histórica, muito embora ordinariamente aceita-se a hegemonia de seu conceito. Para a ciência
médica convencional, a doença mental seria uma alteração da saúde mental, causada por fatores
biológicos, químicos ou neurológicos, sendo seu tratamento preponderantemente farmacológico.
Outra corrente, herdeira da psicologia e das ciências sociais, entende que os fatores sociais e
culturais também influenciam o surgimento da doença mental, ao lado das alterações físicas
(GONÇALVES, 2004). Entendimento diverso questiona o conceito de doença mental, chegando
mesmo a desconstruí-lo. Nesse sentido, destaca-se Foucault, para quem a Psiquiatria, muito longe
de descobrir a verdade da doença mental, tratou de construí-la
36
. Szasz (1976)
37
, ícone da
Antipsiquiatria, pondera que a criação da disciplina Psiquiatria foi parte integrante do processo de
substituição de conceitos religiosos por conceitos científicos, que se deu em muitos outros
campos. Para Birman (1978), o núcleo central da cura psiquiátrica, muito longe da cura de uma
suposta doença mental e da volta à normalidade, seria o tratamento moral do indivíduo
38
. Assim,
note-se que não apenas a questão do tratamento da doença mental é controverso, como também a
própria definição da patologia mental.
De qualquer forma, as conseqüências negativas da internação prolongada do doente
mental são diversas (GOFFMAN, 2003; DELGADO, 2001, p. 191-192), como a perda do
contato com a realidade externa, a submissão às atitudes autoritárias do corpo técnico, o ócio
forçado, a sedação medicamentosa, a perda da perspectiva de vida para além da instituição, a
perda de amigos e do contato com familiares, a desqualificação permanente do discurso e das
36
Foucault (2003) afirma que a loucura substituiu o espaço da lepra, ou melhor, os asilos tomaram o lugar antes
designados aos leprosários. Foi somente na época do Iluminismo que se enclausuraram os loucos, com a
chamada grande internação, internando-se loucos, marginais, mendigos e ladrões com o objetivo de reforçar e
transmitir a disciplina para o trabalho. Na França, por exemplo, cada grande cidade tinha seu Hospital Geral:
Bicêtre, Salpêtrière, Charenton. Foi Pinel, no século XVIII, que criou os manicômios com o objetivo de
separar os
loucos dos outros marginalizados. Com isso, o internamento torna-se medida de caráter médico. A
loucura é então aprisionada no conceito de doença mental, possibilitando o próprio surgimento da Psiquiatria.
A história da Psiquiatria elenca Pinel, Tuke, Wagnitz e Riel como os fundadores da Psiquiatria e do
humanismo no tratamento da doença mental. Para Foucault, entretanto, eles apenas estreitaram as práticas do
internamento em torno do louco. Quando Pinel liberta os acorrentados, se se rompe as restrições físicas dos
doentes, reconstitui-se um encadeamento moral sobre eles. Enfim, nas palavras de Foucault (1968, p. 80):
“tudo isto não é a descoberta progressiva daquilo que é a loucura na sua verdade de natureza; mas somente a
sedimentação do que a história do Ocidente fez dela em 300 anos. A loucura é muito mais histórica do que se
acredita geralmente, mas muito mais jovem também”.
37
Também para esse crítico da Psiquiatria, o internamento dos chamados doentes mentais não é realizado em
benefício deles mesmos, mas enquanto medida de proteção da sociedade, por eles ameaçada. Em última
instância, a Psiquiatria seria uma verdadeira agência de controle social, disfarçada através do tratamento
mental que realiza (SERRANO, 1985). A estreita relação entre Direito Penal e Psiquiatria, para Velo (2003,
p. 241) se deu exatamente nestes termos: “o direito criminal e a medicina, a psiquiátrica em especial,
aliaram-se e se fortaleceram como instâncias formais de controle social”.
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Muitos teóricos distanciam-se da concepção exclusivamente médica da doença mental. Lévi-Strauss, por
exemplo, entende que a doença mental ocorre quando o indivíduo se dissocia do sistema simbólico do grupo,
dele se alienando. Frayze-Pereira (1985) sustenta a relatividade da doença mental, ilustrando-a com uma
comparação: um indígena epilético, em certas culturas indígenas, é considerado mais evoluído que os demais,
pois isso significaria o contato com as divindades, o que o elevaria à categoria social de xamã; na cultura
ocidental, é um doente mental.