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Livia Fernandes França
A Democracia no Pragmatismo
de John Dewey
D
ISSERTAÇÃO DE MESTRADO
D
EPARTAMENTO DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Direito
Rio de Janeiro, agosto de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0512961/CA
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Livia Fernandes França
A Democracia no Pragmatismo de
John Dewey
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito do Departamento de Direito
da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Adrian Varjão Sgarbi
Rio de Janeiro
Agosto de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0512961/CA
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Livia Fernandes França
A Democracia no Pragmatismo de
John Dewey
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre pelo Programa
de Pós-graduação em Direito do Departamento
de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Prof. Dr. Adrian Varjão Sgarbi
Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Dr. Florian Fabian Hoffmann
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Alejandro Bugallo Alvarez
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0512961/CA
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
do orientador.
Livia Fernandes França
Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Bolsista CAPES.
Ficha catalográfica
França, Livia Fernandes.
A Democracia no Pragmatismo de John Dewey / Livia
Fernandes França; orientador: Adrian Varjão Sgarbi. – Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007.
1 v., 147 f.: il. ; 29 cm
1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito – Teses. 2. Democracia. 3. Pragmatismo. 4.
John Dewey. 5. Teoria Política. 6. Direito Constitucional. 7.
Liberdade. 8. Democracia e Educação. 9. Richard RortyI.
Sgarbi, Adrian Varjão. II. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.
CDD 340
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0512961/CA
Aos meus pais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0512961/CA
Agradecimentos
Aos meus pais, Marta e Nelson, a meus irmãos, Mariana e Pedro, e ao
Fernando, por todo o apoio e amor.
Ao prof. Adrian Sgarbi, por toda orientação e ajuda.
Aos amigos de turma, com quem compartilhei idéias, angústias e
momentos que ficarão registrados para a vida inteira, especialmente Karen,
Adriana e Samantha.
Ao prof. José Ricardo Cunha, exemplo incólume de vida, pela ajuda
incondicional e pelo carinho de sempre.
Ao prof. Caio Farah Rodríguez, interlocutor presente em incontáveis
momentos desta dissertação, responsável por todos os elogios que este trabalho
eventualmente receberá; pelo carinho, confiança, compreensão e orientação.
Aos demais novos amigos da FGV Direito Rio, pela compreensão, pelo
exemplo de busca por excelência acadêmica, pela acolhida, especialmente ao prof.
Guilherme Leite.
Aos professores Rachel Herdy, Vinicius Scarpi e Marcus Cunha, pela
leitura dedicada de trechos desta dissertação, que tanto me auxiliou.
Aos professores Florian Hoffmann, Paulo Ghiraldelli Jr. e Danilo
Marcondes, pelas conversas e amadurecimento de idéias.
Ao prof. Richard Bernstein, pelo gentil envio de textos a princípio
inacessíveis.
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Resumo
França, Livia Fernandes; Varjão, Adrian Sgarbi (orientador). A
Democracia no Pragmatismo de John Dewey. Rio de Janeiro, 2007.
147p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O objetivo deste trabalho é estudar a democracia no pensamento do
pragmatista estadunidense John Dewey (1859-1952) e sua contribuição para a
teoria política contemporânea. Num primeiro momento, se examina o pensamento
político do autor, ressaltando-se as implicações que o antifundacionismo e o
contextualismo sugerem. Já o confronto do pensamento de Dewey com críticas de
Richard Rorty, Richard Bernstein, Robert Westbrook e Alfonso Damico sugere
que, ao mesmo tempo em que o vocabulário do estadunidense é refém de
imperativos de sua época, deixa grande contribuição para a teoria contemporânea;
a de que a democracia é o modelo político que permite a geração de novas formas
de vida e sua permanentemente recriação, a partir do contínuo confronto com a
prática, de forma a mapear trajetórias para que desejos e aspirações da sociedade
sejam concretizados.
Palavras-chave
Democracia, pragmatismo, John Dewey, teoria política, Liberdade,
Democracia e Educação, Richard Rorty.
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Abstract
França, Livia Fernandes; Varjão, Adrian Sgarbi (orientador). Democracy
in John Dewey’s Pragmatism. Rio de Janeiro, 2007. 147 p. Dissertação
de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.
This dissertation aims to study the thought of the American pragmatist
John Dewey (1859-1952) on democracy and its contribution to the contemporary
political theory. At first, the political thought of the author is analyzed, and the
anti-foundationalism’s and contextualism’s repercussions are highlighted. The
tension between Dewey’s thoughts and the ideas of Richard Rorty, Richard
Bernstein, Robert Westbrook and Alfonso Damico suggest that, if in the one hand
Dewey’s vocabulary is a victim of his own time, it brings a great contribution to
contemporary theory. This contribution is expressed though the idea that
democracy is the political model that allows the creation of forms of life and their
permanent recreation, from the clash between theory and practice, aiming at the
designing of trajectories that will give life to the desires and aspirations of society.
Keywords
Democracy, pragmatism, John Dewey, political theory, freedom,
democracy and education, Richard Rorty.
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Sumário
1. Introdução 9
2. A reconstrução da Filosofia 15
2.1. Os fins em vista 16
2.2. Experiência 27
2.3. Hábito 31
3. Conseqüências do pragmatismo de Dewey na política: público,
comunidade e liberdade 37
3.1. Implicações do pragmatismo na política 37
3.2. A comunicação e a comunidade 47
3.3. Liberdade e individualismo 51
4. A democracia como forma de vida 60
4.1. Educação 60
4.2. Inteligência social e Engenharia social 71
4.3. A democracia como ideal 77
4.4. A democracia como forma de vida, coletiva e individual 81
4.5. Conclusão do capítulo 90
5. Críticas à Democracia de Dewey 92
5.1. As relações de poder na teoria política de Dewey 93
5.2. Problemas no instrumentalismo de Dewey 103
5.3. Fundamentar a democracia vs. explica-la para institucionaliza-la 110
6. Conclusão 131
7. Bibliografía 142
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1
Introdução
A inspiração para que Charles Sanders Peirce associasse o termo
“pragmatismo” a um novo tipo de filosofia originou-se em Immanuel Kant.
Segundo “A Metafísica dos Costumes”
1
, obra do alemão, enquanto o termo
“prático” se refere a leis morais consideradas a priori, o termo “pragmático” diz
respeito a regras da arte e da técnica que são baseadas na experiência e aplicadas
na experiência.
Sabe-se que o primeiro registro da utilização do termo “pragmatismo” data
de uma palestra em 1898 denominada “Philosophical conceptions and practical
results”, conduzida por William James na Universidade da Califórnia, numa
alusão a Charles Sanders Peirce. Nessa ocasião, ele apresentou o que chamou de
princípio de Peirce: o teste de o que é uma verdade é de fato a conduta que ela
inspira ou dita; assim sendo, o significado efetivo de qualquer proposição
filosófica pode sempre ser trazido para uma conseqüência particular na nossa
experiência prática futura, ativa ou passiva. Nessa linha, ao filósofo caberia a
pergunta: qual diferença para o mundo se considerarmos uma tal idéia verdadeira
ou falsa?
2
Conforme se espera restar claro ao fim deste trabalho, seria um contra-
senso que, em um estudo dedicado ao pragmatismo, elegêssemos como foco
definir o que significa este termo. No entanto, de forma a permitir uma
aproximação inicial com o tema, é possível dizer que, entre os pensamentos dos
pragmatistas clássicos Wendell Homes, Charles S. Peirce, William James e John
Dewey
3
encontramos alguns pontos em comum. O que possuíam em comum não
eram apenas conjuntos de idéias, mas idéias sobre idéias: acreditavam que as
1
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafisica dos costumes. Coimbra : Atlantida, 1960.
2
MENAND, Louis. Pragmatism: a reader (ed.). Nova Iorque: Vintage Books, 1997, pp. xi a
xxxiv.
3
A utilização do termo “pragmatista clássico”, costumeiramente atribuído a Oliver Wendell
Holmes, Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey, objetiva se opor a
“neopragmatista”, título este que a filosofia atual tem atribuído aos(às) autores(as) que
contemporaneamente retomam as idéias dos pragmatistas clássicos, seja com fidelidade às idéias
originais, seja reformulando-as criativamente, conforme veremos nos capítulos subseqüentes, em
especial no último.
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10
mesmas não estavam no mundo à espera de serem descobertas, mas são
ferramentas a serem utilizadas pelas pessoas para lidarem com o mundo; que não
são produzidas pelos indivíduos ou de acordo com uma lógica própria delas, mas
socialmente e totalmente dependentes do meio e das ações humanas.
4
Esses
autores concordavam ao reafirmarem o compromisso com a auto-transformação
criativa, ao deixarem de lado qualquer definição absoluta da verdade e ao
substituírem-na por uma pluralidade de perspectivas. Acreditavam e sustentavam
que as idéias eram respostas provisórias a circunstâncias particulares, ressaltando
a importância da adaptabilidade das mesmas em detrimento da imutabilidade. Não
valorizavam o pensamento como aquilo que tem por resultados distinções lógicas
ou sistemas intelectuais, mas pelo fato de, num comprometimento com
transformação criativa, traduzir idéias em ações e comportamentos. A busca pela
certeza é vista pelos pragmatistas como reminiscência fútil e desorientada da
metafísica que, deixada de lado, convida o novo e o contingente para o debate e a
ação, como fonte de oportunidade e possibilidade.
5
Nessa perspectiva, sugere-se
que se deixem de lado fundações absolutas e irrefutáveis para o pensamento.
Como resultado, velhos problemas filosóficos são deixados de lado, emergindo
uma nova série de questionamentos, desta vez concernidos com as conseqüências
práticas das idéias em seus cenários concretos.
6
A valorização da ação, representada no protagonismo do estudo do
comportamento humano, emerge nessa linha. Segundo os autores citados,
valoriza-se uma ênfase no engajamento prático com o mundo cotidiano,
rechaçando-se a filosofia transcendental ou demasiadamente teórica em prol da
busca pelas implicações práticas das crenças humanas.
7
O resultado é uma
aproximação da filosofia e da ciência não com o objetivo de fundamentação,
como outrora, mas rompendo com essa perspectiva e privilegiando o método e a
pesquisa científicos. Assim, os pragmatistas não observam as coisas isoladamente,
existentes por si mesmas, mas pertencendo a cenários que moldam seus
4
MENAND, Louis. The metaphysical club: a story of ideas in America. Nova Iorque: Farrar,
Straus and Giroud, 2001, pp. ix a xii.
5
DICKSTEIN, Morris (ed.). The revival of pragmatism: new essays on social thought, law, and
culture. Durham e London: Duke University, 1998, pp. 1 a 18.
6
TALISSE, Robert B. On Dewey. New York: Wadsworth, 2000, pp. 1 a 16.
7
CAPPS, Donald e CAPPS, John M. (org.) James and Dewey on belief and experience. Urbana e
Chicago: University of Illinois, 2005, p. 1.
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significados e valores. A verdade se torna dinâmica, não absoluta.
8
Nessa linha, o
termo pragmatismo se refere à “arte de tornar conceitos claros”.
9
Tendo essas considerações em mente, uma das inquietações do estudioso
da filosofia e da ciência políticas se torna o exame da democracia à luz das idéias
pragmatistas, inquietação inspiradora desta dissertação.
É preciso dizer que a preocupação do pragmatismo com a democracia não
é rara; de fato, o pragmatismo teve o seu surgimento conectado diretamente a
episódios da história estadunidense relacionados a esse ideal.
Oliver Wendell Holmes Jr., que viveu de 1841 a 1935 e é reconhecido pela
sua participação marcante na Suprema Corte dos Estados Unidos, em sua
juventude participou da Guerra Civil do século XIX nesse país. A partir do que
viveu na guerra, Holmes chegou à conclusão segundo a qual o que leva ao
conflito armado é a certeza, é acreditar que o fato de se pensar de forma correta
justifica que se façam imposições a qualquer um que não subscreva às ideologias
particulares de quem acredita estar correto. Se essa convicção a respeito de estar
correto é poderosa o suficiente, leva ao uso da força contra seus opositores.
Quando muitas pessoas pensavam que o mundo seria um lugar melhor caso
aqueles que se opusessem a elas e, “portanto, estivessem errados”, não mais
fizessem parte dele, a “certeza” levaria à guerra. Pensamentos como esse levaram
Holmes e os demais pragmatistas a rejeitarem qualquer idéia que se apresentasse
como alguma forma de poder supremo. Mesmo abrindo mão de fundamentos
absolutos, seria possível lutar pelas mesmas coisas, como o abolicionismo à época
da guerra civil, sob a bandeira de que se busca uma visão de mundo que se acha
interessante, que corresponde à forma como a pessoa que está engajada na luta
acha que o mundo deveria ser.
10
Para os pragmatistas estadunidenses clássicos, a
guerra civil foi resultado de fracasso das idéias, o que demonstrava a necessidade
de uma reformulação da maneira de se pensar.
11
Dentre os estudiosos pragmatistas, aquele que mais se dedicou à incursão
no pensamento e prática democráticos foi John Dewey. Dewey nasceu na cidade
8
DICKSTEIN, Morris (ed.). The revival of pragmatism: new essays on social thought, law, and
culture, ob. cit., pp. 1 a 18.
9
Dewey, John. The development of american pragmatism. In: ALEXANDER, Thomas M. e
HICKMAN, Larry A. (ed.). The essential Dewey. Bloomington: Indiana University, 1998, vol. I,
p. 3.
10
MENAND, Louis. The metaphysical club: a story of ideas in America, ob. cit., pp. 49-69.
11
Ibid., pp. ix a xii.
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12
de Burlington, nos Estados Unidos, em 1859, ano em que foi lançada a obra “A
origem das espécies” de Charles Darwin. À época em que faleceu (precisamente
no ano de 1952) era o intelectual estadunidense mais famoso. Foi um psicólogo,
um filósofo, um ativista social, um intelectual, um reformador social, um
pedagogo. Testemunhou uma série de eventos extraordinários na ciência, arte,
cultura e política dos Estados Unidos, seu país de origem, e do mundo, dentre os
quais destacamos, além dos já mencionados: teoria da relatividade de Einstein,
teoria quântica de Bohr e Heisenberg, valorização da arte menos formal e do jazz,
o voto feminino, a Grande Depressão e a expansão dos Estados Unidos como um
grande poder mundial. Diante desse cenário de profundas modificações culturais,
sociais, políticas e econômicas, chamou a atenção de Dewey a forma como a
permanente implementação da democracia poderia ser prejudicada caso velhos
hábitos, dogmas e pressupostos nunca fossem postos em dúvida.
No capítulo 1, são apresentados alguns conceitos e idéias que integram
com grande freqüência o vocabulário de Dewey, de forma a munir os leitores
deste trabalho das ferramentas teóricas utilizadas pelo autor na construção de seu
pensamento. Assim, é descrita com mais detalhamento a crítica à filosofia
tradicional acima citada, pela qual o estadunidense se tornou renomado, contexto
em que são trabalhados os conceitos de fim-em-vista, experiência e hábito. Vale
lembrar que tal incursão teórica se faz indispensável já que o autor, ao se utilizar
de termos corriqueiros está, muitas vezes, na verdade, se referindo ao colorido
desses termos adquirido no contexto de sua reconstrução da filosofia, ou seja, num
cenário em que dogmas e fundamentos convidam à reflexão.
No segundo capítulo desta dissertação nos dedicaremos a explorar as
implicações trazidas pela teoria pragmatista à ciência política. Assim, nos
debruçaremos principalmente sobre a desmistificação da necessidade de que
determinado arranjo social seja definido como aquele a ser buscado,
independentemente dos contextos que o abrigam e históricos que o antecedam.
Nesse quadro, a comunidade se torna a associação humana sustentada emocional e
intelectualmente capaz de promover arranjos sociais inovadores diretamente
correspondentes ao incentivo que fornece à comunicação entre os membros da
comunidade. Por fim, o capítulo 2 explorará a forma como o ideal de liberdade é
percebido nesse contexto e o papel do liberalismo como bandeira levantada por
setores sociais que se sentiam de alguma forma desprivilegiados e cuja luta
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alcançou apoio social marcante. Assim, podemos compreender a tese de Dewey
de acordo com a qual a experiência é uma forma de vida conjunta comunicada.
O terceiro capítulo do trabalho, por sua vez, nos permitirá aprofundar
nossa incursão no pensamento democrático de Dewey ao apresentar o paralelo
permanente nas obras do autor entre educação e democracia. Analisaremos as
razões que levam o estadunidense a se afastar das concepções clássicas de
educação segundo as quais o indivíduo possui dentro de si a centelha da razão e
do que é justo; e a se aproximar da idéia de educação como ferramenta
indispensável na construção do cidadão democrático. Analisaremos a forma como
a pedagogia exerce uma poderosa tarefa na sociedade, a de forjar hábitos e
disseminar conhecimentos que caracterizarão os sujeitos, e como uma política
democrática deve estar atenta a esse mecanismo e se pautar por influenciá-lo e
direcioná-lo a seu favor. Nesse mesmo capítulo, examinaremos ainda a idéia de
engenharia social de Dewey, segundo a qual uma concepção de inteligência como
algo construído socialmente pode contribuir para que se identifiquem e se
modelem meios para que fins sociais sejam alcançados. Por fim, nos
debruçaremos sobre as idéias de que a democracia é mais que um sistema de
governo, é uma forma de vida, que encontra impulso por se caracterizar como um
ideal.
O quarto e último capítulo nos levará a discutir apreciações e críticas de
autores contemporâneos ao pensamento de Dewey sobre a democracia, ou seja, ao
que foi exposto nos capítulos 1, 2 e 3 deste trabalho. Os autores mais presentes
nessa discussão serão Robert Westbrook, Richard Rorty e Richard Bernstein. As
principais críticas debatidas serão: (a) o papel das relações de poder em seus
escritos e (b) sua crença na idéia de método científico. Em seguida, (c)
confrontaremos o pensamento de Richard Rorty sobre a democracia com as idéias
daquele de quem se diz discípulo, John Dewey, observando o conflito entre a
fundamentação de conceitos e a prática de especificá-los para operacionalizá-los.
Ao fim, como será observado pelos nossos leitores, chegaremos à
conclusão de que a obra do pragmatista clássico permanece valiosa para aqueles
preocupados contemporaneamente com a democracia, mesmo passados mais de
60 anos de sua morte. Veremos o que os teóricos e aplicadores contemporâneos da
democracia ainda podem aprender com as lições sobre experimentalismo social,
contextualização das formas políticas e críticas à busca pelos fundamentos da
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democracia. Veremos o quanto o pensamento e a prática sobre a democracia
podem sair vitoriosos quando a filosofia, num rompante de humildade, admite que
sua tarefa em relação à teoria política é bem menos ambiciosa, mas
tremendamente mais útil, adequada e geradora de bem-estar social.
Ademais, cabem notas metodológicas. Este é um trabalho baseado no
pensamento de um autor, John Dewey. Uma vez que se utilizou nesta dissertação
fonte primária de sua literatura, e que apenas poucas de suas obras foram
traduzidas para o português, optou-se por, nos casos em que há transcrições de
linhas do autor, inserir uma tradução livre no corpo do texto e apresentar o trecho
em seus termos originais em notas de rodapé. Ainda por ser um trabalho autoral,
vale dizer que, atendendo a premissa pragmatista, o cenário que perfilha as
reflexões acima é a sociedade e a história dos Estados Unidos. Espera-se que, em
futuras repercussões desta pesquisa, se possa pontuar de que forma a teoria
pragmatista democrática pode apoiar a construção e implementação da
democracia na realidade e sociedade brasileiras.
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2
A reconstrução da Filosofia
O homem tornou-se gradualmente um animal quimérico
cuja existência está submetida a mais uma condição do
que a dos outros animais: é preciso que imagine de
tempos em tempos se se sabe a razão de porque existe; a
sua espécie não pode prosperar sem uma periódica
confiança na vida! Sem fé na razão da vida! E a espécie
humana não cessará de decretar de vem em quando:
‘Existe alguma coisa de que não temos de maneira
nenhuma o direito de rir’.”
1
A pretensão deste capítulo é apresentar alguns conceitos dos quais John
Dewey se utiliza ao trabalhar suas idéias em relação à democracia e o contexto em
que se inserem. À primeira vista, alguns desses conceitos parecem dispensar a
análise lhes apresentada aqui, uma vez que são típicos da linguagem do senso
comum. No entanto, a análise oferecida por este capítulo enfrenta a tarefa de lidar
com um dos pontos fortes e, ao mesmo tempo, débeis do autor. Por um lado, a
utilização de conceitos do vocabulário cotidiano é um recurso que facilita a
compreensão de sua filosofia não só por parte dos acadêmicos, mas também por
aquele que Dewey veio a denominar “homem comum”. Por outro lado, aqueles
que se dedicam a compreender mais profundamente as idéias do autor devem ter
cautela pois, por trás dessa simplificação, se encontra uma sofisticação teórica que
não pode ser deixada de lado, sob o risco de uma compreensão superficial de suas
idéias.
2
A seguir, exploraremos três idéias que se revelam presentes no
vocabulário do autor quando escreve sobre democracia e o pano de fundo que
fornece as condições para a inserção das mesmas: fins-em-vista, experiência e
hábito.
Aliada à inovadora forma de fazer filosofia proposta por Dewey está uma
das suas características mais marcantes: o antifundacionismo, ou seja, a rejeição
1
NIETZHE, Friedrich. A Gaia ciência. São Paulo: Martin Claret, 2004, pp. 36-7.
2
Nessa esteira, Murrey G. Murphey, na introdução de uma edição estadunidense da obra de
Dewey “A Natureza Humana e a Conduta”, afirma que o livro não é de fácil leitura pois o autor se
utiliza de vários conceitos de uso corriqueiro, tais como “hábito”, “impulso” e “fim”, e lhes
imprime um sentido específico, o que pode ensejar confusões em sua compreensão. (DEWEY,
John. Human nature and conduct. Carbondale: Southern Illinois University, 1988, p. IX).
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de dogmas ou fundamentos, ditos últimos, do pensamento não apoiados na
experiência humana. Para defender o antifundacionismo, o autor privilegia o papel
da contingência em detrimento das certezas absolutas e de fins fixos. Ao fazê-lo, o
pragmatista valoriza o empirismo radical, ou seja, uma visão da experiência a
partir da vivência do cotidiano, em seu aspecto prático. Permeando esses
raciocínios se situa a noção de interação; barreiras entre antigos dualismos
filosóficos isolacionistas são transcendidas em direção a um conjunto de idéias
que privilegia a troca, o contato e as relações. A rejeição de discussões acerca dos
fundamentos últimos das coisas e a conseqüente preocupação com aspectos
práticos conduz Dewey à idéia de reconstrução de hábitos, o que, em última
instância, se torna um mecanismo de reforma social. Percorreremos neste capítulo
cada um dos passos mencionados neste parágrafo.
2.1
Os fins-em-vista
Muitas coisas que um povo chama boas eram para outros
vergonhosas e desprezíveis, foi o que vi. Muitas coisas,
aqui qualificadas de más, em outro lugar as enfeitavam
com o manto de púrpura das honrarias. Nunca um
vizinho compreendeu o outro; sempre a sua alma se
assombrou da loucura e da maldade do vizinho. (...) A
verdade é que os homens se deram todo o seu bem e todo
o seu mal. A verdade é que não o tomaram, que o não
encontraram, que lhes não caiu como uma voz do céu. O
homem é que pôs valores nas coisas com a intenção de se
conservar. (...) Avaliar é criar. Ouvi, criadores! Avaliar é
o tesouro e a jóia de todas as coisas avaliadas. Pela
avaliação se dá o valor; sem a avaliação, a noz da
existência seria oca. Ouvi-a, criadores!
3
Dewey foi um grande crítico da forma de se fazer filosofia de sua época.
Segundo ele, é preciso que a filosofia seja estudada como um capítulo do
desenvolvimento da civilização e da cultura, não como algo isolado em si mesmo;
feito isso, a história da filosofia adquire uma nova significação.
4
A filosofia para
3
NIETZCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Sao Paulo: Martin Claret, 2003, p. 58.
4
Conforme Dewey admitiu, há um “deposito hegeliano permanente” em sua filosofia (Dewey,
John. From absolutism to experimentalism. In: ALEXANDER, Thomas M. e HICKMAN, Larry
A, ob. cit., I , p. 18). No entanto, vale dizer que tal reconhecimento não seria indispensável para
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Dewey não possuía o papel de resolver os problemas dos filósofos, mas de lidar
com os problemas das pessoas.
5
Como diz Richard Rorty:
Os pragmatistas – tanto os clássicos quanto os “neo” – não acreditam que as coisas
realmente são de uma certa forma. Então eles querem substituir a distinção
aparência-realidade por aquela entre descrições do mundo e de nós mesmos que são
menos úteis e que são mais úteis. Quando a pergunta “útil para quê?” é forçada,
eles não têm nada a dizer exceto “útil para criar um futuro melhor”. Quando são
perguntados “Melhor sob qual critério?”, eles não possuem uma resposta detalhada,
não mais que como os primeiros mamíferos poderiam especificar que eles eram
melhores que os dinossauros moribundos. Os pragmatistas somente podem dizer
algo vago como: Melhor no sentido de conter mais do que consideramos bom e
menos do que consideramos ruim. Quando perguntados, “E o que exatamente vocês
consideram bom?”, pragmatistas podem apenas dizer, com Whitman, “variedade e
liberdade”, ou, com Dewey, “crescimento”.
6
A fim de compreendermos a proposta de Dewey, recorremos à descrição do
autor do que seria a filosofia tradicional. A ela, o autor atribui três traços:
1) detentora da tarefa de extrair os valores morais das tradições ameaçadas
do passado e justificar em bases racionais o espírito dos costumes
tradicionalmente aceitos;
que o leitor ou a leitora de Dewey encontrasse influências hegelianas na obra do pragmatista.
Segundo James Good, dentre as influências principais estariam as mencionadas a seguir. De início,
ressaltamos a historicização do eu, sua relação com o contexto histórico e social, do que é exemplo
a presença no pensamento de Dewey da biologia darwinista. Para Dewey, o eu era uma parte de
seu ambiente, imerso numa teia de relações dialéticas com a sociedade e a natureza. Hegel também
se nota marcantemente em Dewey quando o estadunidense se refere aos dualismos filosóficos não
como recursos técnicos, problemas lógicos dos teóricos, mas como manifestações da alienação do
homem moderno em relação à sociedade e à natureza. Além disso, Hegel influencia Dewey
quando o pragmatista afirma que o aprendizado e a educação são meios para o contínuo
desenvolvimento individual (no contexto de uma sociedade) e nos momentos em que o
estadunidense defende que as sociedades não são formadas apesar das diferenças entre os
indivíduos, mas sim por conta da existência dessas diferenças, redundando numa idéia de
sociedade onde a diversidade e a crítica cultural são essenciais para sua saúde. É preciso dizer que
a partir de 1981 Dewey rejeitou o comprometimento hegeliano com a realidade transcendente em
sua filosofia, mas isso não incluiu uma rejeição das demais idéias do alemão acima relacionadas.
(GOOD, James A. A search for Unity in Diversity: the ‘permanent hegelian deposit’ in the
philosophy of John Dewey. Lanham: Lexington, 2006. Sugere-se a leitura desta obra ao leitor e à
leitora interessados em se aprofundar nas influências de Hegel em Dewey). .
5
SCHEFFLER, Israel. Four pragmatists: a critical introduction to Peirce, James, Mead, and
Dewey. Londres e Nova Iorque: Routledge & Kegan Paul, p. 187.
6
“Pragmatists – both classical and ‘neo’ – do not believe that there is a way things really are. So
they want to replace the appearance – reality distinction by that between descriptions of the world
and of ourselves which are less useful and those which are more useful. When the question ‘useful
for what?’ is pressed, they have nothing to say except ‘useful to create a better future’. When they
are asked, ‘Better by what criterion?’, they have no detailed answer, any more than the first
mammals could specify in what respects they were better than the dying dinosaurs. Pragmatists
can only say something as vague as: Better in the sense of containing more of what we consider
good and less of what we consider bad. When asked, ‘And what exactly do you consider good?’,
pragmatists can only say, with Whitman, ‘variety and freedom’, or, with Dewey, ‘growth’.”
(RORTY, Richard. Truth without correspondence to reality. In: Philosophy and social hope.
Londres: Penguin Books, 1999, pp. 27-8).
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18
2) atribuía a si o status de estar amparada pela verdade e da razão e, ao
mesmo tempo, tentava livrar o conhecimento do costume e da vinculação da
autoridade;
3) distinção fixa entre 2 facetas da existência: o mundo religioso e
supernatural da tradição popular, que na tradição metafísica se torna o mundo da
realidade última; e o relativamente real, comum, da experiência cotidiana, em
relação ao qual estavam conectados os afazeres práticos da pessoa.
7
Nesse quadro, Dewey aponta que a resposta tradicional para o estudante de
filosofia que se pergunta “do que se trata a filosofia?” se divide em 2 aspectos: 1)
forma de conhecimento que sistematiza verdades com um corpo determinado de
princípios e fatos; 2) conhecedora da realidade em última análise, num nível mais
profundo que as outras áreas do saber. Já a resposta de Dewey seria diferente: para
ele, a filosofia não seria uma forma de saber. Para o autor, a filosofia não
representa o conhecimento último nem é capaz de dizer o que é a realidade, mas é
colorida pelas leituras intelectuais das pessoas, pelos seus desejos e esperanças,
suas crenças sobre suas opções de formas de vida. Assim, o ponto de partida das
diversas filosofias são as convicções morais, que então se utilizam dos melhores
métodos disponíveis no momento para demonstrarem o que não deixou de ser
uma vontade, o desejo de premiar um modo de vida em detrimento de outro e de
convencer as demais pessoas de que o modo de se viver pregado por determinada
filosofia é o mais sábio. Como diz Dewey: “Na filosofia, “realidade” significa
valor ou escolha”.
8
Por conta do que foi dito no parágrafo anterior, nenhum conhecimento,
enquanto observado de forma abstrata e generalizada, auto-declarado apreensão
da verdade e dos fatos, é satisfatório; e continuará a não sê-lo até que seja
7
“Since they have at the same time professed completed intellectual independence and rationality,
the result has been too often to impart to philosophy an element of insincerity, all the more
insidious because wholly unconscious on the part of those who sustained philosophy.” (DEWEY,
John. Reconstruction in philosophy. New York: Mentor, 1950, p. 41).
8
“In philosophy, ‘reality’ is a term of value or choice”.
Vale destacar o texto que precede a frase
transcrita, no mesmo parágrafo do artigo: “O homem sábio lê filosofias históricas para detectar
nelas formulações intelectuais dos propósitos habituais dos homens e quereres cultivados, não para
encontrar insights em relação à natureza última das coisas ou informação sobre o arranjo da
realidade” (“The wise man reads historic philosophies to detect in them intellectual formulations
of men’s habitual purposes and cultivated wants, not to gain insight into the ultimate nature of
things or information about the make-up of reality.” DEWEY, John. Philosophy and democracy.
In: ALEXANDER, Thomas M. e HICKMAN, Larry A. (ed.). The essential Dewey, vol. I , ob. cit.,
p. 73).
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19
colocado no contexto de um futuro que não pode ser conhecido, mas especulado e
resolvido.
Ao propor uma reconstrução da filosofia, Dewey sugere um novo e
privilegiado tratamento para a noção de contingência. No âmbito de uma noção de
mundo permanente e não contingente, a idéia de fins fixos foi trazida por
Aristóteles para a cultura ocidental. Desde os gregos, a teoria ética permaneceu
hipnotizada por essa idéia segundo a qual a missão da filosofia é descobrir algum
fim, bem ou lei últimos ou supremos.
9
Em oposição, o autor afirma que o mundo das coisas empíricas inclui o
incerto, o imprevisível, o incontrolável e o caótico. Afirma que, ao invés de um
universo fechado, a ciência moderna o apresenta com espaço e tempo infinitos,
um mundo aberto, com uma variedade ilimitada, onde a mudança é onipresente e,
mais do que a fixidez, é a medida da “realidade”.
Histórica e culturalmente as pessoas se empenharam em atribuir a esse
caráter de incerteza aspectos negativos, reprováveis, valorizando, por outro lado, o
universal, a lei necessária, a uniformidade da natureza, a racionalidade inerente do
universo. Para os gregos, por exemplo, o fato de a estética dominar a teoria do
conhecimento implicava a noção de que o finito era o perfeito, enquanto que, por
outro lado, o infinito era o sem forma, caótico, incontrolável e desregrado, causa
de acontecimentos acidentais indesejados.
10
Superficialmente, as diferentes
escolas de filosofia, do espiritualismo ao materialismo, do absolutismo à
fenomenologia relativista, do transcendentalismo ao positivismo, do racionalismo
ao sensacionalismo, do idealismo ao realismo, aparentam ser radicalmente
diferentes. No entanto, compartilham todas elas de uma mesma premissa: a
negação do caráter de contingência do universo. Nas palavras do autor:
O homem se encontra vivendo num mundo aleatório; sua existência envolve, para
colocar de forma superficial, uma aposta. O mundo é um cenário de risco; é incerto,
instável, estranhamente instável. Seus perigos são irregulares, inconstantes, nos
quais não podemos confiar como em épocas e estações. Ainda que persistentes, são
esporádicos, episódicos. (...) Praga, fome, falha nas plantações, doença, morte,
derrota numa batalha, estão sempre na esquina, e também a abundância, força,
vitória, festejo e música (...) O sagrado e o amaldiçoado são potencialidades da
9
DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., p. 132.
10
Ibid., p. 70.
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20
mesma situação; e não há uma categoria de coisas que não tenha incorporado o
sagrado e o amaldiçoado.
11
Esses pensamentos foram profundamente influenciados pelos estudos de
Charles Darwin. A noção clássica de espécie, que precedia este autor, afirmava
que, em meio a todas as mudanças que acontecem no universo, há um fluxo
perfeito que as guia e é subordinado a uma manifestação perfeita, a natureza da
realidade. Tal lógica indicava que a mudança por si não nos acrescia em nada,
seria necessário identificar a causa final que se realizaria por meio dessas
mudanças. A obra de Darwin “A Origem das Espécies” modificaria essas noções
ao afirmar que as adaptações orgânicas ocorreriam simplesmente devido (1) ao
constante surgimento de variações nas estruturas biológicas dos seres vivos e (2)
permanente eliminação, por meio da reprodução excessiva, das variações que
fossem danosas à luta pela existência. Com isso, não faria sentido trazer à
discussão uma força causal inteligente que planejasse e pré-ordenasse as coisas.
12
A crítica à busca por justificativas para a realidade última das coisas é
reconhecida como uma das maiores contribuições de Dewey ao pensamento
contemporâneo e se conecta diretamente com o combate aos dualismos
metafísicos da filosofia tradicional. Dewey se aventurou por muitas áreas do
pensamento em seus escritos, mas em todas elas é marcante seu ímpeto em
desmantelar a fixidez por esses dualismos. Através das idéias de interação e
interseção Dewey criticava o isolacionismo em que teorias tradicionais
encerravam algumas idéias e a forma como destacavam algumas concepções da
vida prática das pessoas. Assim, a noção de pólos extremos cede seu lugar, em
Dewey, à idéia de gradação, em que as associações entre idéias, sentimentos e
pessoas se tornam mais complexas em relação ao modo tradicionalmente utilizado
pela filosofia para compreendê-las, conforme se explicará em seguida.
Richard Rorty ajuda a compreender o pensamento de Dewey neste ponto.
De acordo com Rorty, Dewey nos diz que não devemos mais perguntar se há algo
11
“Man finds himself living in an aleatory world; his existence involves, to put it baldly, a gamble.
The world is a scene of risk; it is uncertain, unstable, uncannily unstable. Its dangers are irregular,
inconstant, not to be counted upon as to their times and seasons. Although persistent, they are
sporadic, episodic. (…) Plague, famine, failure of crops, disease, death, defeat in battle, are always
just around the corner, and so are abundance, strength, victory, festival and song. (…) The sacred
and the accursed are potentialities of the same situation; and there is no category of things which
has not embodied the sacred and the accursed…”. (DEWEY, John. Experience and nature. New
York: Dover, 1997, p. 41).
12
DEWEY, John. The influence of Darwinism on philosophy. In: CAPPS, Donald e CAPPS, John
M , ob. cit., pp. 179-88.
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21
como “a natureza intrínseca da realidade” e que deveríamos abandonar a idéia
segundo a qual o conhecimento é uma tentativa de representar a realidade. De
acordo com Rorty, Dewey ensina que deveríamos parar de nos preocupar com a
questão de se aquilo em que acreditamos tem um fundamento último e substituí-la
pela busca por alternativas interessantes para as situações que o mundo concreto
nos apresenta. Rorty nos diz que Dewey aconselha o abandono do essencialismo,
ou seja, da idéia a partir da qual há uma natureza intrínseca das coisas e, em seu
lugar, propõe que se pense de que forma podemos direcionar a interferência e a
influência na situação cotidiana à nossa volta. Assim, os antigos dualismos
metafísicos citados cedem lugar à classificação entre idéias mais úteis e idéias
menos úteis.
13
Dewey afirma que muitos pensadores reconhecem uma esfera de
contingência, mas a submetem a uma outra esfera que nunca se altera, a da
realidade última, o fim das coisas. Esses pensadores sucumbem à tentação de
atribuir à mudança a característica de pertencente a um mundo ilusório e associam
o fixo e o regular com o que chamam de realidade do Ser. Isso porque filósofos
tentam mitigar a instabilidade da vida, trazer moderação. Quando encontram algo
que é capaz de manter uma certa estabilidade, classificam esse algo de bom e o
tornam objetos de escolhas persistentes e contínuas. Ao fazerem-no, acabam por
tornar essa escolha não mais resultado de uma reflexão diante de uma situação
concreta, mas um objeto de contemplação, um refúgio, ao invés de um ideal para
inspirar e orientar. O resultado desse processo é a divisão da existência em 2
traços: o precário e problemático, por um lado, e o garantido e o completo, por
outro. Essa ruptura, segundo Dewey, deu a origem a um rol de dualismos. O mais
famoso deles é supernatural e natural. Outros são: realidade e aparência, divino e
humano, esfera superior verdadeira e esfera inferior ilusória. Com freqüência se
agrupam da seguinte forma: permanência, eternidade, completude e pensamento
racional de um lado; e, de outro, multiplicidade, mudança, temporalidade, parcial,
defeituoso, sensação e desejo. Instalado esse cenário:
14
“Sabedoria então consiste
na administração do temporal, finito e humano na sua relação com o eterno e
infinito, por meio do dogma e do culto, mais do que na regulação dos eventos da
13
RORTY, Richard. A world without substances or essences. In: Philosophy and social hope, ob.
cit., pp. 47-71.
14
DEWEY, John. Experience and nature. , ob. cit., pp. 49-65.
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22
vida pelo entendimento das condições atuais”.
15
Em oposição, o estadunidense
nos diz que “tempo significa mudança”.
16
A superação dessas idéias para a filosofia, de acordo com Dewey, significa
que um tipo de problemas sai de cena e seu lugar é ocupado por outro: a filosofia
deixa de lado a busca por origens e finalidades absolutas e passa a explorar os
valores específicos e as condutas concretas que os geram. No momento em que a
filosofia substitui a necessidade de optar por um dos dois lados dos dualismos já
mencionados aqui, e defende que, sob outra ótica, tal necessidade de escolha seja
superada, fazer a pergunta “qual é a causa e a finalidade absoluta das coisas?” se
torna sem sentido. Nessa esteira, a lógica imposta à filosofia representada na
atribuição de provar que a vida deve ter certas qualidades e valores por conta de
uma causa ou objetivo remotos se torna desprivilegiada. Assim, para Dewey, o
progresso intelectual está relacionado ao abandono dos antigos questionamentos
devido à vitalidade decrescente dos mesmos. Esses questionamentos não são
resolvidos, mas são superados,
17
dando lugar, por conseqüência, a novas
indagações correspondentes à mudança de atitude que tomou lugar.
18
A discussão do parágrafo acima sugere que palavras como “essencial”
adquirem uma nova significação. Não mais fazem referência ao objeto do esforço
para alcançar o conhecimento a respeito de uma realidade superior. Por outro
lado, afirmam que algumas conseqüências das práticas humanas, em um tempo e
lugar determinados, são de tal forma centrais e estratégicas, que seu caráter quase
imprescindível sugere que as qualifiquemos como essenciais.
19
A busca pela
certeza seria uma tentativa de escapar do mundo e de seus problemas práticos. As
distinções: aparência x realidade, nomos x physis, natureza x realidade, conhecer
15
“Wisdom then consists in administration of the temporal, finite and human in its relation to the
eternal and infinite, by means of dogma and cult, rather than in regulation of the events of life by
understanding of actual conditions.” (DEWEY, John. Experience and nature, ob. cit., p. 55.)
16
“(…) tempo significa cambio.” (DEWEY, John. El hombre y sus problemas. Buenos Aires:
Paidós, 1961, p. 162).
17
“The displacing of this wholesale type of philosophy will doubtless not arrive by sheer logical
disproof, but rather by growing recognition of its futility.” (DEWEY, John. The influence of
Darwinism on philosophy. In: CAPPS, Donald e CAPPS, John M. (ed.) James and Dewey on
belief and experience, ob. cit., p. 186.).
18
Ibid., pp. 179-188.
19
DEWEY, John. El hombre y sus problemas, ob. cit., p. 17.
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23
as coisas x usar as coisas, intrínseco x extrínseco, deixadas de lado, são superadas
pela idéia de fluxo contínuo de relações de mudança entre as coisas.
20
Além de ressaltar a contingência das coisas, Dewey alega que nada se ganha
com os dogmas de recomendar algo como uma verdade ideal ou com o mito de
atribuir ao intelecto uma relação intrínseca com a verdade por si própria. Assim,
diz o autor, “Se alguém se sente aliviado ao chamá-lo de eterno, deixe que seja
chamado de eterno. Mas não deixe ‘eterno’ ser então concebido como um tipo de
existência ou Ser que perdure. Isso denota apenas o que denota: irrelevância para
a existência de sua qualidade temporal”.
21
E é justamente neste ponto que se insere uma das idéias mais caras à
filosofia de Dewey: se o ponto de partida é um mundo em que o resultado das
coisas já está determinado, cujos caminhos são fixos, não há por quê se preocupar
com a ação humana; no entanto, se, por outro lado, o ponto de partida é a
contingência das coisas, a ação do ser humano ocupa um papel importantíssimo
posto que é capaz de influenciar a forma como o futuro se dará. A mudança se
torna significativa de novas possibilidades e fins a serem atingidos, profética de
um futuro melhor.
O desejo do progresso transformou o interesse do estético para o prático e,
portanto, direcionou a humanidade à busca pela transformação do desarmonioso.
Mesmo que não haja algo como “a natureza intrínseca da realidade”, ainda assim
há pressões que causam situações. A reconstrução da filosofia proposta por
Dewey alerta que vivemos num mundo onde, em meio ao incerto e duvidoso,
estão presentes recorrências que tornam possíveis previsões e controles, que
estabelecem uma relação complexa com singularidades, ambigüidades,
possibilidades incertas, processos sendo conduzidos a conseqüências
indeterminadas; onde a mudança dá significado à permanência e a recorrência
torna a novidade possível.
22
Um dos problemas da concepção tradicional de fins fixos é isolar (1) o fim
da (2) reflexão acerca das escolhas a serem feitas para se atingi-lo. Assim, o que é
20
RORTY, Richard. Truth without correspondence to reality. In: Philosophy and social hope, ob.
cit., pp. 23 a 46.
21
“If anybody feels relieved by calling them eternal, let them be called eternal. But let not ‘eternal’
be then conceived as a kind of absolute perduring existence or Being. It denotes just what it
denotes: irrelevance to existence in its temporal quality” (DEWEY, John. Experience and nature,
ob. cit., p. 148).
22
Ibid., p. 47.
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24
mais pertinente à discussão é que se ressalte, contrapondo-se à noção de fim fixo,
a idéia de fins-em-vista, de propósito, objetivo, predição útil como um plano para
moldar o curso dos eventos. Os fins-em-vista são projeções de conseqüências
possíveis, objetivos considerados dignos do esforço para seu atingimento após
uma deliberação, resultado da imaginação reflexiva e das construções racionais. É
fato que não há nada que possamos fazer em relação a alguma situação no
presente a não ser aproveitá-la ou sofrer por ela; mas a reflexão poderia se ter
preocupado com as condições que a teriam propiciado ou evitado.
23
Para Dewey, fins são na realidade fins-em-vista ou intenções e são
verificados todas as vezes em que os acontecimentos venham a influenciar o curso
de atividades ou nossa busca por um propósito; são eixos de redireção em
operação, já que é própria dos seres humanos a aversão a algumas conseqüências
e predileção por outras. Quando os fins são considerados fins propriamente ditos,
se congelam e se isolam; se apresentados como completos e exclusivos, conduzem
à pobreza de horizontes e, por vezes, a fanatismo e arrogância. Essa transferência
do fardo dos fins fixos para a detecção dos males que precisam ser remediados
num caso especial elimina as causas que mantiveram a teoria moral controvertida
e distante das demandas da vida prática.
24
Dewey rejeita tanto a idéia segundo a qual há um termo inicial dotado de
força geradora inerente que é emitida aos seus sucessores, quanto a de que um fim
último determina seus antecedentes. Por outro lado, o autor defende que,
empiricamente, cada evento isolado possui seu lugar na história e suas
características específicas, há uma história que é uma sucessão de histórias, em
que cada fato é o início de algum e o fim de outro, ao mesmo tempo transitivo e
estático. Dessa forma, o valor da idéia de causalidade está na noção de ordem
seqüencial.
25
23
Ibid., pp. 101-20. Ao falar sobre razão, é preciso ser coerente com a discussão aqui travada.
Dewey não acompanha a tradição filosófica quando ela diz a realidade é, em última instância, um
sistema racional, um todo coerente de relações somente perceptível pelo intelecto. Para o autor, o
pensamento reflexivo de fato transforma a confusão e a ambigüidade em consistência e definição,
mas leva em consideração a situação concreta em que o pensamento ocorre. Portanto, o
pensamento e a razão são procedimentos intencionalmente utilizados, processo contínuo de
reorganização no único mundo, o das coisas experienciadas, não um salto do mundo deste mundo
para um outro onde jaz a realidade última. Também no pensamento está presente a contingência, a
irregularidade e a indeterminação (Ibid., pp. 66-71).
24
DEWEY, John. Human nature and conduct, ob. cit., p. 178-179.
25
DEWEY, John. Experience and nature, ob. cit., pp. 98-100.
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25
Nesse quadro, uma reconstrução da filosofia se baseia no descarte de idéias
que foram inadequadamente herdadas de outros tempos. A reconstrução da
filosofia defende a consciência da interseção entre os elementos dos dualismos
instituídos pelas teorias mais antigas para que se possa tirar vantagem das
condições da natureza, não se submeter a elas.
26
Com essas reflexões Dewey atribui importância ao caráter prático ou
operativo do conhecimento e o faz ao defender que as estruturas e objetos da
ciência e da filosofia não constituem um reino à parte, mas, por outro lado,
representam os meios materiais e métodos que permitem atribuir direcionamento à
mudança. Esta vai ocorrer de qualquer forma, mas pode ser influenciada
propositadamente. Isso significa que o reino ideal não mais é algo separado da
experiência; em oposição, é uma coleção das possibilidades imaginadas que
estimulam o ser humano a novos esforços e realizações. Assim, enquanto na visão
clássica a idéia já está pronta e pertence a um mundo diferente daquele
influenciado pela pessoa, na reconstrução da filosofia proposta por Dewey,
afirmar a existência de uma idéia do que é melhor se torna sinônimo de modelá-la
em uma instrumentalidade da ação:
27
Mas a eliminação desses problemas tradicionais não permitiria à filosofia se
devotar a uma tarefa mais frutífera e necessária? Não encorajaria a filosofia a
encarar os grandes defeitos e problemas sociais e morais de que a humanidade
sofre, a concentrar a sua atenção em elucidar as causas e a natureza exata desses
males e no desenvolvimento de uma idéia clara de possibilidades sociais melhores;
em resumo, em projetar uma idéia ou ideal que, ao invés de expressar a noção de
outro mundo ou algum objetivo distante e não realizável, seria usado como método
para compreender e corrigir males sociais especiais?
28
Quando a natureza se livra dos fins fixos e da escravidão dos propósitos
metafísicos e teológicos é subjugada aos propósitos humanos. O conhecimento
empírico então é conversível em filosofia criativa e construtiva a partir da
imaginação de ferramentas.
29
Nessa perspectiva, erros não são mais vistos como
26
Ibid., pp. 37 e 70.
27
DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., p. 104.
28
“But would not the elimination of these traditional problems permit philosophy to devote itself
to a more fruitful and more needed task? Would it not encourage philosophy to face the great
social and moral defects and troubles from which humanity suffers, to concentrate its attention
upon clearing up the causes and exact nature of these evils and upon developing a clear idea of
better social possibilities; in short upon projecting an idea or ideal which, instead of expressing the
notion of another world or some far-away unrealizable goal, would be used as a method of
understanding and rectifying special social ills?” (Ibid., pp. 107).
29
Tendo em vista as reflexões desenvolvidas neste capítulo, também podemos explorar a
concepção de verdade para Dewey: as idéias, significados, noções, teorias, e sistemas são
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26
pecados morais ou acidentes a serem lamentados, mas como lições sobre os
métodos não interessantes de se utilizar a experiência, indicações da necessidade
de revisão, desenvolvimento, reajuste.
30
Por tudo isso, não há um fim moral último a se buscar. Nesse cenário,
Dewey apresenta a idéia de crescimento, segundo a qual o fim a ser buscado não é
um limite a ser alcançado, mas o processo de transformação da situação existente:
“Crescimento em si é o único ‘fim’ moral”.
31
Ao substituir a distinção “aparência
x realidade” pela “descrições mais úteis x descrições menos úteis”, o fim a ser
buscado se torna “um futuro melhor”. Essa noção é bastante genérica, o que
corresponde aos objetivos de Dewey, já que para ele a humanidade é capaz de
imaginar a todos os instantes ferramentas para lidar de diversas maneiras com as
infinitas questões que surgem do cotidiano. Portanto, o fim moral a ser buscado se
torna, como Rorty diz, “alcançar mais do que se considera bom em determinada
situação concreta”. Definir o que se considera bom, por sua vez, dependerá do
contexto em que cada fato se insere.
32
Nas palavras de Dewey:
Fins se desenvolvem, padrões de julgamento melhoram. O homem está
sob a obrigação de desenvolver seus padrões e ideais mais avançados
instrumentais, então o teste de sua validade se encontra no cumprimento de sua tarefa. A
confirmação se encontra nas conseqüências. Assim, a satisfação do problema envolve a satisfação
das necessidades e condições surgidas a partir da questão, do propósito e seu contexto específicos.
Não há motivo para se falar em uma verdade generalizável e abstrata, destacada de um contexto
determinado. Nas palavras do autor: “Here it is enough to note that notions, theories, systems, no
matter how elaborate and self-consistent they are, must be regarded as hypotheses. They are to be
accepted as bases of actions which test them, not as finalities. To perceive this fact is to abolish
rigid dogmas from the world. It is to recognize that conceptions, theories and systems of thought
are always open to development through use. It is to enforce the lesson that we must be on the
lookout quite as much for indications to alter them as for opportunities to assert them. They are
tools. As in the case of all tools, their value resides not in themselves but in their capacity to work
shown in the consequences of their use.” (DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., p.
121).
30
Ibid., pp. 73-4.
31
“Growth itself is the only moral ‘end’ ” (Ibid., p. 141).
32
RORTY, Richard. Truth without correspondence to reality. In: Philosophy and social hope, ob.
cit., pp. 27-8.
Edmondson sinaliza que Dewey falhou em fornecer uma explanação adequada acerca do que seria
“crescimento”: “Ao fim de sua carreira, Dewey o pôde fornecer uma melhor explicação de
‘crescimento’ do que a de que é ‘bom’; e quando apropriadamente direcionado, incentive o
crescimento futuro. O único critério para julgar o crescimento, ele persiste, é mais crescimento.
(…) A sua resposta desapontadora, mesmo já tardiamente em sua carreira, é: ‘Eu deixarei que
vocês busquem responder a essas perguntas’ ”. Creio que Rorty conseguiu responder bem à
pergunta “o que é crescimento?”, fornecendo os elementos necessários para a resposta. (“Toward
the end of his career, Dewey could provide no better explanation of ‘growth’ than that it is ‘good’,
and when properly directed, encourages further growth. The only criteria for judging growth, he
persists, is more growth. (…) His disappointing answer, even late in his career, is: ‘I shall leave
you to answer these questions’.) (EDMONDSON III, Henry T. John Dewey and the decline of
american education: how the patron saint of schools has corrupted teaching and learning.
Delaware: ISI, 2006, p. 49).
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27
assim como de usar conscientemente aqueles que ele já possui. A vida
moral está protegida de cair no formalismo e repetição rígida. É traduzida
como flexível, vital, em crescimento.
33
2.2
Experiência
“Eis o que eu chamo o imaculado conhecimento de todas
as coisas: não querer das coisas mais do que poder estar
diante delas. Hipócritas afetados e lascivos! Falta-vos a
inocência no desejo, e por isso caluniais o desejo! Vós
não amais a terra como criadores, como geradores
satisfeitos de criar. Onde há inocência? Onde há vontade
de engendrar. E o que criar qualquer coisa superior a si
mesmo, esse, para mim, tem a vontade mais pura. Onde
há beleza? Onde é mister que eu queira com toda a
minha vontade, onde eu quero amar e desaparecer, para
que uma imagem não fique reduzida a uma simples
imagem.”
34
Para analisarmos ao que Dewey se refere quando recorre ao termo
“experiência” precisamos fazer uma incursão, ainda que superficial, no contexto
filosófico que circundava o tema à época do autor. Em resumo, podemos observar
dois posicionamentos.
Em primeiro lugar, mencionamos os racionalistas, segundo os quais a
experiência é a fonte de toda ilusão e erro e, portanto, um obstáculo ao
conhecimento; este, por sua vez, somente seria encontrado a partir da faculdade
mental da razão. Para a filosofia tradicional em geral, a experiência nunca está
acima do contingente ou provável e somente um poder transcendendo sua origem
e conteúdo pode lhe fornecer direcionamento e relação com o universal.
Em segundo lugar, citamos os empiristas, estes defendendo que a razão é
uma faculdade abstrata sem conexão com o mundo físico, devendo ser chamado
de conhecimento somente o que nos coloca em contato com o mundo. Para os
empiristas, a experiência é capaz de prover essa conexão entre a mente e o mundo
sendo, assim, a fonte de todo o conhecimento. Para aqueles afinados com estas
33
“Ends grow, standards of judgement are improved. Man is under just as much obligation to
develop his most advanced standards and ideals as to use conscientiously those which he already
possesses. Moral life is protected from falling into formalism and rigid repetition. It is rendered
flexible, vital, growing.” (DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., p. 140).
34
NIETZCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, ob. cit., p. 102.
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28
idéias, a experiência é percepção sensorial, ou seja, uma representação do mundo,
uma mediação ao prover uma imagem do mesmo, não uma conexão direta.
Diante dessas duas frentes, Dewey pode ser caracterizado como um
“empirista radical”. Para ele, o termo representação significava a existência
necessária entre a imagem mental e o objeto que a causava, o que sugeria, por
conseqüência, os seguintes questionamentos: qual o motivo que nos leva a aceitar
essa idéia? Como ela pode ser verificada? Por que crer que há um mundo externo
de objetos? Ao mesmo tempo em que não podemos justificar pela experiência a
crença de que sensações são representações acuradas dos objetos externos, não
podemos provar pela experiência a crença de que há continuidades entre o mundo
introspectivo e o mundo físico. O fato de não dispormos das ferramentas que nos
habilitariam a responder essas questões é suficiente para que deixemos de lado a
idéia de conhecimento como representação da realidade.
35
Para Dewey, o tratamento tradicional da noção de experiência não a torna
esclarecedora, mas sim a obscurece, a torna um mistério. Dessa forma, no lugar de
uma concepção baseada em deduções a respeito de o que deveria ser a
experiência, Dewey afirma que é preciso se voltar para a experiência por si
mesma, no sentido a seguir explicado, o que caracteriza sua filosofia como
empirismo radical.
36
O empirismo defendido por Dewey diz que as coisas são
aquilo como são experienciadas. Ainda que possa parecer banal asseverar tal
obviedade, o tema à época estava de tal forma consumido pela terminologia
metafísica que Dewey buscava defender a simplicidade e a praticidade do termo
“experiência”. Para Dewey, conhecer algo é apenas mais uma das formas de se
experienciar coisas. Quando o empirista radical fala em experiência não se refere
a algo grandioso envolto num fluxo infinito, mas a uma experiência característica,
do valor de certa coisa concretamente experienciada, uma situação particular.
37
Para Dewey, a diferença marcante entre o empirismo radical e o histórico é
que, enquanto o último está centrado nos eventos antecedentes, o primeiro se
preocupa com os eventos conseqüentes e com as possibilidades de ação.
38
As
conseqüências dessas idéias para a filosofia são que a interação do organismo com
35
TALISSE, Robert B. On Dewey ob. cit., pp. 33-42.
36
Ibid., p. 43.
37
DEWEY, John. The postulate of immediate empiricism. In: CAPPS, Donald e CAPPS, John M.,
ob. cit., e Chicago: University of Illinois, 2005, pp. 189-195.
38
DEWEY, John. The development of american pragmatism. ALEXANDER, Thomas M. e
HICKMAN, Larry A. (ed.). The essential Dewey, vol. I, ob. cit., p. 8.
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o meio é fator de primeira importância; e o conhecimento não é algo separado ou
auto-suficiente, mas está envolvido no processo em que a vida se desenvolve. Os
sentidos perdem seu lugar de portas de entrada do conhecimento e adquirem seu
lugar como estímulos para a ação. Quando a experiência está alinhada com o
processo de vida, não mais é necessária uma faculdade racional supra-empírica
para conectá-las.
O empirismo radical leva à ruptura com o que Dewey chama de “falácia
intelectual”, segundo a qual há uma separação bem definida entre o mundo onde a
pessoa pensa e conhece e aquele onde vive e atua.
39
Enquanto na visão tradicional
a experiência é uma questão de conhecimento, para o empirismo radical a mesma
se trata de um intercurso de um ser vivo com o meio físico e social. O organismo
não fica aguardando uma impressão do ambiente, ele age em concordância com o
meio a partir de suas própria estrutura, simples ou complexa. Como conseqüência,
as mudanças produzidas no meio reagem sobre o organismo e suas atividades,
estabelecendo-se uma relação estreita entre elas, a qual Dewey denomina
experiência.
40
Esta, em suma, não é uma combinação do espírito com o mundo,
do sujeito com o objeto, do método com a matéria, e sim uma única interação
contínua de grande diversidade de energias.
41
Ao falar sobre experiência, o autor
defende uma continuidade entre as ações; não há uma apresentação de imagem
particular à mente pois aquela não existe isoladamente, somente inserida num
contexto mais amplo de certa atividade ocorrida em certas condições.
42
De acordo com essa perspectiva, se abandona a velha idéia segundo a qual a
experiência é uma simples recordação, o ato passivo de se receber uma
informação, o dado. Em seu lugar é privilegiada a noção de experiência como
experimento ou esforço para modificar o dado, associada à idéia de futuro
projetado, ambiente em transformação cujas condições não são simplesmente
registradas mas, mais do que isso, são levadas em conta para que se possam
estabelecer novos direcionamentos e exercer algum tipo de controle sobre as ações
futuras.
39
DEWEY, John. The Copernican revolution. In: CAPPS, Donald e CAPPS, John M. (ed.) James
and Dewey on belief and experience, ob. cit., pp. 196-214.
40
DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., p. 83.
41
DEWEY, John. Democracia e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 4ª
ed., 1979,
p. 184.
42
TALISSE, Robert B. On Dewey, ob. cit., pp. 44-6.
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30
Considerando essa permanente interação do o ser com o ambiente, a
experiência vista da forma proposta por Dewey assume inúmeras continuidades e
conexões, gerando, assim, uma infinidade de possibilidades ocorrendo a todo
instante, potenciais caracterizadoras das experiências futuras. O agente assume um
papel importante, porque ativo, na construção de seu futuro. A experiência deixa
de ser uma antítese do pensamento, de forma que o dualismo entre o
processamento de imagens mentais, de um lado, e a faculdade da mente que
produz inferências a partir das experiências particulares, de outro, perde sentido.
43
De acordo com John e Donald Capps, os escritos de Dewey sobre arte
proporcionam uma excelente introdução ao que o autor enfrenta em geral quando
se utiliza do termo “experiência” em suas obras.
44
Partindo da mesma idéia,
recorremos à obra “Art as Experience”. Nela, Dewey afirma que a experiência
seria um ajuste adaptativo entre o meio e o objeto como o resultado da interação
de uma criatura viva com algum aspecto do mundo em que vive. A vida se dá não
somente em um ambiente, mas também por causa dele, pela interação. Para se
viver é preciso o ajuste ao ambiente, a acomodação e a defesa rumo a um
equilíbrio temporário. Essa visão comum nos diz que a vida se dá numa constante
superação de fatores de oposição e conflito, na transformação contínua em
diferentes aspectos, num constante ritmo de perda de integração com o ambiente e
recobramento da união.
45
Afirma também Dewey nessa mesma obra que momentos vividos somente
caracterizam uma experiência quando, numa situação de conflito, ruptura ou
quebra eles são qualificados com emoções e idéias. Apenas quando, após viver
um conjunto de eventos, alguém tem a sensação de que passou por um curso de
situações que carrega qualidade individualizadora, caracterizadora de sua auto-
suficiência, pode-se dizer que houve de fato uma experiência. A título de
ilustração, a experiência ocorre nas situações em que se tem uma conversa, se
participa de uma campanha eleitoral, se faz uma refeição; em que alguém diz “tive
uma experiência” e é capaz de dar um nome a ela. São aquelas situações às quais
espontaneamente nos reportamos como “experiências reais”, sejam situações de
43
DEWEY, John. The need for a recovery of philosophy. In: ALEXANDER, Thomas M. e
HICKMAN, Larry A. (ed.). The essential Dewey, vol. I, ob. cit., pp. 46-70.
44
CAPPS, Donald e CAPPS, John M. (ed.) James and Dewey on belief and experience, ob. cit.,
pp. 189-195, p. 9.
45
DEWEY, John. Art as experience. New York: Perigee, 2005, pp. 1-19.
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31
importância extrema, sejam outras de menos relevância, como “uma tempestade”,
ou “aquela viagem”.
46
Quando o passado e o presente se encaixam exatamente um no outro não há
consciência sobre o que é percebido e a experiência resultante se torna habitual,
mecânica, rotineira.
47
Para Dewey, no entanto, a inteligência pode exercer um
papel importante nessas situações através do ajuste consciente entre o meio e o
ser. Esse ajuste consciente, por sua vez, se dá sempre que significados produzidos
a partir de experiências anteriores fazem parte da interação presente. O único
recurso que permite que isso possa ocorrer é a imaginação, o ajuste entre o novo e
o velho.
2.3
Hábito
Em síntese, poderíamos dizer que a utilização do conceito de hábito oferece
uma possibilidade de se escapar da dualidade consciente x inconsciente, ou seja,
de se valorizar a criatividade do agente ao mesmo tempo em que se rejeita a idéia
de uma razão universal determinante, em último caso, da conduta humana.
A fim de compreendermos melhor o que Dewey identifica como hábito,
investigaremos sua obra “A Natureza Humana e a Conduta”.
48
Nela, Dewey
46
Ibid., pp. 36-59.
47
Ibid., pp. 283-309.
48
Como observamos em todas as obras de Dewey, o conceito de hábito, mesmo quando não
adquire uma importância central, é pelo menos mencionado e enfatizado. Para compreendermos o
por quê dessa preocupação recorrente de Dewey é importante neste ponto contextualizarmos uma
das mais proeminentes discussões teóricas que ocorriam nos Estados Unidos da pós I Guerra
Mundial. Tal debate era marcado pelos “democratas realistas”, intelectuais dos anos vinte do
século passado que dirigiam críticas a democracia em duas de suas bases mais importantes: 1) na
capacidade para a ação política racional de todas as pessoas; e 2) na maximização da participação
de todos os cidadãos na vida pública. Nesse quadro, os democratas realistas pensavam que as
mulheres e os homens comuns eram irracionais, o que tornaria a democracia participativa
impossível e um recurso não sábio sob as condições à época. Defendiam, assim, um governo
estritamente limitado e uma democracia redefinida como governo para o povo conduzido pelas
elites iluminadas e responsáveis. Aproveitando-se da relevância que as ciências sociais adquiriram
à época por conta, ironicamente, dos escritos e das lutas de Dewey, um ramo da psicologia foi
responsável por apresentar as provas científicas para que essas idéias fossem solidificadas.
Chegou-se ao ponto de se implementar testes com o propósito de provar a irracionalidade do povo.
Considerando que o termo irracional remetia ao comportamento guiado majoritariamente pelos
instintos, Dewey, opondo-se a isso, escreveu “A natureza humana e a conduta”, cuja tese é a de
que não o instinto, mas o hábito, é a chave para a psicologia social. Dewey reconhece a profunda
importância das forcas inconscientes, mas diz que elas não estão destacadas das determinações do
hábito. (WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit.,pp. 275-91.)
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32
compara os hábitos às funções fisiológicas dizendo que, ainda que os primeiros
sejam adquiridos e as segundas sejam involuntárias, ambos demandam a
cooperação do organismo e do meio. Essa idéia se contrapõe à forma como se
pensava à época do autor em relação à moral, quando as disposições destas eram
observadas como pertencendo exclusivamente a um eu isolado do meio social.
49
Criticando tal posição, o autor diz que a formação de um hábito compreende o
apoio de condições externas, já que qualquer atividade oriunda de uma pessoa
desencadeia uma série de relações com o meio: pessoas aprovarão, desaprovarão,
protestarão, estimularão, compartilharão ou resistirão. A própria não interferência
constitui resposta ou reação a essa ação.
50
Dewey ressalta o fato de que, ao
abordarmos o tema hábito, quase sempre citamos exemplos de hábitos nocivos
como consumir bebidas e drogas, o que demonstra que nos esquecemos de
atividades como andar ou tocar instrumentos musicais, como se estes últimos se
enquadrassem em uma categoria de hábitos que existem “à parte de nossas
predileções e isentas de impulsos urgentes”.
51
Não faz sentido, para o autor, esperarmos resultados e, mesmo sem controle
inteligente dos meios, supormos que estes possam existir. Combatendo essa linha
de pensamento verificaríamos uma outra, defendida por Dewey, segundo a qual os
hábitos se posicionam entre o desejo e a realização de ações. Para ele, idéias e
pensamentos sobre fins não são gerados espontaneamente, mas sim com a
participação dos hábitos. O sentido que se atribui como instintivo, imediato, para
Dewey é, de fato, o sentido de hábitos que agem abaixo da consciência direta.
52
Hábitos, segundo Dewey, são meios, mas que se projetam e vêm a dominar
as formas de agir. Quando alguém pretende agir, isso só pode ser levado a cabo
através de um mecanismo já existente na pessoa que permita isso. Esse
mecanismo seria o hábito:
Se defeituosa ou pervertida, a melhor intenção no mundo trará resultados ruins. No
caso de nenhum outro mecanismo alguém supõe que uma máquina defeituosa
gerará bons produtos simplesmente porque está convidada a isso. Em qualquer
49
DEWEY, John. A natureza humana e a conduta. Bauru: Tipografia Brasil, 1956, pp. 23-5.
50
Ibid., p. 25.
51
Ibid., pp. 31-2.
52
Ibid., pp. 35-7.
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33
outro lugar nós reconhecemos que os contornos e a estrutura da atuação
empregados influenciam diretamente o trabalho feito.
53
Ao esclarecer o sentido que atribui ao termo “hábito”, Dewey afirma que o
utiliza na construção de sua teoria como espécie de atividade humana que é
influenciada por atividades antecedentes e se fixa após elas, que expressa
qualidades de dinamismo, sendo operante e também até de alguma forma
subordinada, distanciando-se de repetição. Para Dewey, o hábito é uma
predisposição adquirida para modos ou modalidades de reação; significa
sensibilidade ou acessibilidade a certas classes de estímulos, predileções e
aversões fixas, mais do que meras repetições de atos específicos.
54
Enquanto os meios seriam atos executados em momentos precedentes, o
“fim” seria o último ato de uma série. No entanto, quando falamos sobre hábitos
costumeiros, tal distinção não alcança a complexidade necessária para a
explicação pois uma série de atos pode se iniciar a qualquer instante, podendo
haver desvios e retificações. Nessa perspectiva, pensar em um fim significa
alongar e aumentar nossa perspectiva do ato a ser realizado, uma vista à distância,
panorâmica, do próximo ato.
55
Em síntese, observamos em Dewey uma constante preocupação em observar
a integralidade daquilo a que a filosofia tanto já atribui separatividade: o espírito e
o corpo. No contexto em que escreveu se viu obrigado a engendrar profundas
críticas à supervalorização do intelecto e à subalternidade das experiências da
vida, à sem sentido distinção entre teoria e prática. Nessa perspectiva, a noção de
hábito permitiu a Dewey manter em sua teoria a participação do intelecto e do
colorido individual de cada um na experiência humana, mas também acatar as
influências do meio na construção e permanente reconstrução da personalidade.
Dewey, através da noção de hábito, desejava ressaltar as capacidades criadoras,
inventivas, ativas do agente; com a ressalva de que o poder criador não é de um
espírito universal, de uma natureza ou razão humana, mas sim de um agente em
ação. Para Dewey, os agentes fazem escolhas, mas estas são influenciadas pelos
hábitos.
53
“If it is defective or perverted, the best intention in the world will yield bad results. In the case
of no other engine does one suppose that a defective machine will turn out good goods simply
because it is invited to. Everywhere else we recognize that the design and structure of the agency
employed tell directly upon the work done.” (Ibid., p. 27).
54
Ibid., p. 43.
55
Ibid., pp. 37-9.
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34
Dewey traz em sua noção de hábito a preocupação em descartar dois erros
complementares: por um lado, a idéia de que a ação constitui o efeito mecânico de
coerção das causas externas e, de outro, o finalismo segundo o qual os agentes
atuam de maneira livre e suas escolhas são totalmente conscientes. Nas palavras
de John Dewey: “A natureza do hábito é autoritária, insistente e perpétua.” Dessa
forma, os hábitos se reproduzem na sociedade.
56
Pierre Bourdieu também se utiliza da categoria do hábito em seus escritos de
sociologia. Recorrer a eles contribui para a compreensão das idéias de Dewey.
57
Para o autor francês, o hábito se torna capaz de engendrar práticas imediatamente
ajustadas à ordem social sem que sejam o produto da obediência a uma norma ou
um imperativo obrigando que isto se faça, estabelecendo uma relação dupla,
estruturante e estruturada, com o ambiente; como se houvesse um conluio
implícito entre os agentes que são produtos das condições e os condicionamentos
referentes, onde cada um encontra nas condutas de seus pares a ratificação e a
legitimidade para prosseguir com sua própria conduta.
58
A rigor, o sujeito pode nem mesmo saber que é vítima dessa dinâmica do
hábito, situação bastante comum, o que estimula com que acabe correspondendo
exatamente às exigências de perpetuação da herança social; o agente não precisa
querer agir conscientemente de acordo com o que achar que é apropriado para
fazê-lo. Isso explica a tendência da ordem social a perseverar. Ou seja, o hábito
oferece aos agentes a ilusão de estão fazendo escolhas, tamanha é a proporção de
todo esse processo que se desdobra apenas no inconsciente humano. Cria-se uma
ilusão da novidade e da espontaneidade quando, na verdade, as ações são
resultados do condicionamento pelos hábitos.
59
56
Ibid., p. 55.
57
É interessante acrescentar que em “Multidão: guerra e democracia na era do Império”, Antonio
Negri e Michael Hardt afirmam que o conceito de hábito de Dewey descreve plenamente a reforma
social, mas se limita à modernidade. Diante disso, sugerem que esse conceito seja substituído pelo
de representação utilizado pela feminista Judith Butler. Já esta, em sua obra “Gender Trouble:
feminism and the subversion of identity”, afirma no prefácio da edição comemorativa de 10 anos
de lançamento desse livro que somente após escrevê-lo se deu conta de que sua noção de
representação se aproxima imensamente da idéia de Pierre Bourdieu de habitus. Assim, vemos
uma conexão indireta entre as idéias de Bourdieu e Dewey. (HARDT, Michael e NEGRI, Antonio.
Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 258-9 e
BUTLER, Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity, New York:
Routledge, 1999, p. XV).
58
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 177.
59
Ibid., pp. 186-8.
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35
Os hábitos e impulsos são insistentes demais para se entregarem à
necessidade de indagar ou imaginar, e os impulsos por demais tumultuosos e
caóticos. A ação do hábito reside na inconsciência e isso não nos incomoda em
geral devido à sua suave eficiência, mas sua interrupção invoca uma emoção ou
um pensamento. Ao mesmo tempo em que a vida consiste em interrupções e
restabelecimentos, elas não são contínuas, há uma atividade organizada que
procede rotineiramente; e essa ausência de um equilíbrio perfeito e constante não
significa um problema para Dewey.
Segundo o autor, o momento da falibilidade dos hábitos é importante pois é
quando estamos diante da possibilidade de modificá-los. A chave para
compreender por que Dewey defende essa possibilidade é o seu conceito de
impulso: no início da vida, este é o ponto de partida que objetiva a assimilação de
conhecimentos e de habilidades das pessoas de quem a criança depende e que a
capacitarão a agir independentemente no futuro, são meios de um crescimento
reconstrutivo. Ainda que estes cronologicamente sejam os primeiros atos da
conduta, ainda assim são secundários e dependentes, são instrumentos que dão
novas direções a hábitos velhos e modificam as suas qualidades. Assim,
observamos o seguinte processo: conflitos entre hábitos liberam impulsos que,
manifestados, provocam modificação dos hábitos e costumes. O que a princípio
era o colorido individual é abstraído e se transforma em centro de atividade que
visa reconstruir costumes de acordo com algum desejo que foi rejeitado.
60
Em relação ao intelecto, Dewey defende que os hábitos nele agem
restringindo naturalmente seu alcance e fixando os seus limites. Por outro lado, o
que o diferencia dos impulsos e dos hábitos é que estes últimos, ao contrário dele,
não se ocupam de reflexões ou contemplações, são impassivos. No início, o hábito
é uma especialização intelectual, mas, ao decorrer do tempo, se não questionado,
redunda em ações irrefletidas.
O grande valor da caracterização do mecanismo do hábito, além do
diagnostico social acima descrito, se encontra na possibilidade de sua modificação
como uma promissora ferramenta educacional. Isso se explica pelo seguinte
raciocínio: Dewey assevera que, de modo a se estimular a formação dos caracteres
que aprovamos e desestimular a daqueles que desaprovamos, é necessário o
60
DEWEY, John. Democracia e educação, ob. cit., pp. 79 a 82.
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36
conhecimento das condições que tiveram influência na formação deles. Para que o
caráter de um indivíduo se modifique, ou a sua vontade, é preciso que se alterem
as condições objetivas que ensejaram seus hábitos. Não é possível modificar
diretamente um hábito, mas é viável alterar as condições que o propiciaram.
Portanto, uma das chaves da mudança social em Dewey, como veremos, está
em propiciar que o ambiente escolar apresente condições para que as crianças
construam hábitos de acordo com o ideal de progresso social. A mudança
individual, por sua vez, consiste em tomar consciência dos próprios hábitos e, nos
momentos em que estiver suspensa a ação deles e a deliberação se fizer presente,
observar a forma como os impulsos, instintos e desejos se entrelaçam para que o
intelecto possa tomar uma decisão mais adequada e coerente com cada fim
proposto. Examinaremos esses pontos com mais detalhes no capítulo 3 deste
trabalho.
Ao levarmos em conta as conseqüências das ações, necessariamente
pensamos no futuro e numa concepção de universo não acabado, se fazendo, se
tornando. Nesse cenário, o pensamento tem uma função criativa, construtiva,
prospectiva, pois quando formamos idéias e as colocamos em ação, são
produzidas conseqüências que, de outra forma, não teriam sido geradas.
61
Nas
palavras do autor:
[A reconstrução na filosofia] Irá considerar a inteligência não como a modeladora
original ou causa final das coisas, mas como a reformuladora vigorosa dotada de
propósito daquelas fases da natureza e da vida que obstruem o bem-estar social. Ela
observa o indivíduo não como um ego exageradamente auto-suficiente que por
meio de alguma mágica cria o mundo, mas como o agente que é responsável,
através da iniciativa, inventividade e trabalho inteligentemente direcionado, pela
recriação do mundo, transformando-o em instrumento e propriedade da
inteligência.
62
61
DEWEY, John. Democracy and education. New York: Dover, 2004, pp. 3-13.
62
“It will regard intelligence not as the original shaper and final cause of things, but as the
purposeful energetic re-shaper of those phases of nature and life that obstruct social well-being. It
esteems the individual not as an exaggeratedly self-sufficient Ego which by some magic creates
the world, but as the agent who is responsible through initiative, inventiveness and intelligently
directed labor for re-creating the world, transforming it into an instrument and possession of
intelligence.” (DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., p. 61).
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3
Conseqüências do pragmatismo de Dewey na política:
público, comunidade e liberdade
3.1
implicações do pragmatismo na política
Um pouco de sensatez é possível, mas eu encontrei em
todas as coisas esta benfeitora certeza: preferem bailar
sobre os pés do acaso. Ó, céu puro e excelso! A tua
pureza para mim consiste agora em que não haja
nenhuma aranha, nem teia de aranha eterna da razão:
em seres um salão de baile para os azares divinos, uma
mesa divina para os divinos dados e jogadores de dados
1
As considerações trazidas no capítulo 1 deste trabalho implicam uma
forma peculiar de se tratar da política. A fim de explorá-la, inicialmente
analisaremos as idéias de Dewey em sua obra de filosofia social e política
denominada “The Public and its problems”, onde o autor trata de uma concepção
política de democracia como atividade que busca resolver os problemas coletivos
através da participação e da ação com base na experiência estadunidense.
2
Como indica Barber, Dewey diz que para compreender a política é
necessário que se ela seja desconstruída, ou seja, que fique livre dos elementos
exóticos trazidos pela busca pela certeza.
3
Ao investigar o surgimento da
democracia Dewey se preocupa em criticar quaisquer idéias que apontassem a ela
uma origem transcendental ou a classificassem como uma decorrência de uma
essência da natureza humana. O propósito dessa análise de Dewey é mostrar que é
1
NIETZCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, ob. cit., p. 131.
2
DAMICO, Alfonso, ob. cit., p. 5.
Mais uma vez chamamos a atenção para o contexto dos debates políticos da época em que Dewey
escreveu “The public and its problems”. Neste ponto, retomamos a discussão apresentada na nota
59 do primeiro capítulo deste trabalho, momento em que se introduziu a posição dos democratas
realistas. Na obra em análise, Dewey concorda com estes estudiosos no ponto em que expõem as
deficiências do governo democrático e o despreparo do “homem comum” para se inserir nessa
forma de governo, mas rejeita, por outro lado, que essa crítica seja um xeque-mate à democracia
participativa (WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit.,pp. 298 a
301.).
3
BARBER, Benjamin R. Strong democracy: participatory politics for a new age. Berkeley:
University of California, 2003, p. 50.
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necessário que se preocupe com como a democracia se manterá, uma vez que sua
sobrevivência não é um processo natural ou espontâneo. Como conseqüência
desse raciocínio, sua definição política da democracia parte do desenvolvimento
histórico das sociedades que se preocuparam em estabelecê-la e/ou mantê-la.
Para Dewey, politicamente a democracia consiste num modo de governo
dotado de uma prática específica em selecionar agentes públicos e regular suas
condutas como tais. Essas regras de seleção de agentes públicos representam um
esforço de lutar contra as forças que defendiam a seleção por motivos incidentais
e irrelevantes e estão relacionadas com o voto popular, a regra da maioria e o
debate democrático na tomada de decisões.
4
Dewey defende que a democracia
não foi fruto de um processo premeditado em seus mínimos detalhes, mas sim a
conseqüência do caminho complexo de uma busca por mudanças e rompimento
com tradições que não mais serviam às condições de uma época. Frisa
repetidamente que a democracia é produto do caminhar de condições históricas
específicas, não algo encomendado, previamente pensado e premeditado e em
seguida posto em prática.
Na citada obra, Dewey menciona a controvérsia existente em relação à
idéia do que seria o Estado e mostra que pouco se descobriu sobre o que há entre
o problema factual do comportamento político e a interpretação dos fenômenos
políticos. Ressalta que as teorias políticas não consideram o papel do hábito como
efetivo gerador e modificador do fenômeno político, ignorando assim que alguns
fatos condicionam a atividade humana e vice-versa.
5
Para falar sobre a concepção política de democracia Dewey explora a idéia
de Estado. Segundo o autor, se nos indagamos acerca de uma definição do termo
Estado, nos defrontamos com variadas respostas:
No momento em que pronunciamos as palavras “o Estado” muitos fantasmas
intelectuais se levantam para obscurecer nossa visão. Sem a nossa intenção e sem
que notemos, a noção de “Estado” nos conduz imperceptivelmente à
consideração da relação lógica de várias idéias umas com as outras, e nos afasta
4
Dewey justifica esse ponto com uma nota histórica: no passado, a seleção dos governantes e a
atribuição de poderes a eles foi uma questão acidental, que tinha como impulso alguma
prerrogativa independente de seu papel político. Um exemplo de prerrogativa que propiciou que
muitos governassem é o fato de se ter vencido rias batalhas. O ponto é que ganhar batalhas exige
um dom diferente de governar uma comunidade e a presença do primeiro dom não indica
necessariamente a do seguinte. O mesmo aconteceu com anciãos ou sujeitos que exerciam as
atividades de médicos, padres etc. (DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., p. 77 e
82.)
5
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 5 e 6.
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dos fatos da atividade humana. É melhor, se possível, começar por estes e
perceber se não somos levados então a uma idéia de algo que acabará por
implicar os marcos e sinais que caracterizam o comportamento político.
6
Diante desses fantasmas, reflexões acerca de o que o Estado é o que
deveria ser acabam por se fundir, quando na verdade são preocupações distintas.
Se basearmos nosso estudo político na busca pelas forças que formaram o Estado,
vamos nos envolver em mitologia; além disso, explicar a formação do Estado
dizendo, por exemplo, que o homem é um animal social, não nos leva a nenhuma
conclusão interessante mas a um argumento circular. Apelar para um instinto
natural para dar conta dos arranjos sociais é uma falácia, diz Dewey: não há nada
a dizer sobre os homens terem algum instinto específico, isso não resolve a
questão pois não diz quais são as condições suficientes da vida em comunidade.
7
De forma a nos aproximarmos de uma compreensão satisfatória a respeito
do que é o Estado, precisamos considerar inicialmente as descrições dos fatos, não
as hipóteses que procuram justificá-los. Tendo isso em mente, o ponto de partida
de Dewey é o seguinte: atos humanos provocam conseqüências sobre outras
pessoas; essas conseqüências são percebidas; percebê-las nos conduz ao esforço
subseqüente de controlar as ações de forma que algumas dessas conseqüências
sejam preservadas e incentivadas e outras impedidas. Dessa idéias decorre que
cada ato humano pode oferecer conseqüências de 2 tipos: 1) aquelas que afetam as
pessoas diretamente envolvidas na transação; 2) e aquelas que afetam outras além
das afetadas imediatamente. Vemos o público quando no segundo caso estamos
diante do esforço de regular as conseqüências indiretas.
8
Como nos explica Festenstein, para Dewey o público é constituído quando
uma associação percebe um interesse comum na regulação de algumas dessas
conseqüências indiretas, ou seja, é criado a partir de um julgamento
6
“The moment we utter the words “The State”, a score of intellectual ghosts rise do obscure our
vision. Without our intention and without our notice, the notion of “The State” draws us
imperceptibly into a consideration of the logical relationship of various ideas to one another, and
away from facts of human activity. It is better, if possible, to start from the latter and see if we are
not led thereby into an idea of something which will turn out to implicate the marks and signs
which characterize political behaviour.” (DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., p.
9).
7
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 10 e 11.
8
O autor se preocupa em identificar o que seria o que chama de “público” pois essa idéia será uma
condição para que se alcance a forma de vida democrática, como veremos adiante (DEWEY, John.
The public and its problems, ob. cit., p. 12).
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compartilhado. O Estado, por sua vez, se torna a organização que irá realizar as
funções de regular tais conseqüências.
9
Segundo Dewey, eis a origem da distinção entre público e privado, que
não está relacionada com o individual e o social, já que muitos atos privados são
sociais na medida em que suas conseqüências contribuam para o bem estar da
comunidade; e, em sentido amplo, qualquer transação entre duas ou mais pessoas
é social. Descobertas científicas foram feitas e obras de arte produzidas por causa
do deleite pessoal de algumas pessoas, o que é um exemplo de que atos privados
podem ser de valor social por conseqüências indiretas e intenções indiretas. Pelo
mesmo raciocínio o público não pode ser identificado com o útil socialmente. Um
filantropo que doa dinheiro para um hospital faz um ato social, mas ao mesmo
tempo privado. Podemos dizer que nem todo ato público é social pois há atos
públicos danosos e não preocupados com suas repercussões. O comportamento
não é necessariamente social somente porque ocorreu em nome do público e/ou
por agentes públicos.
10
O ponto positivo dessa distinção é que, ao lidar com ela,
Dewey não propõe justificativas essencialistas, mas recorre às conseqüências das
ações humanas.
11
Como já dito, Dewey pensa que há uma lacuna entre as teorias do Estado e
as descrições dos fatos políticos. Isso se dá pelo fato de os seres humanos terem
procurado a chave da natureza do Estado no campo da autoridade, de pessoas que
originaram as ações voluntárias; mas a forma adequada de se pensar, segundo
Dewey, é que, ao invés de opormos os atos deliberados dos indivíduos à ação pelo
público, devemos opor estes aos atos impulsivos e não refletidos dos indivíduos.
Dewey segue afirmando que todas as escolhas e planos no fim são o trabalho de
seres humanos singularmente, o Estado sempre age através de pessoas concretas.
Podemos dizer que os indivíduos perdem suas identidades quando numa
convenção política, por exemplo, mas isso não significa que haja uma agência
coletiva misteriosa capaz de ter opiniões. O conflito entre as teorias do Estado
surge pois a análise foi colocada de forma equivocada: “consideração da causa de
9
FESTENSTEIN, Matthew. Pragmatism and political theory: from Dewey to Rorty. Chicago:
University of Chicago, 1997, p. 85.
10
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 12 a 20.
11
HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática
hoje. In: SOUZA, Jessé. (org.). Democracia: novos desafios para a teoria democrática
contemporânea. Brasília: UnB, 2001, p. 82.
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atuação ao invés das conseqüências como o coração do problema”
12
. É preciso
abandonar a busca por causas e voltá-la para o que está acontecendo e para como
está acontecendo. A filosofia política precisa aprender esta lição, diz Dewey.
13
Portanto, em sentido oposto aos teóricos que insistem em determinar a
natureza do Estado em termos de fatores causais diretos, Dewey diz que foi a
percepção de que conseqüências de alguns atos poderiam ser interessantes ou não
interessantes que gerou uma disposição comum para a criação e manutenção de
certas medidas e regras e para a seleção de pessoas para guardiões, intérpretes e
executores.
Não há mistério sobre o fato da associação, de uma ação interconectada que afeta
a atividade dos elementos singulares. Não há senso em perguntar por que os
indivíduos acabam por se associar. Eles existem e operam por associação. Se há
algum mistério na questão, é o mistério de o universo ser o tipo de universo que
é. (...) Nós deveríamos estar ainda onde começamos, com o fato da conexão
como um fato a ser aceito.
14
Com isso o autor quer dizer que a pergunta inteligente a ser feita sobre a
associação humana não é por quê, mas sim como, as pessoas se conectam das
formas específicas que dão às comunidades humanas traços tão diferentes dos
grupos de insetos, rebanhos de ovelhas ou constelações de estrelas. Como,
enquanto os indivíduos pensam, desejam e decidem por eles mesmos, aquilo pelo
qual lutam, o conteúdo de suas crenças e intenções, é provido pela associação?
15
Tendo em vista esses questionamentos à tradição, o pragmatista diz que o
Estado é algo a ser sempre investigado, buscado. Quando estabilizado, precisa ser
refeito. Descobrir o Estado não é questão apenas de pesquisar as instituições que
existem, é um complexo problema prático de seres humanos vivendo em
associação. Nesse quadro, não há uma forma definitiva de se enunciar o que é o
Estado; o máximo que podemos dizer é que “o Estado é a organização do público
12
“ (…) the taking of causal agency instead of consequences as the heart of the problem.”
(DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., p. 20).
13
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 20 a 36.
14
“There is no mystery about the fact of association, of an interconnected action which affects the
activity of singular elements. There is no sense in asking how individuals come to be associated.
They exist and operate in association. If there is any mystery about the matter, it is the mystery
that the universe is the kind of universe it is. (…) We should still be just where we started, with the
fact of connection as a fact to be accepted.” (DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit.,
p. 23.)
15
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., p. 25.
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efetuada por meio dos agentes públicos para a proteção dos interesses
compartilhados pelos seus membros”.
16
É importante ressaltar que as diferentes condições de cada Estado tornam
as conseqüências da associação e o conhecimento acerca delas variado. Isso pois a
formação dos Estados é um processo experimental: considerando que as
condições estão sempre mudando, o experimento precisa ser testado novamente e
o Estado redescoberto frequentemente. Conclui Dewey que não é tarefa da
filosofia política determinar como o Estado deve ser, mas ajudar na criação de
métodos que tornem essa experimentação menos cega de modo que os seres
humanos aprendam com seus erros e lucrem com seus sucessos.
17
Dito isso, estamos prontos para apresentar a hipótese de trabalho de
Dewey sobre o Estado: as pessoas indireta e seriamente afetadas por ações
humanas formam um grupo que requer reconhecimento e nome: O Público. A
associação então estabelece para a si uma organização política e o que é o governo
nasce; o público é um estado político.
18
Há traços exibidos pelos Estados quando atuam nas funções públicas que
servem como marcos para qualquer coisa que se chame de Estado. Dewey
identifica quatro marcos primários nas organizações políticas, ou seja,
características que nos permitem identificar a existência de um Estado.
19
A primeira delas é a diversidade temporal e local. Cada ocupação da terra
tem um traço diferente que determina as conseqüências da atividade associada e,
como decorrência disso, públicos com diferentes interesses e tipos diferentes de
comportamentos políticos.
Apesar de toda essa diversidade, a crença no Estado como uma entidade
arquetípica ainda persiste na filosofia e ciência política.
20
Dewey afirma que a
crença em que haja um modelo em relação ao qual se pode classificar um Estado
16
“the state is the organization of the public effected through officials for the protection of the
interests shared by its members.” (DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., p. 33.)
17
Ibid., p. 32-6.
18
Ibid., p. 35.
19
Ibid., p. 45.
20
Dewey abre mão de fundacionismos a respeito da definição de Estado; no entanto, ao fazê-lo,
não nos deixa sem saída, pois ele rejeita a idéia de que tal estrutura existe mas não podemos saber
nada a respeito dela. Em oposição a isso, afirma que há várias formas de compreensão do Estado
que há conflitos a respeito dos valores, crenças e práticas que orbitam em torno da definição de
Estado. Para Festenstein, abrir mão do fundacionismo na política e, ao mesmo tempo, resistir ao
ceticismo nessa seara é uma das preciosidades do pragmatismo de Dewey. (FESTENSTEIN,
Matthew e THOMPSON, Simon. Rorty: critical dialogues, ob. cit., p. 5.)
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como bom ou ruim afetou a prática e a teoria políticas, pois canalizou os esforços
de compreensão teórica para a elaboração e imposição de constituições alheias às
peculiaridades de determinados povos.
Quando a inutilidade dessa idéia foi reconhecida, ela foi substituída pela
noção mascarada de que os Estados “crescem”, onde crescimento significaria
evolução por estágios regulares até um fim pré-determinado, um modelo ideal de
Estado. Essas teorias desestimularam o único recurso que deveria de fato orientar
transformações nas formas políticas: o uso da inteligência social
21
no julgamento
das conseqüências. Com isso, Dewey quer ressaltar a importância da prática e a
aplicação da inteligência crítica aos problemas concretos, num ataque às noções
gerais de modelos de Estados.
22
A tentativa de encontrar estruturas comuns a
diferentes tipos de Estados, como ocidentais e orientais, foi uma grande perda de
energia, nos diz o autor.
23
Segundo Dewey, é preciso admitir a necessidade da
centralidade da resolução prática de problemas, pois sempre há um fator prático,
um fazer e refazer que redefine o material intelectual, que, por sua vez, é quem
dita qual é a questão a ser investigada.
24
A hipótese a que subscrevemos assevera o fato da existência de uma
pluralidade de agrupamentos sociais. Dessa forma:
Assim como o público e os Estados variam de acordo com as condições de tempo
e lugar, também variam as funções concretas que devem ser conduzidas pelos
Estados. Não há uma proposição universal antecedente que deva ser sacrificada
porque as funções de um Estado devam ser limitadas ou expandidas. A
abrangência delas é algo a ser criticamente e experimentalmente determinado.”
25
O segundo marco é: a esfera quantitativa dos resultados do comportamento
conjunto gera um público que necessita de organização. Ninguém consegue
considerar todas as conseqüências dos atos que pratica e o limite costuma ser as
conseqüências que concernem à própria pessoa. Quando as conseqüências
concernem a um grande número de pessoas, a pessoa que praticou o ato não
consegue predizer a forma como as demais serão afetadas. É importante ressaltar
21
No próximo capítulo deste trabalho examinaremos com mais detalhamento o significado que
Dewey atribui à noção de “inteligência social”.
22
FESTENSTEIN, Matthew e THOMPSON, Simon. Rorty: critical dialogues, ob. cit., p. 24.
23
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 42-5.
24
FESTENSTEIN, Matthew e THOMPSON, Simon. Rorty: critical dialogues, ob. cit., p. 5.
25
“Just as publics and states vary with conditions of time and place, so do the concrete functions
which should be carried on by states. There is no antecedent universal proposition which can be
laid down because of which the functions of a state should be limited or should be expanded. Their
scope is something to be critically and experimentally determined.” (DEWEY, John. The public
and its problems, ob. cit., p. 74).
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que a questão não se limita ao fato de uma pessoa não ser capaz de prever as
conseqüências desses atos, mas, além disso, defende que é preferível que o
próprio público estabeleça diques e canais para que essas ações tenham
conseqüências moderadamente previsíveis inseridas em limites prescritos.
26
O terceiro marco do público organizado como Estado é o fato deste se
preocupar com formas de comportamento antigas, enraizadas e estabelecidas.
Quanto mais nova uma idéia, mais se desvia do que já está estabelecido na prática,
por isso há resistência. As novas idéias com freqüência são vistas como óbices ao
adequado comportamento social. Quando um comportamento se torna velho e
familiar, ele se afina com o escopo do Estado. Assim, um indivíduo pode fazer
uma trilha na floresta, mas auto-estradas são preocupações do Estado
normalmente.
27
O quarto marco do Estado é o papel do Estado em fortalecer parcelas mais
fracas em transações em que há desigualdade de status entre as partes e cujas
conseqüências parecem sérias ou irretroativas. Ou seja, fala-se da busca por
melhores formas de se assegurar e manter a igualdade.
28
Em resumo do que até agora foi dito:
As permanentes, abrangentes e sérias conseqüências da atividade conjunta trazem
para a existência o público. Em si, é desorganizado e disforme. Por meio de
agentes públicos e seus poderes especiais se torna um Estado. Um público
articulado e operando por meio de agentes representativos é o Estado; não há
Estado sem governo, mas ele também não existe sem público. Os agentes
públicos ainda são seres singulares, mas eles exercitam poderes novos e
especiais. Estes podem ser dirigidos para assuntos pessoais. Então o governo é
corrupto e arbitrário.
29
Como o governo somente age através de agentes públicos, não deveria
haver nada de perplexo ou desestimulante à vida em comunidade nos erros do
comportamento político. Na verdade, esse tipo de fato deveria nos proteger da
ilusão de esperar uma mudança extraordinária a partir de uma mera transformação
nas agências e métodos políticos. As mudanças podem ocorrer, mas somente a
26
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 47-53.
27
Ibid., pp. 57-9.
28
Ibid., p. 62.
29
“The lasting, extensive and serious consequences of associated activity bring into existence a
public. In itself it is unorganized and formless. By means of officials and their special powers it
becomes a state. A public articulated and operating through representative officers is the state;
there is no state without a government, but also there is none without the public. The officers are
still singular beings, but they exercise new and special powers. These may be turned to their
private account. Then government is corrupt and arbitrary.” (DEWEY, John. The public and its
problems, ob. cit., p. 68).
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partir de novas condições sociais, que, por sua vez, gerariam um novo público. A
concepção do Estado como algo per se propicia ilusões desse tipo pois separa de
tal forma o Estado do governo que este pode ser corrupto enquanto aquele
mantém a sua dignidade e nobreza “inerentes”. Deixando-se de lado essa
concepção fantasiosa, sabe-se que a integridade e utilidade de um Estado somente
podem ser mantidas a partir de uma constante vigilância e crítica.
30
Dewey aprofunda suas reflexões a respeito das implicações de
determinadas visões do que seria o Estado, a sociedade e o indivíduo. Nessa
esteira, aponta um problema à prática de se adotarem respostas gerais para
questões envolvendo o Estado, não obtidas a partir da investigação de um
contexto específico: elas encobrem e dominam as questões particulares. Assim, se
falamos sobre o Estado ou o indivíduo em abstrato ao invés de falarmos de
determinada organização política poderemos estar encobrindo a necessidade de
reformas sociais; já que na teoria o indivíduo e o Estado são reciprocamente
necessários, por que prestar atenção ao fato de que alguns indivíduos estão sendo
oprimidos? Além disso, na realidade, diz a concepção combatida por Dewey,
seria impossível que os interesses do Estado e do indivíduo se confrontassem.
Dessa forma, a área das dificuldades concretas, justamente aquela onde a
experimentação é mais urgentemente necessária, é onde a inteligência social falha
em operar. Da mesma forma, quando se trabalha no plano abstrato da organização
política e se ignora a idéia de interesse, o efeito é fortalecer o autoritarismo e o
obscurantismo político; pois então o que resta é a identificação com alguma coisa
pronta, o que por sua vez é um convite à manipulação de políticos inteligentes que
podem maquiar fatos e ocultar objetivos. É preciso reconhecer que os interesses
são específicos e dinâmicos.
31
Dessa forma, o autor procura elucidar a insuficiência da idéia de que a
sociedade e o Estado são complementares em relação ao indivíduo; segundo o
pragmatista, àqueles que, ao se disporem a explicar o Estado, apresentam esse tipo
de justificativa, é preciso sugerir que se vá além e que se indague: a que
necessidades este arranjo social específico busca atender e que efeito ele apresenta
àqueles nele envolvidos? Ao ignorarem questionamentos como estes e
permanecerem emperradas em generalidades conceituais, muitas discussões sobre
30
Ibid., p. 68-9.
31
DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., pp. 148-51.
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problemas sociais são desperdício de energia.
32
Além disso, quando o indivíduo é
reconhecido como algo completo em si mesmo, as conseqüências disso são a
crença em que somente as reformas morais individuais seriam capazes de
modificação do quadro social, um estímulo à passividade social.
O termo “Estado”, assim como indivíduo, também possui diversas
caracterizações. Para muitos, a soberania, ou a supremacia do Estado na
hierarquia social, é um dogma, portanto inquestionável. Por outro lado, após todo
o trabalho de integração social promovido pelo Estado nos últimos séculos,
deveríamos nos perguntar se hoje ele não seria uma instrumentalidade para
proteger e fortalecer outras e novas formas de associação voluntárias, mais que
um fim em si. Dewey observava em sua realidade estadunidense do início do
século XX a criação de novas formas de associação, num movimento em direção à
multiplicação de tantos tipos e variedades de associações. Nesse quadro, o Estado
se tornaria um ajustador e regulador entre essas associações; a supremacia do
Estado se aproximaria à de um maestro de uma orquestra, que não produz música
por si, mas que harmoniza as atividades daqueles que o fazem para que esse
produzir tenha seu valor intrínseco.
33
Por isso, poderíamos dizer que a sociedade
é o convívio das várias associações em busca da melhor realização de qualquer
forma de experiência, que por sua vez é incrementada e confirmada por ser
compartilhada.
34
A organização nunca é um fim em si, é um meio de promover associações,
multiplicar os pontos de contatos efetivos entre as pessoas e direcionar o
intercurso delas para um maior enriquecimento. A esse processo em que valores,
idéias, emoções e experiências são transmitidos, tanto o indivíduo quanto a
sociedade se subordinam.
35
Tais idéias acerca da constituição do público e do papel do Estado, no
entanto, trazem alguns vícios. Um deles, como nos chama à atenção Festenstein, é
que a distinção entre ações públicas e privadas trazida pelo autor não é tão clara
nem tão útil como se propõe a ser. Não está claro se classificaremos as ações
como públicas em virtude de gerarem conseqüências para outros não relacionados
32
DEWEY, John. Reconstruction in philosophy , ob. cit., pp. 152-4.
33
Ibid., p. 158.
34
Ibid., p. 160.
35
Ibid., p. 161.
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originalmente a elas ou por conta de outro critério que estabeleça quais
conseqüências estão atreladas ao interesse público.
36
Outra crítica a ser feita diz respeito a uma ambigüidade terminológica e se
refere ao termo “interesse público”. No tocante a essa questão, Westbrook diz que,
ao fazer uso dessa noção, Dewey se referia ao interesse de um público em
particular. Portanto, pode-se elencar como deficiente na obra de Dewey o fato de
o autor não haver tocado com a necessária profundidade na questão da formação
desse interesse. Essa questão se torna problemática pois, para julgar o governo, é
preciso que o público saiba não só que é capaz de gerar interesses, mas também
quais são esses interesses; seria necessário que o público se organizasse não só
para servir aos seus interesses, mas para defini-los; no entanto, Dewey não
explora esta segunda questão.
37
3.2
A comunicação e a comunidade
Percebemos a impossibilidade de tratar da idéia de democracia para
Dewey quando dissociada das noções de associação e de comunidade. Para o
autor, a democracia é mais que uma forma de governo, é primariamente uma
forma de vida associativa, de experiência conjunta comunicada.
38
A idéia de
experiência de Dewey, discutida no primeiro capítulo deste trabalho, está
conectada com o assunto de que agora tratamos; isso porque o ponto de partida de
Dewey é o engajamento do ser humano no e com o mundo, ou seja, o fato de as
pessoas viverem imersas num ambiente natural e social dinâmico. Quando o autor
procura se referir a essa realidade, faz uso do termo “experiência”, ressaltando
36
Festenstein diz que Dewey, ao definir o público como uma associação organizada em resposta à
percepção de um conjunto de conseqüências indiretas causadas por alguma transação, estaria
conceituando um Estado composto de um público extremamente fluido, com permanentes
mudanças acerca do que precisaria ser regulado, de forma a se relacionar com os vários interesses
dos diferentes grupos. E aqui a crítica feita por Festenstein e da qual discordo: este autor crê que a
correspondência afirmada pela frase anterior representa um problema à teoria de Dewey ao afirmar
a existência de vários públicos, e não um só; por outro lado, não enxergo contradição alguma entre
as 2 idéias (FESTENSTEIN, Matthew. Pragmatism and political theory: from Dewey to Rorty, ob.
cit., 85-7).
37
WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy , ob. cit., pp. 305-6.
38
DEWEY, John. Democracia e educação, ob. cit., p. 93.
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esse contexto de transações. Se as transações ocorrem de fato, a idéia de
associação passa a importar para a teoria política.
39
Para Dewey a existência de uma associação é uma condição da criação da
comunidade. Ao se fazer valer do termo “associação”, procura ressaltar o fato de
esta ser física e orgânica, ou seja, a atividade associada não demanda explicação,
ela existe e tudo que podemos fazer é constatar isso. Em oposição, a vida em
comunidade é moral, sustentada emocional, intelectual e conscientemente.
40
Enquanto interações e transações ocorrem de fato, a participação nas
atividades e o compartilhar os resultados são ingredientes extras que demandam a
comunicação como requisito. Somente quando há sinais ou símbolos as atividades
e seus resultados podem ser vistos de fora, levadas em consideração, valoradas e
reguladas. Esse processo permite que os resultados da experiência em conjunto
sejam avaliados e transmitidos. Eventos não podem ser transferidos de uma
pessoa para outra, mas significados podem por meio dos sinais. Dessa forma,
quereres e impulsos são atrelados a significados comuns e são então
transformados em desejos e propósitos que geram novos laços, convertendo a
atividade conjunta numa comunidade de interesses e esforços. Nas palavras de
Dewey:
Aprender a ser humano é desenvolver por meio do dar e receber da comunicação
um senso efetivo de ser um membro individualmente distinto de uma
comunidade; alguém que entende e aprecia suas crenças, desejos e métodos e
alguém que, em um momento posterior, contribui para uma conversão dos
poderes orgânicos em recursos à disposição das pessoas e valores. Mas essa
conversão nunca está acabada.
41
Portanto, o estabelecimento da linguagem torna possível não somente a
criação de símbolos de forma a permitir a coordenação das atividades em grupo,
mas também a identificação, formulação e avaliação dos problemas; além da
busca conjunta por planos de ação para solucioná-los.
42
Retomando a idéia de hábito trabalhada no primeiro capítulo deste
trabalho, compreendemos o por quê de Dewey atribuir tamanho valor ao tema da
39
CASPARY, William R. Dewey on democracy. New York: Cornell University, 2000, pp. 17-20.
40
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., p. 151.
41
“To learn to be human is to develop through the give-and-take of communication an effective
sense of being an individually distinctive member of a community; one who understands and
appreciates its beliefs, desires and methods, and who contributes to a further conversion of organic
powers into human resources and values. But this translation is never finished.” (DEWEY, John.
The public and its problems, ob. cit., p. 154).
42
CASPARY, William R. Dewey on democracy, ob. cit., p. 22.
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comunidade quando trata de democracia. Para o autor, os quereres e vontades não
só direcionam a vida em comunidade, mas determinam reincidentemente as
formas dessa vida; e esses quereres e vontades, por sua vez, são produto da vida
em comunidade. Nós não precisamos de algo “organicamente” ou “naturalmente”,
mas sim queremos algo; o grau com que algo (educação ou ignorância, uma
estrada de ferro ou uma rodovia, por exemplo) é desejado por uma comunidade
varia de acordo com como a atividade associada apresenta e valora o objeto de
desejo habitualmente. E a atividade associada em relação a objetos de desejo
também produz as instituições e gera costumes, dos quais grande parte não foi
pensada previamente.
43
Dewey atribui dois critérios para valoração de uma comunidade, quais
sejam: 1) o grande número e a pluralidade dos interesses que são compartilhados;
2) a liberdade com que se dão os intercursos com outras comunidades. Ao afirmar
isso, nos mostra Campbell que Dewey está criticando a idéia segundo a qual a
comunidade deve ser caracterizada de forma homogênea e monocromática através
da simplicidade da idéia de identidade; e está se afiliando àqueles que defendem
que o valor do compartilhar que caracteriza uma comunidade está atrelado à
complexidade da pluralidade de perspectivas.
44
Como já mencionado no primeiro capítulo deste trabalho, uma das grandes
influências no pensamento de Dewey foi Charles Darwin. A partir do
evolucionismo, Dewey considerou que, da mesma forma como uma maior
diversidade de situações apresentadas ao ser vivo propicia que ele melhor se
adapte ao ambiente, uma maior diversidade e variedade de experiências sociais
propiciaria que as formas de organização social estivessem diante de situações em
que ajustes indivíduo/sociedade ensejariam a organização da vida em sociedade
de formas inovadoras, criativas e, por isso, eventualmente mais adequadas aos
fins-em-vista do momento. Quanto mais numerosos e variados os pontos de
contato entre as pessoas, maior será a diversidade de estímulos aos quais um
indivíduo precisa responder e, conseqüentemente, também em maior número e
variedade as respostas que resultarão na conduta do agente. Acesso a novas idéias
amplia a reflexão sobre velhos hábitos e, aliado ao hábito de refletir, provoca a
43
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 104-7.
44
CAMPBELL, James. Dewey’s conception of community. In: HICKMAN, Larry A. (ed.).
Reading Dewey: interpretations for a postmodern generation. Bloomington: Indiana University,
1998 pp. 31-3.
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transformação de velhos hábitos. A diversidade de estímulos sugere novas linhas
de pensamento, novas soluções para velhos problemas, novos problemas, novos
propósitos e fins práticos.
45
Isso significa que a diversidade social é um elemento
valorizado por Dewey. Neste ponto, enriquecer a experiência significa torná-la
mais variada e diversificada.
Feitas essas considerações iniciais a respeito da idéia de comunidade para
Dewey, podemos afirmar que o autor procura ressaltar duas idéias quando a
convoca, apresentadas a seguir.
Em primeiro lugar, falamos da idéia de que a sociedade não só existe pela
transmissão ou pela comunicação, mas sim na transmissão e na comunicação.
Não só a vida social é idêntica à comunicação, mas toda comunicação é educativa;
a experiência precisa ser formulada para ser comunicada.
46
Portanto, os hábitos
que direcionam as nossas vidas são criados e propagados através da vida em
conjunto na sociedade e tomar consciência disso é o primeiro passo para que se
possam pensar novas formas de organização social que atendam aos interesses do
público. Essa é a primeira conclusão a qual cremos que o autor procura nos
apontar quando fala sobre comunidade e comunicação.
Em segundo lugar, Como nos explica Campbell, a participação na
comunidade tem sua importância abrigada na possibilidade de propiciar uma
experiência mais diversa e enriquecedora para todos os membros da comunidade.
47
E isso somente pode ocorrer quando a livre comunicação entre as pessoas é uma
realidade incentivada. Este ponto exploraremos com mais atenção no próximo
item deste capítulo.
Conforme Dewey, as pessoas sempre se relacionaram e sempre se
associaram, mas as associações mais antigas eram mais do tipo ”cara a cara”: as
mais importantes, que formavam disposições intelectuais e emocionais, eram
locais e contíguas e, conseqüentemente, visíveis, o que caracterizava uma grande
comunidade. O Estado e até mesmo a Igreja, por exemplo, quando interferiam nas
vidas dos indivíduos, se caracterizavam como órgãos remotos, estranhos a suas
vidas diárias. No entanto, a nova tecnologia aplicada na produção e no comércio
resultou numa revolução social, numa nova era de relações humanas, já que as
45
DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., pp. 93-4.
46
DEWEY, John. Democracy and education, ob. cit., p. 4.
47
CAMPBELL, James. Dewey’s conception of community. In: HICKMAN, Larry A. (ed.).
Reading Dewey: interpretations for a postmodern generation, ob. cit., pp. 23-4.
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comunidades locais não intencionalmente tiveram suas práticas condicionadas por
organizações remotas e invisíveis. Para Dewey, essa transformação é capaz de
caracterizar uma sociedade, mas não uma comunidade. A ausência de uma
comunidade é explicada pela invasão de novas formas de comportamento humano
associado, relativamente impessoais e mecânicas, fator marcante da vida moderna.
48
Na esteira dos comentários sobre o hábito, pode-se dizer que o
comportamento em relação a objetos que preenchem desejos não somente produz
esses objetos, mas cria costumes e instituições. Nesse processo que se dá
continuamente, as conseqüências não pensadas e indiretas são normalmente mais
importantes que as diretas. O “regime novo”, para Dewey, produziu uma
quantidade maior de vínculos invisíveis com as grandes preocupações impessoais
que afetam agora o pensar, o desejar e o fazer de todos, na nova era dos
relacionamentos.
49
Vejamos a seguir como Dewey observa o nascimento e a
permanência desse “regime novo”, discussão que traz à tona suas idéias sobre o
movimento que denomina individualismo.
3.3
Liberdade e individualismo
“Ai, se não compreenderdes estas palavras minhas:
‘Fazei sempre o que quiserdes; mas sede desde logo
daqueles que podem querer!”
50
48
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 96-8.
49
Robert Westbrook, na premiada biografia que escreve sobre Dewey (John Dewey and American
Democracy), faz o quase óbvio comentário a respeito da semelhança de muitas idéias do autor com
os escritos de Karl Marx. Escreve Westbrook que, à época em que Dewey elaborou suas obras, o
pensamento de Marx não era muito disseminado nem mesmo valorizado nos Estados Unidos,
mesmo entre os críticos sociais. Westbrook afirma que Dewey de fato tomou contato com a
literatura marxista, mas não se aprofundou nela. Ainda assim, o autor chega a dialogar diretamente
com Marx em suas obras “Liberalism and Social Action” e “Freedom and Culture”. Além disso,
Westbrook nos diz que, mesmo que Dewey flertasse com idéias socialistas, considerando que
muitos que se diziam socialistas não eram mais democráticos do que aqueles que se rotulavam
como liberais, o pragmatista receava em se definir como socialista. A principal preocupação de
Dewey em relação aos socialistas se revelava na ameaça de se deixarem de lado valores liberais
(no sentido que Dewey atribui ao termo “liberalismo”, tratado neste trabalho), o que representaria
um perigo à democracia política segundo o autor. (WESTBROOK. Robert B. John Dewey and
american democracy, ob. cit., pp. 189, 430 e 465).
50
NIETZCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, ob. cit., p. 135.
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52
Para Dewey, falar sobre democracia não só no plano ideal, mas também no
concreto, significa também tocar nos temas do individualismo e da liberdade. Isso
se dá pois a democracia floresceu num contexto social específico e com a
finalidade de atender a determinadas demandas sociais representadas por esses
ideais. Dessa forma, o estudo da democracia tem como requisito a análise das
condições materiais que impulsionaram e acolheram o ideal democrático e o
liberalismo é uma delas.
Mais uma vez o contextualismo e o antifundacionismo se fazem presentes
nos escritos políticos de Dewey. Partindo dessas idéias, o ideal de liberdade deve
ser estudado sob os olhos do panorama específico que o acolheu. Dewey
denomina tal panorama de individualismo.
Os conceitos políticos, dentre eles “individualismo”, “liberdade” e
“indivíduo”, devem ser vistos, para Dewey, como instrumentos para a observação
e o enfrentamento da experiência. Assim, à medida que a qualidade da experiência
se modifica, seus conteúdos também requerem alteração. Como nos lembra
Festenstein, obras como “The Public and its Problems”, “Individualism, Old and
New” e “Liberalism and Social Action” indicam tal proposta de revisão dos
significados desse tipo de conceito.
51
A principal tese de Dewey nesses escritos, ensina Damico, é a de que
aquilo que se entendia por liberalismo, a forma como o movimento era observado
à época em que o pragmatista produziu suas obras, se baseava num falso
antagonismo entre o indivíduo e a sociedade organizada que precisava ser
superado. Tratando desse dualismo, Dewey sugeria no desenvolvimento de seu
raciocínio que outros dois aspectos do individualismo fossem repensados: sua
concepção de natureza humana e os princípios da econômica política baseados no
“laissez-faire”.
52
O uso das palavras liberal e liberalismo remonta à primeira década do
século XIX, lembra Dewey, e estava relacionado à luta política européia numa era
de intolerância, perseguição e guerras religiosas. Nesse quadro, o individualismo
foi o suporte para uma doutrina segundo a qual o indivíduo se opõe à ação social
organizada e tem primazia sobre o Estado. O contexto em que essa movimentação
51
FESTENSTEIN, Matthew. Pragmatism and political theory: from Dewey to Rorty, ob. cit., p.
65.
52
DAMICO, Alfonso. Individuality and community: the social and political
thought of John Dewey. Tallahassee: University of Florida, 1978.pp. 70-1.
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53
estava inserida era de revolta e medo contra as formas estabelecidas de governo e
o desejo de reduzir este ao mínimo para limitar o mal que poderia causar. Sendo
necessário achar justificação intelectual para o movimento, que se opunha à
autoridade estabelecida, o recurso natural foi apelar para alguma autoridade
sagrada inalienável residente nos indivíduos. Portanto, o individualismo: “Definiu
o indivíduo em termos das liberdades de pensamento e ação já possuídas por ele
de alguma forma misteriosa e pronta onde o único papel do Estado era protegê-
las.”.
53
Como conseqüência, a liberdade, que se relacionava com a liberação em
relação à opressão e à tradição, acabou por se tornar um fim em si.
Uma vez que o Estado estava por demais apegado a associações como as
eclesiásticas e as corporações econômicas, o caminho mais fácil de justificar a
libertação em relação à opressão seria retornar ao indivíduo. Assim nasceu o
individualismo. Essa doutrina contra as associações que limitavam o indivíduo se
converteu intelectualmente na doutrina da independência em relação a toda e
qualquer associação. Da filosofia, a idéia migrou para a psicologia: a noção de que
o indivíduo isoladamente possui quereres e energias a serem aplicadas de acordo
exclusivamente com suas vontades, de forma transparente, desconsiderando-se
quaisquer formas de impulsos mascarados, é tão fictícia na psicologia como é na
política a doutrina do indivíduo que possui direitos políticos antecedentes ou a
priori, ataca Dewey. Em resumo, essa primeira fase do liberalismo
54
perfilhou a
crença nos direitos naturais individuais e na proteção da pessoa contra as possíveis
intrusões da sociedade e do Estado.
55
A segunda fase do liberalismo acabou por herdar da fase anterior a
concepção de um antagonismo natural entre quem dita as regras e aquele que as
obedece, a oposição natural entre a sociedade e o indivíduo (apenas na segunda
metade do século XIX tomou força a idéia de que o governo poderia e deveria ser
um instrumento para assegurar e ampliar as liberdades do indivíduo).
56
Enquanto
53
“It defined the individual in terms of liberties of thought and action already possessed by him in
some mysterious ready-made fashion, and which it was the sole business of the state to safeguard.”
(DEWEY, John. Liberalism and social action. New York: Prometheus Books, 2000, p. 16).
54
Em seus escritos políticos Dewey costuma fazer uma divisão ao tratar do individualismo.
Denomina a trajetória inicial do movimento, que se deu nos séculos XVII e XVIII, de “earlier
individualism” e a trajetória tardia, inscrita no século XIX, de “later individualism”. Neste trabalho
nos referiremos respectivamente a cada um desses dois momentos como primeira e segunda fase
do individualismo (DEWEY, John. Liberalism and social action, ob. cit.).
55
DEWEY, John. The public and its problems, ob. cit., pp. 86-9 e 102.
56
DEWEY, John. Liberalism and social action, ob. cit., p. 17.
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54
no contexto dessa primeira fase do individualismo a preocupação econômica se
restringia a uma concepção estática de manutenção da posse da propriedade, um
século depois na Europa Ocidental o caminhar da indústria e do comércio
propiciou que as atenções se centrassem na dinâmica de produção das riquezas.
Nesse ponto, o obstáculo a ser combatido politicamente não mais estava
representado pela ameaça de uma eventual ação arbitrária do governo, mas pelo
direito e pelas práticas judiciais, que se colocavam no caminho da liberdade de
investimento. Cedendo aos novos interesses, a liberdade adquiriu uma
significação diferente daquela a qual estava originalmente vinculada, atendendo
ao propósito de conectar as leis naturais com as leis do mercado.
57
Apesar das demandas econômicas, o liberalismo se manteve fiel a alguns
valores, segundo Dewey: liberdade, o desenvolvimento de capacidades do
indivíduo por meio da liberdade e o papel central da inteligência na investigação,
discussão e expressão. Ainda assim, os elementos trazidos por essas demandas
econômicas coloriram cada um desses ideais de forma a incapacitá-los no lidar
com as novas necessidades sociais que se apresentavam.
58
Uma das idéias que protagonizaram a inabilidade do liberalismo de
perfilhar as novas necessidades sociais foi o senso histórico. O pragmatista
explica que, o que era uma arma na luta original contra os reacionários (que por
sua vez valorizavam as origens e tradições tornadas intocáveis pela história
pregressa), se tornou uma ameaça para essa mesma luta. Isso se verificou uma vez
que aqueles que se denominavam liberais não enxergaram que suas próprias
interpretações dos termos liberdade, individualidade e inteligência também
pertenciam a contextos históricos específicos. Na metade do século XIX, as
mudanças econômicas e políticas que haviam sido objeto de luta dos liberais
europeus se tornaram uma realidade, transformando estes nos detentores do poder
e das justificativas para a manutenção do status quo.
59
Nas palavras do autor:
Se os liberais da primeira fase tivessem afirmado sua interpretação especial de
liberdade como algo sujeito ao relativismo histórico eles não a teriam paralisado
numa doutrina a ser aplicada a todo tempo e sob todas as circunstâncias sociais.
Especificamente, eles teriam reconhecido que a liberdade efetiva é um fator
dependente das condições sociais existentes à época. Se eles tivessem feito isso,
teriam sabido que, quando as relações econômicas se tornaram forças
57
Ibid., pp. 18-9.
58
Ibid.,p. 40.
59
DEWEY, John. Liberalism and social action, ob. cit., p. 41.
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55
controladoras e dominantes no estabelecimento do padrão das relações humanas,
a necessidade de liberdade para os indivíduos que aqueles proclamaram
necessitaria de controle social das forças econômicas pelo interesse da grande
massa de indivíduos.
60
O autor diz que os liberais não imaginaram que o controle privado das
novas forças de produção operaria de forma bastante semelhante ao controle
político arbitrário que haviam combatido numa etapa anterior; e que o controle
dessas forças econômicas também seria necessário para que qualquer coisa
próxima à liberdade de fato se estabelecesse. Dewey afirma que esse
distanciamento em relação da liberdade se dá pois o resultado do controle por
poucos dos meios de trabalho de muitos são o servilismo e o controle excessivo.
Além disso, a exaltação de características como iniciativa e independência seria
falaciosa pois somente uma parte, e a menos valorosa parte, delas seria de fato
exercida: a econômica. A prática dessas qualidades no que toca aos recursos
culturais da civilização, como ciência e arte, seriam deixadas de lado. O autor
critica a sociedade em que viveu uma vez que a mesma não permite, em geral, que
o indivíduo tenha acesso à riqueza acumulada da humanidade em conhecimento,
idéias e propósitos, ou seja, impede que compartilhe da inteligência social
disponível.
61
Em sua obra “Freedom and Culture” Dewey diz que na Declaração de
independência estadunidense a liberdade era o objetivo das atuações políticas, mas
quando voltamos o nosso olhar para as condições que de fato moldam o mundo
percebemos que as instituições livres apenas supostamente o são e que elas nunca
existiram além da teoria. E se outrora poderíamos pensar que as questões políticas
seriam as únicas relacionadas à liberdade, hoje sabemos que outras, como a
econômica, estão profundamente intrincadas àquela.
62
Discorrendo em termos filosóficos sobre a liberdade, Dewey ressalta que
“o caminho para a liberdade pode ser encontrado no conhecimento de fatos que
60
“If the early liberals had put forth their special interpretation of liberty as something subject to
historic relativity they would not have frozen it into a doctrine to be applied at all times under all
circumstances. Specifically, they would have recognized that effective liberty is a function of the
social conditions existing at any time. If they had done this, they would have known that as
economic relations became dominantly controlling forces in setting the pattern of human relations,
the necessity of liberty for individuals which they proclaimed will require social control of
economic forces in the interest of the great mass of individuals.” Ibid., p. 42).
61
Ibid., pp. 44-6 e 58.
62
DEWEY, John. Liberalism and social action, ob. cit., p. 11.
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56
nos permite empregá-los em conexão com desejos e objetivos” (tradução livre).
63
A despeito do fato de aquilo pelo que os homens já lutaram em nome de liberdade
ser variado e complexo, para o autor os três requisitos a seguir a definem:
1) eficiência na ação, possibilidade de levar adiante planos, ausência de
obstáculos paralisantes ou frustrantes: alguém que ache que tudo que se precisa é
liberdade contra a opressão é alguém que carrega uma herança da doutrina
metafísica do livre arbítrio e um otimismo na confiança na harmonia natural, pois
a liberdade, para ser um fato, necessita de condições que permitam sua
manifestação concreta. Assim, observamos que a idéia de liberdade de Dewey está
diretamente ligada ao ideal da igualdade na seguinte fórmula: aumentar o alcance
da liberdade requer a gradual equalização das condições sociais.
64
Portanto, falar
sobre liberdade indiscutivelmente envolve a consideração acerca da distribuição
de poder dentro da sociedade.
65
A liberdade não é só uma idéia, um princípio
abstrato, mas se trata do poder efetivo de fazer certas coisas. Por conseguinte, está
intrinsecamente relacionada com a distribuição de poder vigente em determinado
momento histórico, já que a liberdade de um indivíduo somente existe quando em
relação com os poderes efetivos de outros indivíduos, grupos ou classes.
66
2) Poder de desejar e escolher influenciar situações: para que haja
liberdade, o desejo deve se tornar uma força capaz de se manifestar não apenas na
vontade, mas no mundo concreto. Neste item o autor ressalta que a imaginação de
alternativas objetivas para o futuro e a capacidade de deliberar para escolher entre
uma delas ao pesar suas conseqüências para uma existência futura são aspectos da
liberdade.
67
O elemento da escolha é marcado pela reflexão; não basta que o
indivíduo comunique uma escolha sua para que se diga que ele é livre; é preciso
que essa escolha tenha sido construída de forma inteligente, ou seja, a partir da
consideração, num plano imaginativo, dos fatores que a proporcionaram e das
conseqüências que dela decorreriam. Dewey critica as concepções de liberdade
63
“ (…) the road to freedom may be found in that knowledge of facts which enables us to employ
them in connection with desires and aims.” (DEWEY, John. Human nature and conduct, ob. cit.,
p. 209).
64
KLOPPENBERG, James T. Uncertain victory: social democracy and progressivism in
european and american thought, 1870-1920. New York: Oxford University, 1986, p. 397.
65
DEWEY, John. Human nature and conduct, ob. cit., pp. 209-10.
66
É importante acrescentar que, para Dewey, não há nenhuma liberdade absoluta, ou seja, as
liberdades existentes em determinada época são sempre conseqüências do sistema de restrições e
controles existentes nessa mesma época. Assim, a liberdade é sempre uma questão social, não
apenas individual. (DEWEY, John. El hombre y sus problemas, ob. cit., pp. 132-3).
67
DEWEY, John. Human nature and conduct, ob. cit., pp. 209 e 214-5.
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57
que igualam escolha (2) à ação (1), já que nem sempre aqueles que realizam
escolhas possuem de fato as condições materiais para implementá-las no mundo
concreto.
68
3) Capacidade de variar os planos, mudar o curso das ações,
experienciar novidades: o que se considera bom varia de acordo com o contexto
no qual o indivíduo está inserido, portanto um mundo em que há espaço para a
modificação da definição da forma de como moldar o futuro é um mundo em que
a vontade é livre.
69
Dewey diz que os ideais do individualismo e liberdade possuem um valor
cuja importância permanece e é tarefa do liberalismo apresentá-los de formas,
intelectuais e práticas, relevantes às necessidades e forças do momento. O valor
que permanece em relação à liberdade para o pragmatista pode ser percebido a
partir de uma análise histórica das situações em que ele foi invocado e nas quais
se falou em seu nome. Delas se depreende que a concepção de liberdade se
relaciona com forças que “num dado momento e lugar são crescentemente
percebidas como opressivas”
70
; se relaciona com alguma classe ou grupo que
sofre alguma forma específica de restrição exercitada pela distribuição de poderes
existentes na sociedade. Num sentido concreto, a liberdade significa emancipação
para a prática de algo considerado parte normal da vida humana mas cuja
experiência no momento encontra restrições. De acordo com Dewey, a liberdade
já significou: liberação da escravidão; da servidão; do domínio dinástico
despótico, nos séculos XVII e XVIII; dos costumes legais que impediam que os
industriais gerassem novas formas de produção, no século XIX. O autor escreveu
que, à sua época, a liberdade significava liberação da insegurança material e do
que impedia e reprimia a participação das multidões nos vastos recursos culturais
disponíveis.
71
Do que foi dito no parágrafo acima decorre a tarefa social do liberalismo: a
mediação dos momentos de transição social, integrar o velho e o novo de forma
que os antigos valores se tornem os instrumentos dos novos desejos e objetivos.
Diante da luta entre um sistema de controle das forças sociais, que produz uma
68
DEWEY, John. The Later Works 1925-1953, vol. 7, Ethics 1932, p. 122 (Carbondale: Southern
Illinois University Press, 1985).
69
DEWEY, John. Human nature and conduct, ob. cit., p. 209-12.
70
“ (...) at a given time and place are increasingly felt to be oppressive.” (DEWEY, John.
Liberalism and social action, ob. cit., p. 54).
70
71
DEWEY, John. Liberalism and social action, ob. cit., p. 54.
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58
forma de distribuição das liberdades, e um outro, que geraria, por sua vez, uma
maneira diferente de distribuição das liberdades, surge a necessidade de
ajustamento.
72
O confronto do incômodo novo contra o que é velho e estável
justifica a existência do liberalismo.
73
Dewey afirma, ainda, que certos grupos generalizaram suas lutas contra
certas restrições e as denominaram confrontos em favor da liberdade. Dessa
forma, industriais lutaram contra interferências na economia em nome da
liberdade; os estadunidenses pioneiros tinham lutas específicas contra a opressão
dos colonizadores, mas atrelaram essa luta à liberdade. No entanto, diz Dewey, a
sociedade se complexificou; se para os founding fathers qualquer interferência
política na indústria e no comércio iria de encontro à idéia de liberdade, a única
forma de restaurar a democracia destruída pelo efeito do desenvolvimento
econômico nos tempos de Dewey seria a própria interferência do Estado; não mais
seria possível pensar que a simples manutenção de alguns direitos como livre
expressão, imprensa livre, livre associação e livre escolha de credo iriam
assegurar a manutenção de instituições livres. As relações cara-a-cara nos
pequenos vilarejos foram substituídas por relações impessoais, acontecendo numa
vasta escala cujas origens, causas e efeitos são imperceptíveis à primeira vista.
74
Em resumo, os pontos positivos a serem ressaltados na teoria da liberdade
de Dewey são: uma liberdade definida como ausência de restrições apresenta uma
falsa oposição entre a liberdade e a lei, a liberdade e o governo; e a liberdade
requer a vida em comunidade, a interação com os demais. Por outro lado, os
pontos negativos dizem respeito à lacuna de Dewey em relação ao jogo de poder
social, o que acaba por dar margem ao problema comum das concepções de
liberdade positiva: a inversão desta que acaba por se tornar o oposto da liberdade.
Assim, crer que os conflitos sociais serão resolvidos pela resolução inteligente de
problemas é subestimar a incidência e a força desses conflitos e, portanto,
72
DEWEY, John. El hombre y sus problemas, ob. cit., p. 134.
73
DEWEY, John. Liberalism and social action, ob. cit., pp. 55-6.
74
DEWEY, John. Freedom and culture. New York: Prometheus Books, 1989, pp. 45-61.
Vale citar nesta nota a crítica de Festenstein a respeito da liberdade em Dewey: “As críticas de
Dewey ao liberalismo clássico e ao liberalismo enrugado tendem mais a uma polêmica emotiva
que a um exame detalhado e sistemático de autores particulares; ainda assim, suas críticas não são
cruas ou arbitrárias”. (“Dewey’s criticisms of classical liberalism and of ‘rugged’ individualism
tend towards impassioned polemic rather than systematic and detailed examination of particular
authors, yet his criticisms are not crude or arbitrary.” FESTENSTEIN, Matthew. Pragmatism and
political theory: from Dewey to Rorty, ob. cit., p. 65).
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59
desvalorizar a possibilidade de que as forças que integram esse jogo de poder
precisem ser restringidas com maior vigor. Esta fraqueza no pensamento do autor
será examinada com mais atenção no capítulo 4 deste trabalho.
75
De tudo que foi apresentado neste tópico, logo se depreende a necessária
existência de um contexto apropriado para a realização do ideal da liberdade, de
forma que ele não seja considerado uma utopia. Não estamos falando apenas das
condições materiais que propiciem que os indivíduos concretizem suas intenções.
Além disso, é indispensável lembrar a dupla dinâmica em que o indivíduo se
constitui por meio da participação na sociedade, através da qual cada indivíduo
oferece sua contribuição única à comunidade, enquanto esta oferece as condições
para que o sujeito experiencie sua individualidade:
Individualidade e comunidade são duas faces do mesmo fenômeno. Uma vez que
as pessoas vivem em associação, as oportunidades do indivíduo para ação,
iniciativa e escolha se tornam um fator dependente de sua participação numa
comunidade que utiliza seus recursos coletivos para promover o bem de cada
membro (tradução livre).
76
Tais processos exigem a salvaguarda e o estímulo das instituições
democráticas para se constituírem e desenrolarem. Para Dewey, a participação no
processo de decisões da comunidade é um aspecto da individualidade. Ademais,
justamente porque haverá conflitos no caminhar desses processos decisórios,
especialmente aqueles que definem as regras para que os indivíduos vivam suas
individualidades em comunidade, torna-se necessária a forma democrática de
governo.
77
Analisaremos no próximo capítulo deste trabalho a forma como Dewey
defende o ideal democrático com o intuito de enfrentar as dificuldades trazidas
pelo individualismo enrugado.
75
DAMICO, Alfonso, ob. cit., pp. 95-9.
76
“Individuality and community are two sides of a single phenomenon. Since men live in
association, the individual’s opportunities for action, initiative, and choice become a function of
his participation in a community which uses its collective resources to promote the good of each
member.” (Ibid., p. 73).
77
FESTENSTEIN, Matthew. Pragmatism and political theory: from Dewey to Rorty, ob. cit., pp.
69-70 e 78-9.
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4
A democracia como forma de vida
Neste capítulo, examinaremos de forma mais específica a teoria e a filosofia
políticas de John Dewey ressaltando alguns de seus elementos que de forma mais
direta nos conduzem à sua idéia de democracia.
4.1
Educação
Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser
condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que
posso ir mais além dele.
1
Uma das obras mais conhecidas de Dewey é “Democracia e Educação”. O
livro à primeira vista é dedicado à pedagogia, mas aos olhares mais atentos se
revela um primoroso trabalho sobre a democracia.
2
Seria falacioso afirmar que a
intensa relação entre democracia e educação, como observada pelo autor, está
presente somente nesse livro. Em todo o seu pensamento encontramos tal
1
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 16ª ed., p. 59.
O pensamento de Dewey em relação à educação no Brasil foi recepcionado a princípio por Anísio
Teixeira, aluno do pragmatista que chegou a traduzir livros seus para o português. As idéias
trabalhadas neste capítulo a respeito da pedagogia deweyana encontram reflexos em obras de
Anísio Teixeira como “Educação é um direito” (Rio de Janeiro, UFRJ, 1996). O já citado
“Pedagogia da Autonomia”, de Paulo Freire, é outra obra em que facilmente se nota a influência
do pragmatista. Contudo, o que mais merece destaque nas obras desses dois autores brasileiros é a
forma como foram capazes de, ao mesmo tempo em que assimilaram os conteúdos pedagógicos do
pragmatista estadunidense, escreverem suas obras levando em conta de forma brilhante a realidade
social brasileira. O resultado disso é que, ao contrário do que encontramos na maioria dos casos de
produção de conhecimento brasileiro, idéias pátrias a respeito da educação, pautadas na realidade
social de um país de periferia, têm sido exportadas, de forma a basilar estudos em países centrais.
2
Até mesmo os críticos da obra de Dewey reconhecem a preciosidade de “Democracia e
Educação”: “Além disso, todos esses conceitos estão costurados num sistema filosófico que parece
coerente e plausível, tanto que se torna até difícil identificar um ponto estratégico de crítica.”
(“Furthermore, all of these concepts are woven together in a philosophical system that appears at
once coherent and plausible, so much so that it may seem to identify a strategic point of
criticism.”) (EDMONDSON III, Henry T. John Dewey and the decline of american education:
how the patron saint of schools has corrupted teaching and learning. Delaware: ISI, 2006, p. 12).
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61
conexão, de forma que, a fim de não corrompermos o retrato de suas idéias, se
torna inafastável escrevermos, ainda que algumas linhas, sobre educação, neste
trabalho sobre democracia em Dewey. Ressalte-se que a discussão sobre educação
travada neste trabalho possui o fito específico de apontar características da
democracia no pensamento de Dewey.
Dewey diz que a democracia constitui um princípio educativo. Para
muitos, essa frase significa que um governo que se funda no sufrágio popular
somente pode ser eficiente se os que o elegem e obedecem são educados para isso,
ou seja, se têm acesso ao instrumental de informações que adequadamente lhes
permitirá a atuação como cidadãos democráticos.
3
No entanto, para Dewey “uma democracia é muito mais que uma forma de
governo; é, primeiramente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta
e mutuamente comunicada.”
4
O autor ressalta que se refere apenas em menor
grau à participação dos cidadãos nas eleições e muito mais à idéia de que a
democracia faz recair em nós a responsabilidade de considerar o que desejamos
como indivíduos e quais são nossas necessidades e preocupações. Da mesma
forma que a democracia exige que, no jogo político, cada indivíduo forme suas
convicções, as expresse e tenha a oportunidade de fazer com que as mesmas
influam nos rumos do governo, cada pessoa somente é educada no sentido de
Dewey quando, além do contato com o livro-texto e com a fala do professor, tem
a oportunidade de contribuir para o processo educativo com sua própria
experiência pessoal. Assim como a educação está em relação íntima com a
democracia, esta não consegue se desenvolver sem aquela; uma vez que a escola é
o agente especial de distribuição dos valores e finalidades de um grupo social, se
não estiver aliada à forma democrática, representará uma ameaça a ela.
5
Vejamos
de que forma o autor desenvolve tais idéias.
Dewey inicia “Democracia e Educação” escrevendo sobre a continuidade
da vida. Afirma que a vida não depende da permanência eterna da existência de
nenhum indivíduo em particular, mas, por outro lado, que persevera nas mesmas
espécies ou em formas mais complexas. E entre os seres humanos é pela educação
que ocorre a continuidade da vida, a partir de seu papel de transmissora das
3
DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., p. 93.
4
Idem.
5
DEWEY, John. El hombre y sus problemas ,ob. cit., pp. 42-5.
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62
experiências vividas. Os fatos inelutáveis de nascimento e morte indicam a
necessidade da educação: com o crescimento da civilização, a lacuna entre as
capacidades originais do imaturo e os padrões dos mais velhos aumenta, o que
requer algum mecanismo que repasse aos mais novos o que já foi desenvolvido
pelos que vieram antes dele. O processo de comunicação, em cuja transmissão
consiste rudimentarmente a educação, é processo de participação da experiência
para que esta se torne patrimônio comum.
6
Nós nascemos seres orgânicos, já associados com outros, mas não
membros de uma comunidade, como discutido no capítulo II deste trabalho. Por
essa razão os jovens precisam ser trazidos para as tradições e visões que
caracterizam a comunidade por meio da educação.
O fato de um grande número de indivíduos compartilhar mesmos os
interesses, os sociais, de forma que cada um tenha que pautar suas próprias ações
pelas dos outros e considerar as alheias ao orientar as suas próprias, exige que se
criem certas atitudes pessoais, quais sejam: a iniciativa pessoal; a adaptabilidade;
e o pensar livre, imaginativo, criativo, crítico e reflexivo.
7
Neste ponto, Dewey convoca a noção de hábito e diz que, por conta dela,
tivemos mais continuidades que mudanças históricas, já que eles geram interesse,
habilidade e facilidade nas coisas nas quais nos acostumamos e medo em relação
a caminhos diferentes. Dewey diz que, por ignorarem a influência do hábito, as
pessoas ainda não entendem como as mudanças trazidas pela aplicação
tecnológica revolucionaram as condições em que a vida associativa opera; que não
entendem como a mudança se deu ou como afeta sua conduta, o que os
impossibilita, assim, de controlar e se aproveitar de suas manifestações; o
resultado é serem consumidos pelas conseqüências.
8
A atividade educativa, por
outro lado, propicia o conhecimento das relações ou conexões que antes não eram
percebidas, resultando num aumento ou enriquecimento do sentido ou
significação da experiência.
9
É importante ressaltar que o meio não determina os hábitos, mas fornece
condições que estimularão certos modos de agir. Nunca educamos diretamente
6
DEWEY, John. Democracy and education. New York: Dover, 2004, pp. 1-10.
7
DEWEY, John. Creative democracy: the task before us. In: ALEXANDER, Thomas M.
HICKMAN, Larry A. (ed.). The essential Dewey , ob. cit., p. 342 e DEWEY, John. Democracia e
educação , ob. cit., p. 93.
8
DEWEY, John. The public and its problems , ob. cit., pp. 159-61.
9
DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., p. 84.
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63
através do meio, mas sim indiretamente; assim, há diferença se permitimos que o
meio se estabeleça à sorte ou se o influenciamos para o fim da educação que
desejamos, para as escolas.
10
Esse meio arquitetado tem 3 funções: 1) proporcionar um ambiente
simplificado, com a divisão do conhecimento em frações, necessidade gerada pelo
fato de ter se tornado tão complexo; 2) eliminar as características do meio social
que influenciam os hábitos mentais de forma desvantajosa; 3) equilibrar os vários
elementos do meio social de modo que cada indivíduo tenha oportunidade de
escapar das limitações do grupo social em que nasceu e entrar em contato com um
meio mais amplo. No início do século XX Dewey já escrevia que, numa realidade
de diversidade de grupos cada vez mais intensa, é preciso promover um meio
equilibrado para a juventude. Nesse quadro, a educação assume a função de
coordenadora das diversas influências dos diferentes grupos de que cada um
participa, já que a sociedade moderna se compõe de muitas sociedades mais ou
menos frouxamente entrosadas entre si.
11
Para Dewey, a escola deveria ser uma reprodução o mais fiel possível da
vida na sociedade, representando a vida presente tal como a criança a encontra em
casa e na vizinhança. Por isso, a escola deveria ser uma simplificação da vida
social existente, de modo a, reduzindo sua complexidade, permitir que a criança
não encare a confusão e distração da sociedade antes que desenvolva habilidades
para lidar com elas.
12
As idéias de hábito como algo rígido e mecânico e imaturidade como
deficiência equivalem a uma idéia de crescimento que Dewey procura descartar,
segundo a qual este teria um fim, ao invés de ser o seu próprio fim. Em oposição,
Dewey defende que o desenvolvimento ou crescimento só é relativo a mais
desenvolvimento ou crescimento, portanto a educação somente se subordina à
própria educação.
13
A idéia de que a imaturidade das crianças é vista como falta
de algo, como prega/pregava a educação criticada por Dewey, resulta em que a
educação deva preencher lacunas ausentes; em contrário, Dewey defende que a
10
DEWEY, John. Democracy and education , ob. cit., pp. 10-22.
11
Ibid., pp. 16-22.
12
DEWEY, John. My pedagogic creed. In: ALEXANDER, Thomas M. HICKMAN, Larry A.
(ed.). The essential Dewey , ob. cit., pp. 230-1.
13
“O contraste essencial da idéia de educação como uma reconstrução contínua, com as outras
concepções unilaterais que foram criticadas neste capítulo e no antecedente, é que ela identifica o
fim (o resultado) com o processo.” (DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., p. 85.).
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educação se torne “a empresa de suprir as condições que asseguram o crescimento
ou desenvolvimento”. O valor da educação está em suscitar o desejo contínuo de
crescimento e propiciar meios para isso.
14
Dewey diz que o processo educativo é um contínuo reorganizar,
reconstruir, transformar: “Educação é uma reconstrução ou reorganização da
experiência, que esclarece e aumenta o sentido desta e também a nossa aptidão
para dirigirmos o curso das experiências subseqüentes.”
15
. Para o autor, a
educação é um processo, em continuidade. No entanto, nas escolas os alunos com
freqüência são vistos como espectadores, passivos absorvedores do conteúdo, não
como pessoas que passam por experiências frutíferas.
Para Dewey, a educação consiste na prática da atividade do pensamento ou
reflexão, “[n]o discernimento da relação entre aquilo que tentamos fazer e o que
sucede em conseqüência.”.
16
Nesse contexto, a experiência pode ser de dois tipos,
dependendo de como se der a reflexão: 1) “experiência e erro”, onde a ação fica à
mercê das circunstâncias ao ignorarmos como as tentativas se associam; e 2)
“reflexiva”, quando levamos a observação mais adiante, procurando ligar a causa
ao efeito. Para Dewey, “Pensar é o esforço intencional para descobrir as relações
especificas entre uma coisa que fazemos e a conseqüência que resulta, de modo a
haver continuidade entre ambas”
17
, ou seja, tornar explícito o elemento inteligível
da nossa experiência; é considerar o influxo da ocorrência sobre o que pode
suceder, mas ainda não sucedeu.
Segundo o pragmatista, os aspectos gerais de uma experiência reflexiva
são: 1) perplexidade, confusão e dúvida; 2) uma previsão conjuntural; 3) um
cuidadoso exame das considerações possíveis e que definam ou esclareçam o
problema; 4) elaboração de tentativa de hipótese, harmonizando a questão com
mais uma série de circunstâncias; 5) partir para o plano de ação a partir da
hipótese concebida. Os atos 3 e 4 tornam uma experiência reflexiva. Onde há
reflexão há incerteza e dúvida. A pesquisa não é exclusiva dos cientistas, mas
todo ato de pensar é inquirir, é uma pesquisa, envolve um risco. A dúvida é um
recurso importante, seu reconhecimento e valorização originaram o
desenvolvimento científico moderno. A educação teria o papel, conforme o autor,
14
DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., p. 55.
15
Ibid., p. 83.
16
Ibid., p. 158.
17
Ibid., p. 159.
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65
de propiciar que esse tipo de pensamento crítico, debatedor e inquietante estivesse
cada vez mais presente nas relações sociais.
Com base na discussão já levada a cabo neste item do trabalho podemos
apresentar algumas características da proposta de pedagogia de Dewey.
O autor afirma que não se deve presumir experiência por parte dos alunos;
é indispensável uma situação empírica atual para engatilhar o ato de pensar. A
primeira apresentação de um assunto na escola deve ser o menos acadêmica
possível, a partir de situações da vida que provoquem interesse, como um jogo. A
apresentação e matérias em forma de problemas é recomendada, desde que estes
não sejam simulados, mas tenham surgido naturalmente e se relacionem com o
cotidiano dos alunos.
18
Ainda, segundo o autor, nenhum pensamento pode ser
transferido como idéia de uma pessoa para outra. A comunicação, por parte do
professor, pode servir de estímulo para o aluno compreender a questão e conceber
uma idéia semelhante tanto quanto pode abafar seu interesse intelectual e aniquilar
seu esforço reflexivo.
19
Por essas razões, as idéias são elementos intermediários e
não finais do aprendizado, ou seja, é preciso que sejam aplicadas, não “fixadas”.
Dessa forma, Dewey prega o contrário do que encontrava nas escolas, onde os
alunos eram passivos espectadores do ensino e reconheciam a inutilidade e
inaplicabilidade na vida prática dos conteúdos escolares.
20
Por conta das observações acima, Dewey também critica a organização
tradicional das disciplinas oferecidas pela escola. Para o pragmatista, a criança
não deveria ser introduzida de uma só vez a um grande número de disciplinas
distantes de sua vida social. Ao invés de literatura, geografia ou história, nas
18
É importante que fique claro que Dewey defende que sejam apresentados dados para suprir as
considerações indispensáveis à análise e à percepção de dificuldades específicas que tenham se
apresentado por si mesmas na situação de experiência. A observação direta é interessante, mas
nem sempre poderá estar presente; para Dewey, é importante que na educação se adquira a aptidão
de suprir a deficiência das experiências adquiridas pessoalmente pelas de terceiros. A educação
deweyana não se trata de considerar exclusivamente a experiência, mas sim de privilegiá-la.
(DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., pp. 172-4).
Também é válido acrescentar que a instrução que não se encaixa em nenhum problema já presente
na experiência do aluno, ou que não se apresente de forma a incitar um questionamento nessa
experiência, é inútil para os propósitos intelectuais, diz Dewey, pois não se torna reflexiva. Nós
assimilamos novos conhecimentos a partir do que digerimos e retemos das experiências anteriores;
assim, ao invés de perguntar “Vocês se lembram do que aprendemos no livro texto na semana
passada?”, o professor deveria indagar aos alunos “Vocês se lembram disso e daquilo que viram
ou de que ouviram falar?”. De outra forma, os alunos são ensinados a viver em dois mundos
separados: o dos livros e lições, de um lado, e aquele da experiência de fora da escola, por outro.
(DEWEY, John. How we think. New York: Dover, 1997, pp. 199 e 200).
19
DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., p. 175.
20
Ibid., pp. 174-6.
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próprias atividades sociais da criança deveria consistir a verdadeira correlação
entre as diversas disciplinas da escola. E para trabalhar a atividade social da
criança Dewey aposta no que chama de atividades construtivas ou ocupações, ou
seja, atividades que reproduzem ou são semelhantes a trabalhos realizados na vida
social.
21
Assim, valoriza afazeres como cozinhar, costurar e trabalhos manuais na
escola;
22
mas não como atividades especiais ou de recreação, e sim como meios
para que a criança seja apresentada às disciplinas mais formais do currículo.
23
Daí depreendemos o grande valor que o autor atribui ao que chama de
interesse no processo educativo. Segundo Dewey, os interesses são sinais e
sintomas de que capacidades estão se desenvolvendo. Atenção aos interesses do
aluno se torna, portanto, tarefa primordial ao educador, que orientará os próximos
passos deste ao indicar para que tipo de conteúdo a criança está pronta e que
material pode ser utilizado de forma a produzir resultados mais frutíferos.
Portanto:
Reprimir o interesse é substituir a criança pelo adulto e enfraquecer a curiosidade
e a prontidão intelectual, suprimir a iniciativa (...) o interesse é sempre o sinal de
algum poder que está abaixo; o importante é descobrir esse poder.
24
O professor que em suas aulas propicia o entusiasmo e estimula a
curiosidade dos alunos já está exercendo sua tarefa de forma competente, segundo
os escritos acima. Mas, para Dewey, ainda é preciso mais que isso: é necessário
que o estímulo despertado em direção à ampliação dos objetos e objetivos do
estudo se transforme em poder, ou seja, na atenção aos detalhes que garante a
maestria sobre os meios de execução de uma ação.
25
O isolamento das escolas em
relação à vida dos alunos, para Dewey, deve ser combatido majoritariamente
através do incentivo do conhecimento a respeito da ação. Nesse âmbito, em
relação às disciplinas que integram o currículo do ensino, Dewey defende que não
sejam ensinadas simplesmente como informação sobre a sociedade, mas sim em
21
WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy , ob. cit., p. 101.
22
Qualquer disciplina, de grego a cozinhar, de desenho a matemática, é intelectual, não na sua
estrutura interna, mas na sua função, ou seja, no poder de estimular o início e direcionar a
investigação e a reflexão significativas, nos diz Dewey. Uma disciplina é intelectual à medida que
é bem sucedida em propiciar o crescimento de alguma pessoa. (DEWEY, John. How we think.,,
ob. cit., pp. 39 e 46).
23
DEWEY, John. My pedagogic creed,, ob. cit., p. 232.
24
“To repress interest is to substitute the adult for the child, and so to weaken intellectual curiosity
and alertness, to suppress initiative, and to deaden interest. (…) the interest is always the sign of
some power below; the important thing is to discover this power.” (Ibid., pp. 233-4.).
25
DEWEY, John. How we think , ob. cit., p. 220.
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conexão com as ações realizadas, que necessitam sê-lo e como poderiam ser
engendradas.
26
Dessa forma, sendo apresentada a um ambiente democrático e de
cooperação social e convivendo nele diariamente na escola, a criança seria capaz
de vivificar o ideal da engenharia social quando, ao se deparar com a realidade
fora dos muros do colégio, permanecesse agindo de acordo com os hábitos
estimulados no contexto escolar.
Dewey nos aponta oposições observadas na estrutura do ensino. Enquanto
a criança, imatura, chega à escola trazendo em sua bagagem apenas o seu mundo
estreito e pessoal, o adulto exige dela que não se incomode com o fato de o seu
mundo ser muito mais extenso e dele fazerem parte complexidades como
considerações sobre espaço e tempo. Enquanto a criança chega à escola com a
noção de integralidade das coisas, unidas apenas pelo interesse nutrido por elas, o
adulto lhe apresenta um mundo com aspectos isolados, especializações e divisões,
como as diferentes disciplinas do currículo.
27
Por fim, antiteticamente às ligações
emocionais e práticas da vida da criança, o adulto insere princípios abstratos como
classificação lógica.
28
Esses são os fundamentos para a severa crítica que Dewey
faz à educação de sua época:
Subdivida cada tópico em temas; cada tema em lições; cada lição em fatos e
fórmulas específicos. Deixe que a criança proceda passo a passo à maestria de
cada uma dessas partes separadas (…) Problemas de instrução são problemas de
obtenção de textos oferecendo seqüências e partes lógicas e apresentando essas
frações em sala de aula numa forma similarmente precisa e gradual. (…) A
criança é simplesmente o ser imaturo que deve ser desenvolvido; o ser superficial
que deve ser aprofundado; a sua experiência é aquela que é estreita e que deve ser
expandida. Ela deve receber, aceitar. Sua parte está preenchida quando é
maleável e dócil.
29
O resultado disso é a conclusão seguinte:
26
DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., p. 60.
27
Dewey nos diz que, em algumas disciplinas escolares, os alunos são imersos em detalhes, suas
mentes repletas por itens desconexos. À mente é permitido passar rapidamente por uma vaga
noção de um todo composto por partes fragmentárias, sem que se exercite a tomada de consciência
de como as partes constituem o todo (DEWEY, John. How we think , ob. cit., pp. 96-7).
28
DEWEY, John. The child and the curriculum. In: ALEXANDER, Thomas M. HICKMAN,
Larry A. (ed.) , ob. cit., p. 237.
29
“Subdivide each topic into studies; each study into lessons; each lesson into specific facts and
formulae. Let the child proceed step by step to master each one of these separate parts (…)
Problems of instruction are problems of procuring texts giving logical parts and sequences, and of
presenting these portions in class in a similar definite and graded way. (…) The child is simply the
immature being who is to be matured; he is the superficial being who is to be deepened; his is
narrow experience which is to be widened. It is his to receive, to accept. His part is fulfilled when
he is ductile and docile.” (DEWEY, John. The child and the curriculum , ob. cit., p. 238.).
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68
(...) quão pouco se fez efetivamente para conseguir que a ciência e a técnica se
transformem nos agentes ativos para criar as atitudes e disposições e assegurar os
tipos de conhecimentos capazes de superar os problemas dos homens e mulheres
contemporâneos.
30
Em oposição, Dewey perfilha o processo educativo onde a criança é o
ponto de partida, o centro e o fim e cujo ideal é o crescimento do aluno. Para esse
ponto de vista, o “conhecimento” não pode ser inserido, de fora para dentro, na
criança: o aprendizado é ativo.
31
Como explica Damico, para Dewey o crescimento
32
é social, não apenas
individual, já que o indivíduo isoladamente pode fazer pouco para regular as
condições que regem sua vida, considerando que esta ocorre em sociedade. Dessa
forma, o crescimento fica comprometido na ausência de uma comunidade que
propicie instituições forjadas para esse propósito e relações sociais em sintonia
com ele.
33
Eis o papel da educação: oferecer um ambiente que propicie que os
cidadãos, ainda crianças, tenham experiências democráticas.
Com essas idéias Dewey expressa sua esperança no progresso social
através da educação, que, por sua vez, seria operada por meio da reconstrução dos
hábitos. Uma visão de uma futura sociedade com desejos e intenções diferentes
poderia ser formada através de trato especial dos impulsos dos jovens, defendia
Dewey. Para o autor, através da educação a sociedade dirigiria a atividade de seus
membros mais novos e determinaria seu próprio futuro.
“Eu acredito que a educação é o método fundamental de progresso social e
reforma”, de reconstrução social, diz Dewey, para quem as demais reformas
baseadas apenas na produção de leis ou na ameaça com penalidades são
transitórias e fúteis. Através da discussão e da agitação social, a sociedade é capaz
de se regular de forma não planejada, ao acaso, enquanto por meio da educação
propósitos sociais podem ser formados, e também os recursos e meios para serem
atingidos.
34
30
“ (...) cuán poco se ha hecho efectivamente para lograr que la ciencia y la técnica se transformen
en agentes activos para crear las actitudes y disposiciones y asegurar los tipos de conocimientos
capaces de superar los problemas de los hombres y mujeres contemporáneos.” (DEWEY, John. El
hombre y sus problemas , ob. cit., p. 38).
31
DEWEY, John. The child and the curriculum , ob. cit., p. 238.
32
Este termo é aqui utilizado conforme as considerações apresentadas acerca dele no primeiro
capítulo deste trabalho.
33
DAMICO, Alfonso,ob. cit., p. 31.
34
DEWEY, John. My pedagogic creed , ob. cit., p. 234.
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Uma das preocupações centrais de Dewey em suas obras é provocar a
reforma social e, para isso, pensa o autor que a reforma da educação é requisito. A
categoria de hábito é a ferramenta de Dewey para fugir da dualidade consciente x
inconsciente, permitindo que se valorize a criatividade do agente ao mesmo tempo
em que se rejeita a idéia de uma razão universal determinante, em último caso, da
conduta humana. Isso significa que é possível, ainda que indiretamente,
influenciar a reorganização e reconstrução de hábitos em alguma direção
determinada, no caso formas de vida democráticas. Assim, propiciar que não só as
crianças, imaturas, mas também os adultos tenham experiências em um meio
democrático significa possibilitar que se criem hábitos democráticos.
Além disso, considerando que a democracia é uma forma de vida
específica, não algo que naturalmente brota da essência do ser por algum motivo,
é necessário que as pessoas sejam apresentadas a essa forma de vida democrática
e que detenham os meios para se desenvolverem numa cultura democrática,
papéis a serem propiciados pela educação de acordo com Dewey. Por isso, a
escola deve ser colocada a serviço da sociedade democrática, o que equivale a
dizer que essa instituição deve servir ao modo de vida democrático.
35
35
DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., p. 56.
“Experience and education” foi escrito em 1938, 22 anos após Dewey ter escrito
“Democracia e Educação” e de ter ouvido as críticas teóricas e práticas ao que aquele livro
despontava. Naquela obra, Dewey demonstra uma preocupação no sentido de deixar claro que nem
todos que clamavam seguir a pedagogia que o autor pregava de fato o faziam; ele alerta que muitos
daqueles que se clamariam seus discípulos na verdade seriam mais vítimas dos antigos dualismos
filosóficos, tão criticados por ele. Isso pois, ao receberem a crítica deweyana a respeito da
pedagogia tradicional, a teriam rechaçado por inteiro e não teriam sido capazes de manter os
aspectos positivos da educação estabelecida; uma oposição não reflexiva não é o caminho, nos
lembra o pragmatista. Tal cenário nos é particularmente interessante pois, diante desse quadro,
Dewey procurou esclarecer algumas de suas idéias principais a respeito da pedagogia que pregava.
Em resumo, foi com o propósito de responder a críticas como a seguinte, e se posicionar no
sentido de que não era isso que queria dizer, que Dewey escreveu “Experience and Education” :
“Dewey, no entanto, deixaria de lado toda aquela continuidade e, pelos meios duvidosos da
experimentação, embarcaria na procura quimérica por uma educação totalmente nova, uma busca
mais reconhecida por sua oposição a tudo que já veio antes.” (“Dewey, however, would cast that
entire continuum aside and, by the dubious means of experimentation, embark upon the chimerical
quest for a wholly new education, a pursuit best distinguished by its oppositionto all that has come
before.” ”. EDMONDSON III, Henry T , ob. cit., p. 112.).
A principal crítica feita ao autor consistia em atribuir, a suas idéias, práticas de escolas
baseadas na premissa de que as crianças deveriam ser incentivadas a fazer o que quisessem,
alegando-se a valorização de sua liberdade. Isso acabava por resultar numa ausência praticamente
total de qualquer tipo de controle e num esvaziamento das funções do professor. Edmondson, por
exemplo, nos diz que: “para Dewey, a criança precisa de pouca disciplina ou correção. Ao invés
disso, o dever do professor é entender e seguir o interesse e o ‘impulso’ do aluno.” ( “for Dewey,
the child needs little discipline or correction. Instead, the teacher’s duty is to understand and
follow the student’s interest and ‘impulse’ ”. EDMONDSON III, Henry T
, ob. cit., p. 23.).
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É preciso esclarecer que, a partir das idéias apresentadas acima a respeito
da educação, Dewey não imagina que esta é capaz de, de pronto, condicionar os
indivíduos a encarar os deveres e responsabilidades exigidos pela vida
democrática. Nas condições complexas da vida contemporânea, disse Dewey em
1952, tal idéia é falaciosa. É preciso, e por isso a tarefa educativa se torna tão
desafiadora, que a escola possibilite o aprendizado das futuras gerações a respeito
das forças sociais operantes, as direções em que se movem e a forma como se
relacionam; e também as conseqüências que produzem e aquelas que produziriam
caso tais forças fossem entendidas e manejadas com inteligência. Somente neste
Em relação a essas críticas, Dewey afirma que o controle das ações individuais existe em
toda situação em que os indivíduos estão envolvidos, em que partilham e são cooperativos ou
partes que interagem. Mesmo num jogo competitivo há regras a serem respeitadas. Assim, não é a
vontade ou desejo de qualquer pessoa que estabelece a ordem, mas sim o espírito de todo o grupo;
o controle é social, mas os indivíduos são parte dessa comunidade. Mesmo quando um professor,
pai ou mãe exercem a autoridade em relação à criança, eles o fazem como representantes e agentes
dos interesses do grupo como um todo. Nas novas escolas, a fonte primária do controle reside na
natureza do trabalho em que todos os indivíduosm a oportunidade de contribuir e em relação ao
qual todos sentem responsabilidade. Nem todos os alunos responderão dessa forma, diz Dewey,
mas os que não o fizerem representarão casos específicos a serem tratados individualmente pelo
professor, que precisará fazer o melhor de si nessas situações. A falta de controle nas escolas
progressistas se deu pela ausência de planejamento que propiciasse situações em que os alunos
fossem colocados diante do exercício do controle sobre eles mesmos e sobre os demais. O fato de
o planejamento tradicional ser rígido não significa que não se deva planejar; mas, pelo contrário, o
educador progressista possui a tarefa de instituir um plano mais inteligente e, conseqüentemente,
mais difícil, e flexível o suficiente, para permitir o livre jogo da individualidade e firme o bastante
de forma a direcionar o contínuo desenvolvimento do controle. Na nova escola o professor não é
excluído do direcionamento das atividades, mas, ao invés de um ditador ou chefe externo, se torna
um líder das atividades de grupo.
Sobre a liberdade, Dewey afirma que o erro mais comum em relação a ela é identificá-la
exclusivamente com a liberdade de movimento, que o autor denomina liberdade externa. É
verdade que ela não está separada da interna e que as carteiras e fileiras militares fixas da escola
tradicional representam uma restrição à liberdade mental e moral, mas a liberdade de movimento
ainda assim é um meio, não um fim. Os impulsos e desejos naturais são o ponto de partida, mas só
há crescimento intelectual com alguma reconstrução e refazer dos mesmos e a ausência de controle
externo não significa isso necessariamente.
A reação às idéias acima é dizer que o fato de o adulto exercer sua sabedoria mais madura
significa meramente impor um controle externo. No entanto, Dewey nos diz que a maturidade do
adulto permite que ele julgue a experiência do jovem de forma que este não o pode fazer; é papel
do educador observar a que direção a experiência está se dirigindo. O educador deve ser capaz de
julgar quais atitudes estão verdadeiramente conduzindo ao crescimento continuado e quais estão
em detrimento dele. A necessidade de educadores que disponham de habilidades como essas é o
que torna a educação progressista mais difícil que a tradicional. (DEWEY, John. Experience and
education. New York: Touchstone, 1997.).
Como Westbrook afirma, a partir dos escritos pedagógicos de Dewey, e mesmo dos relatos
das oportunidades em que os concretizou, é difícil compreender o por quê de tantos atribuírem ao
pragmatista a proposta de uma educação progressiva sem objetivos e outras críticas. Dewey
explicitamente estabeleceu objetivos curriculares, valorizava o conhecimento acumulado pela
humanidade, defendia que os alunos precisavam ler, escrever, contar, pensar cientificamente. A
diferença é que defendia métodos radicais para isso (WESTBROOK. Robert B. John Dewey and
american democracy
, ob. cit., p. 104). Damico também apresenta a mesma surpresa em relação
à confusão que muitos autores estabeleceram a partir das ideias de Dewey (DAMICO, Alfonso
,
ob. cit., p. 34).
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caso as escolas atenderiam de fato ao chamado da democracia, quando
oferecessem uma compreensão do movimento e direção das forças sociais e uma
compreensão acerca das necessidades coletivas e dos recursos necessários para
satisfazê-las. Enquanto os recursos da inteligência social estiverem atuando na
sociedade em condições políticas e econômicas não favoráveis à conservação da
democracia, como Dewey imaginava que ocorria à sua época, as perspectivas da
democracia estarão inseguras.
36
Vejamos a seguir a que o autor se refere quando
suscita a noção de “inteligência social”.
4.2
Inteligência social e Engenharia social
“Eu louvo todo o ceticismo que me permite que lhe
responda: ‘Pois muito bem! Tentemos’. Mas não quero
voltar a ouvir falar em nenhuma questão que não
autorize a experiência. Tal é o limite do meu ‘senso da
verdade’; pois a partir daí a coragem perde o seu
direito.”
37
Um exame apropriado da teoria política e democrática de John Dewey nos
impele a tratar da noção de “inteligência social”. Para o pragmatista, as críticas
correntes à sua época que alegavam que o ser humano não possuía a inteligência
capaz de levar adiante as pretensões democráticas estavam infundadas. De acordo
com o autor, a versão individualista da inteligência deveria ceder lugar a uma
visão social.
38
A visão da inteligência como algo que surgiria da associação de sensações
e sentimentos isolados do indivíduo se opunha à noção de Dewey, para quem a
inteligência seria algo experimental e construtivo, integrado com os movimentos
sociais e direcionador dos mesmos. Segundo o autor, a inteligência se desenvolve
a partir das contribuições dos integrantes da sociedade que, por isso, se torna
capaz de gerar um conhecimento de maior qualidade a ser disponibilizado para
todos. Consoante o pragmatista, apenas alguns indivíduos seriam capazes de
inventar um telefone, mas praticamente ninguém não conseguiria utilizar a
36
DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., pp. 57-8 e 64.
37
NIETZCHE, Friedrich. A Gaia ciência, ob. cit., p. 68.
38
DEWEY, John. Liberalism and social action , ob. cit., p. 57.
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invenção, uma vez que ela tenha se tornado um mecanismo da vida associada. O
autor afirma que as críticas contra a inteligência individual apenas revelam que,
em geral, as pessoas não têm acesso à riqueza acumulada da humanidade de
conhecimento, idéias e propósitos. Dewey valoriza a apropriação pelos indivíduos
da inteligência e a resposta a ela, integrada ao meio em que se vive.
39
Para
Dewey, o conhecimento decorre da associação e da comunicação, depende da
tradição, das ferramentas socialmente transmitidas; os hábitos de reflexão e
observação não são poderes inatos, mas adquiridos sob a influência da cultura e
instituições sociais.
40
Nesse ponto, Dewey conecta a discussão sobre inteligência social com a
idéia de liberdade de expressão. Assim, associando esta discussão àquela realizada
no momento em que tratamos de comunidade, podemos concordar com o autor
quando defende que é condição para um público democraticamente organizado a
liberdade na investigação social e na distribuição de suas conclusões.
41
O autor segue dizendo que o melhor pode ser inimigo do ainda melhor.
Para Dewey, a grande ênfase e dedicação que se tem oferecido nos últimos
séculos em prol da efetivação da liberdade de expressão foram de valor
inestimável para a humanidade; no entanto, quando o pragmatista se refere à
inteligência social, ele quer dizer mais do que isso. No campo da política, na
maioria das vezes a inteligência é identificada com a discussão, com o conflito
entre os partidos; mas não necessariamente tais discussões estarão conectadas com
as realidades por trás delas. A demanda por maior imparcialidade e honestidade
dos políticos não conduz por si ao aproveitamento da inteligência social. Além de
garantir e insistir no aumento da garantia de que todos tenham acesso ao
conhecimento que é gerado sobre a humanidade, o autor defende a criação e
condução de planejamentos que lidem com os problemas da organização social.
Nesse contexto, afirma que o que se sabe sobre o ser humano e as relações sociais
deve não somente ser divulgado, mas deve servir de base para o direcionamento e
estabelecimento dos projetos relacionados com a sociedade, para a
invenção e a
projeção de planos sociais de longo alcance.
42
39
DEWEY, John. Liberalism and social action , ob. cit., pp. 50-1, 58 e 72.
40
DEWEY, John. The public and its problems , ob. cit., p. 158.
41
DEWEY, John. Liberalism and social action , ob. cit., p. 168.
42
DEWEY, John. Liberalism and social action , ob. cit., pp. 72-3 e 76.
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73
Mas a pergunta “o que deve ser feito” não pode ser ignorada. As idéias precisam
ser organizadas e essa organização implica uma organização dos indivíduos que
compartilham dessas idéias e cuja fé está pronta para ser traduzida para ação.
43
Assim, como afirma Caspary, a inteligência social para Dewey se refere a
métodos de investigação na ciência e na ética e às opções inovadoras que eles
produzem. O entendimento de que a inteligência é social traz duas implicações,
basicamente: 1) a inteligência é capaz de se expandir a cada geração; 2) ela pode
ser disponibilizada para todos os cidadãos através de adequadas educação e
disseminação de idéias. Esta é a resposta de Dewey aos “realistas democráticos”,
cujas principais críticas já foram analisadas brevemente neste trabalho
44
, estando
dentre elas a de que o indivíduo, isolado, não disporia das características pessoais
necessárias ao convívio democrático.
45
Damico esclarece que, para Dewey, uma decisão a respeito do que é
desejável socialmente deve ser adiada até que o problema particular que a
originou seja compreendido. Ao falar sobre inteligência social, a filosofia de
Dewey sugere uma forma de experimentalismo social baseado na idéia de
tentativa-erro em relação aos fins e meios selecionados. Isso se dá já que cada
idéia precisa ser testada no mundo pelas suas conseqüências, não sendo suficiente
apenas a teorização acerca de sua implementação. O instrumentalismo de Dewey
tem o papel não de transformar o sistema social em uma boa sociedade, mas de
resolver problemas dentro da sociedade com o fito de promover melhorias
específicas na qualidade de vida das pessoas.
46
Dito isso, percebemos que Dewey demonstra, através de seus escritos
políticos, insatisfação em relação à forma como a sociedade estava organizada. E,
tendo em vista o instrumentalismo que permeia todo seu pensamento, o autor não
poderia deixar de se posicionar sobre a necessidade de se agir para que as
mudanças sociais se dessem. A forma como o autor desenrola suas idéias nesse
ponto pode ser explicada a partir de sua noção de “engenharia social”.
O que já foi escrito até aqui neste trabalho mostra que Dewey, quando se
reporta à preocupação com a transformação social, a trabalha por meio de uma
43
“But the question of ‘what is to be done” cannot be ignored. Ideas must be organized, and this
organization implies an organization of individuals who hold these ideas and whose faith is ready
to translate itself in action.” (Ibid., p. 91).
44
V. nota 59.
45
CASPARY, William R , ob. cit., p. 44.
46
DAMICO, Alfonso, ob. cit., pp. 47-50 e 55.
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reforma social. Dewey defende que deve haver uma transformação social radical,
mas não aponta para uma revolução ou ruptura violenta das bases sociais. Caso
esse procedimento fosse adotado, destruiria seu próprio fim, diz o autor. Em
contraste, a reforma social deve ser radical no sentido de que deve se utilizar do
próprio poder da sociedade para provocar a melhoria das conseqüências sociais
dos sistemas político e econômico, já que Dewey confia na inteligência social. A
transformação da sociedade deve ocorrer por meio da democracia.
47
Ao se utilizar
do termo radical, Dewey procura enfatizar a necessidade de grandes mudanças nas
instituições sociais, econômicas, legais e culturais existentes; a adoção de política
que produza mudanças sociais drásticas, ainda que graduais.
48
Com isso, Dewey defende a idéia de que fins democráticos somente
podem ser alcançados através de meios democráticos. Portanto, ainda que um
governo se proclame democrático e pregue fins democráticos, somente o será caso
suas linhas de ação também o sejam. Nas palavras do autor: “Ela [democracia]
significa também ênfase primordial sobre os meios pelos quais esses fins serão
realizados”.
49
Assim, a democracia não somente é um meio, mas é o meio, o
melhor encontrado até agora, para realizar fins na ampla esfera de relações
humanas e para o desenvolvimento da personalidade humana. Conforme assevera
Dewey, “O princípio fundamental da democracia é que os fins da liberdade e
individualidade para todos somente podem ser alcançados por meios de acordo
com esses fins.”
50
Para Bernstein, uma vez que integra o ideário democrático de Dewey a
noção de que as contingências e novas situações a serem enfrentadas
simplesmente não possam ser antecipadas com rigor e certeza, os desafios da
democracia são inesperados. Isso significa que a política democrática não confia
nas instituições e práticas correntes, mas se esforça para responder às novas
necessidades sociais e por formular permanentemente respostas inovadoras à
pergunta “quais mudanças positivas e construtivas devem ser instituídas nos
arranjos sociais?”. Imaginar uma resposta a essa pergunta é uma tarefa a ser
47
DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., pp. 156-64.
48
ALEXANDER, Thomas M. e HICKMAN, Larry A. (ed.). , ob. cit., pp. 338-9.
49
“It [democracy] signifies also primary emphasis upon the means by which these ends are to be
fulfilled.”. (DEWEY, John. Democracy is Radical. In:ALEXANDER, Thomas M. e HICKMAN,
Larry A. (ed.) , ob. cit., p. 338).
50
“The fundamental principle of democracy is that the ends of freedom and individuality for all
can be attained only by means that accord with those ends.” (Ibid., p. 338).
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75
realizada recorrentemente segundo o ideal democrático de Dewey. O autor,
portanto, associou a democracia à criatividade devido ao fato de aquela estar
permanentemente se confrontando com a tarefa de se criar e se recriar.
Mas isso não é tudo, não esgota o potencial do experimentalismo trazido
pelo pragmatismo de Dewey. O pragmatismo não apenas chama a atenção para a
potencialidade da idéia “concretize o ideal democrático”. Como diz Dewey:
O método experimental não significa apenas passar o tempo ou fazer alguma
coisa aqui e outra ali na esperança de que as coisas irão melhorar. Justamente
como nas ciências físicas, sugere um corpo coerente de idéias, uma teoria, que dá
direcionamento ao esforço. O que é sugerido, em contraste com qualquer forma
de absolutismo, é que as idéias e a teoria sejam consideradas como métodos de
ação testados e continuamente revisados pelas conseqüências que produzem nas
condições sociais existentes. Uma vez que são operacionais na natureza, elas
modificam condições; enquanto o primeiro requisito, aquele de baseá-las em um
estudo realista das condições reais, traz sua contínua reconstrução.
51
Brandom ajuda a compreender o passo além dado pelo pragmatismo. Para
tanto, traz à discussão a distinção entre intenção e crença em um certo contexto.
Assim, enquanto a intenção se dá no sentido “mundo Æ mente”, ou seja, seu
objetivo é que o mundo se conforme às nossas atitudes, a crença se dá no sentido
oposto, determinando que as nossas atitudes se conformem ao mundo. Enquanto o
Iluminismo trouxe a idéia de que podemos conformar o mundo de acordo com os
nossos desejos, que podemos abrir mão da idéia de que as coisas devem ser
adaptadas ao formato ideal transcendental, os pragmatistas foram além. Eles
rejeitaram o dualismo da esfera prática com somente uma direção, a de se
enquadrar, e da esfera teórica com também somente uma direção, a de
complementar. Esse dualismo foi quebrado com a idéia de processo cíclico de
intervenção e aprendizado; de percepção de alguma situação (chamada de inicial),
atuação nela, percepção do resultado dessa ação e novamente atuação na mesma
situação. Nesse ciclo, que pode se repetir indefinidamente, as crenças adquirem
conseqüências práticas e as intenções passam a ter condições teóricas. Consoante
Brandom:
51
“Experimental method is not just messing around nor doing a little of this and a little of that in
the hope that things will improve. Just as in the physical sciences, it implies a coherent body of
ideas, a theory, that gives direction to effort. What is implied, in contrast to every form of
absolutism, is that the ideas and theory be taken as methods of action tested and continuously
revised by the consequences they produce in actual social conditions. Since they are operational in
nature, they modify conditions while the first requirement, that of basing them upon a realistic
study of actual conditions, brings about their continuous reconstruction.” (DEWEY, John. The
future of liberalism. In: The journal of Philosophy, vol. 32, n. 9, abr 1935, p. 228).
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Nesse nível, os pragmatistas não estão modelando o teórico no prático como a
tradição concebeu essas categorias, mas atribuindo um novo conceito tanto nos
termos dos processos de adaptação ecológica de interação do organismo quanto
do ambiente do tipo exemplificado pela evolução e aprendizado.
52
Isso significa que, quando estamos diante do desejo de concretizar o ideal
democrático e, para tanto, imaginar instituições que sejam capazes de fazê-lo, não
devemos observar essas duas categorias em separado.
53
Ao invés disso, diz Lon
Fuller: “devemos observar uma instituição como algo ativo, projetando-se num
campo de forças em interação, remodelando essas forças de formas diversas e em
graus variados”.
54
Nenhum fim abstratamente concebido permanece o mesmo
quando tornado concreto através de alguma forma de implementação social. Isso
significa que não apenas fins são escolhidos e meios delineados, mas ambos são
objetos, continuamente, dos dois tipos de ação. Dessa forma, a pergunta “esta
instituição serve bem àquele fim?” é substituída por “esta instituição cria um
padrão de vida que é satisfatório?”.
Com a ajuda de Fuller compreendemos mais uma contribuição da obra de
Dewey: identificar essa espiral de meios e fins e, diante disso, elucidar que o
trabalho pela concretização da democracia não está terminado quando (1)
determinamos que é em direção ao ideal democrático que desejamos caminhar e
(2) imaginamos uma instituição que, em tese, o “concretizaria”. Mais adequado do
que dizer que o ideal democrático necessita de instituições para se realizar é
afirmar que, em cada passo rumo à sua institucionalização, ele encontra formas de
se realizar. E as escolhas que serão feitas, diante dos infinitos conjuntos de
alternativas dispostas, através de seu constante diálogo com a prática e teoria
52
“At this level, the pragmatists are not modeling the theoretical on the practical as the tradition
had conceived these categories, but reconceptualizing both in terms of ecological-adaptation
processes of interaction of organism and environment of the sort epitomized by evolution and
learning” (BRANDOM, Robert B.. The pragmatist Enlightenment (and its problematic semantics).
In: European Journal of Philosophy 12:1, 2004, p. 10).
53
Diz Dewey: “The form of an attained end or consequence is always the same: that of adequate
co-ordination. The content or involved matter of each successive result differs from that of its
predecessors; for, while it is a reinstatement of a unified on-going action, after a period of
interruption through conflict and need, it is also an enactement of a new state of affairs. It has the
qualities and properties appropriate to its being the consummatory resolution of a previous state of
activity in which there was a peculiar need, desire, and end-in-view.” (DEWEY, John. The
continuum of ends-means. In: ARCHAMBAULT, Reginald D. (ed.). John Dewey on education:
selected writings. Chicago: University of Chicago, 1964, pp. 105-6).
54
““we have to see an institution as an active thing, projecting itself into a field of interacting
forces, reshaping those forces in diverse ways and in varying degrees.” (FULLER, Lon L. Means
and ends. In: The principles of social order: selected essays of Lon L. Fuller. Portland: Hart, 2001,
p. 68).
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democráticas, representarão o colorido que a imaginação humana for apta a
oferecer.
Ao propor a reforma social, Dewey dizia mais do que “pensemos nos
meios para a realização dos ideais”. Dizia que pensar ideais implica pensar as
instituições que os concretizarão, as práticas que os manifestarão, os agentes,
públicos ou privados, que por sua efetivação serão responsabilizados. Não exercer
essa segunda tarefa é deixar pela metade o trabalho pela gradual incorporação da
democracia na sociedade. Dessa forma, implementar a reforma social implica uma
tarefa programática: significa imaginar, a cada momento, o passo a ser dado e, a
partir do impacto social dessa medida, planejar o passo seguinte e efetuá-lo.
Assim, por meio da concepção de engenharia social Dewey revela: 1) a
necessidade de uma reforma social radical, nos termos acima discutidos; e 2) a
possibilidade e a importância de que as mudanças sociais se dêem a partir de
direcionamentos estabelecidos pela própria sociedade. Como diz Dewey, “se será
encontrada uma solução, será por meio do desejo, da inteligência e do esforço do
homem”.
55
4.3
A democracia como ideal
“Por mais importância que possa existir em conhecer os
autênticos motivos que guiaram a conduta da
humanidade até hoje, talvez seja ainda mais importante
para o homem do conhecimento, saber quais são aqueles
em que o homem pode acreditar, ou seja, aqueles que a
sua imaginação pode considerar como a alavanca dos
seus atos até agora, uma vez que a sua felicidade e sua
íntima miséria são efeitos da fé que teve nestes ou
naqueles motivos, e não naquilo que foi o autêntico
motivo. O autêntico motivo tem apenas um interesse
secundário.”
56
Para Dewey, o fundamento do ideal da democracia é a fé nas capacidades
da natureza humana, na inteligência humana e no potencial colaborativo da
55
“Si se encuentra uma solución, será por médio del deseo, de la inteligência y el esfuerzo del
hombre.” (DEWEY, John. El hombre y sus problemas ,ob. cit., p. 42.).
56
NIETZCHE, Friedrich. A Gaia ciencia,ob. cit., p. 65.
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78
experiência associada. A palavra “fé” aqui empregada nos indica a crença de que,
caso sejam fornecidas oportunidades adequadas, esses potenciais se
desenvolverão.
57
São numerosas as vezes em que, ao se referir à democracia, Dewey a
associa à noção de crença. Para compreendermos o que o autor procura
demonstrar com essa idéia recorremos à sua obra “A Common Faith”.
Nessa obra, o autor procura demonstrar a diferença entre a “religião” e o
“religioso” ao propor que os aspectos sobrenaturais freqüentemente conectados
com a idéia de religião sejam afastados da noção de experiência religiosa. O autor
afirma que muitos traços das religiões serviram a propósitos e contextos de outros
tempos e já não mais atendem aos anseios atuais. Propõe que, através de um
exercício imaginativo, se pergunte qual idéia do oculto, sua maneira de controle
sobre nós e as formas pelas quais a reverência e a obediência poderiam ser
exercidas, de modo que o que é religioso na experiência possa se expressar
livremente, não mais sob o jugo de acobertamentos históricos.
58
Ao se orientar por esse caminho, Dewey afirma que a única coisa que pode
ser dita em relação às experiências religiosas é a existência de um complexo de
condições que realizaram um ajustamento na vida ou uma reorientação que traz
consigo um senso de segurança e paz. Como a interpretação particular dada a esse
complexo é dada pela cultura na qual o indivíduo que o experiencia está inserido,
ela recebe diferentes nomes. O autor procura ressaltar, a partir dessas palavras,
que o efeito produzido por esse complexo é o melhor ajuste à vida e às suas
condições é e nesse efeito em que devemos nos concentrar, não na forma ou
eventual causa transcendental de sua produção.
59
Caso esse tipo de experiência
fosse destacado e se tornasse independente de certos tipos de práticas e crenças
(que constituem as religiões), muitas pessoas descobririam que ter experiências
com essa qualidade, chamada de religiosa pelo autor, é algo muito mais freqüente
do que se imagina. Para alguns é decorrência de devoção a uma causa; para outros
advém da leitura de um poema ou por meio da reflexão filosófica, por exemplo.
60
57
DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., pp. 70-1.
58
DEWEY, John. A common faith. New Haven e Londres: Yale University, 1991, pp. 1-7.
59
Ibid., pp. 13-14.
60
Ibid., pp. 14-15.
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79
Dewey diz ainda que por muito tempo se pensou que seria preciso
reconhecer que a fé
61
seria uma substituta para o conhecimento, uma prova do
oculto, o que a atribuiu a obrigação de dispor, portanto, de um maquinário
intelectual capaz de provar sua autenticidade. No entanto, se deixou de lado a
importância moral e prática da crença: a convicção de que um fim deve agir de
forma suprema na conduta (onde convicção significa ser conquistado, vencido,
tomado por um fim ideal, conscientização da certeza de sua busca em relação aos
desejos e propósitos). Esse reconhecimento é antes prático que intelectual e em
relação a ele não há qualquer prova que possa ser apresentada a qualquer possível
observador.
62
Dessa forma, retomando-se o questionamento feito no início deste ponto a
respeito das conseqüências do afastamento da idéia do sobrenatural em relação à
de religião, vemos que o poder oculto que outrora controlava os destinos se
transforma no poder de um ideal. Isso significa que: 1) todas as possibilidades são
ideais, na medida em que se encontram na imaginação antes de serem, ou não
serem, concretizadas; 2) qualquer busca por algo melhor é movida por uma crença
em algo que ainda não existe, não por apego a algo que já existe; 3) essa crença
não depende da certeza intelectual a respeito dela mesma.
63
Despida de figuras
místicas, ritos sagrados e poderes sobrenaturais, uma crença se torna um ideal.
Dewey então ressalta o poder de uma crença, ou seja, sua capacidade de
impulsionar ações. Em defesa, o autor diz que não há oposição entre a inteligência
e a ação nem mesmo entre a primeira e a emoção. Durante a história da
humanidade, se verificou que diversas e inúmeras idéias podem ser objeto de
emoção que de forma arrebatadora condiciona a prática; revoluções sociais se
iniciaram dessa forma, tamanho é o poder de uma crença. Dessa forma, um ideal
potencialmente inspira a prática humana, incentivando a tomada de ações rumo
aos propósitos desejados. Dewey defende que esse poder inspirador da conduta
humana pelo ideal seja liberto das implicações institucionalizadas por religiões
para que sua conseqüente possibilidade de alteração das relações sociais se torne
uma prática cada vez mais presente.
64
61
A parir da leitura da obra citada (A common faith) se depreende que o autor utiliza os termos
“fé” e “crença” como sinônimos.
62
DEWEY, John. A common faith , ob. cit., pp. 19-21.
63
Ibid., 23-24.
64
Ibid., pp. 80.
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80
Nesses termos, Dewey afirma que a democracia é uma crença. Não
somente (1) aceita o fato de a mesma ser antes de mais nada um ideal, mas (2)
argumenta que sua defesa seja livrada da carga de fundacionismo que a cerca e (3)
incentiva que a força da busca por um ideal seja reconhecida e seja dedicada à
instauração/manutenção da democracia.
Para o autor, no contexto da idéia (1) exposta no parágrafo acima, a
democracia é uma crença no alcance de uma melhor qualidade da experiência:
Mas eu faria uma única pergunta: podemos encontrar alguma razão que em
última instância não queira dizer que a crença nos arranjos sociais democráticos
promovem uma melhor qualidade da experiência humana, que é mais
amplamente acessível e aproveitada, que as formas de vida social não
democráticas e anti-democráticas? A razão de nossa preferência não é que
acreditamos que a consulta aos demais e as convicções alcançadas pela persuasão
tornam possível uma qualidade de experiência superior do que a que pode ser
oferecida de outra forma em larga escala? (...) (e pessoalmente eu não vejo como
podemos justificar nossa preferência pela democracia e humanidade sob qualquer
outro fundamento).
65
Caso Dewey sustentasse a idéia da democracia como algo a priori, o autor
iria de encontro à sua filosofia crítica de fundacionismos. No entanto, partindo da
idéia de que cada contexto específico demanda um olhar que leve em conta suas
peculiaridades, ele afirma que, no contexto em que viveu, a democracia parecia
ser a forma de governo e a forma de vida mais apropriada. Dewey reconhecia que
ter esperança no progresso da humanidade não era algo que poderia ser “provado”
ou defendido filosoficamente sem que se incorresse nos mesmos erros daquelas
formas de filosofia que ele critica. Portanto, atribuiu filosoficamente à democracia
a categoria de crença. Assim, não há como justificar que o ser humano deve viver
de forma democrática, mas há como dizer por que uma crença na democracia
pode ser útil para que se tenham experiências mais ricas.
Dewey afirma que “a democracia é a crença na habilidade da experiência
humana em gerar objetivos e métodos pelos quais as experiências futuras
crescerão em riqueza ordenada”. Com isso, quer dizer que, enquanto qualquer
outra forma de fé moral ou social jaz sobre a idéia de que a experiência em algum
65
“But I would ask a single question: Can we find any reason that does not ultimately come down
to the belief that democratic social arrangements promote a better quality of human experience,
one which is more widely accessible and enjoyed, than do non-democratic and anti-democratic
forms of social life? (…) Is it not the reason for our preference that we believe that mutual
consultation and convictions reached through persuasion, make possible a better quality of
experience than can otherwise be provided on any wide scale? (…) (and personally I do not see
how we can justify our preference for democracy and humanity on any other ground).” (DEWEY,
John. Experience and education , ob. cit., pp. 34-5).
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81
ponto precisa ser submetida a alguma forma de controle externo aos processos de
experiência, a democracia crê que o processo da experiência é mais importante
que qualquer resultado especial. Ao ser comparada a outras formas de vida, a
democracia é a única que crê no processo da experiência como fim e meio.
66
Conforme Bernstein elucida, a perspectiva deweyana é de que somos
criaturas capazes de inteligência, de imaginativamente conceber novos ideais que
inspirarão a reconstrução das condições existentes através de redirecionamentos.
Além disso, somos seres emocionais e passionais capazes de lealdade suprema a
esses ideais flexíveis que, em algumvel, julgamos adequados para guiarem
nossas vidas.
67
4.4
A democracia como forma de vida, coletiva e individual
Como vimos, as idéias de Dewey se baseiam no reconhecimento da
interação indivíduo e condições culturais, ou seja, na aceitação de que o primeiro
influencia a forma como tais condições se configurarão e vice-versa. Isso significa
que, onde as realidades sociais são a cultura e a natureza humana é compreendida
à luz da interação, as instituições políticas são observadas como parte de uma rede
ampla de relações. Nesse contexto, o termo “democracia” carrega muitos sentidos.
Segundo Damico, ela quer dizer: uma forma de governo; um conjunto de
procedimentos e liberdades que tornem o Estado responsável pelo que é público; e
uma forma de vida, onde as instituições sociais são marcadas pela atitude
“científica” ou “inteligente”.
68
Dewey escreve que há uma distinção entre pensar a democracia como uma
idéia social e como um sistema de governo. Para que a democracia como idéia
social seja realizada, precisa estar presente em todas as formas de associação
humana, como a família, o trabalho e a religião. Nesse quadro, os arranjos
66
“democracy is belief in the ability of human experience to generate the aims and methods by
which further experiences will grow in ordered richness.” DEWEY, John. Creative democracy: the
task before us. In: ALEXANDER, Thomas M. e HICKMAN, Larry A. (ed.) , ob. cit., p. 343.
67
BERNSTEIN, Richard. John Dewey. Atascadero: Ridgeview, 1966, p. 164.
68
DAMICO, Alfonso, ob. cit., p. 118.
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82
políticos são apenas mecanismos para assegurar a democracia como idéia social,
canais para que ela efetivamente opere.
69
Nessa linha, para Dewey a democracia é uma forma de vida. É uma forma
de vida individual, significa a posse e o contínuo uso de certas atitudes que
formam o caráter pessoal e determinam o desejo e o propósito em todas as
relações de vida. Ao escrever que a democracia é uma “forma de vida”, Dewey se
posiciona quanto ao que entende por participação. Como podemos perceber, o
autor está mais preocupado em frisar que o ideal da democracia deve estar
presente permanentemente na vida dos cidadãos ao dirigir suas relações nas
infinitas associações de que fazem parte; a preocupação com a participação dos
cidadãos diretamente nas decisões e rumos do governo é menos prezada quando a
comparamos à primeira.
70
A democracia não surgiu de uma escolha a partir de um conjunto de forças
que apresentavam a possibilidade do maior bem com o menor mal; uma visão
assim simplifica por demais a questão. A maior mudança sempre é o resultado de
muitas adaptações e acomodações, cada uma para uma situação particular:
A democracia política emergiu como um tipo de conseqüência em rede da vasta
multidão de ajustes em resposta a um vasto número de situações, as quais nem
apenas duas eram semelhantes, mas que tendiam a convergir a um resultado
comum. A convergência democrática, ademais, não era o resultado de forças e
atuações políticas distintas. A democracia é muito menos o produto da
democracia, de algo inerente, ou uma idéia imanente.
71
Ao falar sobre democracia, precisamos reiterar que não foi ela quem criou
os mecanismos do sufrágio universal, representantes eleitos, regra da maioria etc.;
tais são o resultado da transição do governo dinástico para o popular. As idéias de
que o governo existe para servir à comunidade, que seu propósito não pode ser
atingido a não ser que a comunidade mesma compartilhe na seleção de
governantes e na determinação de suas políticas, estão presentes, até onde
enxergamos, nas doutrinas e formas democráticas expressando sua parcela
69
DEWEY, John. The public and its problems , ob. cit., p. 143.
70
FESTENSTEIN, Matthew. Pragmatism and political theory: from Dewey to Rorty , ob. cit., p.
95.
71
“Political democracy has emerged as a kind of net consequence of a vast multitude of responsive
adjustments to a vast number of situations, no two of which were alike, but which tended to
converge to a common outcome. The democratic convergence, moreover, was not the result of
distinctive political forces and agencies. Much less is democracy the product of democracy, of
some inherent nisus, or immanent idea.” (DEWEY, John. The public and its problems , ob. cit., p.
84).
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83
política. Além disso, a crença nesse aspecto político não é uma fé mística como
em alguma providência divina, mas uma conclusão a partir da análise dos fatos
históricos.
Mas também é preciso dizer que esses instrumentos não são sagrados,
foram utilizados na direção em que a corrente se movia para servir a seus
propósitos. A corrente acabou por se estabilizar em uma direção: formas
democráticas. Portanto, temos todas as razões para crer que, quaisquer que sejam
as mudanças ocorridas com a democracia, serão na direção de tornar o interesse
do público mais senhor da atividade governamental.
Sendo assim, a primeira dificuldade para fortalecer essa democracia é
descobrir os meios pelos quais o público confuso pode se reconhecer, se definir e
expressar seus interesses.
72
O problema não está em sugerir novas formas de
democracia; muitas já foram sugeridas. Para Dewey, o grande problema é: a busca
pelas condições que permitirão que a Grande Sociedade se torne a Grande
Comunidade.
73
Dewey afirma que a democracia se torna a própria idéia de
comunidade: “A clara consciência da vida em comunidade, em todas as suas
implicações, constitui a idéia de democracia.”.
74
Para Dewey, a democracia não é
uma alternativa para os princípios da vida associativa, é a própria idéia de
comunidade.
Aos elementos que até aqui caracterizaram o modo de vida democrático
defendido por Dewey, cabe acrescentarmos mais um: a responsabilidade. A lógica
de contingência trazida pelo pragmatismo para a política introduz
responsabilidade à vida intelectual. Idealizar o universo e as relações sociais é,
acima de tudo, uma confissão de inabilidade em controlar o curso das coisas que
nos concernem. Retirar o fardo do controle sobre as coisas das costas de uma
causa transcendente significa acatá-lo e ter de lidar com ele. Ao assumirem
modéstia, a filosofia e a política adquirem responsabilidade.
75
A
responsabilidade, explica Dewey, é o poder de ser influenciado pelas
conseqüências previsíveis, é o elemento da atitude intelectual que permite pesar
com antecedência as prováveis conseqüências de um ato e deliberadamente aceitá-
72
DEWEY, John. The public and its problems , ob. cit., p. 146.
73
DEWEY Ibid., p. 147.
74
“The clear consciousness of a communal life, in all its implications, constitutes the idea of
democracy.” (Ibid., p. 149).
75
DEWEY, John. The influence of Darwinism on philosophy. In: CAPPS, Donald e CAPPS, John
M. (ed.), ob. cit., p. 187.
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84
las.
76
Assumir que, com nossos atos, influenciamos as ações posteriores significa
nos comprometer com o resultado delas. Quando essa postura é traduzida para a
arena política, almejar a democracia significa se comprometer com atitudes
pessoais e sociais que serão capazes de promover essa forma de vida.
Nesse contexto, do ponto de vista do indivíduo a democracia consiste em
aceitar a responsabilidade por, de acordo com sua capacidade, formar e direcionar
as atividades do grupos a que alguém pertence e participar de, acordo com a
necessidade, no que representa os valores que o grupo sustenta. Fornece um
padrão moral para a conduta pessoal, significa a possessão e o uso contínuo de
certas atitudes, formando-se o caráter e determinando-se o desejo e o propósito em
todas as relações da vida.
77
A partir dela, propõe-se que cada membro da
sociedade seja uma pessoa livre, que caminhe com os próprios pés, e que aceite as
responsabilidades e deveres que essa posição de membro efetivo da sociedade
implica. Para isso, é necessário que os cidadãos de alguma forma expressem suas
próprias necessidades, desejos e concepção de como os assuntos sociais devem ser
manejados.
78
Já do ponto de vista dos grupos, a democracia “demanda a liberação das
potencialidades dos membros de um grupo em harmonia com os interesses e bens
que são comuns.”
79
Tendo em vista que cada indivíduo é membro de vários
grupos, essas especificações somente podem ser preenchidas quando grupos
diferentes interagem flexivelmente com outros. Nessas situações se expressam as
potencialidades que, para tanto, demandam a interação dos grupos.
80
76
DEWEY, John. The study of ethics: a syllabus. Whitefish: Kessinger, 2005, p. 123 e DEWEY,
John. Democracia e educação , ob. cit., pp. 196-7.
77
DEWEY, John. Freedom and culture , ob. cit., p. 101; e DEWEY, John. Creative democracy:
the task before us. In: ALEXANDER, Thomas M. e HICKMAN, Larry A. (ed.) , ob. cit., p. 341.
78
DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., p. 43.
79
Quando fala em “liberação”, Dewey se refere à liberdade positiva. Isso pois a idéia de forçar
alguém à liberdade parecia uma contradição em termos. Dessa forma, liberdade se torna liberação,
encontrando sua dimensão ativa, opondo-se ao que se considerava liberdade negativa, ou seja, a
ausência de interferência. Afirmar que a liberdade é liberação significa reforçar a parcela positiva,
ativa, de interferência, da liberdade. Por isso, ao dizer que a democracia individualmente é uma
liberação de poderes o autor defende uma maior diversidade das capacidades pessoais, uma
oportunidade de realização das potencialidades do indivíduo ofuscadas pelas condições de status
familiar, restrições legais desiguais e autoridades externas. Como diz Dewey, se somos livres é
pela possibilidade de nos tornarmos diferentes do que temos sido. (KLOPPENBERG, James T. ,
ob. cit., p. 396; DEWEY, John. Philosophies of freedom. In: GOUINLOCK, James. The moral
writings of John Dewey. New York: Prometheus Books, 1994, p. 206).
80
“ (…) it demands liberation of the potentialities of members of a group in harmony with the
interests and goods which are common.”. (DEWEY, John. The public and its problems , ob. cit., p.
147.).
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85
Considerando a relação entre as idéias de democracia, comunidade e
comunicação temos que o papel da persuasão, discussão, formação da opinião
pública dos fatos assegurados pelas garantias efetivas da livre investigação, livre
associação, livre comunicação e livre expressão são valorizados. Qualquer coisa
que seja uma barreira à liberdade e à plenitude da comunicação divide os homens
em tipos, em facções antagonistas e subverte a forma de vida democrática.
Qualquer forma de vida que falhe em seus limites democráticos limita os contatos,
as trocas, as comunicações, as interações em que a experiência é aumentada e
enriquecida.
81
Para Dewey, a democracia requer que cada indivíduo seja partícipe dos
processos de tomada de decisão das autoridades, de modo que as necessidades e
desejos dos cidadãos tenham a oportunidade de se fazer presentes na determinação
da política coletiva. Ao mesmo tempo, é imperativo para a realização da
democracia a discussão e consulta recíprocas com o propósito de que se reúnam
todas essas expressões individuais e as mesmas alcancem o governo. A urna
eleitoral e a regra da maioria são símbolos e expressões dessas situações.
82
Para alcançar isto:
Creio que a crise que temos atravessado produzirá algum fruto útil se
aprendermos com ela que cada geração deve tomar para si a tarefa de realizar de
novo a democracia, a qual por sua natureza e essência não é suscetível de ser
transmitida por uma pessoa ou uma geração a outra, mas deve ser elaborada em
função das necessidades, problemas e condições da vida social da qual, com o
passar dos anos, tomamos parte: uma vida social que muda com extrema rapidez
de ano em ano. Invadem-me o ressentimento e uma verdadeira tristeza quando,
em relação aos problemas sociais, econômicos e políticos da atualidade, as
pessoas simplesmente olham para trás, como se no passado pudessem encontrar
um modelo para o que devemos fazer hoje.
83
Dito isso, outro aspecto da democracia a ser realçado por Dewey é o de
que ela é algo que precisa ser mantido, ou seja, que não subsistirá
automaticamente. Assim, da mesma forma que o mero agrupamento das pessoas
81
DEWEY, John. Creative democracy: the task before us , ob. cit., pp. 340-3.
82
DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., p. 44.
83
“Creo que la crisis por la que hemos atravesado producirá algún fruto útil, si hemos aprendido
por ella que cada generación deve tomar sobre sí la tarea de realizar de nuevo la democracia, la
cual por su naturaleza y esencia no es susceptible de ser tansmitida por una persona o una
generación a otra, sino que deve ser elaborada en función de las necesidades, problemas y
condiciones de la vida social de la cual, al correr de los años, formamos parte: una vida social que
cambia con extremada rapidez de año en año. Me invaden el resentimiento y una verdadera tristeza
cuando, en relación con los problemas sociales, económicos y políticos de la actualidad, la gente
mira simplemente hacia atrás, como si en el pasado se pudiese encontrar um modelo para lo que
devemos hacer hoy.” (DEWEY, John. El hombre y sus problemas , ob. cit., p. 49).
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86
não constitui uma comunidade, mas para tanto é necessário que os membros da
associação sustentem a vida em grupo emocional e intelectualmente, a democracia
requer esforços conscientes para sua manutenção. Dewey pretende mostrar que ela
não é apenas uma forma de governo.
A democracia em sua origem não foi produto de deliberação e esforço
consciente, como já dito neste trabalho, mas mantê-la e ampliá-la hoje o é. Ela não
se perpetua automaticamente, é preciso um esforço consciente nessa direção.
84
Assim, o compromisso de Dewey com o que aborda sob o termo “inteligência” se
transfere para o comprometimento da democracia com a participação e com a
noção de idéias em ação, tendo como resultado a forma de vida democrática.
85
As condições da indústria e comércio criadas pela tecnologia, no contexto do
individualismo enrugado já tratado neste trabalho, produziram um problema para
a organização e para a liberdade de forma totalmente não prevista. Em situações
novas, são necessárias novas medidas. A questão é se as instituições democráticas
de agora são capazes de efetuar a mudança.
A cultura tende a se manter e o faz ao provocar mudanças nas constituições
nativas das pessoas, o que significa que as características biológicas e diferenças
naturais atuam a partir de uma forma social dada. Essa tarefa requer esforço
inventivo e atividade criativa pois não por muito tempo pensamos que a
democracia se perpetuaria automaticamente, como se seus ancestrais tivessem
criado uma máquina que resolveria o problema do movimento incessante da
política:
Na minha opinião, o maior erro que se pode cometer no que se relaciona à
democracia é concebê-la como algo fixo, fixo como concepção e em sua
manifestação exterior. A verdadeira idéia de democracia, a significação de
democracia, deve ser continuamente re-explorada; deve ser continuamente
descoberta e redescoberta, refeita e reorganizada; e as instituições políticas,
econômicas e sociais nas quais ela se acha encarnada devem ser refeitas e
reorganizadas para fazer frente às mudanças que tomam lugar no
desenvolvimento de novas necessidades e novos recursos para satisfazerem a
essas necessidades.
86
84
DEWEY, John. Creative democracy: the task before us , ob. cit., p. 341..
85
DAMICO, Alfonso, ob. cit., p. 120.
86
“En mi opinión, el más grande error que puede cometerse en lo que toca a la democracia es
concebirla como algo fijado, fijado como concepción y en su manifestación exterior. La verdadera
idea de democracia, la significación de la democracia, debe ser continuamente reexplorada; debe
ser continuamente descubierta y redescubierta, rehecha y reorganizada; y las instituciones
políticas, económicas y sociales en las que se halla encarnada tienen que ser rehechas y
reorganizadas para hacer frente a los cambios que tienen lugar en el desarrollo de nuevas
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87
É importante ressaltar que a necessária criatividade atrelada à democracia
pode levar à mudança de paradigma. Isso significa que, considerando que as
premissas internas ao argumento estão abertas ao questionamento, Dewey não
está vinculado necessariamente a nenhuma forma particular de vida, nem mesmo
à democrática. O autor se utiliza de premissas éticas e científicas para construir
seu argumento de defesa da democracia em seus termos, mas sua ênfase no que
chama de pesquisa científica e na liberdade de investigação podem levá-lo a
transcender seus pontos de partida e a uma mudança de paradigma. Dessa forma, a
democracia é a forma de governo que permitirá/permitiria sua própria substituição
por outro modelo que se apresentasse e, ainda que com muito custo, se provasse
mais interessante à sociedade.
87
James Kloppenberg, em sua obra “Vitória incerta: democracia social e
progressivismo no pensamento europeu e americano, 1870-1920”, apresenta um
grupo de intelectuais que identifica sob o rol de “progressistas”. Inserindo Dewey
no grupo, Kloppenberg afirma que os progressistas, no contexto mencionado, se
caracterizaram pela crença de que a consciência da interdependência poderia
propiciar que os indivíduos reconhecessem suas responsabilidades sociais e que a
consciência da incerteza poderia propiciar uma atitude crítica em relação à
autoridade. Além disso, sem objetivar uma educação como doutrinação política,
acreditavam que a mesma criaria uma grande variedade de ação política. Em
resumo, Kloppenberg insere Dewey no grupo que, entre 1870 e 1920,
representava simultaneamente os ideais liberais e socialistas através da integração
deliberada e democrática do interesse pessoal com o interesse público.
88
Um ideal ético que convoca homens e mulheres a construírem comunidades em
que as oportunidades e recursos necessários para que cada indivíduo concretize
completamente suas capacidades e poderes estão disponíveis por meio da
participação na vida política, social e cultural. Esse ideal se baseava numa “fé na
capacidade dos seres humanos para julgamento e ação inteligentes se as
condições apropriadas são fornecidas”.
89
necesidades y nuevos recursos para satisfacer estas necesidades.” (DEWEY, John. El hombre y
sus problemas , ob. cit., pp. 56-7).
87
CASPARY, William R. , ob. cit., p. 21.
88
KLOPPENBERG, James T. , ob. cit., pp. 377-8 e 403.
89
“The belief that democracy as an ethical ideal calls upon men and women to build communities
in which the necessary opportunities and resources are available for every individual to realize
fully his or her capacities and powers through participation in political, social, and cultural life.
This ideal rested on a ‘faith in the capacity of human beings for intelligent judgment and action if
proper conditions are furnished’ ”. (WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american
democracy , ob. cit., p. XV).
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88
A democracia em Dewey não é apenas um comprometimento com o
método, com o procedimento democrático; as idéias do autor apenas fazem
sentido caso compreendamos seu compromisso com o valor de cada indivíduo.
Somente a partir dessa premissa entenderemos por quê o ideal democrático de
Dewey afirma que cada indivíduo possui algo a contribuir para a construção e
vida em sociedade.
90
A fé democrática na igualdade humana é uma crença em
que qualquer ser humano possui o direito de oportunidade igual a qualquer outra
pessoa para o desenvolvimento de quaisquer dons que tenha.
Democracia é uma forma de vida operada pela fé em andamento nas
possibilidades da natureza humana. Essa crença não dispõe de base nem
significado a não ser que queira dizer a fé nas potencialidades da natureza
humana da forma como essa natureza se exibe em cada ser humano
independentemente de raça, cor, sexo, nascimento e família, riqueza material ou
cultural.
91
Com isso, temos que para Dewey a democracia não se trata apenas de
arranjos políticos pelos quais os cidadãos podem avaliar ou limitar o poder do
Estado através da eleição de governantes, mas é algo além: exige que os cidadãos
exerçam o poder em seus cotidianos. Por essa razão a democracia é, para Dewey,
uma forma de vida.
92
Em outras palavras, podemos dizer que o que Dewey
aborda como democracia política é o meio para que o ideal democrático, que
abrange compromissos com o valor do indivíduo e seu crescimento, seja
concretizado.
Comprometimentos com valores e ideais, como aqueles em relação ao
valor do indivíduo e à democracia, poderiam apontar um paradoxo no pensamento
de um pragmatista? A fim de analisarmos a frase acima, será necessário
vislumbrá-la a partir de outro ponto de vista: pensadores que defendem que a
defesa de ideais descaracteriza o pragmatismo querem dizer, na verdade, que o
comprometimento com ideais, por estar fundado ou justificado em idéias ausentes
da experiência humana, afastam o autor da doutrina pragmatista. De qualquer
forma, o que pretendemos neste parágrafo é retomar a proposta apresentada na
seção anterior deste trabalho (item 3.3) segundo a qual é possível estar
90
DAMICO, Alfonso, ob. cit., p. 120.
91
“Democracy is a way of life controlled by the working faith in the possibilities of human nature.
That belief is without basis and significance save as it means faith in the potentialities of human
nature as that nature is exhibited in every human being irrespective of race, color, sex, birth and
family, of material or cultural wealth.” (DEWEY, John. Creative democracy: the task before us ,
ob. cit., p. 342).
92
DAMICO, Alfonso, ob. cit., p. 100.
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89
comprometido com uma causa sem que se procure justificar filosoficamente tal
sentimento com argumentos transcendentais ou absolutos.
Ao fugirem do fundacionismo, os pragmatistas poderiam cair no
ceticismo. Com isso, queremos dizer que, deixando-se de lado a idéia de que há
crenças fundamentadas em última instância, talvez a alternativa fosse duvidar de
qualquer crença. No entanto, contrariando essas duas opções (fundacionismo e
ceticismo), o pragmatismo opta pelo falibilismo. De acordo com esta idéia, uma
crença, ainda que não necessariamente certa, não necessariamente deve ser posta
em dúvida. Assim, o fato de algum nenhum conhecimento seja dado como
indiscutível não leva à idéia de que ele deva ser considerado duvidoso sem boas
razões para isso.
93
Por esse motivo, a rejeição pelos pragmatistas do
fundacionismo não é incoerente com a defesa de Dewey do poder de um ideal.
Nem mesmo com a idéia de esperança. Nessa linha, Dewey defende que o
problema do mal deixe de ser teológico ou metafísico e seja percebido como o
problema prático de reduzir ou aliviar os males da vida. Diz que o pessimismo é
uma doutrina paralisadora ao declarar que o mundo é indiscriminadamente mau e
torna, conseqüentemente, fúteis os esforços para descobrir os remédios para seus
problemas. O otimismo indiscriminado também teria as mesmas conseqüências. O
otimismo que diz que o mundo já é o melhor possível pode ser igualado ao mais
cínico dos pessimismos. Nesse aspecto Dewey defende o meliorism:
Melhorismo é a crença em que as condições específicas que existem em algum
momento, sejam elas comparativamente ruins ou comparativamente boas, em
qualquer situação podem ser melhoradas. Ele estimula a inteligência a estudar os
significados positivos do que é bom e as obstruções à sua realização e então a
empreender esforços para a melhoria de condições. Ele incentiva a confiança e
uma esperança razoável de forma que o otimismo não faz.
94
As justificativas absolutas para argumentos garantem fins determinados; a
crítica de Dewey ao fundacionismo, ao rejeitar tais justificativas, enfrenta a
contingência, diante da qual somente de pode esperar que o futuro seja
satisfatório. Da filosofia, o raciocínio se aplica à teoria política: podemos nos
dedicar a reformas e a efetivas transformações sociais, mas os resultados desses
93
WESTBROOK. Robert B. Democratic Hope: pragmatism and the politics of truth. Ithaca:
Cornell University, 2005, pp. 3 e 4.
94
“Meliorism is the belief that the specific conditions which exist at one moment, be they
comparatively bad or comparatively good, in any event may be bettered. It encourages intelligence
to study the positive means of good and the obstructions to their realization, and to put forth
endeavor for the improvement of conditions. It arouses confidence and a reasonable hopefulness as
optimism does not.” (DEWEY, John. Reconstruction in philosophy, ob. cit., p. 142.).
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90
processos são imprevisíveis; tudo que temos a fazer é empreender esforços no
sentido do que desejamos para a sociedade, mas sabendo que isso não determinará
como será o futuro, poderá no máximo apontar direcionamentos que podem ser
verificados com maior ou menor probabilidade. Assim, abrir mão da certeza de
um final feliz para a sociedade, ainda que a longo prazo, e também da inafastável
tragédia, são reflexos políticos da honestidade intelectual do pragmatismo e de sua
humildade em reconhecer que a categoria “prever o futuro” não faz sentido.
4.5
Conclusão do capítulo
Dewey nos apresenta a uma democracia participativa e que os cidadãos,
em comunidade, estão unidos menos por interesses homogêneos e mais pela
educação; e cujas atitudes democráticas e instituições participativas, não a
natureza humana ou o altruísmo, os tornam capazes de articular propósitos e ações
em comum.
95
Sinteticamente, analisemos mais uma vez a progressão do argumento de
Dewey ao defender a democracia. Inicialmente, lembramos do ponto de partida
filosófico de Dewey, a crítica aos fundacionismos, ou seja, aos argumentos que
não admitem o combate argumentativo por se basearem em premissas
transcendentais ou de outras formas além da experiência. A partir daí, Dewey
reconhece a contingência das situações da vida e valoriza as experiências
carregadas pela diversidade, pois apontam novos pontos de vista e, dessa forma,
enriquecem experiências futuras. Assim, a idéia de hábito sugere que se
reconheçam os padrões sociais e individuais e a possibilidade de direcionamento
de algumas condutas em prol de ideais sociais. Na seara da política, a democracia
é a forma de governo, dentre as que conhecemos, que em maior alcance permite
que as experiências sejam enriquecidas, uma vez que:
1) por meio da liberdade de expressão, permite que formas diversas de
experiência sejam comunicadas àqueles que, de outra forma, não teriam acesso a
elas, ou seja, reconhece o valor do indivíduo e defende que haja cada vez mais
oportunidades para a liberação de capacidades;
95
BARBER, Benjamin R. , ob. cit., p. 117.
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91
2) reconhece a importância da interação dos indivíduos para que as
experiências plurais sejam vividas e comunicadas, protegendo espaços para que
essas interações ocorram de forma satisfatória aos indivíduos;
3) considerando as mudanças constantes da sociedade, permite que outra
forma de governo que atenda a novos anseios sociais criativamente se desenvolva
e se instale;
4) sugere que o potencial da inteligência social e do poder da defesa de um
ideal, por meio da educação e de reformas sociais, sejam utilizados e direcionados
para um modelo social e político que atenda às vontades e desejos das pessoas
reunidas em comunidade.
Apresentadas nos capítulos 2 e 3 deste trabalho as principais idéias que se
relacionam na discussão de Dewey sobre democracia, no capítulo seguinte nos
debruçaremos sobre a forma como autores contemporâneos observam esse debate.
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5
Críticas à Democracia de Dewey
Este último capítulo tem o propósito de apresentar enfrentamentos críticos
em relação às idéias de Dewey sobre a democracia.
1
Antes de adentrarmos no capítulo, uma nota metodológica deve ser
apresentada. Passados mais de 50 anos da morte do autor, suas influências são
observadas em uma vastidão de escritos: algumas vezes de modo mais notório e
marcado, porém em outros momentos já de tal forma agregada, condensada e
devedora em relação a outros autores que deixa inseguro aquele que se dedica à
tentativa de relacionar o pensamento desses autores com as idéias do pragmatista.
Feitas essas considerações, neste capítulo trago ao debate de forma mais presente
o pensamento dos seguintes autores: Robert Westbrook, Richard Rorty e Richard
1
Uma crítica ao pensamento de Dewey, ainda que não central, merece destaque ao menos numa
nota de rodapé. É necessário dizer que subscrevemos às análises do pensamento de Dewey que
defendem que a forma de escrever do autor é por algumas vezes truncada e pouco esclarecedora.
Edmondson afirma que o descuido de Dewey com a sintaxe e a lógica marcam seu discurso
filosófico e frustram freqüentemente seus leitores. Outrossim, a obscuridade de sua escrita
conferiu a Dewey um misticismo propiciador de sucessivas gerações de filósofos e educadores a
defenderem certas idéias em nome do autor que, segundo ele, em nada se relacionavam
efetivamente com o que pregava. O exemplo marcante dessa dinâmica é o livro “Experiência e
Educação”, escrito por Dewey em 1938 com o propósito específico de deslegitimar práticas
educacionais que supostamente se relacionariam com leituras suas, mas de fato se afastavam delas
(EDMONDSON III, Henry T. , ob. cit., pp. 10-1). Bernstein diz que, por diversas vezes em que
Dewey realiza suas críticas, podemos perceber contra o quê está se posicionando, mas não
exatamente o que defende, pois, apesar de protestar contra categorias abstratas e estáticas, e de sua
insistência no que é concreto e contingente, o autor não nos orienta com clareza acerca de quais
categorias se utiliza para formular suas teorias (BERNSTEIN, Richard. John Dewey. Atascadero:
Ridgeview, 1966, pp. 12-3). Na mesma linha Westbrook nos lembra das impressões de Oliver
Wendell Holmes sobre a obra de Dewey “Experiência e Natureza”: “ainda que incrivelmente mal
escrito”, havia um “sentimento de intimidade com o interior do cosmos que eu achei inigualável.
Pareceu-me como Deus teria falado caso ele fosse inarticulado mas intensamente desejoso para lhe
dizer como era.” A linguagem de Dewey era imprecisa, suas definições precárias e seus
argumentos com freqüência eram truncadoss (WESTBROOK. Robert B. John Dewey and
american democracy, ob. cit., p. 341). Numa época em que clareza e rigor eram altamente
valorizados, muitas reflexões de Dewey pareciam primitivas e lacunosas. Como Bernstein escreve:
“Dewey admirava as virtudes da especificidade e análise cuidadosa, mas certamente não as
praticava. Por conta de seu desejo de superar todas as dicotomias engessadas, distinções analíticas
importantes são confusas.” (“Dewey praised the virtues of specificity and careful analysis, but he
certainly didn’t practice them. In his desire to overcome all hard-and-fast dichotomies, important
analytic distinctions are blurred.” BERNSTEIN, Richard. Praxis and action. Philadelphia:
University of Pennsylvania, 1971, p. 224).
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93
Bernstein
2
, uma vez que não só claramente permitem a identificação do espírito de
Dewey em seus escritos, mas também, a partir da pesquisa feita para este trabalho,
se revelaram, dentre os pensadores influenciados evidentemente por Dewey,
aqueles que permitiriam um diálogo mais enriquecedor com as discussões do
autor no âmbito do pensamento democrático.
Assim, se procederá da seguinte forma:
1) será enfrentada a crítica dirigida a Dewey segundo a qual o autor
desmereceu o papel das relações de poder em seus escritos;
2) serão exploradas as conseqüências da crença específica de Dewey na
idéia de método científico para sua teoria democrática;
3) será analisado o pensamento de Rorty em relação à democracia e se
buscará ressaltar os pontos em que, em contraste, as idéias de Dewey permanecem
valiosas.
5.1
As relações de poder na teoria política de Dewey
Uma das principais críticas dirigidas ao pensamento de Dewey é a de que,
na ânsia por desenhar trajetórias de reforma social, acaba por subestimar na
dinâmica social a presença de grupos que representam interesses econômicos e se
beneficiam da manutenção do status quo, e que, por isso, se opõem à
implementação das trajetórias descritas pelo pragmatista. Como conseqüência,
Dewey (1) não teria sido capaz de apresentar estratégias políticas rumo ao
progressivo florescimento da democracia; e/ou (2) não teria descrito estratégias
políticas, com o mesmo fim, capazes de encontrar seu espaço na sociedade.
Para enfrentar essa crítica, recorreremos a princípio a Caspary.
3
Por um
lado, o autor defende que Dewey possuía pistas para uma estratégia política
2
Richard J. Bernstein é professor de filosofia da New School for Social Research, especialista em
pragmatismo clássico e, mais marcantemente, na filosofia política e social pragmatista. Richard
Rorty, falecido recentemente, era professor emérito de Literatura Comparada e Filosofia da
Universidade de Stanford e se tornou renomado por seus escritos pragmatistas. Robert B.
Westbrook é professor do Departamento de História da Universidade de Rochester e especialista
na história moderna política, cultural e intelectual estadunidense.
3
CASPARY, William R., ob. cit., p. 176.
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94
concreta. A partir da leitura dos escritos do pragmatista, Caspary defende que a
construção da comunidade democrática proposta por Dewey seria uma
decorrência dos seguintes fatores:
(a) a inspiração política no indivíduo através da educação;
(b) organização dos movimentos sociais através da identificação dos
interesses do público disperso e a busca por poder político para a implementação
das demandas;
(c) incentivo ao processo político, por meio da comunicação, debate e
tomada de decisões em sociedade;
(d) experimentalismo social;
(e) teorização acerca da sociedade, estudo de suas características e
processos principais com o fito de manipulá-los de acordo com os fins sociais;
(f) estímulo à imaginação social por meio da democratização e
popularização da arte;
(g) política em sentido estrito, ou seja, processo eleitoral e formação de
partidos.
De acordo com tais idéias, algumas pautas chegaram a ser indicadas por
Dewey, relacionadas principalmente à idéia de “sociedade em planejamento” (em
oposição à de sociedade planejada), cujos rumos em aberto permitiriam a
participação permanente dos cidadãos em sua definição e permitiriam a
reorganização dos planos que haviam sido imaginados em tese a partir das
conseqüências observadas em sua aplicação, como: a garantia de pleno emprego
pelo governo; o suporte aos desempregados (no contexto da crise de 1929);
incentivo à formação de cooperativas de produção.
No entanto, Caspary reconhece que o pragmatista, apesar de convocar os
liberais para a ação política e social, não ofereceu uma estratégia progressiva e
programática prontamente aplicável. Mesmo que um partido que adotasse as
diretrizes acima em seu programa de governo chegasse à presidência da república,
os interesses a ele contrapostos certamente representariam impedimentos
intoleráveis à sua efetivação.
4
Caspary escreve que, ao longo dos anos de 1930, a
reconstrução dos ideais liberais proposta por Dewey requisitaria a imaginação e
institucionalização das formas democráticas que controlariam as forças produtivas
4
CASPARY, William R. , ob. cit., pp. 174-6.
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95
econômicas e políticas. No entanto, Dewey não teria desenvolvido um programa
claro de ação em direção ao seu socialismo democrático. À época, a redistribuição
de poder era a prioridade para as medidas democráticas propostas por Dewey, que
reconhecia a existência de grandes dificuldades bloqueando tal caminho.
5
Westbrook diz que, ao reconstruir o ideal do liberalismo, Dewey
apresentou uma crítica ao capitalismo que requeria pistas a respeito de como a
alternativa democrático-socialista funcionaria; no entanto, teria encontrado
dificuldades em apontar como se estabeleceriam e quais seriam as formas
democráticas que proporcionariam, concomitantemente, segurança econômica e
desenvolvimento da individualidade.
6
Westbrook escreve que uma estratégia
política que implicasse a redistribuição de poder, esta proposta por Dewey, não
está presente em seus escritos. Dessa forma, diz que Dewey desenvolveu
argumentos sofisticados a respeito de como o capitalismo industrial conduzia os
trabalhadores e mesmo os empregadores a práticas não-liberais, mas depositava
confiança demais na possibilidade de que tal discurso se sobrepusesse aos apelos
do sistema, como se a exortação moral pela forma de vida democrática em si
estivesse dotada da capacidade de alcançar os fins exigidos pela política
democrática.
7
Westbrook diz ainda que, em relação aos problemas identificados por
Dewey no tema da confusão do público, Dewey reconhecia a necessidade de se
indicar o caminho para que o público se organizasse, mas se restringiu à
identificação intelectual do problema, ou seja, a apontar a sua existência. Além
disso, as condições elencadas como obstáculos ao desenrolar da solução de
redescobrimento do público estavam de tal forma fortemente estabelecidas que
sobrepô-las requereria estratégias capazes de superar interesses poderosos de
setores sociais dominantes. Na ausência de sugestões mais específicas, critica
Westbrook, a idéia de reconstrução das comunidades locais em meio à Grande
Sociedade parece vaga e infrutífera.
8
Esses fatos permitem que apresentemos aquela que seria a principal falha
nos escritos de Dewey segundo Bernstein: não ser genuinamente radical. Para este
autor, a fé deweyana na inteligência criativa é ingênua pois subestima as
5
WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit., p. 439-42.
6
Ibid., pp. 438-9.
7
Ibid., p. 179.
8
Ibid., pp. 309 e 315.
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96
poderosas forças econômicas, políticas e sociais que distorcem e corrompem o
ideal democrático. A conseqüência disso é que, apesar das intenções que o
pragmatista revela em seus escritos, a sua própria filosofia acaba por perpetuar os
males sociais que procura combater. Bernstein afirma que Dewey era
excessivamente otimista acerca do que deveria e do que poderia ser alcançado
pela reforma social. Conforme Bernstein, Dewey fornece insuficiente orientação a
respeito de como enfrentar e solucionar essas questões.
9
Assim, paralelamente à crítica a respeito de Dewey menosprezar a
dinâmica do poder econômico na sociedade, segue a de que o autor teria se
dedicado de forma incipiente à tarefa de apontar caminhos para a transposição de
sua filosofia democrática à prática social.
De fato, uma análise, ainda que superficial, da participação e atuação de
Dewey no cenário político e social dos Estados Unidos revela a inconsistência da
primeira alegação acima e o não cabimento da segunda, como ficará mais claro ao
fim deste item. De forma a comprovar este argumento, examinaremos alguns
pontos marcantes da trajetória de vida de Dewey.
Por temperamento e filosoficamente, Dewey era um reformista, não um
revolucionário, como já dito neste trabalho. Era cético em relação a soluções
miraculosas para os problemas sociais, não acreditando, por isso, em nenhum tipo
de utopia. Com isso em mente, em meados do século XX, Dewey havia se
transformado no porta-voz da reforma social nos Estados Unidos.
10
Como
escreve Bernstein, a vida de Dewey foi permeada pelo:
(...) desejo de alcançar além da universidade e da academia, de dar à filosofia
uma genuína virada prática e de informar a reflexão filosófica com a experiência
prática cotidiana. Esse comprometimento – esse senso de continuidade de
reflexão e engajamento prático – marcou Dewey para o resto de sua vida.
11
Em 1894 Dewey foi convidado para lecionar na Universidade de Chicago.
Bernstein conta que, quando Dewey chegou à cidade, o seu comprometimento
9
BERNSTEIN, Richard. Praxis and action , ob. cit., pp. 223-4 e 228-9 e BERNSTEIN, Richard.
John Dewey on democracy: the task before us. In: Philosophical profiles. Philadelphia: University
of Pennsylvania, 1986, p. 271.
10
BERNSTEIN, Richard. Praxis and action , ob. cit., pp. 223-4 e BERNSTEIN, Richard. John
Dewey , ob. cit., pp. 24 e 35.
11
“ (…) desire to reach beyond the university and the academy, to give philosophy a genuinely
‘practical turn’, and to inform philosophic reflection with everyday practical experience. This
commitment – this sense of the continuity of reflection and practical engagement – marked Dewey
for the rest of his life.” (BERNSTEIN, Richard. One step forward, two steps backward: Rorty on
liberal democracy and philosophy. In: BERNSTEIN, Richard. The new constellation: the ethical-
political horizons of modernity / postmodernity. Massachusetts: MIT, 1992, p. 231).
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com o envolvimento direto com o campo social foi de fato solidificado, já que os
desafios e oportunidades ali encontrados e oferecidos representavam um ambiente
ideal para a aproximação de seus teóricos interesses filosóficos em direção às
questões práticas. Chicago à época era um laboratório de mudanças sociais e
econômicas que causavam e resultavam do desenvolvimento da sociedade
industrial, intensificadas pelo grande fluxo de imigrantes que chegavam à cidade.
Nesse tempo Dewey conheceu e participou de “Hull House”, lugar onde os
trabalhadores imigrantes debatiam questões sociais efervescentes, se estimulava a
organização e união dos sindicatos e laços eram firmados tendo como objetivo a
reforma social. Sob o impacto dessa e outras experiências, Dewey não mais era
um filósofo à parte dos fatos, mas se tornou capaz de articular e tornar mais
específica aos problemas mais presentes sua filosofia social.
12
No pós I Guerra Mundial, ao longo dos anos de 1920, Dewey apoiava
candidaturas de candidatos socialistas na cidade de Nova Iorque e denunciava a
repressão persistente voltada a quem aparentasse ameaçar a instituição da
propriedade privada nos Estados Unidos. De acordo com Westbrook, os esforços
de Dewey foram relevantes para amenizar o clima de perseguição e medo nas
universidades e escolas do país.
13
Nos Estados Unidos dos anos de 1930, Dewey se juntou a outros
intelectuais na empreitada da criação de um terceiro partido político. O
movimento foi motivado pela idéia da cooperação entre setores da classe média e
classe média baixa e teve como objetivo difundir a idéia de que a ligação entre os
ideais democráticos mais caros e o capitalismo, afrouxada pelo desenvolvimento
da sociedade industrial, somente seria reavivada através da reconstrução social
12
BERNSTEIN, Richard. John Dewey , ob. cit., pp. 35-6.
13
WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit., p. 278. É interessante
acrescentar que Dewey passou grande parte dos anos de 1919 a 1921 viajando pelo Oriente, onde
efervescia a mudança social revolucionária, época em que foi calorosamente recebido pelos
acadêmicos e público em geral da China como o “filósofo da democracia”. À época a dinastia
Manchu havia sido recentemente derrubada (1911) e uma república caótica com funcionários
corruptos governava o país. Seu discurso não poderia ser diferente do que escrevia em seus livros:
pregava a reconstrução, não a revolução; o progresso não automático, mas como um processo
cumulativo, com avanços em pequenos passos. É interessante notar que, no entanto, tal teoria era
inapropriada às necessidades chinesas do momento; uma reforma precisaria estar isenta de
conflitos entre setores da sociedade, seus critérios necessariamente deveriam ser compartilhados
por eles, algo não observado na China em questão. Num ambiente de conflituosidade política à flor
da pele, incendiado por grupos políticos em oposições extremas, como latifundiários, imperialistas
estrangeiros e a grande maioria da população miserável, as idéias reformistas de Dewey, antes
atraentes aos chineses, revelaram suas fraquezas e saíram de cena. Para os chineses, a proposta de
Dewey consistia em fins democráticos radicais mas não meios consoantes com tais fins
(WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit., pp. 240-51).
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radical por meio de orientações socialistas democráticas. As pautas que
representariam esses ideais lidariam com as seguintes questões: desemprego,
idosos, gastos públicos, créditos para agricultura, garantias para as liberdades
civis, cooperativas para produtores e consumidores, controle democrático das
indústrias e distribuição de renda. Durante essa década, a atuação política de
Dewey esteve centrada no trabalho de duas organizações das quais foi presidente:
Liga para Ação Política Independente (League for Independent Political Action –
LIPA) e Lobby do Povo (People’s Lobby), ambos comprometidos com a criação
de um terceiro partido.
Ocorreu que a vitória arrasadora de Roosevelt nas eleições de 1936 foi um
grande obstáculo à continuidade do movimento por um terceiro partido. Apesar da
derrota, no entanto, a experiência acima descrita esclarece que Dewey, por meio
de seus atos e comprometido com os ideais que pregava, demonstrou como buscar
sua concretização através dos canais políticos que aqueles demandavam.
14
Por fim, vale acrescentar algumas palavras a respeito do tratamento
preferencial que Dewey concedia à educação. Não é equivocada a crítica a uma
visão ingênua do autor de que a educação seria capaz de transformar as relações
sociais e provocar uma reforma social capaz de implementar a forma de vida
democrática. No entanto, tal afirmação, dissociada de uma análise a respeito da
forma como, em momentos diferentes, a questão da educação foi perfilhada por
Dewey, se torna empobrecedora. Ou seja, a idéia de que “a educação irá provocar
a transformação social”, isenta de qualquer análise mais complexa das condições
que a envolvem, se prova uma leitura equivocada do autor.
É fato que, no final da década de 1890, o interesse de Dewey pela reforma
social, originalmente mais desfocado e passional, foi claramente direcionado à
reforma por meio da educação.
15
Em Laboratory School, Dewey procurava
conectar a vida escolar com o cotidiano social mais amplo, principalmente com o
recurso pedagógico das ocupações, conforme já mencionado no capítulo III deste
trabalho. Mas é preciso dizer que o currículo acabava por suavizar as ocupações
ao isolá-las das relações de produção capitalistas e inseri-las num contexto
cooperativista. Westbrook escreve que os alunos dessa escola com freqüência
14
Na verdade, Dewey acreditava que o termo “socialismo” deveria ser afastado e deveria ceder
lugar a outro, já que seria mais capaz de afugentar que de fato atrair eleitores (WESTBROOK.
Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit., pp. 441-52).
15
BERNSTEIN, Richard. John Dewey , ob. cit., p. 41.
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passavam por momentos de choque e conflito contra a sociedade, ao “acordar para
a vida real”: a educação de Dewey preparava seus alunos para um mundo que não
existia.
16
Nessa esteira, a crítica pode ser descrita da seguinte forma: tanto (1) as
novas idéias e hábitos a serem disseminados através da educação quanto (2) as
mudanças institucionais que os propiciariam, pressupunham uns aos outros.
Estamos, portanto, diante de um argumento circular, uma vez que a reforma social
requer e é requerida pela educação democrática.
Pois a educação inevitavelmente envolve instituições, assim como as idéias a
serem comunicadas; e a liberação dos alunos de um individualismo falso e de
uma falsa subserviência à autoridade precisa então esperar a liberação dos
professores. A dificuldade, é claro, é recorrente. Se os problemas que a sociedade
encara podem ser traçados até seu individualismo, como esses pensadores
acreditavam, e a reforma precisa ser processada por meio da educação, de que
forma os reformistas lidam com o fato desconfortável de que o sistema
educacional está imbuído com precisamente os valores que eles identificaram
como a fonte do problema? (...) Dewey lutou contra esse problema durante toda
sua carreira, mas nunca o solucionou.
17
Dewey estava familiarizado com a crítica em tela e a respondeu. Afirmou
que, ainda que não houvesse escapatória desse círculo vicioso, a saída seria
acelerar os esforços na direção afinada com a idéia de educação que defendia e
direcionar energias para os fatores que de forma significativa combateriam os
obstáculos. O autor defendia que há uma relação intrínseca entre escolha como
liberdade e poder de ação como liberdade: uma escolha que manifeste
inteligentemente a individualidade alarga o raio de possibilidades de ação; essa
ampliação, por sua vez, confere aos nossos desejos uma maior possibilidade de
visualização de possibilidades de sua manifestação e, conseqüentemente, torna a
escolha mais inteligente. No lugar do círculo, uma espiral cada vez mais
abrangente, dizia Dewey.
18
16
WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit., p. 110.
17
“For education inevitably involves institutions as well as the ideas to be communicated, and
unshackling students from a false individualism and a false subservience to authority must
therefore await the unshackling of their teachers. The difficulty, of course, is perennial. If the
problems facing society can be traces to its individualism, as these thinkers believed, and reform
must proceed by means of education, how can reformers get around the awkward fact that the
educational system is imbued with precisely the values they have iaolated as the source of the
problem? (…) Dewey wrestled with this problem throughout his career, but he never solved it.”
(KLOPPENBERG, James T. , ob. cit., pp. 377-8).
18
DEWEY, John. Philosophies of freedom, ob. cit., p. 203.
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100
Diante do descrito neste tópico do trabalho, chega-se à conclusão de que
são inconsistentes as críticas que acusam Dewey de ingenuidade ao atribuírem a
ele a idéia de que a educação seria capaz de implementar a democracia como
forma de vida, uma vez que deixaram de lado os escritos onde o autor considera
as agudas dificuldades interpostas nesse caminho por conta das relações de poder
da sociedade. Quando se referia ao modelo de educação por ele pensado, Dewey
tinha clareza que implementá-lo não seria de automático. No entanto, a aridez das
relações de poder que caracterizavam e caracterizam a sociedade não eram vistas
como intransponíveis ou irreversíveis por Dewey, como uma marca do já
trabalhado “melhorismo” perfilhado pelo autor.
19
Por certo a crítica acima é mais adequadamente enfrentada se observamos
a progressão do pensamento de Dewey ao longo de sua vida. Se, como já disse, no
final da década de 1890 o interesse de Dewey foi claramente direcionado à
reforma social por meio da educação, uma estimativa menos ingênua do papel da
educação na reconstrução social foi paulatinamente se fazendo presente nas obras
do pragmatista; de meio principal a educação passou a um dos meios que levariam
à reforma social.
Conforme Westbrook, às vésperas da I Guerra Mundial Dewey estava
consciente de que a reconstrução da democracia não ocorreria apenas como
conseqüência de uma revolução na sala de aula, mas sim que requereria,
sobretudo, a transformação da cultura da sociedade. Como conseqüência, os
apelos democráticos não mais se limitariam às escolas, mas teriam como alvos
todas as instituições que moldam, de alguma forma, práticas sociais e individuais.
Assim, a educação passa a adquirir um sentido mais amplo; de prática cujo foco
eram as crianças nas escolas a movimento social direcionado a cada cidadão em
prol da construção e efetivação de práticas democráticas. À essa época,
precisamente em 1914, Dewey acrescentou ao seu histórico de experiências
sociais visando reformas a criação da revista semanal “New Republic”, que pelas
19
Um exemplo de leitura superficial é o trecho a seguir: “Education reform does not involve
merely the welfare of students. It is all about gaining and loosing power, despite claims to the
contrary. There will always be winners and losers, and when we recognize that professional and
academic careers are at stake in the struggle over reform, we realize just how big the wins and
losses can be.” (EDMONDSON III, Henry T.,ob. cit., p. 109). No trecho, Edmondson procura
atacar a leitura deweyana dizendo que a escolha por um sistema de educação a ser implementado
em dada sociedade é resultado de um jogo de poder e que o autor não teria considerado esse fato.
Como já defendemos, Dewey claramente reconhece a prevalência de óticas de poder visando
excessivamente o lucro como definidoras dos rumos da sociedade.
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101
duas décadas seguintes serviria como o principal meio para divulgar tal tarefa
mais abrangente da educação.
20
Já em 1937, Dewey escreveu que:
É irrealista, na minha opinião, supor que as escolas podem ser um mecanismo
principal na produção das mudanças intelectuais e morais em atitudes e
disposição de pensamento e propósito que são necessárias para a criação de uma
nova ordem social. Qualquer visão desse tipo ignora a operação constante das
forças poderosas externas à escola que moldam a mente e o caráter. Ignora o fato
de que a escola é apenas um meio dentro de muitos e, na melhor hipótese, uma
força educacional reduzida.
21
À essa época, Dewey reconhecia que as escolas estavam atadas às
estruturas prevalecentes de poder e, por isso, transformá-las em meios de reforma
democrática seria algo extremamente difícil. Como conclui Westbrook:
Em resumo, os defeitos das escolas espelhavam e sustentavam os defeitos da
sociedade mais ampla e esses defeitos não poderiam ser remediados à parte da
luta pela democracia em toda aquela sociedade. Escolas tomariam parte na
mudança social democrática somente se se aliassem a este ou àquele movimento
existente de forças sociais. Não poderiam ser vistas, como em outro momento
Dewey se inclinava a vê-las, como o veículo para ultrapassar a política.
22
Dessa forma, observamos que, em sua fase intelectualmente mais madura,
Dewey reconheceu que falar sobre educação requeria a discussão acerca de como
interferir nas relações de poder já estabelecidas na sociedade.
A fim de analisarmos as críticas trazidas até agora neste item do trabalho,
é preciso que nos depararemos com o significado do termo “poder”. É fato que
Dewey, de forma mais marcante, em alguns momentos, e de forma mais velada,
em seus escritos (não em sua prática e ativismo sociais) se voltou de forma
insuficiente para o fato de que as relações de poder, envolvendo capital
econômico e inserção na política no sentido estrito da palavra, detêm mecanismos
para fazerem valer suas estratégias de superposição de interesses, de forma que
20
WESTBROOK. Robert B. John Dewey and american democracy, ob. cit., pp. 192-3.
21
“It is unrealistic, in my opinion, to suppose that the schools can be a main agency in producing
the intellectual and moral changes in attitudes and disposition of thought and purpose, which are
necessary for the creation of a new social order. Any such view ignores the constant operation of
powerful forces outside the school which shape mind and character. It ignores the fact that school
education is but one educational agency out of many, and at the best is in some respects a minor
educational force.” (DEWEY, John. Education and social change. In: SCHULTZ, F. (ed.).
Notable selections in education. Guilford: McGraw-Hill/Dushkin, 2001).
22
In short, the defects of schools mirrored and sustained the defects of the larger society and these
defects could not be remedied apart from a struggle for democracy throughout that larger society.
Schools would take part in the democratic social change only “as they ally themselves with this or
that movement of existing social forces”. They could not be viewed, as Dewey had once been
prone to see them, as the vehicle for an end run around politics (WESTBROOK. Robert B. John
Dewey and american democracy, ob. cit., p. 510).
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102
interesses gerais da sociedade não alcançassem concretização quando
contrariassem as vontades das grandes corporações ou de grupos políticos.
Ocorre que, dependendo da concepção de poder que tragamos ao debate,
tal crítica perde grande parte de seu valor. Se, com Cornelius Castoriadis:
(...) definirmos como poder a capacidade, para qualquer instância que seja
(pessoal ou impessoal), de levar alguém (ou vários) a fazer (ou a não fazer) o que,
entregue a si mesmo, ele não faria necessariamente (ou faria talvez), é imediato
que o maior poder concebível é o de pré-formar alguém, de tal modo que por si
mesmo ele faça o que queríamos que fizesse, sem nenhuma necessidade de
dominação (Herrschaft) ou de poder explícito para levá-lo a... Da mesma forma é
imediato que isso cria, para o sujeito submetido a essa formação, ao mesmo
tempo corpo social, a aparência da mais completa “espontaneidade” e a realidade
da mais total heteronomia possível. Relativamente a esse poder absoluto, todo
poder explícito e toda dominação são deficientes e dão testemunho de um
fracasso irremediável.
23
As considerações acima nos remetem à concepção de “hábito” de Dewey,
uma vez que essa categoria permite que pensemos de que forma os padrões
individuais são moldados e estimulados de forma inconsciente nos cidadãos; e
revela o poder que transparece por trás disso, ou seja, a possibilidade de se
persistir incentivando que os cidadãos reproduzam determinadas práticas sociais e
também o poder de se repreender a presença de determinadas formas de vida.
Com isso, quer-se dizer que, se por um lado Dewey desmereceu a figura
do poder explícito, ao mesmo tempo privilegiou em seus escritos a preocupação
em se inserir e se utilizar da lógica desse outro poder, o absoluto; a obra de
Dewey é profundamente marcada pelo desejo de identificar como a lógica desse
“poder absoluto” pode ser dirigida de forma a provocar a reforma social.
Ocorre, no entanto, que esses dois tipos de poder possuem fronteiras em
comum e, falar sobre um deles quando se desmerece o outro acaba por se tornar
uma análise insuficiente de qualquer questão. Dessa forma, a crítica de que
Dewey não considerou adequadamente as relações de poder em seus escritos se
transforma na seguinte: Dewey não considerou, na maioria de suas obras, as
fronteiras em que esses dois tipos de poder se aproximam e que precisam ser
levadas em consideração caso se almeje a reforma social.
Por fim, pode-se dizer que as críticas dirigidas a Dewey, nesta seção, que
alegam a incapacidade do autor em apresentar pautas concretas que indicassem a
23
CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto: O mundo fragmentado. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992, vol. III, pp. 126-7.
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103
implementação de sua teoria democrática,o são adequadas; tais críticas se
inserem num quadro em que a democracia como ideal, por um lado, e a sua
prática social, por outro, são coisas isoladas, dissociadas.
Se, a partir de uma outra perspectiva, a democracia adquire corpo em
seus próprios processos de institucionalização, progressivamente, eis que se
apresenta um novo critério de avaliação da prática democrática: em vez de (1) “o
autor foi ou não foi capaz de apresentar caminhos concretos que indicassem a
implementação da democracia?”, temos (2) “o autor caminhou mais ou caminhou
menos no diálogo teoria-prática democráticas?”. É importante lembrar que tal
diálogo é não-linear, posto que a idéia que, em dado momento, é um fim-em-vista,
está em contato permanente com a receptividade e as conseqüências
encontradas/geradas por ela; que, por sua vez, sugerirão outros fins-em-vista, que
por sua vez encontrarão outros cenários e contextos, que por sua vez responderão
e sugerirão outras qualidades de respostas, num processo cujo fim está
permanentemente em construção. Por este motivo fez-se importante a incursão
biográfica em Dewey, para que percebêssemos que a teoria encontra seus limites
em dados momentos e, caso queira permanecer progredindo, requer seu teste em
práticas que a confirmem e/ou sugiram aperfeiçoamentos.
5.2
Problemas no instrumentalismo de Dewey
Os escritos de Dewey são marcados pelo ímpeto de valorizar na
observação da realidade a identificação de fatos, práticas, valores, sentimentos e
opiniões como ferramentas capazes de serem rearranjadas e empregadas na
direção de determinados fins, através de um exercício imaginativo. Esse
instrumentalismo, no entanto, pode acabar por sugerir uma operacionalização
fictícia da realidade, ou seja, está imbuído do risco de que a complexidade das
relações da vida seja reduzida de forma que as contingências e situações
inesperadas advindas da pluralidade de conexões entre as pessoas ceda lugar a um
plano simplificado.
Quando tem analisada a sua potencialidade de transformação do mundo,
analisar a experiência traz à tona a discussão sobre o método científico. Para
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104
compreendermos a crítica apresentada no parágrafo anterior, nos voltaremos a
partir de agora à forma como Dewey trabalha a idéia de método científico.
24
Segundo o autor, a experiência, quando vista como intercurso entre o ser e
o meio, passa a ser marcada pela habilidade de criar tecnologias e técnicas, ou
artes, para que se obtenha vantagem de condições e energias, sejam elas físicas ou
humanas. A ciência em Dewey é a arte pela qual a experiência pode dirigir seu
próprio curso. Nesse contexto, a tecnologia, correlata prática das teorias científica,
adquire o significado de técnicas inteligentes para se direcionar e utilizar as
energias do ser humano e da natureza com o fim de se satisfazerem as
necessidades humanas, algo mais que modelos mecânicos.
25
Enquanto a ciência dos séculos XVII e XVIII impactava em relação às
novas teorias que produzia, por volta de segunda metade do século XIX a ciência
havia se tornado mais sedutora através de seu braço prático, a tecnologia, que
trouxe mudanças revolucionárias ao dia-a-dia das pessoas. A ciência se tornou não
apenas prática, mas um empreendimento econômico com potencialidades dignas
de encantar até mesmo filósofos como Dewey.
26
Em relação à forma como John Dewey observava a ciência, é
especialmente importante que se analise o autor em seu contexto. Conforme já
adiantado no capítulo 1 deste trabalho, o pragmatista viveu em uma época em que
avanços tecnológicos influenciaram e modificaram de forma bastante expressiva
os modos de vida das pessoas. Assim, depositava-se uma grande esperança na
idéia de que a ciência aplicada ao avanço tecnológico não só com propósitos
lucrativos, mas também, e, principalmente, atenta às demandas sociais, traria
resultados surpreendentemente positivos para as relações sociais.
Dewey alega que o papel da ciência na experiência pode ser visto de duas
formas. Primeiramente, ela é a melhoria dos meios de ação, como as invenções do
telefone, dos automóveis e dos aviões, o que estaria associado ao que se costuma
chamar de progresso. No entanto, reduzir a ciência a isso seria não aproveitar todo
seu potencial. Já a segunda forma de se observar o papel da ciência na experiência
transcenderia os progressos puramente técnicos, sendo o enriquecimento dos
24
Considerando a recorrência com que Dewey trata do assunto método científico e o alto valor que
concede ao tema ao longo de toda sua obra, considerou-se importante, a fim de manter a fidelidade
às idéias do autor, que sua visão acerca do tema fosse abordada neste item desta dissertação.
25
DEWEY, John. What I believe. In: CAPPS, Donald e CAPPS, John M. (ed.) , ob. cit., pp. 216-8.
26
BRANDOM, Robert B , ob. cit., p. 3, 2004.
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105
objetivos anteriores e a influência na formação de novos objetivos de vida através
da modificação da habitual capacidade de imaginação e sentimento.
27
Quando a
ciência é vista também a partir desta segunda forma, ela deixa de ser
simplesmente um “catálogo dos fatos particulares descobertos sobre o mundo” e
se torna uma atitude em relação a este.
28
E é em relação a essa segunda forma de
se pensar a ciência que Dewey procura se debruçar, o que nos permite dizer que
seu real interesse é em relação ao método científico, mais que à ciência de uma
forma geral. São muitas as vezes em que o autor utiliza o termo “ciência” como
sinônimo de “método científico”.
Para o autor, a ciência representa a possibilidade de se empreenderem
esforços humanos na resolução de problemas que aflijam a vida, de se trazer a
melhoria prática e gradual da condição comum da humanidade.
29
Ao falar sobre
ciência, Dewey freqüentemente a associa ao adjetivo “experimental”. Com isso, o
autor sinaliza que a ciência deveria ser utilizada de forma a libertar a experiência
dos modelos estabelecidos no passado e, através da imaginação, criar novas
formas de se lidar com os problemas humanos por meio da tecnologia. A
inteligência é o instrumento de progresso consciente, quando este se opõe ao
acidental. Nas palavras do autor: “Em suma: a ciência representa o papel da
inteligência no planejar e regular novas experiências desenvolvidas sistemática e
intencionalmente e na escala permitida pela emancipação das limitações do
hábito”.
30
Dewey acreditava que o método utilizado nas ciências naturais deveria ser
exportado para as ciências sociais. Ao dizer isso, se referia à lógica utilizada nas
ciências naturais de experimentação, como a feita nos laboratórios, e que se
resumia aos seguintes aspectos: 1) que os conceitos, princípios gerais e teorias
indispensáveis a qualquer conhecimento sistemático fossem moldados e testados
como ferramentas de pesquisa; e 2) que as políticas e propostas de ação social
fossem tratadas como hipóteses de trabalho, cujas aplicações tivessem suas
conseqüências sujeitas a constantes observações e, quando fosse o caso,
27
DEWEY, John. Democracia e educação, ob. cit., pp. 245-6.
28
Ibid., p. 358.
29
“Subjugar as modéstias assoladoras não é mais um sonho; e não é mais utópica a esperança de
suprimir a pobreza.” (Ibid., p. 247).
30
DEWEY, John. Democracia e educação, ob. cit., p. 250.
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106
flexivelmente abertas a revisões, se opondo a programas a serem rigidamente
executados.
31
Acrescento à discussão algumas idéias de Richard Rorty. Para ele, dois
aspectos separam os neopragmatistas dos pragmatistas clássicos. O primeiro deles
é o fato de valorizarem mais a linguagem e falarem menos sobre experiência. O
segundo é abrirem mão da crença de que há algo chamado “método científico”
cujo emprego aumenta as possiibilidades de que algo seja verdadeiro. Para o
propósito deste ponto, abordaremos a crítica de Rorty que se volta para o segundo
aspecto.
Rorty descreve que, a partir da pergunta da filosofia moderna “por que a
ciência obteve tanto sucesso?”, uma das respostas obtidas foi a de que a ciência
descobriu a linguagem que a natureza usa e a estruturou no método científico. O
autor, diante desse quadro, defende que se deixe de lado essa resposta e que se
abra mão da noção de ciência em direção a um fim chamado correspondência com
a realidade. Em seu lugar, sugere a idéia de que simplesmente possamos dizer que
um vocabulário funciona melhor que outro para determinado propósito. Assim,
não mais quereremos perguntar “que método os cientistas usam?”, mas diremos
que os cientistas usam os mesmos métodos que todos usamos nas atividades
humanas, como testar hipóteses em busca de padrões, testar vários palpites na
esperança de acontecer algo que dê conta dos casos à princípio sem sentido. Nessa
perspectiva, podemos dizer que os grandes feitos científicos são de fato não uma
questão de decidir entre várias hipóteses, mas de descobrir o jargão certo para
apresentá-las.
Assim, à procura de generalizações universais para se prever a natureza,
foram relacionadas as noções de método, racionalidade e ciência. Com isso,
método não mais era apenas ordenar os pensamentos, mas filtrá-los para se extrair
as noções “subjetivas”, “confusas” ou “não-cognitivas”, de modo que restassem
somente aquelas que “seriam” da natureza. Atribuiu-se ao vocabulário científico
um tipo de mestria que o teria tornado capaz de explicar a utilidade de todas as
coisas, até de si mesmo. Criticando essa idéia, Rorty diz que, se o método
científico tem um sentido racional, este é obedecer às convenções normais da
31
DEWEY, John. The public and its problems. Ohio: Swallow e Ohio University, 1954, pp. 202-3.
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107
disciplina, estar aberto à refutação pela experiência, não bloquear o caminho da
investigação.
Nesse sentido, “método” e “racionalidade” são nomes para um equilíbrio
adequado entre respeito às opiniões dos próprios companheiros e respeito à
teimosia da sensação. Mas a filosofia centrada epistemologicamente queria
noções de “método” e “racionalidade” que significassem mais que bons modos
epistemológicos, noções que descrevessem a forma em que a mente seria
naturalmente apropriada para aprender a Linguagem Própria da Natureza.
32
Observamos, é fato, uma grande esperança nos escritos de Dewey em
relação aos avanços que o método científico poderia trazer caso aplicado às
ciências sociais. Por outro lado, consoante Rorty escreve, hoje é difícil resgatar
seriamente os argumentos fundacionistas requeridos para que se defenda tal
concepção de método. Diante disso, Rorty defende que o encantamento de Dewey
em relação ao método científico, se compreendidas as imposições culturais do
tempo em que produziu suas obras, pode se despir da carga de estratégia
epistemológica e se transformar em um elogio a certas qualidades morais, como
as de uma sociedade aberta e receptiva a debates.
33
Richard Bernstein segue na mesma linha. Argumenta que Dewey, ao
utilizar o termo “método científico”, não está se referindo a um conjunto formal
de procedimentos ou regras para justificar hipóteses e teorias científicas, mas sim
concedia a essa noção o sentido de práticas interconectadas, um senso de prática.
Dewey se referia à abertura e a cooperação da investigação científica, à
imaginação requerida para seu sucesso, à vontade de submeter hipóteses ao teste e
à crítica públicos ao falar em método científico, ao meio para se chegar a algum
resultado.
34
John Shook também contribui ao debate no mesmo sentido. Segundo o
autor, o pragmatismo descarta a idéia de teorias científicas serem modelos por
consistirem em representações de alguma realidade última. Nessa linha, o autor
identifica dois significados para o emprego da palavra “modelo”: (1) estrutura que
32
“In this sense, ‘method’ and ‘rationality’ are names for a suitable balance between respect for
the opinions of one’s fellows and respect for the stubbornness of sensation. But epistemologically-
centered philosophy has wanted notions of ‘method’ and ‘rationality’ which signify more than
good epistemic manners, notions which describe the way in which the mind is naturally fitted to
learn Nature’s Own Language.” (Rorty, Richard. Method, social science and social hope. In:
Consequences of pragmatism. Minneapolis: University of Minnesota, 2003, p. 195).
33
RORTY, Richard. Truth without correspondence to reality. In: Philosophy and social hope. , ob.
cit., p. 36.
34
BERNSTEIN, Richard. John Dewey on democracy: the task before us, ob. cit..
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pré-existe e que, portanto, pode ser copiada; (2) orientação para construção a
partir de um objetivo almejado. Dessa forma, enquanto o teste de um modelo no
primeiro sentido é a correspondência, o do modelo no segundo senso é a
produtividade, ou seja, a capacidade de guiar com eficiência a produção do
objetivo da teoria. Segundo Shook, ao se referir a “método científico”, Dewey se
aproxima do segundo sentido da palavra “modelo”.
35
Expressamente observamos
esse posicionamento de Dewey quando afirma:
O leigo toma certas conclusões que acabam por serem tomadas como ciência. Mas
o pesquisador científico sabe que elas constituem ciência apenas em conexão com
os métodos pelos quais são alcançadas. Mesmo quando verdadeiras, não são ciência
em virtude de serem corretas, mas por conta do aparato que é empregado para que
sejam alcançadas.
36
E se em alguns momentos o autor parece compartilhar da crença iluminista
de que o avanço da ciência produzirá indubitavelmente instituições livres ao
superar superstições e ignorâncias, ele mesmo faz questão de firmar sua posição
de crítico a essa idéia. Dewey afirma que essa crença iluminista se baseava na
idéia de que a ciência seria neutra em relação aos fins e valores que moveriam o
homem à ação, conduzindo a humanidade a uma era infinita de perfectibilidade.
Por outro lado, o estadunidense diz que o desejo e o conhecimento não jazem em
compartimentos incomunicáveis, não há uma completa separação entre os fins
humanos e as crenças humanas. Assim, a ciência, como qualquer outra coisa, não
poderia servir a um fim válido por si e sem conexão com a cultura humana, com o
caminhar da humanidade e seus contínuos rearranjos de desejos e crenças.
37
Tendo isso em vista, ao falar em ciência Dewey diz que nos referimos a
uma atitude incorporada no hábito de empregar mais certos métodos de
observação, reflexão e teste que a outros métodos. Esses hábitos acabaram por
desenvolver uma moral científica específica, cujos elementos óbvios são:
habilidade de duvidar de uma crença e de fazê-lo até que a prova é obtida; vontade
de seguir na direção apontada pela evidência e deixar de lado uma conclusão que
seria pessoalmente preferível; habilidade de dar apoio a idéias que podem ser
35
SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.
207.
36
“The layman takes certain conclusions which get into circulation to be science. But the scientific
inquirer knows that they constitute science only in connection with the methods by which they are
reached. Even when true, they are not science in virtue of their correctness, but by reason of the
apparatus which is employed in reaching them.” (DEWEY, John. The public and its problems, ob.
cit., p. 163).
37
DEWEY, John. Freedom and culture, ob. cit., pp. 102-11.
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109
soluções e usá-las como hipóteses a serem testadas ao invés de dogmas a serem
estabelecidos; e o gosto por novos campos de pesquisa e pela busca por novos
problemas.
38
Se por um lado é verdade que Dewey definitivamente não pode ser
considerado um dos autores para quem o método científico traria um modelo
certificador da verdade absoluta, por outro é fato que, por muitas vezes em sua
obra, não é exagero afirmar que o autor acreditava que a utilização do método
científico no âmbito das ciências sociais resolveria grande parte dos problemas
sociais. Neste momento nos aproximamos de Rorty, para quem as críticas da
filosofia à cultura não são mais científicas, fundamentais ou profundas que as dos
líderes trabalhistas, críticos literários, homens de estado aposentados ou
escultores.
Damico explica o problema da supervalorização da concepção de método
cientifico no pensamento do pragmatista. Segundo ele, o incremento da
investigação, um maior conhecimento dos fatos e um conhecimento mais
aprofundado das situações para Dewey será capaz de resolver os conflitos sociais
atendendo aos interesses de todos, ou ao menos da maior parte das pessoas. Tal
noção, no entanto, reflete a crença na existência de uma forma específica de
resolução do conflito apoiada no método científico e, por outro lado, ignora que
grupos (ou classes) sociais diferentes podem possuir interesses divergentes de
forma que nenhuma saída será capaz de propiciar uma satisfação geral. A
resolução de conflitos sociais não se trata apenas, diz Damico, de optar por uma
dentre as duas alternativas a seguir: a solução científica x a solução não científica.
Nesses instantes em que Dewey toma quase como óbvio o fato de que, ao se
debruçar sobre um problema social, advirá uma idéia que será tomada como
solução e as pessoas a acatarão e procederão à sua implementação, revela-se o
padrão de Dewey de desviar a atenção dos antagonismos inerentes à diversidade
dos interesses sociais e os grupos que os representam e voltá-la para o método de
solução de conflitos a partir do instrumental da inteligência social.
A preocupação de Dewey com o método científico se torna, assim, uma
fraqueza em sua obra, ataca Damico. Enquanto para o cientista o poder é
simplesmente instrumento ou técnica para controlar a interação das forças naturais
38
Ibid., pp. 111-13.
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110
de modo a produzir o resultado desejado, os problemas políticos envolvem
antagonismos entre as pessoas que podem possuir interesses diferentes e, por isso,
tornam a empreitada de enfrentamento de problemas mais complexa e exigente de
esforços.
39
Ao se valer do método científico e instrumentalizar práticas sociais
para resolver problemas, Dewey não abarca parte valiosa da dinâmica social.
Afirmar que Dewey encara os conflitos sociais desmerecendo o enfrentamento
permanente e inconciliável entre os diversos setores da sociedade, representando
por sua vez desejos e rumos tão diferenciados, é uma crítica válida à teoria
política do autor.
5.3
Fundamentar a democracia vs. explicá-la para institucionalizá-la
Diante da empreitada de introduzir o pensamento de Richard Rorty neste
trabalho e, portanto, de apresentá-lo, é preciso dizer que o autor é alguém que não
gosta de rótulos. Inicialmente, é possível afirmar que ele se alia à tradição que
procura se livrar das influências dos dualismos metafísicos que a tradição
filosófica ocidental herdou dos gregos antigos, como aparência e realidade,
substância e forma. A reafirmada superação dos dualismos é seguida pela
tentativa de superar a necessidade teórica de se posicionar perfilhando um dos
dois lados e substituí-los pela imagem de um fluxo de relações em contínua
mudança. Neste ponto, como essas idéias indicam, Rorty se diz discípulo de
Dewey, o que é recorrentemente reafirmado em seus textos e na entrevista abaixo:
Pergunta: Como você define a diferença de perspectiva entre o pragmatismo
deweyano e o seu neopragmatismo?
RR: Eu não acho que haja nenhuma grande diferença em fundamentos. Eu presto
atenção à filosofia da linguagem, enquanto Dewey não o fez. É uma questão de
contexto intelectual; e eu fui criado pela filosofia analítica, particularmente a
filosofia da linguagem. Dentro da filosofia analítica, os temas de Dewey – ou,
ainda melhor, os ataques de Dewey aos dualismos tradicionais – foram
persuasivamente apresentados na forma de doutrinas da filosofia da linguagem,
particularmente por Quine e Davidson. Eu não acho que isso acrescente muito a
Dewey: é apenas adaptar o que Dewey disse para uma platéia diferente, para
pessoas com expectativas diferentes.
40
39
DAMICO, Alfonso, ob. cit., pp. 61-6 e 95.
40
“Q: How would you define the difference in perspective between Deweyan pragmatism and
your neopragmatism?
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111
Quando diz que “presta atenção à filosofia da linguagem” Rorty alude à
chamada “virada lingüística”, responsável pela desvalorização do papel da
experiência na filosofia neopragmatista ao mesmo tempo em que teve como
conseqüência uma maior presença do tema da linguagem em suas reflexões em
comparação com àquelas do pragmatismo clássico. De acordo com Rorty, por sua
vez amparado em outros críticos da epistemologia,
41
o pragmatismo sugere que
abandonemos a pressuposição filosófica de que as sentenças verdadeiras se
dividem em algo superior e algo inferior, ou seja, de que algumas sentenças
representam alguma idéia “verdadeira por si mesma” enquanto outras são
verdadeiras apenas por convenção. Assim, a linguagem não mais é uma terceira
coisa entre o sujeito e o objeto, ou um meio em que tentamos formar
representações da realidade, mas simplesmente uma parte do comportamento dos
seres humanos, apenas mais uma forma pela qual nos comunicamos.
42
Falar mais
sobre a linguagem e falar menos sobre a experiência é umas das características
que diferenciam Rorty de Dewey.
43
Tendo em vista essa breve introdução, procedamos à forma como
desenrolaremos esta seção: com o fito de apresentar idéias que acompanham, de
forma geral, os escritos de Rorty, recorreremos principalmente à sua obra
“Contingência, Ironia e Solidariedade”. Em seguida, procurando explorar o
tratamento do tema da democracia pelo autor e a forma como a discussão desta
dissertação baseada em John Dewey e a democracia pode se valer dele,
recorreremos principalmente ao artigo de Rorty entitulado “A Prioridade da
Democracia sobre a Filosofia”.
RR: I don’t think there is any great difference in fundamentals. I pay close attention to the
philosophy of language, while Dewey did not. It is a matter of intellectual context, and I was
brought up on analytic philosophy, particularly the philosophy of language. Within analytic
philosophy, Dewey’s themes – or, better yet, Dewey’s attacks on traditional dualisms – have been
persuasively presented in the form of doctrines in the philosophy of language, particularly by
Quine and Davidson. I don’t think this adds anything much to Dewey: it is just adapting what
Dewey said for a different audience, for people with different expectations.” (RORTY, Richard.
Take care of freedom and truth will take care of itself. Stanford: Stanford University, 2006, p. 35).
41
A obra de Rorty é marcada pelas influências dos seguintes autores, no âmbito da filosofia da
linguagem e da crítica à epistemologia: Wilfrid Sellars, Willard van Orman Quine, Thomas Kuhn,
Ludwig Wittgenstein e Donald Davidson.
42
RORTY, Richard. Consequences of pragmatism , ob. cit., pp. XIII a XXI.
43
A outra delas, como mencionado no item 4.2 deste trabalho, é abrir mão da idéia de que o
método científico é capaz de aumentar a probabilidade de uma crença ser verdadeira (RORTY,
Richard. Truth without correspondence to reality , ob. cit., p. 35).
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112
Segundo as idéias de Rorty, o “mundo não fala; só nós é que falamos”.
44
Com essa assertiva, o autor defende que o mundo não possui uma linguagem
universal a ser desvendada, são as pessoas que geram formas de se comunicarem.
A realidade é indiferente às descrições que se fazem dela.
45
De acordo com essas idéias, Rorty afirma que considerar que algum
estudioso é capaz de identificar os fundamentos da natureza humana é uma
concepção enganadora. Não há como assegurar que qualquer descrição do mundo,
mesmo as mais úteis, seja uma representação correta de como o mundo é. Caso a
idéia de que o ser humano faz a ciência, não a descobre, não houvesse sido
abrigada pela humanidade, ela estaria ainda hoje acorrentada ao pensamento do
primeiro estudioso que afirmou que poderia basear suas idéias em fundamentos
metafísicos.
46
Quando se analisam vocabulários ao invés de frases individuais, tais
questionamentos se tornam mais evidentes. Nas palavras de Rorty:
“Quando consideramos exemplos de jogos de linguagem alternativos – o
vocabulário da política ateniense antiga contra o de Jefferson, o vocabulário
moral de S. Paulo contra o de Freud, o jargão de Newton contra o de Aristóteles,
a linguagem de Blake contra a de Dryden – é difícil pensar que o mundo torna
um deles melhor do que o outro ou do que o mundo decide entre eles.”
47
Partindo desses pressupostos, diz-se que não é o mundo que decide falar
de outra forma, como quando a partir de Copérnico passou-se a dizer que a Terra
não era o centro do universo, mas sim as pessoas adquirem hábitos diferentes.
Rorty afirma que a tentação de afirmar que há uma essência na natureza humana
reflete a vontade de privilegiar a forma como determinado grupo habitualmente
descreve o mundo em detrimento das demais formas. Para ele:
44
Ibid.,, p. 26.
45
Rorty se apropria em seus escritos do “segundo Wittgenstein”, que rejeita a possibilidade da
construção de uma teoria unitária a respeito da linguagem. Segundo ele, não há qualquer
necessidade de se “descobrir a essência” por trás do discurso, de buscar algo de oculto que deve
ser trazido à luz quando o tema é a linguagem, já que o que está porventura oculto não nos
interessa. Nesse contexto, o autor afirma que a linguagem não é algo uniforme: ela é utilizada para
diversos propósitos, como descrever, relatar, informar, negar, fazer perguntas, contar histórias,
cantar, solucionar problemas, agradecer, cumprimentar, rezar, recordar etc. Todas essas diferentes
atividades, por apresentarem semelhanças e parentescos que se sobrepõem e se entrecruzam, são
chamadas de “jogos de linguagem”. Consoante o autor, há uma multiplicidade de instrumentos de
linguagem e formas de aplicação, de forma que o significado de uma palavra se torna seu uso na
linguagem. GRAYLING, A.C. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002, pp. 90-101).
46
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Presenca, 1992, p. 24.
47
Ibid., p. 26.
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113
“Dizer que o vocabulário de Freud diz a verdade acerca da natureza humana ou que
o vocabulário de Newton diz a verdade acerca dos céus não é uma explicação do
que quer que seja. É apenas um cumprimento vazio – elogio que tradicionalmente
dirigimos a escritores cujo jargão inovador consideramos útil.”.
48
Rorty diz que a expressão “natureza intrínseca da verdade”, hoje, gera
mais dificuldades que proveitos. Mas, ao mesmo tempo, seria incoerente que os
filósofos demonstrassem argumentos contra tal idéia, já que, dentro de um
vocabulário, não se pode provar que o mesmo é incoerente. A filosofia
interessante, segundo o autor, é a competição entre um vocabulário instaurado e a
proposta de um novo ainda meio formado. O surgimento de um novo jogo de
linguagem costuma vir acompanhado de frases como “tente pensar nisto desta
maneira” ou “tente ignorar as questões tradicionais, que se verifica serem fúteis,
substituindo-as pelas seguintes questões novas e possivelmente interessantes”.
49
A interação de vocabulários, que vem a gerar um novo vocabulário, não
deve ser observada como mais uma peça para o antigo quebra-cabeça dos
vocabulários humanos, mas sim como a geração de um novo instrumento que vem
a substituir os instrumentos velhos; significa o “contraste entre a tentativa de
representar ou exprimir algo que já existia e a tentativa de fazer algo que nunca
tinha sido imaginado antes”.
50
Daí se depreende a importância da metáfora, vista
como uma expressão que não encontra uso num vocabulário habitual. Assim,
quando, e se, uma metáfora é perfilhada por determinado vocabulário, ela deixa de
ser uma metáfora e torna-se literal. A partir daí, servirá de base para a criação de
novas metáforas. Sob esse prisma, a linguagem se torna algo que ganhou forma
como resultado de “um grande número de grandes contingências”
51
, e as
revoluções cientificas são vistas não como não como mais próximas do que
realmente é, mas sim como redescrições metafóricas. Para isso, Rorty recorre à
definição nietzschiana de verdade como “exército móvel de metáforas”. O literal e
o metafórico não se distinguem como dois tipos de interpretação, mas como usos
familiares e não familiares das palavras.
52
Não se pode dizer que a metáfora e um
significado literal têm significados distintos pois uma metáfora não possui
48
Ibid., p. 29.
49
Ibid., p. 30.
50
Ibid., p. 35.
51
Ibid., p. 39.
52
Ibid., p. 40.
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significado, ela está fora do jogo de linguagem com o qual se relaciona. Conforme
o autor:
Na perspectiva que sugiro, a tese de que uma doutrina filosófica ‘adequada’ deve
ter lugar para as nossas intuições é um slogan reacionário, que ilude a questão em
debate. É que para a minha perspectiva é essencial que não tenhamos uma
consciência pré-lingüística relativamente à qual a linguagem precise de ser
adequada, que não tenhamos um sentido profundo de como as coisas são, que
seja obrigação dos filósofos traduzir em linguagem. O que é descrito como sendo
uma tal consciência é apenas uma disposição para usar a linguagem dos nossos
ancestrais, para adorar os cadáveres de suas metáforas. A não ser que soframos
daquilo a que Derrida chama ‘nostalgia heideggeriana’, não pensaremos as nossas
‘intuições’ senão como trivialidades, como o uso habitual de um certo repertório
de termos, como antigas ferramentas que, por enquanto, não têm substituto.
53
Nessa perspectiva, e agora nos aproximamos da temática abordada neste
trabalho, o instrumento para a mudança cultural é o talento para falar de outra
maneira. Rorty propõe uma mudança contra a teoria e a favor da narrativa no
sentido de tornar desnecessários os argumentos que justifiquem a natureza
humana e, ao mesmo tempo, valorizar a forma como as relações entre as pessoas
são descritas. Esse exercício permitirá que se entre em contato com diferentes
visões acerca da realidade:
“Esse jogo é o produto da capacidade que partilham de apreciar o poder de
redescrever, o poder que a linguagem tem de tornar possíveis e importantes
coisas novas e diferentes – apreciação que se torna possível só quando o nosso
objetivo passa a ser um repertório crescente de descrições alternativas e não A
Única Descrição Certa. Tal mudança de objetivo só é possível na medida em que
tanto o mundo como o eu foram desdivinizados.”
54
Rorty, então, relaciona as idéias expostas até agora para a noção de
comunidade liberal. Para ele, é indispensável à idéia de uma sociedade liberal que
seja aceitável qualquer tipo de persuasão, desde que não se utilize da força para
tanto. Assim, a noção de fundamento filosófico é incoerente com a própria idéia
de sociedade liberal pois, segundo aquele, há uma ordem natural de assuntos e de
argumentos que por si são superiores aos demais naturalmente; argumentos que
sejam utilizados para contrariá-los são desconfirmados. Para o autor, uma
sociedade liberal é uma sociedade que se contenta em chamar ‘verdadeiro’ ao
resultado de encontros livres e abertos, seja qual for ele. Reconhecer a
contingência deveria ser a primeira virtude uma sociedade liberal.
53
Ibid., p. 45. Rorty afirma que, ainda que utilize a metáfora da “ferramenta”, ela não é a ideal
para a questão pois, enquanto o autor que cria a ferramenta de antemão já sabe a que ela irá servir,
a criação de um novo vocabulário só retrospectivamente terá sua utilidade explicada.
54
Ibid., p. 67.
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Rorty afirma que a utilização do vocabulário do racionalismo e do
iluminismo acabou por se tornar um impedimento para a preservação e o
progresso das sociedades democráticas, já que, para o autor, liberdade é o
reconhecimento das contingências; e distinções como absolutismo/relativismo,
racionalidade/irracionalidade e moralidade/experiência remetem à profunda
necessidade da metafísica. A idéia de fundamento serviu ao iluminismo pois a
sociedade à época esforçava-se por se livrar da necessidade religiosa de ter
projetos ditados por autoridades não-humanas e viu no caminho das ciências
naturais uma alternativa ao modelo anterior, mas não é mais adequada à sociedade
contemporânea.
55
A noção de moralidade somente permaneceria útil se a
observássemos não como um recurso ao incondicionado, não como a voz divina
dentro das pessoas, mas aos interesses privados e públicos, provavelmente em
conflito com os da sociedade. Para o autor, o termo “comportamento irracional” é
sinônimo de “comportamento que desaprovamos tão fortemente que viramos as
costas quando perguntados por quê o desaprovamos”.
56
Consoante Rorty:
“Isso significaria abandonar a idéia de que o liberalismo pode ser justificado e os
inimigos nazis ou marxistas do liberalismo refutados, levando estes últimos de
encontro a um muro argumentativo – forçando-os a admitir que a liberdade
liberal tem um ‘privilégio moral’ de que seus valores carecem. Do ponto de vista
que tenho vindo a defender, qualquer tentativa de empurrar o novo adversário
para um muro fracassa desta maneira quando o muro contra o qual ele é
empurrado passa a ser visto como mais um vocabulário, mais uma maneira de
descrever as coisas. O muro revela-se então como sendo uma cortina pintada,
mais uma obra do homem, mais um pedaço de encenação cultural.”
57
Numa sociedade liberal como a imaginada por Rorty, os cidadãos seriam
pessoas que reconheceriam a contingência em suas próprias vidas, seriam
“ironistas liberais”. O autor se utiliza da definição de Judith Shklar de liberais,
para quem seriam “as pessoas que pensam que a crueldade é a pior coisa que
podemos praticar.” Esta autora baseia sua argumentação na necessidade de
chamar a atenção para os sentimentos de medo, degradação e humilhação que
tornariam a política liberal impossível.
58
55
Ibid., pp. 80 e 81.
56
RORTY, Richard. On human rights. In: SHUTE, Stephen e HURLEY, Susan (ed.). On human
rights:The Oxford Amnesty Lectures. Nova Iorque: Basic Books, 1993, p. 127.
57
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, ob. cit., pp. 17 e 82.
58
RORTY, Richard. Ob. cit., p. 17; e BENHABIB, Seyla. Biographical memoirs. In: Proceedings
of the American Philosophical Society, vol. 148, n
o
4, dezembro de 2004, pp. 529 a 534.
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Já em relação à definição de ironista, temos que é:
“a pessoa que tem dúvidas sobre o seu próprio vocabulário final, a sua própria
identidade moral e talvez sobre a sua própria sanidade – necessita
desesperadamente de falar com outras pessoas, precisa disto com a mesma
urgência com que as pessoas precisam de fazer amor. Necessita de o fazer porque
só a conversa lhe possibilita lidar com essas dúvidas, manter-se coeso e manter a
sua teia de crenças e desejos suficientemente coerente para lhe permitir agir.”
59
Rorty define como “ironista” aquela pessoa que satisfaz a três critérios:
tem dúvidas sobre o vocabulário final que utiliza; percebe que a argumentação
realizada em seu próprio vocabulário não poderá dirimir suas dúvidas; e não pensa
que seu vocabulário está mais próximo da realidade do que os dos outros. A
transcrição abaixo trata da questão:
“Chamo a este tipo de pessoa de ironistas porque a sua percepção de qualquer
coisa pode ganhar um aspecto positivo ou negativo ao ser redescrita e a sua
renúncia à tentativa de formular critérios de escolha entre vocabulários finais as
colocam na posição a que Sartre chamou ‘meta-estável’: nunca muito capazes de
se levarem a sério por estarem sempre conscientes de que os termos em que se
descrevem a si próprias estão sujeitos a mudança, por estarem sempre conscientes
da contingência e da fragilidade dos seus vocabulários finais e, portanto, dos seus
eus.”
60
Para Rorty, os ironistas liberais são pessoas que partilham da esperança de
que o sofrimento humano e a humilhação causada a seres humanos por outros
seres humanos possa terminar; que combinam “compromisso e um sentido da
contingência de seu próprio compromisso”. Para eles, a tentativa de alcançar a
pureza e a autenticidade deve se restringir à vida privada, “a fim de evitar deslizar
para uma atitude política, que nos levará a pensar que há um objetivo social mais
importante que o de evitar a crueldade”, já que, consoante Rorty, o sentido que
cada um tem da obrigação para com os demais seres humanos se encontra em
esfera diferente daquela onde cada um lida com suas próprias formas de enxergar
a realidade.
61
Considerando as idéias até aqui expressadas, para o autor os
questionamentos sobre o próprio caráter ou cultura somente podem ser
enfrentados através de um alargamento do contato com outros vocabulários; o que
pode ser feito mais facilmente lendo poesias e romances ou de outra forma
entrando em contato com narrativas que contem histórias a partir de pontos de
59
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, ob. cit.,, p. 233.
60
Ibid., p. 104.
61
Ibid., pp. 91, 96 e 234.
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vista não imaginados por nós e que propiciem redescrições da vida. Essa prática
possibilitaria que os fundamentos a-históricos no qual a humanidade se apóia
fossem substituídos por outras formas de se explicar a realidade. A redescrição,
dessa forma, se torna ferramenta para o ironista.
62
“A ironista liberal pretende apenas que as nossas possibilidades de ser amável, de
evitar a humilhação dos outros, sejam aumentadas com a redescrição. Pensa que
o reconhecimento de uma susceptibilidade comum à humilhação é o único laço
social que é necessário. Enquanto o metafísico considera que a característica
moralmente relevante dos outros seres humanos é a sua relação com um poder
comum mais vasto – a racionalidade, Deus, a verdade ou a história, por exemplo
–, a ironista considera que a definição moralmente relevante de uma pessoa, de
um sujeito moral é ‘algo que pode ser humilhado’. O seu sentido da solidariedade
humana baseia-se num sentido de um perigo comum e não numa posse comum
ou num poder partilhado.”
63
Rorty sugere que a redescrição seja analisada sob dois pontos de vista.
Para fins privados, a forma de redescrição que cada um encontra é indiferente aos
demais. No entanto, quando se trata dos fins públicos, a parte do vocabulário final
de cada um que é relevante a tais fins interessa aos demais e, de forma condizente
com o regime liberal, propicia que cada um desenvolva uma capacidade cada vez
maior de sensibilidade em relação às diversas maneiras como os outros seres
humanos com os quais se relaciona podem ser humilhados. A solidariedade
humana não é questão de partilhar uma verdade comum, mas uma esperança
comum de que o mundo de cada um, “as pequenas coisas à volta das quais se
teceu o vocabulário final de cada um”, não será destruído. Importa ao ironista
liberal entrar em contato com vocabulários distintos dos seus para perceber o
sofrimento quando este se dá e evitar humilhar o outro (o ironista não observa a
sua capacidade de encarar a humilhação dos outros e seu desejo de evitá-la como
essencialmente humanos, mas como algo que surgiu numa fase da humanidade, de
tempo e espaço localizados, e que, dentro de algum tempo, dará espaço a outra
idéia).
64
Falando sobre solidariedade, a forma tradicional de se explicá-la é dizer
que há algo em cada um de nós de essencial que ressoa com a presença da mesma
coisa nos outros seres humanos. No entanto, para autores que, como Rorty, não
albergam a existência de um “eu essencial”, o recurso à explicação acima é
62
Ibid., p. 112.
63
Ibid., p. 124.
64
Ibid., pp. 125-6.
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incoerente. O que Rorty defende em sua obra é que uma crença ainda pode ser
válida, mesmo que se considere que ela não esteja para além da história. Ao
realizar a defesa da solidariedade, Rorty afirma que o sentido dela é mais forte
quando se pensa naqueles em relação aos quais consideramos “um de nós”, onde
esse nós é caracterizado como algo mais restrito e local que a raça humana como
um todo. Os sentimentos de solidariedade dependem das semelhanças e diferenças
percebidas com o outro a partir de um vocabulário historicamente contingente.
Rorty não tenta diminuir o poder do recurso à solidariedade, mas apenas
separá-la daquilo que se pensou serem seus pressupostos filosóficos. O autor
aponta para uma maior solidariedade humana; não pensada como o
reconhecimento de um eu central em todos os seres humanos, mas sim como a
capacidade de:
(...) ver cada vez mais diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes,
etc.) como não importantes, em comparação com semelhanças no que respeita à
dor e humilhação - a capacidade de pensar em pessoas muito diferentes de nós
como estando incluídas na esfera do ‘nós’.
65
Tal afirmação demonstra a importância das descrições pormenorizadas de
variedades particulares de dor e humilhação, caracterizadas pelo autor como os
principais contributos do intelectual moderno, tratadas, por exemplo, em
romances e obras literárias. Para se concretizar a utopia liberal, afirma Rorty, a
idéia de razão como faculdade fonte das obrigações morais pode, e deve, ser
dispensada, já que enquadra como indecente qualquer valor não abrangido pelo
sistema da moralidade local.
Nossas responsabilidades com os outros constituem apenas o lado público
das nossas vidas, em concorrência permanente com nossos desejos pessoais e em
relação aos quais não apresenta nenhuma prioridade automática. A solidariedade
precisa ser vista não como fato a-histórico ou encontrada, mas produzida no curso
da história. Ocorre que, em épocas de convulsão social como a da ascensão do
regime nacional-socialista, a explicação de que “aquilo que é decente é o que
determinado povo o caracteriza em determinado período histórico” torna-se frágil
e passa-se a urgir por algo que seja a-histórico e ultrapasse as instituições.
Para Rorty, a noção de que temos obrigações com o ser humano enquanto
tal deve ser observada como uma tentativa de ampliarmos ao máximo possível o
65
RORTY, Richard. Contingência ,ironia e solidariedade, ob. cit., p. 239.
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sentido de “nós”, processo que deveríamos nos esforçar em manter em
funcionamento. Segundo Rorty, deveríamos tentar notar as nossas semelhanças
com as pessoas que consideramos marginalizadas, que, de início, incluiríamos no
grupo de “eles”, não de “nós”.
66
Segundo o autor:
Na minha utopia, a solidariedade humana seria vista não como um fato que
haveria apenas que reconhecer uma vez removidos os ‘preconceitos’ ou
alcançadas profundezas até então ocultas, mas como um objetivo a atingir. Um
objetivo a atingir não pela investigação, mas pela imaginação, pela capacidade
imaginativa de ver em pessoas estranhas companheiros de sofrimento. A
solidariedade não é descoberta pela reflexão, mas sim criada. É criada com o
aumento da nossa sensibilidade aos pormenores específicos da dor e da
humilhação de outros tipos, não familiares, de pessoas. Uma sensibilidade assim
aumentada torna mais difícil marginalizar pessoas diferentes de nós por se pensar
que ‘eles não sentem da mesma maneira que nós sentiríamos’ ou que “terá
sempre de haver sofrimento, porque não havemos de os deixar a eles sofrer”?.
67
Considerando as idéias já expostas a respeito da contingência dos padrões
morais, Rorty diz que o que a humanidade possui como valores maiores e que
mais beneficiam aos seres humanos são as liberdades democráticas e a relativa
igualdade social. Associando tal idéia com a noção de restringir a ironia ao lado
privado, o autor afirma que, no lado público da vida, a respeito das citadas
liberdades democráticas não se pode ter dúvida. Por outro lado, no âmbito privado
da vida, podemos duvidar de muitas coisas, como a necessidade de levar a cabo
um projeto idiossincrático. A co-existência desses dois campos nos apresenta
dilemas, que não serão resolvidos por meio de uma resposta certa filosófica.
68
Quando o valor das instituições democráticas é posto em xeque não diante da
alternativa de um outro modelo a ser discutido mas diante de um fundamento
“básico”, o que se pode fazer é:
“pedir a esses homens que privatizem os seus projetos, as suas tentativas
de alcançar a sublimidade – vê-las como sendo irrelevantes para a política
(...) Tal pedido de privatização equivale ao pedido de resolverem um
dilema pendente subordinando a sublimidade ao desejo de evitar a
crueldade e a dor.”
69
Rorty defende que não há nada de “fundamental” que apóie esse pedido ao
dizer que só podemos partir de onde nós estamos, ou seja, não estamos sujeitos a
66
Ibid., pp. 241-2.
67
Ibid., pp. 18 e 19.
68
Ibid., p. 244.
69
Ibid., p. 245.
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120
obrigações morais que não sejam as intenções-nós
70
das comunidades com que
nos identificamos. Mais importante do que saber se se partilha do mesmo sentido
de vida humana é ter a capacidade de saber se o outro está sofrendo.
71
Estamos, portanto, diante de um questionamento: se pendemos para o lado
pragmático, e consideramos o discurso sobre “direitos humanos” uma tentativa de
desfrutar dos benefícios metafísicos sem assumir as responsabilidades
apropriadas, nós ainda necessitaremos de algo para distinguir o tipo de
consciência individual que nós respeitamos do tipo que nós condenamos como
“fanática”. Indagação respondida pelo próprio Rorty: “Esse algo só pode ser
alguma coisa relativamente local e etnocêntrica – a tradição de uma comunidade
particular, o consenso de uma cultura particular”, “o corpo de crenças que
determinam a referência à palavra nós” no grupo de indivíduos que se reconhecem
como herdeiros das mesmas tradições históricas e encarando os mesmos
problemas.
72
Para Rorty, apesar de necessitar de articulação filosófica, a democracia
dispensa o suporte filosófico.
73
Ao rejeitar a necessidade de se advogarem
70
“Intenções-nós”, originalmente ~we-intentions”, é um conceito que Rorty toma emprestado de
Willfrid Sellars. Para este, é um fato que as “pessoas constituem uma comunidade, um nós, em
virtude de pensarem umas nas outras como sendo cada uma um de nós, e por quererem o bem
comum não sob a espécie de benevolência, mas sim por o quererem enquanto um de nós, ou de um
ponto de vista moral”. (SELLARS, Wilfrid. Science and metaphysics: Variations on Kantian
Themes. Nova Iorque: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1968, p. 222). Segundo Rorty, “o que
interessa Sellars não é afirmar o facto de que ‘nós’ nos podemos referira um subconjunto da classe
dos seres humanos ou racionais (isto é, a nossa tribo), mas sim preservar a distinção obrigação-
benevolência dentro de uma estrutura naturalista (e materialista), uma estrutura que não faça
referência a um eu numênico, a desejos não condicionados historicamente, etc. (...) Para os meus
objectivos,presentes, o que é essencial é a idéia de Sellars de que a ‘validade categórica’ e a
‘obrigação moral’ podem ser identificadas com ‘ser objecto do exercício da razão [being willed]
como um de nós’, independentemente de questões sobre quem se dá o caso de nós sermos [who we
happen to be].” (RORTY, Richard. Contingência ,ironia e solidariedade, ob. cit., p. 242. Na
versão original em inglês do livro o trecho está na p. 195.)
71
RORTY, Richard. Contingência ,ironia e solidariedade, ob. cit., p. 245.
72
RORTY, Richard. A prioridade da democracia para a filosofia. In: Objetivismo, relativismo e
verdade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997, p. 237.
73
Nessa linha, algumas discussões a respeito da democracia se tornam dispensáveis. Um exemplo
disso é o debate que Hilary Putnam conduz com o objetivo de provar que é possível encontrar nos
escritos de Dewey uma justificativa epistemológica para a democracia. Segundo Putnam, “A
democracia não é apenas uma forma de vida social no meio de outras formas de vida social
implementáveis [workable]; é uma pré-condição para a plena aplicação da inteligência à solução
dos problemas sociais.” De acordo com a posição apresentada por Dewey e por Rorty, discutir se
há ou não há uma justificativa epistemológica para a democracia é algo desnecessário ao
desenvolvimento da democracia.
O argumento de Putnam é desenvolvido em “Dewey’s logic: Epistemology as hypothesis” (In:
Words and life. Cambridge: Harvard University, 1996, pp. 198-220) e “A reconsideration of
deweyan democracy” (In: Renewing philosophy. Cambridge: Harvard University, 1992, pp. 180-
200).
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fundamentos absolutos para crenças políticas, Rorty diz que uma sociedade que
subscreva a esse pensamento encarará o equilíbrio reflexivo
74
como o único
método necessário para discussão de política social e reunirá os princípios e
instituições para se chegar a ele.
75
Uma concepção de justiça se justifica não
pelos seus fundamentos, mas por sua congruência com o pensamento mais
profundo de nós mesmos e nossas aspirações e a sintonia com a história e as
tradições da vida pública da sociedade.
Essa afirmação evidencia dois pontos de vista: 1) o ponto de partida pode
ser algo simplesmente histórico; 2) o ser humano tem um centro, a razão ou uma
centelha divina, que será penetrado pela argumentação, havendo tempo e
paciência para isso. Rorty defende a primeira e afirma que temos dificuldade em
aceitá-la, uma vez que a tradição filosófica foi bem sucedida em impregnar a idéia
de que qualquer um que esteja disposto a ouvir argumentos chegará às cercanias
da verdade.
76
Assim, em determinadas questões o nível de acordo entre as pessoas que
compartilham um círculo social é tamanho que posicionar-se de forma contrária a
elas não é uma questão de preferência, mas de loucura; e essa caracterização se
insere no contexto social e temporal da sociedade em questão, não representa a
natureza intrínseca da moralidade. Por esse ponto de vista, é aceitável que os
indivíduos discordem em relação a gostos culinários e musicais, mas é absurdo
que “prefiram” a democracia (ou seja, é absurdo que, ao invés de naturalmente
(“Democracy is not just one form of social life among other workable forms of social life; it is the
precondition for the full application of intelligence to the solution if social problems.” (PUTNAM,
Hilary. A reconsideration of deweyan democracy, ob. cit., p. 180).
74
“Equilíbrio reflexivo” ou “equilíbrio ponderado” é um conceito do qual Rorty se apropria a
partir da filosofia de John Rawls e que merece algumas considerações. Quando Rawls, em sua
teoria da justiça, procura definir quais princípios seriam racionalmente adotados dada a situação
contratual, associam-se as idéias de justiça e teoria da escolha racional, em cujo âmbito se insere a
noção de equilíbrio reflexivo. Nas palavras do autor, “às vezes alterando as condições das
circunstâncias em que se deve obter o acordo original, outras vezes modificando nossos juízos e
conformando-o com os novos princípios, suponho que acabaremos encontrando a configuração da
situação ideal que ao mesmo tempo expresse pressuposições razoáveis e produza princípios que
combinem com nossas convicções devidamente apuradas e ajustadas. A esse estado de coisas eu
me refiro como equilíbrio ponderado. Trata-se de um equilíbrio porque finalmente nossos
princípios e opiniões coincidem; e é reflexivo porque sabemos com quais princípios nossos
julgamentos se conformam e conhecemos as premissas das quais derivam. Nesse momento tudo
está em ordem. Mas este equilíbrio não é necessariamente estável. Está sujeito a ser perturbado por
outro exame das condições que se pode impor à situação contratual e por casos particulares que
podem nos levar a revisar nossos julgamentos. Mas por enquanto fizemos o possível para tornar
coerentes e justificar nossas convicções sobre justiça social.” (RAWLS, John. Uma teoria da
justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 19-23).
75
RORTY, Richard. A prioridade da democracia para a filosofia , ob. cit., p. 243.
76
Ibid., p. 246.
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levarem adiante suas vidas hoje em dia crendo que um contexto democrático é
algo natural no sentido de não se conseguir nem mesmo pensar em como
questionar essa idéia, constantemente ponham em xeque o modo de vida
democrático e se perguntem se alternativas existentes a ele seriam mais
vantajosas).
77
Nessa linha, Rorty defende que, quando a democracia e a filosofia estão
em conflito, a primeira tem precedência sobre a segunda. Não é necessário, por
exemplo, que se forje o indivíduo e em seguida se diga de qual política esse
indivíduo necessita; Rorty sugere que se deixe de lado a primeira tarefa e se foque
na segunda.
Em resumo, a postura antiessencialista e antifundacionista de Rorty,
quando alcança o campo político, indica que, quando duas comunidades possuem
crenças conflitantes, não há como resolver a disputa através do apelo a algo
neutro, isento de contexto, situado à parte de qualquer jogo de linguagem. Isso
não significa que seja impossível dizer que uma crença é melhor que outra, mas
apenas que não é útil afirmar que esse julgamento se baseia em algo
transcendental. No quadro em que se admite que uma crença que consideramos
bem justificada pode vir a se tornar não mais justificada em uma ocasião futura,
para a mesma ou outra comunidade, a verdade independente de contexto cede
lugar à justificação dependente do contexto.
78
Uma vez realizada essa exposição breve do pensamento de Rorty no
campo que interessa a este trabalho, identificaremos os pontos em que tais idéias
auxiliam na tarefa de analisar criticamente o tema desta dissertação - a democracia
no pensamento de John Dewey.
Num dos raros momentos de crítica a Dewey, Rorty protesta contra o
hábito daquele de “anunciar um audacioso e novo programa positivo quando tudo
que ele oferece, e tudo que precisa oferecer, é uma crítica à tradição.”
79
Por outro
lado, defendo aqui que 1) Dewey de fato ofereceu uma nova e audaciosa forma de
enfrentar os problemas sociais; e 2) o mesmo autor achava que, muito mais do que
77
Ibid., pp. 244-5.
78
WESTBROOK. Robert B. Democratic Hope: pragmatism and the politics of truth , ob. cit., pp.
139-74.
79
“ (…) announcing a bold new positive program when all lhe offers, and al lhe needs to offer, is
criticism of the tradition” (Rorty, Richard. Dewey’s metaphysics.In: Consequences of pragmatism,
ob. cit., p. 74).
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a crítica à teoria filosófica tradicional, era necessário se dedicar à imaginação e
implementação desse programa.
Dewey insistia em que nada – nem a Vontade de Deus, nem a Natureza
Intrínseca da Realidade, nem a Lei Moral – pode ter precedência sobre o resultado
de um acordo livremente alcançado pelos membros de uma comunidade
democrática. Como lembra Rorty, Dewey pretende preservar instituições e
práticas de democracias existentes abandonando seu suporte a-histórico e
intrínseco.
80
Diante desse quadro, Festenstein afirma que entre Dewey e Rorty há uma
clara oposição na questão de qual discurso é mais adequado à defesa e promoção
da democracia.
81
Rorty responde que não observa uma oposição, mas apenas o
reflexo de uma diferença de ambiência intelectual e/ou de ferramentas disponíveis
à utilização. O autor escreve que não acha importante escrever sobre a natureza da
liberdade ou do individualismo, ou sobre a estrutura do self moderno, aludindo a
categorias trabalhadas por Dewey, mas acredita que a ausência do tratamento
dessas questões em seu pensamento significa mais a diferença de ambiente
intelectual e menos uma antítese.
82
Rorty é um autor polêmico. Segundo ele, suas críticas a Dewey são
restritas a pontos específicos do pensamento do último e não comprometem os
argumentos principais do pragmatista clássico. Muitas idéias de Rorty são
criticadas por diversos autores e é interessante destacar, neste trabalho, que um
dos principais pontos desse conflito é a apropriação que Rorty teria feito das
idéias de Dewey.
83
80
RORTY, Richard. Liberalismo burguês pós-moderno.. In: Objetivismo, relativismo e verdade ,
ob. cit., p. 264.
81
FESTENSTEIN, Matthew. Pragmatism, social democracy and political argument. In:
FESTENSTEIN, Matthew e THOMPSON, Simon. Rorty: critical dialogues , ob. cit., pp. 203-18.
82
RORTY, Richard. Response to Matthew Festenstein. In: FESTENSTEIN, Matthew e
THOMPSON, Simon. Rorty: critical dialogues. Malden e Oxford: Blackwell, 2001, p. 219.
83
Essa situação combativa é de tal forma presente no debate contemporâneo de forma que o
mesmo não apenas é marcado pelo ambiente de reincidentes críticas ao autor, mas também a
própria ambiência de crítica costuma ser mencionada, como por Westbrook: “Historiadores
estadunidenses de inclinação pragmatista têm estado entre os críticos de Rorty mais severos.
Tendo trabalho duro para compreender o que Dewey tinha a dizer, nós energicamente objetamos
quando Rorty tenta fazê-lo dizer coisas que ele não disse e que não conseguimos imaginá-lo
dizendo. Então, nos últimos anos historiadores como James Kloppenberg e eu temos participado
com Rorty em conferências onde nosso papel é dizer a ele, com freqüência repetidamente, “Nossa,
o argumento que você diz que você e Dewey fazem é bastante provocativo, mas Dewey nunca o
fez e eu acredito que ele nunca o faria porque está em conflito com argumentos que ele de fato
fez”. Rorty, então, levanta os ombros e reconhece que o Dewey de quem ele está falando é um de
seus “amigos imaginários”, um “Dewey hipotético” que diz o tipo de coisas que Dewey teria dito
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No campo político, Rorty se enquadra nessa crítica especialmente quando
se declara, como poucos pragmatistas, que não observa uma forte conexão entre o
pragmatismo e a democracia e se apropria de Dewey para defender seu
argumento: “Em particular, não há razão pela qual um fascista não poderia ser um
pragmatista, no sentido de concordar com praticamente tudo que Dewey disse
sobre a natureza da verdade, conhecimento, racionalidade e moralidade.”
84
É verdade que não é fácil especificar o tipo de relação que Dewey
estabeleceu entre o pragmatismo e a democracia, mas é fato que os aproximou
bastante. Aliando o pragmatismo à crítica de fundacionismos, Dewey escreveu
que a transposição dessa idéia para a política redundaria na democracia, onde os
cidadãos podem livremente se manifestar e o liberalismo é uma forma de
liberação de capacidades, como já visto no capítulo anterior deste trabalho. Dessa
forma, de fato parece inquietador afirmar que o fascismo – notadamente
reconhecido por limitar muito mais do que a imensa maioria das pessoas acharia
conveniente o rol de experiências capazes de serem divulgadas e incentivadas na e
pela sociedade – poderia caminhar junto ao pragmatismo como trabalhado por
Dewey.
A leitura das obras de Dewey deixa claro que não há como pensar a
sociedade ocidental, e mais especificamente a estadunidense, do início do século
XX, num contexto ausente de um esforço pela gradual institucionalização da
democracia, de um esforço por um futuro melhor (algo a que Rorty subscreve); e
que isso requer a presença no debate de alguns temas dos quais Rorty procura
abrir mão, como os já citados surgimento do liberalismo e uma análise do self
moderno.
se tivesse feito a “virada lingüística” e para de dizer as coisas que ele de fato disse porque não fez
a tal virada.” (“American intellectual historians of a pragmatist bent have been among Rorty’s
severest critics. Having labored hard to figure out what Dewey had to say, we strenuously object
when Rorty tries to get him to say things he did not say and that we cannot imagine him saying.
Thus, over the last several years historians such as James Kloppenberg and I have found ourselves
participating with Rorty in conferences in which our role is to say to him, often repeatedly, ‘Gee,
that argument that you say that you and Dewey make is very provocative, but Dewey never made
it and I do not believe he ever would make it since it is at odds with arguments he did make’.
Rorty then shrugs his shoulders and acknowledges genially that the Dewey he is talking about is
one of his ‘imaginary playmates’, a ‘hypothetical Dewey’ who says the sort of things Dewey
would have said had he made the ‘linguistic turn’ and stops saying the things he in fact did say
because he had not made that turn.” (WESTBROOK. Robert B. Democratic Hope: pragmatism
and the politics of truth , ob. cit., pp. 175-6).
84
“In particular, there is no reason why a fascist could not be a pragmatist, in the sense of agreeing
with pretty much everything Dewey said about the nature of truth, knowledge, rationality and
morality.” (RORTY, Richard. Truth without correspondence to reality , ob. cit., p. 23).
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125
Em relação aos escritos de Dewey a respeito da concepção de self (alguns
apresentados neste trabalho, como os que tocam na noção de hábito), Rorty
escreve que o fato de Dewey ter se debruçado sobre tais questões não indica que o
pragmatista acreditava que elas fossem fundamentais ou inafastáveis, mas apenas
que o autor pensava que a ambiência social e política que o cercava urgia pela
discussão dessas matérias.
85
Por outro lado, sobre esse assunto, Bernstein crê que a estratégia de Rorty
de abrir mão de temas como os mencionados acima acaba por provocar um desvio
em relação a questões importantes que precisam ser confrontadas. Tal crítica se
relaciona com a idéia que Rorty atribui à noção de fundamento, ou seja: este autor
defende que idéias como “liberalismo” não requerem que seus pressupostos sejam
encontrados/definidos. Já Bernstein acrescenta que o fato de que idéias como
“liberalismo” não exijam que seus pressupostos sejam desvendados não significa
que não demandem debate acerca do que significam. A título de exemplo,
podemos dizer que o termo “liberalismo” é capaz de emanar inúmeras discussões
a respeito de o que significaria, em relação a que caminho se direcionaria, que
marco deveria instaurar como ideal e os graduais meios que se encarregariam de
encorpá-lo. O próprio Dewey se ocupou em apresentar e debater conflitantes
idéias a respeito desse movimento. No momento em que Rorty se nega, ou pouco
explora, o confronto com questões desse tipo, transparece a imagem de que temos
intuições comuns a respeito do que os termos “democracia liberal”, por exemplo,
querem dizer.
86
“Mas faz algum sentido falar em expressar esperanças políticas sem
procurar avaliar as ‘práticas políticas’ criticamente?”
87
Para avaliá-las é preciso
falar sobre elas, explorar seus significados, projetar sistemas de valoração que
propiciarão escolher entre uma ou outra dita forma de institucionalização da
democracia. Com essa provocação, Bernstein afirma que Rorty escreve como se
soubéssemos de pronto quais são as práticas políticas democráticas, o que é
criticável uma vez que diferentes tradições políticas nos levam a diferentes
85
RORTY, Richard. Response to Matthew Festenstein. In: FESTENSTEIN, Matthew e
THOMPSON, Simon. Rorty: critical dialogues , ob. cit., p. 220.
86
BERNSTEIN, Richard. One step forward, two steps backward: Rorty on liberal democracy and
philosophy , ob. cit., p. 239.
87
“But does it make any sense to speak of expressing political hopes without seeking to evaluate
‘political practices’ critically?” ((Ibid., p. 241).
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126
avaliações a respeito das ações reconhecidamente vitais para o florescimento da
democracia.
Rorty o faz com sustento na idéia de que a necessidade que levaria a essas
buscas pode ser saciada através do apelo às intuições comuns morais e políticas,
ao consenso da comunidade local histórica e particular com a qual nos
identificamos. Ao fazer isso, Rorty se afilia ao tipo de argumento que procura
desacreditar. Referências a “práticas sociais” ou “crenças compartilhadas”
conduzem a um campo controverso, não ao seu desembaraço. Quando descemos
do campo metafilosófico à discussão sobre concepções concorrentes sobre o
liberalismo, somos forçados a encarar questões reflexivas confusas e conflitantes,
de cujos debates Rorty abre mão, mesmo nos momentos em que tais debates se
mostram importantes para a solução de conflitos na vida política cotidiana. Nesse
momento, debater concepções conflitantes a respeito do “self”, “liberalismo” e
“democracia” se torna relevante do ponto de vista pragmático.
E quando tentamos
especificar o que queremos dizer com “democracia”, caracterizar aquilo pelo qual
estamos lutando, se torna necessário imaginar imagens alternativas do “self”. Ao
fazer isso, o intelectual não está fundamentando o conceito, mas apenas
precisando seu significado a fim de procurar operacionalizá-lo.
88
Considere a questão do aborto, que é tão controversa na nossa sociedade liberal.
Aqueles que são “pró-escolha” ferventemente argumentam que é cruel às
mulheres proibi-las de terem controle sobre seus corpos. Os “pró-vida”
argumentam que o aborto é uma crueldade não menor contra a criança não
nascida. Então o comando para diminuir a crueldade é uma abstração. Rorty pode
até concordar. É por isso que precisamos de descrições empíricas concretas de
crueldade e humilhação. Mas esse movimento obscurece a questão de como
alguém vai decidir o que conta por uma descrição concreta de crueldade.
89
Por vezes, Rorty pressupõe que toda a justificação filosófica e
argumentação emergem a partir da dedução de premissas inatacáveis. A impressão
88
Ibid., pp. 244-6.
89
“Consider the question of abortion which is so controversial in our liberal society. Those who
are “pro-choice” fervently argue that it is cruel to women to forbid them to have control over their
bodies. “Pro-lifers” argue that abortion in unmitigated cruelty against the unborn child. So the
injunction to diminish cruelty is an abstraction. Rorty might well agree. That’s why we need
concrete empirical descriptions of cruelty and humiliation. But this move obscures the question of
how anyone is to decide what counts as a concrete description of cruelty.” (BERNSTEIN, Richard.
Rorty’s liberal utopia. In: The new constellation: the ethical-political horizons of modernity /
postmodernity. Massachusetts: MIT, 1992, p. 284).
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127
é que: “Rorty às vezes parece pensar que sempre que alguém fala em padrões ou
critérios está na ladeira escorregadia que conduz ao fundacionismo ‘ruim’.”
90
Ele tende a tratar superficialmente o que parece ser o fato “marcante” da vida
contemporânea – a quebra do consenso político e moral, e os conflitos e a
incompatibilidade entre práticas sociais que competem entre si. Mesmo que Rorty
pense que as questões sobre a quebra do consenso político e moral são
exageradas, alguém iria esperar algum argumento demonstrando por que a
“mentalidade de crise” do século vinte está equivocada – ou, ao menos um
esclarecimento de quais são as características do consenso que ele acha que existe
entre aqueles que se consideram os campeões da democracia liberal. Nunca está
claro por que Rorty, que alega não haver consenso sobre concepções
concorrentes sobre a boa vida, acha que não há mais consenso sobre concepções
de justiça e democracia liberal.
91
Assim, chegamos ao ponto deste item do trabalho: atrelar ou não atrelar
um fundamento à idéia de democracia é mais um dualismo filosófico da categoria
daqueles que Dewey procurou mostrar que são não apenas acessórios, mas
contraproducentes à teoria e à prática democráticas e, por isso, precisam ser
superados.
Transformando o dualismo “a democracia precisa de suporte filosófico vs.
a democracia não precisa de suporte filosófico” em uma gradação, podemos
compreender o posicionamento de Dewey. Ao mesmo tempo em que o autor
defende que não precisamos nos preocupar em justificar em última instância esse
ideal, o pragmatista se debruça sobre ele, procura elucidar os fatores que
propiciaram que ela encontrasse lugar na política e na sociedade, pois a
democracia exerceu papel fundamental na luta e alcance de direitos e aspirações a
ela tidos como os mais caros em certos contextos.
Avançar sobre esse dualismo significa, além disso, manter o ímpeto
pragmatista de se debruçar sobre os fatos e situações concretas e procurar propor
sugestões para que linhas de ação sejam delineadas.
90
“Rorty sometimes seems to think that whenever one talks about standards or criteria one is on
the slippery slope that leads to ‘bad’ foundationalism.” BERNSTEIN, Richard. One step forward,
two steps backward: Rorty on liberal democracy and philosophy , ob. cit., pp. 242 e 244-6.
91
“He tends to gloss over what appears to be the overwhelming 'fact' of contemporary life - the
breakdown of moral and political consensus, and the conflicts and incompatibility among
competing social practices. Even if Rorty thinks that claims about the breakdown of moral and
political consensus are exxagerated, one would expect some argument showing why the 'crisis
mentality' of the twentieth century is mistaken - or, at least a clarification of what are the
characteristics of the consensus that he thinks does exist among those who take themselves to be
champions of liberal democracy. It is never clear why Rorty, who claims that there is no consensus
about competing conceptions of the good life, thinks there is any more consensus about
conceptions of justice and liberal democracy.” (BERNSTEIN, Richard. One step forward, two
steps backward: Rorty on liberal democracy and philosophy , ob. cit., p. 245).
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128
Dessa forma, rechaçar a necessidade de justificação para a democracia
não significa, para Dewey, abrir mão de analisar criticamente os contextos,
valores, práticas e tempos que impulsionaram que o conjunto de idéias abrigadas
hoje sob o que chamamos de democracia adquirisse essa roupagem. E se esse
exercício por vezes se confundiu com "fundamentar" um conceito talvez seja
porque a distinção "fundamentar / não fundamentar" a democracia é ruim para
compreender o que Dewey quis dizer. Não estamos nos inserindo na familiar
discussão acerca de um dualismo que urge pela nossa tomada de posição entre um
de seus dois lados, exatamente o que o autor menosprezava?
Assim como Dewey, Rorty também escreveu um artigo cujo título envolve
as palavras “democracia” e “filosofia”. Por um lado, no momento de atribuir o
título Dewey foi mais cuidadoso que Rorty, denominando-o “Filosofia e
Democracia”, e Rorty mais audacioso ao entitulá-lo “A prioridade da democracia
sobre a filosofia”. Por outro lado, Rorty foi menos corajoso que Dewey no que
tange à projeção da institucionalização da democracia, subinclusivamente
restringindo-a às limitações impostas pela filosofia pragmática em todos os
momentos em que pudesse descambar desatentadamente no fundacionismo. A
preocupação com fazer valer a democracia, que para Dewey passa
necessariamente por imaginar instituições, como a escola e o ambiente de
trabalho, é mais importante que a preocupação de, por descuido, fornecer um
fundamento para a democracia.
Nessa linha, ao mesmo tempo em que abre mão de procurar justificar a
democracia com argumentos transcendentais e/ou isentos da experiência humana,
Dewey vincula a idéia de democracia às idéias de liberdade e liberalismo. Ao
escrever sobre essas duas idéias, se preocupando em apontar de que formas foram
produtos dos momentos históricos em que começaram a se destacar e como foram
aproveitadas para que fins sociais reconhecidos como de grande parte das pessoas
que eram personagens do contexto de onde se destacaram fossem encarnados,
Dewey reconhece que tais idéias exerceram papel importante. Isso significa que,
se sabemos que a democracia e o liberalismo representam um conjunto de
concepções que se aglomeraram nesses termos a partir de circunstâncias
específicas, e portanto atrelá-las a uma justificativa última ou fundamental seja
simplesmente desnecessário ou não nos ajude na sua garantia e defesa, ao mesmo
tempo sabemos também que tais ideais se prestaram a grandes conquistas da
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129
humanidade nos últimos séculos e analisar as formas pelas quais isso se deu pode
ser de grande utilidade para a implementação da democracia. O quão profundo se
penetrará nessas discussões – estendê-las de forma a explicar seus pontos de
partida ou limitar-se à superficialidade de inseri-las na discussão – representa uma
gradação, cuja divisão em duas esferas empobrece o debate.
Outra crítica que pode ser feita no campo político a Rorty é em relação à
ausência da ousadia, diferentemente do que chama a atenção em seus escritos
filosóficos. Com isso, trago ao debate a crítica de Westbrook e Bernstein segundo
a qual um vocabulário diferente não será suficiente para provocar mudanças
sociais. Nas palavras do segundo: “Rorty alegremente pensa que uma democracia
liberal que incorpora e expande o princípio da tolerância e incentiva o impulso
metafórico do fazer e da auto-criação é – se não o melhor mundo possível – ao
menos o melhor mundo possível alcançado pela civilização européia”. Com esse
discurso, Rorty parece se desviar de enfrentar a questão da disparidade entre os
ideais de liberdade e igualdade e o atual estado de coisas nas sociedades liberais.
92
Mesmo já sendo extremamente trabalhoso modificar o vocabulário do debate
político, isso é apenas parte do desafio dos liberais rortyanos; um outro, e mais
árduo, é “não somente falar em obrigação, reciprocidade, comunidade e
responsabilidade, mas também encontrar meios para sustentá-las nas práticas da
vida cotidiana na sociedade civil”.
93
Mas Rorty não acha que isso é tarefa sua:
Meu desacordo básico com Bernstein, até onde posso ver, é sobre a utilidade da
teoria (e, em particular, daquelas partes da teoria normalmente rotulada
“filosofia”) em pensar sobre a situação política presente, em oposição à sua
utilidade em imaginar a utopia liberal. (...) Eu não consigo identificar muito uso
para a filosofia em formular meios para os fins que nós sociais democratas
compartilhamos, não em descrever nossos inimigos ou o perigo presente; o seu
principal uso está, eu suspeito, em pensar profundamente em nossas visões
utópicas.
94
92
“Rorty cheerfully thinks that a liberal democracy that embodies and extends the principle of
tolerance and encourages the poetic metaphoric impulse of making and self creation is – if not the
best possible world – at least the best possible world achieved by European civilization.”
(BERNSTEIN, Richard. One step forward, two steps backward: Rorty on liberal democracy and
philosophy , ob. cit., pp. 234 e 245).
93
“ (…) not only speak of obligation, reciprocity, community, and responsibility, but also figure
out ways to sustain them in the practices of everyday life in the civil society.” WESTBROOK.
Robert B. Democratic Hope: pragmatism and the politics of truth , ob. cit., p. 174).
94
“My basic disagreement with Bernstein, as far as I can see, is about the utility of theory (and, in
particular, of those parts of theory usually labeled ‘philosophy’) in thinking about the present
political situation, as opposed to its utility in imagining a liberal utopia. (…) I cannot find much
use for philosophy in formulating means to the ends that we social democrats share, nor in
describing either our enemies or the present danger, its main use lies, I suspect, in thinking through
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O objetivo que move a apresentação destas confrontações não é discutir
pontos de inconsistência nas idéias de Rorty, mas defender a pertinência de
discussões realizadas por Dewey e deixadas de lado pelo pragmatista
contemporâneo. Nessa linha, Bernstein defende que, ao invés de se apegar ao mito
da falência do platonismo, ou seja, ao adotar uma postura que se restrinja a
apontar que a filosofia deve abandonar seus dualismos clássicos, nos dediquemos
a articular, defender e justificar visões boas de sociedade:
O legado pragmático (que Rorty constantemente invoca) somente será recobrado
e revitalizado quando tentarmos fazer para o nosso tempo o que Dewey fez em
seu contexto histórico – articular, sentir a textura e justificar uma visão de um
ideal pragmaticamente viável de democracia compartilhada.
95
Ao recear diante da possibilidade de despropositadamente apresentar
fundamentos, e ao atribuir às narrativas o papel de impulsionadoras das
transformações culturais e sociais, Rorty abre mão do que, neste trabalho,
considera-se o que há de mais valioso na obra de Dewey: o esforço comprometido
no sentido de quebrar a barreira entre a imaginação de alternativas democráticas e
a sua concretização em instituições sociais.
our utopian visions.” (RORTY, Richard. Thugs and theorists. Political Theory, Vol 15 n. 14, Nov
1987, p. 569).
95
“The pragmatic legacy (which Rorty constantly invokes) will only be recovered and revitalized
when we try to do for our time what Dewey did in his historical context – to articulate, texture, and
justify a vision of a pragmatically viable ideal of communal democracy.” (BERNSTEIN, Richard.
One step forward, two steps backward: Rorty on liberal democracy and philosophy , ob. cit., p.
253).
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6
Conclusão
Em “Philosophy and the oddball” Rorty escreve que a necessidade de
afirmar a própria existência, de inventar o self ao invés de vivenciar um papel em
meio às formas ordinárias de vida, é o que faz as pessoas (principalmente aquelas
que chamamos de filósofos) pararem de se utilizar da linguagem comum e
recorrerem a um vocabulário específico e restrito. Rorty segue dizendo que
aqueles que perfilham essa postura, a de abandonar a linguagem corriqueira, se
tornam “estranhos”. Ao assumirem um novo ponto de vista, filósofos são capazes
de transparecer que são deuses e que os demais estão aprisionados em um plano
de vida inferior.
1
Ao abrir mão desse papel imposto não só aos filósofos, mas a tantos outros
acadêmicos das humanidades, Dewey pôde se aproximar dos questionamentos das
pessoas comuns e erigir sua obra com base nessas angústias. Dessa forma, pôde
explorar suas relações com as variadas esferas da vida – política, econômica,
social, financeira, em seus âmbitos regional, nacional, global etc. – e imaginar
possibilidades de lidar com elas; imaginar hipóteses a partir das experiências
humanas contextualizadas e procurar demonstrar a importância de se esmiuçar o
formato que essas possibilidades tomariam, a partir de escolhas e definições
estipuladas a cada passo, num permanente diálogo com suas conseqüências, até
que, sem um momento ou marco específico, tais pretensões se notem
materializadas e institucionalizadas, num processo em que cada etapa, ainda que
indistinguível, assumiu ao mesmo tempo a tarefa de pensar a melhor forma de
concretizar o ideal imaginado no princípio e a de concretizá-lo.
Dewey procurou trazer uma nova perspectiva acerca do papel da filosofia
e da compreensão do ser humano. No capítulo 1, vimos que, ao propor a
superação dos antigos dualismos filosóficos gregos como “aparência x realidade”,
alerta para o fato de que não há uma eternidade pré-determinada, mas um presente
sendo construído, sob a influência do passado, que resultará num futuro cujo tom
1
RORTY, Richard. The philosophy of an oddball. The New Republic; Jun 19, 1989; 200, 25, pp.
38-41.
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será delineado pelos atos, sentimentos e pensamentos dos seres humanos. Partindo
da premissa de que o mundo e as relações que se dão nele não obedecem a uma
“causa primeira” ou a um “fundamento último”, e ressaltando a contingência que
qualifica o mundo e as relações que tomam lugar nele, Dewey afirma que o ser
humano pode adotar um papel decisivo na interação com seu entorno; e que, a
partir disso, nossa atenção deve se voltar à busca das formas mais interessantes
através das quais isso pode ser feito. A noção de “fins fixos” cede, assim, lugar à
de “fins-em-vista”, segundo a qual o ideal a que se aspira (já desvinculado de um
“ideal absoluto”) se desnuda em etapas estipuladas para seu alcance.
Segundo o pragmatista, ao falar sobre democracia devemos nos perguntar:
a que necessidades este arranjo social específico busca atender e que efeito ele
apresenta àqueles nele envolvidos? Ao ignorarem questionamentos como estes e
permanecerem emperradas em generalidades conceituais, muitas discussões sobre
problemas sociais são desperdício de energia.
Portanto, uma grande contribuição de Dewey à democracia é ter nos
livrado da pesada carga da necessidade de fundamentar nossa opção por ela. Ao
não só defender que não nos preocupemos em investigar por quê, em última
instância, a democracia deve ser a nossa escolha, mas ainda ao desestimular essa
linha de raciocínio, Dewey poupa esforços e desgaste à teoria democrática. Em
séculos anteriores a civilização ocidental se dedicava a fundamentar a idéia de
democracia na concepção de que encarnava a vontade de Deus; era projeto da
Razão; ou representava ao que o ser humano intrinsecamente aspirava retiradas as
influências daninhas impregnadas pela vida em sociedade. Hoje, muitos de nossos
contemporâneos defendem, tão efusivamente quanto seus ancestrais, a idéia de
que a democracia se fundamenta na “garantia dos direitos humanos” ou numa
releitura do direito natural; e se dedicam, por conseguinte, às (naturalmente)
intermináveis discussões a respeito de “o que seriam os direitos humanos” ou “o
que caracteriza os direitos naturais”. Dewey nos livra de necessidade de realizar
algo que é irrealizável e, em seu lugar, sugere que nos dediquemos mais a pensar
em tornar, em cada momento, o que é desejável, realizável.
A experiência se liberta do aprisionamento do dualismo “sentidos x razão”
e adquire o contorno de ajuste adaptativo surgido do resultado da interação
criatura viva e ambiente, potencialmente um experimento projetado em direção a
um fim-em-vista, ajuste esse entre o novo e o velho potencialmente sugerido pela
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imaginação. Vimos ainda a preocupação social de Dewey quando, na tentativa de
escapar da dualidade “consciente x inconsciente”, ou seja, de se valorizar a
criatividade do agente ao mesmo tempo em que se rejeita a idéia de uma razão
universal determinante da conduta humana, Dewey nos brinda com o conceito de
hábito, disposição que atua abaixo da consciência e influencia nossas ações,
pensamentos e sentimentos. O destaque é que, se o hábito influencia a conduta, ao
mesmo tempo ele é condicionado pelo meio social; a consciência disto transforma
o hábito em mecanismo de reforma social.
No capítulo 2, analisamos os compromissos do pragmatismo com a
política. Vimos que Dewey procurou poupar o pensamento político do véu
imposto pelas considerações metafísicas e outras impassíveis de confirmação.
Com isso, o surgimento da forma de governo que denominamos democracia é
vista não como caminho natural para os governos do mundo, mas como arranjo
institucional a que determinados contextos sociais acabaram por conduzir na
esfera política.
Em seguida, analisamos a teoria política de Dewey, que está baseada no
seguinte raciocínio: a vida em conjunto gera atos que podem repercutir
indiretamente em várias pessoas. Quando se atestou que algumas dessas
conseqüências eram bem-vindas e outras eram prejudiciais, a conclusão foi a de
que seria interessante que se criasse uma organização que estimulasse as condutas
desejáveis e desincentivasse as que afetassem negativamente a coletividade: eis o
Estado. A perspectiva pragmatista aponta que, ao invés de nos debruçarmos sobre
o estudo da natureza e fundamento do público e do Estado, é mais frutífero que
procuremos nos aprofundar a respeito das formas específicas através das quais as
associações humanas acontecem; algo a ser feito permanentemente, visto que tais
arranjos não correspondem a uma resposta única a respeito da organização política
das sociedades, mas se apresentarão em diferentes roupagens. Vimos ainda que o
problema de se atribuir uma resposta única à pergunta “como o Estado se
organiza?” é que, transpondo as peculiaridades locais, culturais, temporais e de
outras sortes, jazem encobertas questões específicas que demandariam reformas
sociais e arranjos institucionais diversos daqueles propiciados a priori. Assim,
transpor modelos políticos de Estados preocupados com a afirmação de direitos
individuais em que a miséria não é um problema crucial para outras realidades de
profunda pobreza é ignorar este problema e se dedicar à criação de instituições
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inadequadas que não correspondem às práticas sociais e necessidades mais
latentes desta população.
O capítulo segundo mostrou ainda o protagonismo da comunicação no
vocabulário de Dewey quando o autor escreve sobre filosofia política. Para ele, “a
democracia é mais que uma forma de governo, é primariamente uma forma de
vida associativa, de experiência conjunta comunicada.
A participação na comunidade, impulsionada pelo estímulo à
comunicação, tem sua importância abrigada na possibilidade de propiciar uma
experiência mais diversa e enriquecedora para todos os membros da comunidade.
Com Darwin, Dewey assume a diversidade como valor e acredita que uma grande
pluralidade de experiências individuais propiciaria uma maior pluralidade de
ajustes indivíduo/sociedade, permitindo que novas idéias e arranjos institucionais
fossem gerados, testados e incorporados à sociedade com grande freqüência.
Dewey diz que a democracia incentiva no indivíduo e na sociedade a criatividade
e a imaginação. Ao estimular a variedade de interações, o aumento dos pontos de
contato entre os cidadãos, a disseminação de diferentes formas de vida, o modo de
vida democrático convida o novo a se manifestar, permite que a convivência em
sociedade se beneficie daquilo que, eventualmente, a contingência das relações
sociais acabou por gerar e se revelar útil e desejável. Novos arranjos sociais e
novas posturas individuais se inserem na vida humana, num ritmo que, de tempos
em tempos, sugere que um conjunto absurdo de intuições e formas de
implementação adquire teor de genialidade.
Estudar a democracia numa plataforma pragmatista é sinônimo de
investigar as condições materiais que a propiciaram. Considerando isso,
examinamos neste trabalho os movimentos conhecidos como individualismo e
liberalismo. O individualismo teria nascido como suporte para a doutrina de que o
indivíduo se opõe à sociedade e tem primazia sobre o Estado, num contexto de
procurar restringir a esfera de ingerência do Estado nas vidas dos particulares.
Nesse cenário, forjou-se a figura de indivíduo como aquele merecedor de
proteções de alta conta. Num segundo momento, os já naturalizados conceitos de
indivíduo e de liberdade se prestaram ao movimento burguês que demandava uma
menor ingerência do Estado nas produções industriais e transações comerciais.
Assim, o abandono da historicidade pelos movimentos do liberalismo e do
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individualismo acabou por torná-los roupagens de grupos econômicos
interessados na manutenção do status quo.
Vale ressaltar, no entanto, o valor do ideal do liberalismo, segundo
Dewey: a democracia, ao privilegiar a diversidade como valor e incentivar a
geração do novo, possibilita que ele venha a se expressar. A experiência
democrática, após os acontecimentos que povoaram sua vida política, acabou por
institucionalizar a criação de uma categoria que perfilha a reunião de
posicionamentos políticos semelhantes que conquistaram a atenção de grande
parte da sociedade em que se inserem: o liberalismo. Sob esse rótulo,
identificamos iniciativas políticas que transformaram conjuntos de idéias à
primeira vista absurdos, e em um segundo momento atordoantes, em causas
dignas de lutas sociais legítimas e modificadoras de formas de vida. Segundo
Dewey, o ideal do liberalismo, apesar de ter sido enviesado conforme mencionado
em parágrafo acima, permanece válido nesta ótica.
Para Dewey, a liberdade se relaciona com eficiência na ação, condições
materiais para levar adiante planos, cujas causas e conseqüências devem ser
produto de reflexão cuidadosa, capacidade para variar planos e experimentar
novidades. Assim, a liberdade, para Dewey, tem como requisito a gradual
equalização das condições sociais e somente pode ser analisada adequadamente se
colocada ao lado da distribuição de poder da sociedade da qual se está tratando.
Vimos ainda que uma das instituições sociais em que Dewey mais
depositava esperanças quando tratava de reforma social era a escola, já que ela
seria capaz de estimular a disseminação de formas de vida democráticas. O
capítulo 3 trouxe essa discussão à tona. Segundo o estadunidense, o valor da
educação consiste em suscitar o desejo contínuo pelo aprendizado; dessa forma,
desenvolvimento ou crescimento só é relativo a mais desenvolvimento ou
crescimento, a educação somente se subordina à própria educação.
A educação democrática de Dewey não se limitava a apresentar o ideal
democrático às crianças e jovens; falar sobre educação democrática para o autor
significava também falar sobre empoderamento, sobre reduzir a distância entre a
teoria e a prática quando se reconhecia que ideais estavam em jogo, sobre a idéia
de que ferramentas podem ser forjadas e postas em ação para que tais ideais sejam
concretizados, sobre transformar o conformismo em crítica e a crítica em
responsabilidade pela (re)construção de instituições sociais. Nas palavras do
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pragmatista: “Educação é uma reconstrução ou reorganização da experiência, que
esclarece e aumenta o sentido desta e também a nossa aptidão para dirigirmos o
curso das experiências subseqüentes.”
2
Nesse caso, e somente nele, as escolas
estariam atendendo ao chamado da democracia. É um fato que a educação, por si,
não será capaz de provocar a mudança social a que Dewey e muitos de nós
aspiramos, mas tão verdadeira quanto essa é a idéia de que, desmerecendo a
educação, perdemos um valioso aliado em potencial.
Como o próprio Dewey admitiu, apostar todas as fichas da reforma social
na educação seria uma opção ruim. Do ímpeto ingênuo de Dewey em relação à
pedagogia de fins do século XIX até o amadurecimento do pensamento do autor,
ao fim da primeira metade do século XX, aprendemos com o pragmatista que a
reforma social não adviria de modo quase automático através do redirecionamento
das práticas de ensino. No entanto, não podemos deixar de lado a noção de que,
mesmo que incapaz de forjar o cidadão democrático, a escola ainda assim é uma
das instituições públicas que mais fortemente incentivam e desmerecem certas
práticas, ideais, objetivos de vida, hábitos.
Uma vez que para Dewey o conhecimento decorre da associação e da
comunicação, há um vasto acervo produzido pela humanidade. A inteligência
social é a utilização desse acervo de forma a realizar a engenharia social: isso quer
dizer que, ainda que seja inestimável o valor da liberdade de expressão no que
toca à produção e divulgação desse acervo, Dewey vai além e afirma que é
necessário que se estudem os problemas sociais e se criem planejamentos que
dêem conta deles. Nesse contexto, Dewey sugere uma reforma social radical.
Tal processo de investigação dos problemas e sugestão de soluções se dá
por meio de uma dinâmica de experimentalismo social. Vimos que, ao propor a
reforma social, Dewey dizia mais do que “pensemos nos meios para a realização
dos ideais”. Dizia que pensar ideais implica pensar as instituições que os
concretizarão, as práticas que os manifestarão, os agentes, públicos ou privados,
que por sua efetivação serão responsabilizados. Não exercer essa segunda tarefa é
deixar pela metade o trabalho de gradual incorporação da democracia na
sociedade. Dessa forma, implementar a reforma social implica uma tarefa
2
DEWEY, John. Democracia e educação , ob. cit., p. 83.
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programática: significa imaginar, a cada momento, o passo a ser dado e, a partir
do impacto social dessa medida, planejar o passo seguinte e efetuá-lo.
Por isso a filosofia se relacionaria com a imaginação e o significado, com
a projeção de ideais para alcançar um futuro mais desejável. Dewey reconheceu a
importância do comprometimento com ideais, com projeções imaginativas para
um futuro melhor aliadas à concretude dos fatos e condições da vida.
Vimos ainda que o pragmatista, uma vez que abre mão dos fundamentos
absolutos, justifica a democracia afirmando que acredita que ela é a melhor forma
de vida. E por que defendê-la? Porque, diz Dewey, ela é a única forma de vida que
crê no processo da experiência como fim e como meio; e o autor crê que esse é
um ideal ao qual vale se dedicar. Um dos aspectos da democracia para Dewey é
representar um ideal, por isso mobilizador de forças rumo ao seu atingimento.
Nessa linha, para Dewey a democracia é uma forma de vida. É uma forma
de vida individual, significa a posse e o contínuo uso de certas atitudes que
formam o caráter pessoal e determinam o desejo e o propósito em todas as
relações de vida. Cabe acrescentar que uma visão de mundo que comporta suas
contingências implica que as conseqüências dos atos individuais sejam
antecipadas e que se arque com elas; num mundo onde o futuro ainda não está
definido, o poder de construí-lo traz consigo a responsabilidade no campo moral.
Dewey nos apresenta a uma democracia participativa cujos cidadãos, em
comunidade, estão unidos menos por interesses homogêneos e mais pela
educação; e cujas atitudes democráticas e instituições participativas, não a
natureza humana ou o altruísmo, os tornam capazes de articular propósitos e ações
em comum.
3
Na seara da política, a democracia é a forma de governo, dentre as
que conhecemos, que em maior alcance permite que as experiências sejam
enriquecidas, uma vez que:
1) por meio da liberdade de expressão, permite que formas diversas de
experiência sejam comunicadas àqueles que, de outra forma, não teriam acesso a
elas, ou seja, reconhece o valor do indivíduo e defende que haja cada vez mais
oportunidades para a liberação de capacidades;
3
BARBER, Benjamin R. , ob. cit., p. 117.
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2) reconhece a importância da interação dos indivíduos para que as
experiências plurais sejam vividas e comunicadas, protegendo espaços para que
essas interações ocorram de forma satisfatória aos indivíduos;
3) considerando as mudanças constantes da sociedade, permite que outra
forma de governo que atenda a novos anseios sociais criativamente se desenvolva
e se instale;
4) sugere que o potencial da inteligência social e do poder da defesa de um
ideal, por meio da educação e de reformas sociais, sejam utilizados e direcionados
para um modelo social e político que atenda às vontades e desejos das pessoas
reunidas em comunidade.
O capítulo 4 permitiu que estabelecêssemos um diálogo entre a leitura de
Dewey sobre democracia, analisada até então no trabalho, e a forma como autores
contemporâneos que assumem a influência do pragmatista lidam com a
democracia contemporaneamente.
Dewey é acusado de não ser genuinamente radical, ou seja, não apresentar,
de fato, uma proposta que apontasse à sociedade os caminhos para que seu ideal
de democracia como forma de vida florescesse, por dois motivos: (1)
desmerecimento das relações de poder em sua teoria e (2) crença no método
científico como ferramenta para resolver problemas sociais.
Vale dizer, em relação à primeira crítica, que, ainda que Dewey não
estivesse alheio à dinâmica de poder que se dá implicitamente na sociedade, o
autor teria dado um passo interessante em sua teoria caso houvesse procurado se
aproximar mais desse debate.
Sobre a segunda crítica, dissemos: a presença marcante no vocabulário de
Dewey da idéia de “método científico” (ainda que compreensível por conta dos
encantos que, à sua época, a tecnologia oferecia) impediu que o autor
reconhecesse que somos menos condutores dessa reforma social do que
gostaríamos e/ou pensávamos que éramos. Ironicamente, se por um lado o
pragmatista reforça a necessidade de levarmos em consideração a presença das
contingências, da dúvida e da incerteza quando apresenta sua reconstrução da
filosofia, por outro parece cair na tentação da necessidade de certeza ao atribuir ao
método científico a geração das soluções para os problemas sociais. Seja por
conta das relações de poder ocultas pela dinâmica social, seja por conta da
diluição dos parâmetros de previsibilidade do método científico, a questão é que o
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público é menos direcionador da construção da realidade social do que pensava
Dewey. Ao mesmo tempo, o grande valor da noção de método científico atrelada
à democracia se associa à idéia de engenharia social: a distância entre o ideal
democrático e as práticas sociais é traduzível em percursos menos abstratos, que
encontram no confronto com sua implementação o referencial para o próximo fim
a ser buscado.
Esse cenário aponta perspectivas para interessantes estudos futuros. A
filosofia pragmatista política e social de John Dewey está inserida na realidade
estadunidense, principalmente da primeira metade do século XX. Considerando a
simpatia pela literatura pragmatista, somos levados quase por ímpeto à questão de
como pensar a realidade de nosso País à luz das idéias deste trabalho. Isso seria
uma tarefa desafiadora, por conta de todas as diferenças que separam a nossa
realidade da que serviu de cenário às obras de Dewey. No entanto, é um esforço
que precisa ser feito de forma a mantermos coerência com tudo o que foi dito
aqui. Tendo isso em vista, os próximos passos inspiradores de futuras pesquisas
poderão se concentrar na seguinte questão: de que forma o que aprendemos com
John Dewey e está relacionado nesta conclusão permite que o debate sobre
democracia no Brasil contemporâneo seja incrementado?
De que forma, contemporaneamente, seria possível conciliar a exigência e
o desejo de direcionamento social – traduzido, por exemplo, por meio de
exigências como educação de maior qualidade e menor desigualdade social – num
quadro de instituições políticas não confiáveis, como observado entre nós? É
interessante observar que a Constituição Brasileira traz em si um rol de objetivos
que, traduzidos para o vocabulário de Dewey, poderiam ser denominados fins-em-
vista sociais. De que forma tais fins encontrariam o diálogo com a prática no
Brasil contemporâneo de instituições esquizofrênicas, construídas para tais fins,
no entanto funcionando de acordo com lógicas diversas? É possível adequar o
processo de institucionalização de fins sociais à lógica de pessoalidade e
paternalismo que funda e permeia a sociedade brasileira? Parece-nos que, dado o
contexto sócio-cultural brasileiro, faltam-nos instituições voltadas e forjadas para
o combate de nossos problemas sociais mais latentes. É preciso aprender a lição
de Dewey de que copiar modelos de arranjos políticos gerados em contextos
diferentes é uma prática que deve ser deixada de lado e, em seu lugar, o cenário
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social do povo em questão deve ser analisado, estudado e confrontado
especificamente.
Já sabemos que Dewey defende que a democracia seja institucionalizada,
não fundamentada. O capítulo 4 nos mostrou ainda, no entanto, que essa oposição
é mais uma que pode ser diluída. Aproximamos-nos dos escritos sobre Richard
Rorty (assumido discípulo de Dewey) sobre política e democracia e notamos que,
diante da tentação de escorregar no fundacionismo, o autor se torna tímido em
relação à institucionalização da democracia. Nesse quadro, ao abrir mão de certos
temas, acaba por apresentar um enfrentamento da democracia menos interessante
que aquele apresentado por Dewey. O pragmatista clássico parece apresentar
menos preocupação em cair na tentação fundacionista, diante da vontade de
apresentar propostas que viabilizem a materialização do ideal democrático em
inúmeros aspectos da vida em conjunto.
Um exemplo disso é o tratamento que Dewey concede ao público. Em
“The Public and its Problems”, o autor sugere que é necessário que se defina o
que é o público e oferece uma caracterização para o que ele seria: diz que o vemos
sempre que as conseqüências da vida em conjunto repercutam indiretamente sobre
pessoas que não seus destinatários imaginados a princípio. Ao sugerir esta
categoria, Dewey oferece um ponto de partida para que pensemos sobre quais
pautas devem ingressar na agenda social e quais devem ser excluídas dela. Nesse
caso, Dewey não está fundamentando uma idéia, mas está delineando seus
contornos de forma a instrumentalizá-la em prol do ideal democrático. A verdade
é que, como dito no capítulo 4, as fronteiras entre fundamentar a democracia e
explicá-la para institucionalizá-la são estreitas; mas Dewey não se apavora diante
da possibilidade de se inserir nessa gradação quando o fim é a garantia do ideal
democrático. Por esses motivos, defendemos que o olhar de Dewey a respeito da
democracia parece-nos mais interessante que o de Rorty.
Dito isso, Dewey nos deixa duas grandes lições. O futuro é incerto, está
em aberto. Diante desse fato, a esperança em atingir melhorias nos níveis de bem-
estar da sociedade se tornam diretamente proporcionais aos esforços sociais rumo
a isso. A reflexão acerca do “próximo passo” para a institucionalização do ideal
democrático, incutidas aí as reflexões destacadas nesta conclusão, é o que deve
guiar constantemente as políticas dos agentes públicos. Afinal, como Dewey
afirmou: “Não faz parte da minha tarefa desenhar em detalhes um programa para
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o liberalismo renascente. Mas a pergunta ‘o que deve ser feito’ não pode ser
ignorada.”
4
4
“It is no part of my task to outline in detail a program for renascent liberalism. But the question
of ‘what is to be done’ cannot be ignored.” (DEWEY, John. Liberalism and social action , ob. cit.,
p. 91).
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