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Universidade Estadual do Ceará
Estenio Ericson Botelho de Azevedo
A crítica das formas jurídicas em Marx
Dissertação de Mestrado
Fortaleza - Ceará
2008
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2
Estenio Ericson Botelho de Azevedo
A crítica das formas jurídicas em Marx
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
Acadêmico em Filosofia do Centro de
Humanidades da Universidade Estadual do
Ceará como requisito parcial para a obtenção
do grau de mestre em filosofia.
Orientador: Prof. Dr. João Emiliano Fortaleza
de Aquino
Fortaleza - CE
2008
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3
Folha de Aprovação
Título do trabalho: A crítica das formas jurídicas em Marx
Autor: Estenio Ericson Botelho de Azevedo
Prof.-Orientador: Prof. Dr. João Emiliano Fortaleza de Aquino
Defesa pública em 16/04/2008 Nota obtida: 10,0 (dez) com Louvor
Banca Examinadora
João Emiliano Fortaleza de Aquino, Dr.
Presidente da Banca
Francisco José Soares Teixeira, Dr.
1º Examinador
Odílio Alves Aguiar, Dr.
2º Examinador
4
Agradecimentos
Sempre e sempre, aos meus pais. O mérito por minha caminhada ter
chegado até aqui é, em grande parte, deles. Por isso e pelo seu amor sempre
presente. Às minhas irmãs Elisangela e Elisabeth e a meu Irmão Ednir, a meu
cunhado Geone e minha cunhada Éricka. Pelos ricos momentos de alegria, que
foram fundamentais para esse processo. A meu querido sobrinho Pedro Lucas,
pelo encanto de seu sorriso. A toda a minha família, enfim, pelo seu incalculável
valor.
A João Emiliano, não apenas por ter possibilitado, como orientador, a
escrita deste trabalho, mas pela companhia e pelo afeto sempre presentes. Por ter
me agraciado com ricas discussões e valiosas conversas nos momentos da
orientação; por ter sido paciente e complacente. Mas principalmente por ser, para
mim, a pessoa que é.
A Glau, pelo seu significado. Pela certeza da amizade. Pelas horas
deliciosas que se fazem sempre que estamos juntos. Pelas farras e pelas
conversas pé-de-ouvido. Pela ternura e carinho constantes.
A Robinson, o amigo tão chegado quanto um irmão.
Ao “Dangas”, o pequeno-grande, o menino-homem, pelo afeto e pela
amizade que ensina. E à Família Fortaleza, cuja convivência agradável tornou
alegres muitos dos meus dias.
A Eliana Paiva, uma das grandes responsáveis pela minha chegada à
filosofia, por quem nutro um grande apreço e admiração e com quem aprendi, e
ainda aprendo, muito.
A grande amiga Mary, de quem recebi muitos estímulos e incentivos. A
constância de sua presença me faz falta.
A Fran, Caciana, Ilana, Rosana, Neidinha, Rebeca. Mulheres lindas e
graciosas; fortes e portentosas. Por suas companhias sempre deleitosas e divinais.
5
A Junior, Tyrone, Zé Roberto, Galba, Patrick, Vieira e Alexandre... Por
suas amizades, pelas noites de farra, e pelos papos agradáveis.
A Priscilla e Waldemir, pelas horas de conversa, pelo apoio recebido, pelo
incentivo dado, pelas bohemias tomadas.
A Eveline Medeiros, Dionísia, Aniely, Andréa, Vanessa, Ivina e Natália,
das quais o carinho me comove e restaura.
A Daniel Rogers, Luana, Val, Cinthia, Erivânia, Nathália Naly, ainda que
poucos, os momentos compartilhados me alegraram muito.
A Tereza Sátiro, sem a qual o mestrado não seria o mesmo, com a qual
pude sempre contar e a quem tenho muito a agradecer.
Às amigas de turma, Roberta, Olívia, Marta e Andréa. Pelos momentos
divertidos.
À professora Marly, pelo estímulo sempre constante e pelas suas
contribuições na banca de qualificação.
Ao professor Teixeira, pelas valiosas aulas, por aceitar participar da banca
e pelas pertinentes contribuições dadas na qualificação que foram fundamentais
ao fechamento dessa dissertação.
Ao professor Odílio, por ter prontamente aceitado participar da banca, o
que muito me honra.
Ao professor Emanuel e demais professores do Mestrado Acadêmico em
Filosofia da UECE pela dedicação e empenho na consolidação deste programa,
viabilizando assim a realização de nossas pesquisas.
À CAPES, pelo financiamento dessa pesquisa.
6
A meu avô Francisco Botelho, in memoriam,
aos pés de quem aprendi muitas lições:
de história, de literatura, de ciências, de direito e de vida.
7
A crítica não é fim em si, mas apenas um meio;
a indignação é seu modo essencial de sentimento,
e a denúncia sua principal tarefa.
MARX
Qui si convien lasciare ogni sospetto
Ogni viltà convien che sia morta
DANTE
8
RESUMO
As categorias jurídicas de propriedade, liberdade, igualdade e contrato aparecem como
relações sociais imanentes às relações mercantis burguesas, como formas jurídicas
próprias às relações de trocas. Tais categorias, ao se estabelecerem como condições
formais da realização da troca, compõem a aparência imediata do sistema capitalista: a
circulação simples de mercadorias, baseada na equivalência. Com a inserção da
mercadoria força de trabalho no processo de troca manifesta-se uma contradição na
passagem da aparência do sistema capitalista para a sua essência: ela é comprada com
base no princípio da equivalência; entretanto, ao ser usada na produção, produz um
mais-valor que se torna para seu comprador um excedente do valor pelo qual ele a
adquiriu na circulação. Nesse processo o princípio da equivalência converte-se em seu
contrário, em não-equivalente. Convertem-se também a propriedade em não-
propriedade, a liberdade em não-liberdade, a igualdade em não-igualdade etc. É
justamente a produção do desigual o que fundamenta o Direito e o Estado. É porque a
equivalência econômica e a igualdade jurídica, situadas na esfera aparente da
circulação, são condições para a produção e apropriação capitalista de mais-valia, que o
Direito e o Estado se impõem necessariamente como realidades constituídas no próprio
processo de produção do capital. Ao mesmo tempo, é precisamente o conflito capital-
trabalho que determina o Direito e o Estado. Assim considerados, estes são a forma
social (jurídica e política) em que se dissolvem formalmente (aparentemente) as
contradições capitalistas: a expropriação do trabalhador se constitui legalmente em
apropriação jurídica legítima pelo capitalista; a não-liberdade econômica do trabalhador
na liberdade abstrata do cidadão, membro do Estado; a desigualdade efetiva entre
trabalhadores e capitalistas numa igualdade formal jurídica, pela qual uns e outros
podem apresentar-se e relacionar-se no mercado como compradores e vendedores de
mercadorias. O Estado aparece como mediação ocultadora das contradições capitalistas
e, simultaneamente, como aparência necessária da contraditória produção capitalista. A
exploração capitalista, a apropriação privada do produto do trabalho e a produção da
mais-valia e do capital, como resultado dessa apropriação, requerem, assim, a
instituição do Direito e do Estado.
Palavras-chave: Marx. Crítica da economia política. Formas jurídicas. Direito. Estado.
9
ABSTRACT
The juridical categories of propriety, freedom, equality and contract are social
relations immanent of bourgeoisie market relations, as juridical forms from
exchange relations. These categories, as formal conditions of exchange, set up
the immediate appearance of the capitalism system: the simple circulation of
commodities based on equivalence. With the insertion of labour force as part of
the exchange process, a contradiction is manifested at the passage of the
appearance of the capitalism system to its essence. The labour force is bought
based on the equivalence principle; however, when it is used in the production
process, the labour force as a commodity produces, for those who purchase it, a
value that is higher than that for which was paid for at the market. In this process,
the equivalence principle inverts into its contrary, no-equivalence. To the worker
the propriety is transformed into a no-propriety, the freedom into a no-freedom,
the equality into no-equality and so on. It is exactly this production of the
opposites that is the fundament of the Right and of the State. The economic and
the juridical equivalences, located at the appearance sphere of the circulation, are
the conditions of the capitalism production of plus value. The Right and the State
are imposed as a necessary to the process of capital production. At the same time,
the conflict of capital-labour determines the Right and the State. So considered,
these are the social forms (both juridical and political) that dissolve formally (in
appearance) as capitalism contradictions: the workers expropriation constitutes a
legally juridical appropriation from the capitalist; the lack of economic freedom
of the worker is the abstract freedom of the citizen, member of the State; the
effective inequality of the workers and capitalists in a formal juridical equality,
by which some people can present themselves and relate themselves at the
market as equal customers and sellers of commodities. The State appears as a
mediation of the hidden capitalist contradictions and, simultaneously, as the
necessary appearance of the contradictory capitalist production process. The
capitalist exploitation, the private appropriation of the products of labour and the
product of the plus value and of the capital, as a result of this appropriation,
require, therefore, the institution of the Right and of the State.
Key-words: Marx. Critics of the political economy. Juridical forms. Right. State.
10
Sumário
Introdução, 12
1 Da terra ao céu: considerações sobre a fundamentação materialista, 17
1.1 Sobre as nuvens do erro, o céu da verdade: fundamento e método absoluto em
Hegel, 17
1.2 A inversão da inversão: finitude e fundamento histórico-materialista, 28
1.2.1 O materialismo de Feuerbach: contestação à filosofia especulativa e ao
fundamento absoluto, 29
1.2.2 Marx: “Crítica à dialética e à filosofia hegelianas em geral”, 35
1.3 Do “processo de vida real” dos homens aos seus “reflexos ideológicos e aos
ecos desse processo de vida”, 45
2 Da crítica da determinação especulativa do Estado à crítica do Estado político
moderno e do Direito, 51
2.1 A Crítica da filosofia do direito de Hegel: por detrás das cortinas da
especulação, 52
2.1.1 Linhas Fundamentais da Filosofia do direito e a determinação
especulativa do Estado, 53
2.1.1 Marx e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado, 58
2.2 A questão judaica e a crítica do Estado político moderno, 63
2.2.1 Da crítica teológica do estado cristão à crítica materialista do estado
político moderno, 65
2.2.2 – Estado político e sociedade civil-burguesa, o cidadão e o burguês, 68
2.3 A Miséria da Filosofia: materialismo e teoria do valor-trabalho, articulações
de uma crítica às categorias jurídicas , 74
11
3 A exposição crítica das formas jurídicas enquanto exposição da crítica da
economia política, 81
3.1 Para uma crítica da economia política, o uso da dialética como método de
exposição, 81
3.1.1 Por sobre os ombros dos clássicos: Marx e o debate metodológico com
a economia política clássica, 82
3.1.2 Darstellung: da coisa da lógica à lógica da coisa, 87
3.1.3 Crítica da economia política clássica e exposição dialética, 93
3.2 Exposição categorial n’O capital e imanência das formas jurídicas, 98
3.2.1 A duplicidade da forma-mercadoria e a subsunção do concreto pelo
abstrato como princípio de equivalência, 99
3.2.2 A imanência das formas jurídicas às trocas mercantis e seu caráter
reificado, 105
3.2.3 Da aparência à essência do sistema: a vigência das formas jurídicas e a
contradição do capital, 109
3.3 O Direito como aparência necessária da produção do capital, 119
3.3.1 A relação lógico-dialética entre aparência e essência do sistema
produtor de mercadorias, 122
3.3.2 A interversão da equivalência em não-equivalência e a necessidade do
Direito e do Estado, 122
Considerações finais, 128
Bibliografia, 132
12
Introdução
Todo começo é difícil
e isso vale para qualquer ciência.
MARX, O CAPITAL
Esta dissertação tem por objeto a apresentação do desenvolvimento das
formas primárias do valor (mercadoria, dinheiro, capital) tal como este é
apresentado por Marx no Livro I d’O capital enquanto processo no qual se
determina e se constitui a gênese das formas jurídicas. Mas a compreensão da
exposição lógico-categorial marxiana da teoria crítica do valor pressupõe
justamente uma reflexão sobre a fundamentação a partir da qual se ergue o
pensamento crítico de Marx. A fundamentação não quer dizer aqui uma
autofundação da razão, ou o estabelecimento pelo próprio pensamento de um
fundamento racional capaz de legitimar e validar e, portanto, também criticar
de per se o conhecimento e a ação humanas, tal como em geral se encontra na
tradição filosófica.
A esse propósito, a relação de Marx com Hegel e Feuerbach me parece
ser o caminho mais adequado para a reflexão sobre as concepções marxianas dos
fundamentos de uma teoria que pretende pensar criticamente a moderna
sociedade capitalista. E isto por dois motivos: primeiro, porque é nítida a
retomada por Marx das categorias hegelianas de dialética e negatividade,
categorias essas que compõem o desenvolvimento da sua exposição crítica n’O
Capital, embora as retome, justamente enquanto crítica, numa outra perspectiva;
segundo, porque ele reconstitui, com base na valorização da atividade humana
(práxis), o fundamento materialista desenvolvido por Feuerbach.
Portanto, se se trata, neste trabalho, de uma compreensão da exposição
categorial marxiana n’O Capital, isto requer um diálogo com Hegel e Feuerbach,
diálogo que procura articular as distinções e especificidades marxianas com
13
relação a esses pensadores, e também insistir na presença das discussões teóricas,
formuladas por eles, no conjunto de obra de Marx, incluindo sua obra clássica.
Neste sentido, o primeiro capítulo desta dissertação se constitui sob o título Da
terra ao céu: considerações sobre a fundamentação materialista. Nesse capítulo,
parto de uma breve exposição do projeto filosófico de Hegel, destacando sua
concepção acerca do fundamento absoluto e do método absoluto na constituição
do conhecimento filosófico. Seguem a essa exposição algumas considerações
sobre a contraposição feurbachiana a Hegel, na forma da crítica do fundamento
absoluto e de uma proposta de reformulação da filosofia num outro fundamento:
o materialista sensível. Ao posicionar-se frente a este debate entre Hegel e
Feuerbach, Marx ora apóia-se nas descobertas feuerbachianas na elaboração de
sua crítica da dialética e da filosofia hegelianas, ora vai além delas numa outra
interpretação crítica da filosofia de Hegel, crítica na qual destaca positivamente a
negatividade e a atividade práticas do homem. Por fim, apresenta-se a concepção
materialista de Marx que tem na história, no processo de desenvolvimento
prático das relações sociais e de produção, o terreno de sua fundamentação, com
base na qual ele busca pensar criticamente a realidade que lhe é contemporânea.
Essa discussão sobre a fundamentação aparece inicialmente posta como
uma necessidade da própria exposição. Se o que se pretende aqui é mostrar o
desenvolvimento da crítica das formas jurídicas no pensamento de Marx, é
necessária a apresentação dos elementos basilares dessa crítica. É preciso que
anteceda à exposição da crítica das formas jurídicas a exposição dessa
fundamentação que possibilita a Marx ir além da apresentação especulativa
hegeliana dessas formas jurídicas, superando também a perspectiva sensível-
materialista de Feuerbach. É essa base da crítica marxiana que conduz Marx por
um caminho de desenvolvimento de sua teoria social, que, por estar justamente
fundada na própria dimensão ativa e negativa da práxis humana, se apresenta ela
própria enquanto crítica.
14
O conjunto da obra de Marx, até a constituição de sua obra magna de
crítica da economia política O Capital , segue um desenvolvimento que,
embora não linear, se afasta da idéia de ruptura, considerada por muitos como
uma característica do pensamento marxiano. Se pensada nesta perspectiva de
ruptura, o conjunto da obra marxiana aparece dividido em duas fases, nas quais
se apresentam reflexões distintas e até contraditórias. Se pensada como fases de
um mesmo percurso teórico, pelo qual Marx segue com vistas a pensar
criticamente a vida social de sua época, o conjunto da obra do “jovem” e do
“velho” Marx aparece ligado por uma mesma postura teórica que se caracteriza
por um elemento decisivo: a crítica da sociedade capitalista moderna. Esse
processo, que culmina numa crítica sistemática da economia política, permeia-se
e constitui-se por um desenvolvimento que não se dissocia do fato de seu
empreendedor estar ativamente inserido no processo mesmo da história e da vida
social de sua época.
Pensando assim a obra marxiana, apresento no segundo capítulo
intitulado Da crítica da determinação especulativa do Estado à crítica do Estado
político moderno e do Direito uma análise que busca indicar a presença da
reflexão crítica de Marx sobre as formas jurídicas já na suas obras de juventude.
Atenho-me, para isso, em três de suas obras juvenis: Crítica à filosofia do direito
de Hegel¸ A questão judaica e Miséria da filosofia. A exposição crítica das
formas jurídicas em Marx aparece constituída, em cada uma das obras aqui
examinadas, num enfoque crítico particular. Em Crítica à filosofia do direito de
Hegel, Marx manifesta sua contraposição à perspectiva especulativa do Estado e
do Direito. Nesta, a idéia é o sujeito; em conseqüência, o Estado enquanto
objetivação da idéia é o pressuposto da sociedade civil (e da família). A crítica de
Marx aplica-se a questionar se me é permitido expressar-me assim o
infinitismo político que se manifesta como fundamento da vida social e política;
ele propõe, então, uma inversão na qual a sociedade civil (e a família) é
concebida como fundamento do Estado. Assim, os membros da sociedade civil e
da família são os membros do Estado e, portanto, os seus sujeitos reais (e finitos).
15
Em A questão judaica a crítica aparece em sua dimensão propriamente
política. Na medida em que Marx questiona a crítica baueriana do Estado cristão,
que ele chama crítica teológica, ele contesta a apresentação de Bauer da
emancipação política mediada pelo Estado moderno como o fim a que deve visar
a crítica. Ora, Marx nega que esta seja a forma plena da emancipação; e
apresenta a crítica do Estado, de todo o Estado, como a crítica verdadeira. Assim
como no primeiro texto, a crítica aqui se constrói com base na reflexão sobre a
relação entre sociedade civil e Estado. Marx critica justamente o fato de que, na
forma da emancipação política, a forma política do Estado aparece como o
guardião da sociedade civil. Para ele, portanto, o Estado político moderno, a
emancipação política, é a condição da realização do elemento particularista da
sociedade civil.
em A miséria da filosofia, aparece como base de sua crítica a teoria do
valor-trabalho. Neste texto, as categorias jurídicas são apresentadas como formas
das relações econômicas (constitutivas da sociedade civil) e aparecem em sua
necessária relação com a produção material. Propriedade, igualdade, liberdade,
são categorias que constituem a relação econômica da troca. O reconhecimento
prático-legal dessas categorias não se dá, se tivermos em conta a explicitação do
surgimento do dinheiro por Marx, por um desenvolvimento de uma idéia
absoluta, nem ainda como consenso entre os homens. Elas determinam-se nas
relações econômicas mesmas e sua necessidade surge da própria necessidade de
realização destas relações.
Finalmente, no terceiro capítulo, que traz o título de A exposição crítica
das formas jurídicas enquanto exposição da crítica da economia política,
apresento inicialmente uma discussão acerca da orientação metodológica posta
pelo próprio Marx. Num segundo momento, coloco em foco a exposição da
forma de relação histórico-social que compõe o desenvolvimento da sociedade
produtora de mercadorias, com base no exame dos capítulos inicias d’O Capital.
Aí mesmo, exponho o processo inicial de desenvolvimento da forma-valor (a
16
produção do capital), com o objetivo de apresentar a emergência das formas
jurídicas e suas correspondentes formas de consciência social enquanto
expressões da produção capitalista.
Buscarei mostrar como as formas jurídicas de igualdade, propriedade,
liberdade etc. se determinam no processo da troca mercantil; elas compõem a
aparência imediata do sistema capitalista, constituindo-se, assim, na esfera da
circulação simples de mercadorias. Ao se estabelecerem como condições formais
da realização da troca, na circulação simples de mercadorias elas correspondem à
verdade aparente da lógica mercantil: o princípio da equivalência. Todavia, com
a inserção da mercadoria força de trabalho no processo de troca, que é uma
necessidade do surgimento do capital, manifesta-se uma contradição justamente
na passagem da aparência do sistema capitalista para a sua essência. Nessa
passagem da circulação de mercadorias para a produção capitalista de
mercadorias, o princípio da equivalência converte-se em seu contrário. Da
mesma forma, as formas jurídicas, mantidas na esfera aparente da circulação, se
tornam em seus respectivos contrários nas relações essenciais da produção
capitalista: não-igualdade, não-propriedade e não-liberdade.
A exposição dessa contradição entre aparência e essência da produção
capitalista de mercadorias, neste capítulo, se apóia nas categorias reflexivas de
essência e aparência, tomadas de Hegel por Marx. Neste momento específico da
exposição, faz-se preciso ainda o exame do primeiro capítulo da sétima seção de
O Capital. Nele, Marx expõe essa contradição aparente da passagem da
circulação para a produção. Com base nessa exposição marxiana, buscarei
indicar a aparição imanente do Direito e do Estado como uma necessidade
própria ao desenvolvimento da forma-valor, em sua essência contraditória. Essa
aparência do Estado e do Direito é, como procuro demonstrar, o desenvolvimento
das formas jurídicas que exige, num dado momento da produção mercantil, a sua
positivação legal.
17
Capítulo I
Da terra ao céu: considerações sobre a fundamentação
materialista
Bem ao contrário do que acontece com a filosofia alemã,
que desce do céu para a terra, aqui se sobe da terra para o
céu.
MARX E ENGELS, A IDEOLOGIA ALEMÃ
1.1 Sobre as nuvens do erro, o céu da verdade: o fundamento e o
método absoluto em Hegel
O projeto filosófico de Hegel consiste na (re)tomada da filosofia como
ciência (ou sabedoria, Wissenschaft) do absoluto. Para ele, isso significa retomar
a tese fundamental da tradição filosófica: a identidade entre o pensar e o ser.
1
A
tarefa da filosofia é ser ciência do absoluto, é pensar, dizer o que o absoluto é.
Como ciência do absoluto, a filosofia concebe a existência de uma e mesma
razão, que se manifesta de forma subjetiva e de forma objetiva. Com base nisso,
Hegel desenvolve um sistema filosófico no qual o efetivo tem como estatuto
1
A identidade entre o pensamento e o ser é uma das proposições fundadoras da filosofia. Ela já
se encontra presente em Parmênides, que toma essa relação como necessária identidade entre
realidade e pensamento. É assim que essa tese, presente no percurso da filosofia ocidental, é
traduzida por esse pensador: “pensar e ser são uma só e mesma coisa” (frag. 3, apud Santos,
M. J. Os pré-socráticos. Cadernos de textos. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2001). Para
Parmênides, portanto, o que se pode pensar não é outra coisa que a própria realidade. Com
Parmênides se instaura um conceito de pensar no qual o pensamento se manifesta como apto a
apreender e apresentar aquilo que verdadeiramente é; e o que é pode ser apreendido pelo
pensamento, justamente por ser supra-sensível e ter a mesma natureza que o pensamento. A
filosofia que se baseia nesta perspectiva se apresenta como a forma do conhecimento do todo
existente que é, portanto, cognoscível. Como a realidade tem a mesma natureza que o
pensamento, é possível conhecê-la. Neste sentido, a tarefa da filosofia, de uma forma geral, é
pensar o racional constitutivo do real e do próprio pensamento que conhece.
18
ontológico o desenvolvimento do pensamento. Na sua exposição conceitual, a
efetividade é inteiramente idêntica ao racional, e isso na medida em que o real
possui um desenvolvimento negativo-especular próprio ao racional; daí que o
efetivo seja obra do pensamento, pensamento este não tomado em sua
particularidade finita (pensamento humano), mas na sua infinitude absoluta.
Nessa autoconcepção da filosofia hegeliana como saber do absoluto se
expressa sua perspectiva infinitista, perspectiva esta na qual o infinito, o
absoluto, é imediatamente concebido como pensamento que se desenvolve
efetivando-se, eo ipso, como categoria estruturante de toda a realidade. Em
outras palavras, a perspectiva de Hegel apresenta o pensamento forma do
absoluto como condição e fundamento do real. No sistema o pensamento é
apresentado enquanto sujeito que se sabe, se ex-põe enquanto realidade efetiva e,
justamente assim, se constitui em fundamento racional de tudo que efetivamente
é. A realidade assume determinidade na medida em que o lógico se exterioriza;
daí que as determinações do pensar são também determinações do próprio real;
são elas figuras lógico-reais. Esta exteriorização (Entäusserung) do lógico, em
uma primeira instância, se manifesta enquanto natureza sensível e segue na
constituição de um mundo espiritual que tem como conteúdo e fim a sua própria
estrutura lógico-racional. Assim, as determinações do pensar são as estruturas
lógicas do real, quer da natureza quer do espírito. A constituição do mundo do
espírito, segunda natureza (espiritual), se desenvolve como suprassunção
(Aufhebung) imanente da natureza mesma e consiste no desenvolvimento
dialético-especulativo do espírito.
Esse processo de desenvolvimento (Entwicklung), enquanto
desenvolvimento imanente e negativo do próprio espírito, ocupa um lugar central
na concepção dialético-especulativa de Hegel, sendo por isso mesmo
fundamental à compreensão de seu sistema. Para Hegel,
o desenvolvimento do espírito é o sair (Herausgehen), o expor-se
(Sichauseinanderlegen) e, ao mesmo tempo, o chegar a si mesmo
(Zusichkommen). Este ser consigo mesmo do espírito, este chegar
19
a si próprio, pode ser considerado como o seu fim mais elevado e
absoluto; só isto ele quer e nada mais.
E esse movimento
visa apenas a que o espírito se conheça a si próprio, se faça a si
mesmo objeto, se encontre, devenha para si, se recolha em si
próprio. Ele é duplicação (Verdoppelung), alienação
(Entfremdung), mas para poder se encontrar a si mesmo, para
poder chegar a si mesmo.
2
E justamente nisto consiste o trabalho do espírito: em “elevar-se acima do estar-
prisioneiro na simples vida natural, em apreender-se em sua autonomia, em
submeter o mundo ao seu pensar, em criá-lo [a si mesmo como espírito objetivo]
a partir do seu conceito”.
3
Conforme a filosofia hegeliana, ao espírito enquanto forma do absoluto
é imanente o desenvolvimento de si numa realidade objetiva.
4
A base desse
desenvolvimento é sua determinação que na sua auto-objetivação, na constituição
de um mundo objetivo, nele mesmo exterior, e por isso a ele mediatamente
identificado, o espírito se manifesta como sujeito; sujeito do conhecimento e do
desenvolvimento de si mesmo. A autoconstituição do espírito enquanto sujeito do
seu conhecimento nada mais é do que a tomada do seu conteúdo em si e para si;
conteúdo este do qual a efetivação na forma de uma realidade a ele e, contudo,
nele mesmo exterior consiste no seu próprio desenvolvimento, que se dá sob a
forma da objetividade.
5
2
Hegel, Introdução à história da filosofia. Trad. bras. de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo:
Nova Cultutal, 1989, p. 102, tradução levemente modificada; Vorlesungen über die
Geschichte der Philosophie. Werke in 20 Bänden, Tomo 18. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1970, p. 41-42.
3
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas, III. A Filosofia do Espírito. Trad. bras.
de Paulo Menezes e José Machado. São Paulo: Edições Loyola, 1995, § 392.
4
Em “Da subjetividade à objetividade do espírito em Hegel (Ou: do espírito como sujeito e
como segunda natureza)” (In: Polymátheia, Revista de Filosofia, Volume III, Fortaleza:
EdUECE, 2007, p. 13-29), apresento de forma mais detalhada esta relação entre subjetividade
e objetividade do espírito. A determinação do espírito como sujeito é apresentada como
momento do espírito, bem como sua objetivação; enquanto momentos de um desenvolvimento
do espírito, subjetividade e objetividade se interpenetram e se constituem, mediante a sua
unidade, em verdade do espírito.
5
Nessa sua auto-objetivação o espírito não transita para um outro, mas constitui-se num outro
20
Na objetivação de seu conteúdo espiritual, o espírito mantém consigo
próprio uma relação dialético-negativa, visto que a completude do seu processo
de objetivação aparece como negação de seu conteúdo imediato (subjetivo),
embora ele seja dado e posto pelo próprio espírito. Já no retorno a si, por si
conduzido, o espírito manifesta uma relação dialético-especulativa, pois nesse
processo se nega aquela primeira negação e se estabelece a unidade absoluta do
espírito: a identidade entre o seu conteúdo substancial, (re)conhecido por ele, e a
sua realidade objetiva, posta e dada por ele próprio, tal identidade ocorrendo
apenas no interior de si mesmo do próprio espírito. Assim, a negação da negação
é, na perspectiva hegeliana, caracterizada pela relação especular do espírito
consigo próprio e se manifesta por meio do retorno reflexivo do espírito a si
mesmo, retorno reflexivo por meio do qual o espírito se determina como
absoluto. O resultado deste retorno reflexivo do espírito é a sua verdade (na arte,
na religião e na filosofia).
O verdadeiro aí se apresenta como um todo, como essência plenamente
desenvolvida em unidade consigo. Esta é a tese fundamental do sistema
hegeliano: os dois momentos do espírito subjetivo e objetivo se (re)conciliam
sob a forma do espírito absoluto e se manifestam como totalidade. Como afirma
Lima Vaz em sua apresentação à Fenomenologia do Espírito, o saber absoluto
em Hegel é, enquanto filosofia, exatamente esta “adequação da certeza do sujeito
com a verdade do objeto”,
6
cujo fundamento não é senão que o espírito absoluto
que é ele mesmo sob a forma da objetividade. Quando ele se exterioriza, torna-se exterior a
si, mas em si mesmo. Conforme nos indica Aquino, Hegel toma isso de Spinoza. A categoria
spinozana de causa sui é uma expressão da causalidade infinita, “na qual o efeito não é
exterior à causa”. Na apresentação desta categoria spinozana, o autor destaca sua “não
transitividade, que assegura, como ponto de partida do pensamento, a unidade da totalidade do
existente pela própria unidade ser e pensar”. Continuando, afirma ainda: “Para Hegel, neste
conceito de causa sui nos encontramos diante do conceito central do pensamento
especulativo, pois, segundo afirma em termos quase teológicos, ‘A causa de si mesma é a
causa que efetiva [efetua, wirkt] um outro separadamente; o que ela, porém, produz é ela
mesma. No produzir ela supera igualmente o que é diferente [distinto, subcindido,
Unterschied]; o colocar a si mesmo como um outro é uma queda [Abfalt] e igualmente a
negação dessa perda [Verlust]’”. (Aquino, J. E. F. Diferença e singularidade: notas sobre a
crítica de Hegel a Spinoza. In: Philosophica, Nº 28, novembro de 2006. Lisboa: Edições
Colibri, 2006, p. 124).
6
Vaz, C. H. L. Apresentação: A significação da Fenomenologia do Espírito. In: Hegel, G. W. F.
21
consiste, por sua vez, na unidade absoluta do espírito subjetivo com o espírito
objetivo. Esta adequação é justamente a apresentação da identidade entre ser e
pensar na sua formatação propriamente hegeliana, ela é a unidade entre o
pensamento (conceito em si que tende à sua efetivação) e a realidade (o conceito
efetivado, o real posto e produzido pelo pensamento subjetivo absoluto). É
exatamente aqui que identificamos em Hegel a retomada da concepção grega de
razão. Para além de uma faculdade humana finita, como seria próprio à moderna
filosofia reflexiva da subjetividade, a razão é, nesta concepção, a própria
estrutura fundante e determinante do real, do qual o sujeito finito é apenas uma
parte. É neste sentido que, para Hegel, o sujeito é o próprio conceito (Begriffe),
exatamente na medida em que ele é o próprio elemento racional que organiza e
institui a realidade efetiva; ele é, portanto, a estrutura subjetiva que põe o real, é
o sujeito infinito que se transpõe, que se constitui a si mesmo enquanto mundo
objetivo, o que implica justamente o processo de objetivação do espírito. Mas o
espírito não se deixa limitar em sua determinação objetiva; ele retorna a si
mesmo na forma do espírito absoluto, e se reconcilia consigo mesmo,
manifestando de forma especulativa a sua unidade absoluta.
Nessa tese especulativa, se manifesta espiritualmente a relação lógica
entre o conceito (sujeito), o objeto (exteriorização do conceito) e a idéia (retorno
reflexivo do objeto ao conceito), esta última consistindo precisamente na
efetivação plena do primeiro.
7
Em termos lógicos, a idéia é, portanto, a
efetivação adequada e própria ao conceito e mantém com ele uma relação
especular-reflexiva.
8
Por sua vez, o conceito é o sujeito desta efetivação e de seu
Fenomenologia do Espírito, p. 10.
7
Para uma maior compreensão desta tese especulativa hegeliana, expressa pelo
desenvolvimento do conceito que se põe como objeto pela exteriorização de si mesmo e se
efetiva enquanto idéia no retorno reflexivo a si mesmo, cf. a leitura da terceira parte da
pequena Lógica, “A doutrina do conceito”, constitutiva da Enciclopédia das ciências
filosóficas, Livro I. Ciência da lógica, seções A, B e C.
8
Segundo Marcos Müller, essa auto-efetivação do conceito retoma, em Hegel, a enérgeia
aristotélica, “que descreve, aqui, a efetividade em sua exterioridade e simultânea reflexão
sobre si”. (Muller, M. Notas de tradução. In: Hegel, G. W. F. Introdução à Filosofia do
Direito. São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005, p. 75, nota 1).
22
retorno reflexivo. É neste movimento, e enquanto resultado deste movimento,
que, no nível do espírito, se inclui o desenvolvimento do saber, enquanto saber
do absoluto, que se manifesta na filosofia como a unidade conciliada entre o
espírito subjetivo e o espírito objetivo, unidade posta pelo conceito, que nela a si
mesmo retorna de sua efetividade. Para dizer propriamente com as palavras de
Hegel, na filosofia o “espírito tem de buscar no mundo razão de sua própria
razão”; no mundo e na filosofia que o reconhece, “A razão mostrou-se (...) como
a unidade do subjetivo e do objetivo, do conceito existente para si e da
realidade”.
9
O conceito é, para Hegel, a própria estrutura racional do e imanente ao
real; instância a partir da qual o real se constitui e aparece como predicado deste
sujeito, que é o conceito.
10
A transcendência do conceito à objetividade é
determinada de modo negativo-dialético e imanente ao próprio conceito;
consiste, enquanto desenvolvimento do conceito, no processo de saída de si do
próprio conceito, sua exteriorização e constituição de si enquanto objeto
(Gegenstand). Todavia, neste desenvolvimento não ocorre qualquer perda de si
do conceito; esse processo de negação do sujeito ocorre apenas e na medida em
que ele se desenvolve enquanto objeto. Objeto que, na condição de uma instância
exterior, não é senão a própria estrutura lógico-real determinada ex-posta,
efetivada; objeto, enfim, que compõe um dos momentos da verdade do conceito
em sua própria determinação, ex-posição, efetivação.
9
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas, III. A Filosofia do Espírito, § 440.
10
Segundo M. Muller, o “conceito, aqui, não tem o sentido usual de representação abstrata do
entendimento, que pode ser atribuída aos casos singulares que lhe estão subsumidos, mas
significa um princípio imanente de desenvolvimento, determinação e efetivação do que
verdadeiramente é, a partir de uma razão atuante no interior do objeto. Por isso, só a
efetividade posta pelo conceito é verdadeira, e algo é verdadeiramente efetivo
‘exclusivamente pela idéia e em virtude da idéia’ (E§ 213 A)”. (Muller, M. Apresentação: Um
roteiro de leitura da introdução. In: Hegel, G. W. F. Introdução à Filosofia do Direito. São
Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005, p. 8). Para J. E. F. Aquino, o conceito, em sua acepção
hegeliana, não é “uma mera representação universal, subjetiva e formal de um conteúdo que
lhe é exterior, mas ao contrário, o conceito é a própria ‘forma infinita’ e infinita justamente
em razão desta sua transcendência imanente cujo movimento o conduz, numa imanência
negativa, à exteriorização e, justamente assim, à efetivação” (Aquino, J. E. F. Diferença e
singularidade: notas sobre a crítica de Hegel a Spinoza, p. 113).
23
O que ocorre no processo de objetivação acima descrito é, em
determinado nível, a particularização do conceito (ou, se quisermos, do momento
da universalidade do conceito). “O conceito como tal”, diz Hegel,
contém [em si] os momentos da universalidade, enquanto livre
igualdade consigo mesma em sua determinidade; da
particularidade, da determinidade em que permanece o universal
inalteradamente igual a si mesmo; e da singularidade, enquanto
reflexão-sobre-si das determinidades da universalidade e da
particularidade; a qual a unidade negativa consigo é o
determinado em si e para si, e ao mesmo tempo o idêntico
consigo ou o universal.
11
O movimento do conceito que chega à sua particularidade para poder retornar a
si mesmo e se reconciliar consigo mesmo, enquanto idéia, é a própria ação do
conceito transpondo-se de um para outro momento de si mesmo. Enquanto
momento do conceito, a sua particularização não é outra coisa que a própria
universalidade se negando a si mesma sob a forma de sua particularidade. Daí
que a particularidade se manifesta como expressão própria à universalidade, uma
negação que lhe é constitutiva; ela é a expressão radical da negatividade
imanente à própria universalidade. Mais claramente, a particularidade é a
autotransposição (Selbstaufhebung), enquanto negatividade imanente, da
universalidade do conceito: a determinação de si da universalidade abstrata sob a
forma da particularidade. Essa particularidade se coloca, pois, como oposição à
universalidade apenas no sentido de lhe ser uma negatividade imanente.
Somente como singularidade, o seu terceiro momento, “enquanto
reflexão-sobre-si-mesmo das determinidades da universalidade e da
particularidade”,
12
é que o conceito é em sua concretude, em sua efetividade.
Como momento do conceito, à particularidade segue a singularidade, que é,
enquanto negação da negação, o efetivo e o concreto. É por meio deste
desenvolvimento especulativo pois auto-reflexivo do conceito que este, como
sujeito de sua objetivação, entretém com seu objeto (ou consigo mesmo
11
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas, I. Ciência da Lógica, § 163.
12
Ibidem.
24
objetivado) uma relação reflexivo-especular. Nestes termos, a singularidade se
manifesta enquanto esta relação especular da particularidade com a
universalidade, sendo isto o que, em outro nível, caracteriza a natureza
especulativa da idéia: na objetividade se reconhece a estrutura do conceito em
sua forma efetivada (particularidade, universalidade negada), conceito objetivado
que retorna a si mesmo e, no interior de si mesmo, transpõe a cisão entre sua
subjetividade (conceito) e sua objetividade, transposição esta que constitui
justamente a singularidade da idéia (negação da negação).
A relação especular é expressa exatamente na condição infinita do
conceito que se faz finito por meio do processo de objetivação e particularização,
e que se efetiva como idéia ao retornar especularmente a si mesmo. Esta é a base,
no movimento do conceito, da filosofia que se institui como saber do absoluto. O
movimento racional do real é determinado pela própria estrutura interna do
conceito que se cinde na medida em que se põe como particular; este movimento
racional, correspondendo ao processo de subcisão de si do conceito, manifesta
sua verdade na relação especular entre o conceito e sua objetivação
(exteriorização) na idéia (conceito auto-refletido). Neste último momento da
idéia, o que ocorre é, portanto, a suprassunção daquela subcisão na
particularização (objetivação ou exteriorização em si do conceito); este
movimento se completa na forma da idéia absoluta, mais ainda, do saber
absoluto, que na filosofia apresenta o espírito se sabendo e se determinando a si
mesmo em sua plena e absoluta unidade.
Para Hegel, portanto, há entre o infinito e o finito uma relação especular,
da qual o primeiro é o sujeito. A verdade da consciência finita não pode ser a
própria finitude, mas aquilo que age nesta finitude sempre que ela age. Assim, a
ciência para Hegel não pode ser pensada como representação finita do mundo e
do que o compõe, mas sim como apresentação (Darstellung) do movimento
próprio ao espírito, que, ao se desenvolver, se pensa a si mesmo, se manifesta
enquanto mundo objetivo e se constitui como saber de sua unidade.
25
No conhecimento científico está implicada somente a natureza do
conteúdo em seu automovimento, no sentido de que é esta
reflexão própria do conteúdo [espiritual] que põe e produz ao
mesmo tempo sua própria determinação.
13
Na perspectiva da Fenomenologia do Espírito em suas relações sistemáticas com
a Ciência da Lógica, a ciência é o saber puro ao qual a consciência finita chega
no final de todo o processo de sua experiência, ou ainda, é a forma de saber na
qual o espírito tem como objeto suas próprias determinações essenciais puras.
Trata-se na Ciência (Wissenchaft) da apresentação do automovimento
(Selbstbewegung) do espírito, ou seja, da sua vida espiritual mesma. Na
perspectiva hegeliana a filosofia é a apresentação de si do próprio absoluto. A
razão que opera nesta auto-apresentação de si do espírito é a mesma que opera no
próprio real em seu desenvolvimento, e que, como resultado desse
desenvolvimento, volta a si mesma na Ciência. Para Hegel, as categorias do real,
portanto, não são a representação articulada por um sujeito transcendental, no
sentido kantiano ou fichteano, mas sim expressões do movimento mesmo do real,
expressões de uma racionalidade que se manifesta através de formas lógica e
real.
Hegel se situa numa tradição de crítica à filosofia moderna que toma os
conceitos como constituídos pelo sujeito finito. Para a filosofia moderna, de
forma geral, o procedimento do pensamento é exterior à coisa, sendo, portanto,
um procedimento subjetivo que expressa a postura do sujeito com relação à
coisa. Nessa perspectiva criticada por Hegel, põe-se uma nítida separação entre
pensamento e ser, método e objeto, enquanto na perspectiva hegeliana o método
tem natureza ontológica. Para Hegel, “o método absoluto do conhecer” coincide
com o movimento espiritual mesmo, que se apresenta como desenvolvimento
imanente do conceito.
14
Nestes termos, o automovimento do espírito manifesta-se
na ciência sob a forma da “estrutura do todo apresentada em sua pura
13
Hegel, G. W. F. Ciência da Lógica - Prefácio à Primeira Edição. Trad. bras. de Patrick de
Oliveira Almeida; revisão técnica de João Emiliano Fortaleza de Aquino, p. 4 (mimeo).
14
Ibidem, p. 5.
26
essencialidade”,
15
na qual as determinações do pensamento são também as
determinações do próprio objeto. A ciência consiste, pois, na apresentação desse
automovimento da coisa: ela não se constitui a partir de uma tomada de posição
do sujeito finito que conhece uma realidade que lhe é exterior, não se tratando,
portanto, na ciência, de falar do objeto separado do sujeito, mas sim de unidade
absoluta de ambos tanto no real-efetivo quanto na filosofia que o expressa e o
compõe.
É com a sua formulação do racional-negativo (o dialético) e do racional-
positivo (o especulativo) que Hegel busca superar a perspectiva subjetiva da
filosofia moderna, que segundo ele, se caracteriza pela posição do entendimento
finito (Verstand). Para ele, o movimento do pensamento em seu
desenvolvimento tanto ideal (absoluto) quanto histórico (finito) se apresenta
por meio dos seguintes momentos: o do entendimento, o dialético (racional-
negativo) e o especulativo (racional-positivo).
16
No entendimento, o pensamento
se apresenta na sua forma primeira (imediata) por determinações fixas; nele, o
pensar que, enquanto tal, já se elevou por cima da sensibilidade se limita,
contudo, à diferenciação (distinção, Unterschid) das determinidades,
diferenciação esta pela qual o entendimento “começa por apreender os objetos
em suas diferenças determinadas”, diferenciando-os e os fixando “para si
mesmos no seu isolamento”.
17
Como afirma Hegel, o princípio do entendimento
é a identidade abstrata; a relação imediata e simples do pensamento para consigo
mesmo, uma relação que nega e, ao mesmo tempo, contudo, possibilita a
progressão de uma determinação para outra, pois o próprio entendimento já se
manifesta como um momento de negação da imediatidade do não-pensamento
15
Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito, p. 47.
16
Como não é objetivo deste trabalho desenvolver uma análise mais minuciosa desta
formulação sistêmica da filosofia hegeliana, apresento apenas uma sucinta análise do que se
pode chamar do movimento do pensamento tal qual é descrita por Hegel em sua Enciclopédia
das ciências filosóficas, sob a classificação do pensar enquanto entendimento, dialético e
especulativo. Para uma melhor compreensão desta descrição elaborada por Hegel, descrição
que é fundamental para a compreensão de sua filosofia como um todo, indico a leitura de
ECF, §§ 79 a 83 “Conceito mais preciso e divisão da lógica”.
17
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas, I. A Ciência da Lógica, § 80, Adendo.
27
(sensibilidade), já que se constitui em separação e determinação do que, na
imediatidade indeterminada do sensível, é um todo indiferenciado. No dizer
Hegel: “A atividade do dividir é a força e o trabalho do entendimento”.
18
Contudo, as determinações (representações, Vorstellungen) do
entendimento se autocontradizem, pois tudo que é finito é contraditório e,
portanto, tem sua negação em si mesmo. Por isso, como negação da fixidez e da
finitude do entendimento, o movimento racional-negativo do pensamento (e da
realidade) se manifesta no “próprio suprassumir-se das determinações finitas do
entendimento e seu ultrapassar para suas opostas”.
19
Isso ocorre no momento em
que uma categoria lógico-real ou espiritual se eleva a outra categoria, que é mais
determinada do que a anterior. Esta ultrapassagem dialética é, contudo, imanente
às determinações do próprio entendimento:
A dialética [...] é esse ultrapassar imanente, em que a
unilateralidade, a limitação das determinações do entendimento é
exposta como ela é, isto é, como sua negação. Todo o finito é
isto: suprassumir-se a si mesmo. O [momento] dialético constitui
pois a alma motriz do progredir científico; e é o único princípio
pelo qual entram no conteúdo da ciência a conexão e a
necessidade imanentes, assim como, no dialético em geral, reside
a verdadeira elevação não exterior sobre o finito.
20
Para Hegel, portanto, a verdade não está presa ao finito. A verdade do
finito é, pelo contrário, a sua própria negação e, portanto, sua transição ao
infinito. A ciência, como apresentação desta verdade, tem seu movimento
determinado pelo elemento dialético. Neste reside a transcendência do finito, que
não lhe é, afinal, exterior, mas, sim, se lhe constitui numa transcendência que é
imanente. O finito, desse modo, não se limita apenas por uma instância que lhe é
exterior, pois constitui sua natureza sua própria suprassunção, na e pela qual ele
18
Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito, p. 38.
19
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 80, Adendo.
20
Ibidem, § 81, Adendo. Entrecolchetes meus. Para Hegel, além de se constituir enquanto
“princípio de todo o movimento, de toda a vida, e de toda atividade na efetividade (...) o
dialético é também a alma de todo o conhecer verdadeiramente científico” (idem). O
movimento dialético é, assim, tanto objetivo (princípio de todo movimento da efetividade)
quanto, por isso mesmo, subjetivo (conhecimento científico); é um movimento (momento) do
próprio absoluto em sua autonegatividade tanto pensada quanto efetiva.
28
se contradiz a si mesmo e, assim, passa a seu contrário. Em conseqüência, a
ciência filosófica, como a pensa Hegel, não se prende ao momento estritamente
negativo da dialética, mas tem como resultado aquilo mesmo que suprassume em
si. Trata-se justamente da constituição, em nível categorial-científico, do mesmo
movimento especulativo que, no movimento lógico do conceito à idéia, fez desta
última o retorno reflexivo do objeto ao seu sujeito conceitual. O racional pensado
contém em si mesmo, suprassumidas, as oposições às quais se limita o
entendimento. Essas oposições são suprassumidas no especulativo, mas não de
forma unilateral, pois sua unidade aparece como indissociada da distinção
(Unterschied); as determinações às quais chega e se fixa o entendimento
aparecem, no especulativo, enquanto resultado, numa unidade, na medida em que
são idênticas e, por isso mesmo, distintas.
1.2 A inversão da inversão: finitude e fundamento histórico-
materialista
Para Feuerbach, a filosofia especulativa, ao tomar o pensamento como
sujeito da realidade, é somente a inversão, no plano do pensamento, da relação
entre sujeito e predicado, tal como esta se dá de fato no plano da realidade, fora
do pensamento. Diz Feuerbach: Em Hegel, o pensamento é o ser; o pensamento
é o sujeito, o ser é o predicado”.
21
Por isso, conforme ele diz em outro lugar, o
resultado da crítica da filosofia especulativa hegeliana pode ser pensada nos
termos de uma re-inversão: “Temos apenas de fazer sempre do predicado o
sujeito e fazer do sujeito o objeto e princípio portanto, inverter apenas a
filosofia especulativa de maneira a termos a verdade desvelada, a verdade pura e
nua”.
22
21
Feuerbach, L. Teses provisórias para a reforma da filosofia. In: Feuerbach, L. Princípios da
filosofia do futuro. Trad. port. de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 30.
22
Ibidem, p. 20.
29
1.2.1 O materialismo de Feuerbach: contestação à filosofia especulativa e ao
fundamento absoluto
A filosofia materialista de Feuerbach contesta a Hegel tanto sua
concepção da filosofia como ciência do absoluto quanto sua assunção do
pensamento como sujeito da totalidade do real. A contestação feuerbachiana da
filosofia e do fundamento absoluto de Hegel se constitui em inversão crítica do
fundamento idealista, já que, para Feuerbach, é o homem o fundamento e não
em seus termos o pensamento abstrato, como justamente o expressaria a
filosofia hegeliana. Ora, a partir do momento em que a filosofia especulativa, em
Spinoza, Schelling e, principalmente, Hegel,
23
considera a existência de “um ser
diferente do homem como princípio e ser supremo”, diz Feuerbach, “então a
distinção do abstrato e do homem permanecerá a condição permanente do
conhecimento desse ser”; em conseqüência, continua ele, “jamais chegaremos à
unidade imediata conosco mesmos, com o mundo, com a realidade”.
24
Com base
nessa recusa feuerbachiana do fundamento extra-humano, podemos dizer, com
Marx, que um dos grandes intentos de Feuerbach consistiria exatamente em
demonstrar que a filosofia especulativa “não é outra coisa senão a religião trazida
no (in) pensamento e conduzida pensadamente”.
25
23
Para Feuerbach, Spinoza é em verdade aquele que cria a filosofia especulativa em sua
formatação propriamente moderna, filosofia esta que, segundo ele, tem em Schelling seu
restaurador, mas que encontra seu pleno desenvolvimento em Hegel. “Espinoza fez do
pensamento, enquanto totalidade das coisas pensantes, e da matéria, enquanto totalidade das
coisas extensas, atributos da substância, isto é, de Deus. Deus é uma coisa pensante, Deus é
uma coisa extensa. [¶] A filosofia da identidade distinguiu-se da filosofia espinozista
unicamente por ter insuflado à coisa morta e indolente da substância o espírito do idealismo.
Hegel, em particular, fez da autoatividade, da força da autodistinção, da autoconsciência, um
atributo da substância. A proposição paradoxal de Hegel «a consciência de Deus é a
autoconsciência de Deus» funda-se no mesmo fundamento que a proposição paradoxal de
Espinoza «a extensão ou a matéria é um atributo da substância» e tem apenas este sentido:
a autoconsciência é um atributo da substância ou de Deus; Deus é eu”. (Idem, ibidem).
24
Ibidem, p. 18.
25
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. bras. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2004, p. 117, tradução levemente modificada; Ökonomisch-philosophische
Manuskripte, In: Karl Marx & Friedrich Engels Werke. Ergänzungsband, 1. Teil,
Berlin/DDR: Dietz Verlag, 1968, p. 569. Doravante, as páginas da edição alemã serão
indicadas entre parênteses imediatamente após as páginas da edição brasileira.
30
Neste ponto se insere a crítica central de Feuerbach a Hegel. Segundo
ele, ao considerar a filosofia expressão racional de um desenvolvimento que tem
o pensamento como sujeito absoluto, Hegel transforma a teologia em lógica.
Assim como o ser divino da teologia é a quinta essência ideal ou abstrata de
todas as realidades, isto é, de todas as determinações, de todas as finidades,
assim também a lógica”.
26
O que na religião é considerado como Deus, expressão
do ser supremo, na filosofia especulativa é considerado como pensamento, em
sua forma absoluta. Nestas perspectivas teológico-religiosa e especulativa, o
homem surge como nada mais que uma das determinidades, uma das expressões
finitas do sujeito absoluto, quer enquanto o Deus da teologia quer enquanto o
pensamento puro da lógica. Tendo em vista estas considerações, indica o crítico
materialista, há que realizar a necessária re-inversão dessa inversão teológico-
especulativa, colocando o homem em seu justo lugar: o de sujeito finito e
sensível.
A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa se sustém exatamente no
fato de propor essa re-inversão da inversão entre sujeito e predicado realizada
pela teologia e retomada pela filosofia especulativa moderna, principalmente a
hegeliana. Para conceber a filosofia verdadeira deve-se, portanto, como o propõe
Feuerbach, considerar que o “começo da filosofia não é Deus, não é o absoluto,
nem o ser como predicado do absoluto ou da idéia o começo da filosofia é o
finito, o determinado, o real”, já que, para ele, “o infinito não pode pensar-se sem
o finito”.
27
Esta postura é a rejeição de todo e qualquer fundamento vinculado a
uma instância infinitista; é somente desta forma que, nos diz Feuerbach,
nos libertamos da contradição que, presentemente, envenena o
mais íntimo de nós mesmos: da contradição entre a nossa vida e o
nosso pensamento e uma religião radicalmente contrária a esta
vida e a este pensamento.
28
26
Feuerbach, L. Teses provisórias para a reforma da filosofia, p. 21, itálicos no original.
27
Ibidem, p. 24.
28
Ibidem, p. 16.
31
Contudo, para Feuerbach, a filosofia especulativa não é uma mera
restauração e racionalização da perspectiva teológica, pois, ao contrário do
cristianismo e da teologia teísta, considera Deus não mais como exterior ao
mundo e, portanto, não o considera mais em sua “sensibilidade”, já que a
existência de um objeto exterior (transcendente) ao homem é própria à condição
sensível desse objeto. O Deus especulativo é imanente ao mundo, pois é
apresentado como espírito absoluto, como puro pensamento que se exterioriza
em si mesmo no mundo, fazendo deste um predicado seu. Mas, em termos
feuerbachianos, a verdade deste espírito absoluto “nada mais é do que o chamado
espírito finito, abstrato, separado de si, da mesma maneira que o ser infinito da
teologia nada mais é do que o ser finito, abstrato”.
29
“Abstrair”, explica
Feuerbach, significa pôr a essência da natureza fora da natureza, a essência do
homem fora do homem, a essência do pensamento fora do acto de pensar”.
30
Nesta perspectiva feuerbachiana, o Deus infinito, objeto da teologia, aparece
como exteriorização da sensibilidade e da paixão do homem sob a forma de um
ser exterior ao mundo, tal qual ele é representado pelas religiões pré-modernas.
Já o Deus especulativo moderno, da filosofia, consiste no pensamento humano
exteriorizado de si, que, mesmo não consistindo numa realidade exterior ao
mundo, sob a forma de puro pensamento, como temos em Hegel principalmente,
faz-se o fundamento imanente do e ao próprio mundo.
Feuerbach considera que a razão, a vontade e o coração constituem a
essência absoluta do homem.
31
Na medida em que estas essentidades, ao se
tornarem no teísmo pré-moderno uma essência objetivada e exteriorizada, são
tomadas como um ser fora do homem, de forma tal que o homem toma essas suas
próprias essentidades como não constitutivas de si mesmo, instaura-se a
consciência religiosa. Nestas condições, o divino é a objetivação humana em sua
manifestação absoluta: a objetivação fora do homem da totalidade de suas
29
Ibidem, p. 22.
30
Ibidem.
31
Feuerbach, L. A essência do cristianismo. Trad. bras. José da Silva Brandão. Campinas, SP:
Papirus, 1988, p. 44.
32
essentidades genéricas. Com base nisso, o objeto religioso que aparece, na
religião e para a consciência religiosa pré-modernas, como um ser apartado do
humano, nada mais é que a manifestação exteriorizada e objetivada da totalidade
das essentidades humanas, que são postas em um objeto produzido idealmente
pelo homem mesmo. Já o que ocorre na filosofia especulativa moderna,
mormente a hegeliana, é a recondução e a limitação do Deus teísta à razão e ao
pensamento. Assim, pois: A essência da teologia é a essência do homem,
transcendente, projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o
pensamento trasncendente, o pensamento do homem posto para fora do
homem”.
32
Neste movimento expresso pelas concepções religiosa e teológico-
especulativa, ocorre uma mistificação da finitude, em que se percorre um
caminho que vai do concreto ao abstrato, e o infinito se torna o fundamento do
finito.
33
Se temos em Hegel a apresentação, por meio de seu sistema, de um
processo de autogestação do sujeito absoluto que ele considera ser o pensamento,
em Feuerbach o pensamento nada mais é que umas das essentidades humanas
que se objetivam e que, na filosofia especulativa, se apresenta como exterior ao
homem e como fundamento infinito imanente da natureza e do homem.
Enquanto, para Hegel, a consciência filosófica tem como verdadeiro sujeito, e
objeto, o puro pensar, as essentidades puras que são determinações tanto do
pensamento quanto do ser, para Feuerbach o sujeito não pode ser outro que não o
próprio homem sensível, finito. Em Hegel aquelas essentidades puras do
pensamento, tais como são em si e por si, são coincidentes com as determinações
do próprio real, do próprio espírito; em Feuerbach, as essentidades da paixão
(sensibilidade), da vontade (querer) e do pensamento (razão) constituem a
verdade do homem e se manifestam em sua totalidade na sua condição genérica.
Contra a filosofia especulativa, diz Feuerbach:
32
Feuerbach, L. Teses provisórias para a reforma da filosofia, p. 21.
33
Ibidem, p. 25.
33
A filosofia que deduz o finito do infinito, o determinado do
indeterminado, nunca chega a uma verdadeira posição do finito e
do determinado. Deduzir o finito do infinito e determinar e negar
o infinito e o indeterminado é admitir que, sem determinação,
isto é, sem finidade, o infinito nada é; é, pois, confessar que o
finito se põe como a realidade do infinito.
34
Daí que o ponto de partida de Feuerbach é, portanto, o que ele chama de
“positivo”, a realidade sensível, material, a partir da qual o homem põe para si
objetos. Como já vimos, para o autor de Essência do cristianismo, são as
essentidades humanas a sensibilidade, a vontade e o pensamento que se
objetivam e se manifestam ao homem como objetos exteriorizados. Tais
essentidades se exteriorizam apenas na medida em que se constituem numa
forma objetiva diante dos homens. Ao se objetivarem, estas essentidades
manifestam a capacidade propriamente humana de se exteriorizar e de se dar
objetos. A externalidade é apenas a objetivação do que é próprio e essente ao
homem. No dizer de Marx, Feuerbach apresenta aí, como contraposição ao
“absolutamente positivo” de Hegel, o “positivo que descansa sobre si mesmo e
positivamente se funda sobre si próprio”.
35
Isso porque o ponto de partida dele é
contrário do hegeliano: é o sensível-natural, (em seus próprios termos, “efetivo”).
Neste sentido, pode-se afirmar que, enquanto Hegel toma como fundamento o
pensamento puro, o infinito, o “absolutamente abstrato”, Feuerbach toma como
fundamento o sensível, o material, portanto, o finito.
Não é, contudo, no homem isolado que, para o próprio Feuerbach, se
revela de fato a essência humana enquanto tal. Para ele, a essência humana está
manifesta na relação do homem com o homem. Este é o fundamento materialista
que é por Marx identificado, no pensamento feuerbachiano, e reconstituído, por
ele, sob a forma categorial da “relação social”: “o homem é para si ao mesmo
tempo EU e TU; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu
gênero, a sua essência, não somente sua individualidade, é para ele objeto”.
36
Em
34
Ibidem, p. 24.
35
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 118 (p. 570).
36
Feuerbach, L. A essência do cristianismo, p. 44. Ao tratar desta questão, Schütz afirma: “O
34
sua recusa de um fundamento absoluto, Feuerbach funda segundo a avaliação
de Marx nos Manuscritos de 1844 o “verdadeiro materialismo e a ciência real,
na medida em que toma a relação social (gesellschaftliche) do homem com o
homem como princípio fundamental da teoria”.
37
Nessa sua condição de objetivação de si enquanto indivíduo e enquanto
gênero reside a faculdade humana para a ciência, já que a consciência de si
enquanto gênero é, segundo Feuerbach, a base antropológica da ciência mesma.
Isso porque, como ele mesmo afirma, “somente um ser para o qual o seu próprio
gênero, a sua quididade torna-se objeto, pode ter por objeto outras coisas ou seres
de acordo com a natureza essencial deles”.
38
O tornar-se objeto de si pelo próprio
homem não é senão a tomada de consciência de si enquanto gênero, justamente
porque a “consciência no sentido rigoroso existe somente quando, para um ser, é
objeto o seu gênero, a sua quididade”.
39
E este ser não pode ser outro que não o
próprio homem; único ser para o qual, como demonstra Feuerbach, se tornam
objeto para si suas essentidades, ou se quisermos, sua “essência absoluta”, ou
ainda, a “essência que realiza a própria humanidade do homem”, a saber, em sua
totalidade, a razão, a vontade e o coração.
40
É no gênero que se encontra a verdadeira essência da humanidade, pois é
no gênero que está a manifestação da totalidade das essentidades humanas. São
nestes termos que podemos afirmar a determinação materialista do fundamento e
a base da “ciência real” (Marx) em Feuerbach: seu ponto de partida positivo é o
homem finito sensível, na medida em que este põe para si objetos, enquanto
objetivações de suas essentidades genéricas; e, precipuamente, o homem na sua
relação sensível com outros homens, o homem enquanto gênero, pois sua
homem é um ser genérico (Gattungswesen). Além da vida exterior, (...) o ser humano tem
uma vida interior, relacionada com o seu gênero. O homem é capaz de pensar, de ser para si
mesmo EU e também TU. Assim, o seu gênero pode ser-lhe objeto”. (Schütz, R. Religião e
capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p.
22).
37
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 118 (p. 570).
38
Feuerbach, L. A essência do cristianismo, p. 43.
39
Ibidem.
40
Ibidem, p. 44-45.
35
verdade está no gênero, na totalidade de suas essentidades, na expressão de sua
infinitude.
Esta é a base constitutiva da ciência para Feuerbach: o homem, enquanto
ser que põe para si objetos, que nada é sem objetos,
41
tem seu gênero, sua
essentidade, também como objeto. É preciso compreender que objeto
(Gegenstand) é tomado pela perspectiva feuerbachiana exatamente no sentido de
fora de e em oposição a, que se manifesta na medida em que ao homem se põe,
como uma realidade sensível material, um mundo a ele exterior que se constitui
sob a forma de objetos. Pela sua condição de ser sensível é que tais objetos
aparecem ao homem como exteriorização de suas essentidades, dito de uma outra
forma, nessa sua condição de ser sensível, o homem manifesta sua essência
através da objetivação dela mesma, em sua externalização nos objetos que põe
diante dele. Nessa perspectiva, não se pode ter por fundamento um ser
absolutamente abstrato, mas sim os próprios seres humanos, seres finitos cuja
constituição essencial se manifesta na realidade materialmente objetivada por
eles e cuja infinidade, que se constitui como característica propriamente humana,
se encontra no gênero.
1.2.2 Marx: “Crítica à dialética e à filosofia hegelianas em geral”
A posição materialista de Feuerbach é valorizada e, em certos termos,
retomada por Marx na formulação de sua “Crítica à dialética e à filosofia
hegelianas em geral”, nos Manuscritos econômico-filosóficos. Neste texto Marx
reconhece que, até então, “Feuerbach é o único que tem para com a dialética
hegeliana uma relação séria e crítica”, e “o único que fez verdadeiras
descobertas sobre esta àrea”.
42
Ao contrário de Feuerbach, os demais críticos
alemães, os jovens-hegelianos, são acusados por Marx de fazerem da crítica uma
mistificação (Mystification): “A sua polêmica contra Hegel, e entre si, reduz-se
41
Ibidem, p. 46.
42
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 117 (p. 569), tradução levemente modificada.
36
ao fato de cada um deles ter chamado a si uma faceta do sistema de Hegel e tê-la
virado tanto contra todo o sistema como contra as facetas reclamadas pelos
outros”.
43
Para Marx, a grande virtude de Feuerbach é ter tomado como objeto de
crítica o próprio fundamento idealista do sistema de Hegel, ao invés de se ter
limitado a aspectos e facetas deste.
Ora, a crítica marxiana a Hegel é justamente a crítica ao fundamento e ao
método que constituem a filosofia especulativa. Trata-se, portanto, de uma crítica
do sistema hegeliano enquanto este mostra a realidade como constituída a partir
das estruturas lógicas do pensamento, sistema da ciência na qual o pensamento se
apresenta enquanto sujeito e a efetividade se determina como expressão objetiva
desse ser autônomo que é o pensamento puro (conceito). Para Marx, o problema
principal do idealismo hegeliano consiste exatamente, como também
demonstrado pela crítica feuerbachiana, na insistência de Hegel em estabelecer
como sujeito o pensamento, concebido como infinito.
Contudo, a crítica de Marx a Hegel, embora tenha bases no pensamento
de Feuerbach, procura ser uma nova crítica ao sistema. Esta crítica tem a
peculiaridade de considerar a Fenomenologia do Espírito como “o verdadeiro
lugar do nascimento e o segredo da filosofia de Hegel”.
44
O que isso significa
dizer? Lembremo-nos que, no Prefácio a essa obra, Hegel afirma: “O que esta
Fenomenologia do Espírito apresenta é o vir-a-ser-da ciência em geral ou do
saber [que é] o agir do Si universal”.
45
Enquanto vir-a-ser a Fenomenologia é a
“primeira parte da ciência”: é ciência da experiência, que tem como finalidade
ser ciência absoluta, ser Ciência da Lógica. Na Fenomenologia do Espírito, o
ser-aí imediato do espírito, como Hegel considera a consciência, se manifesta
através de seus momentos do saber e da verdade. Como momentos distintos, eles
43
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã. Teses sobre Feuerbach. São Paulo: Editora Moraes,
1984, p. 11; Die deutsche Ideologie. In: Karl Marx & Friedrich Engels Werke, B. 3.
Berlin/DDR: Dietz Verlag, 1969, p. 19. Também a partir daqui, as páginas da edição alemã
referida serão indicadas entre parênteses imediatamente após as páginas da edição brasileira.
44
Marx, K. Manuscritos Econômico-filosóficos, p. 119 (p. 571).
45
Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito, p. 35 e 37. Entrecolchetes meus.
37
se apresentam numa relação de negatividade;
46
eles são expostos por meio da
oposição e aparecem enquanto figuras da consciência mesma. O
desenvolvimento destas figuras da consciência cuja ciência seria a
fenomenologia do espírito visa como resultado o saber absoluto, forma de
consciência filosófica que se sabe em unidade com o objeto (espírito) e, portanto,
tem como ponto de partida não mais a oposição consciência e objeto, saber e
verdade, mas, sim, a identidade pensamento e ser no conceito. Com base nisso,
se pode pensar a Fenomenologia do Espírito como formação para o
conhecimento propriamente filosófico sob a forma de uma Ciência da Lógica,
47
ciência que tem por objeto a exposição do próprio infinito em suas determinações
pensadas.
48
Ora, Marx realiza uma crítica tanto da própria exposição, na
Fenomenologia, da sucessão lógica das formas da consciência, quanto de seu
46
“A filosofia hegeliana possui na negatividade e no negativo o elemento central de constituição
de seu sistema, em especial da Fenomenologia do espírito. Esta, em se tratando de uma
apresentação inicial da formação para a ciência e, por isso mesmo, ainda do ser-aí imediato do
espírito para a consciência, no elemento de sua abstração nos seus momentos de saber e de
verdade, apresenta, num primeiro momento, a desigualdade entre a subjetividade e a
objetividade. Tal diferença, segundo Hegel, tem como motor a negatividade. De fato, é o que
movimenta a Fenomenologia do espírito, sendo mesmo a sua ‘alma’”. (Barbosa, A. M.
Ciência e experiência: para uma interpretação da Fenomenologia do Espírito de Hegel.
Fortaleza, UFC, 2007 (Dissertação de mestrado), p. 72).
47
Sobre isso, diz Vaz: “Hegel pretende fazer da fenomenologia o pórtico grandioso desse
sistema que se apresenta orgulhosamente como Sistema da Ciência” (Vaz, H. C. L.
Apresentação: A significação da Fenomenologia do Espírito. In: Hegel, G. W. F.
Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 9).
48
Segundo Lima Vaz, Hegel pretende mostrar, com a Fenomenologia, que “a fundamentação
absoluta do saber é resultado de uma gênese ou de uma história cujas vicissitudes são
assinaladas, no plano da aparição ou do fenômeno ao qual tem acesso o olhar do filósofo (o
para-nós na terminologia hegeliana) pelas oposições sucessivas e dialeticamente articuladas
entre a certeza do sujeito e a verdade do objeto”. (Vaz, H. C. L. Apresentação: A significação
da Fenomenologia do Espírito, p. 10). Vejamos também a seguinte descrição acerca das
pretensões da Fenomenologia, tal como nos é indicada por Patrick Almeida: “A
Fenomenologia pretende justamente expor o trânsito da relação de certeza para a relação de
verdade e, partindo da própria consciência, chega a mostrar como se opera a
desfenomenalização do espírito. O processo fenomenológico tem necessariamente, por isso,
que culminar na eliminação da cisão sujeito-objeto, e assim, a consciência vem a reconhecer
que o estranho, que antes lhe era um subsistente autônomo, constitui com ela uma identidade,
a qual se estabelece como o termo do desenvolvimento imanente da consciência em sua
experiência”. (Almeida, P. O. Filosofia e espírito do tempo no sistema de Hegel. Fortaleza,
UECE, 2007 (Dissertação de mestrado), p. 61).
38
resultado, a Ciência da Lógica. Enquanto fundamento do sistema filosófico de
Hegel, a Lógica é a exposição do modo de ser do pensamento (logos), do
racional em si e por si; na Lógica, o pensamento é apresentado em sua forma
ainda não efetivada. Tratar de um desenvolvimento autônomo das formas da
consciência (na Fenomenologia do espírito) é considerado por Marx um dos
erros de Hegel, erro que resulta justamente na apresentação lógico-especulativa,
como fundamento mesmo do sistema, das determinações do pensamento puro,
determinações estas lógico-reais (na Ciência da lógica). Referindo-se
criticamente à centralidade, no sistema hegeliano, do “puro pensar” e da
“abstração”, nos quais os objetos são tratados como “pensamentos e movimentos
do pensamento”, Marx diz:
na Fenomenologia apesar do seu aspecto absolutamente
negativo e crítico, e apesar da crítica efetivamente contida nela,
crítica freqüentemente antecipadora do desenvolvimento ulterior
já está latente enquanto gérmen, enquanto potência, como um
mistério, o positivismo acrítico e do mesmo modo o idealismo
acrítico das obras hegelianas posteriores, essa dissolução
filosófica e essa restauração da empiria existente.
49
Todavia, em face deste erro, Marx valoriza justamente a aparição da
dialética e da “negatividade enquanto princípio motor e gerador” como
“resultado final da Fenomenologia (do espírito)”. A grandeza do pensamento
deste filósofo alemão se expressaria, também segundo Marx, em que ele
compreende (faβ, percebe), por um lado, a autoprodução do homem como um
processo, a objetivação como desobjetivação, como exteriorização e
suprassunção dessa exteriorização”; e ainda mais, ele também “compreende a
essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem
efetivo, como resultado de seu próprio trabalho”.
50
Nestes termos, identificamos,
já aqui, que Marx dá um passo além de Feuerbach, pois ao tomar como objeto
de reflexão as relações sistemáticas entre a Fenomenologia do Espírito e a
Ciência da Lógica considera importante e ressalta tanto a negatividade dialética
49
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 122 (p. 573).
50
Ibidem, p. 123 (p. 574), tradução levemente modificada.
39
quanto o elemento da atividade, da produção, presentes em Hegel. Contudo,
fazendo uso da denúncia feuerbachiana da inversão especulativa sujeito-
predicado, Marx considera que em Hegel essa atividade humana aparece em sua
forma abstrata, lógica, especulativa. “O trabalho que Hegel unicamente conhece
e reconhece é o abstratamente espiritual”.
51
Marx, por um lado, ressalta de Hegel algo que Feuerbach não viu: a
atividade humana. Por outro lado, e com base em Feuerbach, diz que a atividade
humana aparece em Hegel de forma invertida (especulativa), enquanto atividade
do pensamento, do absoluto, do infinito. O filósofo especulativo, ainda que
compreenda o trabalho e a atividade prática humana, compreende-os, contudo,
como atividades do conceito, como “trabalho do conceito”. Nestes termos, a
atividade humana é certamente reconhecida, mas sob forma abstrata, invertida,
lógica, especulativa. O que está na base dessa consideração de Marx é sua
própria concepção do homem como ser ativo e prático, concepção esta que já
aparece de modo claro nesses escritos de 1844:
O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e como
ser natural vivo, está, em parte (teils), munido com (mit) forças
naturais, com forças vitais, é um ser natural ativo; estas forças
existem nele como possibilidades e capacidades (Anlagen und
Fähigkeiten), como pulsões; em parte, enquanto ser natural,
corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que sofre, dependente,
limitado, como é também o animal e a planta, isto é, os objetos
de suas pulsões existem fora dele, como objetos independentes
dele.
52
Esta concepção marxiana do homem como ser natural, ser objetivo, sensível, se
aproxima, em muitos termos, da concepção feuerbachiana de homem como ser
sensível, ser de objetivação, ser que possui diante de si objetos.
Porém, o que vai diferenciar fundamentalmente os dois pensadores
materialistas é a concepção marxiana do homem como ser de atividade, como ser
natural ativo. Enquanto Feuerbach considera como fundamento finito o homem
enquanto ser de sensibilidade, ser da contemplação sensível, para Marx o
51
Ibidem, p. 124 (p. 574).
52
Ibidem, p. 127 (p. 578), tradução levemente modificada.
40
fundamento finito, ponto de partida para a constituição do verdadeiro
materialismo é a atividade sensível-prática. É o que dirão ele e Engels, em 1845:
São os indivíduos efetivos (wirkliche), a sua ação e as suas condições materiais
de vida, tanto as pré-encontradas como as que produziram pela sua própria
ação”.
53
Para além de retomada marxiana do fundamento finito de Feuerbach
trata-se aqui de uma compreensão da atividade e da história que não estava em
Feuerbach, bem como da relação entre os homens configurada como “relação
social”. Como tal, a relação EU e TU do materialismo feuerbachiano é transposta
por Marx, já nos Manuscritos, para o nível de uma relação que se caracteriza pela
atividade conjunta dos homens, que se estabelece na medida em que suas forças
genéricas são expostas no movimento histórico. Como destaca Marx:
O comportamento efetivo, ativo do homem para consigo mesmo
na condição de ser genérico, ou o acionamento (Betätigung,
atividade) de seu [ser genérico] enquanto um ser genérico efetivo,
isto é, na condição de ser humano, agora (nun, então) é possível
através daquilo (dadurch) porque ele efetivamente leva para fora
(herausschafft, extrai) todas as suas forças genéricas o que é
possível apenas mediante a ação conjunta dos homens, somente
enquanto resultado da história , comportando-se diante delas
como frente a objetos (...).
54
Marx se apropria das categorias feuerbachianas de ser genérico e objetivação de
forma que correspondem, no pensamento marxiano, ao processo da própria
atividade humana, na história. Daí que as forças genéricas correspondam no
pensamento de Marx ao resultado de uma atividade de efetivação: são forças
humanas práticas sob a forma da exteriorização, postas praticamente na forma de
objetos; e não, como em Feuerbach, nas formas de contemplação sensível,
volutiva ou teórica. Na perspectiva marxiana, a história é o campo no qual este
processo de produção e de geração humana se dá; e o trabalho, nesta mesma
perspectiva, define-se como uma categoria central da vida social, pela qual o
homem medeia sua relação com os outros homens e com a natureza.
53
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, ed. cit, p 14 (p. 20), tradução levemente modificada.
54
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 22 (p. 574), tradução levemente modificada.
41
Expõe-se nessa postura conceitual de Marx uma distinção quanto ao
pensamento de Feuerbach, visto que este último não considera o processo de
atividade e produção humana enquanto desenvolvimento histórico-social. É o
que, no ano seguinte às anotações de 1844, Marx e Engels dirão no primeiro
capítulo d’A Ideologia Alemã, tomando consciência de uma distinção que,
contudo, já se encontrava nos Manuscritos econômico-filosóficos:
(Feuerbach) nunca chega, portanto, a conhecer o mundo sensível
como a totalidade da atividade sensível viva dos indivíduos que o
constituem (...) Enquanto materialista, para Feuerbach a História
não conta, e quando considera a História não é materialista. Para
ele, materialismo e História divergem completamente, o que de
resto se explica já pelo que ficou dito.
55
Daí que Marx e Engels afirmem ainda:
A ‘concepção’ de Feuerbach do mundo sensível limita-se, por um
lado, à mera contemplação deste, e por outro, à mera sensação;
(...) Ele não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma
coisa dada diretamente da eternidade, sempre igual a si mesma,
mas antes do produto da indústria e do estado em que se encontra
a sociedade, e precisamente no sentido de que ele é um produto
histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações,
cada uma das quais aos ombros da anterior e desenvolvendo a sua
indústria e o seu intercâmbio e modificando a sua ordem social
de acordo com necessidades já diferentes.
56
Diferentemente de Feuerbach, Marx concebe a história como o “ato de gênese”
do homem, atividade humana pela qual o homem se desenvolve enquanto gênero
e, portanto, como a verdade de si mesmo. Para Marx, vida social e atividade
humana produtiva aparecem ao longo da história da humanidade em uma
necessária relação. Como partícipe da vida em sociedade o homem desde sempre
manteve relações com outros homens. Estas relações se expressam no decorrer
da história da humanidade manifestando-se por meio da forma de produção e da
atividade produtiva e reprodutiva da própria vida humana.
55
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 29-30 (p. 44-45).
56
Ibidem, p. 26-27 (p. 42-43).
42
Nos Manuscritos, Marx reconhece que Hegel considera a atividade e a
história, ainda que sob forma mistificada. Marx diferencia-se já aí da crítica de
Feuerbach a Hegel, pois considera positivamente que a história é pensada por
Hegel como o “ato de produção, história da geração do homem”; contudo é esta
sua crítica , a história é transportada por Hegel para o terreno do lógico-
especulativo, e aí tratada abstratamente. Em sua diferenciação com o pensamento
de Feuerbach, Marx considera que a negação da negação hegeliana já é a
expressão da história, ainda que uma expressão abstrata, lógica e especulativa;
dito de outra forma, a crítica marxiana à fórmula hegeliana da negação da
negação considera que a história é, em Hegel, expressão abstrata, lógica,
especulativa, portanto, invertida, do movimento real da história da autoprodução
prática do homem.
Do mesmo modo, a negatividade, elemento movente da Fenomenologia,
é ressaltada por Marx como uma grandeza do pensamento hegeliano; mas tal
elemento recebe no sistema hegeliano o estatuto de “negatividade absoluta”,
movimento autônomo do pensamento que a si mesmo se nega e se move.A
atividade plena de conteúdo, viva sensível, concreta de auto-objetivação torna-se,
por isso, na sua abstração vazia, a negatividade absoluta, uma abstração que
novamente se torna fixada como tal, e se torna pensada enquanto uma atividade
autônoma, simplesmente atividade”.
57
A negatividade em Hegel aparece a Marx
“obscura” e “mistificadora” justamente porque tem como fim a perspectiva
infinitista, na qual o pensamento se põe como fundamento absoluto de si e do
real. Ao dizer que na Fenomenologia encontra-se ocultada a crítica, Marx destaca
o mais fundamental da filosofia hegeliana, e o que ele chamou de sua verdade (a
negatividade), e apresenta sua própria perspectiva materialista e finitista,
tentando escapar à apropriação de uma teoria que se funda num princípio
absoluto. A negatividade enquanto fundamento da crítica não é, em Marx, como
ela é em Hegel, um semovente de um sujeito absoluto que se desenvolve
subjetiva e objetivamente. Ela é, de outro modo, a expressão teórica contudo,
57
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos, p. 133 (p. 585).
43
invertida e logicizada em Hegel de uma realidade das relações práticas entre os
homens que se desenvolvem contraditoriamente enquanto produto de uma
determinada conformação histórica.
Em sua formatação especulativa, pensada como momento de
negatividade, a dialética encontra-se em Hegel, de acordo com o Marx de O
Capital, “invertida” e deve ser posta “ao avesso e de cabeça para baixo”.
58
Nessa
consideração, Marx retoma duas décadas depois os elementos críticos que se
encontram nos Manuscritos. Nestes, ele já se afastava do materialismo
contemplativo de Feuerbach, valorizando a dialética (negatividade) e a atividade
(autoprodução prática) que se encontram em Hegel; ao invés de simplesmente
referir-se à inversão sujeito-predicado na relação pensamento-ser, como o fazia
Feuerbach, Marx indicava essa mesma inversão na relação existente entre a
atividade prática humana e sua expressão ideal, julgando que em Hegel a
atividade prática sensível dos homens encontra expressão especulativa, lógica.
Assim, Marx desenvolve sua fundamentação materialista, diferenciando-
a tanto do método contemplativo de Feuerbcah quanto do método absoluto
(especulativo) de Hegel. Diferentemente deste, não há para Marx um fundamento
infinito, absoluto, para um ser que é prático, histórico e finito. Também a
consciência como de algum modo podemos encontrar até mesmo na crítica
feuerbachiana da consciência religiosa não lhe é, e nem pode ser, a instância
fundante, pois ela traz sempre a marca de uma determinação que a transcende. A
consciência não é e nem pode ser o fundamento de si mesma. Ou como diz Marx:
“Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o
ser social que determina sua consciência”.
59
Sendo assim, “ao contrário da visão
58
“A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, que ele
tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e
consciente. É necessário inver-la, para descobrir o cerne racional dentro do invólucro
místico”. (Marx, K. O Capital. Trad. bras. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 20-21; Das Kapital. In: Karl Marx & Friedrich Engels Werke, B.
23/I. Berlin/DDR: Dietz Verlag, 1968, p. 27).
59
Marx, K. Prefácio de Para a crítica da economia política. Tradução de José Arthur Giannoti
e Edgar Malagodi. In: Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos.
São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 30. (Os Pensadores). Zur Kritik der Politischen Ökonomie
44
idealista da história”, a visão materialista histórica não busca em todos os
períodos uma categoria conceitual, já que “permanece constantemente com os
pés assentes no chão real da História”; e, deste modo, a concepção materialista da
história,
não explica a práxis a partir da idéia, [mas] explica as formações
de idéias a partir da práxis material, e chega, em conseqüência
disto, também a este resultado; todas as formas e produtos da
consciência podem ser resolvidos não pela crítica espiritual, pela
dissolução na ‘consciência de Si’ ou pela transformação em
‘aparições’, ‘espectros’, ‘manias’ etc., mas apenas pela
transformação prática ‘revolucionária’ das relações sociais reais
de que derivam estas fantasias idealistas a força motora da
história, também da religião, da filosofia e de todas as demais
teorias, não é a crítica, mas sim a revolução.
60
Esta é uma inversão completa do ponto de vista idealista que transforma
o homem (ser finito) num desdobramento de uma potência superior (o infinito).
Em contraposição à perspectiva idealista, dialético-especulativa de Hegel, a
perspectiva dialético-materialista de Marx parte da compreensão de que a
atividade humana prática finita é o fundamento de toda teoria. Representações,
idéias, consciência são expressões no nível do pensamento daquilo que é
produzido pela práxis humana. O próprio homem ativo, que é o sujeito da
realidade materialmente constituída por sua ação, o é também da representação
desta realidade por meio do pensamento e, inseparavelmente, da linguagem. Se,
para Hegel, há um fundamento absoluto que determina a vida espiritual dos
homens, para o crítico d’O Capital a vida material e espiritual dos homens não
tem outro fundamento que os próprios homens em suas atividades práticas.
In: Karl Marx & Friedrich Engels Werke, B. 13, Berlin: Dietz Verlag, Auflage 1971,
unveränderter Nachdruck der 1. Auflage 1961, Berlin/DDR. p. 9.
60
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 48-49 (p. 38). Entrecolchetes meus.
45
1.3 Do “processo de vida real” dos homens aos seus “reflexos
ideológicos e aos ecos desse processo de vida”
A crítica que Marx, ao lado de Engels, dirige à filosofia jovem hegeliana
que se desenvolve na Alemanha de sua época se pauta na seguinte constatação:
“não ocorreu a nenhum destes filósofos procurar (nach fragen, perguntar por) a
conexão da filosofia alemã com a realidade alemã, a conexão da sua crítica com
o seu próprio ambiente material”.
61
Considerar a autonomia do pensamento
diante da vida material humana, tratar as categorias reflexivas como produtos de
uma instância superior e apartada do processo real da vida, consiste para os dois
amigos no grande erro da filosofia alemã. Diferente do que conclui a
historiografia e a filosofia alemãs, as categorias, como pensam Marx e Engels, se
constituem somente na expressão teórica “do movimento histórico das relações
de produção”. O erro dos pensadores alemães estaria exatamente em
desconsiderar a conexão destas categorias com a realidade histórica mesma, da
qual elas são simples expressão teórica. Justamente porque na filosofia alemã
-se nestas categorias apenas idéias provindas de si mesmas, nas relações
efetivas pensamentos independentes, é-se forçado a deslocar a origem destes
pensamentos para o movimento da razão pura”.
62
Contrariando esta pressuposição idealista, Marx e Engels destacam que
nos estudos históricos a “observação empírica tem de mostrar, em cada um dos
casos, empiricamente e sem qualquer mistificação e especulação, a conexão da
estrutura social e política com a produção”.
63
Isso porque eles consideram o
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção o componente
fundamental do movimento histórico. A produção material, conforme ela se
61
Ibidem, p. 14 (p. 20).
62
Marx, K. Miséria da filosofia. Trad. bras. de J. C. Morel. São Paulo: Ícone Editora, 2004, p.
121, tradução levemente modificada; Das Elend der Philosophie. In: Karl Marx & Friedrich
Engels Werke, B. 4. Berlim/DDR: Dietz Verlag, 1972, p. 126. As seguintes citações desta
obra serão igualmente comparadas com a obra em alemão. Em rodapé, estarão indicadas em
parênteses as páginas da obra em alemão.
63
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 21 (p. 25).
46
apresenta na perspectiva marxiana, é inerente a toda forma de sociabilidade
humana e se constitui em seu conteúdo material. Na condição de conteúdo
material das relações entre os homens, a produção é historicamente diferenciada,
pois se manifesta em cada momento histórico pela forma social em e sob a qual
se apresentam as próprias relações de produção entre os homens. Trata-se aqui da
concepção materialista mais geral a que Marx e Engels se referem nos seguintes
termos: “O fato é, portanto, este: o de determinados indivíduos, que trabalham de
determinado modo, entrarem (eingehen) em determinadas relações sociais e
políticas”.
64
Ou, diz ainda Marx noutro contexto:
na produção social da própria vida, os homens contraem relações
determinadas, necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção estas que correspondem a uma etapa
determinada de desenvolvimento das forças produtivas
materiais.
65
Para Marx, “a produção da própria vida material” é o primeiro ato
histórico. E, enquanto tal, este ato é “uma condição fundamental de toda a
história”. “Ainda hoje”, a produção da vida material dos homens, dizem Marx e
Engels, “tal como há milhares de anos, tem de ser realizada dia a dia, hora a hora,
para ao menos manter os homens vivos”.
66
A produção material corresponde,
assim, em uma primeira instância, ao modo de satisfação das necessidades
humanas. Nesse processo de produção da própria vida, os indivíduos produzem
“indiretamente a sua própria vida material”, de forma que “a história inteira nada
mais é que uma transformação contínua da natureza humana”.
67
Transformação
não somente do próprio homem como também da natureza mesma com a qual o
homem se relaciona e na qual ele encontra os meios necessários para a produção
de coisas com vistas à satisfação de suas necessidades.
68
Sendo assim, “esta
64
Ibidem.
65
Marx, Prefácio de Para a crítica da economia política, p. 29 (p. 8).
66
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 31 (p. 28).
67
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 170 (p. 160).
68
“(...) não existe homem (nem consciência do homem, nem pensamento) sem a natureza e fora
das trocas entre o homem e a natureza. Estas duas proposições situam com exatidão o
materialismo de Marx: este materialismo não concede tudo ao mundo sensível exterior. A
47
atividade (sensível dos homens), este trabalho e esta criação sensíveis contínuos
e esta produção são a base de todo o mundo sensível como ele agora existe”.
69
O mundo objetivo não é a materialização do desenvolvimento do
espírito, como o pensava Hegel; para Marx, ele é produto da atividade humana, a
materialização desta atividade prático-sensível, deste trabalho que, tendo como
princípio e fundamento inicial a satisfação das necessidades dos homens, cria
novas necessidades e cria novas formas de satisfação destas necessidades. Ao
produzirem socialmente coisas sensíveis materiais, os homens produzem também
suas próprias relações de produção. Como diz Marx,
os homens fabricam (anfertigen) os panos, as lãs e os tecidos
finos de seda, sob (unter) relações determinadas de produção. (...)
estas relações sociais determinadas são tão bem produzidas pelo
homem como os panos, o linho etc. As relações sociais estão
intimamente ligadas com as forças produtivas. Com a aquisição
de novas forças produtivas, os homens modificam o seu modo de
produção e com a modificação de seu modo de produção, da
maneira de ganhar a sua vida, eles modificam todas as suas
relações sociais. O moinho manual nos dará a sociedade com
suseranos; o moinho à vapor a sociedade com capitalismo
industrial.
70
Portanto, é a atividade prática humana a responsável pela constituição de
um mundo social material, objetivo, bem como de uma vida cultural, espiritual,
que compõe esse mesmo mundo material. Essa vida espiritual se constitui nas e
pelas relações entre os indivíduos que se manifestam de forma diferenciada em
cada momento histórico. Para dizer com Marx e Engels, o que se revela aqui é
“uma conexão materialista dos homens entre si”, conexão esta que, condicionada
natureza produz o homem, mas isso não passa do acto inicial de um processus que, daí em
diante, se vai desenvolver entre dois pólos: a natureza e o homem (ambos nitidamente ligados
e separados ao mesmo tempo). A natureza produz o homem para se humanizar. O homem, por
seu lado, é um sistema de necessidades que se satisfaz primeiro pela natureza”. (Touchard, J.
(Dir.). História das Idéias Políticas, v. III. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, s/d.
p.204-205 Apud: Wolkmer, A. C., Marx, A questão judaica e os direitos humanos. In: Revista
Seqüência, n.º 48, p. 11-28, jul. de 2004, p. 16).
69
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 28 (p. 44).
70
Marx, K. Miséria da Filosofia, p. 125 (130) tradução levemente modificada.
48
“pelas necessidades e pelo modo da produção e tão velha como os próprios
homens (...) assume sempre formas novas”.
71
Com base neste pressuposto mais geral, o fundamento materialista-
histórico de Marx se desenvolve como análise da forma de relação social que
compõe a sociedade produtora de mercadorias e culmina numa exposição crítica
desta mesma sociedade. Para o autor de O Capital, a apreensão das
determinações próprias a uma forma social de relação entre os homens deve
pressupor que essas determinadas relações são formas históricas. Pensadas deste
ponto de vista materialista histórico, como diz Marx, “as categorias econômicas
[tais como propriedade, mercadoria, dinheiro, capital etc], são apenas as
expressões teóricas, as abstrações dessas relações sociais de produção”.
72
Portanto, há que, segundo Marx, abandonar os princípios eternos, para poder
chegar ao ponto de partida verdadeiro: “os homens realmente ativos”. Ao tomar
esse ponto de partida é que se pode apresentar, com base no “processo efetivo
(wirklich) de vida” dos homens ativos, “o desenvolvimento dos reflexos (Reflexe)
e ecos ideológicos deste processo de vida (Lebensprozesses)”.
73
É exatamente
isso que Marx e Engels expressam com a seguinte passagem d’A Ideologia
Alemã:
A moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia e as
formas de consciência que lhe correspondem (...) não têm
história, não têm desenvolvimento, são os homens que
desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio
material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o
seu pensamento e os produtos do seu pensamento.
74
Para ele, portanto, é equivocada a perspectiva que parte de uma história
do pensamento puro, de um desenvolvimento ideal de uma consciência absoluta,
exterior ao homem, determinante de si e de tudo que constitui a realidade e a vida
material e espiritual dos homens. A história é apenas o processo prático de vida e
71
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 33 (p. 30).
72
Marx, K. Miséria da Filosofia, p. 125 (130).
73
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 22-23 (p. 26).
74
Ibidem, p. 23 (p. 26-27).
49
constituição prática da vida dos homens em sociedade. Este processo é associado
ao desenvolvimento das forças produtivas, que consistem nos elementos de
produção e reprodução da própria vida humana. Inseridos nesse processo de
produção e reprodução de suas vidas, os homens aparecem em certas relações,
que correspondem ao momento histórico no qual elas se encontram. Assim,
afirmam Marx e Engels,
um determinado modo de produção, ou fase industrial, está
sempre ligado a um determinado modo da cooperação, ou fase
social, e este modo da cooperação é ele próprio uma ‘força
produtiva’; e (...) a quantidade das forças produtivas acessíveis
aos homens condiciona o estado da sociedade e, portanto, a
‘história da humanidade’ tem de ser sempre estudada e tratada
em conexão com a história da indústria e da troca.
75
Baseado nesse pressuposto, Marx estabelece a relação, já indicada
anteriormente, entre relações sociais, produção material, de um lado, e a
produção de idéias etc. de outro. Diz ele: “Os mesmos homens que estabelecem
as relações sociais conforme à sua produtividade material, produzem também os
princípios, as idéias e as categorias conforme as suas relações sociais”. Inseridos
em determinadas relações, por eles mesmos estabelecidas, em conformidade com
o processo de produção e reprodução de suas vidas, os homens representam por
meio do pensamento essas relações. Assim, continua Marx, “estas idéias, estas
categorias, são tão pouco eternas quanto às relações que as exprimem. Elas são
produtos históricos e transitórios”.
76
Segundo julga Marx, a vida social histórica é somente tomada em sua
concretude enquanto condição determinada e determinante das relações de
produção humanas. Como tal, consiste na atividade sensível dos homens, no
trabalho e na criação sensíveis contínuos, que são, para Marx, “a base de todo o
mundo sensível como ele agora existe”.
77
No momento em que se chega a essas
conclusões, “no momento em que representamos os homens como autores e
75
Ibidem, p. 33 (p. 30).
76
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 125 (p. 130).
77
Marx, K., Engels, F. A ideologia alemã, p. 28 (p. 44).
50
atores de sua própria história teríamos”, como afirma o autor de O Capital, “por
um desvio, retornado ao verdadeiro ponto de partida, posto que teríamos
abandonado os princípios eternos dos quais antes falávamos”.
78
78
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 131 (p. 135).
Capítulo II
Da crítica da determinação especulativa do Estado à
crítica do Estado político moderno e do Direito
Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações
jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser
compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do
assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano,
mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materias de
vida.
MARX, PREFÁCIO DE À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA.
Neste capítulo, apresento uma análise sobre três obras juvenis de Marx,
nas quais se apresentam reflexões sobre a questão do Direito e do Estado
político: Crítica à filosofia do direito de Hegel¸ A questão judaica e Miséria da
filosofia. Na primeira, constituída principalmente dum enfoque crítico-filosófico,
há o início de uma concepção da realidade que abandona os pressupostos
absolutos e procura ser uma elaboração teórica que tem como ponto de partida a
própria realidade histórico-social finita; nela, dá-se início a uma reflexão sobre a
relação entre a sociedade civil e o Estado. Em A questão judaica, retomando
metodologicamente essa mesma relação entre sociedade civil e Estado, Marx
apresenta uma posição crítica da concepção do Estado político como plenificação
de um processo de emancipação do homem do arcaísmo religioso. Na Miséria da
filosofia, sua crítica do fenômeno jurídico se fundamenta, pela primeira vez, nas
suas leituras da economia política, que se constitui também, e primordialmente,
em seu objeto de crítica: desse ponto de vista, essa obra apresenta pela primeira
vez aquela que vai ser a perspectiva sob a qual O Capital tematizará as categorias
jurídicas.
O objetivo deste capítulo é a apresentação do desenvolvimento teórico da
crítica do Estado e do Direito em Marx. O que quero destacar nele é que a crítica
2
do Estado e do Direito, bem como das suas formas categoriais, esteve presente no
percurso da reflexão e produção teórica marxiana, desde a sua juventude.
Diferente de este percurso apresentar-se fragmentado, ele deve ser pensado como
um processo que culmina na sua obra maior de crítica da economia política, O
Capital, na qual se pode pensar a imanência das categorias jurídicas, do Direito e
do Estado, com base na própria exposição crítica do valor.
2.1 A Crítica da filosofia do direito de Hegel: por detrás das cortinas da
especulação
A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, escrita por Marx em 1843,
enquanto crítica à filosofia política hegeliana, tem como tema fundamental “o da
separação e oposição modernas entre Estado e sociedade civil e a tentativa
hegeliana de conciliar esses extremos na esfera do Estado”.
1
Estas separação e
conciliação são apresentadas com base numa concepção infinitista, justamente a
especulativo-hegeliana, na qual “família e sociedade civil são apreendidas como
esferas conceituais (Begriffssphären) do Estado e, com efeito, como as esferas de
sua finitude (finidade, Endlichkeit), como sua finitude”.
2
Nesse diálogo com
Hegel, a fundamentação materialista pelo menos em gérmen se apresenta
como a marca das concepções marxianas. Esta fundamentação materialista se
baseia em parte nas formulações críticas de Feuerbach a Hegel e na sua “reforma
da filosofia”. A crítica da inversão sujeito e predicado também está presente na
Crítica da filosofia do direito de Hegel, na qual Marx questiona a perspectiva
especulativo-hegeliana que concebe o Estado como expressão objetiva da idéia
absoluta e como fundamento da família e da sociedade civil. Central à crítica
feuerbachiana da filosofia especulativa, a imagem da inversão aparece
1
Enderle, R. Apresentação. In: Marx, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. bras. de
Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 18.
2
Marx, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 29; Zur Kritik der Hegelschen
Rechtsphilosophie. Kritik des Hegelschen Staatsrechts. In: Karl Marx & Friedrich Engels
Werke. B 1, Berlin/DDR: Dietz Verlag, 1976, p. 205. A partir de então, as páginas da obra em
alemão aparecerão indicadas entre parênteses, logo após as referências à edição brasileira.
3
insistentemente nas considerações de Marx sobre a Filosofia do Direito de
Hegel.
A crítica de Marx se dirige exatamente à concepção sob a qual a
Filosofia do Direito é inserida no sistema filosófico de Hegel. Como tal, ela tem
como fundamento a idéia, o sujeito absoluto, que, ao se desenvolver, ao se
determinar, se constitui numa realidade objetivada, exteriorizada em si mesma, e
é tomada, pela filosofia hegeliana, como o próprio sujeito desse desenvolvimento
e dessa determinação de si mesma numa segunda natureza (espiritual). Noutras
palavras, a filosofia especulativa apresenta a idéia como o sujeito do direito, da
moralidade e da eticidade. Estas são, ali, formas de manifestação da idéia, em seu
momento objetivo; são momentos do espírito objetivo, etapas da composição da
sua natureza propriamente espiritual. Nessa exposição especulativa, que tem por
base o infinito, o Estado é apresentado como objetivação do absoluto e, enquanto
tal, como o sujeito do qual a família e a sociedade civil são predicados. É
justamente da crítica dessa apresentação que Marx apreende de Hegel a relação
ente sociedade civil e Estado; todavia, utilizando-se dela para pensar o Estado,
ele reinverte esta relação e concebe a sociedade civil como o verdadeiro sujeito, e
não o Estado como o concebe Hegel.
2.1.1 Linhas Fundamentais da Filosofia do direito e a determinação
especulativa do Estado
“A ciência filosófica do Direito tem por ob-jeto a idéia do Direito, o
conceito do Direito e a sua efetivação”.
3
Nessa proposição, com a qual Hegel
inicia a Introdução de suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou
Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio, se encontra o elemento alvo
da crítica marxiana à concepção especulativa do Estado moderno, crítica que
neste caso se dirige ao fundamento do Direito e da ciência que o tem por objeto.
Para Hegel, a ciência consiste na apresentação do automovimento do espírito, na
3
Hegel, G. W. F. Introdução à Filosofia do Direito, § 1.
4
auto-exposição da vida espiritual. Essa exposição, constitutiva e resultante da
ciência como propriedade do ser espiritual, se plenifica sob a forma de um
sistema e se materializa numa Enciclopédia das Ciências Filosóficas;
4
nesta, a
Filosofia do direito aparece inserida. As partes constitutivas da Enciclopédia são,
em sua articulação, assim determinadas por Hegel: Ciência da Lógica (parte I),
Filosofia da Natureza (parte II) e Filosofia do Espírito (parte III). É nessa
terceira parte da Enciclopédia que, sob a forma de uma seção Filosofia do
Espírito Objetivo , se encontra exposta a Filosofia do Direito, ou se quisermos,
o desenvolvimento do conceito do Direito e o processo de efetivação deste
conceito enquanto idéia. Como Ciência do Direito, ela é, conforme a perspectiva
hegeliana, um momento constitutivo da Filosofia, do saber absoluto. A Ciência
do Direito compõe, enquanto uma parte da exposição do desenvolvimento do
espírito, a idéia absoluta. Em termos hegelianos, a Ciência filosófica do Direito
“tem de, a partir do conceito, desenvolver a idéia, enquanto essa é a razão de um
ob-jeto, ou que é o mesmo, ela tem de dirigir o seu olhar ao próprio
desenvolvimento imanente da Coisa mesma”.
5
Assim mesmo, ela tem de dirigir
seu olhar ao movimento objetivo do espírito, à determinação do conceito em sua
efetividade e determinidade.
6
4
Segundo Marcos Müller, “conhecimento filosófico, tal como Hegel compreende, (...) se
constitui verdadeiramente na forma do sistema, que procura organizar o conjunto integral das
determinações essenciais da realidade efetiva na natureza e no espírito (...) enquanto ciência
filosófica, se desenvolve e se apresenta essencialmente na forma de uma Enciclopédia das
ciências filosóficas (...) que procura sistematizar os conceitos fundamentais e os princípios
racionais que articulam os modos de explicação dos diferentes saberes nos seus respectivos
registros e no todo do saber, conceitos e princípios que são, para Hegel, ao mesmo tempo, as
determinações essenciais da realidade efetiva”. (Müller, M. L. Apresentação: um roteiro de
leitura da introdução. In. Hegel, G. W. F. Introdução à Filosofia do Direito, p. 5).
5
Hegel, G. W. F. Introdução à Filosofia do Direito, § 1, Adendo.
6
“A ciência filosófica do Direito tem por objeto a idéia do Direito, quer dizer, o conceito do
Direito e a realização desse conceito. É uma parte da filosofia que tem por tarefa desenvolver,
a partir do conceito, a idéia de liberdade. Portanto, ciência da realização objetiva, cultural e
histórica da liberdade. Histórica, porque é a história o lugar da efetivação da liberdade, e
cultural, porque a cultura é obra dessa liberdade. Em outras palavras, Direito é a própria
expressão racional da existência do homem, a articulação da vontade que quer seu querer
livre, o querer enquanto tal da liberdade”. (Soares, M. Sociedade civil e sociedade política em
Hegel. Fortaleza: EdUECE, 2006, p. 99 (Coleção Argentum Nostrum)).
5
A crítica de Marx se dirige ao fato de aqui se manifestar mais uma vez o
princípio do método absoluto de Hegel: a identidade entre pensamento e
realidade, identidade na qual o pensamento em sua determinação conceitual se
põe como sujeito. Ao tomar como objeto o conceito de Direito e sua efetivação, a
filosofia especulativa parte do pressuposto absoluto de que é o conceito o próprio
sujeito da sua efetivação e do conhecimento de si mesmo. Assim, a razão que
opera nestes dois momentos do conceito sua efetivação e seu autoconhecimento
filosófico é a mesma. O movimento real pelo qual se apresenta o conceito de
Direito, a própria realidade efetiva, é idêntico à captação desse mesmo
movimento pelo próprio espírito num retorno reflexivo-especulativo. Mas o
princípio ativo desse movimento não consiste na objetividade da qual parte a
Filosofia do Direito. O princípio, ou se quisermos, o ponto de partida da Filosofia
do Direito é ele o fim ao qual se pretende chegar: o conceito. É justamente por
se constituir numa parte da filosofia especulativa que a Ciência filosófica do
Direito tem seu ponto de partida já determinado: “é o resultado e a verdade do
que precede”, a saber, a própria filosofia especulativa (saber absoluto) como todo
constituído. Esse ponto de partida é o absoluto, a idéia em sua absolutidade, que,
ao final de seu percurso de desenvolvimento e efetivação, se faz idéia absoluta na
filosofia.
A idéia do Direito, conforme a perspectiva especulativa, é uma das
determinações da idéia absoluta, uma forma de sua manifestação; em
contrapartida, a Filosofia do Direito é um dos momentos do saber do absoluto,
momento este que tem como objeto o conceito de Direito e sua efetivação na
idéia do Direito. Para Hegel, a idéia absoluta é a idéia de liberdade. Essa idéia de
liberdade é a essência subjetiva e substancial do espírito. É imanente ao espírito o
desenvolvimento e reconhecimento, de si e por si, da idéia de liberdade como seu
conteúdo. Assim, quando a idéia de liberdade se determina como o em si e para
si do próprio espírito, este, na condição de sujeito de si mesmo, se desenvolve e
segue em direção à efetivação da idéia de liberdade, que é sua essência, seu
conteúdo substancial. Este desenvolvimento lhe é imanente, ou dizendo noutros
6
termos, o espírito se efetiva a si mesmo ao reconhecer a idéia de liberdade como
sua essência e substância.
“O espírito essencialmente age”, afirma Hegel; “ele se faz o que ele é em
si, seu ato, sua obra; assim ele se torna objeto de si, assim ele se tem enquanto
uma existência diante de si”.
7
É a determinação da idéia de liberdade em sua
particularização finita, em sua objetivação, que se constitui numa existência
diante de si do espírito para bem dizer: em espírito objetivo. A apresentação
desta determinação particular, como um momento do desenvolvimento da idéia,
se constitui sob a forma de uma Filosofia do Direito. O conteúdo e a substância
do Direito, bem como da sua ciência, é a própria idéia de liberdade.
8
Esta, “para
ser verdadeiramente apreendida, tem de ser conhecida no seu conceito e no seu
ser-aí”.
9
Se, em termos hegelianos, “o conceito é o que unicamente tem
efetividade e a tem de modo tal que ele mesmo se dá essa efetividade”,
10
essa
efetividade é esse ser-aí do conceito feito realidade objetiva, determinidade de si
posta pelo próprio conceito.
Como uma das seções da Filosofia do Espírito, a Filosofia do Direito é a
apresentação do desenvolvimento da idéia de liberdade em sua manifestação
objetiva. Dito de outro modo, a Filosofia do Direito é a exposição do espírito
objetivo que se constitui num saber filosófico do Direito. Como tal, ela apresenta
o percurso da idéia de liberdade que aparece nas formas do direito abstrato, da
moralidade e da eticidade (Sittlichkeit). Mas o fim da Filosofia do Direito é a
exposição do saber em sua expressão absoluta, em sua verdade; é a exposição do
7
Hegel, G. W. F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal. Trad. esp. José Gaos.
Madrid: Alianza Editorial, 1989, p. 70, tradução levemente modificada; Vorlesungen über die
Philosophie der Geschichte. Werke in 20 Bänden, Tomo 12. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1970, p. 99.
8
“A idéia do direito, enquanto objeto de ciência filosófica do direito, não é senão o processo de
objetivação dessa vontade racional e autônoma, que se sabe e se quer na sua universalidade
como livre, ‘a vontade livre que quer a vontade livre’ (FD § 27), denominada também
‘espírito livre’ (E § 481; FD 27)”. (Müller, M. L. Apresentação: um roteiro de leitura da
introdução, p. 7).
9
Hegel, G. W. F. Introdução à Filosofia do Direito, § 2. Para Hegel, “tudo o que não é essa
efetividade posta pelo próprio conceito é ser-aí passageiro, contingência exterior, opinião,
fenômeno desprovido de essência, inverdade, ilusão etc”. (Ibidem, § 1).
10
Ibidem, idem.
7
espírito em seu pleno desenvolvimento, em sua plena unidade do objetivo e do
subjetivo. O seu princípio e fundamento é o absoluto; a idéia que se determina e
se põe como objeto e sujeito de si mesma e em unidade absoluta consigo mesma.
Por isso, criticamente, Marx afirma: “Toda a filosofia do direito é, portanto,
apenas um parêntese da lógica. O parêntese é, como por si mesmo se
compreende, apenas hors-d’oeuvre [coisa secundária] do desenvolvimento
propriamente dito”.
11
Nesse desenvolvimento da idéia, aparecem a família, a sociedade civil e
o Estado enquanto “formas fundamentais” da eticidade, eticidade que é
“concebida como a esfera da realização propriamente comunitária, ético-política
da liberdade”.
12
Essa é, portanto, a esfera da realização substancial do espírito
tanto subjetiva quanto objetivamente: “A eticidade é a plena realização do
espírito objetivo, a verdade do espírito subjetivo e do espírito objetivo mesmos”.
Para Hegel, essa realização suprassume as unilateralidades subjetiva
(moralidade) e objetiva (direito abstrato) do espírito finito:
A unilateralidade do espírito objetivo é, por uma parte, ter sua
liberdade imediatamente na realidade, portanto no exterior, na
Coisa; por outra parte, no bem, enquanto é um universal abstrato.
A unilateralidade do espírito subjetivo é ser autodeterminando-se
em sua singularidade interior, de maneira igualmente abstrata, em
oposição ao universal.
13
As formas fundamentais da eticidade família, sociedade-civil e Estado
são apresentadas pela filosofia especulativa num desenvolvimento da vontade
que se quer livre, isto é, do conceito da liberdade.
14
Neste desenvolvimento, o
Estado é considerado a efetivação plena da vontade livre, a forma concreta da
11
Marx, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 39 (217).
12
Müller, M. L. Apresentação. In: Hegel, G. W. F. O Estado. Trad. bras. Marcos Lutz Müller.
Campinas, SP: IFCH/UNICAMP, 1998, p. 4.
13
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 535.
14
“No seu sentido bem geral, a Filosofia do Direito de Hegel é a exposição das diversas figuras
assumidas pela vontade, desde as mais simples e abstratas até alcançar as mais ricas e cada
vez mais concretas”. (Teixeira, F. J. S. O encontro de Hegel e Marx com a economia política.
In: Kalagatos. Revista de filosofia do mestrado acadêmico em filosofia da UECE. Fortaleza,
v. 3, n. 5, 2006, p. 71).
8
liberdade; em contrapartida, ele pressupõe a família e sociedade civil. A
realidade política, que tem como sua substancialidade no Estado a idéia de
liberdade, é a constituição de uma segunda natureza posta pelo próprio espírito,
com a qual ele se identifica mediatamente e na qual as unilateralidades espirituais
estão suprassumidas. O Estado político moderno é, portanto, nesta perspectiva, o
fim ao qual chega o espírito em seu processo de objetivação e determinação de si
(da idéia de liberdade que é seu conteúdo substancial e sua essência). É a
objetivação do absoluto em forma finita, a efetividade da idéia de liberdade em
seu desenvolvimento e determinação na finitude. Para dizer com Hegel: “O
Estado é a substância ética consciente-de-si, a união dos princípios da família e
da sociedade civil”.
15
2.1.2 Marx e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado
Para Hegel, a família e a corporação (parte da sociedade civil) são as
raízes éticas do Estado. Na família, segundo a tese hegeliana, particularidade
subjetiva e universalidade objetiva se apresentam “numa unidade substancial”. Já
na coorporação, particularidade e universalidade, tendo sido cindidas na
sociedade civil, se (re)unem: carência e fruição (particularidade refletida em si
mesma), e “universalidade jurídica abstrata se reconciliam. “Nessa reunião”,
diz Hegel, “o bem próprio particular existe como direito e é efetivamente
realizado”.
16
Mas o fim restrito e finito da corporação “têm a sua verdade no fim
universal em si e para si e na sua realidade efetiva absoluta”, isto é, no Estado.
Assim, a família e a corporação como raízes éticas do Estado desenvolvem-se
nele, que emerge como resultado e, especulativamente, como o verdadeiro
fundamento delas. Em termos hegelianos, esta é a demonstração científica do
conceito do Estado: o “desenvolvimento [que vai] da eticidade imediata
[família], através da cisão da sociedade civil, até o Estado, que se mostra como o
15
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 535.
16
Hegel, G. W. F. A Sociedade civil. Trad. bras. Marcos Lutz Müller. Campinas, SP:
IFCH/UNICAMP, 2000, § 255.
9
fundamento verdadeiro de ambas”.
17
“Porque, no andamento do conceito
científico”, diz ainda Hegel,
o Estado aparece como resultado, ao demonstrar-se como o
verdadeiro fundamento, segue-se que essa mediação [através da
sociedade civil] e essa aparência [do Estado como resultado]
igualmente se suprimem e [se] erguem à imediatez. Por isso, na
realidade efetiva, o Estado em geral é, muito mais, o que é
primeiro, sendo que só e primeiro no seu interior a família se forma
plenamente em direção à sociedade civil, e é a própria Idéia do
Estado que se dirime nesses dois momentos (..).
18
Ora, é justamente este o objeto fundamental da crítica marxiana de 1843
à concepção hegeliana de Estado: a relação entre família e sociedade civil com o
Estado é aí apresentada especulativamente, relação na qual aquelas se expressam
“como manisfestação, fenômeno” deste último. Na perspectiva especulativa, essa
relação é captada como atividade interna da idéia. Para Marx, o que ocorre na
exposição da Filosofia hegeliana do Direito, que tem como fundamento o
movimento especulativo do conceito de liberdade, é a inversão da verdadeira e
efetiva relação entre família, sociedade civil e Estado. Tal inversão expressa-se
pelo fato de Hegel conceber a família e a sociedade civil numa forma contrária à
que ocorre na realidade: ele as considera não na sua condição de “pressupostos
(Voraussetzungen) do Estado”, “elementos propriamente ativos”, “sujeitos reais”,
mas como “momentos objetivos da Idéia, irreais e com outro significado”.
19
Ora, ressalta Marx, “os cidadãos do Estado (Staatsbürger) são membros
da família e membros da sociedade civil”.
20
Pensados desta forma, eles não
podem ser considerados senão como sujeitos constitutivos do próprio Estado.
Melhor dizendo: a família e a sociedade civil, cujos membros também são
17
Ibidem, § 256.
18
Ibidem. “O Estado, como Idéia ética efetivamente real, se divide a si próprio nas suas duas
esferas finitas, a família e a sociedade civil-burguesa, para ‘suprassumindo’ a idealidade
destas, retornar a partir delas a si como o infinito ético efetivamente real. Ele se põe, assim,
como pressuposto da própria diferenciação moderna da sociedade civil-burguesa em face dele
e da sua oposição a ele, porque ele atua nela como fim que, na perspectiva da dialética
descendente, é ‘regressivamente’ o fundamento da sociedade”. (Müller, M. L. Apresentação.
In: Hegel, G. W. F. O Estado, p. 14.)
19
Marx, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 30 (p. 206).
20
Ibidem.
10
membros componentes do Estado, não podem ser entendidas senão como
elementos determinantes do Estado, seus reais pressupostos. Para Marx, “a
divisão do Estado em família e sociedade civil é ideal”, tal como apresentada por
Hegel, não pode ocorrer senão idealmente, como ato do pensamento; mas elas
efetivamente compõem a essência do Estado na medida em que, na própria
realidade, compõem o Estado. Como diz Marx,
família e sociedade civil são partes reais do Estado, existências
espirituias reais da vontade; elas são modos de existência do
Estado; família e sociedade civil se fazem a si mesmas, Estado.
Elas são a força motriz (Treibende).
21
Mas para Hegel, família e sociedade civil “são determinações postas por
um terceiro, não autodeterminações”.
22
Elas não têm, portanto, um fim em si
mesmas, mas têm no Estado seu fim imanente. Justamente aqui se apresenta, aos
olhos de Marx, a inversão hegeliana da relação da família e da sociedade civil
com o Estado. Tomadas como momentos objetivos da idéia, família e sociedade
civil assumem o lugar de predicados desta idéia. Como tais, embora sejam
pressupostos do Estado político, conditio sine qua non deste, na perspectiva
especulativa esta relação se inverte: “a condição torna-se o condicionado, o
determinante torna-se o determinado, o produtor é posto como o produto de seu
produto”.
23
Desta forma, a constituição do Estado que ocorre por intermédio da
família e da sociedade civil, através de seus membros, aparece na perspectiva
especulativa “como um ato da Idéia (...). O real torna-se fenômeno (Phänomen);
porém, a Idéia não tem outro conteúdo (Inhalt) a não ser esse fenômeno”.
24
A passagem da família e da sociedade civil ao Estado move-se, conforme
a lógica especulativa, não pelo movimento essencial particular delas mesmas.
Mas, por ter como finalidade a efetivação do conceito (o seu tornar-se idéia), o
seu sujeito é a idéia de liberdade; e os sujeitos reais, família e sociedade civil, são
21
Ibidem, p. 30 (p. 206).
22
Ibidem.
23
Ibidem.
24
Ibidem, p. 31 (p. 207).
11
feitos predicados desta idéia. É por isso que, para Marx, “o desenvolvimento
lógico da família e da sociedade civil ao Estado é, portanto, pura aparência
(Schein), pois não se desenvolve como a disposição familiar
(Familiengesinnung), a disposição social (bürgerliche Gesinnung); neste
sentido, o que ocorre no pensamento especulativo é que “a instituição da família
e as instituições sociais como tais relacionam-se com a disposição política
(politischen Gesinnung) e com a constituição política (politischen Verfassunge) e
com elas coincidem”.
25
Outro aspecto dessa mesma inversão especulativa operada pela Filosofia
do Direito hegeliana, é que, com a idéia feita sujeito, as distinções reais do
Estado são tornadas como desenvolvimento da própria idéia. Para Marx, ao
contrário, estas “distinções reais ou os diferentes lados da constituição política
são os verdadeiros pressupostos do Estado, os sujeitos a partir dos quais o Estado
se desenvolve. Todavia, Hegel
transformou em produto, em um predicado da Idéia, o que é o seu
sujeito; ele não desenvolve seu pensamento a partir do objeto, mas
desenvolve o objeto segundo um pensamento previamente
concebido na esfera abstrata da lógica. Não se trata de desenvolver
a idéia determinada da constituição política, mas de dar à
constituição política uma relação com a Idéia abstrata, de dispô-la
como um membro de sua biografia (da Idéia): uma clara
mistificação.
26
A crítica marxiana é a crítica da postura especulativa de Hegel, na qual o
Estado é uma produção ideal posta pelo espírito. Segundo a metáfora de Marx, na
concepção hegeliana da sociedade moderna, as cortinas da especulação se
fecham, deixando atrás de si a relação real entre família, sociedade civil e Estado;
fica à vista apenas o espetáculo da lógica pelo qual o Estado é apresentado como
ato desse mesmo espetáculo. Segundo a crítica de Marx, o que se tem por
interesse e fim na Filosofia do Direito é a lógica. Por isso as categorias políticas,
ou as categorias jurídicas (do direito), se manifestam como categorias lógicas,
25
Ibidem, p.32 (p. 207).
26
Ibidem, p.36 (p. 213).
12
abstratas, autonomizadas e subjetivamente determinantes da sua expressão
objetiva. A realidade se identifica com o pensar lógico, mas apenas na medida
em que este último é o sujeito e o fundamento da primeira. Diz Marx:
O trabalho filosófico [em Hegel] não consiste em que o
pensamento se concretize nas determinações políticas, mas em que
as determinações políticas existentes se volatizem no pensamento
abstrato. O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa
da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o
Estado serve à demonstração da lógica.
27
O Estado é, pois, obra do conceito:
O Estado diferencia e determina sua atividade (Wirksamkeit) não
segundo sua natureza específica, mas segundo a natureza do
conceito, móbil mistificado do pensamento abstrato. A razão da
constituição é, portanto, a lógica abstrata, e não o conceito do
Estado. Em lugar do conceito da constituição, obtemos a
constituição do conceito. O pensamento não se orienta pela
natureza do Estado, mas sim o Estado por um pensamento pronto.
28
Ora, para Marx, a atividade do Estado é determinada pela ação dos
indivíduos que o compõem. “O Estado só é ativo (wirksam) por meio dos
individuos” ou, o que é o mesmo, “as funções e atividades do Estado estão
vinculadas aos indivíduos”. Esse indivíduos são os membros do Estado, aos quais
é essencial uma certa qualidade estatal. Nestes termos se pode dizer que “tanto a
individualidade particular como as funções e atividades estatais são funções
humanas”, são somente “modos de existências e de atividade das qualidades
sociais do homem”.
29
O erro de Hegel consistiria exatamente em subjetivar o
Estado, não tomando como ponto de partida de suas conclusões os próprios
27
Ibidem, p. 38-39 (p. 216).
28
Ibidem, p. 40 (p. 217 e 218). “O ‘misticismo lógico’ de Hegel é denunciado [por Marx] como
uma inversão das relações reais, uma subjetivação da idéia. A relação real dos indivíduos com
o Estado é especulativamente identificada por Hegel como atuação deste sobre aqueles. O real
é apresentado como fenômeno, como manifestação da ‘idéia real’”. (Oliveira, A. R. Marx e a
Liberdade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 57).
29
Marx, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 42 (p. 222).
13
sujeitos reais, sujeitos que, membros da família e da sociedade civil, são a base
constitutiva do próprio Estado.
30
É a partir dessa leitura crítica dos textos de Hegel, principalmente da sua
Filosofia do Direito, que Marx passa a pensar o Estado por meio de sua relação
com a sociedade civil. Ainda que de forma invertida Hegel apresenta esta
relação, em sua teoria do Direito e do Estado, tamatizando no conceito de
sociedade civil um elemento que ele considerado central à sociedade moderna: o
desenvolvimento do particularismo burguês, nas relações monetário-mercantis.
Em sua crítica a Hegel, Marx procura destacar a anterioridade da sociedade civil
em relação ao Estado, portanto, das relações econômicas entre os homens perante
as formas políticas destas mesmas relações. Essa anterioridade da sociedade civil
em relação ao Estado já não é mais uma simples aplicação do método
feuerbachiano da inversão, pois em Feuerbach não há qualquer reflexão sobre a
sociedade civil. Essa afrimação marxiana da anterioridade da sociedade civil
frente ao Estado já expressa a atenção de Marx às relações sociais, às atividades
produtivas etc. enfim, à praxis social.
2.2 A questão judaica e a crítica do Estado político moderno
N’A Questão Judaica, escrito também em 1843, alguns meses após os
apontamentos de que resultaram a publicação póstuma da Crítica da filosofia do
direito de Hegel, Marx destaca as contradições essencialmente constitutivas da
30
“Os ‘sujeitos reais’, família e sociedade civil, são convertidos [por Hegel] em predicados do
Estado, ao passo que este é elevado à posição de sujeito. No entanto, se por um lado a
realidade, a ‘empiria ordinária’, é explicada ‘não como ela mesma, mas como uma outra
realidade’, por outro a idéia real subjetivada ‘tem como sua existência não uma realidade
desenvolvida a partir dela mesma, mas a empiria ordinária, comum’. Ou seja, a inversão
operada por Hegel não altera em nada a matéria, a realidade empírica, mas apenas sua
‘significação’, seu ‘modo de expressão’. Ele não faz mais do que conferir ao real uma
‘mediação aparente’, ‘a significação de uma determinação da Idéia, de um resultado, um
produto da Idéia’, deixando-o intocado em seu conteúdo”. (Enderle, R. Apresentação. In:
Marx, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 18-19).
14
forma da emancipação mediada pelo Estado político moderno.
31
Nestes termos,
ele aponta, para os limites da emancipação política, como uma forma da
emancipação que, mediada pelo Estado político, não corresponde à forma plena
da emancipação humana. Isso porque a forma da emancipação política
reapresenta a separação e a oposição entre sociedade civil e Estado. Tal relação,
que constitui mais uma vez o eixo da crítica de Marx, manifesta-se agora no
próprio indivíduo, cuja vida aparece cindida em duas dimensões: a dimensão
universal, na medida que é considerado membro do Estado; e a dimensão
particular, em que se encontra isolado na esfera da sociedade civil. Também aqui,
em A questão judaica, Marx se apóia em Feuerbach para ir além dele: ao mesmo
tempo em que se apropria de categorias como essência genérica, ele critica toda
postura que toma o Estado, o elemento da política, como a forma plena de
emancipação do homem.
Marx parte de um polêmico diálogo com o neo-hegeliano Bruno Bauer.
Para este, a emancipação política compreende a suspensão de todo elemento
religioso; ela é, assim, a abolição da religião em geral. Deste modo, ele conclui
que, ao pressupor a religião, o Estado nega-se a si mesmo, pois não se manifesta
em sua verdade e realidade como Estado político. Para ele, a religião somente
pode manifestar-se em uma realidade em que o Estado não se constitui
plenamente. No Estado político, ao contrário, o elemento religioso não tem
espaço. O Estado político em sua expressão propriamente moderna deveria abolir
de si toda expressão religiosa para que, deste modo, ele seja, em verdade, Estado
político propriamente dito. Assim, os homens, judeus, cristãos, etc, devem, para
31
O contexto no qual se desenvolve essa reflexão marxiana de juventude “é a Alemanha, ainda
sob o domínio de um Estado cristão, portanto, não democrático. Muitos judeus pedem a sua
liberdade política neste Estado, ou seja, a igualdade de direitos ao Estado. Marx buscará
mostrar erros e possibilidades desta realidade política a partir do referencial feuerbachiano,
fazendo, contudo, reflexões inéditas que ultrapassam a questão da emancipação política dos
judeus, chegando a criticar, além do anacronismo e atraso político da Alemanha da época, a
própria estrutura social capitalista”. (Schütz, R. Religião e capitalismo: uma reflexão a partir
de Feuerbach e Marx. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 32).
15
galgar a emancipação, negar toda a religião.
32
Nestes termos, o desenvolvimento
da emancipação humana sob forma política aparece, para Bauer, como uma
necessidade; segundo ele, é pela sua emancipação da religião, que, por
intermédio do Estado político, o homem se emancipa a si próprio. A
emancipação política coincide, neste caso, como liberdade humana frente a todo
e qualquer constrangimento religioso.
Bem, para Marx, ao atrelar sua crítica à religião, Bruno Bauer faz de sua
crítica, uma crítica teológica, pois não a dirige para o Estado como tal, mas para
uma forma particular de Estado, a que mantém o elemento religioso como
determinante. Com esta crítica “teológica”, Bauer põe como seu alvo e objeto de
crítica o Estado cristão, o Estado que é a realização da própria religião e que a
tem como pressuposto. A crítica teológica de Bauer expressaria somente, como
diz Marx, “a relação da religião com o Estado, da contradição do preconceito
religioso e da emancipação política.
33
É este seu limite metodológico, próprio,
aliás, à crítica jovem-hegeliana da religião.
2.2.1 Da crítica teológica do estado cristão à crítica materialista do estado
político moderno
Ao posicionar-se diante das considerações de Bruno Bauer, Marx busca
ultrapassar este elemento que aparece centralmente posto na discussão baueriana:
o da oposição entre a religião e o Estado. Para Marx, a crítica baueriana do
Estado cristão não é essencialmente crítica. Ela se constitui numa crítica
teológica e reduz-se a pensar a relação de submissão do homem e do Estado à
religião. Para o crítico teológico, na medida em que o homem e o Estado se
32
“Bauer defende a posição de que só haverá emancipação política no momento em que houver
emancipação pessoal da religião. Todavia, tanto cristãos quanto judeus teriam de, primeiro
lugar, libertar-se da religião para, então, tornar o Estado um Estado não religioso e, assim,
emancipar-se politicamente”. (Ibidem, p. 33).
33
Marx, K. A questão judaica. In: Marx, K. manuscritos econômico-filosóficos. Trad. port.
Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 37, tradução levemente modificada; Zur
Judenfrage. Karl Marx & Friedrich Engels Werke, B 1. Berlin/DDR: Dietz Verlag, 1976, p.
349. Doravante às páginas da edição brasileira seguirão entre parênteses as páginas da edição
alemã.
16
submetem à religião, obstaculiza-se a efetivação de suas liberdades. para o
crítico materialista, a crítica de Bauer, ao tomar a religião como elemento central
de sua crítica, se torna unilateral, porque não é a religião o único elemento de
contraposição ao desenvolvimento político do Estado. Além disso, e essa é
grande tese de Marx nesse ensaio, a contraposição da religião ao Estado não
aparece, na experiência prática, como verdadeiro entrave ao desenvolvimento do
Estado político, que, ao contrário, se plenifica mantendo, como seu pressuposto,
essa própria contraposição. A aparição desta oposição é, portanto, na
configuração política do Estado moderno, imanente à forma política do Estado.
No desenvolvimento político do Estado moderno a questão teológica se
seculariza, pois a religião, excluída da esfera do estado, é mantida como seu
pressuposto. Assim, ao assumir sua forma política plena, o Estado moderno faz
da crítica ao antagonismo da relação entre religião e política uma tautologia, pois
não há Estado político moderno sem a pressuposição contraditória à religião. Daí
que a verdadeira crítica passa a ter como objeto não mais o Estado cristão, mas,
sim, o próprio Estado político moderno, emancipado da religião: “A crítica de tal
relação [entre Estado e religião] deixa de ser teológica logo que o Estado (...) se
comporta como Estado, ou seja, politicamente. A crítica torna-se então crítica do
Estado político”.
34
Ao contrapor-se à postura unilateral de Bauer, que se limita à crítica do
Estado cristão, tendo por base a relação entre Estado e religião, Marx estabelece
uma outra crítica que desloca a questão da religião e procura apresentar o limite
mesmo dessa crítica teológica de Bauer, limite este que se confunde com o
próprio limite de Estado político. Ao propor uma reflexão crítica que objetiva
contemplar a questão da emancipação, posta unilateralmente por Bauer, Marx
desvia do centro da crítica o âmbito religioso-teológico e aponta para um outro
elemento que, segundo concebe, se constitui no elemento central da crítica real
que tem como alvo o próprio Estado politicamente emancipado.
34
Ibidem, p. 41 (p. 351).
17
A crítica de Marx, neste sentido, parte do entendimento de que a
existência da religião aparece como a existência de uma “imperfeição” inerente à
própria natureza do Estado político moderno. A religião mesma “não surge mais
como a base (Grund), mas como a manifestação (Phänomen) da insuficiência,
que é da própria emancipação política, secular”.
35
Por isso se pode afirmar que
haveria uma inversão no pensamento de Bauer quando este considera que a
libertação do homem dos constrangimentos da religião corresponderia à
superação das limitações do Estado cristão. Ao contrário, no pensamento de
Marx, a libertação da religião em sua plenitude ocorreria a partir da superação
destas próprias limitações do Estado moderno não-cristão, limitações estas que se
manifestam plenamente justo quando o Estado assume a sua forma mais
desenvolvida, a de Estado político moderno.
Nestes termos a questão inicialmente apresentada por Bauer, a da
emancipação política, é colocada por Marx noutra forma:
A questão da relação entre emancipação política e religião torna-se
para nós o problema da relação entre emancipação política e
emancipação humana. Criticamos as imperfeições religiosas do
Estado político por meio da crítica do Estado político na sua
construção secular, sem prestar atenção às suas deficiências
religiosas. Exprimimos em termos humanos a contradição entre o
Estado e os seus pressupostos gerais.
36
Indica-se aí uma distinção entre emancipação política e emancipação
humana: “se desejais emancipar-vos politicamente, sem vos emancipardes
humanamente, a inadequação e a contradição não reside em vós, mas na natureza
e na categoria da emancipação política”.
37
Essa distinção é o ponto de partida da
crítica do Estado político. Esse “exame da relação entre emancipação política e
emancipação humana” significa revelar a contradição interna entre a forma
universal do moderno Estado político e os particulares elementos seculares entre
os quais a religião em geral se inclui. Em outras palavras, trata-se aqui da questão
35
Ibidem, p. 42 (p. 352).
36
Ibidem.
37
Ibidem, p. 53 (p. 361).
18
teórica mais geral da relação entre o Estado e a sociedade civil-burguesa. Esses
elementos particulares são os elementos que compõem a “vida real”, situada na
esfera da particularidade.
Para Marx, é “por cima destes elementos particulares [constitutivos da
sociedade civil] que o Estado se constitui como universalidade”.
38
Tratados pelo
Estado moderno na condição de “distinções não-políticas”, estes elementos da
sociedade civil-burguesa são justamente os pressupostos gerais do próprio Estado
político e manifestam a insuficiência deste último na medida em que são
mantidos e contrapostos por este mesmo Estado político em sua condição
universal. Esta é, contudo, uma contraposição na qual e pela qual estes mesmos
elementos da particularidade são os pressupostos do Estado em sua
universalidade. Assim, diz Marx, “longe de superar (aufzuheben) estas diferenças
efetivas, ele só existe muito mais sob sua pressuposição, ele se apreende como
Estado político e valida sua universalidade apenas em oposição a esses seus
elementos”.
39
2.2.2 Estado político e sociedade civil-burguesa, o cidadão e o burguês
Para Marx, “a elevação política do homem por cima da religião
compartilha todas as carências e todos os méritos da elevação política em
geral”.
40
No Estado liberto das diferenças e das particularidades da sociedade
civil-burguesa o homem emancipa-se politicamente e se constitui enquanto livre
apenas de maneira abstrata, estreita e parcial. Ora, o Estado, ao libertar-se do
constrangimento da religião, faz com que, através dele, o homem se emancipe
politicamente. Contudo, emancipando-se politicamente, isto é, de modo
desviado, através dessa mediação autonomizada do Estado, o homem aparece em
sua vida genérica, universal, de um modo oposto ao modo em que aparece
enquanto membro da sociedade civil-burguesa, em sua vida privada, particular. É
38
Ibidem, p. 45 (p. 354).
39
Ibidem, p. 44, tradução levemente modificada (p. 354).
40
Ibidem, p. 43 (p. 354).
19
aí mesmo que se determinam os limites e a contradição desta emancipação
mediada pelo Estado político moderno: a emancipação política é ao mesmo
tempo a constituição do cidadão abstrato, o membro do Estado, e, opostamente, a
constituição do homem real em sua particularidade egoísta, o burguês.
Para Marx, portanto, “com a anulação política da propriedade privada, a
propriedade privada não apenas não é superada (aufgehoben); mas sim é até
mesmo pressuposta”.
41
Do mesmo modo, a religião, bem como todas as demais
determinações particularistas da sociedade civil-burguesa, usando as palavras de
Marx, “já não constitui a essência da comunidade, mas a essência da
diferenciação”.
42
Ora, o que podemos concluir com base nesta citação é que o
lugar ocupado pela religião (juntamente com os outros elementos particulares da
vida real: propriedade privada, posição social, educação etc.) compõe a esfera
particular da sociedade civil-burguesa, esfera esta que, ao se constituir, se põe em
contradição com a forma universal do indivíduo enquanto cidadão. Essa
contradição é, contudo, imanente à própria emancipação política e se põe na
medida em que o Estado político se revela em sua universalidade, visto que, ao
eliminar aparentemente as distinções econômico-sociais, religiosas, de educação,
de posição social etc., o Estado as determina como distinções não-políticas e,
assim, permite que tais distinções “manifestem a sua natureza particular”. Tal
manifestação ocorre, pois, na esfera da sociedade civil-burguesa, enquanto
realidade imediatamente oposta ao Estado e igualmente reafirmadora de sua
realidade enquanto Estado político universal moderno.
A análise da relação entre a universalidade abstrata do Estado político
moderno e a particularidade concreta da vida real humana experienciada na
esfera da sociedade civil-burguesa é, portanto, a base metodológica da crítica
marxiana n’A questão judaica. O ponto de partida de Marx está no seu
entendimento de que a forma da emancipação política é fundamentalmente
distinta da forma plena e livre de contradições da emancipação humana. Nesta
41
Ibidem, p. 44, tradução bastante modificada (p. 354).
42
Ibidem, p. 47 (p. 356).
20
fase de juventude de Marx, já se pode reconhecer sua crítica ao Estado político
moderno, mesmo que ainda limitada à sua forma propriamente política. Eis o que
centralmente constitui a crítica de Marx: “o Estado político aperfeiçoado é, por
natureza, a vida genérica do homem em oposição à sua vida material”.
43
Ao
desenvolvimento do Estado político moderno está vinculada a condição de uma
“dupla existência” do homem:
44
Onde o Estado [político moderno] atingiu o pleno
desenvolvimento, o homem leva, não só no pensamento, na
consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla existência. Vive
na comunidade política, em cujo seio é considerado como ser
comunitário, e na sociedade civil [-burguesa], onde age como
simples indivíduo privado...
45
Tendo por base a cisão entre Estado político e sociedade civil é que a
emancipação política carrega em sua natureza este radical dualismo entre a vida
genérica (limitada à universalidade abstrata da vida política) e a vida individual
(subsumida no particularismo da sociedade civil-burguesa). Em sua vida
genérica, o membro do Estado político aparece como pessoa pública, condição na
qual se manifesta sua universalidade irreal, isto é, sua condição de cidadão
abstrato. Em sua vida individual, o membro da sociedade civil aparece como
indivíduo independente e egoísta, isto é, enquanto pessoa privada “separada da
comunidade” e, contudo, identificada como “homem autêntico”. Por isto, a forma
da emancipação política é apenas, no dizer do jovem Marx, “[essa] redução do
43
Ibidem, p. 45 (p. 354).
44
“O Estado político moderno é a coroação da cisão da sociedade burguesa: tanto o homem
quanto a sociedade vivem existências cindidas. Com a instauração do Estado moderno, o
homem foi condenado não apenas no pensamento e na consciência, mas também na realidade,
a uma vida dupla, ‘uma celestial e outra terrena’. A vida se divide, por um lado, na
comunidade política, vida pública, na qual se considera um ser coletivo, um igual, um ser
formalmente livre; e, pelo outro, numa vida particular, privada, onde reina o ser egoísta, que
considera os outros homens como meios, degradando-se a si mesmo e aos outros”. (Jaime, B.
P.; Amadeo, J. O conceito de liberdade nas teorias políticas de Kant, Hegel e Marx. In:
Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciências Políticas,
Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, Universidade de São Paulo, 2006, p.
417).
45
Marx, K. A questão judaica, p. 44 (p. 354-355).
21
homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente e
egoísta e, por outro lado, a pessoa moral”, isto é, membro do Estado.
Essa dupla existência pela qual o homem aparece determinado na relação
entre Estado político moderno e sociedade civil, surge mais claramente quando
Marx apresenta a distinção entre o que se chamam direitos do homem e direitos
do cidadão:
Os droits de l'homme, os direitos do homem tornam-se como tal
distintos dos droits du citoyen, dos direitos do cidadão. Quem é
este homme distinto do citoyen? Nenhum outro que não o membro
da sociedade civil-burguesa. Porque é que ao membro da sociedade
civil lhe chamam “homem”, simplesmente homem, e porque é que
os seus direitos recebem o nome de “direitos do homem”? Como se
explicará semelhante fato? Pela relação do Estado político com a
sociedade civil e pela natureza da emancipação política.
46
O membro da sociedade burguesa é chamado “homem”, homem e nada
mais. Seus direitos são, por isso, chamados de direitos humanos. Estes
correspondem aos direitos do membro da sociedade civil-burguesa, ou seja, do
homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade.
Conforme aquela que Marx considera “a constituição mais radical”, a francesa de
1793, estes direitos são: igualdade, liberdade, segurança, propriedade.
47
Para
Marx, situados e compreendidos na esfera particularista da sociedade civil, esses
direitos afirmam-se numa perspectiva da separação, da individualização do
homem para com os demais e para com a comunidade como um todo.
Segundo o artigo 6 da citada constituição, “A liberdade é o poder que
pertence ao homem de fazer tudo o que não prejudique os direitos de outro”.
48
Garantida como componente da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a
liberdade aí concebida aparece curvada sobre si mesma; e seu limite é
determinado pela lei mesma que a representa. Ela não repousa sobre as relações
do homem com o homem; ao contrário, repousa na separação do homem dos
46
Ibidem, p. 56, tradução levemente modificada (p. 363-364).
47
Ibidem (p. 364).
48
Ibidem. (p. 364). “La liberté est le pouvoir qui appartient à l'homme de faire tout ce qui ne
nuit pas aux droits d'autrui”.
22
outros homens, já que o outro se (o)põe diante de mim como limite. A aplicação
prática dessa liberdade, segundo Marx, consiste no direito da propriedade
privada, como afirma o artigo 16 da mesma constituição de 1793: “O direito da
propriedade é o que pertence a cada cidadão de desfrutar e de dispor como quiser
dos seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência”. O
direito de propriedade consiste no direito do indivíduo desfrutar de sua fortuna e
dispor dela à sua vontade, sem se preocupar com outros homens, ou seja,
independentemente da sociedade: “é o direito do interesse pessoal”.
49
Para Marx,
portanto, a liberdade e a sua aplicação enquanto direito da propriedade são o que
fundamentam e constituem a sociedade civil-burguesa. Isso porque, esses
direitos, como formas da individualização e separação do indivíduo diante da
comunidade, implicam numa relação entre os homens na qual cada um tem no
outro a oposição e limitação da sua liberdade.
E o que dizer com respeito à igualdade e segurança? Tomemos por base
os artigos das constituições citadas por Marx. O artigo 3 da constituição de 1795:
“a igualdade consiste no fato de que a lei é igual para todos, quer ela proteja ou
puna”; e o artigo 8 da constituição de 1793: “a segurança consiste na proteção
concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a preservação da sua
pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade”.
50
A igualdade aqui aparece como
uma reafirmação da liberdade, na medida em que cada homem é igualmente
considerado em seu isolamento, em seu apartamento dos outros homens e em sua
separação da comunidade. Já a segurança reafirma e garante a manutenção do
direito de propriedade, na medida em que a sociedade é chamada em sua
existência a ser meio para a garantia e a segurança de cada um de seus membros
e de suas propriedades. Para Marx, a segurança “constitui o supremo conceito
social da sociedade civil, o conceito de polícia”.
51
49
Ibidem, p. 57 (p. 364).
50
Ibidem (p. 365): “La sûreté consiste dans la protection accordée par la société à chacun de ses
membres pour la conservation de sa personne, de ses droits et de ses propriétés”.
51
Ibidem, p. 58 (p. 365).
23
Como direitos civis, a serem garantidos pelo Estado político aos seus
membros, ou seja, aos cidadãos, a igualdade e a segurança se curvam diante dos
direitos do homem. A eles correspondem, deles garante e assegura a realização.
O que chama a atenção nesta exposição marxiana acerca dos direitos do homem,
do membro da sociedade civil, é que eles se limitam à posição do homem em seu
apartamento da comunidade, na sua condição individual egoísta na qual se
encontra na esfera da sociedade civil. E ainda, que na perspectiva da garantia
desses direitos humanos, os direitos do cidadão reafirmam a mesma dimensão
egoísta, particular e apartada do homem. Diz Marx:
Muito longe de o homem ser considerado nele enquanto ente-
genérico, aparece muito mais a vida genérica mesma, a sociedade,
como um contexto exterior (äußerlicher Rahmen) aos indivíduos,
como limitação de sua autonomia originária. O único laço que os
reúne é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a
conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta.
52
A preservação desse interesse privado, da propriedade e das pessoas
egoístas é assegurada pela constituição, pelos direitos dos membros do Estado. E
o Estado aparece como a esfera que garante a realização dessa dimensão isolada
do homem como membro da sociedade civil-burguesa.
Em essência, essa crítica de Marx consiste no entendimento do Estado
político (moderno) como universalidade abstrata, sob a forma de mera
identificação dos indivíduos enquanto membros deste mesmo Estado político,
isto é, na condição de cidadãos, cuja figuração particular reconhece-se e é
reconhecida como membro da sociedade civil-burguesa.
53
Constitui-se
fundamentalmente da crítica da emancipação política; crítica, portanto, do Estado
político moderno. Como ele afirma, “a emancipação política representa, sem
52
Ibidem, tradução levemente modificada (p. 366).
53
É nestes termos que a conclusão a qual chegou Marx é apresentada por J. E. F. Aquino na
passagem que segue: “a emancipação política efetivada pelo Estado moderno é a emancipação
do homem como membro do Estado, isto é, uma emancipação política do próprio Estado, mas
não ainda a verdadeira emancipação humana: é que o Estado pode ser livre (como o Estado
moderno), sem que o homem o seja em suas condições reais de vida”. Aquino, J. E. F. A
atualidade da crítica do Estado, In: Contra-a-corrente, nº 9 (2000), Fortaleza, p. 6 (mimeo).
24
dúvida, um grande progresso”,
54
mas a emancipação humana plena constituir-se-
á, para Marx, pela superação da cisão entre o citoyen e o bourgeois, entre o
universalismo abstrato do Estado político e o particularismo da sociedade civil-
burguesa. Em outras palavras, somente quando o homem individual tiver em si a
vida genérica “quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças
como forças sociais, e por isso não mais separar de si esta força social na forma
de força política” é que, segundo Marx, “a emancipação humana será plena”.
55
Ainda subsidiada pela relação entre sociedade civil-burguesa e Estado, a
crítica que se estabelece n’A questão judaica limita-se a pensar a relação entre
emancipação política e emancipação humana. Por meio desta relação o Estado
político moderno, que é expressão da forma da emancipação política, é pensado
como meio de realização do particularismo da sociedade civil-burguesa. Nessa
cisão entre sociedade civil e Estado, o homem aparece cindido em burguês e
cidadão. O segundo é condição de realização do primeiro. Da mesma forma, o
Estado político moderno, forma da emancipação política, é a condição da
realização do elemento particularista da sociedade civil, pelo qual o homem
aparta-se e isola-se frente aos outros homens e de seu ser genérico.
2.3 A Miséria da Filosofia: materialismo e teoria do valor-trabalho,
articulações de uma crítica às categorias jurídicas
Na Miséria da Filosofia, apropriando-se da teoria do valor-trabalho,
Marx vai além da crítica às concepções e método da filosofia e desenvolve uma
apresentação das categorias econômicas, políticas etc. já numa perspectiva da
crítica da economia política. Nesta obra, já encontramos uma relação entre o
intercâmbio mercantil e as formas jurídicas. Nela observamos o desenvolvimento
da crítica marxiana do Estado e do Direito: ela ultrapassa o caráter da
contraposição à perspectiva hegeliana, que os apreende com base num
fundamento especulativo; ela também vai além de uma contra-argumentação à
54
Marx, K. A questão judaica, p. 47 (p. 356).
55
Ibidem, p. 63, tradução levemente modificada (p. 370).
25
perspectiva politicista de Bauer ou de Feuerbach, que consideram a esfera
política como poder superador de todo impedimento à realização da liberdade
humana.
56
Nos textos marxianos de 1843, ainda que pensando a relação entre
Estado e sociedade civil, as críticas expostas neles não alcançam a dimensão
meterial dessa relação. Já em A Miséria da Filosofia, escrito em 1846 e
publicado em 1847, essa relação é posta pela primeira vez sob a forma de
relações econômicas (sociedade civil) e formas sociais (formas jurídicas, Direito
e Estado). As categorias sociais aqui são pensadas na sua necessária relação com
as categorias econômicas. Sobre estas últimas, diz Marx: “as categorias
econômicas nada mais são que as expressões teóricas, as abstrações das relações
sociais de produção”.
57
É com base, pois, na fundamentação materialista, que
Marx neste texto apreende essas categorias econômicas. Assim também, ele
concebe as categorias da vida social, e as apresenta como expressões das relações
sociais, determinadas pela forma das relações de produção sobre as quais elas se
constituem.
Considerando a fundamentação materialista histórica, Marx chega à
conclusão de que a legislação, a política, o Direito, o Estado etc. não são senão
formas de expressão das relações de produção, formas socias de um determinado
modo de produção material dos homens. O conhecimento histórico, genético,
destes elementos enquanto categorias da vida social, pressupõe essa
56
“Somente a combinação das conquistas desse período com o refinamento metodológico
alcançado principalmente na Miséria da Filosofia viriam possibilitar uma apresentação do
processo genético do capital em que a crítica brotasse, de forma imanente, da sua própria rede
categorial”. (...). “O Estudo d’A Miséria da Filosofia, situado no contexto da produção
marxiana mais ampla, possibilita-nos vislumbrar um elemento importante da filosofia de Karl
Marx: suas definições metodológicas. É mister perceber que ao lado do estudo e
aprofundamento de temáticas específicas da economia política houve uma constante
preocupação com a descoberta da melhor forma de investigação e apresentação de uma visão
completa da sociedade capitalista. Somente esta compreensão mais correta do modo de
produção burguês é que poderia permitir a avaliação do caminho mais eficiente a ser
percorrido no sentido de sua superação”. (Oliveira, A. R. Marx e a liberdade. Porto Alegre:
EDIPURS, 1997, p. 91 e p. 116).
57
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 125; Das Elend der Philosophie, p. 130. De agora em diante,
as páginas da edição alemã serão indicadas entre parênteses.
26
fundamentação. Se assim eles são tomados, assim eles são percebidos: como
determinações da vida material, constitutivos da materialidade histórica dos
homens, da atividade prática dos indivíduos sociais na condição de sujeitos
históricos. Daí que afirme Marx: “a legislação, tanto política quanto civil, nada
mais faz que proclamam, protocolizam, o querer (Wollen) das relações
econômicas.
58
Essas conclusões a que Marx chega com a sua fundamentação
materialista histórica são enriquecidas com a sua apropriação crítica das
descoberdas da economia política clássica.
59
Ao apropriar-se das categrias dessa
ciência, conferindo às mesmas um fundamento materialista histórico, Marx
constitui sua crítica da própria economia política, que não é senão a expressão
teórica da crítica da sociedade capitalista produtora de mercadorias, à qual aquela
ciência, em que pese sua seriedade teórica, acaba por justificar. A crítica
marxiana é assim formulada com base nas categorias de valor-trabalho,
propriedade etc., pelas quais os homens se inserem em relações de troca e
realizam suas mercadorias com base na existência delas como equivalentes. A
condição para a troca é a equivalência, ou seja, a consideração da propriedade
individual em sua comparação com outra, comparação que se estabelece tendo
por base a quantidade de trabalho humano: “quando se realiza uma troca entre
(...) dois produtos, realiza-se troca entre quantidades iguais de trabalho.
60
A
propriedade, enquanto uma categoria essencial da produção capitalista,
manifesta-se como uma forma de relação econômica e, ao mesmo tempo, uma
58
Ibidem, p. 81, tradução levemente modificada (p. 109).
59
“O ponto de partida de Marx é o mesmo de Engels: a propriedade privada. Evidentemente,
para os dois autores já identificados com o ideário socialista da abolição da propriedade, esse
tema tinha uma importância decisiva. Marx, que então mantinha contato pessoal com
Proudhon, viu-se na contingência de buscar uma fundamentação que fosse além da fórmula
jurídica abstrata “a propriedade é um roubo”. Além disso, toda a caracterização da sociedade
civil na Filosofia do Direito estava baseada nos ensinamentos da economia política clássica.
A incursão nessa ciência, portanto, permitia a Marx dar seqüência ao combate a Hegel de
modo diferente aos Manuscritos de Kreuznach [Crítica da Filosofia do Direito de Hegel],
sendo mais objetivo, descendo às fontes, por ele então desconhecidas, de seu adversário.”
(Frederico, C. O jovem Marx: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995,
p. 130-131, entrecolchetes meus).
60
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 48, tradução levemente modificada (p. 84).
27
forma jurídica, por meio da qual os indivíduos mantêm um vínculo de troca e de
reciprocidade. Sobre as determinações históricas e econômicas concretas dessa
categoria jurídica, diz Marx: ilusão
Em cada época histórica a propriedade desenvolveu-se
diferentemente e sob relações sociais inteiramente diferentes.
Assim, definir a propriedade burguesa nada mais é que fazer a
exposição de todas as relações sociais da produção burguesa.
Querer dar uma definição da propriedade como uma relação
independente, como uma categoria à parte, como uma idéia
abstrata e eterna, não passa de uma ilusão de metafísica ou de
jurisprudência.
61
Expor a propriedade como uma categoria jurídica da produção capitalista
implica, portanto, a exposição das próprias relações sociais burguesas de
produção nas quais e pelas quais ela é produzida. Para a economia política a
propriedade é determinada pelo trabalho, ou seja, o produto do trabalho de um
indivíduo é sua propriedade. Mas ela só aparece como tal, na sua forma
propriamente burguesa, na medida em que o homem precisa dela assim dispor
para dela desfazer-se. A propriedade é uma categoria jurídica que assim aparece
quando se equivale a outra propriedade. Isso é próprio à sociedade burguesa: os
produtos do trabalho humano, propriedades do homem, se põem numa relação de
equivalência, para que seus proprietários possam intercambiá-los por meio da
troca. O princípio da equivalência é, pois, o que possibilita a troca mercantil.
Com base nas conclusões da economia política, Marx considera que o
princípio da equivalência tem por sua fonte de constituição o trabalho humano:
“o princípio da igualdade das trocas deve, portanto, natural e necessariamente
resultar no trabalho universal.
62
O trabalho constituidor do valor, ou seja, do
princípio da equivalência é o trabalho tomado em sua universalidade: trabalho
tomado quantitativamente. É assim que a configuração dos diversos tipos de
trabalho humano, o trabalho do agricultor, do artesão, do sapateiro etc., é
61
Ibidem, p. 182 (p. 165).
62
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 70, tradução levemente modificada (p. 101). “[A] economia
política, enfim, descobre o trabalho humano como o criador de toda a riqueza. Não mais o
trabalho particular e circunscrito, mas o trabalho humano em sua forma universal”. (Frederico,
C. O jovem Marx: as origens da ontologia do ser social, p. 133).
28
transmudado em trabalho igual. Como produtor, a relação que o trabalhador
mantém com seu produto é mediada pelo trabalho útil e torna-se particular; como
proprietário, a relação que ele estabelece com seu produto é mediada pelo
trabalho universal, a quantidade de tempo que ele levou para produzi-lo, e nesses
termos se iguala a todos os outros tipos de trabalho.
Pela equivalência os produtos do trabalho se relacionam como valores
medidos pela quantificação do trabalho. Ao inserir-se na troca, esse valor
encontra no mercado um outro valor e com relação a esse, que é seu equivalente,
se põe na forma de valor relativo. Desse modo, o processo de troca tem como
resultado individualização de uma determinada mercadoria como expressão
universal do valor das demais mercadorias, ou seja, uma mercadoria que se
transmuda, a despeito de sua qualidade de valor de uso, numa cujo uso
corresponde à sua condição de valor equivalente para as mercadorias com as
quais ela se realciona na troca. Esta sua transmutação em valor universal não é
uma convenção, tampouco a determinação de si de um conceito apriorístico. Ela
é resultado das relações de troca, relações estas que exigem seu surgimento.
Assim, a moeda (o dinheiro) não é uma mera coisa, mas produto de uma relação
social entre os homens, ou ainda, uma relação social que se estabelece por meio
da troca mercantil. Segundo Marx, é sua constituição prática nas relações sociais
de produção que a instituem juridicamente:
Ouro e prata são apenas por isso de direito sempre: porque eles o
são de fato, e eles o são de fato porque a organização atual da
produção tem necessidade de um meio universal de troca. O direito
é apenas o reconhecimento oficial do fato.
63
Enquanto uma relação social, o dinheiro não é, portanto, produto da
decisão arbitrária do homem, tampouco uma convenção consensual entre os
homens. Ele é, assim como sua própria instituição em lei, expressão das relações
econômicas entre os homens; e o direito que o institui é somente o
“reconhecimento oficial” daquelas relações que o constituem de fato.
63
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 85, tradução levemente modificada (p. 112).
29
Se o trabalho é a fonte do valor, é em conseqüência a medida do valor de
cada produto que se insere na troca sob a forma-mercadoria, inclusive do
dinheiro. Neste sentido, sempre que se comparam os tipos de trabalho, se pode,
segundo Marx, afirmar:
Cada jornada de trabalho vale tanto quanto uma outra jornada de
trabalho, quer dizer em quantidade igual, o trabalho de um vale
tanto quanto o trabalho do outro: não há diferença qualificativa.
Em igual quantidade de trabalho, o produto de um troca-se pelo
produto do outro.
64
A equivalência se determina, portanto, como resultado da relação
quantitativa dos diversos tipos de trabalho humano, que são equiparados e
estabelecidos como universalmente iguais com base na sua expressão
quantitativa. Para tanto, sua dimensão qualitativa, a de produzir valor de uso, é
subsumida. Assim, os produtores são postos numa mesma condição: a de
portadores de trabalho. A quantidade de tempo de trabalho determina o valor do
produto por ele produzido. Equivalem-se, assim, essas quantidades de trabalho,
ou seja, equivalem-se as jornadas de trabalho, subsumindo-se aí, da mesma
forma como ocorre na relação entre os produtos, por meio da troca, o caráter útil,
concreto, constitutivo desse trabalho.
Na sociedade produtora de mercadorias, na qual o fim da produção é a
produção de valor, “todos os homens são [potencialmente] trabalhadores”.
65
E
como tal, são postos numa condição universal de igualdade, condição na qual
“um homem de uma hora vale um outro homem de uma hora”. Nessa relação
pela qual os homens são postos em pé de igualdade, reina o princípio quantitativo
da equivalência, o mesmo que determinou a relação entre as suas propriedades
sob a forma de mercadorias. Diz Marx:
O tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é no máximo a
carcaça do tempo. Ele é quando muito ainda a encarnação
(Verkörperung, personificação) do tempo. Negocia-se não mais
em torno da qualidade. A quantidade sozinha decide tudo: hora
64
Ibidem, p. 45, tradução levemente modificada (p. 82).
65
Ibidem. Colchetes meus.
30
contra hora, dia contra dia; mas esta igualdade do trabalho (...) é
simplesmente o rtesultado da industria moderna.
66
Como fato da indústria moderna”, a equalização do trabalho, portanto das
mercadorias e dos homens, faz prevalecer o seu caráter universal e quantificado
e, conseqüentemente, a determinação do valor e a igualação dos indivíduos,
trabalhadores em potencial. A igualdade é produto da indústria moderna.
somente por meio dela os homens podem estabelecer relações de troca.
Em A Miséria da Filosofia, Marx apresenta assim uma compreensão das
relações de produção burguesas pela qual já é possível pensar na emergência
necessária das formas jurídicas tais como propriedade, igualdade, liberdade,
direito etc. Mas é somente n’O Capital que esta compreensão, de forma mais
amadurecida, permite uma apresentação da imanência das formas jurídicas, na
própria exposição da crítica da economia política. Desenvolvendo mais sua
exposição da teoria crítica do valor-trabalho, n’O Capital Marx deixa indicado o
caminho das pedras. Dando seguimento à sua exposição, com vistas a constituir a
sua crítica da economia política, ele deixa em cada galho categorial das formas
de manifestação do valor, a indicação do caminho da exposição lógico-categorial
das formas jurídicas. É seguindo, pois, essa estrada da crítica da economia
política que se pode apresentar, igualmente, a imanência da crítica das formas
jurídicas no pensamento marxiano. É este o objeto do próximo capítulo.
66
Ibidem, p. 49, tradução bastante modificada (p. 85).
Capítulo 3
A exposição crítica das formas jurídicas enquanto
exposição da crítica da economia política
Assim como na religião a auto-atividade da fantasia humana, do
cérebro e do coração humanos, atua independentemente do
indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha,
divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador
não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si
mesmo.
MARX, MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS.
3.1 Para uma crítica da economia política, a dialética como método de
exposição
Na teoria crítica exposta por Marx n’O Capital, encontra-se a
apresentação das categorias desenvolvidas na análise levada a cabo pela
economia política clássica; de igual modo, a dialética aparece aí como método de
exposição. Visando compreender esse uso categorial e essa apropriação
metodológica, pretendo estabelecer neste subcapítulo uma reflexão que leva em
conta a relação de Marx tanto com a economia política clássica, sobretudo com
Adam Smith e David Ricardo, quanto com Hegel. Tal compreensão intenta mais
bem preparar a apresentação da gênese das categorias jurídicas na própria
exposição marxiana de sua crítica da economia política.
Ao tomar como pressuposta a análise realizada pela economia política,
Marx constrói a sua exposição d’O Capital, de uma forma geral, como crítica da
sociabilidade do capital e, particularmente, como crítica desta ciência mesma.
Partindo dos “pressupostos da economia nacional”, ele constitui sua exposição
crítico-dialética, que, enquanto tal, é a própria exposição da negatividade
imanente às e das categorias (determinações) desta mesma sociabilidade.
2
3.1.1 Por sobre os ombros dos clássicos: Marx e o debate metodológico com
a economia política clássica
A economia política clássica fez descobertas fundamentais.
1
Mas, para
Marx, ela caiu no erro de compreender as categorias da produção capitalista, por
ela mesma constituídas, como fixas e eternas.
2
Certamente o material do qual os
economistas políticos clássicos partem é a própria vida ativa e histórica dos
homens;
é a própria produção material, que, em geral e tomada abstratamente, é o
conteúdo de toda forma social de relação entre os homens. Todavia, mesmo
demonstrando, por exemplo, o desenvolvimento da riqueza burguesa nas relações
de produção capitalistas, eles “não explicam como tais relações se produzem, isto
é, o movimento histórico que as faz nascer”.
3
A gênese histórica dessas
categorias é suplantado pelos clássicos, que apresentam o desenvolvimento das
relações de produção numa base naturalista. Os economistas concebem “que as
1
A. Smith e D. Ricardo “partem da superfície imediata em que aparecem as principais formas
de riqueza (salário, lucro, renda da terra e juros), fixas e independentes entre si, para descobrir
que todas essas formas têm como fonte o trabalho. Vale dizer, essas formas de riqueza,
independentes umas das outras, têm em comum o fato de serem formas de manifestação de
uma única e mesma substância: trabalho humano (...) Assim, Adam Smith e Ricardo
apreenderam o sistema capitalista como totalidade, que é conexão dos diferentes elementos
que compõem a produção e reprodução da riqueza social como um todo. Entenderam, assim,
que a riqueza apropriada pelas diferentes classes sociais trabalhadores, capitalistas e
proprietários da terra depende de uma única fonte: o trabalho”. (Teixeira, F. J. S. Trabalho e
valor. São Paulo: Editora Cortez, 2004, p. 15).
2
Os economistas apresentam (hinstellen) as relações da produção burguesa a divisão do
trabalho, o crédito, a moeda etc. como categorias fixas, imutáveis e eternas”. (Marx, K.
Miséria da filosofia, p. 121; Das Elend der Philosophie, p. 126. Tradução levemente
modificada. De agora em diante, as páginas da edição alemã serão indicadas entre parênteses).
3
Ibidem. Já nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx fizera a seguinte consideração crítica
sobre o método da economia política, consideração mantida em suas obras de maturidade: “A
economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade privada. Não nos explica o
mesmo. Ela percebe o processo material da propriedade privada, que passa, na realidade
(Wirklichkeit), por fórmulas gerais, abstratas, que passam a valer como leis para ela. Não
concebe (begreift) estas leis, isto é, não mostra como têm origem na essência da propriedade
privada. A economia nacional não nos dá esclarecimento algum a respeito do fundamento
(Grund) da divisão entre trabalho e capital, entre capital e terra”. (Marx, K. Manuscritos
econômico-filosóficos, p. 79; Ökonomisch-philosophische Manuskripte, p. 510. A partir de
então, as páginas da edição alemã serão indicadas entre parênteses imediatamente após as
páginas da edição brasileira).
3
relações atuais as relações de produção burguesas são naturais”;
4
nessa
medida, eles se conduzem a uma compreensão na qual essas relações de
produção, em que se desenvolvem e se produzem a riqueza e as forças produtivas
tais como se manifestam no capitalismo, obedecem a leis da natureza.
5
Nesta concepção, as relações de produção sobre as quais se funda a
sociedade burguesa aparecem em si mesmas enquanto determinações naturais, as
quais não se submetem à práxis histórica dos homens. São, como diz Marx a
respeito dos economistas, “leis eternas que devem reger a sociedade para
sempre”.
6
Este é, pois, para Marx, o erro dos economistas clássicos: concebem as
categorias econômicas burguesas como determinações naturais, imutáveis e
eternas e fazem delas leis necessárias porque fundamento do desenvolvimento e
evolução das formas de relação entre os homens. Em síntese, o erro dos clássicos
foi tratar as categorias da produção material da vida, em sua forma burguesa,
como princípio eterno do próprio desenvolvimento e evolução da vida social dos
homens. Como diria Adam Smith,
as categorias constitutivas da sociedade
burguesa são “uma conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de
uma certa tendência ou propensão existente na natureza humana”.
7
É correto pensar que a sociedade burguesa é, para usar as palavras de
Marx, “a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da
4
Marx, K. Miséria da Filosofia, p. 138 (p. 139). “Ricardo, assim também como Smith, viam a
forma social capitalista de produção como um modo de produção eterno e natural, sendo as
leis internas de sua fisiologia vistas como abstratas, regendo por igual todas as formas de
produção”. (Teixeira, F. J. S. Trabalho e valor, p. 50).
5
“Smith, em A riqueza das nações, explica a sociabilidade a partir da divisão do trabalho. Para
ele, a divisão do trabalho está na base da socialização do trabalho, tal como a vemos nas
sociedades modernas, e é a causa do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho. A
esse caráter social da divisão do trabalho não corresponde, porém, para Smith, uma origem
também histórica. Ela manifestaria, isto sim, segundo suas palavras, uma ‘certa propensão
existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou seja: a
propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa por outra’” (Aquino, J. E. F. Aspectos
metodológicos da crítica da economia política, p. 1 (mimeo)).
6
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 138 (p. 139).
7
Smith, A. A riqueza das nações, vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 49.
4
produção”.
8
As expressões categoriais da forma de relação social e de produção
burguesas, bem como a correta apreensão de suas conexões possibilitam
“penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as [outras] formas
de sociedade desaparecidas”. Ora, afirma Marx, “a anatomia do homem é a chave
da anatomia do macaco”; assim, também podemos deduzir que a anatomia da
sociedade burguesa é a chave compreensão de toda a forma de sociedade dela
precedente.
9
Mas esta dedução, como ele continua, de forma alguma [deve
seguir] no modo dos economistas que mancham (verwischen) todas as diferenças
históricas e vêem em todas as formas de sociedade a [forma] burguesa”.
10
Ora, o ponto de partida, ou ainda, o objeto do estudo crítico de Marx é,
como o da economia política, a própria vida material, que, para ele, corresponde
ao processo de produção dos indivíduos socialmente determinado. Em outras
palavras, à produção material estão relacionadas necessariamente determinadas
formas de relações entre os indivíduos. A produção deve, conforme pensa Marx,
8
Marx, K. Introdução à Crítica da economia política. Trad. bras. de José Arthur Giannoti e
Edgar Malagodi In: Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos,
ed. cit., p. 20; Einleitung [zur Kritik der Politischen Ökonomie]. In: Karl Marx/Friedrich
Engels - Werke, B 13, 7, Berlin/DDR: Dietz Verlag, Auflage 1971, Unveränderter Nachdruck
der 1. Auflage 1961, p. 636. (Desde então, seguir-se-ão em parênteses as páginas da edição
alemã).
9
É o que a economia política clássica, embora de modo unilateral e não-histórico, teria
compreendido bem: “Os economistas como Adam Smith e Ricardo (...) têm meramente a
missão de comprovar como a riqueza surgirá sob as relações de produção burguesa, formular
e demonstrar essas relações em categorias, em leis, que essas leis e essas categorias são, para a
produção de riquezas, superiores às leis e categorias da sociedade feudal”. Tradução bastante
modificada. (Marx, K. Miséria da filosofia, p. 140 (p. 142)).
10
Marx, K. Introdução à crítica da economia política, p. 20, tradução levemente modificada (p
636). Sobre este equívoco dos economistas clássicos de não considerar as diferenças históricas
e, em decorrência, assumir uma postura metodológica que se funda na naturalização das
relações sociais burguesas e imutabilização das leis que regem a sociedade que se funda nestas
relações, Marx sugere uma explicação histórica: “Os profetas do século XVIII, sobre cujos
ombros ainda encontram-se inteiramente Smith e Ricardo, idealizam (vorschweben) esse
indivíduo do século XVIII produto, por um lado, da dissolvição das formas feudais de
sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se desenvolvem a partir do século
XVI como um ideal, que teria existido no passado. [Idealizam-no] Não como um resultado
histórico, mas como ponto de partida da História. Porque [o idealizam] como um indivíduo
conforme à natureza, adequado a essa representação da natureza humana, não como originado
historicamente, mas sim posto pela natureza”. (Ibidem, p. 3-4, tradução parcialmente
modificada, (p. 615)).
5
ser sempre considerada “em um grau determinado do desenvolvimento social”
11
e, portanto, em sua conexão com a forma de relação entre os indivíduos. É certo
que se pode identificar determinados elementos comuns que caracterizam a
produção em sua generalidade. Mas Marx nos chama a atenção a esse respeito,
dizendo:
As determinações que valem para a produção em geral devem ser
precisamente separadas, a fim de que não se esqueça a diferença
essencial por causa da unidade, a qual decorre já do fato de que o
sujeito a humanidade e o objeto a natureza são os mesmos.
Esse esquecimento é responsável por toda a sabedoria dos
economistas modernos que pretendem provar a eternidade e a
harmonia das relações sociais existentes no seu tempo.
12
Os economistas modernos não reconheceram como elementos essenciais
os que distinguem os diversos modos de produção historicamente determinados.
Deste modo, ao considerarem somente o “caráter geral”, “a produção em geral”,
eles chegam à determinação das relações de produção modernas como produto de
um desenvolvimento linear natural, e portanto, ahistórico, das formas sociais de
produção precedentes a esta forma propriamente moderna. O equívoco não está
em se considerar a existência de certas “características comuns” da produção
material que aparecem em todas as épocas históricas, mas em superdimensioná-
las a ponto de descartar, anular, ocultar, as distinções essenciais entre os modos
de produção. Como diz Marx,
esse caráter geral [esse elemento comum] que se destaca através da
comparação, é ele próprio um conjunto de determinações diferentes
e divergentes. Alguns desses elementos comuns pertencem a todas
as épocas, outros apenas são comuns a poucas. Certas
determinações serão comuns à época mais moderna e à época mais
antiga. Sem elas não se poderá conceber nenhuma produção, pois
se as linguagens mais desenvolvidas têm leis e determinações
comuns às menos desenvolvidas, o que constitui seu
desenvolvimento é o que as diferencia desses elementos gerais e
comuns.
13
11
Ibidem, p. 4 (p. 616).
12
Ibidem, p. 5 (p. 617).
13
Ibidem, p. 4-5 (p. 617).
6
Contrária à perspectiva naturalista dos clássicos, a concepção
materialista histórica é central à reflexão marxiana da sociedade capitalista e da
sua crítica da economia política. Ao partir dela, Marx concebe que as relações
burguesas de produção correspondem a um dado desenvolvimento das forças
produtivas dos homens, sobre as quais aquelas se estabelecem e nas quais se
constituem em determinadas relações sociais. As determinações que governam a
dinâmica e a lógica da sociedade burguesa não são, portanto, nem naturais nem
eternas, mas são relações sociais constituídas historicamente. Elas correspondem
historicamente a uma forma determinada do desenvolvimento das relações de
produção humanas, se constituem num particular período da história social dos
homens e se configuram num determinado modo de produção.
Concebê-las como leis eternas e imutáveis, foi o equívoco dos clássicos;
esse equívoco é a base da postura metodológica exclusiva adotada por eles: a
análise. Esse método analítico, utilizado pela economia política
trabalha com conceitos que nada mais são do que formas impostas
ao objeto pelo sujeito do conhecimento. Trabalha, portanto, com
generalizações que abstraem todas as diferenças para guardar o que
julga ser comum a todo e qualquer objeto dado imediatamente pela
experiência.
14
No trabalho analítico da economia política clássica, o real, a sociedade
capitalista, é destrinçado e nesse destrinçamento as diferenças que constituem a
dinâmica de sua própria constituição são ignoradas. Nesse trabalho, os conceitos,
as categorias, surgem de forma isolada, pelo próprio movimento analítico do
pensamento e aparecem, assim, como produzidas pelo pensamento mesmo. O
sujeito que conhece, o sujeito pensante, é quem, por este trabalho do pensamento,
organiza racionalmente “a realidade caótica”, da qual os elementos contraditórios
são tidos, nessa postura metodológica, como componentes da própria atividade
14
Teixeira, F. J. S. “O encontro de Hegel e Marx com a economia política”. In: Kalagatos.
Revista de filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE. Fortaleza, v. 3, n. 5,
2006, p. 71.
7
do pensamento, que organiza o real, e como tal são excluídas da exposição
científica.
Se tomamos por pressuposta a fundamentação materialista em Marx,
pensaremos, a partir dela, que os conceitos, as categorias e suas contradições não
podem ser consideradas como resultado de uma construção subjetiva, errônea ou
não, que prevalece sobre a realidade objetivamente posta. É por isso que, para F.
J. S. Teixeira, embora a economia política clássica tenha sido “capaz de, partindo
da aparência, chegar à essência”,
15
ela cai no erro de tirar da realidade analisada
um elemento central para a compreensão crítica da mesma: “as diferenças, que
são justamente quem dão a vida e movimento ao real”.
16
3.1.2 Darstellung: da coisa da lógica à lógica da coisa
A superação metodológica de Marx, em relação à perspectiva unilateral
da economia política, que se limita à análise, é a exposição dialética, que se
articula como apresentação sintética e em totalidade das contradições imanentes
das categorias da economia capitalista. Em “Exposição e método dialético em O
Capital”, Marcos Müller procura estabelecer as devidas aproximações da
presença em Hegel e Marx da dialética enquanto categoria metodológica.
Retomando uma discussão antes indicada por Marx, Müller defende que a
15
Teixeira, F. J. S., “O encontro de Hegel e Marx com a economia política”, p. 87. Numa outra
perspectiva, M. Müller afirma que a economia política clássica, estabelecendo-se numa
posição exteriorizada ao objeto, é “incapaz de desenvolver as suas determinações categoriais a
partir do seu movimento essencial”; apropriando-se de suas categorias empiricamente, ela “as
emprega como conceitos descritivos das formas econômicas em sua aparência imediata, sem
conseguir penetrar em suas relações essenciais” (Müller, M. L. Exposição e método dialético
em O Capital. In: Boletin SEAF. Belo Horizonte: Sociedade de Estudos e Atividades
Filosóficas, (2), 1982, p. 23).
16
Teixeira, F. J. S, “O encontro de Hegel e Marx com a economia política”, p. 87. Deste modo,
o que caberia a Marx, na apropriação da leitura impetrada pela EPC no processo de
desenvolvimento da sociedade capitalista, consistiria, segundo Teixeira, em devolver o que foi
tirado dessa realidade e desnaturalizar o método analítico dos clássicos, ou seja, tratar a
análise não como um método por si só suficiente mas como um primeiro momento da
pesquisa, seguido do expositivo. É neste momento que a negatividade das categorias
elaboradas no primeiro momento pode ser apresentada e desenvolvida em sua conexão lógica.
8
dialética n’O Capital se constitui enquanto exposição (ou apresentação,
Darstellung) imanente das categorias da produção burguesa. Com esta
fundamental consideração acerca da conformação que a dialética recebe no
método marxiano, estabelece-se a diferenciação entre esta e sua versão
especulativa no pensamento hegeliano. Em sua versão especulativa, a dialética é
inserida, por Hegel, num movimento que implica uma necessária identificação
entre método e realidade, pensamento e ser. Já em Marx, a dialética, enquanto
método, corresponde à dimensão expositiva da pesquisa e, portanto, difere
fundamentalmente da dialética especulativa hegeliana.
Em outras palavras, é a dimensão expositiva em que a dialética se situa
no pensamento de Marx que instaura uma distinção metodológica, em relação a
Hegel, e que é primordial à própria compreensão da concepção marxiana da
dialética. Para o autor de O Capital, a análise e a exposição compreendem
momentos diferenciados da pesquisa. O primeiro, corresponde ao momento de
captação da matéria em detalhe. O segundo, corresponde à apresentação
(exposição) do movimento da realidade como um todo pensado em suas íntimas
conexões. O momento analítico da pesquisa é fundamental para uma precisa
exposição posterior da realidade como objeto pensado. Somente depois de
concluído aquele primeiro momento, em que o real nos aparece de forma
adequada, ele pode ser apresentado idealmente. Ao destacar esta distinção entre
análise e exposição, no Posfácio de 1873 de O Capital, Marx nos chama a
atenção para a sua importância nos seguintes termos:
É, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição
formalmente, do método de pesquisa. A pesquisa tem que
apropriar-se detalhadamente da matéria, analisar suas diferentes
formas de desenvolvimento (Entwicklungsforme) e rastrear sua
conexão íntima. Só depois de concluído este trabalho é que pode
expor apropriadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e
espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer
que se esteja tratando de uma construção a priori.
17
17
Marx, K. O capital. vol. I, t. I, São Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 20, tradução levemente
modificada; Das Kapital, B. I, “Nachwort zur zweiten Auflage”, In: Karl Marx & Friedrich
9
A distinção entre análise e exposição se apresentara já em 1857 na Introdução à
crítica da economia política, o que parece demonstrar justamente a sua
centralidade nas reflexões metodológicas de Marx. Neste texto, diz ele:
através de uma determinação mais precisa, iríamos pela análise a
conceitos cada vez mais simples; do concreto representado
chegaríamos ao abstrato cada vez mais tênue até chegarmos às
determinações simples. Daí, por sua vez, começaríamos agora a
viagem para trás, até chegarmos finalmente de novo na população,
mas desta vez não como uma representação caótica de um todo,
porém como uma rica totalidade de determinações e relações
diversas.
18
Ao estabelecer sua distinção entre análise e exposição dialética, o autor
de O Capital apresenta o que considera “o método cientificamente exato”: parte-
se da análise (decomposição) do concreto, até chegar ao elemento mais simples,
ao mais abstrato, e realiza-se o movimento inverso, pela exposição, retornando à
totalidade, ou ao concreto, que se manifesta então enquanto “síntese de muitas
determinações, isto é, unidade do diverso”.
19
De acordo com essa concepção
metodológica de Marx, chegado ao mais simples pela análise do todo, o
pensamento se esforça por perfazer um caminho que vai deste mais simples ao
composto, ou seja, a fazer o caminho inverso ao da análise, seguindo desta vez
pela via da sintetização. Daí que, para ele, “o concreto aparece no pensamento
como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora
seja o ponto de partida efetivo e, portanto, também o ponto de partida da intuição
e da representação”. Na análise, portanto, continua Marx, a representação plena
volatiza-se em determinações abstratas, [e na síntese] as determinações abstratas
conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento”.
20
Com base no estabelecimento desta distinção entre método de pesquisa
analítico e método de exposição dialética, pode-se apresentar a discussão
Engels Werke, B. 23, Berlin/DDR: Dietz Verlag, 1968, p. 27. Doravante, seguem após as
indicações da edição brasileira em parênteses as indicações da edição alemã.
18
Marx, K. Introdução à Crítica da economia política, p. 16, tradução significativamente
modificada. (p. 631).
19
Ibidem (p. 632).
20
Ibidem, p. 16-17 (p. 632).
10
metodológica presente em Marx, principalmente se tomarmos seu diálogo com os
clássicos. O modo de proceder analítico do pensamento método da Economia
Política Clássica cumpre o importante momento de separar e determinar
categorialmente o que está condensado na realidade. O movimento de análise, no
qual a realidade é dissecada, ocorre somente no pensamento, pois o que na
realidade está condensado é nela mesma inseparável. Como realidade
condensada, a totalidade, em princípio, aparece já como o concreto, fora do
pensamento. É desta totalidade concreta que o pensamento parte. Ele a toma
como realidade objetiva pré-existente e a disseca por meio da análise até que esta
totalidade concreta apareça no e ao pensamento em partes determinadas. A
realidade, enquanto todo concreto, é, pois, o ponto de partida da análise e,
consecutivamente, enquanto totalidade reconstituída pensadamente por meio da
exposição, é o fim ao qual chega o pensamento humano através de seu esforço de
apreensão racional do real. Daí que, como aponta Marcos Müller, o método de
exposição em Marx “designa o modo como o objeto, suficientemente apreendido
e analisado, se desdobra em suas articulações próprias e como o pensamento as
desenvolve em suas determinações conceituais correspondentes”.
21
Para Marx, contudo, este movimento sintético de desenvolvimento
expositivo conceitual não é o caminho da própria realidade, mas do pensamento
ao buscar apreendê-la e reproduzi-la enquanto totalidade concreta, determinada:
“o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a
maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para
reproduzi-lo como concreto pensado”.
22
A correção deste método sintético, pelo
qual o pensamento reproduz o real em sua totalidade como concreto pensado,
percorrendo um caminho ideal que vai do abstrato ao concreto, teria levado
Hegel à “ilusão [de] conceber o real como resultado do pensamento que se
sintetiza em si, se aprofunda em si e se move por si mesmo”;
23
em outras
21
Müller, M. L. Exposição e método dialético em O Capital. In Boletin SEAF. Belo Horizonte:
Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas, (2), 1982, p. 20.
22
Marx, K. Introdução à Crítica da economia política, p. 17 (p. 632).
23
Ibidem.
11
palavras, Hegel teria identificado o movimento de reprodução do real pelo
pensamento com o desenvolvimento do próprio real. Ao contrário, para Marx,
que recusa a identidade entre pensamento e ser, “este não é de modo nenhum o
processo de gênese do próprio concreto”.
24
A teoria crítica marxiana busca se constituir enquanto expressão teórica
de um dado e finito momento histórico, justamente por ser ela estruturada com
base na própria constituição prático-empírica desse determinado momento.
Nestes termos, constituído pela análise e pela síntese (exposição dialética), o
método para Marx consiste no caminho do pensamento em sua busca pela
apreensão e apresentação racional dos elementos constitutivos da sociedade por
ele investigada, a saber, a sociedade produtora de mercadorias. Se, para Marx,
“as categorias econômicas [enquanto pensadas] nada mais são que as expressões
teóricas, as abstrações das relações sociais de produção (gesellschaftlichen
Produktionsverhältnisse)”,
25
cabe, portanto, desvelar a constituição destas
relações e apreender os elementos que as constituem, de forma a apropriar-se
racionalmente das categorias teóricas que as expressam.
O erro de Hegel consistiria em ter dada a identidade entre pensar e ser
que toma como base de seu sistema conduzido a realidade às categorias
lógicas; e, assim o fazendo, “todo o conjunto dos produtos e da produção, de
objetos e de movimentos, reduz-se [no pensamento hegeliano] a uma metafísica
24
Ibidem. A esse respeito, cf. Müller, M. L. Exposição e método dialético em O Capital, p . 21:
“Mas enquanto na Ciência da Lógica a exposição das determinações progressivas do
pensamento puro, enquanto conceito, é simultaneamente o processo de sua autodeterminação
e de sua auto-realização, até ele emergir como sujeito último e atividade pura (idéia) que
perpassa todo o processo como o seu método, n’O Capital, que tematiza uma relação social
inserida na materialidade da produção, a exposição enquanto método não é ela mesma,
simultaneamente, nem o processo de constituição histórica dessa relação, nem o processo de
sua reprodução enquanto sistema de produção capitalista”. E também Grespan, J. L. O
negativo do capital o conceito de crise na crítica de Marx à economia política. São
Paulo:Editora HUCITEC / FAPESP, 1998, p. 38:E com isso se revela a diferença radical
existente para Marx entre a sua concepção de apresentação e a da Ciência da Lógica de Hegel,
pois nesta última a exposição descreveria o processo de surgimento e desenvolvimento do
conceito simultaneamente ao do objeto correspondente àquele. Daí o ‘estilo idealista’ que
Marx buscava evitar, em que a ‘dialética de conceitos’ parece produzir e reproduzir a dialética
real do objeto”.
25
Marx, K. Miséria da filosofia, p. 125 (p. 130).
12
aplicada”.
26
Para Marx, isso é que Hegel fez para com a história, a religião, o
direito etc. Diferenciando-se dessa perspectiva hegeliana, Marx intenta livrar a
dialética do que chama de seu “invólucro místico”:
Por sua fundamentação, meu método não só difere do hegeliano,
mas é também a sua antítese direta. Para Hegel, o processo de
pensamento, que ele, sob o nome de idéia, transforma num sujeito
autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua
manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada
mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem.
27
Ao mesmo tempo em que se afasta da determinação idealista e infinitista
do sistema de Hegel, no qual pensamento e ser, método e realidade se
confundem, Marx retoma, contudo, a concepção hegeliana de ciência como
apresentação (Darstellung). Tal qual o filósofo alemão, ele considera que a
Darstellung consiste na manifestação expositiva da própria coisa: trata-se da
exposição do “movimento real”, da “vida da matéria”. Mas no sistema hegeliano
a exposição diz respeito ao próprio movimento da coisa, na medida em que é a
coisa mesma que se produz e se expõe. Em conseqüência, o filósofo especulativo
concebe as categorias da ciência como “o espírito que pensa sua essência. Seu
automovimento [Selbstbewegung] é sua vida espiritual, ele é isto pelo que a
ciência se constitui e isto do que ela é a apresentação”.
28
Portanto, a ciência
(Wissenschaft) corresponde em Hegel à apresentação do automovimento do
espírito no pensamento puro, que se efetiva, que se desenvolve e que se constitui
como saber de si mesmo em sua absolutidade.
para Marx, a apresentação (exposição) “método cientificamente
exato” pressupõe um momento anterior de análise, que é próprio ao
pensamento finito na sua busca de apreensão racional da realidade prática que lhe
é exterior e pressuposta. Nessa abordagem, a realidade também se expõe, se
apresenta ao pensamento finito, mas não como momento de um desenvolvimento
imanente de um sujeito absoluto que é determinante de si, da própria realidade e,
26
Ibidem, 123 (p. 128).
27
Marx, K. O capital, Posfácio da segunda edição, p. 20. (p. 27)
28
Hegel, Prefácio, Ciência da Lógica 1ª edição, p. 5.
13
especulativamente, do pensamento finito. Análise e exposição são momentos da
atividade teórica humana que, no e pelo pensamento, buscam apreender
analiticamente e apresentar sinteticamente os elementos constitutivos da
realidade de forma adequada. O movimento real exposto pelo pensamento,
mesmo que adequadamente, não corresponde, contudo, ao movimento da própria
realidade. Deste modo, a exposição consiste na expressão ideada (pensada) do
real e exposta pensadamente pela consciência humana, que é finita.
Há, portanto, uma distinção fundamental entre a concepção hegeliana e a
concepção marxiana de exposição. Em Hegel, explica Müller, a exposição
vincula-se “a um projeto de autofundação da razão e do próprio método,
enquanto este nada mais é do que a forma do automovimento do conteúdo
enquanto ela tem consciência de si”; já em Marx, a exposição dialética “expressa,
reproduz, apenas (tão só e cabalmente), em conformidade com a apropriação
analítica, o ‘movimento efetivo’ do material de modo que este se ‘espelhe
idealmente’ no método”.
29
Nestes termos, a dialética também assume feições
diferenciadas em ambos os autores. Para Hegel, ela corresponde ao “movimento
imanente do conceito” em seu processo de determinação de si que se nega e, por
conseguinte, nega esta primeira negação por seu movimento especulativo;
30
em
Marx, a dialética não é senão, como já citado, o modo de “reprodução do
concreto por meio do pensamento”.
31
3.1.3 Crítica da economia política e exposição dialética
A exposição dialética é, em Marx, inseparável de seu propósito teórico
de uma “crítica da economia burguesa”, o que justamente distinguiria a crítica da
economia política da economia política clássica. Marx considera burguesa a
29
Müller, M. L. Exposição e método dialético em O Capital, p. 22.
30
“Este movimento espiritual que na sua simplicidade dá-se a si mesmo a sua determinidade
e, a partir desta, sua igualdade consigo mesmo, e, em sendo, portanto, o desenvolvimento
imanente do conceito , é o método absoluto do conhecer e, ao mesmo tempo, a alma
imanente do próprio conteúdo” (Hegel, Prefácio, Ciência da Lógica 1ª edição, p. 5).
31
Marx, K. Introdução à Crítica da economia política, p. 17 (p. 632).
14
própria economia política porque ela, “ao invés de compreender a ordem
capitalista como um estágio historicamente transitório de evolução, a encara
como a configuração última e absoluta da produção social”; dessa caracterização
teórica, Marx conclui que, em seu desenvolvimento histórico, ela “só pode
permanecer como ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se
manifestar em episódios isolados”.
32
Segundo Marx, a economia política inglesa
se constituíra cientificamente no “período em que a luta de classe não estava
desenvolvida”; contudo, a partir de 1830 “a luta de classes assumiu, na teoria e
na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras”.
33
Esse processo
histórico teria posto em crise o projeto científico da economia política clássica,
diferenciando-a assim da economia burguesa vulgar, que a seguiu:
Ela [a luta de classes] fez soar o sino fúnebre da economia
científica burguesa. Já não se tratava [para a economia política
vulgar] de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro,
mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou
incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa desinteressada
[da anterior economia política clássica] entrou a espadacharia
mercenária, no lugar da pesquisa científica imparcial entrou a má
consciência e a má intenção da apologética.
34
Por seu lado, a crítica da economia política também, e certamente,
“representa (...) uma classe, (...) a classe cujo ofício histórico é a tranformação do
modo de produção capitalista e a abolição final das classes o proletariado”.
35
Assim, enquanto busca compreender e expressar conceitualmente os
antagonismos sociais e a luta de classes, cuja base são as contradições imanentes
às próprias determinações da produção burguesa, a crítica da economia política
se constitui teoricamente enquanto exposição dialética das distinções e
contradições que a economia política clássica havia excluído das categorias da
produção burguesa, justamente porque ela (a economia política) encara estas
últimas como naturais e, portanto, não-contraditórias. A exposição dialética em
32
Marx, K. O capital, Posfácio da segunda edição, p. 16 (p. 20).
33
Ibidem, p. 16 (p. 20).
34
Ibidem, p. 17 (p. 21).
35
Ibidem, p. 18, tradução levemente modificada (p. 22).
15
Marx busca explicitar, no âmbito teórico, uma posição extrateórica (a da luta de
classes); e isto na medida em que, segundo ele mesmo concebe,
no entendimento positivo do existente, ela [a dialética] inclui
(contém, einschließt) ao mesmo tempo também o entendimento da
sua negação, da sua desaparição inevitável; porque apreende cada
forma existente no fluxo do movimento, portanto também com seu
lado transitório; porque não se deixa impressionar por nada e é, em
sua essência, crítica e revolucionária.
36
A economia política clássica deixou seu trabalho expositivo incompleto,
pois, enquanto “burguesa” (no sentido assinalado por Marx), se manteve
metodologicamente limitada a realizar o primeiro momento da pesquisa, não
fazendo o caminho de volta, não desenvolvendo em suas conexões imanentes e
contraditórias as categorias descobertas por ela em sua análise científica. Marx
considera a análise a primeira parte do método; mas, se é pela análise que se
chega às determinações mais simples, é pela exposição dialética que se pode
reconduzir o pensamento num “retorno” à totalidade articulada das
determinações contraditórias do objeto antes analisado.
37
Reconhecendo que a
economia política clássica realizou o trabalho analítico, restringindo-se às
determinações fixas às quais chegou, Marx desenvolve em sua exposição o
“caminho de volta”, pelo qual visa a estabelecer em seu desenvolvimento
imanente as necessárias conexões existentes entre as categorias que foram
isoladas pela análise dos clássicos. Levando em conta que o momento analítico
fora realizado pela economia política clássica, Marx toma como ponto de partida
as determinações mais simples às quais esta ciência chegou por meio da
decomposição da totalidade concreta. Desenvolvendo o momento sintético, o
crítico do capital procura reconstituir no pensamento esta mesma totalidade, de
36
Ibidem, p. 21. Entrecolchetes e entreparênteses meus, tradução levemente modificada (p. 28).
37
Esse primeiro momento aproxima-se considerando as distinções metodológicas antes
assinaladas do que Hegel chamou de momento do entendimento, ou seja, o momento de
fixação e determinação das categorias em sua simplicidade abstrata; e arriscaríamos ainda
dizer que, mutatis mutandis, o momento expositivo dialético considerado por Marx como
momento no qual o real é espelhado idealmente no pensamento, se aproxima do momento
especulativo (também de espelhamento) que, segundo Hegel, supera o do entendimento.
16
cuja existência efetiva partiu a análise, buscando estabelecer suas conexões e
então apresentá-las como concreto pensado.
Considerando esta postura metodológica, a crítica da economia política,
como esforço teórico que visa a expressar a natureza contraditória do
desenvolvimento lógico-categorial imanente do capital, toma como seu
pressuposto o valor, na sua condição de categoria elementar da produção
capitalista. Tomando o capital como totalidade concreta, pressuposta ao
pensamento, encontra através da análise a sua determinação mais abstrata
presente na forma-mercadoria, que é a existência “elementar” do valor. Após a
elucidação das determinações que lhe são constitutivas (valor de uso e valor,
trabalho concreto e trabalho abstrato), apresenta a passagem da forma-
mercadoria para a forma-dinheiro. Esta última se desenvolve de modo imanente
enquanto forma de valor mais determinada que a primeira, pois implica uma
relação com outras mercadorias e aparece como forma geral do valor. A forma-
dinheiro, ao se apresentar como equivalente universal das mercadorias, se
manifesta como a primeira forma de aparição do capital.
Assim considerada, a exposição marxiana n’O Capital se constitui
lógico-categorialmente: trata-se de uma exposição das categorias segundo sua
sucessão lógica, necessária e imanente (no plano do pensamento). Todavia, tendo
como pressuposta a fundamentação materialista, o movimento das categorias aí
expostas não se confunde com o movimento empírico do próprio real, nem em
sua constituição histórica, nem em seu movimento orgânico. Como afirma
Marcos Müller, a exposição marxiana
reconstrói, no plano ideal, o movimento sistemático do capital,
enquanto diferente, logicamente, de sua emergência e
universalização históricas e diferentes, como método, de sua
reprodução real sistêmica.
38
É precisamente porque o movimento lógico das categorias não é o mesmo do do
real que, contudo, a exposição pode e precisa ser metodologicamente lógico-
38
Müller, M. L. Exposição e método dialético em O Capital, p. 21.
17
categorial, para assim melhor dar conta de sua negatividade imanente. Mas, se na
exposição há um movimento imanente dos conceitos, que se desenvolvem
progressivamente, isto se dá somente na exposição, não no próprio real. A
exposição dialética apresenta a hierarquia progressiva pela qual as categorias se
determinam, logicamente, como constitutivas do real; em conseqüência, não as
expõe, nem as pode expor, em seu desenvolvimento histórico-empírico.
Enquanto dialética, a exposição não apresenta as categorias segundo a ordem
temporal de sua ação, mas sim segundo suas interconexões lógico-abstratas na
presente sociedade burguesa. Como Marx mesmo afirma,
seria, pois, impraticável e errôneo colocar as categorias econômicas
na ordem segundo a qual tiveram historicamente uma ação
determinante. A ordem em que [as categorias] sucedem [na
exposição] se acha determinada, ao contrário, pelo relacionamento
que têm umas com as outras na sociedade burguesa moderna, e que
é precisamente o inverso do que parece ser uma relação natural, ou
do que corresponde à série do desenvolvimento histórico.
39
Marx não constitui uma exposição historiográfica, de natureza descritiva,
embora parta do resultado do desenvolvimento histórico como fundamento de
sua análise, à qual deve seguir uma exposição lógico-categorial segundo as
relações que as categorias entretêm na sociedade capitalista. Mas esta exposição
categorial tampouco se constitui lógico-demonstrativamente. Longe disso, o que
se observa na exposição de O Capital é a apresentação imanente progressiva das
categorias que segue um desenvolvimento lógico do mais simples ao mais
complexo. Ora, afirma Teixeira, “uma coisa é fazer uma análise da gênese
histórica de um objeto historicamente dado; outra é buscar compreender a
racionalidade imanente desse objeto”.
40
E justamente visando apresentar a
racionalidade própria ao modo de produção capitalista, em Marx, como observa
ainda Teixeira em outro lugar, “o movimento de exposição das categorias não
39
Marx, K. Introdução à Crítica da economia política, p. 22 (p. 638). Entrecolchetes meus.
40
Teixeira, F. J. S. Sobre a crítica dialética de O Capital: uma anticrítica. In: Crítica marxista,
nº 8. São Paulo: Xamã, 1999, p. 95-96.
18
segue a ordem em que elas aparecem na história, mas sim, sua posição
hierárquica [progressiva] no interior do movimento de valorização do capital”.
41
3.2 Exposição categorial n’O Capital e imanência das formas jurídicas
Ter em vista a natureza lógico-categorial da exposição de Marx n’O
Capital é fundamental para a apresentação deste subcapítulo, que se centra na
relação entre o desenvolvimento lógico-expositivo das categorias da crítica da
economia política e a emergência das formas jurídicas. Trata-se aqui de expor a
emergência e o desenvolvimento das categorias jurídicas como as de liberdade,
igualdade etc. segundo seu aparecimento na exposição crítica das categorias
econômicas n’O Capital. Esta exposição também não é histórica, não se constitui
de uma apresentação da gênese histórica dessas categorias jurídicas; ao contrário,
trata-se de uma exposição lógica imanente à própria exposição das categorias da
economia mercantil-capitalista, segundo seu desenvolvimento progressivo. É, ela
mesma, portanto, uma exposição crítica da gênese lógica das formas jurídicas,
constitutiva da própria crítica marxiana da economia política.
Como meu objetivo principal é a exposição das formas jurídicas, centro
minha atenção nos cinco primeiros capítulos do primeiro tomo d’O Capital com
vistas a identificar a imanência das formas jurídicas que ali se constituem no
próprio processo de desenvolvimento da forma-valor. Parto nesta exposição do
desenvolvimento lógico-categorial apresentado por Marx, que se inicia pela
apresentação da forma-valor desde a forma-mercadoria até a forma-capital. O
que pretendo é mostrar que as formas jurídicas, como formas sociais de relações
entre os homens, perpassam todos os momentos da produção e reprodução do
valor e se constituem no interior desse mesmo processo. Parto, portanto, da tese
proposta por Eugeny Bronislanovich Pasukanis acerca da relação entre as formas
jurídicas e a forma-valor. Como ele afirma, “a forma jurídica, expressa por
abstrações lógicas, é um produto da (...) mediação real das relações de
41
Ibidem, p. 96. Entrecolchetes meus.
19
produção”, e a sua gênese (das formas jurídicas) se encontra “nas relações de
troca”.
42
Ao definir e estabelecer sua compreensão sobre as formas jurídicas, diz
ainda: “não podemos nos restringir, na análise da forma jurídica, à ‘pura
ideologia’, desconsiderando [seu] mecanismo objetivamente existente”; em
conseqüência, deve-se pensá-la como “mediação jurídica [que] só é concluída no
momento do acordo (...)”. “Um acordo comercial”, continua ele, “já não se pode
dizer um ‘fenômeno da consciência’; já não se pode dizer uma ‘idéia’, uma
‘forma da consciência’, é um fato econômico objetivo, uma relação econômica
indissoluvelmente ligada à sua forma jurídica que é também objetiva”.
43
Assim,
inseparável do caráter crítico da exposição marxiana, a apresentação que
desenvolverei expressa lógico-categorialmente as contradições presentes na
própria produção capitalista. Tais contradições se localizam, na obra de Marx,
justamente na passagem da esfera da circulação à esfera da produção, que
correspondem respectivamente à aparência e à essência do sistema capitalista.
3.2.1 A duplicidade da forma-mercadoria e a subsunção do concreto pelo
abstrato como princípio de equivalência
Em O Capital, Marx inicia sua exposição crítica da constituição
categorial da forma-capital com a explicitação dos elementos constitutivos da
forma-mercadoria: valor de uso e valor.
44
Essa explicitação -se a partir de uma
análise acerca da atividade pela qual ela é constituída, ou seja, o trabalho humano
produtivo, que, ao ter como produto a mercadoria mesma, aparece numa dupla
existência: em sua forma concreta e em sua forma abstrata. É propriamente por
constituir-se como resultado desta segunda forma do trabalho, que a mercadoria
insere-se no processo de troca. Desde a forma mais simples da troca em que a
42
Pasukanis, E. B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 8.
43
Ibidem, p. 8 e 9. Entrecolchetes meus.
44
A exposição de O capital é a “exposição das contradições da forma mercadoria, desde a mais
simples, que se expressa através da oposição entre valor de uso e valor de troca, até chegar a
sua forma mais complexa e concreta: a contradição entre capital e trabalho ou, se preferir,
entre as classes sociais”. (Teixeira, F. J. S. Economia e luta de classes no capitalismo
regulado: ensaios sobre a crise da economia social de mercado. Fortaleza: Faced/UFC, 2004,
p. 63 (Tese de Doutoramento)).
20
mercadoria é inserida, observa-se a determinação pela qual, e somente assim, a
troca se torna possível: a equivalência. O que permite que mercadorias sejam
trocadas é a sua relação umas com outras enquanto equivalentes, relação que se
estabelece pelo fato de as mercadorias serem produto de trabalho humano
abstrato.
Cada mercadoria difere uma da outra por sua capacidade de satisfazer
necessidades humanas específicas mediante suas qualidades naturais. Como diz
Marx, “as mercadorias são, antes de mais nada, de diferentes qualidades”;
45
sua
utilização é, portanto, determinada pelas propriedades do corpo em seu valor de
uso ou bem”.
46
Na busca da satisfação de suas necessidades, o homem “apenas
muda as formas das matérias” e “assimila os elementos específicos da natureza”,
associando-os às suas necessidades específicas.
47
Essa atividade prático-
produtiva do homem é a forma concreta útil do trabalho e é, enquanto tal,
uma condição de existência do homem independente de todas as
formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do
metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida
humana.
48
Assim, Marx apresenta a forma do trabalho concreto, o trabalho útil, enquanto
ato de descobrir os múltiplos modos de usar as coisas”, e caracteriza-o, deste
modo, como “um ato histórico (geschichtliche Tat),
49
por meio do qual o
homem aparece em sua relação com a natureza. Se tomada por este ângulo, como
resultado do trabalho útil, a mercadoria aparece enquanto valor de uso, pois
mediada pela ação humana na forma concreta da sua atividade prático-produtiva.
45
Marx, O capital, p. 47 (p. 52).
46
Marx, O capital, p. 46 (p. 51).
47
Ibidem, p. 50 a 51 (p. 57)
48
Ibidem, p. 50 (p. 57). Para M. A. Oliveira, em Marx “trata-se do intercâmbio entre a natureza
subjetiva do homem e a natureza objetiva, mediado pelo processo de trabalho, que vai criar as
condições fácticas de reprodução e efetivação do ser homem (...), no entanto, a mediação entre
a natureza subjetiva e a natureza objetiva não é, para Marx, um processo absoluto e por isso
nunca pode destruir a exterioridade e a autonomia da natureza, pois essa atividade sobre a
natureza tem, segundo Marx, um pressuposto ineliminável: ‘a natureza em si’” (Oliveira, M.
A. Ética e sociabilidade. Loyola p. 252)
49
Marx, O capital, p. 45 (p. 49-50).
21
Qualitativamente, este trabalho será diferenciado de acordo com as específicas
funções necessárias à criação do valor de uso que se pretende produzir.
50
Mas, dada a diversidade própria à natureza das coisas, dadas suas
características físicas, químicas e materiais que as tornam diferentes umas das
outras e que, portanto, tornam diferentes os trabalhos concretos por meio dos
quais os homens as produzem, como se pode pensar a equivalência desses
produtos do trabalho humano? Com esta questão, refiro-me à exposição marxiana
da categoria constitutiva do princípio da equivalência, que, diante da variedade
do mundo das coisas, adensa os diversos trabalhos concretos em uma forma
identitária do trabalho humano. Na exposição de Marx, trata-se do trabalho
humano abstrato, forma social na qual o trabalho aparece em sua capacidade de
produzir valor. Ao ser tomado meramente enquanto dispêndio de força física e
intelectual do homem, o trabalho aparece em sua forma abstrata. O trabalho
humano aparece nessa sua forma social abstrata “ao desaparecer o caráter útil dos
produtos do trabalho, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos”.
Assim, as diferentes formas concretas de trabalho humano “deixam de
diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho
humano, a trabalho humano abstrato”.
51
A natureza mensurável do trabalho -se, pois, pela
objetivação/materialização da sua forma abstrata, a qual possibilita sua
identificação com outros tipos de trabalho qualitativamente diferentes. Na
medida em que o trabalho se identifica quantitativamente, enquanto uma
determinação da mercadoria, ele aparece em sua dimensão identitária e,
portanto, comensurável com outras mercadorias. Essa dimensão identitária se
expressa pela presença de um elemento comum entre as distintas mercadorias, a
saber, trabalho abstratamente quantificado. Nisso as mercadorias se igualam;
50
Na “totalidade diversificada dos diferentes trabalhos úteis”, segundo Marx, está a divisão
social do trabalho, enquanto “diferenciação qualitativa” destes trabalhos (Cf. ibidem, p. 50 (p.
56 a 57)).
51
Ibidem, p. 47 (p. 52).
22
nisso aparece o princípio de equivalência no intercâmbio: mercadorias diferentes
podem ser trocadas por outras mercadorias que possuem o mesmo quantum de
trabalho em sua produção, ou seja, o mesmo valor.
O valor, enquanto determinação abstrata mensurável da forma-
mercadoria e que permite a sua permutabilidade, somente aparece na medida em
que ela se põe em relação com outra mercadoria. Esta outra mercadoria
manifesta-se como forma equivalente de seu valor; em outras palavras, é pelo
reconhecimento de que uma outra mercadoria (forma equivalente) possui o
mesmo quantum de trabalho humano abstrato, que uma determinada mercadoria
(forma relativa) pode ser com aquela igualada e trocada; nesta troca, a forma
relativa, como primeiro termo da relação, encontra manifesto seu valor na forma
equivalente, ou seja, no seu valor de troca. Este, segundo Marx, “só pode ser o
modo de expressão, a ‘forma de manifestação (Erscheinungsform)’ de um teor
(Gehalt) dele distinguível”.
52
O caráter duplo do trabalho presente na mercadoria aparece por se
constituir concreta e abstratamente. Em sua forma concreta, o trabalho é uma
condição necessária da vida social humana, condição de sua existência. Em sua
forma abstrata, ele aparece determinado em e por uma forma particular da vida
social, forma na qual a mercadoria domina a vida material.
53
Na abstração do trabalho humano, a sua concretude é subsumida, embora
não eliminada. Como produtor de valor de uso, o trabalho concreto permanece
ainda como uma condição de existência da mercadoria. Daí que a mercadoria
também apareça como uma dupla existência; a mesma duplicidade em que se
52
Ibidem, p. 46 (p. 51).
53
Como afirma F. J. S. Teixeira, “ao contrário do trabalho concreto, o trabalho abstrato revela
as determinidades da organização social do trabalho numa forma de produção historicamente
determinada: a forma capitalista da produção. Quando os produtos dos trabalhos privados
autônomos e independentes entre si se confrontam como mercadorias, o trabalho assume uma
qualidade social nova: é trabalho abstrato. Isso não significa que o trabalho concreto
desaparece no capitalismo, mas sim, que ele é subsumido ao trabalho abstrato, que passa a ser
a forma de realização alienada do trabalho concreto”. (Teixeira, F. J. S. Pensando com Marx.
São Paulo: Ensaios, 1995, p. 50).
23
manifesta o trabalho, também caracteriza o mundo das mercadorias, já que elas
se constituem de um valor de uso, sua qualificação concreta, e de um valor de
troca, sua quantificação abstrata. Mas na troca prevalece seu caráter abstrato, sua
existência enquanto valor, embora o que mobilize a efetivação da troca seja a
existência da mercadoria também em seu caráter concreto, sua existência
enquanto valor de uso.
Para Marx, a forma-valor, enquanto condicionado pela dimensão abstrata
do trabalho, se constitui numa forma histórica de relação social entre os
indivíduos. A subsunção do concreto pelo abstrato, quer no trabalho, quer na
mercadoria, é próprio a uma forma histórica da vida material dos homens, na
qual a troca privada, e não apenas o ato produtivo mesmo, aparece como meio de
adquirir valores de uso. Nestes termos, sendo a troca privada essa forma da
relação entre os homens, a forma-valor aparece como sua relação social. Como
forma social, ela tem como conteúdo a produção material da sociedade. A forma-
valor é, assim, uma relação social na qual os indivíduos conduzem a produção
material para a realização abstrata dos produtos de seu trabalho, ou seja, para a
realização de seus produtos como valores de troca. Neste sentido, a produção é
mercantil; e a forma social que lhe é correspondente não é senão a própria forma-
valor.
Para uma melhor compreensão desta relação entre produção material e
forma social de relação, cabe observar nessa discussão a imanência, enquanto
categorias da existência social, das determinações reflexivas de forma e
conteúdo, tais quais presentes no pensamento hegeliano.
54
Para Hegel, forma e
conteúdo se identificam e se determinam reciprocamente, em uma “relação
absoluta”, como resultado próprio à totalidade do real. No pensamento hegeliano,
a verdade dessas categorias consiste nessa identificação.
55
Ao inserir-se na
54
Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas, §§ 132-134.
55
Distinguindo essa “relação absoluta” posta pela Razão da relação separadora posta pelo
Entendimento, Hegel diz que “Forma e conteúdo são um par de determinações que o
entendimento reflexivo utiliza com freqüência, e decerto principalmente de maneira que o
24
reflexão marxiana, tal lógica possibilita a compreensão de que a forma-valor,
enquanto forma de relação social, mantém uma unidade histórica com a produção
material da sociedade, que é seu conteúdo. Sendo a forma social o que distingue
historicamente uma sociedade da outra, ela aparece como distinção apenas e na
medida em que, reflexivamente, mantém a unidade com seu conteúdo: as forças
produtivas da sociedade. Como diria ainda Hegel, “a forma é, assim, conteúdo, e,
segundo sua determinidade desenvolvida, é a lei do fenômeno”.
56
Sendo
conteúdo e forma, conforme Hegel, o mudar deles “um no outro”, a forma-valor
pode ser pensada dialeticamente como o tornar-se da produção material numa
forma histórica de relação social, forma esta em que o valor aparece como
determinante das relações de produção e, portanto, da própria produção material.
Assim, a forma-mercadoria é o resultado do trabalho humano que em
uma dada forma histórica da produção social se objetiva abstratamente. Como
mercadoria, o produto do trabalho resguarda em si a condição concreta a ele
conferida pelo trabalho útil, mas a mantém subsumida à existência abstrata. É
esta última que possibilita equivalência com outra mercadoria, na medida em que
ambas são tomadas enquanto produto de igual quantificação de trabalho
(abstrato). A troca, essa relação entre mercadorias possuidoras de igual
quantidade de trabalho, constitui-se na própria forma da relação entre os
produtores das mercadorias. Em conseqüência, o intercâmbio entre mercadorias
diferenciadas, que se equivalem pela quantidade de trabalho abstrato contido
nelas, torna-se a mediação da relação entre seus portadores.
conteúdo é considerado como essencial e o autônomo, e a forma como o inessencial e não-
autônomo. Em sentido contrário vale notar que, de fato, os dois são igualmente essenciais, e
que, enquanto há tampouco um conteúdo carente-de-forma quanto uma matéria carente-de-
forma [...] o conteúdo como tal só é o que é porque contém dentro de si a forma
desenvolvida”. (Ibidem, § 133, Adendo).
56
Ibidem.
25
3.2.2 A imanência das formas jurídicas às trocas mercantis e seu caráter
reificado
Na medida em que a troca mercantil se torna a forma dominante das
relações sociais, as próprias mercadorias aparecem como mediadoras das
relações entre seus portadores. É isso que na verdade mais claramente se
manifesta como fenômeno da troca: a relação abstrata entre os indivíduos,
enquanto uma relação mediada pela troca de mercadorias, sobressalta-se por
sobre a sua relação concreta. Daí se pode dizer que ocorre no intercâmbio
mercantil uma reificação das relações sociais entre os proprietários de
mercadorias, justamente por esta relação só poder acontecer como uma relação
entre coisas, segundo a lógica coisificada da troca mercantil. Tal reificação
ocorre graças à própria natureza da forma-mercadoria, pois esta, segundo Marx,
reflete aos homens características sociais do seu próprio trabalho,
como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso,
também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total
como uma relação existente fora deles, entre objetos.
57
Este metabolismo reificado, em que as relações sociais assumem a forma
do intercâmbio entre as mercadorias, é componente de um processo no qual a
produção é conduzida pela forma-mercadoria. A produção fetichista (mística,
fantasmagórica) do valor tem como outro lado a relação reificada (coisificada,
alienada) entre os homens. Quando a produção assume a lógica da produção do
valor, produz-se para a troca, os indivíduos relacionam-se com os produtos de
seu trabalho a partir da dimensão abstrata deles, dimensão própria à
determinação desses produtos como forma-mercadoria. Por isso, ao entrarem em
relação com outros indivíduos, abstrai-se a concretude de seus trabalhos. A
qualidade de seus trabalhos é suplantada pela quantidade de trabalho contida na
mercadoria visada por eles. E eles próprios se relacionam uns com os outros na
condição de tão-somente portadores de mercadorias. Suas relações são mediadas
pela e se constituem em forma-valor.
57
Marx, K. O Capital, p. 70 (p. 86).
26
A equivalência mercantil, cuja base é a subsunção do concreto ao
abstrato, se constitui de relações sociais reificadas de produção das quais se
geram e nas quais atuam determinadas relações jurídicas. Assim, a exposição de
Marx do desenvolvimento da forma-valor, incluindo aí o caráter reificado e
fetichista dessa relação social, é também a exposição da gênese lógica das
categorias jurídicas que nessa e dessa forma de relação social emergem. Trata-se
em Marx, portanto, não de uma teoria do direito jurídico, mas sim de uma
exposição crítica da gênese das formas jurídicas, constitutiva de sua crítica da
economia política. São categorias (determinações) jurídicas que compõem essa
forma de relação social, sendo elas próprias, por conseguinte, formas sociais. Por
isso as chamo aqui seguindo Pasukanis também de formas jurídicas. Como
tal, elas são formas pelas quais as relações entre os indivíduos se manifestam por
ocasião da troca de mercadorias; são categorias econômicas transmudadas em
categorias jurídicas tais como propriedade, igualdade, liberdade, vontade,
reciprocidade, contrato etc.
Como isso ocorre, precisamente? Ora, quando os indivíduos se põem no
intercâmbio mercantil, eles se põem com vistas a realizar a troca de suas
mercadorias. A realização das trocas de mercadorias se expressa no
reconhecimento recíproco, desses e por esses mesmos indivíduos, enquanto
proprietários das mercadorias. É precisamente nessa relação entre proprietários
de mercadorias diversas que, pela alienação dos produtos de seus trabalhos, o
valor se realiza: isto é, quando uma mercadoria, em sua forma natural (valor de
uso) aparece para seu proprietário como valor (forma relativa), ao qual ele
contrapõe e iguala o valor da mercadoria (forma equivalente) de outro
proprietário. Nesse nível imediato da troca mercantil, o portador de mercadoria
põe-se e é reconhecido pelo outro como proprietário numa relação de
reciprocidade. A forma-mercadoria do produto do trabalho constitui na prática
essa forma jurídica da relação entre os portadores de mercadorias, em cujo
intercâmbio, por meio justamente do reconhecimento recíproco entre os
proprietários, pode ser efetuada a troca e estabelecido o contrato. Como
27
considera F. J. S. Teixeira, a “reciprocidade é uma relação jurídica, cuja forma é
o contrato, que assegura a cada proprietário o direito de dispor do que é seu”.
58
Esse processo de troca descrito acima, segundo Marx, realiza-se por
meio da efetivação de duas vontades opostas entre si. Cada proprietário não visa
senão o valor de uso da mercadoria com a qual deseja trocar a sua. Portanto,
somente na realização de sua liberdade de desfazer-se de sua própria mercadoria,
na efetivação de sua vontade de adquirir a mercadoria alheia, é que cada
proprietário aliena sua mercadoria e, unicamente assim, efetiva-se a troca. Em
contrapartida e, simultaneamente, como condição da efetivação de sua própria
vontade, põe-se diante da dele e é por ele reconhecida uma outra vontade
externa (a de outro produtor-proprietário). É mediante a efetivação desta última
que ele pode ter, pela apropriação da mercadoria alheia, a efetivação da sua
própria vontade, ou seja, a aquisição de um valor de uso para si por meio da
troca. Esta implica sempre o reconhecimento recíproco da liberdade da vontade,
do direito de propriedade e da igualdade dos portadores de mercadorias enquanto
pessoas. Em conseqüência, nessa relação de duas vontades opostas, que se
reconhecem reciprocamente como iguais e livres, e assim se fazem de fato nesta
relação de troca por meio da reciprocidade, constitui-se a figura jurídica do
contrato. Diz Marx:
Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias,
devem os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja
vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de
acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante
um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria
alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-
se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação
jurídica [ou relação de direito, Rechtsverhältnis], cuja forma é o
contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de
vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa
58
Teixeira, F. J. S. Economia e luta de classes no capitalismo regulado: ensaios sobre a crise
da economia social de mercado, p. 70.
28
relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação
econômica mesma.
59
É assim que a relação econômica de troca mercantil entre os indivíduos
se manifesta como uma relação jurídica, relação mediada pelas formas jurídicas
de propriedade, liberdade, igualdade, pessoa e contrato. Somente na medida em
que a relação social aparece como relação entre mercadorias, é que o proprietário
de uma mercadoria, enquanto pessoa livre, pode aliená-la e, diante do outro e
pelo outro, ser reconhecido como livre e igual.
60
O que prevalece nesta relação é
o próprio princípio econômico da equivalência mercantil que se transmuda, com
referência aos indivíduos, em igualdade formal jurídica. O mesmo fundamento
o domínio do abstrato sobre o concreto , em que as mercadorias, ainda que
distintas umas das outras, aparecem como equivalentes, domina as relações
jurídicas entre os seus portadores. A relação social entre os homens assume a
forma-valor, exatamente na medida em que, como portadores de valores de uso,
que para cada qual são valores de troca, meios de apropriação de outras
mercadorias que satisfazem suas necessidades imediatas, os produtores
constituem-se em proprietários e, portanto, em pessoas livres. Assim mesmo eles
se constituem na relação com outros, aos quais reconhecem e por quem são
reconhecidos como juridicamente iguais.
São nestes termos que, com F. J. S. Teixeira, podemos dizer que “as
relações de troca entre os indivíduos (...) são ao mesmo tempo econômicas e
59
Marx, O Capital, p. 79 (p. 99). Itálicos meus, para ressaltar que a forma jurídica do contrato,
imediatamente determinada na relação de troca, é logicamente anterior à instituição da lei,
que já supõe o Direito e o Estado. Em seus Princípios fundamentais da filosofia do direito,
partindo do conceito de vontade livre, Hegel determina do seguinte modo a conexão
constitutiva desta afirmação de Marx entre as categorias jurídicas da propriedade, da
vontade e do contrato: “A propriedade, que, no que tem de existência e extrinsecidade, se não
limita já a uma coisa, mas inclui também o fator de uma vontade (por conseguinte estranha), é
estabelecida pelo contrato. É neste processo que surge e se resolve, na medida em que
renuncia à propriedade por um ato de vontade comum com outra pessoa, a antítese de ser
proprietário para si mesmo e de excluir os outros” (Obra citada, tr. port. Orlando Vitorino,
Lisboa, Guimarães Editores, 1990, § 72).
60
Sobre a relação entre a alienação da propriedade e a efetivação da vontade livre, diz Hegel:
“Não só eu posso desfazer-me da minha propriedade como de uma coisa exterior, mas ainda
sou logicamente obrigado a aliená-la como propriedade para que minha vontade se torne
existência objetiva para mim” (Hegel, Princípios fundamentais da filosofia do direito, § 73).
29
jurídicas”.
61
Como tal, as formas jurídicas aparecem já na circulação simples de
mercadorias como uma forma de relação pelas quais os homens podem e
estabelecem suas relações econômicas. Propriedade, liberdade, vontade, contrato,
pessoa e igualdade manifestam-se como condições sine qua non as trocas
mercantis não podem ser efetivadas. Como formas sociais jurídicas de relação
entre os homens, elas somente se geram numa forma social da produção que tem
como condição de sua realização a exigência dessa mediação formal jurídica
entre os produtores individuais. É a forma-valor, fundada no princípio abstrato de
equivalência entre as mercadorias, que põe a forma jurídica de relação social que
expressa esse mesmo princípio de igualação sem o qual seja no nível
econômico, seja no nível jurídico não há a troca mercantil. Assim, a própria
equivalência econômica se apresenta enquanto formas jurídicas que são ao
mesmo tempo as condições de sua realização: propriedade, na medida em que a
forma-valor é uma relação recíproca entre proprietários, determinada pela
produção de mercadorias como valores de troca (portanto, de troca privada);
liberdade e vontade, em função da realização da troca de mercadorias alienadas
pelos proprietários livremente, como ato de suas vontades; e contrato, justamente
por ser a realização mesma da troca mercantil uma relação formal jurídica, que se
estabelece legalmente ou não (isto é, submetida ou não a um sistema jurídico
estatalmente constituído).
3.2.3 Da aparência à essência do sistema: a vigência das formas jurídicas e a
contradição do capital
Pretendo apresentar neste tópico como se manifestam e se determinam as
formas jurídicas na passagem da esfera da circulação para a esfera da produção.
Essas esferas são compreendidas aqui em sua unidade fundamental,
61
Teixeira, F. J. Economia e luta de classes no capitalismo regulado: ensaios sobre a crise da
economia social de mercado, p. 70.
30
constitutivas de uma única e mesma totalidade: o capital”.
62
Considerando essa
unidade, diz-nos F. J. S. Teixeira, a
aparência do sistema [as leis da circulação simples] revela ao
observador imediato um mundo onde o que reina é unicamente
liberdade, igualdade e propriedade. Marx parte daí para chegar à
essência do sistema, quando então esse mundo se mostra o
contrário do que o é no seu aspecto fenomênico. Neste nível,
aquela liberdade é, na verdade, não-liberdade; a igualdade não-
igualdade e a propriedade não-propriedade.
63
Na circulação simples, os agentes da troca, proprietários privados,
estabelecem a relação jurídica da igualdade. Tal relação jurídica, tendo seu
conteúdo “dado por meio da relação econômica mesma”,
64
não é outra coisa que
a “personificação das relações econômicas” ocorridas com base no princípio da
equivalência. É esse princípio que possibilita o intercâmbio de mercadorias. Com
seu portador direto, a mercadoria não estabelece nenhuma relação, a não ser pelo
fato de ela lhe aparecer como portadora de valor de troca com o qual ele busca
adquirir uma outra mercadoria. Nesses termos, a troca manifesta-se enquanto
“processo individual, apenas na medida em que cada possuidor quer alienar sua
mercadoria por outra cujo valor de uso satisfaça sua necessidade”.
65
Ora,
o primeiro modo, no qual um objeto de uso é possibilidade para
valor de troca, é sua existência como não-valor de uso, como
quantum de valor de uso que ultrapassa as necessidades diretas de
seu possuidor. As coisas são, em si, e para si, externas ao homem e,
portanto, alienáveis. Com essa alienação (Veräußerung) recíproca,
os homens precisam apenas se defrontarem, tacitamente, como
proprietários privados daquelas coisas alienadas (veräußerlich) e
justamente, por intermédio disso, como pessoas independentes
entre si.
66
Contudo, ao inserir-se individualmente na troca o indivíduo o faz na
medida em que ela é um processo social, pelo qual a realização de sua
mercadoria como valor se dá por meio de sua relação com qualquer outra
62
Ibidem, p. 63.
63
Ibidem. Entrecolchetes meus.
64
Marx, K. O capital, p. 79 (p. 99).
65
Ibidem, p. 80, tradução levemente modificada. (p. 100).
66
Ibidem, p. 81, tradução levemente modificada. (p. 102)
31
mercadoria de mesmo valor. Por meio de sua regularidade, esse processo social
exige a produção intencional de produtos com vistas à sua realização como
valores de troca. Obedecendo à lei do valor, ao princípio de equivalência entre as
mercadorias, a troca se realiza aí ao instituir relações jurídicas entre indivíduos,
pelas quais eles se reconhecem reciprocamente como iguais, livres e proprietários
dos produtos de seus trabalhos. Porém, o que acontece quando saímos desse nível
aparente da circulação simples de mercadorias e a pensamos na relação com a
esfera da produção capitalista de mercadorias? Esta questão ganha ainda mais
importância se se pensa que a própria força de trabalho emerge agora como
mercadoria. Essa passagem da esfera da aparência, da circulação de mercadorias,
para a esfera da essência, da produção de valor, é o objeto da exposição deste
tópico. Baseado na apresentação marxiana da teoria do valor, faço aqui a
exposição das categorias jurídicas como condição de realização também dessa
forma mais desenvolvida do valor (forma-capital). Mesmo sob a forma do
capital-dinheiro, a relação de troca mantém-se determinada pelo princípio de
equivalência; desse modo, as formas jurídicas manifestam-se enquanto
constitutivas dessas relações econômicas.
No mundo das mercadorias, a predominância universal da forma-valor
determina o desenvolvimento de uma forma geral de equivalência que tem sua
expressão na forma-dinheiro. Partindo da análise da relação mais simples de
valor, Marx explicita o surgimento do dinheiro como forma desenvolvida da
expressão de valor da totalidade das mercadorias, em sua universal determinação
quantificada de trabalho humano abstrato. Nisso, o dinheiro aparece enquanto
meio de troca, e como tal, tem sua utilidade, enquanto forma-mercadoria,
efetuada apenas na circulação.
Contudo, diz Marx, o dinheiro, “produto último da circulação de
mercadorias, é primeira forma de aparição (Erscheinungsform) do capital”.
67
67
“A circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. [...] Vejamos desde o conteúdo
material da circulação de mercadorias, do intercâmbio dos diferentes valores de uso, e
consideremos apenas as formas econômicas engendradas por esse processo, então
32
Esse processo se realiza do seguinte modo. Na esfera da circulação, os
proprietários de mercadorias aparecem ora na figura de vendedor (portador de
mercadoria) ora na figura de comprador (portador de dinheiro), e suas relações
determinam-se no ciclo de metamorfoses da mercadoria (MDM: mercadoria-
dinheiro-mercadoria), em que o primeiro momento (MD) é a venda e o segundo
(DM), a compra. Contudo, a transformação do dinheiro em capital põe em
contradição essa fórmula da circulação simples de mercadoria: há uma inversão
do ciclo de metamorfose da mercadoria (MDM) para o ciclo da metamorfose
do dinheiro em capital (DMD’). O capitalista compra (DM) e vende (MD)
mercadorias, porém não com o fim da simples realização de uma mercadoria em
seu valor de uso, como na circulação simples de mercadorias, mas sim para a
realização do dinheiro enquanto capital, com a produção de valor que se
acrescenta ao inicial (D’).
Para que o capital-dinheiro se realize como possibilidade de produção e
efetivação de mais-valor, a mercadoria que o capitalista deve comprar é a força
de trabalho. Somente ela é capaz de produzir valor. Como mercadoria, ela realiza
seu valor de uso na produção produzindo um valor superior ao seu, isto é, sua
utilidade é produzir mais-valia. Esta é uma condição essencial à constituição e
desenvolvimento da forma-valor como capital: a introdução da força de trabalho
no mundo das mercadorias. Somente assim se estabelece, como uma
característica particular da forma social capitalista, a autovalorização do capital.
A produção da mais-valia só é possível nessa forma histórica em que a força de
trabalho se manifesta como mercadoria e ao seu possuidor (o trabalhador)
correspondem as categorias jurídicas próprias ao intercâmbio mercantil. Para
dizer com Marx,
para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro
precisa encontrar no mercado, portanto, o trabalhador livre, livre no
duplo sentido: que ele dispõe, na qualidade de pessoa livre, de sua
encontraremos como seu produto último o dinheiro. Este produto último da circulação de
mercadorias é primeira forma de aparição do capital”. (Ibidem, p. 125, tradução levemente
modificada (p. 161)).
33
força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro
lado, não tem outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre
de todas as coisas necessárias para a efetivação de sua força de
trabalho.
68
A inserção da força de trabalho como mercadoria no processo de troca
aparece em um dado momento do desenvolvimento da forma-valor e encontra
suas primeiras determinações nesse processo de transformação da mercadoria em
dinheiro, em que atua o princípio de equivalência. Quando a produção de
mercadorias é determinada pela busca de produção de mais-valor, como ocorre
na sociedade capitalista, é na apropriação da força produtiva do homem enquanto
mercadoria que, através de sua realização como valor de uso, é gerada a mais-
valia. Deste modo, a fórmula do capital (DMD’) contém uma contradição
ausente na circulação simples de mercadoria (MDM). Essa contradição se
constitui em que, através do processo de troca, da relação entre equivalentes na
esfera da circulação, é gerado, na produção, um valor superior ao presente no
início do processo, compondo assim a fórmula do capital: DMD’, em que D’ é
maior do que D.
69
Sendo a essência da sociedade capitalista a transformação da força de
trabalho em mercadoria e a sua utilização na esfera da produção, é nesta última, e
apenas nela, que há produção de valor. Somente ao ser levada para a esfera da
produção, é que a mercadoria força de trabalho produz um valor maior que o
valor a ela determinado pela troca na esfera da circulação. E o produto do
trabalho, ao assumir a forma-mercadoria, somente se realiza enquanto valor num
processo social, igualando-se a outra mercadoria por ser expressão da mesma
unidade social de trabalho humano. Assim, quando sai da produção, onde foi
produzida pela força de trabalho, a mercadoria deve retornar à circulação e nela
68
Ibidem, p. 140, tradução modificada (p. 183).
69
“Capitalista e proletário são ambos portadores de dinheiro e mercadoria, mas não
simplesmente portadores de dinheiro e mercadoria como nas produções pré-capitalistas de
mercadorias. O que os torna respectivamente capitalista e proletário é que a mercadoria que
eles estão intercambiando é a força de trabalho, mercadoria que, em seu uso, produz um valor
superior ao seu próprio (portanto, mais-valia). Somente aqui nós temos a vigência própria do
capital segundo a sua lógica da autovalorização”. (Aquino, J. E. F. A atualidade da crítica do
Estado. In: Contra-a-corrente, nº 9, Fortaleza, 1999, p. 6 (mimeo)).
34
deve se realizar monetariamente pela venda (MD) seu valor excedente, a
mais-valia. Deste modo, na circulação de mercadorias e dinheiro, a fórmula do
capital se decompõe em duas fases nas quais o princípio da equivalência se
mantém em cada qual separadamente (DM e MD); elas se alternam, contudo,
com um momento intermediário em que, retirada da circulação e levada para a
produção, a mercadoria força de trabalho produz um valor superior ao seu e,
assim, produz mercadorias que incorporam mais-valia.
Em conseqüência, a esfera da troca de equivalentes, a circulação, se
constitui num momento fundamental para a produção e a realização da mais-
valia: produção, pois é nela que a força de trabalho é comprada; e realização,
pois é nela que a mercadoria que incorpora mais-valia é vendida e a própria
mais-valia é realizada monetariamente, seu valor retornando à forma-dinheiro.
Em outras palavras, a troca de equivalentes (circulação), onde prevalecem as leis
de intercâmbio, o princípio da equivalência, é condição para a produção e
realização do não-equivalente (mais-valia). Assim, na aparição do capital
(enquanto mercadorias e dinheiro) na troca de equivalentes, o que aparece na
esfera da circulação é, segundo a lei do valor em seu princípio de equivalência,
esse intercâmbio entre iguais que, sob a manifestação do contrato, tanto se refere
às mercadorias e ao dinheiro quanto se refere aos indivíduos portadores de
mercadorias e dinheiro. Contudo, no caso da mercadoria força de trabalho o
que significa dizer, na produção capitalista de mercadorias a troca de
equivalentes e as formas jurídicas (de igualdade, liberdade, propriedade etc.) nas
quais ela se reflete são condições tanto da produção quanto da realização
monetária do não-equivalente (a mais-valia). Diz Marx:
É (...) impossível que o produtor de mercadorias, fora da esfera da
circulação, sem entrar em contato com outros possuidores de
mercadorias, valorize valor e, daí, transforme dinheiro ou
mercadoria em capital. (¶) Capital não pode, portanto, originar-se
da circulação e, tampouco, pode não originar-se da circulação.
Deve, ao mesmo tempo, originar-se e não originar dela.
70
70
Marx, O Capital, p. 138 (p. 180).
35
Assim, se tivermos em conta que as formas jurídicas constituem-se na e
pela troca de equivalentes na circulação de mercadorias e dinheiro,
conceberemos que tais formas jurídicas são, como a própria circulação de
mercadorias e dinheiro na qual se situam e se constituem, as condições
necessárias para a produção de capital, produção esta em cujo centro encontra-se
a compra e o uso da mercadoria força de trabalho.
Justamente sobre as formas jurídicas aí implicadas, diz Marx:
O intercâmbio de mercadorias não encerra em si e para si outras
relações de dependência que não são as originadas de sua própria
natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho como
mercadoria só pode aparecer no mercado à medida que e porque
ela é oferecida à venda ou é vendida como mercadoria por seu
próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho.
Para que seu possuidor venda-a como mercadoria, ele deve poder
dispor dela, ser, portanto, livre proprietário de sua capacidade de
trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram
no mercado e entram em relação um com o outro como possuidores
de mercadorias iguais por origem, só se diferenciando por um ser
comprador e o outro, vendedor, são portanto ambos pessoas
juridicamente iguais.(...) Como pessoa, ele tem de se relacionar
com sua força de trabalho como sua propriedade e, portanto, sua
própria mercadoria, e isso ele só pode à medida que ele a coloca à
disposição do comprador apenas provisoriamente por um prazo de
tempo determinado deixando-a ao consumo, portanto, sem
renunciar à sua propriedade sobre ela por meio de sua alienação.
71
“Pessoa”, “proprietário” e “propriedade”, “igualdade jurídica” são todas
formas jurídicas que, presentes na troca de quaisquer outras mercadorias na
esfera da circulação, têm sua gênese na própria lógica da troca de equivalentes. A
essas formas jurídicas correspondem às “idéias” de igualdade jurídica, de gênero
71
Ibidem, p. 139 (p. 181 e 182). Esta diferença da força de trabalho com relação às outras
mercadorias, quanto à sua natureza alienável, já posta por Hegel, é ressaltada pelo próprio
Marx ao citar o § 67 dos Princípios fundamentais da filosofia do direito: “Posso ceder a
outrem aquilo que seja produto isolado das capacidades e faculdades particulares da minha
atividade corporal e mental do emprego delas por um tempo, limitado, pois esta limitação
confere-lhe uma relação de extrinsecidade com a minha totalidade e universalidade. Mas se eu
alienasse todo o meu tempo de trabalho e a totalidade da minha produção, daria a outrem a
propriedade daquilo que eu tenho de substancial, de toda a minha atividade e realidade, da
minha personalidade”.
36
humano e de “direitos naturais do homem”, na realização conjunta, como diz
ironicamente Marx, de:
Liberdade! Pois o comprador e vendedor de uma mercadoria, por
exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua
livre vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente
(legalmente, rechtlich) iguais. O contrato é o resultado final, no
qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum.
Igualdade! Pois eles se relacionam um com outro apenas como
possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente.
Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham!
Pois cada um dos dois age apenas em torno de si.
72
3.3 O Direito e o Estado como aparência necessária da produção do
capital
Não há na obra de Marx uma teoria desenvolvida do Direito e do Estado.
Engels e Kautsky parecem ter razão ao dizerem: “O direito jurídico, que apenas
reflete as condições econômicas de uma determinada sociedade, ocupa posição
muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”.
73
Contudo, nos seus esforços
teóricos de crítica da economia política, mormente n’O Capital, podemos
encontrar, como demonstrado no subcapítulo anterior, uma exposição genética
das formas jurídicas. Lembrando que a “fundamentação das idéias modernas de
igualdade, nas condições econômicas da sociedade burguesa, foi analisada, pela
primeira vez, por Marx, em O Capital”, Engels diz a esse propósito:
a igualdade e a igual validade (Gültigkeit) de todos os trabalhos
humanos, porque e na medida em que eles são em geral trabalho
humano, encontraram sua inconsciente, mas fortíssima, expressão na
lei do valor da economia burguesa moderna, segundo a qual o valor de
uma mercadoria se mede através do trabalho socialmente necessário
contido nela.
74
72
Ibidem, p. 145, tradução levemente modificada (p. 189-190). Itálicos meus.
73
Engels, F., Kautsky, F. O socialismo jurídico. Trad. bras. L. Cotrim e M. Naves. São Paulo:
Ensaio, 1991, p. 48.
74
Engels, Anti-Dühring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 88, tradução levemente
modificada; Herrn Eugen Dührung's Umwälzung der Wissenschaft. In: Karl Marx & Friedrich
Engels Werke, Band 20. Berlin/DDR: Dietz Verlag, 1962, p. 97-98.
37
Essa é a mesma tese de E. B. Pasukanis, autor do clássico sobre a abordagem
marxiana do fenômeno jurídico:
As premissas materiais da comunidade jurídica ou das relações
entre os sujeitos de direito foram definidas, pelo próprio Marx, no
primeiro tomo de O Capital, mas apenas en passant, sob a forma
de indicações muito gerais. Estas indicações, contudo, contribuem
muito mais para a compreensão do momento jurídico nas relações
humanas do que qualquer tratado volumoso sobre teoria geral do
direito.
75
Consoante com isso, o Direito e o Estado só podem, na exposição da
crítica da economia política, se tornar objetos da reflexão marxiana na medida
em que compõem as relações sociais constitutivas da sociedade burguesa; e são,
portanto, indissociáveis do seu caráter contraditório, caráter este cuja expressão
teórica, no pensamento de Marx, se manifesta necessariamente sob a forma de
crítica. Assim, exatamente porque as relações sociais burguesas, segundo a
exposição marxiana, se constituem pela necessária mediação de formas jurídicas,
e que, portanto, a tematização crítica destas últimas faz parte, no pensamento de
Marx, da teoria crítica do valor, é que a crítica do Direito e do Estado é imanente
à crítica marxiana da economia política.
A forma jurídica do contrato, imediatamente realizada na relação de
troca, aparece na exposição de Marx como anterior, do ponto de vista lógico-
categorial, à instituição da lei (no Direito e no Estado). Como forma pela qual se
expressam as demais formas jurídicas constitutivas das relações de troca, o
contrato, ainda que não legalmente instituído, é a forma social jurídica que se
manifesta no ato da troca mesma. Ora, “as pessoas aqui só existem,
reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como
possuidores de mercadorias”.
76
Pelo contrato os portadores de mercadorias
decidem alienar-se de suas mercadorias para se beneficiarem do valor de uso da
mercadoria alheia. Mas o que ocorreria se, por acaso, um dos proprietários não
cumprissem com as determinações desse contrato in-formal? Essa questão indica
75
Pasukanis, E. B. A teoria Geral do Direito e o Marxismo, p. 84.
76
Marx, O Capital, p. 79-80 (p. 99-100).
38
que, em sua imediatidade econômica, “a relação jurídica entre os proprietários de
mercadorias tem um caráter contingente, na medida em que uma das partes pode
deixar de cumprir o que foi acordado”.
77
Segundo Teixeira, a superação desse
caráter contingente da relação jurídica não-legal pressupõe a aparição de uma
vontade exterior aos contratantes (vistos como meros portadores de mercadorias),
uma vontade exterior que se imponha como lei. “Esta vontade é o Estado”,
afirma Teixeira; “para que esta relação [jurídica] se efetive como lei ela tem que
ser posta pelo Estado”.
78
Se a reciprocidade expressa a precariedade e
contingência das formas jurídicas, a sua posição como lei manifesta sua
necessidade. Assim, a emergência do Estado e da legalidade jurídica aparece
como algo requerido, exigido, de modo imanente ao desenvolvimento do próprio
capital.
Nestes termos, as formas jurídicas constituídas nas trocas de equivalentes
são os pressupostos do desenvolvimento do Direito e do Estado e, portanto, em
contrapartida, de suas próprias existências como leis. A instituição das formas
jurídicas em sua posição legalizada, situada nas esferas positivas do Direito e do
Estado, é antes uma conseqüência do desenvolvimento das formas jurídicas,
desenvolvimento requerido pelo processo de produção e reprodução do capital.
Em outras palavras, a forma-Estado, do qual o Direito é componente necessário,
é a expressão mais desenvolvida das formas jurídicas; essas últimas
correspondem a protoformas do Direito, que adquirem uma expressão legal com
o desenvolvimento da forma-Estado, enquanto uma exigência própria à produção
capitalista do valor. Como tal, o Estado e sua dimensão legal na forma do Direito
se manifestam como forma sob a qual se põem e se medeiam as contradições da
relação prática e categorial entre capital e trabalho.
79
77
Teixeira, F. J. Economia e luta de classes no capitalismo regulado: ensaios sobre a crise da
economia social de mercado, p. 71.
78
Ibidem.
79
“Pensar a ‘esfera’ do Estado e do direito por este ponto de vista quer dizer, antes de tudo, que
ela nada mais é do que a forma jurídica que medeia as relações entre os portadores privados
de mercadorias, isto é, eles são a forma jurídica própria da troca privada universalizada, e isto
39
No subcapítulo anterior, expus como as formas jurídicas se constituem
nas relações de troca e como se mantêm na produção capitalista de mercadorias,
na medida em que esta última requer e mantém o princípio de equivalência.
Contudo, é preciso ainda expor como o Direito e o Estado, compreendidos como
formas mais desenvolvidas das relações jurídicas, não apenas são exigidos e
requeridos pela produção capitalista de mercadorias, mas, para além disso, se
tornam necessários. Isto é, é preciso expor como a lógica da produção mercantil
capitalista produz necessariamente, a partir de uma necessidade que lhe é
imanente, aquilo mesmo que é preciso para que as relações de troca possam ter
segurança jurídica, a saber, o Estado e seu sistema legal. É o que farei neste
último subcapítulo.
80
3.3.1 A relação lógico-dialética entre aparência e essência do sistema
produtor de mercadorias
Na exposição marxiana da forma-valor, na qual se parte da sua forma
elementar (a mercadoria) e se chega até sua forma mais desenvolvida (o capital),
pode ser pensada a exposição das formas jurídicas de igualdade, liberdade,
propriedade etc. As leis do intercâmbio, que têm como princípio a equivalência
entre as mercadorias, em cada uma das formas de manifestação do valor (DM
compra, e MD venda), são obedecidas incontestavelmente. É no que insiste
Marx:
é o que caracteriza o capitalismo e somente ele. Mas quer dizer também que o Estado, o
direito e a política se situam na lógica da troca de equivalentes (que regula as trocas
mercantis) e que, segundo essa lógica, tanto viabiliza quanto obscurece a essência do sistema
que é a troca de não-equivalentes no ciclo completo do capital (D-M-D'), no qual dinheiro se
converte em mais dinheiro através da exploração do trabalho vivo”. (Aquino, J. E. F. A
atualidade da crítica do Estado, p. 7).
80
Para tanto, apoiar-me-ei na sétima seção do Livro I d’O Capital, capítulo XXII, tópico I,
intitulado “O processo de produção capitalista em escala ampliada. Conversão das leis de
propriedade da produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista”, e nas discussões
de Ruy Fausto sobre a categoria da interversão (em Marx: Lógica e Política), bem como no
terceiro capítulo da tese de doutorado de F. J. S. Teixeira (Economia e luta de classes no
capitalismo regulado: ensaios sobre a crise da economia social de mercado), no qual ele
apresenta a emergência do Estado de forma necessária, também em diálogo com a citada obra
de Ruy Fausto.
40
Um dos contraentes vende sua força de trabalho, o outro a compra.
O primeiro obtém o valor de sua mercadoria, cujo valor de uso o
trabalho é com isso alienado ao segundo. Esse transforma a partir
de agora os meios de produção já pertencentes a ele, com ajuda de
trabalho do mesmo modo a ele pertencente, em um novo produto,
que igualmente por isso lhe pertence por direito.
81
Nesse processo, em nada se compromete o princípio da equivalência.
Com a inserção da força de trabalho no mundo das mercadorias, ela se relaciona
na circulação por meio da lei do valor. Se é assim, em que consistiria
logicamente a contradição pela qual, com a produção de mais-valia, se insere na
circulação um valor a mais que constitui uma relação entre diferentes, embora
apareça e se mantenha, na própria circulação, como uma relação entre iguais?
Para pensar categorialmente essa contradição, posta pelo desenvolvimento da
forma-capital na passagem da circulação à produção, Marx utiliza-se das
determinações reflexivas de essência e aparência. Sobre estas determinações,
dizia assim Hegel:
A essência deve aparecer. [...] O aparecer é a determinação
mediante a qual a essência não é ser, mas essência; e o aparecer
desenvolvido é o fenômeno [a aparição]. A essência portanto não
está atrás ou além do fenômeno [aparição]; mas, porque é essência
que existe, a existência é fenômeno [aparição].
82
Observe-se que se trata de uma aparição necessária, pois, ressalte-se, “a
essência precisa (muss) aparecer”, conforme diz Hegel numa outra tradução
possível dessa mesma passagem. Enquanto aparência necessária da produção do
capital e da produção capitalista de mercadorias, a troca de equivalentes e a
igualdade jurídica compõem a verdade mais imediata (aparente) dessa forma de
sociedade. Com a inserção da força de trabalho humano no mundo das
mercadorias, em que sua determinação de valor dá-se pela lei da equivalência,
torna-se possível a existência do capital enquanto forma mais desenvolvida da
forma-valor. Ora, aparição do dinheiro e da mercadoria enquanto capital na
81
Karl, Marx. O capital, vol. I, tomo 2, p. 167 (p. 610).
82
Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas, § 131. Entre colchetes a alternativa posta pelo
tradutor da edição citada para a tradução da palavra alemã Erscheinung: “fenômeno” ou
“aparição”.
41
esfera da circulação, onde prevalece a equivalência, é o aparecer de sua essência:
a produção do capital. A aparição do capital na circulação, enquanto dinheiro que
compra e enquanto mercadoria a ser vendida, não é senão o desenvolvimento da
forma-valor, na sociedade cuja força de trabalho enquanto mercadoria produtora
de valor é apropriada na circulação e utilizada na esfera da produção.
Parafraseando Hegel, pode-se dizer em termos marxianos: o valor em sua forma
capital é o “suprassumir de si mesmo”, pois o seu desenvolvimento dá-se em
contradição com seu modo de aparição na circulação, regida pela troca de
equivalentes; a produção de capital “não está atrás ou além” da circulação e da
troca de equivalentes, “mas porque é essência que existe, sua existência, posta
em contradição é o fenômeno (ou aparição)”, na circulação. Em outras palavras,
na esfera aparente da circulação, o capital aparece (segundo a lei de equivalência,
enquanto dinheiro, “primeira forma de aparição do capital”), embora de modo
contraditório ao que ele é essencialmente (produção do não-equivalente).
83
Na relação formal jurídica de compra e venda da força de trabalho,
relação que se dá na esfera da circulação entre capitalista e proletário, reina o
princípio da igualdade, da equivalência. Ambos são reconhecidos como livres,
iguais entre si e proprietários de suas mercadorias. Um tem a oferecer sua força
de trabalho, o outro a compra desta por meio do dinheiro. Ambas são as
mercadorias que na sociedade capitalista assumem um papel peculiar: a primeira
produz valor; a segunda manifesta-se como representante universal de todas as
outras mercadorias, ou seja, representante universal do valor. Na esfera aparente
do sistema a circulação , como mercadorias, elas se relacionam obedecendo
ao princípio da equivalência, que “vige quando as trocas são apreendidas como
atos entre indivíduos”. Como tais, igualam-se, aparecem abstratamente com
83
Sobre essa permanência da equivalência sob a produção capitalista, diz F. J. S. Teixeira: “A
produção da mais-valia não anula o princípio da troca de equivalente. As leis da produção de
mercadorias permanecem válidas a despeito de sua conversão em leis de apropriação
capitalista. (...) A conversão das leis da produção em leis da apropriação capitalista não anula
o princípio da troca de equivalência. A mais-valia é uma relação social, que exige tanto a troca
de equivalentes como a de não-equivalentes”. (Teixeira, F. J. S. Economia e luta de classes no
capitalismo regulado: ensaios sobre a crise da economia social de mercado, p. 68).
42
toda sua dureza real como equivalentes. Seus portadores, capitalista e
trabalhador, relacionam-se na esfera da circulação como proprietários de valores
(mercadoria e dinheiro), que, segundo a própria lei do valor, são intercambiáveis.
Como proprietários, por meio do contrato eles se relacionam, legalmente ou não,
como iguais e igualmente livres para decidirem desfazer-se de (trocarem) suas
mercadorias.
Todavia, quando a mercadoria força de trabalho é transportada para a
esfera da produção, e ao ser deste modo usada, ela produz um valor-a-mais do
que o valor pelo qual ela foi adquirida na circulação. Este valor-a-mais, a mais-
valia, retorna, pelas mãos do capitalista, à esfera da circulação e põe-se
novamente em relação com outras mercadorias, numa relação de equivalentes.
Ora, esse mais-valor foi produzido pelo trabalhador e não pertenceria, em tese, ao
capitalista, pois não foi pago ao trabalhador; entretanto, pela lei da troca, lei da
equivalência do valor, ao comprar a mercadoria força de trabalho o capitalista se
apropria legitimamente do uso dessa mercadoria, da sua capacidade de produzir
mais-valor e, portanto, do seu produto (a própria mais-valia).
3.3.2 A “interversão” da equivalência em não-equivalência e a necessidade
do Direito e do Estado
Somente quando a relação entre capitalista e trabalhador, que na
circulação de mercadorias aparece como uma relação entre indivíduos portadores
de mercadoria e dinheiro, é manifestada como uma relação entre classes, é que se
manifesta o princípio da não-equivalência. Nesse processo, a troca se transforma
em não-troca: interverte-se em seu contrário. Diz Marx:
O intercâmbio de equivalentes, que apareceu como a operação
original, se torceu de tal modo que se troca apenas na aparência ,
pois, primeiro a parte do capital que se troca por força de trabalho
nada mais é que uma parte do produto de trabalho alheio,
apropriado sem equivalente, e segundo, ela não somente é reposta
por seu produtor, o trabalhador, como este tem de repô-la com
novo excedente. A relação de intercâmbio entre capitalista e
trabalhador torna-se portanto apenas mera aparência pertencente ao
processo de circulação, mera forma, que é alheia ao próprio
43
conteúdo e apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força
de trabalho é a forma. O conteúdo é: o capitalista troca
[transaciona, umsetzt] sempre novamente uma parte do trabalho
alheio já objetivado, de que ele se apropria incessantemente sem
equivalente, contra um quantum maior de trabalho vivo alheio.
84
A contradição que se instaura na transformação de equivalência em não-
equivalência pelo uso da força de trabalho como mercadoria é a contradição
essencial ao processo de produção que a tem como tal: a contradição de classe
entre os proprietários desta forma específica de mercadoria (força de trabalho) e
os que se apropriam dela por meio da compra. A mercantilização da força de
trabalho instaura no seio da sociedade a existência de duas classes distintas entre
si, mas que se relacionam por meio da compra e venda, no nível individual, como
iguais. Ao alienar sua capacidade produtiva, servindo-se dela como uma
mercadoria, a classe dos trabalhadores possibilita à classe capitalista a utilização
dessa capacidade como mercadoria, que tem no seu uso, na produção, a
capacidade de produzir mais-valor. Esse mais-valor, enquanto excedente de
trabalho apropriado pelo capitalista permite a este se reinserir na circulação como
proprietário desse mais-valor e com ele comprar, obedecendo ao princípio de
equivalência, mais força de trabalho e/ou outras mercadorias. Este mais-valor,
tendo sido produzido pelo trabalhador e apropriado pelo capitalista, permite,
pois, a este último, comprar mais força de trabalho, que produzirá mais-valor,
que retornará à circulação e comprará mais força de trabalho, e assim por diante.
Em todo esse processo, que é o processo de produção e reprodução do
capital, a equivalência se converte em seu contrário (isto é, na tradução proposta
por Ruy Fausto, se “interverte”):
84
Karl, Marx. O capital, vol. I, t. 2, p. 166, tradução levemente modificada (p. 609). Para Ruy
Fausto, “todas as diferenças individuais desaparecem na perspectiva da acumulação que só
considera a relação entre classe e classe e por isso a compra da força de trabalho deixa de
ser uma verdadeira compra: o que o capitalista dá ao operário (à classe operária) em forma de
salário é na realidade uma parte da riqueza criada pela própria classe operária. Riqueza que,
ademais, é substituída por um novo produto um novo sobreproduto criado sempre pela
classe operária. Assim, não há mais equivalentes nem a rigor troca, mas apropriação sem
equivalente do trabalho alheio”. (Fausto, R. Marx: Lógica e Política. Investigações para uma
reconstituição do sentido da dialética, tomo I. São Paulo: Editora brasiliense, 1987, p. 48).
44
Na medida em que a mais-valia, na qual consiste o capital adicional
número I, foi o resultado da compra da força de trabalho por uma
parte do capital original, compra que correspondeu às leis do
intercâmbio de mercadorias e, juridicamente considerada, não
pressupõe mais do que a livre disposição por parte do trabalhador
sobre suas próprias capacidades, por parte do possuidor de dinheiro
ou mercadorias sobre os valores que lhe pertencem; na medida em
que o capital adicional número II etc. é simples resultado do capital
adicional número I, conseqüência, portanto, daquela primeira
relação; na medida em que cada transação isolada corresponde
constantemente à lei do intercâmbio de mercadorias, isto é, o
capitalista sempre compra a força de trabalho e o trabalhador
sempre a vende, e queremos mesmo admitir que por seu valor real,
a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, baseada na
produção de mercadorias e na circulação de mercadorias,
evidentemente se converte inevitavelmente mediante sua dialética
própria , interna, inevitável, em seu contrário direto.
85
É justamente aí que podemos identificar o surgimento necessário do
Direito e do Estado como forma social na qual esta contradição, não presente na
circulação simples de mercadorias, aparece na plenitude da existência do sistema
de produção mercantil. Se na troca simples de mercadorias as formas jurídicas
protoformas do Direito determinam-se pelas necessidades imanentes às
próprias relações econômicas a elas correspondentes, com o desenvolvimento (na
exposição de Marx) das relações de produção capitalistas elas precisam alcançar,
de forma igualmente necessária, um nível de desenvolvimento que corresponda
às e seja capaz de mediar e absorver as contradições inerentes à forma-valor
enquanto forma-capital, enquanto produção de não-equivalentes.
86
Em outras palavras, torna-se uma necessidade da forma-capital a
imanência de uma forma jurídica mais desenvolvida, na qual e pela qual se
medeiem as contradições essenciais do capital e se mantenha a aparente
harmonia das relações econômicas capitalistas, harmonia que se afirma pela
85
Karl, Marx. O capital, vol. I, t. 2, p. 166, tradução levemente modificada (p. 609).
86
Sobre isso, afirma Teixeira: “quando se considera o processo capitalista no fluxo ininterrupto
de sua renovação, ou seja, quando se passa do mundo da experiência vivida pelos indivíduos
para o das classes sociais, instaura-se, assim, uma contradição entre o mundo da aparência e o
da essência do sistema. Porque contraditória, essa relação entre essência e aparência não pode
ser abandonada a si própria. Ela exige uma forma social para se desenvolver e realizar-se”.
(Teixeira, F. J. S. Economia e luta de classes no capitalismo regulado: ensaios sobre a crise
da economia social de mercado, p. 68).
45
permanência, ainda que e somente como aparência, do princípio de equivalência
e igualdade nestas relações, próprias à circulação. O princípio econômico da
equivalência, tanto quanto o princípio jurídico da igualdade, da propriedade e da
liberdade, se mantém como forma aparente do seu contrário, no qual ele mesmo
se converte. É o que explica Marx:
Originalmente, o direito de propriedade apareceu-nos fundado
sobre o próprio trabalho. Pelo menos tinha de valer essa suposição,
que somente se defrontam possuidores de mercadorias com iguais
direitos, e o meio de apropriação de mercadoria alheia porém é
apenas a alienação da própria mercadoria e esta é produzida apenas
mediante trabalho. A propriedade aparece agora, do lado do
capitalista, como direito de apropriar-se de trabalho alheio não-
pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como
impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A
separação entre propriedade e trabalho torna-se consequência
necessária de uma lei que, aparentemente, se originava em sua
identidade.
87
Esse fenômeno em que o princípio da equivalência se transforma em
não-equivalência, o direito à propriedade do trabalho em desapropriação (do lado
do trabalhador) e apropriação não-paga (do lado do capitalista), fenômeno este
que se constitui na relação contraditória entre a aparência (em que reina a
equivalência) e a essência do sistema (em que se produz a não-equivalência),
Marx o apresenta, na seção VII do capital, sob a categoria da interversão (ou
conversão, Umschlag).
88
O que pretende com essa categoria é expressar aquela já
exposta contradição interna ao processo de produção do capital, em que o
conteúdo da produção capitalista é, na aparência do sistema, apresentado na
forma do seu contrário. O essencial ao capitalismo, que é a produção de valor e
sua reprodução (enquanto produção e realização de mais-valor) manifesta-se na
forma aparente da troca de equivalentes. Na exposição marxiana, essa
contradição só aparece justamente quando se passa da aparência do sistema à sua
essência, ou seja, quando se passa da circulação simples de mercadoria para a
87
Karl, Marx. O capital, vol. I, t. 2, p. 166 (p. 609-610).
88
No texto alemão de Marx, encontramos o termo Umschlag, que pode ser traduzido por
conversão em seu contrário, mudança, giro etc. Na tradução brasileira de Regis Barbosa e
Flavio Kothe de O Capital, editada pela Abril Cultural, o termo escolhido é o de “conversão”;
já Ruy Fausto, em Marx Lógica e Política, opta por traduzi-lo por “interversão” .
46
produção capitalista de mercadorias. Nessa passagem, é que o princípio
econômico (e jurídico) da equivalência se interverte, se converte em seu
contrário. A interversão se apresenta nessa exposição das formas jurídicas, pois
na passagem da aparência à essência do sistema, elas próprias convertem-se em
seus contrários.
É a necessidade do princípio de equivalência na esfera aparente da
circulação na medida em que ela, pela interversão, é condição para a produção
de mais-valia que torna necessária a própria lei, o próprio estabelecimento
positivo legal das formas jurídicas. Os princípios desse estabelecimento são a
igualdade, a liberdade e propriedade juridicamente reconhecidas, cujas
protoformas se constituem nas mais simples e cotidianas relações de compra-e-
venda. Em outras palavras, a positivação da lei emerge de modo necessário da
produção capitalista porque é a forma jurídica adequada do princípio de
equivalência, base da apropriação capitalista do não-equivalente. Como explica
Ruy Fausto, na passagem da aparência à essência do sistema, “a posição da lei se
impõe porque a igualdade dos contratantes se interverte no seu contrário, porque
a lei (o primeiro momento) contém em si o princípio do seu contrário”.
89
Logo, é porque a troca se torna numa não-troca, a equivalência se torna
em não-equivalência, que as categorias jurídicas de igualdade, propriedade etc.
se desenvolvem na esfera sistêmica da essência de modo contrário ao que
aparecem na circulação, isto é, convertidas em seus contrários. E é justamente
por conta dessa interversão/conversão, que o Estado e o Direito, como esferas da
legalidade jurídica, nas quais se afirma o próprio princípio da igualdade e da
equivalência, aparecem como uma necessidade do próprio desenvolvimento do
89
Fausto, R. Marx: Lógica e Política, t. II, p. 300. “Que no capitalismo o homem se interverte
em não-homem, a liberdade em não-liberdade, a riqueza em não-riqueza, a propriedade em
não-propriedade se poderia ver, primeiro mostrando simplesmente como os predicados dessas
determinações, para o caso do capitalismo, estão em contradição com os seus sujeitos: com
efeito, a liberdade burguesa é liberdade do capital, a propriedade privada burguesa é menos
propriedade do indivíduo sobre o capital do que propriedade do capital sobre ele mesmo, a
riqueza burguesa é de fato pobreza (subjetiva), o homem (o operário, o capitalista) é na
realidade um ‘não-homem’”. (Ibidem, t. I, p. 46-47).
47
capital.
90
Justamente aí identificamos, na crítica da economia política exposta
n’O Capital, a apresentação da forma igualdade jurídica e suas correspondentes
formas de consciência social enquanto expressões invertidas, porém necessárias,
da produção capitalista. Marx atribui, portanto, ao valor-capital a verdade da
identidade que aparece na troca de equivalentes, esfera esta da qual o Direito e o
Estado se constituem em formas jurídicas mais desenvolvidas e, portanto, em
aparência ética de igualdade e liberdade numa sociedade em essência desigual.
90
É o que afirma F. J. S. Teixeira: “porque as determinações da aparência do sistema, tais como
liberdade, igualdade e propriedade, se convertem em não-liberdade, não-igualdade e não-
propriedade, é que a relação jurídica tem que ser posta como lei. Dizendo de outra forma, a
posição da lei se impõe porque a troca de equivalente (...) se converte numa troca de não-
equivalente”. (Teixeira, F. J. S. Economia e luta de classes no capitalismo regulado: ensaios
sobre a crise da economia social de mercado, p. 71).
48
Considerações finais
Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a
raiz é o próprio homem.
MARX, CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL -
INTRODUÇÃO
Pelo trabalho, objetivação de si, o ser humano adquire uma forma
objetiva no contexto do mundo. O trabalho é a “eterna condição natural do
homem” (Marx), pela qual ele busca satisfazer suas necessidades. A partir de
uma necessidade objetiva, uma matéria natural passa a assumir a forma de um
valor de uso; e a atividade humana que aparece nessa mediação homem-natureza
é o trabalho humano concreto, ou simplesmente trabalho útil. Segundo Marx,
todo trabalho sobre a natureza se faz no interior e pela mediação de uma forma
social determinada. A forma-capital é, pois, uma forma social de relação que tem
sua determinação no próprio trabalho. Entretanto, na forma-capital o trabalho útil
é subsumido pelo trabalho abstrato. O elemento diversificador do trabalho, a sua
qualificação, é subsumida por sua forma abstrata, à sua quantificação, que o põe
numa relação de igualdade com outros tipos de trabalho. É dessa quantificação
do trabalho que se constitui o princípio da equivalência. Assim, os produtos do
trabalho humano, possuindo a mesma quantidade de trabalho, se equivalem.
Na relação de equivalência entre os produtos do trabalho humano, se
estabelece a troca. Esses produtos aparecem na troca como mercadorias, a forma
elementar do valor. Para efetivar a troca os indivíduos mantêm uma relação
mediada por suas mercadorias. Estas são equivalentes, possuem a mesma
quantidade de trabalho em sua fabricação. Seus portadores são seus proprietários;
enquanto tais, podem ir ao mercado trocá-las. No mercado os trabalhos úteis dos
homens abstraem-se de suas qualidades, todos se apresentam como iguais; assim
também ocorre com seus portadores de mercadorias: se reconhecem
reciprocamente como iguais e livres para realizarem suas vontades por meio da
49
troca. Esta se efetiva na forma do contrato, ainda que não necessariamente
manifestado sob a forma legal. É assim que as categorias jurídicas de
propriedade, liberdade, igualdade e contrato aparecem como relações sociais
imanentes às relações mercantis burguesas.
Se na sociedade capitalista a força de trabalho aparece como uma
mercadoria, isso ocorre porque ela corresponde à satisfação de uma necessidade;
ela aparece, portanto, como valor de uso para alguém. Sua aquisição pelo
capitalista tem por objetivo sua realização como valor de uso. Ora, a utilidade da
força de trabalho é produzir valor. Então quem a compra visa à apropriação desse
valor produzido. Mas não de qualquer valor, mas de um valor maior do que
aquele pelo qual ela foi adquirida. Quando o trabalhador vende a sua força de
trabalho, ele a entrega para ser usada por outro, que a utiliza para produção de
mais-valor. O valor que o capitalista adquire não advém do seu próprio trabalho,
mas do de outrem. Deste modo, emerge a relação entre duas classes de homens: a
de proprietários da força de trabalho (trabalhadores) e a de compradores da força
de trabalho (capitalistas), que a utilizam com vistas à produção de mais-valor.
A produção capitalista, mesmo determinada pela lei da equivalência, visa
à produção do não-equivalente. É pela compra da mercadoria força de trabalho
na circulação, em que impera e se realiza o princípio de equivalência, a lei do
valor, que se estabelecem as condições para a produção do não-equivalente na
produção, onde a força produtiva do trabalho gera um valor a mais do que o seu
valor original (pelo qual se o adquiriu na circulação). Nessa conversão
(interversão) do equivalente em não-equivalente, convertem-se também: a
propriedade em não-propriedade, a liberdade em não-liberdade, a igualdade em
não-igualdade etc. Daí manifesta-se a emergência de uma forma jurídica legal, da
instituição jurídico-formal, dessas relações sociais de produção. É justamente a
produção do desigual que fundamenta o Direito e o Estado. É precisamente o
conflito capital-trabalho que os determina. Neles se dissolvem formalmente
(aparentemente) as contradições capitalistas: a não-propriedade se constitui em
50
apropriação legítima; a não-liberdade na liberdade abstrata do cidadão, membro
do Estado; a não-igualdade em uma pseudo-igualdade pela qual os homens se
apresentam no mercado como compradores e vendedores de mercadorias
(incluindo-se a força de trabalho).
A alienação do trabalho pelo homem se manifesta como resultado de
uma época em que o próprio trabalho em sua concretude é subsumido à sua
determinação abstrata. Dito de outra maneira, o trabalho abstrato, que é capaz de
produzir valor, forma elementar do capital, oculta como que por uma mística sua
dimensão concreta. Como tal, a mercadoria enquanto materialização deste valor
produzido pelo trabalho aparece também como que autonomamente determinada
diante dos homens, seus próprios produtores. E sendo o fim do valor não sua
existência elementar sob a forma-mercadoria, mas sua existência enquanto
capital, este se desenvolve e se apresenta também como uma existência apartada
e autônoma da atividade humana que o produziu, como uma força sobre-humana.
Para Marx, as relações jurídicas e políticas, no Direito e no Estado, compõem
essa experiência social alienada.
Pensar esse desenvolvimento autônomo da forma-capital não como um
desenvolvimento natural de leis eternas e imutáveis, tampouco como
determinação de si do seu conceito que se efetiva a si mesmo e se constitui como
realidade objetiva, é o alvo da postura metodológica fundada por Marx. Essa
postura se apóia em uma fundamentação materialista e histórica, necessária a
uma teoria que pretende pensar de forma crítica o real. Postura que também
aponta para os próprios homens como sujeitos da história e que, como tais,
desenvolvem por meio de sua atividade produtiva as condições materiais de
produção e satisfação de suas necessidades: fazem a história na medida em que
se relacionam entre si e transformam praticamente a natureza. Esses sujeitos, na
condição de produtores, não aparecem isolados, mas relacionados entre si;
envolvidos em relações que configuram a própria forma na qual sua atividade
produtiva se desenvolve.
51
Para Marx, a apropriação da mercadoria força de trabalho é o que
possibilita a produção de mais-valia; a mais-valia, por sua vez, potencializa a
acumulação de capital, e igualmente as desigualdades sociais e econômicas. A
questão social, expressão da luta de classes antagônicas imanente ao capitalismo,
é o resultado dos conflitos advindos da negação prática pela classe explorada, das
relações sociais alienadas. Produzem-se assim práticas humanas, práxis sociais
dirigidas à busca da superação das manifestações contraditórias da lógica da
acumulação de capital. O conflito capital-trabalho aparece na forma da expressão
das contradições constitutivas de uma sociedade que, por meio da apropriação da
capacidade humana produtiva, estabelece uma cisão entre os homens que se
manifesta na forma da luta de classes.
O próprio desenvolvimento do capitalismo e as contradições sociais e
econômicas por ele geradas requerem uma forma social na qual repousem e pela
qual se medeiem essas contradições de classe. O Estado aparece assim como
mediação das contradições capitalistas e, simultaneamente, como aparência
necessária da produção capitalista. A dissolução dessa exploração legalizada pela
instituição jurídico-política na sociedade capitalista (o Estado) tem como
pressuposto a dissolução mesma do princípio que a constituiu: o da lei do valor.
Se a exploração capitalista, a apropriação privada do produto do trabalho e a
produção da mais-valia e do capital, como resultado dessa apropriação, requerem
a instituição do Direito e do Estado, então a crítica do valor contém em si a
crítica pela raiz do Direito e do Estado. Em contrapartida, a afirmação desses é
necessariamente a afirmação da lógica do capital.
52
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