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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MÁRCIA MILENA GALDEZ FERREIRA
“Tudo é Desterro?”
Construção e desconstrução de regiões no Centro Histórico de São Luís
São Luís
2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MÁRCIA MILENA GALDEZ FERREIRA
“Tudo é Desterro?”
Construção e desconstrução de regiões no Centro Histórico de São Luís
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão como
exigência para obtenção do título de mestre.
Orientadora: Prof Dra. Elizabeth Maria
Beserra Coelho
São Luís
2005
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3
FERREIRA, Márcia Milena Galdez.
“Tudo é Desterro”?: construção e desconstrução de regiões no
Centro
Histórico de São Luís/ Márcia Milena Galdez Ferreira.
São Luís,
2005.
151 f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, Centro d
e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Maranhão, 2005.
1. Antropologia Social. 2. Centro Histórico de São Luís (Bairro do
Desterro)
Processo de identificação dos moradores. 3. Bairro do
Desterro – São Luís, Maranhão.
I. Título.
CDU 39
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MÁRCIA MILENA GALDEZ FERREIRA
“Tudo é Desterro?”
Construção e desconstrução de regiões no Centro Histórico de São Luís
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão como
exigência para obtenção do título de mestre.
Aprovada em / /
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dra. Elisabeth Maria Beserra Coelho(Orientadora)
Universidade Federal do Maranhão
Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior
Universidade Federal do Maranhão
Prof. Dr. Marcos Antônio Barbosa Pacheco
Centro de Ensino Universitário do Maranhão
5
“As ilusões caem uma após outra, como as
cascas de uma fruta, e a fruta é a
experiência”.
Gerard de Nerval
“Uma fronteira não é o ponto onde algo
termina, mas, como os grupos
reconheceram, a fronteira é o ponto a
partir do qual algo começa a se fazer
presente”.
Martins Heidegger
6
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................14
1.1 “Balança mas não cai”: o encontro com o exótico..................................................................19
1.2 Construção do problema..........................................................................................................27
1.3 Metodologia adotada...............................................................................................................34
2 DOIS PEDAÇOS DE CHÃO: o de “cima” e o de “baixo”................................................... 43
2.1 “Tudo é Desterro”: negação (?) da fronteira..........................................................................44
2.2 “Desterro é Desterro, 28 e rua da Palma é 28 e rua da Palma”: afirmação da fronteira........60
2.3 Rua da Palma: uma fronteira entre os de “cima”?.................................................................67
3MOVIMENTOSE FRONTEIRAS..........................................................................................76
3.1 Quando os de “cima” são “figura principal”..........................................................................77
3.1.1 Antigos e amigos.................................................................................................................77
3.1.2 “A gente samos os artistas do Reviver, nós somos patrimônio também”...........................78
3.1.3 “Nós samos as principais figuras”: posse de uma memória legítima da ZBM...................83
3.1.4 Culto à ZBM: “zona acabou”?............................................................................................87
3.1.5 “Traficantes e marginais”: “herdeiros sociais da zona” ou outsiders?................................97
3.1.6 Sem casa, sem emprego e sem educação:vulneráveis e marginalizados.............................104
3.2 Quando os de “cima” são “zona”...........................................................................................113
3.2.1 De diambeiros, assaltantes e estrupadores” outsiders a “vagabumdinhos fixos”,“mansos
como o cachorro ao dono”............................................................................................................113
3.2.2 “No tempo que era zona era mais respeitado”, “aquilo é um atoísmo muito grande”........119
3.3 Quando os de “baixo” são guardiões de histórias e gente de família....................................121
3.3.1 Entre moradores antigos, saudades do tempo ido...............................................................121
3.3.2 Quando a “zona” maculava a imagem do “Desterro”........................................................ 122
3.3.2 “gente de família, gente que presta .....................................................................................124
3.3.4 “Inferninhos” entre os de baixo”.......................................................................................125
3.4 Quando os de “baixo” são a “’porra’ elitizada”: “essa ‘porra’ é tudo uma ‘merda’ só”....... 127
3.4.1 ”É todo mundo achatado” ...................................................................................................128
3.4.2 “Aqui teve cabaré, lá também teve” .................................................................................. 131
3.4.3 “Que história que o Desterro tem?” ................................................................................... 132
7
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................133
REFERÊNCIAS...........................................................................................................................136
ANEXOS......................................................................................................................................138
LISTA DE DIAGRAMAS
Diagrama 1 - representação da região Centro Histórico.por moradores –A
Diagrama 2 - representação do “bairro” do Desterro por moradores -A
Diagrama 3 - representação do “bairro” do Desterro por agentes externos
Diagrama 4 – representação do “bairro” do Desterro por moradores –B
Diagrama 5 - representação da região Centro Histórico.por moradores –B
8
À minha mãe, por sua rara sensibilidade.
Pouquíssimos intelectuais, literatos e
artistas comungam desse mesmo dom.
9
E ao meu pai, pelo aprendizado diário e
incessante de que a família é a maior
dádiva da vida.
“Entre a zona e o lar:”
Construção e desconstrução de regiões no Centro Histórico de São Luís
Márcia Milena Galdez Ferreira
Interpretação de processos e movimentos de identificação em curso entre moradores de um trecho
do Centro Histórico de São Luís que vem sendo designado por estes e por instituições públicas e
privadas que ali realizam investimentos como bairro do Desterro. O problema abordado foi
construído a partir do mapeamento dos critérios de classificação utilizados por estes moradores
nas suas relações cotidianas, onde a memória da Zona do Baixo Meretrício, que ali vigorou por
várias décadas, se apresenta como um dos elementos que institui princípios de divisão entre eles,
que são demarcadas fronteiras entre o lugar da moral e da família e o da zona.. Utilizo o
conceito de região de Bourdieu (2003,p.113) para construir regiões que ora se apresentam
separadas por fronteiras ora se imiscuem numa única região, por mim designada como região
Centro Histórico. Utilizo o conceito de fronteira como “lugar de passagem” (HALL, 2003,p.33),
onde atores sociais que se classificam como outros, identificam-se, em outros momentos, como
mesmos. A incursão pelo terreno da memória faz-se imprescindível para a compreensão da
reprodução de territórios que se identificam e/ou são identificados como representativos da
retidão moral (espaço da família, da higiene e da estabilidade) ou da promiscuidade e do desvio
(espaço de prostituição, criminalidade, e violência).
Palavras-chave: região, fronteira, memória, identificação.
10
SUMMARY
11
AGRADECIMENTOS
A todos que seguraram minhas mãos bambas e me empurraram para frente, quando não havia
mais caminho de volta.
A Deus, que me fez “tão fraca e forte, tão sal e doce”, por me presentear e me fazer purgar essa
experiência rica e dolorosa.
Aos meus pais, José Alfredo e Filomena, e aos meus irmãos (Michela, Fábio e Marcos), porque
éramos seis, e aos meus sobrinhos queridos (Laís e Gabriel) que nos fazem ser oito.
A minha orientadora Elizabeth Coelho pela aceitação da orientação desse trabalho e pela maestria
com que sempre dosou a multiplicidade de papéis e de atitudes necessários a essa empreitada,
sendo professora, profissional, conselheira e analista nas horas certas.
Ao professor Alexandre Corrêa pela orientação acadêmica, pelo aprendizado durante a monitoria
da disciplina de Política Cultural, pelas atividades desenvolvidas no grupo de pesquisa
Patrimônio e Memória, por viabilizar a oportunidade de participação no projeto Viver o Desterro
(que me abriu espaço para contatos e interpretações acerca do campo empírico aqui estudado) e,
principalmente, por me convidar, de forma madura e honesta, a refletir sobre a continuidade da
orientação desse trabalho.
Aos professores do PPGCS/UFMA, especialmente Sérgio Ferreti, Horácio Antunes, José
Alcântara, Sandra Nascimento, Maristela Andrade e Alfredo Wagner, pelo aprendizado
intelectual e humano construído ao longo das disciplinas e impasses dessa turma.
Aos professores Ednalva Maciel e Horácio Antunes pela leitura atenta e pelas sugestões feitas à
primeira versão desse trabalho, quando do exame de qualificação.
Aos amiguinhos mestrondos Adroaldo (vulgo Miguel), Ronald Clay (poliglota da Liberdade),
Rosiana Freitas (dura na queda), Cristiane Jacinto (pidona dos olhos verdes), Heitor Carvalho (pé
de valsa, de samba e de lambada), Jacyara Melo (mãe guerreira e conselheira), ao trio Amanda
Santos, Flávio, Marilande (companheiros da misericórdia) e Arinaldo (pelo silêncio sagrado e
profano), pelas discussões antropológicas, sociológicas, historiográficas e psicanalíticas travadas
ao longo desse curso, pelos conflitos e confraternizações amistosas temperadas com comida e
bebida na dose certa.
Aos amigos, também mestrondos, que cuidaram de mim nesses dois anos, tendo sempre um carão
e um ombro amigo, um elogio e uma crítica a me ofertar: Yuki Michael (cúmplice na angústia e
prático na agonia), Raimundo Inácio, padreco, (sempre amigo, cristão e irmão) e Gabriel
Navalha, (irmãozinho mais velho, fiel até na amnésia).
A mestronda e Mãe Cleo, informante, mediadora e companheira de agonias no campo empírico,
pela maturidade com que conduzimos a feitura de nossos trabalhos.
Aos amigos, por suportarem meus papos e programas de antropóloga, especialmente Pablo
Habibe (amigo, acompanhante de campo, divã e livro de auto-ajuda), por repetir contínua e
12
incessantemente que eu ia conseguir; Helen Lopes (meu amigo Pedro), por dizer que entende,
mas não aceita, o fim da minha história com a academia; Josenildo (sabedor das gentes e
sofredor dos mesmos males que eu) por verbalizar que é preciso acabar com os trabalhos antes
que eles acabem com a gente; Alissom (amigo de fossa) e Patrícia pela companhia nos trabalhos
de campo; Enne (ex-aluna e amiga paty) por me emprestar seus olhos de ver no campo, quando
os meus, já viciados pela familiaridade, não conseguiam mais estranhá-lo; e ao clã Santos (Karla,
Ana Cláudia, Emília, Tony, Waldir, Inácia, Taís e Valquíria) pela paciência e preocupação com
meus desabafos histéricos.
Às “mestrondinhas” Talyssa e Sofia (aprendiz de antropóloga que se abraçava à sua boneca,
enquanto eu e sua mãe trilhávamos pelos cantos e antros do Desterro), nossa referência do tempo
que passa e lembrança de que, no mundo lá fora, tudo cresce enquanto a gente escreve.
Aos alunos (e amigos) especiais que o mestrado me proporcionou conhecer, especialmente
Lisbeth e Flávia Moura.
Aos amigos e colegas de sempre, ausentes ou presentes ao longo dessa caminhada: Kel e Leide
(irmãs postiças), Marilena (mãe ausente), Iris (clariciana e rodrigueana como eu), Jorge Paz
(irmãozinho), Guimarães, Ceia, Carioca, Renildo, Silvana (eterna chefinha), Leo (amigo e
tratante), Marcelo, Luana, Bruno, Hertz, Werck, Paulinho, Lídia, Gilson, Lígia, Emília, Regina,
Fátima, Ashley, Márcio Alexandre e aos meus primos heavy metal (amigos de infância e
adolescência e, decerto, companheiros na maturidade).
Aos professores do curso de graduação pelas palavras e escuta amiga, Manoel Martins, Marize
Campus, Glória Correia, Regina Faria, Washington Tourinho, Mary Angélica, Antônia Mota,
Flávio Soares, Flávio Reis, Lyndon Araújo, Wagner Cabral, Paulo Sérgio, Olília e Eva Chatel.
A Gabriela,Vivian, Cidvan, Rafael e Bruno Pepper (alunos da graduação em Ciências Sociais e
História e estagiários do Núcleo Gestor do Centro Histórico de São Luís) pelas conversas sérias e
brincadeiras corriqueiras sobre o Desterro.
Aos moradores do Desterro que tornaram possível esse trabalho, especialmente a Sandra,
Vitorinha, Dênis, Dalmir, Graça, Jorge, Talia e De Jesus (minha mãe preta), amizades profícuas,
fruto desse encontro.
Às minhas grandes famílias, os Galdez e os Ferreira que, embora loucos, são minha maior
referência de gente normal, pois conseguem ser felizes por consumirem em doses homeopáticas
os prazeres e angústias da vida.
E aos meus alunos queridos, que afago e maltrato, por repetirem, com olhos curiosos e
encantados, que ainda tenho muito a dizer e a fazer no mundo.
13
LISTA DE SIGLAS
AIDS
APROSMA
DST
FUNC
IPHAN
SEBRAE
SEDUC
SENAC
UFMA
ZBM
14
1 INTRODUÇÃO
Entre setembro de 2003 e julho de 2004, costumava andar no final da tarde pelas ruas dos
bairros da Praia Grande e do Desterro, buscando estranhar e me familiarizar com o espaço social
eleito como campo empírico
1
. Nessas minhas, andanças olhando o campo, percorria desde o
início da Rua da Estrela, na esquina com a Rua de Nazaré, até a Igreja do Desterro, situada no
final da Rua da Palma.
Assim, passava pelos bares, restaurantes e praças do Reviver
2
, freqüentados por turistas e
pela boêmia cult da cidade. Subindo a rua da Estrela, via uma boate e um bar requintado se
imiscuirem entre repartições públicas, sedes de sindicatos, a Escola de Arquitetura da
Universidade Estadual do Maranhão, a Escola de Música, um prédio restaurado pelo governo do
Estado para servir de moradia para funcionários públicos, no andar de cima, e de local de
produção e exposição de arte, no térreo, e uns três casarões/cortiços
3
ainda habitados.
4
Esta rua é bastante movimentada durante o dia e extremamente deserta à noite, quando
mais parece uma cidade fantasma, devido ao reduzido número de moradores que apresenta. Ao
seu final, situa-se o muro do Convento das Mercês, cuja frente se encontra na Rua da Palma.
Nessas andanças/olhadas no campo, normalmente subia a Jacinto Maia, virando no
Convento e percorrendo a Rua da Palma até chegar à Igreja do Desterro, refazendo sempre o
caminho de volta para a Praia Grande, através da 28 de julho. Para além das diferenças na
1
O trecho do Centro Histórico eleito como campo empírico (ver Mapa II no Anexo) corresponde a uma parte do
perímetro que vem sendo designado como bairro do Desterro por instituições públicas e privadas que ali têm
realizado projetos. A partir de 1997, com a obtenção do título de Patrimônio da Humanidade pela cidade de o
Luís, tal área passou a ser mais bem assistida por esses investimentos.
2
Denominação do projeto efetivado, principalmente, na década de 1980 no governo de Epitácio Cafeteira, o qual
tinha como objetivo inicial revitalizar o Centro Histórico de o Luís. Conforme Corrêa (2003, p.128) estavam
previstas nesse projeto ações de revitalização da área a partir da implantação de pousadas e de um Programa de
Habitação voltado para funcionários públicos, as quais não tiveram aplicação significativa. O bairro da Praia Grande,
maior contemplado pelas ações de tal projeto, passou a ser denominado na mídia e no cotidiano de moradores da
cidade, turistas, moradores e freqüentadores da área como Reviver. Para maiores informações consultar CORRÊA
(2003, p.128-136).
3
Com essa expressão designo habitações coletivas constituídas em prédios do Centro Histórico abandonados por
seus proprietários e ocupados por indivíduos que deles fazem suas moradias.
4
Dois dos quais foram desativados em setembro de 2004, para se efetivar uma reforma que visa a estabilizar esses e
outros sete prédios dos bairros da Praia Grande e Desterro. Seus moradores foram temporariamente deslocados para
um sobrado situado na Escadaria Humberto de Campos, na Praia Grande, onde deveriam permanecer por sete meses,
período inicialmente previsto para a execução dos trabalhos.
15
arquitetura
5
entre as duas áreas percorridas, nenhuma outra descontinuidade me saltava aos olhos.
Era como se estivesse percorrendo trechos de um mesmo universo social.
O avanço da inserção em campo fez de minhas andanças, caminhadas. A caminhada,
segundo MAGNANI (2000, p.36), “pelo efeito de estranhamento que induz, permite treinar e
dirigir o olhar para uma realidade inicialmente tida como familiar e conhecida”. Assim, um
percurso que nas andanças assistemáticas parecia homogêneo, foi-se afigurando como indicativo
de três paisagens sociais distintas, três fisionomias.
Com olhar atento desenho uma primeira paisagem percorrendo as ruas 28 de julho e
Jacinto Maia. É manhã. Homem negro, de meia idade, está sentado na calçada, à sombra. Parece
imóvel olhando para um tempo ido. Num boteco, dois homens bebem sem pressa cerveja barata.
Uma senhora negra e gorda se posta atrás do balcão, num ambiente escuro, só muito atentamente,
traduzido como lanchonete, onde alguém talvez consuma um café. Uma mulher suja e
embriagada dorme no batente de uma porta. A seu lado, sentados, dois homens. Não conversam e
nem parecem vigiar seu sono. Além do sol escaldante, resta um silêncio de morte que não se
agita com a passagem do transeunte. Alguém entra em portas de sobradões onde vivem gentes à
procura de um real de alguém. Alguém de dentro da porta o tem um real, mas pergunta,
coçando a cabeça, que bicho deu hoje. É sábado. É noite. Crianças correm pela rua brincando
com cachorros. Homens e mulheres jogam dominó num tabuleiro colocado sobre suas pernas à
guisa de mesa. Quem perde paga a cerveja: elemento do ritual do jogo. Numa mesa posta na porta
de casa, vende-se pastel e batata frita. A zanga da dona da venda não tem força para inibir o fiado
do filho do vizinho; que já deu a primeira dentada no pastel. Um fogareiro, mais adiante, não pára
de assar carne. O freguês está, decerto, a caminho. Um jogo de vôlei intercepta a rua onde carros
não passam mais. Crianças brincam de andar em cima do muro do Convento das Mercês. De
todos os cantos ouvem-se risos.
Da Rua da Palma, acima do muro do Convento até a Delegacia de Polícia, rabisco outro
cenário. É manhã. Bebê passeia na ponta dos pés por entre o lixo espalhado na calçada. Na boca,
prato descartável usado. A mãe me encara com ria quando, desconcertada, faço graça para a
criança, tentando disfarçar que meu olhar atento pinta, com ligeireza, um quadro. Passam carros,
5
Da Praia Grande até a altura do Convento das Mercês a arquitetura é marcada pelos imponentes sobrados em estilo
colonial português, e do Convento até a Igreja do Desterro, predominam porta e janelas(casas térreas que se
caracterizam pela fachada com uma porta e uma janela) e meias moradas(casas térreas que se caracterizam pela
fachada com uma porta e duas janelas), uma arquitetura mais simples e menos pomposa.
16
passa gente. Senhor alquebrado pela idade sentado numa cadeira de sapateiro. Ao lado, tabuleiro
de bombom. No rosto, a tranqüilidade de quem não espera freguês. Alguém vem comprar cigarro
barato. Alguém lhe pede moeda a ser paga de tarde. Alguém passa e lhe cumprimenta. Rapaz,
sentado no degrau da calçada. Parece esperar algo. No rosto a certeza que hoje vai ser igual a
ontem. Flanelinhas perguntam com os olhos se quero alguma coisa. Nada respondo, nem com
palavras nem com gestos. Olhos vermelhos e esbugalhados me encaram. Faço de conta que nada
vejo. É domingo. Fim de tarde. Mulher senta no chão da calçada, outra na beirada da rua.
Senhora receita à moça benzimento em terreiro. Casarão prestes a tombar no chão, formiga de
gente. Alguém insulta alguém numa discussão tensa e rápida. Muro pintado com o número do
candidato da eleição retrasada. Toca um reggae. Homem dança no meio da rua abraçando garrafa.
Mulher brinca com uma faca, sem apontá-la para alvo preciso. Qualquer um ou ninguém está na
mira. É noite. A rua escurece. Agora tenho medo de olhar.
Rua da Palma, abaixo do muro do Convento em direção à Igreja do Desterro: outro
retrato. É manhã. Casas com portão fechado, grades nas janelas, grades nas portas. Cheiro de
bife. Nas calçadas, lixo nos sacos. Há um carro e uma moto estacionados na rua, não muito
distantes um do outro. Igreja fechada, largo vazio. É sábado. Fim de tarde. Uma moto passa
veloz. Quando se aproxima, pode-se identificar o motorista: criança aventureira. No largo da
Igreja tem jogo de bola e pegador. A porta da Igreja está aberta. Cai a noite É dia de novena. Vai
ter bolo de tapioca na casa de alguém. Homem alto e magro, sentado num dos três degraus que
dão acesso à Igreja. Conversa com meninos. Ralha com eles calmamente. Mulheres levam
cadeiras para a porta de outra mulher. Falam da novela enquanto passa o Jornal Nacional.
Movimento, gente. Criança, homem e mulher vão à praça. A praça ainda pulula de gentes.
Descendo a escada da praça, chega-se à outra praça. Antes de chegar à praça, olham-se, à
esquerda, casas que parecem não ter morador e, à direita, geladeiras usadas, que esperam
conserto, enquanto a semana não começa. Uma música alta a um bar uma movimentação de
birosca de parada de ônibus de bairro de periferia.
Nessas caminhadas, “não se tratava de buscar o inusitado, o inesperado, mas, ao
contrário, o reiterativo, o padrão, a norma” (MAGNANI, 2000, p.36). Alinhavando cacos do
exótico repetidos incessantemente, tracei o esboço de fisionomias que iam se tornando familiares.
Com o passar do tempo cada um desses três rostos foi se fazendo mais distinto um do outro e
me parecia absurdo tê-los um dia fundido numa só fisionomia.
17
A partir dessas caminhadas, contudo, era possível traçar as linhas mais gerais desses
rostos. lhes pude, porém, vislumbrar as rugas, manchas, marcas e sinais quando consegui
enxergá-los mais de perto, mas ainda assim, sei que a imagem que deles traço é fruto da
perspectiva que adoto para olhá-los.
O avanço da incursão em campo (o olhá-los mais de perto) e as ferramentas conceituais
adotadas (a perspectiva de onde os vejo) me possibilitaram ver tantos nuances desses rostos, que
hoje minhas mãos tremem ao tentar rabiscar seus traços mais gerais.
Adentrei nesse universo social com olhos de ocidental para quem todos os japoneses são
iguais: têm olhos puxados e são baixinhos. Aproximando-me deles comecei a perceber que se
representavam de múltiplas formas. Era como se dissessem: “Temos todos olhos puxados”, e ora
se dividissem apontando: “aqueles têm o olho esquerdo mais puxado”, “aqueles têm a
sobrancelha mais grossa”. E, sei que seria um esforço vão, perscrutar uma diferença em si, pois o
que medeia que um olho seja visto como mais apertado que o outro ou uma sobrancelha como
mais fina ou mais grossa é o ponto de vista de quem os vê.
Ao longo dessas caminhadas fui parando e conversando com essas pessoas estranhas
(seres de olhos puxados) que falavam coisas incompreensíveis, classificações em um idioma que
eu desconhecia. Meu desconforto diante desse mundo ininteligível é comparável ao de qualquer
leitor desavisado que se depare com esse trecho de “uma certa enciclopédia chinesa”,
meticulosamente selecionado por Borges (apud FOUCAULT, 1999, p.8):
[...] os animais se dividiam em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c)
domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na
presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com
um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha,
n) que de longe parecem moscas.
Com essa citação, Borges provoca o leitor, como me provocaram homens e mulheres,
crianças e adultos moradores de um trecho do Centro Histórico de São Luís que elegi como área
de estudo, quando acionavam corriqueiramente classificações instituídas a partir de critérios
arbitrários que me pareciam sem nexo.
Assim como para um leitor de Borges, talvez, seja natural dividir os animais em: insetos,
aves, peixes, mamíferos, mas é absurdo classificá-los como pertencentes: ao imperador,
embalsamados, domesticados, leitões, para mim também era natural representar um espaço social
condensado em meia dúzia de ruas num único desenho, mas parecia absurdo que seus moradores
18
recortassem-no em vários pedaços, formando figuras geométricas que ora se excluíam, ora se
interpenetravam.
Aos meus olhos de estrangeira, todos aqueles que seriam meus nativos eram,
simplesmente, moradores do Centro Histórico, mas, para eles, ali havia “moradores” e “gente de
fora”, “pessoas tranqüilas” e “marginais”, gente limpinha” e gente imunda”. Para tentar
compreender essas classificações tive que aprender um pouco da sua língua para mapear
categorias e critérios que comandavam essas di-visões. Esse trabalho é, portanto, o resultado de
um difícil e doloroso aprendizado de alguns verbetes desse idioma estrangeiro, do qual falo
algumas frases, inevitavelmente, com sotaque carregado.
Assim construí minha interpretação, que não pretende assumir nenhum dos pontos de
vista desses nativos, mas sim, constituir-se num ponto de vista de todos os pontos de vista
investigados. Como coloca Bourdieu, procurei situar-me no espaço dos pontos de vista:
Para compreender o que se passa em lugares que, como os “conjuntos habitacionais” e
os “grandes conjuntos”, e também numerosos estabelecimentos escolares, aproximam
pessoas que tudo separa, obrigando-as a coabitarem, seja na ignorância ou
incompreensão mútua, seja no conflito, latente ou declarado, com todos os sofrimentos
que disso resultem, não basta dar razão de cada um dos pontos de vista tomados
separadamente. É necessário também confrontá-los como eles o são na realidade, não
para os relativizar, jogando até o infinito as imagens cruzadas, mas, ao contrário, para
fazer aparecer pelo simples efeito da justaposição, o que resulta do confronto de visões
de mundo diferentes ou antagônicas, isto é, em certos casos, o trágico que nasce do
confronto sem concessão nem compromisso possível de pontos de vistas incompatíveis,
porque igualmente fundados em razão social. (BOURDIEU, 1997, p.11)
O objeto aqui construído trata de movimentos de construção e desconstrução de pontos de
vistas, que ora se apresentam como incompatíveis e divididos, ora como intercambiáveis e
fundidos.
Mapeando os critérios de classificação que ora separam ora imiscuem os moradores do
trecho do Centro Histórico de São Luís eleito como área de estudo, busco compreender o
movimento de construção e desconstrução de fronteiras sociais entre eles. Procuro analisar as
práticas e representações desses moradores perscrutando indícios de processos e movimentos de
identificação em curso
Nos tópicos a seguir narro o movimento de construção desse texto. Primeiramente,
detenho-me na reflexão do primeiro contato com a área de estudo, quando iniciava um longo
aprendizado de incursão no ritual de passagem que é o trabalho de campo. A seguir apresento o
sistema abstrato construído para tornar possível a investigação de uma realidade empírica que se
19
apresentava a priori como caótica. E finalizo o capítulo expondo a metodologia adotada:
interpretando as opções tomadas, as dificuldades enfrentadas e o percurso construído.
Utilizo, ao longo do texto, categorias acionadas pelos informantes
6
, buscando mapeá-las
de modo a tornar um tanto quanto legível uma cultura, até então, desconhecida para mim e,
decerto, para o leitor.
1.1 “Balança mas não cai”: o encontro com o exótico
Quando me preparava para a seleção de mestrado, em maio de 2003, esbocei um
anteprojeto de pesquisa que tinha como área de interesse casarões do Centro Histórico de São
Luís, conceituados, corriqueiramente, no senso comum como cortiços, por não apresentarem
condições satisfatórias de higiene e segurança. Muitos desses casarões/cortiços são utilizados
como moradia por famílias, indivíduos ou grupos de indivíduos (leia-se amigos ou conhecidos
que dividem cômodos). Em cada linha daquele hoje distante anteprojeto estavam inscritas minhas
primeiras impressões acerca daquele universo social conceituado provisoriamente como
integrante do que batizei cidade-imagem da pobreza. No primeiro parágrafo - como carro abre-
alas - daquele rascunho, anteprojeto (2003), escrevi:
Na virada do século XXI o centro histórico de São Luís se transmuta em matéria-prima
para a construção de uma multiplicidade de imagens: a cidade-imagem da memória- dos
sobrados restaurados, das luzes dos lampiões, das ruas calçadas com paralelepípedos
onde veículos não trafegam, a cidade do passado que se (re)cria como espetáculo da
modernidade, cidade do tempo (re)memorado e (re)inventado sob o signo de patrimônio
da humanidade-; a cidade imagem da cultura popular- das praças que se tornam palco
para grupos de bumba-meu-boi, tambor de crioula e “cantores da terra,”dos galpões e
escadarias onde se dança reggae, das lojas onde se expõe e se comercializa artesanato,
cidade signo da identidade da terra e do povo maranhense-; a cidade-imagem da
pobreza- dos casarões apinhados de gente que ameaçam desabar a qualquer momento,
dos mendigos que se arrastam entre as mesas dos bares mais freqüentados, do comércio
informal que perambula dia e noite pelas ruas, praças e estabelecimentos comerciais,
cidade-imagem que as agências legitimadaso se interessam em exportar para o
mundo.(FERREIRA, 2003, p.2)
Percepção apriorística e apressada, trazia em si o peso de um imenso estranhamento que
esses moradores e seus modos de vida me causavam. E hoje, quando muitos outros
estranhamentos se construíram e (des)construíram, percebo que acionava a categoria pobreza
6
As categorias acionadas pelos informantes estão grafadas ao longo do texto entre aspas duplas, e os conceitos por
mim formulados ou tomados emprestados enquanto ferramenta teórica estão grafados em itálico.
20
para homogeneizar, a partir de um olhar externo e en passant, o que do ponto de vista dos
nativos
7
se afigura como um universo múltiplo e hierarquizado. A um primeiro olhar, enxerguei
esses nativos através de uma lente comum de pobreza: porque não tinham casa própria (e por isso
invadiam ou locavam cômodos em prédios que ameaçavam desabar a qualquer momento); nem
emprego fixo (já que entre eles figuravam trabalhadores do comércio informal, prostitutas,
traficantes de drogas, flanelinhas, artistas de rua e, principalmente, “gente que vai se virando,
vivendo de bicos ou de esmolas”); nem estudo ou pistolão que lhes permitisse subir na vida.
Enfim, eram como condenados à pobreza, eram o lixo social urbano que foi parar no Centro
Histórico
8
. Tal percepção, cidade-imagem da pobreza, portanto, se sustentava numa obviedade
tênue: eles são pobres.
O aprofundamento do contato com esse universo social tratou de embaralhar o que nesse
momento parecia translúcido. Se, para um olhar externo, eles seriam todos iguais, quando
começava a penetrar nesse universo, a partir dos olhos de ver
9
de quem vivencia essa realidade, o
que era translúcido se tornava nublado, e quanto mais avançava no encontro com o olhar do
outro, mais movediço, estranho e obscuro se fazia o que já parecia fixo, familiar e claro.
A matéria-prima principal do anteprojeto (FERREIRA, 2003) foram as impressões que
tive de um casarão/cortiço, conhecido como “balança mas não cai”, situado na Rua de Nazaré,
distante pouquíssimos metros dos bares e restaurantes mais freqüentados da Rua da Estrela, uma
das principais artérias do coração do Reviver
10
.
Em março de 2002, quando estagiária da Coordenação de Patrimônio Cultural
11
da
Fundação Municipal de Cultura (FUNC), realizei, juntamente com uma equipe das áreas de
Arquitetura, Sociologia e História, uma visita de vistoria
12
ao “balança mas não cai”. Nessa
época, a Coordenação de Patrimônio da FUNC, a Prefeitura de São Luís, a Caixa Econômica
Federal e um grupo de arquitetos franceses estabeleciam parceria num projeto que tinha como
finalidade restaurar e adaptar prédios tombados do Centro Histórico para serem utilizados como
7
Parafraseando GEERTZ (1989)
8
Aurora, prostituta que mora num dos cômodos de um casarão da Rua de Nazaré com seus três filhos, assim se
expressa acerca dos homens e mulheres que como ela vieram parar no Centro Histórico: -Num tem casa, num tem
emprego, num tem dinheiro, vai fazer o que nega? Vem pro centro, que é aqui que tem prédio velho pra invadir”. É
como se, com o crescimento da cidade, o centro da cidade passasse a assumir a função de periferia.
9
Parafraseando Astolfo Serra (1965)
10
vide nota 2
11
Tal Coordenação foi elevada à categoria de Núcleo Gestor do Centro Histórico.
12
‘visita de vistoria’ era a categoria que utilizávamos corriqueiramente no nosso trabalho, mas, para a visita em
questão, talvez o termo ‘incursão’ seja mais apropriado.
21
apartamentos.
13
Nossa equipe visitou 20 prédios, dos quais cinco foram escolhidos para a
execução do projeto. Entre tais imóveis constava o da Rua de Nazaré 135, o balança mas não
cai”.
Para se realizar tal vistoria não eram necessárias mais de cinco pessoas, mas como o local
(leia-se as pessoas que nele viviam) era tido como perigoso, fomos em doze. Até mesmo um
funcionário da FUNC, que não participava da nossa equipe, foi acionado, que entre nós
havia um homem, e a presença de outra figura masculina daria mais segurança às estagiárias.
Nosso batalhão chegou munido de algumas trenas e muitos receios. Mas o estranhamento foi
de mão dupla: os moradores daquele prédio (talvez) também acharam intrigante
14
haver três
pessoas tirando medidas das paredes e outras dez se olhando assustadas.
A recepção a nossa visita não foi das mais cordiais: um rapaz amolava uma faca olhando
em nossa direção; outro urinava no piso superior, para que a urina escorresse, por entre as peças
de madeira, sobre nossas cabeças, na parte térrea do imóvel; algumas mulheres insinuaram-se
para as estagiárias que foram do seu agrado; uma outra mulher, aparentemente embriagada,
perguntou os motivos da visita. Um dos homens da equipe, ali presente, apressou-se em
responder, cautelosamente, mas ela o interrompeu dizendo: “-Eu quero saber das meninas- e
exclamou: -Esse prédio é nosso! Nós estamos aqui há muito tempo. Daqui a gente não sai. Daqui
ninguém tira a gente, nem Roseana
15
.” Seu discurso foi interrompido pela chegada de uma outra
mulher que a chamou dizendo: -Ei, teu pequenininho tomando cerveja.” Ouvindo isso, saiu
correndo.
Dessa primeira visita ao “balança mas não cai” ficaram gravadas duas impressões muito
fortes: o estranhamento e o desconforto. Foi com espanto e incompreensão que deixei aquele
local. Ele era um desconhecido desconcertante e só queria sair dali o mais rápido possível. Por
essa época não tinha intenção de construir um objeto de pesquisa a partir daquela experiência,
mas a inquietação da existência de dois universos sociais tão distintos casarões/cortiços versus
bares requintados do Reviver- num espaço físico muito próximo, ficou gravada: aquele mundo de
outros era um enclave dentro do espaço sico do meu mundo de mesmo. Se o Reviver era um
13
Desde o final da década de 1990 o governo do Estado do Maranhão vem investindo no restauro e adaptação de
prédios para a construção de apartamentos para funcionários públicos.
14
Clifford (1998, p.50) alerta que “a habilidade do pesquisador de campo em habitar as mentes nativas suscita
sempre dúvidas”.
15
Roseana Sarney, então governadora do Estado do Maranhão. Talvez porque as ações da Prefeitura de São Luís em
relação ao Centro Histórico estavam se iniciando, nossa ‘visita/incursão’ foi associada ao governo do Estado.
22
espaço familiar
16
, sobre o qual tinha certo grau de conhecimento, que costumava andar pelas
suas ruas nas minhas atividades de estudo, trabalho e lazer, o “balança mas não cai” era o
inquietante exótico encravado no seio do familiar. Meu, hoje, moribundo anteprojeto de pesquisa,
elaborado após um ano de distanciamento dessa experiência, me obrigaria a realizar uma árdua
tarefa: a de “transformar o exótico em familiar”.(DA MATTA, 1984, p.157)
Em janeiro de 2004, voltei ao balança mais não cai” na companhia de Igor, um
amigo/informante
17
. Igor costumava freqüentá-lo, principalmente para comprar “fumo”. Até
poucos dias antes da nossa visita, havia uma boca de fumo
18
nesse prédio, desativada com a
prisão de ‘N’, traficante que ali morava/trabalhava. A notícia da prisão de ‘N’ me deixou um
pouco mais tranqüila, pois sem o tráfico a entrada no “casarão”
19
poderia ser menos complicada.
Encontrei com Igor no casarão/cortiço em que ele morava e conversamos um pouco
sobre minha pesquisa. Ele me fazia a pergunta clássica (e desconcertante): “-O que é que tu quer
mesmo saber?” E eu ia tentando explicar o que nem eu mesma sabia. Ele, enquanto “bolava um
baseado”
20
, ia me ouvindo falar de algumas das decisões que precisava tomar. Na época, as
decisões eram questões do tipo: estudar em um único casarão/cortiço
21
(o que poderia
possibilitar analisar mais profundamente um microcosmo), ou estudar em vários
casarões/cortiços (o que talvez pudesse dar uma visão mais abrangente desse universo)? Ele
colocou a questão dessa forma:
aquele casarão um trabalho ‘loôco’ [leia-se bom]. Aquilo ali é surreal. O quintal
[pátio interno], as paredes, tudo é cheio de limo. Nego tomando banho e os ratos tão
16
Segundo Velho (1981, p.126), “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente
conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto conhecido”. Com o “balança mas
não cai”, eu tinha uma certa familiaridade- já tinha passado várias vezes em frente ao prédio, provavelmente já tinha
cruzado com alguns de seus moradores que vigiam carros, dançam tambor de crioula, trabalham como ambulantes ou
“filam” cigarros nos bares do Reviver- a qual, no entanto, não me permitia naquela experiência transcender a
estupefação do desconhecimento de um mundo familiar, porém exótico.
17
Igor, amigo/informante (e não informante/amigo, pois é alguém com quem eu tinha algum contato antes de
adentrar no campo) é um dos muitos artistas populares -ele é músico, artesão e ator- que mora, produz e vende arte
no bairro da Praia Grande. Como muitos deles, “só anda duroe mora no Centro Histórico onde “se vira”. Quando
desta visita, morava num casarão, também situado na rua de Nazaré, onde se alugavam quartos (com valores entre 50
e 100 reais, dependendo de variáveis como tamanho, ventilação, vista etc.) para artistas que não têm comprovante de
renda, nem fiador.
18
Boca de fumo designa local de tráfico de entorpecentes.
19
Categoria utilizada pelos moradores para referir-se ao que conceituo como casarão/cortiço
20
Cigarro de maconha
21
Embora o processo de construção do objeto de pesquisa ainda estivesse dando seus primeiros lentos e trôpegos
passos, já havia uma clareza de que o(s) cortiço(s) eram área e não objeto de estudo, pois, como já apontou
GEERTZ (1989, p.16), “O locus de estudo não é o objeto de estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos,
cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias”.
23
passando por cima do deles. É gente criando cachorro prum lado e gente criando
menino pro outro. Ali é uma mistura de tudo; de lixo, de gente e de bicho. As crianças
pequenininhas, de calcinha, brincam com os ratos; botam eles no colo e chamam eles
com nome de gente: Carlinhos, Joãozinho, Paulinho. Ali é ‘podrão’, ‘podrão’ mesmo.
Essa representação do “casarão” feita por Igor me deixou preocupada. Se ele, que tinha
certa familiaridade com aquele universo social (por morar num casarão/cortiço e freqüentar o
“balança mas não cai”), sintetizava suas impressões do prédio com o adjetivo “podrão”,
encharcado de hierarquias, como seria possível para mim, que tinha acabado de cair ali de pára-
quedas, “transformar o exótico em familiar”? (DA MATTA,1984, p.157) Mas, o problema
parecia se colocar de outra forma: talvez, mais a meu favor que contra mim. Conforme aborda
Velho (1981, p.128): a familiaridade pode se constituir num empecilho para a leitura
antropológica:
Não só o grau de familiaridade varia, não é igual a conhecimento, mas pode constituir-se
em impedimento se não for relativizado e objeto de reflexão sistemática. Posso estar
acostumado como já disse com uma certa paisagem social; onde a distribuição dos atores
me é familiar; a hierarquia e a distribuição do poder permitem-me fixar, grosso modo, os
indivíduos em categorias mais amplas. No entanto, isso não significa que eu compreenda
a lógica de suas relações. O meu conhecimento pode estar seriamente comprometido
pela rotina, hábitos, estereótipos. Logo, posso ter um mapa, mas não compreendo
necessariamente os princípios e os mecanismos que o organizam. O processo de
descoberta e análise do que é familiar pode, sem dúvidas, envolver dificuldades
diferentes do que em relação ao que é exótico.
Assim, se a familiaridade que Igor apresentava com o “balança mas não cai” lhe permitia
elaborar uma leitura daquele universo, sua inserção naquele meio, seu conhecimento do mapa
hierárquico que distribui pessoas e lugares em determinadas categorias, levava-o a reproduzi-las
sem problematizá-las. O “balança mas não cai” era sempre pensado em relação ao “casarão” em
que morava e por isso era sujo, insalubre e habitado por pessoas sem higiene. Ele precisava
pensar-se como superior e, talvez, como exterior àquele universo estigmatizado pelo olhar de
fora.
Uma pessoa estranha àquele mundo, que conhecesse os dois “casarões”, provavelmente
diria que o da Rua de Nazaré 135 era mais sujo, mais insalubre e habitado por pessoas com
menor noção de higiene do que o prédio de Igor. No “balança mas não cai” esses aspectos seriam
mais visíveis: o lixo acumulado no pátio interno/quintal; as madeiras desgastadas do assoalho do
segundo andar; a convivência de cachorros com pessoas em compartimentos com cerca de trinta
24
metros quadrados
22
; o excessivo número de indivíduos e cômodos num prédio considerado
inabitável pela vigilância sanitária e pelo corpo de bombeiros e a convivência de famílias com o
tráfico e a prostituição.
No prédio do Igor, os passos cambaleantes de alguém não acostumado aos buracos,
movimentos e ruídos dos degraus corroídos pelo tempo, lembravam a sensação de subir as
escadas do balança mas não cai”. O estado do banheiro e a falta de encanamento da privada
eram outras semelhanças com o prédio “podrão”. Por outro lado, ali havia um número menor de
moradores e os inquilinos formavam um grupo mais homogêneo
23
. Não havia crianças nem
animais e os ratos e as baratas pareciam mais midos (geralmente se escondiam quando viam
“gente de fora”). Embora não houvesse “boca de fumo”, quase todos os que residiam ou
freqüentavam o “casarão” eram usuários de maconha. Para um olhar menos familiarizado com a
paisagem física e humana, a diferença entre os dois “casarões” seria de intensidade e não de
natureza. Utilizando a categoria acionada por nosso informante, não é que o “balança” fosse
“podrão” em relação ao “casarão” do Igor; ele seria no máximo mais “podrão”. Para um olhar
externo, provavelmente, o adjetivo se aplicaria aos dois espaços. Mas, à época dessa segunda
visita ao prédio, minha preocupação era de não conseguir fugir dessa leitura óbvia. Urgia
transcender a imagem do “podrão”.
Fui ao “casarão” da rua de Nazaré nº 135, vulgo “balança mas não cai”, com essas
perguntas e angústias na cabeça. Eram por volta de onze horas da manhã quando chegamos.
Como uma moradora tinha acabado de entrar, encontramos a porta da frente aberta. Rapidamente
22
Característica comum a habitações de classe média com as mesmas dimensões físicas.
23
O administrador desse imóvel alugava modos para artistas e em cada quarto havia no máximo duas pessoas,
na maioria das vezes casais (leia-se homens que recebiam visitas constantes de suas namoradas/companheiras) Os
traços de semelhança observados por mim entre os moradores desse casarão não se restringiam às suas atividades
profissionais, eles normalmente faziam parte de um mesmo círculo de amigos e levavam um estilo de vida parecido,
marcado pela boêmia e por projetos de engajamento político cultural. A título de exemplo acerca deste último
aspecto mencionado, em setembro de 2003, moradores e freqüentadores desse prédio ali realizaram um bazar onde
houve apresentação de teatro de bonecos e venda e exposição de objetos de artesanatos confeccionados com
materiais reciclados. Esse seria o primeiro passo de um projeto, a essa época gestado entre eles, de revitalização da
praça das crianças, localizada na esquina das ruas de Nazaré e da Estrela, que se encontra, até hoje, praticamente
abandonada. Ela seria utilizada como palco para a apresentação de atividades artísticas culturais. No casarão dos
artistas percebi, também, alguns indícios de um ambiente mais comunitário, as refeições eram geralmente feitas em
conjunto na cozinha de uso comum e, por vezes, inclusive mantimentos eram divididos entre os moradores.
Comportamentos desviantes entre eles costumavam ser punido com severidade: uma informante foi expulsa desse
casarão por conta de uma briga violenta com o companheiro durante a madrugada. .Já no ‘balança mais não cai’ a
relação parecia ser mais do tipo ‘cada um por si’; ali eu não cheguei a perceber territórios intercambiáveis ou regras
de segurança estabelecidas em conjunto. Pelo contrário, o mecanismo acionado para tornar possível a convivência
era antes o isolamento e a divisão do espaço que seu compartilhamento. Uma porta impedindo o livre trânsito do
segundo andar (onde funcionava a ‘boca de fumo’) para o terceiro é um indício dessa distinção.
25
e sem cerimônia (assim como se diz tudo bem), Igor me apresentou (leia-se explicou, justificou,
legitimou minha presença) dizendo: “-Essa aqui é uma colega minha que tava a fim de conhecer
o casarão”. Ao que a moça, olhando rapidamente para trás, num misto de pressa e educação,
respondeu: “-Entra, fica a vontade. Não repara não; tá tudo sujo, tudo bagunçado. A gente
ainda nem limpou...Ao que falei: “-Não te preocupa não. Eu adoro esses casarões, acho muito
bonito. Tenho até vontade de morar num casarão assim”. E ela, sem diminuir o ritmo dos passos,
acrescentou: “-Eu também adoro isso aqui, praticamente me criei aqui, mas tenho que sair daqui,
não tem jeito...” E subiu, agilmente, as escadas em direção a seu quarto/casa.
Essa frase, ouvida fora das formalidades de uma entrevista ou do tempo de uma conversa
(o ritmo foi muito mais parecido com o de um encontro no elevador, embora a metáfora possa
parecer bizarra, quando o cenário é o vão de entrada de um “casarão” colonial que ameaça ruir),
cutucou um problema que doía adormecido no caderno de campo. Outros informantes haviam
se referido a um desejo de sair do Centro Histórico, apesar de continuarem vivendo ali. Dentre os
motivos alegados para deixar o local figuravam: o receio de possíveis desabamentos dos prédios,
o não possuir casa própria e a necessidade de adquiri-la e o convívio com uma vizinhança
repugnada moralmente. Apesar desses argumentos acionados, esses informantes, tal qual a moça
que encontrei na porta do “balança mais não cai” continuavam vivendo no mesmo trecho.
Uma questão adormecida foi acordada pela fala da moça (“eu também adoro isso aqui,
praticamente me criei aqui, mas tenho que sair daqui, não tem jeito...”): que sentimento de
pertencimento os moradores desses “casarões” estabelecem (ou não) com o Centro Histórico?
Por que é recorrente em seus discursos a necessidade (vontade?) de sair dali e por que não saem
(conseguem sair)?
Fui guardando essa questão na cabeça enquanto subia a escada para chegar ao piso
superior do balança mas não cai”, pois havia muita coisa para observar/pensar no “casarão”,
transcorridos quase dois anos da primeira visita. A maioria dos cômodos estava fechada e nos
corredores algumas crianças brincavam correndo por trechos que, aparentemente, poderiam
despencar a qualquer momento. Dois cachorros se aproximaram de nós, mas meu
amigo/informante os conhecia pelo nome, e a moça que encontramos na entrada -enquanto
cozinhava uma comida com cheiro bom- dizia, para me deixar tranqüila: “-Eles não mexem não,
colega”.
26
Se, na primeira visita ao prédio, realizada dois anos antes, o exótico me tinha saltado aos
olhos, nessa segunda, vários traços familiares começaram a se desenhar: o “não repara a
bagunça” que ouvi na entrada; os cachorros bem cuidados -que em nada remetiam à imagem do
“podrão” construída por Igor-; e o cheiro de comida boa. A meus, olhos o prédio tinha se tornado
habitável: não era assim tão sujo repugnante e assustador, como a primeira imagem que havia
traçado. Era como se aquele mundo de outros tivesse transcendido a noção de exótico
24
, para se
afigurar como diferente, porém, passível de inteligibilidade. Estavam dados os primeiros passos
no longo percurso de se “transformar o exótico em familiar”.
Em agosto de 2004, retornei a esse “casarão” para tentar um primeiro contato com aquela
que poderia ter sido uma mediadora no processo de inserção no campo, Aurora, que “se vira”
como prostituta e morava mais ou menos seis anos nesse prédio. Vivia num cômodo com
cerca de vinte e cinco metros quadrados com três de seus filhos, cujas idades variavam de doze a
sete anos. Normalmente tinha visita: alguma amiga que estivesse passando uns dias por lá
visando “ganhar um troco nas correrias
25
”.
Como ainda não conhecia Aurora, cheguei a seu quarto levada pelas mãos de Ângela
26
,
acostumada às escadas, pisos e universos sociais dos “casarões” da Praia Grande que fazem
cambaleantes os passos de quem os desconhece
27
. Encontramos Aurora deitada numa rede, ainda
se recuperando das facadas que levara de uma outra moradora do prédio. A gravidade da situação
me fez recuar da idéia de estudar no “balança mas não cai”. Havia um outro contato a tentar,
mas, ironicamente, ele faleceu meses depois, vítima de um acidente (segundo os jornais da cidade
noticiaram) ou de homicídio (como se comentava à boca miúda na Praia Grande). Como disse
uma outra informante: “- O ‘balança mas não cai’ é ‘remoso’, é muito ‘remoso’”. E eu precisava
produzir. E rápido. Outros ares menos(?) “remosos
28
” me aguardavam.
24
Utilizo aqui a categoria exótico nos termos em que a coloca Da Matta (1984, p.157): “o exótico depende
invariavelmente da distância social, e a distância social tem como componente a marginalidade (relativa ou
absoluta), e a marginalidade se alimenta de um sentimento de segregação e a segregação implica em estar só,
desembocando tudo –para comutar rapidamente essa longa cadeia- na liminaridade e no estranhamento.”
25
termo normalmente usado pelas prostitutas para se referir ao “fazer ponto” à procura de clientes, ou seja, o
exercício da atividade da prostituição..
26
Colega de curso de graduação que se tornou informante.
27
Além do desconforto sico experimentado por conta da estrutura desgastada desses casarões, onde geralmente
pouquíssima iluminação e muitos buracos nas escadas, no piso e nos telhados, soma-se o estranhamento com esse
mundo de outros, conforme narro nesse tópico.
28
Equivalente a reimoso.
27
1.2 Construção do problema
A participação no Projeto Viver o Desterro
29
possibilitou-me construir uma outra imagem
do espaço físico e social que representava como homogêneo. Nas discussões realizadas no grupo
de pesquisa Memória e Patrimônio tive oportunidade de deparar-me com algumas peculiaridades
do “bairro”
30
, até então, imperceptíveis nas andanças.
Nas nossas conversas, eram sempre interessantes observações feitas por Marta,
participante do grupo e moradora do Desterro desde a infância. Numa de nossas reuniões narrou
que, quando criança, havia sido disciplinada a dobrar a Rua da Palma na altura da Rua Jacinto
Maia, em direção ao Mercado Central, evitando passar pelo espaço delimitado como Zona do
Baixo Meretrício
31
, a ZBM
32
.
E acrescentou que, por vezes, dobrava involuntariamente a mesma esquina, repetindo um
hábito gravado no corpo muitos anos. Nessa narração, as ruas do “bairro” do Desterro se
apresentavam como um espaço fisicamente próximo, mas socialmente separado das ruas que
29
Parceria realizada entre a Superintendência Regional do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no
Maranhão, o Núcleo Gestor do Centro Histórico de São Luís e o Grupo de Pesquisa Patrimônio e Memória da
Universidade Federal do Maranhão, financiado pela Companhia Vale do Rio Doce, tem como objetivo resgatar as
memórias do bairro do Desterro e realizar atividades visando a uma educação patrimonial dos moradores da área.
30
Não uma definição oficial dos limites entre os bairros da Praia Grande, Desterro e Portinho. Quando utilizo a
categoria bairro” ao longo do texto o faço no sentido que adquire nos discursos dos nativos, qual seja, designando
um perímetro físico que não tem, geralmente, um correspondente preciso nas regiões que utilizarei como ferramenta
conceitual. O mapa II do Anexo equivale à representação mais comumente utilizada pelos moradores para designar o
“bairro” do Desterro.
31
Conforme Campus (2001, p.28), o intento de segregar um espaço da capital para a atividade da prostituição era
parte de um projeto mais amplo, que tinha como objetivo “o saneamento urbano de São Luís, ao qual se atrelavam
interesses de saneamento moral”. Ordenar e civilizar a cidade pressupunha definir um espaço do prazer no perímetro
urbano. Desde o início da década de 1930, o meretrício ludovicense passou a ser alvo de intervenções do poder
público. A partir de setembro de 1931, nas casas de prostituição passaram a ser realizados “giros [inspeções] diurnos
e noturnos da Guarda Civil [...] Em São Luís, as interferências foram, a princípio, verificadas na imposição de limites
aos horários de circulação das meretrizes no território da cidade”.(CAMPUS, 2001, p.30-31)
32
Na bibliografia disponível acerca da ZBM, normalmente se faz referência a sua criação, no início da década de
1940, durante a Interventoria de Paulo Ramos no Maranhão, embora nenhuma das obras por mim consultadas
apresente documentação indicativa do momento preciso dessa institucionalização e dos motivos que levaram a sua
efetivação especificamente nesse local. Na breve pesquisa que realizei nos arquivos, também não localizei nenhuma
fonte sugestiva dessas questões. A desativação da ZBM e o enfraquecimento de suas atividades também é alvo de
opiniões controversas. Contudo, esse trabalho o tem como objetivo perscrutar marcos oficiais do início ou do fim
da ZBM, mas sim investigar as múltiplas representações da ZBM de outrora e de uma zona atual acionadas pelos
moradores da área estudada. Somente a título de informação, Lopes (2004, p.29-30) aponta que a ZBM funcionou
de forma mais intensa entre as décadas de 1950 até o início dos anos oitenta. E, a partir de 1968, com a inauguração
da Ponte do São Francisco, que imprimiria diversas alterações na utilização do espaço urbano, as atividades da
prostituição, até então concentradas na ZBM, deslocam-se para outras áreas da cidade.
28
outrora abrigaram a ZBM
33
. Esse primeiro indício da construção de uma fronteira permaneceu
adormecido no caderno de campo até ser acordado por outras surpresas que me aguardavam.
Em agosto de 2004 teve início uma oficina de fotografia para crianças que fazia parte do
Projeto Viver o Desterro. O grupo de pesquisa que integrava participou como colaborador nas
atividades aí realizadas.
A experiência nessa atividade propiciou a observação de aspectos que foram fundamentais
para a nova construção do objeto. Percebi, pela primeira vez, a existência e eficácia de
classificações que di-vidiam os moradores do que eu, até então, julgava ser um espaço
34
homogêneo. Um princípio de di-visão era/é acionado para cindir tal espaço contíguo em regiões.
O conceito de região proposto por Bourdieu parece uma ferramenta útil no movimento de
construção teórica necessário à aproximação e apreensão do campo empírico:
A etimologia da palavra região (régio), tal como a descreve Emile Benveniste, conduz
ao princípio da divisão, acto mágico, quer dizer, propriamente social de diacrisis, que
conduz por decreto, uma descontinuidade decisória na continuidade natural (não só entre
as regiões do espaço, mas também entre as idades, os sexos, etc.) (BOURDIEU, 2003,
p.113)
No campo empírico adotado, utilizo a noção de instituição de regiões, pelo decreto de
uma descontinuidade socialmente construída na continuidade natural. Num espaço físico vizinho
se estabelecem duas regiões distintas: a região de “cima” e a região do “Desterro”. Trata-se,
como propõe Bourdieu, de lutas a respeito da construção de identidades:
Com efeito, o que nelas está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social
através dos princípios de di-visão que, quando se impõem ao conjunto do grupo,
realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a
unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo.
(BOURDIEU,2003,p.113)
A produção do sentido e do consenso do sentido, da representação da unidade e da
identidade dos grupos, no caso do objeto que intento construir, são acionados por um princípio de
di-visão que estabelece regiões, onde as representações do real se fazem real.
33
Segundo REIS (2002, p.23), a ZBM se localizava “bem no coração do Centro Histórico de São Luís, e sua área era
composta pelas ruas: Direita ou Henrique Leal; da Palma ou Herculano Parga; 28 de julho ou do Giz; da Saúde; da
Estrela ou Cândido Mendes; boa parte da Jacinto Maia; Formosa ou Afonso Pena; Travessa da Lapa; Travessa Feliz;
Travessa do Portinho; e Rua da Manga”, ou seja, numa área imediatamente contígua ao bairro do Desterro.
34
Espaço no sentido geográfico, físico e social.
29
A interpretação dos primeiros dados construídos levou-me a elaborar, inicialmente, dois
conceitos operacionais: região de “cima” e região do “Desterro”. O território
35
designado região
de cima” corresponde ao espaço físico onde existiram os mais luxuosos cabarés da Zona do
Baixo Meretrício, englobando as ruas da Estrela, 28 de julho, da Palma (acima da rede Somar
36
),
Jacinto Maia, rua Direita e da Saúde. Essa região é, normalmente, classificada pelos da região do
“Desterro” como lugar de pessoas de baixo nível moral.(vide Mapa I no ANEXO). O território
designado região de “baixo” ou região do “Desterro” corresponde à área que se encontra
imediatamente abaixo da primeira (vide Mapas III e IV no ANEXO). Seus moradores são,
normalmente, classificados pelos da região de “cima” como pseudo-elitizados e pseudo-
moralizados.
O episódio ocorrido na oficina de fotografia ilustra o primeiro contato que tive com esta
di-visão. No primeiro dia, iniciamos as atividades com uma breve apresentação dos alunos.
Todos se sentaram no chão formando um círculo. Pedimos que se identificassem, um por vez, e
falassem dos locais do “bairro” do Desterro que mais gostavam de freqüentar. Quase todos
mencionaram o Largo e a Igreja do Desterro onde costumavam jogar bola, passear, assistir
missas, participar de novenas, festas etc. A dinâmica proposta foi que cada aluno, antes de se
apresentar, repetisse os nomes daqueles que o tivessem feito. Os primeiros logo repetiam, com
facilidade, os nomes daqueles que lhes antecederam e julguei que a dinâmica não seria
interessante, por entender que, se todos freqüentavam os mesmos locais do “bairro”, eles
deveriam se conhecer pelo nome.
Ledo engano: a dinâmica se mostrou mais interessante do que imaginava. Cada aluno só
lembrava, sem dificuldade, do nome de um ou outro colega, normalmente daqueles que estavam
sentados próximos de si. Percebi, então, que no círculo formado, as crianças se sentaram em
grupos -cada um procurou se fazer próximo de algum(s) conhecido(s)-, mas não consegui
entender o que favorecia aquela aproximação.
No final do dia, comentei com uma das monitoras da oficina minha perplexidade diante
do ocorrido: não conseguia compreender como era possível que aquelas crianças e adolescentes
35
Utilizo território no sentido que Claude Rafastin (1986 apud HAESBAERT, 1997, p.183) à territorialidade
humana, como um conjunto de relações que desenvolve a coletividade -e, portanto, o indivíduo que a ela pertence -
com a exterioridade e/ou alteridade por meio de mediadores ou instrumentos.
36
Rede Somar designação comumente utilizada nas décadas passadas para designar uma rede de pequenas
mercearias. Apesar dessa rede não mais existir na cidade, os moradores mais antigos das regiões de “cima” e de
“baixo”, continuam designando o mercadinho aí existente com a mesma expressão.
30
que, decerto, se cruzavam nas ruas, na igreja e na praça do “bairro” pudessem não se conhecer. A
monitora da oficina, moradora da região de “baixo” há muitos anos, explicou-me, sem embaraço,
como quem fala de uma obviedade: “-Eles se conhecem de vista, mas não sabem os nomes uns
dos outros, porque aqui quem é de baixo não fala com quem é de cima, porque diz que em cima
marginal, maconheiro, gente que não presta, e embaixo patricinha e mauricinho”. E
acrescentou, falando rápido e estalando a língua nos dentes (como num dar de ombros), dando à
frase um quê de desprezo: “-É besteira” A expressão dessa di-visão passou a ser um dos
elementos fundamentais no movimento de construção do objeto de estudo.
A partir dessa experiência e de outras interpretações
37
de campo que se seguiram, o
problema dos casarões/cortiços, que não chegou a se configurar como problema propriamente
dito, permanecendo, embrionariamente, como mera área de estudo, foi perdendo relevância e
desaparecendo diante da percepção/construção de um problema cujas dimensões superavam,
sobremaneira, a rasa e apressada distinção entre as formas de habitação existentes no local. O
número de famílias e indivíduos residentes num “casarão”, suas condições de higiene e segurança
estrutural não parecem ser os critérios preponderantes para a classificação dos moradores desse
“bairro”. Estes se classificam e se di-videm acionando outros princípios de diferenciação,
princípios estes que sugerem a demarcação de espaços específicos a partir da produção social de
fronteiras, visto que, como sugere Da Matta (1997, p.32), ”o espaço é demarcado quando alguém
estabelece fronteira, separando um pedaço do chão de outro”.
A categoria casarão/cortiço, eleita, num primeiro momento, como elemento central para a
construção do objeto, não tinha mais nenhuma utilidade diante do problema que se esboçava: o
movimento de construção social de regiões. Fazia-se necessário mapear critérios de classificação
acionados pelos que se situavam nesses dois pedaços de chão. Inicialmente, debrucei-me sobre a
investigação de uma primeira fronteira que cindia o espaço em duas regiões: a de “cima” e a de
“baixo” ou do “Desterro”.
Meu primeiro olhar sobre tais fronteiras, inevitavelmente superficial e apressado, levou-
me a sintetizar dois sistemas de classificação: um elaborado pela região de “baixo” ou do
“Desterro” e outro pela região de “cima”. Os de “baixo” se auto-representam como pessoas
37
Concebo a simultaneidade e indissociabilidade da observação e interpretação em campo, da forma como coloca
GEERTZ (1989, p.7): alertando-nos para o erro de se ver “a pesquisa etnográfica como uma atividade mais
observadora e menos interpretativa do que ela realmente é. Bem no fundo da base fatual, a rocha dura, se é que existe
uma, de todo empreendimento, nós já estamos explicando, e o que é pior, explicando explicações.”
31
“tranqüilas”, “simples”, “decentes” que vivem num ambiente “familiar” e os de “cima” são
classificados por aqueles como “gente que não presta”, “prostituta”, “maconheiro”, “traficante”,
“ladrão”, “metido a doidão”, “gente de gangue”, “marginais”, “invasores”, “penetras”. Os de
“cima” se auto-representam como “desempregados”, “artistas” e portadores de uma memória
legítima da ZBM, e representam os de “baixo” como “metido a besta”, “cheios de frescura”,
“pseudo-ricos”, “elitistas”, “hipócritas”, “patricinha”, “mauricinho”
38
. Outras questões, (talvez)
mais profundas e, decerto, mais embaralhadas, estavam sendo construídas.
Percebi, no discurso de moradores e de freqüentadores assíduos da área estudada, uma
distinção entre “bairro” do Desterro e região do “Desterro”. O mapa II (vide ANEXO), apresenta
uma construção do “bairro” do Desterro como uma área muito extensa, englobando os territórios
das regiões de “cima” e de “baixo”. Os informantes que traçaram esse mapa deixaram
transparecer que este é um traçado exclusivamente físico.
Marluce, funcionária do Memorial do Centro Histórico e ex-professora de uma escola da
área, assim traçou os limites do “bairro” do Desterro:”-Desterro começa na faculdade de
Arquitetura e vai até a Igreja. Da faculdade de Arquitetura pra lá é Praia Grande”.
Em seguida, apontou sua di-visão em duas regiões:”Da igreja até chegar na Rede Somar,
moram famílias, gente de respeito. Mas do Convento pra , mora gente que não presta;
traficante, prostituta, marginal, por isso que as políticas aplicadas nessa área não dão certo.”
No discurso de Marluce, agente externa àquele espaço (leia-se não moradora), dois tipos
distintos de moradores são classificados: os que possuem comportamento familiar (gente de
respeito) e os que não prestam (marginais, traficantes, prostitutas). No espaço do “bairro” do
Desterro, estariam inscritas duas regiões: a de”cima” e a do “Desterro”.
Um outro informante, morador da 28 de julho (região de “cima”), traçou um mapa
semelhante, distinguindo “bairro” do Desterro e região do Desterro”. Os limites do “bairro”
iriam da Rua Direita ou Henrique Leal até o Largo do Desterro. Sua casa, portanto, se localizaria,
no espaço físico do “bairro” do Desterro e no território da região de cima”.
Numa das conversas que tivemos em sua casa, sua filha respondeu à mãe, quando esta
perguntou: “Vai pra onde, Malena? Vou no Desterro”. (grifo meu) O uso da expressão “lá”
sugere outra região.
38
Nesse primeiro momento da exposição do objeto de estudo, demarco com muita ênfase as fronteiras, na tentativa
de tornar o problema inteligível para o leitor não familiarizado. Ao longo da construção do texto, tento relativizar a
efetividade dessas fronteiras, aqui desenhadas com demasiada força.
32
O avanço das interpretações de campo colocaram a necessidade de construir mais duas
regiões: a interdita e a Centro Histórico. A interdita corresponde a uma di-visão intra-região de
“cima”, e é classificada, normalmente, pelos de “cima” como o lugar da “malandragem”, do
“tráfico”, de uma prostituição decadente e de desconhecidos, “gente de fora”.
A região Centro Histórico foi construída com a finalidade de servir como ferramenta de
aproximação com um movimento em curso, qual seja, a construção de uma formação social com
interesses comuns e disputas entre os de “cima”, de “baixo” e os da interdita.
Colocava-se para mim o interesse em compreender as formas de classificação construídas
de modo a estabelecer di-visões que pareciam, à primeira vista, muito nítidas. Busquei em Elias
(2000) inspiração para conduzir a investigação. Ao estudar o micro universo social formado por
grupos vizinhos, numa pequena comunidade da periferia, de uma próspera cidade da Inglaterra,
codinominada Winston Parva, Norbert Elias elaborou um modelo explicativo que, segundo ele,
“pode funcionar como uma espécie de ‘paradigma empírico’: a figuração estabelecidos-
outsiders”.(ELIAS, 2000, p.21)
Dentro deste modelo atuam dois grupos: os estabelecidos, que se auto-representam como
superiores, como dotados de um carisma grupal; e os outsiders (os de fora), estigmatizados pelos
primeiros como pertencentes a um grupo marcado pela desonra. Tais grupos, segundo Elias, não
são apenas representativos da realidade empírica estudada, pelo contrário, refere-se a um tipo de
figuração comum e constante nos grupos humanos.
Na comunidade analisada por esse autor os diferenciais entre os grupos de estabelecidos e
outsiders não se deviam a critérios econômicos, às distinções em relação à nacionalidade, à
ascendência étnica, à cor da pele, ao nível de instrução ou ao padrão habitacional dos moradores.
De acordo com suas observações de campo, era o tempo de moradia no local e o conseqüente
diferencial de coesão interna e de controle comunitário que estabeleciam as fronteiras entre os
grupos: os estabelecidos eram descendentes de famílias antigas que viviam nessa área há cerca de
duas ou três gerações, e os outsiders eram moradores mais recentes, que não se conheciam entre
si e que, portanto, não tinham um passado compartilhado antes de ali chegarem.
Apesar da categoria “morador antigo” ser valorizada pelos moradores das regiões de
“cima” e do “Desterro”, este não parece ser o principal critério que orienta a classificação, mas
outros que remetem para aspectos morais. Assim, tomando de empréstimo o modelo formulado
por Elias, conceituo os que vivem na região do “Desterro” como estabelecidos, que esses se
33
auto-representam e/ou são tidos como auto-representados sob o signo da virtude e da retidão
moral e, aos que vivem na região de “cima” como outsiders, por serem representados como
desviantes desse modelo.
Interpretações do campo empírico sugerem uma estigmatização de mão dupla: dos
moradores da região do “Desterro” em relação aos da região de “cima” (prostitutas, traficantes,
marginais, gente que não presta) e dos da região de “cima” em relação aos da região do
“Desterro” (patricinhas e mauricinhos, bairristas, metidos a besta, pseudo-ricos). Utilizo,
portanto, as noções de estabelecidos e outsiders propostas por Elias, procurando perceber
mecanismos de identificação acionados por ambos.
Outra di-visão, operada intra-região de “cima”, tem nesses conceitos, ferramentas úteis no
movimento de aproximação com o campo empírico. Os moradores da região denominada
interdita são classificados como outsiders em relação aos da região de “cima” que, dentro desta
outra di-visão, atuariam como estabelecidos.
A contigüidade física dessas regiões aponta um outro problema a ser pensado: a
construção de fronteiras entre estas. Como Barth (1997), ao pensar a questão da fronteira entre os
grupos étnicos coloca, tais “fronteiras são sociais, se bem que podem ter contrapartidas
territoriais” (p.195). Esse me parece ser, por vezes, o caso da fronteira que di-vide as regiões de
“cima” e do “Desterro”, uma fronteira social que parece apresentar um correspondente no espaço
físico. O movimento de construção do objeto levou-me a identificar indícios da construção de
uma outra região, a região Centro Histórico, onde as regiões estudadas (de “cima”, do
“Desterro” e a interdita) por vezes se desconstroem, e suas contrapartidas territoriais parecem se
diluir num só espaço.
No primeiro momento de investigação, as fronteiras entre as regiões (de “cima” versus do
“Desterro” e de “cima” versus interdita) me pareciam separar rigorosamente universos sociais
distintos. Embora, corriqueira e sutilmente, os moradores são identificados e/ou se identificam
como pertencendo à região de “cima”, de “baixo” (ou do “Desterro”), ou à interdita; acionando
um nós (aqueles que se reconhecem como jogando um mesmo jogo) em relação a um eles
(apontados e dicotomizados como outros ou como estrangeiros) em outros momentos, esses
outros se reconhecem como mesmos, atravessando e diluindo fronteiras construindo uma
região: a Centro Histórico.
34
O movimento de construção do objeto levou-me a perceber que o conceito de fronteira
formulado por Hall (2003, p.33), seria mais adequado por abandonar uma noção binária de
diferença, em prol da construção de uma noção aberta, onde mesmos e outros deslizam nas
fronteiras que se constituem em lugar de trânsito:
O conceito fechado de diáspora se apóia sobre uma noção binária de diferença. Está
fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um
‘Outro’ e de uma oposição gida entre o dentro e o fora. Porém as configurações
sincretizadas da identidade cultural caribenha requerem a noção derrideriana de
differrence- uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras veladas
que não separam finalmente, mas são também places de passage, e significados que são
posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem
fim.
Tomo, pois, como objeto de estudo o movimento de construção e desconstrução de
fronteiras sociais entre os moradores das regiões de “cima”, do “Desterro”, interdita e Centro
Histórico. Para tal intento, busco mapear critérios de classificação acionados cotidianamente nas
práticas e representações desses moradores, perscrutando indícios de processos e movimentos de
identificação em curso.
A investigação desse problema se faz possível na análise simultânea de práticas e
representações dos moradores das regiões construídas. Não procuro mapear entre tais atores
diferenças reais, por entender que a realidade é, antes, uma representação. Como coloca
Bourdieu (2003,p.103):
se pode compreender(...) a luta pela definição da identidade ”regional”(...) com a
condição de se passar para além da oposição que a ciência deve primeiro operar, para
romper com as pré-noções da sociologia espontânea, entre a representação e a realidade,
e com a condição de se incluir no real a representação do real ou, mais exactamente, a
luta de representações, no sentido de imagens mentais e também de manifestações
sociais destinadas as imagens mentais (e até mesmo no sentido de delegações
encarregadas de organizar as representações como manifestações capazes de modificar
as representações mentais)
Nesse sentido, analiso construções de realidades a partir de representações do passado ou
do presente dos moradores que se constituem em informantes desse trabalho.
1.3 Metodologia adotada
Nesse texto utilizo, as observações/interpretações de campo construídas ao longo de um
ano, aproximadamente, de inserção. Ao longo desse período, foram realizadas visitas
35
intermitentes à área de estudo e o objeto de pesquisa foi ganhando contornos à proporção que
avançava nas leituras teóricas e no trabalho de campo.
Egressa de outra área de estudo, a História, o trabalho etnográfico se apresentou como um
grande desafio, que encarei como uma difícil e fascinante empreitada. Nesse deslocamento de um
país estrangeiro (o passado) para um outro (constituído de homens e mulheres tão próximos e
distantes do meu mundo de mesmo), foram muitas as dificuldades encontradas. Acostumada a
construir fontes, a partir de uma criteriosa e paciente seleção de documentos escritos (jornais e
relatórios de presidentes de províncias do culo XIX), foi com certo desconforto e falta de
traquejo que comecei a construir fontes, através da interpretação paciente e angustiada de práticas
e representações de pessoas, até então, totalmente desconhecidas. Aprendendo com os erros e
caminhando lentamente, hoje, sei que me sentiria completamente perdida dentro de um arquivo,
como me sentia nas primeiras andanças no campo.
Aprendendo a engatinhar no campo dei muitas vezes com a cara no chão. Várias vezes,
esquecia que estava pesquisando e emitia opiniões que devem ser silenciadas. Como numa
ocasião em que comentei, quando um dos informantes disse pagar noventa reais no aluguel de um
quarto de trinta metros quadrados, sem banheiro interno: mas esse aluguel é muito caro!
Com o tempo fui aprendendo a controlar certas opiniões, deixando para conversar com as
fontes quando chegava em casa. Acostumada a dialogar com jornais velhos, rindo, me
emocionando e falando sozinha (quero dizer, com os documentos de papel) pelos arquivos e
bibliotecas, tive que aprender a emudecer na frente das pessoas de carne e osso, que nos seus
gestos, palavras e expressões corporais me forneciam a matéria-prima que eu lapidaria, com meu
olhar, para construir o que seriam meus documentos: meu caderno de campo.
Outro aprendizado árduo e doloroso foi o de buscar meios para estabelecer o que
Bourdieu (1997, p.695) denomina comunicação não violenta, a qual consiste na tentativa de
dominar os efeitos inerentes à relação da entrevista, buscando reduzir ao máximo (“sem pretender
anular”) “a violência simbólica que se pode exercer através dela”.(BOURDIEU, 1997, p.695)
Para tal intento, não basta silenciar opiniões pessoais frente ao entrevistado, faz-se necessário um
trabalho vigilante de duas dissimetrias inerentes a essa relação. A primeira diz respeito à própria
posição ocupada pelo pesquisador na relação de troca que é a entrevista: é ele “que inicia o jogo e
estabelece a regra do jogo, é ele que geralmente, atribui à entrevista de maneira unilateral e sem
negociação prévia, os objetivos e hábitos, às vezes mal determinados, ao menos para o
36
pesquisado”. (BOURDIEU, 1997, p.695) A segunda é a que Bourdieu denomina dissimetria
social entre pesquisador e pesquisado, que conceitua como os momentos em que “o pesquisador
ocupa uma posição superior ao pesquisado na hierarquia das diferentes espécies de capital,
especialmente do capital cultural”. (BOURDIEU, 1997, p.695)
Enquanto engatinhava no campo, tive muitas vezes dificuldade na tentativa de dominar,
na medida do possível, os efeitos dessas dissimetrias. No início da inserção, era apenas uma
estranha, um outro que, por vezes, puxava conversas fiadas e, em outros momentos, fazia
perguntas desconcertantes, as quais traziam em si uma resposta inevitável. Nesse engatinhar
pelo campo, sem fazer uso da indispensável vigilância metodológica, induzi, por vezes, respostas
que eu mesma produzia. Pois, sem essa atitude diante do fazer etnográfico:
Ninguém está livre do efeito da imposição, que as perguntas ingenuamente egocêntricas,
ou, simplesmente, desatentas podem exercer e, sobretudo, livre do efeito contrário que as
respostas assim extorquidas podem produzir no analista, sempre disposto a levar a sério,
na sua interpretação, um artefato que ele mesmo produziu sem o saber.
(BOURDIEU,1997, p.696)
Se aprender a engatinhar foi difícil, mais ainda o foi, dar os primeiros passos. Levei
muitos tombos, quando meus pés trêmulos ainda tinham medo de pisar no chão. Além de vencer
o medo de andar por territórios desconhecidos, fui aprendendo a mapear, a partir de um maior
contato com os informantes e de um avanço nas leituras teóricas, informações prévias
(BOURDIEU, 1997, p.700) sobre eles, o que foi me dando maturidade e confiança para
conseguir estabelecer uma postura metodológica adequada dentro do jogo da entrevista. Fui
descartando “perguntas forçadas e mal colocadas e construindo perguntas [mais] pertinentes,
verdadeiras ‘hipóteses’ que se apóiam numa representação intuitiva e provisória da fórmula
geradora própria ao pesquisado para provocá-lo a se revelar mais completamente”.(BOURDIEU,
1997, p.696, grifos meus) Tais informações prévias e representações intuitivas e provisórias
foram, inevitavelmente, modificando-se e ganhando maior densidade à proporção que avançava
no trabalho de campo. Ao mesmo tempo, esse percurso possibilitava um avanço de mão dupla: à
proporção que as informações prévias se adensavam, os passos no campo se tornavam, também,
mais firmes, amesmo, quando percebia que havia passado longas horas, percorrendo atalhos
que levavam a interpretações rasas e apressadas.
Muito tempo e esforço ainda precisavam ser despendidos para que deixasse de ser uma
mera estranha e passasse a ser uma estranha conhecida. Com o avanço da incursão em campo,
37
o medo passou e comecei a correr como uma criança curiosa pelas ruas da região de “cima”, de
“baixo” e interdita. E todo mundo já conhecia de vista a estranha que se metia em todos os cantos
dos pedaços de chão
39
cujas classificações procurava compreender.
Quando passava pelas ruas, todos os olhos se voltavam. Além dechamar muita atenção
pela aparência física
40
, as visitas constantes também começaram a ser notadas. Passava e
comentavam: “ela vem é muito por aqui, de vez em quanto ela passa daqui pra lá, de pra cá”.
Outros diziam: “ela passou cedinho, agora ela já está é voltando”.
Numa ocasião, quando meus pés ainda tremiam pelo medo de andar por um território
desconhecido, pedi a um amigo que me acompanhasse na andança pelo campo. Percebendo os
olhares e comentários a mim dirigidos, ele disse, brincando e falando sério: “eles faltam te
chamar de Buana, como os negros chamavam os brancos, nos filmes que assistia na infância”.
Mas depois que eu Buana aprendi a andar, quem passasse por aquelas ruas do Centro
Histórico poderia, talvez, pensar que eu fosse um deles. Eu Buana sentava ao lado do tabuleiro
onde se joga dominó, eu Buana era acolhida nas suas casas, eu Buana não andava dez
metros sem receber o abraço de uma criança ou um boa noite cordial.
Na ocasião em que passei toda uma tarde de domingo assistindo a um jogo de dominó
numa esquina da 28 de julho com a rua da Saúde, tive a sensação de ter dado minha primeira
corrida com os nativos, como a de Geertz
41
numa das brigas de galo a que assistiu. Eis a corrida:
a informante (que se tornaria uma grande amiga) que me introduziu e me acolheu no campo foi
até sua casa e trouxe caranguejos para eu comer. Enquanto eles jogavam dominó, comia
caranguejo, sem me importar com o líquido escuro que escorria pelos meus dedos. A
simplicidade desse ato cativou quem assistia à cena. Um deles disse: “no próximo domingo, vou
mandar comprar um caranguejo pra fazer pra ti, mas vou mandar alguém que saiba fazer direito,
porque Das Dores nem escova os caranguejos, aqui tu não vai mais comer caranguejo sujo”. O
caranguejo sujo rendeu-me caranguejos limpos e a confiança dos presentes.
Devo a meu incurso na Antropologia, o aprofundamento da aplicação de uma premissa
que, embrionariamente, trazia como legado da formação em História: a de que as palavras não
são palavras, as palavras são conceitos. Dessa forma, fiz um esforço de mapeamento das
39
Parafraseando Da Matta (1997, p.42)
40
Por ser albina fui muitas vezes reconhecida como turista estrangeira pelos nativos. Numa ocasião um deles me
ofereceu um prédio (que, claro, não era propriedade sua) julgando que eu fosse uma empresária “gringa”.
41
A respeita da corrida de Geertz com seus nativos ver GERTZ (1989,186)
38
categorias e dos critérios de classificação que permeiam o cotidiano de homens e mulheres que
vivem no Centro Histórico de São Luís.
Outros legados da História me foram úteis no aprendizado do fazer etnográfico. A
experiência do trabalho de pesquisa paciente e exaustivo nos arquivos e bibliotecas (quando
muitas vezes não encontramos ou pensamos não encontrar nada que nos interesse) me deu a
tranqüilidade para ouvir dos informantes o que não interessava (ou o que pensava não interessar).
Tive que utilizar as lições, já aprendidas na História, na sedução de pessoas humanas,
pois, para se ter acesso aos documentos de papel, também se faz necessário cativar seus
guardiões. E, assim, não foi difícil inventar um jeitinho etnográfico de conquistar meus
informantes: passava horas falando para eles de miudezas de minha vida, de uma doença da avó,
do meu medo de galinha etc., e, em troca, colhia miudezas de suas vidas, muitas das quais se
transmutariam em fragmentos prenhes de significação, diante do olhar inquiridor que os
problemas inerentes ao movimento de construção do objeto me fariam lhes lançar.
Em muitos momentos, tive que fazer uso de estratégias mais sofisticadas para construir
dados de pesquisa, principalmente, quando o interesse recaía sobre a área onde se concentram
“bocas de fumo”: a região interdita.
Vali-me, muitas vezes, de uma lição tomada de empréstimo de Marcos Alvito, como eu,
egresso da História, que adentrou no campo das Ciências Sociais. Enfrentou dificuldades
semelhantes num estudo que realizou numa favela carioca e, servindo-se do artifício da memória,
logrou, muitas vezes, cavar brechas para o fluir dos discursos. Comenta como a estratégia de
investigação das memórias franqueou o acesso às representações do presente:
No decorrer do trabalho de campo, percebi haver um discurso nostálgico acerca da
favela. Antigos chefes do tráfico, sobretudo, eram idealizados enquanto instauradores e
mantenedores de uma ordem justa e equilibrada, sem excesso de violência[...]. Passei
então a concentrar meus esforços na reconstituição dessa ‘memória’ dos bons tempos,
um discurso que, lido a contrapelo, dizia-me muito a respeito de como a realidade era
encarada. ‘Antigamente era assim’ significa ‘hoje em dia é assado’, com a vantagem de
evitar indagações diretas sobre o momento atual, passíveis de serem confundidas com
uma investigação policial.
(ALVITO, 2001, p.19)
Assim, a zona de antigamente me dava pistas da zona de hoje, o passado tranqüilo me dava pistas
de um presente de desassossego.
As primeiras conversas e entrevistas tiveram que ter como justificativa um suposto
interesse na história da ZBM ou do “bairro” do Desterro. No decurso do trabalho de campo fui
39
tentando explicar para alguns deles meu objeto de estudo. Os que compreenderam ficaram um
tanto quanto desapontados, pois o que esperam de um pesquisador é que esteja disposto a
“resgatar e escrever a história” do local. Nos seus olhos conseguia ler uma pergunta que
consideravam sem possibilidade de resposta plausível: para quê estudar isso?
Apesar de ter consultado fontes bibliográficas que abordam a Zona do Baixo Meretrício,
como CAMPUS (2001), REIS (2002) e LOPES (2004), privilegio fontes construídas a partir de
observações de campo. Essas constam de registros feitos em caderno de campo, conversas
informais e entrevistas gravadas.
No primeiro momento da construção dos dados de pesquisa, priorizei a observação direta
e as conversas informais. Somente à medida que fui conquistando a confiança dos informantes
comecei a utilizar o gravador como instrumento de trabalho e, nessas ocasiões, me servia dos
dados sistematizadas a partir de bate-papos corriqueiros para aprofundá-los nas entrevistas.
Procurei observar no “bairro” do Desterro, acontecimentos ordinários e extra-ordinários,
desde as missas na Igreja do Desterro, o jogo de bola das crianças no largo e ao lado do Convento
das Mercês, o dominó e a cerveja dos dias de domingo na rua 28 de julho, a entrega de
preservativos e as conversas corriqueiras de todos os dias na Associação das Profissionais do
Sexo no Maranhão- APROSMA, as reuniões do Fórum
42
, até a apresentação de danças, autos
natalinos, serenatas, velórios, bingos, e a execução de projetos na área, como uma oficina de
fotografia para crianças realizada na Igreja do Desterro.
Tive contato com moradores da região de “cima” e do “Desterro” e Centro Histórico. A
região de mais difícil acesso foi a que parece constituir uma nova fronteira intra-região de
“cima”, a interdita, que abrange trechos da rua da Palma e rua da Saúde, área de concentração de
“bocas de fumo”.
Procurei entre os entrevistados priorizar a diversidade em detrimento de um perfil
relativamente homogêneo. Entre meus informantes constam homens e mulheres, jovens, adultos,
crianças e idosos, lideranças políticas e indivíduos envolvidos nas atividades ali promovidas e
pessoas com relativo distanciamento dos problemas e interesses das regiões estudadas. Penso que
42
Fórum de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Desterro, Portinho e Praia Grande, criado, no início de
2004, com a finalidade de se constituir num espaço de discussão de projetos realizados na área junto aos “parceiros”.
Nesse Fórum se faziam presentes representantes da União de Moradores do Centro Histórico, APROSMA, cleo
Gestor da Prefeitura, Sebrae, Secretaria de Turismo, SEDUC, Cooperativa Gastronômica. Doravante denominado
Fórum.
40
é em tal escolha que reside a riqueza desse trabalho que permite vislumbrar algumas dentre suas
diversas nuanças.
A necessidade de lidar com moradores de regiões distintas obrigou-me a assumir uma
multiplicidade de posturas: se para uns era benquista por passar tardes inteiras assistindo ao jogo
de dominó e por aceitar um convite para tomar cerveja e ouvir histórias da ZBM na casa de
alguém, para outros o era por assistir à missa às sete horas da manhã de domingo, por conversar
sobre a história e as coisas corriqueiras do “bairro” na porta da Igreja do Desterro, ou por
aparentar ser uma pessoa decente.
Outras atividades me possibilitaram obter a confiança de pessoas das diferentes regiões,
como o desfile na Flor do Samba, escola de samba que tem sede no “bairro”, a participação nas
reuniões do Fórum e no projeto Viver o Desterro, que me conferiu o status de professora entre
crianças de “cima” e de baixo”. E assim, transitando pelos territórios e atravessando fronteiras
fui, parafraseando Zaluar (1985,p.20), “aceita finalmente, sem nunca [ter sido] considerada uma
igual”
Em algumas ocasiões, percebia que procuravam aumentar meu prestígio, talvez como
forma de se sentirem mais valorizados. Assim o fizeram quando souberam que tinha sido
professora da universidade. Eles teimavam em me apresentar como tal, malgrado corrigi-los,
rotineiramente, explicando-lhes que mais de um ano havia rescindido contrato com a UFMA.
Cansei de corrigi-los, mas eles não cansaram de perguntar, perto de outros, se estava “indo dar
aula na faculdade”. Fazer-me alguém importante era uma forma deles se sentirem importantes
também.
Em outros momentos, a conquista dessa proximidade começava a me dar trabalho. Tive
que ir para a festa do dia das mães da APROSMA e da União de Moradores, (como já tinha ido à
primeira não podia deixar de ir à segunda). Mas como os livros, as fontes a serem classificadas e
o computador, minha caneta e o papel, estavam sempre me esperando em casa, tive que aprender
a dizer que ‘não pude ir’ à novena de Santo Antônio, aos terços do mês de Maria, aos
lançamentos de livros e ao arraial do Desterro. Afinal, precisava de tempo e tranqüilidade para
conseguir refletir sobre um campo que, a essa altura, já me sufocava.
Devo também o êxito da inserção em campo a pessoas que me conduziram pelas mãos
quando este ainda era uma masmorra, só passível de passagem quando uma voz amiga anunciava
a visita de um desconhecido, que indagaria as coisas mais ordinárias e íntimas da vida de quem se
41
resguardava muralha adentro. Devo a Matilde e a Das Dores
43
, duas lideranças entre os de
“cima”, a possibilidade de quase me perder no contato com o labirinto dos problemas, das
urgências e dos sonhos desse universo.
Numa ocasião em particular me surpreendi comungando com as necessidades e as
expectativas deles. Numa tarde de segunda, fui ao Desterro fazer um contradom (MAUSS,1999),
auxiliar na redação de um documento de interesse da comunidade, afinal, conforme apontou
Zaluar (1985, p.15), a pesquisa é uma troca. Num ambiente de pobreza econômica e privação,
necessidades individuais tornam-se, muitas vezes, mais urgentes que interesses coletivos. Assim,
a reunião para a qual fui convocada tinha sido cancelada, porque o vice-presidente da União de
Moradores passara o dia tomando providências para um caso ocorrido na noite anterior: uma
moradora morrera eletrocutada ao tocar num dos postes que fazem a iluminação do Centro
Histórico.
Ele já havia registrado queixa, localizado um companheiro da vítima e resolvido as
questões burocráticas no IML, mas faltava arranjar o dinheiro para comprar o caixão. A reunião
foi cancelada. Passei a tarde com eles, tentando providenciar o caixão e buscando mobilizar a
imprensa. As ligações, claro, eram feitas do meu celular. Antes de discar o número do telefone de
um político, minha informante/amiga parou um instante dizendo: “Eu vou até me benzer, que isto
chora muita miséria pra soltar dinheiro”. E, num relance, nós duas fizemos simultaneamente o
sinal da cruz. Eu já havia “aprendido[...] a cultivar o envolvimento compreensivo, isto é, a
participação afetuosa e emocionada nos seus dramas diários”. (ZALUAR, 1985, p.15)
Entre os de “baixo” devo à Marta, colega de curso do Mestrado e moradora dessa região,
a possibilidade de ser acolhida em casas de pessoas que me desconheciam, de gravar as coisas
sérias e banais que falavam nas entrevistas que, pela presença de uma pessoa amiga e confiável,
ganhavam a leveza e a espontaneidade dos bate-papos de esquina.
Como uma proximidade maior com esses moradores ocorreu somente a partir do mês de
abril, a presença de Marta foi fundamental. A essa altura, não havia mais tempo para conquistar
informantes, como pude fazer com os de “cima”, nem minha prodigiosa memória, cansada,
conseguia guardar muitas informações. Somente com a presença dela se tornou possível construir
dados riquíssimos num espaço curto de tempo.
43
São respectivamente presidentes da União de Moradores do Centro Histórico e da Associação de Profissionais do
Sexo no Maranhão (APROSMA), organização não governamental com sede nessa área.
42
No primeiro momento de sistematização desse trabalho, quando do exame de
qualificação, o fato de ter tido uma proximidade maior, até aquele momento, com os de “cima”,
levava-me a ler minhas fontes com olhar apaixonado. Os alertas feitos nessa ocasião, um maior
distanciamento do campo que me fora recomendado e o aprofundamento do contato com os de
“baixo” possibilitaram-me um amadurecimento do olhar e uma vigilância mais severa na minha
relação com os problemas que o movimento de construção do objeto me colocavam.
Para preservar a identidade e a segurança dos informantes, optei por modificar seus
nomes.
43
2 DOIS PEDAÇOS DE CHÃO (?): o de “cima” e o do “Desterro”
Procuro fazer um exercício de aproximação com o campo empírico, para torná-lo legível
aos meus olhos e aos do leitor a partir de uma descrição densa de fragmentos de práticas e
discursos construídos aqui e ali, com a paciência e a angústia de quem pretende, minimamente,
transitar pelas ruas e entre a gente de um país estrangeiro –sem a ingênua pretensão de deixar de
fazer-se estranho e/ou de vê-los enquanto tais. Intento, apenas e arduamente, usando as palavras
de GEERTZ (1989, p.12), “reduzir [minha] perplexidade –que tipos de homens [e mulheres] são
esses?”(grifos e interferências minhas)
Busco situar esses homens e mulheres no quadro de suas próprias banalidades,
dissolvendo [até o possível] sua opacidade”.(GEERTZ,1989,p.12) A superação da opacidade, no
entanto, não garante a pintura de um quadro nítido; nele as cores e as formas nem sempre
poderão ser nomeadas com as palavras que o vocabulário teórico fornece.
As relações entre os moradores do que conceituo como regiões do “Desterro”, de “cima”,
interdita e Centro Histórico são, normalmente, mediadas pelo uso de categorias de classificação.
Busco, neste capítulo, mapeá-las intentando torná-las inteligíveis dentro de um conjunto, que se
afigura como desordenado para um observador externo e como harmônico para os moradores que
o naturalizam nas suas práticas cotidianas. As categorias acionadas por esses agentes sociais não
podem ser entendidas como estando isoladas umas das outras, pois “classificar não é apenas
constituir grupos; é dispor esses grupos segundo relações muito especiais” (DURKHEIM e
MAUSS, 1988, p.403)
As classificações que di-videm o “bairro” do Desterro em regiões, a de “cima” e a de
“baixo” (ou do “Desterro”) e a interdita, e aquelas que as une, firme ou frouxamente, numa
região, a Centro Histórico, podem ser visualizadas, se investigarmos as categorias de
classificação utilizadas cotidianamente nas relações entre os moradores. Tais di-visões,
provavelmente vistas como absurdas por qualquer visitante desavisado que chegue a esse espaço
foram/são arbitrariamente construídas ao longo de um passado/presente compartilhado e são
reproduzidas ou transcendidas (desconstruídas), nas suas práticas e representações cotidianas.
Assim, sujeitos que, por vezes, se representam como outros (os de “cima” versus os de “baixo” e
os de “cima” versus os da interdita) reconhecem–se, em outros momentos, como mesmos
(moradores da região Centro Histórico).
44
Como nos apontam Durkheim e Mauss (1988, p.403): “Toda classificação implica uma
ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível nem nossa consciência nos oferecem o
modelo.” A ordem hierárquica que perpassa a construção e a desconstrução de tais di-visões, não
emana da natureza das regiões, nem da onisciência dos sujeitos que a instituíram, pelo contrário,
elas podem se fazer cognoscíveis, na medida em que interpretamos os indícios das relações
estabelecidas entre os moradores, indícios estes construídos a partir da interpretação de práticas e
discursos.
2.1 ‘Tudo é Desterro”: a negação(?) das fronteiras
Utilizei como estratégia inicial de incursão no problema das fronteiras a indagação
interessada e desinteressada dos limites físicos das regiões. E assim, perguntando onde é o
“Desterro” e onde é o “lado” de “cima” fui construindo fontes que me possibilitaram elaborar
uma construção preliminar do problema. Investigando os mapas que os informantes formavam
nos seus discursos e práticas, criei o sistema abstrato que tornou viável a análise de um campo
empírico que, em si, se apresentava como caótico e ininteligível: as regiões de “cima”, de
“baixo”, Centro Histórico e interdita.
Nesse tópico interpreto discursos onde a negação da di-visão entre os de “cima” e os de
“baixo” é acionada explicitamente. Para esses agentes “tudo é Desterro”, não existem mais os
“lados” (as regiões) de “cima” e de “baixo”, “tudo é uma coisa só” (região Centro Histórico).
Contudo, nas entrelinhas das suas práticas e representações, ao mesmo tempo em que percebo
indícios da formação da região Centro Histórico, leio a continuidade e a ressemantização de uma
fronteira entre os de “cima” e de “baixo”.
A região de “cima”, quando reconhecida, é localizada pelos informantes dentro do espaço
físico onde funcionaram os mais luxuosos cabarés da ZBM (vide ANEXO I). A identificação de
um território correspondente a essa região, ainda que sutilmente acionada, aponta um elemento
central para sua definição física e social: a “zona”. Tal elemento é, por vezes, sublimado e, por
outras, grifado nas representações dos moradores das regiões que tomo como ferramentas de
análise.
Em muitos discursos, essa região não existe mais, é coisa do passado, é “só besteira”.
Como afirmou D. Matilde, presidente da União dos Moradores do Centro Histórico e moradora
45
da Rua Jacinto Maia (em frente ao muro do Convento), numa conversa corriqueira que travamos
enquanto me conduzia para a casa de um informante:
Tudo é uma coisa só: Desterro, Praia
Grande, Portinho, é tudo Centro Histórico.”
Diagrama 1 – representação da região Centro Histórico por moradores - A. “Tudo é Desterro”
Na fala de Matilde tive um primeiro contato com a idéia de que aquele espaço físico, de
dimensões relativamente pequenas e fragmentado em muitos territórios, poderia, nas
representações sociais dos moradores, por vezes, formar um todo: a região Centro Histórico. No
início da pesquisa, quando ainda não conseguia ter distanciamento do campo empírico, não dei
tanta importância a esse dado, julgando tratar-se de uma atitude condicionada pelo lugar social do
qual a informante fala, qual seja, a de presidente da União de Moradores do Centro Histórico
44
.
O discurso de Matilde, como o de outros informantes aqui citados, tende a afirmar a
existência de uma di-visão entre os de “cima” e os de “baixo” na época de funcionamento da
ZBM e a negar sua continuidade no presente. A afirmação de uma fronteira que “já acabou”, que
é “coisa do passado”, parece-me uma estratégia de negação da reprodução e ressemantização da
di-visão. É como se o afirmar que já houve fosse uma forma de escamotear sua vigência.
Quando insisti na indagação sobre uma possível di-visão entre os da região de “cima” e
os da região de “baixo”, a mesma informante colocou:
44
Ainda que nesta ocasião (que não se tratava de nenhuma entrevista formal) Matilde, provavelmente, estivesse
falando mais como moradora do que como presidente da União de Moradores. O fato dessa informante ter um cargo
no Núcleo Gestor do Centro Histórico também interfere nas suas representações dessas questões.
Praia Grande
Região de
“cima”
Região de
“baixo”
Portinho
Desterro
46
- Qui! Isso é besteira isso é coisa do passado, já acabou.
- Mas não tem pessoas que até hoje não passam onde foi a ZBM, na Rua da Palma, na 28
de Julho?
que tem algumas pessoas que têm preconceito. Porque às vezes a história acaba, mas
a memória fica. Mas isso é besteira.
Matilde chama atenção para um elemento essencial para a análise da questão: a memória.
Mesmo que uma história da ZBM tenha acabado (uma história representada como luxuosa,
decente e bonita pela maioria dos moradores de ambas as regiões), na memória das pessoas tal
história continuaria viva, sendo cotidianamente ressemantizada (outros elementos como tráfico,
sujeira, pobreza e violência são acionados nas representações de uma zona atual). Uma zona que
foi e, por vezes, uma zona que é, são (re)construídas nos discursos dos informantes.
Ainda conforme esse depoimento, a di-visão ou, nas palavras dessa informante, a
“besteira que já acabou”, sobrevive nas práticas e representações de alguns indivíduos em
particular “-tem algumas pessoas que têm preconceito”.
A forma como Elias (2000, p.23)) coloca a necessidade de distinção entre preconceito
individual e estigmatização grupal talvez ajude a sistematizar alguns aspectos desse problema:
Em Winston Parva, como em outros lugares, viam-se membros de um grupo
estigmatizando os de outro, não por suas qualidades individuais como pessoas, mas por
eles pertencerem a um grupo considerado diferente e inferior ao próprio grupo. Portanto,
perde-se a chave do problema que costuma ser discutido em categorias como a de
preconceito social, quando ela é exclusivamente buscada na estrutura de personalidade
de indivíduos. Ela só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada pelos
dois (ou mais) grupos implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua
interdependência.
Numa tentativa de aproximação com o discurso da informante mediado pelas ferramentas
teóricas propostas por Elias, poderia dizer, numa tradução arriscada (como toda e qualquer
tradução), que, para ela, a di-visão hoje se apresenta em termos de preconceito individual e não
de estigmatização grupal.
É interessante destacar que o lugar de onde Matilde fala, qual seja, o de presidente da
União dos Moradores do Centro Histórico, exige-lhe lidar cotidianamente com situações onde o
problema da di-visão se coloca; o cargo que ocupa requer um trânsito entre as fronteiras, nem
sempre livre de engarrafamentos e outros transtornos. A título de exemplo, na ocasião das
47
inscrições de crianças do “bairro”
45
na oficina de fotografia do Projeto Viver o Desterro, houve
queixas de alguns moradores de “cima” acerca da exclusão de filhos de prostituta neste evento.
Um outro morador da rua 28 de julho (região de “cima”), ex-presidente da União de
Moradores, conta que, antes de assumir tal função, era cumprimentado por todos quando andava
pela região do “Desterro”, “mas foi virar presidente da União que o povo [da região] do
Desterro começou a virar a cara pra mim. Com Matilde agora deve ser a mesma coisa”. Se
Matilde passa por situações semelhantes, isso não aparece em seus discursos, que é mais fácil
para um morador e ex-presidente emitir opiniões desse tipo.
A observação direta de práticas de Matilde, contudo, sugere limites na sua relação com os
de “baixo”. Numa das visitas que fiz à área presenciei uma situação de dificuldade financeira
vivida por Matilde. Na ocasião, buscou auxílio entre os de “cima”, malgrado os de “baixo
possuírem maior estabilidade financeira. Assisti quando pediu um real emprestado para uma
moradora de “cima”, que alegou não ter um centavo. Continuou sua peregrinação pela região de
“cima” lamentando: “desde de manhã que eu ando atrás de um real e ninguém tem”.
Em várias outras ocasiões, observei que é comum entre os de “cima” pedir-se e emprestar-
se pequenas (que se fazem grandes) quantias de dinheiro nas horas de “aperreio”. Tais laços de
solidariedade parecem se restringir dentro das fronteiras dessa região, até mesmo em se tratando
da presidente da União dos Moradores do Centro Histórico.
Nesse sentido, esse episódio me parece sugestivo dos limites das relações dessa agente
com os moradores da região de “baixo”, pois se, conforme aponta, todos embaixo a conhecem
e a di-visão é coisa do passado, é ainda entre os de “cima” que procura o auxílio de um real.
D Joana, ex-moradora da rua da Estrela e residente atualmente no prédio da Escadaria
Humberto de Campos na Praia Grande, parece negar, a princípio, como Matilde, a persistência de
tal di-visão, utilizando a mesma expressão usada por esta: “-Qui! Isso é besteira” Mas, em
seguida, reconhece uma di-visão relativa às pessoas região) do “Desterro”. Ao se referir a uma
apresentação da dança do balaio, da qual participa, que
ocorreria no Largo do Desterro, responde,
quando indago se as mulheres da região do “Desterro” participariam: “Não, só nós”.
45
Quando utilizo o termo bairro, faço-o no sentido em que é utilizado pelos informantes, qual seja, enquanto
designação do espaço físico ocupado pelas regiões de “cima” e de “baixo”. Vide mapa II no Anexo.
48
O discurso de Joana não admite uma di-visão “- Qui! Isso é besteira”, mas afirma um nós,
os de “cima”, que é acionado em contraposição a pessoas identificadas como um eles, os da
região do “Desterro”.
Ao mesmo tempo em que esse discurso aponta a continuidade da di-visão, também indica
a construção em curso de uma nova região: a Centro Histórico, onde “tudo é Desterro”. Joana é
uma das moradoras de “cima” que mais transita pelas ruas e pelos eventos realizados na região
do “Desterro”. Ela passa o dia inteiro andando de “cima” à “baixo”, atravessando a fronteira,
que se constitui em lugar de passagem.
As práticas e os discursos de Joana, portanto, sugerem uma resposta aos problemas
discutidos nesse trabalho que não pode ser lida apenas como um não (a di-visão acabou e a
fronteira física entre as regiões é mero lugar de passagem), ou como um sim (persiste uma
fronteira, pois um nós e um eles são acionados no seu discurso). Pelo contrário, os indícios
apontam para uma simultaneidade da afirmação e da negação. Ao mesmo tempo em que alguns
elementos sugerem as regiões de “cima” e de “baixo” como construções sociais distintas, outros
insinuam o movimento de construção da região Centro Histórico, onde a fronteira entre essas
duas regiões ora se dilui, ora se cristaliza.
Marta, moradora da região do “Desterro
46
e colega de turma do mestrado, foi uma das
principais informantes e ouvintes das minhas inquietações no campo. Em diversas ocasiões se
mostrou preocupada com os rumos que meu trabalho vinha tomando. Não raramente explicitava
suas opiniões: “Tem uma coisa que me preocupa muito nesse teu trabalho: essa divisão entre os
de cima e os de baixo, porque eu moro no Desterro muitos anos e não conheço essa divisão”
Tal di-visão, embora não admitida, permeava, inconscientemente, algumas de suas práticas.
. Muitos dos moradores de “cima”, vizinhos de muitos anos, não eram por ela conhecidos
até iniciar pesquisas nessa área. Como ela mesma afirmava: “não era necessário conhecê-los”. A
sede da APROSMA
47
, separada de sua casa somente pelo muro do Convento, era, há pouco, um
endereço muito próximo e totalmente desconhecido.
48
Várias vezes, quando lanchávamos pelo
46
A residência de Marta se localiza exatamente no local apontado, em vários discursos, como fronteira da região do
Desterro”, a Rede Somar (vide Mapa IV no Anexo)
47
Associação de Profissionais do Sexo do Maranhão.
48
Na entrevista que fez com Das Dores, presidente da APROSMA, esta mencionou o ‘estranho fato’ de alguns
moradores da região do “Desterro” desconhecerem a existência de tal associação. A sede não possui nenhuma placa
de identificação na porta, segundo ela, “não porque elas não queiram machucar a vizinhança, mas porque não
querem ser machucadas”. E continua: “ora, eles [os da região do “Desterro”] olham gente entrando, gente saindo
49
Reviver
49
, ela pedia que alguns de nós a acompanhássemos até sua casa, que não
queria/deveria passar sozinha por um trecho deserto e perigoso durante a noite (a região de
“cima”). Quando, em dezembro de 2004, faleceu uma criança (moradora da segunda casa da rua
da Palma acima do Convento), desconhecia tanto a existência quanto a morte desse vizinho
fisicamente muito próximo.
As falas e os passos de Marta, portanto, me alertam para a indispensável contraposição
das práticas e representações desses sujeitos que reproduzem (ou não) cotidianamente essas
fronteiras.
Antes de ter o local onde mora como área de estudo, seus conhecidos da vizinhança eram
aqueles com quem se relacionava desde a infância e adolescência. Parece-me emblemático seu
desconhecimento de moradores antigos da região de “cima”, com os quais, certamente, cruzava
corriqueiramente sem que fosse “preciso” conhecê-los. Como as crianças da oficina de fotografia
que se conheciam de vista, mas não sabiam os nomes uns dos outros, talvez, por não “precisarem
se conhecer”. Esses desconhecimentos” de atores sociais que se cruzam cotidianamente pelas
ruas do “bairro” são sugestivos da efetividade das fronteiras sociais, ainda quando os territórios
do outro se fazem lugar de passagem.
Os termos acionados no seu discurso – “não era necessário, não era preciso conhecê-los” -
sugerem um comportamento muito mais indiferente, do que conscientemente agressivo em
relação aos da região de “cima”. Contudo, faz-se necessário enfatizar que o que esta informante
considera como indiferença inconsciente pode ser lida como estigmatização pelo outro. Nas
palavras da amiga/informante; “eu acho que eles pensavam que eu era [metida à] besta”.
No caminhar da pesquisa, Marta foi modificando alguns de seus posicionamentos. O
conhecimento mais aprofundado do dia-a-dia da região de “cima” levou-a a reconhecer e a
reproduzir uma fronteira. Numa das entrevistas que fizemos juntas, uma informante comentou o
caso de uma tentativa de estupro de uma menina de cinco anos ocorrido na região de “cima”.
Chocada, Marta falou sério sorrindo: “- minha filha eu não vou deixar ir pra cima não. Pode
botar no teu trabalho, meu bebê tá fora de ir pra lá pra cima. É aqui pra baixo, passar lá [em cima]
só de carro”.
daqui. Se quisessem saber o que era, mesmo que fosse por curiosidade, teriam vindo aqui”. Por que não foram/vão?
Por que não foi/é preciso? Porque não foi/é necessário?
49
Vide nota 2.
50
Várias vezes no decurso da construção desse trabalho dizia para eu ter cuidado, para evitar
andar sozinha pela região de “cima” durante a noite. Mencionando episódios ocorridos na região
de “cima” (agressões físicas envolvendo gangues, assassinatos), tentava sempre alertar que o
perigo era real e não uma mera representação.
O movimento do discurso de Marta parece-me emblemático. Quando tinha pouco contato
com o cotidiano do “bairro” sua atitude em relação aos de “cima” era de uma indiferença
inconsciente. As pesquisas fizeram-na modificar esse posicionamento: hoje a região de “cima” é,
na sua leitura consciente, um lugar de perigo, que precisa ser evitado.
Numa conversa informal, quando me mostrava interessada em saber os limites físicos do
“bairro” do Desterro, Aroldo, morador da região do “Desterro”, afirmou: “Agora tudo é
conhecido como Desterro”. A fala desse informante sugere duas visões diferentes: uma interna
(elaborada pelos moradores do “bairro”) onde permanece uma di-visão - existe a zona (região de
“cima”) e o (a região do) “Desterro” - e uma externa (proveniente dos órgãos públicos que ali
atuam e que vem sendo apropriada pelos moradores) onde tudo é conhecido como “Desterro”.
Em outras palavras: tudo é conhecido como Desterro, mas ainda existe uma diferença entre o ser
do Desterro” e o ser de “cima”. Ao mesmo tempo em que o “ser conhecido” sugere a
permanência de uma fronteira, indica também a construção, em curso, de uma outra região: a
Centro Histórico
50
.
Diagrama 2 – representação do “bairro” do Desterro por moradores -A: “Tudo é
conhecido como Desterro”
50
O que aqui conceituo como região Centro Histórico, corresponde a um perímetro formado pela região de “cima”
e do “Desterro”, incluindo os bairros da Praia Grande e Portinho (vide Mapa VI no Anexo).
Região de “cima”
Região de “baixo” ou “do Desterro”
51
Diagrama 3 – representação do bairro do Desterro por agentes externos: “Tudo é
Desterro”
Esse mesmo informante aciona elementos sugestivos da existência de fronteiras, quando
relembra várias atividades realizadas por ele nessa área, tais como a promoção de jogos onde
crianças das regiões de “cima” e de “baixo” participavam.
Um outro informante, ex-morador do “bairro” do Portinho e, hoje, considerado uma das
lideranças políticas da região Centro Histórico, havia narrado que, numa dessas atividades
propostas por Aroldo, alguns meninos de “baixo” recusavam meninos de “cima” no seu time
dizendo: “fulano não joga no meu time, porque ele é da zona [região de ‘cima’]”.
Quando comentei com Aroldo saber desse episódio, ele reconstruiu este e outros,
sugestivos da sua leitura da fronteira, qual seja, a de uma auto-estigmatização dos da região de
“cima”.
Aroldo colocou que episódios como aquele (recusa de meninos de “baixo” em terem
meninos de “cima” no time) são comuns, assim como o são também, meninos de “cima”
quererem formar times com os seus. À ação dos meninos contra a mistura, Aroldo
normalmente reage colocando crianças de regiões diferentes no mesmo time. Mas, tal solução
(meninos de “cima” com meninos de “baixo”) nem sempre conduz a uma mistura homogênea
Embora para Aroldo os dois ingredientes envolvidos sejam de densidades compatíveis como água
e açúcar
51
, visto que não existiriam diferenças significativas entre os de “cima” e os de “baixo”,
estes mais pareceriam água e óleo
52
resistindo em se misturar dentro de um mesmo time de
futebol.
Aroldo diz ter tentado várias vezes explicar para os meninos da região de “cima” que eles
precisavam “se misturar” com as meninas da região de “baixo”, dizendo, quando os via juntos
(mas separados) na praça do Desterro, como água e óleo num copo d´água: Rapaz vocês [de
cima] têm que procurar conversar com essas meninas [de baixo]. E os pequenos [de cima] diziam
51
Elementos que misturados ganham uma consistência homogênea onde não é possível distinguir um do outro.
52
Elementos que formam uma mistura heterogênea onde os elementos continuam separados (é possível distingui-los)
mesmo dentro de um único recipiente.
“Bairro” do Desterro
52
‘não, essas meninas daqui de baixo são tudo patricinha’. E eu dizia ; -Qui patricinha que nada,
essas meninas são tudo pobre que nem vocês.”
No discurso de Aroldo a diferença (“elas são patricinhas”) é representada como uma
invenção social, pois “essas meninas são tudo pobre que nem vocês”. Essa fala sugere a
construção de uma representação que pretende desconstruir uma outra, segundo a qual, os atores
envolvidos se percebem como diferentes (“são todos pobres”). Se, na sua representação, eles
seriam água e açúcar (elementos passíveis de uma mistura homogênea), na dos meninos de
“cima”, se transmutariam em água e óleo (ingredientes de uma mistura heterogênea por
excelência). Esse mesmo informante relembra uma festa de aniversário que fez para sua
sobrinha, como ele, moradora da região de “baixo”. Por ter livre trânsito entre os de “cima”, pôde
convidá-los para a festa, mas os convites por si só não teriam sido eficazes para juntar água e óleo
no mesmo copo. Aroldo teria recrutado seus convidados do outro lado da fronteira, puxando-os
pelos braços para que pudessem chegar até a festa. No começo, eles teriam ficado separados
dentro do copo (água e óleo): os de “cima” não pareceriam muito à vontade entre os de “baixo”,
mas, a música, a dança e a cerveja, segundo Aroldo, teriam feito água e óleo se misturar como
água e açúcar.
Um episódio corriqueiro, narrado por este mesmo informante, reitera a imagem de água e
óleo. Eis outro fragmento do dia-a-dia prenhe de significações: os meninos de “cima”, que
formavam um time com os seus, quiseram denominá-lo “time da zona”. Aroldo reagiu
corrigindo-os:
Que besteira! Aqui não tem negócio de time da zona. Zona acabou, não tem mais zona
aqui. Rapaz vocês moram tudo na mesma rua, vocês o tudo da rua da Palma. Nós
vamos fazer o seguinte, são dois times: Rua da Palma de cima e rua da Palma de baixo,
os nomes vão ser Rua da Palma 1 e rua da Palma 2 e ninguém mais fala nesse negócio de
time da zona aqui.
um movimento por parte de alguns, como Aroldo, no sentido de descontrução das
fronteiras, mas até mesmo no comportamento de tais agentes pode-se perceber sua reprodução.
Ao mesmo tempo em que censura a continuidade de uma di-visão que localiza num passado
próximo (“zona acabou”), reproduz uma fronteira: “são dois times”. Apesar deles serem todos da
mesma rua, todos da Rua da Palma, ele reconhece uma cisão: Rua da Palma de “cima” e Rua da
Palma de “baixo”. A existência dos dois times seria inevitável, resta ao agente tentar suavizar a
53
di-visão (Rua da Palma de cima” versus Rua da Palma de “baixo”) neutralizando-a com uma
numeração ordinária: Rua da Palma 1 e Rua da Palma 2.
O envolvimento de Aroldo com a Igreja Católica e um provável sentimento cristão de
igualdade entre os homens, fariam-no representar, por vezes, os de “baixo” e os de “cima” como
iguais, embora, em outros momentos de seu discurso, aponte diferenças entre eles, como quando
menciona o envolvimento de meninos de “cima” com gangues.
Hoje se diz cansado de lutar pela modificação do comportamento dos meninos de “cima”,
o que fazia há pouco tempo atrás, quando sentava com eles para explicar-lhes que “não era assim,
não estava certo ser de gangue, fazer pichação. Depois eu larguei de mão”. Este discurso de
Aroldo se assemelha ao de um missionário que cansa de pregar para as ovelhas perdidas,
convencendo-se de que elas nunca terão pastor.
Os discursos e práticas desse agente, que tem livre trânsito no território da região de
“cima” afirmam a persistência e a dificuldade de desconstrução da fronteira. A representação que
alguns moradores de “cima” fazem desse informante, parece-me também sugestiva de tal
dificuldade. Embora mantenha, normalmente, uma boa relação com as crianças dessa região e
seja conhecido de vista e de nome naquele território, é representado como “bairrista” por muitos
moradores dali.
Aroldo se diz sabedor do sentimento de uma di-visão por parte dos de “cima”. Várias
vezes chegou a presenciar queixas dos moradores de “cima” em relação às atitudes
preconceituosas dos moradores de “baixo”, mas rechaça a procedência de tal preconceito. Aponta
que os de “baixonão têm preconceito com relação aos de “cima”, os de “cima” é que m
preconceito consigo mesmos. Para justificar essa afirmação, Aroldo se refere a um outro
episódio: uma oficina envolvendo crianças das duas regiões, ministrada por uma moradora da
região de “cima”. Depois da aula, ela teria chorado e Aroldo fora perguntar o motivo da emoção.
Ao que ela disse que nunca imaginou que, sendo de “cima”, um dia pudesse dar aula para
crianças de “baixo”.
Aroldo refuta a idéia de estigmatização dos de “baixo” em relação aos de “cima” com o
argumento da auto-estigmatização dos de “cima”. Os episódios por ele narrados se sustentam
neste ponto de vista. Assim, na representação que constrói, são os meninos de “cima” que
nomeiam seu time como “time da zona”, são seus convidados de “cima” que precisam ser
puxados pelo braço para irem a uma festa na região de “baixo”, e é a professora de “cima” que se
54
julgava inferior aos alunos de “baixo”. Dentre os moradores da região de “baixo” com quem
conversei, Aroldo foi o único que emitiu discursos que afirmam uma auto-estigmatização dos de
“cima”.
No contato que tive com os de “cima” percebi indícios do que parece mais um processo
de contra-estigmatização do que uma auto-estigmatização.
Uma moradora da região de “cima” que afirma com veemência a persistência dessa di-
visão reproduz, em outras falas, a estigmatização (ou indica vestígios de uma contra
estigmatização) lançada pelo outro. Numa manhã de domingo comentei com ela minha
interpretação dos fortes laços de compadrio estabelecidos entre os da região de “cima” (os
padrinhos dos filhos são normalmente escolhidos entre a vizinhança e são comuns os
comprimentos “meu compadre”, “minha comadre”, “meu afilhado”, “minha madrinha” entre
eles) ela deu de ombros com desdém: “também quem vai querer batizar filho de puta e ladrão,
puta e ladrão mesmo”.
Esse dar de ombros, porém, precisa ser lido com cautela. Entre os de “cima”, a categoria
“puta” e seus correlatos são usados corriqueiramente, sem o peso da conotação que poderiam
assumir em outro meio
53
. São comuns expressões do tipo: “No tempo que eu era rapariga”
[empregada por uma mulher hoje casada]; “As puta velha tem dia que se danam pra brigar
[empregada por uma ex-prostituta referindo-se a si e a mulheres da vizinhança que outrora
exerceram o mesmo ofício]”. Ali, o fato de ter sido prostituta, gigolô ou de ter casado com uma
“mulher da zona” não é motivo de constrangimento, pelo contrário, esses elementos costumam
ser afirmados cotidianamente, o que sugere um processo de contra-estigmatização.
54
Apesar de reconhecer que a fronteira entre a região de “cima” e a de “baixo” ainda existe,
Aroldo aponta que “as coisas vem mudando”. Considerando-se um dos agentes que lutam pelo
fim dessa di-visão, mostra-se feliz com a realização de projetos envolvendo pessoas das duas
regiões e destaca, principalmente, a importância da realização de tais atividades na região de
“cima”, o que obriga os de “baixo” a se deslocarem para lá. Nas suas palavras: “porque antes os
53
Conforme aponta GOFFMAN, o estigma é produzido e acionado dentro de uma linguagem de relações, onde o
atributo em si -nesse caso particular a prostituição - pode ser ressignificado dependendo do lugar do sujeito que o
enuncia/vivencia.Nas palavras de GOFFMAN (1988, p.13): “O termo estigma, portanto, seusado em referência a
um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de
atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto, ele não é, em si
mesmo, nem honroso, nem desonroso.”
54
o termo ladrão carrega conotações distintas, dependendo do lugar social em que o enunciador do discurso se
encontre.
55
de “cima” tinham que descer pra cá pra “baixo”, porque tudo que tinha era feito aqui [no largo do
Desterro principalmente]. Eu achei muito bom mesmo, muito importante esse projeto do
Rosendo
55
, porque acontece na rua da Palma (de “cima”), porque agora os meninos daqui tão
tendo que ir para lá”.
Faz-se necessário analisar essa fala com certo vagar. Para esse informante o território é
um dos elementos a partir dos quais a di-visão se reproduz. Assim, se durante a vigência da ZBM
havia dois territórios institucionalmente separados: o da “zona” e o do “Desterro”, com o fim da
ZBM, o território por ela ocupado continuou sendo evitado por moradores da região de “baixo”.
Daí a importância que atribui a projetos que possibilitam aos de “baixo” andar pelas ruas da
região de “cima”. È como se andar pelo território do outro e conhecer de perto esse universo
representado como um mundo social distinto, fosse um elemento fundamental para um
aprendizado mútuo de que o outro é um mesmo. Aprendizado este que, assim afirma, precisa ser
repetido cotidianamente pelos de “baixo”, acostumados desde o tempo de funcionamento da
ZBM a se fechar no seu território (região do Desterro”), ainda que recebendo de quando em
quando visitas dos estrangeiros de “cima”.
Seu Manoel, morador de “cima”, também enfatiza o pouco trânsito dos meninos de
“baixo” no território da região de “cima”. Reconstruindo lembranças de sua infância narra que,
sendo um menino de “cima”, sempre teve amizade com “o pessoal [da região] do Desterro” e
passava o dia inteiro brincando no território daquela região:
Eu brincava muito no [na região do] Desterro, passava o dia todinho jogando bola lá na
frente da igreja, jogando bola, empinando papagaio, jogava dentro do Quartel, quando
era Quartel da Polícia
56
, bola de seringa, eu ia buscar a bola embaixo que caía. Eu
vivia sempre indo lá, sempre da curriola do pessoal do Desterro. (entrevista realizada em
novembro de 2004)
Ao reconstruir com saudosismo sua amizade com o “pessoal do Desterro”, Seu Manoel
não se refere, porém, ao trânsito deles pela região de “cima”. Conforme suas lembranças era ele
quem se deslocava para a região de “baixo”. Seus amigos, provavelmente, não faziam o percurso
inverso, pois o funcionamento da ZBM dificultava o trânsito de menores (inclusive do sexo
masculino)
57
nessa região. Referindo-se ao tempo de agora. Seu Manoel aponta que os meninos
55
Morador de “cima” e ex-presidente da União dos Moradores.
56
O Quartel da Polícia Militar funcionou até 1980 onde hoje se situa o Convento das Mercês.
57
Vários informantes da região de “baixo” apontam que transitavam muito raramente pela região de cima” no
tempo do funcionamento da ZBM, mesmo durante o dia quando aí não havia atividade.
56
de “baixo” não sobem para jogar bola na região de “cima”
58
, o que se constitui em mais um
indício da representação de uma resistência dos de “baixo” em transitar pelo território da região
de “cima”:
Rapaz tu sabe que eu nunca vi, o pessoal de baixo jogando bola com os de cima. É só
daqui Rua da Palma, Rua da Estrela, 28, Jacinto Maia, Rua da Saúde, Travessa da Lapa.
Cê vai cinco seis horas [os meninos de “baixo”] tão tudo lá no canto, lá naquela esquina,
perto da Igreja, não tem? Eles ficam lá, tudinho sentado ali, eles não sobem, ficam lá
até a Rede Somar
59
. (entrevista realizada em novembro de 2004)
Seu Manoel foi o único dentre os informantes que representou as fronteiras atuais como
mais rígidas que as de outrora.
Carlos, vice-presidente da União de Moradores, e morador da região de “baixo” utiliza
uma expressão similar à de Aroldo para falar dos limites físicos do “bairro” do Desterro. Quando
lhe pergunto onde começa o Desterro, ele se expressa com essas palavras: “Tudo já é considerado
Desterro, tudo é Centro Histórico, desde onde foi zona até aqui”.
Assim como para Aroldo “tudo é conhecido como Desterro”, para Carlos, “tudo é
considerado Desterro, tudo é Centro Histórico“. .Novamente há indício da formação de uma outra
região: a Centro Histórico, mas, no momento seguinte de sua fala desconstrói essa continuidade,
apontando uma di-visão fundada no passado e reconstruída no presente “desde onde foi zona até
aqui”.
D. Isabel morou até os doze anos de idade na região de “baixo” e vive mais de
quarenta anos na região de “cima”. Para ela essa di-visão ainda existe, mas foi muito mais forte
no passado. Ela reconstrói que os jogos de futebol e as brincadeiras de pega-pega eram o
momento dos jovens de “cima” e de “baixo” extravasarem as tensões.
60
Nessas ocasiões, segundo
narra, os de “cima” e os de “baixo” aproveitavam para maltratar um ao outro:
Os jovens daqui antigamente, tinha assim, brincava com os meninos daqui, mas sempre
existiu essa rivalidade, mas a rivalidade deles naquela época era a seguinte: era na hora
da bola. Tinha um jogo com os menino de cima com os meninos aqui de baixo, do
Desterro, a pelada aqui na porta da igreja, ou então aqui na beira da praia, eles se
maltratavam era na hora da bola, ta entendendo? Das pesadas, das murrada, de tudo.
58
Vários informantes fazem referência a jogos entre os meninos de “cima” e de “baixo”, mas estes ocorrem
geralmente na praça do Desterro (região de “baixo”) e não em frente à sede da APROSMA, situada na Tua Jacinto
Maia ao lado do muro do Convento das Mercês (local onde normalmente se realizam os jogos de vôlei e futebol na
região de “cima”)
59
Apontada por muitos informantes como limite entre as regiões do “Desterro” e de “cima”.
60
Seu Manoel que também participava desses jogos não faz referências as murradas e pesadas, sublinhando apenas
sua amizade com o “pessoal do Desterro”, conforme consta no seu depoimento citado na página anterior.
57
Hoje não, eles jogam juntos, o time lá de cima com o time aqui de baixo, não tem
mais isso. Quando não era o pega-pega, assim um correndo um atrás do outro, pega-
pega, pra dale pesada, pra dale murrada. (entrevista realizada em junho de 2005)
D. Isabel afirma que sua mudança na adolescência para a região de “cima” não provocou
o rompimento de seus laços com a região de “baixo”, (relembra que continuou participando da
quadrilha dos de “baixo”, onde os de “cima” não participavam “não adiantava [os de baixo]
convidar que eles [os de cima] não iam”), mas, em alguns momentos do seu discurso, é possível
perceber indícios do reconhecimento de seu pertencimento à região de “cima”. Um exemplo
dessa atitude de agir como alguém de “cima” e perceber os de “baixo” como “rivais”, pode ser
lido na sua narração, quando reconstrói as estratégias utilizadas pelas meninas das duas regiões
para extravasarem suas tensões:
Às vezes também as meninas, eu cansei na minha época com treze anos, de gente daqui
de baixo quando passava na rua [de cima] não podia olhar assim com cara feia que a
gente saia correndo atrás delas, elas saia correndo na frente e eu saía correndo atrás.
Uma vez eu me lembro bem que fui operada de apendicite, eu tinha meus doze anos, aí a
menina que tinha batido na minha irmã, minha irmã tinha 11, ai eu operada tava na
minha janela quando a menina passou na minha rua eu desci, eu operada sai correndo
atrás da menina pra bater (entrevista realizada em junho de 2005).
Segundo essa informante, hoje ainda existe entre os jovens de “cima” e de “baixo” uma
“rivalidade”, mas que não chega, como no passado, a se materializar em agressões físicas.
Aponta que, hoje, restam dos jovens de “baixo” em relação aos de “cima” um certo preconceito, e
dos de “cima” em relação aos de “baixo” uma goa por não serem aceitos. No discurso dessa
informante, como no de outros, uma fronteira que foi é sublinhada, para que as linhas de uma
fronteira que ainda é, sejam suavizadas.
Hoje não, hoje é assim uma coisa diferente. Assim o jovem daqui de baixo é, tem
preconceito, com o jovem lá de cima, que é aquele jovem da área de risco, e os lá de
cima, já chateado e magoado com os daqui [os de baixo], porque não são aceitos por eles
aqui. tem essa rivalidade, mas não é dizer que é uma rivalidade tipo agressão de
sangue, não. Não existe isso aqui. Até agora nunca tive conhecimento de existir isso
aqui. (entrevista realizada em junho de 2005)
Nas entrelinhas do discurso de D. Isabel pode-se ler uma representação dos de “cima”
como excluídos, que ela percebe movimentos de inclusão destes pelos de “baixo”. Pois, ao
mesmo tempo em que afirma que os meninos da “área de risco”
61
( “não são aceitos” pelos de
61
Categoria utilizada por esta informante para referir-se à região de “cima”
58
“baixo”, aponta um processo, em curso, de conscientização, onde um dos principais agentes
promotores seria a União de Moradores, “que tem trabalhado muito pra conscientizar as pessoas,
no sentido de não haver preconceito”. Assim, seu discurso sinaliza também para a construção de
uma região Centro Histórico, onde as regiões de “cima” e de “baixo” construiriam, utilizando a
categoria da informante, um bairro”. Nas suas palavras: “hoje com a conscientização, eles [os
de baixo] acolhem mais o povo de de cima, inclusive até ajudam nesse sentido de trabalhar
uma construção melhor do bairro”.
Quando lhe pergunto se sua mudança para o território da região de “cima” abalou suas
relações com os de “baixo”, D. Isabel reafirma que não:
(...) graças a Deus até hoje gostam de mim, me querem bem, me convidam pra rezar, pra
participar, eu é porque não tenho muito tempo de tá aqui na Igreja, as vezes dizem que
tenho um dom, o pessoal acredita que eu sou rezadeira, de benzer negocio de mal
olhado, de cabeça, de zibra, erisipela. (entrevista realizada em junho de 2005)
Talvez suas relações com a Igreja Católica, um tanto raras entre os de “cima”, e o
exercício de sua função social de “rezadeira”, sejam uma das chaves de compreensão da
continuidade de sua aceitação entre os de “baixo” depois de sua mudança para a região de
“cima”. O caso de uma outra informante que mudou a residência de uma região para outra,
abaixo narrado, fornece outros indícios para a compreensão do caráter dessa fronteira.
D. Nadir, tia de D. Isabel, morou muitos anos no lado de “cima”, na Rua da Palma (acima
do Convento), 28 de julho e Estrela e mora atualmente na Rua da Palma (região do “Desterro”).
É, também, um exemplo da fronteira como lugar de passagem entre os dois pedaços de chão.
Quando lhe perguntei se não havia uma diferença entre os que moram na região de “cima” e os
que moram no na região do “Desterro”, respondeu: “Tudo é Desterro, né? Eu acho que tudo seje
Desterro”. Ao ser indagada sobre sua acolhida naquele local, afirmou: “Bem acolhida, ninguém é
diferente, tenho muitos amigos aqui, que moram pra baixo ali tudo me conhecem, me chamam
minha vó. É home, é mulher, é tudo”.
Na fala dessa informante aparece novamente a expressão recorrente “Tudo é Desterro”,
indicativa da formação de uma outra região, cujas dimensões ultrapassam/superam os limites de
uma possível fronteira entre os de “cima” e os de “baixo”. O fato de ter vivido muitos anos na
região de “cima” e hoje viver na região de “baixo”, sentindo-se bem acolhida do outro lado da
fronteira, parece-me sugestivo de um espaço de manobra subjacente a essa di-visão, que não se
59
fecha numa mera oposição binária de um nós e de um eles, mas sim permite a movimentação dos
agentes entre essas posições.
A história de vida de D. Nadir me alerta para o risco do reducionismo de se conceber essa
fronteira numa perspectiva binária. Apesar de afirmar nunca ter sido prostituta, sua trajetória se
distancia do modelo de retidão moral valorizado na região do “Desterro”. Criada somente pela
mãe (seu pai era casado com outra mulher), chegou a casar aos 16 anos, mas foi largada pelo
marido, que teria sido obrigado ao casamento por ter “lhe feito mal
62
”. Confessou “ter uma
rapariga” de quem gostava e, por isso, argumentou não poder viver com ela. Durante sua
juventude alternou períodos em que trabalhava como lavadeira e engomadeira para se manter,
com outros onde não precisou trabalhar, que, conforme argumenta, “tinha namorado pra me dá
as coisas, pra quê que eu ia trabalhar minha senhora?” Deu a luz a um único filho, que criou sem
o auxílio do genitor, e adotou outros. Era uma conhecida boêmia da área, e costumava amanhecer
pelos bares da redondeza tomando cerveja com outras amigas, mesmo quando “já tava ficando
pra idade [envelhecendo]”.
Mas, esse histórico distinto do de muitas mocinhas de família que se tornam rainhas do
lar
63
, não lhe fechou as portas da região do “Desterro”, que lhe acolheu como “minha vó”.
Outros elementos de sua história de vida indicam pistas de sua boa acolhida: D. Nadir tem
parentes dos dois lados da fronteira: tem um filho e uma sobrinha morando na região de “cima”
e uma filha na região de “baixo”. Como sua sobrinha Isabel, ela parece pertencer
simultaneamente às duas regiões. No caso dessas informantes, as fronteiras não são grades que
separam celas incomunicáveis, mas sim, contextos diversos passíveis de intercâmbios não
traumáticos e, possivelmente, até agradáveis, place de passage conforme Hall (2003, p.33)
Uma conversa informal com dois amigos me trouxe a possibilidade de contato com um
informante que fez o caminho inverso de D. Nadir: saiu da região do “Desterro” para a região de
“cima”. O depoimento de Ribamar, abaixo, aponta a existência de uma fronteira e as
conseqüências advindas àqueles que a transcendem:
-Eu nasci no [ na região do] Desterro, minha mãe até hoje mora lá. Mas há uns vinte anos atrás
Seu Duarte, da Rua da Palma, fez um time de futebol e eu vim jogar no time dele. Ah! pra quê.
O pessoal do Desterro ficou malzinho comigo, até minha e. Mas com minha mãe eu me
62
Expressão equivalente a desvirginar, ou seja, fazer bem.
63
Tal expressão se refere às mulheres que constroem suas trajetórias de vida dentro do casamento, sendo mães e
esposas.
60
entendi, o resto o me interessa [...] Se eu tivesse poder, se eu pudesse botar um nome nisso
aqui eu botava Desterro, porque é muito lindo! É a Igreja! É tudo Desterro!
Nas palavras de Ribamar, que se mudou da região do “Desterro” para a região de “cima”,
aparece novamente um eles “-O pessoal do Desterro ficou malzinho comigo, até minha mãe”.
Mas, na fala de quem hoje se reconhece como parte de uma outra região (a de “cima”), o termo
“Desterro” apresenta conotações positivas: “porque é muito lindo! É a igreja. È tudo Desterro”.
No caso desse informante, um estatuto parece ter sido quebrado. Ao menos num primeiro
momento, ele passou da condição de estabelecido para a de outsider (“o pessoal do Desterro
ficou malzinho comigo, até minha mãe”). Na análise de sua trajetória o conceito de fronteira
proposto por Barth (1997, p.196), onde um s e um eles são excludentes e mais permanentes,
parece mais adequado enquanto ferramenta conceitual.
Interpretando a trajetória de vida desses três informantes, penso que a modificação, ou
não, no estatuto de quem transpõe essa fronteira não é regida por elementos lineares. Assim, se
no caso de Ribamar a opção por viver entre os de “cima” e se perceber como um deles, levou-o a
ser visto como outsider pelos de “baixo”, D. Isabel e D. Nadir (que fizeram percursos de “baixo”
para “cima” e de “cimapara “baixo” respectivamente), se reconhecem e (segundo observações
de campo) são reconhecidas como agentes de “cima” e de “baixo” simultaneamente. Ainda que,
em alguns momentos de seus discursos, haja indícios de uma maior proximidade com uma das
duas regiões.
Ao longo desse tópico, mapeando diversos discursos e posicionamentos em relação à
questão da existência ou não de uma fronteira entre as regiões de cima” e de “baixo”, busquei
avançar no movimento de construção do objeto. Numa primeira leitura, a recorrência da
expressão “tudo é Desterro”, que vem, muitas vezes, seguida da expressão, provavelmente
sinônima, tudo é Centro Histórico”, me pareceu uma mera tentativa de negação de fronteira
,mas, posteriormente, remeteu a um outro significado: a construção, em curso, de uma outra
região, que aqui denomino região Centro Histórico, a qual, no entanto, não dilui as di-visões
entre os de “cima” e os de “baixo”.
2.2 ‘Desterro é Desterro, 28 e Rua da Palma é 28 e rua da Palma’: a afirmação da fronteira
Em outras falas a fronteira entre a região de “cima” e a região do “Desterro” é afirmada
com veemência. Categorias como: “divisão”, “racha”, “duas regiões” são acionadas nos
61
discursos, como no de Das Dores, atual presidente da APROSMA, em entrevista
64
realizada em
julho de 2004.
65
O interesse da entrevistadora na época era suscitar lembranças do tempo da
antiga ZBM, quando a região do “Desterro” e a região de “cima” eram dois pedaços de chão
institucionalmente separados:
- Eu já andei conversando com outros moradores daqui e eles me falaram que 20 30
anos atrás, quando a ZBM funcionava, as mulheres [meretrizes] vinham até
determinados locais, que não transitavam pelo bairro todo.
- Olha até hoje isso é visível, assim porque Desterro é Desterro, 28 e rua da Palma é 28 e
Rua da Palma, quer dizer, 28 e rua da Palma não é Desterro. É no mapa, mas essa
educação ela não funciona, ela só fica no mapa. Porque na verdade a 28 e a rua da Palma
ainda tem um estigma que é essa coisa de zona, né? E Desterro é a porra elitizada.
Assim, não é, mas como eu acabei de falar[...] Então a gente sabe que tem um racha.
(entrevista realizada em julho de 2004, grifos meus
)
Aqui o artifício da memória acabou levando a uma exposição da situação presente. A
referência da entrevistadora a territórios distintos para a ZBM e para a região do “Desterro” leva
a entrevistada a afirmar a continuidade dessa di-visão. Nas palavras da informante “até hoje isso
é visível, porque Desterro é Desterro, 28 e rua da Palma é 28 e Rua da Palma, quer dizer, 28 e rua
da Palma não é Desterro”. Afirma que, mesmo que no mapa as duas regiões formem um “bairro
só, na educação das pessoas, esse mapa é cindindo ao meio: um “racha” onde são acionadas
classificações negativas de ambos os lados. Aponta que, enquanto as ruas 28 e da Palma (a
região de “cima”) continuam sendo representadas pelos de “baixo” sob o estigma de “zona”, o (a
região do) “Desterro” é representado pelos de “cima” como a “porra elitizada”.
Das Dores aponta que a diferença entre as duas regiões não é de mapa (”zona acabou, é
tudo um bairro só”), mas de pensamento, de educação. Assim, coloca que, a educação e o
pensamento reproduzidos nas práticas e representações cotidianas dos de “baixo”, atribuem
exclusivamente à região de “cima”, elementos considerados negativos como o uso de drogas e a
prostituição. Afirma que se faz necessário para os da região do “Desterro” demarcar territórios
distintos: o lado do bem e o lado do mal, a região pura e a contaminada. De acordo com seu
discurso, para os de “baixo” seria necessário afirmar-se enquanto outros em relação aos de
“cima”:
-Assim...[dizem] Ah! no Desterro os adolescentes não usam drogas, os adolescentes que
usam drogas são os adolescentes da Rua da Palma, da 28... Então, quer dizer, por quê?
64
Esta entrevista foi realizada (e gentilmente cedida) por Marta, aluna do PPGCS/UFMA.
65
Entrevista realizada como parte das atividades do Projeto Viver o Desterro.
62
Eu já vivenciei uma pessoa falar que é: -Ah o Desterro não tem rapaz que usa droga, é na
Rua da Palma [que tem]! Ah, mas também, eles são de lá!
- Mas o Desterro e a Rua da Palma não são a mesma coisa?
- Sim, mas eu te falei, terminei de te falar agorinha: há uma diferença não é de mapa, é
de cabeça, é de pensamento, é de educação, entendeu? uma diferença. Eu sou do
Desterro e quem é da Rua da Palma é da Rua da Palma. No mapa a Rua da Palma vai até
na Igreja, mas na cabeça da gente, ela começa bem aqui, bem no portão do Convento
das Mercês, né? Então, assim, quando tem um problema de droga, de prostituição, disso
mais daquilo na Rua da Palma pra cá, ele não é visto como Desterro não, esse problema,
ele é visto como Rua da Palma. Ele ainda é visto como do lado daqui de “cima”, o lado
de “baixo” é paz, o lado de “baixo” é bom, é do bem, né? Então, esse filme vai custar
muito a acabar, infelizmente, porque eu acho que as pessoas ainda, ainda não estão
acostumadas, ainda não estão educadas, né assim com essa integração: acabou zona, é
tudo um bairro só.
(entrevista realizada em julho de 2004, grifos meus
)
O depoimento de Das Dores aponta uma classificação maniqueísta acionada pelos da
região de “baixo”: existem dois pedaços de chão ou, nas suas palavras, dois “lados”: um do bem
(a região do “Desterro”) e um do mal (a região de cima”). As drogas e a prostituição são os
elementos acionados para di-vidir o espaço; a Rua da Palma, que atravessa as duas regiões, é
cindida ao meio (na altura do portão do Convento das Mercês); metade do bem, metade do mal.
Argumenta que o comportamento de adolescentes da região de “cima” é justificado pelos da
região de ”baixo” pelo lugar onde vivem: “Ah! Mas também eles são de lá”.
Apesar de fazer referência à formação de uma nova região, a Centro Histórico (”acabou
zona, é tudo um bairro só”) Das Dores aponta também sua fragilidade, lamentando que esse
“racha” vai custar muito a acabar, pois para que as duas regiões (a de “cima” e a de “baixo”)
formem efetivamente uma única região (“um bairro" só, o Centro Histórico), seria necessário
haver uma modificação nos costumes e nos pensamentos das pessoas, que devem ser educadas
para aceitar essa integração.
Diagrama 4 – representação do “bairro” do Desterro por moradores - B
Bairro do Desterro
Região “de cima”
Região “de baixo”
63
Em muitas outras ocasiões, nos nossos muitos bate-papos corriqueiros, Das Dores
comentava com indignação as fronteiras que comandam até mesmo os afetos dos moradores dos
dois lados: “Os adolescentes desse lado namoram adolescentes desse lado, e os adolescentes
do Desterro namoram os adolescentes do Desterro. Eu nunca vi um adolescente de namorar
um adolescente daqui”.
No depoimento de outros informantes, inclusive em outras falas de Das Dores, a distinção
entre as duas regiões parece trazer em si uma necessidade de separar os limites do “bairro” do
Desterro em relação à região de “cima”. Em muitos discursos, a região de “cima” não é vista
como parte do “bairro” do Desterro, mas como parte do Centro Histórico. A análise dos discursos
dos informantes seguintes me fornece tais indícios.
Brena, moradora da região do “Desterro” que trabalha atualmente como agente
comunitária na região de “cima”, também reconhece uma di-visão. Para ela, o (a região do)
“Desterro” começa na Rede Somar, mas “lá pra cima, eles chamam Centro, Centro Histórico”.
Essa classificação coincide com a de outros moradores onde “bairro” do Desterro e região Centro
Histórico são distintos. Embora o “bairro” do Desterro faça parte do Centro Histórico, (já que o
mesmo engloba os bairros” da Praia Grande, Portinho e Desterro) a região de “cima” se
localizaria no Centro Histórico e não no “bairro” do Desterro. Se a formação de uma região
Centro Histórico, alguns agentes conseguem separá-la, não socialmente, mas também
fisicamente, da região do “Desterro”, ou seja, é como se alguns moradores da região de “cima”
precisassem afirmá-la como parte do Centro Histórico para excluí-la do “bairro” do Desterro.
Diagrama 5 – representação da região Centro Histórico por moradores - B.
Região Centro Histórico
Praia Grande
“Bairro”do Desterro
Região “de cima”
Região do “Desterro”
64
Faz-se necessário destacar que, embora moradora da região do “Desterro”, Brena se
expressa em nome de um eles, os moradores de “cima”: “lá pra cima, eles chamam Centro,
Centro Histórico”. Alguns moradores de cima” desenham esse mesmo diagrama no seu
discurso.
Sebastião e Ribamar, moradores do Portinho
66
e da Rua da Estrela (região de “cima”),
fizeram afirmações sobre os limites [da região] do “Desterro”. Segundo Sebastião, Desterro fica:
“Do Convento pra lá, até na Igreja” e o espaço físico onde nos encontrávamos definiu como
”Centro Histórico”. O limite do bairro” da Praia Grande foi indicado de forma imprecisa, no
sentido da rua Direita. Com relação à di-visão entre os de “cima” e os de “baixo” afirmou: “-Isso
é porque esse povo do Desterro é bairrista. Mas essa ‘merda’ é tudo uma ‘porra’ só. É tudo
Desterro, tudo Centro Histórico”.
Observei que esses informantes, ao não conseguirem situar com precisão o bairro” no
qual se encontravam (Desterro, Praia Grande) acionavam uma categoria mais ampla e vaga
(Centro Histórico), para efetuar tal definição. A di-visão é aqui traduzida com palavrões de
indignação (“Essa merda é tudo uma porra só”) e explicada a partir de uma atitude coletiva de um
outro, os do “Desterro”: “É porque esse povo do Desterro é bairrista”.
Das Dores, presidente da APROSMA (situada na região de “cima”) utiliza nos ofícios ali
expedidos o seguinte endereço: Rua Jacinto Maia, Centro Histórico. Tais elementos me parecem
se constituir em indícios de que para alguns moradores de “cima” faz-se necessário afirmar-se
como morador do Centro Histórico para negar seu pertencimento à região do “Desterro”.
Os sentidos do termo Centro Histórico deslizam nas falas dos agentes. Assim, se muitas
vezes essa categoria conota uma continuidade (como nas expressões “tudo é Desterro, tudo é
Centro Histórico”) apontando para a construção da região Centro Histórico, em outras ele
estabelece uma cisão, quando “lá pra cima, eles chamam Centro, Centro Histórico”.
Outros depoimentos de Brena são ilustrativos do reconhecimento da di-visão por parte de
moradores de “baixo”. Quando perguntamos a essa informante se os pais da região de “baixo”
proibiam seus filhos de brincarem com crianças de “cima”, ela respondeu: ”- Eu acho que a
maioria do pessoal não deixa não. Aqui mesmo [em casa] eles não gostam das pequena irem pra
66
O Portinho é considerado por muitos informantes como um bairro distinto do Desterro. Dentre os conceitos de
região aqui trabalhados, o Portinho faria parte apenas da região Centro Histórico, mas seus moradores o se
incluem necessariamente nem entre os de “cima”, nem entre os de “baixo”. No caso do informante acima citado
(Sebastião) considero-o como um de “cima”, pois, apesar de morar no Portinho, tem uma relação de identificação
com os moradores e com a região de “cima”. Sebastião é um dos mais assíduos jogadores de dominó dessa região.
65
lá, porque os pequeno ficam discutindo. Elas duas não são também santa, né? começam a
brigar com os meninos lá em cima. [danou-se]”. Reconhecendo a reprodução dessa fronteira
dentro de sua própria família, Brena a justifica pelo comportamento dos meninos da região de
“cima” (os pequenos ficam discutindo), mas, ao mesmo tempo, relativiza a diferença entre as
crianças e adolescentes dos dois lados da fronteira, quando, referindo-se às “pequenas” de sua
casa, verbaliza essa representação: “Elas duas já não são também santa, né?” Contudo, mesmo as
“pequenas” não sendo “santas”, a atitude mais sensata para essa informante é tentar impedir seu
convívio com os “pequenos lá de cima”.
Quando lhe perguntamos se ela tinha amigos na região de “cima”, citou uma moça e
passou muito tempo tentando lembrar de um outro nome, sem conseguir. Vivendo desde o
nascimento no “Desterro”, construiu suas amizades dentro dessa região. Ao perguntarmos se ela
havia namorado algum rapaz de “cima”, de súbito respondeu: “Eu nunca nem quis. Pelo amor
de Deus!” E completou, justificando a resposta negativa: “Aqueles menino dali são tudo doido,
são tudo de gangue!“.
Refletindo sobre as relações entre crianças e adolescentes desses dois pedaços de chão,
Clóvis, morador de “baixo” com livre trânsito entre os de “cima” assim se expressa: “- Os
meninos de cima descem muito pra pra praça do Desterro, ficam até onze, doze horas. Vem
uns lá de cima, da zona mesmo, uns daqui de baixo, eles tudo se conhecem. Não são de sair junto
assim, mas jogam bola junto”
Preferências distintas marcariam o comportamento desses meninos que, embora se juntem
para jogar bola, se separam para sair. Na hora de sair, segundo Clóvis, “e outra história”:
E também tem a preferência de sair. Os meninos lá de cima gostam muito de sair ali pro
Viana, tem uma tropa daqui que sai pro Viana. As namorada deles são tudo do
Viana. Esses daqui [de baixo] sai mais pro lado da Praia Grande. Esses pequeno
daqui não são muito assim de sair pra longe. os de cima são mais... (entrevista
realizada em maio de 2005).
É interessante destacar que tal discurso apresenta algumas semelhanças com os de Manoel
e Aroldo, analisados no tópico anterior. São os meninos de “cima” que descem para o território
da região de “baixo”, e não o contrário. Ainda que jogando bola juntos, persistem di-visões entre
eles. Se Clóvis não se refere a times separados para os de “cima” e os de “baixo”, como fizera
66
Aroldo, menciona limites nas relações entre eles, que se juntam para jogar bola, mas não se
misturam na hora de sair.
Os lugares de preferência desses dois grupos me parecem emblemáticos: enquanto a Praia
Grande (preferida pelos meninos de “baixo”) é um reduto de todas as tribos, sendo freqüentada
por turistas, universitários, grupos alternativos até os chamados “boyzinhos” da cidade, o Sá
Viana, freqüentado pelos meninos de “cima”, não goza do mesmo ibope. Salvo um pequeno
trecho desse bairro, que se configura como gueto de estudantes e professores universitários (o
qual não corresponde aos mesmos pontos de saída dos meninos de “cima”), o Viana não tem
tanto prestígio como lugar de lazer em São Luís.
Quando pergunto a esse informante o que ele faria se sua filha resolvesse namorar um
rapaz de “cima”, ele respondeu, reproduzindo essa di-visão: “Eu ia falar, ia perguntar onde é que
ela tava querendo meter os burros dela”.
Clóvis também chamou a atenção para a presença de di-visões no próprio nome da União
de Moradores: União de Moradores do Centro Histórico- Desterro, Portinho e Praia Grande. Nas
suas palavras a própria entidade que se propõe representar os interesses dos moradores do Centro
Histórico como um todo, grifa as di-visões a ele inerentes, ao especificar os três bairros que o
compõem.
Seu Leandro, proprietário de um bar situado na Travessa da Lapa
67
, diz não haver limites
precisos entre os três “bairros” do Centro Histórico, mas, num segundo momento, afirma o
reconhecimento de uma di-visão: “É tudo misturado: Desterro, Praia Grande e Portinho.Querendo
ou não isso tudo é uma coisa só”.(grifos meus)
Morador relativamente recente (vive ali cerca de dez anos), Seu Leandro sugeria, pelo
tom de voz empregado durante a conversa, ter conhecimento das tensões que perpassam a área.
Seu discurso parece condensar o movimento de construção e desconstrução de regiões no Centro
Histórico. A expressão “querendo ou não” é sugestiva da existência de di-visões, enquanto o
restante da frase “isso tudo é uma coisa só”, indica o reconhecimento de uma outra região, a
Centro Histórico.
Nesses diversos discursos de agentes das regiões de “baixo” e de “cima” analisados nesse
tópico, a fronteira entre as duas regiões é reconhecida explicitamente. Normalmente nesses
67
O bar de seu Leandro se situa num trecho da Travessa da Lapa entre a Rua da Palma e a Rua Afonso Pena, local
considerado por alguns informantes como “bairro” do Desterro e, por outros, como Portinho.
67
discursos não se coloca a expressão “tudo é Desterro”. São feitas referências à região de “cima”
como parte de uma região mais ampla: a região Centro Histórico, dentro da qual, porém. é
apontada a continuidade de uma fronteira, a qual se faz visível, por vezes, nas restrições do
trânsito de alguns moradores debaixo” pelo território da região de “cima”. As práticas e
discursos de adultos, adolescentes e crianças dessas regiões reproduzem e atualizam uma di-visão
que, se não é negada em relação ao tempo da ZBM, é representada como mais tênue. A
expressão recorrente nesses discursos não é a di-visão ”acabou”, mas sim “ela foi muito pior”.
Percebo que entre os que negam ou afirmam explicitamente uma fronteira entre os de
“cima” e os de “baixo”, há uma tendência comum em afirmar uma fronteira que já houve, e certa
resistência em reconhecer, de imediato, sua vigência. pude vislumbrar esse reconhecimento,
sutil ou claramente, em seus discursos, quando essa questão, naturalizada em suas práticas e
representações, era cutucada por minhas provocações.
As regiões de “cima” e de “baixo” persistiriam como uma di-visão intra-região Centro
Histórico. As afirmações dos informantes analisadas poderiam ser sintetizadas na expressão:
“zona acabou, é tudo um bairro só” (região Centro Histórico), mas Desterro é Desterro, 28 e
Rua da Palma é 28 e rua da Palma”.
2.3 Rua da Palma: uma fronteira entre os de “cima”?
O prosseguimento das interpretações de campo me levou a perceber uma possível divisão
operada intra-região de “cima”. As práticas e representações de homens e mulheres que se
reconhecem como pertencentes a tal região sugerem a produção de uma outra fronteira, que
estabeleceria uma outra região em meio a esta: a interdita. Nesta, a fronteira social, apresenta,
por vezes, claramente uma contrapartida territorial: trechos da Rua da Palma e da rua da Saúde
(vide Mapa V em Anexo), apontado por moradores da região de “cima” como local de tráfico de
drogas, de crime, violência, amoralidade e de resquícios de uma prostituição decadente
68
.
Entre os da região de cima” é comum o acionamento de categorias depreciativas para
referir-se aos da região interdita, tais como: “ladrão, nigrinha, safado, sem vergonha, vagabundo,
malandro, gente que não presta, pessoal que não respeita ninguém, marginal, maconheiro,
68
O termo decadente é aqui utilizado no intuito de sublinhar uma diferença atribuída pelos membros da região de
“cima, entre a prostituição atualmente exercida na região interdita (representada, normalmente de forma pejorativa)
e a prostituição outrora praticada na ZBM (a qual tende a ser valorizada nas representações).
68
chilado, puxador de diamba, bêbado, cachaceiro, desocupado, traficante, indecente, depravado,
desordeiro, violento”.
É sobre a rua da Palma
69
, principalmente, que recaem tais representações. Um morador da
rua 28 de julho comentou numa ocasião: “-Aqui é muito tranqüilo apesar de haverem poucos
moradores, o que torna a área um pouco deserta. falta acabar com essa malandragem da Rua
da Palma”. Outra moradora da 28 de julho respondeu com indignação quando indaguei se, na rua
da Palma, a maioria dos moradores era mais recente:-“ È, e mais sem vergonha. Eu fico muito
puta! E o que dá mais ódio é ver essas crianças, esses menores no meio disso [tráfico de drogas]
Tem hora que me dá vontade de... [denunciar]”
O tráfico é um dos elementos mais recorrentes nos discursos que sugerem tensões intra-
região de “cima”, mas parece não ser o único. Muitos se ressentem da inevitável convivência
com este e da necessidade de manter-se num silêncio forçado, como numa política de boa
vizinhança. Ali, como nos colocou um informante, a lei que impera é a do silêncio. E essa lei
muitas vezes dificultou o trabalho de campo nessa área. Esse mesmo informante me advertiu: “-
Não vai falar com eles [os da região interdita] que os ‘cabeças de bagre’ [os chefões do tráfico]
mandam te apagar. Eles não vão querer saber se tu fazendo pesquisa. Eles pensam logo que é
cagueta e apagam”.
Segui observando com cautela esse trecho, aproveitando ao máximo as oportunidades de
aproximação com seus moradores/freqüentadores. Precisei aprender a vigiar minhas
representações sobre esse universo social que eu mesma estigmatizava. No início da inserção,
observava o campo com medo. A impressão que tinha era que todos pareciam vigiar meus olhos e
meus passos. Quando essa região começou a se afigurar como familiar, só lamentei, pela
necessidade de fazer escolhas (exigência inerente aos trabalhos acadêmicos) não ter mais tempo
para aprofundar o contato com esses informantes. Muitos informantes da região de “cima”
também receavam, principalmente no início de minhas pesquisas, falar sobre a região interdita.
As reflexões que aqui apresento são o resultado possível do raso contato que tive com os
moradores dessa região. Intento, porém, aproveitar ao máximo as possibilidades de interpretação
dele decorrente.
69
Nesse capítulo, quando me refiro à Rua da Palma remeto ao trecho desta incluso na região interdita.
69
A participação na oficina de fotografia do projeto Viver o Desterro
70
me permitiu a
aproximação com uma aluna moradora da rua da Palma: Alice, de 11 anos de idade. Durante a
oficina costumava entrevistar os alunos, na tentativa de mapear as possibilidades de socialização
entre crianças de regiões diferentes. Quando perguntei à Alice onde moravam seus amigos, ela
respondeu: “-Euo tenho amigos tia”. À resposta inesperada seguiram-se outros episódios
intrigantes no decorrer das aulas.
A oficina ocorria duas vezes por semana, com duração de três horas a cada dia. Na
terceira semana, depois do sexto dia de oficina, Alice só sabia o nome de duas das cinco meninas
que faziam parte do seu grupo
71
, as quais moram na região de “cima”. As outras três, de quem
Alice não havia aprendido sequer o nome, eram moradoras da região do “Desterro
72
”.
Num dos últimos dias da oficina, transcorridos quase três meses de contato entre as
crianças, “todo mundo era amigo
73
”, dizia Alice. Mas, os limites dessa amizade podem ser
inferidos na interpretação do episódio no qual, por ter tido um problema de saúde, precisou do
auxílio de meninas do seu grupo. Somente duas delas, moradoras da região de “cima”,
dispuseram-se a acompanhá-la, mas não ultrapassaram a fronteira da região interdita
74
. Suas
outras colegas de grupo, moradores de baixo”, sequer dispuseram-se a adentrar no território da
região de “cima”.
Tal episódio se constitui num indício que condensa a um só tempo a vigência de duas
fronteiras: a que di-vide as regiões de “cima” e de “baixo” (já que as meninas de “baixo” sequer
se dispuseram a acompanhar Alice) e a que di-vide as regiões de “cima” e interdita (que as
meninas de “cima” não ultrapassaram a fronteira da interdita).
A reprodução da di-visão e os limites de sua desconstrução, inferidos na interdição de
territórios, apesar da construção de laços de amizade e solidariedade entre crianças de regiões
70
Vide nota 29
71
As atividades da oficina costumavam ser realizadas em grupos, os quais eram formados, na medida do possível,
pelos próprios alunos, sendo que as monitoras poderiam interferir para incluir um ou outro aluno num grupo.
72
Tais práticas também são sugestivas da di-visão entre os de “cima” e de “baixo”.
73
Foi perceptível uma certa aproximação entre os alunos ao longo da oficina; todos eles já se conheciam pelo nome e
até já riam amistosamente uns dos outros, embora algumas barreiras ainda fossem mantidas como o exemplo a seguir
exposto sugere.
74
Alguns moradores da região de “cima” evitam passar pelo território da região interdita. Quando iniciei o trabalho
de campo os informantes da região de “cima” também me ensinaram a não transitar por ali. Em várias ocasiões,
quando observava o jogo de dominó na esquina da rua 28 de julho com a rua da Saúde, diziam para não passar pela
região interdita, mesmo sendo o caminho mais curto
.
70
diferentes, sugere que, por vezes, os nós e os eles instituídos se fazem mais rígidos, tendo uma
margem de elasticidade reduzida.
Alice é uma dentre os seis filhos de um senhor, seu Duarte, que aluga quartos na Rua da
Palma
75
. O comportamento de Alice e de seus pais indica, por vezes, certo desconforto com a
vizinhança. Entre seus inquilinos encontram-se desde moradores antigos (como mulheres,
alquebradas pelos anos, que ali trabalharam nos tempos áureos da ZBM) como pessoas que estão
de passagem pela cidade de São Luís ou vivem “pingando” de endereço em endereço pelo centro
(como hippies, artistas de rua, ambulantes, enfim, gente que vai “se virando” para ganhar a cada
dia o sustento do dia).
Os pais de Alice parecem temer o contato da filha não só com os demais moradores da rua
como com os próprios inquilinos da casa. É o que sugere o depoimento de Ângela
76
, que recorda
o fato de que seu Duarte e a esposa não gostavam que seus filhos ficassem circulando pela casa,
“eles ficavam mesmo pros fundos [parte reservada para a residência da família do casal]”.
Aponta que os maiores cuidados se voltavam para a menina, que sempre chamava a mãe para
atender aos inquilinos que solicitassem alguma coisa (como água para beber, por exemplo),
enquanto seu irmão
77
, tinha um trânsito mais livre pela casa (era ele quem normalmente ficava
responsável pelos quartos, cobrando e recebendo diárias na ausência do pai).
Ângela não guarda recordações muito boas das noites que dormia, ou segundo ela,
“deitava” no Seu Duarte, quando dizia vivenciar os perigos da região.
-Heitor [seu namorado/companheiro] foi morar num quarto de janela que dava
justamente pra rua. Gente, eu falo dormir, mas eu ia deitar lá na verdade, né, porque a
gente não dormia. Esse povo amanhecia lá vendendo, que lá é boca de fumo, eles
vendem merla e vendem maconha. Às vezes eu ficava assim olhando pelas frestas só os
carros parando e eles dando [vendendo]. O que eu sei é que a [maconha] de lá é péssima,
aquele pozinho, horrível, não vale nada. E aí, gente era uma zoada e tinha uma bicha
que passava a noite inteira falando, ele falava pros homens de que ficavam
atentando ele: “-Ah seu safado, tu ta me vendo aqui, eu morei foi no Rio de Janeiro,
viu seu nojento. Eu te caio é de tapa na tua cara, tu me respeita”.(entrevista realizada em
janeiro de 2005)
75
O aluguel dos quartos é negociado para ser pago por mês (noventa reais), por quinzena (quarenta e cinco reais) ou
por dia (três reais)
76
Ângela é colega de curso de graduação e professora de Ensino Médio. dois anos trilhou por quartos e pensões
do centro de São Luís, seguindo os passos do namorado Heitor, que desde que chegou à cidade vem “se virando”
cantando e tocando violão pelas praças e bares e fazendo “bicos” como digitador. As conversas com Ângela eram
normalmente mais ricas do que com outros informantes da região interdita, talvez, por conta da relação de
proximidade e confiança que tem comigo e por não ser ‘conhecida’ ali,que é uma dentre os muitos que “dormem
durante um espaço muito curto de tempo por ali. Segundo a classificação elaborada pelos da região de “cima”, ela
fez parte da região interdita. É, como os membros dessa região, “gente de fora, que vive, mas não mora ali”.
77
Segundo Ângela, o rapaz aparentava ter cerca de 16 anos.
71
Ângela não esconde o estranhamento que a rua da Palma lhe causou. Faria parte da rotina
do casal acordar de madrugada com o barulho de tiros. Nessas ocasiões, Ângela, assustada,
acordava o companheiro: “-Heitor, Heitor, tu ouviu?” Ele, mais acostumado às intempéries do
local, não interrompia de todo o sono: “-Ahn! Ouvi, relaxa”.
Na ocasião em que faleceu um menino morador da rua da Palma, aproveitei para ir ao
velório fazer trabalho de campo. Nos quase vinte minutos que passei, conversando com quem
estava dentro da casa onde o corpo era velado, e ouvindo a conversa de quem estava na porta,
tive a impressão de que a região interdita era um outro mundo social dentro da região de “cima”.
O bate-papo dos que faziam sentinela, nem de longe lembravam as conversas fiadas jogadas fora
no dominó da 28 de julho. Essas conversas paralelas ilustram o clima do local, onde uso e tráfico
de drogas, assassinatos, roubos e o “levar vantagem” são naturalizados nas práticas e
representações cotidianas de quem ali vive:
- Fulano agora deu pra fumar e dizer que tem um preto debaixo da cama que quer matar
ele. Ele dorme segurando uma faca bem na altura da barriga apontada pra cima. Ele
pode é ta querendo me matar, mas antes dele me matar eu mato ele.
-Que nada fulana, é porque ele fuma e fica vacilando.
-Vacilando? Deixa ele vacilar pra ver se eu o mato ele primeiro. Só tomo a faca dele e
dou três facada: uma no braço, outra na barriga e outra [inaudível]
-Sicrano não era casado contigo, aquele traficante?
-Traficante não, ele era ladrão, arrombador. Rapaz ele arrombou mais de duzentas
casas! Ali sabia roubar
-Rapaz uma vez Célia quase apronta uma comigo. Eu trabalhava numa loja lá na Rua de
Santana, e ela chegou pra roubar. Ela ia roubar quatro saias e duas blusas. Ainda bem
que eu vi, senão a gente que ia ter que pagar o prejuízo.
Muitos informantes
78
representam a região interdita como um “mundo de cada um por
si”, onde cada um quer levar vantagem e “quem vacilar dança”. É como coloca Mairton
79
,
morador há quatro anos na região Centro Histórico: “Aqui é muito tranqüilo, não tem perigo não.
A pessoa não pode é vacilar, ficar andando duas horas da madrugada desacompanhada com
dinheiro e celular na bolsa”.
Um episódio corriqueiro ocorrido com Heitor, que morou durante alguns meses na região
interdita, também sugere que ali não dá pra “marcar bobeira”, já que tem sempre algum “esperto”
procurando “levar vantagem.” Heitor, numa ocasião, esqueceu uma porta cédulas numa padaria
78
Tanto da região de “cima” como da região interdita.
79
Este informante já morou na rua Afonso Pena, na Jacinto Maia e agora vive/dorme nas ruínas de um prédio da rua
da Palma
72
da rua da Palma, na qual não havia dinheiro, um “beck” (cigarro de maconha). Dando por sua
falta instantes depois, retornou imediatamente para resgatá-la. Quando Heitor chegou na padaria
e perguntou pela carteira, o senhor que lhe atendera entregou-a de imediato, mas sem o “beck”...
Quando abriu a carteira a reação de Heitor foi a de quem percebe que “vacilou”. Ele pensou
consigo: “Porra, o velho roubou meu beck”.
Na fala de diversos moradores da região de “cima”, a referência àqueles que lidam com o
tráfico, os da região interdita, é feita como se tais indivíduos não fizessem parte daquele espaço;
é como intrusos (outsiders), e não como moradores(estabelecidos) que o representados. São
designados através de expressões do tipo: “essa gentinha que chegou”; “viciados de fora que
vieram empestar o nome do lugar”, “eles não moram aqui, eles vivem por aí”, eles se alojaram
aqui”, “pessoal de fora”.
A distinção entre invasores” (outsiders) e “moradores” (estabelecidos) de prédios
abandonados por proprietários sugere a definição de um nós e de um eles. Os da região de
“cima” normalmente se definem como “moradores” (usando como critérios de classificação o
tempo de moradia e a retidão moral) e classificam os da região interdita
80
como “invasores” (por
viverem ou passarem pouco tempo nesta região por seu envolvimento com o tráfico)
A venda e o uso de drogas são normalmente apontados como elementos desagregadores
de um tempo pacífico e feliz. Relembrando a ZBM, D. Nadir, que morou muitos anos na região
de “cima”, constrói a seguinte representação, comparando a rua da Palma de outrora com a atual:
Elas [as prostitutas da ZBM] não desciam embaixo. Agora isso tem nigrinha, só
nigrinha ladrona, é o que tem aí Esses cheira cu, cheiradores de cola, esses que mora,
que vive aí, tudo são safado, tudo são ladrão! Mas nesse tempo [tempo de
funcionamento da ZBM] elas não vinham nem na porta da rua. Todo tempo em cima,
usavam luva no salão, aquele chapeuzão bonito de antigamente e meia, aquela coisa
mais linda do mundo! (entrevista realizada em outubro de 2004)
O discurso de D. Nadir aponta mudanças bruscas nos últimos anos, depois que a presença
de traficantes e usuários teria mudado a fisionomia da Rua da Palma, espaço onde,
“antigamente”, podia beber sossegada até de manhã com suas amigas, também “de idade”, que
“ninguém mexia, ninguém tomava gosto”. Hoje em dia, afirma não ser possível andar com
80
O raso contato que tive com os moradores da região interdita não me possibilitou mapear os critérios de
classificação utilizados por eles para se auto definir e para definir os de “cima” e os de “baixo”. Os limites desse
trabalho me permitiram mapear ligeiramente os critérios de classificação que lhes são atribuídos por esses outros
agentes.
73
tranqüilidade por esta rua. Ela diz ter sido vítima de um “ataque”, sofrido à luz do dia, quando
por ali passou e um rapaz, “doido de chila
81
”, tentou lhe agarrar e lhe agrediu verbalmente
dizendo: “-Sua puta velha não quer fazer isso assim assim comigo?”
Procurou esconder o ocorrido de seu filho de criação, que também mora na rua da Palma,
por entender que este “não ia conversar, ia logo bater“ no dito agressor, e normalmente nas brigas
que ocorrem naquela área “não se sabe quem vai morrer dos dois”, como também afirma uma
outra informante. D. Nadir teria contado a um neto, provavelmente mais calmo, que esperou
até o dia seguinte, quando o indivíduo não estaria mais “chilado”, para dar-lhe uma “prensa”.
Nessa conversa de homem para homem, o tom teria sido firme e direto: “Se tu não quiser ser um
homem perdido comigo, não mexe com minha vó”.
A continuidade de seu discurso sugere formas cotidianas de reajustes das tensões. No dia
seguinte, o dito agressor foi até a residência de D. Nadir (localizada na região do “Desterro”)
para pedir-lhe desculpas e justificar sua atitude: –Ô minha senhora, a senhora me desculpe, é
porque tava doido de diamba”.
O discurso de Seu Leandro, morador relativamente recente da região Centro Histórico, a
respeito do tráfico de drogas e da existência de “marginais” ali, não é impregnado pelo
ressentimento e pela revolta que, normalmente, perpassam a fala de moradores mais antigos.
Muitos destes representam com nostalgia o palco da antiga ZBM nos seus tempos áureos,
quando, segundo alguns, “não havia essa malandragem, essa traficância, essa depravação”.
Este informante, proprietário de um bar na Travessa da Lapa
82
, também se refere à
presença de “gente que não presta”, mas não especifica uma região para sua ‘incidência’:
Aqui tem ladrão, gente que mexe com droga, aqui tem por todo lado, mas eu sei lidar
com eles. Às vezes chega de três, quatro deles aqui, tudo ladrão, tudo marginal, mas eu
conheço eles tudinho. Eles chegam aqui me pedindo bebida, cigarro; aí eu dou dois, três
reais pra eles comprarem uma garrafa de cachaça adiante, mas aviso logo que aqui não
dá pra eles beberem
.
81
Um dos termos utilizados no Estado do Maranhão como sinônimo de maconha, além dele é comum o uso das
expressões chileiro, diamba e diambeiro.
82
O fato de haver tráfico de drogas nas proximidades de seu estabelecimento lhe traz outros transtornos; alguns
fregueses depois de tomar uns tragos (a especialidade do bar são as cachaças produzidas pelo proprietário) fazem a
tradicional pergunta: O senhor tem alguma coisa ?” Ao que ele responde sem rodeios: “Meu amigo, eu trabalho
com bebidas, se você tá procurando outra coisa [maconha, merla, pó] não vai encontrar aqui”.
74
Faz-se necessário pensar uma questão com certo vagar: quantos nós e quantos eles são
construídos/desconstruidos cotidianamente pelos diversos atores sociais que di-videm o espaço
físico correspondente à região de “cima”? A observação do dia-a-dia entre os de “cima” e os da
região interdita sugere laços de solidariedade quando as tensões parecem ser sublimadas pela
necessidade (desejo?) de se ajudar o outro (mesmo?). A interpretação dos episódios narrados a
seguir me auxilia nessa problematização.
No início de dezembro de 2004, a APROSMA realizou um bingo
83
, por volta de seis
horas da tarde de um sábado, horário em que as pessoas que têm emprego fixo normalmente estão
de folga. Apesar disso, não havia nenhum morador da região do “Desterro” presente. os da
região de “cima” e os da região interdita compareceram em peso: moradores da Jacinto Maia,
Rua da Saúde, Rua Direita, 28 de julho, Rua da Palma se dirigiram ao local.
As pedras do bingo eram normalmente chamadas fazendo-se referência ao jogo do bicho,
mas a grande maioria dos presentes não precisava, como eu, esperar a tradução do bicho em
número para marcar a cartela. Aquela parecia ser uma linguagem conhecida por todos eles. Mas
a distribuição dos moradores no espaço físico sugeria a existência de dois grupos. Os da Rua da
Palma se sentaram à esquerda da APROSMA e eram os mais exaltados durante o bingo, riam alto
e faziam piadas que pareciam não agradar muito aos demais presentes. Os da 28 de julho se
sentaram à direita da sede da associação e do outro lado da rua estavam os da Jacinto Maia e um
ou outro visitante/intruso como eu. Terminado o bingo, cada grupo se levantou e se dirigiu para
sua região. A cena me fez recordar a fala de um informante: “Aqui [na região de cima] todo
mundo fala com todo mundo, mas a gente se une, mas não se mistura”.
Em outros momentos de dificuldade, laços de solidariedade se constroem sem que isso
implique na eliminação das fronteiras: essa possível di-visão parece ser posta em suspenso,
Como ocorreu no final de 2004, quando uma criança, residente na região interdita, faleceu. O
caixão foi providenciado pelo diretor do Convento das Mercês e um ônibus para o enterro pela
União de Moradores. Eu estava na sede da APROSMA quando um morador da Rua da Palma
(região interdita) foi falar a presidente desta associação (da região de “cima), dizendo ser
83
O prêmio do bingo foram duas grades de cerveja e dois galetos, seu objetivo era arrecadar dinheiro para pagar
duas contas de telefone da associação que estavam pendentes.
75
preciso comprar formol, o qual custava sessenta reais. Ela respondeu “na bucha” já se levantando
para fazer um telefonema: “- Hum hum! Eu arranjo trinta e vocês arranjam os outros trinta”.
A investigação dos critérios de classificação utilizados por esses atores sociais nas suas
relações cotidianas fornece alguns indícios para a análise dessa dinâmica.
.
76
3 MOVIMENTOS DE FRONTEIRAS
A construção das fronteiras se numa relação que expressa os interesses e poderes de
diferentes agentes. Nesse sentido, elas se constroem e desconstroem em função das relações que
se estabelecem no jogo de interesses políticos, sociais e econômicos.
No campo empírico em questão, diversos critérios entram em cena, numa dinâmica, onde
estabelecidos e outsiders vão se definindo e redefinindo, numa disputa pelo poder de afirmar “ser
Centro Histórico”, “ser patrimônio da humanidade”.
Após a obtenção do título de patrimônio da humanidade pela cidade de São Luís, em
dezembro de 1997, e, principalmente, nesses últimos dois anos, o “bairro” do Desterro vem sendo
palco do investimento de instituições públicas e privadas. Sendo pouco beneficiado pelas obras
executadas durante o Projeto Reviver
84
, que priorizou ações sobre o bairro” da Praia Grande, a
promessa e/ou a efetivação de ações no “bairro” do Desterro
85
tem modificado o cotidiano dos
moradores.
As relações entre os moradores das regiões abordadas têm sido alteradas com a realização
desses investimentos: cursos de capacitação promovidos pelo SEBRAE e SENAC,
estabelecimento de parcerias com o Banco do Brasil e o SEBRAE - que tem viabilizado a
formação de Cooperativas - intervenções em prédios ocupados como lugar de moradia -
efetuados sob e gestão do IPHAN e do Núcleo Gestor do Centro Histórico - financiamento de
projetos de educação patrimonial, aumento significativo de pesquisas acadêmicas, e anúncio de
programas de moradia popular para moradores da região Centro Histórico.
Mapeando critérios de classificação acionados pelos moradores das regiões de “cima”, de
“baixo”, interdita e Centro Histórico construo minha interpretação dos movimentos de
identificação em curso que aproximam e di-videm agentes que ora se identificam como mesmos
(região Centro histórico) ora como outros (região de “cima” versus região de “baixo” e região
de “cima” versus região interdita)
A análise dos movimentos de construção e desconstrução de fronteiras entre os moradores
dessas regiões se faz viável no estudo das relações entre eles travadas em torno de critérios de
classificação. Nesse sentido, apesar de um esforço didático de apresentar separadamente ao leitor
84
Vide nota 2.
85
Alguns órgãos, como o Núcleo Gestor da Prefeitura de São Luís, SEBRAE, denominam Desterro a um espaço que
abrangeria as regiões interdita, de “cima”, de “baixo” e ao “bairro” do Portinho.
77
as classificações desses agentes, nem sempre se fez possível fazê-lo. Assim quando apresento os
critérios de classificação dos de “cima”, de “baixo”, da interdita e do Centro Histórico preciso
referir-me às disputas em torno deles travadas com moradores das regiões abordadas.
3.1 Quando os de “cima” são “figura principal”.
Morar muitos anos na mesma região, construir laços de amizade entre si, “ser artista”,
“ser morador do Centro Histórico”, “ser patrimônio da humanidade” e “ser figura principal” são
alguns dos critérios positivos pelos quais os moradores da região de “cima” se auto definem.
Critérios negativos também permeiam sua auto-definição: “ser desempregado”, “ser sem casa”,
“ser sem educação”, “ser vulnerável à marginalidade” e “ser esquecido pelo poder público”.
3.1.1 Antigos e amigos
“Isso aqui é uma amizade de muitos anos”, assim Fátima, moradora há 25 anos na região
de “cima”, conceitua a relação entre os vizinhos do espaço onde funcionou a ZBM. Ex-prostituta,
hoje casada e mãe de dois filhos, ao longo desses anos mudou várias vezes de endereço dentro de
um espaço físico muito pequeno, a região de “cima”. Muitos outros moradores de “cima”, que ali
vivem trinta, quarenta anos, também habitaram, como Fátima, em muitos prédios e casarões
daquele pedaço de chão. Sem possuir casa própria e convivendo com as intempéries de quem
“mora de favor”, “vive debaixo da casa dos outros”, “invade prédios” ou paga aluguel, eles
vivem numa contínua transumância de casa em casa e de prédio em prédio, movimentando-se
dentro de um espaço formado por meia dúzia de ruas.
O ser amigo traz em si um outro critério de classificação. Entre os de “cima” é comum a
valorização do ser “morador antigo”, critério este muitas vezes utilizado como distintivo em
relação aos que não são, por muitos destes, considerados nem amigos, nem antigos e sequer
moradores: os da região interdita, representados como “gente de fora” , “estranhos”, conforme
exposto no capítulo anterior.
78
3.1.2 “A gente samos os artistas do Reviver, nós somos patrimônio também”.
“Ser artista” é um elemento de auto-definição dos moradores da região de “cima”
acionado a partir de um critério mais amplo: “ser patrimônio”. O envolvimento com
manifestações artísticas e culturais é, normalmente, utilizado por esses moradores fazendo-se
referência ao “ser patrimônio”. Tais critérios – “ser artista” e “ser patrimônio”- não se restringem
à auto-definição dos de “cima”. Moradores das regiões de “baixo”, interdita e Centro Histórico
também os acionam nas suas práticas e representações. Em torno de tal critério, os moradores
dessas regiões ora comungam de interesses comuns, ora disputam o poder de afirmá-lo, quando
ser Centro Histórico é uma estratégia de afirmar o valor histórico de uma região e a legitimidade
no beneficiamento com os investimentos aí realizados.
Teatro, dança e música fazem parte do cotidiano de moradores de “cima”. “Aqui todo
mundo é artista” diz D. Joana
86
que se orgulha de sair na dança do balaio. D. Isabel, que mora há
mais de quarenta anos na região de “cima”, também conta com entusiasmo que dança tambor,
dança balaio e já fez teatro.
Das Dores, uma das mais fortes lideranças entre os de “cima”
87
, afirma: “A gente samos
os artistas do Reviver
88
, do Centro Histórico”. “Ser artista” para os moradores da região de
“cima”, e do Centro Histórico de um modo geral, é motivo de orgulho e instrumento de
afirmação política. Aurora, moradora do “balança mas não cai,” situado no “bairro” da Praia
Grande, afirma sempre falar de cultura para seus filhos, estimulando-os a participar de oficinas de
tambor de crioula, instrumentos de percussão, orientando-os, “vocês nasceram aqui no Centro
Histórico, vocês tem que saber essas coisas, porque vocês é cultural.
Artur
89
, ex-morador da região do “Desterro” e uma das lideranças da região Centro
Histórico, também enfatizou a importância das manifestações culturais para os moradores desta
última região. No início de um dos seus discursos
90
, antes de anunciar a encenação de fragmentos
86
Moradora da região de “cima” residente temporariamente no prédio abrigo da Escadaria Humberto de Campos,
“bairro” da Praia Grande.
87
Antes de exercer a função de presidente da APROSMA, Das Dores já tinha iniciado uma trajetória de militância. È
sócia fundadora e ex vice-presidente da União de Moradores do Centro Histórico, e é tida como uma das principais
representantes dos vendedores ambulantes.
88
Vide nota 2
89
Ex-morador da região do Desterro e uma das principais lideranças da região Centro Histórico. Artur é advogado,
professor universitário, poeta, e já ocupou o cargo de presidente da Fundação Municipal de Cultura.
90
Discurso proferido durante o II Seminário de Desenvolvimento Sustentável do Desterro, Portinho e Praia.
Doravante denominado II Seminário Realizado entre os dias 13 e 15 de abril deste ano, teve como organizadores
79
de uma peça, ressaltou que: “nós sempre iniciamos nossos eventos com um ritual cultural, com
uma manifestação artística”.
O “ser artista” traz em si também outro significado e função: o de ser mais uma das
possibilidades de ganhar “um troco”. A título de exemplo, na encenação do auto natalino, que
ocorre alguns anos no Convento das Mercês, muitos moradores da região de “cima”
empolgam-se, não apenas com a possibilidade de mostrar seu trabalho para o público, mas
também com o cachê pago pela Fundação de Cultura, dinheiro sempre bem vindo aos que não
têm emprego fixo.
O argumento de “ser artista” é seguido por outros que enfatizam o pertencimento a uma
região específica: o Centro Histórico. É como parte de um critério de classificação mais amplo,
“ser patrimônio”, que é acionado. Das Dores, moradora de “cima” articula corriqueiramente esses
dois critérios nesse discurso
91
: “nós samos as principais pessoas, as principais figuras que na
verdade quem fez o Centro Histórico, quem fez o patrimônio da humanidade fomos nós, nós
somos patrimônio também”.
Fazedores do Centro Histórico e do patrimônio da humanidade, materialização do
patrimônio cultural (“nós somos patrimônio também”), argumentos acionados nesse discurso de
Das Dores foram compulsivamente aplaudidos pelo público que a ouvia no auditório do
Convento das Mercês, onde se realizou o II Seminário. O público ali presente englobava
moradores das regiões de “cima”, de “baixo”, interdita e Centro Histórico, representantes de
instituições públicas e privadas que realizam trabalhos nesse espaço e pesquisadores.
A noção de patrimônio imaterial
92
incorporada pela líder foi acolhida e aprovada pelo
público ali presente. As outras quatro falas que se seguiram à de Das Dores (duas de moradores
da região do “Desterro” e duas de moradores da região de “cima”) corroboraram a mesma
afirmação: “nós somos patrimônio também”. Em ocasiões como esta, percebo referências a
interesses comuns nos discursos dos moradores de “cima” e de “baixo”, quando outra região
parece se construir: a Centro Histórico. Na configuração de tal região, o elemento patrimônio
União de Moradores do Centro Histórico, APROSMA, SEBRAE, Núcleo Gestor do Centro Histórico, Secretaria
Municipal de Turismo e Faculdade São Luís.
91
Discurso proferido durante o II Seminário.
92
“A questão do patrimônio imaterial, ou, conforme preferem outros, patrimônio intangível, tem presença
relativamente recente nas políticas de patrimônio cultural. Em verdade é movida pelo interesse em ampliar a noção
de patrimônio histórico e artístico’, entendida como repertório de bens, ou ‘coisas’, ao qual se atribui excepcional
valor cultural, o que faz esses bens serem merecedores de proteção pelo poder público. (FONSECA, 2003, p. 63)
80
cultural, referindo-se a aspectos imateriais ou materiais, parece ser o ponto central para a
autodefinição.
Aroldo, morador e liderança da região do “Desterro”, também se pronunciou, nessa
ocasião, fazendo referência ao critério “ser patrimônio”, que afirmou ser elemento comum aos de
“cima” e aos de “baixo” e da interdita. Nessa fala, tal critério de classificação é acionado
abrangendo a auto-definição de moradores das regiões de “cima” e de “baixo”e da interdita,
sugerindo a desconstrução da fronteira entre elas e a construção de uma região: a Centro
Histórico:
As coisas mais bonitas que nós temos no nosso bairro não são os prédios, não são os
azulejos, não o as ruas tortas, os paralelepípedos, mas sim, quem ta lá dentro da casa,
aqueles que tão morando lá, uns em boas condições [os de “baixo”], outros escorados [os
de “cima” e da interdita], esses são os verdadeiros patrimônio cultural da humanidade.
Eles que fizeram que o Luís ganhasse esse prêmio. Não foi a beleza arquitetônica, foi
a vida das pessoas que fazem esse patrimônio, aqueles que tão dentro dos prédios.
(discurso proferido durante o II Seminário)
O discurso de Aroldo enfatiza o patrimônio imaterial expresso na experiência das pessoas
que, para ele, são “os verdadeiros patrimônio cultural da humanidade”. No seu discurso o critério
de auto-definição “ser patrimônio” é atribuído a todos os moradores da região Centro Histórico,
ainda que esses apresentem condições de vida distintas.
Artur, coordenador das atividades do II Seminário, ao convidar os moradores que iriam se
pronunciar, utilizava a expressão “azulejo do Centro Histórico”: “vamos chamar mais um azulejo
do Centro Histórico”. Após a fala de cada “azulejo”, convocava: “vamos aplaudir X que está
demonstrando seu pertencimento, sua identidade”. Esses conceitos acionados no discurso de
Artur, quais sejam, “azulejo do Centro Histórico” (que poderiam ser traduzido como patrimônio
imaterial), pertencimento” e “identidade” são sugestivos de um processo de politização e
conscientização dos moradores difundidos pelas lideranças da região Centro Histórico.
O critério de classificação “ser patrimônio” utilizado, por vezes, pelos moradores das
regiões estudadas, é considerado, por suas lideranças, parcamente difundido. Muitas delas
apontam, com pesar, que a maioria dos moradores dessas regiões “não sabem nem o que é
patrimônio, não sabem nem o que é humanidade”.
Embora as lideranças considerem a apropriação do critério “ser patrimônio” ainda
embrionária entre os moradores das regiões estudadas, nas práticas e representações destes, tal
critério é, por vezes, acionado. Como, em maio deste ano, quando uma moradora morrera
81
eletrocutada ao tocar num dos postes da região Centro Histórico (numa área designada por uns
como Portinho e por outros como Desterro) a reivindicação dos moradores junto às empresas
responsáveis pela iluminação pública era justificada com o seguinte argumento: “aqui á Centro
Histórico, é patrimônio da humanidade, não é um bairro qualquer da cidade”.
Nos movimentos da vida cotidiana, o ser morador da região Centro Histórico assume por
vezes outras conotações. Alguns moradores de “cima”, referindo-se às dificuldades financeiras,
ao desemprego, às dificuldades em relação à moradia, e às precárias condições de higiene e
segurança em que vivem afirmam, sorrindo ironicamente: “isso aqui é periferia”. Essa
representação da região Centro Histórico como “periferia” também foi sugerida e aprovada pelos
moradores que se fizeram presentes no II Seminário. Uma representante do Movimento pela
moradia popular em São Luís afirmou, nessa ocasião, em seu discurso: “O Centro Histórico hoje
é a maior favela de São Luís”.
Essa fala foi aplaudida tanto por moradores de “cima” como de “baixo”. Nessa ocasião,
eles pareciam se identificar como mesmos: como desassistidos pelo poder público. Embora, em
outros momentos de seus discursos, haja indícios de movimentos de reforços de fronteiras entre
os de “cima” e de “baixo” e entre os de “cima” e da região interdita, em torno dessa mesma
questão. Isso ocorre quando os moradores das regiões estudadas lançam de um lado para outro
das fronteiras, a responsabilidade por essa imagem negativa da região Centro Histórico: a de
“periferia” ou “favela de São Luis”.
Assim, quando a definição da região Centro Histórico envolve atributos negativos, como
as condições precárias de higiene, segurança, moradia, além de sua marginalização na cidade de
São Luís, normalmente as disputas entre as regiões se fazem no argumento da negação. Nesse
sentido, os de “baixo” atribuem muitas vezes aos de “cima” a responsabilidade pela imagem
negativa da região Centro Histórico, e os de “cima”, a atribuem aos da região interdita.
Em torno do critério “ser patrimônio” outras disputas são travadas entre os moradores das
diversas regiões estudadas. Quando o que está em jogo são atributos positivos decorrentes do “ser
patrimônio”, as fronteiras das regiões se enrijecem, num primeiro momento, e se diluem, num
segundo, quando cada uma delas arroga para si efeitos metonímicos. Tal movimento ocorre em
torno da disputa de dois elementos: o “ser artista” e o possuir uma memória / valor histórico
82
legítimos, quando os de “cima’ e os de “baixo”
93
atribuem exclusivamente para si o poder de “ser
patrimônio”.
Assim, o “ser artista” e o possuir uma memória / valor histórico legítimos são disputados
entre os de “cima”, de “baixo”, que se arrogam, entre outras questões, o direito de serem
legítimos beneficiários de projetos previstos para a região Centro Histórico
94
Algumas falas de moradores de “cima” e de “baixo” sugerem disputas em torno do “ser
artista”. Das Dores, no discurso citado, afirma: “A gente samos os artistas do Reviver”. A
expressão “a gente” (nós) articulada no seu discurso refere-se à parcela significativa (80%) dos
moradores do Centro Histórico: os desempregados. Essa definição, feita pela informante, exclui
grande parte dos moradores de “baixo” que têm seu “empreguinho”. Conforme Das Dores, os
“artistas do Reviver”, seriam os desempregados, os “esquecidos pelo poder público”, que teriam
grande valor cultural, perfil que se refere aos critérios de auto-definição acionados pelos
moradores de “cima”. Assim, ao mesmo tempo em que seu discurso parece afirmar que todos (os
da região Centro Histórico) são patrimônio, ele sugere também a localização do atributo “ser
artista” numa região específica: a região de “cima”.
Parece-me sugestivo que Aroldo, morador de baixo”, tenha enfatizado no seu discurso
manifestações culturais realizadas na região do “Desterro”. Na interpretação que faço das
entrelinhas de seu discurso leio uma frase: nós (os de “baixo”) também somos artistas, nós
também somos cultural..
aqui no meu bairro eu costumo sempre fazer uns jogos, movimentar a comunidade, os
jogos abertos do Desterro que nós fazemos, tem umas fotos ali [no painel] são vinte e
duas modalidades e chamar a atenção das autoridades que essa parte não foi, esporte e
lazer e a cultura não foi citada mesmo. Temos vinte e duas modalidades: futebol de
campo, de salão, basquete, voleibol, futivôlei e tem mais modalidades. Meu pai tem
oitenta e cinco anos ele joga dama, dominó, minha sobrinha tem dois anos faz corrida do
saco, faz corrida do limão. Então é jogos que participam pessoas de setenta, sete até
oitenta e cinco anos, todo mundo participa. Também nós temos aqui nossas festas
culturais, nossas quadrilhas, nosso carnaval, muita coisa boa, como a própria União de
Moradores ano passado com a parceria desenvolveu o arraial que há quinze anos que não
tinha no bairro.(discurso proferido durante o II Seminário)
Os “jogos abertos do Desterro”, “as quadrilhas”, o “carnaval” e o “arraial” são atividades
culturais que, embora, por vezes, envolvam moradores das duas regiões, são realizadas no espaço
93
O raso contato com os moradores da região interdita não me permite inferir seu envolvimento nas disputas em
torno desses elementos.
94
Esse elemento será discutido no tópicos seguintes.
83
da região de “baixo”. Ao falar de atividades culturais, Aroldo não menciona aquelas realizadas
pelos moradores de “cima”:o tambor de crioula, a dança do balaio etc. É interessante destacar o
uso do termo “bairro”, que nesse discurso vem precedido do pronome “meu”
95
. Isso indica que ao
mesmo tempo em que essas atividades estão abertas a todos, elas são características do “seu
bairro”, expressão que julgo poder ser traduzida como sua região: a região de “baixo”.
3.1.3 “Nós samos as principais figuras”: posse de uma memória legítima da ZBM
O “ser patrimônio”, elemento agregador das regiões de “cima” e de “baixo” numa única
região (a Centro Histórico), faz-se alvo de disputa entre elas, quando entra em cena a luta pela
afirmação da memória/ valor histórico legítimos. Cada uma dessas regiões intenta arrogar
exclusivamente para si a posse de tal elemento. Nesse tópico analiso sua auto-atribuição pelos de
“cima”, que o fazem, muitas vezes, no sentido de afirmar, que a memória/ valor histórico
legítimos da região Centro Histórico se localizam, exclusivamente, no espaço da região de
“cima”.Já que os movimentos de identificação se constroem no contraste, em alguns momentos
desse tópico faço referência às regiões de “baixo” e Centro Histórico.
A análise do discurso de Das Dores com mais vagar me permite construir indícios dessas
disputas. Pois, se num primeiro momento sugere a formação da região Centro Histórico, que
engloba os de “cima” e os de “baixo”, em seguida, indica a persistência de di-visões, quando
parece atribuir especialmente aos moradores de “cima” a legitimidade para falar da história da
região Centro Histórico.
Das Dores aciona o atributo de “figura principal”, ou seja, aquela que na verdade” teria
feito a região Centro Histórico, o patrimônio da humanidade. A “figura principal” seria aquela
que construiu a história dessa região, a que tem longo tempo de moradia nesse espaço. Para essa
informante as “figuras principais” da região Centro Histórico viveriam hoje num território
específico: a região de “cima”.
- A senhora já mora há quanto tempo aqui?
- Trinta e cinco anos.
- Trinta e cinco!
- Mas eu sou figura principal né? Assim é é eu o sou figura principal é como essa
questão de querer ser, é como uma questão que eu acho que eu sou, eu como todas as
95
Em outros momentos de seu discurso, quando se referia à extensão do atributo “ser patrimônio” a todos os
moradores da região Centro Histórico, utilizava a expressão “nosso bairro”.
84
pessoas nós somos importantes, que se não fosse a gente na verdade não tinha não tinha
o culto, porque já imaginou? O o que que o turista viria vir ver aqui no centro
histórico se não tivesse nenhum habitante, se não tivesse nenhum morador, certo? Então
eu acho que a gente somos grandes colaboradores (entrevista cedida em julho de 2004,
grifos meus)
Tanto na região do “Desterro”, quanto na região de “cima”, a categoria “morador antigo”
traz consigo um certo status e percebe-se, inclusive, uma disputa pela legitimidade da memória
entre as duas regiões. O “bairro” do Desterro tem sido palco de investimento de inúmeras
instituições (IPHAN, Núcleo Gestor da Prefeitura de São Luís, SEBRAE, Governo do Estado do
Maranhão, Companhia Vale do Rio Doce), e em muitos dos projetos realizados na área uma
ênfase na necessidade de registrar a memória e a história desse local.
96
Esse, talvez, seja um dos
elementos que torna compreensível a disputa pela posse de uma memória legítima intra e entre
regiões.
O exame atento do discurso de Das Dores fornece algumas pistas. Enquanto “figura
principal” -por ser moradora da região de “cima” (e moradora antiga)- Das Dores se ressente dos
esquecimentos sobre os quais a história da região Centro Histórico teria sido construída. Aponta
que tal história, transmitida nas escolas e propalada pelos guias de turismo, é uma história
“maquiada”, onde a prostituição da ZBM não aparece ou aparece de forma deturpada. Considera
“que é uma história muito bonita por sinal”, que “deve ser resgatada como um todo”, “do jeito
que ela é real”.
O saudosismo e a idealização do passado marcam o primeiro retrato da ZBM que constrói
na sua narração, onde o lugar social de onde fala, qual seja, o de ex-prostituta da ZBM e de atual
representante da APROSMA, se demarca com mais relevo. É como uma grande festa
97
que a
ZBM é representada, com as ruas da Palma e 28 de julho cheias de gente, de modo que mal se
podia andar; (“era mulher pra cá, era homem pra lá, era uma festa, em tudo que era bar tinha
música”), com a presença de cantores consagrados em todo o país (“Valdique Soriano vinha era
muito na zona”). Vejamos tal representação construída na fala abaixo:
Porque na verdade quem vinha na zona eram figuras ilustres, eram políticos, eram
filósofos, entendeu? Eram essas pessoas que freqüentavam uma prostituição elitizada
com mulheres bem vestidas com roupas de seda com jóias, né? Então assim tudo isso
96
O projeto ‘Viver o Desterro’, do qual participei, é um exemplo do tipo de investimentos que vêm sendo realizados
no “bairro” do Desterro.
97
A respeito de representações da ZBM como festa por mulheres que nela atuaram como prostitutas ver LOPES
(2004, p.37)
85
aconteceu aqui no Centro Histórico, aqui aonde hoje tem o título de Patrimônio da
Humanidade. E assim eu acho que assim que tem que ver assim é começar a resgatar
essas coisas também. Não é uma questão de resgatar pra re pra reviver.(pausa) Então é
isso que eu acho assim que tem que trazer a história como ela era, como ela aconteceu,
como ela foi, como ela existiu, que a gente vivenciou também. Não é assim alguém que
contou não, foi a gente que... [vivenciou] (entrevista realizada em julho de 2004, grifos
meus)
Para Das Dores, essa história “muito bonita por sinal”, a história de uma “prostituição
elitizada” freqüentada por “homens ilustres” pode ser “resgatada como um todo” por aqueles
que a vivenciaram. eles teriam legitimidade para falar “como era, como aconteceu, como foi,
como ela existiu”. A posse de uma memória/ valor histórico legítimos da ZBM (a de quem
vivenciou e não apenas ouviu contar) é, pois, um outro critério de classificação a partir do qual
moradores de “cima” se auto-definem e se valorizam. O ter sido prostituta, gigolô, garçom,
costureira ou lavadeira de roupa dos cabarés da ZBM é um distintivo, e somente essas “figuras
principais” teriam autoridade para falar da história daquele pedaço de chão.
Esta e outros informantes da região de “cima” m prazer em contar o que denominam “a
verdadeira história da ZBM”. Muitos deles se dizem irritados com os guias de turismo que
trabalham nesse espaço,por passarem nas suas portas “mentindo”, “passando informações
erradas”. Deviam era me contratar para ciceronear as pessoas, os turistas. Eu é que devia ser
cicerone [guia de turismo]” Assim seu Manoel manifesta seu descontentamento com o fato da
maioria dos moradores de “cima” ser desempregada, enquanto muitos guias de turismo “que não
sabem nada” ganham dinheiro “mentindo na cara da gente, na porta da gente”.
Uma moradora da região de “baixo” não parece comungar da mesma opinião de Seu
Manoel. O perfil que traça do profissional habilitado para exercer a função de guia de turismo em
nada se assemelha às qualidades enumeradas por este informante para legitimar o exercício do
ofício de “cicerone”:
é o seguinte pra isso [para que São Luís possa honrar o título de patrimônio da
humanidade] tem que ter uma pessoa exclusivamente que tenha conhecimentos
profundos, de verdade, que saiba bem o português, que tenha uma dicção perfeita, que
saiba demonstrar, explicar a igreja total, como é, os santos, aquelas esculturas, o que que
fez, o que que faz, aquelas coisas do próprio bairro, entendeu o que que eu acho? Uma
fiscalização melhor, pra que a gente possa ir e entrar, tanto os moradores como os
próprios turistas pra não ser assaltado. (entrevista realizada em maio de 2005)
Conhecimentos profundos, dicção perfeita, emprego correto da língua portuguesa, esses
seriam os elementos indispensáveis para um guia de turismo. Essas exigências em nada se
86
adequam ao perfil de moradores da região de “cima” que, por vezes se representam como os mais
indicados para ser “cicerone” (guia de turismo). Enquanto para alguns moradores de “cima” a
posse legítima de uma memória da ZBM legitimaria o exercício de tal função, para esta moradora
da região do “Desterro”, o estudo e a formação é que conferem tal legitimidade.
A recepção que tive enquanto pesquisadora foi, normalmente, marcada por atitudes
extremas. Muitos se mostravam irritados e por vezes perguntavam se seriam indenizados pela
entrevista
98
, outros se mostravam orgulhosos e se esmeravam em falar das coisas que pensavam
ser interessantes para mim. Seu Manoel figura nessa segunda vertente. Às questões que eu lhe
colocava, sempre procurava dar uma resposta mais erudita. Assim, quando lhe perguntei se tinha
sido gigolô, ele me explicou que não, porque o gigolô propriamente dito “é aquele que a mulher
da vida banca tudo, casa, roupa e comida”. Como morava com o pai e tinha o que comer e o
que vestir, não se encaixava na categoria gigolô. Para resolver o problema conceitual, inventou
uma nova categoria para si: “gostoso”. Para ele as mulheres pagavam o lazer, “o cinema e a
cerveja”.
Na fala desse mesmo informante ouvi pela primeira e única vez, entre os moradores das
regiões abordadas, alguém dizer: “moro num cortiço”. As pessoas que moraram ou moram em
habitações corriqueiramente designadas cortiço por um observador externo, referem-se aos seus
locais de moradia usando as categorias “prédio”, “casarão” e lá em casa
99
”, mas, na fala de Seu
Manoel, três adjetivos preciosamente acionados - antigo, verdadeiro e primeiro - tratam de
ressemantizar o termo, atribuindo-lhe uma conotação positiva. Ele mora num dos mais “antigos
cortiços de São Luís”. São Luís teria dois “cortiços verdadeiros”: o que mora ainda hoje e um na
Rua de São Pantaleão. Em relação à região Centro Histórico, o seu seria “o primeiro cortiço que
tá na história por aqui”.
Quando lhe perguntei se as pessoas que moraram neste local também o chamavam de
cortiço ele diz que não chamavam “casa de Antônio Galinheiro“– e explica que chama de
cortiço porque ouviu dizer que cortiço era isso: “aquele terraço no meio, quarto de um lado e
quarto do outro”.
98
Muitos deles chamavam as conversas com os pesquisadores de entrevistas, independente da presença de um
gravador ou de anotações feitas ou não pelo pesquisador.
99
É comum a referência a pessoas que moram no mesmo prédio, mas em cômodos diferentes, com expressões do
tipo “essa menina é de casa”. O termo casa é, portanto, estendido ao prédio/casarão, não se restringindo ao
cômodo em que se vive.
87
3.1.4 Culto à ZBM: “zona acabou”?.
No discurso de outros moradores da região de “cima”, a representação da ZBM como
lugar de luxo, decência, respeito e ordem também se faz presente. Indagando como era
antigamente, ouvi frases do tipo: “No tempo que era zona
100
, era mais civilizado. Não tinha essa
depravação, essa traficância” Ou, “a ZBM era freqüentada por cidadãos de respeito; era médico,
advogado, juiz, farmacêutico. Aqui só não vinha o governador. E as mulheres, todas bem
vestidas, sabiam lidar com os cidadãos de respeito. Agora não, acabou tudo, ninguém respeita
ninguém”. Nesses e em outros discursos, a ZBM é representada com saudosismo; suas belas
tintas são realçadas e os arranhões quase que desaparecem numa pintura que, de tão perfeita,
sugere mais idealismo que realismo. Sua imagem é (re)elaborada pelos sujeitos que rememoram.
Num entrelaçamento de temporalidades, a ZBM é representada como uma idade do ouro
para sempre perdida e sempre pensada em relação ao seu referente no presente: a região de
“cima”. Como se percebe nesse discurso de Seu Manoel, “ex-gigolô”, ou, utilizando a categoria
que aciona para se auto-definir, “ex-gostoso”:
- Naquela época não tinha isso não, não tinha maconheiro. Não tinha roubo, mulher que
rouba homem, tinha dinheiro no bolso, amanhecia, acordava, elas eram incapaz de tocar.
Hoje, Deus me livre, quem tiver com dinheiro amanhece sem nada. E se chamar a
polícia ela ainda vai dizer que ele não pagou ela, que ele não tinha dinheiro aí a polícia é
contra ele e ela sai como vítima. (entrevista realizada em novembro de 2004)
Nas lembranças de quem reconstrói o passado, até mesmo elementos apressadamente
tomados como negativos por um agente externo, como a violência, adquirem outros significados
sob o olhar de quem vivenciou a ZBM. Seu Sebastião, morador do Portinho, fala com olhar
distante, quando me refiro às brigas que havia na zona: “--Era muito era bonito ver as mulher
brigando”.
Dona Nadir se desvia facilmente das minhas perguntas. Luxo e beleza refratam a imagem
das brigas, que, nessa narração, são representadas como um espetáculo. É o deslumbramento e
não o pesar que marcam seu tom de voz nesse trecho da entrevista:
- Não tinha muita briga não?
- Briga, às vezes tinha briga embaixo [dos cabarés], na rua, porque eles saiam com umas
e outras e nego vinha querer tomar gosto com eles e eles não levavam recado pra casa ,
puxava navalha pra cortar.
100
É comum entre os informantes a referência à ZBM como a categoria “zona”.
88
- Os marinheiros
- Os marinheiros. E os daqui também vinham tomar gosto com eles e não prestava. Mas
aquela horazinha, aquela discussãozinha, aí o carro estacionava assim na porta,
estacionava era muito carro de um lado, do outro, aqueles carrão, jipe. O carro deles era
guardado na Alfândega. Vinha de sargento a tenente só carrão, cada homem de fora,
cada homem bonito como quê. (entrevista realizada em outubro de 2004, grifos nossos)
A articulação dos diversos elementos presentes nessa fala faz-se a partir de um complexo
e requintado processo de seleção e ressemantização dos elementos envolvidos. A briga é
representada como atitude de hombridade e valentia (“nego vinha querer tomar gosto com eles e
eles não levavam recado pra casa, puxava navalha pra cortar”). O lugar apontado como palco das
brigas era a rua e não o interior das boates
101
, que permanece representado como lugar da ordem.
O tempo da desordem é representado como efêmero, “era aquela horazinha, aquela
discussãozinha”. A narrativa prossegue sem nenhuma pausa ou mudança no tom de voz e, no
desfecho do espetáculo, os militares que chegam para restaurar a ordem (que nessa reconstrução
parece nem ter sido quebrada) roubam a cena: a imagem desenhada finda em “cada carrão, cada
homem de fora, cada homem bonito como quê”.
Assassinatos ocorridos na ZBM também são relembrados com garbo. Nas imagens
construídas acerca da zona, crimes, brigas e a prostituição ganham uma áurea de decência que se
esvaiu e se faz nostalgia diante de um presente rejeitado por aqueles que vivenciaram os tempos
áureos, quando a zona (assim o dizem!) era civilizada, lugar de luxo, de cidadãos de respeito e de
mulheres de classe. A comparação dos dois tempos o passado ideal e o presente indesejado-
surge espontaneamente na fala de D. Nadir:
- Antes da minha irmã morrer, ela lavou roupa foi muito pra essas mulher de cabaré, eu
que ia levar lá. A roupa, as anáguas era tudo metido na goma, tinha uma goma que
botava assim ficava empezinha. Sabe a roupa, o vestido que elas vestia era o soiré (sic),
o nome era soiré. Esses vestidão comprido que a gente usa hoje em dia, era daquela seda
lamê, a coisa mais linda do mundo, chapéu. Tinha era muito marinheiro encostava na
Praia Grande, navio, meio distante que não encostava na rampa, encostava eles saltavam
tudinho vinham pra pro cabaré. Tinha o cabaré da Maroca, era cheinho de marinheiro,
cansei foi muito de ganhar presente que eu ia levar roupa pra elas que elas tinham os
namorado delas, eles me davam caixa de perfume. Era dava pra mim mais a outra irmã
que eu tinha. Os lençol minha filha metia gosto! Aqueles lençol bordado, tudo metido na
goma, passado bem alvo pra ficar bem estirado pra ir botar na cama delas. Elas não
desciam embaixo. Agora isso tem nigrinha, nigrinha ladrona, é o que tem
Esses cheira cu, cheiradores de cola, esses que mora, que vive , tudo são safado, tudo
são ladrão! Mas nesse tempo elas o vinham nem na porta da rua. Todo tempo em
101
Denominação dada aos cabarés, lugares do exercício da atividade da prostituição que contavam com salão de
dança.
89
“cima”, usavam luva no salão, aquele chapeuzão bonito de antigamente e meia, aquela
coisa mais linda do mundo! (entrevista realizada em outubro de 2004)
Enquanto das rotinas dos cabarés a memória de D, Nadir seleciona o luxo dos lençóis,
vestidos, chapéus, perfumes, navios e marinheiros, e a discrição e respeito das meretrizes em
relação à vizinhança (“elas não desciam embaixo, elas não vinham nem na porta da rua”), a
classificação dos atuais moradores do espaço outrora ocupada pela ZBM (especialmente a região
interdita) é feita a partir de termos pejorativos (“nigrinha, ladrão, safado, cheiradores de cola”).
As ruas, segundo narra, eram tranqüilas e por elas se passava sem preocupação. Esse quadro
teria mudado com a chegada do tráfico na área, “foi depois que chegou essa gentinha”. A um
passado ideal de uma ZBM bem freqüentada, essa moradora contrapõe um presente indesejado,
corrompido pela presença de outsiders.
Memória e esquecimento o processos correlatos na narrativa de D. Nadir e de outros
informantes. A rememoração se faz a partir de uma criteriosa seleção de cacos do vivido, onde
muitos elementos, especialmente os dolorosos, são, normalmente, descartados, jazendo
adormecidos.
Assim, somente depois de muito esforço, D. Nadir rememorou uma ZBM onde as brigas
não eram espetáculo, mas também, motivo de temor. A ZBM que conhecera, conforme relata,
era a que via de tarde quando ia levar as roupas e os lençóis que lavava e engomava, ou a que
expiava nas horas em que fugia, “mandavam eu comprar um açúcar, uma coisa na quitanda prali,
ai eu saía, mas não demorava”. Nesta ZBM que espiava quando fugia, afirma não haver confusão,
mas, depois das onze horas da noite, diz nada saber a respeito. Essa hora sua irmã não lhe deixava
sair e, conforme aponta: “mesmo eu tinha medo”.
Isabel também representa a ZBM sob a imagem do luxo. Relembra os cachos e as flores
nos cabelos das mulheres, que, conforme aponta, usavam jóias: “não tinha esse negócio de
bijuteria”. Afirma ainda que os homens que freqüentavam a ZBM deveriam estar
obrigatoriamente bem vestidos, para não ter sua entrada proibida nas boates: “os homens não
entravam de japonesa nem de conga, entravam se fossem bem arrumados. Tinha os porteiros
na época”. Numa nítida alusão à prostituição ainda existente na região de “cima”, mas
especificamente, na região interdita, compara os dois tempos com pesar: “As mulheres não
andavam assim pela rua se mostrando, usando droga”.
90
A imagem de decência e de respeito da ZBM de outrora também se faz presente na
representação dessa informante:
Justamente, eu com a idade dos meus doze, treze anos, catorze anos mesmo eu entrava
nessas boates. Naquele tempo podia entrar sim, até uma menina, uma mocinha entrava
porque as mulheres naquela época eram mulheres de classe, não andavam com
[mandavam] nome, não andavam se mostrando, durante o dia elas nem saiam na porta,
nem janela, era tudo fechado (entrevista realizada em junho de 2005)
“Mulheres de classe que não mandavam nome, nem andavam se mostrando”, essa
representação da decência e do respeito, porém, pode ser relativizada em outros momentos,
quando, no interstício do seu discurso, infiro outras significações. Isabel, assim como sua tia
Nadir, prestou serviços para a ZBM. Enquanto sua mãe de criação fazia faxina nas boates, ela e
sua irmã lavavam e engomavam as roupas do meretrício. O ambiente de respeito e decência por
ela acima reconstruído fora desenhado a partir das lembranças dos cabarés durante o dia, quando
estes ainda não estavam em funcionamento. Nesse horário até para “uma menina”, para uma
“mocinha” [leia-se virgem], não seria desonroso adentrar nesse ambiente, desde que estivesse
cumprindo as obrigações do seu trabalho, tal qual ela afirma fazer quando ia entregar as roupas
das mulheres.
Mas, durante a noite, quando o movimento começava, as mocinhas que quisessem zelar
por sua reputação deveriam permanecer dentro de suas casas. Quando lhe pergunto se
freqüentava as boates durante a noite, ela o nega veementemente: “nãaao, vixe! Nós nem pudia
ficar na porta, menina não andava na rua de noite, nem de dia, era só dentro de casa trabalhando”.
A narrativa dessas duas informantes, ambas prestadoras de serviço para o meretrício,
sugere múltiplas ZBM: uma ZBM de dia, marcada pelo recato e pelo respeito, uma ZBM da noite
idealizada, reconstruída como lugar do luxo, da ordem, e da beleza (da qual se ouvia falar ou se
expiava) e uma ZBM da noite temida, que elas dizem ter desconhecido.
Nesse e em outros discursos de moradores das regiões de “cima” e de “baixo”, a
representação de uma ZBM decente pode ser inquirida. Os mesmos argumentos acionados para
construir essa imagem, podem ser utilizados para desconstrui-la. A ZBM da decência
reconstruída nas suas falas também é representada como espaço interdito aos passos de alguns
atores específicos, nos seus horários de funcionamento. Mulheres (não meretrizes) e menores não
tinham entrada permitida e benquista nesses ambientes. Se a ZBM era um ambiente tão decente,
por que tais atores não poderiam freqüentá-la?
91
Das Dores, moradora de “cima” e ex-prostituta, representa a ZBM ora sob o signo do
glamour, ora sob o signo da dor. Esta informante, que se auto-atribui a legitimidade de ser “figura
principal”, representa, muitas vezes, a prostituição da ZBM de forma positiva, incomodando-se
com o que chama de “informações erradas” passadas pelos guias de turismo a respeito desta.
Concebe a prostituição como “toda a elite, todo o acontecimentoque houve na região Centro
Histórico. Aponta os mecanismos de controle da saúde, expresso nas cadernetas inspecionadas
pela polícia sanitária como mais um estigma lançado sobre a memória da ZBM. Nas palavras da
informante, a indignação salta aos olhos:
Eu vi guia passando informação diz que aqui é que era casa de cômodo
102
, que tinha
mulheres da vida, que as mulheres usavam carteirinha pra não, quer dizer, tipo uma
carteirinha : -Eu tou com uma carteirinha essa carteirinha diz que eu estou doente, certo?
, eu não vou mais transar porque essa carteirinha diz que eu estou doente... Quer dizer: é
errada essa informação, né? (entrevista realizada em julho de 2004)
Argumenta que no seu tempo não tinha nenhuma “carteirinha”
103
detectando se a mulher
estava ou não contaminada. Reforça o argumento de que no seu tempo estavam livres do estigma
da doença, que não havia AIDS e DST seriam contratempos corriqueiros nas experiências de
mulheres que exerciam o meretrício..
Mas, num outro momento da entrevista, o discurso de Das Dores se movimenta em outro
sentido. Lembranças dolorosas são reconstruídas, enquanto a imagem da ZBM como uma grande
festa se esvai. Ao mesmo tempo em que afirma inexistirem “carteirinhas” e ser normal ter uma
“gonorreiazinha”, também relembra com pesar algumas das regras comuns nas boates e casa de
cômodo, como a de ser expulsa de uma casa por ter contraído doenças venéreas ou por ter
engravidado.
Num tempo em que o uso de preservativos e anticoncepcionais não era difundido entre as
mulheres que faziam a vida na ZBM, gravidez, aborto e morte eram, muitas vezes, uma seqüência
102
Denominação dada aos locais onde as prostitutas pagavam pelo aluguel dos quartos para receber seus clientes.
Nas casas de cômodo não havia,conforme os depoimentos ouvidos, salão de dança, nem o luxo dos cabarés.
103
Provavelmente os guias se referiam às cadernetas utilizadas como forma de controle e vigilância das doenças
venéreas entre o meretrício. Conforme CAMPUS, 2001, p.33-34:a partir de 18 de setembro de 1931, por ordem do
delegado do e distritos, todas as meretrizes da capital, incluindo as donas das casas, passariam a ser
identificadas com uma caderneta. [...] Segundo o jornal Tribuna, tão logo fosse terminado o serviço de identificação,
seria iniciada a inspeção médica de todas as meretrizes registradas na polícia. No caso do meretrício, estabeleciam
vínculos com a proliferação de doenças, em especial a sífilis”. Não localizei na bibliografia consultada referências
acerca do tempo de vigência de tais “cadernetas” e “inspeções médicas”.
92
inevitável. Esta seria a outra face da vida das mulheres que desfrutaram o luxo da ZBM
104
. Nessa
altura do depoimento a informante não usa diminutivos para falar das DSTs.
Uma certa vez, eu passei uma época da minha vida muito mal, eu peguei todas as
doenças venéreas que vocês não podem imaginar e existia também uns donos de casa
105
péssimos e esse era um, esse morreu e eu não rezo nem um pouquinho pra ele.E ele
disse uma vez pra mim: -Ora, a senhora não pode fazer vida, a senhora o pode ganhar
dinheiro, então vá embora da minha casa. (entrevista realizada em julho de 2004)
Outras representações negativas são acionadas no discurso de Das Dores quando relembra
muitas das bandeiras que levantou nos tempos da ZBM. Uma delas foi a indignação com a
discriminação sofrida pelas “mulheres feias”. “Geralmente eles [as madames e os donos de casa]
gostavam de mulheres bonitas” relembra Das Dores. O conceito de beleza que a informante
reconstrói na sua lembrança tem como um de seus critérios a cor da pele. O ser bonita exigia o
pré-requisito de não ser negra: que “muitas madames
106
não gostavam de pretinha do cabelo
enroladinho”.
Das Dores narra que uma das madames para quem trabalhou, que considera ter se tornado
sua segunda mãe, comungava dessa mesma opinião: “pretinha do cabelo enroladinho” não
trabalhava na sua boate. Mas, a própria informante, que é negra, e diz ter se tornado a pessoa de
confiança dessa madame, buscou formas de ser benquista, apesar de não ser branca. Criando
estratégias de aceitação, Das Dores se auto representa como a “segunda pessoa da casa”:
.E eu tinha prioridade de botar as mulher morando na casa, eu também fui madame,
madame de H, eu era a pessoa que ficava no lugar dela e era tratada era considerada
como madame, mas na verdade não era, eu era mais uma... [...] Então eu botava [gente
na casa].eu tinha uma amiga ela era bem pretinha do cabelo enroladinho, do cabelo
sequinho, no dia que eu falei pra ela que ela ia morar lá ela ficou braba comigo minha
madame. Ela: ‘-Definitivamente tu vai embora tu e ela.’ Porque ela era pretinha do
cabelo seco, eu não era essas coisas, não era branca –‘Então vai vocês duas de uma
vez.’ que ela não me botava, ela dizia mas ela terminava fazendo as pazes comigo
porque eu era a pessoa do coração dela, eu terminava puxando o saco e tal. Eu era a
pessoa que levava as mulher pro hospital e tudo. (entrevista realizada em julho de 2004,
grifos meus)
104
A respeito da gravidez e da maternidade como experiências dolorosas para mulheres que atuaram como
prostitutas na ZBM ver Lopes (2004, p.40)
105
Denominação dada à pessoa que gerenciava uma casa de cômodo
106
Denominação dada à mulher que gerenciava os cabarés. Segundo Das Dores madame era aquela que dentro da
boate “vestia melhor, luxava melhor e tinha seu gigolô de praxe, aquele que era bom de tudo”.
93
Ao mesmo tempo em que se coloca, também como madame, relativiza essa condição: “eu
também fui madame”, por ser a pessoa que ficava no lugar desta quando ela se ausentava, “mas
na verdade não era, eu era mais uma...[prostituta]”.O ser a “segunda pessoa da casa” é
relativizado na sua fala. Ao mesmo tempo em que esse status lhe permitia tomar decisões (botar
mulheres na casa) e cumprir papéis que possibilitavam o bom funcionamento da boate (levar
mulheres doentes para o hospital), ele tinha um campo de manobra limitado: a “madame de H” só
ia até onde a madame permitia.
O episódio da proibição da entrada de sua amiga que era “bem pretinha do cabelo
enroladinho, do cabelo sequinho” é ilustrativo dos limites de seu poder de decisão como
“madame de H”. A madame expulsa as duas da casa, mas Das Dores elabora representações
diferentes para si e para sua amiga. Enquanto sua amiga é representada como pretinha do cabelo
seco”, Das Dores (também “pretinha do cabelo seco”), se auto representa em tons mais suaves:
eu não era essas coisas, não era branca“. Ou seja, o fato de ser a “madame de H”, a “segunda
pessoa da casa” lhe classifica num interstício entre o ser “pretinha do cabelo seco” e o ser
“branca”: o “não ser lá essas coisas, não ser branca”.
O desfecho do episódio é emblemático: as duas são expulsas, mas Das Dores, “madame
de Hpermanece na casa, por ser a pessoa do coração da madame e por criar estratégias de
reprodução desse status: “eu terminava puxando o saco e tal”. Tal episódio sugere que outros
critérios perpassavam as relações madame/prostituta, quando as regras estipuladas, no caso, o não
aceitar “pretinha do cabelo seco”, poderiam ser transcendidas pela construção de laços de afeição
e/ou solidariedade entre elas.
Outro elemento recorrente nas lembranças construídas acerca da ZBM é a representação
positiva da exclusão de menores. A representação da zona como ambiente de respeito e decência
é, corriqueiramente, associada à sua inadequação para a presença de menores. Sem desconhecer o
fato de que no período de funcionamento da ZBM, a sexualidade era muito mais vigiada e
controlada que no tempo de agora, é possível relativizar a aura de decência e respeito
reconstruída nas falas dos informantes.
Nas palavras de Isabel: “De menor não pensava nem em passar, quanto mais em entrarem
num ambiente desses”. Seu Antenor, que trabalhou como garçom de um cabaré e hoje trabalha
como sapateiro na Rua da Palma (região de “cima”), aponta que nas boates e casas de cômodo
não moravam crianças. Se alguma meretriz tivesse um filho, este não poderia ali permanecer.
94
Muitas, depois de darem a luz, entregavam as crianças para alguém criar. Era comum mulheres
da redondeza criarem os filhos das prostitutas, algumas o faziam em troca de uma remuneração e
outras simplesmente adotavam essas crianças, já que a maternidade era incompatível com a
atividade do meretrício.
A exclusão dos menores da ZBM é relembrada sob uma conotação de decência. Nas
palavras de Seu Antenor, naquele tempo era respeitado, não tinha criança na zona, agora não,
isso aqui é uma sem vergonhice, as crianças andam por aqui dia e noite”. Nessa fala percebe-se
que o informante, embora muitas vezes afirme o fim da zona, ainda a localiza na rua onde até
hoje mora, contrapondo a um passado respeitado um presente de “sem vergonhice”.
Contudo, sua própria história de vida contém indícios da presença de menores na ZBM.
Mesmo sendo filho adotivo de uma família que gozava de boas condições financeiras, fugiu de
casa com 14 anos para morar na zona.
Das Dores também é um exemplo de como a vigilância do Juizado de Menores era
burlada. Ela chegou à zona com 11 anos de idade juntamente com uma amiga, também menor.
Eu quando eu cheguei aqui eu tinha 11 anos, eu fui pra uma casa uma boate que teve
quatro nomes. Então quando eu cheguei, porque uma pessoa trouxe eu e uma amiga
minha, Vitória era o nome da minha amiga, minha melhor amiga, eu com 11, ela com
um pouquinho mais. Então a gente veio, um homem trouxe a gente dizendo que ia trazer
pra uma festa, na verdade trouxe pra Zona do Baixo Meretrício, e era uma festa!
(entrevista realizada em julho de 2004)
Mas, segundo essa narrativa, não foi fácil para as meninas encantadas com a “festa”
conseguirem ali permanecer. A madame para a qual foram apresentadas tratou logo de despachá-
las. Mas ela diz ter conseguido, movimentando-se nas brechas de uma estrutura fechada, burlar as
regras da casa, logrando tornar-se “a pessoa do coração dessa madame”.Vejamos como Das
Dores reconstrói suas estratégias de negociação dentro de um espaço de manobra reduzido:
eu comecei logo a chorar, disse pra ela que eu não tinha pra onde ir, e tal e tal, menti
logo, e ela já gostou de mim, eu acho que eu nasci pra coisa. E eu fiquei nessa noite lá, aí
ela disse que ia botar a gente no quarto, a gente acabou sendo denunciada, e fomos,
nessa época era bem aqui na praça João Lisboa, na praça Deodoro Central que existia
um negócio de menor, nos botaram pra lá numa Kombi, eu e minha colega, passamos
a noite lá. No dia outro ela foi me visitar e foi aquela burocracia, saía, não saía E eles
não sabiam pra onde que eu ia a minha família. E eu eternamente dizendo que eu não
tinha ninguém, não tinha pra onde ir, então ela se responsabilizou por mim.(entrevista
realizada em julho de 2004, grifos meus)
95
Das Dores justifica sua permanência na ZBM narrando a estratégia utilizada: a mentira de
não ter pra onde ir, de não ter família. Sua acolhida pela madame, que teria se responsabilizado
por ela, é justificada pela empatia, pois afirma: “logo, ela gostou de mim”. Sua amiga, também
menor não passou muito tempo ali, pois conforme a informante, “logo ela era mais fraquinha”
enquanto eu “tinha nascido pra coisa”.
Assim ela pinta o retrato do início de sua história na zona: de menina encantada com a
ZBM (que representa como uma festa) teria se tornado a pessoa do coração de sua madame. É
como uma estória de conto de fadas que reconstrói sua própria história: “Então ela [a madame]
me trouxe pra morar com ela. Então assim eu tinha um quarto vizinho do dela onde ela não me
perdia de vista, eu passava o dia arrumando as coisas dela”. (grifos meu)
Apesar da vigilância constante do Juizado de Menores, Das Dores diz que era comum as
mulheres iniciarem suas atividades na ZBM quando adolescentes:
Era difícil uma mulher antigamente não ser prostituta antes de adolescente gente. Hoje
se está com essa briga toda, mas antigamente todas nós fomos adolescentes, prostituta
adolescente, porque minha história, eu fui prostituta adolescente. Qual foi a coisa boa
que eu vivenciei na minha juventude? Um cabaré.E, como eu, um mundo de mulheres
foi assim.(entrevista realizada em julho de 2004, grifos meus)
Encantamento e pesar perpassam a reconstrução das lembranças dessa informante, para
quem a alegria e o prazer de ter encontrado uma madame que, segundo ela, era uma segunda
mãe, se misturam com as dificuldades enfrentadas para conseguir ter livre trânsito numa cidade
onde viver como prostituta pressupunha carregar o peso de um estigma.
Das Dores teve a oportunidade de estudar num dos mais tradicionais colégios de São Luís,
o Santa Tereza. Mas, era sempre preciso driblar os olhares dos funcionários da escola e dos
colegas de turma na hora da saída: ela sempre saía antes ou depois de todo mundo, para que
ninguém soubesse de onde vinha e para onde ia.
Nos tempos de funcionamento da ZBM, a 28 de julho não gozava de boa fama na cidade.
Segundo recordam moradores dessa rua, era comum ocorrerem crimes na região do “Desterro”,
veiculados nos jornais como procedentes da 28 de julho. Isso sugere que, em relação à cidade de
São Luís, a 28 de julho não designava apenas uma rua, mas uma região, representada como lugar
da prostituição e da violência.
Outro deslocamento parece estar em curso nos anos mais recentes. Outra informante,
moradora da região de “cima”, aponta que “antigamente a 28 é que tinha a fama de ser uma rua
96
pesada, violenta e agora a rua da Palma [região interdita] é que vem pegando essa fama.” Alguns
moradores da 28 de julho continuam se ressentindo, do estigma que, segundo eles, ainda pesa
sobre essa rua em particular. Muitos reclamam que crimes ocorridos naquela na Rua da Palma
[região interdita] e Travessa da Lapa [considerada por uns como pertencente ao Portinho e por
outros como à região do “Desterro”] continuam sendo identificados na imprensa como ocorridos
na 28 de julho.
Uma das estratégias utilizadas por alguns moradores dessa rua para fugir do peso de tal
estigma é designá-la pelo seu outro nome: Rua do Giz. Como coloca seu Juca: “Quando
perguntavam meu endereço e eu dizia que morava na 28 de julho todo mundo arregalava o olho.
Agora eu digo que moro na Rua do Giz e ninguém diz nada”. Esse mesmo informante chama
atenção para o uso recente de denominações de rua que já estavam em desuso. Muitos moradores
da Rua da Estrela se referem a ela como Cândido Mendes, da rua da Palma como Herculano
Parga, Direita como Henrique Leal e Afonso Pena como Formosa. Para ele o ressurgir de tais
denominações seria uma estratégia de tentar apagar o peso da memória da zona sobre elas.
É recorrente, também, nos discursos dos moradores de “cima” a necessidade de afirmar e
propagar o fim da zona. A recorrência dessa expressão me parece ambivalente, pois ao mesmo
tempo em que os moradores de “cima” parecem necessitar afirmar que “a zona acabou”, muitos
deles localizam elementos desta no espaço onde funcionou a ZBM, mas especificamente na
região interdita. A título de exemplo, na primeira conversa que tive com seu Manoel, ele
expressou esse desejo (necessidade?) dizendo: “a senhora vai escrever um livro? Então escreva
aí: zona acabou, zona acabou”. Ainda hoje é comum, segundo narram com indignação alguns
informantes, transeuntes passarem nas suas portas dizendo: “aqui que é a zona”.
A idealização da ZBM de outrora, reconstruída como lugar de luxo, decência e respeito,
contrasta com uma zona que, mesmo não verbalizada explicitamente, pode ser inferida na
interpretação de seus discursos que acionam elementos negativos para referi-la: tráfico,
marginalidade, pobreza econômica e pobreza moral (expressa na preocupação com a presença de
menores nesse espaço).
97
3.1.5 Tráficantes e marginais: herdeiros sociais da zona ou outsiders?
Neste tópico intento mapear e interpretar critérios de classificação acionados por
moradores da região de “cima”, onde estes se representam como distintos em relação aos da
interdita. A criminalidade, de um modo geral, e, particularmente, o uso e o tráfico de drogas, são
os critérios normalmente acionados pelos de “cima” para demarcar essa distinção.
Não seria possível, contudo, analisar a construção dessas classificações, tomando como
única referência os discursos e práticas de moradores de “cima”. A compreensão da construção e
do acionamento das classificações dos da região interdita, se faz inteligível, quando
comparados às representações elaboradas nas experiências cotidianas de moradores das regiões
do “Desterro” e Centro Histórico.
O incômodo com o peso do estigma em relação à prostituição e à violência e, mais
recentemente, em relação ao tráfico, não parece ser exclusivo dos moradores da região de
“cima”. Entre moradores da região do “Desterro” e Centro Histórico essa preocupação também é
visível. A impressão que moradores das regiões abordadas, de um modo geral, têm é que notícias
veiculadas na imprensa e comentadas na cidade adquirem um efeito metonímico. Assim, um
crime ocorrido na rua da Palma
107
poderia ter o efeito de manchar a reputação das regiões de
“cima”, do “Desterro” e Centro Histórico.
A repercussão do assassinato de um indivíduo, morador da Rua da Palma (região de
“cima”/região interdita) e envolvido com o tráfico de drogas, na imprensa de São Luís, levou
moradores da região de “cima” e da região do “Desterro” a assumir posicionamentos distintos
acerca da questão do tráfico e da violência.
Quando do assassinato, um radialista comentou no seu programa que “no Desterro tem
puta, ladrão e veado”. O atual vice-presidente da União dos Moradores, ouvindo tal comentário,
ligou para a emissora de rádio, argumentando que tal discurso fora leviano, afirmando “aqui
nessa comunidade tem pessoas de bem”. E continuou: “Nós [a União de Moradores] fazemos
todo um trabalho de inclusão sócio-econômica e sócio-cultural nessa área. A gente luta pra acabar
107
Refiro-me ao trecho dessa rua localizado acima do muro do Convento das Mercês, visto, normalmente, pelos
moradores das regiões do “Desterro” e Centro Histórico como parte da região de “cima” e pelos moradores da
região de “cima” como parte de uma outra região: a interdita . Doravante, quando a Rua da Palma adquirir
simultaneamente essas duas classificação será grafada como rua da Palma (região de “cima”/região interdita)
98
com essa fama de gueto que o [“bairro” do] Desterro tem na cidade. Isso é uma essa herança
social da zona, é um cancro que a gente luta para acabar”.
É interessante frisar que tal discurso foi proferido a partir do lugar social de vice-
presidente da União dos Moradores. Seu primeiro comentário refere-se à comunidade
108
de modo
geral, quando menciona a presença de pessoas de bem no “bairro”. Em seguida há uma referência
ao trabalho de inclusão realizado pela União de Moradores, o que pressupõe uma anterior
exclusão de moradores do ponto de vista sócio-econômico e sócio-cultural. A fama de gueto,
segundo seu discurso, é estendida, por agentes externos, ao “bairro” do Desterro como um todo.
Enquanto (vice-presidente e morador de “baixo” somente na frase seguinte ele localiza
socialmente uma região irradiadora da fama de gueto: a dos herdeiros da zona”, a dos
continuadores do “cancro”, a região de “cima”.
Numa das reuniões do Fórum (abril/ 2005) onde se faziam presentes moradores da região
de “cima”, da região do “Desterro” e Centro Histórico, representantes do SEBRAE, do CEDUC
e da Secretaria Municipal de Turismo, os comentários acerca do assassinato ocorrido na Rua da
Palma tiveram grande repercussão. Artur
109
, uma das principais lideranças da região Centro
Histórico, iniciou seu comentário acerca do episódio comentando a urgência de se discutir junto
ao poder público providências plausíveis para garantir a segurança. A principal preocupação
parecia ser com a rua da Palma (região de “cima”/ região interdita). Nas palavras dele:
a violência que ocorre aqui, não é como a violência do Oscar Frota [um dos principais
pontos de prostituição no Portinho] não é como a violência do Inferninho [bar situado
na Praça do Pescador, situada por muitos moradores na região do Desterro]. È a
violência escancarada, à luz do dia, na cara de todo mundo, na cara da polícia.
A violência da rua da Palma (região de cima”/região interdita) é considerada distinta e
mais grave do que aquela presenciada em outras regiões intra região Centro Histórico (como o
Oscar Frota
110
e o Inferninho), por esta ser uma via pública, onde moradores e freqüentadores do
local precisam transitar.
108
A categoria “comunidade” é normalmente acionada pelos informantes em referência à moradores do “bairro” do
Desterro ou da região Centro Histórico.
109
ex-morador da região do “Desterro” e indivíduo com trânsito e boa acolhida entre os da região de “cimae os da
região do “Desterro”.
110
Oscar Frota se localiza no “bairro” do Portinho (região Centro Histórico) e é uma denominação comumente
utilizada para se referir ao espaço apontado como lugar de tráfico, prostituição e violência. Os limites desse trabalho
não me permitiram abordar tal região. O Inferninho é uma designação atribuída a uma região localizada na Praça do
Pescador, ( região do Desterro). No tópico 3.3, faço algumas considerações acerca desse espaço.Tanto o Oscar Frota
99
A partir desse comentário, os presentes manifestaram sua opinião acerca da violência e do
tráfico de drogas. Uns associaram a violência e o tráfico diretamente à zona, outros como um
resquício ressemantizado desta, e alguns afirmaram que os envolvidos com a violência se
constituiriam em outsiders, seriam “gente de fora” que ali chegou há pouco.
O vice-presidente da União de Moradores, morador da região do “Desterro”, colocou
novamente que “isso era herança social da zona”. Oscar, comerciante e morador da região Centro
Histórico concordou, mas pintou o quadro com tintas mais amenas: “é um resquício da zona,
porque na zona sempre se vendeu maconha”. Relativizando, em seguida, a associação entre
tráfico e ZBM: “era um tráfico camuflado, um tráfico com ética, mas havia tráfico”.
Percebo que entre os moradores de “cima” a tendência mais geral seria a negação da
relação tráfico/ZBM. Ainda que seus discursos apontem, sutilmente, uma associação entre esses
dois elementos, faz-se necessário para esses atores demarcar diferenças entre o tráfico atual e um
possível tráfico de outrora. Duas moradoras da região de “cima” presentes discordaram,
inicialmente, com a associação entre ZBM e tráfico de drogas, para elas, No tempo da ZBM era
diferente”. Em outra ocasião, comentei tal discussão com Isabel, moradora de “cima”, que
também se fazia presente ali. Ela colocou que “Se tinha tráfico na zona era muito oculto. Os
usuários iam fumar na beira da Praia, não era assim na via pública, que a gente passa e as
pessoas se destruindo [referindo-se à rua da Palma.]”.
As representantes do CEDUC e do SEBRAE, que desenvolvem trabalhos na área
mais de um ano, concordaram com as moradoras da região de “cima” dizendo: essas pessoas
[que traficam] não são nem daqui”. Esses posicionamentos são emblemáticos. A referência ao
tráfico como “herança social da zona”, mesmo um “tráfico com ética”, constitui numa ofensa
para aqueles que se identificam como herdeiros da “zona”: os da região de “cima”. o
posicionamento das representantes das instituições se assemelha ao de muitos moradores da
região de “cima”, que vêem as pessoas que lidam com o tráfico como outsiders
Em relação aos moradores da região Centro Histórico e do “Desterro”
111
,
posicionamentos diversos são assumidos em relação à classificação dos moradores da rua da
Palma. A maioria dos posicionamentos tende a associá-la à região de “cima”, representando a
como o Inferninho parecem se constituir em regiões. O primeira se constitui numa região intra região Centro
Histórico e o segundo numa região intra região do “Desterro”.
111
No tópico 3.2 analiso com mais vagar as representações das regiões de “cima e interdita pelos moradores da
região do “Desterro”.
100
violência e o tráfico ali praticados como uma herança direta ou indireta da ZBM. Entre os
moradores da região de “cima” há dois posicionamentos. O primeiro localiza os elementos
negativos (tráfico, prostituição e violência) exclusivamente na Rua da Palma, representada como
uma outra região: a interdita. Essa parece ser a tendência mais geral no posicionamento dos
moradores de “cima”, que normalmente classificam os da região interdita como outsiders. O
segundo menciona a incidência dos elementos negativos em toda a região de “cima”, mas ressalta
que na região interdita sua incidência é maior. Nesse segundo posicionamento também é comum
a representação dos da região interdita como outsiders.
Muitos moradores da região de “cima” também não ocultam a indignação de conviver
com ‘vizinhos’ indesejáveis, os da região interdita: “eles não respeitam ninguém”, afirmam
muitas vozes. Joana, moradora da Rua da Estrela (região de “cima”) e temporariamente residente
no Prédio da Escadaria Humberto de Campos (região Centro Histórico), disse não gostar de
passar pela rua da Palma (região interdita): “lá tem gangue, quando a gente morava no casarão da
rua da Estrela tinha dia que ninguém dormia com medo da gangue da fonte do Bispo [rival
daquela] fazer danação por lá”. Outros informantes também se referem à presença de gangues ali,
mas não circunscrevem seus integrantes à região interdita, apontando sua incidência em a toda a
região de “cima”.
Moradores de “cima” que têm filhos na adolescência ou infância, compartilham um outro
temor; o de que esses ingressem no mundo do tráfico. D. Isabel, moradora de “cima”, conceitua
toda a região de “cima” (e não apenas a região interdita) como “área de risco”. A convivência
cotidiana de seu filho adolescente com outros que têm envolvimento com o tráfico, roubo e
gangues, torna-se motivo de preocupação constante:
Eu tenho o meu caçula de 16 anos, [ele] largou de estudar, parou,...Eu travei uma
batalha, não que eu soubesse que ele pegasse [droga], mas ele vive brincando e tudo,
eu não discrimino também. Ele diz : “Mamãe são meus amigos de bola, disso mais
daquilo”. Mas eu, [fico] sempre com um atrás. Mas a gente tem que confiar que se a
gente não confiar, ainda vai ser pior. [...] Mas, graças a Deus, nunca me deu dor de
cabeça, com problema de polícia, disso mais daquilo, outro.E eu sempre dou conselho
pra ele, não só pra ele, mas pra vários amigos dele e eles tudo me respeitam, me chamam
tia Isabel. (entrevista realizada em junho de 2005)
Para essa mãe, a alternativa mais viável para tentar evitar o contato de seu filho com o
mundo do crime, da violência e da droga é o aconselhamento constante, visto como mais eficaz
que a proibição. Assim, tenta manter um diálogo não com seu filho, como com outros jovens
da “área de risco”. Afirma ainda que “junção com amigos de infância de rua, que se criaram
101
juntos” é, muitas vezes, motivo de jovens da região de “cima” como um todo, serem apontados
como traficante ou ladrão por moradores de “cima” e de “baixo”. Seu próprio filho chegou a se
queixar disso, conforme narra:
Outro dia ele chegou me dizendo: “Mamãe eu tou tão chateado, mamãe. Mamãe tão me
olhando assim de um jeito mamãe. O pessoal fica me olhando de uma maneira assim
diferente, eles pensam que eu sou ladrão mamãe, eu o sou ladrão mamãe”.Quer dizer,
mal olham a pessoa vão julgando. As vezes a pessoa nem faz, nem é, mas estão
julgando. (entrevista realizada em junho de 2005)
Presenciei a indignação de um adolescente da rua 28 de julho diante do fato de ser
apontado, por moradores da região de cima” como “avião
112
”. Discursos como esses me
sugerem uma vigilância constante entre os de “cima” em relação ao contato com o roubo e o
tráfico. Qualquer ato suspeito faz com que um indivíduo passe a ser “mal visto” e até evitado
pelos outros.
Assim, as amizades e os passos dos menores são acompanhados de perto pelos pais. Num
espaço onde as condições modestas de vida são uma constante, o tráfico se constitui num meio de
ganhar dinheiro fácil e rápido. Um pai morador da região de “cima”, afirma desejar se mudar
dali, na tentativa de proteger os filhos de uma provável contaminação.
- Tenho [vontade de sair daqui] por causa dos meus filhos, porque antigamente eu fui
criado pra ser um cidadão de bem Eu sou um cara sério, sou casado, sou registrado, sou
militar, sou primeira categoria, sou eleitor, sou todo legalizado, fui da polícia quando fui
sargento, mas depois que sair da polícia nunca fui nem ser testemunha. To ficando velho
e não tenho força, não tenho poder aquisitivo, quero sair daqui por causa dos meus
filhos, minha filha tem nove anos, eu sinto que ela é muito curiosa.(...) È perigoso, é
perigoso demais. (entrevista realizada em novembro de 2004, grifos meus)
Com o intento de demarcar sua distinção em relação aos traficantes e criminosos, o
informante aciona diversas categorias a partir das quais se auto-define: o ter sido criado para ser
cidadão de bem, o ser sério, casado, registrado, militar, eleitor, legalizado e sem ficha suja na
polícia. Neste discurso, esse informante dirige aos da região interdita a mesma classificação
normalmente acionada pelos da região do “baixo” para referir-se aos da região de cima”: a de
“traficantes, criminosos, gente que não presta, viciados de fora que vieram empestar o nome do
lugar”. Nesta outra figuração, esse morador da região de “cima” se auto-define como
estabelecido e designa os da região interdita como outsiders. Se muitos moradores de “baixo” se
auto-definem como estabelecidos e representam os de “cima” como outsiders (“gente de fora,
112
Designação comumente atribuída ao intermediário entre traficantes e usuários na venda das drogas.
102
gente que não presta”), muitos moradores de “cimalançam essa representação atribuída aos de
sua região aos da região interdita.
É desse mesmo informante o seguinte discurso: “Pra esse povo [da região] do “baixo”
parece que a gente [os da região de “cima”] tem uma doença contagiosa” . O perigo de contágio
parece ser lançado de um lado a outro das fronteiras: da região do “baixo” para a região de
“cima” e da região de “cima” para os da região interdita.
Uma outra informante, Lúcia, moradora da rua da Palma (região interdita) identificou-se
como “moradora do Patrimônio da Humanidade”. Seu discurso
113
, teve como preocupação central
o processo de marginalização que afirma estar em curso na região Centro Histórico: “as pessoas
não vêm [na região Centro Histórico] porque marginalizam que tem traficante, só tem
prostituta, travesti e, no entanto, esquecem que nós que somos cidadãos, também estamos aqui”.
Moradora da região mais estigmatizada intra-região Centro Histórico, a interdita, Lúcia utiliza a
categoria “cidadão” para distinguir-se dos que considera outros e que moram (vivem?) ao seu
lado: os traficantes, prostitutas e travestis. O pronunciamento de Lúcia é um indício de que dentre
os próprios moradores da interdita (e, talvez, principalmente entre eles), faz-se necessário acionar
cotidianamente critérios que distinguem “cidadãos de bem” de “marginais”.
Outra moradora da região de “cima” faz questão de realçar suas diferenças em relação aos
da interdita, buscando demarcar fronteiras entre as duas regiões. Os critérios de retidão moral
por ela acionados se diferem, contudo, daqueles utilizados pelos da região do “Desterro” para
definirem-se enquanto estabelecidos em relação aos da região de “cima”. Em tom de indignação,
afirma: “Eu fui prostituta, eu fiz programa pra sobreviver, eu passei fome, eu dormi na rua, eu
apanhei da polícia, eu fui pra cadeia, mas eu nunca roubei, nunca matei e nunca usei nem
trafiquei droga”.
A profissão estigmatizada (prostituição), a condição econômica desfavorável (eu passei
fome) e a passagem pela polícia, não ferem o caráter de quem se atribui retidão moral
(estabelecido) em relação ao outro (outsider), designado como moralmente inferior por ser
ladrão, assassino, traficante ou usuário de droga.
Em outras ocasiões, essa mesma moradora parece relativizar a incidência da criminalidade
como atributo exclusivo da região interdita, estendendo-a para toda a região de “cima”. A título
de exemplo, em janeiro de 2005, quando procurava um local para morar naquela área, me
113
Em discurso proferido durante o II Seminário.
103
aconselhou dizendo: “Não é bom tu morar nesse pedaço aqui [na região de “cima”]. Mora pra
[apontando na direção da região do “Desterro”] ou pra [referindo-se à Praia Grande]. Não é
legal tu morar aqui não.”
Num boteco, situado na fronteira das regiões de “cima” e interdita, presenciei um
episódio significativo. Um conhecido boêmio da região de “cima” dirigiu-se várias vezes a um
jovem, que incomodava a mim e a minha informante/amiga pedindo cigarro, mandando-o ir
embora. O jovem, que “vive” pela Rua da Palma (região interdita), insistia em permanecer no
local. O boêmio, impaciente, começou a insultá-lo: “sai daqui ladrão vagabundo, tu é um
ladrão sem vergonha, um ladrão safado”. Depois dos insultos e do boêmio colocar-se de pé,
diante dele, numa postura de ameaça, o jovem saiu do recinto. Na saída deste, aquele afirmou:
“Não sei aonde estou com a cabeça que eu não fiz um serviço nesse cara”. E minha informante,
sorrindo: “Tu tá armado?”
Essa cena corriqueira, também traz em si algumas pistas dos critérios de classificação
acionados pelos de “cima” para distinguir-se dos da região interdita. As quatro categorias
acionadas na fala do boêmio: “ladrão, vagabundo, safado e sem vergonha”, são os critérios por
ele acionados para desqualificar o jovem. A boêmia, o fato de andar armado e o desejo de “fazer
um serviço” no jovem não igualam esses dois agentes na perspectiva dos da região de “cima”. O
sorriso aprovador de minha informante/amiga ao perguntar se ele estava armado parece-me um
indício dessa distinção. Ser “pinguço”, e utilizar uma arma (no caso uma faca) para fazer um
serviço” (furar) num sujeito desqualificado moralmente (por não querer trabalhar e por não ter
caráter) não é tida como uma atitude desonrosa, pelo contrário, tal atitude é virtuosa, pois tem
uma finalidade disciplinadora (dar uma lição). Em outras palavras: entre os de “cima”, “fazer um
serviço” num “ladrão, vagabundo, safado e sem vergonha,” pode ser um ato perigoso, mas não
vergonhoso, sendo mesmo um instrumento de restauração da moral..
Percebo entre moradores de “cima” a necessidade de demarcar uma fronteira intra-região
de “cima”, a qual estabelece uma outra região: a interdita. As classificações acionadas por
moradores de “cima” constroem entre estes e os da interdita uma figuração estabelecidos-
outsiders, onde os de “cima” atuam como estabelecidos (por se auto-definirem como dotados de
retidão moral) e os da interdita como outsiders (por serem definidos como desviantes da moral e
como “gente de fora”) Os critérios de classificação acionados se referem a elementos que, para os
de “cima”, são tidos como indicativos de retidão moral: o não envolvimento com a criminalidade.
104
3.1.6 Sem emprego, sem casa, e sem educação: vulneráveis e marginalizados.
Em outros momentos é possível mapear indícios de critérios de classificação comuns à
região de “cima” e à interdita: “ser desempregado”, “ser sem casa”, “ser sem educação” e “ser
esquecido pelo poder público.” Em torno de tais critérios os de “cima” parecem reconhecer, por
vezes, os da região interdita como mesmos.
Assim como nos tópicos anteriores, faz-se necessário inserir nessa discussão
posicionamentos, práticas e discursos de moradores das regiões de baixo” e Centro Histórico,
especialmente, quando abordo questões referentes à programas de moradia popular previstos para
essa última região.
A preocupação com a segurança da região Centro Histórico é comum a moradores das
regiões estudadas. Mas, entre os de “cima” e os da região interdita tal preocupação parece maior.
O fato de tais moradores lidarem cotidianamente com incidentes como: assassinatos, brigas de
gangues, batidas e omissões da polícia, faz com que muitas vezes laços de solidariedade se
construam entre eles.
Em abril deste ano, ocorreram na Rua da Palma (região interdita) episódios ilustrativos
dessas questões. O primeiro refere-se ao assassinato de um morador dessa rua que tinha
envolvimento com furto e tráfico de drogas. Malgrado sua condição de criminoso, D. Isabel,
moradora da região de “cima”, reivindicou
114
justiça para a vítima utilizando a expressão: “era
uma pessoa humana, podia ser quem fosse, mas era humano”. A utilização do argumento “ser
uma pessoa humana” parece-me sugestiva de identificação entre os de “cima” e os da interdita.
Mas, como as identificações entre os moradores dessas duas regiões, ocorrem a partir de
movimentos onde estes ora se classificam como outros, ora se reconhecem como mesmos, em
outro momento do seu discurso, essa mesma moradora de “cima” sugere apreensão em relação
ao modo de vida da região interdita. O outro apelo que faz às autoridades policiais diz respeito a
uma tentativa de estupro também ocorrido nessa região, envolvendo uma criança de 5 anos e um
dono de uma gráfica, morador da rua da Palma. No seu discurso vários elementos negativos em
relação à região interdita são mencionados:
Então s estamos assim muito apreensivas sobre essas crianças que mora nesses
prédios abandonado, muitas das mães as vezes se embebedam, os pais também, deixam
114
Em discurso proferido durante o II Seminário.
105
as crianças à toa nas rua e sem [inaudível] algum, de calcinha pelo meio da rua. E
hoje em dia tem muitas pessoas perversas. Então se a mãe o fosse mais rápida que
sentiu falta da menina, o homem já tava a ponto de estrupar a criança. (discurso
proferido durante o II Seminário.)
“Morar em prédios abandonados”, “pais que se embebedam”, “crianças deixadas à toa
de calcinha na rua” são alguns dos elementos negativos enumerados em sua fala. A referência a
pessoas perversas não é seguida de uma localização delas numa região específica, pois seria antes
a característica de um tempo (”hoje em dia”) do que de um lugar. O perigo de desvio dos jovens
da região de “cima” não é esquecido em sua fala, quando reivindica junto aos representantes de
órgãos públicos e instituições privadas ali presentes cursos profissionalizantes na região Centro
Histórico: “para que eles não possam estar pelas esquinas, não estar pensando em fazer
besteiras”.
Seu diálogo constante com os jovens do que designa “área de risco
115
”, mencionado no
tópico anterior, faz dessa agente uma espécie de mediadora entre esses e o poder público. Em
outra ocasião, comentou o interesse desses jovens na realização de cursos profissionalizantes
muito prometidos na região Centro Histórico. Para esta e outros moradores da região de “cima”,
em particular, e da região Centro Histórico, de um modo geral, essa seria a forma mais viável de
tornar esses jovens imunes às influências da criminalidade ali presentes.
Outros discursos apontam para uma preocupação que não se restringe apenas à juventude
da região de “cima”, mas a uma numerosa população ociosa de moradores da região Centro
Histórico. Na região de “cima” a maioria dos moradores se reconhece como sem casa, e sem
emprego. Muitos deles sobrevivem “atrás de uma caixa de isopor ou vendendo bombons”, mas
nem mesmo o comércio informal pode ser exercido no Reviver, que desde o início deste ano a
Prefeitura de São Luís proibiu o comércio ambulante ali Como definiu uma moradora de “cima”
nas regiões de “cima” e interdita “quem não é ambulante, vende droga.”. Em torno do
desemprego e da falta de instrução, os moradores dessas duas regiões parecem se identificar.
A moradia é outra preocupação central não só dos das região de “cima” e interdita, como
de muitos da região Centro Histórico que “moram de favor” em prédios cedidos pelos
proprietários ou que “invadem prédios abandonados”. Intervenções realizadas por órgãos
públicos têm deixado em alerta muitos moradores que vivem nessas condições.
115
Designação dada por esta moradora à região de “cima”.
106
Em setembro de 2005, o IPHAN e a Prefeitura de São Luís, numa parceria com a Caixa
Econômica Federal, iniciaram, por ordem do Ministério Público, a estabilização de nove prédios
da região Centro Histórico, que apresentavam risco iminente de desabamento. Todos estes eram
ocupados por moradores e trabalhadores que neles instalavam seus comércios e oficinas. Para que
a estabilização fosse efetivada, tais prédios foram desocupados. Os óros envolvidos nessa obra
garantiram aos que tinham moradia
116
nestes imóveis o relocamento para um “prédio abrigo”
situado na Escadaria Humberto de Campos, no “bairro” da Praia Grande (região Centro
Histórico) Um documento assinado pela Prefeitura de São Luís, pela União de Moradores do
Centro Histórico e pelo Ministério Público garantia aos moradores relocados o retorno aos
prédios de origem, assim que as obras forem concluídas.
117
Diante dessa questão que tem atingido e vai atingir
118
muitos outros moradores da região
Centro Histórico, muitos têm se pronunciado. D. Isabel, moradora da região de “cima” se
pronunciou acerca dessa questão:
E também sobre os moradores pra saber se realmente eles irão voltar para os prédios de
origem e se vão ter realmente esses apartamentos para que sejam para os próprios
moradores daqui do bairro, porque muitas pessoas carentes que vive assim morando de
favor, de prédios assim invadidos e outras coisas mais. Então nós tamos pensando nessas
pessoas que estão sem ter onde morar e apreensivos [em relação a] se vão voltar
realmente. (discurso proferido durante o II Seminário.)
Entre os moradores de “cima” (e do Centro Histórico de um modo geral) é comum
acionar o argumento da carência (o não ter onde morar) como estratégia política de reivindicação
de participação em projetos de adaptação de casarões da região Centro Histórico para construção
de apartamentos populares. Além do argumento da carência, aciona-se comumente, também, o
“ser morador do [da região] Centro Histórico”. O fato de projetos de moradias até então
realizados nessa região terem beneficiado funcionários públicos do Estado, conceituados como
“gente de fora do bairro” e “gente que tem condição de adquirir casa própria”, tem sido motivo
de reclamação entre moradores da região Centro Histórico.
Em se tratando de programas de moradia para a região Centro Histórico, percebo tanto
disputas como laços de solidariedade entre os moradores das regiões de “baixo” e de “cima”, que
116
Àqueles que possuíam oficinas e comércios nesses prédios, não foi assegurado outro local para o exercício dessas
atividades durante a realização das obras.
117
A previsão era de que tais obras durassem sete meses, prazo que espirou em abril deste ano. Até o momento
nenhuma das obras foram concluídas.
118
Outros prédios dessa área serão desocupados para que se efetivem obras de estabilização, assim que as obras em
andamento forem concluídas.
107
ora demarcam, com ênfase, suas distinções, ora unem-se em prol de objetivos comuns fazendo-se
mesmos, ainda que em momentos extraordinários e fugazes.
A reivindicação de beneficiamento em projetos de moradia efetuados na região Centro
Histórico é um elemento em torno do qual moradores das regiões de “cima” e de “baixo”
demonstraram interesse. Embora sejam os da região de “cima” os que sofrem mais diretamente
as conseqüências das intervenções públicas nos seus locais de moradia, muitos moradores de
“baixo”, que vivem em casas alugadas ou em casas próprias de parentes, têm interesse (e
necessidade) em adquirir apartamentos adaptados em casarões.
A aquisição de prédios por empresários brasileiros e estrangeiros tem deixado em alerta
moradores da região Centro Histórico que temem a efetivação de um processo de esvaziamento
de moradias nessa região. Aroldo, morador da região do “Desterro”, afirma que daqui uns
vinte anos o [bairro do] Desterro vai igual à Praia Grande: não vai mais ter morador, vai ter
bar, pousada e repartição pública. Quando eu falo isso tem gente que diz que eu sou pessimista,
mas é verdade. Vocês vão ver”.
Moradores de “cima” e de “baixo” reivindicam a realização de projetos de restauro e
adaptação de prédios para a construção de apartamentos e quitinetes em benefício dos moradores
da região Centro Histórico. O argumento normalmente utilizado nessas reivindicações é o
pertencimento e a identificação dos moradores com a região, como no discurso de Almir,
morador da região Centro Histórico:
Por que não assentar esse povo que ta aqui no Centro Histórico há tantos anos no seu
habitat? Esse pessoal que aqui há tanto tempo não se adapta mais em outro lugar. O
seu Mercado Central, o seu Mercado do Peixe, onde compra seu peixe todos os dias, o
seu farmacêutico, seu Elias, que consulta há mais de 45 anos. Então eu peço às
autoridades que olhem por esse lado. Vamos procurar fazer um projeto de transformar
esses prédios, esses casarões abandonados que estão desabando e servindo de apoio aos
marginais. Os maconheiros que me desculpem, mas eu tenho que falar isso aqui.
Transformar em pequenas quitinetes pra dar pra esse povo, que tão necessitando, morar,
pagando uma prestação irrisória, conforme seu orçamento familiar, conforme seu salário
(discurso proferido durante o II Seminário).
Usando metáforas da biologia, Almir afirma a identificação entre os moradores e o espaço
físico. A região Centro Histórico teria se feito “habitat” desses moradores que não
conseguiriam sobreviver (se “adaptar”) em outro ambiente. As atividades mais corriqueiras,
como ir ao mercado ou fazer uma consulta na farmácia, teriam se tornado ações enraizadas e
imprescindíveis para a manutenção de suas vidas. O verbo utilizado pelo agente para fazer a
108
reivindicação é sugestivo de nota: assentar. É como enraizados e sem teto (moradia) que
representa os moradores, considerados por ele como os únicos dignos de tal benefício
119
.
A categoria morador, para tal informante, se distingue de uma outra: a categoria
“marginal”, que designa aqueles que se valem de prédios abandonados com risco de desabamento
para o uso da maconha. Esses não são considerados dignos do benefício; os projetos de moradia
são vistos como uma forma de expulsar esses “maconheiros” da região Centro Histórico. A
prestação irrisória é uma segunda condição apontada para a viabilização de tal projeto, que os
moradores da região Centro Histórico têm um “orçamento familiar”, um “salário” reduzido.
O acionamento dessa segunda condição opera outra clivagem: os que têm salário e
orçamento familiar (ainda que reduzido) e os “sem renda”. Excluindo os “maconheiros” e os sem
renda (ou desempregados), esse informante exclui uma parcela significativa da região Centro
Histórico: a região de “cima”.
Aroldo, morador de “baixo”, enfatiza no seu discurso a necessidade de incluir todos os
moradores da região Centro Histórico, inclusive os desempregados nos projetos:
porque ali dentro dos prédios é que está o verdadeiro valor do nosso patrimônio: essa
comunidade que vive nesses prédios. Então essa é a maior recuperação que nós devemos
pensar, investir nessas pessoas. Se nós conseguirmos investir nessas pessoas, com
certeza nós teremos mais prédios conservados, mais moradia, porque eles mesmos, cada
um, vai ajeitando um pedacinho com uma telha, um barro, com seu próprio sustento
(discurso proferido durante o II Seminário).
Nesse discurso Aroldo inclui os da região de “cima” como legítimos beneficiários de
projetos que venham a ser realizado na região Centro Histórico. O investimento nessas pessoas
teria um retorno para a região: a conservação dos prédios do Centro Histórico.
Sem casa, sem emprego e sem educação, assim, os moradores da região de “cima” e
interdita se auto definem na perspectiva de uma luta em prol de um beneficiamento nos projetos
a serem realizados na região Centro Histórico. Das Dores, moradora de “cima”, reclama da falta
de um trabalho voltado para a educação dos que, afirma, representam 80% da população da
região Centro Histórico: homens e mulheres que não têm emprego nem renda fixa. Tal trabalho
de educação, segundo argumenta, deveria envolver desde a questão da auto-estima até regras
elementares de boa educação, essenciais para quem lida com pessoas humanas. Conforme coloca:
119
Esse informante aponta que os beneficiados com os programas de moradia da região Centro Histórico são
pessoas de fora, que se identificam com a área e não tem necessidade de local de moradia e utilizam tais
apartamentos para fazer “bacanais” nos finais de semana.
109
“eu não fui educada sabendo que quando se encontra uma pessoa na rua se dá bom dia, eu não fui
educada sabendo que não se deve jogar lixo na rua.”
Faz se necessário frisar que em muitos discursos os nós referidos não têm uma
correspondência direta com as regiões que utilizo como ferramenta conceitual nesse trabalho.
Nessa última fala de Das Dores o nós por ela acionado, qual seja, o nós desempregados
moradores da região Centro Histórico, engloba, mas extrapola, o nós moradores da região de
“cima”.
É em relação a esse nós, desempregados moradores da região Centro Histórico, que Das
Dores reivindica uma educação que lhes possibilite “esperar e explorar essa cultura [o turismo]”.
O trabalho até então realizado no bairro (leia-se na região Centro Histórico) foi, para ela, apenas
“um paliativo de rua, uma fachada”. Assim, além do trabalho “com concreto”, diz ser necessário
haver um investimento que faça com que “pessoas daqui do bairro” comecem “a puxar alguma
coisa”. E continua: “Que de repente quem ganha não são os moradores, não é a comunidade,
certo? Quem ganha são pessoas de fora, não é pessoas daqui do bairro, as pessoas daqui não
tiveram direito a nada”.
A reivindicação na participação dos projetos a serem realizados na região Centro
Histórico deve, afirma, ser realizado por um s, os 80% de desempregados e sem casa própria.
Ela separa, portanto, um eles, os 20% que têm casa e emprego (que engloba, mas não se
restringe, a muitos moradores da região do Desterro
120
). Em outros momentos de sua fala esse
nós acionado, os 80% de desempregados, parece carregar sobre si o peso de uma “herança social
da zona”:
Não interessa se alguém vai dizer, se alguém vai me agredir, se alguém vai chamar de
[inaudível]. E nós somos mesmo Nós somos esquecidos pelo poder público, nós somos
esquecidos por n coisas, porque a gente paga uma coisa que passou há muito tempo atrás
que ainda sobrecarrega a questão do preconceito e muitas outras coisas. Mas, em
nenhum momento as autoridades pararam para fazer um trabalho com a gente, pra saber
o que que a gente pensa, o que que a gente é, o que que a gente faz. (discurso proferido
durante o II Seminário, grifos meus).
Esse nós, conceituado como “esquecidos pelo poder público”, engloba para essa
informante os desempregados, que, afirma “são pessoas vulneráveis a ficar vivendo com as
drogas, com a prostituição, isso porque tem uma grande ociosidade, a questão do desemprego”. É
120
Entre os moradores da região do “Desterro” também figuram desempregados e subempregados, mas na região de
“cima” é maior o número de pessoas com emprego fixo.
110
recorrente na fala de outros informantes, tanto da região de “cima” como da região do
“Desterro”, a associação da prática do tráfico, da criminalidade e da prostituição como
decorrência da ociosidade que lhes tornam vulneráveis.
D. Isabel, moradora de “cima”, referindo-se aos da região interdita que lidam com tais
práticas cotidianamente, afirma tratar-se de “pessoas sofridas, que não têm uma vida quieta, é
uma vida atribulada, que mexe com essas coisas que não devem mexer e, de vez em quando,
polícia correndo atrás e levando.” Para essa informante é preciso dar a essas “pessoas
sofridas” uma oportunidade (emprego, ocupação e formação) para que possam ser recuperadas.
Nas suas palavras: “Olha, tem muitos de idade já adulta, que m profissão, agora não têm
oportunidade. Porque todo mundo tem que ter oportunidade, senão como é que a gente vai
recuperar aquela pessoa”.
Várias reuniões do Fórum tiveram como pauta elaborar um documento onde constassem
propostas e reivindicações dos moradores da região Centro Histórico junto aos órgãos públicos
que atuam na área. Entre as propostas então elaboradas, com o objetivo de construir estratégias de
inclusão social da população desempregada e subempregada da região Centro Histórico de um
modo geral (e mais especificamente da região de “cima” e interdita) de recuperar ou evitar sua
marginalização, constam: a criação de cursos profissionalizantes para jovens e adultos e o
engajamento profissional dos moradores em obras blicas ali realizadas, tais como: restauro e
estabilização de prédios. Afirmam que, um número significativo de pedreiros, carpinteiros,
pintores e eletricistas, atualmente ociosos, que podem ser aproveitados como mão-de-obra.
Segundo moradores de “cima”, a formação e o engajamento profissional são apontados
como elementos essenciais para combater uma ociosidade que torna homens e mulheres, jovens e
adultos vulneráveis ao tráfico, ao crime e à prostituição. Muitos cursos de curta duração
realizados na área pelo SEBRAE e SENAC
121
são vistos pelos moradores de “cima” como uma
forma de amenizar o exercício da prostituição como fonte de renda. Das Dores, presidente da
APROSMA e moradora da região de “cima”, assim coloca para muitas das mulheres que atuam
como prostitutas na região Centro Histórico: se eu sei fazer outra coisa, eu não preciso fazer
programa todo dia, o dia que eu não quiser fazer programa, eu posso fazer uma unha, eu posso
121
Esses cursos têm normalmente com duração de quarenta horas e são voltados para a comunidade do Centro
Histórico. Entre outros foram realizados cursos de corte e costura, manicura e pedicura, doces caseiros, comidas
típicas, salgadinhos, e confecção de bijuterias. Como fruto desses cursos, já foi criado em setembro de 2003 a
Cooperativa Gastronômica, formada por homens e mulheres da região Centro Histórico. Há projetos da formação de
outras cooperativas na área, que aguardam parcerias para sua efetivação.
111
fazer calcinha e sutiã para vender, eu posso fazer bijuteria, eu posso fazer uma comida típica pra
vender”.
Normalmente nesses cursos participam pessoas de toda a região Centro Histórico,
independentemente de seu envolvimento ou não com a prostituição ou a criminalidade. Falando
da oportunidade impar que tais cursos proporcionam a mulheres estigmatizadas pelo exercício da
prostituição, essa informante prossegue: “vocês podem entrar numa sala de um curso desses sem
precisar dizer pra ninguém que vocês fazem programa”. Outros moradores da região de “cima”
como D. Isabel, também afirmam que tais cursos são uma forma lenta e gradual de acabar com a
necessidade do ofício da prostituição naquela região, pois esta formação pode lhes garantir
sustentabilidade para que não “precisem estar mais assim nessa vida”.
A partir destes e de outros discursos, pode-se perceber entre os de “cima” uma tendência à
desvalorização da atividade da prostituição. Ao mesmo tempo em que reconstroem com belas
tintas uma prostituição elitizada e decente no tempo da ZBM, a prática atual da prostituição na
região Centro Histórico é vista como degradante. Nesse sentido, muitos discursos são emitidos
em prol da viabilização de uma outra alternativa de sobrevivência para os que exercem tal
atividade.
Uma outra preocupação constante entre os moradores da região de “cima” são as crianças
que vivem na região interdita. São comuns reivindicações por uma creche para atender a essa
clientela, fato que garantiria condições de vida mais dignas para as crianças, em relação à saúde,
alimentação e educação, e, ao mesmo tempo, permitiria às mães um maior tempo disponível para
dedicar-se a atividades profissionais.
Alguns moradores da região de “cima”, como D. Isabel, enfatizam, porém, a necessidade
de um trabalho simultâneo de engajamento profissional dos pais, senão, a vulnerabilidade desses
à “danação” aumentaria. Nas palavras de Isabel, faz-se necessário,
uma creche para as crianças e alguns afazeres pras mães e pros pais, porque não adianta
botar as crianças na creche e eles ficar sem fazer nada e ficar pintando e bordando
porque sabem que as crianças tão num lugar adequado, o almoçando, sai jantado,
merendado, sai banhadinho e eles ficando na danação. (entrevista realizada em junho de
2005, grifos meus)
A preocupação com as crianças da região interdita faz-se, muitas vezes, acompanhada do
acionamento de critérios de classificação: o descuido dos pais, sua propensão aos vícios
(consumo de álcool, maconha e merla), são apontados como diferenciais dos da região interdita
112
em relação aos demais moradores da região de “cima”. Lúcia, moradora da região interdita que
se define como “cidadã” em distinção aos moradores dessa região apontados como marginais,
também corrobora essa representação. Refere-se à situação de descuido e descaso com tais
crianças, e a atribui a dois agentes: os pais e as autoridades. A abertura de uma creche e um
trabalho contínuo do Juizado de Menores são as estratégias apontadas por ela para se resolver tal
questão.
Então o que eu reivindico aqui é uma guarita policial e uma creche também pra essas
crianças que vivem na rua, não têm o que comer, certo? Vivem em prédios que estão
desabando, correndo risco também de serem mortos e de no caso também do Juizado ta
passando todos os dias e não um dia, porque o simples fato de uma criança, ele não
tem a ficar até meia noite, uma hora na rua, quando der nove horas ele tem que estar em
casa, pra de dia ele estar estudando. Então acontece esse descaso. (discurso proferido
durante o II Seminário)
Vários trechos do discurso proferido por Das Dores sugerem um diálogo com o discurso
de Lúcia. O ponto de reivindicação central do discurso de Das Dores é a geração de empregos e
renda para os moradores da região Centro Histórico. Lúcia, depois de fazer as reivindicações
acima referidas, finalizou seu discurso falando da necessidade de se preservar e zelar pelo
patrimônio histórico. Das Dores, em meio a sua fala pergunta: “Como é que nós vamos colaborar
com o Centro Histórico se nem trabalhar nós podemos?” E continua, complementando questões
colocadas por Lúcia, como a educação das crianças e a necessidade de uma creche:
Como vamos educar os nossos filhos se a gente anoitece e amanhece vendo o turista
passar e a gente não tem nada pra oferecer. Porque de repentemente isso poderia ser
feito, a gente poderia ter uma banquiinha na porta, a gente poderia vender um bolinho,
uma coisa ou outra. A gente resolveu fazer uma campanha SOS Centro Histórico, saúde,
segurança, trabalho, que é importante porque se não se trabalha não se tem saúde, não se
tem comida, não se tem nada. É valioso se ter uma creche, é mas é importante o pai e a
mãe do menino, que as vezes ta lá na creche, ele só vai para a creche se a mãe do menino
tiver o que fazer. Se ela não tiver, não adianta o menino tá na creche, porque eu não vou
botar meu filho na creche e ficar em casa fazendo nada. (discurso proferido durante o II
Seminário, grifos meus)
Nesses dois discursos pronunciados por moradoras, percebem-se pontos de vistas comuns,
apesar de serem traçadas prioridades distintas. Lúcia, por morar no território da região interdita
talvez tenha mais necessidade de demarcar diferenças entre si e os moradores dessa região.
Das Dores, moradora da região de “cima”, talvez por ter atuado durante muitos anos como
prostituta e por ser uma liderança entre os que designa como desempregados do Centro
Histórico”, aciona no seu discurso elementos que a identificam com os da região interdita.
113
Para Lúcia as prioridades são uma guarita policial, (provavelmente pensada como solução
para inibir o tráfico) uma creche e um trabalho mais eficaz do Juizado de menores. Ela não
menciona, em momento nenhum de seu discurso, a necessidade de realização de um trabalho
junto aos pais das crianças, talvez por considerá-los irrecuperáveis. O discurso de Das Dores
aponta como prioridades um trabalho de educação (que envolvesse desde as relações humanas até
um maior esclarecimento sobre a questão do patrimônio) e a geração de empregos para os
moradores da região Centro Histórico. Isabel, como Das Dores, reconhece a necessidade de
aliar serviços de assistência social (como uma creche) à geração de empregos para moradores
que, por sua ociosidade, se tornam vulneráveis ao tráfico, ao crime e à prostituição.
Apesar da diversidade i existente entre seus moradores, percebo, em vários momentos,
nos discursos e práticas dos de “cima” uma aproximação com os da região interdita, que lhes faz
momentaneamente representarem-se e agirem como um nós, que os “sem casa, sem emprego e
sem educação”, apontam sutil ou explicitamente que podem, por necessidade, render-se ao
tráfico, ao crime e à prostituição.
3.2 Quando os de “cima” são “zona”
Nesse tópico busco mapear e interpretar critérios de classificação acionados pelos
moradores de “baixo” para definir moradores de “cima”. Percebo que as representações
elaboradas não têm uma homogeneidade. À medida que os moradores de “baixo” têm maior
trânsito entre os de “cima”, as classificações negativas a estes atribuídos tendem a ser
relativizadas.
São comuns entre moradores de “baixo” a definição dos de “cima” como outsiders
(invasores e indivíduos desqualificados moralmente)
3.2.1 De “diambeiros, assaltantes e estupradores” outsiders a “vagabundinhos fixos”,
“mansos como o cachorro ao dono”
Entre os de “baixo” é comum a designação da região de “cima” como “zona”. Expressões
como “os meninos da zona”, “lá na zona” são comumente acionadas por pessoas que, em outros
momentos, reconhecem certa inadequação no uso dessa expressão, dizendo: “engraçado, zona
114
acabou e eles ]leia-se nós] continuam chamando zona”. Outros utilizam corriqueiramente a
expressão “zona” para designar a região de “cima”, sem demonstrar qualquer sensação de
inadequação no seu uso, o que sugere que o emprego do termo entre os de “baixo” não seja
anacrônico, pois, para muitos deles, a “zona” não acabou: ela se degradou.
Glória, moradora da região de “baixomais de 60 anos, enquanto relembra a antiga
ZBM como “uma zona sofisticada”, representa a “zona” de hoje como lugar de marginais
(maconheiros, estupradores e assaltantes), maus elementos “que chegaram ontem” [outsiders] e
que não teriam nenhum direito de participar dos projetos de revitalização da região Centro
Histórico, pelo contrário, deveriam ser dali expulsos para que essa região seja valorizada. Sua
fala ilustra tal representação:
Uma imundície que tem agora, è imundície.Eu acho um absurdo quando o governo
diz: “Vamos conservar os moradores”. Eles não eram nem donos da situação, eles
chegaram ontem. Tudo assaltante, tudo maconheiro, tudo estuprador, querendo
conservar uma merda dessa, desculpa até a expressão aí. Uma tristeza. Podiam pegar
esses sobradões, se querem mudar, se querem conservar, reforma esses sobradões,
coloca uma faculdade, coloca um posto de saúde, ou então um colégio, ou então uma
pousada pra turista, pra turismo, não é aquela gente, não é aquela, que ali tudo é
diambeiro, é maconheiro, estuprador, ladrão, assaltante, você não pode passar lá agora [a
noite], não pode passar, primeiro que já quebraram todas as luzes e as iluminarias da rua.
(entrevista realizada em maio de 2005, grifos meus)
Enquanto muitos moradores da região de “cima” esperam ser beneficiados por projetos de
moradia popular a serem efetivados na região Centro Histórico, esta informante de “baixo” traça
outras prioridades para a área, tais como: faculdade, colégio, posto de saúde e pousada. Aqueles
designados como os que “chegaram ontem” não teriam qualquer direito de participar desses
projetos.
Apreciadora do ambiente do Reviver
122
, Glória hoje se diz receosa de passar pelo trecho
(a região de “cima”) que separa a região do “Desterro” do “bairro” da Praia Grande. Aponta que
a região de “cima” hoje é um viveiro de marginais que não conta sequer com iluminação pública,
pois, afirma: “Eles mesmos que quebram (os postes) pra poder assaltar. Eles metem o revólver, a
faca, tudo.E isso é justo? Isso é admissível, isso é adequado para uma capital que se diz cultura,
patrimônio histórico?”
A região de “cima” é, pois, na sua representação, uma doa que enfeia, desvaloriza e
torna perigosa a região Centro Histórico. Quando me refiro à rua 28 de julho, por exemplo, ela
122
Vide nota 2.
115
assim a descreve : “- Ainda é zona. Não existe mais nada, tem gente à toa. Tu entendendo
onde eu quero chegar. Essas pessoas que tão lá são invasores, são penetras.”
Para ela existem dois grupos distintos: o dos moradores, proprietários das casas, que, no
caso da região de “cima”, “foram embora, morreram muito tempo”, e os “invasores e
penetras”, que, atraídos pelos prédios desocupados, neles se alojaram. Aponta que a esses últimos
não deve ser reservado nenhum lugar dentro dos programas implementados na região Centro
Histórico, pois, o “atoísmo, a malandragem e a imundície” devem ser extirpados para que São
Luís possa fazer jus ao título de patrimônio da humanidade. Onde funcionou a zona, segundo ela,
não tem mais moradores, esses já morreram, só restam outsiders (penetras, invasores e pessoas de
baixo nível moral).
Brena, moradora da região de “baixo”, atua como agente comunitária de saúde tanto na
região de “cima” como na região de “baixo”. Para ela, como para a última informante, uma
diferença muito grande entre as duas regiões. Enquanto os de “baixo” são vistos como mais
cuidadosos com os filhos, mais preocupados com a higiene das ruas e das casas e, normalmente,
têm um índice de escolaridade avançado (“tem muita gente com terceiro grau”), a representação
que elabora da região de “cima” é bem distinta.
Quando lhe perguntei se as crianças da região de “cima” estudavam, ela colocou que “vão
pro colégio minha irmã, mas não sabem nadinha”. O desleixo dos pais com os filhos é enfatizado
em outras falas da informante, quando se refere à sua constante embriaguês e aos riscos vividos
cotidianamente pelas crianças dessa região.
Comentando uma tentativa de estupro de uma criança de cinco anos na Rua da Palma
(região de “cima”) aponta a responsabilidade dos pais em incidentes como esses.
mas sabe qual é o problema, não é querendo falar não, mas é porque a mãe tava mesmo
era bebendo cerveja e deixa os menino tudo na rua correndo que nem o cão. Porque a
gente vê, menina, mulher correndo no meio da rua, eles nem ligam e ali passa carro toda
hora. depois fica chorando, ela tava era bebendo, menina! (entrevista realizada em
maio de 2005)
Brena afirma que nos últimos anos a região Centro Histórico tem ficado mais bonita com
o calçamento das ruas com pedras e com a rede de iluminação subterrânea com postes que
simulam lampiões. Diz ter ficado mais orgulhosa do lugar onde mora após a obtenção do título de
patrimônio da humanidade pela cidade de São Luís, e é com garbo que fala para os amigos: “Eu
moro no Centro Histórico, no Desterro, perto do Convento, da Igreja do Desterro e coisa e tal.
116
E o povo fica: pôxa, mas ali é lindo!” O que, segundo ela, prejudica a imagem da região do
Centro Histórico “é só aquela rua da Palma [região de “cima”]”.
As representações negativas muitas vezes especificadas por Brena como referentes ao
território da região interdita (como a Rua da Palma), são, em outros momentos, estendidas à
região de “cima” como um todo. Mas seu trabalho realizado naquela região lhe faz ter certo
cuidado com as generalizações. Assim, quando lhe pedi que descrevesse a região de “cima”,
iniciou sua fala alertando: ”não são todas as famílias, porque tem famílias maravilhosas lá em
cima”. Depois desse alerta, traça um retrato não muito favorável dessa região:
Mas é muito traficante, as mulheres bem bem à toa mesmo, entendeu. Eu não sei se são
moradores mesmo daqui entendeu? Mas ficam aí, eles passam muito tempo aí, vem de
outro lugar e se hospedam nesses [quartos]. Com renda bem baixa mesmo as pessoas
que se hospedam em cima desses quartos. (entrevista realizada em maio de 2005,
grifos meus)
Apesar de conceber representações diversificadas da região de “cima” (”não são todas as
famílias”) os elementos acionados para referir-se a ela são os mesmos que, por vezes, localiza
com precisão na região interdita. O tráfico, o “atoísmo”, a falta de cuidado com os filhos, com a
higiene e a aparência da rua (“aquelas mulherzinhas na porta e eles cortam peixe na porta da rua,
que diacho é aquilo, os gato tudo do lado, iche!”) aparecem muitas vezes em seus discursos como
extensivos a toda a região de “cima”. Somente em alguns momentos da entrevista, quando
pergunto especificamente sobre alguma rua, é possível localizar que a maioria dos elementos
acionados para representar a região de “cima” têm como referência empírica o território da
região interdita
123
. Quando lhe pergunto se a 28 é como a Rua da Palma, ela diz, como que se
admirando da própria constatação que a experiência mais próxima com as pessoas do lugar lhe
permitiu elaborar: “gente, a 28 é muito tranqüila, gente!”.
A classificação dos “traficantes” e das “mulheres à toa” como “gente de fora” (outsiders)
é, por vezes, sugerida (“Eu não sei se são moradores mesmo daqui”) e, por outras, explicitada
(“vem de outro lugar e se hospedam”) em suas falas. Mesmo que não assumindo o tom agressivo
empregado por outros moradores de “baixo” (que os classificam como “penetras”, “invasores”),
nos discursos de Brena percebe-se também uma necessidade de não considerar os da região de
“cima” e, mais especificamente, os da região interdita, moradores propriamente ditos. Assim,
123
Em relação à prostituição e ao tráfico ela faz em alguns momentos referências direta às duas ruas abrangidas pela
região interdita: a Rua da Palma (acima do Convento, como faz questão de frisar nas suas falas para distingui-la da
Rua da Palma de “baixo”) e a Rua da Saúde.
117
narra que nas visitas que fazia aos quartos da região de “cima”, nunca encontrava a família que já
havia visitado, pois “todo dia chega gente nova ali”. Quando me referi ao caso da tentativa de
estupro à criança ocorrido na Rua da Palma, perguntei-lhe, distraidamente, se ele morava naquela
rua. Ao que ela e sua irmã, que presenciava a entrevista, reagiram negando-lhe o estatuto de
morador: ”ele trabalha, não é daqui do bairro, passo o dia todinho aí”.
Percebo uma tendência nas classificações elaboradas pelos de “baixo” em relação aos de
“cima” de representá-los como outsiders, tanto pelo pouco tempo de moradia nesse espaço
(“gente de fora, invasores, penetras”), como pelos atributos negativos que lhes são lançados
(“traficantes, à toas, assaltantes, estupradores, desleixados” -com os filhos e com o espaço físico
onde vivem) Assim, os de “baixo” tendem a lançar para o território da região de “cima”, as
práticas consideradas negativas e maculadoras da imagem das regiões de “baixo” e Centro
Histórico na cidade de São Luís, reproduzindo e ressemantizando um movimento de classificação
normalmente acionado pelos de “cima” para definir os da região interdita.
Tive a oportunidade de conversar com Clóvis, pai da última informante citada, Brena,
que, como ela, nasceu e se criou na região de “baixo”. Apesar de sempre ter morado na região de
“baixo”, a história de vida da família de Clóvis está ligada à região de “cima”. Seu pai tinha um
comércio num “casarão” em que, na parte superior, funcionava uma casa de cômodos. Sua mãe
trabalhou como costureira para meretrizes da ZBM.
Clóvis hoje tem uma oficina de computadores na região de “cima”, fato que, somado aos
vínculos de sua família ali construídos desde o passado, lhe permite ter livre trânsito entre
aqueles moradores. Esse informante reconhece a permanência de uma fronteira entre os de
“cima” e os de “baixo”, que afirma ter sido pior no tempo da ZBM, quando eles “se respeitavam,
mas não se misturavam”. Aponta que os de “cima” são representados pelos de “baixo” como
“metido a doidão” e os de “baixo” são representados pelos de “cima” como “metido a boyzinho”.
Penso que seu livre trânsito entre as duas regiões, desde a infância, lhe permite elaborar
representações dos de “cima” distintas das de outros moradores da região de “baixo”, inclusive
dos que moram dentro da sua própria casa. As representações elaboradas por sua filha (“aqueles
menino dali são tudo doido, são tudo de gangue!“) e por sua esposa (“lá pra cima diz que tem uns
perdidão”) são representativos da diversidade de representações dentro de uma mesma família.
Embora sua filha hoje esteja tendo um maior contato com os de “cima”, devido ao seu trabalho
como agente comunitária entre eles, sua inserção nessa região é muito mais recente do que a de
118
Clóvis. sua esposa, que disse desconhecer essa di-visão entre os de “cima” e os de “baixo”,
dizendo não sair de casa e não gostar de ouvir conversas da rua, construiu também dentro de
casa uma representação dos de “cima”: “lá pra cima diz que tem uns perdidão”.
Clóvis afirma ser conhecido por todo mundo na região de “cima”: “pelos traficantes,
pelos ladrão”, como fala em tom jocoso. Tal proximidade lhe possibilita elaborar uma
representação dos de “cima” bem diferenciada da construída por outros moradores de baixo”.
Comparando os “vagabundos” de “cima” com os de “baixo”, suaviza a periculosidade dos
primeiros utilizando para referir-se a eles o diminutivo “vagabundinho”.
Mas engraçado, esse pessoal daqui, esses vagabundos daí, né,[os de cima], a gente não
pode nem classificar eles totalmente de ladrão e de traficante. Eles vendem as besteiras
deles por aí, roubam alguém por aí, mas são gente conhecida, né. Quando eles pegam um
estranho é que eles...[fazem o mal] Então eles não são muito como os dali de baixo
assim, porque os dali de baixo, dali do Infernight Club [segundo ele faz parte da região
do “Desterro”], ali é mais aquele pessoal que vem do Anjo da Guarda que desce pra
fazer bagunça ali.(entrevista realizada em maio de 2005, grifos meus)
Os “vagabundinhos de cima” são, para esse informante, “gente conhecida” que trafica e
rouba para sobreviver, mas seriam inofensivos para os moradores da região de baixo”, só sendo
perigosos para os “estranhos.” Já os do “Infernight Club” (que se constitui numa região intra
região de “baixo”) seriam mais perigosos, porque são de outro bairro (o Anjo da Guarda). Os
vagabundos perigosos (outsiders) estariam, principalmente, na região de “baixo” e não na região
de “cima”. Utilizando a metáfora do cachorro manso ao dono”, Clóvis esclarece tal
representação:
Quer dizer, pra gente aqui não tem [violência]. O negócio é que o camarada que mora
no Anjo da Guarda acha que aqui seja violento. É porque ele acostumado por lá. Os
vagabundo de já conhecem ele, não mexem com ele. É tipo a história do dono com
o cachorro: aí tu chega “–não, entra que o cachorro é manso!” Manso pra ele que é dono,
mas prum estranho não. (entrevista realizada em maio de 2005)
Entre os próprios “vagabundinhos de cima” Clóvis efetua uma clivagem os
“forasteiros” (“gente de fora”) e os “fixos” (“gente conhecida”). Os forasteiros” mordem
qualquer um, os “fixos” são mansos como o “cachorro ao dono”. Assim, ao mesmo tempo em
que defende com indignação a demolição de prédios abandonados como o da antiga fábrica da
Oleama, que “só servem pra encher de marginal” (“já tem os daqui, ainda vem mais os
forasteiros, fica ruim”), fala com pesar e emoção de um dos “vagabundinhos fixos”
119
recentemente assassinado na rua da Palma (região interdita); “Edinho foi nascido e criado aqui.
Conversava com todo mundo no Desterro, o diabo era quando ele tava drogado e coisa pra
cima. Aí virava o bicho”.
Interpretando tais discursos é possível perceber diferentes representações dos de “cima”
entre os de “baixo”. Enquanto alguns moradores de “baixo” estendem aos moradores da região
de “cima” como um todo a condição de outsiders, outros circunscrevem à região interdita esta
condição, e outros ainda, relativizam os outsiders dentro dessa última região, afirmando que
muitos dos “vagabundos” que ali vivem são “gente conhecida” e por isso se tornariam “mansos
como o cachorro ao dono”. Quanto mais trânsito os moradores de “baixo” têm com os de “cima”,
menos negativa parece se tornar a representação que constroem destes.
3.2.2 “No tempo que era zona era mais respeitado”, agora “ali é um atoímo muito grande”
Nas representações da ZBM elaboradas pelos moradores de “baixo”, normalmente há uma
comparação imediata com a região de “cima” atual. Glória reconstrói uma outra imagem da
“zona”, num tempo em que, afirma, era possível que famílias decentes morassem ao lado de
cabarés. No tempo de sua mocidade, sua tia (“pessoa respeitada e de família”) morava na “zona”,
mas isso não a impedia de visitá-la, pois “não tinha problema da gente não passar na rua, nem se
via cara de ninguém, tudo era fechado. E elas respeitavam...” Eis a representação da “zona” de
outrora que reconstrui:
Durante o dia essas mulheres não vinham nem na porta, que elas eram respeitadas e
respeitavam as famílias. Elas vinham de sete horas [da noite] em diante pra rua, pra
rua não, era aberto assim pros homens entrar pra dançar ou namorarem lá como é que é.
Que a gente não sabe, que a gente não freqüentava, zona mulher não entra, Deus me
defenda. Quem ia era os homens. (entrevista realizada em maio de 2005)
Com outras tintas pinta as cenas que diz ocorrerem na “zona” de hoje. Se, num outrora
visto com saudosismo, “elas [as meretrizes] não tomavam gosto e nem você [as] via... Agora,
agora você não vê um animal irracional trepando na rua, mas vo vê um animal racional
trepando na rua, é homem e mulher”. Nessas comparações Glória busca um tempo perdido.
Afirma que não existe mais “zona” porque não mais uma função social reservada às
meretrizes: “hoje não tem mais zona, hoje tem motel. As próprias mulheres de família é que são
as prostitutas de hoje: um dia vão com um, no outro vão com outro”.
120
Brena constrói suas representações da ZBM através das lembranças herdadas da avó e
do pai. Ela e sua irmais nova repetem como alunas aplicadas que aprenderam a lição de cor:
“no tempo que era zona era mais respeitado”.
Sem recordar decerto os motivos, Brena conta que, na década de 1980, morria de medo de
passar pela rua da Palma (região interdita), caminho mais próximo para chegar ao colégio: “Eu e
Bianca a gente passava durinha, não olhava nem pro lado”. Quando perguntamos a origem desse
medo, ela afirma que “As pessoas comentavam Ah! Que ali não sei o quê, que era zona e não sei
o quê, que era muito traficante, a gente vai ficando com medo”. Quando insisti na pergunta
indagando se o motivo do medo era o tráfico ou a “zona”, ela se percebeu com um medo cujas
raízes se perderam no tempo: “Não, eu acho que na época, eu nem sei se ali era zona, menino.
Porque pelo que eu saiba a zona mesmo era na 28. Aqui [referindo-se à Rua da Palma-região
interdita] eu não sei se era, eu sei que agora é que o negócio é o tráfico mesmo que é muito
grande, é muita droga”.
Se os motivos do medo no passado foram esquecidos, hoje aponta os motivos de seu mal
estar: “Mas hoje minha irmã, a gente passa ali é cada nome horrível, meu Deus do céu que a
gente escuta, rum! Eles não respeitam: [Dizem] ê mano, joga outra cabeça. Cabeça de merla
que eles chamam”. Além do tráfico escancarado, que é lido como desrespeito ao transeunte,
outros elementos são acionados para classificar a “gente de fora” que vive na região de “cima”,
tais como: o atoísmo, a sujeira, brigas e gritarias. “Gente porque ali é um atoísmo muito grande.
A gente passa o povo é gritando na rua e é briga, é um com uma faca na mão querendo matar o
outro. Menina é uma loucura. quem vem minha irmã e olha isso daí, tudo sujo. Pra ali pra
cima é tudo sujo, a gente passa de manhã dá até vontade de vomitar”.
A partir desses discursos de moradores de “baixo” percebo que a idealização da ZBM não
é exclusiva das representações dos moradores de “cima”. Entre os de “baixo”, o luxo, a decência
e o respeito também são atribuídos à “zona” de outrora. Embora entre eles também seja comum a
menção ao fato de que na ZBM ”mulheres não entravam, os homens que iam”, nem
menores
124
, o que sugere que tal ambiente representado como “decente e respeitado” não o fosse
tanto assim.
124
Muitos moradores de “baixo” se referem ao papel da Polícia Militar - que funcionava onde hoje se situa o
Convento das Mercês- e do Juizado de Menores, no controle da exclusão de menores do ambiente da ZBM.
121
3.3 Quando os de “baixo” são guardiões de histórias e gente de família
Entre os de “baixo” é comum o acionamento de critérios de classificação positivos para
sua auto-definição: o ser morador antigo, ser conhecedor da história da região, ser de família, ser
religioso, ser tranqüilo, ser instruído. Representações negativas também são acionadas em relação
a sua região: referências a tráfico, prostituição, violência e “atoísmo”.
3.3.1 Entre moradores antigos saudade do tempo ido.
Entre os de “baixo” também é comum a valorização do ser “morador antigo”. Nos
discursos de moradores antigos de “baixo”, o culto ao passado e a referência a um tempo perdido
também são recorrentes. Se os de “cima” elegem a ZBM como sua história, os de “baixo”
também se vangloriam de saber detalhes de uma festa religiosa que não se festeja mais, o nome e
as histórias de um ex-morador famoso e até mesmo de, com precisão, saber descrever como a
região do “Desterro” era antigamente, antes das intervenções públicas transformarem sua
fisionomia.Se os de “cima” se dizem “figura principal”, os de “baixo” sentem-se guardiões de
histórias da sua região.
Conversar com os de baixo”, trazia sempre em si o risco de passar horas ouvindo-os
falar, com orgulho e saudosismo, “como era o Desterro antigamente”. Do “Desterro”
125
muito
bom de antigamente, muitas imagens se constroem: desde a calma do largo, onde se sentava no
fim da tarde para contar histórias debaixo da figueira -que não há mais-, onde se distraiam com as
preguiças que brincavam entre seus galhos, até as referências aos ilustres moradores que por ali
passaram.
Isabel -que morou até os doze anos na região de “baixo”, sem nunca ter perdido o contato
depois de sua mudança para a região de “cima”- recorda que, no tempo de sua infância, por volta
da década de 1950, eram “famílias de nome que moravam no Desterro”. O “nome”, porém, para
essa moradora, está mais ligado à distinção social do que à condição econômica. Segundo ela, ali
não havia ricos, “eram pessoas remediadas”.
Glória, realça o glamour de um “Desterro” que conheceu na infância, ou que ouviu
falar pelos pais e avós: um lugar lindo, tradicional”, onde moravam pessoas importantes.
125
Nesse tópico quando utilizar a expressão “Desterro” refiro-me à região do “Desterro”.
122
Fazendo questão de frisar que também veio de uma “família tradicional”, reconstrói uma imagem
com tal autoridade, que um ouvinte desavisado pensa que ela teria vivenciado esse tempo
126
:
“Naquela época esta rua era linda, bonita, porque era tradicional, morava o Dr Herculano Parga,
morava o Delegado de polícia Flávio Bezerra, moravam gentes importantes como Dr. Matos que
era bioquímico. Aqui tinha muita gente importante.”
Aroldo também faz questão de falar dos ilustres moradores do Desterro, dentre eles, seu
irmão: outro personagem famoso da região por seu êxito como jogador de futebol e político.
Com saudade e ressentimentos um outro morador do “bairro” é lembrado: Padre Artur.
Muitos informantes de “baixo” utilizam-no inclusive como referência de tempo. È comum entre
eles ouvir-se a expressão: “no tempo do Padre Artur”. Alguns mencionam atividades por ele
realizadas na região: cooperativas, cursos diversos para moradores do “bairro” e eventos
religiosos. Uma moradora fala, com pesar: “quando Padre Artur morreu o bairro morreu junto
com ele.”
Outros não escondem a raiva, acusando-o de traidor do povo do “Desterro”, quando se
referem aos roubos de bens e relíquias pertencentes à comunidade do “Desterro” que teria
deixado como herança para seus parentes.
3.3.2 Quando a “zona” maculava a imagem do “Desterro”
A história da região de baixo” cruzou muitas vezes com a da região de “cima”. Embora
os moradores de “baixo” também reconstruam uma ZBM decente, luxuosa e respeitada, na cidade
de São Luís, a imagem dessa região parece ter sido maculada com a institucionalização da ZBM
no espaço da região de “cima”.
Como aponta Glória, com a chegada da ZBM, moradores e visitantes “tradicionais” foram
se afastando do “Desterro”. Assim se refere ao tempo em sua mãe chegou a essa região: Bem,
quando ela veio pra [região de “baixo”], apesar de ter só famílias tradicionais, porque ali
[região de “cima”] era zona, da zona pra que era famílias tradicionais. Aí, quando veio a
zona, as famílias tradicionais foram se mudando.”
126
Muitos dentre a “gente importante” que Glória menciona, morreram antes dela nascer.
123
Afirma que depois da mudança de sua mãe para o “Desterro”, esta passou a ter pouco
contato com seus amigos, que só vinham visitá-la em ocasiões especiais, como quando de alguma
festa religiosa na Igreja do Desterro:
quando ela [sua mãe] veio morar aqui, as famílias tradicionais foram morar na rua do
Alecrim, na rua dos Afogados, na rua do Perspontão, na rua Rio Branco. Vinham visitar,
mas era de ano a ano, por que que vinham visitar? Porque tinha aqui a grande e valiosa
procissão que era tradicional de Bom Jesus [inaudível]. Vinham, aí aproveitavam e
faziam a visita e mamãe aproveitava e fazia arroz de cuxá com peixe frito, que quando
terminasse íamos jantar, fazer uma ceia . (entrevista realizada em maio de 2005)
Não a ZBM, mas também as residências próximas a ela, como as que fazem parte do
que conceituo como região do Desterro”, pareciam não gozar de um bom conceito frente aos
moradores de outras áreas da cidade de São Luís. É o que sugerem as lembranças de infância de
Marta
127
, desde então moradora da região do “Desterro”, que narra o estranhamento de suas
colegas de escola quando dizia onde morava. Suas colegas diriam assustadas: “mas tu mora ali?”
A valorização do ser morador do “Desterro” parece ser uma construção recente. É o que
sugerem as colocações de Marta “somente de uns anos pra cá as pessoas passaram a dizer que
moram no Desterro, antes elas diziam que moravam no Centro”. Num passado próximo, essa
região não parecia gozar de boa fama na cidade. Tendo sido palco de muitos roubos e
assassinatos, a fama da região do “Desterro” era de ser uma área pesada.
Brena afirma que, até bem pouco tempo atrás, seus colegas de colégio traçavam uma
imagem desfavorável da região em que vive: “o pessoal dizia logo que eu morava na zona, na 28
no Oscar Frota”. Mais recentemente, a imagem do “Desterro” parece estar sendo ressemantizada
nas representações de agentes externos e de moradores. Bianca, irmã de Brena, afirma: “antes
eles associavam muito [o Desterro] à zona, à 28, agora eles associam tudo Ah! É ali perto do
Reviver”.
127
Simultaneamente à construção desse texto, Marta realizava um trabalho acerca das transformações operadas nas
representações do bairro do Desterro por agentes externos e moradores, a partir de uma comparação de dois
momentos significativos para sua história: a cada de 1970, quando ali se processam intervenções urbanas, e os
anos mais recentes, quando a obtenção do título de patrimônio da humanidade pela cidade de São Luís, teria
influenciado outras mudanças. Ver SILVA (2005).
124
3.3.3 Gente de família, gente que presta
A categoria “morador antigo” goza de prestígio entre os de “baixo”, o apenas pelo
fato destes se auto-definirem como uma espécie de guardiões das histórias dessa região. O “ser
morador antigo” traz em si outro critério de classificação: o “ser gente conhecida”. É comum
entre os de “baixo” a representação dos moradores a partir das referências de sua família. Assim,
os moradores mais antigos são, normalmente, associados ao nome e ao caráter de um parente
mais conhecido. Um morador antigo de “baixo” é classificado por outros também antigos, não
apenas por suas referências pessoais, mas pelas referências de sua família.
A valorização da família envolve também uma preocupação com a criação dos filhos. A
educação é apontada como uma prioridade por muitos deles, tanto no que se estende à instrução,
como à retidão moral. O índice de escolaridade entre os de “baixo” é apontado por muitos destes
como superior ao dos de “cima” Muitos se referem ao grande número de moradores com Ensino
Médio e Superior completo. Em relação à retidão moral, como me referi ao longo desse
trabalho, muitos pais da região de “baixo” temem o contato de seus filhos com os da região de
“cima”, representando-se como estabelecidos em relação aos que definem como outsiders.
Assim muitos deles preferem que seus filhos tenham contato apenas com moradores de “baixo
como eles gente de família, gente que presta.
A referência às famílias não está ligada à valorização de sua condição financeira, mas a
um histórico de retidão moral. Marta, moradora de “baixo”, ao se desentender com um vizinho de
muitos anos, com quem tinha pouco contato, afirmou, decepcionada: “Eu pensava que tu
prestavas, não por tua causa, que eu nem te conheço, mais por causa da tua família.”
A valorização das referências de família entre os de “baixo” parece estar ligada à questão
do casamento. Como coloca D.Nadir, que morou muitos anos na região de “cima” e vive
vinte anos na de “baixo”, ali “todo mundo é casado. eu que não sou
128
. Marta, mãe solteira,
reconstrói que, quando grávida, muitos vizinhos perguntavam, indiretamente, se ia casar ou
morar junto com o pai de sua filha. Uma ex-moradora de “baixo” recorda que, quando criança -há
128
Comparando as regiões de cima” e de “baixo” em relação à questão do casamento, essa informante apontou que
“lá pra cima ninguém é casado. Mas é mesmo como se fosse, porque “os home moram junto com as mulher, dão as
coisas pra ela.” Penso que seu livre trânsito entre os territórios das regiões de “cima” e de “baixo” lhe possibilita
relativizar o comportamento distinto de moradores dessa região em relação ao casamento.
125
cerca de quinze anos- referindo-se à única mãe solteira de sua rua na época,. perguntava-se,
perplexa: “cadê o marido de Dinorah?”
Além da família e do casamento, a religiosidade católica parece ser um critério valorizado
entre os “moradores antigos”. Freqüentar a missa, participar de novenas são práticas comuns a
muitos dos de “baixo”, que têm na Igreja do Desterro um de seus maiores símbolos. O bolo de
tapioca e o chocolate depois do terço são aguardados por adultos e crianças. Esse ritual parece ser
um dos momentos de produção de laços entre eles. Assim, enquanto os de “cima’ jogam dominó,
os de “baixo” fazem novenas e comem bolo.
3.3.4 “Inferninhos” entre os de “baixo”
Entre os de “baixo” é comum a representação da sua região como um lugar tranqüilo.
Embora alguns moradores se refiram à incidência de tráfico, violência e prostituição, apontam,
normalmente a construção de outras regiões que cindiriam seu território.
Quando me refiro à incidência do tráfico na região de “baixo” os moradores normalmente
negam-na veementemente ou afirmam que, se tal prática naquele território, deve ser muito
escondido”. Outros se dizem desconfiados do comportamento de novos moradores. D. Neide
quando se refere a um “hippie” que teria se mudado para sua rua aponta: “Eu acho que ele mexe
com essas coisas. Ele pode vender droga, porque na casa dele é um entra e sai de gente, acho
que universitários que vêm comprar.”
Um território intra-região de “baixo” é apontado pelos moradores com quem tive contato
como lugar perigo: o “inferninho ou Infernight Club”, onde se situam muitos bares representados
como de reputação. Referindo-se ao que parece se constituir outra região intra-região de
“baixo”, os moradores de “baixo” acionam representações negativas: “o Inferninho basta dizer o
nome, um Inferno]Muitos explicitam o temor em relação à região “Inferninho”: “Eu tenho
muito medo de passar por ali”.
Outros, como Clóvis, sublinham que a violência e o tráfico da região “inferninho” é
decorrente da ação de forasteiros (outsiders): “ali é mais aquele pessoal que vem do Anjo da
Guarda que desce pra fazer bagunça ali”
126
Para esse informante a região de “baixo” é um lugar tranqüilo: a região Inferninho
estabeleceria uma descontinuidade intra território da região de “baixo”, que, na sua
representação ainda é um território tranqüilo se comparado a outros “bairros” de São Luís:
Acha que o [“bairro” do] Desterro ainda é menos violento que outros bairros como
Liberdade e Anjo da Guarda. Aqui é mais aqueles papudinhos que ficam ali arrumando
confusão, aqueles cachaceiros que ficam bebendo cachaça o dia todinho na Travessa da
Lapa
129
No [bar do] Batista
130
é tranqüilo, Batista não deixa negada bagunçar. Batista é
aquele cara que fala com todo mundo, mas ele se impõe, quer bagunçar vai pra rua.
(entrevista realizada em maio de 2005)
Outros discursos de moradores de “baixo”, porém, relativizam essa representação da
região de “baixo” como um território tranqüilo e ordeiro. Glória, por exemplo, diz desejar se
mudar da região onde vive desde o nascimento, afirmando:O atoísmo está descendo”. Para essa
informante o “atoísmo” não estaria mais restrito ás regiões de “cima” ou do “inferninho”, ele
estaria chegando também no território da região de “baixo”, e deseja sair dali antes que ele
chegue completamente.
Outros moradores de “baixo”, como D. Nadir constroem representações negativas de
locais específicos situados no território da região de “baixo”, como o largo do Desterro, onde
alega que deve haver um policiamento para acabar com algumas “cachorradas” que ali se fazem:
Aqui [na região de “baixo”] a maior parte não que não se essa cachorrada. daqui
da pracinha e aí neste largo da igreja. É um jogo de bola que não pára, de noite é aquelas
mulher, aquelas pequena ficam até tarde da noite se agarrando com homem, é aquela
coisa, dum lado é ali do outro lado. Eu não saio nem daqui pra ir pra li olhar pro bar da
minha filha, que é uma falta de respeito danada. era pra ter era um policiamento.
Botaram um policiamento quando inaugurou. (entrevista realizada em outubro de
2004)
Em relação a Michele, traficante e estelionatário que morou no território da região de
“baixo”, as representações dos moradores de “baixo” são controversas. Uns, negam seu
envolvimento com o tráfico, afirmando que este era ladrão e estelionatário, mas não traficante.
Outros, afirmam que os de “baixo” sabiam de seu envolvimento com o tráfico, mas, aos poucos,
com seu comportamento e com os presentes que distribuía entre eles, foi conquistando os
moradores, que passaram a freqüentar sua casa nas novenas que fazia para Nossa Senhora de
Fátima, comendo bolo e ,(dizem!), carregando a santa cheia de droga. Nas palavras de Brena: “E
129
O trecho referido da Travessa da Lapa é considerado por muitos informantes como parte do “bairro” do Portinho,
É incluso por este morador no espaço físico do “bairro” do Desterro, mas não no território da região de “baixo”.
130
Situado também na Travessa da Lapa, mas num trecho considerado parte do território da região de “baixo”.
127
o pessoal ia buscar a santa com ele. Dizendo o povo, eu não sei se é verdade, que a santa tava
cheia de droga. E o povo do Desterro tudinho lá com ele. E eu “meu Deus, que maldade!” O povo
inocente se a polícia chegasse lá o povo ia tudo ser levado junto com ele”
Mesmo reconhecendo que muitos moradores sabiam do envolvimento desse indivíduo
com o tráfico, Brena representa os que carregam a santa supostamente cheia de droga como
“povo inocente” Talvez esta seja uma auto-definição óbvia para aqueles que representam sua
região como um território tranqüilo, onde mora gente de família, gente que presta.
A produção e reprodução de uma auto-definição de estabelecidos pelos de “baixo” parece
se operar a partir da negação da incidência de elementos como tráfico, violência e prostituição no
seu território. A construção da representação da região de “baixo” como um lugar tranqüilo,
muitas vezes só se torna viável a com exclusão de alguns espaços do seu território: como quando
tendem a conceituar o “inferninho” como uma descontinuidade: como outra região intra região
de “baixo”.
Ainda que alguns moradores apontem que o “atoísmo” está chegando à região de “baixo”,
sua definição como um lugar tranqüilo me parece preponderante. Ela consegue se manter até
mesmo quando se reconhece o convívio de moradores com traficantes, como no caso de Michele,
pois o “o povo [os moradores de “baixo” ] era inocente”
3.4 Quando os de “baixo” são “a ‘porra’ elitizada”: “essa ‘porra’ é tudo uma ‘merda’ só”
“Hipócritas”, “pseudo-ricos”, “pseudo-elitistas”, “bairristas”, “metidos à besta”, “cus
doce”, “cheios de frescura”, “só querem ser boyzinho, só querem ser patricinha” são algumas das
categorias acionadas pelos da região de “cima” para classificar os de “baixo”. Os de “cima”
parecem acionar tais categorias a partir de um critério de classificação comum: a representação
de uma pseudodiferença pelos de “baixo”. Para os moradores de “cima” que reconhecem
explicitamente uma fronteirai, esta não seria produto da diferença entre moradores dessas duas
regiões, mas sim produtora de diferenças entre elas.
Dentre as categorias acionadas pelos de “cima” para classificar os de baixo” sobressai
um significado: a falsidade/aparência. São como “pseudos”, “metidos a”, e “que querem ser”
que os da região do “Desterro” são representados. Os de “cima”, normalmente afirmam a
ausência de uma fronteira social entre as duas regiões. Nos discursos dos informantes de “cima”
128
são recorrentes argumentos que negam a diferença entre as duas regiões, como se sentissem
necessidade de representar os de “baixo” como iguais a si. Alegam que os atributos da pobreza,
do tráfico e da prostituição, caracterizam também os de “baixo”.
Em outros momentos os de “cima” acionam critérios que sublinham sua diferença em
relação aos de “baixo”, quando com estes disputam o atributo da memória/valor histórico
legítimos.
3.4.1 “É todo mundo achatado”
Em torno do critério pobreza, os de “cima” classificam os de “baixo” como “pseudo-ricos
e pseudo-elitistas”. Tal representação é estendida tanto ao momento presente, quanto ao passado
dessa região. Seu Juca, morador da rua 28 de julho afirma que: ”no [na região do] Desterro
nunca teve rico, nunca teve gente que tem dinheiro, quem tinha dinheiro morava na Praia Grande,
eram os comerciantes, os empresários. Esse pessoal do [da região do] Desterro nunca foi rico,
eles sempre foram pseudo-ricos”.
Seu Manoel, morador da rua Jacinto Maia corrobora essa representação. Referindo-se aos
moradores atuais da região de “baixo”, aponta que não há uma diferença significativa dos
moradores das duas regiões em relação à questão econômica. Afirma que: “só existem duas
classes, a classe dos achatados e a dos poderosos. E aqui é todo mundo a mesma coisa; é todo
mundo achatado. porque eles têm um empreguinho, um carrinho, uma casinha, ficam
arrotando como se fossem alguma coisa, mas são tudo achatado também.”
Ainda que reconhecendo uma diferença (o emprego, a casa e o carro), tal informante não a
julga indicativa de uma distinção de fato. No seu discurso, os elementos que indicariam uma
distinção entre os de “cima” e os de “baixo” são minimizados com o uso de diminutivos
(empreguinho, carrinho, casinha), o que lhe permite representá-los como iguais.(é todo mundo
achatado).
Entre os de “cima”, é raro quem tenha emprego fixo. Esse informante, por exemplo,
trabalhava num jornal onde não era assistido por qualquer direito trabalhista. Na ocasião dessa
nossa conversa, estava há quatro meses sem receber salário. Outros moradores dessa região têm
uma “pontinha” em algum projeto ou órgão da Prefeitura, mas nem sempre podem contar com
esse dinheiro no orçamento, já que ocorrem, com certa freqüência, atrasos no pagamento.
129
Ali, a aposentadoria de um parente idoso é, muitas vezes, o esteio da casa. Numa das
tardes que passei fazendo trabalho de campo entre os de “cima”, diante da notícia de falecimento
de uma senhora, moradora dessa região, um dos presentes fez o seguinte comentário:: “-Ih!
Quebraram as pernas deles, porque naquela casa eles vivem de duas aposentadorias: essa foi, a
outra [a mãe da falecida] não vai custar ir embora [morrer] também. Agora vai ficar ruim pra
eles”.
Nessa região como definiu uma informante, “quem não é ambulante, vende droga”. Com
relação à moradia, é raro possuir casa própria: uns moram em quartos ou compartimentos de
casarões, outros vivem muitos anos em imóveis pertencentes a proprietários que, muito
tempo, mudaram-se dali. Mas, apesar de haver certa diferença no padrão sócio-econômico das
duas regiões, os de “cima”, normalmente, acionam categorias de classificação para suavizá-la, ou
negá-la.
Raquel, moradora da 28 de julho também argumenta que a fronteira não se funda nem se
reproduz a partir de diferenças reais entre os moradores de “cima e do “Desterro”. Na sua
opinião sua construção e reprodução seriam elaboradas tendo como referência o espaço físico
onde os moradores se encontram: a di-visão ocorreria a partir da localização espacial e não pelo
comportamento ou perfil:
-Aqui existe uma divisão, sempre existiu e sempre vai existir, porque aqui são duas
regiões. E a divisão não é feita por causa do comportamento das pessoas, é uma divisão
de espaço, porque aqui todo mundo é igual. O pessoal do Desterro quer ser diferente,
mas são tudo igual à gente. Eles trabalham, eu também trabalho, eles recebem salário, eu
também recebo.
Ao comentar as impressões de Seu Manoel, que iguala os membros das duas regiões na
“classe dos achatados”, com Marta
131
, moradora da região do “Desterro”, pareceu comungar da
mesma opinião, apontando que há uma diferença insignificante, que se faz significativa nas
representações acionadas pelos moradores de ambas as regiões: “Aqui é todo mundo pobre,
ninguém tem lá essas coisas não E quem tinha dinheiro já foi embora daqui há algum tempo. E se
tiver alguma distinção é em relação a estudo. Os pais [da região de “baixo”] normalmente
incentivavam os estudos dos filhos, mas uns estudaram em escola blica, outros em escola
131
Por falar, também, do lugar de pesquisadora, Marta consegue ter certo distanciamento das representações dos
moradores de “cima” e de “baixo”.
130
particular.” E continuou, apontando para a construção social da diferença: É a velha coisa de se
ter um pouquinho a mais; uma coisa mínima pode se tornar uma diferença enorme.”
Entre os moradores da região do “Desterro” figuraram funcionários públicos, professores,
comerciários, enfim, pessoas que possuem um emprego estável que lhes garante rendimentos
modestos. Entre os que possuem casa própria, não se encontram patrimônios imponentes
132
; as
casas desse espaço físico são, na sua maioria, porta e janela e meia morada.
133
Mas, por outro
lado, pessoas de renda muito baixa, que vivem de aluguel ou “de favor” em casas de outrem,
também constam entre os moradores dessa região.
Durante a oficina de fotografia do Projeto Viver o Desterro também me foi possível, a
partir da observação direta das crianças, interpretar que não um perfil homogêneo do ponto de
vista sócio-econômico dos moradores das duas regiões. Entre algumas crianças de “baixo”
percebi, tanto como nas de “cima”, indícios de uma condição sócio-econômica precária. Algumas
crianças de baixo” diziam, por exemplo, que freqüentavam mais a Igreja do Desterro durante o
mês de maio “quando tem reza, porque tem bolo quando a reza acaba”. Depois de encerradas as
atividades da oficina eu perguntava corriqueiramente aos alunos, quando os encontrava nos
eventos realizados no “bairro” do Desterro, se eles estavam sentindo falta da oficina. Ao que eles
normalmente respondiam: “estamos, principalmente da merenda”.
Como apontou Aroldo, morador de “baixo”, o mecanismo de invenção da diferença não
se funda numa diferença real. Na fala desse informante, que representa os de “cima” como
preconceituosos consigo mesmo, as meninas de “baixo” não seriam patricinhas, como as
representavam os meninos de “cima”. Como disse a esses últimos: “elas são tudo pobre que nem
vocês”.
Assim, em alguns momentos, moradores de “cima” e de “baixo” afirmam que o princípio
de divisão que estabelece uma descontinuidade numa continuidade natural, instituindo regiões,
reconhecidas ou não por eles, é antes produtora de uma diferença do que produto desta.
132
Refiro-me a sobrados e moradas inteiras (casas térreas que se caracterizam por apresentarem na fachada uma
porta central com duas janelas de cada lado)
133
Casas térreas com uma porta e uma janela e uma porta e duas janelas respectivamente na fachada. São,
normalmente, imóveis com menores dimensões e menos valorizados que os sobrados e moradas inteiras.
131
3.4.2 “Aqui teve cabaré, lá também teve”
A prostituição é um outro elemento em torno do qual os de “cima” afirmam a invenção da
diferença por parte dos de “baixo”. Novamente a questão do espaço físico é apontada como foco
irradiador de critérios de classificação. Alguns informantes enfatizam nos seus discursos o fato da
prostituição ser, tanto na atualidade, como no passado, uma prática comum às duas regiões.
Como afirma Juca: “aqui teve cabaré, lá também teve. E foi lá que começaram os cabarés, não foi
nem aqui”. Sua esposa Raquel, também frisa tal semelhança, narrando que, desde sua infância,
garotas da região do “Desterro” faziam “ponto” nas praças da cidade e aponta que, até hoje,
existem prostitutas “do lado de lá”, “mas como elas são [da região] do “Desterro”, ‘eles’ fazem
de conta que não vêem”.
Assim reitera o argumento de que a fronteira é instituída e reproduzida muito mais a
partir do espaço físico do que das práticas dos moradores, afirmando que o princípio de divisão
das regiões “é uma questão de hipocrisia. Eu, sendo filha de prostituta se morasse [na região
do “Desterro”] como moram muitas, ninguém dizia nada, mas como eu moro na 28 de julho...”
A referência ao tráfico e ao uso de drogas também é representada pelos de “cima” como
uma atribuição dos de “baixo”, fundada no argumento de que seriam produto do meio, como se
pode ilustrar nesse discurso de Das Dores:
Assim...[os de “baixo”dizem] Ah! no Desterro os adolescentes não usam drogas, os
adolescentes que usam drogas são os adolescentes da Rua da Palma, da 28... Então, quer
dizer, por quê? Eu já vivenciei uma pessoa falar que é: -Ah o Desterro não tem rapaz que
usa droga, é na Rua da Palma [que tem]! Ah, mas também, eles são de lá!(entrevista
realizada em julho de 2004, grifos meu)
Contra-atacando essa representação dos de “baixo”, Seu Manoel se refere a Michele,
traficante e estelionatário que teria vivido entre os de “baixo”:
Tinha muita gente que hoje eu vejo que é [não se mistura] com a gente de cima que vivia
misturada com ele lá. Ele alugou até uma casa lá embaixo na rua Rio de Janeiro. E ele
dava show: promovia novenas pra Nossa Senhora de Fátima e gente importante ia pra lá,
pra tomar café, rezar, tinha a procissão.e ele era o chefe, ele que bancava tudo. E eles
ficavam mudo e surdo pra esse lado [o tráfico] É a dupla moral, né. (entrevista realizada
em novembro de 2004)
Assim, para os de “cima” a única forma de tornar inteligíveis as classificações acionadas
pelos de “baixoem relação a si, seria considerando-os “hipócritas” e portadores de “dupla
132
moral”. Entendendo que práticas negativas -prostituição e tráfico- atribuídas, pelos de “baixo”,
como exclusivas da região de “cima”, também ocorrem naquele espaço, mas “eles ficam mudo
e surdo pra esse lado”.
3.4.3 “Que história que o Desterro tem?”
Embora em situações extraordinárias, como durante o II Seminário, os de “cima” e os de
“baixo” se reconheçam como nós, dizendo a uma voz: s somos patrimônio”, esses
“azulejos do Centro Histórico” disputam, ordinariamente, o atributo da memória/valor histórico
legítimos. Os de “cima” que se auto definem como “figuras principais” e como portadores de
uma memória legítima da ZBM, representam-na como a “verdadeira história do Centro
Histórico”, que ainda “não foi contada e que deve ser resgatada como um todo”. Baseados nesse
argumento atribuem para si uma diferença em relação aos de “baixo”: a de serem testemunhas da
história da região Centro Histórico.
Em relação a esse critério, os de “cima” se representam como estabelecidos em relação
aos de “baixo”, que classificam como outsiders.Tal representação pode ser ilustrada na fala de
Juca: “O que que esse povo do Desterro quer ser? Eles não viram história nenhuma. Esse pessoal
que mora lá, nem é daqui [de São Luís], são tudo de fora, vieram tudo do interior, chegaram
depois”. Das Dores reitera essa classificação afirmando que aqueles dentre os de “baixo” que
tinha alguma história muito teriam ido embora dessa região : Que história que o Desterro
tem? Tem poeta, jogador de futebol, que fizeram nascer lá e depois foram embora. O Desterro
não é nada. O Desterro são só duas ruas, gente”.
Negando a diferença entre as duas regiões, os de “cima” atribuem a construção de
fronteiras a uma di-visão de espaço físico; não haveria uma fronteira social mas uma fronteira
física. Para os de “cima” a reprodução das fronteiras se efetiva através da negação de uma
fronteira social, o que lhes faz construí-las ao classificar os de “baixo” a partir dos atributos da
falsidade e da aparência.
Talvez poder-se-ia sintetizar tal representação da fronteira na bricolagem da fala de dois
moradores de “cima”: “o Desterro é a ‘porra’ elitizada”, mas “essa ‘porra’ é tudo uma ‘merda’
só.”
133
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Busquei, com angústia e afinco, traçar em linhas retas as curvas de um movimento, como
um fotógrafo que teimasse em captar numa fotografia plana o zigue-zague dos ventos e (quiçá!)
seus ruídos. Este texto é, pois, o resultado possível de um esforço profícuo e vão de traduzir em
palavras um momento do movimento de identificação em curso entre moradores do que designo
região Centro Histórico. Quando o leitor captar os zigue zagues e ruídos desses ventos que
correm e soam em múltiplas direções e tons, essa fotografia por mim construda será apenas um
instante ido congelado.
Meus próprios olhos de ver, se se voltassem novamente para esse universo social, dele
fariam, decerto, um outro retrato, onde o vento talvez já não corresse mais em direção ao poente e
seus ruídos fizessem-se mais agudos do que nesse registro distante. Sei que fotografei um
instante de um movimento do qual aprendi muito, mas muito pouco. Como “boa observadora”
hoje o conheço melhor, mas ainda desconheço muitos dos seus passos e ritmos ainda em
mutação. Como aponta Condrigton (apud CLIFFORD,1998,p.227): “Quando um europeu vive
dois ou três anos entre os selvagens, ele está totalmente convencido que sabe tudo sobre eles;
quando fica dez anos, ou quase, entre eles, se for um homem observador, ele vai achar que sabe
muito pouco e sim ele vai começando a aprender”. Fotografei, pois, um país estrangeiro,
não mais tão estranho, nem tampouco translúcido.
Para elaborar essa fotografia, tomei como objeto o próprio movimento de construção do
objeto. Inicialmente construí três regiões -a de “cima” e a de “baixo”e a interdita- colocando uma
pergunta que não deve ser posta de forma binária: existe uma fronteira entre os de “cima” e os de
“baixo” e entre os de “cima” e os da região interdita? Eles se reconhecem como nós ou como
eles? O adensamento da incursão em campo e a utilização do conceito de fronteira (HALL, 2003)
como “lugar de passagem” possibilitou-me investigar um movimento de identificação onde os
atores se fazem outros ou mesmos a partir das relações travadas entre si.
Mapeando os critérios de classificação acionados por moradores dessas regiões, constatei
a necessidade de construir uma outra região: a Centro Histórico, onde esses diversos atores
encontram-se em comunhão de interesses e/ou em disputas constantes, reconhecendo-se ora
como outros ora como mesmos.
134
O ser patrimônio”, “ser morador do Centro Histórico” parece ser o critério em torno do
qual esses diversos atores se reconhecem como pertencentes a uma única região: a Centro
Histórico. Embora lideranças e alguns moradores afirmem a rasa difusão desse critério de
classificação entre os moradores dessa região, em situações extraordinárias
134
, quando utilizado
como estratégia de reivindicação política, tal critério é acionado.
Mas esse mesmo critério que une moradores na região Centro Histórico, pode dividi-los
novamente, como quando, por exemplo, disputas pelo atributo do valor histórico/ memória
legítima entre as regiões. Com o mesmo esmero com que os da região de “cima” descrevem a
ZBM afirmando ser “figura principal” por ter vivenciado sua história, os da região de “baixo”
falam o nome e o sobrenome de alguém importante que tenha vivido em seu território, auto
atribuindo-se a autoridade de conhecerem a história da região Centro Histórico.
É como se esses “azulejos do Centro Históricose classificassem em azulejo colonial
português e réplicas, quando as regiões de “cima” e de “baixo” disputam o ser patrimônio”.
Mesmo representando o outro como original ou réplica, estes “azulejos” (os de “cima” e os de
“baixo”) ainda se atribuem algum valor (“ser morador antigo”). Um terceiro critério de
classificação, porém, parece ser acionado: o que designo como cerâmicas baratas, aqueles que
são categorizados como “gente de fora”, “penetras”, “traficantes”, “ladrões”, “marginais”. Estes
são representados, muitas vezes, como peças que “enfeiam”, “sujam” e empestam” o nome da
região Centro Histórico.
Para alguns moradores de “baixo”, essas cerâmicas baratas estão por toda a região de
“cima”; para outros, eles se restringem à região interdita, e para outros ainda, elas não são tão
feias e nocivas. Os de “cima” normalmente atribuem esses critérios negativos aos da interdita,
reconhecendo-os como outros, ainda que em outros momentos os reconheçam como mesmos.
Acionando diversos critérios de classificação, os de baixo”, os de “cima e os da
interdita, ora se reconhecem como mesmos, ora como outros. Por vezes, “Tudo é Desterro” e
uma região Centro Histórico se constrói, desconstruindo, ainda que em situações extraordinárias,
as fronteiras que separam essas três regiões. Nas situações ordinárias, normalmente, estas
fronteiras se reforçam e esses moradores se reconhecem como outros.
134
Como durante o II Seminário de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Desterro, Portinho e Praia Grande e
no incidente da morte de uma moradora por choque elétrico num poste do Centro Histórico analisados no tópico 3.1
135
Deixo ao leitor, portanto, uma questão: Tudo é Desterro? Na minha interpretação a
resposta vagueia entre o sim e o não, no movimento de construção e desconstrução de regiões, na
disputa de se afirmar o poder de ser Centro Histórico.
136
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138
ANEXOS
139
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Lapa
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Convento
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Região do Desterro
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