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Paulo Dias
Comunidades
do Tambor
Foto: Mario Thompson
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Olodum
Entre os povos bantos da África Central, tambor é ngoma. Não
só o instrumento, porém, metonimicamente, a dança e o canto
que o tambor põe em ação e, por extensão, toda a comunidade
que se reúne em torno do instrumento para a celebração ritual e
prazerosa. Ngoma atravessou o Atlântico, junto com seus guar-
diães tornados escravos, malungos do Congo-Angola e das ter-
ras de Nagô e Jêje. “Chora ngoma, ê Angola”, canta hoje o velho
capitão de Moçambique numa festa do Rosário em Minas, lem-
brando a dolorosa travessia do Atlântico. E no Brasil a ngoma,
comunidade do tambor, cria elos firmes entre o passado e o pre-
sente da gente afro-brasileira, os viventes e os antepassados, a
Senhora do Rosário e Mãe Iemanjá...ngoma aqui reinventada de
corpo, alma, beleza e mistérios
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da Colônia e do Império vieram a configurar um grande
leque de manifestações dramático-musicais-coreográficas
que atualmente presenciamos por todo o Brasil entre o sába-
do de Aleluia e o Carnaval.Entre a infinidade de estilos regio-
nais das danças-músicas negras, é possível perceber alguns
núcleos de sentido principais: os Batuques,executados infor-
malmente nos terreiros recônditos e voltados à celebração da
memória das próprias comunidades; as Congadas,conjuntos
rituais de dança e música ligados à tradição das Irmandades
católicas Negras, os Candomblés, grupos organizados de
culto às divindades afro-brasileiras; e o Samba Urbano,que se
desenvolveu nas primeiras décadas do século XX a partir de
uma confluência de tradições.
Essas Comunidades do Tambor, como gostamos de
chamá-las, representam distintas formas de expressão dos
negros no Brasil surgidas em resposta às conjunções históri-
co-sociais peculiares em que evoluíram as populações afro-
descendentes. Não obstante suas especificidades, essas
Comunidades do Tambor compartilham quase sempre dos
mesmos atores sociais e de um universo espiritual comum. E
esde os tempos da colônia o som vibrante dos tam-
bores afro-brasileiros ecoa por aqui,em terreiros de
fazendas, pelas ruas das vilas ou nos adros de igre-
jas, com seu poder de arrancar os homens à dispersão forçada
em que vivem. Noticiados por cronistas e viajantes a partir do
século XVI,as festas e rituais dos africanos são quase sempre
objeto de descrições levianas e preconceituosas. Sons monó-
tonos”, danças “lascivas”,ritos “bárbaroseram alguns dos qua-
lificativos utilizados por estes escritores e moralistas, sem
dúvida um tanto assustados com as multidões de negros que
essas festas mobilizavam – multidões que sempre podiam
rebelar-se contra a minoria branca. Paradoxalmente, a festa
negra também constituía uma atraente opção de lazer para
muitos brancos proprietários de escravos,como acontecia nas
fazendas e engenhos isolados.As senhoras chegavam muitas
vezes para a roda, assim como os homens,e assistiam com pra-
zer as danças lúbricas dos pretos, e os saltos grotescos dos
negros”, escreve Freire Alemão, em 1859 sobre um batuque
que presenciara em Pacatuba, Ceará.
Os desdobramentos desses eventos musicais dos negros
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uma parte essencial desse universo comum é o ritmo, um
certo repertório de padrões rítmicos que se reproduz, em
diferentes conjuntos instrumentais, através do imenso terri-
tório do Brasil e das Américas negras, criando laços simbóli-
cos de parentesco com a África distante. Linhagens rítmicas
que,mais resistentes ao tempo que qualquer palavra ou canto,
atualizam-se a todo instante pelas mãos que tocam e pelos
pés que dançam.
Os Batuques de Terreiro hoje dançados por todo o Brasil
têm suas raízes nos eventos com dança e música que promo-
viam os escravos fixados na zona rural principalmente –
fazendas, engenhos, garimpos – mas também em algumas
áreas urbanas, realizadas nos poucos momentos de lazer de
que dispunham. Os batuques marcam a presença da cultura
banto, trazida pelos africanos vindos de Angola, do Congo e
de Moçambique para diferentes rincões do Brasil. São for-
mas vivas dos Batuques o Carimbó paraense; o Tambor de
Crioula do Maranhão, o Zambê do Rio Grande do Norte e
o Samba de Aboio sergipano; em Minas, celebra-se o
Candomblé,no Vale do Paraíba paulista,mineiro e fluminen-
se, o Jongo ou Caxambu; na região de Tietê, em São Paulo,
dança-se o Batuque de Umbigada,entre muitas outras mani-
festações...Sem falar dos primos estrangeiros, como o
Ta m b o r d e Yu c a c u bano, ou o Bellé da Martinica, em tudo
semelhantes aos nossos batuques.
Nas fazendas distantes dos tempos do cativeiro, as festas
de terreiro realizadas nas folgas semanais e dias feriados con-
centravam a vivência dos escravos enquanto grupo, já que no
dia-a-dia eles trabalhavam dispersos no eito. Tudo acontecia
africanamente atras do canto e do corpo em movimento,ao
som dos tambores. Era momento de louvar ancestrais, de
atualizar a crônica da comunidade,de travar desafios capazes
de amarrar com a força encantatória da palavra proferida.Os
versos metafóricos entoados nessas rodas só ofereciam ao
branco um sentido mais literal, inócuo.Fato que deixava per-
plexos os observadores brancos: tratava-se de diversão ou
devoção? O mistério permanece até hoje, assim como os
velhos tambores de tronco escavado, afinados a fogo, e vene-
rados como verdadeiras divindades: Gomá, Dam, Dambá,
Quinjengue... As danças, individuais ou coletivas, mostram-
se ora sensuais,descrevendo a corte amorosa que culmina no
contato da umbigada – como no Batuque de Tietê e no
Ta m b o r d e C r i o ula, por exemplo – ora de caráter sagrado,
mimetizando os gestos dos Pretos Velhos, os antepassados
africanos que morreram na escravidão – é o caso do
Candomblé dançado nas Irmandades mineiras do Rosário, e
do Jongo carioca e paulista.
Desde sempre condenados pela Igreja como permissivos
e temidos pelos patrões como perturbadores da ordem
social, a maior parte dos batuques de terreiro mantêm-se
marginais, ainda nos dias de hoje, em relação à sociedade
dominante, execetuando-se aqueles que conseguem uma
penetrão no mundo do turismo e do espetáculo – é o caso
do Tambor de Crioula e do Carimbó.Com a vinda das popu-
lações negras para as cidades, essas danças ancestrais passa-
ram da roça às periferias urbanas. Conservando seu caráter
intra-comunitário, ainda hoje realizam-se à noite em terreiros
pouco iluminados ou barracões fora das cidades.A fronteiras
tênues entre o sagrado e o profano ainda caracterizam algu-
mas dessas rodas, assim como o segredo contido nos versos
da cantoria desorientam os que vêm de fora. Entenda quem
puder, quem souber. Lamentavelmente, esse patrimônio cul-
tural brasileiro de alta beleza e profundo refinamento, fonte
viva de história, religião, arte e identidade para muitas comu-
nidades afro-descendentes, vem sendo sistematicamente
ignorado pela grande culturae pelos meios de comunicação
de massa.
Ao contrário dos Batuques, os Congos ou Congadas tive-
ram relativa aceitação da classe dominante branca ,conforme
atesta Antonil já no século XVIII,sendo consideradas diver-
são honesta para os escravos. Além de importante ocasião
para os catequistas de imiscuir conteúdo cristão edificante
nos seus enredos, como a gesta adaptada de Carlos Magno
narrando as lutas entre a Cristandade e a Mourama infiel.
As congadas originaram-se dos séquitos de atores, músi-
cos e dançarinos que acompanhavam seus Reis Congos,
representantes das linhagens nobres da África na diáspora
brasileira,por ocasião das festas religiosas e oficiais.
Esses cortejos eram formados por membros das
Irmandades Católicas de negros banto-descendetes – São
Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia –, insti-
tuições que historicamente asseguraram ao negro alguma
participação numa sociedade que os rejeitava como cidadãos,
e se constituíram em importantes repositórios de tradições
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afro-brasileiras. Foi através dos grupos rituais ligados às
irmandades católicas – os congos ou congadas – que africa-
nos e seus descendentes passaram a participar das festas
públicas desde os tempos da Colônia.
Maracatús, Taieiras, Catumbis, Moçambiques, Catopês,
Vilões, M arujos são algumas denominações das diferentes
formas regionais das congadas de cortejo. Algumas delas
ainda preservam uma parte dramática, em que se encenam
embaixadas e lutas entre reis africanos; é o caso dos Congos
de sainha do Rio Grande do Norte, das Congadas paulistas
de Ilhabela e São Sebastião e do Ticumbi de Conceição da
Barra, no Espírito Santo.
Particularmente em Minas Gerais, as Irmandades de
Nossa Senhora do Rosário ainda desempenham papel fun-
damental na organização da vida religiosa entre os afro-des-
cendentes. o movimento do Congado parece crescer a
cada ano, reunindo suas festas milhares de pessoas vindas de
diferentes localidades. Há grande diversidade de congadas
nesse Estado, em termos do estilo musical e coreográfico, do
instrumental e da indumentária, reflexo talvez da antiga divi-
são dos africanos por etnia no seio das Irmandades.
Esses grupos são chamados guardas, pois têm por função
puxar coroa, isto é, acompanhar os Reis Congos. Carregam
tambores artesanais com duas péles tensionadas por cordas e
tocados com baquetas: as caixas.O respeito que têm os conga-
deiros das Irmandades mineiras pelos seus instrumentos vem
de sua importância germinal para a tradição do Rosário:
segundo a lenda, foram os tambores feitos pelos escravos afri-
canos que conseguiram tirar Nossa Senhora do Rosário apa-
recida nas águas com a força de seus batuques,após as vãs ten-
tativas dos brancos.Assim teria se iniciado o festejo à Santa e
toda a tradição do Reinado.“Madeira santa”,como dizem.
A religião afro-brasileira conhecida como Candomb
(BA), Xangô (PE), Tambor de Mina (MA) ou Batuque
(RS) - nasceu dos aportes míticos e rituais de diferentes
etnias ou nações africanas,com influência preponderante dos
sudaneses jejes e nagôs. Trazidos da África Ocidental
(Nigéria e Benin atuais) para as capitais do Nordeste a partir
do final do século XVIII, os sudaneses trabalhavam geral-
mente como domésticos e negros ao ganho, tendo relativa
facilidade para se reunirem segundo sua etnia.Esses escravos
urbanos puderam, desse modo, rearticular no Brasil a sua
religião tradicional, na qual os iaôs, sacerdotes iniciados, são
possuídos pelas divindades durante o transe místico. Orixás,
inquices ou voduns, nome que recebem as divindades segun-
do a nação ou origem étnica do candomblé,representam for-
ças naturais e sociais.
Não obstante o preconceito e as constantes perseguições
policiais de que foram vítimas nas primeiras décadas do sécu-
lo passado os terreiros de Candomblé souberam preservar
entre suas paredes uma série de práticas culturais africanas,
como as línguas rituais, um panteão e sua mitologia, instru-
mentos, ritmos e cancioneiro, culinária, objetos de culto. Mais
do que isto, perpetuou-se entre os adeptos dessa religião uma
cosmovisão africana, que enxerga o mundo como uma teia de
forças vitais em interação,as quais devem manter-se equilibra-
das através de ritos específicos.Evidentemente,o culto aos ori-
xás aqui sofreu diversas adaptações e reinterpretações,tornan-
do-se afro-brasileiro. O ritual predominante jeje-nagô mistu-
rou-se a outras expressões religiosas africanas e ameríndias,
gerando formas de culto miscigenadas como os Candomblés
de Caboclo e,mais recentemente, a Umbanda.
Permanece o conceito de nação – cultural, e não mais
étnico – relacionado sobretudo à língua ritual, aos repertó-
rios dos cânticos e aos estilos musicais. Nas festas ou toques
públicos e privados dos Candomblés, a importância dos tam-
bores e seus percussionistas rituais, os ogãs, é decisiva para
chamar as divindades a se incorporarem em seus cavalos e
bailar o seu mito entre os mortais.Os ogãs conhecem grande
variedade de toques das diversas nações do candomblé –
Keto, Angola, Jêje – e podem dominar um repertório de cen-
tenas de cânticos.Traços musicais peculiares aos candomblés
Jêje-Nagô,como as escalas de cinco notas (pentatônicas) per-
manecem praticamente restritos às casas de culto, enquanto o
som dos Candomblé Congo-Angola, junto com os batuques
e cortejos de origem banto, participam de um universo meló-
dico e rítmico extra-religioso conhecido e reconhecível publi-
camente por todo o Brasil, entre os quais se coloca o samba.
A música religiosa nagô só pode ser ouvida em ambiente
público e profano através dos afoxés do carnaval de Salvador
,chamadoscandomblés de rua, e algumas de suas referência
rítmicas e melódicas transparecem na sonoridade dos blocos
afro como Ilê aiyê e Olodum.
As grandes cidades brasileiras foram o ponto de encontro
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de todas as ingomas,Comunidades do Tambor,e o Carnaval,
a data fundamental para esse congraçamento. As Escolas de
Sambao o exemplo por excelência da confluência e fusão
dos muitos elementos da fala afro-brasileira.A cidade do Rio
de Janeiro, capital do Brasil a partir de 1763, concentrou ao
longo de sua história uma grande população de africanos,
principalmente os bantos vindos do Congo e de Angola; esse
contingente de negros engrossou,após a Abolição, com a che-
gada dos libertos, atraídos para aquela metrópole pela espe-
rança de conseguirem trabalho. Não só negros,mas também
mestiços e brancos pobres migraram das fazendas valeparai-
banas, de Minas Gerais, do sertão nordestino, de toda parte.
Nos morros e subúrbios do Rio misturaram-se tradi-
ções culturais tão diversas, mas ao mesmo tempo tão
unas: expressavam alegria e devoção, continham a força
do desafio e a reverência aos ancestrais, significadas atra-
vés do corpo, da voz e do tambor. Eram coisas de negro,
herança forte daqueles que, vindos de longe, compartilha-
vam de um mesmo destino subproletário nos bairros
periféricos e nas favelas. Assim, foram-se agregando em
mosaico as muitas memórias afetivamente conservadas.
De um lado,o terreiro:o ritmo dos tambores de mão, a
cantoria improvisada dos velhos batuques como o
Caxambu carioca e o Samba-de-Roda baiano, a ritualida-
de dos cultos como a Cabula e a Macumba, a malícia cor-
poral dos jogos como a Pernada e a Capoeira. De outro, a
rua: os Cucumbis cariocas, os Ranchos de Reis baianos,
os Maracatús nordestinos, as Congadas mineiras, todas
aquelas danças de cortejo características das festas de
ambulatórias do Catolicismo Popular, trazendo porta-
bandeiras, reis e sua corte, mascarados, baianas, baterias
de tambores portáteis percutidos com baquetas. E o
gosto pelo colorido, pelo brilho e pelo luxo, que finca raí-
zes no Barroco Católico da Península Ibérica, e uma dis-
posição peculiar em alas a compor o grande desfile pro-
cessional.
O Carnaval,data maior da profanidade,veio a ser o calen-
dário disponível para a celebração pública da festa dos negros
nas metrópoles. Nos anos 20 do século passado surgem as
Escolas de Samba,fala negra amplificada para muito além do
pequeno terreiro da comunidade,de e para as grandes massas
humanas das cidades. Pelejando para legitimar sua voz junto
à sociedade dos brancos e obter a visibilidade sonhada. A
Ópera popular urbana vai para meio da avenida,com orques-
tras de centenas de tambores, instrumentos com pele de nái-
lon produzidos em série por uma indústria que se especializa.
De repente, os desanimados cordões da classe média branca
abrem alas, de uma vez por todas, para as evoluções mágicas
do Samba crioulo. As avenidas viram sambódromos, e o
Samba, espetáculo de massas e mídias.
Este texto foi escrito originalmente para apresentar a
exposição multimídia Comunidades do Tambor”, montada
no SESC Vila Mariana, em São Paulo, durante o evento
“Percussões do Brasil”, em 1999.
Paulo Dias, nascido em São Paulo em 1960,é músico e etnomusicó-
logo. Desde 1988 dedica-se à pesquisa da música tradicional brasileira,
sobretudo à de raízes africanas,trabalho que vem sendo divulgado através
de publicações,vídeo-documentários, CDs e exposições. Fundou e dirige
a Associação Cultural Cachuera!, voltada à documentação, estudo e
divulgação da cultura popular tradicional brasileira.
e-mail: cachuera@uol.com.br
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