contratos
abolindo o longo e complicado processo de contas. Em lugar de fazer depender da venda do
café no mercado o pagamento do colono, estipulou-se geralmente um preço fixo por alqueire.
Segundo o novo contrato recebiam os colonos os cafezais que podiam cultivar sem
dificuldade. Terminada a colheita depositavam eles o produto em lugar convencionado e
recebiam por alqueire a quantia estipulada, que era de 500 réis em algumas colônias e 600 em
outras. Para seus plantios dispunham, mediante aluguel ou gratuitamente em raros casos, de
terrenos previamente marcados, alugando também a preços módicos as casas de residência,
pastos, etc. Foi o que se fez em Ibicaba e também em outras fazendas, mas ainda sem
resultados muitos felizes. O próprio José Vergueiro, em seu memorial de 1874 sobre a
colonização e o cultivo de café, queixava-se da má vontade com que os colonos se entregavam
23
MAGALHAES, Marionilde B. de. Pangermanismo... op. cit., p. 21-22.
24
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Prefácio”. In: DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1980, p. 30.
20
aos seus trabalhos diários, atentos apenas em tirar para si todo o proveito, uma vez que não
tinham esperança de poder considerar algum dia como sua a terra que cultivavam
25
.
Nos anos de 1854 e 1856 foram criadas, em Minas Gerais, as Colônias de Urucu e
Mucuri. Constituíram-se por ordem do Governo Imperial e por pressões políticas do senador
Teófilo Otoni junto a sede do governo; visavam garantir a segurança e o povoamento das
margens de uma estrada que ligasse Filadélfia a Santa Clara. Ambas as colônias foram
emancipadas rapidamente – em 1876 – devido à falta de recursos, isolamento e desinteresse
das autoridades na sua manutenção. Além do mais, a política de colonização não era vantajosa
aos interesses dos fazendeiros da região, donos de latifúndios auto-suficientes e sem carência
de mão-de-obra. Este fato impossibilitou que tais colonos encontrassem um mercado
consumidor para os gêneros alimentícios produzidos em suas pequenas propriedades
26
.
Se o governo imperial estimulou a imigração de origem teuta para incentivar a
proliferação de pequenas propriedades agrícolas produtoras de artigos para o mercado interno,
o mesmo não ocorria com as oligarquias vinculadas à exploração de latifúndios. Estes
enxergavam na política migratória um prelúdio da abolição, e na distribuição de terras uma
ameaça ao sistema de exploração em grande escala. Dentro deste grupo podemos destacar os
fazendeiros de café paulistas. Pouco preocupados com o projeto “civilizador”, estes indivíduos
lutavam pela inserção de mão-de-obra para expansão de suas novas lavouras:
“[...] todas as vezes que os fazendeiros de café do Oeste paulista conseguiram
fazer prevalecer seus interesses, dominou a política que visava fornecer braços
para as lavouras. Assim foi quando em 1847, Vergueiro, ocupando a pasta da
Justiça e interinamente, a do Império [...], alcançou uma subvenção do
governo para lançar a experiência das parcerias. Assim será entre 1885 e
1887, quando Antonio Prado e Rodrigo Silva ocuparam, sucessivamente, a
pasta da Agricultura”.
27
A política imigratória foi então paulatinamente sendo modificada, e com o passar dos
anos as elites cafeeiras, como demonstramos acima, cientes que a abolição não tardaria,
iniciaram pressões junto às sedes de poder a fim de garantir a vinda de imigrantes europeus
25
VERGUEIRO, José. Memorial acerca da Colonização e do Cultivo do Café apresentado a S.EXA. O Sr.
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura. Campinas, 1874. p. 6. Apud: HOLANDA, Sérgio
Buarque de. “Prefácio”. In: DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia, 1980, p. 41-2.
26
OLIVEIRA, Mônica R. de. Imigração e Industrialização... op. cit. p. 55.
27
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala... op. cit., p. 103.
21
para solucionarem o problema de carência de mão-de-obra que então se anunciava. Mesmo
sem demonstrar preocupação com o projeto “civilizador”, percebe-se claramente que a ênfase
na imigração de europeus brancos estava estampada nos debates parlamentares do período,
visando a promoção do “branqueamento” do país, fato que aos olhos das elites seria uma das
soluções para os problemas de mestiçagem do Brasil.
Em Juiz de Fora, cidade foco da pesquisa em questão e principal pólo urbano da Zona
da Mata mineira no período, os imigrantes de origem germânica que ali chegaram não
atendiam a este novo perfil da política imigratória.
Cidade nascida às margens do Caminho Novo – estrada construída no século XVIII,
entre o sudoeste da Zona da Mata e o Rio de Janeiro, para facilitar o fluxo legal e oficial de
ouro da região das minas para o porto do Rio – Juiz de Fora concentrou em seus domínios, a
partir da segunda metade do século XIX, uma dinâmica economia cafeicultora sustentada pela
grande propriedade escravista, estando seu desenvolvimento relacionado diretamente com o
bem estar da produção cafeeira
28
.
Em 1850, a então Santo Antônio do Paraybuna foi elevada à categoria de Vila e em
1854 foi elevada à categoria de município. Sua população em 1855 já atingia 6.466 habitantes
na qual 37,1% era formada por nacionais (2.401 hab.), 0,6% de estrangeiros (40 hab.) e 62,3%
de escravos
29
. Este contigente bastante significativo de escravos por si só demonstra a
importância que a lavoura cafeeira possuía na região, que nesta época já ocupava o primeiro
lugar na Província em produção.
Com os excedentes econômicos gerados pelo café, desenvolveu-se na região melhorias
de caráter estrutural – telefone (1883), telégrafo (1884), água encanada e sistema de esgoto
(1885), iluminação pública utilizando energia elétrica (1889) e setor financeiro organizado
(década de 1880) – que possibilitaram uma rápida urbanização da cidade. A ampliação urbana
sem um controle adequado levou a um estado sanitário extremamente crítico. No ano de 1894,
uma grande epidemia de varíola assolou a cidade, que já havia sofrido um surto de cólera anos
atrás. A Câmara Municipal, alarmada com a situação lastimável, passou a tomar providências
28
Cf. PIRES, Anderson J. Capital Agrário, investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora: 1870-1930.
Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1993.
29
Arquivo Municipal de Juiz de Fora Município III: 1) Câmara; B) Sessões da Câmara; b) Comissões. Apud:
OLIVEIRA, Mônica R. de. Imigração e Industrialização... op. cit., p. 48.
22
através da fiscalização mais efetiva da limpeza pública, ampliação das redes de esgoto, a
proibição da criação de porcos, etc.
30
.
Diferentemente do caso paulista, onde a imigração tornou-se o recurso preferencial das
elites para abastecer seu mercado de mão-de-obra nas lavouras de café, em Juiz de Fora foram
os libertos que constituíram o principal elemento na manutenção das lavouras no pós-abolição,
dado o grande volume de escravos que a Província possuía
31
. Visto que em Juiz de Fora não se
fazia necessária a mão-de-obra imigrante na produção cafeeira – antes e depois da abolição –
que fatores propiciaram a ida de alemães para tal localidade?
As pesquisas existentes apontam para duas direções. Em primeiro lugar, a vinda de
alemães para a cidade esteve ligada indiretamente ao bem estar da produção cafeeira, através
da construção da rodovia União e Indústria; em segundo lugar, esteve ligada à implantação de
um núcleo colonial agrícola que objetivava abastecer o mercado interno com produtos
alimentícios.
32
Todavia, é importante salientar que a função de abastecer o mercado interno
não foi cumprida pela comunidade teuta; estes atuaram mais intensamente na construção da
rodovia União e Indústria. Com a inauguração da estrada em 1861 e a falência da Colônia em
meados de 1880, os alemães se concentraram no meio urbano, no setor prestador de serviços,
em especial aqueles que não dispunham de capital para investir em manufaturas domésticas.
33
A dinamização e o aumento da produção de café na região da Zona da Mata a partir da
segunda metade do século XIX, acarretou o surgimento do problema do transporte da
produção para a capital do país, feita até em então por muares, de forma lenta e com baixa
capacidade. Em 1852, Mariano Procópio Ferreira Lage, um rico comerciante e fazendeiro
local, retorna da Europa e propõe a construção de uma rodovia – a União e Indústria – que
interligaria a Província de Minas Gerais à província do Rio de Janeiro, pela qual deveria
passar o escoamento da produção cafeeira da região. O Decreto n.º 1.031, de 7/8/1853 deu
autorização imperial para a construção da mesma e direitos de exploração por um prazo de
cinqüenta anos, surgindo assim a Companhia União e Indústria. Para construção e manutenção
30
OLIVEIRA, Mônica R. de. Imigração e Industrialização... op. cit. p. 50
31
Cf. MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte:
CEDEPLAR/UFMG, 1982., LANNA, Ana Lúcia D. A Transformação do Trabalho. 2
a
ed. Campinas:
Ed.Unicamp,1989 e PIRES, Anderson J. Capital Agrário... op. cit.
32
Cf: STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit. e GIROLETTI, D. A Industrialização de Juiz de Fora:
1850 a 1930. Juiz de Fora: Edufjf, 1988.
33
SOUZA, Sônia M. de. Além dos Cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma região de
economia agroexportadora – Juiz de Fora na segunda metade do século XIX. Dissertação de Mestrado. Niterói:
UFF, 1998. Ver especialmente o segundo capítulo.
23
da estrada, Mariano Procópio, influenciado pelos resultados positivos alcançados pela
imigração teuta em Petrópolis, manda contratar na Alemanha 150 trabalhadores. Assim sendo,
em 1856 chegaram os primeiros alemães especializados – mecânicos, fundidores, ferreiros,
folheiros, ferradores, segeiros, seleiros, carpinteiros, marceneiros, pontoneiros, pedreiros,
pintores, oleiros e engenheiros; todos contratados na Alemanha por H. F. Eschels –
empregados pela companhia em suas oficinas e na construção de obras de infra-estrutura da
rodovia.
Neste mesmo contrato, ficou ainda estipulado que deveria ser implantada uma colônia
– a colônia D. Pedro II – com cerca de 3.000 pessoas, mais ou menos 400 famílias, que
deveriam se dedicar à agricultura, abastecendo o mercado interno
34
. Apenas 100 famílias eram
esperadas para primeiro ano, fato este verificável na “Condição Primeira” do contrato para
importação de colonos firmado com o Governo Imperial em 25 de Abril de 1857
35
. Contudo,
devido a esperteza e destreza da Companhia aliciadora contratada por Giobert, em nome de
Mariano, ávida por receber o mais rápido possível as comissões por colono embarcado, em
menos de quatro meses chegaram em Juiz de Fora – de Maio à Agosto de 1858 – cerca de
1.162 imigrantes, mais ou menos 225 famílias. Desta maneira, a Cia. ficou impossibilitada de
abrigar adequadamente a totalidade destes indivíduos e consequentemente acabou tirando de
seus planos o intento de contratar o restante do número de imigrantes planejado.
Com relação ao perfil dos germânicos contratados por Mariano Procópio, gostaríamos
de apresentar alguns dados estatísticos a respeito de sexo, idade, religião e local de origem.
Tabela 1 – Religião, Idade e Sexo dos imigrantes alemães de 1858.
Sexo Religião Idade
Masculino
Feminino
52,58%
47,42%
Luteranos
Católicos
45,36%
54,64%
Mais de 45 anos
De 10 a 45 anos
De 5 a 10 anos
Menos de 5 anos
1,89%
68,84%
18,15%
11,10%
Fonte: STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit. p. 161-5.
34
CASTRO, Newton Barbosa de. A contribuição dos imigrantes alemães a industrialização de Juiz de Fora. In:
História Econômica de Juiz de Fora. Juiz de Fora: IHGJF, 1987.
35
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit., p. 158.
24
Podemos observar que mais de dois terços dos alemães contratados encontravam-se em
idade produtiva, ou seja, entre 10 e 45 anos. Para a sociedade contemporânea pode parecer
estranho afirmar que crianças de 10 anos se encontram na cadeia produtiva, mas sendo a
pequena propriedade agrícola trabalhada exclusivamente pelos componentes da família, o
trabalho infantil parece ter sido uma conseqüência natural das condições aqui encontradas.
Além disto, o trabalho infantil constituía um traço da cultura tradicional germânica pré-
industrial que foi conservado devido a perpetuação das mesmas condições produtivas em solo
juizforano. No Grão-ducado do Hessen, por exemplo, sabemos que, sobretudo nas
propriedades campesinas, o trabalho infantil alcançava o mesmo grau de intensidade que
caracterizava as colônias agrícolas teuto-brasileiras no período analisado.
36
O protestantismo é outro elemento cultural que os alemães trouxeram para Juiz de
Fora. Segundo Luiz Antônio Arantes, foi a religião e não a nacionalidade, ou melhor, o
sentimento patriótico, que serviu como fator de diferenciação e identificação entre os
imigrantes. Além disto, para este mesmo autor, em Juiz de Fora se repetiu o mesmo fenômeno
detectado por Max Weber na Alemanha. A lista dos diretores do culto protestante coincidia
com a lista de industriais de origem germânica e, neste sentido, 43,07% das indústrias
instaladas no município entre 1858 e 1912 pertenceram a elementos deste grupo. Seguindo sua
argumentação, Arantes nota que os imigrantes germânicos de filiação católica não aparecem
entre a camada de industriais e nota também que não tiveram destaque econômico e que sua
colônia permaneceu em um nível de desenvolvimento praticamente inalterado até a década de
1960.
37
36
WILLEMS, Emílio. A aculturação...op. cit., p. 244.
37
ARANTES, Luiz Antônio do Valle. As Origens da Burguesia Industrial de Juiz de Fora. Dissertação de
Mestrado. Niterói: UFF, 1991.
25
Gráfico I – Origem Regional dos Imigrantes
28,82
19,53
13,33
12,65
12,65
13,04
Hessen
Tirol
Holstein
Prússia
Baden
Outros
Com relação a origem regional destes imigrantes, é predominante entre os colonos
indivíduos do Grão-ducado do Hessen (335 pessoas – 28,82%); do Tirol (227 pessoas –
19,53%); de Holstein (155 pessoas – 13,33%), da Prússia (147 pessoas – 12,65%) e de Baden
(147 pessoas – 12,65%). Somente destas cinco regiões, temos 86,98% do total de germânicos
contratados pela Cia. União e Indústria. O restante (13,02%) dos imigrantes vieram da
Saxônia, da Baviera, de Hannover, de Nassau, de Hamburgo, de Hessen-Eleitoral, de
Brunswick, entre outros. Assim como em Blumenau, foram o norte e o centro da Alemanha
que forneceram os principais contigentes imigratórios para Juiz de Fora com a diferença que,
na Colônia catarinense, os Estados sulinos e a Áustria forneceram apenas uma minoria católica
enquanto que, na Colônia D. Pedro II, os grupos provenientes de Baden e do Tirol (província
austríaca) somavam quase 1/3 do total de imigrantes.
No período em que esses germânicos chegaram em Juiz de Fora, devido à questão do
dualismo político entre a Prússia e a Áustria, os Estados Alemães estavam divididos em duas
partes não só políticas e econômicas, como geográficas e confessionais. Uma era a Alemanha
do Norte, majoritariamente protestante, parcialmente sob domínio da Prússia. Seu governo
procurava implantar uma política econômica modernizante através de investimentos na
industrialização e numa produção agrícola racionalizada. Esta região via-se obrigada, junto
com outros países europeus e diante do fim do monopólio mercantilista, a reordenar sua
26
política econômica
38
. A adaptação compulsória a nova economia liberal levou à conquista de
novos mercados, principalmente, os dos países americanos recém-independentes.
Ao passo que o sul, católico, mantinha uma economia agrícola baseada na produção
familiar de pequenas propriedades, sujeito à política austríaca, com um governo interessado
em manter a restauração e em realizar acordos diplomáticos através de casamentos dinásticos.
Com vasto império situado ao sudeste europeu, tendo Trieste como porto mediterrânico, este
império prescindia da integração no comércio mundial, transatlântico, voltado para o ocidente.
Pelo contrário, a decomposição do império austríaco, após o fim da Liga Alemã, em 1867,
levando à formação de uma monarquia dupla, austro-húngara, indicou a tendência deste país
em aumentar seu território, não a partir da conquista de colônias na África e/ou na Ásia, mas
sim através da expansão e consolidação de seus domínios nos Bálcãs
39
.
Os movimentos migratórios alemães foram marcados por fases distintas e focos
diferenciados. Moltmann demonstra como, durante a primeira metade do oitocentos, os
emigrantes vinham da região sudoeste, Baviera, Hessen e Renânia
40
. Neste mesmo período,
ainda havia até mesmo escassez demográfica, como a leste do rio Elba. Após 1850, aumenta o
número de emigrantes vindos do centro, do norte e até mesmo do leste alemão, via porto de
Hamburgo. Os lavradores da região a leste do Rio Elba fugiam do trabalho assalariado nas
grandes propriedades dos Junkers, preferindo tentar ser agricultores de suas próprias terras,
ainda que fosse além-mar. Segundo o autor, as maiores levas migratórias ocorreram nos anos
de 1854, de 1873 e de 1882, influenciadas por fatores que vão desde recessões e depressões na
economia até más condições de trabalho
41
.
Os governantes prussianos mantiveram posição contrária à imigração na maior parte do
século XIX, uma vez que ainda havia espaços vazios a serem ocupados na região sudeste do
Rio Elba. Também consideravam o capital humano muito precioso na fase em que estavam, à
38
RADKE, Preussische Seehandlung zwischen Staat und Wirtschaft in der Frühphase der Industrialisierung.
Berlin, Colloquium, 1981, p. 91 . Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e Prússia... op. cit., p. 76.
39
RAFF, Diether. Deutsche Geschichte: vom alten Reich zum vereinten Deutschland. 6. Aufl. München: Wilhelm
Verlag, 1997., p. 170-171. Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e Prússia... op. cit., p.76.
40
MOLTMANN, Günter. “Nordamerikanische Frontier und deutsche Auswanderung – soziale Sicherheitsventile
im 19. Jahrhundert?”. In: Industrielle Gesellschaft und politisches System, 1978, pp. 283-284. Apud: LENZ,
Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e Prússia... op. cit., p. 76.
41
Idem, p. 284.
27
medida em que cada vez mais investiam na produção industrial
42
. Após o fim das guerras
napoleônicas e da restauração da velha ordem aristocrática, em 1815, povos de grande parte do
continente encontravam-se empobrecidos pelos impostos de guerra e destruição de suas
plantações durante as batalhas. Restava-lhes, com o fim da servidão, a libertação da terra, dos
vínculos comunitários, alguns até mesmo adquirindo o direito de emigrar
43
.
Seguindo a tendência oposta, os governos dos Estados sulinos, Baden, Baviera,
Württemberg, incentivavam a saída de sua população para amenizar as tensões sociais
emergentes após anos de guerras, de grandes intempéries de 1817, do súbito aumento
populacional e das misérias e fomes decorrentes. Inicialmente, estas levas migratórias
rumaram para o sudeste europeu ou, a noroeste, de Amsterdã para a América. Houve debates
sobre a questão migratória, inicialmente contra, mas depois a favor. Juntos com as autoridades
locais que, diante do quadro de carestia e fome nos campos e nos vilarejos, aceitaram e mesmo
fomentaram a emigração do excesso populacional como uma solução do tipo “válvula de
escape”
44
.
Estes alemães que chegaram em Juiz de Fora entre 1856 e 1858 foram incorporados,
como afirmamos acima, aos dois empreendimentos da Cia. União e Indústria: como mão-de-
obra qualificada para a construção e manutenção da rodovia; e como colonos, participantes de
um projeto que visava criar trabalho alternativo à atividade escravista na produção de bens de
consumo interno.
Ao contrário das colônias paulistas onde vigorou o sistema de parcerias, a Colônia
Agrícola D. Pedro II, por meio de um representante da Cia. União e Indústria, assinou
contratos com os colonos alemães estipulando o assalariamento, fazendo com que os mesmos
utilizassem suas habilidades nos trabalhos de construção e manutenção da rodovia e na
formação de pequenas lavouras dedicadas à subsistência familiar. Além disso, ficou
estipulado, na sétima cláusula do contrato, que logo que estivessem concluídas as medições
42
SMOLKA, Georg. Die Auswanderung als politisches Problem in der Ära des deutschen Bundes (1815-
1866).Speyer: Speyerer Forschungsberichte, 1993, p. 149. Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e
Prússia... op. cit., p. 80.
43
RAFF, Diether. Deutsche Geschichte... op. cit., p. 73. Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e
Prússia... op. cit., p. 81.
44
Ver FOCKE, Harald. “Friedrich List und die südwestdeutsche Amerikaauswanderung 1817-1846”. In:
MOLTMANN, Günther. Deutsche Amerikaauswanderung im 19. Jahrhundert. Sozialgeschichtliche Beiträge.
Stuttgart: Metzleische u. Carl E. Poeschel, 1976. Apud: LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e Prússia...
op. cit., p. 81.
28
dos lotes da colônia, a Companhia se obrigava a vender aos contratados e suas famílias as
terras como “propriedade livre”, sendo que o terreno nunca poderia medir menos de vinte mil
braças quadradas
45
. Em outras palavras, devido a natureza do contrato assinado, os germânicos
puderam exercer seus ofícios manuais enquanto empregados assalariados da Cia. União e
Indústria e, juntamente com isso, obtiveram o direito de adquirir lotes de terra nas quais, a
partir de então, passaram a cultivar sua subsistência. Nesse sentido, percebe-se que o sistema
que vigorou na colônia local se diferenciou bastante do sistema de parcerias adotados nas
fazendas paulistas, marcado pela falta de salários e da posse de terra por parte dos colonos.
A colônia na qual foram instalados recebeu o nome de Colônia D. Pedro II, estando
separada em duas partes: a colônia agrícola, denominada de Colônia de São Pedro, e a colônia
industrial que recebeu inicialmente o nome de Villagem e, posteriormente, Mariano Procópio.
No meio do caminho entre as duas surgiu uma nova área populacional, designada pelos
próprios alemães de “Borboleta”. Segundo Bastos, tal localidade surgiu como uma forma de
encurtar as distâncias entre os colonos
46
. Entretanto, os germânicos não habitaram apenas em
tais localidades. Assim que chegaram na cidade e venceram as primeiras dificuldades, 50
famílias e 22 solteiros foram morar nas casas que existiam ao lado da estrada que estavam
construindo; 11 famílias e 4 solteiros nas casas da “Boa-Vista”; 13 famílias e 26 solteiros na
estrada da companhia desde Juiz de Fora até Serraria e, a maior parte, 130 famílias e 6
solteiros, foram morar na colônia propriamente dita
47
.
Este processo de inserção dos alemães em Juiz de Fora foi marcado por muitos
problemas e dificuldades. Durante a travessia do Atlântico, houve falta de água potável a
bordo da Barca hamburguesa Teel
48
, o que originou o aparecimento de tifo entre os tripulantes
e os obrigou a ficar vários dias sob observação ao chegarem ao porto do Rio de Janeiro. Ao
desembarcarem, tiveram que viajar em “faluas a vela” até o porto da Estrela, no rio
Inhomirim, nos fundos da baía da Guanabara e dali subiram a serra de Petrópolis. De acordo
45
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit., p. 171.
46
BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, sua descendência. Juiz de
Fora: Caminho Novo, 1961. p. 69-70.
47
Viagem Imperial de Petrópolis a Juiz de Fora por ocasião de inaugurar-se a estrada “União e Indústria”.
Coleção de Artigos publicados no “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro em 1861. Juiz de Fora:
Typographia “Sul”, 1919.
48
As travessias marítimas que trouxeram os imigrantes germânicos para Juiz de Fora se iniciaram em abril de
1858 e findaram-se em junho do mesmo ano. Foram cinco as barcas que realizaram tal intento. A barca Teel
atravessou 231 pessoas; a barca Rhein, 182 pessoas; a barca Gundela, 285 pessoas; a barca Gessner, 249; e a
barca Osnarbrück atravessou 215 alemães.
29
com Stehling, todas as viagens de Petrópolis à Juiz de Fora – então Santo Antônio do
Paraybuna – foram feitas em seis dias, via Paraíba do Sul, viajando as mulheres e crianças em
carroças e os homens sempre a pé. Quando anoitecia, paravam nos acampamentos de
trabalhadores da construção, onde se alimentavam e passavam a noite em barracas de lona
49
.
Já neste episódio, evidenciam-se alguns indícios de que a Cia. não se dispôs a cumprir seus
contratos à risca. Na terceira cláusula do contrato padrão firmado com os colonos, fica
estipulado que “Logo que o Contractado e sua família chegarem as Rio de Janeiro, por-se-
hão á disposição da companhia União e Industria, ou dos seus agentes, para serem
gratuitamente transportados, para a principal estação de Juiz de Fora [...]
50
. Se levarmos
em consideração que caminhar seis dias a pé, de baixo de sol e chuva, é ter a gratuidade do
transporte assegurada, realmente o contrato foi cumprido plenamente.
Na sexta cláusula, ficou estipulado que “A Companhia logo que o Contractado e sua
família chegarem aos logares dos seus destinos
lhes fornecerá gratuitamente e durante um
anno uma habitação conveniente para sua residência, e lhes fornecerá os viveres necessários
para a sua alimentação...”. (todos os grifos são nossos). Mais uma vez o contrato não foi
realizado integralmente. Em um prazo de 59 dias chegaram na cidade do Paraybuna os 1.162
imigrantes alemães, trazendo assim um grande problema para a Cia.: a falta de alojamentos. A
União e Indústria teve que improvisar um acampamento na subida do Morro da Gratidão,
junto à infecta lagoa existente no local. Como dissemos acima, os imigrantes da barca Teel
contraíram tifo durante a viagem por falta de água potável e, devido ao desconforto dos
alojamentos e à má alimentação, irrompeu novamente o tifo entre eles, ocasionando a morte de
34 homens e mulheres, que foram sepultados junto à lagoa da Gratidão, próximo ao atual
Pronto Socorro Municipal.
51
A partir de então, a Companhia iniciou a construção de casas para os colonos nas
colônias do meio, de cima, na Villagem e na própria estação de Rio Novo. Somente no ano de
1863 é que todas as famílias ficaram alojadas em seus prazos.
52
Até o final de 1858 apenas 36
famílias de tirolezes haviam recebido seus lotes para cuidarem de suas criações e plantações,
fato este que causava profundos descontentamentos entre aqueles que ainda não haviam
49
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit., p. 162-3
50
Contrato firmado entre o Dr. F. Schmidt, encarregado pelo diretor-presidente da Cia. União e Indústria, o Sr.
Mariano Procópio Ferreira Lage e o colono Carl Guhl e família.
51
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit., p. 187.
52
Idem, p. 188.
30
recebido suas terras, levando alguns prussianos, badenses e tirolezes a organizar reclamações
coletivas ao diretor da colônia
53
.
Na década de 70 e 80 do século XIX ocorreram dois fatos aparentemente inesperados
pelos alemães: as falências da Cia. União e Indústria e da colônia agrícola D. Pedro II. Alguns
imigrantes e seus descendentes foram forçados, pelas necessidades materiais que iam
surgindo, a abandonar a colônia e até mesmo seus prazos, migrando para a zona urbana em
busca de novos postos de trabalho que lhes dessem melhores condições de sobrevivência.
É a partir deste panorama que percebemos, durante os últimos trinta anos do século
XIX e o primeiro quartel do século XX, a criação de várias entidades de origem alemã. Foram
criados entre 1872 e 1921 sociedades de socorro mútuo, clubes esportivos e associações de
cunho religioso que, apesar da filiação germânica, recebiam também brasileiros necessitados
de apoio.
Como mostraremos no primeiro capítulo, nenhuma das obras que procuraram analisar a
presença da comunidade teuta em Juiz de Fora o fez através da experiência da maior parte do
contigente migratório. Praticamente todos os trabalhos ignoraram os problemas que estes
indivíduos enfrentaram para se estabelecerem em um novo país com hábitos e língua estranha,
ou seja, a maior parte dos pesquisadores procurou somente enfatizar as possíveis contribuições
que tal grupo prestou ao processo de modernização e industrialização de Juiz de Fora. O
passado cheio de dificuldades foi enxergado pela maior parte destes autores apenas como uma
moldura valorizadora do heroísmo daqueles que construíram as primeiras indústrias locais.
Assim sendo, procuraremos relativizar as construções elaboradas pela historiografia
local sobre os alemães através da análise da criminalidade desse grupo entre os anos de 1858
(ano em que a grande maioria dos germânicos chegou em Juiz de Fora) e 1921 (ano de
fundação da última associação alemã em Juiz de Fora – O kegel Club – ou seja, a última
entidade a ser criada com o intuito de reforçar a identidade coletiva deste grupo).
Estaremos analisando os conflitos interpessoais empreendidos pelos germânicos como
uma forma de contra-argumentar a visão histórica limitada construída a respeito deste grupo
por alguns pesquisadores locais. Utilizaremos os crimes envolvendo os germânicos como
fonte documental por acreditarmos que, através da pesquisa embasada em processos criminais,
53
Relatório apresentado pelo Sr. Mariano Procópio Ferreira Lage ao Exmo. Sr. Conselheiro Herculano
Ferreira Pena, Presidente da Província de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1859. p. 38-9.
31
conseguiremos resgatar algumas ações de um grupo que vivenciou novas experiências em
momentos de tensão e conflito numa cidade em transformação.
Alguns historiadores, como Thomas Holloway, por exemplo, acreditam que os dados
obtidos em análises deste tipo de fonte forneceriam apenas indícios para a compreensão do
comportamento dos populares “criminosos”, já que os processos criminais só dariam voz para
aquela parcela da população que lidava cotidianamente com a polícia.
Outra corrente – defendida por Marisa Corrêa, por exemplo – acredita que os arquivos
criminais são capazes de mostrar apenas os comportamentos que os populares exibiam na
frente da justiça, fornecendo assim mais elementos para a compreensão do funcionamento do
aparato judicial do que do comportamento das camadas pobres.
54
No entanto, como bem nos
ensina Clifford Geertz, o que devemos perguntar sobre um ato a ser interpretado não é seu
status ontológico, e sim qual é a sua importância: o que está sendo transmitido com a sua
ocorrência e com sua agência
55
. Também é conveniente lembrar, que um modo excelente de
descobrirmos as normas “surdas” que regem os comportamentos de determinado grupo, é
examinarmos um episódio ou uma situação atípica
56
. A paixão acesa no calor da disputa,
geralmente leva os envolvidos a dizer e fazer coisas reveladoras das motivações que estão por
trás dos acontecimentos.
Para tanto, montamos a seguinte estrutura de trabalho. No primeiro capítulo, baseado
principalmente nas obras dos estudiosos da imigração germânica local, procuraremos
compreender os pilares sobre os quais foram construídas as representações a respeito dos
alemães empregados pela Cia. União e Indústria. Tais indivíduos foram retratados apenas sob
uma ótica ideológica, na qual o alemão era visto como a personificação do progresso, da
civilização e da modernidade. Observaremos também as representações realizadas a respeito
dos alemães na literatura e nas ciências sociais brasileiras da primeira metade do século XX
para, em seguida, compará-las com aquelas criadas pelos pesquisadores juizforanos,
procurando estabelecer as semelhanças entre as várias interpretações enunciadas nestes
trabalhos.
54
BRETAS, Marcos Luiz. O Crime na Historiografia Brasileira: Uma Revisão na Pesquisa Recente. In: BIB. Rio
de Janeiro, n.º 32, 2º semestre de 1991, p. 49.
55
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, s/d, p. 8.
56
THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social In: As peculiaridades dos ingleses e outros
artigos. Campinas: Edunicamp, 2001, p. 235.
32
O segundo capítulo tem por objetivo o mapeamento e análise dos crimes de homicídios
e tentativas de homicídios, ofensas físicas e ofensas verbais envolvendo germânicos nas
condições de réus, vítimas e testemunhas. Procuramos observar o perfil dos envolvidos, as
relações entre eles, os locais, horários e motivos dos crimes relatados nos processos para
tentarmos apreender e compreender alguns valores e normas sociais que regiam seus
comportamentos. Estes processos auxiliarão também na percepção dos motivos alegados pelas
partes envolvidas para cometerem tais ações, possibilitando a percepção das relações entre os
germânicos e outras etnias, as relações dos germânicos entre si e também a compreensão da
relação que o aparato jurídico-policial mantinha com esse grupo e vice-versa.
O terceiro capítulo apresenta análises semelhantes para os crimes de furto, roubo e
dano. Optamos por separar esses tipos de crimes dos demais apenas por uma questão temática,
já que os delitos presentes no capítulo dois se encontram na categoria judicial de crimes contra
a “Segurança da Pessoa e da Vida” e contra a “Honra e Boa-Fama” e as querelas presentes
neste capítulo permeiam os crimes contra a “Propriedade”.
No quarto capítulo realizaremos uma análise mais qualitativa de um processo criminal
envolvendo uma tentativa de sublevação na colônia agrícola D. Pedro II. Faremos uma
radiografia da revolta, tentando perceber todas as suas motivações e conseqüências. Para tal
intento, utilizaremos dois conceitos elaborados por James Scott – Transcrição Pública e
Transcrição Oculta – que possibilitarão o acesso às representações elaboradas pelos alemães
na face do poder, marcados por signos de deferência, e aquelas realizadas nos bastidores deste
mesmo poder. Analisaremos assim as expressões ditas e vivenciadas pelos colonos e, através
delas, teremos elementos para compreendermos o porque de suas ações. Através deste capítulo
pretendemos propiciar uma unidade maior para uma compreensão global do tema, bem como
relativizar a visão idealizada que a historiografia local construiu a respeito da comunidade
teuta que veio habitar em Juiz de Fora.
33
CAP. 1 – AS REPRESENTAÇÕES ACERCA DO IMIGRANTE GERMÂNICO.
Desde a segunda década do século XX, o estudo da imigração teuta em Juiz de Fora
tem sido um tema recorrente na historiografia local. A partir da década de 1960, a cada
decênio surgiu pelo menos uma nova obra de referência sobre o assunto, mas, como veremos
abaixo, todas elas, com exceção de uma, mantiveram um importante elemento central que
marcou profundamente o senso comum juizforano e até mesmo a visão acadêmica a respeito
do assunto.
Em quase todas as obras observamos representações destes indivíduos permeadas de
adjetivos supervalorativos. São, na maior parte das vezes, descritos como agentes do progresso
local, implementadores da civilização e do processo de industrialização do município, como
indivíduos disciplinados para o trabalho e como empreendedores. Entretanto, percebe-se
claramente que tais obras só ressaltaram a operosidade e a modernidade daquelas famílias que,
de uma forma ou de outra, conseguiram abrir alguns estabelecimentos proto-industriais,
omitindo da história da imigração local a maior parte do contigente de germânicos, formada
por agricultores expropriados e pobres que, longe de serem ricos capitalistas, acabaram
formando parte do mercado consumidor e de mão-de-obra barata, essencial para o
desenvolvimento da indústria local.
Veremos também, na segunda parte deste capítulo, que este tipo de caracterização da
população germânica emigrada para o Brasil, perpassa de forma relativa também por grandes
nomes da literatura nacional e por autores do porte de Sylvio Romero e Oliveira Vianna.
1.1
A figura do alemão através das lentes dos pesquisadores locais
Analisando a bibliografia referente ao tema proposto, observamos que o primeiro livro
a tratar do assunto foi o “Almanach de Juiz de Fora” escrito por Albino Esteves em 1914
57
.
Esta obra, como não poderia deixar de ser, já que é fruto de seu tempo, foi escrita tendo por
base a História Tradicional. Vemos em todo o texto a preocupação com a narração dos fatos,
57
ESTEVES, Albino. Almanach de Juiz de Fora – 1914. Juiz de fora: Typografia Brasil, 1914.
34
com a pressuposta “neutralidade” do autor em descrevê-los e, em última análise, a
preocupação com o enaltecimento das elites locais e do progresso da cidade, podendo ser ele
descrito como herdeiro direto ou indireto das abordagens relacionadas à Escola Metódica. Nos
capítulos em que enfatiza o desenvolvimento comercial e industrial da cidade, os imigrantes
germânicos aparecem indiretamente como os idealizadores e concretizadores da
industrialização local visto que, segundo Esteves, fundaram quase a metade dos
estabelecimentos fabris do município no século XIX.
Depois de 39 anos, surge a obra “História de Juiz de Fora” de Paulino de Oliveira
58
.
Mantendo as mesmas peculiaridades acima descritas, este livro pouco apresenta de
originalidade sobre o assunto da imigração alemã. Retirando a grande maioria de suas
informações do Álbum de Albino Esteves, de alguns jornais bem como de relatos de
descendentes dos colonos, esta obra começa a consolidar a imagem do alemão como promotor
do desenvolvimento industrial pelo qual a cidade passou nos últimos trinta anos do século
XIX.
Por ocasião do centenário de inauguração da Rodovia União e Indústria, em 1961,
Wilson de Lima Bastos publica um livro contando a história da vida e das obras de Mariano
Procópio Ferreira Lage, idealizador e fundador da Cia. União e Indústria. Segundo o autor, a
atuação de Mariano deveria ser relembrada “pela importância desempenhada em sua época e
pelas projeções ao processo de desenvolvimento regional, de que foi o ponto de partida
59
”. A
partir de registros de batismos, diários, cartas enviadas e recebidas de autoridades, Bastos
ressalta nos primeiros capítulos de seu livro a origem, as atividades da juventude, a paixão que
Mariano Procópio demonstrava pela tecnologia bem como, suas viagens pela Europa e pelos
Estados Unidos onde descobriu o processo de macadamização de estradas. Nestes mesmos
capítulos, são exaltados os feitos principais e as posições ocupadas por Mariano Procópio na
sociedade imperial, sendo apresentado como um homem de larga visão, progressista e liberal,
que abriu as portas para o avanço do progresso em Juiz de Fora através da construção da
estrada de rodagem.
No capítulo reservado à mão-de-obra empregada pela Cia., Bastos expõe a imigração
germânica como um apêndice da União e Indústria; cumprindo a função de por em prática o
processo de desenvolvimento local, fazendo Juiz de Fora se projetar, anos depois, em um dos
58
OLIVEIRA, Paulino. História de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Dias Cardoso, 2ªed. 1966.
59
BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio... op. cit., p. 7.
35
centros de maior progresso da província e do país: “Sem os imigrantes alemães [...], a cidade
não estaria hoje na situação em que se encontra. [...] Dedicados aos trabalhos braçais, no
amanho da terra e aos serviços técnicos da indústria, os alemães iniciaram os primeiros
núcleos industriais”
60
. A princípio, Bastos apresenta a representação tradicional do imigrante
teuto que sobreviveu no senso comum: agentes do progresso e da ordem, além de iniciadores
do processo industrial da cidade.
Ao tratar do tema, utilizando como fontes os relatos de Albino Esteves, de Paulino de
Oliveira, informações fornecidas por Luiz José Stehling, artigos de jornais e os relatos
registrados por ocasião da inauguração da rodovia pela família imperial, Bastos revela uma
visão altamente paternalista de Mariano Procópio em relação aos colonos, esquecendo-se dos
problemas enfrentados por estes nos primeiros anos de habitação na Colônia, da falta de
empregos, da resistência à proletarização e das escassas possibilidades de subsistência que esta
comunidade encontrou em sua inserção no município. Segundo o referido autor, Mariano
Procópio “Fornecia alimentos e créditos, no primeiro ano, aos que necessitavam, e, conforme
as aptidões de cada um, foram oferecidos serviços da própria empresa, com diárias de $700 e
1$400
61
”. Entretanto, não foi esta a visão que alguns colonos guardaram do tratamento
fornecido nos primeiros meses de estadia na Colônia D. Pedro II. De acordo com uma
germânica, nos primeiros dias de janeiro de 1859, “no Armazém (da colônia) só havia feijão e
sal e mais nada
62
. O atraso nos salários, a demora na entrega das terras e a falta de alimentos
foram as principais causas mencionadas por alguns colonos que participaram de uma tentativa
de sublevação na colônia em dezembro de 1858; sublevação esta que analisaremos no último
capítulo.
Apesar de uma visão parcialmente idílica, Bastos nos fornece informações importantes
a respeito de fugas da colônia no primeiro ano (quase 5% do imigrantes); relata que já na
primeira geração houveram pelo menos dois casamentos de moças alemãs com operários
locais e também nos mostra a disposição espacial destes indivíduos ao longo da
municipalidade. Além disso, ele problematiza que foram apenas os primeiros artífices que
chegaram em 1856 que conseguiram, devido a vantagens contratuais em relação aos colonos
de 1858, acumular um certo pecúlio, associando-o às capacidades técnicas que possuíam,
60
Idem, p. 68.
61
Ibidem, p. 71.
62
AHMJF, processos criminais – Ameaças: cx 45, 31/12/1858.
36
dando a Juiz de Fora sua feição industrial. A respeito dos agricultores, Bastos afirma que,
devido à má qualidade das terras, estes só conseguiram plantar pequenas hortas e pomares
ficando assim sem possibilidades de acumular capital. Permaneceram em suas propriedades,
complementando suas rendas com atividades no comércio; não usufruindo da mobilidade
sócio-econômica como fizeram os artífices.
Apesar de levantar estas hipóteses, que mais tarde foram confirmadas por Mônica de
Oliveira com algumas restrições, o resultado final obtido por esta obra foi o de relatar dados
factuais (na maioria das vezes obtidos em fontes secundárias) sem muita análise. Da mesma
maneira que a maior parte dos estudiosos anteriores e posteriores a respeito deste tema, Bastos
olha para o passado de maneira anacrônica, observando-o sob as luzes do desenvolvimento
econômico que uma seleta minoria destes imigrantes conseguiu. Boa parte dos fatos narrados
acaba por omitir a grande maioria dos germânicos que vieram tentar uma vida melhor.
Enganados por aliciadores e com lotes de terras de péssima qualidade, foram obrigados a
abandonarem seus prazos para sobreviverem também como operários, caixeiros e
trabalhadores do comércio.
Considerada por todos os estudiosos do tema como a mais importante obra sobre a
colonização germânica em Juiz de Fora, o livro “Juiz de Fora, a companhia União e Indústria e
os Alemães” de Luiz José Stehling foi aquele que, sem dúvida, trouxe as principais
informações a respeito do tema até os dias de hoje. Neto dos primeiros imigrantes, Stehling
atuou como um verdadeiro “minerador”, remexendo os arquivos de Minas Gerais, Rio de
Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul a procura de qualquer indício que remetesse ao
assunto que foi seu tema de toda a vida. Autodidata, foi através de suas buscas que tivemos
acesso a informações fundamentais para a compreensão de aspectos básicos do cotidiano da
população teuta local. Utilizando-se de livros e revistas que abordam a história brasileira, a
história da imigração e a história local do ponto de vista tradicional, além de jornais e
documentos pessoais dos imigrantes, Stehling nos mostrou questões a respeito da religiosidade
dos germânicos, da formação de associações e clubes de origem alemã e toda a
contextualização da formação da Cia. União e Indústria, da Colônia Agrícola D. Pedro II, do
sistema produtivo dos imigrantes, entre outras coisas. Todavia, apesar de ser imprescindível
para todos que se dedicam ao tema, esta obra pouco contribuiu com análises, ficando centrada
37
na descrição factual de dados, mantendo assim os mesmos atributos anteriores a respeito do
papel da comunidade teuta na industrialização e modernização da cidade:
“Se V.S.a. encontrar citação que julgue inverídica, ao ler este
documentário, antecipo minhas desculpas pois, não tendo sido testemunha
ocular, apoiei-me, para escrever esta história, nas fontes citadas e, assim, julgo
estar rigorosamente correto meu trabalho.
Sem medo de enganar, afirmo
ainda, que a industrialização desta cidade foi iniciada com a vinda dos
engenheiros, artífices e colonos. Posteriormente, este núcleo atraiu técnicos,
professores, músicos e artistas, que muito contribuíram para seu
desenvolvimento cultural.
63
(grifo meu)
Além disso, no capítulo “Cooperação no Progresso de Juiz de Fora”, depois de
afirmar que “negar a cooperação dos alemães e descendentes deram ao desenvolvimento de
Juiz de Fora é o mesmo que negar a existência do sol”. Stehling passa a relacionar as
contribuições para o progresso e os indivíduos que as realizaram. Afirma que várias pontes, o
primeiro matadouro, teatros, o fornecimento de lampiões para a primeira iluminação pública, a
instalação da primeira linha de bondes à tração animal, os principais colégios locais do século
XIX e XX, centros culturais e, como não poderia deixar de ser, indústrias, surgiram graças à
operosidade dos germânicos. Da mesma forma, constrói uma enorme lista de teuto-brasileiros
que se destacaram como personalidades locais, enfatizando obviamente os médicos, os
engenheiros, os dentistas, os professores, os intelectuais, os farmacêuticos, os advogados, os
sacerdotes, os militares e os técnicos especializados.
Stehling acaba sendo bastante parcial na exposição de suas reflexões. Confunde o
sistema de manufaturas domésticas desenvolvido por alguns germânicos com o sistema
industrial propriamente dito, supervalorizando assim, a contribuição desta etnia para o
progresso industrial local; lembra-se apenas dos descendentes dos primeiros artífices que
conseguiram montar seus estabelecimentos e ascender socialmente, omitindo os colonos
agricultores que permaneceram pobres. Indiretamente, adjetiva os imigrantes como
progressistas, disciplinados para o trabalho, portadores de um ethos civilizado onde, sem a
presença deles, Juiz de Fora seria apenas mais uma “cidadezinha” atrasada e não-
industrializada do interior brasileiro. Acaba assim reafirmando e ampliando o mito do “alemão
empreendedor”, iniciado por Albino Esteves, no qual os alemães locais aparecem como
63
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora... op. cit., p. 17.
38
agentes da modernidade, omitindo as penúrias e problemas enfrentados pelos empregados da
Cia. União Indústria e habitantes da colônia Pedro II em prol de uma visão idílica a respeito
dos colonos germânicos.
Em 1987, o Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora publicou uma coletânea de
artigos a respeito da História Econômica de Juiz de Fora
64
, ministrados em forma de curso por
alguns de seus membros no período de 19 de Outubro a 11 de Novembro do mesmo ano.
Dentre estes artigos, dois deles abordam direta e indiretamente aspectos relativos aos
imigrantes germânicos, mantendo ainda a visão tradicional a respeito do assunto.
Objetivando estabelecer as contribuições que os imigrantes alemães deram para os
primeiros passos do progresso industrial de Juiz de Fora
65
, Newton Barbosa de Castro não faz
aquela apologia quase inocente de seus antecessores partindo da constatação de que os
germânicos não foram os únicos responsáveis pelo processo de industrialização local.
Utilizando-se de um artigo de Domingos Giroletti escrito em 1980
66
, Castro afirma que os
imigrantes italianos e empresários nacionais também fomentaram a criação das fábricas locais.
Entretanto, em algumas de suas considerações, o referido autor acaba deixando escapar
que para ele a primazia do processo coube aos alemães:
“Foi estabelecido um núcleo colonizador, de onde se teria irradiado um
surto industrial, ainda na segunda metade do século XIX, que transformou o
pequeno povoado na mais importante cidade industrializada de Minas Gerais,
posição que desfrutou até as três primeiras décadas do século XX.
67
Ou seja, segundo ele, sem a presença dos alemães, Juiz de Fora não teria progredido da
maneira que o fez. Neste sentido, acaba valorizando os germânicos em detrimento dos outros
grupos que ele mesmo indica como participantes do processo.
Na parte em que analisa a formação do mercado consumidor e de mão-de-obra,
Newton Barbosa de Castro acerta em dizer que estes colonos em muito contribuíram para a
criação de um mercado de mão-de-obra qualificada, mas exagera novamente em nomear de
estabelecimentos industriais as manufaturas domésticas criadas através da acumulação de
64
História Econômica de Juiz de Fora. Juiz de Fora: IHGJF, 1987.
65
CASTRO, Newton Barbosa. A contribuição dos alemães para a industrialização de Juiz de Fora. In: História
Econômica de Juiz de Fora. Juiz de Fora: IHGJF, 1987. p. 61-70.
66
GIROLETTI, Domingos. O processo de industrialização de Juiz de Fora: 1850 a 1930. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro (Análise de conjuntura, vol.10, março de 1980).
67
CASTRO, Newton Barbosa. A contribuição dos alemães... op. cit., p. 61.
39
capital por parte de alguns ex-artífices da Cia. União e Indústria. Todavia, acaba concluindo
muito bem seu texto mostrando-nos que apesar de serem fábricas de pequeno capital, tal fato
não desmerece a contribuição para a história local, a saber: a ampliação do mercado de
trabalho, a prestação de serviços, a criação de uma classe média significativa que ajudou muito
a formar um mercado consumidor significativo na região.
Apesar de manter as principais características de seus antecessores, é a partir deste
pequeno texto de Newton Barbosa, que as análises a respeito de uma contribuição dos
imigrantes passam a ser mais moderadas e um pouco menos apologéticas. Entretanto, este
autor ainda mantém a visão tradicional acerca dos germânicos como agentes do progresso e
implementadores da civilização que veio a florescer em Juiz de Fora nos últimos vinte e cinco
anos do século XIX.
Analisando a distribuição e a utilização da energia elétrica produzida pela usina
hidrelétrica de Marmelos, Almir de Oliveira
68
indica que vários estabelecimentos de
propriedade de alemães passaram a utilizar tal energia no momento de sua disponibilidade: a
Fundição Kascher, a Fundição George Grande, o Curtume Krambeck, a cervejaria José Weiss,
a S. A. Henrique Surerus, entre outras. De acordo com Almir de Oliveira, o fato que realmente
ajudou a acelerar a industrialização local foi a utilização de energia elétrica no processo
produtivo, gerando assim mais produtividade e eficiência na produção.
Utilizando-se de fontes secundárias, principalmente do trabalho de Stehling e do
mesmo artigo de Domingos Giroletti citado acima, Almir de Oliveira afirma que o processo de
industrialização local teve origem com Mariano Procópio e com a Cia. União e Indústria e não
com uma possível diversificação de capital realizada pelos fazendeiros de café. Segundo ele,
com a vinda dos alemães, Juiz de Fora passou a contar com uma mão-de-obra mais qualificada
já que, mais da metade destes imigrantes foi sendo utilizada nos setores de comércio e
prestação de serviços. Mostra também que no período entre 1860-89, vários destes imigrantes
instalaram várias oficinas de artesanato e manufatura, rompendo assim com a visão tradicional
que enxerga o germânico como agente do progresso e implantador do sistema fabril local.
O referido autor acaba mostrando indiretamente que a maior parte destes
empreendimentos estariam mais ligados as corporações de ofício e assim, ao artesanato, do
que à industria moderna, sendo os estabelecimentos citados acima, apenas exceções. Estes
68
OLIVEIRA, Almir de. O advento da energia elétrica em Juiz de Fora. In: História Econômica de Juiz de
Fora. Juiz de Fora: IHGJF, 1987. p. 82-92.
40
últimos eram, em sua grande maioria, empresas de transformação de alimentos (bebidas e
doces) que, associados às técnicas domésticas seculares, passaram a utilizar-se de alguns
desenvolvimentos tecnológicos trazidos pela mecanização da produção a partir de meados da
década de 1880.
Como a maior parte das fábricas alemãs foram fundadas depois de 1870, época da
industrialização mecanizada, Almir mostra que os germânicos mais participaram do processo
de implementação fabril do que foram seus fundadores, atuando primordialmente na
ampliação dos setores de mão-de-obra e de mercado consumidor.
Por meio deste artigo, percebe-se que foi uma confluência de fatores tais como: os
capitais do café, a energia elétrica, o sistema rodoferroviário e a implementação de serviços
estruturais (telefone, água encanada, sistema bancários etc.) que possibilitaram poucas das
modestas manufaturas dos alemães a se transformarem pequenas indústrias. Assim, a
operosidade germânica acaba sendo relativizada, já que verificamos que os poucos alemães
que abriram estabelecimentos fabris mais se beneficiaram da mecanização da produção do que
foram de fato seus fundadores e gerenciadores.
Percebemos então que até este período, praticamente toda a historiografia local sobre a
imigração alemã esteve profundamente comprometida com uma abordagem altamente
ideológica. Com a exceção do trabalho de Almir de Oliveira, as obras analisadas encaram o
imigrante alemão não só como boa mão-de-obra, mas como elemento gerador de progresso,
disciplinado para o trabalho, sadio, pacífico e portador de mentalidade civilizada, ajudando
assim a consolidar o mito, iniciado por Albino Esteves, que domina o senso comum juizforano
até os dias de hoje: o mito do “alemão empreendedor”. Estes cronistas e/ou autodidatas
atribuíram a alguns poucos indivíduos destacados desta etnia a responsabilidade direta e quase
exclusiva pelo desenvolvimento industrial e urbano pelo qual passou Juiz de Fora no século
XIX. Não é por acaso que as obras desses pesquisadores citados trazem considerações bastante
parecidas a respeito do papel desempenhado pelos imigrantes alemães na cidade, apesar da
distância cronológica entre os trabalhos. Todos eles eram ou são membros do Instituto
Histórico Geográfico de Juiz de Fora. Assim como o estabelecimento carioca
69
, o Instituto
local e seus membros buscaram cumprir o papel de construir uma história oficial, de recriar
um passado, solidificar mitos de fundação e de ordenar fatos buscando homogeneidades em
69
Para maiores informações a respeito do IHGB ver: SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo das raças. São Paulo:
Cia. das Letras, 1993. Especialmente o capítulo 4.
41
personagens e eventos até então dispersos. Financiado pelos próprios sócios, o IHGJF acabou
se especializando na produção de um saber de cunho oficial. Além do desejo de fundar uma
historiografia regional e original, percebe-se nas obras desses pesquisadores a intenção não só
de ensinar e divulgar conhecimentos, mas de formular uma história que se dedicasse à
exaltação do município e dos vultos locais que de alguma forma contribuíram para o
engrandecimento de Juiz de Fora.
Este panorama, entretanto, começou lentamente a se modificar com a contribuição de
Domingos Giroletti, mais vinculada à historiografia acadêmica produzida nos centros de
pesquisa das universidades federais. Estudando a industrialização local de uma forma mais
ampla, enfatizando a origem do capital, da mão-de-obra, do empresariado e da formação do
mercado; D. Giroletti analisa a expansão da cafeicultura na Zona da Mata relacionando-a com
o povoamento e ocupação da região, com a possibilidade de acumulação de capital e com o
crescimento do mercado interno representado pelo desenvolvimento do sistema de transporte
rodoviário. De acordo com este autor, a abertura da Rodovia União e Indústria acabou
transformando Juiz de Fora em um entreposto comercial – já que, de tal município partiam
cerca de 55.6% do volume total de cargas – e, consequentemente, possibilitou uma maior
concentração de capital na região. Isto ocorreu, dentre outros fatores, porque o sistema de
transporte da Cia. União e Indústria conseguiu proporcionar um maior e mais eficiente
escoamento de produtos agrícolas – leia-se café – e de produtos comerciais, libertando a
aristocracia local dos encargos e do ônus de manutenção de uma tropa particular de muares
para garantir o fluxo de tais mercadorias
70
.
A respeito do fator mão-de-obra, Giroletti indica a imigração alemã como um dos
fatores mais relevantes deste processo. A vinda de indivíduos de origem germânica
intensificou a divisão social do trabalho no município diversificando o mercado de mão-de-
obra e o mercado interno. Concluídos os prazos dos contratos, uma parte dos colonos
continuou no cultivo de suas terras, desenvolvendo uma agricultura de subsistência. Neste
caso, a Colônia desempenhou a função de reserva de mão-de-obra e a pequena produção
camponesa complementava sua reprodução. Os demais germânicos acabaram constituindo o
mercado de trabalho com algum nível de especialização
71
.
70
GIROLETTI, D. A Industrialização de Juiz de Fora: 1850 a 1930. Juiz de Fora: Edufjf, 1988. p. 40-4.
71
Idem. p. 65.
42
Além disto, ele atribuiu a fundação dos primeiros empreendimentos industriais
(pequenas oficinas, com baixa produção e produtividade, utilizando tecnologia rudimentar,
com baixo índice de capital investido e de operários. Nestas fabriquetas o proprietário também
era produtor direto e a produção dependia basicamente das habilidades dos artífices) àqueles
imigrantes que conseguiram associar suas habilidades profissionais às poupanças acumuladas
durante o período em que trabalhavam como operários para a Cia. União e Indústria. Uma das
formas mais utilizadas para a formação de tais estabelecimentos foi a associação de dois ou
mais companheiros, normalmente irmãos ou parentes
72
.
Este trabalho, apesar de inovar tematicamente em relação àqueles produzidos pelos
membros do Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora, ao qual esteve vinculada a maior
parte das análises anteriormente citadas, e de inaugurar uma outra perspectiva no estudo da
imigração germânica local – já que foi a primeira pesquisa a abordar o assunto através das
lentes da Academia – acabou reafirmando o mito já destacado, o qual só foi contestado quase
dez anos mais tarde.
Influenciados pelas perspectivas abertas pela “Escola dos Annales” – uma história
problema, viabilizada pela abertura da disciplina às temáticas e métodos das demais ciências
humanas – bem como pelas obras de Max Weber e Karl Marx, surgiram dois trabalhos que,
mesmo tratando o assunto sob perspectivas diferentes, romperam em vários aspectos com a
historiografia tradicional, visto que refletiam uma mudança historiográfica e teórico-
metodológica advinda com pesquisas produzidas pelos professores ligados ao departamento de
História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Preocupado em reconstituir os elementos básicos que condicionaram a formação e a
caracterização da burguesia juizforana no período de transição da economia escravista para o
capitalismo, o professor Luiz Antônio do Valle Arantes buscou destacar em seu trabalho as
origens étnicas, econômicas e sociais do referido grupo. Também procurou observar o papel
econômico da ética protestante e das outras éticas econômicas das quais eram portadores os
indivíduos e/ou grupos que participaram efetivamente do processo de constituição da
burguesia local, destacando as principais diferenças de comportamento entre o grupo dos
fazendeiros de café e o grupo dos industriais capitalistas. Neste sentido, influenciado pelas
72
Idem. p. 77.
43
análises Weberianas a respeito do surgimento do capitalismo moderno
73
, Arantes atribuiu aos
alemães de filiação protestante a primazia na implantação de indústrias na cidade
74
.
Relativizando a tese clássica do isolacionismo que Roberto Martins e Francisco
Iglésias aplicaram para o interior de Minas Gerais
75
, – segundo a qual a base da atividade
industrial estaria na atividade doméstica, voltada para a subsistência, gerando fábricas de
pequeno investimento de capital e um fracionamento da província em vários mercados; tudo
isso devido ao isolamento da economia regional em relação ao desenvolvimento da economia
exportadora – Arantes passa a analisar as argumentações nas quais são enunciadas a relação
entre o desenvolvimento da cafeicultura e a industrialização
76
. Dialogando primordialmente
com Giroletti – autor que, entre outras coisas, marca o início do desenvolvimento do
município com a abertura da rodovia União e Indústria – Arantes, ao contrário deste, defende
que o capital aplicado diretamente na indústria proveio predominantemente da própria
atividade industrial e, em menor proporção, do setor de comércio. Afirma também que
somente de forma minoritária o setor cafeeiro participou deste processo.
Segundo o autor, por não possuírem uma “mentalidade capitalista” – conceito no
mínimo polêmico – os fazendeiros cafeicultores locais muito raramente investiam em
estabelecimentos industriais, possuindo somente uma importância indireta no processo de
industrialização, pois, com o capital acumulado neste setor, tornou-se possível a criação de
uma infra-estrutura urbana, de um mercado consumidor e a promoção da imigração
77
. Partindo
da análise dos testamentos dos principais fazendeiros do período, Arantes afirma que, por
possuírem uma mentalidade “arcaica” – compulsão pelo jogo, aversão ao trabalho manual,
alcoolismo, paternalismo etc. – estes fazendeiros estariam muito longe de possuírem uma
racionalidade capitalista em seu sentido clássico.
Entretanto, Arantes acaba se equivocando ao proferir tais constatações. Em primeiro
lugar, utilizando-se do conceito de “mentalidade moderna/capitalista”, o autor acaba
73
Nos referimos mais especificamente a WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São
Paulo: Martin Claret, 2001.
74
ARANTES, Luiz Antônio Valle. As origens da Burguesia industrial... op. cit. Passim.
75
MARTINS, Roberto Borges. Economia escravista em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte:
CEDEPLAR, 1980. & IGLÉSIAS, Francisco. Política econômica do governo provincial mineiro (1835/1889).
Rio de Janeiro: s/ed., 1958.
76
LIMA, João Heraldo de. Café e indústria em Minas Gerais – 1870/1920. Campinas: UNICAMP, 1977. &
DIAS, Fernando Corrêa. Aspectos do surto industrial de Juiz de Fora. In: Revista da UFMG. Belo Horizonte,
março de 1982.
77
ARANTES, Luiz Antônio do Valle. As origens da Burguesia Industrial... op. cit., p. 35-46.
44
racionalizando demasiadamente, de forma negativa, a agência individual dos fazendeiros no
processo histórico de industrialização, acreditando que, somente se houvesse intenção destes
indivíduos em diversificar os capitais acumulados com o café, é que tal grupo deveria ser visto
como implementador da modernização local. Nesta perspectiva, o referido processo histórico é
simplesmente percebido como a soma das ações individuais, ou melhor, de projetos
individuais de determinados grupos.
A “hiperracionalização negativa” – indivíduos arcaicos não podem investir em
indústrias – acaba tendo um papel retórico na argumentação de Arantes, no sentido de tentar
desvalorizar este grupo em prol dos alemães protestantes, verdadeiros implementadores do
processo para o autor. Com uma visão muito particular deste processo, Arantes acaba
passando a impressão, apesar de ressaltar a importância relativa da cafeicultura, de que o setor
cafeeiro só teria realmente contribuído para a industrialização se seus membros tivessem
investido de forma direta e consciente no sistema fabril, como se não fosse o bastante a
acumulação de capitais que proporcionou as transformações no setor urbano
78
.
Segundo Arantes, foram os imigrantes germânicos de origem protestante que
instalaram 28 (43,07%) das 65 indústrias em Juiz de Fora
79
no período entre 1858 e 1912.
Todavia, percebe-se claramente na argumentação do autor uma confusão entre as manufaturas
criadas por boa parte destes imigrantes e o sistema industrial propriamente dito. Observa-se
também, que o mesmo se esquece que não é o número de indústrias que indica o forte ou fraco
desenvolvimento industrial, mas sim os investimentos de capitais aplicados, o potencial de
produção, o número de operários empregados, o percentual da mecanização dos
estabelecimentos, entre outros.
Apesar de serem mais de 40% dos estabelecimentos fabris, as indústrias alemãs
empregavam somente 21,8% da mão-de-obra utilizada no município, sendo que das vinte e
oito, somente nove possuíam mais de 20 funcionários por fábrica e as dezenove restantes
possuíam uma média de apenas cinco funcionários
80
. Além disso, com a exceção de cinco
fábricas
81
, o restante delas não possuía um número de operários, de investimentos e de
78
Conforme afirma PIRES, Anderson J. Capital Agrário, investimento... op. cit.
79
ARANTES, Luiz Antônio do Valle. As origens... op. cit., p. 88.
80
Idem. p. 142-160.
81
São elas: a fundição de Schubert e irmãos e Hass (1861); a fundição de Kascher (1865) e a de Francisco
George Grande (1874); A fábrica “chave de ouro”, de Degwert (1883) e a fábrica de meias de Antônio Meurer
(1891).
45
mecanização mínima para serem consideradas indústrias no período de suas fundações. Nestes
lugares, era a habilidade artesanal dos trabalhadores que regia o processo produtivo.
Outra questão importante é a associação que Arantes faz entre o desenvolvimento
industrial germânico e o protestantismo. De acordo com seus dados, todos os estabelecimentos
fundados o foram por alemães luteranos atuantes em seus templos. Entretanto, acreditamos
que não foi somente a solidariedade entre os protestante e sua dita capacidade de acumular que
propiciou a este grupo a possibilidade de criar manufaturas e indústrias. Analisando os
indivíduos envolvidos nesse processo, percebemos que sua quase totalidade era formada pelos
artífices e técnicos que emigraram para Juiz de Fora em 1856 com um contrato muito mais
vantajoso do que aquele assinado pelos colonos que vieram em 1858.
As cláusulas do contrato entre a Companhia e os artífices previam: a duração de dois
anos contados a partir do dia de chegada em Juiz de Fora; um salário de 2$000 por jornada de
trabalho, pagos no final de cada mês; transporte, tanto por mar quanto por terra, até Juiz de
Fora, pagos pela Cia.; provisão de alimentos e moradias gratuitas durante a vigência do
contrato; no caso de inadimplência por parte da companhia os trabalhadores seriam
indenizados; entre outras.
Já as cláusulas contratuais dos colonos diferiam muito daquelas dos artífices. As dos
primeiros prescreviam que as despesas com a passagem do colono e de seus familiares seriam
pagas pelo mesmo; o teto salarial variava de 700 a 1$400, sendo o maior valor válido, talvez,
para os primeiros contratados e o menor estipulado para aqueles que chegaram na última leva;
além disso, o valor das despesas com a viagem seria descontado do salário mensal dos
colonos
82
.
Sem maiores gastos e com quase tudo provido pela empresa de Mariano, alguns destes
artífices conseguiram poupar um certo pecúlio, fato este que os ajudou a criar seus próprios
estabelecimentos, principalmente no período posterior a falência da Cia. quando se viram
obrigados a caminharem com suas próprias pernas. Já os colonos, por terem que pagar as
despesas da viagem, as despesas com a aquisição de suas terras e por terem de suprir sua
própria subsistência, se viram impossibilitados de realizar qualquer espécie de poupança,
sendo obrigados a vender sua força de trabalho nas indústrias e no setor de comércio como
forma de assegurarem sua sobrevivência.
82
ESTEVES, Albino. Mariano Procópio: trabalhos originais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro: jan./mar. 1956. Nota 43, p. 170-1.
46
Sendo assim, acreditamos que foram os fatores sócio-econômicos citados que
acabaram promovendo a possibilidade de acumulação por parte de alguns indivíduos
tecnicamente capacitados, propiciando assim a aplicação de um pequeno capital em um
negócio próprio
83
.
Apesar de trazer importantes contribuições para a análise da comunidade teuta local,
analisando-a através das lentes weberianas da ética protestante, a pesquisa de Arantes continua
presa na mesma estrutura dos trabalhos de seus antecessores. Tendo a necessidade de valorizar
os alemães protestantes para comprovar suas hipóteses, Arantes acaba fazendo uso dos
mesmos artifícios retóricos bem como das opiniões dos políticos liberais do império – como
um Tavares Bastos, por exemplo – que enxergavam o imigrante europeu protestante como
agente do progresso. Neste sentido, acabou reafirmando indiretamente com seu estudo as
opiniões difundidas pelos autores analisados anteriormente, nas quais o elemento germânico é
visto como agente e implementador do progresso e da civilização e como grupo que
modernizou e industrializou o município, esquecendo-se da maior parte dos imigrantes, que
foram utilizados unicamente como mão-de-obra barata necessária para a acumulação de
capitais pelos industriais.
Na perspectiva oposta, Mônica Oliveira dirigiu sua pesquisa para a contestação das
teses que supervalorizam a contribuição do imigrante alemão para o desenvolvimento
industrial da cidade e para a formação da burguesia industrial local
84
. Para esta autora, a
chegada dos alemães e sua vagarosa inserção na cidade criou novos estímulos ao crescimento
das funções urbanas que anteriormente eram muito reduzidas.
Através das listagens de contribuintes de impostos da cidade, a autora observou que a
partir de 1861, ficava cada vez mais clara a presença de germânicos atuando como
comerciantes, caixeiros, carroceiros ou em oficinas de marcenaria, latoaria, entre outras.
Fazendo um levantamento do parque industrial de Juiz de Fora em 1907, demonstrou também
que os principais setores da indústria eram ainda o têxtil e o de alimentos, já que empregavam
um maior número de operários, investimentos e força motriz. As indústrias têxteis já haviam
superado a fase manufatureira mas as fábricas de alimentos – fundadas em sua maioria pelos
83
É muito complicado afirmar que uma ética econômico-religiosa advinda do luteranismo seja capaz de
proporcionar tal possibilidade de acumulação, uma vez que o próprio Weber denota em suas reflexões que a
única ética religiosa que conseguiu reunir tais condições foi o calvinismo na sua vertente anglo-americana, a
saber: o puritanismo.
84
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Imigração e Industrialização... op. cit.
47
alemães – ainda não: a maior parte delas era ainda de pequeno porte, com pouco investimento
de capital e de força motriz. Neste sentido, Mônica Oliveira afirma que a única iniciativa
germânica de grande porte que cumpriu a transição de manufatura para indústria mecanizada
foi a tecelagem de Antônio Meurer
85
.
Percebemos então que os imigrantes realmente contribuíram bastante para o setor do
comércio, mas através de levantamentos empíricos, a autora comprova que as indústrias que
toda a historiografia anterior afirma serem obra de germânicos, não passavam em sua grande
maioria, de manufaturas domésticas que não resistiram à industrialização pesada pela qual Juiz
de Fora passou nas décadas de 1890 e 1900. Mônica Oliveira relativizou a imagem
empreendedora deste grupo e, além disto, relativizou também o caráter paternalista que
algumas obras anteriores projetaram sobre Mariano Procópio. Mostrou que a colônia agrícola
foi criada principalmente para atender os interesses da Cia. União e Indústria; de um lado na
cobertura de seus déficits, através do financiamento do núcleo pelo império e na formação de
uma mão-de-obra livre e barata; e de outro, a garantia entre eles da presença de alguns
técnicos e artesãos que poderiam ser úteis nas obras de estruturação da rodovia. A colônia
também acabou cumprindo a tarefa de valorizar as terras limítrofes à estrada, favorecendo
cada vez mais os interesses de Mariano Procópio, que possuía propriedades na região. Desta
maneira, assim que a estrada foi inaugurada e, principalmente dez anos depois, quando a Cia.
entrou em falência, a colônia acabou perdendo sua real finalidade para os poderosos, forçando
de uma forma ou de outra os colonos a buscarem oportunidades na cidade
86
.
Apesar de trabalharem com perspectivas diferentes acerca das relações entre imigração
e industrialização em Juiz de Fora, Mônica Oliveira acabou demonstrando o que já havia sido
problematizado por Giroletti: os imigrantes germânicos forneceram uma mão-de-obra mais
qualificada, deram origem a boa parte das primeiras manufaturas, criaram casas comerciais,
oficinas e contribuíram muito para o aumento do mercado consumidor. Entretanto,
participaram somente das bases de formação do desenvolvimento comercial e industrial da
cidade, ou seja, não foram grandes empreendedores, progressistas e capitalistas que fundaram
e levaram à frente o processo de industrialização de Juiz de Fora.
Tanto a primeira quanto a segunda dissertação prestaram importantíssimas
contribuições que fizeram avançar consideravelmente os estudos sobre a comunidade
85
Idem. p. 74-85.
86
Idem. p. 68-9.
48
germânica, sob os auspícios de uma metodologia renovada e mais coerente. Todavia, ambas as
obras, na tentativa de comprovar algumas de suas hipóteses, ficaram, direta ou indiretamente,
centradas nos elementos economicamente destacados do grupo, ou seja, àquelas famílias ou
indivíduos mais abastados que vieram – ou não, segundo Mônica Oliveira – a contribuir com a
industrialização local. Deixaram de lado, assim como seus antecessores, a imensa maioria dos
alemães, homens e mulheres despossuídos que deixaram seus lares em busca de melhores
condições e, chegando a seus destinos, encontraram situações iguais ou piores, obrigando-os a
reagirem e a resistirem conforme suas forças e possibilidades.
Neste sentido, após a análise das principais obras que tem abordado a presença
germânica no município, ao longo do século XX, percebe-se claramente que, de uma forma ou
de outra, a história dos imigrantes alemães tem sido escrita até agora apenas sob a ótica de um
possível sucesso econômico que cerca de 35 famílias de artífices obtiveram na segunda
metade dos oitocentos. Este fato tem sido utilizado tanto para atribuir a esta etnia a primazia
do processo industrial local, quanto para moldar o retrato de todo o contigente migratório,
descaracterizando assim a representação da maior parcela dos emigrados, formada por
camponeses que buscaram no Brasil uma oportunidade melhor do que aquela que obtiveram
em sua terra natal. Assim sendo, a comunidade germânica local acabou sendo representada de
uma forma altamente ideológica e anacrônica, uma vez que estes indivíduos construíram uma
história permeada de lutas por melhores condições de subsistência, moradia e trabalho, muito
diferente do mundo idílico pintado para eles por uma historiografia local caracterizada pela
criação de mitos fundadores e estabelecimento dos vultos locais.
A partir de agora, tentaremos perceber também as representações construídas sobre o
imigrante alemão, realizadas tanto no campo da literatura quanto no campo das ciências
sociais da primeira metade do século XX e compará-las com as visões construídas pelos
pesquisadores juizforanos no intuito de percebermos as possíveis semelhanças ou diferenças
entre elas.
1.2
O alemão na literatura e nas ciências sociais do século XX
A figura do imigrante alemão não foi praticamente abordada no território da literatura
no período imperial. Já com relação ao teatro, o personagem do alemão esteve presente na
49
obra de França Jr. Na peça O Defeito de Família (1870) o criado germânico Ruprecht foi
representado com algumas características positivas que marcaram a visão do elemento teuto
em solo nacional a partir do século XIX. Fala o patrão Matias:
É pena que o ladrão tenha um nome tão arrevesado; tirantes disso é
um criado como não há igual. Sério, de uma moralidade exemplar, cumpridor
de seus deveres, e sobretudo fiel como um cachorro. Se eu pudesse enchia esta
casa de alamões. Tive uma ótima idéia de mandá-lo vir de Petrópolis. (canta)
De ter alamões em casa/Ninguém deve se queixar;/Pois é gente papafina/para
uma casa guardar.//Quem quiser ter o sossego/e a paz no coração,/lá da terra
das bengalas/mande vir um alamâo
87
No que se refere aos debates políticos, a figura do alemão foi fortemente enfatizada no
conjunto dos discursos favoráveis à substituição da mão-de-obra escrava pela livre, européia e
branca. Nestes discursos, a disciplina do germânico e sua dedicação para o trabalho
(decorrente em parte, segundo estas leituras, da ética protestante) constituíam-se nos principais
argumentos para que se adotassem medidas favoráveis àqueles imigrantes.
É somente no final do século XIX e início do XX que o “alemão” será representado no
cenário cultural brasileiro, sendo Canaã, de Graça Aranha, a obra referencial na exposição de
características que, a partir de então, marcariam a visão do elemento teuto-brasileiro. A partir
desta obra, a literatura brasileira passou a expressar de várias formas o universo de
significações com que se marcava o germânico, trazidas principalmente da Europa, as quais se
somavam as imagens construídas no interior da sociedade brasileira. O alemão como agente
do progresso, disciplinado para o trabalho, possuidor de espírito moderno e racional, entre
outras, são as leituras presentes nas primeiras aproximações da literatura com os imigrantes e a
sua cultura.
Em 1902, Graça Aranha publica Canaã, romance que versa sobre a experiência de dois
imigrantes alemães que vieram para o Brasil “fazer a América”, estabelecendo-se em uma
região de colonização agrícola, no município de Porto Cachoeiro, Espírito Santo. Entretanto,
as atenções de Aranha não se voltam primordialmente para as lutas pela sobrevivência
cotidiana e para a trajetória de vida daqueles trabalhadores. O que é colocado em questão é se
87
Teatro de França Júnior, Tomo 1. Rio de Janeiro, MEC/SNT, 1980, pp. 115-116.
50
o progresso da humanidade, visto como fato irreversível, percorrerá o caminho da razão ou da
paixão, da liberdade ou da opressão, da arte ou da guerra
88
.
Os dois alemães que protagonizam a obra de Aranha não provêm das mesmas classes
sociais da maioria dos imigrantes e, consequentemente, não partilham das mesmas
preocupações de tais grupos. São revestidos pelo autor de uma bagagem cultural bastante
intelectualizada através da qual vivenciam a realidade na qual estão presentes, ao mesmo
tempo em que refletem criticamente acerca do seu passado nos estados germânicos.
Milkau, personagem central da obra, é oriundo de Heidelberg, filho de um intelectual,
e também exerceu a atividade de crítico literário em sua terra natal. Contemplativo e bastante
idealista, abandona seu país por desiludir-se com a civilização européia, descrita por ele como
excessivamente presa ao passado e orientada por valores decadentes. Partiu da Europa em
busca da terra prometida, “a sua Canaã”, descoberta em um país onde a integração social
harmoniosa entre os povos ainda era possível. Seu sonho era encontrar aqui a paz.
Milkau representa também o alemão idealista que constrói uma colônia limpa e
organizada, ao contrário dos mestiços, regidos pelos “instintos naturais”, como se percebe na
descrição de uma mulata da região:
“No batente da porta sentava-se uma mulata moça. Toda ela era a própria
indolência. Os cabelos não penteados faziam pontas como chifres, a camisa
suja caía à toda no colo desencarnado e os peitos de muxiba pendiam moles
sobre o ventre.
89
Já entre os camponeses alemães, tenazes e obedientes, ainda que com a alma
empobrecida pelo ardor do trabalho, “[...] via-se estampado o pensamento único de cumprir o
dever prático, de caminhar para a frente no conjunto harmonioso de um só corpo
90
.
Imagens como esta podem até conduzir vários leitores a identificarem Aranha como
um grande admirador da cultura e do ethos germânico bem como defensor da imigração deste
povo para o Brasil. Todavia, existe outro personagem nesta obra que nos leva a ponderar sobre
tais conclusões. Trata-se de Lentz, que no texto de Aranha encarna outro tipo de germânico,
aquele orgulhoso de sua própria raça. Enquanto Milkau se dedica à arte, Lentz confabula em
construir um império ariano no Brasil, pois, segundo ele, “Há de se aceitar a lei da vida, em
88
ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Ouro, 1954. p. 50 e seguintes.
89
Idem. p. 32.
90
Ibidem. p 39.
51
que o mais forte atrai o mais fraco; o senhor arrasta o escravo, o homem, a mulher. Tudo é
subordinação e governo”.
Filho de um oficial de alta patente do exército prussiano, Lentz abandona sua terra
natal por recusar o casamento; decepciona-se com a amante quando esta lhe exige o nome,
segundo ele, para atender à moral cristã e para fazê-lo seu escravo. Refugia-se em Porto
Cachoeiro sonhando estabelecer-se como um próspero negociante, mas acaba decidindo-se
pela lavoura sob a influência do amigo Milkau, com que divide um prazo de terras concedido
pelo governo imperial.
Tal como Milkau, Lentz ama sua terra de origem e vê nela a concretização da
civilização ocidental; como o amigo, distingue-se dos demais imigrantes por ser um
aventureiro de espírito elevado. Ambos acreditam nas concepções evolucionistas da história,
bem como na supremacia dos arianos. Todavia, eles se distinguem pela maneira como
enxergam o cumprimento de suas metas: para Milkau a civilização só será atingida através da
solidariedade e amor entre os homens, constituindo-se o progresso uma condição básica para a
liberdade. Já para Lentz, carregado do ethos guerreiro-militar do Kaiserreich, a cultura dos
mestiços sempre será inferior, pois o negro trás em suas veias o servilismo, necessitando
sempre de uma liderança para conduzi-lo. Fiel ao seu ethos, recusa a solidariedade como
condição fundamental para o progresso.
O conflito existente entre as concepções dos dois amigos – solidariedade versus poder
– percorrerá todos os capítulos da magnífica obra de Graça Aranha. Além disto, o próprio
autor mostra que entre brasileiros e alemães não haveria qualquer possibilidade de junção. O
mulato, preguiçoso, antepõe-se à operosidade inata do germânico; a estatura pequena e
raquítica do nordestino torna-se mais nítida diante daqueles homens “gigantescos e fortes”; a
simplicidade do nativo dificulta a comunicação com o complexo raciocínio do ariano e a
sensualidade do mulato agredia a postura quase assexuada daqueles protestantes, cujo rigor
ascético lhes determinava um pragmático desenvolvimento econômico.
Temos assim, na obra de Aranha, representações interessantes a respeito dos alemães.
Ao mesmo tempo em que são vistos como fortes, disciplinados, membros de uma raça
superior e cheios da admiração das elites ávidas pelo progresso, os alemães também
despertavam uma certa aversão, por sufocar, em nome da razão, sua própria sensibilidade.
Além disto, esse alemão estava isolado, segundo os olhares da “civilização mestiça”, em seus
52
próprios valores e costumes; era, enfim, um estrangeiro obedecendo a um conjunto diferente
de leis e regras.
Conclusões bem semelhantes são encontradas em Amar, verbo intransitivo, romance de
Mário de Andrade, publicado em 1927
91
. Nesta obra encontramos a personagem Fräulein – de
nome Elza – imigrante alemã contratada como governanta na casa de uma família burguesa
paulista em ascensão. Semelhante a Lentz, Elza é apresentada como uma mulher culta, de
gestos precisos, com uma sobriedade tal que não se permite a manifestação de quaisquer
sentimentos.
A sensibilidade germânica de Fräulein aflora imediatamente no momento em que
chega à casa dos Souza Costa trazendo em suas malas alguns retratos de Wagner e de
Bismarck, além de alguns livros. Ao entrar, a alemã assume rapidamente seu papel, sem
perguntas e questionamentos; exercendo suas funções, executa-as com o único intuito de
acumular alguma renda para poder retornar para a Alemanha. Elza acaba por personificar a
mulher ariana: nem feia, nem bonita, porém saudável, limpa e provavelmente fecunda, nela
não se presencia qualquer atitude fragilizada; em público comporta-se com rigidez militar,
estando seu idealismo encarcerado, rondando apenas a sua própria imaginação, falando-lhe do
amor, da pátria de origem, da natureza e de um lar para si
92
.
Fräulein, entretanto, possui uma outra tarefa naquela residência: em que pese seu
preparo intelectual, na condição de mulher e imigrante, torna-se responsável pela iniciação
intelectual do adolescente Carlos, o filho mais velho do burguês, o que realizará em princípio,
com o mesmo senso prático com que ministrava as aulas de piano ou alemão. Todavia, aos
poucos, acaba se envolvendo com o garoto, e quase cede aos seus jogos de sedução. Nesses
momentos em que se deixa levar pelas emoções, o autor a descreve como uma criatura
dilacerada, diferente de si:
Estava muito pouco Fräulein neste momento. Porque Fräulein, a Elza
que propiciou este idílio, era uma mulher feita, que não estava disposta a
sofrer. E a Fräulein deste minuto é uma mulher desfeita, uma Fräulein que
sofre. E por que sofre está além de Fräulein, além de alemã: é um pequenino
ser humano
93
.
91
ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo. 10 ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.
92
Idem. Passim.
93
Ibidem, p.120.
53
A imagem do alemão como personificação da germanidade (Deutschtum), como um
indivíduo exatamente idêntico aos outros membros de sua cultura, forte, formado através de
um ethos militar, desprovido de sensibilidade, um autêntico membro do militarizado
Kaiserreich, permeará outras narrativas, quer na literatura, quer no discurso jornalístico e na
crônica popular. Mas é entre os intelectuais preocupados em refletir a sociedade brasileira e os
problemas que ela enfrenta para se constituir enquanto nação civilizada, que a imigração
alemã será abordada com maior força analítica. Refiro-me aqui, mais especificamente, ao
pensamento crítico, gestado durante o império, com Sylvio Romero, e consolidado na
República sob os auspícios de Oliveira Vianna.
Neste contexto, gostaríamos de destacar que Romero foi um escritor que se dedicou
tanto à imigração alemã quanto à imigração em geral. Além disso, foi um intelectual que se
comprometeu profundamente com o nacionalismo e com a busca de se construir uma
identidade autóctone para a sociedade brasileira. Iniciou suas atividades na década de 1870
como crítico literário e, a partir de então, rejeitou o “romantismo” e propôs a elaboração do
estudo da cultura brasileira sob as concepções evolucionistas de Gobineau, de Büchner e do
zoólogo Ernest Haeckel, considerado o mais assíduo e influente dos discípulos alemães de
Darwin
94
.
Romero partiu da teoria das desigualdades das raças para pensar a formação do povo
brasileiro, interpretando a cultura nacional como resultante da miscigenação entre três raças: a
branca, a negra e a vermelha
95
. Tal mistura seria responsável pela coesão social da sociedade
nacional e, além disso, lhe conferia sua individualidade histórica.
Levemente racista – já que inspirado em autores defensores do evolucionismo –
Romero admitia a inferioridade dos negros e dos índios, mas acreditava que através da
miscigenação destes com brancos europeus, as características da raça superior (o branco)
prevaleceria sobre as demais. Neste sentido, acreditamos que Romero pode ser considerado
um dos gestores da tese do branqueamento, tão freqüentemente atribuída à Oliveira Vianna.
Já que o autor acreditava na predominância de caracteres da raça branca sobre a
mestiça para a formação de um ethos destinado ao progresso, o que levaria Romero a preterir
o imigrante alemão, um ariano por excelência? Lendo um texto deste autor que faz referência
94
Cf. GAY, Peter. O Cultivo do Ódio: a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo: Cia. das
Letras, 1995, p. 54.
54
direta aos germânicos
96
, percebemos que sua crítica recai não na comunidade teuta, mas no
caráter desorganizado e desordenado com que se permitia que tal contigente emigrasse e
ocupasse o Brasil, bem como a definição de seu papel enquanto formador da população
brasileira; reivindicava-se destes imigrantes somente suas características biológicas e seu
trabalho produtivo, e não sua participação na política e cultura nacional, já que era portador de
valores estrangeiros.
De acordo com Romero, a concentração dos alemães nos estados da região sul do país
acarretaria um duplo perigo: primeiro, o crescimento desequilibrado entre esta e as outras
regiões, devido as altas taxas de natalidade dos teutos; segundo, o risco de se perder a unidade
lingüística, uma vez que o idioma alemão é de uso corrente entre aquelas populações. Para ele,
a superação destes problemas estaria numa melhor distribuição espacial dos arianos pelas
diversas regiões para que uma nova população fosse produzida
97
.
Apesar de ver o expansionismo como algo quase genético a este povo e também como
uma virtude, Romero teme que o princípio étnico e lingüístico em que se baseiam as
comunidades teutas, ao definirem a nacionalidade, seja válido para todas as zonas de
colonização alemã, fazendo com que a região sul seja incluída nas ambições expancionistas do
Kaiserreich, o que ainda só não havia se concretizado devido à força do pan-americanismo,
liderado pelos Estados Unidos
98
.
Apesar de interessantes, as reflexões de Romero não obtiveram grande penetração na
vida política do país nos momentos seguintes a sua construção. Tais idéias tiveram de
aguardar pelo menos vinte anos para verem suas aspirações concretizadas. Somente a
associação de intelectuais com um governo zeloso em resguardar o futuro da nação, para que
seu nacionalismo cultural se traduzisse em ação através do eugenismo de Oliveira Vianna
99
.
Se observarmos as teorias orientadas pelas concepções evolucionistas e /ou racistas que
se preocuparam com a questão da superação do atraso social e cultural vigente no Brasil, não
encontraremos, a este respeito, nenhuma inovação considerável na obra de Oliveira Vianna.
Tal como Sylvio Romero, Vianna defendia a necessidade de branqueamento da raça brasileira
95
SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
96
ROMERO, Sylvio. O allemanismo no sul do Brasil, publicado pelo jornal do Commercio, do Rio de Janeiro,
em 1906.
97
Idem.
98
Ibidem, p. 6.
99
SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco... op. cit., p. 216.
55
e rejeitava os modelos românticos, por considerá-los um mero enaltecimento do passado e das
riquezas naturais. Neste sentido, ele se colocava como herdeiro do pensamento “científico”,
utilizando-se dos instrumentos metodológicos da então recente etnologia, bem como da
história, para tentar identificar as pressões exercidas pelo passado na sociedade de seu tempo,
tal qual fizeram vários autores inspirados na Escola de Recife
100
.
Gostaríamos de reafirmar que as teses de Vianna acerca da formação da população
brasileira não diferem muito daquelas formuladas principalmente por Romero. Entretanto,
Vianna incorporou no seu pensamento as reflexões do polígrafo positivista Gustave Le Bon,
autor da famosa “psicologia das multidões”. Acreditamos que a as teses “psicológicas” de Le
Bon ajudaram Vianna a relacionar a questão da desordem social com a origem racial, visto que
para ele:
Esta função superior (de governar) cabe aos arianos [...] são estes que, de
posse dos aparelhos de disciplina e de educação, dominam esta turba informe
pululante de mestiços inferiores e, mantendo-a, pela compreensão social e
jurídica, dentro das normas da moral ariana, e vão afeiçoando lentamente à
mentalidade da raça branca [...]
101
.
No livro Populações meridionais, investigando as origens da aristocracia rural
brasileira, com intuito de desvendar sua missão civilizadora no Brasil, Vianna enfatiza alguns
caracteres físicos dos gaúchos, apontando para seu espírito desbravador e guerreiro, afirmando
serem estas características hereditárias, o que legitimaria seu papel de governante.
Continuando sua dissertação a respeito deste povo, Vianna não enfatiza o imigrante alemão,
presente no sul do país desde o império. O mito ariano, ao contrário, está plenamente presente,
como ideal a ser alcançado na construção do ethos nacional.
Sobre os gaúchos, considera que:
“Os elementos brancos tiveram a preponderância; e os elementos
arianos [...] eram mais puros que qualquer núcleo nacional [...] tudo indica no
gaúcho [...] o homem dotado de uma pretora de vida, um equilibrado, um forte,
um eugênico, enfim”
102
.
Nessa obra, sua única referência aos teuto-brasileiros é bem modesta devido à
evidência dada apenas às camadas que exerciam ou deveriam exercer o poder, porém é
100
Idem, passim.
101
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais no Brasil. Rio de janeiro: José Olympio, 1952, p. 65, vol. 1.
56
sugestiva: limita-se a comparar as práticas associativas dos germânicos nos estados sulinos,
identificando nela sua cultura política de origem, pautado no solidarismo.
Assim como Romero, Vianna preferia o imigrante luso devido à questões lingüísticas;
entretanto, para ele as características raciais do germânico desempenhariam um papel de peso
na tarefa de arianização, bem como para o desenvolvimento econômico do país, em virtude de
sua inata operosidade.
A figura do imigrante alemão é retomada na década de 1930, num artigo intitulado “O
tipo brasileiro e seus elementos formadores”
103
no qual o autor demonstra claramente seu
otimismo em vista dos desdobramentos do processo imigratório, apesar de seu caráter até
então desordenado. Segundo Vianna, o tipo alemão se caracteriza pela aversão ao trabalho
subalterno e pela tendência ao expancionismo e dominação. Embora enclausurado no meio
rural, seus filhos, já adaptados ao novo país, quando emigrassem para as cidades, logo
exerceriam as funções que exigissem tais características, entendidas por ele como inerentes à
raça germânica
104
.
Realizei esta brevíssima exposição das obras de Aranha, Andrade, Romero e Vianna
para demonstrar a atitude ambígua destes autores em relação à imigração de origem
germânica. Através de seus discursos, construíram uma imagem dos imigrantes teuto-
brasileiros, entendidos como um corpo harmonioso e coeso, estando a reproduzir
permanentemente sua identidade de origem. Sendo intelectuais antenados em seu tempo,
perceberam os alemães na condição do “outro” na cultura brasileira.
Neste momento específico, este povo foi descrito, tanto na literatura quanto nas obras
científicas, como desenraizado, incapaz de se integrar ao seu novo ambiente social, distante
emocionalmente dos acontecimentos que vivenciavam. Excessivamente apegados à pátria de
origem, personificavam seu passado através da leitura, do emprego do idioma alemão, da
preservação dos usos e dos costumes e da endogamia. O alemão, segundo estes autores, estaria
para sempre ligado à sua terra natal, donde a razão em concebê-lo como portador de um
espírito militarista, num certo sentido, representante do Kaiserreich de Bismarck.
Entretanto, acreditamos que estes mesmos autores, assim como os pesquisadores
juizforanos citados no início deste capítulo, representaram os imigrantes alemães basicamente
102
Idem, p. 333-5, vol. 2.
103
In: Ensaios Inéditos. Campinas: Editora da Unicamp, 1991. p. 15.
104
Idem, p. 16.
57
através de algumas características que foram dadas a ler pela aristocracia cortesã-guerreira que
se consolidou no poder no período posterior ao da unificação da Alemanha. Nobreza,
operosidade, disciplina, espírito inato para o progresso, coesão e ethos civilizado, eram as
características através das quais a nobreza militarizada do segundo império germânico gostaria
de ser e era representada. Todavia, tais características foram tão bem expostas pela aristocracia
do Kaiserreich que acabaram sendo aceitas e internalizadas por uma parcela significativa da
intelectualidade brasileira e pelos pensadores locais como um todo. Acreditamos que este fato
tenha contaminando boa parte das representações realizadas pelos pesquisadores e escritores
acerca do imigrante alemão – na maioria dos casos, simples camponeses e/ou artífices – que
atravessou o Atlântico para tentar a vida no Brasil.
Na Alemanha, foram o exército e as confrarias estudantis duelistas que exerceram as
funções integradoras capazes de possibilitar um tipo específico de formação social: a “boa
sociedade”. Sobretudo na Prússia, foi o código de honra dos guerreiros – a obrigação de
arriscar a vida em duelo para provar que se é digno de pertencer à elite social, àquela que
possui honra – que serviu como símbolo de admissão e pertença no establishment do
Kaisereich. E, sendo a Prússia o estado majoritário na unificação, ela assegurou que estes
valores guerreiros tivessem prioridade sobre os valores clássicos do cortesão nos
comportamentos e sentimentos da aristocracia
105
.
Desenvolvendo suas argumentações a respeito do processo civilizador nos estados
germânicos, Norbert Elias indica que o processo alemão manteve algumas peculiaridades em
relação aos seus vizinhos ingleses e franceses. Os governantes da Prússia, assim como dos
outros estados, tentaram, antes de tudo, “amansar” sua nobreza guerreira, ou seja, no período
de transição para exércitos permanentes, – condição e sintoma da crescente monopolização da
violência pelos monarcas – em boa parte dos estados modernos em formação os guerreiros,
fidalgos e senhores de terras, foram também transformados em oficiais a serviço do
governante central de seu país. Na Prússia, entretanto, a desigualdade de poder entre a nobreza
e a burguesia acabou favorecendo a aristocracia gerando um compromisso tácito entre rei e
nobreza.
“Por um lado, a aristocracia necessitava de uma casa reinante
hereditária em conflito com outros Estados mais ou menos centralizados;
precisava de reis como comandantes-chefes do exército, como coordenadores
105
ELIAS, Norbert. Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 57-67.
58
supremos das organizações de serviço civil e militar, como árbitros na
resolução de disputas entre nobreza e burguesia, e para outras funções de
integração
106
”.
Surgiu assim uma “associação” em que a nobreza se submeteu ao rei, servindo-o como
oficiais, funcionários da corte e administradores. Em contrapartida, o rei incumbiu-se de
garantir a posição da aristocracia como a mais alta classe política do país, tornando-se protetor
dos privilégios da nobreza.
Devido a localização geográfica deste estado, possibilitando guerras constantes, o
processo de civilização da classe guerreira ocorreu apenas de forma moderada. Além disto,
como a monopolização da violência pelo rei esteve estreitamente associada a comercialização
e a monetarização da sociedade, a nobreza guerreira sofreu algumas relativas modificações.
Porém, mesmo com essas modificações, os padrões militares continuaram a predominar sobre
os padrões civis mais moderados da sociedade de corte.
Segundo Elias, o modelo de comportamento de uma aristocracia militar que havia
passado apenas por uma dose modesta de submissão à vontade cortesã, foi absorvido por
vastas seções da burguesia no período pós-unificação, tendo por conseqüência uma grande
influência na formação do que é usualmente chamado de caráter nacional alemão
107
, ou seja,
foi este padrão comportamental fixado no código guerreiro que se converteu num código
dominante entre as elites no decorrer da convergência entre grupos da nobreza agrária-militar
e grupos da burguesia urbana e que foi imposto, sem muito sucesso, ao nosso ver, às classes
inferiores. Isso porque, os únicos habilitados para participar da satisfaktionsfähige
Gesellschaft, ou seja, da “boa sociedadeguiada pelo hábito de pedir satisfação, através de um
mesmo código de auto-regulação, além dos nobres, eram os oficiais de alta patente e aqueles
ligados ao primeiro escalão da administração do Estado. Os grupos considerados não
habilitados incluíam os lojistas, artesãos, trabalhadores, agricultores e judeus.
Todavia, os agricultores e artesãos que vieram tentar a sorte no outro lado do Atlântico
acabaram, ao nosso ver, sendo representados tanto na literatura quanto na historiografia
nacional como a personificação deste “caráter alemão” disseminado na corte do Kaiser. Sendo
caracterizados em sua sociedade de origem pela falta dos valores sociais dominantes, estes
indivíduos, ao chegarem no Brasil, passaram a ser representados como portadores de símbolos
106
Idem. p. 68.
107
Ibidem. p. 69.
59
que a elite germânica guardava somente para si. A aristocracia do segundo reich se
autocompreendia como a personificação do Deutschtum (germanidade), como portadora de
um ethos civilizado que a diferenciava da massa camponesa e artesã de sua recém formada
nação, fato este que a capacitava de exercer o controle e governo da Alemanha.
Com relação à literatura e as obras dos cientistas sociais do início dos novecentos,
temos a impressão que parte desta representação acerca da aristocracia alemã tenha sido
absorvida por esses autores devido à influência das teorias raciais e do evolucionismo,
principalmente em sua vertente darwinista social
108
, tão em voga no período.
De acordo com Peter Gay as teorias racistas que vigoraram no século XIX não
passavam de um punhado de noções mutuamente contraditórias e de especulações biológicas e
históricas utilizadas para afirmar a superioridade de um grupo sobre um Outro coletivo.
Funcionaram como um álibi para a agressão de imensa utilidade, pois solidificavam o
revigorante sentimento dos próprios méritos ou mitigavam o temor secreto de suas próprias
imperfeições
109
. Contudo, quando a teorização sobre as raças começou a engatinhar, em
meados do século XVIII, ela ainda não havia se transformado em racismo: esta seria a
contribuição dos pensadores e cientistas sociais do século XIX.
Já no fim da década de 1730, o naturalista sueco Carl von Linné tentou colocar algum
sistema no caos das variações humanas. Ele identificou quatro raças distintas, separadas pela
cor. Seu contemporâneo francês, o conde de Buffon, descobriu seis raças e também descordou
de Linné ao insistir que as características raciais estavam sujeitas a influências ambientais. O
debate a respeito das diferenças raciais – seu número e natureza – estava em ação, e logo se
intensificou no cenário Europeu. Quando, em 1775, o anatomista alemão Johann Friedrich
Blumenbach elaborou seu importante catálogo de raças humanas, colocou cada uma delas –
caucasiana, mongólica, etíope, americana e malaia – em sua própria região do globo. Mas até
então os estudiosos viam a humanidade como uma; distinta dos animais pela postura ereta e
pela capacidade de raciocinar.
108
Teoria desenvolvida por cientistas europeus no século XIX que, tentando padronizar a evolução humana,
inspiraram-se no modelo evolucionista e no conceito de raça das chamadas “ciências da vida”, adaptando-os aos
estudos das “ciências humanas”. O resultado mais destacado de tais iniciativas foi a consolidação, no seio das
elites intelectuais brasileiras, da noção de que as raças “mais brancas” seriam as mais desenvolvidas, detentoras
do mais alto padrão de humanidade e as raças mestiças seriam inferiores por natureza e passíveis de dominação.
Para maiores detalhes sobre o assunto ver: SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas,
instituições e questão racial no Brasil, 2ed, São Paulo: Cia. Das Letras, 1995. Capítulo 2.
109
GAY, Peter. O Cultivo do Ódio: a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo: Cia. das Letras,
1995, p. 76.
60
Em meados do século XIX, a raça estava em todas as partes. Os teóricos reuniam
verdadeiras montanhas de evidências, indo do peso do cérebro ao tamanho dos narizes, das
lendas de migração a imputação de atributos tribais. Eles se achavam no direito de traçar
conseqüências de longo alcance a partir de medidas de crânios reunidas em levantamentos,
colocando as raças dolicocéfalas, ou de cabeça longa, contra os braquicéfalos, ou de cabeça
redonda. Propagaram suas noções antropológicas mergulhadas em dados maciços, mas, sem
essência, sem significados. Segundo Peter Gay, observando os avanços que físicos, químicos e
astrônomos celebravam, os estudiosos do homem, em íntima aliança com os darwinistas
sociais, espalhavam mais absurdos em nome da ciência do que seus pares jamais perpetraram,
antes ou depois
110
.
Através desse século, todos que estudavam a história, lingüística, restos de ossos ou
formatos de crânios se apoiavam na proposição de que a raça é melhor quando é mais pura.
Foi nesse contexto que o orientalista alemão e professor de Oxford, Friedrich Max Müller,
colocou a raça ariana no mapa. O epíteto “ariano” conjugava uma raça alta, de cabelos loiros,
olhos azuis, leal, amante da família, mas também da guerra, com seus membros contrapostos
aos semitas, que ameaçavam subverter a civilização com suas perspectivas mercantis e seus
decadente modernismo.
Mesmo Max Müller se declarando arrependido, por volta de 1880, que, se antes havia
defendido o elemento ariano como raça, na verdade só se poderia referir a uma qualidade
lingüística, o mito do arianismo já havia se disseminado. Era tarde demais. Essa teoria racial
havia se espalhado pela Europa e o texto favorito de seus partidários era Germanicus, de
Tácito. Escrito cerca de dezoito séculos antes, era uma fonte indispensável para os polemistas
que buscavam razões para louvar os europeus do norte à custa dos mortais inferiores – mais
baixos, de pele mais escura, menos beligerantes e mais abstêmicos. Também lançavam mão da
sociologia comparativa de Montesquieu, que em meados do século XVIII havia colocado as
origens das instituições livres inglesas nas florestas alemãs
111
.Essas teorias também foram
absorvidas por comerciante e trabalhadores europeus que se sentiam ameaçados pelos
estrangeiros que dia-a-dia tomavam seus empregos e roubavam os pães de suas mesas
112
.
110
Idem, p. 81-2.
111
Idem, p. 85.
112
Idem, p. 90.
61
Desta forma, como o ariano passou a ser visto – conscientemente ou não – pelos
adeptos dessas teorias como a raça mais desenvolvida da civilização humana, em um
determinado momento, todos os indivíduos que possuíam origem germânica passaram a ser
representados com as características que somente eram vinculadas até então à elite do
Kaiserreich por seus próprios membros. Em outras palavras, acreditamos que os valores que
elite alemã utilizava como sua auto-representação, e que ela tentou transmitir para a sociedade
como um todo, acabaram sendo percebidos como valores inerentes à raça ariana devido a uma
interpretação peculiar que via no ariano o ápice do desenvolvimento humano.
Por meio da adaptação desta vertente evolucionista em solo nacional por intelectuais de
várias espécies, camponeses e artesãos que foram praticamente expulsos de suas terras pela
pressão demográfica, pela ameaça de proletarização, dentre outros fatores, passaram a ser
descritos através de características que não possuíam inicialmente. Este fato acabou ajudando
a construção de uma imagem deste grupo que ficou arraigada no senso comum e que, de certa
forma, não explica convincentemente as práticas e experiências cotidianas destes indivíduos
em solo nacional.
No caso das obras produzidas pela historiografia local, percebemos que estas
características, iniciadas com Albino Esteves e Paulino de Oliveira, continuaram a ser
reproduzidas pelos trabalhos posteriores sem muita preocupação empírica em relacioná-las
com a experiência cotidiana vivenciadas pela maior parte dos imigrantes. Estes passaram a ser
descritos como agentes do progresso, implementadores da civilização, como empreendedores,
disciplinados para o trabalho e cheios de operosidade, iniciadores do processo de
industrialização e modernização do município, como boa mão-de-obra, sadios, pacíficos mas
permeados de um ethos militar. Arianização passou a ser vista como sinônimo de
desenvolvimento econômico local devido a “inata operosidade” do alemão. Contudo, como
várias vezes afirmamos acima, os problemas e dificuldades enfrentados pelos imigrantes no
processo de inserção no Brasil; a resistência a proletarização, a falta de alimentação e de
empregos, os crimes e tumultos vivenciados por eles em Juiz de Fora foram omitidos em prol
da possível contribuição que estes deram ao desenvolvimento local.
62
CAP. 2A CRIMINALIDADE GERMÂNICA EM JUIZ DE FORA – OS CRIMES
CONTRA A VIDA E A HONRA: HOMICÍDIOS E TENTATIVAS DE HOMICÍDIOS,
OFENSAS FÍSICAS E OFENSAS VERBAIS.
Desde meados da década de 1970, historiadores como E. P. Thompson, Natalie Zemon
Davis, Douglas Hay
113
, têm se utilizado das mais variadas formas de crimes e violência como
chave de acesso à vida cotidiana de operários, religiosos e de “camponeses” que resistiam ao
aumento abusivo dos preços dos cereais. A maior parte destes autores buscou entender a
criminalidade entre as classes subalternas como uma adaptação ou resistência à dominação de
classe. Segundo o resultado de suas obras, quando se transformam as relações de classe numa
determinada formação social, mudam também os padrões do crime.
No Brasil, Sidney Chalhoub, Boris Fausto, Marisa Corrêa, Marta Esteves, Marcos
Bretas, Celeste Zenha, Rachel Soihet, Yvonne Maggie
114
, entre outros, vêm se destacando
desde o início da década de 80, na utilização de processos criminais como fonte primordial no
entendimento das experiências de sociabilidade de trabalhadores rurais e urbanos, policiais,
mulheres e habitantes do Rio de Janeiro e São Paulo. Na mesma época e também em períodos
posteriores, estes processos foram utilizados na percepção do funcionamento do aparato
jurídico-policial
115
.
Diversas reflexões sobre a especificidade dos processos criminais como material de
pesquisa foram elaboradas por estudiosos. No Brasil os processos foram utilizados
113
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. das
Letras, 1998. & Senhores e Caçadores. A origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987., DAVIS, Natalie
Z. Culturas do Povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990., HAY, Douglas et alii. Albion’s fatal tree: crime and
society in eightteenth-century England. New York: Pantheon Books, 1975.
114
CHALHOUB, Sidnei. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986. E Visões da liberdade. São
Paulo: Cia. Das Letras, 1990., FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924).
São Paulo: Brasiliense, 1984., CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983., ESTEVES,
Martha Abreu. Meninas Perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989., BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na
Cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza: um
estudo sobre o amor, o trabalho e a riqueza através dos processos penais. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF,
1984., SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem urbana
(1890-1920). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., MAGGIE, Yvonne. O medo do feitiço – relações
entre magia e poder na sociedade brasileira. Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ,
1988.
115
Aqui nos referimos mais especificamente ao trabalho já citado de Mariza Côrrea e ao trabalho de Carlos
Antonio Costa Ribeiro. Cor e criminalidade: estudos e análise da justiça no Rio de janeiro (1900-1930) Rio
de Janeiro: Edufrj, 1995.
63
basicamente por historiadores e antropólogos. Dentre os historiadores, gostaríamos de ressaltar
os trabalhos de Sidney Chalhoub, Boris Fausto e Martha de Abreu Esteves.
Utilizando indícios e sinais presentes em processos criminais que permitissem uma
descrição da “cultura dos dominados” e das relações conflituosas que este grupo mantinha
com a ordem dominante, o historiador Sidney Chalhoub buscou revelar aspectos cotidianos da
vida de trabalhadores da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX
116
. Mais
especificamente, a idéia do autor foi reconstituir, a partir de processos judiciais, os discursos
de alguns elementos recorrentes da chamada “cultura popular”, tais como: as formas de lazer e
as relações amorosas, as relações entre companheiros de trabalho e destes com seus patrões, a
relação dos populares com a polícia, entre outros.
Chalhoub percebeu a solidariedade entre os imigrantes de mesma nacionalidade em
situações conflituosas no trabalho e as rivalidades nacionais e racionais nestas mesmas
ocasiões enquanto expressão das tensões provenientes da luta pela sobrevivência
117
. Havia
também uma clara predisposição por parte dos membros das classes dominantes em pensar o
negro como um mau trabalhador e em reconhecer no imigrante europeu uma agente capaz de
acelerar a transição para a ordem capitalista
118
.
Entre outras coisas, analisou também o mundo do lazer popular, formado em grande
parte, pelos botequins e pela rua, e a sua contrapartida inevitável: a repressão policial.
Observou que a polícia exerceu um papel mediador em pequenos conflitos na vida cotidiana
dos populares e não atuou plenamente e apenas no controle social. Percebeu também que o
botequim serviu como espaço de lazer, mas também como espaço adequado à classe
dominante para exercer a dominação contínua sobre sua força de trabalho
119
.
Trabalhando com uma metodologia prioritariamente quantitativa, Boris Fausto
mostrou, em um trabalho já clássico
120
, que os processos criminais traduziam, ao seu modo,
tanto o crime que ocorreu quanto à batalha jurídica que se instalou para punir ou absolver.
Partindo do estudo dos funcionários do sistema jurídico-policial e da vida cotidiana das
pessoas pobres, o referido autor procurou desvendar algumas regularidades que permitissem
perceber valores, representações, comportamentos e normas sociais vigentes na sociedade
116
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim... op. cit.
117
Idem, p. 70.
118
Idem, p. 60-2.
119
Idem, p. 172-204.
120
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano... op. cit.
64
paulistana do início do século XX. Apesar de lidar com os documentos criminais de forma
similar a Mariza Corrêa, Boris Fausto relacionou a criminalidade estudada com fatores como:
controle social, cor, imigração, sexo, idade, entre outros.
Com relação à cor dos indiciados, percebeu que os negros e mulatos eram presos em
proporções mais de duas vezes superiores à parcela que representavam na sociedade paulista –
28,5% do total de presos – enquanto representavam cerca de 10% da população. Segundo o
autor, esse fato se dava devido a certos valores que estariam arraigados na “consciência
coletiva”: a associação entre negros e ócio, violência e permissividade sexual, elementos que
influenciavam na discriminação presente nas transcrições policiais e nas análises do aparato
médico
121
.
A respeito da relação entre criminalidade e imigração, Boris Fausto observou que no
período em análise cerca de 55,5% dos presos eram estrangeiros; porcentagem esta superior ao
número de estrangeiros na população global. Entretanto, ele percebeu que a maior propensão
desses imigrantes estava inserida em infrações que expressavam formas de evasão do
cotidiano – desordem e embriaguez – e a menor propensão de incidências em infrações
ofensivas à “lei suprema do trabalho” – vadiagem e gatunagem – sugestão compatível com o
projeto de imigração e as circunstâncias de sua inserção na nova terra. Isso se dava devido à
baixa possibilidade de ascensão econômica e social observável na maior parte dos
emigrados
122
.
Através da pesquisa de processos criminais de defloramento, estupro, rapto e atentado
ao pudor ocorridos no Rio de Janeiro entre os anos de 1900 e 1913, Martha de Abreu
Esteves
123
procurou investigar como o aparelho jurídico exerceu seu poder frente à concepção
dos costumes e a criminalidade sexual que, segundo os juristas, tanto ameaçavam a antiga
capital federal. Ela percebeu que, através da ampliação da punição de crimes sexuais,
aumentou o poder de controle sobre os trabalhadores e que neste sentido, o judiciário foi co-
responsável pela implementação da nova política sexual a todo o corpo social em nome de
uma proteção aos valores dominantes da sociedade.
Martha Esteves também retirou dos processos criminais aquilo que eles trazem de mais
precioso: a possibilidade de análise dos discursos populares, através dos depoimentos de
121
Idem, p. 66-7.
122
Idem, p.74-6.
123
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas... op. cit. Passim.
65
ofendidas, acusados e testemunhas. As histórias registradas nos processos permitiram que a
autora reconstituísse parte dos valores morais dos populares, seus comportamentos sexuais,
atividades de lazer, relações de vizinhança, etc. Nesse sentido, ela percebeu que mesmo
havendo uma política por parte da elite para controlar a sexualidade da população pobre e
trabalhadora, esta política não foi absorvida da mesma forma por todos os segmentos. As
relações sexuais antes do casamento, o amasiamento, a maior independência e liberdade de
movimento das mulheres nas ruas da cidade eram práticas que pareciam perfeitamente
normais entre os populares, exercidas sem culpa, mas de certa forma dissimuladas diante dos
representantes do poder público. Esse estudo acabou relativizando o alcance das tentativas de
disciplinarização dos costumes dos populares realizadas pela elite dominante
124
.
Percebe-se então que os referidos historiadores utilizaram os processos judiciais como
um meio ou uma fonte para o estudo dos valores e normas sociais presentes na vida dos
membros das classes populares de uma determinada época histórica. Segundo eles, este tipo de
documentação seria um dos caminhos para a recuperação dos discursos de pessoas dos estratos
mais pobres da sociedade e ofereceriam novas possibilidades para estudos históricos da cultura
popular. Em outras palavras, a leitura de processos criminais seria capaz de revelar cenas da
vida cotidiana.
Dentre os antropólogos, Mariza Corrêa e Carlos Antonio Costa Ribeiro procuraram
analisar, através dos mesmos documentos, a atividade e as crenças dos profissionais do
sistema jurídico-policial.
Partindo de uma perspectiva antropológica, Mariza Corrêa
125
afirma que os processos
criminais são uma espécie de fábula, construída pelos profissionais do sistema jurídico-policial
– os “manipuladores técnicos” – que procuram ordenar a realidade em autos processuais. Os
manipuladores técnicos decidem o que deve constar nos autos de acordo com regras legais
pré-estabelecidas nos códigos de processo penal. Mas essas decisões, ainda que reguladas
legalmente, teriam uma certa margem de liberdade. Segundo Corrêa, os processos penais são
conjunções de versões, todas formuladas a partir de um mesmo ato imperceptível. Os
discursos encontrados nesses processos ajudariam assim a compreender mais a natureza do
sistema jurídico-policial do que os próprios atos a que se referem. Desta forma, os autos
124
Ver especialmente os capítulos 1 e 2.
125
CORRÊA, Mariza. Morte em família... op. cit. Passim.
66
seriam uma fonte adequada para escrever uma história da justiça e das representações dos
funcionários da justiça sobre a ordem social.
Analisando processos criminais de homicídio e tentativa de homicídio das três
primeiras décadas do século XX, Carlos Antonio Costa Ribeiro
126
percebeu que as penas
atribuídas aos acusados de cometerem os referidos crimes variavam de acordo com elementos
externos ao próprio processo. Segundo ele, a relação entre o acusado e a vítima e, sobretudo, a
cor do acusado, eram elementos que pesavam intensamente na atribuição da pena pelo
Tribunal do Júri. Em outras palavras, através de uma metodologia estatística, utilizada para
desvendar as regularidades e com a descrição pormenorizada de casos que auxiliou na busca
de peculiaridades, o autor observou em que medida as decisões jurídicas consideravam as
representações sociais da cor de vítimas e acusados envolvidos nesses processos, verificando
assim em que medida a prática social dos funcionários jurídicos policiais eram
discriminatórias e racistas.
Neste sentido, Carlos Ribeiro percebeu que a característica que mais aumentava a
probabilidade de condenação era a cor do acusado. O indiciado preto tinha mais chances de ser
condenado pelo Tribunal do Júri do que qualquer outro tipo de acusado. Mas se, além de
preto, fosse homem, trabalhador manual, casado e acusado de ter cometido um “crime de
sangue” contra uma mulher branca, as chances de condenação aumentavam ainda mais.
Inversamente, o homem branco, profissional liberal e solteiro indiciado no mesmo tipo de
crime contra um homem pardo tinha mais probabilidades de absolvição do que qualquer outro
tipo de acusado
127
.
Esta análise possibilitou ao autor observar que, em cada processo criminal e em cada
julgamento, advogados de acusação e defesa combinavam de formas diferentes categorias
sociais de natureza jurídica que definiam a responsabilidade penal dos envolvidos, ou seja,
categorias sociais de classificação das pessoas com o intuito de chegar aos veredictos
desejáveis
128
.
De modo mais geral pode-se dizer, de acordo com os antropólogos, que haveria
relações recíprocas entre o direito e a sociedade. As ações dos representantes oficiais do
direito seriam condicionadas pelas estruturas e idéias dominantes na sociedade e vice-versa. O
126
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade... op. cit.
127
Idem, p. 72-6.
128
Idem, p. 141-3.
67
direito não apenas “refletiria” as normas e valores vigentes na sociedade, mas também
normatizaria e contribuiria para a formação de novos valores e representações sociais
129
.
Nosso trabalho aproxima-se das duas perspectivas e as considera totalmente
compatíveis, na medida em que procura descrever como os funcionários jurídico-policiais
valiam-se indistintamente de representações sociais da sociedade mais ampla e de categorias
do direito para julgar os germânicos envolvidos nos processos criminais, bem como busca
apreender os valores e normas sociais presentes na vida dos membros deste mesmo grupo
étnico que habitou Juiz de Fora no período de 1858 a 1921.
Partindo da analogia feita por Carlo Ginzburg a respeito das semelhanças entre o
trabalho do inquisidor e do antropólogo
130
, podemos verificar também questões similares entre
o trabalho do historiador e dos funcionários do aparato jurídico-policial. Acreditamos que foi a
ânsia desse grupo em solucionar os crimes e punir os culpados que permitiu que chegasse até
nós esta documentação extremamente rica, embora contaminada em vários pontos pela pressão
física e psicológica a que os réus e demais envolvidos estavam sujeitos. Neste sentido, esses
documentos – assim como todos os documentos utilizados pelos historiadores – nunca devem
ser considerados neutros ou transmissores de informações objetivas. Devem ser lidos como
resultado de uma relação especial, em que há desequilíbrio total das partes envolvidas. Para
decifrá-los, temos que aprender a perceber, para além da superfície do texto, a interação sutil
de ameaças, medos, ataques e recuos, ou seja, temos que aprender a desembaraçar as teias que
formam a malha textual desses diálogos
131
. Se a realidade fosse superficial e, portanto,
imediatamente cognoscível, a análise crítica seria então mais do que supérflua.
Sendo assim, buscamos descrever, através de processos criminais, mesmo que às vezes
muito parcialmente, alguns aspectos relevantes das formas de pensar e agir dos indivíduos
germânicos subalternos, bem como tentamos “historicizar” suas alternativas de condutas
descritas na documentação coligida. Recuperar as indeterminações e a imprevisibilidade dos
acontecimentos são esforços essenciais se quisermos compreender os significados que os
atores sociais em questão atribuíam às suas próprias ações. Tentamos assim aplicar o modelo
129
RIBEIRO, Carlos Costa. Cor e criminalidade... op. cit. p. 23.
130
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações. In: A Micro-História
e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 206.
131
Idem, p. 210.
68
indiciário sistematizado por Ginzburg
132
no qual os detalhes aparentemente marginais e
irrelevantes são formas essenciais de acesso a uma determinada realidade. Segundo este autor,
são esses detalhes que podem dar acesso a redes de significados sociais e psicológicos
profundos, inacessíveis por meio de outros métodos
133
.
Este capítulo foi construído a partir da reconstituição de dezenas de histórias de vários
indivíduos de origem germânica, sendo que os processos penais foram as fontes utilizadas para
a recuperação desses episódios. O fundamental em cada história abordada, como bem
demonstrou Sidney Chalhoub
134
, não é descobrir o que “realmente se passou”, e sim
compreender como se produziram e se explicam as diferentes versões que os diversos agentes
sociais envolvidos apresentam em cada caso. Assim, buscamos tecer explicações válidas do
social exatamente a partir das versões conflitantes, visto que acreditamos que um dos melhores
caminhos para se acessar elementos da realidade é através da análise de lutas e contradições
inerentes a essa mesma realidade. Em outras palavras, através da análise das diferentes
relações entre as versões em diferentes processos nos propusemos compreender os
significados ali presentes e apreender as lutas e contradições sociais expressas e mesmo
produzidas nessas versões.
Associado ao que dissemos acima, analisamos também os processos criminais da
mesma forma que o fez Carlos Antonio Costa Ribeiro
135
. Para este autor, os processos
criminais são uma construção específica dos funcionários jurídico-burocráticos, que revelam
crenças e valores vigentes na sociedade. Seria justamente no curso da elaboração destes
processos que estes funcionários lançariam mão destes valores, atribuindo significado às
“histórias” que serão julgadas nos tribunais. Pode-se dizer que os processos são construídos
pelo mundo social, já que são elaborados pelos funcionários judiciais e são “histórias” nas
quais são expressos determinados valores vigentes na sociedade. Uma vez aceitos como
versões verídicas da realidade, os valores e idéias que os compõe passam a ser reificados
publicamente
136
.
132
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e
história. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 143-179.
133
Idem.
134
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar... op. cit. p. 22.
135
RIBEIRO, Carlos A. Costa. Cor e Criminalidade... op. cit. p. 24-6.
136
Idem.
69
No entanto, além de ser um produto da sociedade e de revelar crenças e representações
vigentes, o direito possui a “força oficial de nominação
137
”. Através dos veredictos dos juízes
e jurados fica estabelecido publicamente que certas pessoas são culpadas e outras inocentes. O
direito é a forma, por excelência, da palavra autorizada, palavra pública, oficial, anunciada em
nome de todos e perante todos. Pode-se dizer que o direito tem o poder de estabelecer
“verdades” sobre o mundo social – não apenas permeado por representações sociais, mas
também as cria, mantém e as torna públicas. Neste sentido, pode-se dizer que o direito é um
agente formador desta sociedade possibilitando a perpetuação de determinadas crenças e
valores
138
.
Como mostramos acima, o processo criminal ou penal é um tipo de material que
permite diversas abordagens. Além de buscarmos compreender, através deles, um pouco das
atitudes e ações dos grupos e etnias que habitaram Juiz de Fora em um momento de
transformação, nossa pesquisa procurou analisá-los como uma construção específica do
aparato jurídico-policial. Uma construção que, apesar de seguir regras pré-determinadas,
viabilizava a entrada de valores e representações sociais extrajurídicas nos procedimentos de
julgamentos e de resolução de conflitos. Pode-se observar que o desfecho dos processos, além
de dizer quem são os culpados e os inocentes, acabava reificando um tipo específico de
culpado e inocente. Assim, ao longo de nosso trabalho, procuramos observar como os
funcionários do aparato jurídico-policial representavam as características dos indivíduos
envolvidos nos julgamentos e como os resultados possibilitavam a formação e a perpetuação
de determinadas crenças a respeito dos vários papéis que os grupos sociais/étnicos deveriam
representar e/ou consolidar.
Os processos criminais, produzidos pelo judiciário local, encontram-se alocados no
Arquivo Municipal de Juiz de Fora, organizados de acordo com o tipo de delito cometido,
estando divididos em: crimes públicos, crimes particulares, crimes policiais e outros
documentos criminais agrupados cronologicamente formando o Fundo “Benjamim Colucci”.
Com relação aos crimes envolvendo germânicos analisamos cinqüenta (50) processos relativos
a crimes de ofensas físicas; quatorze (14) processos de crimes contra a propriedade (6 de furto
e 8 de roubo); vinte e seis (26) processos criminais relativos a crimes contra a honra (crimes
137
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989, p. 236.
138
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: as origens da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.
358.
70
de calúnia e injúria); treze (13) processos relativos aos crimes de homicídio e tentativa de
homicídio e mais quatro documentos criminais relativos a aborto, dano, tentativa de retirada
de presos e ameaças envolvendo alemães nas condições de réus e vítimas no período de 1858 a
1921.
O conjunto de dados levantados nesta documentação – tais como: sexo, profissão dos
réus e das vítimas, motivos alegados para o crime, ofensas utilizadas, condenação ou
absolvição, fundamentos da sentença etc. – foram analisados quantitativamente levando-se em
consideração as variáveis gênero, classe e etnia. Dentre todos os processos pesquisados foram
selecionados alguns casos considerados mais expressivos de acordo com critérios previamente
estabelecidos, que serão submetidos a análise qualitativa, cujos resultados serviram para
redimensionar e aprofundar as conclusões formuladas a partir da análise quantitativa
139
.
Na primeira parte deste capítulo estaremos apresentando algumas conclusões a respeito
dos crimes de homicídios e tentativa de homicídio envolvendo alemães e teuto-descendentes.
Procuramos observar o perfil dos envolvidos, as relações entre eles, os locais, horários e
motivos dos crimes relatados nos processos para tentarmos apreender e compreender alguns
valores e normas sociais que regiam seus comportamentos. Também analisamos a postura do
aparato judicial frente a tais acontecimentos através da observação dos resultados dos
julgamentos.
Na segunda parte, avaliamos o mecanismo de resolução de conflitos interpessoais mais
utilizados pela comunidade germânica, segundo os processos criminais, a saber: as ofensas
físicas. Através delas buscamos perceber em que medida o conflito fazia parte do cotidiano
daquelas pessoas e como a violência se fazia presente na resolução de querelas étnicas ou
grupais.
A terceira parte procura descrever aspectos relacionados aos crimes de ofensas verbais.
Assim como na parte anterior, analisamos o perfil dos envolvidos e buscamos perceber
algumas normas sociais e comportamentais entre os germânicos através da metodologia acima
proposta e da percepção lingüística das ofensas e injúrias pronunciadas.
139
Uma proposta metodológica semelhante encontra-se em RIBEIRO, Carlos Costa. Cor e criminalidade... op.
cit. Passim. & ENGEL, Magali Gouveia. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). In:
TOPOI – Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Vol. 1, n.o 1, 2000.
71
2.1 – Homicídios e Tentativas de homicídios
De acordo com alguns especialistas em criminalidade
140
, o homicídio
141
seria uma das
ações humanas mais uniformemente considerada como crime em diferentes sociedades.
Entretanto, a reprovação social deste ato e o alcance de sua definição podem variar de acordo
com as circunstâncias ou contra quem se dirija, mas a regra básica, na maior parte dos casos, é
a penalização de quem suprime uma vida
142
. O ato homicida se aproxima, de certa forma, das
agressões que não resultam em morte – as “tentativas de homicídio”, por exemplo – das quais
as vezes se distinguem apenas no plano da eficácia dos meios e da não intencionalidade
143
. É
importante lembrar que as acusações de “tentativa de homicídio” apresentam algumas
especificidades que devem ser consideradas. Por um lado, muitos processos de acusação
contra tentativas de homicídio dizem respeito aos mais diversos tipos de briga, que nem
sempre tinham o homicídio como um objetivo e poderiam ter sido classificadas pelos
representantes do sistema jurídico-policial como “lesão corporal” ou “ofensa física”, que era
uma acusação mais branda. Por outro lado, as tentativas de homicídio poderiam ser
efetivamente quase homicídios, isto é, uma espécie de homicídio que deu errado. Com efeito,
devido a essas peculiaridades, a acusação de “tentativa de homicídio” daria início a
julgamentos bastante diferentes entre si.
De acordo com Boris Fausto, alguns fatores podem servir para explicar os padrões de
agressividade em determinado meio social, entre eles, o consumo de álcool, o uso de drogas e
a disponibilidade de armas eficazes. Entretanto, existem alguns padrões de violência física que
podem acabar em homicídio: a violência empregada como meio para alcançar determinados
140
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade... op. cit., CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar... op.
cit., ENGEL, Magali Gouveia. Paixão, crime e relações de gênero... op. cit., ZENHA, Celeste. As práticas da
justiça no cotidiano da pobreza... op. cit., FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Ed. Vozes, 1977,
entre outros.
141
Art. 192. Matar alguém com qualquer circunstancias agravantes mencionadas no artigo dezesseis, números
dois, sete, dez, onze, doze, treze, quatorze e dezessete. Penas – de morte no grau máximo; galés perpétuas no
médio; e de prisão com trabalho por vinte anos no mínimo. Art. 193. Se o homicídio não tiver sido revestido das
referidas circunstancias agravantes. Penas – de galés perpétuas no grau máximo; de prisão com trabalhos por
doze anos no médio; e por seis no mínimo. Art. 194. Quando a morte se verificar, não porque o mal causado
fosse mortal, mas porque o ofendido não aplicasse toda a necessária diligencia para remove-lo. Penas – de
prisão com trabalho por dois a dez anos. Art. 195. O mal se julgará mortal a juízo dos facultativos; e,
discordando estes ou não sendo possível ouvi-los, será o réu punido com as penas do artigo antecedente. Art.
196. Ajudar a alguém a suicidar-se ou fornecer-lhe meios para esse fim com conhecimento de causa. Penas – de
prisão por dois a seis anos”. In: Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique
Laemmert. 1873.
142
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade... op. cit. p. 107.
72
objetivos materiais (latrocínio); a utilizada como mecanismo de resolução de conflitos
interpessoais; a que resulta de frustrações muitas vezes inconscientes e toma a forma de
explosão súbita e aquela que se constitui em um instrumento pedagógico
144
.
O emprego da violência para conseguir bens materiais sofre grande censura social.
Entretanto, existem violências consideradas legítimas. A não ser que chegue a “extremos”, a
agressão física às crianças e às mulheres, em certos meios, é tida como receita pedagógica
eficaz, aceita principalmente pelo senso comum para que a mulher conheça desde cedo qual é
o seu lugar. A violência também é a forma legítima de responder à ofensa a certos atributos
preciosos cuja inteireza vem restaurar; caso típico da honra masculina
145
.
Neste sentido, o estudo dos homicídios e tentativas de homicídios cometidos e sofridos
por indivíduos germânicos abrirá caminho para a compreensão de alguns padrões de
violências, desvendando valores básicos prevalecentes na comunidade teuta local e, às vezes,
na sociedade juizforana, bem como possibilitará a observação e o acesso ao perfil dos alemães
envolvidos neste tipo de “crime”. Estes processos auxiliaram também na percepção dos
motivos alegados pelas partes envolvidas para cometerem tais ações, possibilitando a
percepção das relações entre os germânicos e outras etnias, as relações dos germânicos entre si
e também a compreensão da relação que o aparato jurídico-policial mantinha com esse grupo e
vice-versa.
2.1.1 – O perfil dos envolvidos
Comparando o número de homicídios e tentativas de homicídio cometidos em Juiz de
Fora no período de 1858 a 1889 com o número dos mesmos crimes praticados e sofridos por
germânicos, verifica-se que estes não fizeram, de acordo com os processos criminais
encontrados, uso regular deste mecanismo como forma de resolverem conflitos interpessoais e
como forma de exercício da violência. Para o período imperial, não encontramos nos
processos nenhuma menção sequer de homicídios envolvendo alemães. Na verdade,
encontramos apenas oito processos penais envolvendo germânicos, que vão de 1890 a 1909,
143
Idem.
144
Idem. p. 108-9.
145
Idem.
73
sendo que em quatro deles os alemães são processados e em seis são eles que levam a frente
um processo, fato este que nos levou a quantificar os dados obtidos para tentarmos entender o
porque deste indicativo.
Tabela 3 – Crimes de Sangue em Juiz de Fora (1851-1900)
DELITO 1851-60 1861-70 1871-80 1881-90 Subtotal* 1891-1900 Total
Homicídio 17 39 80 80 216 129 345
Tent. de Morte 11 20 46 61 138 93 231
Ofensas Físicas 56 80 115 131 382 363 745
TOTAL
84 139 241 272
736 585 1321
* Total dos registros de crimes de sangue punidos no Código Criminal do Período Imperial preservados.
Fonte: AHMJF. Fundo Benjamim Colucci. Processos Criminais, 1850-1900.
Quanto ao sexo dos acusados, germânicos e não-germânicos, observa-se a
predominância absoluta de homens (100%) e a ocupação profissional destes se distribui da
seguinte maneira: 1 cocheiro, 2 lavradores, um comerciante, 2 jornaleiros, 1 pedreiro e 2
cocheiros de bonde.
Percebe-se então que a maioria dos acusados era formada por trabalhadores manuais de
baixa renda, funcionários de baixo escalão da Cia. União e Indústria, empregados do comércio
e cocheiros de bonde. Em apenas dois casos aparecem alemães alegando serem lavradores. Em
cinco dos oito processos a antiga colônia de baixo – Villagem – aparece como o local das
querelas. Segundo Mônica Oliveira, a Villagem foi o “bairro” no qual residiram os
trabalhadores braçais e operários (germânicos ou não) ligados à Companhia União e Indústria,
atuando assim como ponto de contato entre os colonos e os moradores da cidade
146
. Nos
outros casos, o centro da cidade foi o palco no qual os crimes acabaram sendo cometidos.
Acreditamos que esses fatos se explicam devido a possibilidade de contato dos germânicos
com outros grupos, o que invariavelmente acabava facilitando assim a criação de novas áreas
de tensões. Em outras palavras, os referidos crimes seriam, além de outras coisas,
conseqüência das relações entre um número variado de indivíduos subalternos, dos mais
variados grupos étnicos, que passaram a habitar uma cidade em transformação para relações
74
tipicamente capitalistas, bem como aconteceram devido ao fato dos grupos étnicos
desconhecerem, num primeiro momento, os códigos culturais que regiam as normas
comportamentais e morais dos outros grupos.
Quanto à faixa etária dos réus germânicos, observa-se que a maior parte deles
constituía-se de homens adultos entre 22 e 55 anos.
Tabela 4 – Idade dos Réus Germânicos
Faixa etária %
De 20 a 30 anos 62,50%
De 31 a 40 anos 25%
De 41 a 50 anos 0%
De 51 a 60 anos 12,50%
Total 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de homicídios e tentativas de homicídios, 1890/1909.
Quanto à nacionalidade das pessoas envolvidas em querelas contra alemães, pode-se
dizer que há uma certa desproporção entre os números da amostra e os da população da
cidade. O número de autores de processos contra alemães e de vítimas dos mesmos difere
bastante do percentual destes grupos na população de Juiz de Fora no período em análise, já
que portugueses e italianos aparecem com baixa ou nenhuma representatividade. De acordo
com Cláudia Viscardi, em 1872 os portugueses correspondiam a 74,14% dos imigrantes que
habitavam na cidade, mantendo-se nessa posição até pelo menos 1915. Porém o censo de 1920
apontava para uma maioria italiana, seguida então pelos portugueses (26%)
147
. Além disso,
percebe-se que em apenas duas ocasiões ocorreram este tipo de conflito entre brasileiros e
alemães. Na verdade, o que fica mais evidente é que os homicídios e tentativas de homicídios
envolvendo germânicos eram majoritariamente uma manifestação intraétnica; um elemento
conflitivo dentro da própria comunidade alemã.
146
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Imigração e Industrialização... op. cit. p. 60-1
75
Tabela 5 – Nacionalidade dos réus e das vítimas
Autores de processos contra alemães Réus processados por alemães
Nacionalidade Quantidade % Nacionalidade Quantidade %
Alemão 6 75% Alemão 4 50%
Português 0 0% Português 1 12,50%
Brasileiro 2 25% Brasileiro 3 37,50%
Total 8 100% Total 8 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de homicídios e tentativas de homicídios, 1890/1909.
Com relação ao perfil das vítimas, obtivemos resultados muitos semelhantes:
Tabela 6 –Profissão das vítimas
Profissão Quantidade %
Maquinista de oficina 1 12,50%
Carpinteiro 1 12,50%
Desempregado 2 25%
Cocheiro 1 12,50%
jornaleiro 1 12,50%
lavrador 1 12,50%
lavadeira 1 12,50%
Total 8 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de homicídios e tentativas de homicídios, 1890/1909.
Observa-se que, assim como os acusados, a maioria das vítimas eram pessoas de baixa
renda: trabalhadores manuais, empregados das fábricas locais e lavadeiras. Em outras
palavras, àqueles que cometeram tais crimes eram indivíduos pertencentes à classe operária ou
ao lumpem-proletariado. Quanto à faixa etária, verifica-se que estes se encontravam entre os
11 e 56 anos. Por último, cabe dizer que, quanto ao sexo das vítimas, a maioria era formada
147
VISCARDI, Cláudia. O cotidiano dos portugueses de Juiz de Fora (1840-1940). In: BORGES, Célia.
Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edufjf,
2000, p. 21.
76
por homens (87,50%), mas encontra-se aqui a única mulher envolvida nos casos de tentativa
de homicídio: uma lavadeira alemã de 56 anos de nome Eliza Stiboaldt
148
. No dia 25 de
outubro de 1903, Eliza foi atingida por dois tiros disparados por seu genro, Otávio Carvalho,
mineiro de Mar de Hespanha, 24 anos que exercia as profissões de cocheiro e lavrador. Os
motivos desse crime serão analisados mais abaixo.
Outra coisa que nos chamou a atenção foi o número de réus alfabetizados. Apesar do
número de envolvidos não serem suficientes para que sejam generalizados os dados obtidos
aqui para todo o conjunto de germânicos, percebemos que 62,50% dos réus eram
alfabetizados. É comum associarmos a prática de crimes com a delinqüência, com a falta de
educação formal e com a pobreza. Entretanto os dados obtidos questionam alguns desses
aspectos. Dentre os envolvidos encontramos até alguns alemães com educação formal (mesmo
que rudimentar), alguns deles ex-alunos do colégio agrícola criado por Mariano Procópio para
fornecer educação aos filhos dos imigrantes
149
. Como exemplo podemos citar o caso do
homicídio praticado contra George Foier por Isidoro Draxler. Este, movido por ciúmes atacou
o embriagado Foier com uma mão de pilão devido ao fato deste estar abraçando sua esposa
declarando ser conhecido dela “dos tempos de escola
150
.
Além disso, percebe-se que não estamos diante de criminosos “profissionais” que
geralmente acabavam matando como meio de efetuar roubos ou outros crimes. Os indivíduos
que aparecem nos processos penais eram homens que, voluntária ou involuntariamente,
acabaram resolvendo alguns conflitos interpessoais através de brigas que geraram mortes ou
ferimentos graves. Afirmamos isto porque, na maior parte dos casos, percebemos que os
envolvidos mantinham relações de amizade, parentesco ou vizinhança, e que entraram em
conflitos como forma de resolver suas diferenças antigas ou momentâneas.
Por último cabe dizer que apesar de serem pobres, tais germânicos, de acordo com o
que pode ser averiguado nos processos criminais, não se encontravam na miséria a ponto de
tais crimes serem justificados pela situação de escassez. Com relação aos motivos dos crimes,
aprofundaremos essas questões mais abaixo.
148
AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 85, 25/10/1903.
149
STEHLING, Luis José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os Alemães...op. cit. p. 230.
150
AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 34, 06/06/1895.
77
2.1.2 – Os instrumentos e as armas dos crimes
Com relação aos instrumentos utilizados na prática dos homicídios e tentativas de
homicídios registrados nos autos dos processos criminais, acreditamos que tais instrumentos
são capazes de indicar certos padrões de atividades culturais e comportamentais entre a
comunidade germânica em questão, bem como podem indicar o maior ou menor acesso ao
porte de armas, sobretudo das armas de fogo.
De acordo com Boris Fausto, deu-se em São Paulo, entre os anos de 1880 e 1924, a
passagem dos instrumentos cortantes (facas e punhais, principalmente) para a das armas de
fogo. As “armas brancas” representavam uma esmagadora maioria nos anos de 1880 a 1889
(75% contra 13% das armas de fogo). Tais armas ainda predominavam no primeiro
qüinqüênio do século XX, cedendo terreno de forma nítida a partir de 1905 a 1909, a ponto
das armas de fogo serem majoritárias no período de 1900 a 1924
151
.
No caso de Juiz de Fora, mais especificamente nos casos envolvendo germânicos nas
condições de vítimas e réus, obtivemos dados apenas para o período de 1890 a 1909. Tais
dados nos mostram que em 62,50% dos casos, os crimes foram cometidos através de armas de
fogo, fato este indicativo de que muito provavelmente o uso de armas de fogo estava
relativamente disseminado entre ao alemães. A princípio, como uma das causas desta possível
disseminação, principalmente do revólver, podemos indicar que este período é considerado
pela historiografia como a época de grande industrialização e modernização do município
Tabela 7 – Homicídios – Instrumentos empregados, 1890 – 1909.
Anos
Instrumentos
1890 – 1900 1901 – 1909
Total
62,50%
12,50%
12,50%
12,50%
Fogo
Cortante
Contundente
Outros
2
0
1
1
3
1
0
0
100%
Fonte: AHMJF, Processos criminais de Homicídio e Tentativa de Homicídios, 1890/1909.
151
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São... op. cit. p. 111.
78
De acordo com Domingos Giroletti, pode-se distinguir dois períodos no processo de
industrialização de Juiz de Fora até 1930. O primeiro, caracterizado pelo predomínio de
pequenas fábricas e oficinas, com baixa produção e produtividade, baixo índice de capital
investido e pequena absorvição de mão-de-obra, estendeu-se até o fim da década de 1880 e é
visto como período da implantação industrial na cidade.
Já a partir da década de 1890 delineia-se o segundo período, quando ao lado das
pequenas indústrias que se mantêm e de outras que haveriam de se organizar, inicia-se a
fundação de médias e grandes indústrias locais. Estes estabelecimentos se diferiam daqueles
do primeiro período pela produção em série, pelo emprego de um contingente significativo de
operários, pela utilização de uma tecnologia importada e sofisticada para os padrões daquela
época – primordialmente nos ramos têxtil, metarlúgico, tipográfico e nas indústrias de
construção – e pelo uso de energia elétrica como força motriz. Além disso, as médias e
grandes indústrias se distinguiam das pequenas também pela separação entre os proprietários e
os trabalhadores diretos dos meios de produção. É nesse contexto que se organizam as
sociedades anônimas
152
.
É importante ressaltar que o período da “grande industrialização” local é precedido por
uma série de relevantes iniciativas tais como: implementação de um sistema de comunicação –
rodovia (1861); ferrovia (1875); telefone urbano (1883); e telégrafo (1885); organização de
um sistema financeiro (Banco Territorial e Mercantil de Minas Gerais –1887 e Banco de
Crédito Real de Minas Gerais –1888), geração de energia elétrica (1889) e sua posterior
utilização como força motriz na indústria (1898). Neste sentido, tais iniciativas funcionaram
como infra-estrutura e base de apoio ao desenvolvimento do segundo período do processo de
industrialização local
153
.
Muito possivelmente este processo acima relatado pode ter atuado como um
mecanismo significante de disseminação local do revólver, arma portátil e relativamente
barata, principal responsável pela ascensão das armas de fogo como instrumento letal,
utilizado principalmente como instrumento para lidar com valentões e com aqueles que, de
uma forma ou de outra, desafiavam a honra pessoal ou da família do ofendido
154
. Verifica-se
152
GIROLETTI, Domingos. A industrialização... op. cit. p. 73-4.
153
Idem.
154
A defesa da honra é o tema alegado por 50% dos réus envolvidos nos crimes ora em análise.
79
também, através da análise de alguns processos, que a obtenção dessas armas era algo muito
fácil. Parece-nos que vários estabelecimentos comerciais as vendiam sem o menor controle
das autoridades municipais, que apenas proibiam a circulação de pessoas armadas dentro dos
limites do município. Como exemplo deste estado de coisas, podemos citar o episódio em que
o condutor de pontes e calçadas da Cia. União e Indústria, o francês Ullyses Dauphin, foi à
casa de negócios do alemão Fernand Niestsch comprar um revólver que havia
encomendado
155
. Percebe-se na leitura do processo que o uso de revólveres era, já nesse
período, relativamente normal tanto que o comprador foi até a rua, sem o menor
constrangimento experimentar a sua nova arma. Entretanto, ao experimentá-la, o francês
acabou acertando por acidente o jovem ajudante de carpintaria, o alemão Pedro Schubert.
Além disso, as armas também circulavam facilmente de mãos em mãos. Um exemplo
disso é o processo movido pela promotoria contra Otávio Carvalho
156
, um lavrador de 33 anos,
natural de Mar de Hespanha, acusado de tentar matar sua sogra, a alemã Eliza Stiebolds, com
dois tiros na região peitoral do lado esquerdo. Ao ser questionado sobre a origem da arma
utilizada – um revólver – Otávio afirma que pegou a arma emprestada de um irmão, que a
possuía a um certo tempo. Outro caso que ilustra a facilidade de se obter uma arma de fogo
encontra-se no processo movido contra o germânico Matheus Würch
157
. Afirmando que na
manhã de 11 de setembro de 1897 o ofendido Antonio Ferreira Amaro havia penetrado em sua
residência e injuriado sua mãe, como forma de vingança, Matheus disparou dois tiros contra
Antonio em uma emboscada no centro da cidade. Da mesma forma, o réu afirmou que nesse
mesmo dia foi até a cidade e comprou o revólver e uma caixa de balas que foram utilizados na
emboscada contra Antonio Amaro.
Entretanto, o que percebemos é que o uso das armas de fogo por alemães, na maior
parte dos casos, estava intimamente ligada ao porte de arma do padrão “rural”, ou seja, a posse
de armas, principalmente de espingardas de dois canos – a garrucha – com a finalidade de caça
e eventualmente ligada à defesa da propriedade. Em outras palavras, a utilização de armas de
fogo entre os alemães não possuía ligação direta com a disseminação do revólver, fruto do
processo de industrialização e modernização pelo qual passava o município naquele momento.
A título de esclarecimento temos o desastre ocorrido com o filho mais jovem do colono
155
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 36, 28/10/1868.
156
AHMJF, processo criminal – Tentativa de Homicídio: cx 85, 25/10/1903.
157
AHMJF, processo criminal – Tentativa de Homicídio: cx 82, 12/09/1897.
80
Kirchmaier que, indo caçar em uma lagoa perto de sua casa com seu irmão mais velho de
nome Andréas, acabou levando parte da carga de um tiro que o irmão disparou para matar um
pato selvagem
158
. Além da caça, as armas de fogo também serviram como forma de defesa de
propriedades. Este é o caso do Colono Felippe Gerheim. Acusado de matar um touro
pertencente a Antonio Tostes, um dos potentados locais, Gerheim argumentou que realmente
cometera o crime, mas o fez porque tal touro invadiu e destruiu parcialmente sua pequena
lavoura de milho além de ficar, neste mesmo momento, em posição ameaçadora com relação a
sua filha
159
. Percebe-se também que no homicídio cometido pelo barbeiro germânico
Christiano Kappel contra Antonio dos Santos Silva, a arma utilizada, uma garrucha, ficava na
barbearia de Kappel como forma de proteger o negócio do qual era empregado e, porventura,
lidar com valentões que se recusassem a pagar sua conta
160
.
É importante lembrar que em seus primórdios, a região do que é hoje a ex-colônia, era
cercada de matas e repletas de aves, o que possibilitava aos alemães uma diversificação da
alimentação diária, através da ingestão da tão escassa carne. Em outras palavras,
diferentemente do caso paulista, em que o amplo uso de armas de fogo se devia
principalmente à disseminação dessas através industrialização da cidade, em Juiz de Fora, ou
melhor, entre os germânicos, a presença de armas de fogo refletia menos a influência da
modernização, advinda com a industrialização, do que seu uso como parte da vida cotidiana de
um grupo com hábitos que poderíamos considerar tipicamente rurais, nos quais as armas de
fogo possuíam o papel de permitir o complemento da dieta diária através da caça e da defesa
da propriedade. Além disso, não podemos nos esquecer que tais hábitos não eram apenas
oriundos das novas experiências vividas em um outro país. Os germânicos que migraram para
Juiz de Fora, em sua grande maioria, viviam em regiões rurais e agrícolas nos estados e grão-
ducados que deram origem à Alemanha. De acordo com Emílio Willems, além das hortaliças,
cereais, leite e derivados, os alemães do século XIX complementavam sua dieta alimentar com
a carne verde e com a carne de animais caçados
161
. Igualmente, é muito provável que a defesa
de suas propriedades rurais em terras germânicas contra invasores e animais se desse com o
auxílio de espingardas rústicas.
158
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 34, 21/09/1859.
159
AHMJF, processo criminal – Dano: cx 62, 07/12/1876.
160
AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 43, 30/09/1905.
161
WILLENS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes alemães e
seus descendentes no Brasil. 2
a
ed. Rio de Janeiro: Editora Nacional, s. d., p. 93-5.
81
Apesar da modernização local não ter, de acordo com os dados coletados, incentivado
a massificação do porte de revólveres entre os germânicos, por outro lado, trouxe avanços na
área do transporte urbano, que vez ou outra acabou atuando como instrumento de homicídios e
tentativas de homicídio. Nos referimos aqui, mais especificamente, aos bondes de tração
animal e aos bondes elétricos.
Em finais da década de 1870 a cidade começava a descer a colina de Passos e estender-
se na várzea pantanosa e este fato acabou despertando em Félix Schmidt, colono germânico, a
idéia de instalar nela uma linha de bondes com tração animal. No ano de 1880, ele associou-se
a Eduardo Batista Roquete Franco, requereu e obteve do Governo Provincial, a concessão para
instalar e explorar bondes urbanos de tração animal durante 60 anos. Fundaram assim a
“Companhia Ferro Carril Bondes de Juiz de Fora” com o capital de 100:000$000, sendo Félix
Schmidt eleito seu tesoureiro. Em 20 de novembro de 1880 a Companhia requereu à Câmara
Municipal licença para iniciar o assentamento de trilhos alemães na rua Direita e naqueles
locais onde isso fosse necessário para atingir os subúrbios
162
.
A inauguração do primeiro serviço de transporte público urbano de Minas Gerais deu-
se no dia 15 de novembro de 1881 e seu percurso inicial abarcava boa parte do centro urbano
da cidade, sendo logo em seguida ampliado sua extensão para o Alto dos Passos até a fábrica
de cerveja de José Weiss, na colônia de Baixo, denominada Villagem. Quando da inauguração
do Hipódromo Ferreira Lage, a linha foi estendida até a Tapera. Os bondes de tração animal
funcionaram até o ano de 1905, quando foram substituídos pelos bondes elétricos pertencentes
à Companhia Mineira de Eletricidade
163
.
Assim, ainda no ano de 1895, o jovem filho de alemães nascido em Juiz de Fora, Jacob
Dore, foi atropelo e morto por um bonde de tração animal
164
. No dia 13 de junho, por volta das
quatro da tarde, quando o bonde fazia o trajeto até a fábrica de cerveja de José Weiss, a
criança se distraiu perto da linha, que ficava a mais ou menos 2,5 metros da porta de sua casa,
sendo jogado longe pelo impacto sofrido pelo contato com o bonde. Segundo uma das
testemunhas, o pedreiro alemão Matheus Stenner, Jacob já havia sido por ele avisado do
perigo de ficar brincando perto da linha do bonde, fato este que, segundo ele, poderia causar
um acidente. Entretanto, sendo uma criança de apenas 11 anos, parece-nos que Jacob não deu
162
STEHLING, Luis José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os Alemães...op. cit. p. 319.
163
Idem.
164
AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 35, 13/06/1895.
82
muita atenção aos conselhos advindos de Stenner e acabou morrendo devido aos ferimentos
graves que lesionaram toda a região do seu tórax.
2.1.3 – Relação Vítima /Agressor
A respeito das relações entre vítimas e agressores, vários pesquisadores vêem
mostrando que, diferentemente do que acredita o senso comum, em regra os acusados de
homicídios e tentativas de homicídios dirigem suas ações contra pessoas a quem conhecem e
mantêm algum tipo de relacionamento (parentesco, amizade, vizinhança etc.).
Analisando os homicídios praticados em São Paulo entre 1880 e 1924, Boris Fausto
constatou que em apenas 14% dos casos encontrados tais crimes ocorreram entre estranhos.
Percebeu também que em 55,1% dos processos os relacionamentos entre vítimas e agressores
perpassavam pela esfera do parentesco, vizinhança, amizade, negócios e amizades no
trabalho
165
.
Comparativamente, no estado americano da Filadélfia dos anos de 1839 a 1901, os
envolvidos em crimes de morte, estranhos entre si, representavam 30% do total. Segundo
Roger Lane, tal porcentagem tendeu a decrescer, caindo a 14%, no período de 1948 a 1952
166
.
Esta tendência estaria vinculada a crescente privatização do lazer da população pobre
americana e à escassez de armas letais nas casas do século XIX. Para tanto, Lane cruzou a
variável “agressor-vítima” com “locais dos crimes”, mostrando que os avanços dos crimes
entre parentes, ou gente que se conhecia, correspondia ao maior número proporcional de
delitos praticados em casa, observando uma queda dos homicídios em bares ou ruas, onde o
contato entre estranhos é presumivelmente maior
167
.
Analisando as práticas da justiça no cotidiano dos habitantes do município fluminense
de Capivary, entre os anos de 1841 e 1890, Celeste Zenha
168
percebeu que a condenação de
homicidas estava intimamente ligada aos valores morais daquela sociedade. A qualificação do
comportamento do réu como desejável ou repreensível e, principalmente, a rede de
165
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano... op. cit. p. 112-3.
166
LANE, Roger. Violent Death in the City: suicide, accident and murder in 19
th
century Philadelphia. Harvard
Univ. Press, 1979, passim.
167
Idem. Passim.
83
solidariedade, desafetos e parentes em que se inseria os envolvidos, eram os fatores de maior
peso para a produção de um criminoso
169
.
Nos casos envolvendo germânicos em Juiz de Fora, tanto como vítimas quanto
agressores, entre os anos de 1890 e 1906, os dados coletados nos informam que em apenas um
dos casos, os envolvidos eram desconhecidos. No restante deles as vítimas e agressores eram
parentes, vizinhos ou colegas de trabalho
170
. Assim como nos dados obtidos por Roger Lane a
respeito dos locais dos crimes, percebemos 50% dos crimes ocorreram nas casas ou em
propriedades dos envolvidos, 25% nos locais de trabalho e 25% nas ruas dos bairros onde
viviam.
Tabela 8 - Homicídios e tentativas de homicídios – Relação entre vítimas e agressores
Relação %
Parentes
Vizinhos
Colegas de trabalho
Desconhecidos
12,5%
62,5%
12,5%
12,5%
Total 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de homicídios e tentativas de homicídios, 1890/1909.
Tabela 9 – Relação agressor-vítima segundo a etnia
Relação segundo a etnia Freqüência dos casos
Brasileiro x Alemão
Alemão x Alemão
Português x Alemão
Alemão x Brasileiro
3
2
1
2
Total 8
Fonte: AHMJF, processos criminais de homicídio e tentativa de homicídio, 1890/1909.
168
ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza: um estudo sobre o amor, o trabalho e a
riqueza através dos processos penais. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1984. Passim.
169
Idem, p. 70.
170
AHMJF, processos criminais de homicídio e tentativa de homicídios – cx 31, 19/12/1890; cx34, 06/06/1895;
31/01/1905; cx 35, 13/06/1895; cx 85, 25/10/1903; cx 43, 30/09/1905; cx 46, 10/07/1909; cx 82, 12/09/1897.
84
Assim, outro dado a mais da proximidade entre agressor e vítima encontra-se no fato
de que as partes eram, em algumas querelas, da mesma nacionalidade, o que no caso dos
alemães implica, na maior parte das vezes, na divisão do mesmo espaço geográfico e na
manutenção de relações de vizinhança (a região da ex-colônia D. Pedro II, onde ficavam suas
propriedades), na interação em negócios, em rivalidades, em contatos de lazer e em situações
libertas do peso das hierarquias do respeito.
Um caso que representa bem este estado de coisas é o homicídio cometido contra
Henrique Rehmann por Frederico Willing. Os dois alemães moravam na Rua Bernardo
Mascarenhas, principal via da ex-colônia de baixo – Villagem – e se conheciam desde a
infância, quando haviam migrado para o Brasil. No dia 10 de julho de 1909, por volta das
cinco horas da tarde, Willing, viúvo de 55 anos, vinha do seu trabalho na Fábrica dos Ingleses
e encontrou-se com Rehmann em frente à sede da Sociedade Beneficente Alemã, também
situada à rua Bernardo Mascarenhas. Ao se esbarrarem, Willing perguntou a Rehmann por que
ele havia matado seu porco com veneno e este, não gostando da afirmação, colocou-se a
agredir Willing que, ao se defender, atirou uma faca na vítima que acabou morrendo no local
devido ao ferimento. Segundo Willing, “na ocasião em que atirou a faca em Rhemann o fez
sem a intenção de matar, tanto que supunha atirar-lhe uma pedra; que estava fora de si na
ocasião pois havia tomado um pouco de cerveja”.
Um caso que também expressa conflitos entre vizinhos é o da tentativa de homicídio
efetuada por Matheus Würch contra Antonio Ferreira Amaro. De acordo com Würch, pedreiro
prussiano, morador no morro da Gratidão, local que ficava entre a colônia de baixo e o centro
urbano da cidade, Amaro invadiu sua casa na manhã do dia 11 de setembro de 1897 e injuriou
sua mãe com vários epítetos desonrosos. Irritado com o fato, o jovem germânico de 22 anos
comprou um revólver e uma caixa de balas com a finalidade de “tomar uma satisfação com o
dito Amaro; e se ele relutasse ele respondente usaria o revólver, como de fato usou a arma
para esse fim comprada, mas que a sua intenção era apenas dar com um pau no referido
Amaro, e que para esse fim trazia consigo uma bengala
171
Outro caso similar ao acima narrado é aquele envolvendo o lavrador alemão
Christovão Pullig e o português Manoel de Souza Lucas Reis
172
. Depois de reiteradas queixas
contra a presença de alguns animais de Manoel em sua propriedade, Pullig, morador no
171
AHMJF, processos criminais – Homicídio: cx 82, 12/09/1897., p. 4.
172
AHMJF, processos criminais – Tentativa de homicídios: cx 85, 31/01/1905., p. 4.
85
distrito juizforano de Paula Lima, remeteu para o curral da cidade os ditos animais. Tal
procedimento exasperou Manoel que, em represália concebeu o designo, revelado durante o
processo, de matar Pullig. No dia 5 de janeiro de 1905, às 5 horas da tarde, armou-se de
espingarda e caminhou para o lado da casa de Christovão e ao chegar ali, vendo o alemão
dentro de sua casa e em frente a janela aberta para a estrada, apontou a arma e disparou tiros
que produziram em Pullig ferimentos na cabeça, no maxilar, no pescoço, no ombro e perto do
coração.
Dentre os processos analisados, percebemos também a presença de homicídios entre
colegas de trabalho. No dia 30 de setembro de 1905, no “Hotel Hespanhol”, situado a poucas
centenas de metros da sede da antiga Cia. União e Indústria, jantavam diversas pessoas entre
as quais o baiano Antonio dos Santos Silva e o teuto-descendente Christiano Kappel, este
último barbeiro de profissão
173
. De acordo com algumas testemunhas, sempre que se
encontravam por ocasião das refeições, Silva e Kappel, “pela intimidade que se estabelecia
entre os comerciais
174
, dirigiam brincadeiras um ao outro sem que, até então, haver por este
motivo ocorrido alguma desavença entre eles. Contudo, no dia 30, Silva, em meio aos gracejos
que trocava com o Kappel, chamando-o de alemão, disse que ele não era brasileiro.
Contrariado, o barbeiro, terminando sua refeição, retirou-se para a sala contígua, antiga loja de
barbearia, e buscou sua garrucha, com a qual efetuou disparos contra Silva, ocasionando-lhe a
morte.
Diferentemente dos casos narrados por Boris Fausto, encontramos apenas um caso
envolvendo crimes entre familiares. Nos dizeres de Otávio Carvalho, mineiro de Mar de
Hespanha, 24 anos que exercia as profissões de cocheiro e lavrador:
“No domingo último fora com a mulher à casa de sua sogra Eliza
[Stiebolds] a passeio e visita a esta; que a noite chamando sua mulher para
que fosse a sua casa, sua sogra Eliza opôs-se a saída de sua mulher; que o
respondente para evitar questões saiu e deixou sua mulher ali; que na
segunda-feira a noite foi novamente buscar a mulher e sua sogra opôs-se
novamente a saída dela fechando as portas da casa de modo que o
respondente foi obrigado se retirar; que ontem, terça-feira, às oito horas,
mais ou menos, da manhã, o respondente dirigiu-se novamente a casa de sua
sogra para buscar sua mulher a ali chegando sua sogra ainda se opôs a saída
dela dali declarando que ela não mais o acompanharia, apesar de sua mulher
173
AHMJF, processos criminais – Homicídio: cx 43, 30/09/1905.
174
Idem., p. 4.
86
querer acompanha-lo; que dizendo sua sogra que se tivesse um marido bom
deveria abandona-lo, aconselhando sua mulher a amasiar-se citando o
exemplo de uma sua cunhada para viver bem e que seu marido eram sem
vergonha e filho da puta (referindo-se ao respondente) ela em lugar de sua
filha já tinha largado; pelo que ouvindo esses insultos o respondente puxou de
um revólver que trazia consigo com o fim de amedrontar sua sogra e ver se
ela deixava sua filha que é mulher do respondente acompanhá-lo, aconteceu
que a arma disparou detonando duas vezes, atribuindo ao seu estado nervoso
e alcoólico os disparos dessa arma [...]
Através desses exemplos percebe-se que os homicídios envolvendo germânicos, longe
de manifestarem comportamento de delinqüentes profissionais, ocorriam como forma de
exteriorizar elementos conflitivos entre pessoas que se conheciam e que compartilhavam o
mesmo espaço geográfico e social, sendo na maior parte das vezes, vizinhos, colegas de
trabalhos e parentes. Esses fatos ajudam a generalizar a hipótese acima mencionada de que,
diferentemente do que pensa o senso comum, os homicídios e tentativas de homicídios
ocorrem entre pessoa conhecidas que, por algum motivo, entraram em conflito. Neste sentido,
a partir de agora estaremos analisando quais foram os fatores que estiveram por detrás e que
originaram os crimes cometidos ou sofridos pela comunidade teuta local.
2.1.4 – Os Motivos dos crimes
Apesar de acreditarmos que os autos não constituem um documento norteado pela
busca da verdade, como bem nos ensina Mariza Corrêa, mas pelo contrário, se constituem a
pulverização do fato original, por iniciativa do aparato jurídico-policial e dos envolvidos,
tendo como objetivo o enquadramento positivo ou negativo dos personagens em entidades
sociais idealizadas
175
; a discussão dos “motivos dos crimes” alegados ou indiretamente
apresentados seria relevante por ser indicativa das normas sociais de comportamento vigentes
na sociedade em análise.
As razões apontadas pelas partes envolvidas nos processos de homicídios e tentativa de
homicídio (ofensor e ofendido, quando este sobrevive) são de duas ordens: aquelas que
remontam a questões anteriores e aquelas que emergiam no momento em que ocorria a
175
CORRÊA, Mariza. Morte em Família... op. cit. Passim.
87
questão. A razão anterior mais expressiva é a existência de problemas de convívio e de
relacionamento entre vizinhos e parentes. Por outro lado, a provocação por uma das partes e a
bebedeira eram as razões mais freqüentes nas eclosões momentâneas que incluíam, além
destes, outras razões nada fúteis, como principalmente a defesa da honra individual e da
família ou “azedar-se com brincadeiras e caçoadas”. Todos estes dados caracterizam o
homicídio ou tentativa de homicídio como uma agressão resultante da explosão de um
descontentamento, como uma resposta violenta a uma contrariedade momentânea ou anterior.
Assim, os temas alegados pelos réus para cometerem os crimes foram: aborrecer-se com
brincadeiras; a defesa da honra materna, a má influência da sogra sobre a esposa; o fato do
ofendido ter matado um porco do ofensor, a invasão de propriedade pelo ofendido, entre
outros.
Entre os processos levantados, em 62,5% dos casos o tema da honra familiar ou
pessoal era o eixo central, seja porque a ação se voltava contra terceiros a partir da inserção da
vítima na esfera familiar, seja porque ocorriam entre os membros da família. Os motivos
alegados pelas partes mostram também que o significado do tema da honra estava, quase
invariavelmente, ligada à família. Eram as situações em que o acusado vingava a honra
familiar, seja reagindo a ofensas contra membros da família ou atacando membros da família
que ofenderam a honra pessoal do indiciado.
Como exemplo de um crime relacionado ao tema da honra temos o caso em que
Isidoro Draxler agrediu e matou George Foier
176
. De acordo com Draxler, numa tarde de
domingo de junho de 1895, ele se encontrava voltando para sua casa e encontrou no caminho
o também alemão Guilherme Rein, o qual foi convidado para tomar café e prosear com ele em
sua casa. Chegando em sua residência Draxler encontrou em sua porta George Foier:
“[...] com quem não tinha relações mas por delicadeza o convidou
entrar. E o réu (Draxler) mandou sua mulher para a cozinha preparar um café
para George e que esta entrou para a cozinha e George a seguiu, ficando o réu
admirado com tal procedimento e foi ver o que estava ele fazendo no interior
de sua casa e o viu abraçar sua mulher e perguntou o que era aquilo. George o
mandou a merda e tirou uma faca muito afiada e que para se defender deu
pancadas em George, mas sem a intenção de mata-lo, e quando deu a primeira
pancada em George este deu menção de puxar a faca e então deu a segunda
pancada que o prostou por terra
177
.
176
AHMJF, processos criminais – Homicídio: cx 34, 06/06/1895.
177
Idem.
88
Analisando este processo, percebe-se que o tema do ciúme e a defesa da honra da
esposa estão presentes. A própria mulher de Draxler, Maria, afirmou em depoimento que “o
motivo desse procedimento de Isidoro foi a desconfiança de George [...] por este estar
conversando com ela na cozinha; e que George estava embriagado dizendo a testemunha que
quando ele bebia ficava muito cacete (incomodava)”.
Os marcos de adequação social da figura masculina estão dispostos aqui de modo
flexível, de tal forma que as transgressões dos limites só ocorreram, no caso, com a invasão de
áreas não permitidas às visitas estranhas (o interior da casa) e o contato físico de um estranho
com a esposa do réu. Os marcos da figura feminina são outros e, como é sabido, muito mais
estreitos. A identidade social da mulher tinha como referência básica a esfera privada, ou seja,
o lar núcleo em que se concretizavam duas virtudes básicas: a fidelidade ao marido e a
predominância do instinto materno, consubstanciado no desvelo pelos filhos. Ambas as
virtudes pressupunham a obrigação e o sacrifício. Recato e mesmo falta de encanto são
ingredientes favoráveis na composição da imagem positiva da esposa
178
. No reverso da
medalha estão as afirmações de infidelidade da mulher ou dúvidas sobre sua conduta e o não-
preenchimento dos deveres maternos. Além disso, assim como a excessiva elegância
masculina indicava o não-cumprimento dos deveres fundamentais do esposo, os cuidados
exagerados com a própria aparência (pintar-se “fora do razoável”, vestir-se acima das posses)
eram sinais da possível infidelidade e do abandono dos deveres maternais por parte da
mulher
179
.
Na leitura dos dizeres dos envolvidos e das testemunhas percebe-se que Maria, a
esposa de Draxler, obedeceu ao papel que era para ela ditado. Enquanto os homens
conversavam na sala, ela se manteve oculta no interior da casa cuidando indiretamente do
marido (preparando o café para ele e seu amigo). Por isso, ao que tudo indica, não sofreu
represálias do marido no momento da querela, visto que cumpria seu papel social. Já Fier,
como dissemos acima, além de adentrar a recintos da casa a qual não tinha autorização, tentou
agarrar uma mulher casada, no interior de sua casa e protegida por seu marido.
Convém ressaltar que os traços exemplares delineados não correspondem às figuras
concretas do homem e da mulher, representando idealizações de expectativas, muitas vezes
178
Da MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e Heróis: para uma sociologia do Dilema brasileiro. 3. ed. Rio
de Janeiro, 1981., p. 109.
179
Idem.
89
caricaturais. Mas as idealizações só ganham forma e têm eficácia em situações vividas porque
partem de um substrato de representações profundamente ancoradas na experiência coletiva.
Essas representações delimitam um amplo campo de permissibilidade masculina, à condição
de que o marido cumpra seus deveres básicos; o perfil da mulher, como mostra Da Matta, é
secionado em duas figuras paradigmáticas: a da Virgem-Mãe, cuja sexualidade é controlada
pelos homens a serviço da sociedade, capaz de ser mãe permanecendo virgem; a da puta
regradora e centro de uma rede de homens de todos os tipos, por onde transita o prazer
sexual
180
.
Outro elemento observado foi que, nos temas envolvendo “honra”, os homens da casa
atuaram no sentido de preservar a honra da família através da violência. Tanto no caso acima
mencionado quanto no caso envolvendo o prussiano Matheus Würch, foram os “cabeças da
família” que protegeram, no primeiro caso, a honra pessoal e da esposa e, no segundo caso, a
honra materna. Neste último caso, foi o filho que assumindo a chefia da casa, na falta do pai,
trouxe para si o dever de vingar a honra da mãe que, dentro de seu lar, foi injuriada por um
vizinho.
Outra questão interessante aparece nos documentos criminais. Ao analisarmos os
discursos registrados nos autos, notamos as diferenças entre as razões mencionadas pelos
participantes como causadoras do conflito e aquelas imputadas pelas autoridades como os
reais motivos ocasionadores do crime. Os “inquisidores” tentavam “sugar” dos depoimentos
das testemunhas e dos demais envolvidos as causas que eles julgavam estar escondidas; as
causas que revelariam e justificariam a ação do agressor. Como ressalta Celeste Zenha, no
entender dessas autoridades uma ação criminosa só poderia ser efetuada por um criminoso,
logo a caracterização do agressor como um elemento que não é bem ajustado à sociedade se
faz necessária. Desta forma, os relatos do ofensor e ofendido fazem referência à razão mais
imediata da “desordem”, enquanto os depoimentos direcionados pelos inquisidores buscam
caracterizar o comportamento social dos agressores como não desejáveis
181
. Em suma, havia
um deslocamento do alvo do inquiridor. Este não mais procurava saber sobre o ato a ser
qualificado como criminoso, mas sobre o comportamento do autor do ato.
A existência de uma desavença anterior ao crime e os hábitos reprovados socialmente,
aliados ao caráter provocador e desonesto da vítima foram as causas buscada pelos
180
DA MATTA, Roberto. op. cit. p. 110.
181
ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza... op. cit. p. 39.
90
inquisidores no conflito envolvendo o réu Frederico Willing e a vítima Henrique Rhemann
182
,
ambos germânicos. No depoimento de algumas as testemunhas, observa-se que os inquiridores
tentam retirar questões que revelem o comportamento social dos envolvidos. Perguntado a
respeito do comportamento da vítima e do réu na vida cotidiana da comunidade da colônia de
baixo, Nicolau Scoralick disse que:
“[...] Rhemann era homem odiado no bairro por ser um gatuno de
profissão e um incendiário; sendo que uma vez lançou fogo nas abelhas do pai
da testemunha; que por muitas vezes esteve na polícia cumprindo pena na
cadeia desta cidade; que Rhemann era um homem perverso como ele próprio
dizia e trazia sempre em sobressalto os moradores da rua e que conhece a
muitos anos o réu e sabe que é homem trabalhador e bem comportado e
estimado; e que atribui ao fato da qual resultou a morte de Rhemann a um
verdadeiro acaso”
183
.
Já outra testemunha, o pedreiro germânico Christiano Franck, disse que “o réu é um
homem trabalhador e nunca se envolveu em brigas e que Rhemann era um indivíduo de maus
costumes e tinha o vício de roubar e que era objeto de muito temor no bairro
184
.
Ao avaliarmos tal processo percebemos que o mau ou bom comportamento dos
envolvidos e a possível rixa antiga foram os elementos que serviram como fio condutor para
os interrogatórios. Ter mau comportamento nos autos era ser mau vizinho, violento causador
de rixas e não ser apegado aos valores do trabalho. Assim, ser um indivíduo rixoso,
mantenedor de diferenças com outros indivíduos, eram características prévias para um mau
comportamento social. Além disso, se o indivíduo tivesse mais de uma rixa nas redondezas e
fosse visto como provocador e mal quisto pelos vizinhos, então isto já era o suficiente para
enquadrá-lo no item de mau comportamento, daí ser freqüente a pergunta “era o ofensor
manso e pacífico? Bem quisto pelos vizinhos?” Já as qualidades de honesto e trabalhador eram
contrapostas às de vagabundo e ladrão. A embriagues também poderia ser uma qualidade
adicional para caracterizar o mau comportamento social do indivíduo, mas não era suficiente
por si só, como demonstraremos quando estivermos analisando o resultado dos julgamentos.
Em outras palavras, o que estamos querendo dizer é que caracterizar o autor ou a vítima como
um indivíduo de maus hábitos, propício, portanto, à realização de um crime era uma das metas
182
AHMJF, processos criminais – Homicídio: cx 46, 10/07/1909.
183
Idem., p. 16.
184
Idem., p. 18.
91
presentes nas inquirições estudadas visto que o inquiridor ressalta o comportamento dos
envolvidos como chave explicadora do conflito, buscando saber não sobre o ato a ser
qualificado como criminoso, mas sobre o comportamento das partes envolvidas no ato. Por
último, somente a título de curiosidade, Frederico Willing foi absolvido pelo tribunal do júri.
É importante ressaltar que dentre as funções realizadas por esses crimes – a violência
empregada como meio para alcançar determinados objetivos materiais (latrocínio); a utilização
como mecanismo de resolução de conflitos interpessoais; a que resulta de frustrações muitas
vezes inconscientes e toma a forma de explosão súbita e a que constitui um instrumento
pedagógico – verifica-se que em 87,5% dos casos as razões apresentadas pelas partes são
aquelas que nos remetem ao homicídio e tentativa de homicídios como um mecanismo de
resolução de conflitos interpessoas e, principalmente, familiares. Neste sentido, na maior parte
dos casos, esta forma de violência foi utilizada pelos réus como uma maneira de preservação
da honra individual e familiar e, como veremos, tal ato estava amplamente embasado e aceito
pela comunidade e pelo tribunal do júri.
2.1.5 – O resultado dos julgamentos
Uma questão observada durante as análises dos processos foi que a argumentação dos
advogados e das testemunhas teve um papel decisivo para o resultado final dos julgamentos. O
discurso e a ação dos advogados valiam-se de argumentos ligados à interpretação das normas
jurídicas, da teoria do direito e da criminologia e, principalmente, de representações sobre os
papéis que as pessoas deveriam desempenhar na sociedade, tudo isso fazendo ampla utilização
das concepções do direito positivista e clássico. Existia portanto uma disputa entre os
advogados pela caracterização da personalidade do acusado e da vítima. Em outras palavras,
os resultados dos julgamentos estavam mais condicionados ao comportamento do autor do ato
do que ao próprio ato em si.
A defesa caracterizava o réu, na maior parte das vezes, como trabalhador e honesto e
acusação o via cheio de vícios, vadio e vagabundo. Nestes casos as testemunhas pesavam ora
para um lado ora para o outro, dependendo da visão que tinham do comportamento social dos
envolvidos. Neste sentido, o discurso das testemunhas serviam sobretudo para delimitar se o
comportamento social dos envolvidos era ou não adequado. Em outras palavras, a
92
representação dos homens como ligados ao mundo do trabalho e das mulheres ligadas ao
mundo do lar e da família possuíam valores positivos e, como veremos, influenciavam no
veredicto final. A principal estratégia do advogado era então estabelecer um claro contraste
entre a conduta adequada do réu e o comportamento inadequado da vítima. Mas nos casos
onde o advogado por algum motivo não podia fazer esta acusação e apresentação em termos
absolutos – seja por que o promotor havia juntado declarações de várias pessoas que afirmam
a honestidade da vítima, ou porque seu cliente era conhecido como um marginal – ele
recorreria a um agente externo para explicar a ação do acusado. Essa pressão externa podia
ser, entre outras, o efeito negativo do álcool ou a interferência de uma terceira pessoa entre o
acusado e a vítima. Na maioria dos casos a primeira tarefa do defensor era desaprovar as
circunstâncias negativas mencionadas pelo promotor na denúncia. A tarefa seguinte era
enfatizar os signos positivos do acusado, apresentando, ao mesmo tempo, os negativos da
vítima. O acusado era então transformado em um homem normal, comum, conforme
entendido por eles e aceito pelos julgadores. Um homem normal é comandado pelas mesmas
emoções que governam os outros homens, independente de suas condições de vida serem
diferentes. Os motivos que despertavam essas emoções são também comuns a todos:
infidelidade, honra, embriagues. Essa tarefa do advogado será facilitada ou não pela posição
real do acusado na estrutura social, se ele podia ou não ser identificado como homem de bem
ou marginal.
Um aspecto que revela o quanto fatores externos aos atos expostos nos processos
influenciava o veredicto final é a utilização da embriagues do réu como móvel do crime. Em
37,5 % dos processos o réu se encontrava embriagado no momento em que o crime foi
praticado, porém, o hábito da bebida, por si só não servia como critério de condenação:
deveria estar associado ao comportamento social do acusado.
No caso já citado no qual Henrique Rhemann foi morto por Frederico Willing, tanto as
testemunhas quanto o próprio réu afirmou ter bebido cerveja e assim estar embriagado no
momento em que travou o conflito com a vítima. Entretanto, o advogado de defesa, com o
aval das testemunhas, buscou a todo o momento mostrar que seu cliente era portador das
características positivas esperadas pela sociedade. De acordo com uma das testemunhas,
Willing “é homem trabalhador e bem comportado e estimado; e que atribui ao fato da qual
93
resultou a morte de Rhemann a um verdadeiro acaso”
185
. Já outra testemunha disse que “o
réu é um homem trabalhador e nunca se envolveu em brigas [...]
186
. Acreditamos, pela
leitura deste processo, que a defensoria conseguiu impor a sua versão da personalidade e do
comportamento social do réu. Não por acaso, o mesmo foi absolvido pelo tribunal do júri.
Por incrível que pareça, o uso de bebidas também foi utilizado para assegurar a
inocência de um dos réus que apareceram nos processos penais. No caso em que Otávio de
Carvalho atirou em sua sogra, a alemã Eliza Stiebolds, mesmo sendo dito por boa parte das
testemunhas que o réu se encontrava “um pouco embriagado”, a defesa tentou mostrar que foi
justamente devido a este fato que o réu cometeu o crime visto que as bebedeiras não faziam
parte de seus hábitos. Argumentando que antes de atirar em Eliza, Otávio havia estado na
venda do negociante português e também testemunha, Joaquim Duarte, e bebido “aguardente
por duas vezes”, a defensoria tentou mostrar que foi sobretudo o álcool associado ao ciúme da
esposa em relação à sogra que motivou o crime, já que Otávio era visto pelas testemunhas
como “trabalhador e de bons costumes”. Foi absolvido pelo tribunal do júri por que “cometeu
o crime bêbado e movido por ciúmes [...] estando ainda privado de sentido e inteligência [...]
além disso, como atenuante consta o fato que ele não bebia com freqüência
187
.
Somente em um caso o hábito da bebida foi utilizado como agravante de uma tentativa
de homicídio. De acordo com algumas testemunhas, horas antes de atirado no alemão
Christovão Pullig, Manoel de Souza Lucas Reis afirmou embriagado que “para se vingar de
Pullig tinha de matar e isto faria sem receio algum de ser perseguido pela polícia pois havia
de ser em hora que não houvesse testemunhas
188
. Somado a isto, foi dito por duas
testemunhas do processo que Manoel “é considerado barulhento”, ou seja, ser um indivíduo
rixoso, mantenedor de diferenças com outros indivíduos, eram características prévias para um
mau comportamento social. Não por acaso Manoel foi condenado a onze anos e onze dias de
prisão celular.
Assim, como afirmamos no tópico anterior, o hábito da bebida, por si só, não era capaz
de condenar nem absolver alguém. Somente quando associado ao comportamento social do
réu é que a utilização do álcool passava a ter um peso na condenação ou absolvição do autor
do delito.
185
AHMJF, processos criminais – Homicídio: cx 46, 10/07/1909.
186
Idem.
187
Resultado do julgamento apresentado pelo tribunal do júri.
94
Em suma, no momento em que os atos se transformavam em autos, o concreto perdia
quase toda sua importância e o debate se dava entre os atores jurídicos, cada um deles usando
a parte do real que melhor reforçava o seu ponto de vista. Neste sentido, é o real que era
processado, moído, até que se extraísse dele um esquema elementar sobre o qual se construía
um modelo de culpa ou de inocência
189
.
Em cada processo e a cada julgamento, os advogados combinavam, de forma diferente,
categorias sociais de natureza jurídica que definem a responsabilidade penal dos envolvidos e
outras categorias sociais de classificação das pessoas com o intuito de chegar a verdade
desejada. A chave do entendimento dos julgamentos está na constante reelaboração, pelos
funcionários jurídico-burocráticos, dos significados das doutrinas do direito penal e do
significado das caracterizações dos envolvidos nos processos criminais.
As regularidades e as variações são conseqüências do uso de diferentes concepções de
responsabilidade penal combinada com a caracterização diferenciada dos envolvidos nos
processos criminais. Os combates entre os advogados giravam em torno de qual definição dos
fatos, das leis ou das traduções dos “atos” em “autos” era mais precisa. Ao longo dos
processos, existe uma constante invenção e reinvenção do significado de categorias sociais de
classificação como trabalhador, desordeiro e vagabundo, e das noções de responsabilidade
penal das escolas clássica e positivista; categorias estas utilizadas para qualificar e
desqualificar as pessoas.
O período do final do século XIX até 1930 caracterizou-se por intensas disputas no
campo do direito penal entre representantes do “Direito clássico” e a “Escola Positiva do
Direito Penal”, que levaram a formulação de um novo código em 1941. Segundo Carlos
Antonio Costa Ribeiro, o código penal republicano de 1891 foi influenciado pelo chamado
“direito clássico”
190
.
A Escola Clássica do Direito Penal surgiu a partir da filosofia do Iluminismo, estando
historicamente ligada, segundo Ian Taylor, à burguesia, ao liberalismo, à defesa da
propriedade e ao individualismo
191
. As principais características dessa Escola são: a defesa do
livre-arbítrio absoluto e a tentativa de definir a moralidade dos fatos. O indivíduo seria um ser
188
AHMJF, processos criminais –Tentativa de homicídios: cx 85, 31/01/1905.
189
CORRÊA, Mariza. Morte em Família... op. cit. p. 40.
190
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade... op. cit. p. 30.
191
TAYLOR, Ian et alii. The new criminology: for a social theory of deviance. Londres: Ed. University of
Worwick, 1973. Apud: RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade... op. cit. p. 45.
95
racional totalmente responsável por suas escolhas, e formularia, em consenso com outros
indivíduos, as leis perante as quais todos são iguais. De acordo com essas formulações, a
pessoa que cometesse um crime seria completamente responsável pelos seus atos, ou seja,
cometeria seu crime em livre-arbítrio
192
. Neste sentido, a pena teria a função de separar o
indivíduo da sociedade e requalificá-lo como sujeito de direito através do castigo e também
teria a função de assegurar a ordem social estabelecida impondo um “sinal” sobre o
criminoso
193
. Assim, a idéia de que há igualdade entre os indivíduos que têm liberdade de
escolha é fundamental no direito clássico, que pode ser considerado como um capítulo da
história da concepção moderna do indivíduo
194
.
Já para os positivistas, entre cujos representantes na área criminal podemos citar
Cesare Lombroso, Enrico Ferri e R. Garofalo, o indivíduo não seria o homem racional agindo
livremente, pelo contrário, o indivíduo seria um produto de um meio genético e social
específico. Importava a ciência descobrir as causas que conduziriam um indivíduo ao crime.
Assim, o crime deixava de ser uma questão de moralidade para ser uma questão médica,
psicológica e sociológica. Em outras palavras, a preocupação deixava de ser relacionada com a
moralidade de uma ação criminosa e passava a se preocupar com a saúde ou doença do
indivíduo criminoso
195
. Neste sentido, os positivistas possuíam a pretensão de definir todas as
causas dos crimes para poder eliminá-las definitivamente. O crime era visto como uma
“doença” que poderia ser curada
196
.
De acordo com Peter Fry e Sérgio Carrara, a crítica dos positivistas aos clássicos
permaneceu durante todo o período de vigência do código penal republicano, que vai desde
1891 até 1941. Neste período, as duas “escolas” encontravam-se em franca disputa, não
apenas nas discussões teóricas mas também ao longo dos processos julgados nos tribunais. Os
positivistas criticavam constantemente as concepções de livre-arbítrio e de criminalidade dos
representantes do direito clássico ou liberal. A crítica dos positivistas ao jurismo clássico que
configurou o código penal republicano dirigia-se aos “excessos do liberalismo”
197
e insere-se
num momento histórico de formação de um pensamento político autoritário na República
192
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade... op. cit. p. 45.
193
FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Ed. Vozes, 1977. Passim.
194
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade... op. cit. p. 46.
195
Idem. p. 47.
196
Idem. p. 15-6.
197
FRY, Peter & CARRARA, Sérgio. As vicissitudes do liberalismo no direito penal brasileiro. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais. N. 2, vol. 1, Cortez, 1986. Passim.
96
Velha
198
. Finalmente, em 1941, as duas doutrinas foram combinadas em um novo código
penal
199
.
O que estamos querendo dizer é que os advogados de defesa, na maior parte das vezes,
tentavam mostrar de várias formas, que seus clientes nunca agiam baseados no livre arbítrio e
sim que fracassavam por motivos independentes à sua vontade, nos remetendo assim às
concepções positivista e clássica do Direito.
As categorias étnicas não foram entendidas, nos casos analisados, como intrínsecas as
pessoas: em cada caso podia-se ou não lançar mão de categorias étnicas e categorias sociais no
momento da elaboração dos autos. Mesmo o fato dos alemães guardarem uma representação
positiva no seio da sociedade local, não era por si só suficiente para condená-los ou absolvê-
los. O argumento aqui defendido é que a justiça não julgava os atos pura e simplesmente. O
que estava em jogo era o comportamento social dos indivíduos e o papel que cada um deles
deveria representar no seu dia-a-dia e não o crime propriamente dito Quanto mais o acusado se
adequasse aos padrões vistos como positivos pela burocracia jurídico-policial maiores eram as
suas possibilidades de ser absolvido.
Outro elemento que chamou nossa atenção foi que em 62,5% dos casos analisados,
apesar dos promotores “provarem” a versão de que havia ocorrido premeditação nos crimes,
elemento que tecnicamente atuaria na condenação do réu, os jurados acabaram por absolver os
acusados, condenando apenas um dos réus, o português Manoel de Souza Lucas Reis.
Apesar de terem papéis semelhantes, tecnicamente as funções de juiz/jurado se
diferenciavam. Ao comparar os depoimentos das testemunhas que eram escolhidas pelos
advogados, o juiz excluía certos depoimentos e aceitava outros. Às vezes aceitava parte de um
testemunho e ignorava outro trecho, demonstrando a forma, a partir da leitura, da sua versão
dos fatos da mesma maneira que os outros atores envolvidos no processo. Só que essa visão
será apresentada como objetiva e seguindo uma linha jurídica bem definida, com citações de
jurisprudência que apóiam seu ponto e das “provas” necessárias para que ela seja coerente
200
.
Em termos formais é o tribunal do júri quem decide a sorte do acusado. Em termos
reais essa decisão é construída aos poucos a partir de uma série de outras decisões que
concorrem para dar maior ou menor peso e força a uma das versões definidas publicamente,
198
LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento autoritário na Primeira República, um interpretação. In:
FAUSTO, Boris. O Brasil Republicano, T. III, vol. 2. São Paulo: Difel, 1977. Passim.
199
FRY, Peter & CARRARA, Sérgio. As vicissitudes do liberalismo... op. cit. Passim.
97
frente aos jurados. Eles são escolhidos por membros do grupo jurídico e podem acabar se
tornando um corpo mais ou menos estável ao longo dos anos e composto, em sua maioria, por
certas categorias profissionais. O que as listas de jurados nos dizem, em última instância, é
quem são os principais guardiões da ordem pública, dos valores estabelecidos, e quem são as
pessoas respeitáveis que detêm o poder de decidir se a quebra de uma regra básica de
relacionamento entre as pessoas pode ou não ser considerada legítima, e em que termos
201
.
O que percebemos através dos dados relativos a essas questões é que as decisões dos
jurados foram positivas em todos os casos em que a defesa da honra foi alegada pelos réus
como motivo do delito. Havendo ou não premeditação, estes acabaram sendo absolvidos pelos
jurados. Nesses casos o corpo de jurados sempre alegava que o réu havia cometido o crime por
desafronta de grave injúria” ou ofensa contra seu ascendente, irmãs ou esposas e de ter
cometido o crime “em defesa própria e em direito de sua família”.
Acreditamos que neste momento, entre 1890 e 1909, os juízes locais não levavam em
consideração, em suas decisões, alegações de motivos emocionais como móveis dos crimes.
Parece-nos que elementos como a premeditação influenciava mais a decisão dos magistrados
do que alegação de ciúme e defesa da honra de algum membro feminino da família, já que em
todos os casos em que, através da atuação dos advogados e das testemunhas, se chegou à
conclusão que os crimes foram premeditados, os réus foram condenados pelos juízes locais.
Isto ocorria porque, para os magistrados, premeditar um crime seria uma das características
prévias para um mau comportamento social, contraposta às virtudes de honesto e trabalhador.
Em outras palavras, caracterizar o autor ou a vítima como um indivíduo de maus hábitos,
propício, portanto, à realização de um crime era uma das metas presentes nos resultados
apresentados pelos magistrados visto que o comportamento social anterior ou atual dos
envolvidos era sempre ressaltado como chave explicadora do conflito.
Já os jurados, como afirmamos acima, mais do que decidir se a quebra de uma norma
social de relacionamento entre as pessoas podia ou não ser considerada legítima, acabaram
atuando como elemento mantenedor e reprodutor de valores morais estabelecidos localmente.
Quando absolviam um réu acusado de matar em prol da honra individual ou familiar, estavam
tanto aceitando este tipo de comportamento social como legítimo, visto que afirmavam
publicamente que tal atitude era cabível ao homem enquanto “cabeça do lar”, quanto estavam
200
CORRÊA, Mariza. Morte em Família... op. cit. p. 75.
201
Idem, p. 39.
98
normatizando este tipo de ação, tornando-a um valor social respaldado pela lei. Neste sentido,
a decisão dos jurados possuía a “força oficial de nominação
202
”. Através dos seus veredictos
ficava estabelecido publicamente quais valores atuavam na condenação ou absolvição das
pessoas. Pode-se dizer então que o veredicto legal tinha não só o poder de estabelecer
“verdades” sobre o mundo social como também mantê-las e torná-las públicas. Desta forma,
pode-se dizer que o direito é um agente formador da sociedade possibilitando a perpetuação de
determinadas crenças e valores
203
.
Finalmente, gostaríamos de frisar que as disputas para provar a veracidade de cada
versão da “fábula” giravam em torno da interpretação da lei, do ajustamento do caso a lei, da
referência ao paradigma clássico ou positivista do direito penal e também da caracterização da
personalidade e do caráter das pessoas envolvidas. Conclui-se então, de forma semelhante ao
que foi verificado por Carlos Antonio Costa Ribeiro
204
, que as formas de ação recíproca nos
processos girariam em torno de dois pontos. Por um lado, havia a tentativa dos promotores e
defensores para determinar a responsabilidade do acusado no momento em que cometia o
crime. Por outro lado, havia uma constante divergência na caracterização da personalidade e
da vida pregressa dos envolvidos nos processos criminais. Havia uma disputa para definir o
crime e graduar a pena e outra disputa para classificar as principais características dos
envolvidos. Era através da combinação entre as disputas, que podiam convergir ou divergir,
que se chegava aos veredictos. Quando se definia a responsabilidade do acusado, certamente
contribuía a maneira como era apresentada sua personalidade. A forma das ações recíprocas
que constituem os processos criminais caracteriza-se justamente por uma dialética entre a
definição da responsabilidade do acusado e a personalidade dos envolvidos. Tudo se passava
como se a cada processo fosse necessário definir as normas do direito e as categorias sociais
de classificação das pessoas. É como se a cada processo e a cada julgamento fosse sendo
recriado o mundo social
205
.
202
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico... op. cit. p. 236.
203
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... op. cit. p. 358.
204
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade... op. cit. Passim.
205
Idem.
99
2.2 As Ofensas Físicas
De acordo com o Código Criminal do Império do Brasil, em sua secção IV dos crimes
contra a segurança da pessoa e da vida, eram passíveis de punição aqueles que, através de
ofensas físicas
206
, ferissem, mutilassem, inabilitassem ou produzissem graves incômodos de
saúde ou dor em qualquer pessoa, com o único fim de injuriar. Nesta mesma secção ficam
estipuladas penas de um a oito anos de prisão celular com trabalho, dependendo da gravidade
da injúria efetuada
207
.
Alguns fatores podem servir para explicar os padrões de agressividade entre os
germânicos locais, entre eles, o consumo de álcool e a disponibilidade de armas e meios
eficazes. Entretanto, existem alguns padrões de violência que aparecem claramente na leitura
dos processos criminais de ofensas físicas: a violência empregada como mecanismo de
resolução de conflitos interpessoais; a que resulta de frustrações muitas vezes inconscientes e
toma a forma de explosão súbita e aquela que se constitui em um instrumento pedagógico
208
.
De acordo com Norbert Elias, diferentemente das classes superiores que acertavam
suas contas através dos duelos em confrarias estudantis, circunscritos por um ritual
formalizado, as classes subordinadas germânicas podiam espancar-se sem cerimônia quando
entravam em conflito mútuo durante a era guilhermina. Desde que não se machucassem
seriamente, o Estado nem se dava ao trabalho de averiguar o incidente. Mas se essas mesmas
pessoas se atacassem com armas, eram trancafiadas e se uma delas matasse a outra durante a
briga, ela própria seria talvez executada em nome da Lei e do Estado. Sejam quais fossem as
razões remotas para o antagonismo entre dois populares que brigavam mutuamente, era
freqüente que a discussão fosse rapidamente seguida de violência. A espontaneidade dos
sentimentos – ira, raiva e ódio – a plena força das paixões entrava em cena. Comparado com o
duelo das classes altas e nobres, o corpo-a-corpo espontâneo de uma briga era altamente
informal, mesmo que fosse parcialmente moldado pelos padrões da luta competitiva, tal qual o
206
Art. 201. Ferir ou cortar qualquer parte do corpo humano ou fazer qualquer outra ofensa física, com que se
cause dor ao ofendido; Art. 202. Se houver ou resultar mutilação ou destruição de algum membro ou órgão,
dotado de um movimento distinto, ou de uma função específica, que se pode perder sem perder a vida; [...] Art.
204. Quando do ferimento, ou outra ofensa física, resultar deformidade; Art. 205. Se o mal corporoso resultante
do ferimento ou da ofensa física produzir grave incomodo de saúde, ou inabilitação para o serviço por mais de
um mês; Art. 206. Causar à alguém qualquer dor física com o único fim de injuriar.” In: Código Criminal do
Império do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert. 1873. p. 174-5.
207
Idem. p. 174-5.
208
AHMJF, processos criminais de ofensas físicas, 1859/1920.
100
boxe, por exemplo
209
. Em contraste, o duelo era um exemplo típico de um confronto físico
altamente formalizado. O que estamos querendo dizer com isso é que as ofensas físicas são
grandes indicadoras e produtos do conflito humano e, além disso, são um produto da
sociedade na qual estão vinculadas.
Neste sentido, o estudo das ofensas físicas cometidas e sofridas por indivíduos
germânicos em Juiz de Fora abrirá caminho para a compreensão de alguns padrões de
violências, desvendando valores básicos prevalecentes na comunidade teuta local, bem como
possibilitará a observação e o acesso ao perfil dos alemães envolvidos neste tipo de “crime”.
Estes processos auxiliarão também na percepção dos motivos insinuados pelos envolvidos
para cometerem tais violências, possibilitando a percepção das relações entre os germânicos e
outras etnias, as relações dos germânicos entre si e também a compreensão parcial da relação
que o aparato jurídico-policial mantinha com esse grupo.
2.2.1 O perfil dos envolvidos
Se compararmos o número de ofensas físicas cometidas em Juiz de Fora no período de
1859 a 1920 com o número dos mesmos crimes praticados e sofridos por germânicos,
verificaremos que estes fizeram uso relativo deste mecanismo como meio de resolverem
conflitos interpessoais e como forma de exercício da violência visto que, de acordo com os
processos criminais encontrados, as ofensas físicas entre alemães representaram 1,79% do
total de crimes ocorridos na década de 1850 chegando ao auge na década de 1890 com 6,96%
do total. Analisando a representatividade dos germânicos no seio na população local durante
esses anos – nunca ultrapassando, no seu ápice, os 20% do total de habitantes –, observa-se
que o padrão de violência desse grupo guardou certas peculiaridades. Na verdade,
encontramos cinqüenta processos penais envolvendo germânicos, em um universo de quase
900 documentos, fato este que nos levou a quantificar os dados obtidos para tentarmos
entender certas particularidades contidas nessas fontes. Comecemos com os dados referentes
ao sexo, idade, estado civil e profissão dos envolvidos, dentre outros.
209
Elias, Norbert. Os Alemães... op. cit. p. 73-5.
101
Tabela 10 – Crimes de ofensas físicas em Juiz de Fora (1851-1900)
DELITO 1851-60 1861-70 1871-80 1881-90 1891-00 1901-10 1911-1920
Ofensas Físicas
em Juiz de Fora
56 80 115 131 363 * *
Ofensas Físicas
envolvendo
germânicos
2 4 8 6 11
9 1
Fonte: AHCJF. Fundo Benjamim Colucci. Processos Criminais, 1850-1900.
Obs: Para os crimes ocorridos entre 1901 e 1921, obtivemos apenas os dados referentes aos crimes cometidos por
germânicos.
Observando o sexo dos acusados, percebe-se a predominância absoluta de homens
(94,12%). Já entre as vítimas, 16% delas eram mulheres, donas de casa em sua totalidade.
Além disso, os réus se encontravam entre os 17 e os 62 anos, sendo que 61,77% deles
figuravam entre os 20 e 40 anos. Já a variação de idade entre as vítimas era maior, pois foram
encontrados indivíduos entre 9 e 69 anos, sendo que 30% se encontrava acima de 40 anos e
28% entre os 20 e 40. Com relação ao estado civil, verificamos que 45,58% dos réus eram
solteiros, 38,24% eram casados, 13,24% com o estado civil desconhecido e 2,94% eram
viúvos.
Se compararmos esses dados com aqueles encontrados por Boris Fausto
210
para São
Paulo e com aqueles anunciados por Lená Menezes
211
para o Rio de Janeiro, também nos
depararemos com dados semelhantes visto que tais autores perceberam que nos casos por eles
analisados, boa parte dos crimes e conflitos vivenciados pelos subalternos envolviam jovens
imigrantes solteiros do sexo masculino. De acordo com Lená Medeiros de Menezes, entre os
anos de 1872 e 1920, houve uma projeção de ibéricos e italianos no conjunto de estrangeiros
que passaram a habitar o Rio de Janeiro, devido, principalmente, a imigração expressiva de
adolescentes e de homens casados que não traziam suas famílias, pois estes objetivavam um
futuro retorno à terra natal
212
. Esses jovens ocuparam principalmente os cargos de caixeiros,
mas suas histórias de vida foram marcadas por desemprego e abandono, gerando assim a
preocupação das autoridades e a expulsão daqueles que se envolviam em desordens e
conflitos
213
.
210
Fausto, Boris. Crime e cotidiano... op. cit. Passim.
211
MENEZES, Lená Medeiros de. Os Indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e
expulsão na capital federal. (1890/1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996. Passim.
212
Idem, p. 80.
213
Idem, p. 82-3.
102
Já Boris Fausto demonstrou que, entre os anos de 1894 e 1902, os estrangeiros presos
representavam 66,1% do total e os nacionais 33,9%. De acordo com seus dados, percebe-se
que boa parte desses imigrantes encarcerados era formada por jovens entre os 9 e os 21 anos,
presos principalmente por vadiagem e desordem.
214
Entretanto, apesar das semelhanças estatísticas, o caso local reserva algumas
peculiaridades. Diferentemente do padrão imigratório descrito pelos referidos autores, no qual
os jovens solteiros se destacavam dentre o total de contingente, em Juiz de Fora, como vimos
no primeiro capítulo, os germânicos que para lá se dirigiram migraram em família e o número
de mulheres era praticamente o mesmo que o de homens. Nesse sentido, a presença maior de
jovens solteiros em conflitos reflete mais suas experiências comunitárias, principalmente com
vizinhos e amigos, do que o padrão paulista e carioca nos quais os jovens imigrantes entravam
no mundo da violência, delinqüência e criminalidade como forma de sobrevivência e também
de resistência social.
Já a ocupação profissional dos envolvidos se distribui da seguinte maneira:
214
Fausto, Boris. Crime e cotidiano... op. cit. p. 72-94.
103
Tabela 11 – Profissão das vítimas e réus
RÉUS VÍTIMAS
Profissão Número Profissão Número
Lavrador
Emp. Cia. União e
Indústria
Jornaleiro
Desconhecido
Operário
Negociante
Cocheiro de carro
Carpinteiro
Oleiro
Pedreiro
Carvoeiro
Carniceiro
Falqueador
Professor
Guarda-livros
Motorneiro
Do lar
Industrial
Emp. da Est. de Ferro
Central do Brasil
15
11
8
6
5
4
3
3
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
Desconhecido
Lavrador
Jornaleiro
Operário
Negociante
Do lar
Industrial
Emp. de Fazenda
Pedreiro
Carpinteiro
Fotógrafo
Ferreiro
Carniceiro
Escravo
Emp. de Hospital
Lavadeira
Marinheiro
Emp. Cia. Mineira de
Eletricidade
13
6
5
5
4
4
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
Fonte: AHMJF, processos criminais de ofensas físicas, 1859/1920.
Obs: As mulheres envolvidas exerceram as profissões de lavadeira, do lar e empregada de hospital.
De acordo com a tabela acima observa-se que a maioria dos acusados e vítimas, assim
como nos outros crimes analisados, era formada por trabalhadores manuais com uma certa
qualificação, funcionários da Cia. União e Indústria, empregados do comércio, cocheiros de
bonde, lavradores e negociantes, estes últimos donos de pequenos estabelecimentos. Em 58%
104
dos processos a antiga colônia D. Pedro II aparece como o local das querelas durante todo o
período analisado. Segundo Mônica Oliveira, a Villagem, principal local dos crimes ocorridos
dentro da colônia, foi o “bairro” no qual residiram os trabalhadores braçais e operários
(germânicos ou não) ligados à Companhia União e Indústria e acabou atuando como ponto de
contato entre os colonos e os moradores da cidade
215
. Nos outros casos, o centro da cidade e
bairros como Botanágua foram os palcos nos quais os crimes acabaram sendo cometidos.
Acreditamos que esses fatos se explicam devido à possibilidade de contato e divisão do
mesmo espaço geográfico e social entre os germânicos e outros grupos, o que invariavelmente
acabava facilitando assim a criação de novas áreas de tensões. Em outras palavras, os referidos
crimes seriam, além de outras coisas, conseqüência das experiências sociais vivenciadas por
um número variado de indivíduos subalternos, dos mais variados grupos étnicos, que passaram
a habitar em uma cidade em transformação para relações tipicamente capitalistas.
Tabela 12 – Ofensas físicas por etnia
ETNIA %
Germânico x Germânico
Germânico x Brasileiro
Germânico x Português
Germânico x Francês
Germânico x Italiano
Germânico x Africano
40%
40%
6%
6%
4%
4%
Total 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de ofensas físicas, 1859/1920.
Quanto à nacionalidade das pessoas envolvidas em querelas contra alemães, pode-se
dizer que esses conflitos étnicos refletem tanto a distribuição geográfica e temporal dos
germânicos quanto sua inserção social nos espaços urbanos. Em primeiro lugar, observa-se
que nos anos iniciais da inserção teuta em Juiz de Fora, os conflitos eram quase totalmente
interétnicos, ou seja, ocorriam somente entre germânicos e na colônia agrícola na qual eles
habitavam. Assim, até meados da década de 1870, mais de 80% das ofensas físicas
215
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Imigração e Industrialização... op. cit. p. 60-1.
105
envolvendo germânicos eram frutos de conflitos entre os próprios alemães, ocasionados,
principalmente, por problemas de convivência entre a vizinhança. Já a partir desse período,
mas principalmente a partir da década de 1880, quando a comunidade teuta deixa de trabalhar
exclusivamente para a Cia. União e Indústria e também deixa de ficar unicamente cultivando
seus prazos e partem para o centro da cidade, em busca de novos postos de trabalho, começam
a aparecer vários processos relatando conflitos físicos principalmente com brasileiros, pois
eram esses os mais prejudicados com a divisão do espaço social e geográfico com os
germânicos. Outro fator de igual importância que possibilitou inúmeros confrontos extra-
étnicos foi a inserção de grupos não-germânicos na colônia D. Pedro II a partir de finais da
década de 1870. De acordo com Stehling, no momento em que a Companhia passou a
enfrentar crises financeiras, muitos prazos passaram a ser vendidos para brasileiros,
portugueses, dentre outros
216
. Além disso, algumas famílias alemãs, nesse mesmo período,
venderam seus lotes para outros grupos étnicos para tentarem a sorte em locais mais próximos
do centro comercial do município. Nesse sentido, percebe-se que a relação conflituosa entre os
germânicos entre si e os outros grupos étnicos relatados na tabela acima indica os vários
momentos de inserção dos alemães em Juiz de Fora. Num primeiro momento, ficaram isolados
na colônia, vivenciando assim problemas de convívio interétnicos. Já após o momento em que
a colônia passa a ser habitada por outros grupos e que os germânicos passam a habitar e
trabalhar no centro urbano, aumentaram-se os conflitos extraetnicos, principalmente aqueles
envolvendo indivíduos brasileiros.
Outra coisa que nos chamou a atenção foi o número de réus e vítimas alfabetizados.
Apesar do número de envolvidos não ser suficiente para que sejam generalizados os dados
obtidos aqui para todo o conjunto de germânicos, percebemos que 62,30% dos réus eram
alfabetizados bem como 40% das vítimas possuíam algum grau de instrução formal. Como
mostramos nos crimes referentes a homicídios, é comum associarmos a prática de crimes com
a delinqüência, com a falta de educação formal e com a pobreza. Entretanto os dados obtidos
mediante a análise desses processos questionam alguns desses aspectos. Observa-se entre os
envolvidos nos crimes de ofensas físicas a presença de negociantes, industriais, guarda-livros e
até de um professor. Além disso, percebe-se que não estamos diante de marginais ou
delinqüentes “profissionais” que geralmente acabavam agredindo suas vítimas como meio de
216
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães... op. cit. p. 235-45.
106
efetuar roubos ou outros crimes. Os indivíduos que aparecem nos processos penais eram
homens e mulheres que, voluntária ou involuntariamente, acabaram buscando a resolução de
alguns conflitos interpessoais através de brigas e espancamentos que acabaram gerando
ferimentos leves em boa parte das querelas. Afirmamos isto porque, na maior parte dos casos,
percebemos que os envolvidos mantinham relações de amizade, parentesco e principalmente
de vizinhança, e que entraram em conflitos como forma de resolver suas diferenças antigas ou
momentâneas.
Por último cabe dizer que apesar de serem pobres, tais germânicos, de acordo com o
que pode ser averiguado nos processos criminais, não se encontravam na miséria a ponto de
tais crimes serem justificados pela situação de escassez. Mais uma vez afirmamos que tais
crimes eram reflexo das várias condições sociais que os germânicos vivenciaram durante o
período em análise. Com relação aos motivos dos crimes, aprofundaremos essas questões mais
abaixo.
Tabela 13 – Relacionamento entre vítimas e réus
RELACIONAMENTO %
Vizinhos
Desconhecidos
Parentes
Negócios em comum
Colegas de trabalho
Amigos
Marido x esposa
Patrão x empregado
32%
22%
12%
12%
10%
8%
2%
2%
Total 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de ofensas físicas, 1859/1920.
Assim como indicamos nos delitos anteriormente analisados, na maior parte dos crimes
de ofensas físicas encontrados as partes envolvidas se conheciam. Em 78% dos casos réus e
vítimas eram vizinhos, parentes, amigos, colegas de trabalho ou mantinham negócios em
comum. Esses dados indicam que a violência física atuou principalmente como mecanismo de
resolução de conflitos interpessoais, momentâneos ou de longa data.
107
Como demonstra a tabela acima, na maior parte dos casos de lesão corporal
envolvendo germânicos, esses dividiam o mesmo espaço geográfico e até mesmo social visto
que eram vizinhos. Como exemplo podemos citar a querela envolvendo as famílias dos
vizinhos Carlos Gundelach e Augusto Engelender
217
.
Por volta das quinze horas do dia 19 de janeiro de 1870, na colônia de D. Pedro II, a
mulher de Gundelach foi espancada por meio de socos e pauladas por Engelender depois de
ter sido alvo de pedradas efetuadas pela mulher e filho do réu. De acordo com uma das
testemunhas, o desentendimento entre os vizinhos se dera devido ao fato do filho de Carlos
Gundelach ter entrado, dias antes, nas plantações da Companhia sob responsabilidade de
Engelender, e ter estragado algumas abóboras. Nessa mesma ocasião Augusto agrediu o rapaz
resultando daí o conflito entre essas duas famílias
218
.
Dez anos depois, no bairro de Botanágua, surgiu um novo desentendimento entre
vizinhos, envolvendo a prussiana Augusta Carolina Luiza Rater e a brasileira Francisca Maria
Carolina
219
. No dia onze de fevereiro de 1880, por volta de cinco horas da tarde, um dos filhos
de Luiza Rater, “por gracejo”, atirava água e lama em Francisca, uma viúva com mais de 60
anos, quando foi advertido a parar. Não respeitando as ordens de Francisca, foi perseguido por
uma filha desta até às portas da casa de Luiza Rater, mãe do menino. Minutos depois chegou a
própria Francisca que, com uma taquara na mão e forçando a janela, passou a hostilizar e a
ofender o garoto e sua mãe. De acordo com todas as testemunhas oculares, imediatamente
depois de tomar algumas taquaradas de Francisca, Augusta Rater deu com um cabo de
vassoura em sua opositora, resultando isto numa fratura de antebraço.
Por último, gostaríamos de demonstrar que as brigas entre vizinhos poderiam resultar
em ferimentos mais sérios. Na tarde de 3 de agosto de 1901, a germânica Ana Maria Clemens,
de 50 anos de idade, foi agredida por seu vizinho, o português Manoel Rodrigues que, com
uma enxada produziu-lhe a perda de um dos dedos da mão. De acordo com os depoimentos, as
querelas entre os dois ocorriam já a algum tempo devido ao fato dos detritos da latrina do réu
caírem no terreno da vítima gerando assim muito mal cheiro e o aparecimento de animais
220
.
Além de serem vizinhos, em 12% das querelas, os réus e as vítimas eram parentes. Em
um caso já citado anteriormente, o filho mais jovem do colono Kirchmaier, indo caçar em uma
217
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 37, 20/01/1870.
218
Idem, p. 8.
219
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 41, 12/02/1880.
108
lagoa perto de sua casa com seu irmão mais velho de nome Andréas, acabou levando parte da
carga de um tiro que o irmão disparou para matar um pato selvagem
221
, gerando graves
ferimentos na região do tórax. Na leitura do processo percebe-se claramente que essa ofensa
física entre irmãos resultou de um tiro acidental, mas, como veremos abaixo, este foi o único
caso de lesões corporais acidentais entre parentes.
Na manhã de 13 de maio de 1885, exatamente três anos antes de ser outorgada a Lei
Áurea, ao retornar mais cedo de seu trabalho, Balthasar Scoralick soube no caminho que sua
cunhada, mulher de seu irmão Nicolau Scoralick, estava bem machucada
222
. Vindo esta em
sua casa mostrar-lhe os ferimentos, foi perguntada por ele quem eram os autores de tais atos e
respondeu que tais machucados foram feitos pela sobrinha de Nicolau Scoralick que morava
ali perto. Horas depois, encontrando com seu irmão, Balthasar foi agredido com socos e
pontapés pelo mesmo por ter ido a casa de sua sobrinha tirar satisfações. De acordo com a
testemunha João José de Souza, a mulher de Nicolau Scoralick foi espancada pela sobrinha e
pais dela “naturalmente devido as relações que mantêm Nicolau Scoralick com sua sobrinha
de nome Julia, com quem vive amasiado, de quem tem um filho, e que isto sabe por voz
pública
223
.
Outros casos em que podemos visualizar o relacionamento social entre as partes são os
conflitos envolvendo colegas de trabalho, amigos e patrões e empregados.
Como exemplo de um conflito entre patrão e empregado que chegou às vias de fato
podemos citar o conflito entre o capitão Henrique Kascher e o menor Carlos da Silva
224
. Numa
manhã do final de setembro de 1917, na oficina de Kascher, ao ser advertido –chamado de
malandro – devido a alguns defeitos que apresentavam as peças que havia feito na fundição,
Carlos da Silva deu uma martelada na cabeça de seu chefe, produzindo ferimentos leves. De
acordo com o depoimento de Carlos da Silva, este agrediu seu patrão por medo de apanhar do
mesmo já que este se dirigiu de forma nervosa para o seu lado. Além disso, Carlos disse que
trabalhava na fundição a mais ou menos dois anos e já havia feito fundições semelhantes e não
via motivo para a severidade de Kascher com o caso
225
.
220
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 114, 03/08/1901.
221
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 34, 21/09/1859.
222
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 44, 13/05/1885.
223
Idem, p. 16.
224
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 136, 28/09/1917.
225
Idem. p. 4.
109
Com relação a lesões corporais efetuadas por colegas de trabalho em seus empregos
temos o caso envolvendo o carniceiro João Jung e o menor Horácio Coelho da Silva
226
. Na
tarde de 26 de Abril de 1887, aconteceu que o menor Horácio, que trabalhava no matadouro
público de Juiz de Fora como ajudante, na ocasião em que carregava uma tina de água para
seu patrão José Thimóteo, que havia matado um animal e queria lavá-lo, caiu por terra por
haver escorregado e com isso derramou água no animal que João Jung esfolava. Nisso Jung
pegou um chicote em sua carroça e, com medo, o menor Horácio fugiu para fora do matadouro
sendo seguido por aquele, sofrendo em seguida vários ferimentos. De acordo com o auto de
corpo de delito, o chicote deixou marcas nas costas do menor com cerca de 22 centímetros
227
.
De acordo com uma das testemunhas, Jung agrediu Horácio porque, ao perguntar ao menor o
porque de ter molhado o animal que esfolava, foi ofendido com xingamentos
228
.
Outro episódio envolvendo colegas de trabalho se deu no dia 10 de junho de 1919, por
ocasião de um momento de lazer. Durante o almoço da Fábrica Ladeira, vários funcionários
foram jogar Malha apostando dinheiro, dentre eles o jovem italiano Rossi Bonatti. Como não
estava jogando, o teuto-descendente Carlos Stephann colocou-se de lado a contar os pontos
dos que ganhavam; como Bonatti não estava gostando daquilo pediu a Stephann que não
continuasse a contar porque estava “fazendo azar” ao jogo. Como Stephann continuou, Bonatti
atirou-lhe um cavaco de madeira que não o acertou; que em resposta a isso o ofendido
Stephann lhe xingou com “o nome da mãe” e que nessa ocasião o réu insultado, deu-lhe um
puxão de orelhas. De acordo com Bonatti, como Stephann continuou lhe insultando deu-lhe
um pontapé no joelho direito que o feriu gravemente
229
.
Em outros casos encontramos amigos se agredindo pelos mais variados motivos.
Entretanto a defesa da honra de irmãs aparece como o principal motivo de querelas entre
amigos. Às sete horas da noite, no dia 11 de julho de 1890, na colônia de D. Pedro II, indo o
jornaleiro Manoel José em direção a casa em que residiam os denunciados Luiz e Matheus
Schaeffer, foi agredido pelos mesmos, recebendo grande número de cacetadas, que
produziram ferimentos graves. De acordo com o ofendido, ele mantinha relações de amizades
com os réus e ficou sabendo por terceiros que os irmãos Schaeffer haviam praticado o fato por
226
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 45, 26/04/1887.
227
Idem, p 4.
228
Idem, p. 7.
229
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 138, 10/06/1919. p. 2.
110
desconfiarem que ele se dirigia à casa deles com “desejos libidinosos para com uma de suas
irmãs
230
.
Em outro processo, observamos a briga entre os amigos João Müller e João
Porphírio
231
. Na noite do domingo, véspera do dia de São João de 1918, vindo ambos para
suas respectivas casas, este último lembrou a Müller do tempo em que estavam quase a serem
cunhados, porque pretendia casar-se com uma de suas irmãs. Então, segundo Porphírio, sem o
menor motivo, Müller derrubou-lhe no chão e deu-lhe vários murros, parando apenas porque
Porphírio conseguira fugir.
Através desses exemplos é possível perceber algumas regularidades. Ao analisarmos o
relacionamento entre vítimas e réus percebemos que na imensa maioria dos casos se tratava de
indivíduos que mantinham algum tipo de relacionamento solidificado pela amizade,
vizinhança ou pela divisão do mesmo local de trabalho e que, pelos mais variados motivos,
deram lugar ao ódio, ira e raiva num momento de conflito, gerando assim inúmeros combates
corporais. Nesse sentido, assim como foi constatado na análise dos homicídios, roubos e furtos
e ofensas verbais, mais do que profissionais do crime, os germânicos envolvidos em querelas
buscavam a resolução de conflitos cotidianos mediante o uso da violência – atitudes nada
louváveis – num momento de total informalidade onde não havia regras sociais de conflitos e
de honra a serem respeitadas.
Tabela 14 – Arma ou meio utilizado no crime
ARMA/MEIO %
Porretes e cacetes
Socos e pontapés
Arma branca
Armas de fogo
Chicote
Bondes
40%
30%
12%
8%
6%
4%
Total 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de ofensas físicas, 1859/1920.
230
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 47, 12/07/1890. p. 2.
231
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 137, 24/06/1918. p. 2.
111
Através da tabela acima, percebe-se que quase em metade dos casos o instrumento
utilizado para produzir ferimentos na outra parte, seja atacando ou defendendo-se, foram os
cacetes e porretes. Estes instrumentos faziam parte da vida cotidiana dos germânicos visto
que, na maior parte dos casos em que estes instrumentos foram utilizados, se tratavam de
cabos de enxada ou de foice, no caso dos lavradores, bengalas e cabos de chicotes, no caso dos
trabalhadores urbanos. Como exemplo desse último padrão, podemos citar o processo em que
João Cardoso Corra de Almeida foi agredido por Jacob Betschluft Tendo notícia, no dia 24 de
janeiro de 1909, que os móveis que comprara de Almeida eram usados e não novos como
havia dito o vendedor, agrediu este com a bengala que trazia consigo ao encontrá-lo passeando
na rua Halfeld com a família
232
.
Já o caso envolvendo João Petterman e Luiza Guillart reflete o uso de porretes do
padrão “rural”. Na tarde de 24 de novembro de 1910 Luiza Guillart foi ferida na cabeça com o
cabo de uma foice e também com um “pau” por Theófilo e João Petterman. O motivo alegado
pelos réus era que os gansos dos mesmos haviam adentrado a propriedade de Guillart e essa se
opunha que eles “viessem buscar os gansos pela cerca divisória, pois que deviam vir pelo
portão da rua e que isso deu motivos a eles seus vizinhos se zangarem
233
.
Entretanto, em alguns casos, percebe-se que tais instrumentos eram carregados por
valentões germânicos com a clara intenção de amedrontar e de produzir ferimentos em suas
vítimas. No dia 20 de junho de 1880, no alto do morro da gratidão, ao meio dia mais ou
menos, achava-se o austríaco Luiz Gonzag Högel na casa de negócios de Francisco Rechener
quando entraram na dita casa os alemães Edmundo Gühn e Lourenço Brandel, os quais com
Hogel tiveram uma pequena alteração. De acordo com as testemunhas, Högel já estava um
pouco alcoolizado e sofreu deboches de Gühn e Brandel, dois jovens de 20 e 23 anos
respectivamente, por não saber escrever uma carta, dizendo os mesmos que o austríaco era
um burro”. Em vista da discussão que daí se sucedeu, os dois alemães saíram da venda de
Rechener e ficaram esperando Högel que, ao sair, foi espancado a bordoadas pelos dois
valentões da colônia
234
.
Um outro meio que demonstra uma maior espontaneidade da violência e a falta de
premeditação é o conflito envolvendo apenas socos e pontapés. Tais meios foram utilizados
232
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 124, 25/01/1909. p. 2.
233
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 126, 25/11/1910. p. 2.
234
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 41, 20/06/1880. Passim.
112
em situações de explosão súbita de descontentamento, nas quais pessoas, na maior parte dos
casos vizinhos ou amigos, entraram em conflito nas mais diversas situações. Na noite de 27 de
janeiro de 1861, por volta das 10 horas, os amigos e companheiros de trabalho João Theele,
oficial de pedreiro da Cia. União e Indústria, e Frederico Golliath, oficial de canteiro da
mesma companhia, entraram em conflito. De acordo com a testemunha Carlos Emílio
Schröder, estando na casa de Golliath uma negra a qual costumava levar-lhe água juntamente
com outros negros participando de um “pagode”, ali chegou Theele um pouco embriagado e
começou a discutir com Golliath dizendo que “ali não era lugar de negros”, agarrando-lhe
pela camisa logo em seguida. Golliath, que também estava bêbado, pediu ao seu amigo que
parasse com aquilo e fosse para casa visto que acabariam brigando. Não sendo atendido e
tendo sua camisa rasgada, Golliath deu diversas bofetadas em Theele, “deixando-o muito
ensangüentado
235
.
Já no dia 8 de maio de 1872, estando André Zimermann com alguns companheiros e
parentes no alto do morro do imperador, divertindo-se emtocar alguns instrumentos de
música”, viu alguns de seus amigos, bem alcoolizados, entrarem em discussão e tentando
amenizá-los, procurou retirar alguns dali. Ofendidos pela intromissão de Zimermann, Martin
Kascher e João Finck deram-lhe diversos socos deixando-o com o rosto bem
ensangüentado
236
.
Na manhã de 29 de setembro de 1896, dirigiu-se Carolina Scoralick à casa de seu
genro, o professor Francisco Casemiro Cohamier, para tratar de um negócio pecuniário no
valor de 150$000, visto que Cohamier era o procurador legal dos bens de Carolina, viúva de
Nicolau Scoralick. Lá chegando não foi bem recebida por seu genro, que afirmou ter apenas
50$000, e se exaltou em discussão querendo seu dinheiro. Nesse ínterim Cohamier esbofeteou
Carolina Scoralick que, sangrando pelo nariz, foi à janela pedir ajuda ao seu vizinho Luiz
Fassheber que imediatamente chamou a polícia
237
.
Às 8 horas da noite de 9 de outubro de 1902, na colônia de São Pedro, Ema Petermann,
encontrando-se com Maria Kirchmaier, em casa de Carla Göths, censurou-a pelo fato de ter
denunciado seu marido, Pedro Petermann, à polícia devido ao furto de uma bacia. Apesar de
235
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 35, 29/01/1861. p. 6.
236
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 38, 08/05/1872. p. 2.
237
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 107, 30/09/1896. p. 2.
113
Maria Kirchmaier ter negado que havia tido tal procedimento foi agredida a socos por Ema
Petermann, ficando com a região ocular direita bem machucada
238
.
No que diz respeito às armas de fogo, a análise dos crimes de ofensas físicas acaba
confirmando a hipótese levantada na ocasião dos comentários a respeito do papel da arma de
fogo entre os germânicos envolvidos em homicídios e tentativas de homicídio. Observando
um universo maior de processos, percebe-se que foram poucos os casos em que os alemães
recorreram às armas de fogo como instrumento de produção de violência. Além disso, assim
como em outros crimes, a arma de fogo mais utilizada foi a espingarda, ou seja, uma arma que
designamos como sendo de padrão rural; arma com a finalidade da caça e da defesa da
propriedade. Em apenas um caso foi utilizado o revólver como meio de prática de violência, o
que demonstra o baixo nível de porte de armas de fogo entre os germânicos.
Analisando os outros tipos de instrumentos usados para a produção de ferimentos
observa-se a baixa presença das armas brancas, sendo mencionadas em apenas seis processos.
Entretanto, foram poucos os casos em que facas foram utilizadas, notadamente em
emboscadas e em ataques pelas costas. Um desses casos envolveu o motorneiro Carlos Kneipp
e seu conhecido Fernando Almada. Na noite de 3 de novembro de 1907, na praça João Penido,
uma espécie de “ponto final” dos bondes daquele período, estando Carlos Kneipp virando a
tabuleta do bonde elétrico que conduzia, a ele, pelas costas, chegou-se Fernando Almada e
inesperadamente desferiu-lhe um golpe de faca na região da coluna vertebral. De acordo com
os depoimentos de todas as testemunhas, atribuiu-se ao ciúme a causa desse crime.
Freqüentava o bonde de Kneipp uma mulher de nome Angelina, amasia de Fernando, que
estava constantemente flertando com o motorneiro. De acordo com Almada, ele já havia
avisado a Kneipp diversas vezes para “não bulinar com sua mulher, pois dali poderia resultar
mal para ambos
239
.
Na maior parte dos casos as principais armas brancas usadas foram foices e enxadas
em brigas de vizinhos ou em conflitos envolvendo colegas de trabalho ou desconhecidos.
Nesses casos de explosão momentânea de violência, tais instrumentos foram usados por serem
a primeira coisa que estava à mão; os meios mais imediatos de se defenderem ou atacarem seu
oponente. Na manhã de 16 de setembro de 1877, no “hotel” de Jacob Draxler, situado em
Mathias Barbosa, o jovem germânico Luiz Draxler deu uma foiçada no hóspede João Roberto
238
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 116, 09/10/1902. p. 2.
239
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 121, 03/11/1907. Passim.
114
da Costa, um fotógrafo de São João Del Rei que se dirigia para Juiz de Fora. Ao negar-se a
entregar os pertences de João Roberto devido ao fato deste não querer pagar sua despesa,
Jacob Draxler foi agarrado pelo pescoço sendo salvo por seu filho que desferiu um golpe na
cabeça do fotógrafo. De acordo com a testemunha Gregório Rodrigues, um pedreiro que
trabalhava no local, o jovem Luiz Draxler estava capinando um matagal perto de casa quando
viu seu pai sendo agredido e, “cego de fúria”, tomou a foice, com a qual trabalhava, e agrediu
o ofensor de seu pai
240
.
Outro instrumento que aparece poucas vezes nos processos de ofensas físicas é o
chicote. Somente em dois casos o chicote foi utilizado para cometer violência. No primeiro, já
citado acima, o menor Horácio Coelho da Silva foi agredido com tal instrumento pelo seu
colega de trabalho no matadouro municipal, o germânico João Jung. Tal “arma” era utilizada
pelo réu para conduzir o animal que puxava sua carroça, seu meio de transporte e, devido à ira
provocada pelo ato de Horácio, foi o meio lembrado pelo réu como aquele que poderia
produzir maior efeito para extravasar sua raiva e ódio
241
.
O outro episódio em que um chicote foi utilizado nos mostra um caso explícito do uso
do racismo como meio de tirar vantagens materiais. No início de março de 1879, o germânico
Jacob Dore, natural do Grão-ducado do Hessen, acertou com o africano liberto Miguel da
Cunha que este arrancasse as madeiras do Circo de Cavalinhos, localizado na praça municipal
de Juiz de Fora, ao jornal de 1$000 ao dia. Terminando o serviço, dirigiu-se o africano à casa
do germânico para pedir-lhe a importância de seu jornal e Jacob Dore, de dentro de sua casa,
mostrou-lhe um chicote e convidou a Miguel ironicamente para que esse entrasse para receber
seu dinheiro. Assustado, Miguel da Cunha retirou-se. Quase quinze dias depois, achando-se
em “extrema necessidade”, Miguel voltou à casa de Jacob Dore e lhe suplicou que lhe desse a
importância de seu jornal (1$000). Pedindo que o ex-escravo aguardasse entrou para o interior
da casa e voltou com o mesmo chicote que, dias antes, havia mostrado para o mesmo, e
espancou brutalmente Miguel da Cunha
242
.
240
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 40, 16/09/1877. p. 4.
241
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 45, 26/04/1887.
242
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 41, 22/04/1879. p. 2.
115
Tabela 15 – Local e horário dos crimes
HORÁRIO % LOCAL %
Manhã
Tarde
Noite
Desconhecido
28%
42%
28%
2%
Propriedade ou casa
dos envolvidos
Na vizinhança
Botequim
No local de trabalho
No centro da cidade
Outros
50%
20%
12%
8%
8%
2%
Total 100% Total 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de ofensas físicas, 1859/1920.
Outro elemento que demonstra o grau de relacionamento entre as partes e o padrão da
violência efetuada é o local e o horário em que ocorreram as lesões corporais. Do total dos
crimes de ofensas físicas, 58% deles ocorreram na colônia D. Pedro II em vários momentos
específicos, fato este que nos remete a questão de que a maior parte da manifestação desse tipo
de violência ocorreu por problemas de divisão e manutenção do mesmo espaço geográfico.
Seguindo essa lógica, 82% das querelas ocorreram nas próprias casas ou propriedades dos
envolvidos, em botequins ou nas ruas principais da colônia. Em primeiro lugar gostaríamos de
relacionar alguns crimes ocorridos em botequins ou em momentos de lazer envolvendo os
germânicos.
Assim como em outros lugares do Brasil e envolvendo outros grupos étnicos, o
botequim foi uma das principais opções de lazer dos populares germânicos do sexo masculino
que habitaram em Juiz de Fora. Era através da conversa informal que esses homens levavam
ao redor de uma mesa ou balcão, sempre cercada de goles de cerveja e cachaça, que as mágoas
eram afogadas, que as brincadeiras eram feitas e que os conflitos surgiram.
Na noite de 10 de agosto de 1873, na colônia de D.Pedro II, no botequim de Pedro Luiz
Weltsel, estava Henrique Krölmann sentado junto ao filho de Weltsel bebendo cerveja quando
chegaram João Schweigert, Luiz Larcher e Martinho Kirchmaier. Minutos depois, quando
todos já estavam relativamente embriagados, os três amigos “começaram a dizer que a mulher
de Krölmann era uma mulher perdida” e este, juntamente com os três provocadores, foi
expulso da venda por começar uma briga dentro dela. Com medo de apanhar, visto que
Schweigert, Larcher e Kirchmaier estavam portando bengalas, Krölmann tentou correr para
116
sua casa, mas foi alcançado e foi brutalmente espancado. Devido aos ferimentos na cabeça a
vítima ficou cerca de três semanas desprovido de fala e um mês acamado
243
.
Em alguns casos, brincadeiras “mal feitas” em botequins e negócios mal resolvidos
acabaram dando oportunidade para a ocorrência de lesões corporais envolvendo germânicos.
Às 4 horas da tarde do dia 7 de novembro de 1897, na venda e botequim do português Manoel
José da Silva, na colônia de São Pedro, estava o brasileiro Rosendo Conrado a comprar carne
de porco quando entraram José Ziegler e Francisco Schweigert. Nesse mesmo momento, uma
das testemunhas do processo, Emílio Lutz, pediu a Schweigert uma folha para fazer um
cigarro, e este sacou uma porção e lhe deu dizendo que possuía muitas. Sentindo também
vontade de fumar, Schweigert sacou sua navalha para cortar fumo e começou a dizer que sua
lâmina cortava fumo de um lado e do outro cortava carne, e partiu manuseando-a para cima de
todos no botequim, e num misto de brincadeira e arrogância, acabou por cortar o braço de
Conrado que nada tinha com o assunto. Por ter cortado Conrado e por “não ser dado ao
trabalho, desordeiro e muito a tôa” Francisco Schweigert acabou sendo condenado a três
meses e quinze dias de prisão
244
.
Já no dia 17 de maio de 1910 um negócio mal resolvido acabou gerando uma briga no
botequim de Frederico Peters, na colônia de São Pedro
245
. Na manhã desse dia, ao passear com
um cavalo dado por seu tio, o marinheiro Oscar Vicente Pires chegou ao estabelecimento de
Peters e encontrou-se com Antonio Camarim, ex-dono do cavalo e profundamente arrependido
de ter feito o negócio com o tio de Oscar. Querendo desfazer o negócio, Camarim e Oscar
Pires começaram a discutir ao que interveio Peters para que ambos fossem brigar do lado de
fora e, não sendo obedecido ameaçou Pires com uma tranca de ferro. Negando-se a sair Pires
ainda pegou uma balança de Peters e a arremessou contra ele que, para livrar-se das agressões,
deu com a tranca na cabeça de Oscar Pires que acabou caindo por terra
246
.
Não só em botequins é que ocorreram conflitos violentos em momentos de lazer.
Bailes e desfiles de agremiações carnavalescas também serviram como palco para a resolução
de querelas.
Por volta das 7 horas da noite, depois da reza do terço, começou um baile na casa do
germânico Julio Kroepker que se estendeu até por volta da meia-noite. Nesse mesmo horário,
243
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 38, 11/08/1873. p. 18.
244
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 109, 08/11/1897. p. 7.
245
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 125, 21/05/1910.
117
um indivíduo de nome Inocêncio, que não se dava bem com o sobrinho de Julio, chamado
Augusto, junto à janela da sala do baile, desafiou este por não ter sido convidado. Insatisfeito
com a desonra, Augusto Kroepker saiu da casa e deu uma facada nas costas de Inocêncio e
acabou sendo preso horas depois. Entretanto, como Augusto era considerado pelas
testemunhas como “homem bom e trabalhador” e Inocêncio era visto como “provocador”,
Kroepker acabou sendo absolvido pelo tribunal do júri
247
.
Já no carnaval de 1902, ocorreu uma disputa entre um membro da agremiação
carnavalesca “Club dos Planetas”, Antonio Dias Carneiro e o industrial Francisco José
Kascher, membro dos “Graphos”. Às 6 horas da tarde do domingo de carnaval, estava
Francisco Kascher em um dos carros de crítica a câmara municipal quando ao parar perto da
Confeitaria Rio de Janeiro, o carro foi invadido por Antonio Carneiro que, imediatamente foi
posto para fora, visto que fazia parte de uma agremiação concorrente e também porque tinha
entrado no carro, segundo algumas testemunhas, “para bagunçá-lo”. Revoltado com o ato,
Antonio Carneiro ficou bebendo e jogando bilhar na dita confeitaria e, cerca de uma hora
depois apareceu Francisco Kascher em companhia de seu irmão Henrique. Sentado em uma
mesa, tomando cerveja com o irmão, Kascher teve uma garrafa arremessada em sua direção
por Carneiro. Revoltado, levantou-se e foi ter com Antonio que armado, deu tiros que não
acertou em Kascher. Devido a essa brincadeira Antonio Carneiro acabou sendo condenado e
saiu da cadeia pagando fiança de 500$000
248
.
Em 50% do total de ofensas físicas relacionadas com momentos de lazer o botequim
foi palco dessas querelas e, em 85,72% desses casos, as bebidas estiveram presentes,
apimentando as discussões e as brigas. Nesse sentido, entende-se porque a embriagues do réu
foi utilizada pela justiça como móvel do crime na maioria desses casos. Este aspecto acaba por
revelar o quanto fatores externos aos atos em si influenciavam o veredicto final dos juízes ou
dos jurados. Em 24% dos processos o réu se encontrava embriagado no momento em que o
crime foi praticado, porém, o hábito da bebida, por si só não servia como critério de
condenação: deveria estar associado ao comportamento social do acusado e também ao tipo de
agressão cometida.
246
Idem, p. 2.
247
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 124, 28/06/1909. p. 4.
248
AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 115, 09/02/1902. p. 11.
118
No caso já citado no qual João Theele foi espancado por Frederico Golliath, tanto as
testemunhas quanto o próprio réu afirmou ter bebido cerveja e assim estar embriagado no
momento em que travou o conflito com a vítima. A partir desse dado, o promotor, com o aval
das testemunhas, buscou a todo o momento mostrar que o réu era portador de algumas
características vistas como negativas por aquela sociedade. De acordo com uma das
testemunhas, Golliath “possuía o hábito de dar pagodes em sua casa com a presença de
negros”
249
. Já outra testemunha disse que “o réu às vezes se envolvia em brigas [...]”
250
.
Percebe-se que além de estar envolvido em brigas, péssima característica que poderia ter “um
homem trabalhador e honesto”, Golliath era mal visto por alguns membros da comunidade em
que morava por receber negros em sua casa, sendo este o móvel da briga entre ele e Theele.
Acreditamos, pela leitura deste processo, que a promotoria conseguiu impor a sua versão da
personalidade e do comportamento social do réu que não por acaso, acabou sendo condenado
pelo juiz. Contudo, pelo fato de serem amigos há algum tempo, João Theele escreveu para o
juiz retirando a queixa contra Golliath, desde que este arcasse com as custas do processo.
Em outro caso já citado o hábito da bebida foi associado à premeditação da agressão.
Além de estarem bêbados quando agrediram Luiz Högel, foi mostrado a todo o momento pela
promotoria que o espancamento foi fruto de premeditação e emboscada, visto que Lourenço
Brandel e Edmundo Gühn ficaram vários minutos esperando a vítima sair da venda em que
estava bebendo para então acertá-lo com porretes
251
. Ao que tudo indica, os dois réus foram
condenados aqui mais pela premeditação do que pela embriagues.
Já no caso envolvendo Maria Müller e Frederico Paroth, ambos alemães e casados, a
condenação do marido agressor se deu por ter espancado sua mulher em público sob efeito do
álcool no momento do conflito. No dia 15 de novembro de 1890, estando Maria Müller
lavando algumas roupas numa fonte pública de Lima Duarte pela manhã, chegou a seu
encontro seu marido afirmando ter ela escondido cerca de 75$000 referentes a uma conta que
ele deveria pagar. Nesse mesmo momento deu com um pau no rosto de sua mulher que deixou
o filho pequeno que estava no colo cair no chão, sendo acudida por uma mulher que passava
no local. Segundo Maria Müller, era “casada com Frederico a 12 anos e é a primeira vez que
ele a trata de tal modo, sendo certo que ele hoje vem bebido muito e se acha bastante
249
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 35, 29/01/1861.
250
Idem.
251
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 41, 20/06/1880.
119
embriagado”. Nesse caso o uso do álcool foi utilizado pela promotoria como agravante do ato
de agressão, levando Paroth a ser condenado a 1 ano e 1 mês de prisão celular, não cumprida
devido ao fato do réu ter fugido
252
.
Somente em um caso o hábito da bebida foi utilizado como motivo atenuante de uma
agressão familiar. De acordo com algumas testemunhas, na madrugada de 14 de maio de 1895
o jovem José Rodolpho Koch foi preso por vizinhos e levado até o inspetor de quarteirão por
estar espancando, embriagado, a própria mãe, a alemã Carolina Josefina Koch, viúva de 63
anos e empregada no hospital Lazareto. De acordo com Carolina Koch o fato se deu porque “o
meu filho foi convidado para um pagode e eu também e depois meu filho bebeu um pouco de
aguardente e ficou um pouco embriagado e estando o preto Gregório na mesma condição
ficou a brigar com o meu filho e eu querendo disapartar meu filho não me obedeceu”. Irado
com a atitude da mãe deu alguns socos nela e foi preso, como já foi dito, por vizinhos. No
momento em que foi tomado seu depoimento na cadeia, José Koch disse que merecia estar
preso por ter batido em sua mãe. Sendo perdoado pela mãe, que no mesmo dia mandou uma
carta ao delegado pedindo que o filho fosse solto, o jovem Koch de 22 anos acabou sendo
liberado e o processo arquivado
253
.
Do mesmo modo, a briga de amigos ou parentes embriagados acabou em absolvição
em todos os casos. Em todos os processos, ou a queixa era retirada alguns dias depois do fato
ou os réus eram absolvidos. Na tarde de 19 de março de 1899, na venda de Leopoldo Shaeffer,
na colônia de São Pedro, Antonio Munck foi agredido a cacetadas por seus conhecidos Felipe
Müller, Theodoro Stephann, Frederico Pullig e André Kirchmaier. Tudo isso se deu porque,
bêbado, Munck se negou a pagar a irrisória quantia de 7$000 que devia aos também bêbados
Felipe Muller e Antonio e Jorge Gerheim. Sem maiores explicações todos foram absolvidos
254
.
Assim, como afirmamos no tópico anterior, o hábito da bebida, por si só, não era capaz
de condenar nem absolver alguém. Somente quando associado ao comportamento social do
réu é que a utilização do álcool passava a ter um peso na condenação ou absolvição do autor
do delito. Em suma, no momento em que os atos se transformavam em autos, o concreto
perdia quase toda sua importância e o debate se dava entre os atores jurídicos, cada um deles
usando a parte do real que melhor reforçava o seu ponto de vista. Neste sentido, é o real que
252
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 47, 15/11/1890.
253
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 104, 14/05/1895.
254
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 110, 20/03/1899.
120
era processado, até que se extraísse dele um esquema elementar sobre o qual se construía um
modelo de culpa ou de inocência
255
.
Os conflitos violentos envolvendo germânicos também aconteceram em locais bastante
reveladores de alguns padrões comportamentais dos germânicos envolvidos. Em 36% dos
crimes de ofensas físicas, as lesões corporais se deram nas casas ou propriedades das vítimas
ou dos réus bem como ocorreram em ocasiões nas quais os envolvidos ou se dirigiam ou se
retiravam de seus lares.
Em uma manhã do final de março de 1887 dirigia-se Margarida Teiller para a casa de
seu irmão Luiz que ficava distante da sua, para buscar um pouco de carne. Para chegar mais
rápido, resolveu passar pelas terras de Franz Klaussemann, inimigo de sua família por motivos
que desconhecemos. Estando ele no caminho, ao avistar Margarida, disse que ela não mais
passasse por ali, mas, dizendo que Franz também utilizava suas terras como passagem,
Margarida Teiller disse que continuaria passando por ali quando quisesse. Esta resposta gerou
ira em Klaussmann que se precipitou sobre Margarida, que trazia um filhinho nos braços e que
se achava em terceiro ou quarto mês de gravidez. Depois de tê-la atirado por terra e
esbofeteado-a com o cabo de um machado que consigo trazia, ele levantou-lhe as roupas e
bateu com o cabo do machado no ventre de Teiller. Deixando-a seu agressor, Margarida
correu em direção à casa de seu irmão, mas foi vista pela mãe de Franz que, alcançando-a,
deu-lhe também bordoadas e pancadas no ventre e na cabeça. Dessa ofensa física e da anterior
praticada por Franz Klaussmann resultou o aborto de Margarida Teiller, dias depois
256
.
Outras lesões corporais ocorreram nas próprias propriedades dos réus e indicam, como
mostramos nos crimes referentes ao furto e roubo, que a noção de defesa da propriedade
privada estava bem disseminada entre os germânicos. Com o fim de conseguir algumas
taquaras, foi José Damasceno à colônia por volta do meio-dia em meados de novembro de
1886. Quando começou a retirá-las, ali apareceu o carpinteiro alemão Augusto Hachner em
companhia de seu irmão Edmundo Hachner e de um filho. De acordo com o depoimento de
Augusto ele estava em sua casa plantando batatas quando ouviu barulho de corte de taquaras
nas matas que lhe pertenciam e assim, mandou seu filho ver o que era. Sabendo que alguém
desconhecido havia invadido sua propriedade sem seu consentimento foi armado com uma
espingarda – Edmundo foi munido de uma foice – expulsar dali o invasor. Minutos depois de
255
CORRÊA, Mariza. Morte em Família... op. cit. p. 40.
256
AHMJF, processos criminais – Aborto: cx 23, 11/04/1887. p. 2.
121
uma discussão da qual não sabemos o conteúdo, José Damasceno tomou um tiro no estômago
e várias foiçadas no braço esquerdo
257
.
Já na noite de 11 de julho de 1890, saindo Manoel José da fazenda onde trabalhava,
segundo ele, para ir buscar uma trouxa de roupa que havia deixado na casa de seus amigos, os
irmãos Luiz e Matheus Schaeffer, quando foi surpreendido pelos dois que saltaram de uma
capoeira que margeava a estrada armados de cacetes. Sem falarem nada, deram várias
cacetadas em Manoel até deixá-lo desacordado. Feito isso, os irmãos Shaeffer levaram Manoel
para a fazenda de José Francisco de Assis, de quem também eram empregados, e responderam
ao patrão serem eles os autores da atrocidade. Perguntados qual era o motivo daquilo
responderam que Manoel se dirigia para a casa eles não para pegar suas roupas, mas sim para
se encontrar com a irmã deles “com fim libidinosos
258
. Apesar de serem estimados pela
comunidade como “trabalhadores e de bons hábitos”, os irmãos Shaeffer foram condenados
porque praticaram o espancamento sem o mínimo de provas, segundo a promotoria, de que
Manoel estava se dirigindo em busca da irmã deles
259
.
A agressão envolvendo Henrique Rhemann e João Heich também ocorreu na
propriedade do réu – Rhemann – mas indica motivo diverso do processo anteriormente citado.
Estando a concertar a carroça de Heich, visto que era carpinteiro, Henrique Rhemann se sentiu
ofendido com a afirmação daquele de que “a madeira empregada no concerto de sua carroça
não era boa”. Horas depois, sem saber que o vizinho contratado para fazer os reparos em sua
carroça se achava nervoso com aquilo que ele encarou como uma ofensa ao seu ofício, Heich
foi até a oficina de Rhemann pedir uma chave inglesa emprestada e, sem discussão alguma, foi
agredido a cacetadas que lhe produziram ferimentos na cabeça e no ombro direito
260
. Esse
episódio pode ser considerado como mais um caso em que a honra ofendida do réu precipitou
uma explosão súbita de fúria, fato este que acabou gerando o conflito físico bem como lesões
corporais.
Nos dois casos que citaremos agora o combate ocorreu na própria casa da vítima,
revelando assim o contado que possuíam as partes envolvidas. Revoltados com o não
pagamento do empréstimo que haviam feito ao italiano Luiz Spada, os germânicos Eduardo e
Manoel Limp, pai e filho, foram até a casa daquele cobrar aquilo que lhes era devido.
257
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 46, 12/11/1886.
258
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 47, 12/07/1890. p. 4.
259
Idem, p. 18.
122
Recebendo como resposta que ficariam sem o dinheiro visto que Spada não os pagaria, foram
até o botequim de Augusto Soares Machado e pediram emprestado um pedaço de lenha e a
tranca de ferro da venda mas, não obtiveram o que queriam. Entretanto, minutos depois,
voltaram até a casa de Spada e o espancaram com um chicote e com uma foice em sua própria
casa
261
.
Numa tarde de abril de 1913, Dimas Clemente vinha da cidade trazendo lenha em sua
carroça e também o acompanhava Manoel Thomas com outra. Parando no caminho para
almoçarem deixaram seus animais pastando a beira do caminho arriados com as cargas que
com elas regressavam. Ao passarem em frente à casa de João Heidt este exigiu de Manoel
Thomas que fosse pago o “pasto dos bois que estavam comendo o capim na beira da
estrada”. Tendo seu pedido negado por se tratar de um lote sem cercamento, João Heidt
ofendeu verbalmente Thomas, chamando-lhe de “seu negro filho da puta”, que no mesmo
momento desceu de sua carroça e agrediu com um cacete a cabeça de Heidt
262
.
Esses episódios revelam alguns dos problemas de convivência entre os amigos e os
vizinhos germânicos na colônia. Indivíduos das mais diferentes procedências e com hábitos
culturais e sociais também diversos se viram obrigados a dividir o mesmo espaço geográfico e
social, fato este que, em vários momentos específicos, acabou gerando problemas de
convivência e algumas rixas entre famílias vizinhas que se transformaram em conflitos
violentos em momentos de crise.
2.2.2 Os motivos dos conflitos
Ao analisarmos os processos de ofensas físicas observamos que, na maior parte dos
casos, como alternativa possível, restou aos germânicos a resolução desses conflitos de acordo
com as regras de comportamento próprias do grupo sócio-cultural em questão. Isso pressupõe
a existência de elementos ordenadores das relações sociais do cotidiano desses indivíduos, e
que esses elementos eram compartilhados e valorizados por eles. Assim, a ocorrência de
conflitos físicos entre os germânicos, registrados nos processos de ofensas físicas por nós
260
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 114, 20/11/1901. p. 6.
261
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 126, 07/12/1910.
262
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 130, 15/04/1913. p. 5.
123
analisados, é percebido, nesta perspectiva, de um ponto de vista diferente daquele do aparato
jurídico-burocrático, que analisa os atos dos nossos personagens a partir de um sistema rígido
de valores, procurando avaliar até que ponto eles se enquadram nos padrões de
comportamento exigidos pela sociedade, desconsiderando, desta forma, a possibilidade desses
indivíduos regerem sua conduta por normas ou padrões de comportamento alternativos
àqueles valorizados pelos “guardiões da moral e da virtude”.
Além disso, pensar o problema da ocorrência dos conflitos violentos envolvendo, na
maior parte das vezes, os populares germânicos a partir apenas do ponto de vista dos
condicionamentos sócio-históricos mais amplos, tais com as condições materiais e a busca e
disputa por empregos e moradia, causa problemas teóricos e também metodológicos. A partir
desse viés, as querelas em si deixam de ser um produto social, como fruto da experiência
social de seres humanos concretos, pois em última análise, ele pode ser entendido e explicado
a partir de fatores extrínsecos às próprias condições concretas de sua produção nas diversas
situações microscópicas do social
263
. É claro que as condições sócio-históricas mais amplas
informam a ocorrência da violência em suas diversas formas em uma determinada sociedade.
No entanto, quando tomamos este enfoque como o único possível de abordar a ocorrência do
conflito violento ou da criminalidade em geral envolvendo os estratos despossuídos da
sociedade, reduz-se a questão a apenas uma de suas faces. Este tipo de abordagem, ao manter-
se num nível muito abstrato, acaba conspirando contra a própria postura crítica que se quer ter
da sociedade estruturada: se o crime é apenas o produto de contradições estruturais, isto é,
produto da miséria a que fica condenada grande parte da população, então será verdade que
todos os miseráveis são potencialmente violentos ou criminosos, só para citar a considerações
de Maria Célia P. M. Paoli?
264
Assim, o que acaba ocorrendo em uma análise deste tipo, por um lado, é a dedução de
que o estado de pobreza ou miséria destrói os padrões de comportamento, laços de
solidariedade e estabelece o caos social entre o estrato subalterno. Por outro lado, em vez de se
tentar compreender melhor as racionalidades intrínsecas aos diferentes tipos de
comportamento dos dominados, o que se faz é apenas julgar esses tipos de atitudes a partir de
263
PAOLI, Maria Célia P. M. “Violência e espaço civil”. In: A Violência Brasileira. São Paulo: Brasiliense,
1982, p. 47.
264
Idem. p. 45.
124
padrões que lhes são extrínsecos; ou seja, tenta-se impingir aos populares a camisa-de-força
dos padrões de comportamento da classe dominante
265
.
Nesse sentido, a leitura dos processos criminais de ofensas físicas envolvendo
germânicos em Juiz de Fora entre os anos de 1859 e 1920 permite discernir regularidades
impressionantes nos antecedentes e/ou motivos e nas condições gerais da produção de cada
conflito. As pessoas autuadas, seja como participantes ou testemunhas, pareciam ter seus
comportamentos orientados por algumas regras que eram conhecidas e até mesmo valorizadas
pelos membros da comunidade onde se dava a querela. Em outras palavras, o comportamento
dos envolvidos estava socialmente programado, o que dava às ações das pessoas participantes
no episódio significados sociais precisos e compreensíveis para os membros do grupo onde se
desenrolava a luta. Contudo, devemos nos lembrar que os motivos alegados pelos contendores
ou pelas testemunhas para explicar o surgimento dos conflitos violentos são variados, sendo
necessário utilizar esses depoimentos com cuidado: o que aparece com freqüência nos
processos criminais como causas últimas dos conflitos são apenas seus antecedentes
imediatos. Este problema pode ser em parte evitado com a comparação entre os autos dos
vários processos, o que acaba explicitando quase sempre o que está efetivamente em jogo na
contenda.
Neste sentido, percebemos que apesar de terem existido inúmeros conflitos envolvendo
germânicos ocorridos devido a explosões súbitas de descontentamento – foram na verdade a
maioria, em 54% dos casos – percebe-se que em 46% dos processos o conflito físico foi
apenas o ápice de uma rixa que já existia a algum tempo e que, por algum motivo imediato, foi
levada às vias de fato. Observamos que nesses casos os principais motivos giraram em torno
da defesa da honra pessoal ou dos membros femininos da família, de brincadeiras mal
interpretadas, de problemas de convívio entre vizinhos e de cobranças de dívidas ou negócios
mal resolvidos.
Como exemplo de um crime relacionado ao tema da honra temos o caso já citado
envolvendo os conhecidos Henrique Krölmann, Luiz Lauchen, Martinho Kirchmaier e João
Schweigert. Ao ouvir de Lauchen, já embriagado, que “a mulher dele respondente era uma
mulher perdida” Krölmann iniciou uma disputa com o ofensor de sua honra, quando interveio
Schweigert e o agarrou pelo pescoço iniciando assim uma querela que, mais tarde, terminou
265
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim... op. cit. p. 208.
125
com o espancamento de Krölmann pelos três
266
. Na leitura do processo observa-se que a
opinião geral a respeito da mulher da vítima não era muito boa a um certo tempo e que, devido
ao fato de estar alcoolizado e fora de si, o réu acabou revelando uma opinião que era de senso
comum, gerando assim a consolidação de um conflito que girava tanto pela defesa da honra da
esposa quanto da honra do marido.
Da mesma forma, a desconfiança de que um amigo queria manter “relações
libidinosas” com sua irmã levou os irmãos Shaeffer a espancar a cacetadas o colega de
trabalho Manoel José. Percebe-se no processo que a desconfiança dos irmãos já existia a
algum tempo devido a possíveis insinuações de Manoel para a irmã dos réus ao levar suas
roupas para serem lavadas
267
. Assim, longe de ser uma ação momentânea, esse conflito
representou a consolidação de um processo que já existia há algum tempo, no qual os
membros masculinos da família possuíam autorização social para defender as honras
femininas da casa qualquer que fosse o preço a ser pago por isso.
Fato semelhante ocorreu entre José Müller e João Porphírio. De acordo com a
testemunha Paschoa Manfri Santos, na véspera da noite de São João, Porphírio chamou Müller
para conversar e durante esta ocasião pediu ao germânico que arrumasse uma das suas irmãs
para casar-se com ele. Ofendido com a oferta, visto que Porphírio já havia namorado uma de
sus irmãs e não casara com ela, João Müller deu vários socos no Dom Juan do bairro já que
Porphírio “é casado e separado da mulher [...] porque um homem casado não pode assim
propor sem que haja problemas entre as partes
268
.
No caso envolvendo Carlos Kneipp e Fernando Almada, a facada que o primeiro
recebeu do segundo resultou de um problema que já ocorria há algum tempo. Há vários dias
antes do fato, Fernando vinha avisando Kneipp para que não bulisse com sua amasia porque
dali poderia suceder mal para ambos. Como isso não ocorreu (parece que era a mulher de
Fernando que estava paquerando Kneipp) o amante irado desferiu golpes de faca no
companheiro de trabalho
269
.
Outra questão que serviu como estopim de querelas já antigas foram às brincadeiras.
Como vimos anteriormente o motivo central da briga entre Augusta Rater e Francisca Maria
Carolina foi o fato do filho daquela viver jogando água e lama nesta quando ele passava em
266
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 38, 11/08/1873.
267
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 47, 12/07/1890.
268
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 137, 24/06/1918.
126
frente à casa da pobre senhora
270
. Também no caso envolvendo o espancamento de Luiz
Högel, este inicialmente, partiu para cima dos réus porque eles ficaram rindo e chamando-lhe
de burro por não saber escrever
271
. Como já mostramos também as brincadeiras na hora do
jogo é que levaram Rossi Bonatti a agredir com um chute no joelho a seu companheiro de
trabalho, o teuto-descendente Carlos Stephann
272
. Além desses, temos o caso em que os
companheiros do matadouro público foram beber depois do trabalho. Estando, tempo depois, a
maior parte deles alcoolizados, tentaram tirar as calças do sexagenário Francisco Ferreira
Guedes. Depois disso, o velho Guedes, muito embriagado, tirou uma faca que consigo trazia e
tentou golpear Augusto Daibert que empurrou Guedes de um degrau fazendo com que ele
caísse e machucasse o rosto gravemente
273
.
Por último, gostaríamos de citar um caso de brincadeiras que revela desavenças
históricas entre dois grupos étnicos. Às 11 horas da noite de 23 de dezembro de 1862 achava-
se o francês de origem judaica Adolpho Bloch, negociante de brilhantes no Rio de Janeiro e
em Petrópolis, juntamente com um patrício de nome Alexandre Lechman, no saguão do hotel
da Companhia União e Indústria jogando bilhar no momento em que entrou o prussiano
Frederico Kuffa, administrador da Estação da companhia.Como eram conhecidos e tinham
relações entraram em conversações e no prosseguimento desta propôs Bloch a Kuffa o
desconto de alguns vales dos trabalhadores da Companhia que tinha em seu poder. Querendo
um abatimento de 20% do valor, muito acima dos 5% que eram oferecidos por Bloch, Kuffa
foi chamado por este de “Tête carret ou cabeça de alemão” e nesta ocasião se retirou do hotel.
Minutos depois Kuffa retornou e, pegando uma das bolas de bilhar, arremessou-a na cabeça de
Adolpho Bloch dizendo “que com isso mostrava-o quem era cabeça de alemão”, sendo
impedido pela testemunha Alexandre Lechman de dar com um taco de bilhar na cabeça de
Bloch que se encontrava caído
274
. Dentre todos os processos trabalhados nesta dissertação
encontramos três em que Frederico Kuffa esteve envolvido e, em dois deles, as querelas
ocorreram envolvendo franceses. Devido a alguns problemas que a colônia enfrentou em seus
primórdios, que serão trabalhados no último capítulo, pairava sobre os negociantes franceses a
269
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 121, 03/11/1907.
270
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 41, 21/02/1880.
271
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 41, 20/06/1880.
272
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 138, 10/06/1919.
273
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 140, 10/11/1920.
274
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 35, 28/12/1862.
127
desconfiança dos administradores da colônia e de outras áreas pertencentes à Companhia.
Assim, a ofensa proferida por Bloch atingiu em cheio um indivíduo que já possuía problemas
e desentendimentos com outros franceses gerando assim uma contrapartida violenta como
meio de reparar uma espécie de “honra étnica”. Além disso, é possível especular também com
dois elementos que poderiam estar atuando como motivo daquele conflito: o anti-semitismo e
o nascente nacionalismo europeu que acabou colocando em disputa franceses e alemães.
Entretanto, o principal motivo de conflitos entre os germânicos surgiu devido a rixas
antigas entre vizinhos, principalmente entre moradores da colônia agrícola de D. Pedro II.
Vimos em um processo já citado que a inimizade entre as famílias Engelender e Gundelach
teve início devido à peraltice de um filho de Carlos Gundelach que, ao entrar na plantação da
Companhia União e Indústria que ficava sob a responsabilidade de Augusto Engelender,
acabou destruindo algumas abóboras e por isso, acabou levando uns sopapos de Augusto.
Nesse sentido, percebe-se que o conflito envolvendo as esposas de Carlos e Augusto foi
apenas o estopim de um conflito que já existia entre as famílias.
Da mesma forma, a briga entre Henrique Finck e Martinho Kirchmaier não teve início
no dia da violência física entre eles. A inimizade que Finck vinha cultivando contra Martinho
há algum tempo surgiu devido ao fato de Finck ter deixado algumas vezes seus animais em
terras de Kirchmaier que, insatisfeito com a situação, levou os animais para a guarda do curral
do conselho. Depois desse dia Henrique passou a perseguí-lo até que, no dia 10 de outubro de
1894, ficou de tocaia numa encruzilhada da colônia e, no momento em que Martinho passou
por ali, foi agredido a cacetadas
275
.
Também a querela envolvendo as amigas Ema Pettermann e Maria Kirchmaier não
ocorreu somente no momento do conflito físico, ocorrido na casa dos vizinhos de ambas, os
Göetz. Dias antes de Ema ter invadido a casa dos vizinhos e ter dado um soco no olho de
Maria Kirchmaier, segundo a própria Ema, sua ex-amiga denunciou à polícia seu marido,
Pedro Pettermann, por ter roubado uma bacia. A partir de então a relação entre as duas foi
rompida e acabou culminando na agressão ocorrida entre as duas
276
.
Já no caso envolvendo João Petterman e Luiza Guillart, a inimizade entre esses dois
vizinhos é que deu origem ao espancamento ocorrido na tarde de 22 de dezembro de 1910.
Como causa do conflito, consta que não deixando o filho de João Petterman entrar em sua
275
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 102, 10/10/1894. p. 2.
276
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 116, 09/10/1902.
128
propriedade para pegar uns gansos que haviam fugido de seu quintal, este quebrou a cerca
pegou os gansos e ainda ajudou o pai que vinha logo atrás a bater em Luiza Guillart.
Entretanto, percebe-se através dos testemunhos que João Petterman, não era bem quisto na
comunidade visto que “não é um bom vizinho e arruma barulho com seus vizinhos
277
. Nesse
sentido, observa-se que não havia boa relação entre os envolvidos bem antes do conflito em si.
Por volta das 5 horas da tarde de 7 de outubro de 1913, vindo Henrique Fieldman por
uma encruzilhada situada “um pouco acima do Borboleta”, viu João Heidt deitado em um
barranco e, logo que este avistou Fieldman, veio a seu encontro e deu-lhe várias cacetadas.
Numa leitura superficial do processo criminal parece ser este um crime bárbaro e sem motivo.
Contudo, através de uma leitura mais atenta observa-se que ambos já cultivavam uma certa
inimizade devido ao fato de Heidt, meses antes, ter batido no pai da vítima. De acordo com o
próprio Fieldman, “há tempos tem dúvida com João, pois ele e outros bateram no pai do
respondente. Que por isso vivia João sempre provocando o respondente
278
.
Com esses dados acima citados percebe-se que, longe de serem crimes cometidos por
delinqüentes, as ofensas físicas entre os germânicos refletiram os problemas de convívio, fruto
da experiência cotidiana desses indivíduos, visto que esses homens e mulheres consideraram a
luta como uma oportunidade legítima de solucionar os conflitos nos quais estavam
mergulhados. No entanto, isto não nos autoriza a concluir que a violência era o principal
mecanismo de resolução de conflitos interpessoais. Como ressalta Sidney Chalhoub, os
processos criminais são uma documentação especializada em violência e, por isso, não nos
permite nenhuma perspectiva quanto às outras modalidades de confronto e ajuste de tensões
nos grupos étnicos estudados
279
. Além disso, os próprios processos mostram que a ocorrência
da violência é algo normatizado, onde os indivíduos desempenham papéis sociais previstos e
aceitos. Nesse sentido, as pessoas que aparecem nos autos dos processos não podem ser
consideradas como bárbaros que resolvem suas questões apelando para o uso da força bruta,
mas sim homens comuns que vivem imersos numa dada cultura e que se comportam de acordo
com regras de conduta preestabelecidas.
277
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 126, 23/12/1910. p. 6.
278
AHMJF, processos criminais – Ofensas Físicas: cx 131, 07/10/1913. p. 2.
279
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim... op. cit. p. 230.
129
2.3 – As Ofensas Verbais
No Código Criminal do Império do Brasil, no capítulo referente aos crimes contra a
segurança e a honra, observamos as ofensas verbais divididas em dois itens numa mesma
seção intitulada Calúnias e Injúrias
280
. Esta forma de “crime” é, de certa maneira, peculiar por
se tratar de uma ofensa que não chega a ocasionar danos físicos ao ofendido, pois o que é
colocado em risco é a honra
281
e não a vida daquele que sofreu a agressão. Na maior parte dos
processos penais era o promotor que fazia a queixa e levava o processo adiante. Entretanto,
como nos crimes relativos às injúrias era o próprio ofendido quem fazia a queixa e conduzia o
processo até o final, percebe-se, em todos os processos parcialmente observados, que pelo
menos uma das partes envolvidas acabava falando sobre a razão da agressão e, juntamente
com as testemunhas, se referia positiva ou negativamente aos comportamentos do queixoso e
do querelado na vida social da comunidade. Neste sentido, se não conseguimos perceber o
motivo que levou o agressor a cometer o delito na leitura da queixa, percebemos este fato no
depoimento do réu, mesmo quando este nega a ofensa cometida.
As ofensas verbais são grandes indicadoras e produtos do conflito humano. Além
disso, são um produto da sociedade na qual estão vinculadas. O princípio central da
sociolingüística é que o falar é um ato cuja importância se situa além da definição literal,
contida nos dicionários, das palavras utilizadas. Nenhum tipo de comunicação, verbal ou não,
pode ser entendido sem referências ao contexto social no interior do qual é produzido. Além
280
“Art. 229 – julgar-se-á crime de calunia atribuir falsamente a alguém um fato que alei tenha qualificado
criminoso, e em que tenha lugar a ação popular, ou procedimento oficial de Justiça. (...) Art. 236 – julgar-se-á
crime de injúria: 1
o
na imputação de um fato criminoso não compreendido no artigo 229; 2
o
na imputação de
vícios ou defeitos que possam expor ao ódio ou desprezo público; 3
o
na imputação vaga de crimes ou vícios sem
fato especificado; 4
o
em tudo o que pode prejudicar a reputação de alguém;5
o
em discursos, gestos, ou sinais
reputados insultantes na opinião pública”. In: Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e
Henrique Laemmert. 1873. p. 178-80.
281
Para uma discussão profunda a respeito dos crimes contra honra individual na lei e jurisprudência brasileira
ver: FISCHER, Brodwyn. “Slandering Citizens: insults, class and social legitimacy in Rio de Janeiro’s
Criminal Courts”. Paper apresentado a conferencia sobre Honra, Status e Lei na América Latina Moderna.
Universidade de Michigan, Dezembro de 1998. & The Poverty of Law: Rio de Janeiro, 1930-1964. Ph.D.
Thesis, Departament of History, Harvard University, October, 1999. Para a formulação clássica sobre honra ver:
PITT-RIVERS, Julian. “Honor and social status” In: PERISTIANY, J. G. Honor and Shame: the values of
mediterranean society. Chicago, University of Chicago Press, 1966, p. 19-77. & STEWART, Frank Henderson.
Honor. Chicago: University of Chicago Press, 1994. Para as manifestações e mudanças dessa concepção na
América Latina Colonial ver os ensaios organizados por JOHNSON, Lyman L. & LIPSETT-RIVERA, Sonya.
The Faces of Honor: sex, shame and violence in Colonia Latin America. Albuquerque: New Mexico, 1998.
130
disso, em cada contexto existem convenções coerentes, gramaticais e sociais, que governam o
comportamento lingüístico
282
.
Em qualquer cultura existem muitas imputações que são potencialmente insultuosas,
mas elas de fato só passam a ter essa característica quando usadas de uma forma bastante
específica. Existem, do mesmo modo, graus de insultos. Mais uma vez o contexto é
fundamental. Dependendo das identidades do ofensor e da vítima, e do relacionamento entre
eles, as mesmas palavras podem ter maior ou menor peso. O significado literal das palavras
usadas também pode afetar sua gravidade, e, em qualquer caso individual, epítetos específicos
são escolhidos em detrimento de outros. Nestes casos, as variações refletem o funcionamento
de uma determinada sociedade e, em alguns casos, espelham seus valores, suas convenções de
comportamento, o caráter e a importância de certos relacionamentos
283
.
O estudo desse tema nos permite examinar o vocabulário dos insultos e seu significado
literal, buscando explicar porque expressões específicas são escolhidas em detrimento de
outras, relacionando-as com as condições sociais. Do mesmo modo, permite que analisemos o
contexto no qual os insultos foram usados e os efeitos disso em seu significado, ou seja, na
informação total que transmitiam.
O que estamos querendo dizer é que acreditamos que os valores refletidos nos insultos
eram, entre outras coisas, fundamentalmente aqueles necessários para a sobrevivência no
contexto social e econômico em que as pessoas se encontravam e, se os ouvintes realmente
acreditavam nas acusações, então o meio de vida da vítima iria padecer. Neste sentido, as
ofensas verbais serviam para reforçar o sistema de valores dominantes. No mínimo eram uma
forma de socialização, uma maneira de ensinar esse sistema de valores e de compelir, se não à
sua real observância, pelo menos a alguma bajulação dissimulada em relação a ele.
Apesar de sua aparente trivialidade, as ofensas verbais, entretanto, podem dizer muito
ao historiador. Pelo fato de o comportamento lingüístico exercer um papel fundamental na
interação social, a evidência documental, quando existe, é uma valiosa fonte de informações a
respeito das relações sociais. Da mesma forma que qualquer comportamento, o lingüístico se
adapta às normas que refletem a condição social dos envolvidos
284
. Analisar quem são os
atores, seu relacionamento uns com os outros e as maneiras como se expressam pode nos
282
GARRIOCH, David. Insultos verbais na Paris do século XVIII. In: BURKE, Peter & PORTER, Roy. História
social da linguagem. São Paulo: Edunesp, 1997. p. 121.
283
Idem.
131
contar sobre as relações entre empregados e patrões, entre homens e mulheres, entre amigos e
vizinhos, para citar alguns exemplos mais óbvios. Em suma, a forma como se expressavam
reflete suas preocupações e revela muito sobre os modelos dominantes e sobre os valores
articulados.
Os insultos dos quais vinham se queixar perante a justiça geralmente são reproduzidos
fielmente, quase sempre ricos em detalhes. O querelante também descreve o contexto no qual
os insultos ocorreram, enfatiza os mais danosos e explica suas razões para estar apresentando
uma queixa formal. As queixas, é claro, são tendenciosas, o que em si nos revela muito a
respeito dos valores e a mentalidade dessas pessoas.
Cada queixa era anotada por um escrivão, mas entre as fórmulas jurídicas sempre havia
expressões populares. Isso, mais a riqueza de detalhes e as reflexões posteriores anotadas nas
margens dos processos indicam que o funcionário do sistema jurídico estava, na maior parte
das vezes, copiando o que a pessoa realmente estava dizendo, embora estivesse escrevendo em
terceira pessoa. É claro que a presença do delegado atuava como um fator de “contaminação”,
fazendo com que as pessoas se apresentassem da forma como queriam ser vistas. No entanto,
isso não representa um grave problema para a análise dos insultos em si, uma vez que os mais
“representativos” e, na opinião do querelante, os mais prejudiciais são reproduzidos
textualmente.
Contudo, é importante reconhecer uma limitação nesta análise: estamos analisando
apenas certos tipos de ofensas, aquelas que foram levadas à presença da justiça. Sem a menor
dúvida, houve outros que não foram relatados, talvez por terem sido considerados por demais
ofensivos, ou por terem sido considerados amenos demais para serem levados a sério.
O presente sub-capítulo tem como objetivo apresentar os resultados da análise de 26
processos criminais de injúrias verbais envolvendo germânicos e descendentes na qualidade de
vítimas, réus e testemunhas entre os anos de 1863 e 1917, período em que foram registrados
tais crimes. A partir de agora estaremos examinando primeiramente o perfil dos envolvidos e
dos crimes de injúrias para, então, analisarmos o vocabulário das ofensas verbais e seu
significado literal, buscando explicar porque temas e expressões específicas eram escolhidas
em detrimento de outras, relacionando-as com as condições sociais. Em terceiro lugar
284
Idem, p. 123.
132
estaremos estudando o contexto no qual os insultos foram utilizados, e os efeitos disso em seu
“significado”, ou seja, na informação total que transmitiam.
2.3.1 – O Perfil dos crimes e dos envolvidos
Seguindo a hipótese de não analisar as ofensas verbais como puro reflexo da
criminalidade dos germânicos que habitavam em Juiz de Fora, pode-se dizer que os dados
referentes aos réus revelam que tipo de pessoa era acusada com mais freqüência nos processos
criminais, e não o tipo de criminoso mais freqüente nesta comunidade. Foi possível observar
algumas características dos acusados registradas nos inquéritos, nos interrogatórios e em
outras partes que compõe os processos criminais – embora eventualmente faltem informações
em alguns processos.
Nossa primeira preocupação foi tentar perceber em que período cronológico tornou-se
mais freqüente o crime de injúria envolvendo alemães. Inicialmente acreditávamos que este
tipo de crime cresceria, devido às peculiaridades históricas da inserção dos germânicos em
Juiz de Fora, descritas no primeiro capítulo, nos períodos de disputa por postos de trabalho no
mercado urbano e no período da 1
a
guerra mundial. Em outras palavras, acreditávamos que
estes “crimes” aumentariam a partir de 1880 obtendo seu apogeu entre 1914 e 1917, visto que
no período da guerra muitos germânicos foram vítimas de sentimentos e ações xenofóbicas.
Também pensávamos que encontraríamos poucos crimes para a década de 1860 e primeira
metade da 1870, pelo fato da maior parte dos alemães estarem “isolados” na colônia, com
exceção daqueles que moravam no bairro fábrica (Villagem) e em outros pontos da cidade.
Segundo nossas previsões, somente num período posterior à falência oficial da colônia em
1885, haveria uma maior concentração de germânicos na zona urbana e assim, maiores
possibilidades de conflito.
Entretanto, nossas hipóteses não se concretizaram. Com relação ao período dos crimes
observa-se que sua maior freqüência se deu na década de 1870 e foi diminuindo no período em
que a cidade começou a se industrializar, tornando-se inexpressivo na década de 1910.
Percebemos a partir destes dados que já nos anos 70 ocorreu uma grande inserção da
população germânica em atividades tipicamente urbanas sendo que alguns deles deixaram suas
terras na colônia e foram tentar a vida no centro urbano da cidade. Em vários processos
133
observa-se alemães vivendo no que hoje seria a rua Halfeld, a Av. Getúlio Vargas, a rua
Marechal Deodoro e Floriano Peixoto, a região da Av. Sete de Setembro e até mesmo verifica-
se alemães vivendo em Matias Barbosa. Um dos fatores que motivaram a busca de novas
oportunidades de trabalho foi a péssima qualidade das terras da colônia
285
, o que diretamente
forçou estes indivíduos a encontrarem novas alternativas para sobreviverem associadas ao
cultivo de seus prazos, já que verifica-se em quase todos os processos que boa parte dos
envolvidos, além de buscarem novas oportunidades no meio urbano como empregados de
fábricas, caixeiros, negociantes, entre outros, continuavam cultivando hortaliças e praticando
uma economia de subsistência em suas pequenas propriedades.
Com relação ao local das querelas, só encontramos para todo o período em análise
quatro processos em que a colônia foi palco para as injúrias. Três delas ocorreram na colônia
de baixo (atual Bairro Fábrica), local mais próximo do centro da cidade no qual havia um
contato maior entre os germânicos e a comunidade local, e um na colônia de cima,
caracterizado por um desentendimento entre o administrador das construções da estrada e um
mascate francês. Das três querelas ocorridas na colônia de baixo, duas delas envolviam apenas
alemães. Em outras palavras, através destes fatos começamos a perceber que os crimes de
injúria envolvendo alemães ocorreram primordialmente no momento em que estes indivíduos
passaram a ocupar novos postos de trabalho tipicamente urbanos ou a habitar fora da Colônia
Agrícola D. Pedro II, primordialmente no centro comercial do município passando,
conseqüentemente, a manter relações sociais com outros grupos e etnias.
Contudo, o fato que mais nos chamou a atenção e inverteu todas as nossas hipóteses foi
o número de alemães processados. Como já foi dito, acreditávamos que encontraríamos vários
casos de alemães sendo ofendidos devido a alguma forma de discriminação ou devido a
disputas por postos de trabalho e por espaços sociais com outros grupos. Na verdade, dos 26
processos analisados, em 18 deles alemães são processados e em apenas oito é que levam a
frente um processo, fato este que nos levou a quantificar os dados obtidos para tentarmos
entender o porque destes acontecimentos.
285
Segundo Wilson de Lima Bastos, apesar de aparentemente as terras da colônia indicarem uma boa fertilidade,
já que eram escuras e bem aguadas, isto não refletiu a realidade. A terra era péssima para o plantio de cereais
compensando apenas o cultivo de hortas e pomares, assim como a criação de aves e animais de pequeno porte.
BASTOS, Wilson de lima. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, descendência e genealogia.
Juiz de Fora: Edições Paraybuna, 1991. p. 86.
134
Tabela 16 – Crimes de injúria em Juiz de Fora
Década Número de crimes Crimes envolvendo alemães
1860 18 3
1870 77 11
1880 46 7
1890 43 2
1900 14 1
1910 14 2
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Quanto ao sexo dos acusados, observa-se a predominância quase absoluta de homens
(88,47%). A ocupação destes homens e mulheres se distribui da seguinte maneira:
Tabela 17 – Profissão dos Réus
Profissão Quantidade %
Funcionário da Cia. União e Indústria. 1 3,85%
Lavrador 1 3,85%
Construtor 1 3,85%
Negociante 9 34,65%
Dona-de-casa 3 11,55%
Cocheiro 1 3,85%
Trabalhador na estrada de ferro D. Pedro II 1 3,85%
Artista 2 7,70%
Ferreiro 1 3,85%
Carpinteiro 3 11,55%
Jornaleiro 2 7,70%
Joalheiro 1 3,85%
Total 26 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
135
Observa-se claramente, que a maioria dos acusados era formada por pessoas de baixa
renda, trabalhadores manuais, funcionários da Cia. União e Indústria, empregados no
comércio e donas-de-casa. Em apenas um caso aparece um alemão alegando ser lavrador, fato
esse que acaba reforçando a hipótese de que os crimes de injúria envolvendo germânicos
seriam manifestações tipicamente urbanas, ocorridas no contato com outros grupos e fora da
colônia agrícola.
Quanto à faixa etária dos acusados, observa-se que a maior parte deles constituía-se de
homens adultos entre 20 e 50 anos.
Tabela 18 – Idade dos Réus
Faixa etária quantidade %
De 20 a 30 anos 4 15,40%
De 31 a 40 anos 11 42,30%
De 41 a 50 anos 5 19,30%
De 51 a 60 anos 4 15,40%
Outros 2 7,60%
Total 26 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Quanto à nacionalidade das pessoas envolvidas em querelas contra alemães, pode-se
dizer que há uma certa desproporção entre os números da amostra e os da população da
cidade. O número de acusados difere um pouco da porcentagem destes grupos na população
de Juiz de Fora no período em análise, já que estrangeiros aparecem com a mesma
representatividade que os brasileiros. As ofensas nas classes populares acreditamos nós,
seriam fruto do número variado de grupos étnicos e sociais que passaram a habitar uma cidade
em transformação para relações tipicamente capitalistas, bem como aconteceriam devido ao
fato dos mais variados grupos étnicos não conhecerem os códigos culturais que regiam as
normas comportamentais e morais dos outros grupos. Além disso, um dos fatores que também
ajudariam a explicar as ofensas dentro do mesmo grupo seria o descumprimento das normas
136
do que James C. Scott
286
chama de Transcrição Pública - falar em público aquilo que só deve
ser dito nos bastidores.
Tabela 19 – Nacionalidade de autores de processos contra alemães
Nacionalidade Quantidade %
Francês 1 5,55%
Alemão 5 27,80%
Português 5 27,80%
Brasileiro 5 27,80%
Italiano 1 5,55%
Espanhol 1 5,55%
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Tabela 20 – Nacionalidade dos réus processados por alemães
Nacionalidade Quantidade %
Francês 1 12,50%
Alemão 5 62,50%
Português 1 12,50%
Brasileiro 1 12,50%
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Com relação aos mesmos dados referentes às vítimas, obtivemos resultados muitos
semelhantes.
286
SCOTT, James C. Domination and the Arts of Resistence. Hidden Transcriptions. New Haven: Yale
University Press, 1990. Transcrições Públicas são as representações de poder produzidas nas interações diretas
entre poderosos e subalternos. “Pública” significa ação que é abertamente declarada à outra parte na relação de
poder e “Transcrição”, no sentido jurídico que utiliza Scott, significa gestos, palavras, ações e expressões
culturais. São, se assim podemos dizer, as representações produzidas por ambas as partes e, por representação,
entendemos o modo através do qual uma determinada realidade social é dada a ler, construída e pensada.
137
Tabela 21 – Profissão das vítimas
Profissão quantidade %
Mascate 1 3,85%
Industrial 3 11,55%
Desconhecida 2 7,70%
Cocheiro 1 3,85%
Dona-de-casa 1 3,85%
Negociante 9 34,65%
Carroceiro 1 3,85%
Engenheiro 1 3,85%
Pedreiro 1 3,85%
Jornaleiro 2 7,70%
Lavrador 1 3,85%
Comendador 1 3,85%
Farmacêutico
1
3,85%
Diretor da escola agrícola
1
3,85%
Total 26 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Observa-se que, assim como os acusados, a maioria das vítimas era formada por
pessoas de baixa renda: trabalhadores manuais, empregados do comércio e donas-de-casa.
Quanto a faixa etária, apesar de não possuirmos todos os dados, verifica-se que, muito
provavelmente, estes se encontram entre os 18 e 50 anos. Por último, cabe dizer que, quanto
ao sexo das vítimas, a maioria absoluta era formada por homens (95,15%).
Quanto ao perfil dos processos, procuramos também perceber o local, a hora e data dos
crimes, bem como buscamos perceber as motivações que poderiam estar por trás das ofensas
propriamente ditas. Em primeiro lugar, percebemos que em quase todos os casos, com a
exceção de três, réus e vítimas já se conheciam. Estes indivíduos na maior parte das vezes
possuíam negócios em comum, eram vizinhos, freqüentavam os mesmos locais de lazer,
possuíam relações de trabalho, que pelos motivos que passaremos a expor, entraram numa
138
forma bem específica de conflito, fato este que nos oferece uma certa peculiaridade dos
processos de injúria.
Em quase todos os casos, os conflitos ocorreram no período de dez às dezenove horas
em dias úteis da semana, ou seja, em horário em que a grande maioria dos envolvidos estava
trabalhando. Isso por si só constitui-se numa particularidade já que boa parte dos crimes
“clássicos”, como os crimes contra a propriedade e a vida, ocorrem ocultamente, a noite e com
certa premeditação. Além disso, as querelas ocorreram, em boa parte das vezes, nas casas dos
envolvidos, nos locais de trabalho, em sociedades beneficentes ou em ambientes onde estava
sendo praticada alguma forma de lazer, revelando-nos certos aspectos da vida cotidiana dos
envolvidos. Como exemplo deste último, podemos citar o processo que o comendador João
Vieira de Azevedo Coutinho moveu contra o ator alemão George Henkel.
Na noite de 31 de março de 1892 o circo de cavalinhos da Companhia Lusitana estava
prestes a iniciar mais dos seus espetáculos quando vários espectadores viram o diretor da Cia.,
o português Henrique Júlio Lustre, ameaçar o menor Mário de Azevedo Coutinho, filho de um
comendador, por acusá-lo de ser ele o “chefe das vaias” feitas aos números apresentados pelo
circo. A situação era tão tensa que se fez necessário que o delegado de polícia, que estava no
local, separasse os dois para que fosse evitada a luta corporal. Foi então que nesse mesmo
momento apareceu George Henkel, ator da companhia que se preparava para entrar em cena,
que em alta voz, proferiu contra Mário os epítetos de “filho da puta, canalha e moleque”,
distintamente em presença de muitas pessoas que como espectadores esperavam o espetáculo.
Percebe-se com este caso, que o momento de lazer poderia também servir de palco para uma
imensidade de conflitos
287
.
Aqui temos um adolescente, filho de um membro da elite local, que foi com os amigos
se divertir assistindo a um espetáculo. Não satisfeito, organizou com os colegas, segundo
algumas testemunhas, a travessura de ficar vaiando tudo aquilo o que era apresentado pela
Companhia lusitana, gerando assim a ira do próprio diretor do estabelecimento bem como de
um ator que, possivelmente ansioso para representar, já entrava em cena sendo vaiado. Por
sorte de Henkel, a Cia. estava excursionando com seu espetáculo para outros Estados e o
processo acabou sendo arquivado.
287
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 167, 04/04/1892. p. 4.
139
Outra coisa que nos chamou a atenção foi que, por trás das ofensas propriamente ditas,
as querelas foram originadas, como mostramos acima, por questões envolvendo dívidas e
negócios, desentendimentos entre vizinhos, brigas de patrões e empregados, desconfiança de
roubo e problemas surgidos na hora do lazer. Acreditamos que estes elementos são capazes de
nos revelarem alguns elementos culturais dos grupos envolvidos, mostrando-nos, além disso,
que a defesa da honra estava ligada a outras questões de cunho social.
Quando verificamos os motivos que estavam por trás das ofensas percebemos que, em
onze dos vinte e seis processos, os motivos centrais das discussões se delineavam em torno de
dívidas e negócios mal resolvidos.
Em 3 de outubro de 1907, João Daibert, filho de alemães e comerciante de carne,
encontrava-se, por volta das dez horas da manhã, no açougue de Raymundo Gomes da Silva, à
Rua Batista de Oliveira. Foi quando então chegou ali Quirino Venâncio Pereira, com quem
Daibert “possuía transações de compra de gado para corte” e passaram a discutir a respeito
da compra de um touro. João Daibert afirmava que teria adquirido o animal por valor que nos
é desconhecido, ao passo que Quirino negava que havia vendido o mesmo animal para
Daibert, afirmando que se o mesmo sustentasse a compra do touro “era porque ele Daibert era
um desgraçado não tendo ele Quirino culpa de Daibert beber”. A partir daí, segundo os
testemunhos, Quirino passou a discutir em tom ameaçador e proferiu a Daibert o epíteto de
filho da puta
288
.
Outro motivo corriqueiro que aparece nos processos como causa das ofensas era a
relação entre patrões e empregados. Num período cercado de relações paternalistas, no qual os
empregados começavam a perder os benefícios deste tipo de relação e a ficar apenas com os
aspectos negativos, este tipo de conflito começou a aumentar.
No dia oito de fevereiro de 1885, às 3 horas da tarde mais ou menos, tendo Pedro
Glazmann chegado à casa de negócios de Nicolau Scoralick, próxima à Escola Agrícola, na
qualidade de seu empregado, dirigiu-se a Scoralick declarando-lhe que não havia mais tripas
para a fabricação de lingüiças, trabalho este que era uma das suas incumbências. Scoralick,
segundo Glansmann, se exaltou sem o menor motivo e declarou que, como seu empregado
havia estado na cidade, deveria ter comprado o material necessário. Pedro Glansmann disse
que não havia comprado tais tripas por não saber que faltava, já que naquela casa sempre
288
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 03/06/1907.
140
abundava tal gênero, a tal ponto de estragar-se e ser jogado fora. Foi isso o bastante para que
Nicolau Scoralick se irritasse e, em altas vozes, mandasse publicamente que Glansmann “fosse
a merda e a puta que o pariu”, chamando-o também de outros nomes tais como: “sacana,
cachorro e filho da puta”. A partir de tal discussão Glansmann foi despedido do que até então
era seu meio e subsistência
289
. Entretanto, o “crime” cometido por Nicolau Scoralick foi
julgado improcedente pelo fato dos testemunhos serem contraditórios.
2.3.2 – Os Temas das Ofensas Verbais
A maneira mais comum de insultar alguém é xingando-a. Entre os alemães que
habitavam em Juiz de Fora de 1863 a 1918, era igualmente afrontoso difamar os parentes do
sexo feminino mais próximos, principalmente a mãe. Insultar alguém com o epíteto de “Filho
da puta” gerou oito processos de ofensas verbais. Além desses, os epítetos usados variavam
em sua riqueza e diversidade, mas concentravam-se em dois temas principais, aqueles que
seguramente teriam efeito máximo nas condições do contexto em questão: o primeiro era
sexual, empregando temas que insinuavam promiscuidade sexual e prostituição. Dessa
maneira, uma alemã de 35 anos chamou sua vizinha brasileira, com a qual constantemente
discutia, de “cadela, bruaca e puta
290
. Uma outra germânica, defendendo sua filha de uma
briga contra uma vizinha brasileira, disse que “a mulher era uma puta
291
, e logo em seguida
tentou puxar o cabelo da ofendida. Esses insultos, ao que parece, foram utilizados unicamente
em querelas envolvendo apenas mulheres, tanto na condição de vítima quanto na de ofensora.
Através da análise dos processos percebe-se também que o tema da promiscuidade sexual
variava ligeiramente conforme a mulher fosse casada ou não, e presumivelmente foram menos
disponíveis no que diz respeito ao uso contra mulheres idosas.
O segundo tema, usado com maior freqüência contra os homens, era o de diversos tipos
de desonestidade comerciais e de atividades criminosas, mais comumente o furto. Acusando
um comerciante e mascate francês de tentar aliciar alguns colonos germânicos para
trabalharem em fazendas de café no interior mineiro e fluminense, o administrador prussiano
289
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 10/2/1885.
290
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 08/01/1872.
291
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 31/07/1874. p. 2.
141
da estação Juiz de Fora, Frederico Kuffa, “rompeu em alta voz e começou a injuriar o
suplicante chamando-o de tratante, ladrão, canalha
292
. Entretanto, os insultos contidos nesse
tema serviram sobretudo para caracterizar àqueles que não cumpriam sua parte em
empréstimos com amigos ou em negócios comerciais. Nervoso devido ao fato de seu vizinho,
o português Antonio Gomes da Silva, ter desfeito a troca de dois imóveis sem o seu
consentimento e com isso, deixado-o de fora de sua casa, o alemão Nicolau Scoralick “rompeu
em injúrias contra o queixoso, dirigindo-lhe, entre outros, os epítetos de safado, ladrão,
gatuno e filho da puta
293
. Da mesma forma, Augusto Kremer, cobrando uma dívida antiga de
seu amigo, André Joaquim Krambeck, ouvindo que este não queria ou podia pagá-lo,
chamou-o de tratante, ladrão e velhaco
294
. Já o português João Antônio Gonçalves Pereira,
ao entrar na casa de um amigo para buscar uma carga de mercadorias que havia comprado,
veio a seu encontro a viúva Catherina Hermann, que habitava na casa vizinha em que ele
estava, e “sem o menor motivo, em alta voz, rompeu em injúrias contra o queixoso, dando-lhe
o epíteto de ladrão, palavra que se referiu duas ou três vezes
295
.
Esses representam a absoluta maioria dos insultos mais comuns, e apenas
ocasionalmente, aparecem outros temas. Ocorreram apenas dois ataques relacionados com o
preconceito étnico. Numa discussão com o português Manoel Marquês Ferreira, o alemão
Simão Limp, irritado com as provocações e com um negócio mal resolvido entre os dois
declarou em altas vozes [...] que o queixoso era um ladrão, filho da puta,
português de
merda que lhe queria furtar
296
. Em outro caso, já citado acima, quando o prussiano Frederico
Kuffa conseguiu capturar o mascate Nathan Meis, chamou-lhe, entre outras coisas, de maneira
ofensiva, de judeu
297
.
Apesar de ser um tema marcante nos outros tipos de crimes analisados, a acusação de
bebedeira apareceu em apenas um caso. Assim podemos supor que as bebedeiras, pelo menos
neste período e pelo menos nos círculos populares, eram socialmente aceitáveis, não
suficientemente passíveis de condenação para serem utilizadas a fim de denegrir o caráter de
alguém – muito menos entre os germânicos, que fundaram quase uma dezena de cervejarias
292
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 50, 29/04/1863. p. 4.
293
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 167, 30/01/1894. p. 3.
294
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 51, 10/09/1870. p. 2.
295
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 30/11/1876. p. 2.
296
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 15/10/1886.
297
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 50, 29/04/1863. p. 4.
142
em Juiz de Fora. Assim, acreditamos que até em certo ponto, a bebedeira poderia ser utilizada
como desculpa para comportamentos inaceitáveis
298
.
Outro tema, bastante incentivado pelas autoridades no período da transição para
relações do tipo capitalista-burguesa, aparece apenas uma vez. O cocheiro alemão, Henrique
Hauck
299
ouviu e viu o brasileiro João da Silva Chaves chamar o português Manoel Marques
Pereira de desordeiro. Esse fato, associado à questão de que em nenhum caso aparece pessoas
insultando outras com epítetos que remetessem a vagabundagem ou ao desgosto pelo trabalho,
pode nos remeter ao fato de que mesmo havendo uma política por parte da elite para
disciplinar a população pobre e trabalhadora em várias cidades do país, esta política não foi
absorvida da mesma forma por todos os segmentos sociais e étnicos
300
.
Outros temas que se poderia imaginar encontrar estão ausentes. As ofensas insinuando
homossexualidade não foram mencionadas. Não existem sugestões de abandonos de filhos, de
aborto, de infanticídio e de incesto, que foram bastante comuns no Canadá francês no final do
século XVII e início do XVIII
301
. Outra questão bastante esperada pelo autor dessas linhas era
aquela referente à higiene pessoal. De acordo com Emílio Willems, os germânicos que
migraram para o Brasil guardavam hábitos higiênicos bem peculiares e razoavelmente
inadequados ao clima tropical
302
. Na Alemanha – como na maioria dos países europeus do
século XIX – o banho diário era praticamente desconhecido. O asseio corporal se limitava à
lavagem diária de rosto e mãos. A roupa íntima costumava ser trocada por ocasião do banho,
geralmente aos sábados. É óbvio que nas condições climáticas locais esses padrões sanitários
eram inadequados
303
e esses fatos nos remetem a duas hipóteses: ou a comunidade germânica
se adaptou aos padrões higiênicos propícios ao clima local ou os hábitos sanitários de boa
parte dos grupos étnicos subalternos possuíam hábitos semelhantes aos costumes dos alemães.
298
Essa questão foi mais aprofundada no capítulo sobre os crimes de homicídios e tentativas de homicídios.
299
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 53, 03/01/1879.
300
Para maiores informações a respeito das “políticas disciplinadoras” inseridas entre as camadas populares ver:
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986., ESTEVES, Martha Abreu.
Meninas Perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989 ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da
pobreza: um estudo sobre o amor, o trabalho e a riqueza através dos processos penais. Dissertação de Mestrado.
Niterói: UFF, 1984., SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem
urbana (1890-1920). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, entre outros.
301
MOOGK, Peter N. “Thieving Buggers” and “Stupid Sluts”: insults and popular culture in New France.
William and Mary Quaterly, third series, 36:4, October, 1979, p. 535. Apud: GARRIOCH, David. Insultos
verbais na Paris do século XVIII. In: BURKE, Peter & PORTER, Roy. História social da linguagem. São
Paulo: Edunesp, 1997. p. 127.
302
WILLENS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes alemães e
seus descendentes no Brasil. 2
a
ed. Rio de Janeiro: Editora Nacional, s. d. p. 91-3.
143
Cabe também ressaltar que, ao contrário de Paris no século XVIII
304
, não aparece nos
processos menção alguma de gestos complementares as ofensas verbais: mostrar dois dedos
para alguém ou fazer-lhe chifres; abaixar as roupas exibindo o traseiro; balançar os punhos ou
pegar uma pessoa pelo colarinho. Havia assim todo um vocabulário de gestos que poderiam
ser utilizados junto com os insultos verbais, mas que no contexto analisado, não aparecem ou
não são relatados nos autos dos processos.
Assim, uma extensão limitada de temas era, portanto, utilizada, e a variedade dos
insultos advinha da habilidade criativa do falante em enfeitar um determinado padrão.
Infelizmente, as informações disponíveis em cada caso não permitem uma análise detalhada
dos fatores que determinavam a opção de um indivíduo por determinadas palavras. Muito
provavelmente foram feitos ajustes de acordo com a identidade da vítima, com referência a
nomes e lugares do seu passado, idade e profissão, ou ocasionalmente, sua aparência física.
Também pode ter havido uma hierarquia dos insultos sobre o mesmo tema, alguns mais
“pesados” que os outros, embora isso não seja observável nas reações dos queixosos e das
testemunhas. No entanto, a maioria dessas variações não mudou o significado literal dos
insultos ou da informação social que transmitiam.
O fato de temas específicos aparecerem no vocabulário local de insultos, enquanto
outros não, ou de que alguns eram mais populares que outros não era uma questão de acaso,
uma vez que refletiam os principais medos e obsessões dos juizforanos bem como da
comunidade germânica, principalmente nos anos posteriores a década de 1880. Eles eram
assombrados pela ascensão dos crimes contra a propriedade (roubo, furto e latrocínio) no
período de “modernização da cidade”. Havia muito pouco o que os alemães pudessem fazer
para proteger seus pertences, visto que não havia muito que fazer para fortalecer as portas e
janelas das casas, pois as mesmas eram abertas com facilidade e não havia muitos lugares para
se guardar os objetos de maior valor. Até o final da década de 1880 não havia bancos na
cidade para deixar o dinheiro e as somas mais vultuosas acumuladas pelos industriais e
grandes comerciantes germânicos, que com freqüência acabavam guardando suas economias
em uma cômoda ou em baixo do colchão. Para os alemães em má situação econômica, ou seja,
303
Idem, p. 92.
304
GARRIOCH, David. Insultos verbais na Paris do século XVIII. op. cit. 134.
144
a maior parte deles, até mesmo um pequeno furto ou invasão doméstica poderia ter
conseqüências calamitosas
305
.
Nas transações comerciais também não havia muita segurança. Os acordos eram em
muitas das vezes acertados verbalmente, sendo a palavra dos envolvidos a maior garantia.
Dessa forma, o menor boato de não pagamento de um empréstimo ou de calote numa
negociação poderia macular a honra dos envolvidos frente à comunidade da qual pertenciam.
Os proprietários de imóveis também eram obcecados pelo temor de perder seus
aluguéis. Como o pagamento era feito apenas no final do período de aluguel, e não
adiantadamente, a quebra de “contratos”, que na maior parte das vezes também eram verbais,
dava origem a muitas queixas. Este foi o caso ocorrido entre o alemão Nicolau Scoralick e o
português Virgílio de Oliveira
306
. Vendo o aluguel da casa em que vivia aumentar de 70$000
para 200$000 por mês, Virgilio, segundo Scoralick, aproveitou a viagem deste para se mudar
para a casa do sogro. Após regressar, Nicolau ficou sabendo do ocorrido e tendo seus direitos
ofendidos, lançou os epítetos de “safado, gatuno, filho da puta e ladrão” sobre a pessoa do seu
ex-arrendatário.
Percebe-se também que as diferenças entre os epítetos dirigidos contra homens e
mulheres refletiam seus diferentes papéis sociais. Era muito mais comum alemães do que
alemãs em profissões ligadas ao comércio, e em situações de pedido de empréstimos para
conhecidos, daí as acusações mais freqüentes de desonestidade profissional ou o
descumprimento dos acordos estabelecidos em negociações contra os homens. O uso mais
amplo de sugestões de atividade criminosa ou desonesta contra homens; e, acima de tudo,
promiscuidade sexual, contra mulheres, reflete possivelmente a situação real da criminalidade
entre os sexos, mas reflete certamente a judicial: um número pequeno de mulheres era preso
ou julgado por ofensas graves
307
. E, o que é mais importante, tal uso define as formas de
delinqüência nas quais homens e mulheres eram considerados mais sujeitos de se envolverem
e, dessa forma, reflete em certa medida a mentalidade da época e do grupo analisado.
O que fica claro é que os valores refletidos nos insultos eram fundamentalmente
aqueles necessários para a sobrevivência e a auto-afirmação no contexto social e econômico
305
Para maiores informações ver o capítulo dedicado aos crimes de roubo/furto envolvendo germânicos nas
condições de vitimas e réus.
306
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 30/01/1894.
307
Dos 26 processos de ofensas verbais por nós coletados, em apenas três casos aparecem mulheres envolvidas e
dentre esses em somente um dos casos uma mulher foi condenada.
145
no qual essas pessoas se encontravam. Dessa forma os insultos serviam para reforçar o sistema
de valores dominantes, no que diz respeito a determinados papéis que as pessoas deveriam
representar.
Tabela 22 – Os temas dos insultos (processos de injúrias verbais – 1863-1918)
Tema e Insulto Número
Sexual
Puta
Filho da Puta
Cadela
Maroto
Sacana
“Mantenedor de relações sexuais com as
empregadas devido à posição superior”.
2
8
1
1
1
1
Desonestidade nos negócios
Velhaco
Tratante
Canalha
Safado
Cachorro
3
3
4
1
1
Criminais
Ladrão
Gatuno
14
2
Aparência Física
Bruaca 1
Ofensas Étnicas
Judeu
Português de merda
1
1
146
Diversos
Bêbado
Burro
Mandado
Moleque
Miserável
Desordeiro
Assassino
1
1
1
1
1
1
1
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Se examinarmos mais de perto o relacionamento dos participantes dos crimes de
injúrias verbais, com a precisão permitida pelas fontes, surgem alguns padrões. A grande
maioria das ofensas foi trocada entre pessoas que se conheciam, freqüentemente como
vizinhos, colegas, como indivíduos que mantinham algum tipo de relacionamento comercial,
ou que possuíam dívidas entre si. Quase sempre pertenciam ao mesmo nível social e somente
em três casos havia posição de dependência entre as partes.
Como exemplo de querelas envolvendo dívidas de negócios podemos citar o caso
relativo ao teuto-descendente e industrial Henrique Müller e o lavrador Cândido Rodriguez de
Oliveira
308
, de 30 anos de idade casado, natural de Barbacena, mas morador em Juiz de Fora.
No dia 23 de outubro de 1916, pelas duas e meia da tarde, aproximadamente, achava-se Müller
no interior de sua oficina, no centro da cidade (Av. Rio Branco), “ocupado em seus afazeres
cotidianos”
309
quando pelo referido estabelecimento entrou o ofensor Candido Rodriguez,
com quem Muller mantinha transações comerciais. Segundo Cândido, em seu depoimento, ela
havia ido à oficina para ajustar as contas pelos serviços de marcenaria que havia prestado e
assim receber a importância que lhe era devida. Como Müller passou a duvidar dos termos do
ajuste anteriormente feito por tal serviço, Cândido se sentiu ofendido e, em altas vozes,
ponderou que não era canalha para adulterar o que convencionara no sentido de exigir mais do
que era devido, passando a chamar Müller de canalha e também o desafiando para luta física.
308
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 06/11/1916.
309
Idem, p. 2.
147
Três anos antes, em 25 de abril de 1913, os amigos Jacob Betschlutf e Felippe George
310
, ambos filhos de germânicos, se encontraram, mais ou menos sete e meia da noite, na porta
da Confeitaria Rio de Janeiro, na rua Halfeld. Como Jacob havia vendido madeiras a Felippe e
só havia recebido 1/3 do valor total da compra, aproveitou a ocasião para cobrar-lhe o restante
da dívida. Nesse momento Felippe disse, por motivos que desconhecemos, que só pagaria a
dívida judicialmente, fato este que deixou Jacob “nervoso e exaltado”
311
. Após breve
discussão, Jacob chamou felippe de ladrão que respondeu: “ladrão é você”. De acordo com o
advogado de Felippe o epíteto utilizado por ele – ladrão – não era ofensivo, pois o uso do
mesmo era usual entre eles. Entretanto, parece que essa desculpa não foi aceita pelo juiz visto
que Felippe foi condenado a dois meses de prisão e ao pagamento de uma multa de 275$000.
Mas, devido a relação de amizade e parentesco indireto entre os dois (Jacob era primo da
mulher de Felippe), aparece uma carta de Jacob enviada ao Juiz Municipal perdoando o réu
que foi imediatamente solto.
Por último, gostaríamos de citar um caso envolvendo discussão entre vizinhos. No dia
31 de julho de 1872, o carroceiro José Luiz das Chagas, brasileiro e morador no bairro de
botanágua, abriu um processo contra a alemã Eva Heldt, de 45 anos
312
. D acordo com José
Luiz, no dia 23 daquele mês, por volta do meio-dia, quando chegava em casa, viu a ré
xingando sua esposa, ameaçando-a de espancamento e puxando o cabelo da mesma; isso tudo
associado a, segundo José, alusões torpes do tipo – “Você é uma puta”. De acordo com a
alemã Eva Heldt, tal situação ocorreu devido a uma discussão anterior, por motivos
desconhecidos, da mulher do queixoso com a filha da germânica, de nome Margarida.
310
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 28/04/1913.
311
Idem, p.15.
312
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 31/07/1872.
148
Tabela 23 – Relação entre os envolvidos
Relacionamento entre os envolvidos Número %
Vizinhos 8 30,77
Transações comerciais 6 23,07
Colegas 5 19,23
Nenhuma 4 15,38
Patrão x empregado 3 11,55
Parentes 0 0,0 %
Total 26 100%
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Uma coerência semelhante em relação aos envolvidos aparece nos locais nos quais as
ofensas foram proferidas. Na maior parte das vezes os epítetos foram usados em exteriores: na
rua, em frente à casa de algum dos envolvidos, na porta de botequins e padarias, em via
pública, na vizinhança, entre outros. O público era composto principalmente por vizinhos,
colegas de trabalho, família e amigos. A publicidade dos insultos era constantemente
enfatizada nas queixas: “e lançou o querelante o epíteto de canalha, o que distintamente
ouvido pelas pessoas que por lá passavam
313
; “e sem o menor motivo, em alta voz, rompeu
em injúrias contra o queixoso, dando-lhe o epíteto de ladrão, palavra a que se referiu duas ou
três vezes, e que tudo foi ouvido por pessoas que passavam por ali”
314
. Além disso, em
algumas vezes eram repetidos em voz alta, como fica claro nos trechos acima citados.
Outro fato que fica claro é a ausência de injúrias proferidas entre parentes. As
contendas familiares geralmente ocorriam nos espaços internos, em particular. É provável que
os vizinhos mais próximos soubessem bastante sobre elas, visto que as casas, principalmente
na colônia de baixo, local de algumas querelas, ficavam muito próximas e as paredes não eram
muito grossas. Acreditamos que os insultos utilizados eram praticamente os mesmos, mas seus
significados eram um pouco diferentes. Continuavam a ser expressões de antipatia e/ou
desprezo, porém não possuíam a mesma importância no sentido de envergonhar a vítima, já
que não eram direcionados em público e não exigiam intervenção.
313
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 28/04/1913.
314
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 30/11/1876.
149
Tabela 24 – Local onde os insultos foram proferidos
Local Número
Escritório da Cia. União e Indústria.
Do lado de fora da casa do réu, vítima ou vizinhos.
Do lado de fora da casa de negócios do réu, vítima ou testemunhas.
Local de trabalho e adjacências.
Na sede da Sociedade Beneficente Alemã.
Outros locais.
1
11
8
3
1
2
Total 26
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Os insultos entre estranhos também eram ligeiramente diferentes ocorrendo quase
sempre fora da vizinhança onde alguma das partes era conhecida. Nesse caso a vergonha de ter
sido insultado não devia ser tão grande porque o oponente e o público não necessariamente
teriam que manter relações posteriores, havendo assim menor possibilidade de descrédito
permanente. Isso explica porque as discussões entre brasileiros com estrangeiros em suas
respectivas colônias não eram muito divulgados, a menos que um dos lados fosse seriamente
injuriado e exigisse compensação. Também entre pessoas desconhecidas, os insultos poderiam
não estar tão bem adequados ao oponente e, provavelmente, seriam “epítetos padrões”
escolhidos casualmente, não denegrindo profundamente assim a imagem do ofendido.
Percebe-se, com esses breves comentários, que o contexto poderia mudar
consideravelmente o significado social dos insultos proferidos. Mesmo assim, em
determinadas disputas, também poderia haver uma interação entre o vocabulário, as palavras
escolhidas, e o contexto, de forma a afetar a informação transmitida. Por exemplo, uma causa
bastante comum de disputas era negócios mal sucedidos, com um dos lados afirmando que
teria sido passado para trás. Foi o que ocorreu no processo movido pelos irmãos Modesto e
Augusto Daibert
315
. No dia 28 de janeiro desse ano, o espanhol Ricardo San Martin dirigiu-se
às terras de Martinho e Augusto Daibert e lhes pediu contas dos seus animais, dizendo que os
mesmos haviam desaparecido dos pastos dos querelantes. Não se conformando com as
respostas dos autores do processo de que não sabiam do paradeiro dos animais, Ricardo San
Martin passou a chamar os irmãos Daibert de “Ladrões de animais, ameaçando-os ainda de
315
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 169, 09/02/1918.
150
fazer suas casas voarem pelos ares por meio de dinamite
316
. Entretanto, este processo acabou
revelando as atitudes dos queixosos que refletiam suas posições na comunidade na qual
viviam. De acordo com a testemunha do processo, o brasileiro José Cesário Carneiro Leão,
por motivo de sua profissão – era escrivão da polícia – sabia que muitas queixas já haviam
sido dadas contras os Daibert, e que muitas pessoas da cidade desconfiavam serem eles
gatunos de animais, entretanto o depoente (José Carneiro Leão) não podia provar
317
.
Nesse casso, observamos que o motivo da discussão tornou possível o uso de ofensas
que se concentrassem no tema de roubo. Estavam, portanto, transmitindo a informação de que
as pessoas envolvidas nesses casos eram indignas de confiança e assim indesejáveis, e o
ofensor – Ricardo San Martin – tinha o agravo que o público era convocado a testemunhar e
julgar, e, ao mesmo tempo, que os ofendidos eram realmente ladrões, no mínimo, em
potencial. O significado literal era então, nesse contexto, parte de uma mensagem, e assim era
entendida pelo público, ao passo que se a disputa tivesse ocorrido por algo diferente, o epíteto
“ladrão” ou “gatuno” poderia ser entendido em um sentido mais genérico.
Como exemplo dessa última situação podemos citar a querela ocorrida entre os
alemães Pedro Gerheim e Pedro Griese
318
. Desde meados do ano de 1884 Pedro Griese se
tornou inimigo de Pedro Gerheim pelo fato de entender que Gerheim era culpado, na
qualidade de membro da diretoria da Sociedade Beneficente Alemã, de não lhe terem pago
determinada quantia que os sócios doentes que não pudessem trabalhar tinham direito e, por
esse motivo, passou a insultar o queixoso exasperadamente em várias ocasiões. Assim, no dia
3 de agosto de 1884, Griese dirigiu contra Gerheim, no salão da sede da Sociedade, os epítetos
de maroto, tratante, velhaco e ladrão; “isto em altas vozes que foram ouvidas por muitas
pessoas e normalmente por Henrique Stieboldt, Antonio Scoralick, Augusto Einfield e Antonio
e Jacob Clemens
319
. Fica bastante claro na leitura do processo que, em nenhum momento,
Gerheim passou a ser visto como um gatuno e merecedor da desconfiança de sua comunidade.
Apesar disso, na qualidade de membro da diretoria da Sociedade Beneficente Alemã, sentiu
que sua honra havia sido maculada na presença de seus pares e, por isso, abriu um processo
contra Griese.
316
Idem.
317
Ibidem, p. 7.
318
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 04/08/1884.
319
Idem, p. 2.
151
Nesse tipo de contexto, as ofensas verbais acabavam preenchendo algumas funções
fundamentais. Primeiramente, terminavam levando para a comunidade mais próxima os
problemas cotidianos de relacionamentos, se o oponente não entrava na batalha, os insultos
acabavam insinuando a vitória de quem os proferia e a vergonha pública da vítima. Raramente
existe alguma sugestão nas declarações das testemunhas de que os insultos pudessem
repercutir no agressor. E, pelo fato de o público e os participantes se conhecerem bem, a
vitória era convertida em precedência social, criando uma hierarquia na qual a pessoa era
considerada mais admirável e a outra menos digna de consideração. A eficácia dos insultos
dependia então da existência de um público formado por pessoas conhecidas pelas partes, pois
a questão da honra era importante porque conferia às pessoas um lugar diferenciado no seio da
comunidade: não era um valor que era imposto de cima ou que era filtrado da influência das
classes superiores.
Entretanto, não podemos nos esquecer que a participação de um público mais amplo
somente se deu em querelas envolvendo germânicos e outros grupos étnicos. Em discussões
envolvendo somente alemães, um fator importante tornava a publicidade das ofensas mais
restrita. Em alguns desses processos, principalmente aqueles anteriores a 1890, quando é
perguntado a uma testemunha quais foram as ofensas proferidas pelas partes, ela dizia “não
entender o que foi falado por ter sido dito na língua dos alemães
320
. Nesse sentido, percebe-
se que, em ocasiões semelhantes a essas, havia indiretamente a delimitação entre membros e
não-membros da comunidade em questão. Mas o fato de haver uma contínua dicotomização
entre membros e não-membros nos permite especificar a natureza de continuidade e investigar
formas e conteúdos culturais em mudança. Se este grupo mantinha sua identidade quando seus
membros interagiam com outros, disso discorre a existência de critérios para o pertencimento,
assim como as maneiras para assinalar o pertencimento ou exclusão. De certa forma, a
fronteira étnica acabava canalizando a vida social já que a identificação de uns como membros
de um mesmo grupo étnico implicava compartilhamento de critérios de avaliação e
julgamento.Ou seja, era pressuposto que ambos estavam “jogando o mesmo jogo” e isso
implicava que havia entre eles um potencial para diversificação e expansão de suas relações
sociais. Por outro lado, a dicotomização que considerava os outros como estranhos implicava
reconhecimento de limitações quanto às formas de compreensão compartilhadas, de diferenças
320
AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 10/02/1885 – declarações da quarta testemunha.
152
nos critérios para o julgamento de valor e de performances, bem como uma restrição de
interação àqueles setores em que se pressupunha haver compreensão comum de interesses
321
.
Associado a isso tudo, um importante pré-requisito para que a utilização das ofensas
verbais veicule uma variedade de informações é, como enfatizamos, a existência de um código
comportamental e lingüístico. Certas palavras e imputações eram entendidas como insultuosas
e, quando usadas de uma determinada forma, tinham uma importância convencional que era
reconhecida da mesma forma pelo falante, pela vítima e pelo público. Da mesma forma, o
contexto dos insultos, a maneira como eram utilizados e a gama de informações que o
contexto veiculava também eram culturalmente determinadas. Neste sentido, as ofensas
verbais foram utilizadas como um instrumento para o uso contra o oponente, uma rejeição
simbólica, um meio de forçá-lo a desistir de sua postura mediante ao vexame público. Elas
tornaram possível a expressão de um agravo em uma arena na qual a questão poderia ser
resolvida com um mínimo de danos. A função social dos insultos estava assim adaptada ao
condicionamento social e às condições da sociedade juizforana e da comunidade germânica
local.
Desta forma, a concordância com diferentes normas em contextos variáveis, ou entre
grupos étnicos diferentes, ilustra as diferenças sociais que eram percebidas e observadas na
época. Em um sentido mais abrangente, estudar a maneira como essas palavras foram
utilizadas nos permitiu (de uma forma bem superficial é verdade) entrar em partes do mundo
mental das pessoas do passado. A forma como se expressavam refletia suas preocupações e
revela de alguma forma, os modelos dominantes e os valores que foram articulados.
321
BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 25-69.
153
Tabela 25 – Insultos coletados nos processos de ofensas verbais (1868-1917)
Insultos proferidos por germânicos Insultos proferidos contra germânicos
Ladrão 9 Ladrão 5
Filho da Puta 4 Filho da Puta 4
Tratante 2 Canalha 2
Canalha 2 Velhaco 2
Puta 2 Desordeiro 2
Judeu 1 gatuno 1
Bêbado 1 Tratante 1
Mandado 1 Maroto 1
Burro 1 Miserável 1
Moleque 1 Assassino 1
Cachorro 1
Sacana 1
Português de merda 1
Velhaco 1
Safado 1
Bruaca 1
Cadela 1
Gatuno 1
“Mantenedor de
relações sexuais com
as empregadas
devido à posição
superior”.
1
Fonte: AHMJF, processos criminais de Injúria, 1865/1917.
Analisaremos agora os crimes de furto, roubo e dano que apesar de estarem contidos
no terceiro capítulo, seguem a mesma perspectiva de análise dos demais crimes pesquisados.
Percebemos que os germânicos, segundo tais processos, se encaixavam mais na condição de
vítimas do que de réus. Além disso, percebemos também o crescimento da insegurança entre
os alemães, principalmente entre os comerciantes, vítimas primordiais deste tipo de crime.
154
CAP. 3 – OS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE: FURTOS, ROUBOS E DANOS.
Obviamente um dos primeiros fatores que possibilitavam a existência de queixas
contra furto ou roubo era o fato de que a noção de propriedade privada e individual já estava
bastante disseminada no período em questão, não só entre as classes proprietárias mas em
todas as camadas da população local, inclusive entre a comunidade germânica. Isso indica,
portanto, que para todos esses grupos, existiam normas e maneiras legítimas de se adquirir a
propriedade de bens e estas eram definidas socialmente onde determinados grupos possuíam
interesses diversos em relação a outros.
De acordo com o Código Criminal do Império do Brasil, o ato de furtar seria:
Art. 257. Tirar a cousa alheia contra a vontade de seu dono, para si, ou para
outrem. Penas – de prisão com trabalho por dois meses a quatro anos, e de
multa de cinco a vinte por cento do valor do furtado. Art. 258. Também
cometerá furo e incorrerá nas penas do artigo anterior, o que tendo para
algum fim recebido cousa alheia por vontade de seu dono, se arrogar depois
domínio, ou uso, que lhe não fora transferido. Art.259. Tirar sem autorização
legal a cousa própria, quando se achar em poder de terceiro por convenção, ou
determinação judicial, e o terceiro com a tirada sentir prejuízo ou estiver a
sofre-lo. Penas – as mesmas do artigo antecedente. Art. 260. Mais se julgará
furto a achada de cousa alheia perdida, se não manifestar ao Juiz de Paz do
distrito, ou Oficial de quarteirão, dentro de quinze dias depois que for achada.
Pena – de prisão com trabalho por um mês a dois anos, e de multa de cinco a
vinte por cento do valor da cousa achada
322
.
Já o Roubo aparece qualificado no mesmo Código da seguinte maneira:
Art. 269. Roubar, isto é, furtar fazendo violência à pessoa, ou às cousas.
Penas – galés por um a oito anos. Art. 270. Julgar-se-á violência feita à
pessoa, todas as vezes que por meio de ofensas físicas, de ameaças, ou por
outro qualquer modo, se reduzir a alguém a não defender as suas coisas.
Julgar-se-á violência às cousas, todas as vezes que destruírem os obstáculos à
perpetração de roubos, ou se fizerem arrombamentos exteriores ou interiores.
Os arrombamentos se considerarão feitos todas as vezes que se empregar a
força, ou qualquer instrumento ou aparelho para vencer os obstáculos. Art.
271. Se para a verificação do roubo, ou no ato do dele, se cometer a morte.
Penas – de morte no grau máximo; galés perpétuas no médio; e por vinte anos
322
Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert. 1873. p. 181-3.
155
no mínimo. Art. 272. Quando se cometer alguma outra ofensa física,
irreparável ou de que resulte deformidade, ou aleijão. Penas – de galés por
quatro a doze anos. Se a ofensa física resultar grave incômodo a saúde ou
inabilitação de serviços por mais de um mês – galés do dois a dezessete anos.
Art. 273. Também se reputará roubo, e como tal será punido, o furto feito por
aquele que se fingir empregado público e autorizado para tomar a propriedade
alheia. Art. 274. A tentativa de roubo, quando tive verificado a violência ainda
que não haja a tirada de cousa alheia, será punida como o mesmo crime
323
.
Ao analisarmos as mudanças advindas nessas duas áreas com o Código Penal de
1890
324
, percebe-se que enquanto a cominação da pena pela prática de furto variava de acordo
com o valor do objeto subtraído, a pena referente ao crime de roubo independia do valor do
objeto, oscilando entre dois e oito anos
325
.
Neste sentido, buscaremos perceber, a partir de agora, como a comunidade germânica
de Juiz de Fora se relacionou com questões relativas ao furto e ao roubo durante o período de
1861 a 1912. Através de 14 processos criminais analisaremos se estes indivíduos se
encontravam mais na categoria de acusados ou na de vítimas; observaremos qual era o perfil
desses alemães, qual era o tipo de objetos subtraídos e se a sua retirada se dava por meio do
furto ou do roubo. Em outras palavras, procuraremos descrever em que medida os germânicos
estiveram envolvidos com estes delitos bem como analisaremos qual foi a postura do aparato
jurídico local frente a esses crimes e como categorias sociais mais amplas foram utilizadas na
condenação ou absolvição dos envolvidos.
3.1 –
O perfil dos envolvidos e dos crimes
De acordo com os processos criminais encontrados, observamos que os roubos e furtos
não se manifestaram tão plenamente entre os germânicos que habitavam em Juiz de Fora, visto
que entre os anos de 1861 e 1912, apenas nove alemães ou teuto-descendentes registraram
queixa de furtos ou roubos e o mesmo número de germânicos foram acusados de cometerem
tais práticas. Se compararmos esses números com o total de crimes contra a propriedade ou
323
Idem. p. 183-4.
324
Código Penal Brasileiro (Dec. n. 847, de 11 de outubro de 1890). Por Affonso Dionysio Gama. 2
a
Ed. São
Paulo: Saraiva & C. Editores, 1929, p. 370-79.
325
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano... op. cit. p. 143-4.
156
contra a pessoa e a propriedade registrados pela polícia entre os anos de 1851 e 1900,
enumerados nas tabelas 10 e 11, observaremos que os germânicos locais pouco se envolveram,
tanto como vítimas ou réus, no desenvolvimento deste tipo de delito, já que ocorreram em Juiz
de Fora, nesse mesmo período, 307 crimes contra a propriedade, pública e privada, e 167
delitos contra a pessoa e a propriedade. Neste sentido, faz-se necessário apreendermos o perfil
dos teutos relacionados com esses crimes para tentarmos compreender o porque dessa amostra
reduzida no total de crimes cometidos. Comecemos pelas vítimas.
Tabela 26- Criminalidade em Juiz de Fora (1851-1890)
DELITO QUANTIDADE
Crimes Públicos 103
Crimes Particulares – Contra a Liberdade Individual 11
Crimes Particulares – Contra a Segurança da Pessoa e da Vida 771
Crimes Particulares – Contra a Segurança da Honra 192
Crimes Particulares – Contra a Segurança do Estado Civil Doméstico 2
Crimes Particulares – Contra a Propriedade 180
Crimes Particulares - Contra a Pessoa e a Propriedade 89
Crimes Policiais 37
Outros 203
TOTAL 1588
Fonte: AHMJF. Fundo Benjamin Colucci. Processos Criminais (1851-1890). Adaptado de GUIMARÃES,
Elione Silva. Violência entre parceiros de cativeiro, op. cit.
157
Tabela 27 – Criminalidade em Juiz de Fora (1891-1900)
DELITO QUANTIDADE
Crimes Contra a Existência Política da República 17
Crimes Contra a Tranqüilidade Pública 10
Crimes Contra o Livre Gozo dos Interesses Individuais 24
Crimes Contra a Boa Ordem e Administração Pública 15
Crimes Contra a Fé Pública 09
Crimes Contra a Fazenda Pública 01
Crimes Contra a Segurança da Honra e da Honestidade 40
Crimes Contra a Segurança do Estado Civil 04
Crimes Contra a Segurança da Pessoa e da Vida 587
Crimes Contra a Honra e Boa-Fama 41
Crimes Contra a Propriedade Pública e Particular 127
Crimes Contra a Pessoa e a Propriedade 78
Contravenção em Espécie 36
Auto de corpo-de-delito e Inquéritos (Acidentes, Morte Natural,
Crimes Não Identificados Pela Leitura Do Documento)
60
TOTAL 1.048
Fonte: AHMJF. Fundo Benjamin Colucci. Processos Criminais (1891-1900).
De acordo com os dados referentes às vítimas de furto ou roubo, somente uma mulher
de origem germânica acabou tendo seus bens lesados. Em quase todos os processos foram os
germânicos do sexo masculino os maiores prejudicados por este tipo de delito. Com relação à
idade, os processos somente revelam a idade de três indivíduos do sexo masculino: dois com
42 anos e um com 39. Mesmo com poucos dados a esse respeito, percebe-se através do estado
civil que se tratava de homens adultos, já que somente três das vítimas eram solteiras sendo as
restantes casadas. Com respeito às profissões das vítimas obtivemos os seguintes dados:
158
Tabela 28 – Atividades profissionais das vítimas de furto e roubo
Profissão Quantidade
Administrador da Estrada JF
Fazendeiro
Negociante
Lavrador
Alfaiate
Do lar
Desconhecido
1
5
4
1
1
1
1
Total 14
Fonte: AHMJF, processos criminais de furto e roubo, 1861-1912.
Diferentemente dos dados obtidos para os crimes de homicídio e tentativa de
homicídios, configuram-se aqui indivíduos não só detentores de ofícios manuais, mal
remunerados e praticantes de atividades domésticas. Encontram-se homens de posses,
pertencentes ao que poderíamos chamar de uma “classe média”, no caso principalmente os
negociantes germânicos, proprietários de casas de “secos e molhados”, locais onde eram
vendidos materiais de construção, aviamentos, bebidas e alimentos, entre outras coisas. Como
exemplo da qualidade e quantidade de dinheiro que circulava dentro de uma casa de negócios
alemã e, conseqüentemente, do lucro que ali era obtido, podemos citar o roubo ocorrido na
loja Frederico Hauck e Cia. De uma escrivaninha que ficava no interior desse estabelecimento
foram subtraídas “14 Libras esterlinas, nove moedas de prata no valor de 1$000 cada uma,
treze de prata no valor de 500 réis cada uma, e três de prata no valor de 200 réis cada uma;
duas moedas bolivianas no valor de 2$000 cada uma; três de níquel no valor de 400; duas de
cobre, ambas no valor de 70 réis e 28$500 em notas do tesouro nacional”. Além dessa quantia
em dinheiro, foram roubados os seguintes objetos: “[...] alfinete de ouro próprio para peito de
senhora, um par de brincos de ouro, um revolver de seis tiros com capa, cinturão e 11 balas,
uma gravata de seda preta, um chapéu novo com capa e quatro lenços brancos
326
.
Além dos negociantes, aparecem na lista cinco fazendeiros, em sua maior parte
brasileiros produtores de café, com a exceção do ítalo-germânico Guilherme Kennitz Capelle,
que em cuja fazenda era criada uma enorme quantidade de galináceos que, na madrugada de
159
22 de novembro de 1912, foram retiradas dos galinheiros e repassadas para o comerciante
italiano João Marioza
327
. Em todos os casos envolvendo roubos nesse tipo de propriedade os
prejuízos foram razoáveis. Da fazenda de Herculano Pinto da Costa, fronteiriça à Colônia de
Cima – atual São Pedro –, foram retiradas por Pedro Munck e família uma quantidade de
madeira avaliada em 100$000, as quais foram vendidas para a própria Cia. União e
industria
328
. Já o prejuízo do fazendeiro Joaquim Nogueira Jaguaribe foi bem menor. No dia 3
de outubro de 1874 teve um capado de cor “russo escura” furtado de sua propriedade por dois
escravos de nomes desconhecidos. Entretanto, alguns empregados de Jaguaribe descobriram
que tal animal fora vendido para o comerciante alemão Pedro José Ester, dono de uma casa de
“secos e molhados” e conhecido no bairro de botanágua como receptador e vendedor de
objetos furtados
329
. Cabe ressaltar que prejuízo considerável obteve o fazendeiro e Tenente-
Coronel Antonio Caetano de Oliveira Horta. De sua Fazenda “Liberdade” foram subtraídas,
por seus próprios escravos a mando do comerciante alemão Jacob Draxler, madeiras avaliadas
em 400$000 e cerca de 70 arrobas de café. Segundo os peritos o valor do café roubado se
encontrava na casa dos 5:000$000
330
.
O que estamos querendo dizer é que poucos foram os ladrões que atuaram contra
alemães pobres já que somente quatro das vítimas podem ser consideradas como pertencentes
à classe subalterna. A grande maioria dos germânicos que tiveram seus bens furtados e
roubados ou possuíam um comércio minimamente rentável ou posses que lhes davam
rendimentos seguros, o que nos explica o porque de mais de 60% das vítimas se enquadrarem
em um setor social mais rentável. Além disso, acreditamos a partir desses dados e de outros
que estaremos analisando, que este tipo de criminalidade, diferentemente das demais, não
atuou como um mecanismo de resolução de conflitos interpessoais dos germânicos entre si ou
com outras etnias, mas sim refletia na maior parte dos casos, a necessidade de sobrevivência
de alguns indivíduos (nos casos de furto de madeira), bem como refletia a ação de
delinqüentes em um momento de crescente combate aos crimes contra a propriedade privada.
Quanto à nacionalidade das vítimas em crimes envolvendo germânicos, obtivemos os
seguintes dados:
326
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 64, 03/09/1877.
327
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 210, 22/11/1912.
328
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 56, 18/08/1874.
329
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 56, 03/10/1874.
330
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 21/09/1875.
160
Tabela 29 – Nacionalidade das vítimas de furto e roubo
Nacionalidade Quantidade
Alemão
Brasileiro
Português
9
4
1
Total 14
Fonte: AHMJF, processos criminais de furto e roubo, 1861-1912.
Da mesma forma que se deu entre os crimes de homicídio, pode-se dizer que há uma
certa desproporção entre os números da amostra e os da população da cidade. O número de
autores de processos contra alemães e de vítimas dos mesmos difere bastante do percentual
destes grupos na população de Juiz de Fora no período em análise. Acreditamos que uma das
hipóteses explicativa dessa situação seria que os furtos e roubos envolvendo germânicos
seriam manifestações intraétnicas, ou seja, um problema vivenciado dentro da própria
comunidade alemã que revela aspectos significativos dos relacionamentos entre alguns teutos.
Com relação aos réus acusados de furtos e roubos obtivemos dados um pouco
diferentes em comparação para os mesmos obtidos para as vítimas. Com respeito ao sexo,
ocorreu uma acentuada desproporção entre homens e mulheres, sobretudo quando se
comparam esses dados com a distribuição dos sexos na população do município de Juiz de
Fora. Tal fato acaba sedimentando a opinião preponderante no senso comum de que as
mulheres se não cometiam menos crimes que os homens – devido ao papel da mulher na
sociedade, sua forma de inserção, seu confinamento no espaço doméstico, etc. – eram, no
mínimo, menos propensas a serem presas e punidas. Com relação à idade, encontramos
homens entre os 16 e os 60 anos, com predomínio de casados entre os 21 e 49 anos.
Já o quesito profissão revelou dados bem diferentes com respeito à das vítimas:
161
Tabela 30 – Profissão dos réus de furto e roubo
Profissão Quantidade
Oleiro
Colono
Negociante
Lavrador
Escravo
Desempregado
Sapateiro
Carpinteiro
Jornaleiro
1
1
3
4
2
1
3
1
1
Total 17
Fonte: AHMJF, processos criminais de furto e roubo, 1861-1912.
Obs: O número de réus ultrapassa o de vítimas porque, em alguns processos, os crimes
foram cometidos por mais de uma pessoa.
O que alguns desses dados nos revelam é que foram poucos os casos em que os réus
eram formados pelos integrantes do “mundo da delinqüência”. Na maior parte dos casos, os
acusados eram pessoas de origem pobre ou humilde que foram ocasionalmente acusadas sem
maiores fundamentos reveladores de criminalidade, como por exemplo, em disputas de
vizinhos, se classificando também na categoria de receptadores. Percebe-se que, com a
exceção de três negociantes acusados de serem receptadores, o restante dos réus era formado
por trabalhadores manuais, colonos e desempregados que, com algumas exceções, estavam
enquadrados na categoria de delinqüentes.
De acordo com Boris Fausto, os delinqüentes separam-se da “gente honesta” por meio
de classificações e alguns sinais tais como: cor, traje, uso de certas expressões, jeito de andar
ou modo de ser. Neste sentido, um sistema de identificação delimitava formalmente essas
figuras, facilitando a criação de uma categoria de suspeitos, submetidos assim à vigilância
331
.
Segundo este autor, no período que vai da última década do século XIX ás primeiras do século
XX, a classificação foi sendo implantada gradativamente em São Paulo. De fato a fotografia,
introduzida em 1891, foi por alguns anos o elemento básico de identificação de delinqüentes
331
Fausto, Boris. Crime e Cotidiano... op. cit. p. 146.
162
em São Paulo. O fotógrafo policial organizava uma galeria de retratos numerados, constando
de cada um deles a legenda descritiva de “gatuno”, “passador de contos” etc. Já em 1902 foi
introduzido o sistema antropométrico, inspirado nas teorias de Bertillon. A partir de então os
sinais do corpo começaram a ganhar significação, como as saliências faciais ou o tamanho da
caixa craniana. Entretanto, pouco mais de cinco anos depois se abandonou este sistema em
prol do sistema Vucetich de datiloscopia – impressão digital. Assim, o sistema de
identificação permitia a separação dos honestos dos delinqüentes. Como disse Foucault, a
reincidência não visa o autor de um crime definido por lei, mas sim o delinqüente, indivíduo
portador de uma certa vontade que manifesta seu caráter intrinsecamente criminoso
332
.
Diferentemente do caso paulista, não possuímos evidências de que tais métodos
identificadores tenham sido utilizados aqui de forma sistemática até a primeira década do
século XX. Mesmo assim, percebemos em alguns criminosos o esforço para apagar as marcas
que o identificavam como delinqüente: o nome, a idade, a profissão, o grau de instrução e a
idade, pois de certa forma, a idade baixa diminuía a pena. Declarar uma profissão e provar seu
exercício também atuava na limitação do estigma clássico de infrator: o de vagabundo. Além
disso, a situação de desemprego e a ausência de residência fixa eram ressaltadas como fortes
indícios de responsabilidade criminal. Considerados pelo promotor como “indivíduos
vagabundos e sem domicílio, desconhecidos nessa cidade
333
, os três acusados de roubar a
casa de negócio do germânico Jacob Heldt também buscaram apagar certas marcas. Em
primeiro lugar, apesar da desconfiança do promotor, ambos afirmaram ter menos de 18 anos
bem como buscaram, sempre que perguntados, afirmar que possuíam residência fixa em
Campinas – apesar de algumas testemunhas declararem que eles eram conhecidos em Barra do
Piraí – e também que eram sapateiros, pois provavelmente sabiam que o fato de mostrar uma
profissão minimizaria a afirmação do promotor. Contudo, foram apreendidas em poder dos
mesmos alguns objetos roubados, três revólveres carregados e 200$000 em dinheiro, posse
estranha, segundo o promotor, “para indivíduos sem profissão e sem meio honesto de ganhar
a vida
334
. Percebe-se que a versão aceita pelo juiz foi a do promotor visto que ambos foram
condenados a três anos, onze meses e quinze dias de prisão celular.
332
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 77.
333
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 205, 22/05/1897. p.2.
334
Idem.
163
Entre os acusados, os receptadores representam um setor em separado, em geral
distante da carreira delinqüente. Já no Código de 1890, a receptação aparece como uma
modalidade de cumplicidade, na qual os acusados de “receberem, ocultarem ou comprarem
coisas obtidas por meios criminosos, sabendo que o foram, ou devendo sabe-lo, pela
quantidade ou condição das pessoas que as houveram”, são passíveis de punição através de
prisão celular
335
.
Em todos os casos em que germânicos aparecem envolvidos em crimes na condição de
receptadores, eles se qualificam na condição de pequenos comerciantes, donos de casas de
“secos e molhados”, em busca de um ganho maior. A regra geral nesses casos era a compra de
objetos por pessoas do ramo a que elas se vinculavam. O germânico Pedro Ester, 58 anos,
dono de uma casa de negócios na região de Botanágua, comprou um suíno de seis arrobas,
carneiros e leitões de dois escravos cujos nomes não aparecem nos autos. Todas as
testemunhas afirmaram que Ester era conhecido por comprar animais roubados para revender
a carne em seu negócio
336
. Já o comerciante Jacob Draxler, imigrante alemão que saíra de Juiz
de Fora para Mathias Barbosa em 1874 para tentar novas oportunidades de sobrevivência,
revendia madeiras e café furtados também por escravos nas fazendas vizinhas a sua casa de
negócios. Para se ter uma idéia do montante que circulava em sua pequena loja, Draxler
receptou de uma só vez 70 arrobas de café, no valor de 5:000$000, e vendeu toda a mercadoria
para Daniel Joaquim Vaz Pereira que afirmara em depoimento que não sabia ser a carga
roubada
337
. Assim como acontecia com Ester, Drexler era mal visto pela comunidade local por
ser receptador e vendedor de mercadorias roubadas. De acordo com o lavrador Carlos José
Pereira, testemunha no processo, Jacob Draxler era “negociante, mas não guarda bom
conceito; que tem um pequeno negócio e que vive de furto de escravos
338
. Por último, temos
o caso em que o João Batista Daibert, comerciante teuto-descendente de 31 anos, incentivou a
ação e receptou mercadoria roubada – roupas, dinheiro e aviamentos – no valor de 1:979$000.
Mesmo negando o crime de receptação, foram descobertos no porão de sua loja, local onde
335
Código Penal Brasileiro (Dec. n. 847, de 11 de outubro de 1890). Por Affonso Dionysio Gama. 2
a
Ed. São
Paulo: Saraiva & C. Editores, 1929, p. 373.
336
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 56, 03/10/1874. p.4.
337
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 21/09/1879. Passim.
338
Idem. p. 5.
164
ficavam estocadas as cervejas, todas as mercadorias, reconhecidas pela vítima devido a uma
marca que todos os objetos que vendia traziam sobre si
339
.
Como a receptação se vinculava ao pequeno comércio, esta é uma indicação da
importância que certas nacionalidades adquiriram no setor, assim como da ausência nele, nos
casos analisados, da população negra ou mulata. Analisando-se os processos percebe-se a
concentração das pequenas lojas comerciais nas mãos de alemães e, principalmente, de
italianos. De acordo com Wilson de Lima Bastos, o acúmulo de pecúlio e seu investimento em
casas comercias foi o primeiro passo dado por aqueles alemães que posteriormente abriram
pequenas oficinas que se transformaram em indústrias no final do século XIX e início do
XX
340
.
Para os receptadores, sempre em busca de um negócio fácil e atrativo, manter a linha
de responsabilidade e dissociar-se dos marginais era uma questão de honra e o caminho mais
seguro para safar-se de um processo. Existia todo um esforço por parte de alguns desses
comerciantes para compor a figura do bom cidadão: declarações de amigos e de companheiros
de profissão a respeito da competência, honestidade e idoneidade do acusado. Sendo preso em
flagrante como receptador de mercadorias roubadas, João Daibert correu um abaixo-assinado
entre os vários comerciantes da região onde mantinha seu negócio, buscando alegar o
reconhecimento público de sua honestidade enquanto comerciante. Todavia, sua má fama já
tinha se alastrado entre os estratos locais. Nos casos analisados, foram pequenos comerciantes
em pequenas comunidades que realizaram os crimes. Estes indivíduos apesar de esforços
acabaram sendo mal visto pelos vizinhos como compradores de mercadorias roubadas e, de
certa forma, menosprezados pela comunidade da qual faziam parte.
Uma característica que também aparece na análise dos dados diz respeito à prática de
associações na realização dos furtos e roubos. Nos casos coletados, constata-se a presença de
cúmplices em quase 50 % dos casos, um percentual muito provavelmente bem aquém da
realidade. Tratava-se sobretudo de parentes, amigos, vizinhos e companheiros de trabalho que
se juntavam de forma esporádica ou de forma um pouco mais duradoura. No caso citado acima
envolvendo João Daibert, foram seus empregados com um amigo que furtaram os objetos por
339
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 204, 26/10/1892. Passim.
340
BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, sua descendência. Juiz
de Fora: Caminho Novo, 1961. p. 81-9.
165
ele receptados
341
. Já no caso em que a casa comercial de Jacob Heldt foi roubada, o crime se
deu por três amigos de Barra do Piraí que se reuniam para assaltar casas comerciais da
região
342
. Outro caso de associação envolvendo amigos se deu quando Henrique Rhemann e
Frederico Henkel invadiram e roubaram a casa de Alemã Martha enquanto esta se divertia
com os filhos na festa de São Roque de 1904
343
. Finalizando, cabe ressaltar que as únicas
associações envolvendo familiares ocorreram em todas as vezes que se deu roubo de madeiras
de fazendas vizinhas à colônia D. Pedro II, onde germânicos retiravam tais “mercadorias” e as
vendiam para a própria Cia. União e Indústria e para pequenos estabelecimentos no centro da
cidade
344
.
Com a exceção do caso envolvendo os três forasteiros, as associações percebidas não
chegavam a se constituir como gangues especializadas e com grau eficaz e profissional de
atuação. Na maior parte dos casos eram formadas esporadicamente por vizinhos e
companheiros de trabalho buscando dinheiro fácil.
Outra questão que nos chamou a atenção foi a relação entre vítimas e réus acusados de
furtos e/ou roubos. O que conseguimos constatar é que nos pequenos furtos – madeira, furtos
domésticos de pequena escala (animais, ferramentas, objetos de construção e roupas) – as
partes se conheciam e, em alguns casos eram vizinhas, morando na mesma rua, bairro ou com
propriedades fronteiriças. Os únicos casos desse tipo de crime em que as partes não se
conheciam ocorriam envolvendo a invasão e o roubo de casas comerciais. Nesses episódios os
crimes eram praticados por pessoas que conheciam o local e que sabiam da potencialidade alta
dos lucros a serem obtidos e que, geralmente na madrugada, invadiam tais lojas e saíam com
objetos e dinheiro cotados entre 1:000$000 e 2:000$000. Outro fato que nos chamou a atenção
foi a ausência de latrocínio. Em todos os eventos só houve violência à propriedade, mesmos
nos casos envolvendo montantes mais vultuosos. Assim, nos episódios envolvendo
germânicos, tanto na condição de vítimas quanto na condição de réus, percebe-se apenas um
pequeno grau de violência, fato este que ajuda a sedimentar a hipótese de que tais crimes não
foram utilizados como forma de resolução de conflitos interpessoais entre os germânicos ou
341
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 204, 26/10/1892.
342
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 205, 22/05/1897.
343
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 208, 17/08/1904.
344
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 56, 18/08/1874; AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 57,
21/09/1875; AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 57, 02/08/1876. Entre outros.
166
entre eles e outras etnias. Na verdade tais crimes refletiam mais o papel que a propriedade
privada vinha assumindo tanto entre os germânicos quanto entre a comunidade juizforana.
3.2 –
Perfil dos locais e dos objetos roubados
Analisando os tipos de objetos que foram subtraídos de ou por alemães, observamos
que estes se encontram divididos em cinco séries conforme explicita a tabela abaixo:
Tabela 31 – Objetos furtados ou roubados
Objeto Quantidade de casos
Dinheiro e outros
Animais (aves e porcos).
Madeira e outros (café, mata e etc.).
Objetos domésticos
Ferramentas e objetos de construção
Um boi – Dano.
4
2
3
3
1
1
Total 14
Fonte: AHMJF, processos criminais de furto e roubo, 1861-1912.
Com relação ao furto de animais, devemos nos lembrar que esse tipo de propriedade era
muito comum entre a parcela germânica local que habitava nos prazos adquiridos da Cia.
União e Indústria. De acordo com Wilson de Lima Bastos, os colonos, além de cultivarem
milho, arroz, feijão, batata-doce e inglesa, mandioca, inhame e fumo também criavam aves e
porcos bem como plantavam capim para a criação de gado
345
.Observa-se também nos
processos principalmente a posse de animais de transporte e carga (cavalos e mulas), os quais
puxavam as carroças carregadas de madeira e outros objetos que eram vendidos no centro da
cidade, garantindo assim um trabalho menos penoso para os germânicos. Neste sentido, a
propriedade desses animais era, de certa forma, um fato ao mesmo tempo banal, já que tais
345
BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage... op. cit. p. 75.
167
bens eram de pequeno valor, e imprescindível, como forma de complementação alimentar
através da ingestão da carne suína e do frango e através do auxílio para o transporte de cargas.
Somente em dois casos aparecem germânicos envolvidos com a questão do furto de
animais. Em outubro de 1874, o alemão Pedro José Ester foi acusado pelo fazendeiro Joaquim
Nogueira Jaguaribe de ter sido o receptador de alguns animais que haviam sido roubados de
sua propriedade por alguns escravos desconhecidos
346
. Segundo Jaguaribe, haviam sumido um
suíno de 6 arrobas bem como alguns carneiros e leitões e ao que tudo indicava no processo,
esses animais haviam sido comprados por Pedro Ester e tiveram suas carnes revendidas em
seu estabelecimento comercial no bairro de Botanágua. O outro caso, já citado acima,
envolveu o criador de aves ítalo-germânico Guilherme Kennitz Capelle, proprietário da
fazenda denominada Cattete, a qual teve seu galinheiro arrombado na madrugada do dia 22 de
novembro de 1912. De acordo com as testemunhas foram subtraídas “quarenta e tantas
cabeças de galinhas” e entregues para o italiano João Marioza, que, em seu negócio possuía o
hábito de “comprar roubos a qualquer hora do dia ou da noite”.
Ao analisarmos os padrões desses casos conseguimos observar algumas questões. Em
primeiro lugar, percebe-se que tais crimes não foram muito combatidos pelo aparato coercitivo
já que nos dois casos os réus foram absolvidos o que aparentemente nos revela que havia uma
certa tolerância com respeito a este tipo de crime. De acordo com Celeste Zenha, a dificuldade
de se provar a culpa do acusado se devia à velocidade com que esses animais eram
barganhados e também ao fato de ninguém poder garantir seguramente que aquele animal lhe
pertencia
347
. Além disso, em ambos os casos, mesmo os animais pertencendo a fazendeiros, os
mesmos foram subtraídos a noite e sem testemunhas, fato este que certamente dificultou a
condenação dos envolvidos, como fica claro na decisão dos juízes. Mesmo assim os
inquisidores tentaram identificar os réus como sendo indivíduos de mau comportamento
social. O fato dos dois réus serem considerados pela comunidade como comerciantes de coisas
furtadas trazia sobre eles a desconfiança do crime. De acordo com a testemunha João da Silva,
o comerciante italiano acusado de receptar as galinhas roubadas da propriedade de Kennitz
Capelle tinha “por hábito comprar roubos a qualquer hora do dia e da noite e por isso os
vizinhos não gostam dele
348
. Já no caso em que Pedro Ester fora acusado de receptar objetos
346
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 56, 03/10/1874.
347
ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza... op. cit. p. 109.
348
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 210, 22/11/1912. p. 4.
168
furtados, várias testemunhas viram dois escravos entrando algumas vezes em sua casa de
negócio trazendo consigo alguns animais
349
.
Neste sentido, a vulgaridade dos bens em disputa ao nosso ver, explica também o tom
pouco grave com que foram relatados nos autos dos processos. Mesmo não sendo uma prática
muito corriqueira entre os germânicos, no momento em que estes atos chegaram ao
conhecimento da justiça, passaram a ser julgados através de todos os procedimentos oficiais
previstos para a formação de culpa.
Pode-se dizer também que apesar de ser vista como uma posse banal, os proprietários
não deixaram o fato passar barato. Nos dois casos, mesmo o custo do processo sendo mais alto
que o prejuízo causado com a subtração dos animais, os fazendeiros lesados procuraram
combater os receptadores de suas posses. Acreditamos que o furto desse tipo de bem era
bastante comum e, na maior parte dos casos, como o valor da abertura e seguimento do
processo penal ficaria mais cara que o ressarcimento do prejuízo, muitos desistiam de dar ao
caso um aspecto legal. Entretanto, nos casos registrados acreditamos que mais que o
ressarcimento dos prejuízos, os dois fazendeiros buscaram, através da aplicação da lei, punir
os receptadores que ganhariam dinheiro fácil sobre uma propriedade que não lhes pertencia.
No que diz respeito ao roubo de dinheiro, jóias e objetos de um certo valor,
encontramos 4 processos criminais envolvendo germânicos; 3 na condição de vítimas e 1 na
condição de réu. Com relação às vítimas germânicas, todas se enquadram no perfil de
negociantes, donos de casas de secos e molhados que tiveram seus estabelecimentos
arrombados de madrugada e que amargaram prejuízos que variaram de 500$000 à 1:979$000.
O primeiro caso de crime contra um estabelecimento comercial de alemães foi registrado em 3
de setembro de 1877. Como mostramos acima, foram roubadas da loja Frederico Hauck e Cia.
várias moedas estrangeiras e nacionais de valor, além de algumas jóias e títulos do tesouro
nacional
350
. Um ano depois foi a vez da Loja Antonio Amálio Alfeld e Cia. ter a janela e
gavetas arrombadas. Na madrugada de 25 de fevereiro de 1878, o acusado do crime forçou a
grade de madeira que servia de tapume e conseguiu entrar no escritório da casa de negócios,
tendo para tal fim colocado no chão uma barrica, sobre a qual subindo pode alcançar
facilmente a janela. Além disso, deixou pegadas não só ali como ao redor da barrica e sobre
ela. Por esse motivo, todas as desconfianças caíram sobre um escravo carpinteiro do vizinho
349
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 56, 03/10/1874. p. 13.
350
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 64, 03/09/1877. p. 2.
169
do estabelecimento
351
. O último caso de roubo em casas comerciais germânicas registrado em
processos criminais ocorreu em maio de 1897. O alemão Jacob Heldt teve sua loja arrombada
por “indivíduos vagabundos sem domicílio e desconhecidos nessa cidade” e acabou ficando
sem vários objetos calculados em 500$000
352
.
Tais crimes nos oferecem algumas considerações. Em primeiro lugar, percebe-se que
somente o que chamamos de grupo germânico de “classe média” é que foram vítimas de roubo
de dinheiro e bens valiosos, pois, segundo as pesquisas eram juntamente com os industriais
teutos, os únicos dentre os germânicos possuidores desses tipos de bens. Em segundo lugar,
em todos os casos os crimes foram solucionados e as vítimas tiveram seus prejuízos
restituídos. Isso se deu, em primeiro lugar pela fácil identificação de tais bens roubados devido
à exclusividade da posse dos mesmos e devido ao fato de serem artesanais e assim de fácil
identificação. Nos casos envolvendo jóias os réus, ao tentarem vender tais objetos em casas
especializadas, acabaram sendo descobertos como ladrões pelos próprios compradores, os
quais chamaram a polícia.
Em terceiro lugar, os réus se encaixavam plenamente na categoria de suspeitos, o que
nos leva a questionarmos se o grupo que atraía para si a desconfiança ou o estigma de ladrão
nas redondezas eram mesmo ladrões ou carregavam apenas o estigma social. No roubo à casa
de Alfeld e Cia. devido às pegadas encontradas ao redor da loja, a culpa recaiu sobre o escravo
que havia construído as janelas. No caso envolvendo a loja Frederico Hauck e Cia.
encontraram um negro na estação de Juiz de Fora ostentando moedas estrangeiras e de alto
valor. Rapidamente foi preso e confessou o crime. Com relação ao roubo na loja de Jacob
Heldt, como mostrei acima, a culpa recaiu sobre três desconhecidos.
Nesses casos, apesar do comportamento social dos réus também ter ajudado na
condenação, percebe-se na leitura dos processos que negros e forasteiros sem residência e
emprego fixo eram considerados como criminosos em potencial. Devido ao fato de não
possuirmos maiores dados para o período seria interessante a investigação do perfil dos
acusados de roubo de um modo geral para averiguarmos se as hipóteses do senso comum eram
compatíveis com a realidade ou simplesmente era fruto de preconceito contra negros e medo
de desconhecidos, no caso, de forasteiros.
351
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 64, 25/02/1878. p. 2.
352
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 205, 22/05/1897. p. 2.
170
Já o único caso envolvendo germânico na condição de réu desse tipo de roubo foi
protagonizado por João Batista Daibert, que acabou armando um plano para roubar uma casa
comercial vizinha a sua. Por volta das 19:00 horas do domingo 26 de outubro de 1892, o
negociante português saiu de sua casa de negócios e ao retornar algumas horas depois afirmou
ter sido destituído dos seguintes itens: “15 peças de casemira de lã, 3 ternos de sarja de lã, 1
relógio de prata, dinheiro (225$000), uma faca com cabo e bainha de prata, um guarda-
chuva” dentre outras peças, num total avaliado em 1:979$000. Vendo que a janela arrombada
dava para os fundos da casa de negócios de Daibert, desconfiada, a vítima levou a polícia até
lá e descobriu que havia sido roubada pelo vizinho. De acordo com Felismiro Custódio da
Silva, caixeiro na casa de João Daibert e co-autor do crime,
“[...] sendo empregado de Daibert, este e Lopes, amigo de Daibert
insistiram com o respondente para efetuarem o roubo na casa de Antonio
Martins Pinho, denominada Maison Rouge, sendo que no sábado combinaram
o roubo que fariam no domingo a noite; [...] que no domingo a noite, as 7:30
mais ou menos, estando na venda de Daibert, ele o respondente e Lopes,
entraram no portão do Chalé e dali saltaram para os quintais e dali para o
Maison Rouge e ali Lopes, apanhando um caixote e encostando-o na parede e
com um ferro, pé de cabra, forçou a janela e a arrombou e penetrou na casa,
ficando o respondente no quintal. Que João Daibert ficou no negócio só,
fechando as portas; que Lopes carregando as peças de fazenda de dentro do
negócio as entregava ao respondente que por sua vez as atirava no quintal de
Daibert. Que do quintal o respondente e Lopes carregaram as peças e foram
entregando para Daibert que do quintal onde tem açougue as recebia e as
conduzia para o porão próprio para guardar cerveja do referido negócio
[...]
353
No que pese as possíveis inverdades ditas pelo acusado, os policiais deram busca na
casa de Daibert e encontraram as peças no lugar referido pelo respondente e as peças estavam
guardadas em sacos de mantimentos e foram reconhecidas por Daibert como suas. Entretanto,
o negociante português mostrou as peças e conseguiu provar que eram suas devido a marcas
que todas as suas mercadorias possuíam. Daibert acabou sendo condenado a três anos e seis
meses de prisão.
353
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 204, 26/10/1892. p. 14.
171
Neste sentido, como verificamos quando tratamos dos acusados, poucos foram os
alemães pertencentes à categoria de gatuno, mas João Batista Daibert certamente fez parte
desse grupo.
A primeira menção de germânicos envolvidos em crimes de furto e/ou roubo ocorreu
cerca de três anos após a implementação da colônia D. Pedro II, em 1858. Em 1 de março de
1861, o oleiro germânico Henrique Path, originário do grão-ducado de Holstein foi acusado
pelo administrador prussiano da Estação de Juiz de Fora, Frederico Kuffa, de ter furtado da
olaria da Cia. União e Indústria “2 macacas, várias correntes, arreios e diversas
ferramentas
354
. Tendo sua casa revistada pelo inspetor da colônia, Otto Luhering, e pelo
mestre-oleiro George Jencken, Path foi obrigado a explicar como tais objetos haviam ido parar
ali, além de ter que explicar o que seis janelas da Estação Saudade estavam fazendo em sua
propriedade. Por mais incrível que pareça, Kuffa desistiu da queixa uma semana depois do
início do processo. Era muito mais rendoso para a Cia. União e Indústria ficar com um
empregado de caráter duvidoso em seus quadros do que desperdiçar na cadeia mão-de-obra
qualificada em uma cidade que necessitou importar trabalhadores especializados.
Um tipo de furto que parece ter sido razoavelmente mais comum entre os germânicos
“pobres” foi a subtração de objetos domésticos de valor pequeno ou mediano por meio da
invasão das casas e propriedades dos mesmos. No dia 16 de agosto de 1904, a alemã D.
Helena Abreu, viúva de um comerciante português, residente a rua Bernardo Mascarenhas –
antiga colônia de baixo – foi assistir a festa de São Roque que, naquela noite, se celebrava na
cidade
355
. Aproveitando das circunstâncias do abandono em que ficou a casa, Henrique
Rhemann e Frederico Guilherme Henkel invadiram a residência de D. Helena e de lá
subtraíram uma máquina de costura, um relógio de parede, utensílios de cozinha, peças de
roupa da dona da casa e roupas que a mesma recebera para proceder a lavagem. Chegando em
casa às 10:00 da noite, D. Helena notou que sua residência havia sido roubada e em seguida
chamou seus filhos. Esses moços viram que no quintal estava uma trouxa de roupas e outros
objetos e, prevendo a possibilidade de voltarem os ladrões para reconduzirem os objetos,
resolveram ficar, com mais alguns vizinhos convidados para esse fim, de vigilância durante a
noite. Por volta de 2 da madrugada perceberam um vulto no local onde ficaram os objetos e
nessa ocasião o prenderam verificando ser Henrique Rhemann, vizinho de D. Helena. A partir
354
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 56, 01/03/1861. p. 2.
355
AHMJF, processo criminal – Roubo cx 208, 17/08/1904. p. 2.
172
da presença da polícia e de diligências pode-se constatar que Rhemann e Henkel, o outro
acusado, esconderam as coisas roubadas nos quintais de suas casas e na casa do ferreiro
Antonio Gonçalves Ferreira. Julgado alguns meses depois, Rhemann foi condenado a 1 ano e
9 meses de prisão e Henkel acabou sendo absolvido, pois mesmo sendo acusado, guardava
uma imagem de bom moço que se envolvera com má companhia
356
.
Mais de vinte anos antes, em 9 de janeiro de 1883, furtaram do alfaiate germânico
Carlos Limp dois ferros de engomar e na mesma noite, o acusado de praticar os crimes, Urias
Fernando Alves, se apresentou a casa de F. Machado e ofereceu a venda os objetos furtados
sendo nesta mesma ocasião perseguido e preso pela autoridade policial
357
.
Já em setembro de 1892, mais especificamente no dia 29, o réu Joaquim Maria foi
conduzido à delegacia pela vítima David Gerheim e outros e lá foi lavrado o auto de prisão em
flagrante. Momentos antes Joaquim Maria havia sido preso pela mulher e cunhada de
Gerheim, ambas, assim como ele, germânicas, quando tentava evadir-se da casa do ofendido,
onde praticara uma arrombamento
358
. O réu alegou em sua defesa que “não é de seu costume
roubar nem furtar, acontecendo isto pela primeira vez, e mais que quando praticava o
arrombamento e pretendia efetuar o roubo, foi surpreendido por duas senhoras que o
prenderam; mas que antes de dirigir-se ao local do crime, tinha matado o bicho e estava um
pouco fora de si
359
. Deve ter sido engraçada a cena: um homem bêbado arrombando uma
casa e sendo surpreendido e apanhado bastante, como consta nos testemunhos, de duas
mulheres de 20 e 23 anos.
Entre os anos de 1874 e 1876 encontramos 4 germânicos sendo processados por roubo
de madeiras ou derrubada de matas. Segundo Celeste Zenha, a derrubada de matos e madeiras
nos permitem discutir pelo menos um conjunto de significados que a propriedade privada do
solo adquire na sociedade rural do interior fluminense
360
. Mas em Juiz de Fora, diferentemente
de Capivary, o problema da derrubada de madeiras é que tal acontecimento acabava causando
danos à propriedade atingida, pois na maior parte dos casos, os locais furtados eram terras
separadas para a plantação de café e sem as matas e suas madeiras, ou seja, sem “fronteiras
abertas”, tal terra perdia parte do seu valor de venda. Este é o caso do processo movido contra
356
Idem.
357
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 09/01/1883. p. 2.
358
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 203, 29/09/1892. p. 2.
359
Idem.
360
ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza... op. cit. p. 122.
173
Jacob Draxler pelo tenente –coronel Oliveira Horta. De acordo com o proprietário da fazenda
Liberdade, “tem procurado por todos os meios conservar as matas ali existentes e que dão
elevado valor a sua propriedade. Soube, porém que as matas de sua propriedade sofriam
estragos consideráveis pela destruição e retirada de madeiras que o suplicado por abuso
inqualificável empregava em suas obras”
361
. Já o alemão Simão Limp, lavrador e morador na
colônia D. Pedro II, processou seus vizinhos Frederico e Nicolau Woerpel por terem invadido
sua propriedade e retirado madeiras sem a sua autorização
362
. De acordo com Limp, invadiram
suas terras e “derrubaram madeiras pertencentes ao queixoso e as conduziram para vende-las
a Cia. União e Indústria
363
. Assim, de acordo com os depoimentos dos proprietários das
matas derrubadas, a apropriação indébita de madeira alheia acabava sendo de certa forma,
apropriação de solo alheio e da propriedade alheia.
Desta maneira, a madeira constituía-se em mais um bem que o proprietário possuía e o
direito de derrubá-las ou mantê-las enquanto meio de valorização da propriedade era um
direito exclusivo seu, entretanto, esse direito podia ser vendido a alguém e gerar sérios
problemas. No processo movido por Herculano Pinto da Costa contra Pedro Munck, este alega
ter comprado os direitos de derrubada de madeiras e matas da fazenda de Herculano do
próprio genro do fazendeiro. Várias testemunhas alegavam saber que Munck havia pagado
cerca de 70$000 a José Carlos, genro do dono da fazenda, pela condição de tirar madeira
durante três meses. Entretanto, o que fica claro através da leitura dos autos é que Herculano
Costa de nada sabia da transação e acabou processando Munck sem saber que este achava
estar retirando madeira legalmente.
Em todos os casos analisados, as madeiras foram retiradas de regiões fronteiriças entre
as propriedades das vítimas e dos réus. No caso envolvendo Simão Limp e seus vizinhos, os
Woerpel, as madeiras estavam sendo retiradas de uma área em que havia dúvidas por parte dos
réus com relação a demarcação das terras. Já Munck e sua família retiraram madeiras da
fazenda de Herculano, fronteiriça à Colônia D. Pedro II. Assim, os limites pouco estabelecidos
das propriedades facilitavam tais práticas, o que acabava redundando em conflitos.
É interessante ressaltar que a derrubada de madeiras foi um nicho comercial
encontrado pelos alemães para complementar sua renda familiar. Ao derrubar madeiras das
361
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 21/09/1875. p. 2.
362
AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 02/08/1876. p. 2.
363
Idem.
174
fazendas fronteiriças e da própria colônia os alemães buscavam fornecer para as fábricas
locais e para o comércio do centro urbano combustível para suas caldeiras. Na maior parte dos
casos eram retiradas apenas as madeiras que possuíam pouco valor comercial visto que em
todos os casos, o custo do processo ficou mais ou menos no mesmo patamar que os das
madeiras retiradas. Todavia, os alemães retiravam também madeira de lei para aumentar o
valor de venda. Assim, de acordo com o laudo realizado na fazenda de Herculano Costa, além
dos danos no capim gordura e das madeiras retiradas, foram cortadas também várias árvores
de canela preta e branca. Mais do que a invasão de propriedade, a retirada de madeiras se
constituía numa fonte de renda extra para os colonos pobres.
Acreditamos que talvez surgiram poucos processos porque o custo desses geralmente
era mais alto que o valor das madeiras furtadas e por isso não valia a pena arcar com os custos
dos processos. Nos casos analisados, somente os fazendeiros ricos é que abriram processos
mais com o intuito de disciplinar o invasor pobre do que para ser restituído em seu prejuízo.
Este fato é demonstrado também no resultado dos processos. Em todos os casos os réus foram
condenados, mas somente em um ele permaneceu na prisão. Tanto Simão Limp quanto
Herculano Costa retiraram a queixa que pendia sobre seus invasores desde que fosse pago por
eles os custos dos processos, pois assim, já haviam sido disciplinados a respeitar a propriedade
privada. Já Jacob Draxler acabou ficando na cadeia, mas não pelo furto de madeiras. É que
este germânico acabou convencendo dois escravos de Oliveira Horta a lhe passarem uma parte
do café que era produzido em suas terras, mais especificamente 70 arrobas avaliadas em
5:000$000. Foi devido e este fato que ficou preso e não devido às madeiras.
Apesar do Código criminal prever em seu artigo 266 que o crime de dano a
propriedade constituía-se no ato de “Destruir ou danificar uma coisa alheia de qualquer
valor
364
, as derrubadas de madeira não foram enquadradas pela justiça nesse quesito e sim no
de roubo, devido principalmente ao fato da retirada de madeira estar diretamente ligada à
invasão de propriedade. Nesse sentido, em apenas um caso, aparece um alemão sendo
processado por este crime. Entre os dias 21 e 22 de novembro de 1876 alguns bois de Custodio
de Figueiredo Tostes fugiram dos pastos em que ficavam e um deles acabou invadindo “uma
pequena roça de milho que ficava a beira da estrada e, sem cerca, pertencente ao suplicado
(Felippe Gerheim) e este o matou com dois tiros sendo um do lado e outro na testa, como no
364
Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert. 1873. p. 183.
175
auto de corpo de delito
365
. Toda a argumentação do advogado de Tostes partiu no sentido de
querer o pagamento do valor do animal pelo réu devido ao fato de sua propriedade ficar a
beira da estrada sem cerca o que, indiretamente, mostrava que a terra não havia sido tomada
enquanto posse; enquanto propriedade privada. Contudo, Gerheim mostrou em seus
argumentos e acabou convencendo que havia atacado o referido animal em defesa de sua
propriedade e principalmente em defesa de sua filha. Segundo ele, “o boi estava em sua roça e
mandou sua filha tocar o animal e como este insistiu para a menor, matou o boi com um
tiro
366
. Apesar de ter sua versão aceita pela justiça, percebe-se em vários argumentos de
Gerheim e de algumas testemunhas que os tiros foram disparados mais em represália ao dano
que estava sendo ocasionado em sua roça do que pelo fato do boi ter atacado sua filha. Isso
mostra que mesmo sem estar cercada, a lavoura de Gerheim era, no mínimo, bem protegida.
Tabela 32 – Locais dos crimes
Local Quantidade de crimes
No trabalho
Na fazenda ou residência da vítima
Na casa comercial da vítima
Na casa do réu – Dano
1
8
4
1
Total 14
Fonte: AHMJF, processos criminais de furto e roubo, 1861-1912.
Como revela a tabela acima, os locais dos crimes de furto e roubo se concentraram
basicamente em quatro áreas, com ênfase em duas: casas comercias e residências e fazendas
das vítimas. Como mostramos acima, as fazendas foram palcos de roubos de animais (aves,
ovelhas e porcos), de café e, principalmente de madeiras e derrubadas de matas. Tais
propriedades ficavam relativamente afastadas do centro urbano de Juiz de Fora e foram alvos
principalmente de vizinhos, na sua maior parte autores de atos que visavam o complemento da
renda mensal ou a aquisição fácil de mercadorias para seus pequenos negócios. Já as
residências foram visadas por “ladrões de galinha” que viam nelas a possibilidade de subtrair
objetos de valor mediano ou pequeno. Essas casas ficavam afastadas, mas não muito, do
365
AHMJF, processo criminal – Dano: cx 62, 07/12/1876.
366
Idem, p. 6.
176
centro da cidade, situando-se principalmente na área da antiga colônia de D. Pedro II e na
região do bairro de Botanágua. Eram em sua totalidade propriedades humildes de
trabalhadores pobres que tiveram a infelicidade de ter seus bens subtraídos.
No que diz respeito às casas comerciais, todas elas se concentravam na zona central da
cidade, local que aglutinava as atividades comerciais e financeiras, representando assim um
grande atrativo para os mais ambiciosos. Foram nesses locais em que ocorreram os crimes
mais bem planejados, realizados à noite ou de madrugada, pois ali era possível o acesso a
objetos de maior valor, tais como dinheiro e jóias. Foram em torno desses crimes que o
aparato coercitivo mais se mobilizou e que redundou em um maior número de condenações de
gatunos. Foi também em torno de tais propriedade que se aglutinaram os ladrões profissionais
em buscava de maiores lucros, ao contrário das fazendas, que foram mais alvejadas por
indivíduos despossuídos querendo complementar a renda.
Concluindo, percebemos que os esses crimes estão distribuídos da seguinte forma:
Tabela 33 – Crimes de Furto/Roubo por década
Década Número
1860
1870
1880
1890
1900
1910
1
7
1
3
1
1
Total 14
Fonte: AHMJF, processos criminais de furto e roubo, 1861-1912.
Tais dados nos revelam que, diferentemente do que é aceito, os crimes contra a
propriedade privada envolvendo germânicos não aumentaram com a transformação da
sociedade escravista para a sociedade capitalista, apesar do padrão dos objetos furtados ter se
modificado no decorrer do tempo. Até meados da década de 1870 nenhum germânico esteve
envolvido com o roubo de dinheiro, jóias e bens de alto valor. Os objetos subtraídos se
concentravam na categoria de madeiras, na receptação de suínos e café e na subtração de
ferramentas no local de trabalho. As pessoas envolvidas nesses atos não se encaixam na
177
categoria de gatunos profissionais, mas sim buscavam a complementação da renda familiar
com obtenção desses bens. Entretanto a partir desta data o padrão dos roubos/furtos tomou
outro caminho, visto que as casas comerciais e residenciais passaram a ser o alvo principal
daqueles envolvidos nesses crimes. Neste período se percebe a atuação de gatunos e
delinqüentes contra casas comerciais alemãs e o envolvimento de ladrões germânicos em
furtos domésticos e na receptação de cargas roubadas. Desta forma, pode-se afirmar que na
mesma medida em que a proteção à propriedade privada vai aumentando, devido a
incorporação de valores capitalistas, o valor e a importância dos bens subtraídos e a astúcia
dos criminosos também crescia.
3.3 –
O resultado dos julgamentos
Os resultados dos julgamentos são capazes de revelar principalmente a relação do
judiciário com a propriedade privada e também quais eram os papéis sociais que determinados
grupos étnicos deveriam representar de acordo com a burocracia judicial local.
Uma boa maneira de se compreender a relação e tolerância do judiciário local com
respeito aos furtos e roubos é relacionar o resultado dos julgamentos com o tipo de subtração
ocorrida. Em primeiro lugar, observa-se que em apenas 35,72% dos casos os réus foram
condenados e que o restante dos processos ou foram arquivados, ou as vítimas desistiram da
ação ou os réus foram absolvidos. Relacionando os resultados com o tipo de crime e com a
data, percebe-se que somente ocorreu condenação em crimes ocorridos a partir de meados da
década de 1870 – mais especificamente em 1877 – e que somente foram condenados àqueles
que cometeram roubo e não furto e também aqueles que roubaram casas comerciais ou
residências privadas. Este fato nos revela que, de certa forma, havia certa tolerância,
principalmente no terceiro quartel do século XIX, com relação a punição de pequenos furtos e
com a receptação de objetos furtados. Da mesma forma nos revela que a justiça só agia mais
enfaticamente com respeito aos crimes relacionados com a invasão da propriedade privada e
com os crimes em que os objetos subtraídos fossem dinheiro, jóias ou bens de valor alto ou
mediano.
Como exemplo do que estamos falando podemos citar alguns dos objetos subtraídos
que levaram à condenação dos acusados. No primeiro caso registrado de condenação, o
178
acusado de roubar a casa comercial de Frederico Hauck levou, como citamos acima, “14
Libras esterlinas, nove moedas de prata no valor de 1$000 cada uma, treze de prata no valor
de 500 réis cada uma, e três de prata no valor de 200 réis cada uma; duas moedas bolivianas
no valor de 2$000 cada uma; três de níquel no valor de 400; duas de cobre, ambas no valor
de 70 réis e 28$500 em notas do tesouro nacional”. Além dessa quantia em dinheiro, foram
roubados os seguintes objetos: “[...] alfinete de ouro próprio para peito de senhora, um par
de brincos de ouro, um revolver de seis tiros com capa, cinturão e 11 balas, uma gravata de
seda preta, um chapéu novo com capa e quatro lenços brancos
367
. Já João Batista Daibert foi
condenado por participar do roubo da casa comercial Maison Rouge de onde retirou
mercadorias no valor de 1:979$000
368
. O mesmo se deu com os forasteiros acusados de roubar
a casa comercial de Jacob Heldt. Os três foram condenados por levar dinheiro e mercadorias
de relativo valor
369
.
Os outros casos em que os acusados foram condenados estavam relacionados a invasão
e subtração de bens em residências privadas juntamente com a prisão em flagrante. Joaquim
Maria foi preso por David Gerheim e família no momento em que tentava retirar da casa
objetos, tais como relógio de parede, latas de mantimento dentre outros
370
. No outro caso,
Henrique Rhemann e Frederico Henkel foram presos por roubar roupas e objetos de trabalho
da lavadeira germânica Helena de Abreu, quando o primeiro retornou à cena do crime para
buscar os frutos do roubo
371
.
Esses fatos nos revelam principalmente a preocupação da justiça local em buscar punir
àqueles que desrespeitavam a propriedade privada. Nos demais casos, envolvendo receptação
e roubo de madeiras, animais e pequenas ferramentas, mas que não envolviam invasão de
propriedade, os juízes foram menos rígidos, acreditamos nós, por não verem em tais casos
ameaças à ordem e principalmente, foram levados a este veredicto também por fatores
externos ao processo. Esses elementos revelam qual o tipo de propriedade que era relevante
para a comunidade local e também revela os tipos de estabelecimentos e de quem não se podia
furtar: casas comercias e residência privada. Neste sentido, percebe-se também que a posse de
determinados bens era, de certa forma, considerada banal e sua subtração indigna de punição.
367
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 64, 03/09/1877.
368
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 204, 26/10/1892.
369
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 205, 22/05/1897.
370
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 203, 29/09/1892.
371
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 208, 17/08/1904.
179
Este é o caso das madeiras, animais e ferramentas de pequeno valor, subtraídas principalmente
por alemães de fazendeiros locais. Esses casos revelam, a sua maneira, o que era tolerável ou
não para o judiciário quanto ao furto. Através dos graus das perdas percebe-se quais os casos
eram considerados graves ou não e assim, dignos de punição.
Entretanto, mesmo que se observe uma nítida preocupação com a propriedade privada
pelo aparato jurídico local, percebe-se um processo de expansão dos valores do capitalismo
industrial bastante limitado. Apesar de muitas práticas sociais que até então eram toleradas
como direitos dos grupos subalternos passarem a ser criminalizadas, a subtração de madeiras e
pequenos animais ainda era pouco combatida pelos juízes. Nesse ponto, o que estamos
querendo mostrar é a sobrevivência de uma tolerância que indica um conceito de propriedade
privada ainda bastante limitado. Todas as evidências apontam assim para uma sociedade com
práticas ainda muito afastadas da modernidade capitalista.
Como mostramos nos crimes de homicídio e tentativa de homicídio, no momento em
que os atos se transformavam em autos, o concreto perdia quase toda sua importância e o
debate se dava entre os atores jurídicos, cada um deles usando a parte do real que melhor
reforçava o seu ponto de vista.
Entretanto, diferentemente dos outros crimes, as categorias étnicas foram entendidas,
nos casos analisados, como intrínsecas às pessoas. O fato dos alemães guardarem uma
representação positiva no seio da sociedade local e dos negros serem vistos como ameaças em
potencial, apesar desse fato não ser por si só suficiente para condená-los ou absolvê-los,
atuava profundamente no resultado do processo. O argumento aqui defendido é que a justiça
não julgava os atos pura e simplesmente. O que estava em jogo era o comportamento social
dos indivíduos e o papel que cada um deles deveria representar no seu dia-a-dia e não o crime
propriamente dito Quanto mais o acusado se adequasse aos padrões aceitos e promulgados
pela burocracia jurídico-policial maiores eram as suas possibilidades de ser absolvido.
Nesse sentido percebe-se porque mesmo os alemães estando envolvidos como réus em
nove casos somente em dois foram condenados. Em primeiro lugar, como falamos acima, isso
ocorreu devido ao tipo de objeto subtraído e em segundo lugar devido à imagem positiva que
guardavam no seio da comunidade local. Agentes do progresso e da civilização,
empreendedores, disciplinados para o trabalho, implementadores do processo industrial e da
modernização do município, mão-de-obra de excelente qualidade, sadio, pacífico, permeado
de um ethos militarizado e personificação da germanidade; foram estes os adjetivos utilizados
180
para descrever o comportamento alemão na Juiz de Fora de meados do século XIX e início do
XX. Arianização passou a ser vista como sinônimo de desenvolvimento econômico local
devido à “inata operosidade” do alemão. Devido a essas representações os germânicos
raramente atraíram para si a ira do aparelho judiciário, a não ser em casos ocorridos dentro da
própria comunidade germânica e envolvendo afronta aos valores capitalistas, diferentemente
dos negros e dos outsiders ou forasteiros.
De acordo com vários trabalhos, no senso comum, os negros são e eram percebidos
como potenciais perturbadores da ordem social, apesar da existência de estudos questionando
a suposta contribuição do negro para a criminalidade
372
. Não obstante, se o crime não é
privilégio dos negros, a punição parece sê-lo.
Nos dois casos analisados em que escravos foram acusados de passar mercadorias por
eles roubadas a comerciantes germânicos – ou seja, a receptadores – somente os cativos é que
foram punidos pela justiça. Tais fatos ocorreram tanto com os escravos que roubaram
madeiras e café do Tenente Coronel Antonio Caetano e repassaram para Jacob Draxler
373
,
quanto com os dois cativos que forneciam suínos, caprinos e ovinos para a casa comercial do
germânico Pedro Ester
374
.
Em outro caso, relacionado ao roubo da casa de negócios Antonio Amalio Alfeld e
Cia., a culpa do ato recaiu primeiramente sobre o escravo de aluguel Ernesto, de propriedade
do Dr. Romualdo Monteiro de Miranda Ribeiro, vizinho da casa de negócios mencionada
375
.
Ernesto havia sido alugado aos donos da casa comercial como carpinteiro para construir as
novas janelas que foram instaladas na propriedade. Dias depois da conclusão da obra, a loja
foi arrombada de madrugada pelas janelas construídas por Ernesto e, além disso, foram
encontradas no local marcas de pé descalço, um indicativo de que tal feito havia sido realizado
provavelmente por um escravo. No mesmo dia Ernesto foi acusado e teve seus pertences
vasculhados em busca dos objetos subtraídos, todavia nada foi encontrado e o cativo
inocentado.
372
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade: estudos e análise da justiça no Rio de janeiro
(1900-1930) Rio de Janeiro: Edufrj, 1995., ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal:
réus brancos e negros em perspectiva comparativa. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996.,
SCHWARCZ, L. & QUEIROZ, R. da S. (orgs.) Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp, 1996., entre vários
outros.
373
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 57, 21/09/1875.
374
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 56, 03/10/1874.
375
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 64, 25/02/1878.
181
Os indícios sugerem que tais desconfianças não se deram devido às diferenças raciais
ou étnicas em si, mas ao fato do grupo jurídico ser dotado de recursos superiores de poder e
devido ao fato de refletirem o posicionamento social de que a população de cor preta era
inferior, enquanto os negros formam um grupo de excluídos, imensamente inferiores em
termos de seu diferencial de poder e contra o qual o grupo estabelecido pode cerrar suas
fileiras
376
. O sinal físico serve de símbolo tangível da pretensa anomia do grupo inferior, de
sua maldade intrínseca: a referência a esses sinais “objetivos” tem uma função de defesa e
distribuição vigente de oportunidades de poder
377
.
Assim como nos casos envolvendo os negros, outro grupo que atraía para si a
desconfiança da comunidade e, principalmente da burocracia jurídica, era aquele formado por
forasteiros. Em um caso já citado acima, os jovens José de Oliveira e Silva, José Pereira
Bueno e Alfredo Martins foram acusados pelo 1
o
Promotor de Justiça da Comarca de terem
arrombado, na noite de 21 de maio de 1897, as casa comerciais de Antônio Gomes Fraga, de
D. Rita Rangel, de Jacob Heldt, de Bernardo Ence e Cia. e de Virgílio Alves de Araújo. Feitas
às apreensões, foram encontrados em poder de José de Oliveira e Silva “um revólver
carregado, um punhal com cabo de prata, uma bainha também de prata, uma argola com
quatro chaves, dois canivetes, um espelho pequeno, uma corrente para chaves, um relógio de
prata e 258$866 em dinheiro”. Já em poder de Alfredo Martins foram apreendidos “um
canivete com capa, um revólver carregado e 90$000 em espécie”. Por último os policiais
encontraram “um revólver e 29$543
378
em poder de José Bueno. Sendo os bens descritos
reconhecidos pelas vítimas, que descreveram os jovens como gatunos, os três acusados
acabaram sendo presos e julgados.
Percebe-se na fala do promotor que boa parte da culpa dos réus estava vinculada a
aspectos relacionados ao comportamento social dos mesmos na cidade de Juiz de Fora. De
acordo com a promotoria, os três jovens eramindivíduos vagabundos, sem domicílio e
desconhecidos nessa cidade”. Neste sentido, a versão do promotor, que foi aceita pelo juiz que
condenou os réus a quase quatro anos de cadeia, mostra que, além da falta de emprego e
domicílio – aspectos de conduta primordiais entre os “homens bons e trabalhadores” – um dos
fatores que justificaria a condenação dos réus seria o fato de serem forasteiros ou
376
ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena
comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, p. 30.
377
Idem., p. 36.
182
desconhecidos nessa cidade”. De alguma forma os valores vinculados nesse caso refletiam
aspectos do senso comum em que os “de fora” ou outsiders eram vistos como ameaça em
potencial para a ordem social vigente, pois, mesmo quando eram “pessoas de bem” ou
honestos, estariam ameaçando postos de trabalho da comunidade local bem como estariam se
intrometendo nos espaços sociais que eram constantemente construídos sobre regras
específicas de convivência. Assim, neste caso em particular, a exclusão e discriminação dos
outsiders pelo aparato jurídico local atuou como arma poderosa para que este último afirmasse
sua superioridade e também afirmasse os valores locais descritos, mantendo os “outros”
firmemente em seu lugar. Neste sentido, entende-se porque os forasteiros eram vistos como
indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros por uma parcela da comunidade local que
tinha bens e oportunidades a perder.
A partir de agora, como indicamos na introdução do trabalho, estaremos realizando um
estudo de caso no intuito de complementar a tentativa de relativizar a imagem do alemão
como sendo unicamente empreendedor e modernizador. Ofereceremos para tal uma nova
interpretação que nos permitirá conhecer uma outra parte da comunidade teuta, tendo por base
a experiência vivida por estes imigrantes durante os momentos de conflito que marcaram sua
inserção e permanência na cidade de Juiz de Fora.
378
AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 205, 22/05/1897.
183
CAP. 4 – UMA RADIOGRAFIA DA SUBLEVAÇÃO ALEMÃ DE 1858.
Quando iniciamos as buscas de processos criminais, no Arquivo Municipal de Juiz de
Fora, que envolvessem alemães tanto na condição de réus como na de vítimas e testemunhas,
nos deparamos com um documento datado de 31 dezembro de 1858 que relatava uma tentativa
de sublevação
379
na colônia agrícola alemã D. Pedro II, de propriedade da Companhia União e
Indústria. Havia apenas quatro meses que estes imigrantes estavam na cidade e, ao que tudo
indicava na primeira leitura do processo, eles haviam aproveitado a ausência do diretor da
colônia para colocar em prática seus planos conspiratórios.
Ao regressar da viagem que havia feito ao Rio de Janeiro durante um período de mais
ou menos dez dias, o diretor da colônia alemã, Jorge Christianno Giobert, é notificado que
alguns colonos ameaçaram-no na sua ausência. Espantado, colocou-se a investigar os
acontecimentos durante mais ou menos três dias, redigindo duas cartas para o delegado de
polícia de Santo Antônio do Paraybuna, ambas datadas de 31 de dezembro, para que este
agisse e prendesse os colonos envolvidos na querela. Assim estava escrito:
“No dia 26 deste mês, ao regresso da viajem que fiz ao Rio de Janeiro,
tive a notícia de que vários colonos haviam se expressado e expresavão-se a
meu respeito com rancor e ódio, elevado a ponto tal que difícil faria de
exprimir. Ignorando a crença que determinava semelhante procedimento,
sentir de exclarecer-me, e procedi com a devida prudência as investigações
necessárias. Eis o que colhi:
1º - Que o colono Keil, dias antes, tinha espalhado o boato de que eu
fora assassinado com hum tiro.
2º - Que ao propalar este boato mostrava-se ébrio de prazer o que era
natural visto que, como declarava, ficavam desta forma satisfeitos os seos mais
ardentes desejos.
3º - Que resultando ser falsa a notícia do assassinato, pela minha
chegada, o colono Schweigerts enfurecido entrou em sua caza e, tomando um
estoque, disse que naquele mesmo momento ia tirar-me a vida isto é, realizar o
que o que não se tinha realizado.
Felizmente porem não pode levar a efeito tal intento porque sua própria
mulher, ajudada por outro colono foram ao seu encontro e desarmaram-no e
dizem só amarrado, conseguiram aquietá-lo. Além disto corriam já outros
boatos e assaz aflito por um comportamento tão estranho sobre tudo da parte
de homens que deviam servir-me de alguma forma reconhecidos.
Comportamento, que só podia derivar-se de sua própria malvadez estudada e
379
Processo Crime: Arquivo Histórico Municipal de Juiz de Fora. Caixa 45, série 16, Império – Ameaças.
184
concentrada de algum inimigo meu que a isso os induzisse fossem quais fossem
os seus fins, resignei-me e segui o fio das investigações começadas.
O crime é sempre detestado por todos os que tem uma alma bem
formada e entre os colonos orgulho-me a asseverar que raros são os que me
detestam.
Advertido por muitos e, prevenido naturalmente pela minha própria
conservação, cheguei apagar-me do fio destas gentilezas e, pouco tem me
custado ao depois, avançar até o coração da trama no fato que a concebia.
Essa trama é negra como a alma dos perversos que por si mesmos ou
arrastados talvez ao crime por espírito ainda mais perverso, tiveram a audácia
de concebê-lo e o embalam.
4º - Ei-lo: nas casas aonde moravam os colonos Beiser e Keil, ora em
uma ora em outra, há reuniões noturnas.
5º - Nestas reuniões, além de alguns colonos, comparecem Hugo Euen e
o suíço Augsburg.
6º - São esta reuniões uma espécie de desvario; formam tumulto
infernal, e figuram como cabeças os colonos Beiser, Keil e Schweigerts.
7º - Esses três colonos os mesmos parecem ter dos demais prestígio, os
mais insuflados e os que após se si arrastarão ao crime outros menos
advertidos.
8º - O primeiro dos três, o Beiser, no auge de seu furor declara que
pode fazer tudo: que tem consigo um documento de peso de alta importância e
que além disto é aconselhado por outro de muito valimento, que reside nesta
circunvizinhança.
O plano que Beiser, Keil e Schweigerts tem em mente é o seguinte –
Instigarão aos que fazem parte do complot a reunir-se, para ao depois,
munidos e armados virem a minha casa e exigir-me tudo quanto queiram. Se
não forem atendidos que nada devem a companhia, cometerão as atrocidades
que tramam, atrocidades sem nome, porque às infâmias e aos crimes
começados a por em prática não se pode marcar o paradeiro.
9º - Não satisfeitos com isto, o colono Keil aventa a idéia de que melhor
será por fogo em tudo e que nada devem temer tendo-o à frente porque são
muitos e de bastante coragem e bem armados.
Como director da colônia, e como mais interessado para a
tranqüilidade e bem estar da mesma, levo ao conhecimento de V. Sr. O que
procede: quer como Director quer como particular peço a V. Sr. energicar
providencias para a captura dos culpados, me firmo esperança de que se o
fazem, a lei saberá puni-los: é o exemplo que moraliza o povo.
Deus guarde V. Sr.
Colônia Dom Pedro II
31 de Dezembro de 1858
Ilmo Sr. José Capistrano Barboza, muito digno Delegado de Polícia da
cidade do Paraybuna e seu termo...
185
Colônia de Dom Pedro II, 31 de Dezembro de 1858 – 7 horas da manhã.
Ilmo Sr. Delegado de Polícia.
Pelas indagações e investigações que tenho procedido ontem e esta
noite convenci-me que com feito existe aqui incluso alguns colonos uma
conspiração e plano de sublevação: apesar que os partilhadores são poucos em
número obriga-me na necessidade de partilha, de dar as necessárias
providências com toda urgência. As providências que V. S. dará devem ser
feitas com todo segredo possível e tudo se achar preparado para seguir para lá
a força armada imediatamente, ficando faz requerido por min.
Os partilhadores nesta desordem não passam de 25 indivíduos e destes,
muitos ainda se retiram por certo no andamento em que se queiram
compreender a sua obra.
Acho conveniente que a autoridade se ache também preparado de logo
acompanhar a força para lá para fazer-se no lugar as investigações
necessárias.
Rogo-lhe de acusar a recepção desta pelo portador.
O director”.
No mesmo dia, José Capistrano Barboza, o delegado de polícia e também vereador de
Santo Antônio do Paraybuna, mandou à colônia um oficial de justiça acompanhado do
destacamento policial da cidade. Foram presos apenas os colonos indicados pelo diretor como
sendo os líderes da sublevação: Hugo Euen, Josef Keil, Estalinao Beiser, Francisco
Schweigert e o comerciante suíço Ferdinando Augsburg.
Até o momento, não temos conhecimento de nenhuma tentativa de interpretação
histórica sobre a referida “tentativa de sublevação”. Este caso só aparece relatado uma única
vez em um estudo de Luiz Antônio do Valle Arantes
380
, sobre cotidiano e ética de trabalho dos
alemães, mas somente em caráter ilustrativo.
A presente análise tem como objetivo central compreender o significado histórico deste
crime de “Ameaça”, percebendo de que forma esta revolta se situa em relação ao contexto em
que essas pessoas viviam e em relação a inserção desses imigrantes na colônia. Em outras
palavras, pretendemos entender mais especificamente as relações de resistência e
subordinação; apreender como as representações dos colonos alemães pobres e dos
“poderosos” (representados pelo diretor da colônia e pelo presidente da Companhia)
380
ARANTES, Luiz A. V. Caminhos incertos, conflitos religiosos e empreendimentos: a trajetória dos alemães
na cidade. In: BORGES, Célia M. (org.) Solidariedades e Conflitos: Histórias de vida e trajetórias de grupos em
Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edufjf, 2000, p. 95-7.
186
divergiam das falas e dos atos praticados na interação entre estes grupos. Objetivamos
também, apreender estas constatações e relacioná-las com as representações acerca dos
imigrantes elaboradas pela historiografia local, na tentativa de relativizar a imagem do
germânico como agente natural do progresso e da modernização.
4.1
Os atores
Antes de passarmos para a análise mais profunda do processo de ameaças é pertinente
conhecermos melhor os homens que foram acusados de liderarem a tentativa de sublevação.
As únicas informações que conseguimos recolher a respeito destes indivíduos foram aquelas
relatadas nos autos do processo criminal. Buscamos também informações em inventários post-
mortem e em alguns jornais mas não encontramos nenhuma pista que pudessem nos revelar
maiores informações a respeito da revolta e até mesmo da vida dessas pessoas.
O primeiro a ser ouvido pela polícia foi Hugo Euen
381
. Nascido na Prússia em 1830 era
filho de Guilhermina e Frederico Euen, ambos já falecidos no período em questão. Tinha 28
anos quando tudo ocorreu e era também casado e alfabetizado. Chegou em Juiz de Fora em
Julho de 1858 e aportou no Brasil na barca Rhein, a segunda a realizar a travessia dos
imigrantes que formaram a Colônia D. Pedro II. Até setembro, morou na estação da
Companhia União e Indústria e, desde então até a data de sua prisão, no dia 31 de dezembro,
Euen passou a morar na “cidade”, perto da estação, onde abriu um estabelecimento e se firmou
como negociante. Devido as informações que obtivemos, acreditamos que ele não veio a ter
participação efetiva na sublevação, sendo envolvido no caso pelas ligações que possuía com
Beiser e pelas festas que deu em sua casa nos fins de dezembro.
Nascido em Tirol, no Império da Áustria em 1806, Estalinao Beiser foi o colono mais
velho a participar do movimento. Oriundo do vilarejo de Maroel (?) e filho de Maria e
Nicodemos Beiser, Estalinao tinha 52 anos quando chegou ao Brasil transportado pela barca
Gessner, a quarta a trazer os colonos. Era casado e morava na Colônia Pedro II desde a sua
chegada à cidade no dia seis de Agosto de 1858. Respondeu no Auto de Perguntas que
381
Como estamos utilizando apenas um processo criminal como fonte primária, a partir de agora não o citaremos
mais no texto. Fica então subentendido que, todas as vezes que fizermos referência ao ato sublevatório dos
alemães, estaremos nos remetendo ao já citado processo.
187
trabalhava como pedreiro, mas que também “vivia de ser feitor”. Foi preso na sua própria casa
no dia Primeiro de janeiro de 1859. Como dissemos acima, Beiser possuía ligações muito
estreitas com Euen que perpassavam pela esfera da amizade. Perguntado pelo delegado porque
vários alemães se reuniam na sua casa durante diversas noites, Euen respondeu:
“... que residindo em sua caza como criada de servir uma filha do colono
Beiser, este bem como toda sua família, e mais pessoas tinhão se reunido em
sua caza algumas vezes, e tractarão de no dia de São Silvestre se reunirem de
novo para cantarem, e dançarem como é de costume nos paízes da Europa”.
Da mesma forma, quando inquirido sobre os motivos que o levava a casa de Euen,
Beiser “Respondeo que estando uma sua filha como criada na caza de Euen, costumava vir
vê-lla”. Nota-se que a convivência da filha de Beiser na casa de Euen como criada,
possibilitou a aproximação destas duas famílias até então desconhecidas – já que uma era
prussiana e a outra tiroleza – e a participação de ambas em festividades tipicamente
camponesas onde se alegravam ao som de músicas e no ritmo das danças. Como veremos mais
tarde, tais festas foram palco de manifestações deste grupo, o que resultou na incriminação de
Euen sem o mesmo ter participação efetiva no movimento.
O terceiro ator a entrar em cena é o colono Josef Keil. Natural de Nauhlau (?) no Tirol
e filho de José Bartel e Jozefa Keil, o sapateiro Josef é apontado pelo diretor da colônia,
juntamente com Beiser, como líder da tentativa de sublevação. Com trinta e cinco anos no
momento da revolta, Keil era casado e acreditamos que tenha saído do porto de Hamburgo na
mesma barca em que estava Hugo Euen (Rhein). São poucos os dados que temos ao seu
respeito, porém teve participação destacada nos eventos, visto que no decorrer do processo,
em todos os testemunhos que apontam possíveis líderes, Keil tem presença marcante.
Filho de Francisco e Anna Schweigert e nascido no ano da independência brasileira em
S’Hettinzen, na região de Baden, Francisco Schweigert tinha 36 anos, era casado, alfabetizado
e trabalhava à jornal, sendo “administrador” das construções da rodovia. Assim como Keil,
morava na Colônia desde agosto de 1858, mas, ao contrário daquele, cruzou o Atlântico na
barca Osnabrück, a última a sair de Hamburgo.
O último indivíduo preso foi o negociante suíço Ferdinand Augsburg. Este solteiro de
42 anos nasceu em Longnau e não era membro da colônia Pedro II. Vivia de ser mascate
juntamente com mais dois franceses e foi apontado pelo Diretor Giobert como sendo o
188
“conselheiro” da tentativa de sublevação. Devido a natureza de sua profissão, pairava sobre
ele a desconfiança de ser um aliciador de colonos que estava tirando vantagem da situação
conflituosa. Havia um grande medo, por parte da direção da colônia, que o suíço estivesse
tentando levar os germânicos para trabalhar em alguma fazenda que estivesse carecendo de
braços na lavoura. Além disso, foi acusado de vender armas para os colonos atentarem contra
a vida do Diretor. O que conseguimos apurar através dos testemunhos contidos no processo foi
que realmente Augsburg vendeu uma arma ao colono Pedro – o qual não conseguimos
identificar. Se realmente era ou não aliciador de colonos, os dados presentes no processo não
permitiram nenhum tipo de afirmação.
No decorrer da pesquisa, não foi possível precisar o número exato de participantes das
reuniões onde eram discutidas algumas possibilidades de melhorias em suas condições de
moradia e subsistência. Entretanto, um contigente aproximado de “revoltosos” aparece no
processo. Tanto no relato de Giobert, presente na carta que mandou para o delegado, quanto
nos depoimentos dos acusados e das testemunhas, figuram cerca de 25 a 30 germânicos.
Devido ao fato das testemunhas conhecerem poucos participantes das reuniões, e dos acusados
não revelarem nomes, tivemos acesso a poucos indivíduos. Sabemos que em algumas das
reuniões estiveram presentes Spengler com sua família, “Seppel Tirolês com sua mulher,
Maria Viúva de fulanno de tal, Julio Amberger solteiro, Hoffman cazado, Greise solteiro”.
Além destes, temos notícias de que estiveram presentes nestas reuniões um colono de nome
Walter, outro chamado Haber; Pedro, o tal que comprou um revólver do mascate suíço, o
próprio Glatzel, uma das testemunhas ouvidas no decorrer do processo, e também um francês.
Somando-se estes nomes com os dos acusados temos mais ou menos identificados 18 pessoas
e, dentre elas, pelo menos três mulheres participavam das reuniões.
Segundo os dados de que se dispõe, o grupo era formado majoritariamente por homens.
A presença feminina não teve muita proeminência na elaboração e discussão das propostas
visto que, aparentemente, não ocuparam posição de relevância no movimento. Entretanto, elas
participaram de todas as petições que foram feitas ao diretor da colônia exigindo melhorias nas
suas condições de sobrevivência, como fica claro nas declarações dos envolvidos.
Os principais expoentes da querela eram na sua grande maioria casados. Os únicos
solteiros identificados foram Júlio Amberger, Griese e o próprio Augsburg.
Com relação a idade e alfabetização, só obtivemos os dados dos indivíduos indiciados.
Com idades variando entre 28 e 52 anos, todos se declaravam alfabetizados em alemão e
189
desconheciam até aquele momento a língua portuguesa, visto que foi necessário o auxílio de
um intérprete no momento em que foram tomados os depoimentos. Contudo, pela dificuldade
com que assinaram seus nomes nos autos do processo, parece que a alfabetização destes
indivíduos era bastante precária.
Outra questão que nos chamou a atenção foi o fato de apenas Keil, Euen, Beiser,
Schweigert e Augsburg terem sido presos, já que o próprio Giobert sabia que cerca de 25
pessoas participavam da reunião. Com relação ao suíço Augsburg a resposta é fácil de se
descobrir. Como dissemos acima, ele era visto pelo diretor da colônia agrícola como aliciador
de colonos para as fazendas carentes de mão-de-obra e como um agitador externo que buscava
a desordem da colônia para atingir seus objetivos. Já nos casos dos colonos a resposta não é
tão clara. Ao que tudo indica, somente eles acabaram presos porque foram os únicos indicados
como líderes da revolta. Percebe-se claramente na fala de Giobert que, punindo
exemplarmente os líderes da sublevação, esta perderia sua força e os demais colonos
envolvidos voltariam as suas atividades normais e não dariam mais trabalho para a
administração da colônia. Em suma, a idéia do diretor era de que através da punição dos
líderes a revolta acabaria rapidamente e não seria necessário levar para a cadeia municipal um
contingente tão importante de mão-de-obra relativamente especializada, o que certamente
provocaria alterações no sistema de trabalho da Companhia União e Indústria.
Profissionalmente, os líderes da revolta encontravam-se todos na categoria de artífices
que trabalhavam para a Cia. União e Indústria e que naquele momento estavam buscando a
posse das terras que tinham direito pelo contrato assinado com a companhia. Possivelmente
eram indivíduos que fugiram de suas terras natais devido tanto a pressão demográfica, quanto
a tendência de proletarização que estava modificando o status social desta camada. Outra
questão que chama a atenção, é a vontade de receberem suas terras e começarem a cultivá-las,
sendo esta uma das causas principais do conflito. Além disso, foi a demora na entrega dos
lotes, bem como a resistência de alguns deles de irem trabalhar na construção da rodovia, os
fatores centrais da revolta.
Por último, cabe dizer que entre os líderes destacam-se indivíduos oriundos da Prússia,
Baden e principalmente do Tirol. Estatisticamente foram estas regiões, juntamente com
Hessen e Holstein, que forneceram o maior número de elementos migrantes para o quadro
local. Infelizmente, além dos líderes, só conseguimos identificar a nacionalidade de duas
famílias que freqüentaram as festas na casa de Euen. Tanto a família de Spengler, que
190
conduzia as músicas nas festas, quanto a de Seppel eram tirolezas. Segundo os relatos
elaborados por um jornalista que acompanhou a comitiva do Imperador à Juiz de Fora por
ocasião da inauguração da Rodovia União e Indústria, somente os tirolezes possuíam uma
companhia de música e se vestiam tipicamente em ocasiões festivas. Seus uniformes eram
compostos de “blusa com pano mescla azul-cinzento, cinto de couro preto, chapéu de feltro
cor clara, à suíça, com uma aba levantada, presilha de galão de ouro e pluma verde
pendente
382
.
A comunidade teuta, oriunda de vários estados e principados do que hoje se constitui a
Alemanha e a Áustria, com hábitos e práticas culturais bastante diferentes, encontrou e
vivenciou conflitos das mais diferentes formas nos primeiros momentos de inserção nas várias
partes da colônia. Como a medição dos prazos ainda não estava concluída, os colonos ficaram
distribuídos em instalações precárias em vários locais da municipalidade. Alguns foram
instalados, como já dissemos, perto da lagoa da gratidão, outros nas estalagens da Companhia
U. I. e outros ainda nas imediações da colônia de cima, do meio e da Villagem. Desta forma, é
difícil concluir que não tenha havido conflitos entre indivíduos que, na maior parte dos casos,
nunca tinham se visto antes e que, a partir daquele momento, foram obrigados a conviverem
praticamente juntos em situações, no mínimo, inóspitas.
Keil, tirolês do Império Austríaco, indicou no seu depoimento duas testemunhas como
inimigas; a prussiana Anna Kelmer e o tirolês Glatzil. A testemunha Anna Kelmer era vizinha
“de parede” de Keil, além de ter sido uma das principais delatoras das transcrições ocultas
compartilhadas nas reuniões na casa do mesmo. Como ela mesmo indica, ficava de ouvido
grudado na parede escutando todos os assuntos tratados nas conversas entre os participantes
do grupo. Ao que tudo indica, já eram inimigos a um certo tempo devido a desavenças de
causas desconhecidas.
Jorge João Glatzil, enfermeiro da colônia D. Pedro II, também não tinha bons
relacionamentos com Keil. A inimizade dos dois, segundo este último, vem desde a travessia
do Atlântico “: porque estando elle testemunha envolvido de distribuir a farinha a bordo do
navio em que vierão não a distribuir como devia ser, e antes a vendeo neste Pays”.
382
Viagem Imperial de Petrópolis a Juiz de Fora por ocasião de inaugurar-se a estrada “União e Indústria”.
Coleção de Artigos publicados no “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro em 1861. Juiz de Fora:
Typographia “Sul”, 1919. p. 40.
191
Já Schweigert afirma que José Guilherme Jorge, outra das testemunhas ouvidas no
inquérito, seria dependente de Giobert e por isso seu depoimento não seria verdadeiro.
Realmente se compararmos o depoimento de José Guilherme Jorge com a carta que o diretor
mandou para o delegado, transcrita na primeira parte do trabalho, fica difícil não concordar
com as afirmações de Schweigert. Foi esta testemunha, ao que tudo indica, que fez chegar aos
ouvidos de Giobert que Keil ficara extremamente satisfeito com o boato da morte do diretor.
Analisando o depoimento deste oleiro de 19 anos, percebemos que possivelmente foi ele quem
levou a informação de que Schweigert, embriagado, tomara um estoque para atentar contra a
vida de Giobert, sendo impedido pela mulher e outro homem. Acreditamos também que foi J.
Guilherme que disse ao diretor que Beiser afirmara que ele não cumpria o que prometia e,
desta maneira sendo um impostor, deveria cortar-lhe as pernas e as mãos.
Como demonstramos indiretamente na introdução do trabalho, os alemães da colônia
D. Pedro II que chegaram ao Brasil em 1858, vieram das mais diferentes partes, com formação
cultural das mais diversas matrizes e assim sendo, não podem ser considerados de forma
alguma um grupo homogêneo, que vivenciava da mesma maneira suas experiências de
subordinação. Todavia, acreditamos que devido às dificuldades iniciais, alguns indivíduos de
padrões culturais diversos se uniram no intuito de contornar e enfrentar seus problemas, e
assim, acabaram minimizando suas diferenças em prol de um objetivo comum. Com o passar
do tempo, a partir da inserção deles em redes de solidariedades mútuas e com a formação de
laços de parentesco e amizade, a comunidade tornou-se mais coesa e menos heterogênea,
guardando ainda sim, as peculiaridades próprias de cada grupo.
Passemos agora para uma descrição dos fatos que levaram à repressão destes
indivíduos descritos nos autos do processo criminal.
4.2
A sublevação
Como já mencionamos acima, a única forma encontrada para penetrarmos nos eventos
em análise foi através do próprio processo criminal. O primeiro Jornal a circular em Juiz de
Fora, “O Pharol”, data apenas de 1873 e, através da leitura de outras fontes não encontramos
nenhuma referência empírica a respeito dos indivíduos que participaram da “revolta”.
Todavia, acreditamos que através da análise dos discursos produzidos perante a justiça pelos
192
colonos envolvidos, pelas testemunhas e pelo diretor, seremos remetidos a algumas das
aspirações destes germânicos, o que nos auxiliará a perceber como o projeto da sublevação foi
fomentado, como os colonos agiam entre si, longe da vigilância do “outro”, e como se
comportavam na presença de seus adversários.
Vejamos então como toda esta história foi construída e vivenciada por seus atores para,
em seguida, apreendermos como o grupo subordinado experimentou sua resistência à privação
de alimentos, terras e trabalho no último mês de 1858.
Ao retornar de uma viagem na última semana de dezembro, o diretor da Colônia, Jorge
Cristiano Giobert, escreveu duas vezes para o delegado e também vereador José Capistrano
Barbosa, pois descobriu que alguns imigrantes haviam se expressado com rancor e ódio a seu
respeito no período de mais ou menos 15 dias em que esteve em Petrópolis. Na primeira das
cartas, enviada por volta das sete horas da manhã do dia 31, Giobert pediu do delegado o
deslocamento da força policial da cidade para a colônia para prender os líderes de uma
“tentativa de sublevação”. Na segunda carta, enviada no mesmo dia, seu autor descreve o
plano dos conspiradores:
O plano que Beiser, Keil e Schweigerts tem em mente é o seguinte –
Instigarão aos que fazem parte do complot a reunir-se, para ao depois,
munidos e armados virem a minha casa e exigir-me tudo quanto queiram. Se
não forem atendidos que nada devem a companhia, cometerão as atrocidades
que tramam, atrocidades sem nome, porque às infâmias e aos crimes
começados a por em prática não se pode marcar o paradeiro”.[...] “Não
satisfeitos com isto, o colono Keil aventa a idéia de que melhor será por fogo
em tudo e que nada devem temer tendo-o à frente porque são muitos e de
bastante coragem e bem armados”.
Analisando o processo percebemos que na segunda quinzena de dezembro de 1858
ocorreram reuniões quase que diárias nas casas de Keil, Beiser e Euen. A casa deste último,
por exemplo, foi utilizada como palco de algumas destas reuniões nas quais ocorreram
reclamações, por parte de alguns colonos, da precariedade de suas condições de vida. Observa-
se nos depoimentos dos envolvidos que também reclamavam muito da falta de comida no
armazém da colônia e do alto preço cobrado por estes escassos alimentos e que algumas vezes
esses gêneros encontravam-se já deteriorados e, mesmo assim, eram vendidos para os colonos.
Em uma dessas reuniões Euen ouviu:
193
“[...] alguns colonos dizer que pretendião, representar pacíficamente
ao director da Colônia no sentido de melhorar-se a sorte dos mesmos: e a
razão era porque não recebendo os seos salários no tempo marcado, não
podiam cumprir seos pagamentos na cidade e por isso perdião o crédito para
os negociaçoens, e que alem disso no Armazém da Colônia vendião a carne por
um vintém mais caro do que na cidade”.
Outra informação importante que obtivemos nos relatos foi que Euen ouviu Beiser
dizer:
“[...] que o Ministro Austríaco lhe tinha aconselhado para entregar a
Giobert uma carta que o mesmo ministro lhe dirigia, com a qual elle ministro
esperava talvez melhorasse a sorte dos colonos, e que no caso de não ser
atendida, elle Beiser se reunisse com mais vinte ou trinta famílias, e se
retirasse pacificamente para outro lugar onde pudessem adquirir de pagarem o
que devia a companhia, e que o mesmo ministro se responsabilizava pela
conseqüência da retirada dos colonos”.
Infelizmente não encontramos tal carta e a informação que conseguimos apurar é que
Beiser a conseguiu numa visita que fez a este ministro em Petrópolis no início de dezembro,
antes da viagem de Giobert para o mesmo lugar. Sabemos também que este mesmo colono a
quis entregar ao diretor, na primeira das representações que organizaram para tratar da entrega
dos lotes, mas que este se negou a recebê-la. Este fato gerou grande ódio e rancor nos colonos.
Até a última semana de dezembro foi este o padrão de encontro que dominou
praticamente todas as reuniões. Tanto na casa de Beiser quanto na casa de Keil, ocorreram
reuniões quase diárias, com a presença de mais ou menos quinze pessoas, onde procuravam
encontrar alternativas práticas para que a situação calamitosa pela qual passavam fosse
resolvida. Foram nestas reuniões que programaram fazer uma representação ao diretor levando
suas reclamações. Com a recuperação dos relatos conseguimos descobrir que foram realizadas
duas representações, a primeira, que não conseguimos precisar o dia (possivelmente pouco
antes da viagem do diretor) e a segunda, no dia 28. Na primeira, os colonos foram recebidos
pelo diretor e reclamaram das péssimas condições as quais estavam submetidos e Giobert
prometera que assim que as medições dos prazos estivessem concluídas, os lotes de terra
seriam entregues para os colonos. Entretanto, as respostas fornecidas pelo diretor não
convenceram os colonos e estes fizeram outra representação no dia 28 de dezembro.
194
A partir deste segundo encontro oficial entre o diretor e os colonos, o padrão das
reuniões mudou. Neste dia eles foram até Giobert e, segundo Keil, “... elle respondente, e
mais alguns colonos em numero de trinta mais ou menos dirigiam-se [...] ao director, para
pedirem trabalho para subsistência de suas famílias, ou a entrega dos lotes de terras a que
como colonos tinham direito”. Entretanto, Giobert não os recebeu bem e se negou a ler e a
ficar com a carta escrita pelo ministro austríaco, gerando uma mudança de comportamento por
parte de alguns imigrantes. Desde então continuou-se a realizar reuniões nas casas de Beiser e
Keil, nas quais passaram a ser proferidas palavras de ofensas e ameaças ao diretor e à própria
Companhia União e Indústria. Observa-se também a eclosão de planejamentos de uma
sublevação que visava a resolução dos vários problemas já mencionados. Foi a descoberta do
conteúdo dessas reuniões que ocasionaram, no dia 31, a prisão dos mesmos por tentativa de
sublevação.
Das oito testemunhas incluídas no processo, duas eram vizinhas de Beiser e Keil. Boa
parte dos assuntos discutidos nestas últimas reuniões foram escutadas por Anna Kelmer,
vizinha de Keil, bem como por Jorge João Glatzel, enfermeiro da Colônia que do Hospital
escutava todas as conversas,visto que tal estabelecimento dividia parede com a casa de Beiser.
De acordo com Glatzel, foram tratados vários assuntos nas últimas reuniões realizadas
na casa de Beiser nos dias 29 e 30 de dezembro. Indo ao hospital atender alguns doentes, ele
ouviu:
“[...] dizer-se em tais reuniõens as seguintes palavras: estes ladrões,
estes cachorros, esta canalha, havemos de mostrar que nós podemos alguma
coisa, e que elles hão de lembrar de nós. Disse mais, que na última reunião que
teve lugar no dia trinta de Dezembro próximo passado estando elle testemunha
no mesmo lugar, isto é, no mesmo Hospital, ouvio dizer se na reunião que, as
palavras seguintes: hoje havemos de ir lá, e se não alcançarmos os nossos
direitos, havemos de mandar tudo para o diabo, e havemos de matar tudo”.
Segundo este enfermeiro, tais palavras eram proferidas contra o diretor, Jorge
Christiano Giobert, e contra a Companhia em geral.
Já Anna Kelmer, tiroleza do Império da Áustria, escutou o que foi dito em algumas
reuniões ocorridas na casa de Keil. No dia 30 ela ouviu:
“[...] que nessas reunioens gritarão muito, contra a Companhia União
Indústria, e contra Giobert, director da Colônia, e que na última reunião, entre
outras ameaças, ouvio a Beiser gritar da maneira seguinte: Há de se matar a
Giobert não de dia mas ocultamente: disse mais a testemunha que nessa mesma
195
ocazião disserão os colonos reunidos que havião de retirar se de dia armados
com tambores assim como vierão”.
Neste sentido, observamos que as reclamações ocorreram principalmente porque os
colonos perceberam que algumas cláusulas do contrato não haviam sido cumpridas e que não
estavam recebendo os serviços e benefícios prometidos pela companhia.
Na cláusula n.º 4 do contrato, por exemplo, fica estipulado que seria pago aos colonos
um salário nunca menor que 1$500 reis por dia. Contudo, o que estava ocorrendo na verdade,
como demonstramos anteriormente, é que desde sua chegada até pelo menos o final de
dezembro, os alemães não recebiam em dia seus salários. Era uma maneira clara de forçá-los a
consumirem os produtos do armazém da colônia que, além de serem mais caros, inseria o
imigrante numa rede de débitos que nunca o livraria da dependência da companhia – o que
impedia-lhes de manterem suas “contas” nos estabelecimentos da cidade, ocasionando-lhes
constrangimentos e humilhações.
Da mesma forma, a cláusula n.º 6 informa que a companhia teria a obrigação de
fornecer habitações convenientes para os colonos gratuitamente durante um ano. Entretanto
não foi isto que aconteceu. Até a conclusão das medições dos prazos e da entrega dos mesmos,
(maio de 1859, ou seja, após quase um ano da chegada dos alemães) boa parte dos imigrantes
ficou acampada nas proximidades da infecta lagoa da Gratidão sem as mínimas condições de
higiene o que provocou o retorno do Tifo entre estes indivíduos, ocasionando pelo menos 30
mortes.
Outro motivo sério de descontentamento foi a demora da entrega dos lotes. Como
vimos acima, os alemães várias vezes se dirigiram a Giobert para pedirem “a entrega dos lotes
de terra que os colonos tinham direito”. Sendo a maioria dos colonos formada por agricultores
e/ou agricultores-artífices, percebe-se facilmente os problemas que a falta de terra ocasionou
no sistema produtivo e de subsistência destes indivíduos e, conseqüentemente, a revolta que se
disseminou entre os colonos com recebimento da notícia que teriam que esperar alguns meses
pelas terras cuja posse havia sido regulamentada através de um contrato de trabalho.
Neste sentido, nossa “quase-rebelião”, tentando criar uma estratégia de negociação,
acabou tendo seus fins não concretizados. Os colonos buscaram o que acreditavam ser parte de
seus direitos através de uma linguagem respeitosa e subserviente para, desta forma, evitarem a
represália que viria em seqüência de uma possível exaltação de ânimos (como na verdade
196
veio). Não foram capazes, entretanto, de perceber que a estrutura de dominação existente que
tentaram desafiar estava de tal forma solidificada que até suas reuniões ocultas não
conseguiram escapar do controle e vigilância do diretor da colônia.
Assim como dissemos no segundo capítulo, partimos da analogia feita por Carlo
Ginzburg a respeito das semelhanças entre o trabalho do inquisidor e do antropólogo
383
, para
analisarmos os processos criminais envolvendo germânicos. Sabemos que os mesmos devem
ser lidos como resultado de uma relação especial, em que há desequilíbrio total das partes
envolvidas. Para decifrá-los, temos que aprender a perceber, para além da superfície do texto,
a interação sutil de ameaças, medos, ataques e recuos, ou seja, temos que aprender a
desembaraçar as teias que formam a malha textual desses diálogos
384
. Sendo assim, estando
ciente do papel que possuem os vários mediadores presentes no processo (no caso o próprio
aparato coercitivo e também a diferença lingüística), atuando como filtros que atenuam,
reforçam ou distorcem os conteúdos culturais
385
, buscamos perceber os elementos motivadores
do projeto de sublevação ora em análise.
Os germânicos habitantes da Colônia agrícola D. Pedro II planejaram ações
conspiratórias por possuírem a noção clara de que não eram simples servos da Companhia
União e Indústria, merecedores de sua benevolência e favores. Sabiam que eram trabalhadores
assalariados livres, que possuíam alguns direitos versados em um contrato de trabalho
assinado com a mesma companhia. Na impossibilidade de assegurarem seus direitos de forma
explícita devido a enorme disparidade de poder, tentaram obter seus direitos através de uma
via pacífica, marcada por atos de deferência e submissão, mas como não foram atendidos,
apelaram para uma via alternativa permeada por teores conspiratórios e sublevatórios que
perpassava por atos incendiários, de violência e homicídio.
Em um ensaio já clássico, E. P. Thompson definiu a “economia moral da multidão
inglesa do século XVIII” como o conjunto de valores que legitimavam, aos olhos dos seus
autores, os tumultos por causa do preço e qualidade do pão que se verificava na Inglaterra dos
setecentos
386
. De acordo com Thompson, em épocas de alta dos cereais e dos gêneros
383
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações. In: A Micro-História
e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 206.
384
Idem, p. 210.
385
GINZBURG, Carlo. Os pombos abriram os olhos: conspiração popular na Itália do século XVII. In: A Micro-
História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 132.
386
THOMPSON, E. P. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: Costumes em Comum:
estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 150-202.
197
alimentícios na Inglaterra do século XVIII, os que se rebelavam pela falta de alimentos
acreditavam que sua ação coletiva e violenta se justificava pelo fato da comunidade sentir que
sua concepção de práticas de mercado “justas” tinha sido violada. As pessoas que sublevavam
viam a legitimação de suas ações no fato de serem inspirados pela crença de que estavam
defendendo direitos ou costumes tradicionais e, em termos gerais, de que eram apoiados por
um forte consenso da comunidade
387
.
Também o fenômeno que estamos analisando parece inspirar-se em valores análogos.
Por acreditarem que os termos de seus contratos não estavam sendo cumpridos adequadamente
pelo diretor da colônia, os colonos insatisfeitos organizaram duas petições ao diretor,
marcadas com signos de deferência e subordinação. Acreditavam que suas atitudes eram justas
por se tratar do requerimento de direitos legais. Não tendo suas vontades atendidas tomaram o
papel que cabia a justiça e agiram em prol da consumação de seus direitos.
A sublevação poderia assumir dois papéis para os alemães: funcionaria como o
estabelecimento de uma ordem desejada, pois alguns membros do grupo esperavam ter suas
expectativas garantidas através de seus atos e, com isso, levar suas vidas trabalhando e
cultivando suas subsistências em suas propriedades. Já para o grupo com pensamentos
análogos aos de Beiser e Keil, a sublevação funcionaria como uma espécie de vingança,
marcada por signos de ódio e violência, contra o destrato cometido pelo diretor da colônia,
onde tudo seria destruído e os colonos sublevadores iriam para outro lugar que possibilitasse a
garantia de condições dignas de sobrevivência. Nesse sentido, compreende-se porque
germânicos das mais diferentes localidades e de forma nenhuma homogêneos se uniram.
Apesar de possuírem valores culturais diferentes, a espontaneidade das ações permitiu a
coesão desses grupos em um momento de conflito.
A grande diferença entre os amotinados analisados por Thompson e os colonos
alemães empregados da Cia. União e Indústria é que os primeiros lutavam por direitos
tradicionais, consuetudinários, enquanto que os segundos buscavam o cumprimento das
cláusulas dos contratos de trabalho legais assinadas ainda em suas terras-natais, antes do
embarque para o Brasil.
387
Idem. Passim.
198
As atitudes dos colonos alemães, marcadas por planos sublevatórios violentos,
configuravam situações obviamente não identificáveis com o caos ou com a anomia. Na
afirmação violenta ao direito das terras, de melhores trabalhos e alimentação, afloravam
valores e tensões latentes nos períodos anteriores de normalidade. Daí um valor sintomático de
um fenômeno marginal como indício das dificuldades iniciais da inserção dos germânicos na
cidade de Juiz de Fora.
Apesar de ter sido suprimida antes de sua possível eclosão e de não ter possibilitado
muitos resultados positivos em prol dos colonos, essa revolta nos possibilita apreender as
condições iniciais da imigração teuta para Juiz de Fora bem como perceber como estes
imigrantes vivenciaram suas primeiras experiências de escassez e opressão em solo brasileiro.
A partir de agora, estaremos analisando os discursos proferidos pelos vários atores envolvidos
na história para tentarmos compreender o significado histórico das formas que estes indivíduos
encontraram para reagir e resistir a toda esta situação.
4.3
As Transcrições Públicas e Ocultas
O modelo de análise que utilizaremos a partir de agora deriva do livro “Domination
and the Arts of Resistence” de James Scott
388
. Neste trabalho, o autor faz observações sobre as
relações de poder e discurso, hegemonia, resistência e subordinação, direcionando seus
esforços para o estudo da dramaturgia do poder e das artes da dissimulação. Os conceitos
centrais desta obra são os já citados “Transcrição Pública e Transcrição Oculta”. Acreditamos
que a aplicação desses conceitos na análise do processo criminal de ameaças permitirá a
compreensão de como os elementos presentes na tentativa de sublevação foram gerados e
compartilhados entre os colonos e, além disso, possibilitará a percepção de como e porque
essas pessoas tiveram seus planos descobertos pelo diretor da colônia e acabaram sendo
punidas. Em suma, a sua utilização fornecerá subsídios para a compreensão de alguns
elementos significativos relacionados com a resistência vivenciada pelos alemães da Colônia
Pedro II em dezembro de 1858.
388
SCOTT, James C. Domination and the Arts of Resistence. Hidden Transcriptions. New Haven: Yale
University Press, 1990.
199
4.3.1 As Transcrições Públicas
Transcrições Públicas são as representações de poder produzidas nas interações diretas
entre poderosos e subalternos
389
. Nelas, os subalternos dirigem seus comportamentos
estrategicamente para se encaixar nas expectativas dos poderosos, dando signos de deferência
e respeito, não questionando ou replicando os insultos.
Ao analisarmos nosso processo percebemos que os envolvidos na organização da
sublevação aparecem como indivíduos que têm bem claro seus objetivos, mas que buscaram
alcançá-los de forma subserviente e pacífica, demonstrando claramente deferência em seus
comportamentos públicos. O réu Schweigert, por exemplo, quando perguntado pelo delegado
se havia tratado de fazer uma representação ao diretor da colônia, “respondeu que, ele com
outros, se dirigiram
pacificamente na terça-feira passada ao diretor para pedir trabalho para
os colonos”. Na mesma situação, Josef Keil “respondeu que ele respondente, e mais alguns
colonos em número de 30 mais ou menos, dirigiram-se a poucos dias ao diretor,
pacificamente, para pedirem trabalho para a subsistência de suas famílias, ou a entrega dos
lotes de terra a que os colonos tinham direito.” Já Hugo Euen “ouviu alguns colonos dizer que
pretendiam representar pacificamente ao diretor da colônia no sentido de melhorar a sorte
dos mesmos”. Segundo Beiser, ele “quis entregar a carta ao diretor Giobert mas
ele não quis
aceitá-la”.(todos os grifos são meus)
Como nos casos analisados por Scott, as práticas de deferência apresentadas pelos
colonos em questão devem ser interpretadas sobretudo como um contragolpe de um desejo de
respeito e submissão exigidos pelos seus superiores, em outras palavras, exigidas por Giobert,
o diretor da colônia.
Todavia, que tipo de evidências possuímos para afirmar que tais representações
públicas apresentadas perante o diretor não foram sinceras, naturalmente respeitosas, mas sim
altamente dissimuladas? Quando acessamos as opiniões dos colonos referentes ao diretor,
percebemos que, nos momentos em que estão longe da vigilância do mesmo, invariavelmente
se referem a Giobert como “ladrão”, como “indivíduo que não cumpre suas promessas” e que
por isso, “deveria ter as mãos e os pés cortados”, a punição clássica aplicadas em ladrões. Em
389
“Pública” significa ação que é abertamente declarada à outra parte na relação de poder e “Transcrição”, no
sentido jurídico que utiliza Scott, significa gestos, palavras, ações e expressões culturais. São, se assim podemos
200
todos os momentos em que se encontram sozinhos, mostram ódio e rancor a respeito daquele
que exerce a autoridade direta sobre eles. A partir deste fato, podemos apontar algumas
constatações. Em primeiro lugar, fica claro que as aparências que o poder requer são impostas
forçosamente sobre os subordinados. No palco, os papéis são largamente escritos de cima e
devem reforçar as aparências aprovadas pelos dominantes
390
. Quando lemos a maior dentre as
cartas escritas por Giobert, observamos que uma das coisas que mais lhe espantou foi a
“rebelião” de pessoas que, segundo ele, deviam-lhe respeito e reconhecimento, em outras
palavras, percebe-se que o comportamento subserviente por parte dos germânicos é mais
requerido por Giobert do que aceito naturalmente por eles. Neste sentido, os subordinados
ensaiavam uma performance de deferência, procurando discernir e ler as intenções reais e o
ânimo ameaçador do diretor da Colônia. Já este último produzia sua performance de domínio e
comando procurando sempre observar por trás das máscaras dos dominados. A maior parte
dos atos públicos dos colonos perante a face do poder foi desta forma dedicada a
representações forçadas, controladas, basicamente devido a desigualdade da relação de poder,
pois se agissem publicamente de outra forma, a repressão não tardaria em aparecer.
A Transcrição Pública foi também utilizada pelo outro lado da relação de poder, mas
com o intuito de esconder os fatos inconvenientes que pudessem levantar dúvida à sua
legitimidade. Quando os inquéritos foram concluídos, Mariano Procópio, presidente-diretor da
Cia. União e Indústria e da Colônia Pedro II, envia uma carta ao juiz responsável pelo caso, o
Doutor Antero José Lage Barbosa, membro de uma importante família local, pedindo que seus
colonos fossem soltos. Estipulada a quantia de 1:380$000 (um conto e trezentos e oitenta mil
réis) como fiança, Mariano autoriza o pagamento da mesma e, além disto, fornece aos colonos
um advogado de defesa (seu próprio advogado e um dos mais famosos de Juiz de Fora –
Moraes e Castro), conseguindo também com o juiz que eles não comparecessem para prestar
contas até o dia do julgamento.
Este simples evento propiciou, ao nosso ver, duas vitórias para o Presidente da Cia.
União e Indústria. Em primeiro lugar, pagando a fiança, Mariano mostra-se e é aceito como
benevolente, o que facilitou a dominação posterior destes indivíduos, pois agindo desta forma,
ele ganhou legitimidade entre os acusados e deixou de ser visto como agente de dominação,
dizer, as representações produzidas por ambas as partes e, por representação, entendemos o modo através do qual
uma determinada realidade social é dada a ler, construída e pensada.
390
Idem. p. 32-6
201
fato verificado em todo o processo. Em nenhum momento, Mariano Procópio é apontado pelos
colonos como autor das injustiças sofridas por eles, sendo Giobert o receptáculo de toda a
culpa. Em segundo lugar, além do mascaramento da dominação, o presidente da companhia
pode tranqüilamente libertá-los, pois a opressão simbólica já havia sido efetuada. Essa
expressão de poder substituiu, neste caso, o uso pesado da força coercitiva, economizando
assim o uso da violência. O simbolismo visível da repressão permaneceu no meio dos
imigrantes, na forma de palavras, na ameaça de novas prisões e de repressão. Entretanto,
permanece a dúvida: o grupo subordinado interiorizou que seus superiores eram poderosos e, a
partir de então, acabaram impondo a si mesmo uma grande parcela de subordinação ou
acabaram, mais uma vez, resistindo como puderam fazendo uso sobretudo da deferência e da
subserviência no trato com os seus superiores?
A análise das transcrições públicas, apesar de elucidar eventos importantes das relações
de poder entre os grupos, é incapaz de mostrar plenamente os elementos conflituosos que
estão inseridos nestas relações, pois quando é interessante para uma ou ambas as partes, como
demonstramos acima, o comportamento pode ser tacitamente distorcido ou dissimulado. Desta
maneira, observamos que a grande disparidade de poder entre dominantes e subordinados e,
somado a isto, a excessiva arbitrariedade na qual ele é exercido, fez com que a maior parte das
transcrições públicas dos subordinados adquirisse uma forma estereotipada, uma espécie de
molde ritualístico. Neste sentido, quanto maior foi a ameaça mais espessa se tornou a máscara
de dissimulação usada pelos fracos. A Transcrição Pública não conta toda a história, pois pode
retratar a deferência e o consentimento como as únicas táticas de sobrevivência que os fracos
possuem para lidar com a opressão dos poderosos, bem como pode dar a impressão de que na
maioria dos casos os subordinados endossam os termos de sua subordinação e são cúmplices
da mesma
391
.
4.3.2 As Transcrições Ocultas
Se o discurso dos subordinados na presença do poder é denominado Transcrição
Pública, Scott usa o termo Transcrição Oculta para caracterizar as representações que ambas
391
SCOTT, James C. Domination... op. cit. p. 2-4.
202
as partes elaboram entre seus pares sem a presença do outro lado e, no caso dos fracos, elas
são formuladas em ocasiões onde o poder coercitivo das elites é suspenso. São os discursos de
bastidores, proferidos fora da observação direta dos detentores do poder, sendo também
formadas por práticas gestuais e/ou sonoras que confirmam, contradizem ou flexionam o que
aparece na Transcrição Pública produzida por cada grupo nas relações de poder. É por meio
delas que as pessoas formulam as noções contestatórias da realidade social e organizam a
resistência cotidiana. Quanto mais escondidas dos poderosos, as transcrições se tornam mais
completas e coerentes, servindo como um tipo de contra-ideologia, especialmente quando a
dominação é experimentada de uma forma relativamente homogênea. De acordo com Scott, é
através da análise das transcrições ocultas que conseguimos perceber a natureza das
expressões populares e, por meio da discrepância entre as duas transcrições, que podemos
julgar o impacto da dominação no discurso público
392
.
Para os subordinados, a Transcrição Oculta é em grande parte produto da Transcrição
Pública. Devido a necessidade de controlar as emoções e de reprimir as respostas naturais aos
insultos e a indignidade as quais estão sujeitos na interação com os poderosos, os
subordinados criam um impulso de desabafar e de restabelecer a dignidade quando
estabelecem interações sociais entre si protegidos da vigilância dos poderosos
393
. As reações
mais fortes dos subalternos à Transcrição Pública acontecem não somente por causa da
violência material a qual estão submetidos, mas também devido à violência simbólica que
experimentam em decorrência da exploração.
Em todos os depoimentos colhidos, fica claro que o descontentamento entre os colonos
ocorria, basicamente, pela falta de salários, pela escassez de alimentos, pela demora na entrega
dos lotes e pela vergonha ocasionada pela perda de crédito com os comerciantes da cidade.
Segundo Euen:
“[...] elle respondente tem por diversas vezes ouvido a alguns colonos
queixarem-se de que no armazém da Colônia lhes vendião os mantimentos já
deteriorados, e que por essa razão elles colonos preferião comprar antes os
mantimentos na cidade embora por maior preso, e que se queixarão mais do
que em vés de receberem seos salários no devido tempo os recebião com maior
demora e que foi essa a razão, são obrigadas a comprarem os viveris no
armazém da Colônia. Também ouvio alguns colonos dizer que pretendião,
representar passívelmente ao director da Colonia no sentido de melhorar-se a
392
Idem., p. 14
393
MONSMA, Karl. James C. Scott e a Resistência Cotidiana no Campo: uma avaliação crítica. In: BIB, Rio de
Janeiro, nº. 49, 1º Semestre de 2000. p. 102
203
sorte dos mesmos: e a razão era porque não recebendo os seos salários no
tempo marcado, não podiam cumprir seos pagamentos na cidade e por isso
perdião o crédito para os negociaçoens, e que alem disso no Armazém da
Colônia vendião a carne por um vintém mais caro do que na cidade”.(grifos
meus)
Segundo Beiser, “o objeto de suas queixas consentia na falta de pagamento de seos
salários no devido tempo, e por causa da má qualidade dos viveres, sendo que algumas vezes
sentiam faltas dos viveres”. Keil disse também “que dirigiam-se a poucos dias ao director,
para pedirem trabalho para subsistência de suas famílias, ou a intrega dos lotes de terras a
que como colonos tinham direito.”. A mulher de Schweigert numa visita a este na cadeia, no
dia 3 de Janeiro, “lhe disse que no Armazém só havia feijão e sal e mais nada.” Percebemos
também em tais relatos uma resistência a proletarização pois, com a demora na entrega dos
lotes, alguns colonos eram obrigados a trabalhar na construção da rodovia e assim, se viam
afastados da vida camponesa:
“[...] no mês passado alguns colonos reunidos dirigiram-se ao director
da Colônia lhe pedirão a intrega das terras, para trabalharem, pois que não
eram obrigados a irem trabalharem na Estrada do Parahybuna por ser longe, e
que o director Giobert, os receberá muito bem, e lhes prometerá intregar-lhes
os lotes de terras logo que esta digo que a medição destas estivessem
concluídas”.
Analisando o “outro lado”, temos as declarações de Giobert, o diretor da Colônia.
Somente nas cartas enviadas para o delegado – evidentemente um espaço protegido – é que ele
proferiu suas verdadeiras opiniões a respeito daqueles indivíduos que lutavam pelos seus
direitos. Nelas observamos que a única preocupação dele era com a preservação de sua própria
vida, ignorando que as ameaças feitas pelos germânicos eram fruto do descaso que ele acabava
demonstrando no contato direto com os imigrantes.
Por parte dos revoltosos, percebemos que a maior parte das reuniões onde foram
proferidas as ameaças contra o diretor e onde expressaram seus sentimentos ocultos ocorreram
no período em que Giobert estava viajando para Petrópolis (15 a 26 de dezembro) e nas
ocasiões em que se encontravam sozinhos, nas casas de Beiser, Keil e Euen. As opiniões que
proferiram a respeito do diretor, nestas situações, foram ofensivas desmerecendo o caráter do
mesmo.
204
Na Transcrição Pública, estes imigrantes tinham que aceitar as humilhações
decorrentes da falta de alimentos, terras, entre outros, humildemente e sem demostrar reação.
Por isso, muito do que ocorria na Transcrição Oculta destes indivíduos compunha-se de
reações à Transcrição Pública. Eram respostas e negações produzidas “fora do palco”, ou seja,
longe da presença de Giobert. Isto é facilmente perceptível nos discursos relatados no
processo. A testemunha Glatzil ouviu Beiser dizer: “hoje havemos de ir lá, e se não
alcançarmos os nossos direitos, havemos de mandar tudo para o diabo, e havemos de matar
tudo [...] dicerão mais que não tinhão medo de que alguém lhes fizessem opozição pois que
tinhão armas”. Já Anna Kelmer ouviu Beiser gritar da seguinte maneira:
Há de se matar a Giobert não de dia mas ocultamente: disse mais a
testemunha que nessa mesma ocasião disserão os colonos reunidos que havião
de retirar se de dia armados com tambores assim como vierão.” [...] “nessas
reunioens tractou-se de irem os colonos terem se com o Director Giobert que
desse as terras a que tinhão direito, e que no caso d’este não lhe entregar,
seria melhor incendiar tudo quanto fosse da companhia pois que não valia o
diabo.”
Outra testemunha, José Guilherme Jorge:
Disse que a quinze dias mais ou menos por ocozião de estar o director
Giobert em Petropolis, espalhou-se entre os colonos o boato de que o mesmo
Giobert, tinha sido morto, mas não sabe elle a testemunha quais as pessoas,
que espalharão este boato, e que nesta mesma ocazião ouvira dizer a outras
pessoas que keil tinha mostrado satisfação com esse boato: disse mais ter
ouvido a diversas pessoas da Colônia dizer que Scheveigert estando
embriagado tomara um estoque e dissera que hia matar a Giobert, mas que a
sua mulher e outro lhe seguirão, detiverão no, e o fizerão voltar e o amarrara.”
[...]ouvio o Beizer dizer que Giobert era uma ladrão, que não fazia o que
prometia, e que nesta mesma ocazião Beiser dissera aos outros colonos que
fizeram como elle, e que se dirigissem as terras, e que como Geibert, era um
impostor, e um ladrão se lhe devia cortar as pernas, e as mãos
A frustração gerada neste processo de dominação pode ajudar muito a compreender o
conteúdo destas representações. O que percebemos nas declarações transcritas acima é que as
palavras ditas pelos germânicos representavam ações de raiva, ódio e agressão recíproca que,
devido ao medo de retaliações, eram negadas publicamente na presença da dominação. Neste
sentido, tais atos funcionavam para os colonos também como uma espécie de retaliação
205
simbólica que era praticada nos bastidores para evitar opressão direta
394
. Um bom exemplo
desse tipo de retaliação foi o papel que a fofoca realizou entre os colonos revoltados.
De acordo com Scott
395
, a fofoca seria talvez a forma de agressão popular disfarçada
mais familiar e elementar. Ainda que seu uso raramente confirme o ataque dos subordinados
sobre as elites, ela representa, na maioria das vezes, uma sanção social cautelosa e prudente.
Isso acontece porque – pelo menos teoricamente – a fofoca não tem autor identificável e sendo
assim, qualquer um pode negar sua autoria. Uma característica que distingue o rumor da
fofoca, encontra-se no fato desta se constituir tipicamente de histórias que são designadas para
degenerar a reputação de pessoas identificáveis. Se tal perpetração permanecer anônima, a
vítima estará claramente especificada. Já os rumores não são necessariamente dirigidos a uma
pessoa em particular. Além de ser o transmissor das notícias que interessam ao grupo
subordinado, o rumor não funciona somente como oportunidade de fornecer anonimato e
proteção, mas principalmente, funciona como um veículo de propagação das aspirações que
não podem ser abertamente admitidas por seus propagadores sem que sofram sanções. Para
Scott, os rumores acabam trazendo mensagens de libertação que são usadas simbolicamente
para aliviar a carga pesada de dominação e opressão. Além disso, como temos demonstrado,
este tipo de ação que contesta o poder anonimamente, depende da existência de espaços
sociais para a elaboração de transcrições ocultas, onde as relações e tradições possam crescer
com um grau significativo de autonomia dos dominantes.
O único caso de propagação de rumores ou boatos que aparece no processo foi descrito
pela última testemunha a ser ouvida no inquérito, o jovem José Guilherme Jorge. Segundo ele:
“[...] a quinze dias mais ou menos por ocazião de estar o director Giobert em
Petrópolis, espalhou-se entre os colonos o boato de que o mesmo Giobert,
tinha sido morto, mas não sabe elle a testemunha quais as pessoas, que
espalharão este boato, e que nesta mesma ocazião ouvira dizer a outras
pessoas que Keil tinha mostrado satisfação com esse boato...”
Este evento apresenta algumas das características inerentes às duas estratégias que
indicamos acima, mas também guarda algumas peculiaridades. Em primeiro lugar, fica claro
no testemunho que o autor ou autores do boato são desconhecidos, fato este que, pelo menos a
princípio, impediria a punição de alguém. Tal como a fofoca, este boato foi direcionado contra
394
SCOTT, James C. Domination... op. cit. p. 37-8.
395
Idem. p.142.
206
a pessoa do diretor da colônia, mas percebemos que foi proferido num momento em que,
aparentemente, a vigilância vinda de cima estava ausente, visto que Giobert estava viajando.
Da mesma forma, serviu como veículo para propagar certas aspirações do grupo já que a
morte do diretor – elemento direto de opressão e humilhação – aliviaria, pelo menos
simbolicamente, uma parcela da dominação sofrida e certamente possibilitaria a recriação
mental de novas estruturas sociais por parte de certos indivíduos da comunidade.
Outro aspecto que nos chama a atenção é o resultado social trazido por esta libertação
psicológica. O senso de alívio pessoal, de satisfação e de orgulho manifestado no
comportamento de Keil é uma parte inconfundível de como a primeira declaração pública da
transcrição oculta é experimentada. Podemos dizer que tal atitude é interiorizada como uma
restauração do auto-respeito perdido através da dominação. Devido ao fato de terem sido
tratados injustamente, alguns colonos ficaram aguardando a oportunidade para mostrar signos
de comportamento agressivo. A humilhação e a coerção vinculada ao exercício do poder e a
frustração de ter que brecar o ódio e a vingança ocasionaram tal situação.
Contudo, o comportamento público de Keil diante do fato acabou retirando a única
vantagem que a comunicação oral possui nestes tipos de caso e que possibilita o sucesso
destas formas de resistência: o anonimato do mensageiro. Ao dar provas públicas de prazer
com a notícia da morte do diretor, Keil deixou de ser apontado apenas como um simples
propagador da mensagem e passou a ser identificado como o autor da mesma, trazendo para si
todas as conseqüências que o vazamento deste tipo de informação ocasiona. Quando Giobert
começa a averiguar as informações que recebe ao regressar da viagem, o evento que primeiro
lhe chamou a atenção foi o comportamento deste colono. Assim, ao escrever para o delegado,
a fim de buscar retaliações para aqueles que quebraram os signos de deferência publicamente,
o diretor, na primeira de suas conclusões, identifica Keil como o autor do boato, para que
assim as punições ao colono tirolês fossem legitimadas. Em outras palavras, o feitiço acabou
voltando-se contra o feiticeiro porque mais uma vez a fronteira entre as transcrições públicas e
as transcrições ocultas acabou sendo rompida inconscientemente por alguns elementos da
comunidade que não aceitavam passivamente a dominação.
Outra questão que percebemos é que nenhuma das práticas e discursos de resistência
pode existir sem o reconhecimento, coordenação e comunicação entre os grupos subordinados.
Para isto ocorrer, o grupo subordinado deve esculpir para si um espaço social isolado do
controle e vigilância vindos de cima. Isto ocorre porque a Transcrição Oculta, sendo um
207
produto social, é fruto das experiências comuns ao grupo e desta forma não existe como
pensamento puro, existindo somente na extensão em que é praticada, articulada, coordenada e
disseminada
396
. Neste sentido, não podemos esquecer que os espaços sociais nos quais a
Transcrição Oculta se desenvolve são eles mesmos uma realização de resistência.
Os locais primordiais par excellence para a criação destes espaços sociais são as
assembléias secretas. As festas, tavernas, igrejas são locais nos quais além da vigilância estar
suspensa, os comportamentos que são exigidos na transcrição pública também podem ser
esquecidos. São nestas ocasiões que surgem as blasfêmias, as paródias, entre outras coisas
397
.
Como relatamos acima, foram nas festas ocorridas na casa de Hugo Euen, na última quinzena
de dezembro, que se iniciaram as reclamações contra as situações precárias que estavam sendo
vivenciadas. Com o fracasso das “negociações” entre os colonos e o diretor, reuniões
sistemáticas passaram a ser realizadas nas casas de Keil e Beiser e, nestas ocasiões, a
deferência exigida publicamente foi abolida e foram proferidas ameaças e blasfêmias contra
Giobert:
Há de se matar a Giobert não de dia mas ocultamente: disse mais a
testemunha (Anna Kelmer) que nessa mesma ocasião disserão os colonos
reunidos que havião de retirar se de dia armados com tambores assim como
vierão.” [...] “nessas reuniões tractou-se de irem os colonos terem se com o
Director Giobert que desse as terras a que tinhão direito, e que no caso d’este
não lhe entregar, seria melhor incendiar tudo quanto fosse da companhia pois
que não valia o diabo.” [...] José Guilherme Jorge ouviu o Beiser dizer que
Giobert era uma ladrão, que não fazia o que prometia, e que nesta mesma
ocazião Beiser dissera aos outros colonos que fizeram como elle, e que se
dirigissem as terras, e que como Giobert, era um impostor, e um ladrão se lhe
devia cortar as pernas, e as mãos
Quando observamos esses dados percebemos que os colonos envolvidos acreditavam
estar plenamente protegidos do controle do diretor da colônia, pois se verifica que em tais
reuniões, eles ameaçavam, xingavam e conspiravam contra Giobert sem medo algum de serem
descobertos. Acreditavam que o espaço social que haviam “construído” para manifestar suas
opiniões sem dissimulação estava seguro da vigilância. Entretanto, tais locais acabaram sendo
“patrulhados” por alguns membros da própria comunidade; pessoas amigas e/ou dependentes
de Giobert e, em alguns casos, inimigas dos germânicos mais insuflados envolvidos nos
eventos. Podemos então perceber, porque as idéias dos colonos foram descobertas antes que
396
Idem. p. 118.
208
qualquer ação “sublevatória” fosse tomada. Por acreditarem que se encontravam em um local
seguro para emitirem suas verdadeiras opiniões, estes colonos não perceberam que ainda
estavam sendo vigiados e por isso, acabaram relatando seus desejos conspiratórios na face do
poder.
Estes espaços foram tão importantes que a todo o momento procurou-se destruí-los.
Percebemos nas cartas enviadas para o delegado que o diretor tentou desmerecer
veementemente as reuniões para legitimar a prisão e punição dos imigrantes:
“Advertido por muitos e, prevenido naturalmente pela minha própria
conservação, cheguei apagar-me do fio destas gentilezas e, pouco tem me
custado ao depois, avançar até o coração da trama no fato que a concebia.
Essa trama é negra como a alma dos perversos que por si mesmos ou
arrastados talvez ao crime por espírito ainda mais perverso, tiveram a audácia
de concebê-lo e o embalam.
4º - Ei-lo: nas casas aonde moravam os colonos Beiser e Keil, ora em
uma ora em outra, há reuniões noturnas.
5º - Nestas reuniões, além de alguns colonos, comparecem Hugo Euen e
o suíço Augsburg.
6º -
São estas reuniões uma espécie de desvario; formam tumulto
infernal, e figuram como cabeças os colonos Beiser, Keil e Schweigert.[...] Os
partilhadores nesta desordem não passam de 25 indivíduos...” (grifos meus)
Assim, a maneira de minimizar o ajuntamento não autorizado encontrado por Giobert
e portanto, evitar afrontamentos, foi proibir tais encontros visto que eram encarados de cima
como ameaça potencial à ordem. Observamos no discurso do diretor, que este considerava
mais perigoso aqueles encontros realizados fora do trabalho e, principalmente à noite. Ele
atuou desta maneira, pois sabia que se os colonos se congregassem, iriam comparar as
injustiças e fomentariam possivelmente intrigas revolucionárias. É por isso que foi tão
importante a presença de delatores entre os possíveis sublevadores, pois era na assembléia dos
subordinados que as verdadeiras opiniões dos fracos, a respeito da própria direção da colônia,
eram reveladas.
397
Idem. p. 120-2.
209
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No primeiro capítulo, procuramos observar sob quais pilares estavam apoiadas as
representações construídas pela historiografia local acerca dos imigrantes germânicos que
vieram atuar como mão-de-obra para a construção da rodovia União e Indústria e como
colonos da Companhia de Mariano Procópio. As atitudes destas pessoas foram analisadas, em
quase todos os trabalhos, sob uma perspectiva relativamente evolucionista (na qual o elemento
ariano era visto como sinônimo do desenvolvimento econômico e social local em virtude de
uma operosidade quase natural projetada sobre o europeu de cor branca) e anacrônica pois
tiveram suas vidas interpretadas apenas sob a luz dos empreendimentos fabris que não mais de
50 indivíduos de origem teuta criaram. Em outras palavras, com exceção do trabalho de
Mônica Oliveira, todas as outras obras, de uma forma ou de outra, analisaram o papel histórico
da imigração alemã local através das atitudes burguesas e capitalistas que uma ínfima parcela
dos imigrantes supostamente tiveram. Agentes do progresso e da civilização, empreendedores,
disciplinados para o trabalho, implementadores do processo industrial e da modernização do
município, mão-de-obra de excelente qualidade, sadio, pacífico, permeado de um ethos
militarizado e personificação da germanidade; foram estes adjetivos utilizados para descrever
o comportamento alemão na Juiz de Fora de meados do século XIX e início do XX.
Analisamos também obras literárias e obras de cientistas sociais brasileiros que
escreveram na primeira metade do século XX para demonstrarmos que a representação dos
germânicos acima citada não foi apenas obra de uma historiografia provinciana e tradicional.
Mesmo nos escritos de Graça Aranha, Mário de Andrade, Sylvio Romero e Oliveira Vianna, o
elemento teuto aparece, de uma forma ou de outra, com características semelhantes àquelas
construídas pelos autores juizforanos. Indicamos também a hipótese de uma vertente
evolucionista adotada, direta ou indiretamente, por estes autores ter sido um dos principais
fatores que propiciou a incorporação dos valores criados e incorporados pela aristocracia do
Kaiserreich a todo contigente germânico, formado em sua maioria por camponeses e artífices,
que emigrou para o Brasil.
Em contrapartida, nas obras literárias analisadas, o alemão aparece como um indivíduo
desprovido de sensibilidade, dividido entre os valores humanistas, descritos como idealistas, e
210
entre as atitudes pragmáticas típicas de protestantes ascéticos. Para estes autores o alemão
seria para sempre o elemento estrangeiro na cultura brasileira.
Observamos então que, em certa medida, tais representações não correspondiam às
experiências cotidianas vivenciadas pela imensa maioria dos alemães que migraram para Juiz
de Fora; indivíduos que em sua grande maioria foram obrigados a vender sua força de trabalho
como colonos, operários ou no setor de prestação de serviços, não tendo a projeção econômica
e social nem atitudes modernizadoras sugerida pela historiografia local mais tradicional.
No segundo capítulo, o estudo dos crimes cometidos e sofridos por indivíduos
germânicos abriu caminho para a compreensão de alguns padrões de violências, desvendando
valores básicos prevalecentes em uma parcela da comunidade teuta local e, às vezes, na
sociedade juizforana. Estes processos auxiliaram também na percepção dos motivos alegados
pelas partes envolvidas para cometerem tais ações, possibilitando a observação das relações
entre os germânicos e outras etnias, das relações dos germânicos entre si e também a
compreensão da relação que o aparato jurídico-policial mantinha com esse grupo.
Percebemos que a maioria das vítimas e dos acusados de cometerem homicídios,
violências físicas e verbais era formada por trabalhadores manuais de baixa renda,
funcionários de baixo escalão da Cia. União e Indústria, empregados do comércio, lavadeiras,
donas de casa, cocheiros de bonde, lavradores e colonos. Em boa parte dos casos a antiga
colônia de baixo – Villagem – apareceu como o local das querelas. Nos outros casos, o centro
da cidade foi o palco no qual os crimes acabaram sendo cometidos. Acreditamos que esses
fatos se explicam devido a possibilidade de contato dos germânicos com outros grupos, o que
invariavelmente acabou facilitando a criação de novas áreas de tensões.
Pode-se dizer que esses conflitos refletiram tanto a distribuição geográfica e temporal
dos germânicos quanto sua inserção social nos espaços urbanos. Em primeiro lugar, observa-
se que nos anos iniciais da inserção teuta em Juiz de Fora, os conflitos eram quase totalmente
interétnicos, ou seja, ocorriam somente entre germânicos e na colônia agrícola na qual eles
habitavam. Assim, até meados da década de 1870, mais de 70% dos crimes envolvendo
germânicos foram frutos de conflitos entre os próprios alemães, ocasionados, principalmente,
por problemas de convivência entre a vizinhança, entre amigos e entre parentes. Já a partir
desse período, mas principalmente a partir da década de 1880, quando a comunidade teuta
deixou de trabalhar exclusivamente para a Cia. União e Indústria e também deixou de ficar
unicamente cultivando seus prazos e partiram para o centro da cidade, em busca de novos
211
postos de trabalho, começaram a aparecer vários processos relatando conflitos principalmente
com brasileiros, pois eram esses os mais prejudicados com a divisão do espaço social e
geográfico com os germânicos. Outro fator de igual importância que possibilitou inúmeros
confrontos extra-étnicos foi a inserção de grupos não-germânicos na colônia D. Pedro II a
partir de finais da década de 1870. Além disso, algumas famílias alemãs, nesse mesmo
período, venderam seus lotes para outros grupos étnicos para tentarem a sorte em locais mais
próximos do centro comercial do município.
Nesse sentido, percebe-se que a relação conflituosa entre os germânicos entre si e com
os outros grupos étnicos indica os vários momentos de inserção dos alemães em Juiz de Fora.
Num primeiro momento, ficaram isolados na colônia, vivenciando assim problemas de
convívio intraétnicos. Já após o momento em que a colônia passou a ser habitada por outros
grupos e que os germânicos passaram a habitar e trabalhar no centro urbano, aumentaram os
conflitos extraétnicos, principalmente aqueles envolvendo indivíduos brasileiros. No entanto,
isto não nos autoriza a concluir que a violência foi o principal mecanismo de resolução de
conflitos interpessoais entre os alemães. Como ressalta Sidney Chalhoub, os processos
criminais são uma documentação especializada em violência e, por isso, não nos permite
nenhuma perspectiva quanto às outras modalidades de confronto e ajuste de tensões nos
grupos étnicos estudados
398
. Além disso, os próprios processos mostram que a ocorrência da
violência era algo normatizado, onde os indivíduos desempenhavam papéis sociais previstos e
aceitos. Nesse sentido, as pessoas que aparecem nos autos dos processos não podem ser
consideradas como bárbaros que resolvem suas questões apelando para o uso da força bruta,
mas sim homens e mulheres comuns que vivem imersos numa dada cultura e que se
comportam de acordo com regras de conduta preestabelecidas.
Assim, na maior parte dos casos, como alternativa possível, restou aos germânicos a
resolução desses conflitos de acordo com as regras de comportamento próprias do grupo
sócio-cultural em questão. Isso pressupõe a existência de elementos ordenadores das relações
sociais do cotidiano desses indivíduos, e que esses elementos eram compartilhados e
valorizados por eles. Assim, a ocorrência de conflitos físicos entre os germânicos, registrados
nos processos de ofensas físicas por nós analisados, é percebida, nesta perspectiva, de um
ponto de vista diferente daquele do aparato jurídico-burocrático, que analisa os atos dos nossos
398
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim... op. cit. p. 230.
212
personagens a partir de um sistema rígido de valores, procurando avaliar até que ponto eles se
enquadram nos padrões de comportamento exigidos pela sociedade, desconsiderando, desta
forma, a possibilidade desses indivíduos regerem sua conduta por normas ou padrões de
comportamento alternativos àqueles valorizados pelos “guardiões da moral e da virtude”.
As razões apontadas pelas partes envolvidas nos processos criminais foram de duas
ordens: aquelas que remontavam a questões anteriores e aquelas que emergiam no momento
em que ocorria a questão. A razão anterior mais expressiva era a existência de problemas de
convívio e de relacionamento entre vizinhos e parentes. Por outro lado, a provocação por uma
das partes e a bebedeira eram as razões mais freqüentes nas eclosões momentâneas que
incluíam, além destes, outras razões nada fúteis, como principalmente a defesa da honra
individual e da família ou “azedar-se com brincadeiras e caçoadas”.
Além disso, percebemos que não estávamos diante de criminosos “profissionais”. Os
indivíduos que aparecem nos processos penais eram homens e mulheres que, voluntária ou
involuntariamente, acabaram resolvendo alguns conflitos interpessoais através xingamentos e
de brigas que geraram mortes ou ferimentos graves. Afirmamos isto porque, na maior parte
dos casos, percebemos que os envolvidos mantinham relações de amizade, parentesco ou
vizinhança, e que entraram em conflitos como forma de resolver suas diferenças antigas ou
momentâneas. Outra coisa que nos chamou a atenção foi o número de indivíduos
alfabetizados. Apesar do número de envolvidos não ser suficientes para que sejam
generalizados os dados obtidos para todo o conjunto de germânicos, percebemos que a maior
parte das vítimas e dos réus era alfabetizada, fato este que nos auxiliou a questionar o
pensamento comum de que a prática de crimes está associada com a delinqüência e com a falta
de educação.
No terceiro capítulo percebemos que foram poucos os germânicos enquadrados na
categoria de “gatunos” e que também foram poucos os ladrões que atuaram contra alemães
pobres. A grande maioria dos germânicos que tiveram seus bens furtados ou roubados ou
possuíam um comércio minimamente rentável ou posses que lhes davam rendimentos seguros.
Além disso, observamos que este tipo de criminalidade, diferentemente das demais, não atuou
como um mecanismo de resolução de conflitos interpessoais dos germânicos entre si ou com
outras etnias, mas sim refletiu na maior parte dos casos, a necessidade de sobrevivência de
alguns indivíduos (nos casos de furto de madeira), bem como refletiu a ação de delinqüentes
em um momento de crescente combate aos crimes contra a propriedade privada.
213
Entretanto, diferentemente dos outros crimes, as categorias étnicas foram entendidas
como intrínsecas às pessoas nos casos de furto/roubo. O fato dos alemães guardarem uma
representação positiva no seio da sociedade local atuou profundamente no resultado dos
processos, apesar desse fato não ter sido, por si só, suficiente para condená-los ou absolvê-los.
O argumento defendido é que a justiça não julgava os atos pura e simplesmente. O que estava
em jogo era o comportamento social dos indivíduos e o papel que cada um deles deveria
representar no seu dia-a-dia e não o crime propriamente dito. Quanto mais o acusado se
adequasse aos padrões aceitos e promulgados pela burocracia jurídico-policial maiores eram
as suas possibilidades de ser absolvido.
Nesse sentido percebe-se porque mesmo os alemães estando envolvidos como réus em
nove casos somente em dois foram condenados. Em primeiro lugar, isso ocorreu devido ao
tipo de objeto subtraído e em segundo lugar devido à imagem positiva que guardavam no seio
da comunidade local. Como a arianização passou a ser vista como sinônimo de
desenvolvimento econômico local devido à “inata operosidade” do alemão, os germânicos
raramente atraíram para si a ira do aparelho judiciário, a não ser em casos ocorridos dentro da
própria comunidade germânica ou envolvendo afronta aos valores capitalistas.
Já no quarto e último capítulo, procuramos identificar as estratégias de sobrevivência e
resistência adotadas por alguns colonos germânicos, moradores da Colônia agrícola D. Pedro
II, durante o mês de dezembro de 1858, para tentarmos desmistificar um pouco as
representações altamente ideologizadas produzidas anteriormente. Ao analisarmos os
discursos e ações produzidos durante o episódio da “tentativa de sublevação”, concluímos que,
para a compreensão das relações de poder entre Giobert/Mariano e os colonos subordinados,
devemos considerar que o conflito ocorrido entre eles representou o embate entre a
Transcrição Pública dos poderosos e a Transcrição Oculta dos oprimidos.
O relacionamento entre as duas transcrições funcionou de forma dialética. A
Transcrição Oculta dos colonos representou os discursos e ações que foram ordinariamente
excluídos das suas Transcrições Públicas durante o exercício do poder, este praticado por
Giobert. A Transcrição Oculta acabou atuando de volta para a Transcrição Pública através da
interiorização de práticas oposicionistas realizadas nos bastidores. Em outras palavras, a
dominação realizada publicamente acabou gerando representações ocultas que atuaram
revoltosamente contra a própria Transcrição Pública que as criou. Neste sentido, as
Transcrições Ocultas dos colonos apareceram como fruto da dialética da dominação.
214
Realizando este tipo de análise, percebemos que a fronteira entre as duas transcrições
funcionou como uma zona de luta entre os fracos e os fortes. Infelizmente, também
percebemos que foram os fortes que prevaleceram no final da luta devido a discrepância de
poderes envolvidas nas relações sociais entre dominantes e subordinados.
As representações ocultas vivenciadas pelos colonos tentaram realizar duas funções:
proteger a identidade dos atores e, ao mesmo tempo, possibilitar a fala daquilo que não podia
ser dito publicamente. Não funcionaram desta forma devido a inserção de “espiões”, membros
da própria comunidade, nas reuniões nas quais eram expostos os descontentamentos mais
profundos. Tais práticas de resistência tentaram aliviar o padrão de apropriação material diária
e, os gestos de negação realizados na Transcrição Oculta, responderam, de uma forma ou de
outra, aos insultos diários de dignidade.
215
FONTES
I – PRIMÁRIAS
A – MANUSCRITAS
1. Arquivo Histórico Municipal de Juiz de Fora
- Fundo “Benjamin Colucci”
Segunda Parte: Crimes Particulares
2/2. PROCESSOS relativos a crime de tirada ou fugida de presos do poder da justiça e
arrombamento de cadeia.
Processo 1
o
: AHMJF, processo criminal – Retirada de presos: cx 2, 26/07/1858.
Crimes Contra a Segurança Individual da Pessoa e da Vida
11. PROCESSOS relativos a crimes de homicídio.
Processo 2
o
: AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 43, 30/09/1905.
Processo 3
o
: AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 46, 10/07/1909.
Processo 4
o
: AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 35, 13/06/1895.
Processo 5
o
: AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 31, 19/12/1890.
Processo 6
o
: AHMJF, processo criminal – Homicídio: cx 34, 06/06/1895.
14. PROCESSOS relativos a crimes de tentativa de homicídio
.
Processo 7
o
: AHMJF, processo criminal –Tent. de Homicídio: cx 85, 31/01/1905.
Processo 8
o
: AHMJF, processo criminal –Tent. de Homicídio: cx 82, 12/09/1897.
Processo 9
o
: AHMJF, processo criminal –Tent. de Homicídio: cx 85, 25/10/1903.
13. PROCESSOS relativos a crime de aborto
.
Processo 10
o
: AHMJF, processo criminal – Aborto: cx 23, 11/04/1887.
15. PROCESSOS relativos a crimes de ferimentos e outras ofensas físicas
.
Processo 11
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 34, 21/09/1859.
Processo 12
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 34, 24/11/1859.
Processo 13
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 35, 29/01/1861.
Processo 14
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 35, 28/12/1862.
Processo 15
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 36, 05/02/1866.
Processo 16
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 36, 28/10/1868.
Processo 17
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 37, 20/01/1870.
Processo 18
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 37, 11/10/1870.
Processo 19
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 38, 08/05/1872.
Processo 20
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 38, 11/08/1873.
Processo 21
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 40, 10/03/1876.
216
Processo 22
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 40, 16/09/1877.
Processo 23
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 41, 22/04/1879.
Processo 24
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 41, 12/02/1880.
Processo 25
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 41, 20/06/1880.
Processo 26
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 44, 13/05/1885.
Processo 27
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 45, 26/04/1887.
Processo 28
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 44, 14/04/1888.
Processo 29
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 46, 12/11/1888.
Processo 30
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 47, 12/07/1890.
Processo 31
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 47, 15/09/1890.
Processo 32
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 99, 12/08/1893.
Processo 33
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 102, 10/10/1894.
Processo 34
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 104, 14/05/1895.
Processo 35
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 107, 30/09/1896.
Processo 36
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 109, 08/11/1897.
Processo 37
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 110, 20/03/1899.
Processo 38
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 111, 10/09/1899.
Processo 39
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 112, 26/06/1900.
Processo 40
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 114, 03/08/1901.
Processo 41
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 114, 20/11/1901.
Processo 42
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 115, 09/02/1902.
Processo 43
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 116, 09/10/1902.
Processo 44
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 121, 02/11/1906.
Processo 45
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 121, 03/11/1907.
Processo 46
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 123, 05/10/1908.
Processo 47
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 124, 25/01/1909.
Processo 48
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 124, 28/06/1909.
Processo 49
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 125, 27/09/1909.
Processo 50
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 125, 21/05/1910.
Processo 51
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 126, 07/12/1910.
Processo 52
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 126, 23/12/1910.
Processo 53
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 130, 15/04/1913.
Processo 54
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 131, 07/10/1913.
Processo 55
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 136, 28/09/1917.
Processo 56
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 136, 24/10/1917.
Processo 57
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 137, 24/06/1918.
Processo 58
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 138, 10/06/1919.
Processo 59
o
: AHMJF, processo criminal – Ofensas Físicas: cx 140, 10/11/1920.
16. PROCESSOS relativos a crime de ameaças
.
Processo 60
o
: AHMJF, processo criminal – Ameaças: cx 45, 31/12/1858.
20. PROCESSOS relativos a crime de calúnia e injúria.
Processo 61
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 50, 29/04/1863.
Processo 62
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 51, 30/09/1867.
Processo 63
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 51, 10/09/1870.
Processo 64
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 08/01/1872.
217
Processo 65
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 21/10/1872.
Processo 66
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 22/11/1872.
Processo 67
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 31/07/1874.
Processo 68
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 52, 30/11/1876.
Processo 69
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 53, 12/02/1878.
Processo 70
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 53, 29/08/1878.
Processo 71
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 51, 03/01/1879.
Processo 72
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 53, 04/10/1879.
Processo 73
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 53, 17/03/1880.
Processo 74
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 11/08/1884.
Processo 75
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 23/09/1884.
Processo 76
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 10/02/1885.
Processo 77
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 02/04/1886.
Processo 78
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 15/10/1886.
Processo 79
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 54, 13/10/1887.
Processo 80
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 167, 04/04/1892.
Processo 81
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 167, 30/01/1894.
Processo 82
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 03/06/1907.
Processo 83
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 28/04/1913.
Processo 84
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 168, 06/11/1916.
Processo 85
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 169, 19/09/1917.
Processo 86
o
: AHMJF, processo criminal – Injúria: cx 169, 09/02/1918.
23. PROCESSOS relativos a crime de furto.
Processo 87
o
: AHMJF, processo criminal – Furto: cx 56, 01/03/1861.
Processo 88
o
: AHMJF, processo criminal – Furto: cx 56, 18/08/1874.
Processo 89
o
: AHMJF, processo criminal – Furto: cx 56, 03/10/1874.
Processo 90
o
: AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 21/09/1875.
Processo 91
o
: AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 02/08/1876.
Processo 92
o
: AHMJF, processo criminal – Furto: cx 57, 09/01/1883.
25. PROCESSOS relativos a crime de dano
.
Processo 93
o
: AHMJF, processo criminal – Dano: cx 62, 07/12/1876.
26. PROCESSOS relativos a crime de roubo
.
Processo 94
o
: AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 64, 03/09/1877.
Processo 95
o
: AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 64, 25/02/1878.
Processo 96
o
: AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 203, 29/09/1892.
Processo 97
o
: AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 204, 26/10/1892.
Processo 98
o
: AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 205, 22/05/1897.
Processo 99
o
: AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 208, 17/08/1904.
Processo 100
o
: AHMJF, processo criminal – Roubo: cx 210, 022/11/1912.
218
2. Arquivo Público Mineiro
- Imigração. Livro n.o 10. 2
o
Vol. 1889.
Colonização e Imigração – 1882/1889.
Estatísticas de Terra e Colonização – 1887/1889.
- Documentos da Cia. União e Indústria – 1844/1871.
- Documentos da Inspetoria Especial de Terras e Colonização – MG.
- Documentos da Repartição de Terras e Colonização – MG.
B – IMPRESSAS
Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert.
1873.
Código Penal Brasileiro (Dec. n. 847, de 11 de outubro de 1890). Por Affonso Dionysio
Gama. 2
a
Ed. São Paulo: Saraiva & C. Editores, 1929.
Contrato firmado entre o Dr. F. Schmidt, encarregado pelo diretor-presidente da Cia. União e
Indústria, o Sr. Mariano Procópio Ferreira Lage e o colono Carl Gühl e família.
ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1915.
PRATES, Carlos. Relatório apresentado ao Dr. Secretário de Estado da Agricultura do
Estado de Minas Gerais pelo Inspetor de Indústria, Minas e colonização, em 1905.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1905.
Relatório apresentado pelo Sr. Mariano Procópio Ferreira Lage ao Exmo. Sr.
Conselheiro Herculano Ferreira Pena, Presidente da Província de Minas Gerais. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1859. p. 38-9.
ROMERO, Sylvio. O allemanismo no sul do Brasil, publicado pelo jornal do Commercio, do
Rio de Janeiro, em 1906.
SURERUS, Henrique. Viagem Imperial de Petrópolis a Juiz de Fora por ocasião de inaugurar-
se a estrada “União e Indústria”. Coleção de Artigos publicados no “Jornal do
Commercio” do Rio de Janeiro em 1861. Juiz de Fora: Typographia “Sul”, 1919.
219
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em
perspectiva comparativa. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996.
ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo. 10 ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.
ANDRADE, Sílvia M. B. V. Classe Operária em Juiz de Fora: uma história de lutas. Juiz de
Fora: Edufjf, 1984.
ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Ouro, 1954.
ARANTES, Luiz Antônio Valle. As origens da Burguesia industrial de Juiz de Fora.
Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1991.
ARANTES, Luiz A. V. Caminhos incertos, conflitos religiosos e empreendimentos: a
trajetória dos alemães na cidade. In: BORGES, Célia M. (org.) Solidariedades e
Conflitos: Histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edufjf,
2000.
BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.
BASTOS, Wilson de Lima. Engenheiro Henrique Halfeld. Juiz de Fora: IHGJF, 1970.
BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, sua
descendência. Juiz de Fora: Caminho Novo, 1961.
BORGES, Célia. Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em
Juiz de Fora. Juiz de Fora: Edufjf, 2000.
BOTTOMORE, Tom (ed.) Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2001.
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.
BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
BRETAS, Marcos Luiz. O Crime na Historiografia Brasileira: Uma Revisão na Pesquisa
Recente. In: BIB. Rio de Janeiro, n.º32, 2º semestre de 1991.
BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Edunesp, 2002.
CARDOSO, Ciro Flamarion. (org.) Representações: contribuição a um debate
transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000.
CARDOSO, F. H. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2ª Ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977.
CASTRO, Newton Barbosa de. A contribuição dos imigrantes alemães a industrialização de
Juiz de Fora. In: História Econômica de Juiz de Fora. Juiz de Fora: IHGJF, 1987.
CAULFIELD, Suenn. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de
Janeiro (1918-1940). Campinas: Edunicamp, 2000.
CHALHOUB, Sidnei. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986.
_________________. Visões da liberdade. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990.
CORRÊA, Heloísa. Nova Friburgo: o nascimento da indústria (1890/1930). Dissertação de
Mestrado. Niterói: UFF, 1985.
CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1966.
DAVATZ, Thomas. Memórias de um Colono no Brasil (1850). São Paulo: Ed. Itatiaia,
1980.
DAVIS, Natalie Z. Culturas do Povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
220
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e Heróis: para uma sociologia do Dilema
brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro, 1981.
DESAN, Suzanne. Massas, Comunidade e Ritual nas obras de E. P. Thompson e Natalie
Davis. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
DIAS, Fernando Corrêa. Aspectos do surto industrial de Juiz de Fora. In: Revista da UFMG.
Belo Horizonte, março de 1982.
ELIAS, Norbert. Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
ENGEL, Magali Gouveia. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). In:
TOPOI – Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Vol. 1, n.o
1, 2000.
ESTEVES, Albino. Almanach de Juiz de Fora – 1914. Juiz de fora: Typografia Brasil, 1914.
ESTEVES, Albino. Mariano Procópio: trabalhos originais. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: jan/mar. 1956.
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:
Brasiliense, 1984.
FISCHER, Brodwyn. “Slandering Citizens: insults, class and social legitimacy in Rio de
Janeiro’s Criminal Courts”. Paper apresentado a conferencia sobre Honra, Status e Lei
na América Latina Moderna. Universidade de Michigan, Dezembro de 1998.
_________________. The Poverty of Law: Rio de Janeiro, 1930-1964. Ph.D. Thesis,
Departament of History, Harvard University, October, 1999.
FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. São Paulo: Edusc, 1998.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Ed. Vozes, 1977.
FRANCO, Maria Sylvia de C. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo:
Edunesp, 1997.
FRY, Peter & CARRARA, Sérgio. As vicissitudes do liberalismo no direito penal brasileiro.
In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. N. 2, vol. 1, Cortez, 1986.
GARRIOCH, David. Insultos verbais na Paris do século XVIII. In: BURKE, Peter &
PORTER, Roy. História social da linguagem. São Paulo: Edunesp, 1997.
GAY, Peter. O Cultivo do Ódio: a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo:
Cia. das Letras, 1995.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, s/d.
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações. In: A
Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.
GINZBURG, Carlo. Os pombos abriram os olhos: conspiração popular na Itália do século
XVII. In: A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas e
Sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
GIROLETTI, Domingos. A Industrialização de Juiz de Fora: 1850 a 1930. Juiz de Fora:
Edufjf, 1988.
GIROLETTI, Domingos. O processo de industrialização de Juiz de Fora: 1850 a 1930.
Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro (Análise de conjuntura, vol.10, março de 1980).
HAY, Douglas et alii. Albion’s fatal tree: crime and society in eightteenth-century England.
New York: Pantheon Books, 1975.
221
HOBSBAWN, Eric. A Era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
IGLÉSIAS, Francisco. Política econômica do governo provincial mineiro (1835/1889). Rio
de Janeiro: s/ed., 1958.
JOHNSON, Lyman L. & LIPSETT-RIVERA, Sonya. The Faces of Honor: sex, shame and
violence in Colonia Latin America. Albuquerque: New Mexico, 1998.
KOVARICK, Lúcio. Trabalho e Vadiagem. São Paulo: Brasiliense, 1987.
LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento autoritário na Primeira República, uma
interpretação. In: FAUSTO, Boris. O Brasil Republicano, T. III, vol. 2. São Paulo: Difel,
1977.
LANE, Roger. Violent Death in the City: suicide, accident and murder in 19
th
century
Philadelphia. Harvard Univ. Press, 1979.
LANNA, Ana Lúcia D. A Transformação do Trabalho. 2 ed. Campinas: Ed.Unicamp, 1989.
LENZ, Sylvia. Brasil, cidades hanseáticas e Prússia: uma história social dos alemães no
Rio de Janeiro (1815-1866). Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 1999.
LIMA, João Heraldo de. Café e indústria em Minas Gerais – 1870/1920. Campinas:
UNICAMP, 1977.
MAGALHÃES, Marionilde Brepohl de. Pangermanismo e Nazismo: a trajetória alemã rumo
ao Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP/FAPESP, 1998.
MAGGIE, Yvonne. O medo do feitiço – relações entre magia e poder na sociedade brasileira.
Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, 1988.
MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista em Minas Gerais no século XIX. Belo
Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1982.
MENEZES, Lená Medeiros de. Os Indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto,
crime e expulsão na capital federal. (1890/1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.
MONSMA, Karl. James C. Scott e a Resistência Cotidiana no Campo: uma avaliação crítica.
In: BIB, Rio de Janeiro, nº. 49, 1º. Semestre de 2000.
MONTEIRO, Norma Góes. Imigração e Colonização em Minas Gerais (1889/1930). Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1974.
MOOGK, Peter N. “Thieving Buggers” and “Stupid Sluts”: insults and popular culture in New
France. William and Mary Quaterly, third series, 36:4, October, 1979.
MOORE, Barrington. Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: senhores e
camponeses na construção de um mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
OLIVEIRA, Almir de. O advento da energia elétrica em Juiz de Fora. In: História Econômica
de Juiz de Fora. Juiz de Fora: IHGJF, 1987. p. 82-92.
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Imigração e Industrialização: os alemães e os italianos em
Juiz de Fora (1854-1920). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1991.
OLIVEIRA, Paulino. História de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Dias Cardoso, 1966.
PAOLI, Maria Célia P. M. “Violência e espaço civil”. In: A Violência Brasileira. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: 3
a
ed., Paz e Terra, 2001.
PIRES, Anderson J. Capital Agrário, investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora:
1870-1930. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1993.
PITT-RIVERS, Julian. “Honor and social status” In: PERISTIANY, J. G. Honor and Shame:
the values of mediterranean society. Chicago, University of Chicago Press, 1966.
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade: estudos e análise da justiça no Rio
de janeiro (1900-1930) Rio de Janeiro: Edufrj, 1995.
222
SASSOON, Anne S. Hegemonia. In: BOTTOMORE, Tom (ed.) Dicionário do Pensamento
Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. P. 177-8.
SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 2ed, São Paulo: Cia. Das Letras, 1995.
SCHWARCZ, L. & QUEIROZ, R. da S. (orgs.) Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp, 1990.
SCOTT, James C. Domination and the Arts of Resistence. Hidden Transcriptions. New
Haven: Yale University Press, 1990.
SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem
urbana (1890-1920). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
SOUZA, Sônia M. de. Além dos Cafezais: produção de alimentos e mercado interno em uma
região de economia agroexportadora – Juiz de Fora na segunda metade do século XIX.
Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1998.
STEHLING, , Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os Alemães. Juiz
de Fora: FUNALFA, 1979.
STEWART, Frank Henderson. Honor. Chicago: University of Chicago Press, 1994.
SURERUS, Henrique. Viagem Imperial de Petrópolis a Juiz de Fora por ocasião de inaugurar-
se a estrada “União e Indústria”. Coleção de Artigos publicados no “Jornal do
Commercio” do Rio de Janeiro em 1861. Juiz de Fora: Typographia “Sul”, 1919.
TAYLOR, Ian et alii. The new criminology: for a social theory of deviance. Londres: Ed.
University of Worwick, 1973.
Teatro de França Júnior, Tomo 1. Rio de Janeiro, MEC/SNT, 1980.
THOMPSON, E. P. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: Costumes em
Comum: Estudos sobre a Cultura Popular tradicional. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social In: As peculiaridades dos ingleses
e outros artigos. Campinas: Edunicamp, 2001.
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais no Brasil. Rio de janeiro: José Olympio, 1952.
VIANNA, Oliveira. Ensaios Inéditos. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.
VISCARDI, Cláudia. O cotidiano dos portugueses de Juiz de Fora (1840-1940). In: BORGES,
Célia. Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de
Fora. Juiz de Fora: Edufjf, 2000.
ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza: um estudo sobre o amor,
o trabalho e a riqueza através dos processos penais. Dissertação de Mestrado. Niterói:
UFF, 1984.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret,
2001.
WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico dos
imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo