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espaço familiar
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, sobre o qual tinha certo grau de conhecimento, já que costumava andar pelas
suas ruas nas minhas atividades de estudo, trabalho e lazer, o “balança mas não cai” era o
inquietante exótico encravado no seio do familiar. Meu, hoje, moribundo anteprojeto de pesquisa,
elaborado após um ano de distanciamento dessa experiência, me obrigaria a realizar uma árdua
tarefa: a de “transformar o exótico em familiar”.(DA MATTA, 1984, p.157)
Em janeiro de 2004, voltei ao “balança mais não cai” na companhia de Igor, um
amigo/informante
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. Igor costumava freqüentá-lo, principalmente para comprar “fumo”. Até
poucos dias antes da nossa visita, havia uma “boca de fumo
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” nesse prédio, desativada com a
prisão de ‘N’, traficante que ali morava/trabalhava. A notícia da prisão de ‘N’ me deixou um
pouco mais tranqüila, pois sem o tráfico a entrada no “casarão”
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poderia ser menos complicada.
Encontrei com Igor no casarão/cortiço em que ele morava e conversamos um pouco
sobre minha pesquisa. Ele me fazia a pergunta clássica (e desconcertante): “-O que é que tu quer
mesmo saber?” E eu ia tentando explicar o que nem eu mesma sabia. Ele, enquanto “bolava um
baseado”
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, ia me ouvindo falar de algumas das decisões que precisava tomar. Na época, as
decisões eram questões do tipo: estudar em um único casarão/cortiço
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(o que poderia
possibilitar analisar mais profundamente um microcosmo), ou estudar em vários
casarões/cortiços (o que talvez pudesse dar uma visão mais abrangente desse universo)? Ele
colocou a questão dessa forma:
Só aquele casarão dá um trabalho ‘loôco’ [leia-se bom]. Aquilo ali é surreal. O quintal
[pátio interno], as paredes, tudo é cheio de limo. Nego tá tomando banho e os ratos tão
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Segundo Velho (1981, p.126), “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente
conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto conhecido”. Com o “balança mas
não cai”, eu tinha uma certa familiaridade- já tinha passado várias vezes em frente ao prédio, provavelmente já tinha
cruzado com alguns de seus moradores que vigiam carros, dançam tambor de crioula, trabalham como ambulantes ou
“filam” cigarros nos bares do Reviver- a qual, no entanto, não me permitia naquela experiência transcender a
estupefação do desconhecimento de um mundo familiar, porém exótico.
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Igor, amigo/informante (e não informante/amigo, pois é alguém com quem eu já tinha algum contato antes de
adentrar no campo) é um dos muitos artistas populares -ele é músico, artesão e ator- que mora, produz e vende arte
no bairro da Praia Grande. Como muitos deles, “só anda duro” e mora no Centro Histórico onde “se vira”. Quando
desta visita, morava num casarão, também situado na rua de Nazaré, onde se alugavam quartos (com valores entre 50
e 100 reais, dependendo de variáveis como tamanho, ventilação, vista etc.) para artistas que não têm comprovante de
renda, nem fiador.
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Boca de fumo designa local de tráfico de entorpecentes.
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Categoria utilizada pelos moradores para referir-se ao que conceituo como casarão/cortiço
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Cigarro de maconha
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Embora o processo de construção do objeto de pesquisa ainda estivesse dando seus primeiros lentos e trôpegos
passos, já havia uma clareza de que o(s) ‘cortiço(s) eram área e não objeto de estudo, pois, como já apontou
GEERTZ (1989, p.16), “O locus de estudo não é o objeto de estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos,
cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias”.