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— Por cousa nenhuma. Que mal havia de ser? É um homem distinto...
Pus termo ao novo louvor do rapaz, chamando um escravo para dar algumas
ordens.
E retirei-me ao meu quarto.
O sono dessa noite não foi o sono dos justos, podes crer. O que me irritava
era a preocupação constante em que eu andava depois destes acontecimentos. Já
eu não podia fugir inteiramente a essa preocupação: era involuntária, subjugava-me,
arrastava-me. Era a curiosidade do coração, esse primeiro sinal das tempestades
em que sucumbe a nossa vida e o nosso futuro.
Parece que aquele homem lia na minha alma e sabia apresentar-se no
momento mais próprio a ocupar-me a imaginação como uma figura poética e
imponente. Tu, que o conheceste depois, dize-me se, dadas as circunstâncias
anteriores, não era para produzir esta impressão no espírito de uma mulher como
eu!
Como eu, repito. Minhas circunstâncias eram especiais; se não o soubeste
nunca, suspeitaste-o ao menos.
Se meu marido tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse nele um marido,
minha salvação era certa. Mas não era assim. Entramos no nosso lar nupcial como
dous viajantes estranhos em uma hospedaria, e aos quais a calamidade do tempo e
a hora avançada da noite obrigam a aceitar pousada sob o teto do mesmo aposento.
Meu casamento foi resultado de um cálculo e de uma conveniência. Não
inculpo meus pais. Eles cuidavam fazer-me feliz e morreram na convicção de que o
era.
Eu podia, apesar de tudo, encontrar no marido que me davam um objeto de
felicidade para todos os meus dias. Bastava para isso que meu marido visse em mim
uma alma companheira da sua alma, um coração sócio do seu coração. Não se
dava isto; meu marido entendia o casamento ao modo da maior parte da gente; via
nele a obediência às palavras do Senhor no Gênesis.
Fora disso, fazia-me cercar de certa consideração e dormia tranqüilo na
convicção de que havia cumprido o dever.
O dever! esta era a minha tábua de salvação. Eu sabia que as paixões não
eram soberanas e que a nossa vontade pode triunfar delas. A este respeito eu tinha
em mim forças bastantes para repelir idéias más. Mas não era o presente que me
abafava e atemorizava; era o futuro. Até então aquele romance influía no meu
espírito pela circunstância do mistério em que vinha envolto; a realidade havia de
abrir-me os olhos; consolava-me a esperança de que eu triunfaria de um amor
culpado. Mas, poderia nesse futuro, cuja proximidade eu não calculava, resistir
convenientemente à paixão e salvar intactas a minha consideração e a minha
consciência? Esta era a questão.
Ora, no meio destas oscilações, eu não via a mão do meu marido estender-se
para salvar-me. Pelo contrário, quando na ocasião de queimar a carta, atirava-me a
ele, lembras-te que ele me repeliu com uma palavra de enfado.
Isto pensei, isto senti, na longa noite que se seguiu à apresentação de Emílio.
No dia seguinte estava fatigada de espírito; mas, ou fosse calma ou fosse
prostração, senti que os pensamentos dolorosos que me haviam torturado durante a
noite esvaeceram-se à luz da manhã, como verdadeiras aves da noite e da solidão.
Então abriu-se ao meu espírito um raio de luz. Era a repetição do mesmo
pensamento que me voltava no meio das preocupações daqueles últimos dias.