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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
A CULTURA DOS CAMPONESES SEM TERRA E A ORGANIZAÇÃO DO
TERRITÓRIO DOS ASSENTAMENTOS
SENIRA BELEDELLI
ORIENTADORA: PROFa. DRa. ROSA MARIA VIEIRA MEDEIROS
PORTO ALEGRE, AGOSTO DE 2005.
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
A CULTURA DOS CAMPONESES SEM TERRA E A ORGANIZAÇÃO DO
TERRITÓRIO DOS ASSENTAMENTOS
SENIRA BELEDELLI
Orientadora: Profa. Dra. Rosa Maria Vieira Medeiros
Banca Examinadora: Prof. Dr. Álvaro L. Heidrich – UFRGS
Prof. Dr. Ariovaldo U. Oliveira - USP
Prof. Dr Luis Fernando M. Fontoura - UFRGS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Geografia
como requisito para obtenção do Título de
Mestre em Geografia
Porto Alegre, agosto de 2005.
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Beledelli, Senira
A Cultura dos camponeses sem terra e a organização do território dos
assentamentos. / Senira Beledelli - Porto Alegre : UFRGS, 2005.
[137 f.] il.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Instituto de Geociências. Programa de Pós-Graduação em Geografia,
Porto Alegre, RS - BR, 2005.
1. Geografia. 2. Territorialidade. 3. Assentamento. 4. Camponeses. 5.
Movimento Social. I. Título.
CDU 911.3:63
_____________________________
Catalogação na Publicação
Biblioteca Geociências - UFRGS
Renata Cristina Grun CRB10/1113
DEDICATÓRIA
Ao meu filho Ramoim, que continua a me ensinar e a me desafiar todos os dias
a cuidar do saber em beneficio da humanidade. Seus questionamentos e atitudes diante da
vida são exemplos para acreditarmos num mundo mais justo. Minha eterna gratidão e
profundo amor.
A minha querida e amada mãe Tereza, que me ensinou a nunca desistir, a
sempre olhar para frente, exemplo de guerreira. Meu coração está com você. Ao meu pai
Severino, agradeço por me desafiar a enfrentar o mundo do trabalho com tanta dedicação.
AGRADECIMENTOS
Ao Universo Cósmico, que nos permite viver num espaço e num planeta terra e
que nos ensina e nos desafia a cuidar com muito amor de todas as suas criaturas, para que
juntos busquemos o equilíbrio deste Universo, tão grande é tão belo.
A minha família, que soube compreender este momento de minha vida; por
todas as ajudas, especialmente as minhas duas irmãs amadas, Sílvia e Salete, obrigada por
sempre me oferecer seu colo.
Ao Marco Antonio, meu companheiro, que entrou em minha vida durante o
mestrado, obrigada por me ouvir e me apoiar e pelo incentivo nos momentos mais difíceis;
você tem meu amor. Aqui esta uma parte de nosso sonho. Victórya, enteada e nova filha,
agradeço por ter compreendido muitas vezes a minha falta de tempo para você.
A todos os amigos e amigas, que me ouviram, me incentivaram a seguir e
conquistar este momento, com certeza a presença de vocês em minha vida foi fundamental e
continuará sendo. Sou eternamente grata.
A todas as minhas irmãs de caminhada da Tenda do Círculo Feminino de Cura,
obrigada por acreditarem em mim e compreenderem os meus momentos de angústia. Heloiza,
obrigada pela luz e pelo seu exemplo nas decisões.
À grande e amada lutadora família Sem Terra, que me acolhe e me ensinou a
aprender em todos os instantes em que estivemos juntos. A todas as famílias do Assentamento
Trinta de Maio e Dezenove de Setembro, pela acolhida muito generosa e dedicação de tempo
para que eu realizasse a pesquisa. São exemplos de garra, determinação e firmeza na
conquista de um mundo justo e solidário.
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ao Programa de
Pós-Graduação em Geografia, pela oportunidade que tive de buscar o conhecimento e
compartilhar muitos saberes com todos os colegas e professores da Universidade. Também
agradeço pelo privilégio de estudar em uma Universidade Pública de qualidade, já que neste
país são poucas as pessoas que têm acesso ao ensino superior gratuito.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pelo apoio financeiro concedido através de Bolsa de estudos.
A minha orientadora, Professora Dra. Rosa Maria Vieira Medeiros, que
compartilhou comigo todos estes momentos do período do mestrado, pelo incentivo, apoio,
por ser interlocutora do meu trabalho mostrando sempre o caminho a trilhar, e também por
lutar e compreender a questão da Reforma Agrária. A você minha gratidão e amizade.
Ao Professor Dr. Nelson Rego, por me incentivar na escrita de artigos e suas
publicações, sempre reconhecendo as capacidades que cada um tem. Ao Professor Dr. Álvaro
Heidrich, por me ouvir e acreditar na superação dos meus limites, pelo seu exemplo de
disciplina intelectual aplicada ao cotidiano, e pelo apoio na participação dos eventos da
Universidade.
À secretária do Programa de Pós-graduação em Geografia, Sra. Zélia Zaghetto,
por se dispor a fazer a revisão dos originais, e também por sempre nos acolher nas questões de
encaminhamentos legais junto ao curso.
Especialmente, ao amigo de todas as horas que conheci no dia 28/03/2001,
quando cursei uma disciplina no Programa de Pós-graduação em Geografia como aluna
especial: a você, Jaime Fogaça, obrigada por sempre dialogar o caminho a seguir, fazer os
questionamentos necessários e, às vezes, doloridos e também por me ouvir. Minha verdadeira
amizade sempre.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS 10
LISTA DE FOTOS 11
LISTA DE ABREVIATURAS 12
RESUMO 13
ABSTRACT 14
INTRODUÇÃO 15
1 O ESPAÇO AGRÁRIO BRASILEIRO E A FORMAÇÃO DO MST 20
2 ASSENTAMENTOS: COMPREENDENDO SUA HISTÓRIA 34
2.1 Compreendendo o porquê da pesquisa 34
2.2 Localizando e conhecendo os Assentamentos 42
3 APROFUNDANDO CONCEITOS 50
3.1 Contribuição com alguns teóricos 50
3.2 O significado de um assentamento do MST 68
4 ORGANIZAÇÃO DOS ASSENTAMENTOS E A INTERFERÊNCIA
CULTURAL: O CASO DOS ASSENTAMENTOS TRINTA DE MAIO E
DEZENOVE DE SETEMBRO
78
4.1 Cultura, organização e identidade dos assentamentos 78
4.2 Convívio no assentamento 88
4.3 A cultura na organização da produção 96
4.4 A cultura na organização do trabalho 107
4.5 A cultura e o lazer 111
4.6 A nova organização da paisagem 116
4.7 A influência da vida urbana nos assentamentos 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS – DESAFIOS 129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 135
ANEXOS 138
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1
MAPA DO BRASIL: ESTADOS BRASILEIROS COM
TERRITÓRIO DEMARCADO PELOS ASSENTAMENTOS
30
FIGURA 2
MAPA DO RS: OS MUNICÍPIOS COM ASSENTAMENTOS 33
FIGURA 3
MAPA DOS ASSENTAMENTOS DA GRANDE PORTO
ALEGRE
43
FIGURA 4
MAPA DO ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO –
MUNICÍPIO DE CHARQUEADAS/RS.
45
LISTA DE FOTOS
FOTO 1
ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO - ALGUNS ASPECTOS DA
INFRA-ESTRUTURA: SALA DE ORDENHA
101
FOTO 2
ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO - ALGUNS ASPECTOS DA
INFRA-ESTRUTURA: SILO.
101
FOTO 3
PRODUÇÃO DA HORTA, COPAC. (ASSENTAMENTO TRINTA DE
MAIO).
108
FOTO 4
PRODUÇÃO DE ARROZ, HORTA, AÇUDES. (ASSENTAMENTO
DEZENOVE DE SETEMBRO).
111
FOTO 5
CENTRO COMUNITÁRIO.(ASSENTAMENTO TRINTA DE
MAIO).
113
FOTO 6
ESCOLA (ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO)
113
FOTO 7
ESPAÇO DA AGROVILA, COPAC. (ASSENTAMENTO TRINTA
DE MAIO)
117
FOTO 8
DIFERENTES REALIDADES NO ASPECTO MORADIA
(ASSENTAMENTO DEZENOVE DE SETEMBRO).
118
FOTO 9
ASPECTO DA PAISAGEM DO ASSENTAMENTO TRINTA DE
MAIO
120
FOTO 10.
ESTUDANTES E MORADORES NA PARADA DE ÔNIBUS PARA
DESLOCAMENTO ATÉ A SEDE DO MUNICÍPIO
DECHARQUEADAS.(ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO).
125
FOTO 11. SUPERMERCADO DA COOPERATIVA – COPAC,
(ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO – SEDE DO
MUNICÍPIO DE CHARQUEADAS/RS)
127
LISTA DE ABREVIATURAS
Plano Nacional de Reforma Agrária I PNRA
União Democrática Ruralista UDR
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a
Alimentação
FAO
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST
Central das Cooperativas de Reforma Agrária do Rio
Grande do Sul
COCEARGS
Cooperativa de Produção Agropecuária de Charqueadas COPAC
Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul IPE
II Plano Nacional de Reforma Agrária II PNRA
RESUMO
A presente pesquisa desenvolve uma abordagem sobre a interferência cultural dos
camponeses Sem Terra no momento de organizar o seu novo espaço: o Assentamento de
Reforma Agrária. Nesse caso, o Assentamento Trinta de Maio, localizado no município de
Charqueadas, e o Assentamento Dezenove de Setembro, localizado no município de Guaíba,
região da Grande Porto Alegre, ambos no RS. As famílias assentadas passam por um
processo de reconhecimento desta nova área de terra e através dele vão construindo o seu
mais novo território, o Assentamento. Ao desencadearem este processo, vivem momentos de
conflitos internos na dimensão do que já conheciam em suas vidas, ou seja, a sua raiz
histórica e o que se apresenta de novo diante deste lugar. O lugar chamado de Assentamento
é totalmente desconhecido, porque essas famílias viviam em outras regiões com produção
agrícola, culturas, modo de vida, clima e solo diferentes. Essa nova realidade entra em
choque com a cultura que até então possuíam. Nesse momento, precisam adquirir novos
conhecimentos tanto sobre a região que passam a ocupar, como também sobre as diferentes
famílias que compartilharão esse mesmo assentamento. Os desafios surgem diante desse
espaço que precisam organizar para sobreviver e também construir uma reforma agrária
conjuntamente com sua organização social que é o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). Esses desafios, ou seja, a nova região geográfica, o conhecimento dos
costumes das famílias, a política de organização dos assentamentos construída pelo MST,
entram, muitas vezes, em contradição com o que cada família individualmente sonhava no
momento de conquista de seu pedaço de chão. Essa será a grande temática de estudo nessa
pesquisa.
Palavras-chave: Território, territorialização, identidade, cultura, espaço, assentamento,
camponeses, famílias sem terra, movimento social.
ABSTRACT
This work undertakes a study of the cultural interference on Brazilian landless rural workers,
known as Sem Terra, at the time of organizing their new space, the Land Reform Settlement.
In this case, the Trinta de Maio Settlement, found in the municipality of Charqueadas and the
Dezenove de Setembro Settlement, localized in the Guaíba municipality, both municipalities
pertaining to the Greater Metropolitan Area of Porto Alegre. The settled families go through
a process of recognizing their new land, building their new territory, thus, the Settlement. At
undertaking this process, these people experience personal conflicts, the dimension being
what knowledge they have acquired during their lives, in other words, their historical roots
and what such a new place represents. Contrasting with all their knowledge, the Settlement is
totally unknown to these new owners. These people come from different cultures, production
regions, climates and soils. This reality demands knowing the new region. The challenge
comes from facing these new spaces, which need to be organized to ensure survival, in this
way, building the agrarian reform, with its social organization - the landless rural workers
movement known as Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). The
challenges of a new geographic region come from the melting pot of family customs where
frequently, the individual family dreamt expectations, winning their own piece of land,
contradict with MST built settlement organization policies.
Keywords: territory, territorialization, identity, culture, space, settlements, rural workers,
Sem Terra, social movements
INTRODUÇÃO
Colocar em pesquisa e estudo o tema da reforma agrária no Brasil tem sido um
dos grandes desafios do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de todas as
organizações, instituições, enfim de todos os que apóiam a reforma agrária, mesmo já
passados vinte e um anos desde a oficialização do movimento como tal. Mas esta questão
continua tão polêmica que, embora este país já tenha quinhentos e cinco anos de história, o
assunto permanece sendo mais atual do que em outros momentos.
Podemos dizer que no Brasil, até o momento, existe um processo de
implementação de Assentamentos e não de Reforma Agrária, justa e digna para os
trabalhadores do campo ou para os que foram excluídos do campo brasileiro. Os estudos até
agora realizados demonstram que a pequena propriedade gera mais alimento e emprego,
beneficiando, assim, a população do campo e da cidade. Mas parece que os detentores do
poder da economia do latifúndio não querem realizar a reforma agrária, porque os privilégios
de uma pequena minoria com certeza não existiriam mais.
O Movimento Sem Terra vem estruturando neste país assentamentos de
reforma agrária, onde já produzem muita alimentação para o povo brasileiro, e estabelecendo
16
relações internacionais com outros paises, mostrando a viabilidade social, política,
econômica, cultural destes assentamentos. Também aglutinando forças com a sociedade para
a realização plena da reforma agrária.
A pesquisa realizada nos assentamentos me permitiu estudar, aprofundar
questões muito amplas no que se refere ao tema da cultura e sua relação com esse espaço
geográfico. Coloquei como centralidade no processo da pesquisa a interferência cultural dos
camponeses na organização do espaço dos assentamentos de reforma agrária do MST. O
Assentamento Dezenove de Setembro, no município de Guaíba, e o Assentamento Trinta de
Maio, no município de Charqueadas, na região da Grande Porto Alegre, no Estado do Rio
Grande do Sul (RS), foram os escolhidos para o estudo de caso.
Ao desenvolver o trabalho, no primeiro capítulo, fiz uma sucinta introdução
sobre a história da luta pela terra no Brasil, desde os anos de 1500, a primeira divisão de terras
no Brasil, as sesmarias, a lei de terras, o Estatuto da Terra, os movimentos que foram criados
ao longo desta história em defesa dos trabalhadores do campo. Também como aconteceu o
surgimento do MST no Brasil e, mais especificamente, no RS, por ser o Estado onde
desenvolvi a pesquisa. A situação atual na concentração do latifúndio também está analisada.
No segundo capítulo, discorro sobre o processo metodológico da pesquisa de
campo nos assentamentos, que consistiu, em um primeiro momento, na identificação das
famílias, no conhecimento das áreas e em uma prévia familiarização com o ambiente a ser
pesquisado. Em um segundo momento, realizei todo o processo das entrevistas, o que me
permitiu uma oportunidade maior de estada nos assentamentos para conhecer mais
17
profundamente o espaço dos mesmos e também estabelecer um vinculo mais forte com as
comunidades. Nesse contexto, a experiência foi ímpar.
Também, no segundo capítulo, apresento a localização dos assentamentos,
quem são as famílias que ali vivem, a região de onde procedem, o vinculo com suas etnias,
seu contexto político-social, econômico e familiar.
Ao desenvolver o terceiro capítulo, procuro o embasamento teórico das
questões a serem trabalhadas na pesquisa no que se referem ao campo da Geografia, ou seja, o
espaço, o território, a territorialidade, a identidade, a cultura, a paisagem.
Ao abordar a questão do espaço, desenvolvo a relação existente entre a ação do
ser humano no mesmo e como estas transformações vão acontecendo no âmbito dos
assentamentos do MST e as decorrentes modificações das paisagens. A ação dos sujeitos
neste espaço, que aos poucos vai sendo territorializado, vai contrapondo um modelo já
institucionalizado pela sociedade capitalista que tem como objetivo o uso do espaço para
definir territórios de poder e exploração.
A cultura que cada camponês traz para o elemento assentamento é algo que
vem de gerações e que, neste momento, se entrecruza com outras culturas e também com
propostas de uma nova concepção de vida e costumes, jeitos que vão aparecendo diante deste
desafio que é o de constituir um território na concepção de um movimento social.
No terceiro capítulo, também desenvolvo a dimensão do que é um
assentamento de Reforma Agrária, tanto a partir de abordagens teóricas na concepção do
18
MST, como da perspectiva das famílias assentadas e do próprio Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
Entretanto, foram várias as contribuições teóricas que me fizeram embasar as
questões da pesquisa e explicitar principalmente o que as famílias assentadas pensam e
buscam construir neste período que estão vivendo e como pretendem deixar a terra que
receberam para os descendentes.
Ao desenvolver o quarto capítulo, que considero o mais importante da
pesquisa, uma vez que nele são analisadas as entrevistas com os elementos teóricos do
capítulo anterior, sob a perspectiva de como os camponeses organizam o espaço geográfico
do assentamento, o seu cotidiano a partir do que eles consideram importante para as suas
vidas, os seus costumes, as suas tradições e a proposta que o MST desenvolve dentro dos
assentamentos.
Nesse mesmo sentido, também procuro perceber como acontece a interferência
cultural no momento em que os camponeses sem terra desenvolvem a prática da agricultura, a
relação dela com o mercado, o sistema de trabalho cooperativo ou, de uma forma individual, a
família em seu lote. São momentos que expressam sua vida em um assentamento. Como o
conjunto do assentamento trabalha a nova realidade que os jovens enfrentam, entre a
dicotomia do mundo urbano e a realidade do campo. Qual o lazer que o conjunto das famílias
tem oportunidade de participar e como este trabalha numa dinâmica de conseguir estabelecer
os limites da cultura capitalista imposta por tal sistema.
19
Nesse capítulo, também foi possível fazer a análise do convívio das famílias
que vêm de realidades próprias, com inúmeras histórias de vida possibilitadas pela
procedência de regiões diferentes e que se encontram por acreditarem em um movimento
social que os faz irem em busca de seu sonho que é a propriedade de sua terra. Conquistado o
assentamento, se desafiam em trabalhar de maneira totalmente coletiva, experienciando os
seus desejos e colocado-os na prática de suas vidas.
Ao finalizar o trabalho de análise, abordo alguns desafios tanto para os
assentamentos quanto para o conjunto do MST e para todos/as que apóiam a construção da
reforma agrária, para que juntos possamos tecer um novo território brasileiro onde as
injustiças sociais deixem de existir.
1 O ESPAÇO AGRÁRIO BRASILEIRO E A FORMAÇÃO DO MST
O processo histórico na constituição do território brasileiro demonstra uma
realidade de disputa e conquista da terra, gerando uma divisão territorial na maioria de suas
áreas em latifúndio. A partir dessas considerações, farei um breve histórico dessa realidade
que culminou com o surgimento, a formação a e constituição do MST.
A luta pela terra na história brasileira iniciou com a chegada dos portugueses
em 1500. Até 1532, o território serviu de escalas para as embarcações portuguesas rumo às
Índias e os donos das terras que aqui estavam não imaginavam o que estaria por vir.
Em seguida, o território brasileiro sofre a primeira apropriação, sendo dividido
em capitanias hereditárias, entregues em concessão a nobres portugueses – os donatários –
com a condição de que as explorassem e pagassem impostos à Coroa Portuguesa. Essa
organização espacial perdurou até 1822.
As capitanias hereditárias eram grandes porções de terra cuja extensão variava
entre 150 a 600 Km de largura, desde a linha imaginária de Tordesilhas até o litoral brasileiro.
Cabia aos donatários governar suas capitanias em nome da coroa, propagando a fé católica,
devendo povoá-las e explorá-las com recursos próprios.Em contrapartida, eles teriam diversos
21
direitos, entre os quais aprisionar índios, e estariam livres de pagar tributos sobre a venda de
pau-brasil e de escravos. Poderiam entregar parcelas de terras – as sesmarias – a pessoas que
quisessem produzir nelas.
A configuração geográfica apresentada nesse contexto fez com que as
capitanias hereditárias não fossem povoadas e não alcançassem o objetivo que a Coroa
Portuguesa havia traçado. Assim, os donos das sesmarias foram se tornando os proprietários
dos engenhos e os grandes produtores de cana-de-açúcar.
Na época, assim era definido o que seriam as sesmarias:
Sesmarias são propriamente as dadas de terras, casais, ou pardieiros, que foram, ou
são de alguns Senhores, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e
agora o não são. As quais terras e os bens assim danificados e destruídos podem e
devem ser dados de sesmarias pelos sesmeiros, que para isto forem ordenados.
(ALMEIDA, 1870, p. 822).
O sesmeiro tinha o direito de posse, mas o rei, lá em Portugal, ficava com o
domínio. A terra não era propriedade do sesmeiro. Se ele não a usasse para produzir num
determinado prazo, muitas vezes de dois anos, teria de repassá-la a outra pessoa. Estavam
impedidos de receber sesmaria os que não fossem brancos, puros de sangue e católicos.
Assim, os hereges, os índios, os negros, os mouros e os judeus não podiam ter terra no Brasil.
Neste contexto histórico inicia os que possuíam as terras e os que trabalhavam, a exploração
escrava começa e perdura até os dias de hoje.
Entretanto essa realidade nem sempre aconteceu, pois as terras foram sendo
doadas aos donatários que, dessa forma, adquiriam a sua posse.
22
As autoridades coloniais, entretanto, no afã de ocupar o imenso território,
desprezaram na prática essas recomendações. As áreas concedidas nessa época
eram imensas e constituíam verdadeiras donatárias, mesmo que não o fossem
juridicamente. Doações foram feitas de quatro, cinco, dez e vinte léguas quadradas.
(SILVA, 1996, p.42).
Nessa prática, aos poucos vai acontecendo a apropriação de áreas de terras,
constituindo um território cuja propriedade era resguardada pelo direito a coroa portuguesa,
mas que na realidade muitos sesmeiros mais tarde se tornaram os legítimos donos das terras.
Outro momento que demarca a presença do latifúndio no Brasil ocorreu em 18
de setembro de 1850, com a criação da Lei de Terras n.º 601, tendo como principais pontos a
imigração e a regulamentação da propriedade da terra. Isso foi devido ao fato de, em 1822, as
terras já estarem todas ocupadas pelos latifúndios e os donos não permitirem o
estabelecimento de lavradores nas suas terras, a não ser como seus dependentes. A situação
criada fez com os lavradores se tornassem posseiros de pequenas porções de terras.
Sendo assim, o objetivo maior da Lei de Terras era a demarcação das terras
devolutas. Para alcançar esse objetivo, três medidas precisavam ser implementadas ao mesmo
tempo: a legitimação da posse e revalidação das sesmarias (o que implicaria sua medição e
demarcação), a elaboração de um cadastro de terras, e a proibição de novos títulos de posse,
posteriormente a 1854.
Nesse momento histórico de ocupação do território, também acontecia,
simultaneamente, forte pressão para a libertação dos escravos. Preocupada com os rumos dos
acontecimentos e querendo impedir que posseiros, pequenos lavradores e ex-escravos se
tornassem proprietários de terras e constituíssem a mão-de-obra assalariada para o latifúndio,
a Coroa Portuguesa cria leis para regularizar essa situação.
23
A Lei de Terras estava, portanto, destinada a desempenhar um papel de
fundamental importância na colocação em prática da concepção Saquarema, que
era a concepção, dominante no governo imperial, do processo de transição do
trabalho escravo para o trabalho livre. (SILVA, 1996, p. 129).
A lei define também que quem comprasse as terras teria que legalizá-las em
cartório, efetuando o pagamento de taxas à Coroa; nesse contexto, só teria condições quem já
fosse proprietário. A Lei de Terras, por conseguinte, uniu o capital com a propriedade da
terra, uma vez que o direito de acesso a terra pertencia àqueles que possuíam dinheiro,
tornando-se uma mercadoria. Ela garantiu a propriedade àqueles que já dispunham de terras e
de capital.
O latifúndio perdurou durante os governos do Império e nos primeiros anos da
República. Alguns projetos de colonização aconteceram, mas pouco significativos. O Brasil
continuou um país essencialmente agrícola, a grande maioria da população no meio rural
trabalhando em sistemas de parcerias, colonato e meação.
Nesse período, no Brasil, aconteceram algumas lutas ou pequenos movimentos
pela terra que tinham caráter diferenciado, como por exemplo: Canudos, no sertão da Bahia,
Contestado, em Santa Catarina, Trombas e Formoso, Ligas Camponesas, Máster, entre outras.
Dos governos republicanos que antecederam a Ditadura Militar de 1964, foi
João Goulart (Jango) que, nas reformas de base, resolveu colocar como principal meta a
reforma agrária. Esse plano previa desapropriações de 10 quilômetros de cada lado de todas as
rodovias federais. O objetivo era tomar terras improdutivas que eram dos latifundiários e que
nunca haviam produzido. Mas estas reformas não aconteceram, porque os militares tomaram
24
o poder em 31 de março de 1964. Na realidade mais uma vez a questão da terra no Brasil
ficou somente escrita no papel.
Em novembro de 1964, o Presidente Marechal Castelo Branco decretou a
primeira Lei de Reforma Agrária no Brasil, que foi denominada Estatuto da Terra. Ela vinha
em resposta à necessidade de distribuição de terras como forma de evitar novas revoluções
sociais. Tratava também dos conceitos de propriedade da terra, estabelecendo que uma
propriedade de tamanho menor que o necessário para o sustento e progresso de uma família
seria considerada minifúndio.
Na verdade, o Estatuto da Terra jamais foi implantado em sua íntegra no país,
tornando-se apenas um instrumento estratégico para controlar as lutas sociais e desarticular os
conflitos por terra. Aconteceram alguns assentamentos e projetos de colonização, porém o que
ficou marcado, na verdade, foi o processo de modernização pelo qual passou a agricultura
brasileira, beneficiando grandes empresas na área da agricultura.
O Estatuto da Terra aparecia como querendo modificar a estrutura fundiária e
punir o latifúndio; a política agrícola e agrária dos militares promoveu a modernização
tecnológica das grandes propriedades, a entrega de mais terras aos comerciantes e industriais.
A modernização tecnológica da agricultura não significou a eliminação de
formas tradicionais de relações de trabalho. O desprezo aos direitos trabalhistas chegou a
ponto de provocar o ressurgimento do trabalho escravo no campo.
25
Os grandes projetos agropecuários e minerais na Amazônia representaram
grande destruição ao meio ambiente. Foram intensos e rápidos desmatamentos, com a
utilização, inclusive, de desfolhantes químicos. Nesse processo, saíram prejudicados vários
segmentos do campo: os pequenos e médios proprietários, os posseiros, os seringueiros e os
castanheiros. Isso sem contar a interferência no modo de vida dos povos indígenas.
As regiões centro-oeste e sul do Brasil, nesse período, deram início ao plantio
do que viria a ser a grande produção de soja, que no seu período de vigência acabou
expulsando do campo o pequeno proprietário de terra e concentrando o latifúndio.
Durante o governo do Presidente José Sarney, em 1985, que assume o poder
em virtude de o Presidente Tancredo Neves – eleito, mas de forma indireta – ter falecido,
propõe o Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), que tinha como objetivos dar
aplicação rápida ao Estatuto da Terra e viabilizar a reforma agrária. Entretanto, durante a sua
tramitação no Congresso Nacional, sob pressão dos ruralistas, o Plano foi modificado e, mais
uma vez, as oligarquias rurais conseguiram impedir o avanço da reforma agrária. Nesse ano
de 1985, também foi criada a União Democrática Ruralista (UDR), expressão de toda uma
organização dos grandes proprietários contra o Plano de Reforma Agrária. Para impedir a
realização da reforma agrária projetada, eles pressionavam o Congresso Nacional, onde,
naturalmente, possuíam diversos representantes. A penetração da UDR entre os latifundiários
e também entre os pequenos e médios proprietários rurais foi imediata.
A própria UDR pregava, na época, por todo o território brasileiro, que as
desapropriações de terras previstas incluíam propriedades produtivas, qualquer que fosse seu
26
tamanho. Isso desencadeou um clima de oposição à reforma agrária que, por fim, levou a
desconfiguração do Plano, que foi, ainda assim, abandonado somente no ano seguinte.
Nesse processo histórico de organização do espaço do território brasileiro,
muitos governos exerceram o poder, mas essa dívida social com os trabalhadores do campo,
ainda permanece. São muitos camponeses vivendo no campo em situação de miséria, sem
contabilizar os que vivem nessa mesma realidade nas periferias das grandes e pequenas
cidades, que migraram do campo deste Brasil.
De acordo com o censo agropecuário de 1995-1996 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), o total de área ocupada por imóveis rurais no Brasil era de
353 milhões de hectares e estava dividido em 4,8 milhões de propriedades. Desses, 2,4
milhões tinham menos de 10 hectares, representavam 49% do total e ocupavam 2,2% da área.
As propriedades com mais de um mil hectares eram 49 mil, representavam 1% do total e
ocupavam 45% da área. O contraste entre as menores e as maiores propriedades é
assombroso.
O Brasil é, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e a Alimentação (FAO) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), o segundo colocado no mundo em concentração de terra, ficando atrás somente do
Paraguai. Números que impressionam: pouco mais de 2 mil latifúndios ocupam 56 milhões de
hectares, tamanho que corresponde a duas vezes e meia o Estado de São Paulo
1
. Dessa área,
grande parte é improdutiva, estando reservada à especulação imobiliária de seus proprietários
e/ou grileiros.
1
FAO – Relatório sobre a situação sócio-econômica dos assentamentos. Brasília, 1993.
27
Tais números mostram uma verdade: existe muita terra ociosa no Brasil,
enquanto milhões de famílias sem-terra
2
estão no aguardo de uma solução, por parte do
governo, para suas vidas. Em nosso país, ao contrário do que diz a Constituição de 1988 sobre
a função social da terra, se mantém o latifúndio sem produzir.
Nesse contexto histórico, sempre houve aqueles que resistiram contra esse
modelo capitalista de exploração dos trabalhadores, constituindo os movimentos de luta pela
terra, as organizações sociais em defesa das populações que vivem no campo. Com isso, no
final dos anos 1970 e início dos anos 1980, nasce um movimento social organizado que se
fortalece até hoje em todo o Brasil: é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).
Os trabalhadores e trabalhadoras rurais Sem Terra tomaram como prioridade a
sua defesa pela vida e a sua reconstrução como cidadãos. Em pleno final do período da
ditadura militar, fizeram nascer pelas próprias mãos este Movimento Social, cujo processo
envolve desde ocupação de latifúndios em várias regiões do Brasil, momentos de despejo das
áreas ocupadas feitos pela policia e exército, até morte e prisão desses trabalhadores; enfim,
muitas violações de direitos humanos aconteceram nesta luta. Passaram-se 21 anos desde a
criação do MST.
Foram vidas inteiras dedicadas exclusivamente à causa da Reforma Agrária. O
MST é apenas a continuação da história de luta e resistência dos que vivenciaram essa
2
Uso o verbete “sem-terra”, minúsculo e separado com hífen, para designar os sujeitos que não possuem terra. O
dicionário Luft, edição 1998, inclui esse verbete com a seguinte definição: “substantivo de dois gêneros e dois
números, designação sócio-política de indivíduo do meio rural sem propriedade e sem trabalho” (p. 601).
28
realidade antes do Movimento. Com o passar dos anos, percebe-se que sem reforma agrária
não haverá democracia, igualdade e justiça social.
Conforme Fernandes (1996, p.242) “a fração do território é conquistada na
espacialização da luta”. A partir do processo de espacialização da luta pela terra, o MST se
territorializou e, hoje, está organizado em vinte e três estados brasileiros, devolvendo a
dignidade humana, o ser respeitado como cidadão e construindo uma identidade coletiva de
ser Sem Terra
3
dessa organização social. As pessoas aprenderam que a terra não se ganha; a
terra e a vida são conquistas conjuntas.
O MST que surge tendo como principal objetivo a reforma agrária no Brasil
tem demonstrado a sua estruturação, territorialização e espacialização, envolvendo mais de
1,5 milhão de pessoas, das quais cerca de 350 mil famílias já foram assentadas e outras 100
mil vivem em 500 acampamentos distribuídos em todo o território brasileiro.
Respeitamos o meio ambiente, a terra – nossa mãe, somos os guardiões da semente,
por ser um patrimônio da humanidade, não queremos os transgênicos, são venenos.
Brindamos cada gesto novo, cada palmo de terra semeada e vencemos pela simples
decisão de continuar lutando até a realização do sonho coletivo. É tempo de ocupar
os latifúndios, resistir e organizar a convivência na terra conquistada e produzir
uma nova cultura, novos valores, alimentos da consciência e do estômago.
(AGENDA MST, 2004, [p.121]. )
Essa organização que é o MST desdobra seu grande objetivo, a reforma
agrária, em outros para garantir sua viabilização:
Garantir trabalho para todos, combinando com distribuição de renda;
3
Ao usar o termo “Sem Terra”, com letra maiúscula e separado, estarei me referindo ao sujeito constituído pelas
lutas do MST que já possui a terra; aquele que possui a identidade construída sendo seu nome próprio Sem
Terra.
29
Produzir alimentação farta, barata e de qualidade à população brasileira,
em especial à das cidades, gerando segurança alimentar para toda a
sociedade;
Garantir o bem-estar social e a melhoria das condições de vida de forma
igualitária para todos os brasileiros, em especial aos trabalhadores e
prioritariamente aos mais pobres;
Buscar permanentemente a justiça social, a igualdade de direitos em todos
os aspectos: econômico, político, social, cultural e espiritual;
Difundir a prática dos valores humanistas e socialistas nas relações entre
as pessoas, eliminando as práticas de discriminação racial, religiosa e de
gênero;
Contribuir para criar condições objetivas de participação igualitária da
mulher na sociedade, garantindo-lhe direitos iguais;
Preservar e recuperar os recursos naturais, como solo, águas, florestas etc.,
para um desenvolvimento auto-sustentável;
Implementar a agroindústria e a indústria como os principais meios de
desenvolvimento do interior do país”.
Tais objetivos foram extraídos do livro a História da Luta pela Terra e o MST,
Morissawa, p.168, onde explicitam com mais detalhes como atingir a reforma agrária.
A reforma agrária até hoje apresenta sete milhões de hectares de terra
reconquistados em todo o país pelo MST, representando a sua força em organizar pessoas em
busca de sua verdadeira identidade de camponês, construindo, assim, a sua territorialidade nos
assentamentos de reforma agrária.
30
FIGURA 1 – MAPA DO BRASIL: ESTADOS BRASILEIROS COM TERRITÓRIO
DEMARCADO PELOS ASSENTAMENTOS.
Fonte: Dataluta/IBGE/INCRA
31
No Estado do Rio Grande do Sul foi onde iniciou a organização dos sem terra,
porque apresentava, no final da década de 1970 e início de 1980, uma realidade de expulsão
dos homens e das mulheres do campo, devido à perda de suas terras para o banco ou à
necessidade de venda, uma vez que o modelo agrícola já era outro, o da grande propriedade.
Essa falta de condições dos camponeses para produzir, no Estado do Rio
Grande do Sul, fez com que se organizassem, e foi nesse contexto que se iniciou o movimento
no RS e também com toda a ajuda da Comissão Pastoral da Terra, acontecendo aqui a
primeira ocupação e o primeiro assentamento mas ao mesmo tempo existia em vários estados
brasileiros um movimento de luta e organização para reforma agrária.
O agricultor sem terra do sul é descendente dos colonos que no século XIX vieram
para este país na condição de proprietários de no mínimo, uma colônia de terra (25
hectares). Esses colonos ainda hoje trazem consigo o mesmo espírito desbravador
de seus ancestrais e a mesma concepção de unir seus esforços na busca de um
mesmo objetivo. (MEDEIROS, 2004, p.156).
A primeira ocupação de terras acontece em 7 de setembro de 1979, na Gleba
Macali e Brilhante, na região norte do Estado, com 110 famílias. Todavia, o grande
acampamento que dá início ao Movimento acontece na Encruzilhada Natalino, no município
de Ronda Alta, em dezembro de 1980.
A partir desse momento, o Movimento adquiriu força e, em outubro de 1985,
1.500 famílias ocupam a Fazenda Annoni, com 9.500 hectares, em Sarandi. Essa área de terra
estava com pendências legais na justiça para serem resolvidas, o que só acontece em 1992.
32
Alguns acontecimentos muito fortes marcaram o RS em âmbito nacional, como
o massacre da fazenda Santa Elmira, em Salto do Jacuí, em 1989, onde o despejo das famílias
praticamente se deu em um cenário de guerra. Outro fato marcante foi o confronto com a
policia na praça da Matriz, em Porto Alegre, em agosto de 1990, durante uma manifestação
do Movimento. No episódio, um policial foi morto com foice e centenas de sem terras ficaram
feridos. Com o tumulto, os manifestantes refugiaram-se na Prefeitura, formando um cordão
humano ao redor do prédio, impedindo que a policia entrasse. Coloquei aqui mais detalhes do
RS por ser o estado onde estou realizando a pesquisa.
Hoje, são 11.200 famílias assentadas, em várias regiões do Estado, produzindo
alimentos para sua subsistência, gerando mais emprego, construindo uma nova consciência
sobre a importância da reforma agrária neste país e também produzindo para a exportação.
Mas ainda existem mais de 2.500 famílias acampadas esperando o seu pedaço de chão.
33
FIGURA 2 – MAPA DO RS: OS MUNICÍPIOS COM ASSENTAMENTOS
Fonte:Gabinete da Reforma Agrária e Cooperativas – GRAC – Governo do Estado do Rio Grande do
Sul
Barra do QuaraiBarra do Quarai
Quar
Cachoeira do Sul
Sã o Se p é
São Ga briel
Rosário do Sul
Vila Nova d o Sul
Do m Ped rito
Lavras do Sul
Caçapava do Sul
Santana d a Boa Vista
Bagé
Hul ha Ne gra
Cand iota
Pinheiro Macha do
Pi r a t i n i
Arroio Gra nde
Herv a l
Jagua rão
Santa Vitória do Palmar
L
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Chuí
Ped ras Altas
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R
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G
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Santana d a Boa Vista
Encruzilhada do Sul
Pinheiro Macha do
Pi r a t i n i
Cang uçu
Morro Re dondo
Arroio d o Padre
Capão do Leão
Cerrito
Pe d r o O s ó ri o
Arroio Gra nde
Herv a l
Jagua rão
Santa Vitória do Palmar
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C
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Capela de
Santana
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Gramado
Xa v ie r
Santa C lara
do Sul
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do Meio
Ira í
Alp e s t re
Planalto
Ri o d o s
Ind io s
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Er v a l
Grande
Ita t ib a
do Sul
Pinhal
Cristal
doSul
Ro d ei o Bo ni to
Li b e ra t o
Sa l z a n o
Cerro
Grande
Trindade do Sul
São Valentim
T s
Pa l m e ira s
En t r e
Rios do
Sul
Benjamin
Constant
do Sul
Bar ão d e
Cotergipe
Barra
do Rio
Azul
Constantina
Novo Xingu
Rondinha
Ro n d a
Alta
Cruzalte nse
Cam pinas
do Sul
Ja cutin ga
Po nt e
Pr e t a
Pa u lo
Be n t o
Quat ro
Irm ão s
Ipiranga
do Sul
Pontão
Sa ra n d i
Almiran te
Tamandaré
do Sul
Coqueiros
do Sul
Chapada
Sa n t a Bá r b ar a
do Sul
Carazinho
Pa sso Fu nd o
Saldanha
Marinho
Colorado
Nã o- Me -Toque
Vic to r
Graeff
Er n e s t i n a
Tio
Hug o
Ib iru bá
Se l b a c h
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Espumoso
Morma ço
Ibirap uitã
Es t re l a
Ve l ha
Tunas
Sa l t o d o J a c u í
Cam pos Borg es
Fo r t a l e z a
dos Valos
Jac uízinho
La g o ã o
Bar ro s Ca ssa l
Soledade
Fontoura Xavier
Sã o Jo s é d o Er v a l
Pr o g r e s so
Boq ueirão d o Le ão
Segredo
Pa ss a Se te
Herv e ira s
Sobradinho
Pinhal Grande
Arroio do
Tig re
Ibarana
Ag u d oPa ra i so d o
Sul
Dona Franc isca
Cerro Branc o
No vo Ca b rais
Cand elária
Va l e d o
So l
Ve r a C r u z
Santa C ruz
do Sul
Si n im b ú
Ri o Pa rd o
Re sti n g a Sec a
Pantâno
Grande
Sã o J o rg e
Vanini
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Marau
Vila Maria
Casca
Santo Antônio
do Palma
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Sã o Jo s é
d os A use nt es
Bo m J e su s
Monte Alegre
dos Campos
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Se rra
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A
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Andre da Rocha
Pr o t á si o
Alv e s
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Pr a t a
Vila Flôres
No va
Ba s s a n o
Se ra f i n a
Corrêa
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do Prata
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da
Se rra
Gua po ré
Fagund es
Va rela
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Alv o r a d a
Ita p u cá
Arvorezinha
Pu t i n g a
Relvado
llópo lis
Anta Gord a
Po u s o
No vo
Coque iro
Ba i x o
Dois Lageados
Muçum
Veranópolis
Cotiporã
Pi nt o Ba n d e i ra
Monte Belo
do Sul
Bento Gonç alves
No va Roma
do Sul
No va Pad ua
Flôres da Cunha
Sã o M a rc o s
Jaquirana
Cambará do Sul
Canud os do Vale
No va Brésc ia
Tra v e sse iro
Marques de So usa
Forquetinha
ri o
Lajeado
Enca ntado
Capitão
Ro c a Sal e s
Im ig ran te
Gar iba ldi
Colinas
Westefa lia
Ca rlos Barb osa
Farroupilh a
o
Vedelino
Caxias do Sul
Alto Feliz
Va l e Real
Feliz
Nova Petrópolis
Picada Café
Gra ma do
Canela
São Francisco de Paula
Mam pituba
Torres
Morrinhos
do Sul
Mato Leitão
Cruzeiro
do Sul
Es t re l a
Venâ ncio Aires
Pa ss o d o Sob r a d o
Bo m Re t i ro
do Sul
Pa v e r a m a
Tabaí
Teutônia
Brochier
Marata
Tupandi
Monteneg ro
Pa re c i
No vo
Po rt ã o
Sã o Jo s é d o
Hortêncio
Lindolfo
Collor
Pr e s i d e n t e
Lucena
Ivo t i
Sapiranga
Morro Reu ter
No vo
Ham b ur go o
Leopoldo
Parobé
Igrejinha
Trê s C oro a s
Ara ric a
Taquara
Ro l a n t e
Riozinho
Maquiné
T s
Cachoeiras
rroio do Sal
Terra de Areia
Ita t i
T s
Forquilhas
Va l e Ve rd e
Taquari
General Câ mara
o
Jerô nimo
Triunfo
Charqueadas
Es t e i o
Canoa s
Cac hoeirinha
Alv o r a d a
Gra vat ai
Glorinha
Santo Antônio
da Patrulha
Caraá
Osório
Im b é
Capão da Canoa
Xang rilá
Minas do
Leão
Bu t i á
Arroio d os
Ratos
Guaíba
Eldorado do Sul
Barra do
Ri b ei ro
Via m ã o
PORTO ALEGRE
Capivari do
Sul
Pa l m a r e s
do Sul
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Cidreira
Balneário Pinhal
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Pimentel
Pi nh a l d a Se r ra
S
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Po rt o Xa v i e r
Pi r a p ó
São Nicolau
Garru c hos
Santo Antônio das Missões
São Borja
Itacurubi
Unistald a
Maç am bará
Itaqui
Mano el Viana
São Francisc o de Assis
Aleg rete
Uruguaia na
Derrubad as
Tiraden tes
do Sul
Tenente
Po r t e l a
Caíçara
Vic e nt e
Dutra
Ale c ri m
Tucund uva
Po r t o
Mauá
No vo
Mac hado
Horizontina
Cricium al
Dr. M auric io
Cardoso
Bo a Vi s ta
do Burica
Sede Nova
Hum a ita
Trê s Pa ssos
Mirag uaí
Br a g a
Cam po
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Re d e n t o ra
Erv a l Se c o
Seberi
Do is Irmã o s
das Missões
Boa Vista
das Missões
Po rt o Ve r a C ru z
Santo C risto
Porto Luc ena
Sa n t a Ro sa
Tupa rendi
Trê s d e Ma io
Alegria
Independência
Sã o M a rt in h o
Coronel Bicaco
Pal m eir a da s M issõ es
No va Ram a da
Chiapeta
Inhac orá
Giruá
Se te de
Se t e m b r o
Când ido
Godó i
Campinas
das Missões
Sã o Pa u lo
das Missões
Ro q u e
Gonzales
Cerro
La r g o
Rolador
De ze sse is d e
Novembro
Guarani das
Missões
Caibaté
Santo Ângelo
Catuípe
Bo z a n o
Ajuricab a
Pa na m b i
Condor
São Luiz Gonzag a
Vit ór ia da s
Mi ssõ es
São Miguel
da s Mussões
En t r e - I j uí s
Eugenio
de Castro
Augusto Pestana
Ijuí
Coronel
Barros
Pe j u ç a r a
Bosso ro c a
Jóia
Boa Vista
do Cadeado
Cruz Alta
Capão do Ci
Sa n t i a g o
Tupa nciretã
Júlio de Castilhos
Boa Vista do
Incra
No va Palm a s
Quevedos
Jari
ToropiJagua ri
Nova Esperança do Sul
Cace qui
São Vicente do Sul
Mata
São Pedro do Sul
Dilerma ndo
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Aguiar
Sa n t a Ma r i a
Silveira
Martins
Ita a ra
Sã o M a rt in h o d a Se r ra
Ivo rá
São João
do Polesine
Fa x i n a l
do Saturno
Formig ueiro
Santa Ma rgarida
do Sul
A
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A
Santo Augusto
RIO GRANDE DO SUL
Número de assentamentos
por município - 2005
0 37 74km
-
-
2 ASSENTAMENTOS: COMPREENDENDO SUA HISTÓRIA
2.1 Compreendendo o porquê da pesquisa
O tema dessa pesquisa parte de uma inquietação minha em relação à
organização dos assentamentos de reforma agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra – MST, diante das situações que a experiência de trabalhar diretamente com o
Movimento me proporcionou, a partir de 1990, e também por ter acompanhado sua formação
desde o acampamento de Encruzilhada Natalino, em 1980.
A organização do espaço geográfico dos assentamentos do MST é sempre um
grande desafio para os assentados, uma vez que ali se congregam pessoas vindas de diferentes
regiões do Rio Grande do Sul e do País, cada qual com sua história de vida. O novo lugar é
desconhecido geograficamente pela maioria que enfrenta o desafio da viabilização deste
lugar.
O processo de interação com esse ambiente vai acontecendo ao longo dos anos
em virtude de as características culturais, sociais, políticas, naturais e econômicas, na maioria
das vezes, serem bem diferentes daquelas que os camponeses conhecem. Esse processo
permite que haja uma interação no sentido de encontrarem juntos uma metodologia de
trabalho e organização para a viabilização deste espaço. Assim, o Movimento sempre
35
apresenta uma proposta para a organização do novo espaço que os camponeses, não raro,
começam a conhecer neste momento de chegada a sua terra conquistada.
A proposta trabalha a dimensão de um processo de construção solidária entre
os assentados, sob a perspectiva de que a terra é um bem da humanidade e que precisa ser
cuidada como tal. A produção cooperativa é incentivada através da agricultura
ecologicamente cultivada.
Então, pergunto o que será mais forte: os conhecimentos, as vivências, as
experiências ou a proposta que o Movimento sugere aos assentamentos na organização desse
novo espaço? A sua vida e a sua cultura irão interferir no jeito de construir suas casas, na
posição e na divisão dos lotes, no plantio e no cuidado da produção agrícola, pecuária ou
outros sistemas de produção que a região irá oferecer? Como acontecerá a organização da
vida social, do lazer, e das atividades culturais entre a comunidade assentada?
Essas são as grandes inquietações que orientaram a pesquisa de campo num
diálogo direto com a realidade e os sujeitos que fazem parte dela.
A grande temática que perpassará o estudo da pesquisa qualitativa está
direcionada à cultura dos camponeses Sem Terra e à organização territorial dos
assentamentos. Como acontece o processo organizativo do espaço geográfico nos
assentamentos, bem como a identificação das raízes culturais das famílias assentadas e a
interferência ou não dessa cultura na formação e organização desse espaço.
36
A opção pela pesquisa qualitativa deve-se ao fato de tal método responder com
mais precisão a essa realidade pesquisada, proporcionando um contato direto com o ambiente
e a riqueza dos momentos vividos. Além disso, a pesquisa qualitativa possibilita melhor
qualidade nos detalhes das entrevistas a serem feitas, nas especificidades dos dados e nas
análises que se fizerem necessárias. O material obtido nessas pesquisas é rico em descrições
de pessoas, de situações e de acontecimentos, através de entrevistas, conversas, depoimentos,
fotografias, desenhos, comportamento da paisagem.
Segundo Ludke e André (1986, p. 68),
A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o
pesquisador como seu principal instrumento. Supõe o contato direto e prolongado
do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, via de
regra através do trabalho intensivo de campo.
A pesquisa qualitativa baseia-se na técnica de coleta de dados através do
depoimento oral dos sujeitos envolvidos numa interação entre o pesquisador e o entrevistado,
no caso os assentados e as lideranças do MST. Essa técnica também fará relação com
documentos, dados já escritos sobre o tema pesquisado que poderão ser encontrados nos
documentos da Central das Cooperativas de Reforma Agrária do Rio Grande do Sul
(COCEARGS).
Na realização do processo de coleta de informações sobre como as famílias
assentadas organizam o espaço do assentamento, foi feito um estudo exploratório com as
famílias assentadas, lideranças do assentamento e da direção estadual do MST. Nesse estudo,
apareceu a questão empírica da pesquisa tendo como base o processo histórico das famílias
que vivem no assentamento, e também sua maneira de como organizaram aquele espaço. Com
isso, obtive também através dos relatos informações sobre quem são estas pessoas, suas
37
origens, o que pensam sobre o que aprenderam em sua vida anterior ao assentamento e como
hoje organizam esse mais novo território.
Nesse primeiro contato que foi uma visita de dois dias em cada assentamento
com o objetivo de reconhecer o espaço a ser pesquisado, utilizei um roteiro semipadronizado
envolvendo questões norteadoras para identificar:
As famílias que chegaram desde o início na área de terra, as
primeiras lideranças do assentamento, as lideranças atuais;
As famílias cujos membros, em sua maioria, são lideranças,
tanto homens como mulheres;
As famílias cujos membros ainda não se envolveram em cargos
de coordenação do assentamento;
A primeira impressão das famílias ao chegarem no novo lugar;
O período de adaptação: como foi iniciado o processo de
organização e de produção do assentamento;
O que prevalece na sua história de vida em relação ap processo
anterior ao assentamento.
Esses dados, além de me permitirem identificar o perfil dos entrevistados em
relação ao processo de implementação, organização e desenvolvimento dos assentamentos
pesquisados, também fizeram parte da análise do trabalho.
Durante o período da pesquisa, foram realizadas três visitas a campo. Na
primeira, em que permaneci dois dias em cada assentamento conhecendo com mais detalhes a
realidade, foi feito o estudo exploratório com as questões norteadoras já mencionadas
anteriormente; na segunda, foram realizadas as entrevistas com as famílias selecionadas, e, na
38
terceira, foram verificadas as mudanças significativas ocorridas desde o período de início do
estudo até o final da sistematização dos dados.
Para que a pesquisa tivesse o desenvolvimento previsto, na primeira visita ao
Assentamento Trinta de Maio, mais precisamente na Cooperativa de Produção Agropecuária
de Charqueadas (COPAC), onde atuam vinte e sete famílias e cinqüenta e quatro sócios, foi
necessário conhecer com um pouco mais de profundidade essa realidade, para só então
elaborar o roteiro para as entrevistas.
Nesse momento, conversei muito com a secretária geral da Cooperativa que,
por exercer essa função, é a pessoa que conhece todas as necessidades da entidade e consegue
fornecer com detalhes as informações de que precisava. Na verdade, sua função na secretaria
é desde atender telefone, resolver questões sobre a produção, a encomenda de produtos e sua
distribuição aos associados, fazer a relação com o mercado e a produção interna.
Visitei, além de todos os setores de produção da Cooperativa: horta, aviário,
animal (leite, suínos), padaria, lavoura (produção de grãos), também o setor social, voltado às
atividades culturais, à educação e ao lazer. Nesse dia, não estive no supermercado da
Cooperativa, localizado na sede do município de Charqueadas, que tem como objetivos a
divulgação da Reforma Agrária e também a venda dos produtos gerados pela Entidade.
Foi muito interessante conhecer esses setores, pois observei como se dá a
relação de trabalho na Cooperativa e o jeito de cada um pensar o trabalho. Como as atividades
são muitas, algumas pessoas começam a trabalhar às 5 horas da manhã no setor de leite, e
outras, às 7 horas. Todas as mulheres estão envolvidas nas atividades da Cooperativa e são
39
sócias também. Somente a professora da escola fez a opção de não estar associada em função
de já possuir uma atividade remunerada.
Ainda no Assentamento Trinta de Maio, em Charqueadas, conversei com o
representante das duas Associações locais, Primeiro de Maio e Dezenove de Abril, conheci as
famílias assentadas e como elas se reestruturam a partir da saída da Cooperativa e hoje como
mantêm a sua convivência com seu lote de terra trabalhando diretamente nele usando a mão
de obra familiar.
O contato com dois assentados da Associação Primeiro de Maio que trabalham
juntos com uma horta agroecológica foi de grande riqueza para as primeiras informações. Eles
esclareceram que todos os dias abastecem tanto o mercado como alguns restaurantes da
cidade. Por estarem localizadas na beira da estrada de acesso à cidade de Charqueadas, sede
do município, muitas pessoas param ali para comprar seus produtos. É um ponto certo de
vendas.
O primeiro contato com o Assentamento Dezenove de Setembro, localizado no
município de Guaíba, distante aproximadamente 30 Km de Porto Alegre, com trinta e sete
famílias, segundo assentamento a ser visitado, foi muito importante para o desenvolvimento
da pesquisa. Um detalhe importante desse assentamento é que a sua área de terra faz divisa
com a área urbana do município. A cidade praticamente circunda uma boa parte do
assentamento, fazendo divisas com vilas e área industrial do município.
No período das entrevistas em que permaneci um tempo bem maior nos
assentamentos, tive a oportunidade de estabelecer contatos mais diretos com as pessoas, de
40
observar como acontece a organização do trabalho familiar e coletivo através de uma
convivência muito próxima com as famílias assentadas.
Por optar em ficar mais tempo durante as entrevistas, consegui um resultado
significativo na porcentagem de famílias entrevistadas. No Assentamento Trinta de Maio, das
vinte e sete famílias cooperadas da COPAC, entrevistei vinte e cinco famílias; nas associações
que fazem parte do mesmo assentamento, entrevistei todas as famílias – na Associação
Quinze de Abril são nove famílias e na Associação Primeiro de Maio são oito famílias. No
Assentamento Dezenove de Setembro, onde todas as famílias trabalham individualmente em
seu lote, das trinta e sete famílias entrevistei vinte e nove.
As entrevistas eram realizadas em vários ambientes: nas casas das famílias – as
pessoas que estivessem no momento participavam do diálogo, nos locais de trabalho. Muitas
foram realizadas na horta, no abatedouro, no supermercado da Cooperativa, a participação dos
assentados foi de muita confiança ao responder as questões. É Interessante ressaltar que
muitas vezes até as crianças colocavam sua opinião em relação a sua vida no assentamento.
Como a maioria das crianças já nasceu no assentamento, elas têm a visão desse momento de
já ter a terra. Os jovens, por sua vez, já possuem outra realidade: alguns vivenciaram o
período do acampamento, outros nasceram quando seus pais eram acampados, estes possuem
o ciclo do que é viver as várias realidades.
Nos momentos da pesquisa de campo e da aplicação das entrevistas, utilizei
grandes questões direcionadoras que fundamentavam a importância do diálogo com os
entrevistados, o que deixava com que as pessoas ficassem bem à vontade para a conversa. Isto
41
me permitiu um detalhamento profundo de como os assentamentos estão organizados e como
os camponeses sentem-se nele.
No desenvolvimento desta pesquisa e análise dos dados, foi necessário buscar
elementos teóricos que fundamentassem o tema em estudo, e proporcionassem também a
leitura mais próxima das categorias; formas de organização do trabalho, mão de obra, lazer,
organização dos lotes, produção, diversidade cultural, interferência cultural.
Os conceitos de território, espaço, territorialidade, identidade, cultura, lugar
foram tomados de alguns autores das mais diversas áreas do conhecimento, na tentativa de
realizar uma análise mais aprofundada. Será desenvolvido um diálogo permanente entre os
conceitos e categorias a serem estudados.
Nessa pesquisa, será dada ênfase ao processo organizativo de dois
assentamentos da região da Grande Porto Alegre, RS, abordando a influência da cultura deste
camponês assentado no seu jeito de constituir o espaço do assentamento. Este sujeito que é
identificado como aquele que trabalha e vive da agricultura e nesta vivência incorpora uma
cultura do meio rural.
Qual a realidade que os camponeses Sem Terra encontram ao chegarem nos
Assentamentos e como passam a organizar este espaço? A relação estabelecida com o novo
espaço reflete a cultura já vivenciada durante a sua vida na construção deste novo espaço, a
partir das orientações políticas organizativas do movimento social, neste caso o MST? O
espaço territorial sofre, assim, transformações a partir da influência/interferência cultural do
camponês?
42
Esses serão elementos importantes durante a análise dos dados da pesquisa,
para assim verificar a estruturação e composição do espaço do assentamento.
2.2 Localizando e conhecendo os assentamentos
Os assentamentos estudados nessa pesquisa localizam-se na Região da Grande
Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul. O primeiro está situado no município de
Charqueadas, a 10 km da sede do município, que é o Assentamento Trinta de Maio, e o
segundo, denominado Assentamento Dezenove de Setembro, localiza-se no município de
Guaíba.
43
FIGURA 3 – MAPA DOS ASSENTAMENTOS DA GRANDE PORTO ALEGRE
Fonte:Gabinete de Reforma Agrária e Cooperativismo do RS – Governo do Estado do Rio
Grande do Sul (http://www.gracrs.gov.br
).
O assentamento Trinta de Maio foi oficializado em 01/01/1990, numa área de
novecentos e cinqüenta hectares (950 ha), com quarenta e seis (46) famílias, sendo que destas,
vinte e sete (27) famílias constituem a COPAC, onde trabalham de forma coletiva no processo
de produção. A Cooperativa tem, entre os sócios, mulheres, homens e jovens, num total de
cinqüenta e quatro (54) pessoas. Os jovens podem se associar após completar a idade de 17
anos. As outras dezenove (19) famílias do assentamento trabalham de forma familiar, mas
individualmente, cada uma em seu lote de terra, tendo constituído duas associações que visam
a obtenção de crédito e a venda da produção, que é facilitada pela proximidade com a cidade
de Charqueadas.
44
O número total de residentes na Cooperativa, compreendendo crianças, jovens,
adultos e idosos, é de oitenta e oito (88) pessoas, das mais variadas origens étnicas, tais como:
caboclos, portugueses, russos, alemães, poloneses, também existindo uma miscigenação entre
essas etnias. Entretanto, a grande maioria é descendente de imigrantes italianos, vindos
principalmente da Região do Alto Uruguai, dos municípios de Frederico Westphalen,
Alpestre, Constantina, Rondinha
4
, Ronda Alta, Salto do Jacuí, Planalto, Iraí, Três Passos e
Sarandi.
Antes de chegar ao Assentamento, essas famílias trabalhavam individualmente,
diretamente com a agricultura familiar; eram todos pequenos agricultores ou filhos de
pequenos agricultores. Algumas delas trabalhavam na condição de parceiros, outra trabalhava
como empregada em uma granja e outra, ainda, já foi proprietária de terra no Mato Grosso.
Esta última teve de retornar, porque não conseguiu pagar o financiamento, tendo de vender
sua terra para saldar a dívida. A identidade entre essas famílias é encontrada na maneira de
pensar a propriedade e na sua relação com a produção.
O Assentamento Trinta de Maio foi se estruturando de maneira a constituir
dois assentamentos bem diferenciados, tanto na sua forma de produção, quanto na
organização do espaço. Nessa pesquisa, estou identificando o assentamento que está
organizado em uma cooperativa com produção coletiva, a COPAC, e o assentamento
caracterizado pelo trabalho individual que estabelece uma forma associativa de organização
da produção (Associação Quinze de Abril e Associação Primeiro de Maio).
4
Na época do acampamento e início do Assentamento, Rondinha pertencia ao município de Ronda Alta, RS.
45
FIGURA 4 – MAPA DO ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO – MUNICÍPIO DE
CHARQUEADAS/RS.
Fonte: Memória do Laboratório Organizacional de Campo/ Assentamento Trinta de Maio.
Acho importante citar essa diferenciação, porque hoje as famílias vivem essa
realidade que é bem distinta: algumas na experiência de organização da produção de forma
coletiva e outras na experiência de trabalho familiar em seu lote, mantendo a associação para
viabilização de recursos e máquinas agrícolas. Essas duas formas de organização que divide o
Assentamento em duas áreas distintas fizeram-me considerar, para a pesquisa, como dois
assentamentos.
46
A área de terra dos novecentos e cinqüenta hectares (950ha) está distribuída
para as quarenta e seis famílias, mas nem sempre da mesma forma. Geralmente, os lotes das
famílias que hoje vivem num processo de produção individual não estão localizados junto a
suas residências, o que dificulta na hora do plantio e da colheita da produção, pois a distância
é muito acentuada e os assentados possuem dificuldades de acessar sua área de trabalho com
seus animais e equipamentos.
Uma peculiaridade desse Assentamento é o fato de se limitar com a Colônia
Agrícola Penal de Charqueadas, do Estado do Rio Grande do Sul. Essa foi uma razão do
receio das famílias no início do assentamento. Todavia, com o passar do tempo, o temor
cedeu lugar à tranqüilidade, pois se percebeu que a vizinhança não oferecia maiores perigos às
famílias, uma vez que suas residências estão localizadas a 300m da sede da colônia penal. A
COPAC, inclusive, já participou de licitações para o fornecimento de alimentos para o
presídio.
O segundo assentamento objeto dessa pesquisa é o Assentamento Dezenove de
Setembro, localizado no município de Guaíba, que possui trinta e seis (36) famílias assentadas
em uma área de quatrocentos quarenta e um hectares de terra (441ha). A chegada dos
camponeses foi oficializada em 01/01/1992. Com produção individualizada, cada família em
seu lote produz basicamente arroz e hortigranjeiros.
Essa área do Assentamento até hoje não está regularizada, porque o Governo
Estadual da época (1992) desapropriou uma área do Instituto de Previdência do Estado do Rio
Grande do Sul (IPE) e não efetuou o pagamento, implicando, portanto, a manutenção do
registro de propriedade em nome daquele Instituto.
47
A área de terra desse Assentamento é cortada pela BR 101, que vai em direção
a Rio Grande. As famílias que têm o lote à esquerda dessa BR, sentido Porto Alegre – Rio
Grande, moram cada uma em seu lote. Aqui, cabe ressaltar um detalhe: esses lotes localizam-
se na área urbana de Guaíba que é também considerada como área industrial com alto valor
especulativo. Como essa área do assentamento ainda não está regularizada pelo Estado, as
oito famílias que ali vivem sentem-se em constante conflito, pois temem a perda de seu lote.
As demais famílias que moram à direita da rodovia constituíram uma agrovila.
Essa agrovila existe porque, no início do Assentamento, havia uma cooperativa agregando
todas as famílias por condição imposta pelo governo da época, que condicionava o
assentamento ao trabalho cooperativado. Assim sendo, as trinta seis famílias formaram uma
cooperativa, que não resistiu, pois dois anos depois, pouco a pouco, as famílias foram saindo.
As oito famílias que moram à esquerda da BR 116 estão muito próximas do
Bairro Santa Rita, da cidade de Guaíba, a cerca de 100m, o que contribui para a
comercialização de seus produtos (hortigranjeiros e leite). Essas famílias foram as primeiras a
saírem da cooperativa e, conseqüentemente, da agrovila e irem morar em seus lotes. Na
margem direita da BR 116 existem quatro famílias que também possuem suas residências em
seus lotes. Essa realidade está assim composta em função de essa área do assentamento ser
muito úmida. A presença de um banhado no lugar impossibilita a construção de moradia em
qualquer lugar. Ademais, a área do assentamento também está recortada de maneira que não
permite às famílias que moram na agrovila terem a seqüência da área junto à agrovila.
48
As famílias do Assentamento Dezenove de Setembro são constituídas por
descendentes de alemães, afro-brasileiros, indígenas, italianos, caboclos, portugueses, russos e
poloneses. Nesse Assentamento, diferentemente do que ocorre no Trinta de Maio, as famílias
são originárias de várias regiões do Estado do Rio Grande do Sul. Encontramos assentados
vindos da região norte do Estado, do centro, das Missões, do alto Uruguai e da Campanha.
São provindos de 14 municípios: Palmeira das Missões, Ijuí, Santo Ângelo, Alpestre,
Espumoso, São Miguel das Missões, Cruz Alta, Tupanciretã, Cerro Grande, Ibirubá, Seberi,
Herval Seco, Bagé, Planalto e Pinhal. Algumas dessas famílias moraram em vários
municípios, como Sarandi, Ronda Alta, Nonoai, além de terem passado pela expulsão da área
indígena de Nonoai, onde eram pequenos proprietários.
Essas famílias, independente do fato de serem originárias de diferentes regiões
e municípios, passaram um período muito grande no acampamento, inclusive participando de
conflitos sérios em momentos de despejo onde enfrentaram o poder do Estado. No período do
acampamento em Bagé, tiveram um companheiro morto pela policia e essa marca está muito
presente entre eles que lembram o fato com muita dor e sofrimento.
A experiência de vida de muitas dessas famílias retrata bem a realidade da luta
pela terra no Brasil, o resultado da política agrícola implementada ao longo da história
brasileira. Encontrei neste assentamento uma diversidade de jeitos de pensar, de produzir e de
organizar o espaço do assentamento.
Hoje as famílias vivem da produção de leite, de arroz, da piscicultura, de
hortigranjeiros e da apicultura. A grande maioria delas entrega leite pela manhã e à noite em
pontos que existem há mais de seis anos que fazem a distribuição diretamente ao consumidor.
49
A realidade desse Assentamento possui uma riqueza de detalhes, de jeitos e de
culturas. Mesmo que cada família produza em seu lote, pode-se identificar uma forma de
cooperação que se expressa no momento do plantio do arroz. Como esse cultivo exige, além
de uma dedicação muito grande ao trabalho, água para a irrigação da lavoura e a fonte de água
é uma só, as famílias cooperativamente construíram canais para a distribuição da água por
todos os lotes.
Outra forma de cooperação que existe entre as famílias que moram na agrovila
é no plantio e na venda dos hortigranjeiros. Algumas só plantam as verduras e repassam para
as famílias que mantém a venda direta para os mercados ou feiras. Conversando com alguns
desses assentados, eles ressaltaram que não têm jeito para vender e por isso repassam sua
produção diretamente para as outras famílias, que se encarregam desta tarefa.
Na análise dos dados da pesquisa no capítulo 4, retomarei com mais detalhes a
realidade de cada assentamento pesquisado.
3 APROFUNDANDO CONCEITOS
3.1 Contribuição com alguns teóricos
Para o desenvolvimento da pesquisa, serão utilizados conceitos que
fundamentem o tema proposto no que se refere à cultura e à organização social do MST e os
sujeitos sociais que o constituem. Também fundamentarei as categorias já mencionadas e os
conceitos no processo de territorialização dos assentamentos.
A constituição do território do assentamento acontece na disputa da
sobrevivência de um grupo de pessoas que historicamente foi sendo excluído do acesso a terra
como fonte de renda que ajudaria no desenvolvimento de um país mais equilibrado.
Nesse momento em que os camponeses apropriam-se da terra, tentam resgatar
a sua dignidade de sujeito participante na conquista de seu espaço geográfico que passa a ser
delimitado pelas suas ações em relação ao mesmo e também no seu usufruto e cultivo,
conforme o seu conhecimento já adquirido.
51
Esse espaço, para Santos (2002a, p. 63), é aquilo que usamos, o espaço dos
objetos, do sistema das ações.
O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados
isoladamente, mas como quadro único no qual a história se dá, (...).
Ao longo da história, esse espaço geográfico foi sendo transformado pela ação
do homem, que se apropriou da técnica, da ciência, da maquinaria, das informações.
A ação do ser humano transformada em ações e estas em objetos responde às
necessidades criadas em um determinado grupo e em um momento histórico, podendo se
reproduzir por outros grupos ou não, modificando o espaço. Também podemos considerar que
a ação através do trabalho modifica a natureza. Modificando a natureza, o homem poderá
adquirir novos conhecimentos, mudando a si próprio e também o meio. Esta relação dialética
interfere na organização do espaço.
De acordo com Santos (2002a, p.104),
O espaço uno e múltiplo, por suas parcelas, e através do seu uso, é um conjunto de
mercadorias, cujo valor individual é função do valor que a sociedade, em um dado
momento, atribui a cada pedaço de matéria, isto é, cada fração da paisagem.
O valor do espaço é construído a partir da materialidade do que existe em seu
conjunto, dependendo dos elementos das ações colocadas em seu meio e da interferência do
ser humano e da própria técnica que ele cria.
52
A sociedade também interfere no espaço, quando age sobre ele modificando
suas ações que podem ou não qualificar o espaço, reformulando e criando um novo ambiente,
dependendo da época.
As civilizações, ao longo de suas trajetórias, foram identificando os espaços e a
partir deles construindo os seus caminhos, suas áreas, suas estruturas no campo e no urbano,
determinando assim os seus territórios.
Nesse sentido, Santos (2002b, p.112) esclarece como o espaço pode ser
transformado em contexto mais global.
Como sabemos, o mundo, como um conjunto de essências e de possibilidades, não
existe para ele próprio, e apenas o faz para os outros. È o espaço, isto é, os lugares,
que realizam e revelam o mundo, tornando-o historicizado e geografizado, isto é,
empiricizado.
Segundo o autor, o espaço geográfico pode ser materializado ou não nas suas
ações. Acrescenta, também, que tais ações acontecem num lugar e este lugar poderá ser
transformado num espaço mais solidário, o espaço de todos, o espaço banal. Sob essa ótica, o
território dos assentamentos se configura em um espaço conquistado.
O poder, nos estudos de Raffestin (1993), pode estar em um dos trunfos: na
população, no território ou nos recursos. A conquista de um território poderá acontecer a
partir da necessidade de dominar o que nele existe.
Falar de território é fazer uma referência implícita à noção de limite que,
mesmo não sendo traçada, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém
com uma porção do espaço. Conforme Raffestin (1993, p. 54), o território é “uma
53
reordenação do espaço na qual a ordem está em busca dos sistemas informacionais dos quais
dispõe o homem enquanto pertencente a uma cultura (...)”.
Poderíamos afirmar que o território está ligado à constituição de um
determinado espaço, se formando a partir de sua própria identificação e sob a ação direta do
ser humano que nele estrutura sua identidade cultural.
Ao longo da história, as civilizações foram tornando o espaço em algo que
estivesse próximo, ou seja, o vivido, aquilo que está encarnado na constituição de sua cultura,
o seu sonho, as suas realizações, isto sendo fixado no que seria o território. Seria o lugar de
meditação do ser humano com sua cultura. Dessa maneira, grupos de pessoas também
estabelecem entre si ligações das mais diversas e criam uma identidade que passa a constituir
um espaço e, assim, apropriam-se de um território.
Ao constituir o assentamento, uma nova concepção de espaço para os
camponeses sem-terra passa a emergir dele, criando uma identidade de culturas, jeitos,
organização, produção, lazer; relação com o mundo, com as pessoas, com a própria luta, com
a maneira de sobreviverem; trata-se de olhar para este assentamento como um movimento
sócio-cultural, com sua identidade construída, que se institucionaliza para o conjunto do
movimento em um território, que também poderemos chamar de “território alternativo”,
conforme elucida Haesbaert (2002).
Território alternativo porque propõe uma outra forma de organizar o espaço
geográfico, deixando de ser algo abstrato, uma vez que de sonho de conquista da terra passa
54
ser a sua concretude, a sua identidade, a sua territorialidade, porque, à medida que as relações
acontecem, surge o novo.
A territorialidade pode ser definida como um conjunto de relações que se
originam em um sistema tridimensional, sociedade-espaço-tempo, em vias de atingir a maior
autonomia possível, compatível com os recursos do sistema. Na dimensão do espaço estará
colocado o mais novo território que foi conquistado, fazendo relação com o grupo social que
o emergiu.
Questões referentes à territorialidade, ao território, à identidade são
amplamente abordadas por Haesbaert (1997). De acordo com sua perspectiva, a
territorialidade está vinculada à identidade do lugar e, ao mesmo tempo, àquilo que está em
movimento, perpassando os limites das fronteiras demarcadas pelo Estado-Nação.
(...) A identidade territorial, ou seja, um conjunto concatenado de representações
sócio-espaciais que dão ou reconhecem uma certa homogeneidade em relação ao
espaço ao qual se referem, atribuindo coesão e força (simbólica) ao grupo que ali
vive e que com ele se identifica. (HAESBAERT, 1997, p. 50).
A demarcação territorial e a construção da territorialidade irão funcionar como
uma marca; garantia de permanência e sociabilidade deste assentamento é a vida em
funcionamento.
A ocupação do território passa a ser entendida como uma das vivências mais
significativas, cujo sentido mais profundo somente pode ser compreendido no seu
entrelaçamento com as demais ações substantivas que participam desse mesmo processo de
constituição e formação do movimento.
55
Essa vida em funcionamento acontece em diferentes escalas. No primeiro
momento da ocupação do território, tem-se uma relação de posse imediata da terra com o
objetivo de fixação do ser humano para sua sobrevivência, trabalhar e produzir alimentos. Em
outra escala, passa a acontecer a percepção do ser humano na condição de sem-terra, e disso
surgem laços de identidade social e também de apropriação física do território.
Para que se compreenda a complexa constituição de um território, como é o
caso dos assentamentos, trabalhando as diferentes escalas local/regional e espacial e o seu
processo de territorialidade, faz-se necessário definir a concepção de territorialidade e
identidade.
O processo de territorialidade está ligado àquilo que se refere à fixação que aos
poucos vai se enraizando, às marcas, ao domínio do território (aqui não necessariamente ao
domínio político, mas também podendo ser), à territorialidade das redes através de
monopólios fechados ou globalizados. Na constituição do território, as territorialidades se
manifestam de tal maneira que, muitas vezes, o próprio território expressa-se de uma maneira
subjacente.
O território sempre foi constituído de redes. Poderíamos mesmo afirmar que elas
passaram de elemento constituinte, na territorialidade mais tradicional e fechada, a
elemento constituidor, malha cada vez mais globalizante dentro da qual os
territórios podem se tornar meros pontos, ou seja, momentos ou parcelas
elementares das redes. Muitos territórios têm o controle e a identidade internos
garantidos por redes hierárquicas (geralmente com o papel de dominação) ou
complementares (muitas vezes “de solidariedade”). (HAESBAERT, 1997, p. 94).
A sociedade capitalista contemporânea, ao longo de sua história de inovações
tecnológicas, produziu e produz relações nos territórios onde, muitas vezes, a territorialidade e
56
a identidade das pessoas desaparecem ou entram em processo de crise de valores, não mais se
identificando com sua própria natureza.
O que passa a valer são as redes, as malhas, as quais podem ser em grandes ou
pequenas escalas, desenvolvendo diferentes estratégias em suas relações simétricas ou
dessimétricas, como afirma Raffestin (1993), constituindo uma nova territorialidade,
introduzindo outros conceitos e consumos na vida dos sujeitos.
(...) a territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a
multidimensionalidade do "vivido” territorial pelos membros de uma coletividade,
pelas sociedades em geral. Os homens “vivem”, ao mesmo tempo, o processo
territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações
existenciais e/ou produtivistas. (RAFFESTIN, 1993, p.158).
A identidade de um grupo revela-se pela constituição ou não de sua
territorialidade. A vivência de coletivo expressa as relações existentes no trabalho, na
sociedade, no espaço cultural, no espaço da própria família; se essas relações se identificarem
no grupo, irão firmar a identidade interna, mesmo que tenham interferências externas.
A identidade, na concepção de Castells (1999), é aquilo que o povo constrói a
partir de sua experiência, sendo essa significativa. Quando fala em atores sociais na
construção da identidade, refere-se assim:
No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo de
construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto
de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre outras
fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo,
pode haver identidades múltiplas. (CASTELLS, 1999, p. 22).
Ao se lançar o olhar para o território de um assentamento, pode-se observar
que o grupo de pessoas que ali vive passou a habitar esse espaço não por determinação sua de
57
identidade com aquele ambiente, mas devido ao seu engajamento em uma organização que
possui uma identidade, no caso o MST, o ser Sem Terra, em busca da Terra, o seu chão.
Essa identidade – que no meu ponto de vista é político-social e cultural pela
identificação com a terra, num primeiro momento, – com o decorrer da implementação do
processo produtivo, da organização do espaço do assentamento, da construção da infra-
estrutura, das relações sociais, econômicas e culturais da vida dos sujeitos, redimensiona-se
numa amplitude de territorialidade.
Poder-se-ia dizer que a territorialidade que aparece em um assentamento está
composta de relações simétricas, estabelecendo as trocas necessárias, os ganhos e os custos se
equilibram revelando a multiplicidade do espaço vivido.
Uma outra dimensão da territorialidade no Movimento está no seu jeito de
constituir a sua organização do território, porque atua ao mesmo tempo em vários lugares e
com ações iguais ou semelhantes, permitindo a sua espacialidade e territorializando a sua
identidade.
Com isso, aos poucos, o território dos assentamentos vai produzindo os seus
próprios símbolos, identidades, desenvolve significações de luta e de vivência cultural de cada
um. Os significados e as estratégias existentes multiplicam-se em conjunto de ações.
Ainda sobre território alternativo, assim expõe Haesbaert (2002 p. 11):
Alternativos no sentido da crítica aos espaços hegemônicos, que se alia à esperança
por uma ”alternativa” que, literal e metaforicamente, permita a construção de um
espaço muito mais igualitário e democrático, onde se dê a inserção dos excluídos de
58
todas as matizes. Mas alternativos, também, no sentido de novas perspectivas
teóricas para analisar o espaço dos homens (...).
Acreditamos que o processo de territorialização que o Movimento vem
construindo ao longo de sua história possa demonstrar, na prática, uma nova inserção das
pessoas no espaço geográfico e uma nova relação com o mesmo.
A desigualdade social que levou os assentados a constituir esse território faz
com que pensem no porquê de estarem em tal condição e, assim, se colocam num processo de
diálogo e entendimento do que querem com esse território numa condição mais
enriquecedora.
A apropriação física acontece de modo a explorar o que existe nesse espaço,
conhecendo as características de cada lugar, e, por conseguinte, obtendo como resultado uma
relação complexa e multiterritorial. As condições existentes contribuem para o
estabelecimento dos sujeitos nesse espaço fazendo dele o seu domínio territorial.
O território é o produto de uma relação desigual de forças envolvendo o domínio ou
controle político-econômico do espaço e sua apropriação simbólica, ora conjugados
e mutuamente reforçados, ora desconectados e contraditoriamente articulados. Esta
relação varia muito, por exemplo, conforme as classes sociais, os grupos culturais e
as escalas geográficas que estivermos analisando. Como no mundo contemporâneo
vive-se concomitantemente uma multiplicidade de escalas, numa simultaneidade
atroz de eventos, vivenciam-se também, ao mesmo tempo, múltiplos territórios.
(HAESBAERT, 2002, p. 121).
Interpretando aqui os múltiplos territórios, poderemos citar os assentamentos
do MST como um exemplo dessa multiplicidade de escalas no domínio e controle de uma
nova territorialidade estabelecida no momento da fixação e organização do assentamento.
Numa outra dimensão, território não perpassa só a dimensão das fronteiras, precisa ser visto
como algo identificando os sujeitos e as ações que acontecem nesse espaço.
59
(...) O território deve ser visto na perspectiva não apenas de um domínio ou
controle politicamente estruturado, mas também de uma apropriação que incorpora
uma dimensão simbólica, identitária e, porque não dizer, dependendo do grupo ou
classe social a que estivermos nos referindo, afetiva. (HAESBAERT, 1997, p. 41).
Aqui, novamente podemos mencionar a relação existente entre o ser humano e
o espaço do território, no qual que ele deposita seus valores, que podem ser seus sentimentos,
sua identidade cultural, a que o identificou para sua construção.
De acordo com o estudo realizado por Raffestin (1993), falar de território é
fazer uma referência implícita à noção de limite que, mesmo não sendo traçada, como em
geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém com uma porção do espaço. Para o
autor, território é considerado também como uma reordenação do espaço formado pelos
sujeitos conforme a sua cultura, onde se busca identificar e constituir uma nova ordem
imposta pelo sistema. Sob essa perspectiva, território está intimamente ligado aos conceitos
de redes, malhas e indivíduos.
Sobre território, assim se expressa Santos (2002b, p. 96):
O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas
naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o
chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer
àquilo que nos pertence. O território é á base do trabalho, da residência, das trocas
materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em
território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado,
utilizado por uma dada população.
Por sua vez, em seu estudo sobre a Geografia Cultural, Claval (2001) assegura
que a cultura tem uma influência bastante acentuada na constituição do espaço. As relações
que os indivíduos estabelecem com o espaçoo demarcando seus lugares e suas culturas. O
espaço é demarcado, apropriado, institucionalizado, qualificado, sinalizado.
60
O autor esclarece ainda que território é a ocupação do lugar do espaço. A
sociedade necessita do território para estabelecer suas relações, já que é nele que essas
relações acontecem. Seria a delimitação de fronteiras, dos lugares, das regiões, das nações,
confrontando-se as culturas.
Interpretando o território dos assentamentos, na presente pesquisa, pode-se
inferir que possui grande multiplicidade, seja pela posse, seja pelos limites demarcados numa
perspectiva política construindo fronteiras, delimitando áreas de terras, numa relação político-
econômica do espaço.
Ao demarcar a área, o indivíduo passa a identificar esse espaço como seu e,
juntando-se ao conjunto do assentamento, é formado um novo território no qual nem todas as
relações estabelecidas serão iguais. Por outro lado, há uma representação simbólica, afetiva,
uma apropriação, criando a subjetividade, a identidade com aquele espaço, enfim, a
territorialidade. Essa nova territorialidade, portanto, se constitui a partir da identidade dos
sujeitos forjada naquele novo lugar.
Morissawa (2001, p. 227) aborda o processo histórico das questões da terra
esclarecendo que o assentamento, “mais do que um lugar de produção é um centro de
convivência, onde se realizam sonhos, se criam filhos e inclusive se enterram os entes
mortos”. Isso identifica a dimensão dada ao conceito de território para os assentados e sua
construção em relação à territorialidade.
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Assim, os assentamentos do Movimento se constituem em territórios únicos,
mas ligados entre si por questões econômicas, políticas, de identidade social e cultural,
forjando novamente outras territorialidades.
Um exemplo que pode ser citado diz respeito à criação de um processo
econômico de subsistência e de renda em um assentamento, objetivando a entrada no mercado
voltado a um tipo de cultura própria daquela região. Isso faz com que a identidade desse
assentamento seja apropriada e dominada no sentido de conhecimento por eles mesmos e
também do mercado visado.
Essa multiplicidade na constituição do espaço do território do assentamento
como um espaço híbrido, onde apresenta relações e construções diferenciada em cada
momento que se apresenta e um conjunto de sistema de objetos e sistema de ações, objetos
seriam aquilo que existe em seu meio e as ações realizadas na modificação dos mesmos, pode
ser depreendida através das palavras de Santos (2002a, p. 104):
O espaço, uno e múltiplo, por suas diversas parcelas, e através do seu uso, é um
conjunto de mercadorias, cujo valor individual é função do valor que a sociedade,
em um dado momento, atribui a cada pedaço de matéria, isto é, cada fração da
paisagem.
As características resultantes da realidade de cada território são ressaltadas por
esse hibridismo, cabendo, nas articulações, o estabelecimento das redes internas e externas
desses espaços. No espaço de um assentamento, são identificáveis tanto o aspecto múltiplo,
relacionado ao uso do solo, às relações de troca de produtos, à organização do trabalho, como
também o uno, no sentido da identidade sócio-política.
62
Como elucida Haesbaert (2004), as redes, nesses casos, vão se estabelecendo
de uma forma que interligam os territórios, os quais passam a ser os lugares onde acontece o
comércio, o consumo, tornando significativas as malhas constituídas, fazendo ponte de forma
hierárquica com relações dominantes, mas podendo constituir relações solidárias de maneira
mais horizontal. Nesse caso, os processos sociáveis serão as relações estabelecidas no próprio
assentamento e entre o conjunto do Movimento e, ao serem exteriorizadas, proporcionarão à
sociedade como um todo a oportunidade de conviver com organizações territoriais
alternativas.
Ao estabelecer as regras de distribuição territorial do espaço do assentamento,
desde a forma da divisão do lote para constituir uma proximidade de relações entre produção
e convívio, as pessoas tentam fazer desse lugar um resgate de uma nova posição sócio-
política, econômica e cultural.
Fernandes (1996) argumenta que, ao conquistar seu espaço, o Movimento
territorializa sua luta e cria uma identidade com o assentamento. Conquistar a terra, uma
fração do território, e se territorializar é um modo eficaz de reação e de demonstração de sua
forma organizacional.
(...) A fração do território é conquistada na espacialização da luta, como resultado
do trabalho de formação e organização do Movimento. Assim, o território
conquistado é trunfo e possibilidade da sua territorialização na espacialização da
luta pela terra. (FERNANDES, 1996, p. 242).
A conquista do território pode ser analisada sob diferentes ângulos, pois,
quando se conquista a terra, se estabelece com ela um vínculo de vitória pelo pedaço de chão,
pelo alimento, pela nova identidade, pela relação com os outros assentamentos, pela
continuidade da luta.
63
Por outro lado, Santos (2002a) denomina “território esquizofrênico” àquele
território onde aparece uma contradição, ou seja, no caso do latifúndio, seria sua
fragmentação e a nova composição com todas as possibilidades de implementação de um
novo território. Assim identificamos um lugar de múltiplas existências na prática das
diferentes culturas.
Mas, neste contexto, quando o camponês perde a sua referência anterior, ou
seja, sua qualidade de pequeno proprietário, ou arrendatário, ou a sua relação com a terra,
pode-se dizer que ele sofreu um processo de desterritorialização do seu território na
perspectiva econômica, política e cultura, decorrente de uma ação global do capitalismo que
cria nova dinâmica para controle, expansão e acumulação do capital. Assim, as referências de
trabalho e atividades que eram a realização cotidiana daquele camponês já não acontecem
mais.
De acordo com Haesbaert (2004), o homem do campo sofre as conseqüências
de uma expropriação do capital financeiro, pressionado pelo Estado que já não garante mais
sua territorialidade.
A volatilidade e a alta seletividade espacial do capital financeiro disseminam a
exclusão de amplas áreas do planeta, incapazes de construir a indispensável infra-
estrutura e as condições socioeconômicas para sua reprodução, ou capazes de
manter o capital puramente especulativo durante curtos períodos de tempo.
(HAESBAERT, 2004, p. 192).
As relações geradas nesse espaço provocam a exclusão das pessoas de suas
áreas de origem e de sua condição anterior, em cujo espaço acontecia a sua apropriação das
condições de seu bem-estar sócio-econômico e que hoje já não existem mais. Todavia, a
64
dimensão sócio-econômica não aparece sozinha, porque existe uma influência direta em
outras dimensões sócio-espaciais e na identidade cultural das populações.
Para aprofundar a influência da cultura na organização do espaço do
assentamento, é necessário um diálogo permanente com a Geografia Cultural, tema central
dessa pesquisa. À medida que o novo território se constitui, passa por um amplo processo de
organização no qual se manifestam os jeitos, as práticas anteriores da experiência que os
camponeses carregam ao longo de sua história de vida.
Claval (2001) analisa a cultura dos povos perpassando a identificação dos
ambientes em que vivem, pelo modo como organizam o território. O peso da cultura é
decisivo em todos os domínios: político, econômico, social e cultural. Segundo o autor, os
geógrafos não devem dissociar os grupos do território.
A cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos
conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e, em
uma outra escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. (...) A cultura
transforma-se, também, sob o efeito das iniciativas ou das inovações que florescem
no seu seio. (CLAVAL, 2001, p. 63).
A cultura se manifesta entre os grupos pelas suas identidades, pelos códigos de
comunicação. As atitudes do cotidiano são semelhantes entre os membros, os conhecimentos
ou práticas em relação às técnicas aparecem de forma comum. “(...) Eles aderem aos mesmos
valores, justificados por uma filosofia, uma ideologia ou uma religião compartilhadas”
(CLAVAL, 2001, p. 63). A cultura começa a se constituir desde a infância, já que ela é
também uma herança transmitida de geração em geração, portadora de todos os avanços hoje
existentes na sociedade.
65
Aos povos foi um desafio constante, porque a manifestação dos seus gestos e
atitudes diante do desconhecido fazia a mudança nas pessoas. Cite-se, por exemplo, na
superação de um problema de saúde gerado pela falta de alimentos, para o qual se
aproveitavam os recursos que a própria natureza oferecia, o conhecimento disso foi sendo
passado às gerações posteriores. Até hoje temos conhecimentos milenares nessa área.
A família ou o grupo em que as pessoas convivem são determinantes para sua
manifestação cultural. È nesse meio que as práticas da economia, das relações políticas,
sociais, culturais se manifestam.
Segundo Claval (2001, p. 81), a cultura também se manifesta no sentir o
mundo.
A sensação não é jamais pura: o indivíduo vive numa sociedade, utiliza um
vocabulário de formas e de cores que predeterminam o que sente; ele percebe o
mundo através dos parâmetros de leitura que recebeu. Seu olhar procura apreender
os recortes que evocam as palavras que lhe foram transmitidas e as construções
mentais que as completam. A cultura faz assim passar de uns aos outros as
representações coletivas. O que lemos no mundo e na sociedade é o que
aprendemos a ver (...).
Nesse meio, poderá existir muitas vezes olhar diferenciado, em que alguns
percebem uma riqueza maior de detalhes, enquanto outros podem ver de uma maneira mais
simples. Dessa maneira vão sendo constituídas, então, as interpretações e ações sobre as
pessoas e o meio.
A compreensão do papel da cultura nas relações sociais entre os grupos, bem
como a percepção de que nem todas as sociedades têm o mesmo padrão e comportamento em
66
relação, por exemplo, à função do homem e da mulher na sociedade e na família, são aspectos
extremamente importantes.
As atitudes e as ações que os seres humanos vão tomando ao longo da sua
existência não serão as mesmas, uma vez que criam e recriam a partir de suas necessidades e
de sua sobrevivência diante daquilo que o cotidiano e a sociedade vão lhes exigindo.
Bogo (2000, p. 9) apresenta o que o Movimento Sem Terra vem construindo
sobre a concepção do que é a cultura para o próprio Movimento: “Cultura para nós significa
tudo o que criamos, fazemos e sentimos ao produzir nossa existência”.
Ao abordar esse tema da cultura como um tópico de estudo do Movimento,
percebe-se uma relação de novos conhecimentos que são referendados a partir da relação com
a terra e a construção do espaço do assentamento.
Os conceitos que os sujeitos desenvolvem durante seu processo de atuação,
tanto na discussão, como na participação direta em realizações concretas, vão sendo
incorporados a um novo jeito de agir e, além disso, vão acrescendo elementos de ação à sua
existência cultural.
Ao estudar como acontece a transmissão da herança cultural entre as gerações,
Bogo (2000, p. 14) assim se manifesta:
A cultura, portanto, representa a produção material e espiritual da existência, a
produção da consciência e a formulação de objetivos que poderão ser alcançados
pela sucessão de várias gerações. Assim se sucedem os inventos, as descobertas
cientificas, as formulações metodológicas, as práticas e teorias organizativas com
seus princípios e valores. Assim forjam-se os arquitetos da existência, os poetas e
67
seresteiros, que buscam apaixonadamente subir os mais altos degraus na escada que
leva à felicidade.
Com isso fica aparente o processo de inclusão de elementos que na vida diária
são colocados como desafios e como os camponeses vão incorporando-os a sua herança da
cultura. Essa dimensão entrelaçada permite a continuidade histórica da cultura acrescida de
conhecimentos.
Os camponeses sem terra, em seu processo de aquisição de bagagem cultural,
conseguem trabalhar a sua nova realidade que é o espaço do assentamento; entretanto, junto a
esse processo aparecem novos desafios diante do desconhecido, suscitando no indivíduo a
busca de novos conhecimentos.
A cultura, no entendimento de Claval (2001, p. 142), é:
(...) o conjunto de representações sobre as quais repousa a transmissão, de uma
geração a outra ou entre parceiros da mesma idade, das sensibilidades, idéias e
normas. Ela inclui a imagem do meio ambiente próximo e os conhecimentos,
práticas e ferramentas que permitem tirar partido dele. Ela comporta um arsenal de
métodos para se orientar (...).
Nesse sentido, a cultura de cada indivíduo se manifesta conforme sua crença,
suas atitudes. Esse é um processo particular de cada sujeito cujas atitudes vão interferir no
coletivo. O estudo da cultura envolve a ação de cada sujeito e o reflexo dessa ação no seu
ambiente. A cultura também espelha e condiciona o jeito como acontece a organização
espacial e como se comporta a sua dinâmica.
Com relação ao que vem a ser a cultura ou civilização, o estudo realizado por
Gomes (1999, p. 120) esclarece que:
68
(...) as práticas espaciais só podem ser reconhecidas dentro de um contexto e estas
possuem um sentido e uma coerência. Neste caso, vista como sistema de valores ou
como conjunto de referências específicos de um grupo social, a cultura é a principal
fonte para a compreensão de comportamentos e hábitos espaciais, da organização
espacial das coisas e das divisões simbólicas do espaço.
Ribeiro (2001), ao estudar o povo brasileiro, refere-se às matrizes étnicas e
culturais desse “povo novo”, definindo as características do povo brasileiro organizado em
sociedade.
É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os
brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente e
também um dos mais integrados socialmente da Terra. (RIBEIRO, 2001, p. 454).
Esses brasileiros que constituem um povo com suas diferenças culturais,
expressam na sua língua, na maneira de organizar a sua vida, o trabalho, o lazer, os momentos
de criação e vivência cultural, são os sujeitos que permanecem com sua vida no campo, são os
que lutam por uma organização social, nesse caso o MST. A diversidade de etnias encontrada
nos assentamentos de reforma agrária, e a partir destas experiências de vida que este povo
troca, constituiu a organização do espaço geográfico dos assentamentos.
3.1 O significado de um assentamento do MST
A organização territorial, a construção de uma nova paisagem, a identificação
dos camponeses com o novo espaço geográfico, a constituição da realidade a partir da
territorialidade serão elementos a serem abordados na dimensão dos assentamentos do MST.
69
As características, os conceitos, as peculiaridades são os mais diversos sobre o
que vem a ser um assentamento do MST. No contexto mais universal, significaria ajustar,
colocar no seu devido lugar o que está fora. Se olhássemos por uma dimensão mais política,
seria resolver o problema das pessoas que não têm moradia; e foi com esse enfoque que os
governos iniciaram o uso dessa palavra.
Entretanto, para o conjunto do MST, significa a terra conquistada a partir de
todo o processo de luta e organização, aquela onde já se pode produzir e morar, constituindo
um novo espaço social. Vejamos o conceito de assentamento para o MST:
(...) precisamos avançar no entendimento de que os assentamentos não são apenas
uma unidade de produção. Mas, acima de tudo, são um núcleo social aonde as
pessoas convivem e desenvolvem um conjunto de atividades comunitárias na esfera
da cultura, lazer, educação, religião, que precisamos estar atentos para que os
assentamentos cumpram sua missão histórica para semear as mudanças no meio
rural. (CADERNO DE COOPERAÇÃO AGRÍCOLA, n.º 8, p. 25-26).
Isso infere que um assentamento deve ser visto como um processo histórico em
construção, no qual deve-se considerar a formação dos assentados até a sua instalação. Por
essa razão, esse território sofre profundas transformações, passando por transições. Esse
espaço local é olhado como algo que está sempre em movimento, estabelecendo novas
relações sociais, políticas, culturais e econômicas em decorrência daquilo que a realidade vai
apresentando em seu contexto. Como esclarece Fernandes (1996, p. 235), “o movimento
constrói o seu espaço, dimensionando o espaço social em um ato político. É um espaço, onde
novas atividades sócio-políticas são criadas e contribuem para a formação da identidade
coletiva do movimento”.
Os camponeses, à medida que são desterritorializados, ou seja, são
desenraizados de seus lugares com os quais mantinham historicamente suas atividades
70
tradicionais, são obrigados a enfrentar novos desafios advindos da necessidade de readaptação
no novo território, agora na condição de assentado.
Assim, na expectativa de construir uma nova territorialidade, constroem um
novo sentido para sua existência, e constituem um reforço aos processos políticos e culturais
de afirmação de valores mais significativos e solidários.
Na concepção de Milton Santos (2002, p. 330), “o homem de fora é portador
de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O
lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação”.
Os assentamentos, ao longo de seu processo de construção, são diferenciados
uns dos outros. A realidade de cada região faz o jeito de ser de cada um. Existem
assentamentos que estão próximos de cidades, outros ficam muito distantes, sem condições de
acesso a estradas e de deslocamento da produção; alguns possuem muitas famílias, enquanto
outros contam com um número muito reduzido delas.
Referindo-se aos sujeitos que constituem o assentamento, assim se expressa
Carvalho (1999 p. 14):
O assentamento de reforma agrária é uma encruzilhada social onde a interação
social entre as pessoas e famílias de grupos socialmente heterogêneos alcança
considerável intensidade e novidades, se comparada com a rotina que o cotidiano
dessas pessoas e famílias lhes proporcionava. Estas intensidade e novidade podem
ser expressas na necessidade de encontros sistemáticos, quase diários, entre essas
pessoas e famílias para equacionarem problemas existenciais que a nova realidade
da vida cotidiana lhes está exigindo.
71
A heterogeneidade dos assentamentos acontece pela realidade social de cada
um, pelas histórias de vida das pessoas que ali estão presentes: idosos, crianças, jovens,
adultos, pessoas portadoras de necessidades especiais; homens e mulheres, negros, índios,
brancos, mulatos, mestiços; deferentes credos religiosos. Muitos já moraram em várias
regiões do Brasil, outros nunca haviam saído de sua comunidade de origem. Encontramos
também uma realidade triste em relação ao processo de escolarização das pessoas:
analfabetos, semi-analfabetos, a grande maioria com ensino fundamental incompleto. São
pessoas diferentes entre si, mas portadoras de uma exclusão social provinda de um processo
produtivo.
As peculiaridades de cada assentamento também perpassam sua maneira de
organizar ou reorganizar aquele espaço. As famílias, oriundas de diferentes lugares, passam a
enxergar e vivenciar seu pedaço de terra e aos poucos vão dando “sua cara” para esse lugar.
Uma das necessidades mais imediatas é organizar o processo produtivo da nova área que lhes
foi destinada. Ele inicia produzindo, geralmente, para seu sustento até a chegada de crédito
para o plantio de outras culturas.
Nós temos jeitos diferentes, um tem jeito de guardar as ferramentas outro tem outra,
mas são coisas assim que a gente não diz nada, mas na tua cabeça, fica. Se
pegarmos os adolescentes que já se acostumaram neste sistema eles não iriam sentir
tanta diferença. Se os pais da gente tivessem educado a gente assim neste sistema
hoje seria mais fácil, teríamos mais avançado. Se olharmos, o individual trabalha
mais que nós aqui dentro hoje, mas na tua cabeça é um trabalho sem compromisso.
Se aquela vaca tu tira leite ás seis horas da tarde, ou não tira ninguém vai me
cobrar, aqui tem um grupo, tem uma empresa alguém que cobra aquele
compromisso, se tu olhar as famílias tem meio dia no domingo a tarde de folga,
para uns e outros não, muito serviço, é um sistema que a gente criou (Morador do
Assentamento Trinta de Maio – COPAC).
Esse depoimento mostra com clareza os diferentes jeitos que cada camponês
carrega em sua vida diária e como isso se relaciona com o momento de organizar o trabalho e
com a própria convivência dentro do assentamento.
72
Cada assentamento procura organizar questões como lazer, encontro das
famílias, troca de produtos que cada um cultiva, ou o fazer de forma coletiva. Dessa forma,
fica evidente a dificuldade de se encontrar assentamentos iguais, mas percebem-se traços que
são comuns e que simbolizam o significado de ser um assentamento dos sem-terra e que
também demarcam a nova ocupação deste território pelo MST.
A identificação do que possa ser um assentamento na sua viabilização e na
obtenção de resultados sociais pode ser visualizada através do processo de organização da
produção, através do qual os assentados estabelecem relações fundamentais para a vida no
assentamento.
O II Plano Nacional de Reforma Agrário (II PNRA), elaborado pelo Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo INCRA, no capítulo que versa sobre a
viabilização econômica dos assentamentos, expressa que:
Desde o momento de sua implantação, o novo assentamento estará orientado por
um projeto produtivo de viabilização econômica, com tempos de maturação e
etapas ajustadas às características de cada região. Um investimento específico nas
áreas de Reforma Agrária é a garantia para transformá-las em espaços produtivos
de acesso a direitos e de qualidade de vida
. (BRASIL, II PNRA, 2005).
O respeito às características de cada região e à experiência anterior de cada
assentado se reflete muito no momento desta organização da produção. Os conhecimentos
trazidos já identificam a maneira de cada um cultivar a terra, assim como as relações de
convivência comunitária, aspectos também comentados por Santos (2002b). Vejamos o
depoimento de uma cooperada:
73
Os lotes foram medidos e sorteados, claro que teve gente que era muito pequeno
alguns queriam criar os bichos que tinha lá fora, uma casa do lado da outra num
momento não foi fácil, mas hoje a gente vê que assim era melhor. A idéia seria cada
um ter seus bichos, sua horta, algum fala aqui os outros escutam, lá a gente era
acostumado tudo longe, era distante da cidade, eram 12 Km longe da cidade. Hoje
prevalece com as galinhas em seu lote. Eu não consigo ficar sem galinha, cada um
cercar as suas, fechamos um tempo, mas as galinhas não sobrevivem fechadas, meu
sonho é ter a galinha, os bichos, peru, ganso, a maioria gostaria ter. Tem o aviário
coletivo, mas eles não conseguem deixar de lado. (Morador Assentamento Trinta de
Maio – COPAC).
Nesse depoimento, fica evidente a dificuldade da vida comunitária, tanto no
que se refere às atividades relacionadas à produção como também àquelas relacionadas à
vizinhança. Porém, independente dessas situações, o trabalho para organizar a produção é do
próprio assentado, mesmo considerando as orientações de como o Movimento pensa o
trabalho de cooperação agrícola.
Esse pensar é uma discussão nacional feita a partir da organização local, onde
se discutem e se estabelecem linhas gerais, orientando as organizações estaduais do MST.
Todavia, ao se estudar o assentamento, observa-se um respeito muito grande à realidade de
cada região e à história cultural de cada um.
Foi indo aos poucos cada um ia colocando suas idéias, um dum jeito outro do outro,
umas famílias se retiraram desde o início, não obrigamos ficar no coletivo. Cada
ano que passa tem uma noção diferente do que é a coisa. No início plantávamos
mais arroz, hoje porque existe o mercado e falta mão de obra, precisamos mudar,
pessoas com idade, aparece a falta de mão-de-obra, terra temos bastante. Falta
gente para trabalhar. (Morador do Assentamento Trinta de Maio –COPAC).
Fica claro que, independente da orientação do MST, o assentado tem a
liberdade de opção e sabe que este seu direito é respeitado pela organização do Movimento,
que busca conciliar o que é a necessidade do assentado com o que a região oferece e o
Movimento propõe.
74
O processo histórico da cooperação agrícola desenvolvido nos assentamentos
demarca a importância da viabilização econômica do assentamento. Quando o MST se refere
ao conceito de assentamento, considera o trabalho coletivo e de solidariedade entre os
próprios assentados para que os mesmos desenvolvam o cultivo da terra e o seu aprendizado
com ela.
Outra marca forte é a simbologia utilizada pelo Movimento na identificação
dos assentamentos, em cuja sede são colocadas placas com o nome do lugar escolhido pelos
próprios assentados. A bandeira do movimento, símbolo do MST, é colocada em lugar de
destaque, em um ponto onde as pessoas possam vê-la de várias posições e lugares. As casas e
o próprio assentamento se inserem numa paisagem voltada para o embelezamento do lugar. A
beleza das construções encanta os olhos do assentado, sua auto-estima se eleva cada vez mais
no sentido de pertença àquele espaço, construindo a própria espacialidade. “A espacialização
é o movimento dos sujeitos, carregando suas experiências por diferentes lugares do território”.
(FERNANDES, 1996, p. 236.).
Essa espacialização vai criando por dentro dos assentamentos uma mística
própria que transforma os grandes momentos de tristeza e de dor passados, como o
enfrentamento com a polícia e com jagunços, o frio, a fome, ou perda de companheiros de
luta, em motivos fortes para seguirem construindo a sua territorialidade nos assentamentos.
A mística é algo que brota no conjunto dos assentamentos; é uma manifestação
dos símbolos dentro da prática cotidiana; é a força que anima; é o sonho em construção. É o
momento em que os assentados expõem o contraponto entre o que sofreram e o que querem
75
realizar, trazendo a história presente. Falando sobre a mística, desta maneira esclarece Boff
(1993, p. 154):
(...) mística, então é, o conjunto de convicções profundas, as visões grandiosas e as
paixões fortes que mobilizam as pessoas e movimentos na vontade de mudanças, ou
que inspiram práticas capazes de afrontar quaisquer dificuldades, ou sustentam a
esperança em face dos fracassos históricos. Na mística político-social age sempre a
utopia, aquela capacidade de projetar, a partir das potencialidades do real, novos
sonhos, modelos alternativos e projetos diferentes de história. Geralmente são os
grupos oprimidos os portadores de novas visões, aqueles que embora derrotados,
nunca desistem, resistem firmemente e sempre de novo retomam a luta. O que os
movem são sonhos de uma realidade nova. Por isso desfatalizam a história, não
reconhecem como ditado da história a situação injusta imposta e mantida pelas forças
opressoras.
Então, são esses momentos que parecem transformar a realidade em sonho e o
sonho em realidade no decorrer de sua história. O aprendizado com a terra e com o
assentamento passa, muitas vezes, a estabelecer relações que anteriormente nunca haviam
acontecido, como a experiência de fazer reuniões, de coordenar, de respeitar a decisão e
opinião dos outros, de fazer cumprir as decisões tomadas no grupo, e do convívio social.
Essas situações forçam as pessoas a pensarem sobre o que faziam antes e de
como deverá ser a sua vida no assentamento. O choque com a herança cultural é inevitável. O
choque a que nos reportamos se refere à diferença entre a vivência das pessoas na sua
trajetória de vida e o que encontram na proposta de organização de um assentamento.
Existe um coordenador de cada setor, e reúne os coordenadores, fizemos rodízio na
coordenação. Todo o ano troca, para as pessoas aprenderem o que é. Assim todo
mundo tem uma visão do trabalho. Eu assumi a coordenação, não foi fácil, porque
quando não estava a gente só pensava no setor o trabalho do dia a dia, mas com a
coordenação pensa na cooperativa como um todo: o que acontece, o que faz. A
minha cabeça ficou cheia. È uma experiência muito boa! Nas reuniões a gente
aprende muito, fica ligada em tudo. Antigamente eu era muito desligada da
cooperativa, hoje tudo o que acontece a gente está de olho porque vai se entrosando
cada vez mais. Hoje participa bem mais das coisas da cooperativa. (Moradora do
Assentamento Trinta de Maio –COPAC).
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Os momentos e desafios apresentados às pessoas no assentamento vão criando
condições para que elas possam descobrir o seu potencial interior, resgatar os seus
conhecimentos e construir outros junto ao grupo, ampliar a sua noção do que acontece no país
e no mundo.
A realidade da organização do assentamento se constituiu, talvez, em um dos
grandes desafios para o MST. De acordo com a concepção de Santos (2002
a
), anteriormente
exposta, o lugar dos acontecimentos é extremamente significativo no momento de construir o
território. Sentir como estão as pessoas que passam a morar nestes lugares e como conseguem
construir a sua identidade com este novo lugar, construindo uma territorialidade que passe a
se tornar referência para si, para a organização, para o Brasil e para o mundo.
A escala estabelecida pelos assentamentos trabalha numa dimensão de um
espaço rural diferenciado e conectado com o urbano de forma local, regional e nacional,
referendando-se também em âmbito mundial, constituindo-se em múltiplas finalidades e
sentidos. Por mais que os assentamentos necessitem das relações externas de formas
hierarquizadas, isso não significa dizer que o mesmo aconteça em seu interior. As ações na
produção do espaço do território têm características semelhantes, e estas ações, acontecendo
de maneira horizontalizada, é que irão definir o alternativo no conjunto do assentamento. O
significado para o camponês é de uma forte expressão de pertença a um novo lugar e de futuro
estabelecido em sua parte de terra.
Também gostaria de dar destaque a algumas declarações feitas pelos
assentados, quando da posse do seu lote, da sua terra sonhada:
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Agora tenho onde plantar e o que comer.
Nunca perdi a esperança, ela trouxe minha terra.
Não passamos mais fome, o feijão, a mandioca, o milho, as nossas galinhas estão
garantidas.
Que orgulho de ter terra com nosso suor, sofremos, mas agora estamos no que é
nosso.
Aqui lugar para dar de comer aos meus filhos.
Na verdade eu tinha um sonho e o primeiro sonho logo que eu entrei no movimento
era conseguir um pedaço de terra meu pra eu plantar.
Através dos sentimentos externados, fica aparente o significado da liberdade
conquistada no momento de receber a terra, também o de pertencer agora ao lugar, e, em
contrapartida, esse lugar porta significado de cidadania, ou seja, o seu reconhecimento diante
da sociedade. “Agora também faço parte, sou sujeito, e vou construir meu direito”.
São muitas as realidades de um assentamento, e em cada região do país cada
qual coloca a sua “pitada de sabor” conforme deseja construir o lugar de sua existência e de
futuro para uma nova organização do campo brasileiro, pelo menos em seu território de
domínio, representado pelo assentamento.
4 A ORGANIZAÇÃO DOS ASSENTAMENTOS E A INTERFERÊNCIA CULTURAL:
O CASO DOS ASSENTAMENTOS TRINTA DE MAIO E DEZENOVE DE
SETEMBRO
4.1 Cultura, organização e identidade dos assentamentos
Os grupos, ao longo da história, estabelecem entre si ligações das mais
diversas e criam uma identidade que passa a constituir um espaço, assim apropriando-se de
um território. No assentamento, os camponeses sem-terra constroem uma nova concepção de
espaço construindo identidade própria. Ao se referir à identidade dos grupos, argumenta
Castells (1999, p. 23):
A construção da identidade vale-se da matéria-prima e esta é processada pelos
indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função
de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem
como em sua visão de tempo/espaço.
No caso dos assentamentos, a identidade coletiva é construída a partir de
objetivos próprios materializados tanto na busca da organização da produção, como das
relações de trabalho, do convívio comunitário, e, além de tudo isso, traz um significado
expressivo para aqueles que com ela se identificam.
79
Nesse contexto, encontramos, entre os camponeses Sem Terra dos
assentamentos pesquisados, o agrupamento de trabalhadores provindo de várias categorias
sociais: pequenos proprietários rurais, filhos de pequenos proprietários rurais, arrendatários e
parceiros rurais, moradores agregados, assalariados permanentes e temporários.
Nessas categorias sociais encontradas são identificados comportamentos
distintos entre os camponeses, devido ao fato de trazerem experiências de vida bastante
diferenciadas. O contexto histórico-social e os processos de produção não foram os mesmos
para essas pessoas; até mesmo o próprio convívio familiar ocorreu em outro contexto.
Por exemplo, a inserção econômica, as relações de trabalho, a identidade
construída entre um pequeno proprietário e um morador agregado são diferenciados. A sua
memória de vida, o sentimento de pertencer ao lugar que foi seu – que o agregado não possui,
nesse caso – se expressa no momento de identificar-se com a posse da terra através de
relações específicas. Isso é perceptível desde o jeito de lidar com sua própria moradia, até o
próprio plantio.
O jeito de cultivar a terra, plantar o milho é o jeito que cultivavam anteriormente.
Aqui é tudo com máquinas, lá era a mão, mas lá não precisava colocar adubo, a
terra é mais boa. Aqui não usamos venenos; meu pai também nunca usou, eu
trabalhei muito até com bois. Nunca pude estudar, eu tinha vontade, mas não
consegui. (Morador do Assentamento Trinta de Maio – COPAC).
Esse depoimento retratar a experiência de vida de filha de pequeno
proprietário, a relação de seu trabalho com o plantio das culturas, o seu cuidado com a terra, o
seu sonho para construção do conhecimento científico em busca de uma outra profissão.
80
A identidade nos assentamentos vai sendo construída nessa diversidade de
sujeitos com suas diferenças de cultura. É nessa heterogeneidade que os grupos vão
construindo o processo da nova organização do espaço do assentamento. Santos (2002b) se
refere à nova realidade como um contraponto a um modelo globalizado de exploração e
sugere uma organização do espaço planetário mais conectada cultural e socialmente.
A fala da assentada transcrita logo a seguir mostra como, aos poucos, os
camponeses foram demarcando seu território nas diferentes áreas, seja na produção, na
apropriação dos lotes, na construção de suas casas, seja na nova configuração desse espaço.
No início foi muito difícil, foi um desafio, uma novidade. Acho uma oportunidade
boa de mudar. Plantar soja era muito veneno. Aqui é mais arroz, horta, aipim, para
vender. O que plantar vende, tem comércio. Na nossa região, só vendia soja. Foi
muito difícil. Hoje está muito bem. No início, teve o sorteio dos lotes, onde as
pessoas iriam morar, as casas foram construídas a partir dos que mais precisavam.
(Moradora do Assentamento Trinta de Maio - COPAC).
Olhando para história da humanidade, conseguimos resgatar o que os povos
construíram ao longo de suas vidas, e o que ainda hoje carregamos como herança cultural dos
mesmos. Mas, o próprio tempo e o espaço onde estão inseridos os sujeitos oferecem
oportunidades de colocarem novos jeitos, costumes, características, formando sua própria
identidade, com a responsabilidade de preparar o ambiente onde viverão as gerações
posteriores.
Para Claval (2001, p. 63):
A cultura é herança transmitida de uma geração a outra. Ela tem suas raízes num
passado longínquo, que mergulha no território onde seus mortos são enterrados e
onde seus deuses se manifestaram. Não é, portanto um conjunto fechado e imutável
de técnicas e de comportamentos.
81
A cultura, portanto, representa a produção material e espiritual da existência, a
produção da consciência e a formulação de objetivos que poderão ser alcançados pela
sucessão de várias gerações, que a aprimorarão conforme o contexto.
Quanto aos aspectos relativos à vida no assentamento de reforma agrária do
MST e à forma como o camponês trabalha a sua dimensão cultural, observamos que é muito
forte o sentimento de possuir um pedaço de chão e de como trabalhar com ele.
Ao pensar sobre como irá organizar o seu lote, o camponês busca
conhecimentos acumulados em sua história de vida, colocando em prática a sua herança
cultural, resgatando jeitos que muitas vezes já estavam esquecidos. Mas, também passa a
adquirir novos conhecimentos, quando se defronta com um espaço totalmente desconhecido.
É então que aparece o desafio de juntar o aprendido com o que deverá aprender.
É tudo diferente, é outra produção, por enquanto é o leite, mas lá é pouco, mas hoje
o que mantém mensal é o leite e anual é a lavoura, o mercado se mantém na
verdade. (Morador do Assentamento Trinta de Maio – COPAC)
Aprender é olhar para o espaço do seu mais novo território e observar nele o
que ele oferece no aspecto da produção de alimentos, de lazer, de atividades culturais, de
organização política, de relações comerciais e de troca de produtos, de distribuição dos lotes,
de convívio das famílias assentadas neste lugar e com a comunidade em geral.
Quando o camponês trabalha a terra, no preparo e cultivo do feijão, por
exemplo, estará resgatando a sua cultura, porque, mesmo mudando de espaço físico e sendo
membro de um movimento social, ele não perdeu o hábito de cultivar feijão. Sendo assim,
sabe qual é o período do ano em que poderá plantar o grão, como fazer o preparo do solo, que
82
tipo de solo é mais adequado para o plantio, a época da colheita, o cuidado com a secagem do
produto, como estocá-lo. Todos esses conhecimentos fazem parte de sua trajetória de vida.
A cultura é feita de atitudes e de gestos. Ela comporta as técnicas do corpo: (...) No
campo e na fazenda, convém saber como e quando laborar, esterroar, semear, tirar a
erva, colher, e aprender onde guardar os animais, o que lhes dar para comer, como
os ordenhar e os atrelar. (...) O telhador reconhece num golpe de olhos a telha
fendida e a descarta.(...) Os gestos que se repetem indefinidamente sem jamais
terem sido questionados terminam efetuados maquinalmente. A vida cotidiana é
assim toda penetrada de automatismos: não há necessidade de parar para refletir, o
que convém fazer é conhecido; a situação pode ser avaliada num golpe de olhos.
(CLAVAL, 2001, p. 80).
Esta é uma dimensão da cultura trazida pelas pessoas: o fazer as coisas pelo
que já está automaticamente imbuído em seu ser. E isso se expressa quando os camponeses
sem terra chegam no assentamento e vão construindo suas casas, organizando o local da horta,
plantando para subsistência, para depois pensar no sentido de olhar o todo, de como construir
todas as relações necessárias para a viabilização do assentamento.
Edgar Morin (2001), ao estudar a interligação entre cultura e conhecimento,
infere que as manifestações e expressões do processo da construção da cultura se dão através
das representações e manifestações coletivas, “consciência coletiva”.
(...) Cultura e sociedade estão em relação geradora mútua; nessa relação, não
podemos esquecer as interações entre indivíduos, eles próprios
portadores/transmissores de cultura, que regeneram a sociedade, a qual regenera a
cultura. (MORIN, 2001, p. 19).
O ser humano o expõe, em todos os instantes de sua vida, seu processo de
mutação. Para alguns, esse processo ocorre muito rapidamente, seja pela convivência com
outros indivíduos, seja pelo constante movimento em vista das necessidades que lhes são
apresentadas. Com isso, vão se transformando e adquirindo novos jeitos, incorporando uma
nova cultura.
83
Na Cooperativa a gente tem contato com tudo, mercado, padaria, a produção de
animais, as visitas que acontece, gente vinda do exterior que fica um tempo
morando aqui, ai o setor social encaminha as visitas que chegam, a educação, a
religião, secretaria, aqui nós somos da mesma religião. Tem liturgia na religião é
todo o assentamento e a comunidade participa, também os individuais. (Moradora
do Assentamento Trinta de Maio – COPAC).
Nessa fala se evidencia a importância tanto dos momentos vivenciados em suas
vidas, quanto de sua fé, fatos bastante marcantes. Essa dimensão aparece muito fortemente
como uma necessidade, porque os camponeses tinham, em sua grande maioria, uma vida
religiosa ativa anterior ao assentamento, e a continuidade dessa atividade os faz sentirem-se
bem diante de si mesmos.
Ao iniciar a organização territorial do espaço do assentamento, o camponês irá
juntar os gestos e as práticas transmitidos como herança, mas será necessário criar e
incorporar novas técnicas. Não se pode frear a incorporação de elementos novos, quando são
apresentados como substitutos ou complementares aos já existentes, desde que não se
contraponham aos princípios de organização estabelecidos pelo MST.
Para Bogo (2000, p. 83), quando se refere ao MST
O conhecimento deve ser um pilar fundamental para desenvolver nossa revolução
cultural, pois devemos resgatar experiências positivas e compará-las como nossa
realidade cultural para chegar a uma síntese exata do que devemos fazer, para evitar
influências de conhecimentos atuais que prejudicam o avanço da organização social
e de produção do campo.
A busca do conhecimento deve sempre estar presente em todas as situações a
serem enfrentadas pelos grupos, tanto no sentido de resolver dificuldades apresentadas no
cotidiano, quanto de buscar o bem-estar do ser humano e do coletivo a que pertence. A
experiência individual e a coletiva são a referência básica do conhecimento. Sempre que
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surgem dúvidas, o cérebro automaticamente liga-se ao passado e a tendência natural é
comparar a situação atual com outra situação já vivificada, para daí tomar uma decisão.
Na grande maioria das pessoas assentadas poderá ocorrer um choque cultural
grande entre o que vivenciaram historicamente e o que se apresenta em termos de organização
para a construção do assentamento. Provavelmente, as pessoas entrarão em conflito, quando
se apresentar uma situação em que a organização, que é o MST, proponha um novo jeito de
organizar os lotes do assentamento, de forma coletiva ou associativa de trabalho.
Esse conflito se apresentará em função do que provavelmente tiveram como
experiência, ou seja, uma forma individualizada de trabalho. Além do que é também como a
sociedade se apresenta. Aqui, sim, terá que existir um processo de aprendizado com o novo,
buscando conhecimentos técnicos e teóricos com experiências de grupos ou organizações que
já experimentaram formas coletivas ou associativas de trabalho e convivência.
À medida que se desencadeia a organização do assentamento e os desafios se
apresentarem, os camponeses tomarão consciência da realidade existente e do construir de um
novo espaço. Aprenderão, certamente, sobre a organização da produção do assentamento, a
comercialização dos produtos, o cuidado com a mãe terra, as relações sociais, a estrutura da
sociedade, a dimensão das relações políticas, a construção coletiva do trabalho, o cuidado
com as crianças, com os jovens, com os adultos, com os idosos, enfim, sobre uma vida mais
sustentável.
Nesse sentido, uma nova construção cultural se apresenta para o camponês
que, aos poucos, estruturará uma nova identidade coletiva, a partir do novo espaço territorial
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do assentamento. Essa identidade se vinculará a esse lugar e espaço em movimento, e com o
que existir nele.
(...) A identidade territorial, ou seja, um conjunto concatenado de representações
sócio-espaciais que dão ou reconhecem uma certa homogeneidade em relação ao
espaço ao qual se referem, atribuindo coesão e força (simbólica) ao grupo que ali
vive e que com ele se identifica. (HAESBAERT, 1997, p. 50).
Os símbolos e imagens que materializam a identidade só adquirem valor
quando incorporados a processos voluntários coletivos, a partir de uma perspectiva interna.
Isso tende a se expressar numa tomada de consciência política que dá ao conceito de
identidade um sentido territorial.
No caso de um assentamento, a constituição desse novo espaço perpassa a
construção de sua identidade, quando a maioria das pessoas que moram neste local se
identifica, por exemplo, com a organização política que é o Movimento. Assim, passando a
compreender como funciona a estrutura sócio-política da organização, suas atitudes irão
revelar o sentido da vida do Movimento.
Isso ocorre também quando o coletivo pensa uma estratégia única de
organização da produção do assentamento, a viabilização para cada família, como a renda será
distribuída. Criam-se, nesse momento, condições para que a coletividade partilhe os seus
desejos e desafios, aumentando a cumplicidade do grupo e a identificação com algo. Esses
argumentos podem ser referendados pelos estudos realizados por Haesbaert (1999, p. 175):
Identificar, no âmbito humano-social, é sempre se identificar, um processo
reflexivo, portanto, e identificar-se é sempre um processo de identificar-se com, ou
seja, é sempre um processo relacional, dialógico, inserido numa relação social.
Além disso, como não encaramos a identidade como algo dado, definido de forma
clara, mas como um movimento, trata-se sempre de uma identificação em curso, e
por estar sempre em processo/relação ela nunca é una, mas múltipla.
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Esse movimento em curso poderá acontecer nessa identificação dos sujeitos
com suas próprias origens, tentando encontrar no grupo onde estão inseridos aqueles que são
os seus iguais, construindo uma nova identidade diante do próprio coletivo. Nesse caso, existe
uma identificação simbólica com suas raízes culturais e com o concreto que são as novas
relações com seu coletivo.
Quando as raízes culturais são trazidas para os grupos de famílias assentadas,
percebe-se a necessidade de estarem próximas. Na organização do espaço do assentamento,
ali se encontram os que se identificam e, aos poucos, o espaço torna-se de seu jeito, na casa,
no lote, nas propostas trazidas para o conjunto do assentamento.
O simbólico, nesse caso, é forte, e pode ser percebido desde o jeito de cada
origem cultural sentar em roda para tomar o chimarrão, e como acontece o ritual de seu
preparo, e até o preparo dos alimentos. Há quem cultive sua horta individual, mesmo tendo
uma coletiva no assentamento. Qual será o significado desse ato? Ao perguntar se as famílias
ainda cultivavam algo em seu lote próximo a sua residência, a resposta vai expressar o que
significa esse ato para cada um deles:
Galinha, pomar, horta pega lá na horta, eu não pago nada dos alimentos. Uma vez
discutimos que não era para criar. Sempre gostei de criar galinha, ovos, meu
porquinho, hoje já tenho. Cada um gosta de ter, cada um é livre para fazer. A carne
que pegamos na cooperativa pagamos a preço de custo. Os ovos caipira muitos
gostam e a gente vende. È difícil eu pegar ovos no aviário. Até quando vamos
trabalhar no mercado, as pessoas pedem lá no mercado. Os da cooperativa hoje
também já são caipira, mas não são identificados. (Morador do Assentamento
Trinta de Maio – COPAC)
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Esse depoimento expressa a necessidade de as pessoas, que estão vivenciando
um processo coletivo de produção, ainda cultivarem seus alimentos e criarem seus animais no
lote onde fica a sua casa, de forma independente, individualmente.
Uma outra dimensão bastante observável está relacionada à identidade com o
território onde os sujeitos estão inseridos, como esclarece Haesbaert (1999), uma identidade
sócio-territorial. Quando identificado com o território, o sujeito constrói seus símbolos que
passam a ser uma representação simbólica ou concreta que, muitas vezes, ultrapassa a
dimensão do território.
Talvez, para os assentados, a identificação com o território passe a construir
sua identidade territorial, à medida que sua luta foi intensa por esse pedaço de chão, que passa
a ser a sua simbologia e também o sonho transformado em algo concreto, a sua terra. Sendo
ela a manifestação de seus desejos pessoais e coletivos, respeitando as duas dimensões e
desenvolvendo um processo permanente de solidariedade entre ambos.
Nesse espaço concreto sócio-territorial que é o assentamento, a perspectiva e a
esperança residem em transformar aquele sujeito que não se considerava mais incluso na
sociedade em sujeito participativo e ativo na sua própria reconstrução, no coletivo ou grupo
em que está inserido.
Ao construir esse espaço ele projetará esse novo a partir do seu vivido, do seu
contexto histórico e do imaginário social, daquilo que é mais forte em sua história. A sua
identidade passa a ser o seu território com suas referências anteriores ou não. Pode, então,
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construir realmente o novo a partir da identidade de ser um assentado sem terra e da sua mais
nova cidadania.
O jeito de trabalhar é diferente, Mas a gente já pegou o jeito de trabalhar deles, os
costumes dos outros? Cada um pegou um pouco. Nosso jeito às vezes eles não
sabiam, meu marido tinha comidas que ele nunca tinha comido, minha sogra só
fazia as coisas do italiano, ai eu comecei a fazer comida dos brasileiros. Exemplo o
pão de milho, nunca tinha comido, hoje ele gosta. Canjica, revirado de feijão, eles
aprenderam, eu aprendi deles. (Morador do Assentamento Trinta de Maio –
COPAC).
Através do depoimento das pessoas, percebe-se a troca de conhecimentos e de
vivências feitas no dia a dia; a mudança necessária para a postura individual e coletiva de
cada sujeito para, assim, construir uma identidade que responda para realidade do
assentamento.
Nesse sentido é pertinente dizer que todo este processo de construção de
afirmar e reafirmar o seu sonho que é a conquista da terra, do seu assentamento, cria no
sujeito a sua identidade com aquele ambiente, organizando-o de maneira a resgatar a sua
cultura e também estabelecer novos vínculos de relação não só no local, mas também no
geral.
4.2 Convívio nos assentamentos
Adentrar no convívio do assentamento coloca-nos frente a frente com a
realidade do que é a vida no mesmo. O período em que permaneci desenvolvendo a pesquisa
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me permitiu momentos de vivência e percepção das relações estabelecidas entre as famílias e
as próprias pessoas.
As realidades são diferenciadas em função da localização dos assentamentos e
das origens de cada um. O assentamento Trinta de Maio é formado por famílias que já haviam
decidido ir para o mesmo local juntas quando assentadas, pois desde o período do
acampamento já formavam núcleos de trabalho, sendo aí o início do processo de identificação
entre os mesmos.
Um grupo de famílias desse assentamento possui uma identidade de
parentesco, outras construíram laços de amizades, que até hoje ajudam na convivência diária.
A origem étnica dessas famílias é diferenciada, sendo constituída por alemães, poloneses,
italianos, e caboclos, vindos principalmente da região do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul.
A convivência dessas famílias, anterior ao assentamento, acontecia em
comunidades do meio rural na sua totalidade. Alguns eram filhos de pequenos agricultores
que possuíam um grande número de filhos, cuja terra não seria suficiente para sustentar a
todos; outros eram arrendatários, alguns pequenos proprietários, que deixaram a terra para os
pais ou irmãos.
Essa relação de comunidade vivenciada anteriormente possibilitou a
organização das famílias em agrovila no assentamento Trinta de Maio, onde moravam
inicialmente todas as 46 famílias. Entretanto, o fato de algumas famílias não se adaptarem ao
processo de cooperação instalado levou-as a construir suas casas na sua própria área de terra.
90
A saída se deu principalmente por fatores de organização do trabalho, de produção e por
questões culturais que, no meu ponto de vista, são históricas.
Ao mesmo tempo em que as pessoas dizem que morar na agrovila ajuda muito
no processo de cooperação, nas atividades da cooperativa, no convívio do lazer, nas horas da
troca de idéias, no comunicado de qualquer atividade, por outro lado, parece não existir a
individualidade de cada família. Alguns depoimentos demonstram essa situação como o que
segue: “não dá para falar muito alto aqui em casa, porque a vizinha ouve tudo”. Inclusive
aparecem sugestões para que as casas fossem construídas com mais distância uma das outras:
Os lotes foram medidos e sorteados, claro que teve gente que era muito pequeno
alguns queriam criar os bichos que tinha lá fora, uma casa do lado da outra num
momento não foi fácil, ficava muito perto, mas hoje a gente até aceita assim.
(Morador do Assentamento Trinta de Maio – COPAC)
A organização do espaço da agrovila também possibilita melhor deslocamento
entre os setores de trabalho e a comunicação entre as famílias. A sua forma, em círculo,
permite um espaço grande no centro reservado à área do setor social, escola, campo de
futebol, creche, área verde, secretaria da cooperativa e centro comunitário onde se realizam os
encontros, as festas, as celebrações religiosas, os casamentos.
Nos depoimentos das pessoas, o que ficou evidente é que aquelas que
permaneceram na cooperativa estão com muita atividade em função da estrutura da
cooperativa e da sua exigência de trabalho no dia a dia, o que faz com que as pessoas tenham
pouco tempo para conviverem juntas, tomarem um chimarrão. Seria a falta de um momento
mais descontraído.
91
Lá fora tem mais tempo para família, se dá para eles irem capinar as três da tarde o
importante é eles terminarem o pedaço aquele que eles tem para capinar, já nós aqui
é diferente, porque aqui é mais corrido, porque lá o serviço é determinado meses,
aqui são o ano todo, porque produzimos de tudo, toda a cultura envolve o tempo
todo. Lá eles tiram o tempo para a família, eles vão mais tarde trabalhar, saem mais.
(Morador do Assentamento Trinta de Maio – COPAC)
Isso significa, em suas falas, que já não fazem mais o que os seus antepassados
faziam. O convívio com os vizinhos acontece muito raramente. Na cultura do camponês,
construir um espaço de tempo para tais atividades sempre foi muito importante, e percebo que
na cooperativa já não aparece mais como destaque.
O jeito de viver lá de fora e o jeito de viver aqui é diferente, sim é diferente, uma
vez aqui se reunia todas as mulheradas, tomar chimarrão comer pipoca, hoje
ninguém mais vai, sair numa casa fazer serão, quando alguém dava de aniversário
saiamos fazer surpresas comer risoto, hoje ninguém mais faz nada disso cada um
fica na sua casa. (Morador do Assentamento Trinta de Maio – COPAC)
A realidade que aparece nas relações entre os membros da família demonstra
que não possuem mais um convívio temporal, pois os horários de trabalho e de escola não
permitem mais que se encontrem. Alguns acordam muito cedo, iniciando o trabalho
imediatamente; para outros o horário é mais tarde; as crianças que vão à escola no
assentamento precisam seguir o horário da escola enquanto seus pais, muitas vezes, estão
trabalhando; as linhas de produção da cooperativa dificultam o encontro da família, apesar de
o espaço ser o mesmo, ou seja, a área do assentamento.
A convivência é muito difícil o pouco tempo entre as pessoas de casa, família, nós
sentar toda a família não é fácil. (Morador do Assentamento Trinta de Maio –
COPAC).
As famílias que moram em seus lotes no assentamento Trinta de Maio e que
fazem parte da associação, na sua grande maioria, apresentam diferentes realidades. Essas
famílias, num total de 19, saíram da agrovila e da cooperativa, e seus depoimentos
demonstram outra relação no convívio entre elas. O tempo que o camponês geralmente
92
reserva para a visita entre as famílias aparece com mais destaque e também como momentos
de lazer.
A gente continua assim a se dedicar fez bastante amizade aqui ou em Charqueadas
e agora já tem uma amizade muito grande com o pessoal eles vem os domingo pra
cá nos aqui em casa é todos domingo que não podemos sair quase sempre cheio de
gente do movimento e de Charqueadas que vem, né? (Morador do Assentamento
Trinta de Maio - Associação)
Nesse grupo de 19 famílias, ainda é possível encontrar o tempo de descanso
para o café da tarde. Aqueles que estão em suas atividades de trabalho, alguns levam o seu
lanche e têm o momento de parada durante o trabalho. Essa é a cultura que vem sendo
repassada para o camponês pelas gerações anteriores.
A disponibilidade de “entre ajuda” nas famílias é muito grande e isso foi
explanado em vários momentos, desde a questão do lazer, do trabalho, da necessidade de
atendimento de saúde e cuidado com as crianças. As mulheres dedicam uma parte de seu
tempo também para as questões sociais que vão além de sua família e assentamento.
Olha, nós aqui estamos fazendo. As mulheres trabalham juntas. A gente tem
associação que estamos agregados ai. Aqui está diferente é mais ajuda entre os
vizinhos. Temos um projeto encaminhado pra comprar tratores para as famílias.
(Morador do Assentamento Trinta de Maio – Associação)
Já no assentamento Dezenove de Setembro, no município de Guaíba, encontrei
uma realidade bem distinta, visto que os assentados, em sua maioria (29), moram na agrovila
onde alguns têm sua casa no próprio lote e outros não. Os demais (08) moram em seus lotes
individuais no outro lado da estrada. A agrovila existe porque o início do assentamento foi a
partir de uma cooperativa de produção coletiva, inclusive com refeitório coletivo. A posição
geográfica dos oito lotes de terra permite que os moradores individuais tenham suas casas
93
bem próximas, proporcionando um convívio maior entre estas famílias de moradores,
inclusive na troca de serviços.
Das famílias que moram na agrovila, algumas têm suas residências na
continuidade de seu lote de terra, outras possuem o lote em outra área do assentamento, o que
dificulta as atividades de produção. Nesse caso, o convívio maior entre as famílias acontece
mais pelo nível de parentesco ou pela procedência do mesmo município, como também pela
identidade construída durante o período de acampamento e de assentamento. Registrei em
alguns momentos relações de convívio numa dimensão muito maior do que se fosse uma
família de descendentes consangüíneos, onde o aprendizado é uma troca constante.
Nesse assentamento, também observei as pessoas com tempo para os minutos
de encontro entre as famílias, para a conversa na roda do chimarrão, e nos finais de semana,
para os encontros na comunidade. Alguns até destacam que antes do assentamento as
atividades nas comunidades eram até diferentes entre os homens e as mulheres, aqui todos
participam juntos.
Geralmente quem passou por um processo uma comunidade rural tem todo uma
ligação com a comunidade de lazer de festividades e tal aqui a gente conseguem ter
uma comunidade, uma relação de convivência. (Morador do Assentamento
Dezenove de Setembro)
A realidade vivenciada pelas famílias aos poucos cria um processo onde os
camponeses trabalham sua própria identidade, territorializando-se neste lugar o assentamento,
e ao mesmo tempo criando uma espacialidade que vai além do assentamento e envolvendo o
conjunto do MST.
Conforme afirmado anteriormente, considero esses dois assentamentos
pesquisados como sendo três, devido à realidade apresentada no assentamento Trinta de Maio,
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cujos membros vivenciaram situações de convivência nas suas comunidades anteriores ao
assentamento algumas vezes semelhantes, outras vezes diferentes, evidenciadas a partir de
informações históricas e das circunstâncias sociais passadas que se refletem agora no
assentamento:
A grande maioria era formada de filhos de pequenos produtores
rurais, com grande número de filhos, cuja terra não dava para
sustentar a todos;
Um número significativo de famílias é constituído por
empregados de grandes fazendas de soja da região central e
noroeste do Estado do Rio Grande do Sul;
Algumas famílias foram expulsas pelos colonos da área
indígena de Nonoai;
No assentamento Dezenove de Setembro as famílias vêm de
várias regiões do Estado do Rio Grande do Sul, aqui
apresentando uma diversidade maior;
Algumas famílias já moraram no Centro do país como
proprietários de terra plantando soja;
Uma família morou no Estado do Pará onde era proprietária de
terras num projeto de colonização;
As origens étnicas são variadas, com descendentes de africanos,
indígenas, alemães, poloneses, italianos, portugueses, russos,
espanhóis e também com ocorrência de miscigenação;
A grande maioria possui experiência de vivência comunitária
nas suas comunidades de origem, com a construção de centros
comunitários realizados pelas próprias famílias;
Os credos religiosos são diversificados, apesar de predominar a
religião católica;
Um número significativo de camponeses era sócio do sindicato
dos trabalhadores rurais;
A maioria participou de mobilizações e lutas em relação ao
crédito agrícola;
95
O fato de virem da mesma comunidade permitiu às famílias se
organizarem para acampar juntas;
Há forte identificação com a Pastoral da Terra, inclusive com
alguns participando na sua organização;
Efetivação de troca de experiências de serviço em período de
colheita da safra;
Há troca de alimentos entre as famílias quando da produção e
do cultivo de produtos diferenciados;
Muitos quando acamparam já eram casados, portanto já se
conheciam na comunidade onde nasceram;
A grande maioria das mulheres é filha de pequenos agricultores
e a sua experiência de trabalhar na roça vem desde a infância;
Um número muito grande de mulheres não foi acampar junto
com o marido, ficando na sua comunidade de origem para
garantir a alimentação e, na maioria das vezes, ficaram morando
com seus familiares.
Apesar de as famílias apresentarem perfis de situações semelhantes que, muitas
vezes, têm uma continuidade dentro do assentamento, em alguns momentos isso também
parece interferir, provocando o afastamento das próprias famílias. A diferença do outro, em
algumas ocasiões, é difícil de ser aceita.
Aqui também podemos citar experiências que mostram as diferenças anteriores
existentes que, ao serem transferidas para o assentamento, precisam de um tempo para seu
conhecimento e adaptação, como em alguns casos a profunda resistência à mudança.
Em algumas origens que realmente são desbravadores que não tem medo de tocar
uma terra de plantar um pedacinho de terra que tem. (Morador do Assentamento
Dezenove de Setembro).
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As regiões de origem são um fator de agrupamento entre os iguais no
assentamento; a origem étnica é outro fator e traz consigo toda sua raiz cultural e histórica,
que, no caso, também aproxima os iguais e afasta os diferentes.
A relação de convivência nos assentamentos demonstra de um lado uma
tentativa de superação dos limites que vão aparecendo no processo de construção da
comunidade assentada, e de outro, como a experiência mostra, que é possível aceitar a
diferença do outro nos mais diferentes níveis.
4.3 A cultura na organização da produção
Na organização da produção encontrei muitos elementos que fizeram constatar
a interferência da história de vida do assentado no momento de cultivar a terra e no jeito de o
fazer, bem como quais as culturas a serem produzidas. Isso evidencia claramente o que Claval
(2001, p. 183-184) expõe:
As configurações culturais não ficam congeladas. Há momentos em que os valores
até então aceitos são criticados, porque não correspondem mais aos imperativos da
vida econômica ou às necessidades da vida de relações. As técnicas mudaram. Os
valores tradicionais convinham bem a um universo rural, onde a vida local
predominava. Para estruturar as sociedades ampliadas, fazem-se necessárias outras
motivações.
Os assentados, originários de diferentes lugares, com etnias diferenciadas e
agora reunidos num mesmo lugar, no momento de iniciar o preparo da terra para a retirada de
sua alimentação e também para a produção econômica, misturam os conhecimentos, os jeitos
97
e a cultura. Nesse momento se inicia uma nova relação na organização do espaço geográfico
do assentamento. Como as pessoas tendem a fazer aquilo que elas já conhecem, o confronto
com o ambiente novo aqui é inevitável. Num primeiro momento, apareceu em todos os
assentamentos pesquisados a tendência a organizar o solo, a fazer o plantio, a cultivar as
plantas, a desenvolver a produção pecuária do jeito que já conheciam. Cito algumas
colocações dos assentados:
Aqui no início a gente plantou feijão, milho, soja, depois vimos que não dava tudo
o que a gente plantava lá “fora”.
A terra aqui é muito cheia de areia a gente não consegue plantar.
Tivemos que procurar até um cantinho de terra aonde a gente podia plantar a
mandioca e também a batata doce.
Até para a horta é muito molhado, às vezes bate a “mofadeira” na alface.
Em alguns lugares nem dá para soltar o gado, porquê o pasto não vem.
A gente não planta as frutas, a terra não é boa, também o vento é muito forte, faz já
anos que plantei estas frutas e elas não vem, vou continuar teimando até conseguir.
As “miudezas” de casa aqui não dão, quando a gente vai lá fora a gente trás para
comer e plantar.
Como gostaria de plantar o que eu plantava, dá saudade.
As vacas eram mais rústicas, o leite era para o consumo e fazer queijo.
O porco a gente matava e dividia a carne entre os vizinhos, vazia a banha, torresmo
para nóis.
Até algumas flores no jardim não vem, a gente planta e perde tudo.
Os camponeses, ao se referirem ao jeito como querem cultivar a terra, revelam
sua necessidade de manter aquilo que já conheciam, seja na produção de leite, seja no cultivo
do milho, da soja, dos produtos de subsistência. Nos depoimentos, observa-se que, embora
passados 14 anos, ainda essas pessoas não se conformam que certos produtos não podem ser
cultivados em função de estarem em outra região geográfica onde as condições físicas
necessárias não são mais favoráveis para àquele cultivo tão conhecido.
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Esse sentimento é algo que está dentro das pessoas assentadas, pois foram
gerações produzindo determinados cultivos e agora não conseguem mais. Parece que fica um
sentimento de perda interior muito grande. No sentimento expresso pelas pessoas perpassa
uma vontade de retorno para viver daquela maneira.
Lá fora nos produzíamos como agricultor, mas cada um tinha o seu lote. E quando
nos entramos aqui, a discussão dentro do movimento era de fazer uma produção
coletiva e ai tenta. E ai fica uns sete anos trabalhando. Na verdade a proposta de
trabalho é boa, a estratégia que tem este trabalho que nos começamos aqui no
assentamento Trinta de Maio é boa, mas eu não sei se foi por que nos fomos
acostumados de uma outra forma, em um outro tipo de trabalho que chegou um
ponto que nos saímos por fora e viemos pro sonho original que era trabalhar no
nosso lote, fazer do nosso jeito. Sem um trabalho totalmente coletivo, que nem aqui
que temos varias coisas em que trabalhamos juntos, temos a associação onde há a
cooperação, um ajudando o outro, mas cada um faz a partir de seu planejamento
familiar. Mas certo ou errado, ta mais ou menos como nos havíamos planejado
quando nos entramos na organização. (Morador do Assentamento Trinta de Maio –
Associação 15 de Abril).
Esse depoimento tenta trabalhar a dimensão do retorno ao processo de
produção anterior ao assentamento que, mesmo não conseguindo desenvolver os mesmos
cultivos em função de a localização geográfica ser diferente, a organização da produção
familiar é retomada através da ajuda entre os vizinhos, como nas comunidades de origem,
sendo isso muito significativo no contexto pessoal.
Tem gente que ainda não se acostumou e quer voltar a morar lá na sua região, quem
sabe até um dia as pessoas podem voltar, ninguém obriga ninguém. (Morador do
Assentamento Trinta de Maio – COPAC).
Esse depoimento revela o respeito pela cultura do outro no sentido de não
conseguir se acostumar a morar e viver neste processo produtivo e em outra região geográfica
que, para eles, é muito diferente. São sentimentos que, às vezes, a racionalidade humana não
consegue compreender, é aquilo que está em seu inconsciente.
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Outro elemento que aparece tanto no Assentamento Trinta de Maio quanto no
Assentamento Dezenove de Setembro é o fato dos camponeses já terem trabalhado como
empregados e saberem lidar com máquinas de grande porte. Essa experiência de trabalhar em
grandes áreas com máquinas foi transportada para dentro do assentamento. No início do
processo, isso levou a divergências de pensamentos para aplicação dos recursos, e também de
como organizar a produção.
Nos, pessoal eram uns do lugar outros do outro era tudo espalhado e aí viemos para
cá, a única forma de ser assentado era a cooperativa porque o governo exigiu, uma
idéia de trabalhar, só que quando nos fomo para prática o troço complicou, porque
nós o que nos administremos com a cooperativa que nasce não tinha nada, só tinha
mato um banhado e pernilongo nos tinha um monte de criança e coisa junto que
veio do acampamento o que nós fizemos o pessoal saía para trabalhar e o dinheiro
era colocado no coletivo, era comprada alimentação no coletivo, tudo coletivo, a
prioridade era das crianças e depois se sobrasse comida todos comia e quando nos
cheguemos aqui até pesca era coletiva pessoal saía pescado ou achava tatu que
achasse ia para a cozinha alia e repartindo tudo e sempre a prioridade era as
crianças, quando que a coisa vai bem e fácil de lucrar. Mas o pessoal ta um ano em
cima da terra olhavam pra trás e tava morando no barraco, ai o pessoal começa a se
perguntar era pouco valeu a pena, então como é sobra os problemas da cooperativa
ai nós com consegui-lo com ficassem trabalhando um ano na e aí começou a vim
problemas, um pessoal tinha um jeito de ir trabalhar, outros tinha outra, depois
tinha pessoas que trabalhavam na lavoura mas sempre de empregados de outro de
Granjeiro, ai pra ti ver no primeiro financiamento que nós peguemos foi comprado
um trator, um Grande, que até para granja era grande então foi investido muito mal,
ai ouve um descontentamento que o pessoal queria é a vaca de leite, foram voto
vencido lá ficaram descontentes e aí o pessoal já como não entrava dinheiro então
porque vou trabalhar pessoas não estavam mais dono do troço e aí saiu um grupo de
6 famílias da cooperativa. (Morador do Assentamento Dezenove de Setembro).
Aqui se apresentam tanto os momentos iniciais de um processo coletivo de
produção, como também as dificuldades apresentadas no momento de decidir o que fazer e o
que produzir. Esse depoimento revela as diferenças explícitas nas raízes históricas de suas
vidas e o não-conhecimento do lugar onde passaram a viver. É necessário conhecer as
relações que a natureza nos apresenta diante do ambiente em que vivemos, conforme
argumenta Claval (2001, p. 219):
O ambiente só tem existência social através da maneira como os grupos humanos o
concebem, analisam e percebem suas possibilidades, e através das técnicas que
100
permitem explorá-lo: a mediação tecnológica é essencial nas relações dos grupos
humanos com o mundo que os rodeia.
Esses conflitos apresentados se manifestaram também pela falta de um
acompanhamento técnico do próprio Estado, de uma infra-estrutura mínima necessária, de
condições a que foram submetidas essas famílias ao iniciarem o assentamento.
Eu acho que este é o ponto principal que não só eu, mas que outros companheiros
que estão dentro da cooperativa e estão lá. Esse é um dos pontos que dentro da
produção, não falando da política, deu muita divergência e continua dando e eu
acho que este pessoal da cooperativa te um equivoco muito grande por que nos
fomos criados e orientados por nossos pais em dar o passo conforme as pernas
alcançassem. Então em primeiro lugar nos não conhecíamos a região e mudamos de
região. Muda o solo, o clima e um monte de coisas e ai tinha um sonho dentro do
movimento naquela época que era de reproduzir o modelo dos fazendeiros, fazer
uma grande granja. Mas ai a gente via que nos éramos parte desse pessoal e nos
divergíamos e daí não aconteceu isso. De onde nos viemos à tecnologia que nos
usávamos era uma tecnologia mais braçal e tem um outro pessoal que ta assentado
com nos ai que venho de uma outra região, onde a tecnologia deles era mais
avançada, já era com máquina e coisa e ai deu bastante divergência. Porque ai já
não se queria criar mais a galinha caipira, o boi e o porquinho, não queria mais
fazer a banha, o açúcar de cana, por que lá nós criamos dessa forma. E ai hoje, eu
não quero tirar a razão nem deles e nem nossa, por que hoje nos temos uma
convivência mais ou menos pacífica. Mas hoje eles têm uma tecnologia que esta
inutilizada e na verdade duns três anos pra cá poderia ter sido retomada. Por que a
produção que eles produziam não era viável e a uns três anos voltou a ser e eles têm
de tudo lá dentro, desde o arado pra lavrar a terra, até o descascador do arroz. E tu
vai ver as máquinas, a maior parte deles esta sendo abandonada. Então eu acho que
foi dado um passo, não nós aqui, mas a própria organização como um todo teve um
sonho muito grande. E os erros acham que é muito mais nosso não conseguimos
acompanhar. (Morador do Assentamento Trinta de Maio, Associação).
Os dois depoimentos demonstram a dificuldade enfrentada nos dois
assentamentos quanto à falta de infra-estrutura para o início da produção, como também
revelam a predominância de idéias de como a produção seria conduzida e a experiência
anterior manifestada na vivência da produção. Os dois assentamentos tiveram como ponto de
partida um processo produtivo coletivo com a idéia de produzir em larga escala manifestada e
concretizada na compra dos implementos agrícolas de grande porte.
101
FOTO 1 – ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO - ALGUNS ASPECTOS DA INFRA-
ESTRUTURA: SALA DE ORDENHA.
FOTO 2 – ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO - INFRA-ESTRUTURA: SILO.
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: 20/Maio/2005
102
Também aqui está revelado um outro sistema de produção desenvolvida com
tecnologia avançada e cujas culturas de subsistência não estariam no primeiro nível de
prioridades. Isso gerou uma inconformidade por parte de algumas famílias expressa a partir
das culturas diferentes decorrentes das origens das famílias.
Outra grande dificuldade encontrada na organização da produção foi a falta de
conhecimento sobre a região dos assentamentos, pois as áreas dos dois assentamentos
apresentam um solo arenoso e grandes áreas de banhado, próprias para o plantio do arroz
irrigado. Os camponeses até então não conheciam essa modalidade de cultivo do arroz.
Alguns camponeses até argumentam que seria interessante conhecer antes a
área do assentamento e o que se poderia produzir nela, para que tivessem direito de opção
pelas áreas onde seriam assentados. Dessa forma, se evitaria a dificuldade de adaptação e o
resultado da produção seria mais rápido.
O universo onde vivem os homens, os ecúmenos, é um espaço transformado para
responder às necessidades materiais dos grupos e permitir seu funcionamento.
Implica a valorização dos recursos e das qualidades próprias dos lugares (...), e a
consideração dos condicionantes e dos riscos. Isto necessita conhecimentos,
técnicas materiais e a definição de formas adequadas de divisão e de apropriação do
espaço. (CLAVAL, 2001, p. 220).
Um comentário feito por um camponês do Assentamento Dezenove de
Setembro revela que, no momento em que chegaram, eles sentiram uma sensação tão grande
de estar em um lugar abandonado, sem local para a água, mesmo estando em cima de um
banhado. Ele disse que, se o caminhão não tivesse partido no momento que haviam
descarregado as poucas coisas que trouxeram, todos teriam ido embora junto com o caminhão.
Comenta que hoje já aceitam o lugar, embora a situação seja difícil, porque a terra não possui
as mesmas características daquela de onde vieram e os jeitos de produzir nela são diferentes.
103
Aprenderam a conviver com mundo urbano, a ter relação direta de venda com as famílias que
moram em bairros pobres que os identificam como colonos e, para eles, isso gera confiança.
Essa relação do mercado consumidor (Guaíba e Porto Alegre) com seus produtos traz para as
famílias dos camponeses enorme segurança.
Os primeiros anos, segundo o depoimento dos assentados, foram de grande
dificuldade, porque esta terra teria que ser preparada para a produção do arroz.
O início foi muito difícil, não conseguia me acostumar a plantar estas coisas.
(Morador do Assentamento Trinta de Maio).
Aqui não tinha nada era capim e eucalipto né, mas você sabe passava fome e
choravam chorava tipo bicho e não tinha água e a gente ia pegar na Vila e eles não
davam água às vezes, e ai a gente juntava e usava da valeta e nós não conhecia essa
água; essa água é tóxico e nois não sabia. A gente lavava roupa na valeta de água,
tomava banho e também fazia comida. As coisas que a gente fazia com a água
ficava tudo preto e duro. As crianças tomavam banho e ai pegava até ferida, foi
muito ruim tudo no início. (Morador do Assentamento Dezenove de Setembro).
A saída encontrada foi à organização de uma horta com o objetivo de produzir
para o consumo das famílias e também para a comercialização. No Assentamento Trinta de
Maio, foi o que proporcionou às famílias condições para sobreviverem nos anos iniciais.
Todavia, foram aparecendo novos limites, porque até então a cultura das hortaliças era para os
camponeses, só para o consumo familiar, e a partir dali passa a ser fonte de renda para a
sobrevivência das famílias.
O desafio, então, foi aprender um novo jeito para a produção em escala maior
para a comercialização cujo benefício seria a manutenção das famílias. Nesse contexto, nasce
também o aprendizado para uma agricultura agroecológica, um dos princípios do MST no que
se refere à produção agrícola. Aqui se mistura o conhecimento novo com o conhecimento
104
anterior já acumulado e o que é produzir em maior escala para o mercado e sem usar produtos
químicos. Aprenderam também novas tecnologias como a irrigação da horta.
Teve momento que nós deu vontade, mas nós nunca curvou a cabeça nunca são
momentos passageiros de dificuldade que muita gente pensa em desistir mais eu
acho que não era o momento não era a saída e continuamos trabalhando no entanto
então 13 anos agora em dezembro que nós estamos assentados. (Morador do
Assentamento Dezenove de Setembro).
Uma nova relação também aparece, pois a horta é única para todo o
Assentamento. Na cooperativa, todos os assentados buscam na horta coletiva desde o tempero
até as verduras e hortaliças. No início, foi difícil o fato de não-possuir a sua própria horta.
Disso adveio um choque cultural muito grande, porque até então cada um era acostumado a
produzir o seu alimento conforme suas necessidades, costumes e épocas. A dificuldade de
adaptação a essa nova organização foi vivenciada por muitos anos e, ainda hoje, alguns
sentem a necessidade de ter tudo em seu lote, no mesmo local onde a sua residência foi
construída.
E, né, fica melhor individual e melhor pra criar os bichinho da gente nem lá no
assentamento daí cada um tinha um terreno daí a dificuldade de criar uma galinha,
um porco (...). (Morador do Assentamento Trinta de Maio – Associação Quinze de
Abril).
Uma outra situação também apresentada pelos sócios da cooperativa diz
respeito também a tudo o que se refere às “miudezas” assim chamadas por eles a criação de
galinhas, de porco para obtenção da carne e da banha, de vaca de leite. Alguns até
argumentavam: “Por que precisamos pegar o leite lá na cooperativa para fazer o nosso queijo?
Não é a mesma coisa de a gente ter o próprio”. Senti nessa argumentação a necessidade de as
pessoas fazerem as suas próprias coisas; é algo que está em seu âmago, na sua essência.
105
Sim eu acredito que neste aspecto o entrosamento de uma origem com outro. Tem
coisas que tu nunca vai tirar de uma origem. Mas a idéia não é tirar é preservar e
construindo. Seria uma nova cultura. (Morador do Assentamento Trinta de Maio).
Como menciona Claval (2001), a cultura está nos gestos, nas atitudes, no fazer
da sua vida aquilo que as gerações passadas fizeram, mesmo que venham incorporados novos
significados.
Quando me refiro à herança cultural que é muito forte, essa se comprova
quando os assentados que saíram da cooperativa imediatamente retomaram a criação de suas
galinhas caipiras, suas vacas de leite, a criação de pequenos animais. Isso ocorre tanto com os
assentados das Associações, como os do Assentamento Dezenove de Setembro.
Essa retomada do jeito de viver e produzir também acontece com esses
produtos, quando o excedente é comercializado para obtenção de fonte de renda. Nos dois
assentamentos, observa-se essa realidade e ela se intensifica muito por estar próxima à sede
dos municípios. O Assentamento Dezenove de Setembro, de Guaíba, está praticamente na
área urbana, facilitando aos camponeses a venda de seus produtos na cidade, como sua
procura no próprio assentamento. “A identidade de uma cultura pode assim sobreviver às
ameaças do tempo. A sociedade não escapa, entretanto, à história” (CLAVAL, 2001, p.185).
Essa identidade cultural perpassa de geração em geração e por mais que as
influências desse mundo capitalista tentem estabelecer outra dimensão à vida, a cultura
camponesa vem resistindo em seus valores. As próprias famílias que hoje fazem parte da
cooperativa, às vezes, têm uma produção de ovos, galinha e sentem a necessidade de vender o
excedente. Aquelas que não o fazem, em seus depoimentos, expressam que gostariam de ter
algo produzido em seu pequeno lote para a sua alimentação e também para venda.
106
Mudou muito, desde o início que chagamos foi tudo diferente, por exemplo, quando
carneia um porco, lá na colônia um porco durava dois meses a carne porque
congelava, aqui você vai ali e pega uns quilos de carne e depois vai pega mais,
carne fresca, aqui não produzimos aquilo aquele salame que fazíamos, lá também
tínhamos as vaquinhas fazíamos o queijo, tinha o leite na hora, aqui tem mas temos
que buscar todo o dia se queremos leite fresco, e se queremos fazer queijo
precisamos ir pegar o leite e fazer o queijo em casa é bem diferente. (Morador do
Assentamento Trinta de Maio – COPAC).
Isso para mim é algo que vem da sua história de vida, é uma cultura das
pessoas de que precisa ter o que é próprio, por mais que a cooperativa seja sua. Eles são os
proprietários e os trabalhadores como também os dirigentes de sua cooperativa, mas existe um
sentimento referente àquele que está coordenando e que para eles está comandando e então
surge uma certa insegurança de que aquilo não seja seu. Entretanto, essa necessidade de fazer
algo em seu próprio pedaço de chão parece que vem de muitos anos, pois é dessa forma que o
camponês sente-se enraizado.
Eu achei diferente e não me acostumei com a idéia que foi que nos tive aqui com a
idéia de fazer tudo coletivo eu não tenho aquilo assim né, tudo era hora marcada e
tu tinha que come tu tinha que pegar e anotar tudo né eu já tava acostumando com a
idéia porque tu sempre trabalhou de outro jeito né daí a gente veio pra cá e era
assim né e não me acostumei não e fiquemos sete anos ali né saindo dali, pegamos
nosso lote daí né. (...). Na da horta, o jeito era assim mesmo é a região né ,só que
mais é assim é o negócio que não dá pra criar os bichinho, as nossas galinha. Tem
que ser tudo em grupo, né? Daí é ruim pra todo mundo. (Morador do Assentamento
Trinta de Maio – Associação 15 de abril).
Nos depoimentos, tanto dos cooperados, quanto dos assentados individuais
isso aparece também como uma necessidade; esse jeito que o camponês carrega consigo é um
fator que deveria ter sido levado em conta quando do início da cooperativa. Em alguns relatos,
as pessoas revelam que a organização do processo cooperativo deveria ter começado muito
lentamente, permitindo primeiro que elas próprias sentissem a necessidade de organizar a
produção no coletivo, através de incentivo, para depois organizar em cooperativas.
107
Esse jeito de tentar organizar a produção na raiz histórica da cultura do
camponês parece ser um dos grandes desafios que o MST enfrenta em seus assentamentos.
Seria uma tentativa de redesenhar o espaço que hoje existe em uma dimensão que respeitaria a
cultura de sua origem, enfrentando a realidade de cada assentamento.
4.4 A cultura e a organização do trabalho
O elemento trabalho está muito presente na vida dos assentados, e é um desafio
diário. Uma das coisas que mais presenciei durante o período de convívio nos assentamentos
foi à disposição das pessoas para o trabalho.
A cultura do trabalho para o camponês é algo que o faz sentir-se bem
realizando suas atividades de convívio com a terra. Entretanto, essas atividades são muito
intensas e demandam muita energia do ser humano. “A gente trabalha no pesado”. “A vida da
roça não dá folga”. “Aqui não é como na cidade”. Às vezes, o próprio camponês se coloca
numa posição de inferioridade diante do trabalho de agricultor por ele executado, reflexo de
uma cultura capitalista que apregoou com muita intensidade que esse tipo de trabalho é
inferior e aqueles que o realizam são pessoas atrasadas.
Aparecem na pesquisa as duas dimensões, a importância do trabalho e o seu
significado de dignidade, resgatando o que as pessoas já sabiam fazer e, nesse momento, a
contribuição histórica na construção de um país mais justo. A partir do seu trabalho, o
108
camponês está gerando acesso à alimentação de qualidade e mais barata para os que mais
necessitam.
No diálogo com as famílias, percebi que o jeito de lidar com a terra e com o
trabalho é diferente em relação às origens étnicas, já que as pessoas se expressam de forma
diferenciada até na maneira de trabalhar com a horta, por exemplo. O consumo de
determinado tipo de hortaliça entre uma etnia e outra é diferente, porque durante sua vida
aprenderam a comer certas espécies e não outras.
Quando nós chegamos aqui tinha negro, polaco, alemão. Então, o primeiro que saiu
dali foi um moreno que era o seu Rodolfo que tinha um sistema diferente. Ai depois
saiu um polaco ai depois mais um negro. Então eu acho que tem um pouco de
influência. (Morador do Assentamento Trinta de Maio).
FOTO 3 – PRODUÇÃO DA HORTA, COPAC. (ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO).
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: 20/Maio/2005
109
Nesse depoimento encontrei algumas questões culturais explicitadas pela
origem cultural de sua etnia, que ainda não estão superadas em relação ao jeito que cada um
traz em sua história de vida. Quando da pergunta em relação a essas diferenças culturais,
percebia um certo constrangimento do entrevistado em responder, já que, ao mesmo tempo
em que a dificuldade existe, a questão é como aceitá-la e como trabalhar com ela. Essas
referências estão muito ligadas ao jeito de o camponês se relacionar com o trabalho e, quando
expostas, elas revelam quem mais trabalha e a maneira como o faz.
O assentamento tem pessoas oriundas de 14 municípios do Estado sendo que
origem diferente cultura diferente. Tem muita influência até mesmo a questão do
trabalho feito assim a origem de cada um tem várias origens têm italiana tem
alemão então cada um com seu jeito com sua cultura e... Mas, muita influência a
questão de deslanchar o trabalho tocar o barco, mas a gente sempre chega a uma
conclusão em reunião tentamos achar uma saída para todo o mundo. Essa questão
da origem da nos ares de quem vem de quem chega de ver pode conversar com a
pessoa sabe que logo vai perceber quem ele é que origens para levarem frente
porque na questão do trabalho nós temos aqui origem italiana que trabalham de sol
a sol não tem chuva não tem nada que pára, dia alguns que trabalham, mas não
trabalham tanto, mais devagar. (Morador do Assentamento Dezenove de Setembro).
Olhando para a ancestralidade de cada povo, vislumbra-se um tempo histórico
e uma forma de organização de seu espaço. Como nos assentamentos há camponeses que, em
sua grande maioria, são do Estado do Rio Grande do Sul, mas pertencentes a diferentes etnias
e que vivenciaram diferentes realidades na dimensão do que significa a organização do
trabalho, o tempo para o trabalho e para que o trabalho, supõe-se que diferenças culturais
profundas estão em cada camponês.
Aqui podemos encontrar o trabalho como uma fonte para aquisição de bens de
capital que geraria novos bens, o trabalho na produção de seus bens e consumo para sua
subsistência, o trabalho como uma prática para o cuidado e o equilíbrio do que existe na
110
natureza e dele tirando a sua sobrevivência, enfim são várias as interpretações sobre o porquê
dessa natureza humana e seu comportamento.
Se analisarmos sob o ponto de vista das famílias que ainda permanecem na
cooperativa, verifica-se que a grande maioria tem uma experiência de trabalho em pequena
propriedade e em torno de 85% são descendentes de imigrantes italianos, ou tem na família
algum parentesco, existindo, assim, uma identidade entre os mesmos, no jeito de pensar e
organizar o trabalho e também no próprio investimento dentro da cooperativa, o que permite
que haja mais facilidades e agilização nas decisões tomadas.
Um exemplo que as pessoas explicitaram foi que os primeiros investimentos
deveriam ser priorizados na organização da produção, em maior escala possível, em máquinas
e estruturas físicas e que as questões sobre moradia fossem discutidas à medida que as
residências fossem sendo construídas, conforme é uma fala dos iguais.
Eu acho que muitos trabalhavam em granja não sabiam em que época preparar a
lavoura planta o milho tinha a teoria, mas não tem prática aí uns queriam fazer de
um jeito era de outro muitas das coisas não deu certo por causa disso mudava as
proposta e uns diziam é assim e outros dizia não e ai tu, ti criou na lavoura tu sabe a
época certa o meio certo como que vai plantar essa foi dificuldade. (Morador do
Assentamento Dezenove de Setembro).
Esse depoimento refere-se ao período em que o assentamento trabalhava de
forma cooperada, espelhando como o cotidiano das pessoas revela as tradições dentro do
processo produtivo e as dificuldades apresentadas por uma forma de cooperação e como este
procedimento vai se explicitando novamente num outro lugar, num outro tempo/espaço.
111
FOTO 4 –PRODUÇÃO DE ARROZ, HORTA, AÇUDES. (ASSENTAMENTO DEZENOVE DE
SETEMBRO)
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: agosto/2004.
4.5 A cultura e o lazer
Em relação ao lazer, observa-se uma forte tendência entre os camponeses em
praticar, em vivenciar as atividades desenvolvidas antes do assentamento. Nos momentos de
encontro conjunto da comunidade, com todas as famílias do assentamento, na comemoração
de datas de aniversários do assentamento, ou em datas que são referências históricas, também
há a participação de pessoas que não são assentadas.
112
Mais importante ainda são as festas que marcam os tempos da vida coletiva,
religiosa ou cívica. Elas são organizadas em datas fixas que correspondem
freqüentemente aos grandes momentos dos ciclos cósmicos e aos acontecimentos
maiores da vida da cidade. (CLAVAL, 2001, p. 131).
Percebe-se uma necessidade muito grande de manter uma comunidade dentro
do assentamento, onde existe a parte do sagrado e do profano, construída a partir da
automática mobilização das pessoas. As pessoas cultuam muito o sagrado do contexto da
comunidade e também na família e, em alguns momentos, as duas dimensões se misturam.
Sim, nós temos a nossa comunidade onde tem um grupo de catequistas. A
catequese continua como era lá fora: a gente celebra datas religiosas, tem um frei
que vem celebrar missa uma vez por mês. Aí o pessoal participam como era lá fora.
(Morador do Assentamento Dezenove de Setembro).
A união das famílias em torno das atividades da comunidade praticamente é de
100%, inclusive dividindo tarefas nas construções das áreas, no embelezamento e cuidado do
local. O profano aqui está muito presente na alegria na participação das atividades.
Não só do assentamento participa. Mais quando eles chegam todos é bem bonito,
promoções. E quando faz festa, aí veio até a gente não conhecido já da vila da
cidade, mas é bem bonito aí. E todo mundo ajuda. Quando sai a festa trabalha todo
mundo ajuda fazendo e fica coisa mais linda. Quando vem gente de fora, que vem
gente, mulher de todos assentamentos que nós conhecemos se abracemos. Todo
mundo é irmão, todo mundo é igual. (Morador do Assentamento Dezenove de
Setembro).
Essas atividades coletivas desenvolvem entre o grupo uma identidade de
pertença àquele lugar e que ali é possível ainda recriar aquilo que haviam vivenciado em suas
comunidades do interior, como eles mesmos se referem.
113
FOTO 5 – CENTRO COMUNITÁRIO. (ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO).
FOTO 6 –ESCOLA (ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO).
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: 20/Maio/2005
114
Os jogos de futebol são uma atividade permanente de final de semana entre os
homens sem a participação das mulheres, as quais compete apenas assistir ao jogo. As
mulheres também promovem encontros entre elas para roda de conversas. Ambos momentos
são vivenciados com muito prazer pelas pessoas, pois sentem algo que é de sua origem
histórica.
As crianças convivendo nesse ambiente revelam no momento a continuidade
da convivência em comunidade, motivo pelo qual elas estão ajudando nessa construção.
Nesse sentido, a escola tem um papel importante e, por esse motivo o assentamento reivindica
do órgão público um educador que esteja aberto para o conhecimento de sua realidade
específica.
Em relação aos jovens, existe uma reclamação porque essas atividades já não
fazem parte de sua vida, querem algo que esteja voltado para a vida urbana. Como os
assentamentos estão localizados próximos às cidades, os jovens têm um grande convívio com
o mundo urbano e, além disso, os que pertencem à COPAC trabalham no supermercado da
Cooperativa; por sua vez, os residentes no Assentamento Dezenove de Setembro estão em
contato permanente com pessoas do meio urbano, seja devido ao fato de lidarem diretamente
com a comercialização dos produtos, seja por estudarem nas escolas urbanas. Deve-se
mencionar que nos assentamentos pesquisados não existe o ensino fundamental completo e
também o ensino médio, fato que acarreta a convivência dos jovens, por longo período, com
outra realidade. Com isso, a participação no lazer da vida urbana já está acontecendo.
115
O que ocorre é que o jovem acaba trazendo para dentro do assentamento
atividades culturais que são características dos jovens urbanos: os tipos de música, outras
atividades esportivas, as danças já são diferentes, a linguagem é outra. Cria-se, assim, um
novo espaço. Através das entrevistas feitas aos jovens percebe-se que é mais difícil para eles
incorporar as atividades culturais que os camponeses têm em sua história de vida, já que
grande maioria deles nasceu no assentamento, já num outro período da história de luta do
Movimento em que as condições de acesso econômico eram supridas.
Cada um está exposto de uma maneira específica à cultura, recebe-a sob uma forma
diferente e com uma dose original de componentes porque não vive na mesma
família, cercado das mesmas pessoas, nas mesmas datas e nas mesmas
circunstâncias. (CLAVAL, 2001, p. 89)
De acordo com Claval, as experiências na vivência das circunstâncias da vida
levam o ser humano a mudar comportamentos, avaliar antigos padrões e acrescentar outros,
provocando no ser humano uma transformação, proveniente de fontes de informação que não
são mais as mesmas.
Também acontecem, em outras dimensões, atividades voltadas aos aniversários
das pessoas da comunidade, onde todos ou somente os vizinhos mais próximos se reúnem
para comemorar esse ciclo de vida. Nessas festas, geralmente, existe momento de ressaltar a
recuperação de sua vida e a participação no Movimento.
As viagens para rever seus parentes nas diversas cidades de origem também
fazem parte do lazer, “fomos passear nos parentes”. Existem também grupos de famílias que
se organizam para lazer na praia, “nós organizamos promoções para arrecadar fundos e juntos
conseguimos dinheiro para ir para praia”. Nesse caso, congregam-se vários momentos de
lazer e organização do convívio no grupo por várias vezes. Esse tipo de atividade vem se
116
ampliando nos últimos anos, o que evidencia que existe já uma outra necessidade de fazer o
lazer.
Através das entrevistas, contata-se que os camponeses expressam o desejo
comum de continuar com sua marca nas experiências existentes em suas vidas. No
Assentamento Trinta de Maio, a sede de encontro de todos os membros da comunidade é a
sede da COPAC, mas hoje já existe um debate sobre a doação de uma área para a construção
de um local específico para reunião de todas as famílias e também para outras pessoas que
desejarem participar.
4.6 A nova organização da paisagem
Há uma geografia do próprio homem: ela resulta da cultura que lhe foi transmitida
bem mais do que de sua herança biológica. (CLAVAL, 2001, p.106).
Ao olhar a nova configuração geográfica dos assentamentos, pude observar e
conviver com uma paisagem, que se apresenta em diferentes contextos: a configuração das
casas e seus arredores, ou o local da residência; a organização da estrutura física dos
equipamentos e construções; o cuidado com a produção; embelezamento do assentamento, até
a própria paisagem constituída dos seres humanos que ali vivem. A paisagem traz a marca das
culturas e, ao mesmo tempo, a cultura influencia na mudança da própria paisagem que vai
sendo constituída.
117
FOTO 7 – ESPAÇO DA AGROVILA, COPAC. (ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO).
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: 20/Maio/2005
Percebe-se, na constituição da paisagem, a existência de um entrelaçamento
entre o que os sujeitos vão aportando do que é seu e do que o próprio Movimento vai
sugerindo em sua proposta de organização da paisagem.
A grande maioria das famílias possui uma preocupação em relação às suas
residências para que elas possam proporcionem conforto para todos e também estejam bem
apresentadas. Algumas casas apresentam jardins com muitas flores, arbustos e árvores
frutíferas, e outras possuem o terreno limpo sem uma decoração.
118
FOTO 8 –DIFERENTES REALIDADES NO ASPECTO MORADIA (ASSENTAMENTO
DEZENOVE DE SETEMBRO – MUNICÍPIO DE GUAIBA/RS).
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: Agosto/2004.
119
Perguntando a algumas pessoas sobre a importância ou não do embelezamento
das casas, percebi que para aquelas que já ornamentavam a casa antes de vir ao assentamento
esse fato é algo natural, sem isso o “ambiente fica muito triste”; da mesma forma, para
aquelas pessoas que não trabalharam essa dimensão é algo sem muita importância e
desnecessário. Com isso, é possível encontrar casas em cujos pátios não existe a divisão do
espaço para pequenos animais e um ambiente para o próprio espaço do jardim. Os animais
circulam livremente e a importância da beleza estética não aparece. Questionadas sobre esse
modo de manter o ambiente externo, as pessoas respondem que está bom assim, “a gente
sempre teve tudo misturado”, “o pátio tudo assim”, demonstrando a existência de um passado
que foi construído assim.
Nessa paisagem do assentamento também há um limite no que se refere à
organização do lixo. Algumas famílias não fazem a separação seletiva do lixo, “a gente nunca
fez isso”. Embora se observe que o Movimento trabalha muito a questão do lixo e também do
embelezamento dos assentamentos, sua importância e valorização, para as pessoas que em seu
contexto anterior ao assentamento não lidavam com essa problemática parece difícil de
conceber e praticar tal ação.
120
FOTO 9 – ASPECTO DA PAISAGEM DO ASSENTAMENTO TRINTA DE MAIO (MUNICIPIO
DE CHARQUEADAS/RS
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: 20/Maio/2005
Por outro lado, encontramos todo o trabalho no cuidado do que possa ser belo
para os camponeses e também para a imagem do assentamento. No depoimento das pessoas
encontramos, percebe-se uma grande dedicação no cuidado de suas coisas, a fim de tornar o
ambiente o mais parecido possível com aquele em que viviam anteriormente, ou que chamam
“lá fora”.
Olha eu sinto muito orgulho aqui de nós do Assentamento de Charqueadas por que
é bonito. Tem um pessoal aqui nosso que tem umas desavenças, tem. Mas o pessoal
aqui quer trabalhar. Não tem problema nenhum e cuida muito bem para ficar tudo
bonito. (Morador do Assentamento Trinta de Maio).
A arquitetura que vai sendo montada na paisagem demonstra um interesse de
quem a vai desenhando em seu contexto e em sua harmonia, é o conjunto das idéias e das
121
ações que aos poucos são colocadas em prática, modificando o espaço que foi encontrado, no
caso os assentamentos.
A própria paisagem das pessoas também fala muito nesse contexto, uma vez
que as expressões pessoais das pessoas são postas para elas mesmas e sua imagem reflete no
conjunto do grupo, da família e do lugar. Se as expressões são de bem estar ou de tristeza o
ambiente se encarrega de desenhar essa paisagem. Algumas mulheres, durante a entrevista,
manifestaram que, em muitos momentos, têm dificuldade de cuidarem de si próprias, de seu
corpo físico e espiritual e que isso se refletia no jeito como se colocavam diante do grupo. O
belo em primeiro lugar está no interior da pessoa e, depois, conseqüentemente, passará à
paisagem que a cerca.
Pra mim foi tudo diferente. Aqui começamos a trabalhar com máquinas e lá
trabalhava muito com boi. A terra daqui é muito diferente da que trabalhava lá fora
que era melhor. Aqui já mudou tudo, no início tinha eucalipto quando chegamos e
nada mais. (Morador do Assentamento Trinta de Maio).
O contexto da organização da paisagem na produção mudou completamente do
que era quando os camponeses chegaram para a constituição do assentamento. O espaço que
possuía antes banhados, plantação de eucalipto e algumas cabeças de animais foi
transformado em um lugar onde se tentam manter algumas atividades agrícolas de
subsistência para o consumo interno. No lugar de plantação de arroz, criação de animais, hoje
existe um outro contexto e, provavelmente, daqui a alguns anos também será muito diferente.
A maneira como o camponês se expressa à medida que vai constituindo o lugar
de sua existência e compondo a sua nova paisagem introduz elementos que expressam uma
cultura de muitos anos. Da mesma forma, desenvolve novas técnicas de acordo com o que o
122
MST propõe na constituição de uma paisagem e também de acordo com a necessidade da
natureza que ali existe.
4.7 A influência da vida urbana nos assentamentos
Esse novo mundo vivido no meio rural identifica quem são os sujeitos que o
compõe e também as influências desse próprio meio e do meio urbano, já que esses dois
mundos estão muito próximos, mas, em algumas circunstâncias, muito distantes.
A produção existente no meio rural depende da técnica pensada e elaborada
nas cidades, que, por seu turno, absorvem e consomem esses produtos. A relação existente
entre ambos é muito forte. Como esclarece Queiroz (1978, p. 48),
(...) a “sociedade urbana” é aquela em que, devido ao desenvolvimento cada vez
maior da tecnologia, a cidade se liberou do meio rural no que toca à produção em
geral e se tornou produtora por excelência, reorganizando o trabalho agrário através
das máquinas, impondo ao meio rural seu gênero de vida e sua estratificação social
de base econômica; a cidade pode então crescer demograficamente de maneira por
assim dizer ilimitada, pois seu abastecimento depende antes de mais nada do
desenvolvimento tecnológico.
Comparativamente, o modo de vida nas cidades será mais evoluído do que no
campo, onde a mudança é mais lenta. Os trabalhadores do campo cultivam muito mais do
jeito de seus antepassados, tanto na produção como nas relações de trabalho, de acordo com a
sua cultura.
123
A vida urbana é mais dinâmica; as relações entre as pessoas são mais
próximas, a troca de informação e de conhecimentos é mais rápida. O acesso aos meios de
comunicação é maior. A produção da tecnologia está presente. Por outro lado, também
encontramos cidades que possuem uma vida voltada a funções administrativas e políticas,
enquanto outras ainda estão em função da produção do campo.
Nessa realidade cidade/campo também se encontra os assentamentos de
reforma agrária que experimentam uma outra dinâmica no jeito de organizar esse espaço, em
cujo resultado a sociedade moderna está presente.
Quando mencionamos a forma de organizar o espaço do assentamento, a
técnica utilizada na produção, a influência das redes de produtos, a relação com o mercado e a
comercialização, a utilização dos meios de comunicação mais avançados e o jeito de as
pessoas viverem no aspecto social, político e econômico estão presentes, por mais que o
Movimento pense a sua proposta nesse contexto.
A racionalidade desenvolvida no assentamento é pensada a partir da estrutura
das cidades, a divisão técnica do trabalho em uma agroindústria mostra essa realidade de uma
sociedade industrializada. Queiroz (1978, p.63) referenda essa constatação ao escrever que
“(...) atualmente, o campo tem lugar numa sociedade cada vez mais marcada por caracteres
urbanos, isto é, em que a cidade tende cada vez mais a dominar o campo, (...).”
Essa complexidade nas relações entre campo e cidade é tomada pelas
experiências novas existentes no que se refere à vida das pessoas no lugar que é o
assentamento. Os processos que ocorrem ali passam por uma transformação político-cultural-
124
social profunda, pois o jeito de viver, de trabalhar, de cuidar da terra já é acrescido de outros
conhecimentos produzidos por si próprios através da prática e também desenvolvidos na
técnica já elaborada.
Sobre esse assunto, Lefebvre (2002, p.17) esclarece com muita propriedade:
(...) O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária. Estas
palavras, o “tecido urbano”, não designam, de maneira restrita, o domínio edificado
nas cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o
campo (...).
São bastante expressivas essas manifestações de domínio da cidade sobre os
assentamentos, no caso dessa pesquisa, já que, em alguns deles, a estrutura da cidade passa
para dentro do próprio assentamento, exemplo disso são as agrovilas com toda a infra-
estrutura de rede de água, de esgoto, de luz elétrica, ou seja, o saneamento básico. Essa
estrutura manifesta-se também através das praças de esporte e lazer, dentre outras questões
culturais e sociais.
Todavia, gostaria de salientar que, por mais que a vida urbana esteja presente
no campo, o jeito característico de ser do camponês se apresenta em alguns detalhes na
convivência com as pessoas, na troca existente de solidariedade, no jeito de sua expressão
oral, corporal. Quem vive no campo conserva alguns traços típicos desse meio que o tempo da
cidade não consegue apagar.
125
FOTO 10 – ESTUDANTES E MORADORES NA PARADA DE ÔNIBUS PARA DESLOCAMENTO
ATÉ A SEDE DO MUNICÍPIO DE CHARQUEADAS. (ASSENTAMENTO TRINTA DE
MAIO).
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data: 20/Maio/2005
Outra questão também se refere ao que expõe Lefebvre: (2002), “(...) O espaço
urbano torna-se o lugar do encontro das coisas e das pessoas, da troca.(...)”. Nesse caso, a
organização da estrutura de gestão do MST nacional, toda a parte administrativa, política,
relações com a sociedade, está com sede nas grandes cidades ou capitais dos Estados. Isto
torna mais ágil a comunicação interna e externa do próprio Movimento, a circulação e
comercialização da produção e o acesso a bens necessários.
Tentando responder às questões propostas e aos desafios sobre a relação do
mundo urbano nos assentamentos de reforma agrária do MST, podemos trabalhar as mais
126
diversas formas de como isso acontece, onde muitas vezes o campo torna-se forte e
significativo e em outros momentos o urbano prevalece com mais intensidade.
Por mais que os assentamentos construam uma identidade própria, enfatizando
o seu jeito de organizar o seu espaço sócio-cultural, contrapondo-se a uma cultura
hegemônica de poder, encontramos, em alguns momentos, a cultura da sociedade moderna
enraizada nas pessoas que vivem o cotidiano de um assentamento. Esse trabalho de
construção de sua identidade precisa ser visto como um processo histórico de sujeitos que se
educam diante dos desafios apontados pelo mundo e por isso em movimento.
No cotidiano do assentamento aparece a interferência do urbano através da
introdução de novos hábitos alimentares, como consumo de produtos industrializados
compostos de muitas substâncias artificiais que até então não faziam parte da alimentação do
camponês; através do hábito de congelamento dos alimentos, facilitando a vida das pessoas,
uma vez que o tempo hoje é curto em relação a tudo o que precisa ser realizado. Nas
entrevistas, principalmente as mulheres expressam que não conseguem mais dar conta de
todos os afazeres domésticos e também do trabalho que desenvolvem na cooperativa.
Na relação cidade-campo, os assentamentos seguem uma tradição agrária de
preservar os conhecimentos que o próprio homem do campo passa de geração em geração,
mas também encontramos toda uma aplicação da técnica já elaborada pela própria ciência, ou
seja, a racionalidade empresarial está presente.
Essa racionalidade é encontrada na cooperativa COPAC na forma como realiza
a organização do trabalho e a sua estruturação de mercado, por exemplo. Até mesmo o
127
supermercado da Cooperativa deixou de priorizar a venda de produtos da reforma instalando
todo uma outra lógica comercial visando manter-se no mercado consumidor. Percebe-se nessa
atitude a interferência de uma outra rede manifestada pela lógica de mercado.
FOTO 11 – SUPERMERCADO DA COOPERATIVA – COPAC, (ASSENTAMENTO TRINTA
DE MAIO – MUNICÍPIO DE CHARQUEADAS/RS).
Fonte: BELEDELLI, Senira.
Data:20/Maio/2005
Ele mudou sim. Principalmente antes. Desde o tipo de organização e tudo. A forma
de organizar cooperado e a forma de trabalhar economia familiar também mudou
bastante. Ali se trabalhava três, quatro e poucas atividades. E aqui uma organização
é bem mais complexa. E com a instalação do mercado. Então muda a forma de se
relacionar. (Morador do Assentamento Trinta de Maio – COPAC).
Nesse depoimento está explicitada a forma complexa de relação de trabalho e
convivência estabelecida em relação ao mercado consumidor e que o mundo urbano está
numa outra sintonia.
128
Também é bastante evidenciada a interferência do urbano na vida dos jovens e
das crianças do Assentamento, uma vez que essa interferência desencadeia outras
necessidades, estabelecendo outros gêneros de vida, conforme esclarece Queiroz (1978). As
suas necessidades também passam a ser as mesmas do mundo de consumo que existe no
urbano, está tudo ao seu olhar sem fazer muito esforço, oferecendo tudo com muitas
facilidades. Uma criança camponesa moradora da cooperativa disse, durante a entrevista, que
ela quando grande será modelo, demonstrando já a visão das facilidades do mundo urbano,
representado para uma criança como um mundo muito belo sem exigência de muito esforço.
Num outro momento das entrevistas com pais e com jovens, foi citada a
necessidade de consumo de aparelho celular, com os jovens fazendo essa disputa diretamente
com os pais que, às vezes, sentem-se obrigados a comprar e, com isso, têm de trabalhar mais
para manter mais essa despesa, já que, para muitos, está fora de seu alcance.
Essas são apenas algumas contradições já sentidas diante do que é manter uma
família vivendo no campo e, principalmente, sendo assentada e pertencente ao movimento
social. São desafios que o capitalismo vai lentamente ou ferozmente impondo de forma
verticalizada e dominando a estrutura desse espaço geográfico sem, muitas vezes, o próprio
Movimento conseguir trabalhar uma outra forma de relação e valores que a sociedade
estabelece.
Fica o desafio de acompanharmos esse construir da territorialidade dos
assentamentos, à medida que o MST vai tomando a dimensão que tem hoje, e como ocorre a
interferência do campo no mundo urbano e também como o urbano irá interferir no campo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS - DESAFIOS
Ao considerar todo o estudo realizado sobre os assentamentos, a realidade
desse contato trouxe-me novos conhecimentos e também me mostrou as inúmeras
dificuldades enfrentadas pelas famílias que saem dos acampamentos para um processo inicial
de assentamento. O que acontece é um estágio inicial que pode ser chamado de estágio de
miséria. No início do assentamento, os camponeses ainda não possuem casa, continuam
morando debaixo de uma lona, a alimentação é precária, os recursos para o plantio de
alimentos e o cuidado com a terra demoram muitas vezes a chegar, não existe infra-estrutura
básica, tudo é construído com seu suor e com muito sacrifício, realizado pelas suas próprias
mãos. As famílias recebem ajuda de seus familiares que ficaram nos municípios de origem, de
entidades e do conjunto do próprio Movimento, sendo essa ajuda constituída basicamente de
alimentos, direcionados prioritariamente às crianças, pessoas doentes e idosas.
Esse adentrar na territorialização de um novo espaço geográfico é um processo
que, às vezes, leva anos. As famílias começam a construir uma outra identidade que não é
mais a mesma do acampamento, porque agora existe o objeto concreto e não mais simbólico,
o seu sonho, que é a terra.
130
A identidade em relação a sua terra leva o camponês a estabelecer referências
entre si e também com o lugar, que o é objeto concreto – o território do assentamento. A partir
de então passa a acontecer a distribuição dos lotes, a construção das casas, a destinação das
áreas de produção de alimentos, de lazer, da escola, a área para infra-estrutura, ou seja, os
locais para as máquinas, tudo isso começa a mexer nos sentimentos, nos conhecimentos, nos
jeitos que cada um dos envolvidos possui para organizar o lugar.
Os assentamentos que foram objeto do presente estudo possuem de existência
quinze anos (Assentamento Trinta de Maio) e treze anos (Assentamento Dezenove de
Setembro); realidades, culturas, identidades e territorialidades tão próximas e também tão
distantes na constituição de seus territórios.
Uma identidade que perpassa ambos assentamentos é a permanência na terra,
já que todas as famílias que foram assentadas continuam lá até hoje, na maioria cultivando a
terra de uma maneira que as futuras gerações assim possam usufruir com qualidade de vida e
dar continuidade com seus filhos.
Existe, entre os camponeses assentados, um trabalho conjunto com o
Movimento visando a reconstrução dos cultivos que eram realizados pela sua ancestralidade,
tentando trabalhar uma agricultura orgânica numa visão holística de mundo, uma vez que
muitos deles já exerceram essa prática com seus pais na sua pequena propriedade. Algumas
pessoas, nas entrevistas, referiram que precisariam retomar a prática da agricultura cuidando
as fases da lua, porque existe todo um conhecimento sobre a interferência da energia da lua
nos tipos de cultivo e seu período de plantio e colheita; isso diria respeito não só à agricultura,
131
mas ao conjunto da natureza e, principalmente, ao ser humano. Seria a prática dos
conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas.
Outra realidade encontrada é a aproximação, construção da identidade das
famílias pelo nível de parentesco ou pela origem de sua região ou também pela mesma etnia.
Mesmo as famílias que estão produzindo de forma individual se agrupam, em determinados
momentos, para construir a comunidade do assentamento, para as festas, na hora da venda dos
produtos, no momento de participação das atividades do MST em âmbito estadual ou
nacional, enfim as pessoas possuem necessidade de vivência em grupo.
A questão da etnia na dimensão cultural é um dos grandes desafios a serem
trabalhados pelos assentados e pelo próprio Movimento. Existe uma identidade que
territorializou dentro dos assentamentos a aproximação das famílias através deste contexto,
porque aparece o mesmo jeito de cultivar a terra, os mesmos costumes em torno dos hábitos
alimentares, etc. Sobre isso, em alguns depoimentos, era relativamente freqüente o comentário
de que o restaurante coletivo que existia na cooperativa foi desativado, porque muitos não
estavam mais desfrutando os seus hábitos alimentares, tinham de comer outros sabores,
realizados de outra maneira. Então fica o questionamento: como administrar e conviver nessa
diversidade?
Ainda dentro dessa questão das etnias, a dificuldade de aceitar o diferente, a
opinião do outro no momento dos investimentos na produção, da organização dos lotes, no
embelezamento do assentamento, no conhecimento do período agrícola e o que plantar e
como plantar e a hora de plantar são diferenças que fazem efeito no momento da organização
do conjunto do assentamento.
132
Por mais que a história de vida de cada sujeito anteriormente ao assentamento
estivesse vivenciada no campo, os lugares e as situações das comunidades não eram os
mesmos. As famílias tinham cada qual seu contexto histórico: eram semelhantes porque eram
camponeses e eram diferentes porque cada sujeito é diferente. Quando iniciam algo na
construção do coletivo, no caso aqui a cooperativa, passam por um processo de adaptação e
readaptação, revendo conceitos, valores, situações de vida que pareciam cristalizados.
Nesse contexto, deparei-me com situações fortes em que as pessoas abrem mão
de seu tempo e de seu prazer por algo em que acreditam e que para elas tem grande
significado. Com o objetivo de criar uma outra situação histórica, se colocam em processo de
caminhada, cujo resultado depende do grande desafio da coordenação do assentamento e do
MST, que é o de pensar e o de caminhar juntos para não perderem o que é essencial da cultura
dos povos e, ao mesmo tempo, incluindo o que são os objetivos da reforma agrária neste país.
A constituição do território dos assentamentos enfrenta um mundo globalizado
de incentivo à disputa capitalista com valores e cultura diferenciados, um mundo volátil, onde
a agilidade faz a diferença no contexto da definição dos territórios. Mas mesmo assim os
camponeses pretendem e estão fazendo dos assentamentos territórios onde se possam fixar e
reencontrar a cultura camponesa de respeito à natureza e à dignidade humana.
Com certeza é um início de caminho, com plenas possibilidades, mas também
com muitas dificuldades. Há o enfrentamento de diferenças que existem tanto no interior dos
assentamentos como no seu exterior e como direcionar algumas questões de
descontentamento manifestadas em relação ao próprio processo vivenciado hoje.
133
A partir da pesquisa, para mim fica claro que alguns princípios culturais dos
camponeses são tão fortes que precisam ser resguardados e colocados novamente em prática
nesse construir de novas territorialidades dentro desse novo território.
Fica evidenciado também que os jeitos de pensar os investimentos dentro da
cooperativa e, conseqüentemente, a exigência de uma jornada de trabalho muita elevada está
tirando do camponês o que existe de mais sagrado na sua concepção de vida que é a dimensão
de um outro tempo, não é o tempo da natureza, mas sim o tempo da máquina, e que eles são
seres humanos e desta maneira precisam ser resguardados. Foi unânime nas entrevistas, essa
questão sobre o excesso de tempo que é dedicado ao trabalho, impossibilitando às famílias
mais tempo para si e entre si.
Vivemos, infelizmente, numa sociedade capitalista que destrói a cultura de
solidariedade entre o ser humano e seus povos. No que se refere aos assentamentos, apesar de
o MST defender uma sociedade justa com direitos e deveres iguais, os envolvidos precisam
ficar firmes na construção de novas territorialidades, sabendo que há um caminho muito longo
a percorrer. Desta maneira, os seres humanos que ali estão precisam estar cientes do que
querem e buscam, precisam de ajuda para seguirem firmes em princípios culturais que façam
desse território espaço livre de opressão entre si e o mundo vigente.
Assim, a ciência que a humanidade construir e a Geografia, principalmente,
têm papel fundamental na construção e na configuração da paisagem do território forjada
pelos camponeses no lugar que é o assentamento. A reflexão permanece em torno do que se
134
quer construir para a nossa geração e deixar para as novas. Esse é, sem sobra de dúvida, um
grande desafio.
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ANEXO
ROTEIRO SEMIPADRONIZADO PARA O TRABALHO DE CAMPO NOS
ASSENTAMENTOS PESQUISADOS.
Na pesquisa de campo no momento da realização das entrevistas utilizei grandes questões
direcionadoras que fundamentavam a importância do diálogo com os entrevistados, assim as
pessoas ficavam bem à vontade para a conversa. Estas foram às questões:
1- A sua relação com a terra, ser agricultor, é desde que período de sua vida?
2- A sua família também plantava, trabalhava na terra?
3- Qual é sua região de origem, de onde vocês vieram, o que plantavam, como viviam?
4- Como era o jeito de vocês cultivar a terra antes da vinda ao assentamento?
5- Vocês moravam numa comunidade do meio rural, como era a participação de vocês?
6- Como foi a chegada ao assentamento, encontraram muitas dificuldades, o período de
acampamento foi grande?
7- Como iniciaram o processo de organização do assentamento, como aconteceu a
participação do movimento sem terra e dos órgãos de governo?
8- Como foi acontecendo a integração entre as famílias, como ocorre a convivência entre
vocês?
139
9- Como era o espaço do assentamento: tipo de solo, tipo de produção que havia na área,
detalhes do espaço geográfico.
10- Existe diferença hoje do espaço assentamento, em relação ao seu início?
11- O jeito de cultivar e trabalhar na terra mudou após assentamento?
12- Como vocês organizam o processo produtivo do assentamento e de sua propriedade?
13- Existe uma observação no ciclo natural para a produção?
14- Como o assentamento trabalha a proposta do MST?
15- Quais as origens culturais das famílias assentadas?
16- Existe diferença na maneira de trabalhar a terra, nas relações sociais e de trabalho, a
partir das origens culturais?
17- As famílias se aproximam a partir de sua identidade?
18- Como acontece a participação na comunidade assentada? Existe uma comunidade
constituída?
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