ditadura franquista segundo uma interpretação figural. Estudado por Erich Auerbach,
em relação à Idade Média cristã, a interpretação figural é o modo patrístico e
escolástico de definir e orientar cristãmente o sentido do tempo na experiência
histórica. A figura é, basicamente, a relação, especular e substancial, estabelecida
entre homens, coisas e eventos do Antigo e do Novo Testamentos; “algo real e
histórico que anuncia alguma outra coisa que também é real e histórica. A revelação
entre os dois eventos é revelado por um acordo ou similiaridade.”
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Dessa maneira,
as pessoas e fatos do Velho Testamento são prefigurações do Novo Testamento,
como Moisés é uma prefiguração e Cristo seu preenchimento. Os acontecimentos
não apenas se remetem um ao outro, mas também à promessa do fim dos tempos e
do verdadeiro reino de Deus, que, de acorodo com a doutrina cristã, sempre existiu
e sempre existirá.
A construção temporal do livro de 1959 corresponde a um deslocamento
geográfico, figurando determinados espaços como palcos de determinados tempos.
Ratifica a íntima associação tempo-espaço também em Espaço espanhol, no qual
não apenas descreve cidades, mas também constrói seus tempos. Em mais de uma
passagem é evidente sua preocupação com a alteração de uma ordem antiga para
dar lugar à modernidade do século XX
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, quando, final da década de 60, a Espanha
já abandonava seu caráter predominantemente rural. Nesse aspecto, concorda com
João Cabral, citando o poema “Sevilha” de Quaderna
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: “Deduzimos portanto que
Sevilha é feita à medida humana; esse texto implica uma censura ao gigantismo de
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AUERBACH, Erich. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 27. Murilo
Marcondes Moura, para a leitura de “Janela do caos” de Poesia liberdade, valeu-se da noção de
figura desenvolvida por Auerbach (“História: figura da eternidade” In Murilo Mendes. A poesia como
totalidade. Op. cit., p. 170-172).
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“Ainda existirão espanhóis dentro dos arranha-céus?” (Madrid, PCP, 1126); “(...) O caráter da
antiga Ávila ‘mística e tradicional, honesta e dura’, custará talvez a se adaptar aos hábitos dos últimos
invasores: o técnico e o capitão de indústria” (Ávila, PCP, 1139); “(...) Depois regresso às margens do
Pisuerga; debruço-me no parapeito; e, pisuergando, auguro para os homens a impossível
mansedumbre que subsiste na água barrenta de um rio castelhano a exorcizar os poderes mecânicos
do século.” (Valladolid, PCP, 1148); “(...) O processo de modernização demorou um pouco mas já
está se implantando aqui. Perto do Palácio de los Momos, de tão singular fantasia, com suas janelas
em ajimez, instalaram um posto de gasolina; muitas lojas do centro se americanizaram. O fim do
mundo virá por efeito de bombas americanas ou chinesas? De qualquer modo, não por bombas
espanholas.” (Zamora, PCP, 1152); “(...) Cada vez que volto aqui pergunto-me preocupado se esta
gente conservará seu caráter específico mesmo depois de tantos anos de governo ditatorial, de
americanização e de rápida industrialização. Naturalmente muitos hábitos estão-se modificando,
assim será cada vez mais: de qualquer modo creio que os traços característicos da psique espanhola
permanecerão apesar das fortes pressões internas e externas.” (Salamanca, PCP, 1155); “(...) ponho-
me a congeminar o que será o futuro da terra palentina; por exemplo, se a forma desses campos,
dado o avanço da urbanização espanhola, subsistirá no dia de amanhã; é mais provável que segundo
a metáfora bíblica, seja logo mudada como um vestuário.” (Palencia, PCP, 1157).
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V. Capítulo 5.