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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CIÊNCIA EM QUADRINHOS: RECURSO DIDÁTICO EM
CARTILHAS EDUCATIVAS
MÁRCIA RODRIGUES DE SOUZA MENDONÇA
Recife
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CIÊNCIA EM QUADRINHOS: RECURSO DIDÁTICO EM
CARTILHAS EDUCATIVAS
Márcia Rodrigues de Souza Mendonça
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras, da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutora
em Lingüística.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Marcuschi
Co-Orientadora: Prof
a
. Dra. Angela Paiva Dionísio
Recife
2008
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Mendonça, Márcia Rodrigues de Souza
Ciência em quadrinhos: recurso didático em
cartilhas educativas / Márcia Rodrigues de Souza
Mendonça. - Recife: O Autor, 2008.
223 folhas: il., quadros.
Tese (doutorado) – Universidade Federal de
Pernambuco. CAC. Lingüística, 2008.
Inclui bibliografia e anexos.
1. Histórias em quadrinhos. 2. Ciência -
Linguagem. 3. Lingüística aplicada. 4. Quadrinização.
5. Cartilha educativa. 6. Cientificidade. I.Título.
801 CDU (2.ed.) UFPE
410 CDD (20.ed.) BC2008-13
A Pedro, cujo nascimento marcou o primeiro ano do resto da minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradecimentos são sempre um risco: de esquecer, de não fazer justiça. Ainda
assim, insisto e expresso meu sincero Muito obrigado!
Ao Prof. Luiz Antonio Marcuschi – o querido Mestre - não pelo seu saber, sua
qualidade mais óbvia, mas por sua generosidade e orientação inspiradora, que
tem ajudado amigos, conhecidos e desconhecidos – sem distinção - a
acreditarem que podem conhecer mais.
A Ângela, pela co-orientação competente e dedicada na condução deste
trabalho, apesar das minhas limitações e teimosias, tratadas com doses
equilibradas de humor e pressão.
Às Prof
as
. Beth Marcuschi e Judith Hoffnagel, pelas pertinentes observações
feitas na pré-banca as quais, se não foram consideradas, atribuo às minhas já
citadas teimosias e limitações.
Ao Prof. Waldomiro Vergueiro, pela gentil recepção e incentivo ao meu
trabalho.
A meu filho Pedro, que me ensina, todos os dias, que a vida acontece sem
rascunho.
A Roberto, porque todos os dias são manhãs, desde que nos encontramos.
A minha mãe, presença forte, mão amiga, exemplo.
A meu pai, Fernando, e a meus irmãos Fernando Augusto, Paulinho e Ricardo,
por estarem em mim.
Às poderosas amigas Anny, Beth, Cris, Mari e Tina, porque juntas somos a
unidade na diversidade.
A Clecio, pela sincera amizade construída em vários papéis – aluno, monitor,
ex-aluno, co-autor, amigo.
A Dina, pelos sucos de laranja e lembretes de horário, pela dedicação sem
limites.
A Abuêndia Padilha, Ana Lima e Cláudia Mendonça, que além de colegas de
trabalho, são amigas que me incentivaram nesse processo (e me garantiram
que ele terminaria).
Aos meus alunos, representados pelos monitores e ex-monitores, com quem
tenho tido o prazer de conviver dentro e fora da sala de aula: Anny, Clecio,
Djário, Eliana, Gabriela, Guilherme, Jaciara, Jorge, Kassandra, Morgana,
Nadiana, Rafaela(s), Renata e Tatiana.
Aos amigos e colegas de pós-graduação, especialmente a Ana Regina,
Cynthia, Eduardo Vieira, Gláucia, Karina, Leonardo e Normanda que, em
solidariedade e por conhecimento de causa, evitaram a pergunta “Como vai a
tese?”.
A todos os que, muito gentilmente, se preocuparam em procurar cartilhas e
quase tudo o mais que fosse quadrinizado.
A Marina Valadão, pelas conversas e materiais sobre educação em saúde,
tema que ainda espera uma abordagem discursiva.
Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, muito
especialmente a Diva (ou musa), cuja tranqüilidade acompanha mestrandos e
doutorandos há mais de dez anos.
A todos aqueles que me ajudaram e torceram por mim e, injustamente, não
foram citados.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 1
CAPÍTULO 1 - Quadrinhos e quadrinização............................................................... 15
1.1 Conceituando quadrinização................................................................................ 15
1.2. História das histórias em quadrinhos................................................................... 16
1.3. Quadrinhos no Brasil ........................................................................................... 22
1.4 Quadrinização: características e usos.................................................................. 32
1.5 Recursos de quadrinização relevantes para a análise de cartilhas
quadrinizadas ............................................................................................................. 41
1.5.1 Desenhos: caricatura e iconicidade............................................................... 44
1.5.2 Letreiramento................................................................................................. 56
1.5.3 Tempo e espaço nas histórias em quadrinhos: transição entre cenas.......... 59
1.5.4 Planos e ângulos de visão............................................................................. 64
1.5.5 Quem nos olha na imagem............................................................................ 71
CAPÍTULO 2 - Do entorno para o interior da cartilha quadrinizada: funções
sociais e letramento..................................................................................................... 76
2.1 Letramento situado: os gêneros em seu contexto de uso.................................... 76
2.2. Cartilha, cartilha educativa, cartilha quadrinizada: o gênero muda com o
tempo.......................................................................................................................... 83
2.3 (Inter)faces da cartilha quadrinizada: propaganda institucional, didatização e
divulgação científica ................................................................................................... 87
CAPÍTULO 3 - A linguagem em cartilhas quadrinizadas: ciência e cotidiano...... 113
3.1 Produção discursiva no âmbito da ciência: em busca da cientificidade............. 114
3.2 Linguagem e ciência, linguagem da ciência....................................................... 122
3.3 Cientificidade verbal em cartilhas quadrinizadas................................................ 128
3.3.1 Porta-vozes da ciência em CQs e seus papéis sociais............................... 129
3.3.2 Jargão técnico e repertório comum ............................................................. 146
3.3.3 Tipologia textual........................................................................................... 157
3.4 Cientificidade visual............................................................................................ 163
3.4.1 Tipo de desenho.......................................................................................... 165
3.4.2 Plano e ângulo de visão............................................................................... 174
3.4.3 Transição entre cenas ................................................................................. 179
3.4.4 Letreiramento 184
CAPÍTULO 4 - Diversidade de gêneros em cartilhas quadrinizadas:
cientificidade e didatização....................................................................................... 188
4.1 Intergenericidade: é cartilha ou história em quadrinhos?................................... 188
4.2 Diversidade de gêneros nas cartilhas quadrinizadas: funções retóricas............ 195
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 211
Referências ................................................................................................................. 216
ANEXOS............................................................................................................................ I
ANEXO 1...................................................................................................................... II
ANEXO 2...................................................................................................................XIV
ANEXO 3....................................................................................................................XX
ANEXO 4................................................................................................................. XXX
ANEXO 5..............................................................................................................XXXIX
ANEXO 6.................................................................................................................XLVI
RESUMO
Este estudo investiga como a quadrinização ajuda a apresentar a informação
científica no gênero cartilha educativa quadrinizada (CQ), integrante de
campanhas de saúde. Nesse gênero, o caráter lúdico dos quadrinhos pode
envolver o leitor, as imagens podem apresentar-lhe informações científicas de
modo claro e os papéis sociais representados na narrativa podem convencê-lo
da credibilidade do que está sendo dito. O referencial teórico abrange as
perspectivas da multimodalidade, da nova retórica e da semiótica social, tendo
a noção de letramento situado e os estudos de gênero como pano de fundo.
Compõem o corpus seis CQs de prevenção às DSTs/aids destinadas a leitores
diversificados. Os resultados indicam que a construção do status de
cientificidade da informação em CQs se baseia nos limites e possibilidades da
quadrinização, nos propósitos didáticos do gênero e no público-alvo: a)
personagens em papéis sociais legitimados socialmente, para dar voz à
ciência; b) predominância do repertório de uso comum e das gírias, em
detrimento do jargão técnico; c) transição entre quadros cena-pra-cena e cena-
pra-aspecto na exemplificação; d) uso de primeiro plano e close-up para
destacar procedimentos e envolver o leitor; e) preferência pelo traço estilizado
ou caricatural, estando os poucos desenhos científicos à parte da narrativa; f)
entre os gêneros intercalados na cartilha, preferência pelo diálogo informal; g)
preferência pelas seqüências argumentativa e expositiva para apresentar as
informações científicas. O uso da quadrinização na apresentação de
informações científicas é um tema de pesquisa promissora, pois envolve
múltiplos aspectos do funcionamento dos gêneros constituídos com tal recurso.
Palavras-chave: quadrinização, cartilha educativa, cientificidade.
ABSTRACT
This study investigates how “cartoonization” (“quadrinização”) helps to present
scientific information in the genre of educative cartoonized leaflets (CL), which
are part of health care campaigns. In this genre, the playful aspect of comics
can involve the readers, and its images can help to clearly present scientific
information to them. Moreover, the social roles played in the narrative can
convince them of the credibility of what is stated. The theoretical referential
involves the perspectives of multimodality, the rhetoric and social semiotics,
taking into consideration the notion of situated literacy and genre studies as
background. The corpus of the research is constituted of six CLs about the
prevention of STIs/AIDS addressed to a variety of readers. Results indicate that
the construction of the scientific status of information in CLs is based on the
limits and possibilities of “cartoonization”, on the didactic purposes of the genre
and on the target-reader: a) characters playing legitimated social roles by the
reader, giving voice to science; b) predominance of regular repertoire and
slangs, instead of the technical language; c) transition of scenes – scene-to-
scene and scene-to-aspect – when exemplifying; d) use of first plan and close-
up to highlight procedures and to involve the reader; e) preference for styling or
cartoon trace, when the few scientific drawings are apart from narrative; f)
preference for informal dialogue, among alternate genres that constitute each
leaflet; g) preference for exposing and argumentative structures to present
scientific information. The use of “cartoonization” in order to present scientific
information is a promising research topic, since it involves multiple aspects
related to the functioning of the genres constructed with such resource.
Key words: cartoonization, cartoonized leaflets, scientificness
RESUMÉE
Cette étude est une enquête comme la «quadrinização» aide à présenter les
informations scientifiques dans le genre feuilleton éducatif en bande desinée
(FBD), partie intégrante des campagnes du governement sur la santé. Dans ce
genre, le caractère ludique des bandes desinées peut impliquer le lecteur, les
images peuvent aider à lui présenter des informations scientifiques de façon
claire et les papiers sociaux représentés dans le récit peuvent le convaincre de
la crédibilité de ce que’on y dit. Le référentiel théorique inclut les perspectives
de multimodalité, de la nouvelle rhétorique et de la sémiotique sociale, en ayant
la notion de litéracie et les études de genre comme base. Compose le corpus
six FBDs de prévention aux maladies sexuellement transmissibles (MST) /sida
destinées à des lecteurs diversifiés. Les résultats nous indiquent que la
construction du statut de scientificité des informations dans FBDs se base dans
les limites et possibilités de la «quadrinização», intentions didactiques du genre
et dans le public qui est son but: a) personnages dans des papiers sociaux
légitimés par le lecteur, pour donner voix à la science; b) prédominance du
répertoire commun et des argots, au détriment de le jargon technique; c)
transition entre des tableaux scène-à-scène et scène-à-détail dans les
exemples; d) utilisation de premier plan et close-up pour détacher des
procédures et impliquer le lecteur; e) préférence par la trace stylizée ou
caricaturale, tandies que peu de dessins scientifiques son separé de la
narration; f) entre les genres intercalés dans le feuilleton, préférence par le
dialogue informel; g) préférence pour des structures argumentatives et
expositives pour présenter les informations scientifiques. L'utilisation de la
«quadrinização» dans la présentation d'informations scientifiques est une
topique de recherche très riche, avex des multiples aspects qui font partie du
fonctionnement des genres qui utilisent une telle ressource.
Mots clés: quadrinização, feuilleton éducatif en bande desinée, scientificité
.
Listas de siglas
CQ – cartilha quadrinizada
DST – doença sexualmente transmissível
HQ – história em quadrinhos
Lista de Quadros
Quadros
Pág.
Quadro 1 Corpus (cartilhas quadrinizadas de promoção de
saúde)
5-6
Quadro 2 Obras quadrinizadas em diversos domínios discursivos 36-38
Quadro 3 Tipos de planos em HQs (Vergueiro, 2007: 40-43) 65-66
Quadro 4 Tipos de ângulos de visão em HQs (Vergueiro, 2007:
43-45)
70-71
Quadro 5 Movimentos retóricos das CQs 89
Quadro 6 Tipos de ancoragem institucional nas CQs 90
Quadro 7 Estratégias retóricas para alcançar o estatuto de
cientificidade
124-125
Quadro 8 Personagens e papéis sociais em CQ1 131-132
Quadro 9 Personagens e papéis sociais em CQ2 135
Quadro 10 Personagens e papéis sociais em CQ3 136-137
Quadro 11 Personagens e papéis sociais em CQ4 138-139
Quadro 12 Personagens e papéis sociais em CQ5 140-141
Quadro 13 Personagens e papéis sociais em CQ6 143-144
Quadro 14 Seleção lexical sobre prevenção de DSTs/aids em CQs. 148-150
Quadro 15 Jargão técnico e representação social da autoridade em
CQs.
151
Quadro 16 Agrupamentos tipológicos segundo Dolz e Schneuwly
([1996]2004)
158
Quadro 17 Seqüências tipológicas na apresentação de informações
sobre DSTs/aids em CQs
159-161
Quadro 18 Seqüências narrativas na apresentação de informações
sobre DSTs/aids em CQs
161
Quadro 19 Função discursiva dos gêneros inseridos nas CQs 196-197
1
INTRODUÇÃO
No século XX, a humanidade presenciou o mais acelerado
desenvolvimento tecnológico e científico em toda a história. Paralelamente à
produção científica, cresceu, também, a necessidade de divulgar esses
conhecimentos, o que foi possibilitado pelos meios de comunicação de massa.
Apesar de a escola ter o papel institucional de levar esse tipo de conhecimento
às pessoas, sua estruturação peculiar não permite que se contemplem todas
as novidades, dada a rapidez com que avança a ciência. Os meios de
comunicação de massa têm assumido, em parte, essa função e têm-se
constituído como o principal vetor de disseminação do conhecimento científico
atual. Reportagens e notícias (radiofônicas e televisivas) sobre avanços da
ciência funcionam como “teleaulas”, revistas de divulgação científica
assemelham-se a “livros didáticos”, e notícias e reportagens impressas
funcionam como textos para estudo, nesse “currículo contemporâneo de
ciências” fora dos muros escolares.
Arrisco-me a dizer que, hoje em dia, boa parte da população que mora
em grandes cidades brasileiras
1
, inclusive das classes menos privilegiadas, já
ouviu falar sobre a camada de ozônio, a reciclagem de lixo, os problemas
ocasionados pelo colesterol e os benefícios da atividade física para a saúde,
citando apenas alguns exemplos. E isso se deve, principalmente, a
reportagens, notícias e campanhas institucionais, veiculadas no rádio e na
televisão. Para Moirand (2006):
“a maioria dos discursos de divulgação da ciência e da
tecnologia dirigidos ao grande público (...) se transmitem pelos
meios massivos de comunicação: a imprensa, o rádio, a
televisão e a internet. A grande maioria dos cidadãos das
democracias desenvolvidas atuais encontram casualmente a
informação científica” (s.p.)
2
Mas o conhecimento científico não mais se restringe ao direito de
formação integral dos cidadãos, ao direito de ter acesso à informação.
1
Restrinjo a observação aos grupos urbanos porque ainda há “grotões” isolados em áreas
rurais, como certos grupos indígenas. Embora esses grupos sejam cada vez mais raros, o seu
acesso a informações científicas é bastante reduzido ou mesmo inexistente.
2
As traduções de trechos de obras em língua estrangeira são de minha responsabilidade.
2
Atualmente é também uma questão de saúde pública. De fato, algumas
informações chegam às pessoas, mas nem sempre elas entendem os
conceitos ou as relações causais entre os fenômenos. No caso das campanhas
de educação em saúde, é pequeno o número de pessoas que modificam suas
atitudes em prol da melhoria da sua saúde.
Sabe-se que tais mudanças não são conseqüência direta do acesso à
informação, pois dependem, também, de fatores socioculturais diversos, a
despeito dos esforços empreendidos por campanhas institucionais
3
. Ainda
assim, divulgar ciência maciçamente é uma necessidade dessas campanhas
de promoção de saúde, já que o público leigo tem o direito de, no mínimo,
poder acessar informações técnicas sobre as doenças e seu tratamento, numa
linguagem acessível. Para isso, é preciso considerar a heterogeneidade do
público, o que demanda transformações nos próprios textos.
Nesse sentido, têm proliferado gêneros relativamente novos, por
exemplo, histórias em quadrinhos (HQs) de divulgação científica, como as
publicadas em revistas voltadas para a divulgação científica (Ciência Hoje das
Crianças) ou as destinadas a gestantes e pais e mães de crianças pequenas,
publicadas em revistas dedicadas a esse segmento (Crescer, Pais e Filhos);
documentários baseados em sofisticadas animações gráficas, como os
produzidos pela BBC de Londres. Para que possam atender a novas
necessidades, vários gêneros que se situam em outros domínios que não o da
divulgação científica especificamente têm sofrido mudanças. As cartilhas
educativas são um exemplo e têm assumido a aparência de outros gêneros -
história em quadrinhos, caderneta, agenda
4
– de modo a facilitar a identificação
do público leitor com os personagens e situações retratados e a compreensão
das informações por parte dos leitores .
3
Embora o grau de eficácia das campanhas não seja do interesse desta investigação, estudos
na área de Educação em Saúde o discutem, como o de Valadão (2004).
4
A cartilha O caderno das coisas importantes, no formato de agenda, foi lançada pelos
Ministérios da Saúde e da Educação, com o apoio do Unicef, no dia 1º de dezembro de 2006.
Escrita numa linguagem informal, o material se destina a adolescentes. Nela, há espaço para o
jovem escrever suas características, nomes e informações de amigos, registrar “baladas”
inesquecíveis, comidas e músicas favoritas etc. Ao lado disso, traz uma seção de perguntas e
respostas sobre aids e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e textos sobre
masturbação, beijo, tamanho e formato de órgãos genitais e outras partes do corpo. Outro
material lançado pelo Ministério da Saúde foi uma caderneta voltada para prostitutas, com
espaço para orçamento doméstico, dicas de prevenção às DSTs/aids, orientações de
segurança no trabalho, dicas de beleza, etc.
3
Entre essas demandas recentes, está a prevenção, em grande escala,
de doenças, de modo a evitar ou controlar epidemias, como a dengue e a aids,
no caso do Brasil. Uma das peculiaridades dos gêneros usados com tais
propósitos, compartilhada por grande parte dos gêneros contemporâneos,
situados em diversas esferas comunicativas, é o uso intenso de outros
recursos semióticos além da linguagem verbal, como imagens (fotografias,
desenhos, infográficos, esquemas), organização gráfica dos textos (em tópicos,
em boxes, destacados por cores, fontes, etc.), além dos gêneros que se valem
de sons e imagens em movimento na sua constituição.
De fato, o entrecruzamento de linguagens e o crescente espaço
dedicado às semioses não-verbais tornaram-se um padrão recorrente em
vários gêneros mais atuais. Isso pode ser observado em propagandas
institucionais, em textos expositivos de livros didáticos das mais diversas
disciplinas, em artigos de divulgação científica, em cartilhas educativas, etc
5
. A
recorrência à mistura do sistema verbal com imagens para produzir sentido tem
funcionado, nesses contextos, tanto como uma estratégia persuasiva quanto
como um facilitador do acesso à informação.
Assim, meu interesse de pesquisa se volta para o tratamento da
informação científica em cartilhas
6
quadrinizadas (CQs) sobre doenças
sexualmente transmissíveis (DSTs) e aids. Busquei CQs dirigidas a diferentes
públicos: adolescentes, homens adultos pouco escolarizados, homens adultos
escolarizados, casais sorodiscordantes, jovens e praticantes de cultos afro-
brasileiros. Dirijo meu olhar tanto para a apresentação quanto para a
didatização das informações, pois, no caso das CQs, o caráter didático do
discurso é constitutivo do gênero e se imbrica com o caráter de divulgação
científica. Como as cartilhas voltadas à saúde envolvem conceitos científicos,
nem sempre conhecidos pela população em geral, elas assumem, ainda que
indiretamente, o papel de divulgadoras da ciência.
5
Essa é uma característica comum também a outros gêneros que não se destinam a divulgar
ciência, como poemas concretos, poemas visuais veiculados na internet, blogs, gêneros
publicitários em geral, etc.
6
Neste trabalho, usarei os termos “cartilha” e “cartilha educativa” como sinônimos para
designar aquelas elaboradas para campanhas de propaganda institucional. Quando me referir
às cartilhas usadas para alfabetizar, especificarei. O termo “cartilha” é usado pelos órgãos
governamentais para designar esse tipo de material, conforme matéria sobre o lançamento de
uma das cartilhas do corpusDe homem para homem (CQ4) (cf. em
http://sistemas.aids.gov.br/ imprensa/Noticias.asp?NOTCod=59043
. Acesso em 25 jan. 2008).
4
Meu objetivo geral de pesquisa é analisar como a quadrinização
apresenta as informações científicas em CQs. Para isso, é importante situar
esse gênero na intersecção de três âmbitos: a educação, a divulgação
científica e a propaganda institucional. Como as cartilhas concretizam um dever
de Estado, integram as políticas públicas de saúde e, portanto, constituem
peças de propaganda institucional. As campanhas massivas de informação têm
ainda, até certo ponto, um propósito didático: o de ensinar, o de “fazer avançar
o estado de conhecimento no outro” (Beacco & Moirand, 1995: 40, apud Grillo
et al., 2004: 219), embora não no mesmo sentido do que se faz na escola, pois
não se insere em “uma situação ritualizada” (Ibid.). Por fim, para cumprir o
objetivo didático, as cartilhas da área de saúde também precisam promover a
didatização das informações científicas, e isso ocorre de forma multimodal:
pela via da linguagem verbal, pelas imagens e pelos recursos gráficos usados.
A quadrinização é o recurso a partir do qual se escolhem todos os
demais recursos a serem utilizados nas CQs. Com o termo quadrinização,
designo a criação e/ou a adaptação de quaisquer gêneros para a linguagem
dos quadrinhos, no padrão que se fixou a partir do início do século XX: texto
(geralmente narrativo) composto de cenas desenhadas em requadros
(“moldura”) no qual o discurso dos personagens se localiza dentro de balões e
cuja seqüência temporal é estabelecida pelos cortes entre as cenas (sarjeta). O
uso da linguagem dos quadrinhos irá determinar, em grande parte, o modo
como as informações científicas se apresentam para os leitores. Assim é que,
praticamente, todos os critérios de análise do corpus remeterão, em alguma
medida, a essa linguagem.
As potencialidades oferecidas pela quadrinização são didáticas e de
envolvimento do leitor, seja este: a) pela natureza lúdica, pois as HQs são
associadas, quase sempre, à diversão, à leitura descompromissada e,
portanto, supostamente mais leve e fácil; b) pelo enredo, expondo fatos numa
seqüência que funde texto e imagem significativamente, o que pode facilitar a
leitura feita pelos menos escolarizados; c) pelos personagens, que podem
acionar um processo de identificação com os leitores, essencial para o sucesso
da campanha propagandística. McCloud (2005) já aponta essa identificação
dos leitores com os personagens das HQs como um dos segredos da grande
aceitação desse gênero no mundo inteiro.
5
Como objetivos específicos desta pesquisa, enumero os seguintes:
Analisar como a informação científica se apresenta nas CQs seja
por meio de recursos verbais, como o jargão técnico e as
seqüências tipológicas; seja por meio de recursos não-verbais,
como o “jargão visual”, revelado no tipo de desenho selecionado,
nos planos, na transição entre cenas e no letreiramento;
Investigar a utilização de gêneros diversos dentro das CQs como
estratégia de didatização e de reforço de credibilidade do discurso
científico;
Analisar a representação de papéis sociais nos personagens,
principalmente os que dão voz à ciência, manifestada também na
teia de relações sociais estabelecida na narrativa.
O corpus é composto de seis CQs de prevenção às DSTs/aids:
Quadro 1 – Corpus (cartilhas quadrinizadas de promoção de saúde)
Identif. Título
7
Instituição promotora Público-alvo Capa
CQ1
DST – Aids: a
turma pode ficar...
prevenida!
BEMFAM Sociedade
Civil Bem-estar
Familiar no Brasil.
Adolescentes
CQ2
As aventuras do
Super-Protegido, o
bom-de-cama
DKT do Brasil.
Homens
pouco
escolarizados
e de classe
pobre
CQ3
Compartilhando a
vida
ABIA – Associação
Brasileira
Interdisciplinar de Aids
Casais soro-
discordantes.
7
Os dados completos encontram-se nas referências bibliográficas.
6
Identif. Título
7
Instituição promotora Público-alvo Capa
CQ4
De homem pra
homem
Programa Nacional de
DST/aids (Ministério
da Saúde)
Organização das
Nações Unidas
(Escritório contra
drogas e crimes)
Homens de
mais de 30
anos, de
classe média
CQ5
Bate-papo: dicas
de prevenção às
DSTs/aids
Programa Municipal de
DST/Aids de
Cubatão/SP
Jovens
CQ6 Atotô
Secretaria Estadual de
Saúde – Diretoria de
Epidemiologia e
Vigilância Sanitária –
Programa Estadual de
DST/AIDS
Praticantes de
cultos afro-
brasileiros
Os critérios de seleção do corpus foram: a) o acesso a cartilhas
quadrinizadas
8
, que não são maioria, pois muitas cartilhas, apesar de usarem
imagens, não são construídas com base numa HQ; b) a diversidade do público-
alvo e c) o tema DSTs/aids. A escolha por apenas um conjunto específico de
enfermidades abordadas nas CQs traz a vantagem de se poder verificar a
existência de traços característicos do discurso científico. Como tal discurso,
por sua vez, é elaborado com base nos saberes sobre as DSTs/aids e também
nas representações sociais construídas nesse espaço discursivo, a seleção
das cartilhas que compõem o corpus poderia suscitar um trabalho que
intersecionasse aspectos discursivos e culturais quanto às representações
sociais envolvidas.
As cartilhas, quadrinizadas ou não, são materiais produzidos para
campanhas de educação em saúde, na sua maioria, promovidas por órgãos
públicos. Essa área de atuação política congrega várias esferas discursivas: a
da própria área de saúde, a da propaganda institucional, a da educação e a da
8
A coleta do universo de cartilhas ocorreu de diversas maneiras: ao acaso, por intermédio de
amigos e alunos, em consultórios médicos, por intermédio de ONGs ou de Secretarias de
Saúde. Várias CQs foram eliminadas por não abordarem as DSTs/aids ou por não serem
quadrinizadas, o que resultou em seis cartilhas como amostra final.
7
ciência, na vertente da divulgação científica. Como não seria possível abordar,
numa mesma investigação, as implicações dessa rede de domínios discursivos
imbricados, pressupostos da divulgação científica, elegi as relações entre as
interfaces didática e científica (de divulgação científica) nas cartilhas para
analisar a apresentação da informação científica.
As campanhas de educação em saúde têm dois propósitos principais:
reafirmar uma ação política do Estado e provocar a mudança ou o reforço de
atitudes dos leitores. Para cumprir o último objetivo, é necessário disseminar
informações técnicas para um público leigo. Nessa dinâmica, a credibilidade
das informações é essencial, o que implica o reconhecimento, por parte do
leitor, do caráter de cientificidade das informações presentes nesse gênero,
entre outras questões. Por outro lado, no caso da saúde, as atitudes a serem
modificadas seriam os cuidados com a prevenção das doenças e com o
tratamento correto a ser seguido. Essa informação científica não mais pode
chegar “fria” aos interlocutores, pois questões culturais, como as
representações de certos papéis sociais, entram em jogo sempre que se
pretende convencer pessoas a alterar o seu comportamento, algo que a
publicidade e a propaganda têm como pressuposto básico.
No caso da aids, isso se torna ainda mais evidente e desafiador, por ser
uma doença sexualmente transmissível (DST). O fato de a via principal de
transmissão do vírus HIV ser a sexual, independentemente do sexo dos
parceiros, da sua condição sexual e do tipo de relação sexual, leva à
necessidade de se abordar, nos materiais educativos, as várias possibilidades
de contágio, com atenção ao comportamento sexual do público leitor, das mais
diversas faixas etárias e classes sociais, especialmente nas cartilhas
destinadas a pessoas com vida sexual ativa. Isso, por sua vez, pode exigir a
abordagem de temas tabus e de preconceitos que fazem parte do imaginário
dos leitores. As estratégias de apresentação do discurso científico podem
refletir tais questões em alguma medida, o que também será observado na
análise, conforme o terceiro objetivo específico já aponta (ver p. 5).
A opção pelo uso de HQs nessas cartilhas não necessariamente se
fundamenta no conhecido fascínio exercido sobre o público infantil por tais
narrativas. A grande difusão da quadrinização como recurso de textualização
que, de certa forma, democratiza o acesso a certas informações, também é um
8
fenômeno recente, que tomou impulso a partir da segunda metade do século
XX. Usar os quadrinhos nas CQs é uma alternativa para atingir um público com
acesso restrito a fontes seguras de informação, seja em decorrência de
escolarização e atendimento à saúde precários ou da falta de familiaridade com
práticas de letramento que envolvam a leitura de reportagens impressas,
artigos, boletins médicos, etc. Para essas pessoas, tais gêneros podem
parecer densos e pouco compreensíveis. As imagens, geralmente caricaturais,
e a narrativa de ficção, característicos da maioria das HQs, seriam diferenciais
que deixariam o texto mais “leve” e mais inteligível. A voz do senso comum já
nos diz que vivemos a geração da imagem e, portanto, como já destacamos, a
presença de outras semioses, que não exclusivamente a verbal, é uma opção
cada vez mais comum, seja no domínio da ciência, da publicidade ou do
jornalismo.
Para dar conta do objetivo central desta pesquisa – analisar como a
quadrinização auxilia na apresentação de informações científicas - é preciso
considerar a complexidade do objeto estudado, no caso, as cartilhas. Nesse
sentido, esta pesquisa faz um recorte que focaliza alguns aspectos discursivos
das CQs, da área da saúde, especialmente as estratégias usadas para
apresentar a informação científica. O referencial teórico que justifica e ancora
este trabalho é amplo e remete a áreas de conhecimento diversas. Do ponto de
vista lingüístico-discursivo, priorizei os seguintes:
(a) os estudos sobre o letramento, especialmente o letramento
situado (Barton e Hamilton,1998; Graff, 1991), com ênfase em
aspectos socioculturais, como pano de fundo geral das
análises;
(b) os estudos sociodiscursivos sobre gêneros textuais e as
contribuições da nova retórica, que consideram a natureza
discursiva, as condições de produção, circulação e recepção
como essenciais na caracterização dessas manifestações
textuais, inclusive o fenômeno do entrecruzamento de gêneros
(Bazerman, 2005; Marcuschi, 2002; Miller, 1994;);
(c) os estudos sobre multimodalidade na perspectiva da semiótica
social (Kress, 2003; Kress & Leeuwen, [1996] 2005).
9
Para fundamentar as análises das CQs, busquei respaldo em outras
áreas de conhecimentos, selecionando as seguintes vertentes teóricas:
(d) estudos sobre ciência e linguagem da ciência (Atkinson 1999;
Gomes, 2000
9
; Latour, 2000; Machado, 1987; Prelli, 2000);
(e) estudos sobre quadrinização, que teorizam sobre a linguagem
dos quadrinhos e sobre a história dos quadrinhos (Eisner,
1999; McCloud, [1993] 2005; Silva, 2002; Vergueiro, 2007a);
(f) estudos sobre representações de papéis sociais e sua
manifestação no discurso (Moita Lopes, 2002; Moscovici,
1978).
O primeiro bloco de teorias se refere a noções relacionadas: letramento
situado e gêneros. Segundo Barton e Hamilton (1998), o conceito de
letramento situado pressupõe que há diferentes práticas de letramento
associadas a diferentes domínios da vida humana. As práticas de letramento
são padronizadas por instituições sociais e relações de poder e transformadas
pela dinâmica das interações sociais, e isso implica o surgimento e a
modificação de gêneros integrantes dos vários usos da linguagem, incluindo o
recurso a múltiplas semioses – escrita, oralidade, imagens, disposição gráfica,
cada vez mais comum, em geral, para cumprir objetivos artísticos, didáticos ou
persuasivos.
As CQs surgiram para dar conta dos objetivos da propaganda
institucional, num contexto de grande heterogeneidade de leitores e,
conseqüentemente, de práticas de letramento por eles dominadas, de
habilidades de leitura e de conhecimento sobre os temas tratados. Elas
ganham relevância no “vácuo” existente entre o público leigo e o universo da
ciência, cujas informações são acessíveis e compreensíveis de fato para um
número muito reduzido de pessoas.
O segundo bloco de teorias diz respeito a aspectos mais específicos das
CQs, envolvendo diferentes aspectos de sua constituição: linguagem dos
quadrinhos, linguagem verbal, didatização das informações científicas e
envolvimento dos leitores através de certas representações sociais.
9
O trabalho de Gomes encontra-se na intersecção entre as áreas de Lingüística e de
Comunicação Social.
10
Apesar dos múltiplos ângulos que as cartilhas oferecem para análise,
não há, até onde é de meu conhecimento, estudos sistemáticos a respeito de
como a informação científica é apresentada por meio da quadrinização nessas
cartilhas. Por exemplo, a obra Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma
mídia popular (Patati e Braga, 2006) praticamente não menciona a
quadrinização para fins educativos e instrucionais.
Essa é uma das justificativas para a realização desta pesquisa, pois tal
estudo também pode revelar uma das facetas do domínio discursivo científico.
Porém, no caso específico das CQs, entra em jogo, também, o domínio
discursivo publicitário. As cartilhas são encomendadas por instâncias
governamentais (secretarias, ministérios, tribunais, etc.) e Organizações Não-
Governamentais (ONGs), e produzidas por agências de propaganda, muitas
vezes, com consultoria de especialistas (cientistas, juristas, etc.). Trata-se da
chamada propaganda institucional, instrumento de ação política dos governos,
materializado em campanhas de esclarecimento da população sobre direitos e
deveres básicos dos cidadãos e cujo objetivo é a mudança ou o reforço
10
de
comportamentos.
Assim, as estratégias discursivas usadas nas CQs não apenas se
destinam a tornar compreensíveis certos conceitos científicos, mas também
pretendem cumprir uma função persuasiva de reforço ou alteração de
comportamentos, como é o caso da propaganda institucional. Essa dupla
função será considerada em toda a análise e constitui um dos elementos
centrais para a construção desta pesquisa.
Um outro domínio discursivo que perpassa os usos das CQs é o
educacional. Não basta apenas tornar compreensíveis as informações, mas
ensinar alguns procedimentos, fazer o leitor avançar naquilo que ele já sabe
sobre o assunto, para que o propósito persuasivo se concretize, ou seja, para
que ele, de fato, mude ou reforce condutas preventivas em relação às
DSTs/aids. Por isso, há um esforço de didatização dessas informações, o que
se revela sob diversos ângulos: primeiramente, na escolha pela linguagem dos
quadrinhos e, como decorrência, na escolha do tipo de imagem, do registro
10
Mais recentemente, alguns materiais educativos têm-se preocupado com a discussão crítica
de aspectos da doença, de modo que não se tenha apenas uma postura prescritiva.
11
usado pelos personagens, do enredo criado, da seqüência de quadros, com
suas transições e planos, que permitem fluir a narrativa, entre outros.
Outra questão não menos complexa é a própria definição do que vem a
ser científico, para fins de constituição do corpus de pesquisa. Obviamente não
supomos aqui que o caráter de cientificidade (scientificiness) de determinados
textos seja imanente. Trata-se, de fato, de uma atribuição valorativa, do
resultado de uma análise empreendida a partir de certo ponto de vista teórico-
metodológico. A esse respeito, Kress (2003: 173) afirma que a cientificidade é
uma construção social, um sentido (meaning) que emerge em signos
pertencentes a uma comunidade e a suas práticas. E aqui se destaca a
importância do conceito de letramento situado para este trabalho, pois ele
relaciona as práticas sociais de grupos específicos, que têm objetivos
específicos, à escolha de certas estratégias discursivas nos gêneros.
No caso das CQs que tratam de prevenção de doenças, do
funcionamento de ecossistemas, entre outros assuntos das áreas das ciências
naturais e exatas, há um caráter de cientificidade mais evidente. Isso porque
esses assuntos são reconhecidos pela maioria das pessoas da nossa
sociedade como científicos, um ponto de vista que se apóia numa perspectiva
positivista de ciência. Sem discutir aqui o status científico de cada área de
saber na nossa sociedade, considero que as cartilhas de saúde apresentam
informações científicas, pois abordam a área das ciências naturais,
historicamente considerada como ciência “de fato”. Esse foi um dos critérios
para selecionar as cartilhas que constituiriam o corpus.
Uma das características centrais dos gêneros selecionados para análise
é o importante papel do visual na produção de sentidos. Por definição, não há
gêneros quadrinizados sem imagens, e essa é uma das razões para estudá-los
com um olhar que considere as imagens não como meros complementos do
texto verbal, adereços, mas um vetor essencial na construção de significados.
É verdade que as HQs têm sido objeto de estudo, no Brasil, nas áreas
de Comunicação Social, Sociologia, Antropologia e Artes Gráficas. Mas a
Lingüística não tem uma produção tão significativa. Assim, a perspectiva da
construção do discurso tem sido pouco explorada nos estudos sobre HQs.
Menos ainda, elas têm sido analisadas do ponto de vista da multimodalidade
ou da semiótica social, que toma a noção de letramento como panorama de
12
fundo para analisar como a união do visual e do verbal é capaz de construir
sentidos.
Uma outra lacuna refere-se a pesquisas sobre gêneros quadrinizados,
entre os estudiosos dos quadrinhos, que se debruçam, quase que
exclusivamente, sobre as HQs produzidas para a indústria massiva, com fins
de entretenimento. Para Vergueiro (2007), a produção não-comercial de HQs é
“relativamente desconhecida, poucas vezes lembrada por aqueles que se
dedicam ao estudo de histórias em quadrinhos no país.” (p. 2). Continua
afirmando que os quadrinhos usados com outras aplicações que não o
entretenimento é uma parte
“da produção quadrinística brasileira que diariamente interfere
na vida e/ ou na atividade profissional de muitas pessoas e
que, exatamente por isso, merece ser retirado do limbo em
que, talvez inadvertidamente, foi colocado pelos estudiosos da
área.” (p. 2).
A centralidade do visual é um dos pontos de convergência dos diferentes
gêneros quadrinizados. Para Kress e Leeuwen ([1996] 2005), admite-se, já há
bastante tempo, o papel relevante das imagens na comunicação, entretanto
elas não têm sido analisadas do ponto de vista de uma teoria coerente e
consistente. Na maioria das vezes, elas aparecem em meio a análises do
discurso que as examinam como “adornos”, “ilustrações”, “complementos” dos
textos. Entretanto, para eles, em certos gêneros, como um texto sobre a
energia cinética, presente num livro didático, o texto verbal não mais é
“ilustrado” por uma imagem, que teria uma função auxiliar, mas, de fato, serve
como um comentário da imagem, a qual apresenta a informação central
11
.
Segundo os autores, esse fato leva a questionar sobre mudanças implícitas na
noção do que é ler, do que é ler ciência e do que é a ciência propriamente dita.
Vale ressaltar que a quadrinização – a organização de textos em
quadrinhos, ou seja, numa seqüência de quadros emoldurados, separados por
espaços em branco (sarjetas), dentro dos quais se desenrola uma narrativa ou
uma exposição (cf. McCloud, [1993] 2005) - não é um processo neutro,
apartado das práticas sociais que envolvem a criação, a circulação e a
recepção dos gêneros quadrinizados. Por isso, o tema das representações
11
Pode-se dizer isso também dos manuais de instruções ilustrados.
13
sociais é importante na análise das CQs. É preciso observar os traços relativos
às representações sociais construídas discursivamente com o uso da
quadrinização nas CQs, para cumprir as finalidades das cartilhas.
Assim, reconhecendo as CQs como um gênero em que o visual é
central, tomando o letramento e a perspectiva sociointeracionista de língua
como panos de fundo, já que esses paradigmas priorizam os usos sociais da
linguagem na sua relação com as escolhas lingüísticas, minha pesquisa busca
responder a esta questão básica: de que maneira a quadrinização apresenta
informações científicas nas CQs, gênero que remete aos universos da ciência,
da propaganda e da educação?
Saliento que a análise lingüístico-discursiva estará presente nos diversos
capítulos, por duas razões. Em primeiro lugar, porque parto de uma perspectiva
sociointeracionista de língua, segundo a qual as escolhas lingüísticas
materializam processos de produção de sentido. Em outras palavras, as
condições de produção dos gêneros são fatores cruciais para a sua
configuração lingüística. Em segundo lugar, não tenho por objetivo realizar uma
descrição lingüística das CQs, e sim analisar como a informação científica é
apresentada nesse gênero com o auxílio da quadrinização. Por isso, a
configuração lingüística será resultante das estratégias discursivas envolvidas
na elaboração das CQs. Traços como jargão técnico, por exemplo, serão
analisados, mas ligados à análise das semioses não-verbais.
Para responder à questão central, o capítulo inicial - Quadrinhos e
quadrinização - será dedicado a explorar a quadrinização, começando com
uma retrospectiva histórica das HQs e da quadrinização, ou seja, da migração
dessa linguagem para outros gêneros e outros domínios discursivos. Expõem-
se, também as características da linguagem dos quadrinhos, iniciando-se a
análise das CQs.
O capítulo seguinte, Do entorno para o interior da cartilha quadrinizada:
funções sociais e letramento, caracteriza o gênero a partir de suas funções
sociais, na relação com o conceito de letramento situado. Enfoco as
implicações desses conceitos para a minha pesquisa, como a variabilidade de
práticas de linguagem e, portanto, de gêneros, para atender a propósitos
comunicativos diversos. Esses pressupostos apontarão a importância de
atentar para a linguagem usada nas CQs, objeto do capítulo seguinte.
14
Na seqüência, o capítulo A linguagem em cartilhas quadrinizadas: ciência e
cotidiano focaliza a linguagem em CQs, tanto na perspectiva da linguagem
verbal quanto na da linguagem não-verbal. Pretendo analisar que traços da
linguagem científica estão presentes nas CQs e também de que modo essa
linguagem é transformada para fins didáticos. Trato, ainda, da construção de
representações de papéis sociais como recurso persuasivo nas CQs. Para
isso, apresento o conceito de representação social para relacioná-lo com a
discussão sobre a teia de representações sociais estabelecida nas CQs e suas
funções nas cartilhas.
O capítulo Diversidade de gêneros em cartilhas quadrinizadas: cientificidade
e didatização aborda a variedade de gêneros presentes em CQs como
estratégia para atingir os objetivos de didatismo e os princípios de
cientificidade. Alguns desses gêneros são esquemas, gráficos, quadros,
desenhos, fotos, entre outros. Nosso foco será a função desses gêneros para o
alcance da credibilidade das informações científicas, bem como para a sua
melhor compreensão por parte dos leitores.
No último capítulo, dedicado às considerações finais, exponho uma síntese
geral dos resultados desta investigação e de como poderão contribuir para o
conhecimento a respeito do uso do recurso da quadrinização para a
apresentação e a didatização de informações científicas em CQs, focalizando
os aspectos discursivo-lingüísticos, incluindo-se aí os multimodais e os
relativos às representações de papéis sociais.
15
CAPÍTULO 1 - Quadrinhos e quadrinização
Neste capítulo, exponho sobre histórias em quadrinhos (HQs) e
quadrinização, ou seja, o uso de uma linguagem específica nascida nas HQs,
que se transpôs para outros domínios discursivos, com outros propósitos
comunicativos. Inicio conceituando quadrinização e passo a uma exposição
sobre a gênese dos quadrinhos, em termos de produção mundial e brasileira.
Depois apresento alguns conceitos básicos sobre quadrinhos e quadrinização,
inclusive sua relação com a multimodalidade. Busco focalizar o que é relevante
para a análise das CQs quanto à apresentação de informações científicas.
Como as CQs não são elaboradas com fins artísticos, mas são gêneros
integrantes de campanhas publicitárias institucionais, minha análise não
abordará os recursos estéticos, exceto os que possam ter algum efeito
importante para a apresentação do discurso científico.
1.1 Conceituando quadrinização
A quadrinização constitui a criação de qualquer gênero na linguagem
dos quadrinhos, na sua conformação mais moderna, ou a adaptação de um
gênero para essa linguagem. Num sentido amplo, a quadrinização poderia ser
considerada uma forma de “escrita” que demandaria, do leitor, o domínio de
certas estratégias de leitura, como a leitura seqüenciada dos quadros, a
inferenciação dos quadros “implícitos” nas sarjetas (espaços em branco entre
cada quadro), etc., de modo a se (re)construir o sentido do texto. Não sem
razão, Eisner denomina os quadrinhos de “arte seqüencial”.
De fato, a seqüenciação é um traço inconfundível dos quadrinhos,
podendo abranger diversas seqüências tipológicas:
a) seqüência de fatos, no caso de uma narrativa como as típicas HQs;
b) seqüência de postulados ou de argumentos, no caso de uma
exposição, como as obras técnicas de McCloud ([1993]2005,
[2000]2006);
16
c) seqüência de ações, no caso de instruções para procedimentos,
como manuais de instrução quadrinizados.
Diferentemente do que ocorre em textos verbais, nesses tipos de
seqüências presentes em textos quadrinizados, o caráter descritivo se faz
presente, já que o uso de imagens numa narrativa assume, em geral, uma
função descritiva bastante evidente
12
. Os quadrinhos trazem uma seqüência
em que imagem e texto verbal se fundem, não havendo como separá-los para
a produção de sentido, ao menos no caso de textos em quadrinhos de
qualidade.
A quadrinização, tomada como linguagem específica, composta de
simbologia e organização próprias, só pode ser distinguida após o
estabelecimento das HQs como gênero. Trata-se de um processo de
tipificação, nas palavras de Bazerman (2005), que permitiu a criação de uma
linguagem própria, a dos quadrinhos. Para compreender esse processo, farei
um panorama do surgimento e desenvolvimento das HQs. Voltarei a discutir
outras características da linguagem dos quadrinhos ao longo deste capítulo.
1.2. História das histórias em quadrinhos
As manifestações mais remotas dos quadrinhos, ou “arte seqüencial”
nos termos de Eisner (1999), remontam há milênios. Alguns autores chegam
mesmo a reportar o germe das HQs à arte rupestre. Várias dessas
manifestações representam cenas de caça, numa seqüência perceptível,
assemelhando-se, em alguma medida, à linguagem contemporânea dos
quadrinhos. McCloud ([1996]2005) afirma que certas inscrições em tumbas
egípcias podem ser apontadas como precursoras dos quadrinhos, exatamente
pela seqüência de imagens que contam uma história. Ele também aponta a
tapeçaria de Bayeux
13
como antepassado do que viriam a ser as HQs. A
12
Normalmente, a descrição, em textos quadrinizados, é providenciada pelas imagens tomadas
isoladamente, não necessariamente pela seqüência de imagens justapostas.
13
Cena 1. Disponível em http://www.bayeuxtapestry.org.uk/Bayeux1.htm. Acesso em 25 jan.
2007.
17
tapeçaria é uma peça única de 70 metros de linho bordado, que conta a
conquista normanda da Inglaterra, luta iniciada em 1066:
Ex. 1 - Tapeçaria de Bayeux, 1070-1080, cena 1.
Outros trabalhos artísticos, especialmente arte sacra, como vitrais,
dípticos e trípticos
14
com cenas da paixão de Cristo, em madeira ou marfim,
também fazem uso da justaposição seqüenciada de imagens com a finalidade
de contar uma história, como um modo de narrar que atravessa os tempos.
Ex. 2 - Díptico em relevo,
marfim, com cenas da paixão de
Cristo. Paris, século XIV, 19,5 x
23 cm.
15
Esses exemplos ilustram como a junção seqüenciada de imagens
sempre foi usada pela humanidade para contar histórias, relatar fatos. Mas elas
ainda se encontram bem distantes das HQs modernas, com sua articulação
entre texto verbal e imagem, compondo cenas de uma mesma história que se
desenrola no espaço. A passagem do tempo das HQs é dada pela mudança
espacial de um quadro para outro, pela alteração gradativa das imagens.
14
Dípticos são conjuntos de duas tábuas articuladas por dobradiças, com algum motivo,
geralmente religioso, pintado ou esculpido em relevo e que se pode fechar ou expor abertas.
Os trípticos seriam os conjuntos formados por três partes (Houaiss, 2000).
15
Disponível em http://www.museu.gulbenkian.pt/obra.asp?num=125&nuc=a7&lang=pt. Acesso
em 25 jan. 2007
18
Na verdade, há uma polêmica sobre o marco inicial das HQs na sua
feição contemporânea. As opiniões se dividem entre o trabalho do suíço
Rodolphe Töpffer, com as histórias de Mr. Jabot, desenhadas em 1827 e
publicadas apenas em 1833; e o trabalho do norte-americano Richard Outcault,
com o personagem Menino Amarelo
16
(Yellow Kid), publicado em 1895.
Determinar, com precisão, a paternidade das HQs
17
não interessa diretamente
aos propósitos desta pesquisa, mas é preciso ter uma idéia do percurso
histórico dessas narrativas por meio de imagens para melhor compreender que
mudanças vêm ocorrendo ao longo do tempo.
Para os que consideram o século XIX como o ponto de partida da
história das HQs, a exemplo de Alain Beyrand (s.d.), a referência é o trabalho
do suíço Rodolphe Töpffer, com suas "histoires en estampe". A primeira
publicação data de 1833, com Histoire de Mr Jabot, além da bastante citada
Les amours de Mr. Vieux Bois, em 1837, entre outras. Em 1842, Töpffer já
publicava histórias nos Estados Unidos.
Mr. Vieux Bois kills himself.
Fortunately, the cord is too
long.
After forty-eight hours, hearing the
voice of the Loved One in the
street, Mr. Vieux Bois forgets that
he has been hanged, and rushes in
that direction.
Mr. Vieux Bois drags along
the beam he has been hung
from.
Ex. 3 – Trecho de "Loved One", aventura do personagem Mr. Vieux Bois, de Töpffer
18
.
Outros autores, principalmente norte-americanos, tomam o Menino
Amarelo como o início das HQs modernas, em 1895. Porém, segundo Santos
(1996), considerar o Menino Amarelo, de Richard Outcault, como marco inicial
16
Por causa do camisolão amarelo (espécie de túnica) que usava, esse foi o apelido atribuído
pelo público ao personagem, que nunca foi nomeado de fato por Outcault.
17
Além dessa polêmica, há também uma grande variação entre os textos de referência quanto
a datas de criação e publicação das histórias de Töpffer, por exemplo.
18
Disponível em http://www.zompist.com/bob25.html. Acesso em 10 jan. 2008.
19
das HQs se deve mais ao estrondoso sucesso popular alcançado do que ao
surgimento de uma nova linguagem. Para esse autor:
(...) muitos dos elementos típicos da banda desenhada
(seqüencialidade, interligação texto/imagem, mesmo os
sobrevalorizados balões) estão notoriamente presentes em
obras que precedem Outcault. E desconfia-se que a lista
aumentará à medida que for prosseguindo a investigação
histórica neste sentido.
Ex. 4 – Página inteira
do jornal New York
Road, com o Menino
Amarelo, de Richard
Outcault, 1895
19
.
Surgidas em 1895 e ambientadas nos guetos de Nova York, as histórias
do Menino Amarelo eram publicadas no jornal norte-americano The Sunday
New York. Inicialmente batizado de Down on Hogan’s Alley, fazia referência ao
beco onde moravam os personagens, oriundos de diversas etnias
19
Disponível em http://www.austinchronicle.com/gyrobase/Issue/story?oid=oid%3A234171.
Acesso em 28 jan. 2008.
20
que vinham se somar ao mosaico cultural norte-americano e
começavam a penetrar no ‘caldo’ simbólico que aglutinava os
que se esforçavam para se tornar americanos, seja lá o que
isso, naquele momento, fosse (Patati e Braga, 2006, p. 15).
Segundo Silva (2002), a irreverência das mensagens que seu camisolão
portava era um fato novo na imprensa da época, o que deve ter contribuído
para o seu sucesso.
Inicialmente publicadas num só quadro (ex. 4) em que os textos se
distribuíam em várias localizações da página, inclusive nas vestes do garoto,
as histórias de Outcault passaram a ser construídas em quadros isolados (ex.
5, a seguir). Um momento de grande impacto para os leitores, segundo Patati e
Braga (2006), foi quando a fala do Menino Amarelo passou da legenda abaixo
da imagem, em discurso indireto, para o seu camisolão, em discurso direto (1ª
pessoa) (cf. ex. 4, p. 19). Para esses autores, a página humorística foi “tomada”
do restante dos personagens do beco pelo Menino Amarelo, quando este
“aprendeu a falar”.
Posteriormente, por sugestão do editor do jornal, que havia visto balões
de fala em outra publicação, as falas expostas no camisolão passaram a ser
colocadas dentro de balões. Logo, não se pode deixar de reconhecer que esse
personagem, dada a sua popularidade, termina por firmar a configuração de
quadros isolados e com balões de fala para cada um, marcando a identidade
dos quadrinhos produzidos daí por diante. Esse novo expediente – os balões e
legendas integrados ao texto - em comparação com as legendas usadas
anteriormente, abaixo do texto, deixou a leitura decididamente mais fluida, na
opinião de Patati e Braga.
É por essa razão que a maioria dos estudiosos dos quadrinhos concorda
em, convencionalmente, apontar as aventuras do Menino Amarelo como as
primeiras HQs modernas, pois elas estabeleceram uma configuração
específica que se tornaria o padrão das HQs posteriormente produzidas.
21
Ex. 5 - Richard F.
Outcault, "The Yellow
Kid's New
Phonograph Clock,"
New York Journal, 14
fev. 1897
20
.
Por influência desse personagem, as publicações sensacionalistas do
jornal passaram a ser designadas “jornalismo amarelo
21
”. Para Silva (2002):
“Desde o início, a relação entretenimento e crítica está presente nos
quadrinhos, o humor e o divertimento associados às personagens trazendo
consigo críticas corrosivas aos mais diversos aspectos da realidade social.” (p.
19) Assim, na sua origem, as HQs têm um caráter crítico e humorístico – o
termo em inglês, comics, atesta isso - pois surgiram com função de sátira
social. A alegação ainda corriqueira de que quadrinhos são “coisa de criança”
se torna ainda mais frágil se lembrarmos as pressões das famílias
conservadoras contra o trabalho de Outcault.
As HQs chegaram à massificação em meados do século XX nos EUA,
com a ampliação das tiragens e o barateamento dos gibis. Rapidamente,
conquistaram um espaço próprio, passando a circular nos gibis, revistas a eles
dedicadas. Em um artigo publicado em 2002, apresento diferentes formas de
veiculação de HQs surgidas além dos gibis comuns. Os gibis privilegiam
narrativas mais longas em vez de tiras. Também há os almanaques, dedicados
20
Richard F. Outcault, "The Yellow Kid's New Phonograph Clock," cartoon, New York Journal
14 Feb. 1897; rpt. in R.F. Outcault's The Yellow Kid: A Centennial Celebration of the Kid Who
Started the Comics, (Northampton, Massachusetts: Kitchen Sink Press, 1995) plate 72.
Disponível em chnm.gmu.edu/aq/comics/clock.html
. Acesso em 01 jan. 2007.
21
Segundo Faires (2004), o proprietário do The Sunday New York, Joseph Pulitzer, só publicou
as histórias de Outcault em cores porque precisava usar as caríssimas prensas adquiridas para
imprimir em cores obras de arte “de verdade”. O sucesso dessas histórias ocorreu também
porque foram as primeiras HQs em cores.
22
a um grupo de personagens criados por um mesmo autor, como Almanaque
Disney, Turma da Mônica, etc. Existem ainda os gibis direcionados a adultos,
que também se dedicam a um personagem ou uma galeria de personagens de
um mesmo autor.
Mas são as coletâneas de tiras publicadas em livro que indicam “a
autonomia, cada vez maior, das HQs em relação (...) aos suportes midiáticos”
(Mendonça, 2002: 200), onde surgiu esse gênero. Eis alguns exemplos:
Ex. 6-
Coletânea de
Calvin e
Hobbes
(Watterson,
1997).
Ex. 7-
Coletânea
de Mafalda
(Quino,
2001).
Ex. 8-
Coletânea
de
personagens
femininas
diversas
(Maitena,
2003).
1.3. Quadrinhos no Brasil
Os estudos sobre a trajetória histórica dos quadrinhos no Brasil também
enfrentam polêmicas. Uma delas retoma o mote da paternidade das HQs,
agora no contexto brasileiro. Há quem aponte Angelo Agostini, italiano
naturalizado brasileiro, como o "verdadeiro" criador das histórias em
quadrinhos. Nascido em 1833, em Vermate, Agostini era desenhista e foi o
mais importante artista gráfico do Segundo Reinado.
Cardoso (2005) aponta que um dos traços mais importantes da
produção desse autor foi a criação de um herói genuinamente nacional, o
Caipora, por vezes, acompanhado da índia de seios nus, Inaiá, a primeira
heroína dos quadrinhos (ver ex. 9, a seguir). Esse personagem protagonizava
aventuras de ação, enquanto a tendência mundial nas HQs era das narrativas
humorísticas. Suas aventuras se passavam em cenários locais, como as matas
e as cidades brasileiras, e constituem, conforme Cardoso, o único repositório
iconográfico dos costumes nacionais do fim do Segundo Império e começo do
século XX. Agostini foi ainda o primeiro a explorar o suspense, deixando o leitor
na expectativa até o capítulo seguinte. Em virtude dessas razões, Agostini é
considerado por Cardoso (2005) o avô das tiras de aventura e Zé Caipora, o
primeiro herói brasileiro e universal do gênero.
23
Publicou, em 1869, As aventuras de Nhô-Quim ou Impressões de uma
Viagem à Corte. Segundo Cardoso (2005), trata-se de uma obra de vanguarda,
por vários motivos, como a maior extensão das histórias. Nhô-Quim tinha
especial predileção pelas situações hilárias.
Fundador da Revista Ilustrada, um marco editorial da época, Agostini
criou para ela o já citado personagem Zé Caipora. Este foi retomado
posteriormente em outras revistas, como O Malho e O Tico-Tico. A
republicação das histórias de Zé Caipora em fascículos, em 1886, é apontada
como a primeira revista de quadrinhos com um personagem fixo a ser lançada
no Brasil.
22
O exemplo a seguir mostra um trecho das aventuras de Zé Caipora,
em que se percebem os enquadramentos originais, com quadros de diferentes
tamanhos, para destacar a altura do penhasco:
Ex. 9 - Página de Zé
Caipora
23
.
A primeira revista a publicar HQs no Brasil de forma sistemática foi O
Tico-Tico. Lançada em 1905, manteve sua periodicidade até os anos 1960.
22
As informações históricas sobre quadrinhos no Brasil foram obtidas em Cardoso (2005),
Patati e Braga (2006), Vergueiro (2007a) e no verbete Angelo Agostini, da enciclopédia
Wikipédia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Angelo_Agostini
. Acesso em 1
o
jan. de
2007.
23
Disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/especial_agostini.cfm. Acesso em 1
o
jan. 2007.
24
Embora publicasse plágios de autores estrangeiros, como o popular
personagem Chiquinho, decalcado inicialmente de Buster Brown, criado por
Richard Outcault, a revista revelou talentos nacionais, como Luís Sá. O Tico-
Tico marcou a infância de gerações, especialmente porque era a única revista
dedicada às crianças. O depoimento de Drummond revela a empatia
conquistada pelo veículo:
O Tico-Tico é pai e avô de muita gente importante. Se alguns
alcançaram importância mas fizeram bobagens, O Tico-Tico
não teve culpa. O Dr. Sabe-Tudo e o Vovô ensinavam sempre
a maneira correta de viver, de sentar-se à mesa e de servir à
pátria. E da remota infância, esse passarinho gentil voa até
nós, trazendo no bico o melhor que fomos um dia. Obrigado,
amigo! (...)
O Tico-Tico era a única revista dedicada às crianças
brasileiras e lhes dava tudo: histórias, adivinhações, prêmios
de dez mil réis, lições de coisas, páginas de armar e
principalmente de aventuras. (Carlos Drummond de
Andrade)
24
Ex. 10 – Capa de O Tico-Tico
25
Ex. 11 – Fac- símile de HQ de O Tico-Tico
26
24
Disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/2006/n13012006_05.cfm. Acesso em
1
o
jan. de 2007.
25
Disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/2005/ticotico.cfm. Acesso em 28 jan.
2008.
26
Disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/2005/ticotico.cfm. Acesso em 28 jan.
2008.
25
Nos anos seguintes, o mercado de HQs no Brasil continuou sendo
abastecido pela publicação de versões traduzidas de quadrinhos norte-
americanos, já que a produção nacional em escala industrial se concentrava
em dois ou três autores. Ziraldo, por exemplo, alcançou relativo sucesso com A
turma do Pererê, mas a grande exceção continua sendo Maurício de Souza,
que atingiu imensas tiragens e firmou a marca da Turma da Mônica no país.
No Brasil, pode-se dizer que a vertente das tiras em quadrinhos é que
desenvolveu características tipicamente nacionais, como a sátira política e
social, além de temáticas underground. A escassez de espaço e a
popularidade de certos personagens que o leitor podia encontrar diariamente
no jornal fez nascer o formato clássico das tiras, da piada desdobrada em três
tempos (Patati e Braga, 2006). As tiras (ou tirinhas) se distinguem das HQs por
serem curtas, contando com 3 quadros geralmente (podendo chegar a 5), e por
sempre trabalharem com a quebra de expectativas para produzir humor
27
. Na
verdade, têm estrutura semelhante à das piadas, pois a história é introduzida e
finalizada com o intuito de se criar um efeito humorístico, seja marcado ou não
pela crítica social.
Dada a sua curta extensão, as tiras podem ser publicadas em suportes
variados. Também são diversificados os leitores a que se dirigem. Estão em
jornais e revistas destinados aos mais diferentes públicos e nas mais diferentes
seções desses portadores de texto, o que possibilita associá-las aos mais
distintos contextos. Para Patati e Braga, as tiras sempre estiveram num terreno
ambíguo entre “quadrinho infantil” e “quadrinho de humor”, o que fez proliferar
os “níveis de leitura” possíveis:
Enquanto alguns acham graça das ceroulas do personagem,
outros se compadecem do seu drama existencial. Os
personagens de Peanuts (de Charles Schulz), Calvin &
Hobbes (de Bill Waterson) e Mafalda (de Quino) são mesmo
só para crianças? (...) Tal ambigüidade se ampliou até mesmo
para o domínio de HQs de aventura (p. 24).
No Brasil, o movimento de expansão das tiras em quadrinhos como
veículo de crítica social iniciou-se na década de 1960, como resistência à
27
Já foram comuns as tiras episódicas, quando uma HQ era contada na forma de folhetim, um
capítulo por dia.
26
ditadura militar, com personagens brasileiros típicos, criados por Henfil, como a
"Graúna", "Os fradinhos", o "Capitão Zeferino" e o "Bode Orelana":
Ex. 12 – Graúna
Ex. 13 – Fradim
Baixim
Ex. 14 – Capitão
Zeferino
Ex. 15 – Bode
Orelana
Nos anos 1980, a produção de tiras brasileiras ganhou novo fôlego com
o surgimento do trabalho de artistas como Angeli, Fernando Gonsales, Glauco
e Laerte, para citar apenas alguns. Grande parte dos personagens criados por
esses autores manifesta um discurso politicamente incorreto ou de non-sense,
sendo mais direcionados, portanto, para adolescentes e adultos. É comum que,
para (re)construir o sentido dessas tiras, o leitor precise ser capaz de
compreender ironias, metáforas, paródias, implícitos, etc., além de acionar
referências culturais próprias do mundo dos adultos. Eis alguns exemplos:
Ex. 16 – Tira
de Rê Bordosa
(Angeli)
28
28
Disponível em http://dulcevasconcelos.multiply.com/photos/photo/39/1.jpg. Acesso em 1
o
jan.
2007.
27
Ex. 17 – Tira
de Níquel
Náusea
(Fernando
Gonsales)
29
Ex. 18 – Tira
de Dona Marta
(Glauco)
30
Ex. 19 – Tira
de Hugo
(Laerte)
31
Os exemplos anteriores atestam que, embora os quadrinhos brasileiros
tenham surgido no universo do entretenimento infantil, a este não se limitaram,
característica presente também na produção quadrinística de outros países.
Entre as personagens estrangeiras, a francesa Barbarella, de Jean-Claude
Forest, protagonizava aventuras eróticas interestelares na década de 1960,
chegando a ser censurada em 1965.
De fato, a produção de quadrinhos para adultos é vigorosa, tanto no
Brasil quanto em terras estrangeiras, e não é tão recente. Um caso brasileiro
interessante são as HQs eróticas (ou pornográficas) publicadas nos anos 1940,
1950 e 1960 e criadas por Carlos Zéfiro, pseudônimo do funcionário público
Alcides Aguiar Caminha. O autor, paulista, viveu no anonimato durante 40 anos
e criou seus “catecismos”
32
como verdadeiros manuais de iniciação sexual,
29
Disponível em http://www2.uol.com.br/niquel/. Acesso em 1
o
jan. 2007.
30
Disponível em http://www2.uol.com.br/glauco/donamarta/index.htm. Acesso em 1
o
jan. 2007.
31
Disponível em http://www.devir.com.br/hqs/hugo.php. Acesso em 1
o
jan. 2007.
32
O termo catecismo diz respeito ao modo como eram entregues aos leitores nas bancas:
dentro de publicações religiosas, já que essas HQs eram extremamente ousadas para os
padrões da época. Por essa razão, não ficavam expostas, nem mesmo com tarjas; eram
guardadas sob os balcões das bancas de jornal.
28
numa época de grande repressão quanto a esse assunto. Hoje esses
quadrinhos eróticos são considerados “malditos” por alguns e cult para outros.
Ex. 20 – Capa de Benta (Carlos Zéfiro)
33
Ex. 21 – Capa de Hotel dos Prazeres (Carlos
Zéfiro)
34
Entre as CQs selecionadas para o corpus, quatro se dirigem a adultos -
CQ2, CQ3, CQ4 e CQ6 – enquanto apenas duas se destinam a adolescentes e
jovens – CQ1 e CQ5. A temática - DSTs/aids – interessa mais a adultos, por
serem doenças transmitidas principalmente entre quem tem vida sexual ativa.
Ainda assim, é de se notar a segmentação dos materiais educativos, que se
dirigem a diversos grupos de pessoas adultas, com práticas sociais e hábitos
culturais distintos.
Outro exemplo de quadrinhos adultos é a revista Ragú, publicada no
Recife (PE) desde 2000, um trabalho de equipe, que conta com Mascaro,
Clériston, Miguel, Samuca, Ricardo Mello, entre outros quadrinistas. A revista
traz criações experimentais, inclusive em termos estéticos, conforme ilustra o
exemplo 23, a seguir:
33
Disponível em http://www.ludmira.hpg.ig.com.br/benta/benta01.htm. Acesso em 1
o
jan. 2007.
34
Disponível em http://www.ludmira.hpg.ig.com.br/benta/benta01.htm. Acesso em 1
o
jan. 2007.
29
Ex. 22 – Capa de Ragú, n
o
2, out. 2000
35
. Ex. 23 – Labirinto, Lin In Ragú, n
o
2, out. 2000,
p. 08
O mesmo grupo que produz a revista Ragú publicou a coleção Ragú
Cordel em 2002 (ex. 24, a seguir), um conjunto de seis revistas que misturam a
linguagem dos quadrinhos com a estética, a temática e a linguagem dos
cordéis. Além da diagramação, o tipo e as cores do papel usado na impressão
lembram os cordéis. Alguns livros buscam reproduzir também a técnica da
xilogravura, típica da literatura de cordel. Nessa obra construída com base na
intertextualidade de conteúdo e de gênero, há textos criados para a coleção e
outros recriados a partir de produções de outros autores, como O Circo, sobre
poema de João Cabral de Melo Neto, e A Chegada da prostituta no céu, sobre
cordel de J. Borges. Foram diagramados à semelhança dos cordéis, e as cores
35
Ragú. N. 2 Out. 2000. Embratel; Sistema de Incentivo à Cultura de Pernambuco; Kibon
Sorvane; FacForm Gráfica; Press, Assessoria de Comunicação: Recife.
30
das capas são as usadas nesse gênero, conforme se observa nos exemplos a
seguir:
Ex. 24 – Capas da coleção Ragú Cordel (2002)
Foram lançados em 2006, pelo mesmo grupo, dois volumes da coleção
Domínio Público: literatura em quadrinhos, que reinterpreta clássicos da
literatura brasileira e estrangeira. Não se trata, segundo os autores, de mera
transposição de linguagens, mas de uma busca por um trabalho autoral,
contemporâneo.
As releituras de obras literárias são, de fato, uma das heranças mais
férteis e primeiras das HQs. Na segunda metade do século XX, já havia uma
coleção inteira de textos literários quadrinizados, publicada nos EUA sob o
título de Classics Illustrated. Essa obra se espalhou pelo mundo afora, tendo
sido publicada no Brasil sob o título de Edição Maravilhosa. Segundo Vergueiro
(2007), esse título
(...) buscava aproximar as histórias em quadrinhos das
grandes produções literárias, passando para a linguagem
quadrinística as obras dos maiores autores da literatura
31
mundial, como Charles Dickens, William Shakespeare, Daniel
Defoe, Victor Hugo, Jonathan Swift, Edgar Allan Poe, entre
outros (p. 3).
Um exemplo brasileiro do século XX é a obra Agá, de Hermilo Borba
Filho, publicada em 1974, que mistura diversas linguagens: teatro, quadrinhos,
romance, etc. (Cf. Lima, 2003).
Atualmente, porém, já se pode dizer que a inserção dos quadrinhos no
universo da literatura não mais se dá apenas pela quadrinização de obras
literárias e sim, pela criação de textos verdadeiramente artísticos. O termo
graphic novel significa romance gráfico e designa não apenas um gibi com
melhor qualidade de impressão, mas a expressão artística e subjetiva da
articulação entre texto e desenho. O próprio Will Eisner foi um precursor na
produção de HQs com alto padrão de qualidade estética e discursiva, caminho
seguido por outros quadrinistas, como Alan Moore e Eddie Campbell autores
de Inferno (2002).
Ainda resiste certo preconceito contra as obras literárias em quadrinhos
ou quadrinizadas, visto que as HQs surgiram na cultura de massa e no domínio
do entretenimento, menos valorizado pela cultura dominante do que os gêneros
literários. Mas isso tem diminuído em virtude da qualidade das graphic novels
produzidas atualmente. Um claro indício dessa mudança foi a eleição, em
2006, da obra Fun Home, como melhor livro do ano pela revista Time. De
autoria de Alison Bechdel, esse livro concorreu com consagrados autores
norte-americanos de literatura “convencional” e, ainda assim, foi selecionado
como o melhor do ano.
Essa aceitação maior, no âmbito da literatura, dos gêneros construídos
com o recurso da quadrinização, é que permitiu firmar uma literatura em
quadrinhos.
Nas artes cinematográficas, a influência dos quadrinhos é notada com a
migração de seus personagens para filmes, logo nos anos 1940, nos EUA, mas
se expande, de fato, há apenas 30 anos, com películas baseadas em
personagens diversos, espacialmente os super-heróis, como Super-Homem, de
32
1978, e Batman, de 1989. Mas é preciso pontuar que, já em 1920, houve uma
adaptação das histórias de Töpffer para o cinema
36
.
Pode-se afirmar, portanto, que os quadrinhos, desde o princípio de sua
trajetória, apresentam uma grande mobilidade nos diversos domínios
discursivos, além de grande plasticidade para recriações com base em outras
semioses, que transcendem o universo da literatura e do entretenimento, como
no caso das CQs. Das pranchas de madeira e marfim ao cinema, do
entretenimento à literatura e à ciência, as HQs prestam-se a diversas funções e
é nesse sentido que se pode falar em quadrinização, tópico a ser retomado a
seguir.
1.4 Quadrinização: características e usos
Antes de discorrer sobre quadrinização, é necessário discutir o percurso
que leva ao reconhecimento de uma linguagem específica, nascida num certo
gênero – no caso presente, as HQs – aplicável a uma imensa variedade de
outros gêneros. Considero que se trata de uma decorrência do processo de
tipificação, no sentido de Bazerman (2005). Na sua teoria social de gêneros,
afirma:
Gêneros emergem nos processos sociais em que as pessoas
tentam compreender umas às outras suficientemente bem
para coordenar atividades e compartilhar significados com
vistas a seus propósitos práticos (p. 31).
Para Bazerman, ao produzirmos textos, criamos também fatos sociais.
“Freqüentemente os fatos sociais afetam as palavras que as pessoas falam ou
escrevem, bem como a força que tais enunciados possuem.” (p. 24). A relação
entre usos sociais e os textos que perpassam esses usos é mais evidente com
gêneros altamente tipificados, como requerimentos, ofícios, etc., já que os
contextos de circulação desses gêneros são bastante específicos, assim como
seus propósitos comunicativos. Conseqüentemente, devem ser limitadas
também as possibilidades para sua interpretação e, por essas razões, a
36
Essai de bibliographie BD de Töpffer. Disponível em
http://www.pressibus.org/bd/debuts/indexfr.html
. Acesso em 29 jan. 2007.
33
configuração desses gêneros varia pouco, ou seja, são altamente tipificados. A
tipificação é assim definida pelo autor:
Ao criar formas tipificadas ou gêneros, também somos levados
a tipificar as situações nas quais nos encontramos. (...) Esse
processo de mover-se em direção a formas de enunciados
padronizados, que reconhecidamente realizam certas ações
em determinadas circunstâncias, e de uma compreensão
padronizada de determinadas situações, é chamado de
tipificação. (p. 29-30)
A noção de tipificação remete à relativa estabilidade dos gêneros
(Bakhtin, [1952-1953]2000), necessária para a intercompreensão. Nessa
perspectiva sociodiscursiva, as práticas de linguagem influenciam e são
influenciadas por suas condições de produção, e os gêneros se configuram de
uma ou de outra maneira para atender a necessidades específicas dos
interlocutores.
A quadrinização só pôde ser tomada como linguagem a partir do
momento em que elementos que a compõem, organizados numa “gramática”
específica, puderam ser reconhecidos, após um processo de estabilização.
Esse mesmo processo de tipificação de um gênero, que termina por resultar
numa linguagem específica, pode ocorrer com outras linguagens, como é o
caso do gênero cordel, manifestada na coleção Ragú Cordel (ex. 24, p. 29). Os
textos criados para essa coleção se apropriaram de alguns aspectos que
configuram os cordéis: desde a organização gráfica, o tipo e a cor do papel, a
natureza das ilustrações, até a constituição formal dos versos. Ainda assim,
não se pode dizer que são literatura de cordel típica ou histórias em quadrinhos
convencionais, mas sim, recriações quadrinizadas de textos à semelhança de
cordéis e quadrinhos. Outro exemplo é o uso da linguagem do desenho
animado em anúncios publicitários televisivos: o propósito principal é outro –
persuadir e não divertir - portanto o gênero não mais é desenho animado e sim,
publicidade. Tais casos exemplificam as múltiplas possibilidades trazidas pelo
uso da linguagem dos quadrinhos na (re)criação de gêneros que atendam a
demandas sociais determinadas.
Trata-se do fenômeno da intergenericidade, quando se tem um gênero
na forma de outro (Marcuschi, 2002). Esse é o processo que,
fundamentalmente, constitui o gênero cartilha quadrinizada: a configuração do
34
gênero história em quadrinhos é usada como recurso de textualização do
gênero cartilha educativa. Mas o gênero continua sendo cartilha quadrinizada e
não, HQ, pois seu propósito comunicativo permanece sendo o de informar e
persuadir.
De modo geral, na linguagem dos quadrinhos, em termos de sistemas
semióticos, temos o não-verbal e o verbal, nessa ordem de importância, já que
há HQ sem texto verbal, mas nunca sem imagens. Entre os recursos não-
verbais que compõem tal linguagem, encontram-se os desenhos, os requadros
(espécie de “moldura” para as cenas desenhadas), a sarjeta (o espaço em
branco entre os requadros), os balões que abrigam as falas ou o discurso do
narrador, o letreiramento (o tipo de fonte usada), a perspectiva e o plano ou
enquadramento, etc.
Em termos formais, os elementos verbais estão concretamente
manifestados nas falas dos personagens e no discurso do narrador. Mas o
discurso das HQs é construído na trama narrativa, elaborada de forma
multimodal. A seqüência temporal, por exemplo, é sinalizada de duas
maneiras: pelas imagens, cuja ordenação é evidenciada pelos cortes temporais
entre elas, que a sarjeta aponta para o leitor; e pela linguagem verbal,
especialmente pela troca de turno e pelo desenvolvimento do tópico discursivo.
Alguns recursos são bastante recorrentes nas HQs, como as onomatopéias e
as seqüências dialogais compostas de frases curtas, escritas num registro
informal. Vale ressaltar que, como em qualquer prática de linguagem, as
variações existem
37
. Por isso, pode haver requadros ou não (Eisner é um dos
autores que pouco usa os requadros); os desenhos podem ser desde os mais
realistas até os mais caricaturais; pode haver ou não texto verbal; etc.
Palavras, imagens, e todos esses outros elementos, combinados das
mais diversas maneiras, intencionalmente, produzem sentido, constituindo a
linguagem dos quadrinhos. O reconhecimento dessa linguagem, após um
37
No âmbito dos gêneros, é preciso salientar que “recorrente” não significa “igual“: o gênero
notícia é recorrente no jornalismo, o que não significa que ele assuma a mesma configuração
independentemente da linha editorial da empresa (jornalismo “sério”, sensacionalista, de
oposição, etc.); do portador (internet, jornal, revista semanal, mensal, etc.); do momento
histórico (época de eleição, de grandes tragédias, etc.), entre outros fatores. A existência da
diversidade num conjunto de textos com características similares também se aplica às CQs,
conforme demonstrarão as análises.
35
processo de tipificação, nos termos de Bazerman, é o que possibilita o
fenômeno da quadrinização.
O movimento de quadrinização de outros gêneros, com fins educativos,
começou a tomar corpo no mesmo século em que as HQs se popularizaram e
se difundiram mundialmente. Alguns desses gêneros quadrinizados eram
compostos originalmente apenas pelo componente verbal, como romances e
contos, mas havia também os que já continham alguma imagem com
propósitos didáticos, como verbetes de enciclopédias e cartilhas educativas.
Essas várias possibilidades de entrecruzamento de gêneros
representam o que Eisner (1999) denomina aplicação dos quadrinhos, recurso
que tem sido usado em domínios discursivos diversos. O conceito de domínio
discursivo pode ajudar a esclarecer o quanto a quadrinização, por “transitar”
em diversos âmbitos da vida social, assume propósitos diferenciados em cada
um deles. Na acepção de Marcuschi (2002: 23), o domínio discursivo seria uma
esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana. Trata-se
de uma noção derivada do conceito de esfera discursiva, de Bakhtin, sobre a
qual ele afirma:
No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem
diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da
representação, do símbolo religioso, da fórmula científica e da forma
jurídica, etc. Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio
modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua
própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no
conjunto da vida social (Bakhtin/Volochinov, 1977: 33).
À diversidade de campos de atuação social a que se refere Bakhtin
equivale também uma diversidade de gêneros e de práticas de letramento. No
caso do recurso da quadrinização, há muitas formas de aplicá-lo na
textualização dos múltiplos gêneros pertencentes a diversos domínios
discursivos. A quadrinização no domínio publicitário, por exemplo, terá como
meta maior a sedução dos potenciais consumidores, deverá ajudar a persuadi-
los para a compra do produto ou serviço anunciado. Já a quadrinização no
âmbito da divulgação científica funciona como um recurso didático para facilitar
a compreensão dos conceitos científicos veiculados.
Apesar dessas diferenças entre as finalidades próprias de cada esfera
discursiva, a quadrinização disseminada de gêneros outros que não as HQs
36
convencionais é, na verdade, uma estratégia de envolvimento dos leitores, seja
pela via da sedução, seja pela via da didatização. No quadro a seguir, procurei
agrupar alguns exemplos de gêneros quadrinizados, usando os critérios do(s)
domínio(s) discursivo(s) em que se inserem:
Quadro 2 – Obras quadrinizadas em diversos domínios discursivos
Domínios discursivos Exemplos
38
Político (políticas públicas)
Publicitário (campanha)
Jurídico
Cartilhas em quadrinhos sobre o
Estatuto da Criança e do
Adolescente, sobre o Código de
Trânsito, como Turma do Fonfom
(2003) e a cartilha Parceiros da
energia (2002)
39
.
Ex. 25. Ex. 26.
Político (políticas públicas)
Publicitário (campanha)
Divulgação científica (Educação
em Saúde)
Cartilhas usadas em campanhas de
promoção de saúde, como A fuga do
mosquito da dengue em busca da
água prometida (s.d.) ou Como cuidar
da hipertensão (s.d.).
Ex. 27. Ex. 28.
Publicitário
Peças publicitárias, como A turma do
Palomino (2002), um misto de
catálogo e gibi promocional das lojas
C&A; o Gibinérico de Natal (2000),
sobre os medicamentos genéricos,
publicado pela Associação Brasileira
das Indústrias de Medicamentos
Genéricos.
Ex. 29. Ex. 30.
Político
Publicitário (campanha)
Cartilhas sobre temas de interesse
dos cidadãos, como a proposta de
Reforma da Previdência, (Reforma da
Previdência! Tô fora!!) (2003), em
cartilha publicada por sindicatos; ou
de propaganda eleitoral, como Nilton
está de volta nos braços do
povo!,(2004) elaborada para a
Ex. 31. Ex. 32.
38
Os dados completos das obras do Quadro 2 encontram-se nas referências bibliográficas.
39
Para um estudo detalhado a respeito de cartilhas jurídicas, ver Mozdzenski (2006).
37
Domínios discursivos Exemplos
38
campanha do candidato Nilton
Carneiro
40
.
Literário
Obras criadas originalmente em
quadrinhos
41
, como o romance
gráfico Do Inferno, de Moore e
Campbell (2002), posteriormente
roteirizada para o cinema.Há também
várias adaptações de obras clássicas
da literatura, como Em busca do
tempo perdido, de Marcel Proust
(Adaptação de Heuet, 2003).
Ex. 33. Ex. 34.
Jornalístico
Casos de difícil categorização são as
obras de Sacco, por exemplo,
Palestina: uma nação ocupada
(2000) e Uma história de Sarajevo
(2005)- mistos de grande reportagem
e relato não-ficcional em quadrinhos.
Ex. 35. Ex. 36.
Religioso
A Bíblia em quadrinhos para a
criança (s.d.), gibis seqüenciados que
relatam episódios bíblicos. Foi
publicada ainda Bíblia em quadrinhos
(2007), revista que apresenta
episódios do antigo testamento em
quadrinhos.
Ex. 37.
Acadêmico
Comunicação de Massa
As obras de McCloud, Desvendando
os quadrinhos: história, criação,
desenho, animação, roteiro
([1993]2005) e Reinventando os
quadrinhos: como a imaginação e a
tecnologia vêm revolucionando essa
forma de arte ([2000]2006), e
Psicodrama em HQ: iniciação à teoria
e à técnica (2005) são exemplos de
literatura técnica em quadrinhos,
ainda pouco comuns.
Ex. 38. Ex. 39.
40
Governos totalitários também usaram os quadrinhos para difundir seus ideais, como os de
Mao Tse-Tung, conforme Vergueiro (2007a) aponta.
41
O romance Agá (1974) é um exemplo brasileiro. Escrito pelo romancista e teatrólogo
pernambucano Hermilo Borba Filho e quadrinizado pelo artista plástico José Cláudio,
representou uma inovação estética na época em que foi publicado, uma vez que o protagonista
se fragmenta em muitas máscaras semióticas: quadrinhos, linguagem publicitária, diálogo
dramático, literatura popular, Shakespeare e trechos bíblicos (Lima, 2003).
38
Domínios discursivos Exemplos
38
Acadêmico
Sociológico
Divulgação científica
Casa-Grande e Senzala em
quadrinhos (Freyre e Rodrigues,
[1976]2000).
Ex. 40.
Divulgação científica
Didático
Pindorama: a outra história do Brasil,
de Lailson Cavalcanti (2001),
fascículo de uma série de 12, que
conta episódios da história do Brasil
de modo irreverente; História do
mundo em quadrinhos: a ascensão
do mundo árabe e a história da África
(Gonick, 2004), obra de grande
sucesso mundial que apresenta, com
humor irreverente, a trajetória da
formação do islamismo.
Ex. 41. Ex. 42.
Divulgação Científica
Didático
HQs de divulgação científica, como
os quadrinhos de Ptix e a Turma do
Zé Neurim, concebidos pelo
neurocientista Roberto Lent e
desenhados pelo cartunista Flávio
Dealmeida (publicados em Ciência
Hoje das Crianças, em 2005 e 2006).
Há ainda a coleção Ciranda da
Saúde, financiada pelo Subprograma
de Educação para a Ciência
(CAPES), com títulos como Balas,
bombons e caramelos (cárie) e
Guerra nas entranhas
(esquistossomose).
Ex. 43.
Militar
Os manuais em quadrinhos
elaborados por Will Eisner na 2ª
Guerra Mundial ensinavam os
soldados a manusear armas e
equipamentos diversos.
Ex. 44
42
.
42
Este manual é citado como exemplo em Eisner (1999: 140), mas não há informações sobre
título, local ou data de publicação.
39
A quadrinização como recurso de textualização é uma prova da
plasticidade característica dos gêneros, pois, mesmo sendo peculiar às HQs, a
quadrinização migrou do universo de entretenimento para outros gêneros,
pertencentes a outros universos. Como expus no quadro anterior, a
quadrinização pode ser encontrada nos mais diferentes domínios discursivos,
atendendo a propósitos muito variados. Mas uma coisa há de comum: em
todos os casos, a quadrinização é um recurso de sedução do público, seja pela
via da didatização, seja pela via do caráter lúdico que pode imprimir a um
determinado gênero. Campanhas educativas promovidas nos âmbitos
municipal, estadual e federal têm utilizado, com alguma freqüência, os
quadrinhos como estratégia para se aproximar dos leitores.
De fato, o uso de imagens para facilitar a compreensão dos leitores é
uma estratégia já bastante antiga. Ainda no século VI, uma época em que
pouquíssimas pessoas sabiam ler, o papa Gregório, o Grande, declarou:
(...) aquilo que a escrita torna presente para o leitor, as
pinturas tornam presente para os iletrados, para aqueles que
só percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes
vêem a história que devem seguir, e aqueles que não
conhecem o alfabeto descobrem que podem, de certa
maneira, ler. Portanto, especialmente para o povo comum, as
pinturas são o equivalente da leitura (citado em Manguel,
2001: 143).
Nessa época, as imagens sacras eram usadas não só como elementos
decorativos nas igrejas, mas como recursos narrativos de uma história que se
desejava conhecida pela grande massa (Cf. ex. 2, díptico, p. 17).
Guimarães (s.d.), em seu artigo “História em quadrinhos como
instrumento educacional”, afirma que as imagens são não-abstratas, ou seja,
mais fáceis de serem compreendidas do que o texto verbal porque os leitores
não dependem tanto do conhecimento do sistema semiótico para entendê-las.
Essa visão é também compartilhada por McCloud (2005), quando este afirma
que “Imagens são informações recebidas. Ninguém precisa de educação
formal pra ‘entender a mensagem’. Ela é instantânea.” (p. 49)
Discordamos desse ponto de vista, pois os textos nunca nos são dados
a conhecer de forma ingênua, apartada do contexto sociocultural dos
interlocutores. Se imaginarmos dois leitores, com experiências prévias bem
40
distintas - um morador de uma metrópole ocidental e um índio integrante de
uma tribo afastada dos grandes centros urbanos – estes olharão uma mesma
imagem, mas verão coisas diferentes, até certo ponto. Parece-me que o que
induz a essa percepção da leitura de imagens como “imediata” é o fato de que
a habilidade de “ler” imagens é um aprendizado que ocorre em contextos
informais na maioria das vezes. Por essa razão, aparentaria ser “inato”, até
mais simples. Ainda assim, creio que é preciso reconhecer que o desenho
ilustrativo fala mais diretamente a uma gama variada de leitores do que a
linguagem verbal (e isso vale inclusive para falantes de uma mesma língua).
Contemporaneamente, Fairclough (2001) já indica o quanto a utilização
de diversos recursos visuais, desde imagens – fotografia, desenho, filme, etc. –
até recursos tipográficos – diagramação, cor, fonte, negrito, etc., - e formatação
especial tem se tornado um padrão recorrente em gêneros nos quais a
linguagem verbal já foi a modalidade predominante (ou exclusiva). Partindo
desse ponto, Kress e Van Leeuwen ([1996]2005) afirmam que é absolutamente
imprescindível elaborar uma teoria que dê conta das funções desses recursos
nos diversos textos. No entanto, essa teoria deve se diferenciar de certas
análises de cunho mais estrutural, em que os elementos da “sintaxe visual” são
estudados sem levar em conta as questões socioculturais implicadas. Por
exemplo, o uso de uma linha reta, de certa cor ou de determinada imagem não
tem, necessariamente, o mesmo significado para todos os leitores ou para
todos os textos em que se encontram.
Nessa direção, os pressupostos da Análise Crítica do Discurso são
acionados pelos autores para a elaboração de uma teoria capaz de subsidiar a
análise dos textos que aliam imagens e palavras. Entre eles, citamos a
necessidade de os estudos lingüísticos contemplarem a análise de aspectos
não-verbais do discurso: “é muito apropriado estender a noção de discurso a
outras formas simbólicas, tais como imagens visuais e textos que são
combinações de palavras e imagens” (Fairclough, 2001:23).
Seguindo essa linha de pensamento, a escolha pela quadrinização em
campanhas de massa, portanto, está longe de ser aleatória ou meramente
calcada na busca pelo “divertido”. Segundo a semiótica social de Kress e
Leeuwen, não há uma relação arbitrária entre significante e significado, já que
tudo depende dos interesses de quem produz os textos, sob as restrições do
41
contexto comunicativo em que esses textos são criados e em que circulam.
Não há signos imotivados, já que tudo responde a esse desejo de comunicar-
se com outros, em contextos sociais específicos. Nesse ponto, os autores se
distanciam da semiologia de Saussure e de Peirce, para os quais a
arbitrariedade dos signos é um pressuposto de base. Obviamente, Kress e
Leeuwen não supõem que os signos (palavras, imagens) remetem à realidade
de forma direta e espelhada. A motivação a que se referem diz respeito ao
processo de produzir signos (sign making) e não à relação intrínseca entre
significado e significante, como propõe a semiologia estruturalista saussureana.
A respeito dos signos e dos processos de produção de sentidos,
Bronckart (2006) afirma, de um ponto de vista sociointeracionista de base
processual e histórico-cultural:
Qualquer que seja sua delimitação e seu estatuto do ponto de
vista estrutural (signo, sintagma, proposição), cada entidade
lingüística constitui (também) um marcador, isto é, um veículo
ou um revelador material de uma ou mais operações
constitutivas do trabalho enunciativo subentendido em toda
produção verbal.
Nessa perspectiva, a configuração dos textos revela parte desse
trabalho de produção de sentidos, a partir das escolhas verbais e não-verbais
realizadas. No caso das CQs, a trama narrativa construída em quadrinhos é
uma marca desse trabalho enunciativo. Os desenhos, o texto verbal, em suma,
a HQ como um todo representam o que se pretende informar aos leitores e/ou
do que se pretende convencê-los. Apresentam um caráter didático –
necessário para que as informações científicas sejam compreendidas – além
buscarem a empatia dos leitores, ao trazerem representações sociais
conhecidas do grupo a que se dirige cada CQ.
1.5 Recursos de quadrinização relevantes para a análise de cartilhas
quadrinizadas
A linguagem dos quadrinhos, como qualquer outra linguagem, é
marcada por alguns recursos usados recorrentemente. O principal recurso e,
sem dúvida, indispensável são os desenhos: sem eles, não existe HQ. Mas
além dos desenhos, o discurso dos quadrinhos é constituído por vários outros
42
recursos, sejam verbais, não-verbais ou ainda apoiados em mais de um
sistema semiótico. Tendo em vista os objetivos deste trabalho, restrinjo a
exposição, neste item, aos recursos que considero relevantes para a análise do
corpus, baseando-me em Eisner (1999) e Mccloud ([1993]2005).
Em termos de recursos de quadrinização, não há características
exclusivas das HQs de entretenimento ou de outros gêneros quadrinizados,
tudo vai depender da função que os recursos assumem em cada caso. Assim,
antes de expor sobre recursos de quadrinização, é preciso lembra que não se
podem estabelecer fronteiras rígidas entre o que se usa em quadrinhos de
entretenimento e em quadrinhos de caráter instrucional/ informativo.
Eisner (1999), considerado um dos maiores quadrinistas do século XX,
afirma que a “arte seqüencial”, como ele denomina os quadrinhos, pode ser
dividida em duas funções gerais: instrução e entretenimento. Na primeira
categoria, enquadram-se as CQs, por sua natureza educativa. Mas ele adverte
que pode haver uma sobreposição de categorias, porque a arte seqüencial
tende a ser expositiva
43
: Segundo Eisner:
Num trabalho de arte em quadrinhos destinado puramente ao
entretenimento, muitas vezes, ocorre algum esclarecimento
técnico de natureza precisa. Exemplos comuns são a abertura
de um cofre numa história de detetives ou o acoplamento de
peças numa aventura espacial. Essa passagem técnica é na
verdade um conjunto de imagens com uma mensagem
instrutiva incrustada numa história de entretenimento. (p. 136)
Eisner traz exemplos de trechos instrucionais em HQs de
entretenimento:
Ex. 45 –
Didatização
em HQ de
entretenimento
(Eisner, 1999)
43
O autor não se refere aqui às seqüências tipológicas expositivas, nos termos de Adam
(1992), mas à função geral que a seqüência de quadros tende a assumir, já que cada requadro
expõe uma parcela de tempo e de espaço, seja de uma narração, seja de uma exposição.
43
Nesse exemplo, o papel do diagrama na narrativa de entretenimento é
de um recurso didático. Mas, para a compreensão da trama, será preciso
associá-lo à fala e à imagem do quadro seguinte.
Quanto aos quadrinhos de instrução, Eisner afirma:
No caso de quadrinhos puramente de instrução,
particularmente numa peça voltada para a indução de
comportamentos e atitudes, os elementos específicos da
informação são freqüentemente enfeitados com humor
(exagero) para atrair a atenção do leitor, dar destaques,
estabelecer analogias visuais e situações reconhecíveis.
Assim, insere-se entretenimento numa obra “técnica” (p.137).
A inserção do lúdico numa obra técnica quadrinizada é um recurso
usado por McCloud em trechos de seu livro “Desvendando os quadrinhos:
história, criação, desenho, animação, roteiro” ([1993] 2005), obra de referência
sobre quadrinhos, toda quadrinizada.
Ex. 46 – Elemento lúdico em
obra técnica quadrinizada
(McCloud, ([1993] 2005: 36).
Ex. 47 – Elemento lúdico em
obra técnica quadrinizada
(McCloud, ([1993] 2005: 37).
Nos exemplos 46 e 47, o autor brinca com o leitor ao fazer esse jogo
com os desenhos icônicos e realistas.
A citação de Eisner sobre os quadrinhos de instrução refere-se a
manuais de instrução puramente expositivos. As CQs são diferentes porque se
44
desenvolvem com base numa HQ, com enredo e personagens, mas ainda se
percebem algumas das características apontadas pelo autor. Nos itens a
seguir, discorro sobre alguns recursos da linguagem quadrinística relevantes
para analisar as CQs.
1.5.1 Desenhos: caricatura e iconicidade
Como não poderia deixar de ser, o primeiro aspecto a ser tratado são os
desenhos, a “alma” da linguagem dos quadrinhos. Numa divisão inicial, os
desenhos podem ser caracterizados como realistas - os que buscam a
aproximação com a realidade, à semelhança da fotografia – e não-realistas –
os que se distanciam dessa realidade, em maior ou menor grau. Os primeiros
teriam um caráter icônico mais evidenciado, enquanto os últimos teriam um
caráter mais abstrato, distante do referente.
No caso das HQs, os desenhos são não-realistas na maioria das vezes
e são denominados cartuns por Mccloud ([1996]2005). Ele os considera uma
forma de amplificação pela simplificação. Quanto mais abstratos forem os
desenhos, maiores as possibilidades de atribuir-lhes sentido, de associá-los a
certos referentes. O autor acrescenta:
a capacidade que o cartum tem de concentrar nossa atenção
numa idéia é parte de seu poder especial, tanto nos
quadrinhos como no desenho em geral. Outra coisa é a
universalidade de imagem do cartum. Quanto mais
cartunizado
é um rosto, mais pessoas ele pode descrever (p. 31).
E continua:
Ex. 48 – Abstração
nos quadrinhos
(Mccloud,
[1993]2005: 30,
quadro 5)
45
Os desenhos cartunizados também assumem um caráter humorístico e
por isso são tão comuns em quadrinhos de entretenimento. O caráter lúdico
das cartilhas ganha corpo também com a adoção dos desenhos caricaturais ou
estilizados. Algumas capas de CQs servem como exemplo:
Ex. 49 – Capa de CQ2 Ex. 50 – Capa de CQ4 Ex. 51 – Capa de CQ1
Na cartilha As aventuras do Super-protegido, o bom de cama (ex. 49), o
exagero humorístico e as analogias referidos por Eisner são materializados na
imagem do super-herói. O exagero encontra-se no desenho caricatural do
personagem: a boca e os olhos tomam quase toda a face, enquanto o nariz é
uma leve protuberância na máscara; não há traços para distinguir os dentes,
que são representados por uma fila branca única na boca. Percebe-se, nessa
descrição, a estilização presente na economia de detalhes com o fim de realçar
alguns aspectos que permitirão ao leitor identificar cada item representado. As
analogias podem ser identificadas na imagem da camisinha que aparece por
toda a roupa do Super-protegido: ele usa máscara, luvas e botas na forma de
camisinha, um cinto formado por várias camisinhas, duas camisinhas fazendo
as vezes de armas na cintura e um logotipo no peito, que é um desenho de
preservativo. Há ainda sombras que imitam o reflexo da luz sobre a borracha
sintética, em toda a roupa. Metonimicamente, portanto, por analogia, esse
super-herói representa a própria camisinha.
A caricatura e a estilização encontram-se também em CQ1. Percebe-se
algum exagero, próprio da caricatura: curvas femininas pronunciadas, com
seios em destaque, músculos das pernas salientes e cintura bem acentuada.
Em termos de estilização, há ainda uma camisinha personificada (ex. 51,
46
página anterior), a qual se aproxima da figura humana apenas por alguns
aspectos - presença de braços e um “rosto” – o que torna o desenho estilizado.
Trata-se de uma analogia, como diz Eisner (1999).
Há cartilhas que se utilizam de personagens já existentes. É o caso de
CQ4, em que o “Gatão de Meia Idade”, criado por Miguel Paiva e publicado em
revistas de circulação semanal, migra para a cartilha educativa. Esse
personagem é um homem de hábitos urbanos, de classe média, com boa
aparência, que faz sucesso entre as mulheres (daí essa denominação Gatão).
Nesses casos, o traço dos personagens será, necessariamente, o típico do
estilo do autor e não uma escolha pensada para as finalidades da CQ. Em CQ4
(ex. 50, p. 45), o personagem principal – o “Gatão” – e seus amigos
apresentam tanto traços caricaturais quanto estilizados. No primeiro caso, os
olhos grandes em relação ao resto do rosto é um exemplo e, no segundo caso,
a economia nos detalhes do desenho – olhos sem cílios, uma linha simples
para a boca e para as sobrancelhas, roupas sem muitos detalhes, exceto cor,
contorno e sombras, etc. Esses personagens representam homens
escolarizados de classe média, com mais de 30 anos, e as mulheres
desenhadas representam mulheres de mesmo perfil social e faixa etária, o
público leitor enfocado pela cartilha.
Nas CQs, o uso da caricatura ou estilização é uma peculiaridade
essencial, visto que elas são destinadas a inúmeros leitores e pretendem obter
alguma empatia do leitor para que as orientações trazidas sejam levadas em
consideração. Logo, personagens cartunizados poderiam alcançar essa meta
com maior facilidade.
Mas há manuais de instrução quadrinizados em que a formalidade nos
desenhos (e também na linguagem verbal) é mantida:
47
Ex. 52 – Quadrinhos
de instrução (Eisner,
1999: 140)
Em outros casos, e mesmo em HQs convencionais, o desenho é mais
realista e busca representar, de forma o mais fiel possível, traços fisionômicos
de pessoas. É comum que um autor opte por um tipo de desenho em suas
produções, o que termina por configurar uma marca de estilo.
Comparem-se os exemplos a seguir, um desenho realista e outro
caricatural:
Desenho realista Desenho caricatural
Ex. 53 - Lex
Luthor
44
,
inimigo do
Super-
Homem.
Ex. 54 –
Recruta
Zero
45
.
44
Imagem disp. em http://www.geocities.com/mirco25/home.htm. Acesso em 23 nov. 2007.
45
Imagem disponível em http://www.arcadovelho.com.br/Quadrinhos/Zero/recruta_zero.htm.
Acesso em 03 dez. 2007.
48
Segundo McCloud ([1993] 2005), optar entre um traço realista ou
caricatural faz grande diferença na produção de sentido dos quadrinhos, já que
a atenção do leitor estará voltada, em cada caso, para aspectos diferentes:
Ex. 55 - Imagens realísticas em quadrinhos (McCloud, [1993]2005: 91)
Ex. 56 – Imagens icônicas em quadrinhos (McCloud, [1993]2005: 90)
Para as CQs, essa é uma peculiaridade essencial, visto que elas são
destinadas a inúmeros leitores e pretendem obter alguma empatia desse
público para que as orientações dadas sejam levadas em consideração. A
maioria das cartilhas em quadrinhos faz uso de personagens cartunizados.
Minha hipótese é que essa espécie de traço teria duas funções: 1) facilitar a
interlocução com diferentes leitores, ou seja, ao ampliar as possibilidades de
associação dos desenhos a mais pessoas, a cartilha “falaria” com um público
maior; 2) estabelecer uma atmosfera de descontração, como é própria das HQs
de entretenimento, também para persuadir o leitor a conhecer a informação
veiculada nas CQs.
Vejamos o que diz McCloud (2005[1993]: 42, quadros 3 a 6) a respeito:
49
Por outro lado, os desenhos podem assumir uma dimensão distinta
quando se pensa no caráter científico da informação, como é o caso das
cartilhas analisadas. O discurso da ciência se caracteriza pela necessidade de
construir e expor conceitos ou, ao menos, de fazer crer que as polêmicas não
existem e trata-se de fatos inquestionáveis (cf. Latour, 2000). Já o discurso de
divulgação científica tem uma preocupação extra: fazer que tais conceitos
sejam entendidos pelas pessoas às quais se dirige cada texto.
Assim, os gêneros de divulgação científica se valem de estratégias
discursivas diversas: uso de metáforas, paráfrases e expressões sinônimas;
inserção de pequenas narrativas; associação com imagens variadas:
desenhos, diagramas, infográficos, tabelas, diversas espécies de quadros. (cf.
Gomes, 2000). As CQs, ainda que produzidas e veiculadas no âmbito da
propaganda institucional, domínio discursivo distinto daquele em que se criam
50
e circulam os gêneros de divulgação científica (cf. Zamboni, 1997, citada por
Gomes, 2000:8), se preocupam também com o entendimento dos leitores.
Quanto à relação entre conceito e imagem, McCloud continua:
Ex. 57 –
McCloud (2005:
41, quadro 2)
Ex. 58 –
McCloud
(2005: 41,
quadro 7)
No caso de um gênero baseado em imagens, como a cartilha em
quadrinhos, o tipo de desenho usado pode ser crucial para se compreender a
informação ali apresentada. Nas cartilhas, essa abstração estará sendo usada
mais evidentemente nas cenas que pretendem mostrar conceitos científicos.
Para Kress (2003), o caráter icônico dos desenhos auxiliam na
construção da cientificidade conforme o autor a concebe, especialmente por
seu poder de abstração. Kress acredita que a cientificidade é um construto
social, que emerge em contextos sociais específicos. Nesse sentido, se são
diversos os gêneros que veiculam o discurso científico, entre eles, as CQs,
serão também diversas as formas de construção desse discurso científico. Por
isso, algumas características da cientificidade serão manifestadas por meio de
diferentes recursos.
Conforme Kress, na dimensão da ciência, a necessidade de abstração
para apresentar conceitos generalizantes é também um dos atributos da
cientificidade (ao menos, nos moldes ocidentais). O autor analisa duas tarefas
de relato de experiência científica, composto de texto e desenho de célula, feita
por alunas do ensino fundamental. O professor dessas estudantes solicitou que
elas registrassem, em desenho e em texto verbal, o que puderam observar ao
olhar uma célula no microscópio. Eis as tarefas analisadas:
51
Ex. 59 – Produção multimodal de cientificidade
(Kress, 2003).
Ex. 60 – Produção multimodal de cientificidade
(Kress, 2003).
O autor afirma que o primeiro desenho (ex. 59), embora esteja
textualmente incompleto, pois mostra apenas parte da célula, está
conceitualmente completo, pois mostra o que é relevante a ser relatado, o que
é suficiente para se compreender como é a célula, propósito central da tarefa
escolar. Não é realista: não tem fronteiras reais na horizontal, diferentemente
do que se visualiza no microscópio. É, ainda, abstrata, diagramática,
generalizante, em suma, trata-se de um objeto teórico e não um objeto natural,
do cotidiano. Nesse desenho, segundo Kress, os objetos são mostrados de
forma estática, estável, elementos regulares num arranjo regular. O desenho
contrasta com o relato escrito, que mostra um mundo de acontecimentos:
“Primeiro, Amanda e eu arrumamos todo o equipamento
46
”. A posição dos
interlocutores é “objetiva”: de frente para a imagem, que é apresentada de
forma neutra, pois simplesmente ela está lá.
46
Início do relato do exemplo 59: “What I did. First, Amanda and I collect all the equipment.”.
52
Já a segunda imagem (ex. 60) é textualmente e conceitualmente
completa: o que se mostra é o que foi realmente visto no microscópio. É
apresentada objetivamente e é mostrado não só o que foi visto, mas com que
meios se viu (o contorno redondo do microscópio). A cientificidade é
representada pela precisão na observação e na representação; a verdade é o
mundo empírico. A forma diagramática é própria do realismo do mundo
científico-tecnológico e apresenta o que são as coisas, descrevendo-as
visualmente.
Nesses dois exemplos, temos duas características da cientificidade, que
são materializadas através da multimodalidade de forma bastante diferente: a
abstração generalizante, que permite construir conceitos aplicáveis a outras
realidades (ex. 59); e a preocupação com a verdade empírica, que leva ao uso
de diagramas, esquemas, etc. (ex. 60). Latour (2000) já apontava que essas
representações visuais, muito comuns em textos científicos, são parte do
arsenal montado pelos cientistas para convencer os leitores de suas idéias.
Elas seriam, na opinião de Latour, uma manobra muito mais poderosa que a
referência a artigos ou eventos ausentes do texto. Vejamos o que diz o autor:
Há, porém uma manobra muito mais poderosa, que é mostrar
exatamente aquilo que está no texto. Por exemplo:
(28) A purificação final desse material por cromatografia analítica
líquida de alta pressão e fase reversa (HPLC) produziu três
peptídeos extremamente purificados, com atividade de GRF (fig. 1)
Os autores não estão pedindo que acreditem neles. Não
mandam o leitor sair dos textos e ir às bibliotecas fazer a lição
de casa, lendo pilhas de referências, mas o remetem à Figura 1,
que está no próprio artigo:
(p. 79)
53
No exemplo anterior, nota-se a marca da intertextualidade explícita na
citação à fonte onde o gráfico foi publicado (Revista Science), característica do
discurso científico. A força retórica própria da utilização de gráficos em artigos
científicos pode ser também alcançada em CQs. Embora não tão freqüentes
quanto nos gêneros acadêmicos, os diagramas
47
também podem aparecer nas
cartilhas, seja em meio à narrativa, seja fora dela, como é o caso da
contracapa da cartilha A fuga do mosquito da dengue em busca da água
prometida, que ostenta um diagrama do ciclo evolutivo do mosquito.
Ex. 61 - Diagrama na 4
a
capa
da cartilha A fuga do
mosquito da dengue em
busca da água prometida
48
.
O diagrama, gênero comum em textos científicos, é apresentado na 4
a
capa, como informação que “finaliza” toda a história e que ressalta o caráter
científico da publicação. Associam-se ao diagrama o desenho realista da mão e
os desenhos esquemáticos (da larva e do mosquito), esses próprios do âmbito
da ciência, pois servem para generalizações, já que o detalhes não relevantes
para o reconhecimento do objeto teórico “mosquito da dengue” são omitidos.
Também o fato de serem apenas em preto e branco é uma marca de
cientificidade (cf. Kress, 2003), uma vez que o uso de cores seria mais
apropriado a elaborações artísticas. O possível efeito desejado é que não
restem dúvidas sobre a credibilidade das informações, o que é reforçado pelos
47
Os gráficos são pouco usados em CQs, talvez pela complexidade de leitura que trazem:
eixos vertical e horizontal, uso de metáforas visuais diversas (barra, pizza, linhas, etc.),
legendas, múltiplas variáveis, etc.
48
Prefeitura da Cidade do Recife, SUS, s.d. Cartilha educativa.
54
logotipos institucionais (Sistema Único de Saúde, Prefeitura do Recife e Agente
de Saúde Ambiental) que as acompanham.
Em outras cartilhas, os cuidados com a prevenção também podem ser
“mostrados” em desenhos e não apenas narrados. É o caso de CQ5, que
enxerta, em meio à trama narrativa, painéis escolares feitos pelos alunos:
Ex. 62 – Painéis escolares, CQ1, p. 10-11.
Ex. 63 – Painéis escolares, CQ1, p. 12-13.
55
É exatamente a esse perfil de jovens que se destina a cartilha: os que
freqüentam a escola e cursam a educação básica. Os painéis explicativos
sobre DSTs/aids apresentam dicas de prevenção e procedimentos de uso de
preservativo e de desinfecção de agulhas, organizados em tópicos
entremeados com imagens explicativas, algo comum em fôlderes educativos.
Um exemplo incomum nas CQs é a presença de um dos quadros da
narrativa ilustrando determinado procedimento, mas cuja imagem não faz parte
da narrativa, nem está à vista dos personagens. Trata-se de uma imagem
didática, que explica para o leitor como se usa o preservativo masculino:
Ex. 64 – CQ2, p. 4
56
O terceiro quadro é um desenho que ensina a usar a camisinha, mas ele
não é visível para os personagens da história. O Super Protegido está
explicando oralmente aos gaúchos como se usa a camisinha, mas o leitor da
cartilha “vê” o procedimento no quadro 3. Esse desenho, em detalhe, de um
homem colocando o preservativo talvez preencha a função de muitas imagens
usadas em livros didáticos, apontada por Kress e Van Leuween ([1996]2005): a
imagem não mais ilustra o texto verbal; o texto verbal é que comenta a
imagem. O assunto principal está na imagem. O mesmo ocorre na cartilha
analisada: para os propósitos da cartilha, o que interessa é ensinar ao leitor
como usar o preservativo, e nada mais eficiente do que a imagem para fazê-lo.
O inusitado é fazer um desenho que não está inserido numa cena da história,
mas ele próprio é uma cena completa, uma “cortina” que se abre apenas para o
leitor da cartilha. Ainda há o desenho do primeiro balão de pensamento do
quadro 6, que também explicita, na imagem, a orientação verbal do Super-
Protegido: “Ou pedir que coloquem em você. Já pensou nisso?” (quadro 5).
Em suma, a presença de diagramas e desenhos técnicos ou ilustrações
parece ter um propósito distinto da manobra retórica em artigos acadêmicos, já
que o leitor das cartilhas é o leigo e não o cientista. Isso será discutido no
capítulo 4, que trata da função sociocomunicativa da diversidade de gêneros
nas CQs.
1.5.2 Letreiramento
Um outro recurso semiótico importante nos quadrinhos é a escolha das
fontes. Eisner (1999: 10) afirma que o “letreiramento, tratado graficamente e a
serviço da história, funciona como uma extensão da imagem. Neste contexto,
ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão de som.”.
Ele próprio, como quadrinista, utilizou bastante as múltiplas
possibilidades de efeitos de sentido obtidos com o uso de fontes especiais,
conforme se pode verificar no exemplos que seguem.
57
Ex. 65 – Letreiramento
e produção de sentido
(Eisner, 1999: 10).
Ex. 66 – Letreiramento
e produção de sentido
(Eisner, 1999: 11).
No primeiro, evoca-se a idéia de permanência – as letras estão gravadas
em pedra - e o reconhecimento universal dos dez mandamentos de Moisés,
além da mistura de letras hebraicas e romanas. No segundo, as letras
“encharcadas” reforçam a atmosfera lúgubre evocada na história. Pelos
exemplos, percebem-se as imensas possibilidades estéticas da criação e do
uso de fontes nos quadrinhos.
Nas CQs, esse trabalho mais refinado não é muito freqüente. Os
exemplos a seguir são uma mostra das ocorrências encontradas:
58
Ex. 67 – CQ4, p.18. Ex. 68 – CQ4, p. 19.
As palavras destacadas pela cor vermelha e pelo tamanho, posicionadas
lado a lado quando a cartilha está aberta, compõem um contraponto: de um
lado, o prazer que todos desejam nas relações sexuais, mas que o uso da
camisinha eliminaria; e, de outro lado, a necessidade de se proteger, que
enfrenta a resistência masculina.
O exemplo a seguir, por sua vez, usa itálico para diferenciar a fala do
narrador (quadro 1) e a fala das personagens:
Ex. 69 – Uso de itálico
em CQs; CQ1, p. 6,
quadros 1 e 2.
59
Fontes especiais também podem produzir efeitos de sentido relevantes
para os objetivos das CQs, como as letras “emborrachadas” de CQ2 (cf. ex. 49,
p. 45), que lembram a borracha do preservativo masculino, ou ainda as letras
“tremidas”, “temerosas”, usadas na palavra cuidado, alertando para os modos
de transmissão de DSTs/aids nos painéis escolares de CQ1 (cf. ex. 63, p. 54).
Em suma, verificou-se a presença das seguintes opções para as letras
nas cartilhas: a) uso de negrito para indicar ênfase na fala ou elevação do tom
de voz, geralmente em cenas mais dramáticas da narrativa, como é comum em
HQs; b) uso de itálico para indicar a fala do narrador; c) uso de cores fortes
para ressaltar alguma informação importante; d) uso de layout especial (letras
tremidas, etc.), alternativa menos comum nas CQs.
1.5.3 Tempo e espaço nas histórias em quadrinhos: transição entre
cenas
As noções de tempo e espaço são bastante relevantes na linguagem
dos quadrinhos, constituindo, inclusive, a definição dessa linguagem. Partindo
do conceito enxuto de Eisner (1999), para quem os quadrinhos são “arte
seqüencial”, McCloud ([1993]2005) rediscute-o e chega à seguinte definição:
“Imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada, destinadas
a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador.” (p. 9).
Propositalmente, McCloud deixa a definição vaga quanto a conteúdo, estilo,
suporte, já que ele pretende demonstrar a imensa variabilidade dos quadrinhos.
Segundo Cirne (2000: 23-24), “quadrinhos são uma narrativa gráfico-visual,
impulsionada por sucessivos cortes, cortes estes que agenciam imagens
rabiscadas, desenhadas e/ou pintadas.” Em todas essas definições, a questão
da seqüência temporal é central.
Manguel (2001: 24), partindo do pressuposto de que “formalmente, as
narrativas existem no tempo e as imagens, no espaço”, aproxima o modo como
se manejam essas duas dimensões da narrativa nos quadrinhos e nas pinturas
da Idade Média, quando ainda não se usava a perspectiva nos quadros:
(...) um único painel pintado poderia representar uma seqüência
narrativa, incorporando o fluxo do tempo nos limites de um mesmo
quadro espacial, como ocorre nas modernas histórias em
quadrinhos, com o mesmo personagem aparecendo em uma
paisagem unificadora, à medida que ele avança pelo enredo da
pintura.
60
McCloud afirma: “o espaço é para os quadrinhos o que o tempo é para o
filme.” (p. 7), pois é no papel que a passagem do tempo é representada. No
capítulo Usando a sarjeta, McCloud discorre sobre o papel da sarjeta – espaço
em branco entre os requadros – no desenvolvimento da narrativa e,
evidentemente, na passagem do tempo. A sarjeta materializa os cortes
sucessivos da narrativa para dar seqüência aos fatos.
Para “ler” a sarjeta, é preciso fazer inferências, baseadas nos quadros
anterior e posterior a ela. É o que o autor chama de conclusão, para a qual os
quadrinhos contam com a colaboração consciente e voluntária do público, que
é “o agente de mudança, tempo e movimento” (p. 65), um “cúmplice silencioso”
das ações narradas (p. 68). Para McCloud, grande parte da magia dos
quadrinhos reside na freqüência com que os leitores têm de inferir o que
acontece entre os quadros. A sarjeta, espaço entre os quadros presente na
HQs modernas, é que termina por imprimir a sensação de passagem do tempo
através dos cortes. Por isso, McCloud afirma que tempo e espaço se fundem
numa só dimensão nas HQs, o que, na sua opinião, tem encantado os leitores:
“Assim sendo, como leitores, nós temos a vaga sensação de que, movendo-se
pelo espaço, nossos olhos também estão se movendo pelo tempo – só não
sabemos quanto!” (p. 100). Um exemplo seria a seqüência a seguir:
Ex. 70 – McCloud
([1993]2005) – p. 66,
quadros 1 e 2.
McCloud expõe seis tipos de transição entre os quadros, que demandam
a ativação de inferências em vários graus, desde a transição menos complexa -
momento a momento - até a mais complexa – non-sequitur. Acrescenta que
alguns autores têm preferência por um dos tipos de transição enquanto outros
usam diversos tipos, como Spielgelman. Eis a categorização das transições:
61
Ex. 71 – Tipos de transição entre quadros (McCloud, [1993]2005, p. 74, quadro 1).
Segundo McCloud, as transições 2, 3 e 4 são as mais comuns nos
quadrinhos ocidentais nessa ordem decrescente de freqüência, porque são as
mais adequadas para mostrar a ação, característica da produção quadrinística
ocidental. O tipo 6 – non-sequitur – é usado em quadrinhos experimentais e
pouco convencionais, com propósitos estéticos. Já as transições 1 e 5 são
típicas dos quadrinhos japoneses, os quais se distinguem pela preocupação
com os efeitos artísticos, com a criação de atmosferas e de sensações sobre o
lugar em que ocorre a história, conforme ilustram os exemplos a seguir:
Ex. 72 – Transição
momento-pra-
momento em
quadrinhos japoneses
(Mccloud, [1993]2005:
78, quadro 3).
Ex. 73 - Transição
aspecto-pra-aspecto
em quadrinhos
japoneses (Mccloud,
[1993]2005: 78,
quadro 5).
62
A transição do tipo 1, momento-pra-momento, mostra as ações e
reações dos personagens passo a passo. É usada para enfatizar sensações
dos personagens ou certo clima, criando efeitos estéticos interessantes em
quadrinhos de entretenimento ou de cunho mais artístico. Exige bastante
espaço da narração para se realizar, pois o que se poderia contar em dois
quadros, como na transição ação-pra-ação, é estendido a alguns quadros.
Creio que o uso para finalidades artísticas e o grande espaço exigido são as
razões para a ausência dessa espécie de transição nas CQs analisadas.
De modo geral, as CQs não variam muito o tipo de transição entre os
quadros, e nelas predominam os mesmos três tipos mais utilizados nos
quadrinhos ocidentais de entretenimento (McCloud, [1993]2005): ação-pra-
ação, tema-pra-tema e cena-pra-cena. Entretanto, a freqüência é outra: a mais
comum também é a transição ação-pra-ação, mas seguida do tipo cena-pra-
cena. A menos usada é a transição tema-pra-tema, talvez porque ela exija um
maior grau de inferência por parte do leitor, podendo gerar alguma dificuldade
de compreensão, o que não seria desejável em cartilhas de caráter educativo,
como as do corpus.
O tipo 2 de transição - ação-pra-ação - é bastante comum nos
quadrinhos de entretenimento e também nas cartilhas. Exige um pouco mais de
investimento cognitivo por parte do leitor porque a sarjeta entre uma cena e
outra “esconde” alguns momentos da narrativa. Contudo, poupa espaço no
papel, possibilitando trazer mais informações para o leitor daquela cartilha. No
exemplo a seguir, a aproximação de Suely da garota que chora não é
mostrada, mas pode ser inferida pelo leitor, que já vê o diálogo em andamento
no segundo quadro.
Ex. 74 – Transição ação-pra-ação, CQ3, p. 5, quadros 1-2.
63
A transição tema-pra-tema, permanecendo dentro de uma cena, exige
do leitor alto grau de inferência para compreender a passagem de um quadro a
outro, pois o corte entre as cenas é mais abrupto que na transição ação-pra-
ação. Presta-se a mostrar “recortes” de uma mesma cena, para que o leitor
reconstrua a imagem completa, mas esteja a par de alguns detalhes. Não é
muito comum nas cartilhas, talvez porque pode dificultar a compreensão da
seqüência narrativa, essencial para a concretização dos objetivos didáticos
desse gênero. Apenas CQ1 faz uso desse artifício, quando passa de uma cena
de amigas conversando para uma cena de close da camisinha.
Ex. 75 – Transição tema-pra-tema, CQ1, p. 16, quadro 4; p. 17, quadro 1.
A transição cena-pra-cena, por sua vez, permite a passagem através de
distâncias significativas de tempo e espaço e está presente nas cartilhas com
uma função didática muito evidente.
A seguir, um exemplo de CQ4, em que o quadro 1 remete a uma cena
num tempo e espaço diferentes do que acontece no quadro 2. A cena 1,
traçada como um balão de pensamento, exemplifica para o leitor uma atitude
equivocada do personagem. Já a cena 2 retrata o momento presente, em que o
discurso nega a realidade mostrada no quadro anterior. Essa alternância de
tempos e espaços que o tipo de transição permite, estratégia recorrente em
CQ4 (e também em CQ5), exemplifica para o leitor uma contradição entre o
que o homem desse perfil social fala para os amigos sobre sua vida amorosa e
sexual e o que ele, de fato, sente e faz.
64
Ex. 76 – Transição cena-pra-
cena, CQ4, p. 4.
Outros exemplos de transição com função didática serão analisados
mais detalhadamente no capítulo 3.
1.5.4 Planos e ângulos de visão
Os planos ou enquadramentos também podem ser recursos importantes
para construir sentido em textos quadrinizados. Para Vergueiro (2007b: 40), os
planos “representam a forma como uma determinada imagem foi representada,
limitada na altura e na largura, da mesma forma como ocorre na pintura, na
fotografia e no cinema”.
A seguir, reúno, num quadro, a categorização exposta por Vergueiro, na
qual os seis planos são nomeados conforme se referirem à representação do
corpo humano, do mesmo modo como se faz no cinema. Exemplifiquei com as
cartilhas do corpus.
65
Quadro 3 – Tipos de planos em HQs (Vergueiro, 2007b: 40-43)
Planos Exemplos
1. Plano geral
Enquadramento
bastante amplo, de
forma a abranger tanto
a figura humana como,
também, todo o cenário
que a envolve. Equivale
às descrições do meio
ambiente nos romances.
Ex. 77 – Plano geral em CQs; CQ1, p. 3, quadro 1.
2. Plano total ou de
conjunto
Representa apenas a
pessoa humana e pouco
mais, não permitindo ver
muitos detalhes do
espaço em volta do(s)
personagem(ns). A
representação do
cenário é a menor
possível.
Ex. 78 – Plano total ou de conjunto em CQs; CQ3, p. 7, quadro 3.
3. Plano médio ou
aproximado
Representa os seres
humanos da cintura
para cima. Permite que
se tenha mais clareza
dos traços fisionômicos
e expressões dos
personagens e é muito
utilizado para cenas de
diálogos.
Ex. 79 – Plano médio em CQs; CQ2, p. 7, quadro 5.
4. Plano americano
Retrata os personagens
a partir da altura dos
joelhos, baseando-se na
idéia de que, em uma
conversação normal,
nossa percepção da
pessoa com quem se
está falando se dilui a
partir desse ponto da
anatomia humana.
66
Planos Exemplos
Ex.80 – Plano americano em CQs; CQ6, p. 15, quadro 2.
5. Primeiro plano
Limita o enquadramento
à altura dos ombros da
figura representada,
salientando a expressão
do personagem e seu
estado emocional.
Ex. 81 – Primeiro plano em CQSç CQ4, p. 8, quadro 2.
6. Plano de detalhe, de
pormenor ou close-up
Limita o espaço em
torno de parte de uma
figura humana ou de um
objeto em particular.
Serve para realçar um
elemento da figura que
normalmente passaria
despercebido ao leitor.
Ex.82 – Plano close-up em CQs; CQ5, p. 4, quadro 1.
Nas CQs analisadas, há pouquíssimas cenas em plano geral. Uma
exceção é CQ1, com exemplo no quadro acima. O objetivo das CQs é passar
informações sobre DSTs/aids e não contar uma história, em que a descrição do
ambiente pode ser essencial. Assim, o enquadramento em plano geral não tem
grande relevância nesse gênero porque não tem uma função didática evidente.
Também não se destacam pela função didática os planos total,
americano e médio, usados nas CQs, em vários momentos. Entretanto, ao lado
desses tipos de enquadramento, o primeiro plano, também comum nas
cartilhas estudadas, aparece, muito especialmente, para destacar as emoções
do personagem ao dizer algo importante, ao revelar suas dificuldades, dúvidas
e angústias. É um recurso que empresta dramaticidade à narrativa ou realça
alguma informação relevante.
67
Ex. 84 – Primeiro
plano; CQ4, p. 9,
quadro 1.
Ex. 83 – Primeiro
plano; CQ1, p. 7,
quadro 1.
Já o plano de detalhe é bastante usado na explicação de procedimentos.
Ex. 85 – Plano de
detalhe; CQ6, p. 14,
detalhe.
Nesses momentos, fazer chegar ao leitor a informação científica de
modo claro e correto é o objetivo. Assim, mostrar em close as cenas que
orientam sobre o uso de preservativo e a desinfecção de seringas, presentes
em CQ1, CQ2 e CQ6, é uma estratégia mais eficaz para a compreensão das
informações.
O uso de planos em materiais didáticos é estudado por Kress e Van
Leeuwen ([1996]2005). Os autores analisam um capítulo de um livro didático
de História australiano, destinado às séries iniciais, e destacam o contraste
68
estabelecido pelo livro entre os instrumentos e armas dos aborígenes,
mostrados em close, e o instrumentos e armas dos britânicos, inseridos numa
cena de ação.
Os autores afirmam que as imagens não se distinguem apenas por
aquilo que incluem ou excluem (os usuários da tecnologia, presentes apenas
na imagem 2; cf. ex. 86, a seguir). Elas diferem também na estrutura, pois
interrelacionam seus elementos de forma distinta. Os elementos da esquerda
estão arranjados simetricamente, sobre um fundo neutro, e os objetos estão
representados em tamanho igual, embora a diferença de tamanho real entre
eles seja muito diferente. Já os elementos da imagem 2 estão dramaticamente
relacionados, num padrão “transacional”, numa cena de ação, segundo a
gramática sistêmica, teoria que embasa a semiótica social de Kress e Van
Leeuwen:
Ex. 86 – Página de livro didático de História australiana (Kress e Van Leeuwen, [1996]2005: 43,
citando Oakley, 1985).
Além disso, estão dispostos seguindo o eixo horizontal, criando certa
similaridade entre os três objetos:
“A imagem diz, como era: este machado, esta cesta e esta
espada de madeira todas pertencem à mesma categoria
abrangente (uma categoria que, ocasionalmente, está apenas
sugerida, e que inclui a noção de ‘ferramentas’ e a noção de
‘armas’)” (p. 43-44)
69
Os autores continuam apontando diferenças dicotômicas entre a imagem
da direita e da esquerda: esta é impessoal, estática, seca e conceitual,
enquanto aquela é pessoal, dinâmica e representa tecnologia em ação.
Destaco, ainda, que esse contraste não se dá apenas visualmente, mas
verbalmente também. As legendas das imagens, embora aparentem
neutralidade, uma vez que são formuladas como afirmação factual – “Os
britânicos usavam armas” (The British used guns) – e descrição objetiva –
“Machado de pedra, cesto de casca de árvore e espada de madeira” (Stone
axe, bark basket and wooden sword). – ao serem associadas a imagens de
natureza bem diversa e expostas lado a lado, na mesma página, podem
contribuir para interpretações estereotipadas sobre os dois povos.
Assim, enquanto os britânicos agem, usam as armas, os aborígenes
apenas têm os instrumentos, o que pode ser associado a um grupo ativo e um
grupo passivo, respectivamente. A imagem da direita reforça esse ponto de
vista: os britânicos aparecem em postura ativa, empunhando armas e
explorando a terra, enquanto os aborígenes aparentemente esperam, ao fundo
da cena.
No caso das cartilhas, algo similar à aparência impessoal e, portanto,
mais científica, de certas informações, como na imagem das armas
aborígenes, pode ser observado. Isso ocorre na exposição dos procedimentos
preventivos a serem compreendidos pelo leitor, que também contam com a
apresentação isolada de cada etapa (cf. ex. 85, p. 67), sem nenhum
personagem envolvido. Do mesmo modo, não há dramaticidade, pois essas
cenas, que ocorrem apenas em CQ1, CQ2 e CQ6, estão à parte da narrativa,
em gêneros intercalados na cartilha.
Já os ângulos de visão se dividem em três tipos básicos, seguindo ainda
a categorização exposta por Vergueiro (2007b: 43-45), que transcrevo no
quadro a seguir, com exemplos recolhidos nas cartilhas:
70
Quadro 4 – Tipos de ângulos de visão em HQs (Vergueiro, 2007b: 43-45)
Ângulos Exemplos
1. Ângulo de visão
médio
A cena é observada
como se ocorresse à
altura dos olhos do
leitor. É a mais comum,
normalmente utilizada
em cenas de ação mais
lenta.
Ex. 87 – Ângulo de visão médio; CQ2, p. 8, quadro 3.
2. Ângulo de visão
superior
Também chamado de
plongé ou picado, nela a
ação é enfocada de
cima para baixo.
Normalmente permite
que os personagens
sejam diminuídos,
quase que encurralados
pelo meio ambiente ou
pelas adversidades. São
usados em momentos
de grande tensão,
quando se deseja
causar suspense.
Ex. 88 – Ângulo de visão superior; CQ1, p. 8, quadro 1.
71
Ângulos Exemplos
3. Ângulo de visão
inferior
Também conhecido
como contre-plogé ou
contra-picado, nele se
vê a ação de baixo para
cima. Em geral, é
utilizado para enaltecer,
engrandecer ou tornar a
figura retratada mais
forte do que ela
realmente é. Muito
comum em histórias de
super-heróis,
principalmente para
salientar a figura do
protagonista.
Ex. 89 – Ângulo de visão inferior; CQ6, p. 04, quadro 1.
Os ângulos menos convencionais – superior e inferior – são pouco
usados nas cartilhas. Uma exceção é o exemplo da cartilha Atotô (CQ6),
exposto no quadro anterior. Nele, o ângulo inferior e os grafismos em espiral
destacaram a superioridade das divindades africanas representadas.
1.5.5 Quem nos olha na imagem
Este item se dedica a um detalhe que Kress e Van Leeuwen
([1996]2005) consideram importante na configuração visual de imagens com a
figura humana: o olhar. Para os autores, as imagens em que o olhar fixo da
pessoa representada se dirige diretamente ao leitor estabelecem com ele uma
relação imaginária, enquanto imagens mais analíticas e esquemáticas
convidam ao escrutínio impessoal, distante (p. 90). Essa relação direta com o
leitor (relação de envolvimento, em última instância) também é construída por
meio de outros recursos visuais, especialmente em gêneros publicitários. É o
caso da noção de abundância de partes (ou ingredientes ou variedades de um
produto), da fascinação pela qualidade do produto, estimulada por texturas
72
brilhantes e vívidas, que predominam em relação a uma análise objetiva. Nas
palavras dos autores, “A persuasão está em primeiro plano, instrução e
exposição estão em segundo plano.” (p. 90). Outro exemplo de livro didático é
apresentado:
Ex. 90 – O olhar do “ator” em livros
didáticos (Kress e Van Leeuwen,
[1996]2005: 91, citando Oakley,
1985).
Os autores afirmam que a meta da lição não se restringe a ensinar às
crianças fatos objetivos sobre a exploração da Antártida, mas fazê-las se
identificarem emocionalmente com um herói aventureiro, Sir Douglas Mawson.
Continuam dizendo que esse apelo à subjetividade do aluno vai diminuindo
com o passar dos anos escolares:
Livros didáticos de séries mais avançadas já se dirigem aos
leitores como se eles não mais precisassem de imagens,
como se eles tivessem se acostumado ao naturalismo do
cotidiano e como se tivessem adquirido uma atitude
impessoal, característica da aprendizagem superior e da
apreciação superior de arte na nossa cultura (p. 91).
Nas cartilhas analisadas, também há cenas em que os personagens
olham diretamente para os leitores:
73
Ex. 91 – O olhar dos
personagens; CQ3, p.
14, quadros 4-5.
Ex. 92 – O olhar dos
personagens; CQ4, p.
17.
Como o próprio título da cartilha indica – De homem para homem – a
proposta de CQ4 é estabelecer uma espécie de “conversa de homem para
homem” com o leitor, sobre assuntos dificilmente tratados entre homens. A
imagem do exemplo 92 inicia uma “virada” na seqüência narrativa da cartilha,
quando, após a apresentação de diversas situações-problema, o Gatão de
Meia-Idade passa a falar algumas “verdades” ao leitor.
Nos dois últimos quadrinhos de Compartilhando a vida (CQ3) (ex. 91), o
personagem também olha diretamente para o leitor, como um convite para, a
despeito de ser soropositivo, compartilhar a vida com alegria, proposta
evidenciada no título da cartilha.
Em CQ5, há outro exemplo: a jovem está em primeiro plano em relação
ao rapaz que consulta o site com dicas sobre DSTs/aids. Ela também olha para
o leitor, mas, se levarmos em conta as cenas anteriores da história, poderia
também estar olhando para os demais personagens que a rodeiam. Essa
possibilidade, porém, se revela pouco provável, uma vez que o interlocutor da
74
pergunta – o médico - está “dentro” da cena, escrevendo na tela do
computador, e não, fora dela, para onde se dirige o olhar da personagem.
Assim, fica mais evidente que o efeito desejado é “trazer” o leitor da cartilha
para participar da história, como se este fosse mais um dos jovens que está
tirando dúvidas sobre as doenças. E esse é um dos objetivos da cartilha: obter
a empatia, a cumplicidade com o público-alvo:
Ex. 93 – O olhar dos personagens; CQ5, p. 4, quadro 1.
Ex. 94 - O olhar dos personagens; CQ5, p. 1, quadro 1.
Nos momentos em que os personagens das cartilhas olham para o leitor
diretamente, busca-se atender à necessidade das CQs de envolver o público a
que se dirigem, de fazê-lo um pouco parte da narrativa. Não se trata de um
recurso didático, mas de uma estratégia de envolvimento. Como diriam Kress e
Van Leeuwen ([1996]2005), o principal efeito dessa imagem seria a persuasão
e não a informação. O objetivo seria não só ensinar sobre fatos objetivos, mas
fazer o leitor identificar-se emocionalmente com as dúvidas e angústias sobre
as DSTs/aids, o que é muito importante para a eficácia da campanha. Nesses
75
casos, destaca-se, entre as duas funções básicas das cartilhas, a de
convencer.
Feita essa discussão sobre alguns recursos usados na quadrinização
com fins didáticos, que será aprofundada no capítulo A linguagem em cartilhas
quadrinizadas: ciência e cotidiano, inicio, no capítulo seguinte, uma
caracterização do gênero CQ na perspectiva do letramento situado, a partir de
suas funções sociais.
76
CAPÍTULO 2 - Do entorno para o interior da cartilha
quadrinizada: funções sociais e letramento
Neste capítulo, busco caracterizar o gênero cartilha educativa
quadrinizada (CQ) a partir do panorama do letramento, especialmente o
letramento situado. Segundo essa perspectiva, as práticas discursivas variam
conforme os diferentes domínios da vida humana de que tomam parte. Isso
equivale a admitir a existência de letramentos, no plural, aos quais se associam
gêneros diversos. Tais gêneros carregam as marcas das questões culturais e
ideológicas que perpassam os vários âmbitos de atuação do homem e também
assumem configurações discursivas específicas, de modo a preencher certos
propósitos comunicativos.
Para pavimentar o caminho da análise, a paisagem que acompanha o
trajeto (landscape, parafraseando Kress e Van Leeuwen, [1996]2005) é
composta, basicamente, pela noção de letramento situado, já que este
considera as variações inerentes aos contextos socioculturais das práticas de
letramento. Inicio, portanto, expondo acerca desse conceito.
2.1 Letramento situado: os gêneros em seu contexto de uso
Os estudos do letramento têm sofrido mudanças significativas nas
últimas décadas. De modo geral, pode-se dizer que a abordagem do
letramento predominante na atualidade enfoca os usos da leitura e da escrita
como parte das práticas socioculturais de que fazem parte os falantes,
trazendo as marcas das peculiaridades de cada situação.
A esse respeito, Graff ([1987]1991) afirma que:
A aquisição do letramento não é universal; ela varia entre
sociedades e é freqüentemente uma função das tarefas
específicas de cada sociedade, que são, algumas vezes,
muito afastadas daquelas da escolarização formal. (p. 394)
77
Tais convicções é que levaram Street a propor os Novos Estudos do
Letramento. Para isso, elabora a noção de letramentos sociais. Nessa
perspectiva, as práticas de letramento são variáveis segundo o contexto, ou
seja, os significados da leitura e da escrita são social e culturalmente
determinados.
A teoria social do letramento de Barton e Hamilton (1998) pode ser
encarada como uma ampliação da noção de letramentos sociais de Street. Nas
palavras de Barton e Hamilton, trata-se de uma “abordagem ecológica”, pois
observa as ações humanas em contexto. Alguns de seus pressupostos básicos
são:
O letramento é mais bem compreendido como um
conjunto de práticas sociais; estas podem ser inferidas dos
eventos que são mediados por textos escritos;
Há diferentes letramentos associados com diferentes
domínios da vida;
As práticas de letramento são padronizadas por
instituições sociais e relações de poder e algumas práticas de
letramento se tornam mais dominantes, visíveis e influentes que
outras;
As práticas de letramento têm propósitos específicos e
estão implicadas em objetivos sociais e práticas culturais mais
amplos;
O letramento é historicamente situado;
As práticas de letramento mudam, e novas práticas são
freqüentemente adquiridas através de processos de ensino
informal e de produção de sentido (p. 7).
Segundo Barton e Hamilton (op. cit. 8-11), os textos são parte crucial
dos eventos de letramento, e os estudos do letramento são, em parte, estudos
sobre textos e sobre como estes são produzidos e utilizados.
Nessa perspectiva, o conceito de letramento situado ou a pluralização da
palavra – letramentos – denota o reconhecimento da diversidade de práticas de
letramento numa sociedade cada vez mais especializada e subdividida em
termos de organização econômica, cultural, artística, etc. Assim é que se pode
falar de letramento escolar, letramento científico, letramento jurídico, entre
outros.
Numa revisão crítica das teorias de letramento, Street (1984, apud
Kleiman, [1995] 2001) dividiu as perspectivas de letramento em duas vertentes,
denominadas modelo autônomo e modelo ideológico. A primeira delas concebe
a escrita como um produto completo em si mesmo, não ligado ao contexto de
78
sua produção, além de supor a existência de qualidades intrínsecas à escrita,
com impacto necessariamente positivo sobre as habilidades cognitivas dos
indivíduos.
Já a perspectiva ideológica toma as práticas de letramento como
variáveis segundo o contexto, ou seja, os significados da leitura e da escrita
são social e culturalmente variáveis. As práticas de letramento constituem
aspectos não apenas da cultura, mas também das estruturas de poder numa
sociedade.
Segundo o modelo ideológico do letramento, as práticas de letramento
denominação relacionada ao pressuposto de que se tornar letrado é uma
atividade social – mudam segundo o contexto e, portanto, a aquisição da
escrita sofreria influências das demais práticas socioculturais das pessoas
envolvidas, tanto na escola quanto fora dela (Street, 1984, apud Kleiman,
1995). É possível remeter aqui à relação entre as esferas de atividade humana
e os textos nelas gerados, nos termos de Bakhtin ([1952-1953]2000). Para ele:
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados
(orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos
integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O
enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de
cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático)
e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos
recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais – mas também, e sobretudo, por sua construção
composicional (p. 279)
E é na especificidade de cada esfera da atividade humana que surgem,
se modificam e desaparecem gêneros variados, cumprindo certas funções
sociocomunicativas. Assim, o conceito de letramento é fundamental para a
compreensão dos modos de circulação e recepção dos gêneros, pois ele
engloba o conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema
simbólico e como tecnologia, em contextos específicos e para fins específicos
(Scribner e Cole, 1981, apud Kleiman, [1995]2001: 19).
De fato, a noção de gênero tem sido uma das mais férteis nos estudos
lingüísticos dos últimos 20 anos. Originalmente desenvolvido para dar conta de
manifestações literárias, o conceito de gênero, desde o texto O problema dos
gêneros do discurso, produzido por Bakhtin entre 1952 e 1953 e publicado em
79
1986 (em português, em 1992), atravessou diversos campos da lingüística,
com abordagens várias, nem todas bakhtinianas.
A título de exemplo, no livro organizado por Meurer, Bonini e Motta-Roth
(2005: 9) – Gêneros: teorias, métodos e debates, – os artigos são distribuídos
segundo os enquadres teóricos de análise de gêneros:
a) abordagens sócio-semióticas, como as de Hasan, Martin, Fowler, Kress
e outros;
b) abordagens sócio-retóricas, como as de Swales, Miller e Bazerman;
c) abordagens sócio-discursivas, como as de Bakhtin, Adam, Bronckart e
Maingueneau.
Todas as abordagens convergem para o fato de considerarem o uso
social como o mais importante nos estudos da linguagem e não a estrutura
lingüística, o que justifica o prefixo sócio para todas as denominações dessas
correntes de pensamento. Mas, conforme advertem os organizadores no
prefácio do livro, essa classificação é meramente didática e não pretende
oferecer uma ontologia, pois as fronteiras entre as abordagens são bastante
tênues, além de haver um intenso diálogo entre as diferentes perspectivas.
Posto isso, meu interesse se volta para as perspectivas que fornecem
subsídios advindos de uma teoria mais ampla da linguagem e das relações
sociais que a perpassam. Utilizo, também, os postulados das abordagens que
permitem um olhar detalhado, em zoom, dos aspectos textuais e lingüísticos
envolvidos numa análise de gênero. Por essa razão, baseei esta pesquisa nos
trabalhos de diversos autores, em especial, os de Bazerman (2005), Miller
(1994) e Freedman e Medway (1994), naquilo que apresentam sobre as
relações de poder na sociedade e a constituição retórica dos gêneros. Entre os
autores brasileiros, apóio-me em Marcuschi (2002) com sua contribuição à
compreensão do funcionamento sociocognitivo dos gêneros. Aproveito ainda
alguns postulados de Bakhtin, fundantes nos estudos sobre gêneros.
Começo, então, por esse pensador profusamente mencionado: Mikhail
Bakhtin. Para Bakhtin ([1952-1953]2000), os gêneros do discurso se definem
como tipos relativamente estáveis de enunciados, de riqueza e variedade
infinitas, já que cada esfera de atividade humana “comporta um repertório de
80
gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a
própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (p. 279).
A chave da riqueza do pensamento bakhtiniano talvez resida, entre
outros aspectos, no delicado equilíbrio entre o recorrente e o dinâmico, na
noção de estabilidade relativa. Essa abertura para o contingente, sem esquecer
o historicamente estabelecido, permite que se contemplem aspectos raramente
alcançados num olhar mais formal e, por outro lado, detalhes mais tangíveis
49
num olhar mais geral.
Para Freedman e Medway (1994), os gêneros são maneiras típicas de
engajar-se retoricamente em situações recorrentes; são ações retóricas típicas.
Nesse sentido, a relação entre a situação
50
em que se produz e se recebe um
certo gênero é constitutiva de sua organização. Isso recobre desde as esferas
mais amplas de atividade humana, até fatores mais específicos, como
interlocutores, suporte, etc.
Como já mencionado, a relação entre as esferas de atividade humana e
os gêneros que lhes são peculiares interessa diretamente a esta pesquisa. O
discurso da ciência e os gêneros a ela relacionados, seja no âmbito da
disseminação científica (entre especialistas) – artigos, teses, monografias,
relatórios, etc. – seja no âmbito da divulgação científica (entre especialistas e
leigos) – artigos de divulgação científica, notícias, reportagens, etc. – se
organizam segundo princípios que dizem respeito ao modo como as práticas
de letramento acontecem em cada “nicho” sociocultural, em cada domínio
discursivo.
Na mesma direção, Miller (1994: 27) alega que mais que uma entidade
formal, os gêneros são pragmáticos, retóricos, um ponto de conexão entre
intenção e efeito, um aspecto da ação social. Também para Marcuschi (2002):
Os gêneros são fenômenos históricos, profundamente vinculados à
vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do
49
É preciso lembrar que Bakhtin não se interessou por estudar, em detalhe, a constituição dos
gêneros, mas sim, em expor princípios gerais sobre o fenômeno da linguagem, centro da
questão da alteridade. Assim, mesmo não tendo feito análise de gêneros, lançou bases para
que se pudesse analisá-los mais detidamente. Lembro aqui a crítica de Faraco (2003) aos
analistas que declaram fazer análises bakhtinianas, mas cujos resultados se restringem a
questões textuais e/ou lingüísticas. E aproveito para adiantar que minha análise não é de
cunho bakhtiniana, mas se serve de alguns de seus pressupostos mais gerais.
50
O termo condições de produção, criado pela Análise do Discurso, remete a essa questão.
81
dia-a-dia. São entidades sociodiscursivas e formas de ação social
incontornáveis em qualquer situação comunicativa. (p.19)
E aqui cabem, ainda, as posições de Norman Fairclough (2001) para
quem os gêneros textuais são formas de controle social e também formas de
organizar o “ethos” das ações e interações sociais. Logo, este estudo toma
como pressuposto básico a natureza sociodiscursiva dos gêneros, o que
implica uma abordagem sociohistórica e não-estrutural dos fenômenos de
textualização, incluído aí o recurso da quadrinização como estratégia de
didatização da informação científica.
Nessa direção, ressalto a necessidade de ampliar os estudos que tratem
de letramentos específicos. O letramento científico, por exemplo, é uma área
que merece maiores investigações, pois contempla as práticas de leitura e
escrita envolvidas na produção, divulgação e recepção de informações
científicas. Atualmente, para formar cidadãos críticos, bem informados e que,
portanto, possam intervir, com maior autonomia, nas decisões sobre sua vida e
a de sua comunidade, é preciso ter acesso às informações científicas. Esse
acesso está ligado às experiências diversificadas e significativas em eventos
de letramento situado - no caso, do âmbito da ciência - que englobam práticas
de leitura e escrita específicas. No item 3.1, do capítulo 3, discuto aspectos da
produção discursiva no campo da ciência.
Várias pesquisas sobre a divulgação científica realizada pela mídia já
têm sido empreendidas e veiculadas
51
, assim como sobre o letramento
científico em contextos de educação formal. Entretanto, pouco tem sido
produzido sobre o acesso ao mundo da ciência em contextos de educação
informal, como as campanhas de educação em saúde.
51 Para situar alguns exemplos apenas no contexto brasileiro, citamos os estudos
desenvolvidos por Carlos Vogt, Ildeu de Castro Moreira, José Carlos Reis (pioneiro na área) e
Luisa Massarani. Dedicados a esse tema especificamente, ressalte-se a existência de diversos
mecanismos de atuação: a) sociedades científicas (Associação Brasileira de Divulgação
Científica - http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/abradic/
; Associação Brasileira de Jornalismo
Científico - http://www.abjc.org.br/menus/congresso.html); b) revistas científicas (Espiral,
Revista Eletrônica de Divulgação Científica - http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/espiral/
;
Cadernos Abradic - http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/abradic/), c) congressos (Congresso
Brasileiro de Jornalismo Científico - http://www.abjc.org.br/menus/congresso.html
; Congresso
Internacional de Divulgação Científica - http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/congresso/) e d)
portais (Canal Ciência - IBICT
- http://www.canalciencia.ibict.br/; Ciência Online -
http://www.cienciaonline.org/; Portal de Divulgação Científica do Estado do Rio de Janeiro -
http://www.cbpf.br/~caruso/secti/).
82
As atividades de divulgação científica representam parte desses
contextos de educação informal, em que o público não-especializado tem
acesso a informações científicas. Mas o conceito de divulgação científica nem
sempre é consensual entre os estudiosos do assunto.
Gomes (2000) expõe essa discordância entre autores quanto ao que
seria divulgação científica. Um dos autores por ela citados é Bueno (1984: 19,
apud Gomes, 2000: 4), que estabelece o conceito de difusão científica para
designar “todo e qualquer processo ou recurso utilizado para a veiculação de
informações científicas e tecnológicas, envolvendo, inclusive, os demais
conceitos”, que seriam o da disseminação científica (difusão para especialistas)
e o da divulgação científica (difusão para um público em geral). Esse mesmo
autor considera que a divulgação científica não se restringe ao jornalismo
científico e chega a citar materiais diversos, inclusive cartilhas, similares às
educativas, corpus deste trabalho:
Inclui os jornais e revistas, mas também os livros didáticos, as
aulas de ciências do 2º grau, os cursos de extensão para não
especialistas, as estórias em quadrinhos (sic), os suplementos
infantis, muitos dos folhetins utilizados na prática de extensão
rural ou em campanhas de educação voltadas, por exemplo,
para as áreas de higiene e saúde, os fascículos produzidos
pelas grandes editoras, documentários, programas especiais
de rádio e televisão etc. (1984:19, apud Gomes, 2000: 8).
Zamboni (1997:94-95 apud Gomes, 2000: 8-9) discorda dessa posição,
porque considera um erro incluir materiais didáticos, como livros didáticos,
entre os que se destinam à divulgação científica, já que o discurso didático e o
discurso de divulgação científica são produzidos em quadros institucionais
bastante diferentes, o que traz implicações para a configuração dos textos. Os
livros didáticos, por exemplo, organizam as temáticas abordadas em função de
um currículo escolar e de objetivos próprios da escola. Já os artigos de
divulgação científica publicados em jornais de grande circulação provêem de
pautas, muitas vezes, guiadas pelo interesse imediato, pela efervescência do
tema na sociedade, como o Projeto Genoma ou as formas de transmissão da
dengue, assuntos muito debatidos nos últimos cinco anos.
Independentemente dessa polêmica, considero que é possível analisar
as CQs usando alguns pressupostos dos estudos sobre divulgação científica,
em virtude das semelhanças entre as estratégias usadas. Tanto nos gêneros
83
de divulgação científica quanto no gênero CQ, há uma preocupação com o
entendimento, por parte do leitor, daquilo que será lido. E isso implica a
existência de um “mediador”, o que busca adequar a linguagem: no primeiro
caso, o jornalista; no segundo caso, o quadrinista. Em ambos os casos, é
possível contar com a ajuda do especialista (cientista).
Assim, tomando o letramento situado como pano de fundo, pode-se
buscar as origens do gênero CQ, assunto do item a seguir, expondo
características de dois outros gêneros com propósitos comunicativos similares
– a cartilha e a cartilha educativa -, ao longo do tempo, considerando os
objetivos prevalentes em cada momento da história, para cada gênero.
2.2. Cartilha, cartilha educativa, cartilha quadrinizada: o gênero muda com
o tempo
A cartilha educativa, gênero relativamente recente, foi criado no âmbito
das campanhas governamentais, com o intuito de facilitar o acesso à
informação, por parte de pessoas oriundas de diferentes contextos
socioculturais, com diferentes graus de escolaridade. Diversas áreas – jurídica,
publicitária, política, da saúde - se valem das CQs para mediar interações,
como já exposto no Quadro 2 (p. 36-38).
Historicamente, as CQs advêm de gêneros voltados para grandes
parcelas da população, embora com finalidades diferentes. Em seu trabalho
sobre as cartilhas jurídicas, Mozdzenski (2006) faz um levantamento histórico
das cartilhas escolares e dos panfletos políticos, gêneros que precederam as
cartilhas jurídicas. As primeiras cartilhas voltadas para a alfabetização no Brasil
são datadas de 1540, enquanto as cartilhas de cunho político passam a ser
publicadas, em grande escala, na era Vargas (década de 1940).
Algumas cartilhas políticas criadas pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), órgão do governo varguista, por exemplo, tinham objetivos
claramente políticos, conforme mostra o trabalho de Garcia (1982), citado por
Mozdzenski (2006). Nessa época, a propaganda tornou-se um importante
instrumento político, através do qual líderes carismáticos criavam um canal
84
mais direto de comunicação com as massas. A seguir, exemplos desse tipo de
cartilha:
Ex. 95 – Página da cartilha A juventude no
Estado Novo (c. 1940). Fonte: Acervo da
Fundação Getúlio Vargas
52
.
Ex. 96 – Página da cartilha A juventude no
Estado Novo (c. 1940). Fonte: Acervo da
Fundação Getúlio Vargas
53
.
Percebe-se a conclamação de todos os brasileiros – de crianças a
trabalhadores – a contribuírem para o bem comum, como células de um
mesmo corpo (o Estado), postulado peculiar ao estilo Vargas de governar.
Esse tom de exortação se reflete tanto nas imagens quanto no texto verbal. No
primeiro exemplo, temos o líder sorridente, atencioso e carismático, em
destaque. No segundo exemplo, os trabalhadores caminham numa única
direção, como a entrada de uma fábrica no começo do expediente, formando
uma fila que também “dirige” nosso olhar para o fundo da cena, onde um
relógio e uma ampulheta gigantes relembram a urgência do tempo, já que o
trabalho e o conseqüente progresso não podem esperar. Mesmo leitores
analfabetos podem compreender a mensagem, pois não há muitos elementos,
e as cenas retratam o cotidiano (trabalho, escola, família, etc.) e o conhecido
líder político.
52
Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/. Acesso em 30 nov. 2007.
53
Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/. Acesso em 30 nov. 2007.
85
Os textos verbais, ao se dirigirem diretamente aos leitores, deixam,
ainda mais clara, a estratégia da exortação de cada pessoa para assumir sua
responsabilidade individual diante da Nação:
Crianças! Aprendendo, no lar e nas escolas, o vulto da
Pátria, trareis para a vida prática todas as possibilidades de
êxito.
Só o amor constrói e, amando o Brasil, forçosamente o
conduzireis aos mais altos destinos entre as Nações,
realizando os desejos de engrandecimento aninhados em
cada coração brasileiro (ex.95).
A hora é de ação clara e direta, de realizações úteis, de
trabalho fecundo e criador.
Dar todo o prometido à Nação, que espera diretivas
sadias, conduzi-la sem tergiversações, resolver executar
acima de sentimentalismos e delongas, é o nosso dever.
Havemos de cumpri-lo integralmente, porque o Brasil está de
pé, vigilante e disposto a tudo empenhar na conquista do seu
destino imortal! (ex.96).
Para Garcia (1982: 73, apud Mozdzenski, 2006: 37), nas cartilhas, “as
idéias a serem propagadas deveriam ser bastante simplificadas e repetidas
para despertarem a atenção, serem entendidas e memorizadas”. Esse autor
traz um outro exemplo, o da cartilha Quem foi que disse? Quem foi que fez?,
que trata das frases e dos feitos históricos brasileiros, na qual se afirma:
[Essas palavras] não são dirigidas aos eruditos, nem aos
sabedores de história, mas ao homem do povo, ao trabalhador,
ao menino pobre, que não pode comprar livros, ao soldado e ao
marinheiro que, por defenderem a Pátria, nos momentos de
perigo, e garantirem a paz para os trabalhadores, devem saber
quem foram os grandes homens do Brasil, que todos nós
devemos amar com a mesma força, o mesmo ardor e o mesmo
entusiasmo com que todos eles a amaram. (Garcia, 1982: 81)
Como se vê, as cartilhas, desde sempre, buscaram aproximar-se de um
público heterogêneo, de todas as idades, mas com especial atenção às classes
desprivilegiadas. Esses leitores seriam, no caso brasileiro, a população adulta
mais empobrecida, composta, em sua maioria, de pessoas com escolarização
precária ou irregular. Outra característica das cartilhas usadas como peças do
marketing político é a natureza persuasiva de seu discurso, ao dirigir-se
diretamente ao leitor, chamando-o, convidando-o ou conclamando-o a tomar
86
certas atitudes. Esse traço de envolvimento vai permanecer, em certa medida,
nas cartilhas de promoção de saúde atuais.
Considerar alguns fatores socioculturais relativos ao público leitor, no
caso de campanhas de promoção de saúde, leva à adoção de estratégias
diferenciadas:
populações com baixa escolaridade, o que dificulta o acesso a
informações veiculadas em outras fontes, como artigos de
divulgação científica, reportagens, livros técnicos, etc.;
populações expostas a maiores riscos de contrair a doença,
exatamente pelo acesso precário à informação;
populações com atitudes de resistência ou indiferença a
campanhas já veiculadas.
No gênero cartilha educativa, especificamente as de promoção da
saúde, há uma tentativa de aproximação entre os fatos do mundo da ciência e
o público leigo, por meio de estratégias diversas: a) o uso de imagens e de
recursos gráficos que permitam, mesmo ao leitor pouco escolarizado ou com
dificuldades de leitura, compreender parte do que é dito no texto; b) a
didatização das informações, por meio das frases curtas, do vocabulário de uso
comum e das gírias; e c) a junção significativa dos dois itens anteriores: o texto
verbal e a imagem, característica inerente à maioria dos quadrinhos.
A espécie quadrinizada dessas cartilhas tem um traço peculiar: a trama
narrativa ficcional das histórias em quadrinhos conduz a apresentação das
informações. Os acontecimentos são, via de regra, o pretexto para apresentar
situações de perigo, de conflito, em que a prevenção ou o tratamento das
doenças deve existir. Em alguns casos, percebe-se um tom lúdico, como a
participação de super-heróis e vilões nessas histórias, como em CQ1,
protagonizada pelo Super-Protegido, o bom de cama.
Nas CQs, a quadrinização assume o papel de recurso didático, pois
pode facilitar o acesso às informações. O uso desse gênero se expandiu muito
nas duas últimas décadas, inclusive com a diversificação do público leitor. Os
quadrinhos não mais significam um atrativo restrito às crianças. A amostra
selecionada para compor o corpus ilustra esse fato: CQ2, CQ3, CQ4 e CQ6
87
são todas dirigidas a adultos, e CQ1 E CQ5 são dirigidas a jovens e
adolescentes.
A preocupação com os leitores, especialmente no âmbito da linguagem,
é comum a diversas definições de divulgação científica, segundo Gomes
(2000). O papel de co-enunciador do destinatário interfere na produção do
discurso. Na definição de Bueno (1984: 19, apud Gomes, 2000: 6):
“[a divulgação científica] pressupõe um processo de recodificação, isto é, a transposição de uma linguagem especializada para
uma linguagem não especializada, com o objetivo de tornar o conteúdo acessível a uma vasta audiência.”
Lembro ainda que as práticas discursivas que compõem cada letramento
encontram-se atravessadas por questões de ordem cultural e sociocognitiva,
que interferem decisivamente nos modos de leitura dos diversos grupos sociais
e, portanto, nas estratégias de textualização selecionadas. Por essa razão, o
letramento é uma base a partir da qual e sobre a qual analiso as cartilhas, já
que os textos não assumem certas funções independentemente dos
significados sociais de que são imbuídos e das práticas de letramento pelas
quais são disseminados e consumidos (Barton e Hamilton, 1998: 11).
Como item final deste capítulo, procedo, no próximo item, à discussão
sobre os domínios discursivos em que se ancoram as cartilhas e as funções do
gênero.
2.3 (Inter)faces da cartilha quadrinizada: propaganda institucional,
didatização e divulgação científica
As CQs são peças integrantes de campanhas massivas de informação,
geralmente na esfera pública. Embora apresentem semelhanças com outros
gêneros de divulgação científica, na verdade, elas marcam a ação política do
Estado: o cuidado com a saúde da população. Também objetivam persuadir os
leitores a adotarem as medidas preventivas ou o tratamento preconizado no
texto da cartilha. Para isso, utilizam estratégias comuns em textos de
divulgação científica, tais como o envolvimento dos leitores e a adequação da
linguagem, especialmente a “tradução” do jargão técnico para um registro
compreensível pelo público-alvo. Ainda assim, acredito que trazem, de modo
88
mais evidente do que outros gêneros de divulgação científica, estratégias de
persuasão, dados os seus propósitos comunicativos, que não se esgotam na
simples disseminação de informações científicas para os leigos.
Para os objetivos desta pesquisa, é necessário compreender melhor as
relações entre essas instâncias de produção discursiva e a configuração do
gênero CQ. A diversidade de situações advindas das esferas de atividade
humana demanda o uso de estratégias discursivas variadas, inclusive do ponto
de vista retórico, ou seja, do convencimento dos interlocutores. Retomando a
definição de Freedman e Medway (1994), segundo a qual os gêneros são
maneiras típicas de engajar-se retoricamente em situações recorrentes,
apresento algumas características das CQs, a fim de relacioná-las com
aspectos de sua situação de produção.
A primeira característica diz respeito à organização da informação no
gênero CQ, na seqüência de movimentos retóricos, presente nos exemplares
do corpus. Utilizo a noção de movimento retórico (ou unidade retórica) de
Swales (1990), que identifica os rethorical moves como as principais unidades
de informação. Segundo Bezerra (2006), “com a identificação das unidades de
informação em cada gênero, torna-se possível a visualização dos propósitos
comunicativos realizados por cada categoria de gênero (...)” (p. 13). Assim,
identificar os movimentos retóricos privilegiados nas CQs é um passo para
compreender como esse gênero veicula informações científicas ao mesmo
tempo em que as didatiza, além de trazer luz sobre as representações de
papéis sociais estabelecidas nesse gênero.
O sucesso de campanhas de educação em saúde se assenta no reforço
ou na mudança de atitudes em relação ao tema tratado: passar a se prevenir
ou a se tratar; continuar se prevenindo ou se tratando; eliminar julgamentos
preconceituosos, etc. Para isso ocorrer, é preciso que o leitor se sinta motivado
a ler o material, compreenda as informações e se identifique com as situações
retratadas. Assim, diversas estratégias são acionadas, como o uso da
quadrinização e a organização das informações em unidades - movimentos
retóricos - que integrem um caminho eficaz para o percurso de leitura previsto.
89
Quadro 5 – Movimentos retóricos em CQs.
MOVIMENTOS
RETÓRICOS
ESTRATÉGIAS ENVOLVENDO
PERSONAGENS
OUTRAS ESTRATÉGIAS
1. Ancoragem
institucional
--------------------------------------
As instituições que
promoveram ou apoiaram a
publicação são citadas,
podendo combinar ou não
quatro maneiras distintas: 1)
texto, 2) ficha catalográfica,
3) expediente
54
, 4)
logomarca. Geralmente, a
ancoragem vem na 2ª ou na
4ª capa.
2. Introdução
ao tema e aos
objetivos da
cartilha
Os personagens se apresentam e
dizem o assunto de que vão tratar.
A apresentação institucional
expõe os objetivos do
material e o público a que se
destina.
3. Apresenta-
ção da
situação-
problema
Personagens se envolvem ou
querem se envolver em situações de
risco.
--------------------------------------
Personagens dialogam sobre
sintomas e dúvidas, evidenciando,
ora preconceitos, ora desinformação
sobre o assunto.
4. Caracteriza-
ção da doença
Personagens expõem as
características da doença.
Textos didáticos, ilustrações
explicativas e esquemas são
inseridos.
Algumas cartilhas inserem,
geralmente ao final,
esquemas e textos didáticos
que não fazem parte da
história.
5. Formas de
prevenção e
tratamento
Personagens trocam informações
entre amigos e buscam informações
com especialistas.
Algumas cartilhas inserem
esquemas e textos didáticos
ao final da cartilha, que não
fazem parte da história.
6. Mudança de
atitudes/
mensagens de
encorajamento
Personagens se comportam /se
dispõem a se comportar de maneira
diferente nas situações de risco.
Personagens se ajudam/ buscam
ajuda especializada.
--------------------------------------
Embora não seja uma ordem fixa, esta é a seqüência mais recorrente
nas cartilhas analisadas. Como se percebe, as ações dos personagens é que
54
Quadro de identificação que um jornal ou revista está obrigado, por lei, a publicar, com os
nomes da empresa jornalística responsável, da gráfica impressora, dos profissionais mais
importantes (diretores, editor-chefe etc.), ligados a essa publicação, etc.
90
constroem a maior parte da organização retórica da CQs. Tal organização não
se desvencilha dos papéis sociais dos personagens, o que iremos abordar no
capítulo 3, item 3.3.1.
A ancoragem institucional é uma importante estratégia para alcançar
credibilidade junto aos leitores, já que indica a fonte responsável pelas
informações veiculadas. Quanto ao uso das quatro modalidades desse
movimento retórico – texto, ficha catalográfica, expediente e logomarca –
temos a seguinte situação:
Quadro 6 – Tipos de Ancoragem Institucional nas CQs
Texto
CQ
2ª capa 4ª capa
Ficha
catalográfica
Expediente Logomarca
CQ1
CQ2
CQ3
CQ4
CQ5
CQ6
Quanto aos recursos de maior incidência, a presença da logomarca já
era esperada, pois se trata de uma tradição em qualquer material
propagandístico, seja ele comercial ou institucional. A logomarca encontra-se
em todas as cartilhas, e o texto, em cinco CQs. Já a preferência pelo texto de
apresentação como recurso de ancoragem institucional pode ser interpretada
como mais uma estratégia de envolvimento do leitor, especialmente se
localizado na 2ª capa, página anterior ao início da história. A título de
ilustração, seguem dois exemplos:
91
Ex.: 97 – Movimento retórico Ancoragem institucional, CQ1, p. 2.
92
Ex.: 98 – Movimento retórico Ancoragem institucional, CQ3, p. 2.
Em CQ1, o texto da p. 2 introduz, além dos personagens da HQ, o tema:
DST-AIDS – A turma pode ficar prevenida foi produzida pela
BEMFAM – Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil e
integra um projeto mais amplo de informação e prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis DST-Aids para
adolescentes de primeiro e segundo graus.
93
Já em CQ3, o tema pode ser inferido a partir das instituições que
promovem a publicação (ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids)
e a apóiam (Programa Nacional de DST e Aids/ Ministério da Saúde; Unesco e
Assessoria de DST e Aids), apenas listadas na 2ª capa.
O segundo movimento retórico identificado é a Introdução ao tema e aos
objetivos da cartilha, que tanto pode ser realizado no texto da 2ª capa ou da 4ª
capa, quando se confunde com a ancoragem institucional (cf. ex. 97, página
anterior). A cartilha destinada aos praticantes de cultos afro-brasileiros traz
uma introdução mais ampla e diferenciada das demais.
Ex. 99 –
Movimento retórico
Introdução ao tema
e aos objetivos da
cartilha, CQ6, p. 2.
O contexto em que se pretende introduzir condutas preventivas ainda
não é alcançado ou sequer lembrado pela maioria das campanhas de massa:
os terreiros. Logo, fica evidente, nesse texto introdutório, a tentativa de
94
envolver os leitores, relacionando a necessidade de prevenção às DSTs/aids a
aspectos importantes nessa manifestação cultural, como a simbologia do corpo
e do sangue (cf. 3 primeiros períodos do ex. 99).
Outras estratégias de envolvimento são manifestadas lingüisticamente,
como a expressão “é fundamental que” e o uso da 1ª pessoa do plural (“nossa
primeira contribuição”, “nossa parceria”), marcando a aliança que se deseja
estabelecer entre os profissionais de saúde e os babalorixás e yalorixás, pela
credibilidade destes junto à comunidade religiosa. O texto da 4ª capa reforça a
tentativa de envolvimento dos leitores: “A Aids é um problema de todos nós
(...)”.
A Introdução ao tema pode ser feita quando os personagens se
apresentam ao leitor, logo no início da história, ou um pouco mais adiante. Em
CQ2, o tema da prevenção e do sexo é anunciado logo nas primeiras cenas,
embora não se mencionem DSTs/aids.
Um diferencial em relação às demais cartilhas é o preâmbulo, em que o
texto discorre sobre o que seriam traços culturais do brasileiro, como a alegria,
a descontração e a sensualidade (“bom-de-cama”) (quadros 1 a 2). É possível
que esse tipo de abertura temática objetive a identificação com os homens
adultos pouco escolarizados, público-alvo do material, que costumam associar
virilidade a uma vida sexual com várias parceiras. Não mencionar a
sensualidade como atributo dos brasileiros talvez fosse um erro estratégico.
Nessa página introdutória, percebe-se ainda um tom humorístico,
inclusive pelo uso de gírias para os órgãos sexuais, como “pintos” e
“pererecas”. Vejamos o exemplo:
95
Ex. 100 – Introdução ao tema (apresentação no discurso do personagem), CQ2, p. 2.
Em outras cartilhas, a Introdução ao tema se confunde com o próximo
movimento retórico, a Apresentação da situação-problema. Vejamos como isso
ocorre na cartilha Compartilhando a vida (CQ3).
96
Ex. 101 -
Movimentos retóricos
Introdução ao tema e
aos objetivos da
cartilha e
Apresentação da
situação-problema,
CQ3, p. 3, quadros
1-2.
Em CQ1, isso também ocorre, no início da história, na conversa sobre o
ato de “ficar”, ter contato íntimo sem compromisso de estabilidade ou fidelidade
amorosa, bastante comum entre adolescentes e jovens atualmente.
Ex. 102 -
Movimentos
retóricos Introdução
ao tema e aos
objetivos da cartilha
e Apresentação da
situação-problema,
CQ3, p. 3
Configuração semelhante encontra-se em CQ5, quando os jovens se
reúnem junto a um amigo que tira dúvidas sobre namoro pela internet. Mas
apenas na p. 5, com a pergunta do garoto, o tema fica de fato explícito:
97
Ex. 103 - Apresentação
da situação-problema,
CQ5, p. 3.
Ex. 104 - Apresentação
da situação-problema,
CQ5, p. 5.
É de se notar que, nas cartilhas voltadas para adolescentes e jovens, a
situação-problema surge em meio a conversas com grupos de amigos,
contexto em que as dúvidas dessas pessoas geralmente emergem.
98
A cena inicial de CQ4 (p. 3 da cartilha, ex. 105, a seguir) também não
deixa explícito o tema da cartilha, que vai sendo exposto nas 3 páginas
seguintes. Essas ilustram, na verdade, a situação-problema (movimento
retórico 3), que se resume à dificuldade dos homens para admitir problemas na
vida sexual, especialmente diante dos amigos. Elas variam entre falta de
desejo, preocupação excessiva com o desempenho e resistência em usar a
camisinha. A quadrinização permitiu um interessante contraponto de imagens:
o que acontece de fato (quadro superior de cada página, num balão de
pensamento) e o que se afirma diante de outros homens (quadro inferior) (ex.
106, 107 e 108, a seguir):
Ex. 105 – Preâmbulo, CQ4, p. 3. Ex. 106 - Apresentação da situação-
problema, CQ4, p. 4.
99
Ex. 107 – Movimento retórico Apresentação da
situação-problema, CQ4, p. 5.
Ex. 108 - Movimento retórico Apresentação
da situação-problema, CQ4, p. 6.
A situação-problema é justamente a disjunção entre o que se faz/ se
sente e o que se revela no grupo, diferentemente das demais cartilhas, que têm
a informação sobre prevenção como mote central. Por isso, CQ4 centra seus
esforços nas dificuldades sexuais do homem e em como superá-las, por meio
do diálogo com as parceiras e de atitudes maduras para compartilhar os medos
e a ansiedade. O público-alvo dessa cartilha são homens de classe média,
relativamente bem informados sobre DSTs/aids, já que, geralmente, têm
acesso a diversas fontes de informação. Assim, pode-se concluir que essa
cartilha tem o objetivo maior de trazer à discussão certas atitudes dos homens
e não tanto de trazer informações sobre condutas preventivas, o que explica o
seu modo de organização peculiar.
Na Apresentação da situação-problema, a cartilha CQ6 também se
distingue da configuração mais comum, pois traz, em cada uma das três partes
que a compõem, uma lenda africana que tematiza algum aspecto a ser
ressaltado. Ao final da lenda, a personagem mãe-de-santo relaciona a lenda
por ela contada ao conteúdo informativo/educativo da cartilha. Logo depois,
100
vem um texto de cunho expositivo/injuntivo sobre doenças, riscos de contágio,
condutas preventivas e de tratamento.
A primeira lenda trata da origem do uso de sangue nos rituais religiosos.
É justamente esse contexto o que oferece maiores riscos de se contrair
DSTs/Aids. A segunda lenda aborda os temas do sexo, do nascimento e da
responsabilidade com um bebê doente, o que também se relaciona com vida
sexual ativa e
Vejamos dois exemplos:
Ex. 109 – Lenda “O nascimento de Obaluayê”, CQ6, p. 10, quadros 1-2.
101
Ex. 110 – Texto didático após a lenda “A disputa”, CQ6, p. 7.
A situação-problema, em CQ6, só é apresentada para o leitor após cada
lenda. A HQ, nesse caso, não tem, no seu enredo, personagens com dúvidas
sobre DSTs/aids ou que se expõem ao risco de contrair tais doenças. A
quadrinização serve para legitimar o discurso da ciência, que sucede as lendas
africanas em que se baseiam os cultos afro-brasileiros. Trata-se, do meu ponto
de vista, de uma estratégia de envolvimento do leitor focalizado, para evitar o
conflito entre os saberes da crença religiosa e os saberes da ciência.
A cartilha Compartilhando a vida (CQ3), destinada a casais em que
apenas um dos parceiros está infectado (casais sorodiscordantes), traz
situações-problema as mais diversas, apresentadas ao longo da narrativa.
Assim, o objetivo central não é mais evitar o contágio a qualquer custo, dado
que ele já ocorreu para um dos componentes do casal. Trata-se, sim, de evitar
o contágio do outro parceiro e de ter boa qualidade de vida. Como essa cartilha
foi produzida a partir de oficinas realizadas com casais sorodiscordantes, é
possível perceber situações de dificuldades cotidianas, que não
102
necessariamente se relacionam com as prescrições mais comuns sobre
prevenção, tais como o relacionamento familiar, o acesso aos serviços públicos
de apoio ao paciente soropositivo, a possibilidade de continuar trabalhando,
etc. As situações são:
a) casal heterossexual sorodiscordante com um dos parceiros infectado
inicia as medidas de prevenção enquanto o soropositivo inicia o
tratamento;
b) exposição inesperada ao contágio desse mesmo casal, que precisa
tomar medidas de emergência;
c) falta de condições de trabalho dos médicos;
c) resultado de exame entregue à família da paciente (adolescente
grávida), e não a ela própria;
d) preconceito contra os soropositivos por parte de médicos,
enfermeiros, familiares e parceiros;
e) falta de medicamento nos postos de saúde, atrapalhando o
tratamento.
A seguir, exemplos das situações b) e c):
Ex. 111 – Movimento retórico Apresentação da situação-problema, CQ3, p. 4, quadros 5-6.
103
Ex. 112 – Movimento retórico Apresentação da situação-problema, CQ3, p. 5
Outras situações são expostas, mas não como insolucionáveis ou
extremamente graves. Há casais homossexuais sorodiscordantes, mas que se
apóiam para o tratamento de um dos parceiros; outros que têm o apoio familiar
para enfrentar a doença e os preconceitos; existem ainda pessoas que
encontram auxílio em grupos de ajuda e órgãos públicos, como Conselhos de
Saúde.
Ex. 113 – Situação relativa a casal sorodiscordante, CQ3, p. 8, quadro 1.
104
Ex. 114 – Situação relativa a casal sorodiscordante, CQ3, p. 11, quadros 1-3.
O movimento retórico Caracterização da doença revela-se após a
apresentação da situação-problema, em todas as cartilhas em que ele existe. É
nessa unidade de informação do texto que começam a surgir as informações
científicas propriamente ditas, o que se intensifica no movimento retórico
seguinte, “Formas de prevenção e tratamento”. Adotando essa seqüência, as
cartilhas se aproximam mais das dúvidas dos leitores, das suas angústias e
anseios, e também evitam o tom “professoral”, o que poderia diminuir o
interesse pela leitura do material. Isso porque as informações científicas mais
específicas, próprias de materiais didáticos convencionais, surgiriam de modo
mais natural no enredo da HQ, nesse movimento retórico. Na maioria dos
casos, quem caracteriza ou descreve a doença é uma autoridade legítima para
o público-alvo de cada cartilha: professora de Educação Sexual em CQ1,
(destinada a adolescentes); médico(a) em CQ3 (destinada a casais
sorodiscordantes) e em CQ5 (destinada a adolescentes e jovens); mãe-de-
santo em CQ6 (destinada a praticantes de cultos afro-brasileiros).
105
Em CQ1, a professora de Educação Sexual, Lúcia, define tecnicamente
a aids - “A AIDS é causada (...) contaminada.”:
Ex. 115 - Movimento retórico Caracterização da doença, CQ1, p. 9.
Esse movimento retórico continua nas páginas seguintes da cartilha (p.
10-13), em que cartazes elaborados pelos alunos da professora Lúcia expõem,
para o leitor da cartilha, o que são DSTs, que tipos existem, quais são os
sintomas, etc. (cf. ex. 62 e 63, p 54). Simultaneamente, nessas mesmas
páginas, ocorre o movimento retórico de formas de prevenção e tratamento.
Esse é também o caso de CQ5, conforme demonstra o exemplo 111 (p. 100).
106
Em CQ2, não há caracterização das doenças. O Super-Protegido
conversa com os três “tipos” brasileiros
55
: o gaúcho, o sertanejo e o matuto
sobre mitos e preconceitos que envolvem o uso do preservativo entre os
homens desse extrato social. Alguns deles: homens viris, “machos” de verdade,
não usam camisinha; só é preciso se proteger no sexo com parceiras
desconhecidas; prevenção é só para evitar gravidez e é responsabilidade
exclusiva das mulheres, etc., conforme ilustram os exemplos a seguir:
Ex. 116 – Mitos e preconceitos em CQ2, p. 4, quadros 1-4.
55
Esses “tipos” humanos representados em CQ2 são resultados de um processo de
estereotipia, em que é preciso abstrair os traços distintivos e se fixar nas características
comuns às pessoas pertencentes a cada grupo: os gaúchos, os sertanejos e os matutos do
interior de Minas. A estereotipação se vale dos trajes e dos dialetos para caracterizar os grupos
sociais e pretende funcionar, do meu ponto de vista, como uma estratégia de envolvimento do
público-alvo da cartilha.
107
Ex. 117 – Mitos e preconceitos em CQ2, p. 7, quadros 1-2
O fato de não haver caracterização da doença parece ter relação com o
objetivo principal de CQ2: convencer seu público-alvo a usar o preservativo.
Explicar em que consistem as DSTs/aids não está, portanto, no centro das
preocupações dessa cartilha.
Caso semelhante ocorre em CQ4 que, apesar de ter um público
diferente em termos de classe social e escolarização, também almeja mais a
mudança de atitudes dos leitores que a exposição da informação científica,
como se percebe no exemplo a seguir:
Ex. 118 – Discussão de atitudes; CQ4, p. 17.
108
Em CQ3, a caracterização da doença é sempre feita por um médico(a),
em situação de atendimento a pacientes (cf. ex. 111, p. 100):
Ex. 119 – Movimentos retóricos simultâneos Caracterização da doença e Formas de prevenção
e tratamento, CQ3, p. 4, quadro 2.
O próximo movimento retórico – Formas de prevenção e tratamento
também concentra grande parte das informações científicas sobre as doenças.
Em CQ1, a estratégia usada para expor as formas de prevenção e
tratamento foram os cartazes elaborados pelos alunos, explicando sobre o
tema (cf. ex. 62 e 63, p. 54), enquanto CQ2 optou pelas conversas informais
entre o super-herói e os demais personagens:
Ex. 120 – Movimento retórico Formas de prevenção e tratamento, CQ2, p. 7, quadros 3-4.
109
A cartilha CQ5 também adotou a voz da autoridade – um médico – para
expressar as formas de prevenção e tratamento de DSTs/aids (cf. ex. 103 e
104, p. 95). Em CQ6, a autoridade é a mãe-de-santo, que expõe medidas
preventivas:
Ex. 121 - Movimento retórico Formas de prevenção e tratamento, CQ6,p. 7.
Em CQ3, esse movimento retórico se confunde com o anterior
(Caracterização da doença), como atesta o exemplo 119 (p. 106). Em CQ4,
não há autoridades, apenas homens que partilham angústia e ansiedade:
Ex. 122 - Movimento
retórico Formas de
prevenção e
tratamento, CQ4, p. 16.
110
O último movimento retórico identificado nas cartilhas é a Mudança de
atitudes/ mensagens de encorajamento, encontrado em todas as cartilhas, já
que se relaciona com um dos objetivos centrais das CQs: persuadir o leitor a
reforçar ou alterar condutas de atenção à saúde. Alguns exemplos:
Ex. 123 –
Movimento retórico
Mudança de
atitudes/mensagens
de encorajamento,
CQ1, p. 19.
111
Ex. 124 –
Movimento retórico
Mudança de
atitudes/
mensagens de
encorajamento,
CQ4, p. 23.
As cenas desses exemplos mostram que, ao final das cartilhas, surge
um discurso que, de certa maneira, “paira” sobre todas as informações
científicas apresentadas: é preciso tomar certas atitudes para se prevenir de
DSTs/aids. Na verdade, é esse o recado que se pretende dar aos leitores.
Identificar os movimentos retóricos no corpus permitiu tecer
considerações acerca da natureza das informações veiculadas em cartilhas
quadrinizadas, do modo como ela se distribui ao longo do texto e da relação
entre essas duas características e os propósitos comunicativos do gênero.
Concluo afirmando que as informações científicas se concentram nos
movimentos retóricos 4 e 5, respectivamente, Caracterização da doença e
Formas de prevenção e tratamento, com alguma presença na porção de texto
correspondente ao movimento retórico 3 (Apresentação da situação-problema).
Esses movimentos cumprem um dos propósitos comunicativos da CQ: tornar
compreensível a informação científica para o público leitor. Já os movimentos
retóricos 1 (Ancoragem institucional), 2 (Introdução ao tema e aos objetivos da
cartilha), 3 (Apresentação da situação-problema) e 6 (Mudança de atitudes/
112
mensagens de encorajamento) recobrem o propósito de criar empatia com um
público heterogêneo, persuadindo-o a se prevenir das doenças e a se tratar.
Após todas essas discussões, podemos, provisoriamente, estabelecer
uma definição do gênero cartilha educativa quadrinizada. A CQ é um
gênero semelhante a um gibi, que integra campanhas institucionais de
prevenção de doenças e de promoção de saúde, como material principal ou
complementar, e cujos propósitos centrais são o informativo e o persuasivo. Do
ponto de vista textual-discursivo, a CQ se organiza com base numa HQ, cuja
narrativa tematiza o assunto a ser tratado (saúde, consumo, trânsito, etc.).
No próximo capitulo, discuto a linguagem das cartilhas quadrinizadas,
especificamente a busca pela cientificidade, um dos atributos desejados para
os textos produzidos no âmbito da ciência. Analiso os recursos verbais e os
visuais utilizados para atribuir às informações científicas veiculadas nas
cartilhas o status de cientificidade.
113
CAPÍTULO 3 - A linguagem em cartilhas quadrinizadas: ciência
e cotidiano
Neste capítulo, abordo características da linguagem verbal e não-verbal
usada nas cartilhas quadrinizadas (CQs) para apresentar informações
científicas. Do ponto de vista verbal, identifico os porta-vozes da ciência, as
escolhas lexicais dos personagens (uso de terminologia técnica e de repertório
comum) e as seqüências tipológicas. Quanto à linguagem não-verbal, investigo
o tipo de desenho usado, a transição entre cenas, os planos e ângulos de visão
e o letreiramento. Todos esses aspectos são analisados na relação com a
produção de sentidos no gênero cartilha e, muito especialmente, com a
concretização de seus propósitos comunicativos.
Uma vez que esse gênero se destina a persuadir os leitores a reforçar
ou mudar comportamentos de atenção à saúde, adota certas estratégias.
Identifico a quadrinização como possível estratégia de sedução pelo lúdico e,
eventualmente, também de facilitação da leitura. Ao mesmo tempo, a CQ
procura didatizar os conceitos científicos expostos. No caso do corpus
analisado neste trabalho, os conceitos, como vimos, são relativos às
DSTs/aids. Assim, as cartilhas terminam por mesclar traços da linguagem
científica e do registro usado nas HQs, nas quais há uma tendência aos
diálogos informais, já que boa parte das interações se dá com base em
conversações face a face.
É nessa dupla perspectiva que analiso as CQs neste capítulo,
observando se e de que maneira as escolhas lingüísticas e imagéticas: a)
integram o aparato de cientificidade das CQs; b) funcionam como recurso de
didatização das informações.
No âmbito da linguagem verbal, verifico, inicialmente, a fonte da qual
emanam as informações científicas e que papel social representa. Analiso,
ainda, a presença do jargão técnico e de “traduções” da terminologia referente
aos conteúdos científicos necessários nas campanhas de educação em saúde
sobre DSTs/aids bem como as seqüências tipológicas escolhidas. Quanto à
linguagem não-verbal, observo o tipo de desenho, de letreiramento, de
114
transição entre quadros e de enquadramentos utilizados na explicação de
aspectos que envolvam conhecimentos científicos, como formas de contágio,
procedimentos preventivos, etc.
Antes, porém, de analisar, mais detidamente, a linguagem das cartilhas,
julgo necessário discorrer sobre o atributo de cientificidade do que é produzido
no domínio da ciência, além de abordar a linguagem própria de gêneros da
esfera científica ou de divulgação científica, assuntos dos próximos itens.
3.1 Produção discursiva no âmbito da ciência: em busca da cientificidade
As diversas esferas de atividade humana têm, ao longo da história,
criado, estabilizado, desestabilizado e recriado práticas discursivas específicas.
Seja na ciência, no direito, nos negócios, na vida familiar, os homens aliam a
complexidade das relações sociais a uma imensa variedade de usos
lingüísticos, os quais refletem e constituem essas teias de relações. A esse
respeito, Bakhtin ([1952-1953]2000: 279) já afirmava que os enunciados são
marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação, conforme citado
anteriormente. Também Bazerman (2005), ao tratar das relações entre as
atividades humanas e a linguagem, afirma que, ao fazermos uso de textos,
criamos, na verdade, fatos sociais. Nesse sentido, a linguagem, por meio dos
textos que produzimos, reflete e (re)cria as relações sociais, nos diversos
contextos sociocomunicativos.
Quando se pensa no âmbito da ciência, a especificidade atribuída a essa
área é logo associada, em termos lingüísticos, ao vocabulário técnico,
importante para que se possa falar sobre os fenômenos e as categorias de
análise próprios dessa esfera discursiva. Entretanto, a especificidade dos usos
lingüísticos científicos pode ser observada em diversas dimensões: desde as
escolhas lexicais e sintáticas até a organização dos dados em formas
comunicativas culturalmente convencionadas - os gêneros, – que preenchem
certos propósitos. Nesse sentido é que se discute: o que caracteriza a
linguagem científica? Ela existe de fato?
Antes de passar à discussão sobre as especificidades da escrita científica,
é necessário discutir brevemente o que constitui o caráter científico de um
115
texto. Não vivemos mais numa era mítica, em que os mitos seriam suficientes e
culturalmente legitimados para explicar os fenômenos do universo, pois a
ciência assumiu o papel de voz da razão e da verdade.
Prelli (2001) inicia seu artigo sobre a argumentação na ciência
estabelecendo duas eras cruciais, na História, para entender a construção do
discurso científico. Até a década de 1960, havia uma crença generalizada de
que a ciência era singular entre as atividades humanas, pois apresentava
conformidade entre: a) critérios empíricos para avaliar evidências e b) regras
formais para testar inferências lógicas. A ciência buscaria respostas a
perguntas a partir de bases insensíveis a valores, interesses e preferências do
cientista. Por essa razão, continua o autor, a ciência seria o melhor veículo
para trazer à tona
56
asserções que se aproximariam, até onde é humanamente
possível, da verdade.
No âmbito da Nova Retórica, Bazerman (2006: 64) lembra que, “na busca
da certeza de declaração e do modo compelativo do argumento, o caráter
construído e socialmente ativo do sistema simbólico científico pareceu ser
esquecido”. A linguagem científica começou a parecer um escape da
linguagem e, por isso, não uma questão para o controle consciente. O contrário
acontecia com os usos jurídicos da linguagem, conscientemente
argumentativos e, assim, estudados segundo esse prisma. Esquecia-se,
continua o autor, de que a linguagem científica (e quaisquer outros usos da
linguagem) é fabricação humana, logo pode ser estudada do ponto de vista
retórico. Mas ele termina por ressaltar que esse apagamento do caráter
histórico e socialmente ativo do uso científico da linguagem não significou que
os cientistas não tivessem alguma espécie de controle mais ou menos
consciente sobre a linguagem e sobre as práticas sociais de que fazia parte.
Essa herança marca, ainda hoje, o senso comum sobre a ciência e mesmo
os encaminhamentos do ensino escolar, que trata os saberes científicos como
prontos e acabados, além de neutros em relação aos interesses pessoais do
pesquisador e ao contexto social em que são forjados. O apego aos dados em
detrimento do ponto de vista de quem os observa se traduz no privilégio que as
ciências da natureza e as ditas exatas alcançaram no âmbito do status
56
No original, “bring forward”.
116
científico, em comparação com as ciências ditas humanas (de fato, em última
análise, todas são humanas). No mundo ocidental pós-revolução industrial,
aquelas seriam ciências no sentido estrito do termo, enquanto essas estariam
tentando alcançar tal status.
Essa era a posição de Comte
57
criador do positivismo, corrente que
defendia o descarte de toda especulação acrítica, toda metafísica e toda
teologia, já que a observação deveria ser o caminho para se chegar à verdade.
Segundo Comte, as ciências que já haviam alcançado tal estado de pureza, ou
seja, as ciências verdadeiramente “positivas”, seriam a Matemática, a
Astronomia, a Física, a Química, a Biologia e a Sociologia (esta última estava
sendo formulada por Comte).
58
Diferentemente dessa visão de ciência neutra, a segunda era apresentada
por Prelli trouxe uma perspectiva ideológica do que é ciência. Atualmente, os
cientistas admitem que ela é construída numa dinâmica complexa de
processos sociais, permeados por interesses humanos, valores e preferências.
O discurso da ciência carece, portanto, da legitimidade especial, calcada em
bases impermeáveis a disputas políticas. Admite-se, hoje, que a ciência traz a
discussão cuidadosa, o desacordo, o debate.
Para Latour (2000), os textos científicos e técnicos
59
:
(...) não são escritos de modo diverso por diferentes castas de
escritores. Entrar em contato com eles não significa deixar a
retórica e entrar no reino mais tranqüilo da razão pura.
Significa que a retórica se aqueceu tanto que ou ainda está
tão ativa que é preciso buscar muito mais reforços para
manter acesa a chama dos debates.
Nessa mesma direção, Parkinson (2000) adota a posição de que a ciência
escrita e falada é um conjunto de letramentos, cujas manifestações orais e
escritas estão imbricadas nos contextos social, ideológico, funcional e físico em
que ocorre.
57
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo. Acesso em 14 ago. 2006.
58
A atenção aos dados empíricos esteve presente, já no século XX, nos postulados
skinnerianos, em que o reforço positivo seria fundamental para a formação do condicionamento
operante, ou seja, da associação entre necessidade e ação (por ex., acionar uma alavanca e
obter comida). O trabalho com estímulo-resposta seria um caminho seguro para a
aprendizagem, que se traduzia numa “modelagem” do indivíduo a partir do meio ambiente
(Nova Escola, n
o
176, out. 2004).
59
Os termos “texto científico” e “texto técnico” são usados indistintamente pelo autor.
117
É a partir desse ponto de vista que a linguagem da ciência (ou a escrita
científica, numa visão mais ampla) será aqui enfocada, ou seja, não como “um
discurso asséptico, sem qualquer marca da intervenção humana” (Mendonça,
2006: 22), mas como uma construção sociocultural e histórica. Desse modo,
assumo, junto aos autores citados, que a ciência é atravessada pelos diversos
fatores que constituem as interações verbais, tais como propósitos
comunicativos, papéis sociais dos interlocutores, gênero do discurso, contexto
situacional, entre outros, isto é, as condições de produção e circulação, no
dizer dos estudos discursivos. Desvendar algumas estratégias retóricas que
constituem o discurso da ciência nas cartilhas educativas figura entre as
preocupações de minha pesquisa.
Diversos autores concordam que há uma forma específica de escrever em
contextos científicos, algo que se pode chamar de “escrita científica”. Mesmo
alguns estudiosos afirmando que as diferenças se restringem a vocabulário e a
algumas estruturas sintáticas, como é o caso de Hutchinson e Waters (1987:
165, citados por Parkinson, op. cit.: 370), pode-se dizer que algo de específico
existe. Tal especificidade, entretanto, não mais pode ser circunscrita ao uso de
jargão técnico, mas engloba, também, as estratégias retóricas para conquistar
adesão do público. Fazer e divulgar ciência é argumentar, essencialmente.
Estudando a história da primeira revista científica em inglês – The
Philosophical Transactions of the Royal Society of London (1665) , Bazerman
(2000) afirma que, quanto mais as comunicações entre os cientistas deixavam
de ter a configuração de cartas pessoais trocadas entre eles, gênero que
constituiu a “pré-história” dos artigos acadêmicos, mais era necessário
posicionar-se em relação ao que já estava sendo estudado e publicado por
outras pessoas na área. Isso porque mudavam os interlocutores – de
correspondentes, passavam a autor e leitores diversos, interessados em
ampliar a divulgação dos conhecimentos em construção.
Para esse autor, o surgimento da revista inglesa e seu desenvolvimento
permitiram a emergência não só dos leitores críticos dos artigos, cujas
respostas podiam ser apresentadas a todos os leitores da revista, mas do
papel público da crítica. Isso levou o cientista, normalmente um filósofo, a
assumir o papel de defender o seu trabalho. Nesse novo contexto, para um
118
artigo ser bem sucedido, deveria desarmar potenciais opositores e, ao mesmo
tempo, preparar o terreno para a derrota pública (p. 165).
Desse painel de conflitos, resultantes das novas pressões
sociocomunicativas, surgem algumas das características constitutivas do que,
hoje, denominamos artigo científico ou acadêmico: preferência por certas
estruturas sintáticas, como a voz passiva; predominância de seqüências
tipológicas
60
expositivas; parcimônia na adjetivação de cunho mais “subjetivo”;
referências a outros textos, seja por meio de citações – literais ou
parafraseadas – e indicações de obras e autores. A propósito, esses
mecanismos de intertextualidade têm o intuito de apresentar tanto o “estado da
arte” num dado campo de pesquisa quanto de revelar de que ponto de vista se
empreendeu a investigação. Há, ainda, o uso de recursos de “demonstração”
típicos: esquemas, tabelas, gráficos, etc., na tentativa de tornar mais
compreensíveis e convincentes as afirmações dos cientistas. A inserção de
outros gêneros com função didática é uma característica das CQs, já
brevemente mencionada no capítulo 1 e que será analisada com mais
exemplos no capítulo 4.
Em sua original abordagem antropológica da ciência, Latour (2000), em
vez enfocar os textos encerrados em si mesmos – o que ele denomina ciência
“acabada” - prefere voltar-se para o processo de produção dos fatos científicos,
para tudo o que precede ou está por trás da retórica textual – denominada
ciência em construção. Ele prefere seguir os cientistas na sua labuta cotidiana
a analisar os produtos finais – sejam eles uma teoria, uma usina nuclear, um
modelo econômico: “(...) nossa entrada no mundo da ciência e da tecnologia
será pela porta de trás, a da ciência em construção, e não pela entrada mais
grandiosa da ciência acabada (p. 17).”
Para esse autor, os fatos científicos seriam resultado de um processo
coletivo de transformação das controvérsias e intensos debates em “caixas-
pretas”, ou seja, em postulados aparentemente inquestionáveis e impessoais
61
.
Um exemplo citado pelo autor é a seqüência de afirmações a seguir:
60
Adoto aqui a tipologia de Dolz e Schneuwly (2004), que agrupam as capacidades de
linguagem nos seguintes modos: narrar, relatar, descrever ações, expor e argumentar.
61
Do mesmo modo, as máquinas, ou seja, os instrumentos que auxiliam o fazer científico,
como um gráfico ou uma teoria, são resultado desse processo de polêmicas em camadas
superpostas. Os instrumentos são “qualquer estrutura (sejam quais forem seu tamanho, sua
119
(1) Os novos mísseis soviéticos direcionados para os silos dos mísseis
Minuteman têm precisão de 100 metros.
(2) Se [os novos mísseis soviéticos têm precisão de 100 metros], isso
significa que os mísseis Minuteman não estão mais seguros, sendo
essa a principal razão da necessidade do sistema de defesa MX.
(3) Os defensores do sistema MX no Pentágono permitem taticamente
o vazamento da informação de que [os novos mísseis soviéticos
têm precisão de 100 metros].
(4) O agente secreto 009, em Novosibirsk, confidenciou à sua
empregada doméstica, antes de morrer, ter ouvido dizer em bares
que supunham certos oficiais que alguns de seus [mísseis], em
condições ideais de teste, poderiam [ter uma precisão] de [100] a
[1000] metros, ou pelo menos foi assim que o relato chegou a
Washington. (p. 40-41)
Apenas a primeira afirmação seria uma caixa-preta, pois apresenta um
fato tácito, com uma formulação tipicamente científica sobre a precisão dos
mísseis. As demais abrem espaço para a controvérsia, numa gradação
crescente de incerteza e subjetividade, o que leva os leitores a se posicionarem
de modo diferente e a formularem perguntas diferentes em cada caso. Todo o
trabalho dos cientistas consiste em transformar afirmações como (4), ditas em
laboratórios, em conversas entre cientistas, em afirmações como (1), em
afirmações publicadas em artigos científicos, de modo que a versão final se
pareça com uma verdade aceita desde sempre.
A metodologia adotada por Latour está justificada na seguinte citação:
Em vez de transformar em caixa-preta os aspectos técnicos da
ciência, e depois procurar influências e vieses sociais,
percebemos na Introdução [do livro] como era mais simples
estar ali antes que a caixa se fechasse e ficasse preta. Com
esse método simples, precisamos apenas seguir o melhor de
todos os guias, os próprios cientistas, em sua tentativa de
fechar uma caixa-preta e abrir outra. (2000: 39)
Para isso, retoma as controvérsias ferozes, travadas em torno das
“descobertas” científicas ou do estabelecimento de seus postulados. Ele
propõe que, quanto mais as controvérsias se inflamam, mais os textos se
tornam técnicos. Isso pode ser explicado pelo fato de que os cientistas passam
a necessitar mais de apoio externo para seus postulados:
natureza e seu custo) que permita uma exposição visual de qualquer tipo.” (p. 112). Um
termômetro possibilita leituras, mas não é considerado um instrumento, porque essa leitura não
é usada na camada final de textos científicos. Já um gráfico da variação de temperatura
medida pelo termômetro seria considerado um instrumento, pois expõe, visualmente, essa
informação em textos científicos, funcionando como uma “prova visual”. O autor se refere às
máquinas pelo nome de dispositivos de inscrição em outros trechos do livro.
120
Há sempre um ponto numa discussão em que os recursos
próprios das pessoas envolvidas não são suficientes para abrir
ou fechar uma caixa-preta. É necessário sair à cata de mais
recursos em outros lugares e outros tempos. As pessoas
começam a lançar mão de textos, arquivos, documentos e
artigos para forçar os outros a transformar o que foi antes uma
opinião num fato. Se a discussão continuar, então os
participantes de uma disputa oral acabarão por transformar-se
em leitores de livros ou de relatórios técnicos. Quanto mais
discordam, mais científica e técnica se torna a literatura que
lêem (p. 54).
O jargão técnico, nesse sentido, diferentemente de ser apenas o reflexo
dos saberes específicos do grupo de pessoas que faz ciência, é o resultado de
uma estratégia retórica de arregimentação de reforços para sustentar posições,
organizados em camadas que se sobrepõem, pouco a pouco, nos textos. A
cada nova réplica, na cadeia ininterrupta da polêmica científica, outros textos,
arquivos, tabelas, gráficos e comentários a respeito se adicionam, aumentando
o grau de tecnicidade dos textos científicos. Quanto a isso, Latour afirma que o
status de uma afirmação depende de uma seqüência de debates ulteriores (p.
49): se for aceita, poderá ser alçada ao patamar de fato científico (o que é
sempre provisório, até a próxima polêmica); se for contestada com consistência
e bons argumentos, pode tornar-se mera ficção.
O uso de citações em textos científicos, na visão de Latour, explica-se
pela função persuasiva que assumem:
O adjetivo “científico” não é atribuído a textos isolados que
sejam capazes de se opor à opinião das multidões por virtude
de alguma misteriosa faculdade. Um documento se torna
científico quando tem pretensão a deixar de ser algo isolado e
quando as pessoas engajadas na sua publicação são
numerosas e estão explicitamente indicadas no texto. Quem o
lê é que fica isolado. A cuidadosa indicação da presença de
aliados é o primeiro sinal de que a controvérsia está
suficientemente acalorada para gerar documentos técnicos. (p.
58)
Evidencia-se, portanto, a função retórico-argumentativa dessas referências
como produto de mudanças históricas no fazer científico, o que extrapola o
rigor lógico e formal na demonstração de raciocínios e o uso de terminologia
específica.
121
Ressalto, aqui, um exemplo de movimento retórico na direção de se
considerar a imparcialidade como um atributo essencial aos textos científicos.
No site da Wikipédia, uma enciclopédia virtual bastante conhecida, no verbete
sobre positivismo
62
, há uma advertência que o antecede:
Atenção: Este artigo possui passagens que não respeitam o
princípio da imparcialidade. Tenha cuidado ao ler as
informações contidas nele. Se sabe alguma coisa sobre este
assunto, tente tornar o artigo mais imparcial.
O texto a que o link remete explica o princípio da imparcialidade. É
interessante observar a tentativa de atribuir imparcialidade ao discurso
científico, logo no primeiro item da listagem de princípios a serem seguidos nos
artigos supostamente objetivos:
os factos devem ser apresentados como tais;
nenhum artigo pode conter referências a opiniões sem que
primeiro sejam apresentados factos incontestáveis;
as opiniões devem ser apresentadas como tal, ou seja, uma
opinião deve ser classificada como opinião e deve ser
atribuída (sic);
nos temas controversos, devem ser, sempre que possível,
apresentados os pontos de vista de todos os campos em
disputa
63
.
Observamos, ao lado de uma concepção de ciência neutra, positivista,
capaz de ater-se apenas aos fatos observáveis, uma concepção de linguagem
como “transparente”, isenta das contradições dos falantes e de suas condições
socioculturais. Nesse sentido, Prelli nos relembra: onde há lugar para a
contingência, há lugar para os estudos retóricos (2001), como é o caso da
ciência, que só avançou por meio da divergência.
O caráter parcial da ciência, porém, não anula a possibilidade de identificar
uma linguagem científica, um certo “estilo” presente nos textos científicos. Este
seria um dos atributos da “cientificidade”, que busca garantir a credibilidade das
idéias ali apresentadas. Entretanto, tais características lingüístico-discursivas
não mais podem ser vistas apenas à luz do princípio da imparcialidade, mas
sob uma ótica que contemple a interferência dos papéis sociais na sua relação
com os gêneros específicos, como é o caso da perspectiva dos estudos
retóricos e do letramento situado.
62
Cf. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo>.
63
Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo>. Acesso em 14 ago. 2006, grifo meu.
122
Exposta a intrínseca parcialidade do discurso científico, inclusive naquilo
que nos parece mais imparcial, como o uso de artifícios de demonstração –
esquemas, gráficos, etc. – tal princípio estará na base da análise das CQs
sobre DSTs/aids, especialmente quanto à linguagem científica e à utilização de
outros gêneros (tópicos dos itens a seguir, neste capítulo).
3.2 Linguagem e ciência, linguagem da ciência
Retomando algumas idéias discutidas no item anterior a respeito da
linguagem científica, remeto às idéias de Bazerman (2006), no capítulo “A
produção da tecnologia e a produção do significado humano”, integrante da
obra Gênero, agência e escrita. Na página 83, encontra-se a seguinte
afirmação:
A ciência geralmente produz, como alegação final, sentenças,
sejam matemáticas, gráficas ou verbais. Assim, uma vez que
se argumenta que esses símbolos são retóricos – isto é, o
resultado estratégico de processos humanos de disputa,
disputa essa realizada com palavras (embora também com
práticas materiais de coleta de dados e experimentos) – então
o projeto inteiro se torna profundamente retórico, chamando
para um exame de sua linguagem a cada momento.
E é esse investimento retórico, característico da ciência e de muitos
outros campos da experiência humana, que termina por distinguir e caracterizar
a linguagem produzida nesse âmbito. O caráter simbólico da atividade científica
é ressaltado no texto desse autor:
O crescimento do discurso científico versus a prolificidade do
discurso da tecnologia que acompanha os objetos
tecnológicos em todo o mundo está relacionado com uma
terceira distinção: a tecnologia, em geral, produz objetos e
processos materiais; a ciência, em grande parte, produz
símbolos (Bazerman, 2006: 83).
Logo, torna-se relevante empreender alguma investigação sobre como a
linguagem da ciência se configura e, muito especialmente, como se apresenta
nas CQs, já que esse gênero opera, na verdade, com estratégias discursivas
de divulgação científica, que envolvem a didatização dos conhecimentos
científicos.
123
Iniciando pela “face científica” das CQs, a da informação sobre
prevenção e tratamento de DSTs/aids, parto do pressuposto de que a ciência é
um campo de controvérsias, onde a argumentação é central. Logo, a
linguagem dos textos que veiculam conteúdos científicos reflete, em alguma
medida, tais controvérsias e as estratégias retóricas acionadas não apenas
veiculam informações: são recursos para persuadir sobre a validade dos
postulados apresentados. Portanto, o uso do jargão técnico, talvez o traço mais
evidente das linguagens especializadas, seria considerado mais uma estratégia
retórica nessa arena de disputas, no âmbito da linguagem verbal.
É necessário lembrar que as nomenclaturas não se sobrepõem aos
referentes de modo neutro, como um processo de “etiquetagem”. Os termos
técnicos, na verdade, além de definirem conceitos, constroem representações
sobre as pessoas, sobre o que elas sabem, sobre a situação em que
interagem, em suma, sobre o universo de atuação humana que está em jogo.
Quando um médico entrevista um paciente e usa o termo “cefaléia” em vez de
“dor de cabeça”, ele se coloca num lugar social diferente do seu interlocutor,
estabelecendo uma nítida distinção: o especialista e o leigo, respectivamente.
Num contexto como esse, a interação ocorre a partir da diferença social
exposta com o auxílio das palavras, que ajudam a atribuir graus de prestígio
social distintos para cada pessoa envolvida.
A linguagem da ciência tem sido objeto de estudos diversos, nos quais
são analisadas suas características principais. Kress (2003) já nos lembra que
a cientificidade – caráter atribuído ao que científico - é uma construção social e
não um atributo intrínseco aos textos, podendo ser elaborada multimodalmente,
isto é, usando-se mais de um sistema semiótico.
Algumas características da linguagem científica materializam as relações
entre linguagem e princípios de cientificidade. Num artigo de 1987, Machado
discute a subordinação do estilo científico ao princípio da neutralidade da
ciência, citando alguns exemplos. No quadro a seguir, categorizo os
fenômenos em dois blocos de princípios gerais, partindo dos pressupostos de
Machado (1987), Kress (2003), Bazerman (2006) e Latour (2000) e
acrescentando outros, inclusive relativos à linguagem não-verbal
64
.
64
A organização do quadro é meramente didática, já que, do ponto de vista retórico, seria
possível estabelecer, para o discurso científico, a credibilidade como princípio geral. Para que
124
Quadro 7 – Tipos de ancoragem institucional nas CQs
ESTRATÉGIAS RETÓRICAS
PARA ALCANÇAR O ESTATUTO DE “CIENTIFICIDADE”
Princípio
geral
Linguagem verbal
Estr. retórica Comentário
Preferência
pelas
construções
sintáticas
passivas
(sintéticas e
analíticas);
atribuição de
ações a um
sujeito outro
que não o
cientista.
Tentativa de “relatar o conhecimento científico como uma
decorrência, senão natural, irreversível dos resultados obtidos
pela aplicação do método”. Segundo a autora, “a linguagem
científica atribui ao método uma autonomia irreal”, já que ele se
encaixa num quadro teórico mais amplo (Machado, 1987: 338),
escolhido/ construído pelo cientista e, portanto, parcial.
A voz passiva e o apagamento do cientista como agente das
ações relatadas são estratégias de distanciamento (cf. Chafe,
1985), de modo que o fazer científico pareça algo independente
do sujeito que realiza as ações aí envolvidas. Exemplo:
“observa-se que...”, “os dados indicam que...”, “foram
encontrados indícios de...”, etc.
Preferência
pelas
seqüências
tipológicas
expositivas ao
apresentar
conceitos.
A exposição, segundo Dolz e Shneuwly ([1996]2004), é própria
dos textos relacionados ao domínio social de transmissão e
construção de saberes, visando, de forma sistemática,
possibilitar a apreensão dos conhecimentos científicos e afins,
numa perspectiva menos assertiva e mais interpretativa. É o
caso de textos expositivos, conferências, seminários, resumos
de textos expositivos e explicativos, relatos de experiência
científica.
Linguagem não-verbal
Estr. retórica Comentário
Desenhos
realísticos e
esquemáticos,
em preto e
branco.
Desenhos realísticos tendem a servir melhor para a descrição
dos seres e fenômenos que a ciência tem interesse em estudar.
O uso de cores, quando não funcional para a descrição de
algum processo, ou para a demonstração de algum princípio
científico, é da ordem do entretenimento e das artes e, portanto,
não-científico
65
.
Enquadra-
mentos mais
convencionais
Em geral, a perspectiva preferida, nos textos de caráter
científico, é a da vista frontal, superior ou lateral, de modo que
se possa visualizar, com clareza, a parte do ser ou objeto que
está sendo descrita ou analisada.
Os closes aparecem quando é preciso colocar uma “lupa” para
enxergar melhor os fenômenos e, portanto, compreendê-los,
como faz o cientista.
I
M
P
A
R
C
I
A
L
I
D
A
D
E/
O
B
J
E
T
I
V
I
D
A
D
E
Desenhos
esquemáticos
com poucos
detalhes.
Essa espécie de desenho permite ao leitor “ver”, com maior
nitidez, os detalhes que se deseja ressaltar (Kress, 2003). A
demonstração de postulados expostos verbalmente é realizada
com o auxílio de instrumentos, no dizer de Latour (2003), tais
como esquemas, gráficos, tabelas. O leitor não mais apenas
um texto científico gozasse de credibilidade junto aos leitores, buscaria atender aos princípios
da imparcialidade e da legitimidade.
65
Kress (2003) relata como um professor proíbe o uso de hidrocor e solicita o uso de lápis
grafite (cinza) numa tarefa escolar de desenho de célula vista no microscópio. O autor aponta
que a preferência pelo preto e branco é um dos traços de cientificidade.
125
compreende o texto, mas “vê” os fenômenos acontecendo, o
que tem grande força argumentativa.
Linguagem verbal
Estr. retórica Comentário
Assuntos tidos
como “sérios”,
dignos de
investigação.
A ciência valoriza certos tópicos discursivos em detrimento de
outros, logo, ao cientista, cabe discorrer sobre certos assuntos
e não, outros.
“É proibido ao leigo participar do discurso científico, e ao
cientista abordar temas que não se revistam de cientificidade”.
(Machado, 1987: 339)
Identificação da
instituição e do
cientista, com
dados sobre a
formação
deste.
A instituição “homologa a competência profissional do autor
para discorrer sobre o tema” (Machado, 1987: 339).
Esses dados podem vir em notas de rodapé, de fim ou após o
título dos artigos e relatórios.
Ausência de
questões
existenciais do
cientista
A disciplina “fixa os limites do discurso científico pela
reatualização constante de regras já estabelecidas”.
Explicitação de
bases teóricas
que
fundamentam o
estudo.
As citações e as referências fazem parte do conjunto de
esforços para arregimentar “aliados” e proteger as “caixas-
pretas”, ou seja, os pontos de vista que se transformam em
postulados inquestionáveis (Latour, 2000).
Uso do jargão
técnico.
O domínio do jargão permite identificar aqueles que detêm um
saber especializado, atribuindo-lhes poder e distinguindo-os
das demais pessoas. O jargão serve para validar os postulados
expostos.
Linguagem não-verbal
Estr. retórica Comentário
C
R
E
D
I
B
I
L
I
D
A
D
E
/
L
E
G
I
T
I
M
I
D
A
D
E
Desenhos não-
caricaturais,
realísticos, em
preto e branco.
A representação da realidade o mais fielmente possível é uma
das utopias da ciência e uma aproximação disso seria por meio
de desenhos realísticos. Não caberia, portanto, o traço
humorístico da caricatura nos desenhos feitos para a esfera da
ciência.
Para Machado, “Quando um cientista escreve ‘Observa-se que’, além de
narrar um ‘fato científico’, ele relata uma postura diante da ciência: uma ciência
sem agente, isenta de interpretação.” (p. 340). Atkinson (1999), no artigo em
que revisa textos já publicados sobre linguagem e ciência – Language and
Science - denomina tais construções de “passiva científica”
66
.
66
Essa definição se aplica aos casos de passiva sintética (3
a
pessoa do singular + SE:
“Observaram-se casos semelhantes.”) e à passiva analítica sem agente da passiva explícito
(“Foram observados casos semelhantes.”).
126
Nos trabalhos comentados por Atkinson, fica evidente que a preferência
pela voz passiva nos textos científicos varia de acordo com uma série de
aspectos, por exemplo, conforme o tópico do artigo acadêmico. O estudo de
Rodman (1994), comentado por Atkinson, examina a ocorrência e a
funcionalidade da voz ativa nas diferentes seções dos artigos, como
introdução, metodologia, resultados e discussão. Outros trabalhos
mencionados pelo autor comparam os movimentos retóricos usados em
diferentes gêneros científicos, como é o caso do estudo de Myers (1992), que
contrasta livros didáticos de Ciências e outros gêneros científicos.
Como aponta Latour (2000), a terminologia técnica seria o resultado do
esforço retórico para enfrentar os opositores: os cientistas alinham uma série
de conceitos que remetem a outros conceitos, numa sucessão de camadas que
se superpõem e que resultam num grau elevado de termos técnicos. Como o
pesquisador afirma, ironicamente:
O acúmulo daquilo que aparece como detalhes técnicos não é
coisa sem sentido; está aí para tornar o oponente mais difícil de
vencer. O autor protege seu texto contra a força do leitor. Um
texto científico fica mais difícil de ler; como quando se protege e
escora uma fortaleza: não é por prazer, mas para evitar o saque.
(p. 78-79)
Ao comparar a produção do discurso da tecnologia e do discurso científico,
Bazerman (2006) observa que aquele precisa ultrapassar os muros de um
grupo fechado de experts para conseguir o apoio de “numerosos públicos
(financeiro, jurídico, técnico), muito antes de se tornar uma realidade material”
(p. 82). Para ele, “a tecnologia é traduzida para todos os termos do mundo para
que ganhe o apoio e o uso que requer para sua existência” (p. 83). Já o
discurso científico, apesar de também necessitar angariar apoio de agências de
fomento e de patrocinadores acadêmicos, pode valer-se da avaliação de pares
controlada pela ciência, sujeita a critérios científicos internos a esse âmbito de
atuação humana.
A partir desse ponto de vista, uma retórica da ciência pode estudar “um
discurso interno de alegações, um discurso socialmente contencioso de criação
e manutenção de fronteiras e um discurso de representação profissional,
guiado pelos interesses e dirigido para fora das fronteiras” (p. 82).
127
Para a sociolingüística variacionista, a especificidade da linguagem
científica pode ser abordada a partir da concepção de jargão. No dizer de
Burke (1997), em várias línguas neolatinas, a palavra jargão, inicialmente,
referia-se à linguagem dos mendigos e ladrões, propositalmente ininteligível
para as demais pessoas, de modo que os crimes pudessem ser praticados
mais facilmente. Posteriormente, passou a designar também a linguagem de
certos grupos sociais especiais, seja em termos profissionais – advogados,
filósofos escolásticos, – seja em termos étnicos, como é o caso de grupos
marginalizados (ciganos e judeus).
Tal abordagem considera as relações entre linguagem e sociedade, mas
privilegia o recorte estático na cronologia da língua como caminho
metodológico. Seja esse recorte uma “foto” atual (sincronia), seja uma “foto”
antiga (diacronia), acredito que tal abordagem não é capaz de contemplar a
dinâmica dos processos que envolvem a relação entre língua e sociedade, já
que os atores estão “congelados” para que a “foto” tenha mais nitidez, o que
reduz muito a aproximação do cientista dos fatos lingüísticos na sua relação
com os fatos sociais. A sociolingüística variacionista pode, caso não se
relativizem certas categorizações, reduzir a configuração lingüístico-discursiva
dos textos a um feixe de fatores de variação, aplicáveis a quaisquer textos, o
que termina por enviesar inadequadamente as análises.
Essas são algumas das razões para que eu tenha optado pelas abordagens
do letramento situado e da nova retórica, visto que essas duas vertentes
teóricas têm um instrumental mais adequado para observar tais relações.
Na dimensão do letramento situado, segundo Barton e Hamilton (1998), há
diferentes práticas de letramento associadas a diferentes domínios da vida
humana. O conceito de letramento situado permite entender as diferenças de
atitudes e de comportamentos que, por sua vez, podem ser atribuídas, ao
menos parcialmente, a diferenças nos eventos (de fala ou de letramento) das
várias instituições (política, publicitária, literária, artística, do cotidiano) em que
as atividades são realizadas. Nos eventos de letramento, essas atividades
diferem em função de exigências situacionais para usar a língua escrita em
geral, e a leitura em particular. Tal perspectiva permite tratar os eventos de
letramento como acontecimentos singulares, sem desprezar o que neles há de
128
histórico e recorrente, numa abordagem mais acurada dos gêneros produzidos
e recebidos nessas situações sociocomunicativas.
Levando-se em conta o gênero cartilha educativa, que compõe o corpus
deste trabalho, a intersecção entre a especificidade da linguagem científica e a
necessidade de envolver o leitor constitui-se no centro a partir do qual
analisarei o recurso à multimodalidade, especialmente à quadrinização nos
seus múltiplos aspectos, no sentido de compreender melhor como os sentidos
podem vir a ser (re)construídos nos eventos de letramento em que tais gêneros
circulam, em que são recebidos pelos leitores.
É na perspectiva de “tensão dialética” - entre os pólos da linguagem
científica e da linguagem dos quadrinhos – orientada pelo próprio gênero CQ -
que conduzo este trabalho. A linguagem científica, como qualquer linguagem
especializada, não tem um modo próprio de ser, descolado de suas condições
de produção. Na verdade, esses traços resultam de pressões sociais e de
processos históricos, que buscaram delimitar o estatuto da ciência, inclusive
variando conforme o gênero em que se manifesta. Por essa razão, procuro
observar em que medida, nas CQs, se manifestam os princípios da
cientificidade e do didatismo (clareza ao trazer informações ao público leigo).
No próximo item, abordo a manifestação verbal da cientificidade, em
características diversas das CQs, observando os “porta-vozes” do discurso
científico nas cartilhas, o uso de terminologia técnica e de eventuais
“traduções” e a escolha de seqüências tipológicas.
3.3 Cientificidade verbal em cartilhas quadrinizadas
O que se pretende, neste tópico, é analisar de que maneira as
informações científicas são apresentadas nas CQs e até que ponto se
revestem de cientificidade, ainda que fazendo uso de recursos distintos dos
mais convencionais aos textos do mundo da ciência. Para analisar a
construção da cientificidade via linguagem verbal em CQs, primeiramente, é
importante identificar de que lugar social o discurso científico parte, ou seja,
quem fala para quem. Quanto à relação entre linguagem e representações
sociais, Moita Lopes (2002: 36) afirma: “Os processos discursivos constroem
129
certas identidades para terem voz na sociedade embora estas possam se
alterar em épocas e espaços diferentes.” É a representação dos papéis sociais
dos personagens que são porta-vozes da ciência nas cartilhas o tema
abordado no subitem a seguir.
3.3.1 Porta-vozes da ciência em CQs e seus papéis sociais
Nas cartilhas, diferentemente do que acontece em artigos acadêmicos,
por exemplo, a figura do cientista como condutor das pesquisas e, portanto,
produtor dos conhecimentos científicos não existe. Mas há, em contrapartida,
uma autoridade responsável pelo discurso da ciência em cinco das cartilhas
analisadas: CQ1 – Professora de Educação Sexual, CQ2 – super-herói Super
Protegido, o Bom-de-cama; CQ3 – Médicos, enfermeiro, psicólogo; CQ5 –
médico; CQ6 – Mãe-de-santo. Em todos esses casos, a assimetria entre quem
traz a informação científica – a voz da autoridade - e quem a recebe - demais
personagens e leitores - é evidente. Algumas cartilhas ainda procuram
amenizar essa distância, inserindo situações estereotipadas recorrentes na
caracterização dos personagens. Nesses exemplares, são comuns diálogos
entre pessoas de mesmo extrato social/ função/ idade, divididas em bem-
informadas e mal-informadas, cujas falas são contrastantes ou conflitantes, o
que termina sendo a “deixa” para a apresentação de informações científicas.
Numa perspectiva sociodiscursiva de linguagem, “os sentidos dos
nossos discursos são construídos interativa e colaborativamente, num
processo marcado também pela co-construção dinâmica das identidades”
(Mendonça, 2007), que são sempre sociais e provisórias. Nessa dinâmica, são
acionadas representações de papéis sociais diversos. Tomamos o conceito de
representação social de Moscovici (1978, apud Alexandre, 2004: 126), que
cunhou o termo e o define como “uma modalidade de conhecimento particular
que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre
os indivíduos.” Nesse sentido, as representações sociais expostas nas cartilhas
auxiliam os leitores a reconhecer as situações retratadas e, eventualmente, a
identificar-se com alguma delas, o que ajuda na interação promovida através
da leitura do material. Tal identificação é desejável para o sucesso da
130
campanha de educação em saúde, uma vez que cada cartilha é dirigida a um
público específico. Identificar-se com as situações apresentadas na narrativa
em quadrinhos é um passo para o leitor adotar as condutas preventivas
sugeridas no material.
Também Bazerman (2005), ao tratar das relações entre as atividades
humanas e a linguagem, afirma que, ao fazermos uso de textos, criamos, na
verdade, fatos sociais. Assim, “o estudo da construção de identidades sociais
está intrinsecamente ligado a um estudo discursivo das práticas de linguagem
e, em certa medida, a recíproca é verdadeira.” (Mendonça, 2007). Seguindo
uma série de autores que já trataram do tema, Moita Lopes (2002) afirma que:
O discurso tem sido cada vez mais representado como um processo
de construção social tendo em vista que: a) o significado é um
construto negociado pelos participantes, isto é, não é intrínseco à
linguagem (BAKHTIN 1981; DURANTI 1986, NYSTRAND e
WIEMELT 1961; CICOUREL 1992 etc.); e b) a construção social do
significado é situada em circunstâncias sócio-históricas particulares
e é mediada por práticas discursivas específicas nas quais os
participantes estão posicionados em relações de poder
(FOUCAULT, 1971; FAIRCLOUGH 1989, 1992, 1995; LINDSTROM
1992 etc.).
A linguagem, por meio dos textos que produzimos, reflete e (re)cria as
relações sociais, nos diversos contextos sociocomunicativos. Pode-se afirmar
que, nas CQs, esses papéis sociais são representados pelos personagens da
narrativa, em geral, estereótipos. O objetivo de trazer personagens
estereotipados seria seduzir os leitores para a leitura do material de
propaganda, pois é mais imediato o reconhecimento das situações e do tipo de
pessoas envolvidas, por parte de quem lê a HQ. Em última análise, a presença
de personagens estereotipados nas CQs objetiva convencer os leitores a
adotar certas condutas preventivas. Segundo Mendonça (2007), para que
essas metas sejam alcançadas, é necessário que os personagens atendam a
um critério básico, a credibilidade.
No caso das narrativas ficcionais criadas para as CQs, a credibilidade
está imbricada com a verossimilhança: quanto mais as situações e os
personagens forem semelhantes ao que se considera a realidade cotidiana,
mais confiável se tornará a campanha publicitária. Em outras palavras: se a
cartilha aborda, com tal propriedade, a realidade ou a representação que certo
grupo social tem dessa realidade (se é verossímil), é muito mais provável que
131
aborde, com propriedade, os problemas enfrentados pelas pessoas e as
soluções mais viáveis. Tudo isso pode levar à avaliação de que se trata de um
material válido para a busca de informações.
Obviamente, os personagens, as situações-problema e o próprio enredo
da história narrada nas cartilhas são uma fusão do que se observa na
realidade, associada aos propósitos comunicativos de cada cartilha. Se é
necessário, como medida de saúde pública, abordar adversidades enfrentadas
pelos doentes, como preconceitos, esse será o mote de situações diversas
apresentadas na trama narrativa. O leitor terá, então, um “panorama” do que os
doentes têm de vivenciar. Do mesmo modo, se a CQ objetiva informar sobre as
várias formas de contágio, personagens e situações serão agenciados para dar
conta, o mais possível, de todas as variações envolvidas.
Entretanto “não basta ter um discurso ‘antenado’ com os problemas e as
angústias cotidianas; é preciso comprovar competência técnica para lidar com
a prevenção e o tratamento das enfermidades.” (Mendonça, 2007). Por isso, os
personagens que são porta-vozes desse discurso científico têm um papel
primordial nas CQs. Em boa parte dos casos, autoridades na área de saúde,
como médicos, enfermeiros e agentes de saúde, ou outros atores sociais que
sejam lideranças reconhecidas e legitimadas coletivamente, como professores,
líderes comunitários e religiosos, dão voz à informação científica. Vejamos,
então, como se distribuem os papéis sociais em cada cartilha:
Quadro 8 – Papéis sociais das personagens em CQ1
CQ1 - DST/Aids - A turma pode ficar... prevenida!
Perso-
nagens
Papéis sociais representados Relações sociais entre eles
(Todos) Todos os adolescentes são
colegas de escola e alunos da
professora Lúcia. Alguns
namoram, outros “ficam”.
Marcos Adolescente bem informado e que
questiona os preconceitos dos
colegas.
Colega de escola dos demais.
Beto Adolescente mal informado, que não
se previne e contrai uma DST.
“Ficou” com Adriana, mas não teve
relações sexuais.
132
Perso-
nagens
Papéis sociais representados Relações sociais entre eles
Carlos Adolescente mal informado, que não
se previne e contrai uma DST.
Colega de escola dos demais.
Renato Adolescente mal informado, que não
se previne e externa preconceitos
sobre o comportamento sexual de
certas meninas.
“Ficou” com Simone, mas não teve
relações sexuais, porque ela se
recusou.
Adriana Adolescente mal informada, que tem
práticas sexuais desprotegidas
“Ficou” com Beto, mas não teve
relações sexuais.
Cristiane Adolescente bem informada. Colega de escola dos demais.
Simone Adolescente bem informada, que
ainda não iniciou sua vida sexual e
só pretende fazer sexo seguro.
“Ficou” com Renato, mas não teve
relações sexuais, porque se
recusou, disse não estar
preparada.
Prof
a
.
Lúcia
Professora de Educação Sexual;
representa a autoridade no assunto,
no contexto escolar.
Os alunos menos informados
recorrem a ela para tirar dúvidas.
Em CQ1, a credibilidade do porta-voz do discurso científico aparece em
vários trechos. Na página 8, uma das garotas diz: “Quer saber o que eu acho?
Vai lá na professora e pergunta. Ela vai te dizer direitinho.”, o que ganha um
reforço no trecho “Tenho uma idéia. Muita gente está com dúvidas. Que tal
fazermos juntos uns painéis para esclarecer a todos?”, seguida do discurso do
narrador “Então, com a orientação da professora Lúcia, os alunos criaram três
belos painéis” (p. 9).
Ex. 125 – Papéis sociais das personagens em
CQ1, p. 8, quadro 1.
Ex. 126 – Papéis sociais das personagens
em CQ1, p. 9.
133
Nesses momentos, a professora é a fonte confiável no universo dos
adolescentes daquela escola. Na sala onde a professora Lúcia recebe a aluna
Adriana, há um cartaz ao fundo, onde se lê: “Programa de Prevenção em DST-
aids”, que aponta para a natureza oficial e, em última instância, científica, das
informações dadas pela docente.
Os painéis sobre DSTs/aids, suas formas de contágio, sintomas e
prevenção foram produzidos pelos alunos. Essa foi uma criativa estratégia da
campanha publicitária para introduzir os gêneros tipicamente científicos
67
,
como esquema explicativo, sem quebra abrupta da narrativa.
Ex. 127 – Painel escolar em CQ1, p. 10-11.
67
No capítulo 4, analiso a multiplicidade de gêneros inseridos nas cartilhas e seus propósitos
comunicativos.
134
Ex. 128 – Painel escolar em CQ1, p. 12-13.
Tal tipo de trabalho escolar – painéis e cartazes informativos - é
bastante comum nas escolas brasileiras, constituindo uma prática de
letramento conhecida do público-alvo da cartilha, os alunos adolescentes, o
que talvez facilite o envolvimento desses leitores com o conteúdo da cartilha.
Tais cartazes, por veicularem saberes escolares, também são um gênero
legitimado socialmente para trazerem informações científicas, daí terem sido
privilegiados na cartilha DST/aids – A turma pode ficar... prevenida!, para
complementarem o discurso da porta-voz da ciência, a professora.
Outro aspecto relacionado ao discurso da ciência é a busca pela
neutralidade na linguagem usada pelos personagens: em CQ1, a personagem
da professora, que representa os especialistas, utiliza um registro de linguagem
entre o semiformal e o formal, sem gírias e sem algumas reduções típicas da
oralidade informal, como “tá”, “tô”, etc. Já os outros personagens tanto adotam
um registro mais distenso quanto um certo grau de formalidade.
Os papéis sociais de professor e alunos são convencionados, nessa
cartilha, do modo mais recorrente: o professor que sabe e não tem dúvidas; o
aluno que não sabe; o professor que pode falar de assuntos delicados, como a
vida sexual, com distanciamento (da maneira que convém à ciência); o
professor que recebe o aluno atrás de uma mesa, com um livro aberto,
reproduzindo, de certa forma, a organização assimétrica e distanciada de uma
sala de aula comum, mesmo numa situação extra-classe (cf. ex. 115, p. 103).
135
Em CQ2, outros papéis sociais e estereótipos são acionados para
possibilitar a veiculação das informações sobre DSTs/aids:
Quadro 9 – Papéis sociais das personagens em CQ2
CQ2 - As aventuras do Super-Protegido, o bom-de-cama
Persona-
gens
Papéis sociais representados Relações sociais entre
eles
O gaúcho Homem de pouca escolaridade, de classe
social baixa, machista, promíscuo e
desinformado, da região Sul
68
.
O mineiro Esse mesmo estereótipo masculino,
nascido em Minas Gerais.
O nordes-
tino
Esse mesmo estereótipo masculino,
nascido no Nordeste.
Super-
Protegido,
o Bom-de-
cama
O discurso da ciência: super- herói que
viaja pelo Brasil, disseminando
informações entre os homens de diversas
regiões, aparentemente, de grupos
sociais mais pobres e menos informados.
Também representa, metonimicamente, a
própria camisinha
69
. A roupa de super-
herói remete à camisinha de várias
formas: máscara, luvas, botas, armas na
cintura e logotipo no peito na forma de
camisinha; um cinto formado por várias
camisinhas.
O super-herói se aproxima
dos homens – gaúcho,
nordestino e mineiro -, que
demonstram desinformação.
Passa, então, a dar
informações a eles. É o
protótipo do herói que chega
para salvar as pessoas do
perigo. Não há maiores
explicações ou estratégias
narrativas para a
aproximação dos
personagens, além da
contra-argumentação do
Super-Protegido em relação
ao que dizem os homens.
De forma lúdica, o super-herói se aproxima dos três representantes do
brasileiro – o gaúcho, o matuto mineiro e o sertanejo nordestino para conversar
sobre mitos e preconceitos quanto às DSTs/aids. O Super-Protegido assume a
responsabilidade pelo discurso da ciência, sem abandonar o tom bem-
humorado e jocoso que caracteriza os diálogos, conforme ilustram os exemplos
68
Um mapa no primeiro quadro (p. 3 de CQ2) permite ver não só o Rio Grande do Sul, mas
outros estados dessa região, representados, inclusive, pela araucária, árvore encontrada no
Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.
69
Vale lembrar que CQ2 é publicada pela empresa DKT, uma fabricante de preservativos
masculinos e femininos, com o apoio da USAID (Agência Governamental Norte-Americana de
Desenvolvimento Internacional), agência federal norte-americana, independente, que recebe
orientações sobre política exterior da Secretaria de Estado norte-americana. Em meio à
narrativa da cartilha, há uma propaganda da marca “Reality”, de preservativo feminino (p. 6).
Esse propósito comercial, ausente nas demais cartilhas, explica, em parte, o foco exclusivo no
uso da camisinha como medida preventiva, uma vez que a fabricante de preservativos é que
financia a publicação.
136
116, p. 104 e 117, p. 105. Quase todas as interações se organizam na
contraposição entre o que dizem os personagens que representam os homens
brasileiros e o que diz o super-herói.
Já em CQ3, há uma grande variedade de contextos envolvendo
soropositivos, dado que o material é voltado para casais sorodiscordantes.
Registre-se ainda a variedade de personagens e de relações sociais entre eles.
As cenas com casais heterossexuais e homossexuais se desenvolvem em
suas próprias casas, junto com outros familiares, em postos de saúde, em
manifestações de rua, em grupos de ajuda mútua, em consultórios de
psicologia, etc.
Quadro 10 – Papéis sociais das personagens em CQ3
CQ3 – Compartilhando a vida
Perso-
nagens
Papéis sociais representados Relações sociais entre eles
Cleiton Dono de um bar, heterossexual,
casado, que contrai aids em relações
sexuais desprotegidas.
Casado com Suely. O casal se consulta
com o médico 1 para saber como evitar a
contaminação da parceira. Retornam apo
algum tempo, para Suely fazer o
tratamento com retrovirais, pois o
preservativo rasgou durante uma relação
sexual.
Suely Mulher heterossexual que não
contraiu a doença do marido
soropositivo.
Casada com Cleiton; se consulta com o
médico 1.
Michele Garota, grávida soropositiva. Conhece Suely no posto, a quem conta
sua história: o exame foi entregue aos
pais dela e não a ela. Recebe conselhos
de Suely para procurar a família. Retorna
ao posto com a mãe, dias depois, onde é
alvo do preconceito de um enfermeiro.
Beto Rapaz homossexual, soro-positivo. Namora Alan e é amigo de Michele. A
família o apóia na sua orientação sexual e
no tratamento que faz.
Alan Rapaz homossexual. Namora Beto, sabe que ele é soropositivo
e é amigo de Michele.
Karla Garota homossexual, soropositiva. Namora Lígia e participa de movimentos
sociais e de grupos de ajuda mútua.
Lígia Garota homossexual, não tem o vírus
HIV.
Namora Karla e participa de movimentos
sociais e de grupos de ajuda mútua.
Nildo Jogador de futebol, heterossexual,
soropositivo que supera a rejeição e
tem uma vida saudável e feliz.
Conhece Karla e Lígia no grupo de ajuda
mútua.
Psicólogo Psicólogo do grupo de auto-ajuda. Atende Nildo no consultório e o ajuda a
superar a fase depressiva, apesar do
vírus.
Médico 1 Médico do posto de saúde. Dá as
informações corretas sobre
DSTs/aids.
Atende Cleiton e Suely por duas vezes.
Médica 2 Médica do posto de saúde. Sofre
com a falta de infra-estrutura do
atendimento público à saúde.
Enfrenta dilemas, porque gostaria de
atender melhor os pacientes. Atende
Michele e a mãe.
137
Médico 3 Médico do posto de saúde,
preconceituoso em relação à
homossexualidade.
Atende Alan e o aconselha a “rever suas
relações”.
Médico 4 Médico de um posto de saúde. Atende Nildo e passa as informações
sobre o tratamento da aids.
Enfer-
meiro 1
Profissional de saúde
preconceituoso, no caso, em relação
aos soropositivos.
Trabalha no posto em que Cleiton, Suely
e Michele se consultam. Faz um
comentário preconceituoso contra Michele
porque ela é jovem e está infectada.
Enfer-
meira 2
Profissional de saúde não-
preconceituoso.
Trabalha no posto em que Cleiton, Suely
e Michele se consultam. Repreende o
colega enfermeiro, pelo preconceito que
ele manifesta.
Funcio-
nária do
posto
Profissional de saúde impotente
diante de problemas estruturais.
Funcionária do posto do hospital. Atende
Beto e Alan e informa a falta de
medicamentos.
A voz da ciência é representada, principalmente, por personagens
ligados à área técnica: médicos, enfermeiros e psicólogos, “mas é delegada
também às pessoas comuns, seja por meio dos diálogos, seja por meio do
discurso do narrador, que relata os saberes de cada personagem, além dos
direitos por elas conquistados.” (Mendonça, 2007). A voz da ciência é
reconhecida quando pessoas distribuem panfletos em manifestações de rua.
Vejamos o que diz o panfleto sobre cuidados com o uso de drogas injetáveis:
Ex. 129 – CQ3, p. 10, quadro 1
O espaço geográfico é outro fator que ajuda a explicitar as
representações sociais dos personagens: o encontro de Michele com Alan e
Beto acontece na Feira de São Cristóvão (CQ3, p. 7), tradicional reduto carioca
da população de baixa renda, especialmente de migrantes nordestinos e
138
descendentes. Outras pistas que denotam o extrato social de que provêm os
personagens são a aparência do bar de Cleiton - uma casa simples, com
apenas um balcão para atender os clientes, que ficam em pé na rua (CQ3, p. 4
e 14) – e o que é vendido – caldo de cana e pastel. Além disso, todos os
atendimentos são feitos em postos de saúde públicos, o que significa que
nenhum personagem tem acesso à rede de saúde privada, uma prerrogativa
das classes privilegiadas economicamente.
A cartilha De homem para homem, como o título indica, foi produzida
para o público masculino com mais de 30 anos, de classe média, escolarizado.
Esse exemplar parte do pressuposto de que apenas a informação correta não é
suficiente para modificar hábitos relativos à vida sexual, conforme já aponta
Valadão (2004). Assim, a prioridade desse material de campanha institucional
não é apresentar informações sobre DSTs/aids, mas pôr em discussão as
angústias quanto à vida sexual (preocupação excessiva com desempenho,
falta de diálogo com a parceira, etc.) e a resistência dos homens a usar
métodos preventivos já conhecidos por eles, como a camisinha; a fazer
exames preventivos e a admitir problemas na área sexual/afetiva diante dos
amigos. Esse objetivo termina por se refletir em escolhas um pouco diferentes
para o tipo de relação social entre os personagens e para a “voz” da ciência.
Quadro 11 – Papéis sociais das personagens em CQ4
CQ4 - De homem para homem (o Gatão e seu amigos)
Perso-
nagens
Papéis sociais representados Relações sociais entre eles
Gatão de
Meia-Idade
Homem escolarizado, de classe
média, com mais de 30 anos, que
vive angústias em relação ao
desempenho sexual e resiste a adotar
condutas preventivas (exames e uso
de preservativo).
Amigo dos demais, estabelece
um diálogo com os outros
homens e com os leitores
sobre as angústias comuns a
eles. Supera suas dificuldades
com a parceira pelo diálogo.
Amigo 1 Homem escolarizado, de classe
média, com mais de 30 anos, que
vive angústias em relação ao
desempenho sexual.
Amigo dos demais homens,
com quem termina por
dialogar sobre as angústias
comuns a eles; supera seus
problemas com a parceira.
Amigo 2 Homem escolarizado, de classe
média, com mais de 30 anos, que
diverge da parceira ao recusar o uso
do preservativo.
Amigo dos demais homens,
com quem termina por
dialogar sobre as angústias
comuns a eles; supera suas
divergências com a parceira,
passando a usar o
preservativo.
139
Parceira do
Gatão
Mulher adulta escolarizada, de classe
média, com mais de 30 anos, que
deseja uma vida sexual melhor.
Supera suas dificuldades com
o parceiro pelo diálogo; ambos
passam a ter uma vida sexual
prazerosa.
Parceira do
Amigo 1
Mulher adulta escolarizada, de classe
média, com mais de 30 anos, que
deseja ser ouvida pelo parceiro.
Supera suas dificuldades com
o parceiro pelo diálogo; ambos
passam a ter uma vida sexual
satisfatória.
Parceira do
Amigo 2
Mulher adulta escolarizada, de classe
média, com mais de 30 anos, que
exige o uso do preservativo pelo
parceiro.
Supera suas dificuldades com
o parceiro pelo diálogo; ele
passa a usar o preservativo.
Garçom Garçom do bar em que se encontram
os amigos. Introduz o mote da cartilha
- a falta de sinceridade entre homens
ao conversarem sobre sexo: “Tá
faltando alguma coisa?” (p. 7).
Garçom que serve os amigos
no bar.
A voz da ciência aparece numa conversa “de homem para homem” (cf.
ex. 67 e 68, p. 57; ex. 84, p. 67; ex. 92, p. 72), em que o Gatão de Meia-Idade
“chama” o leitor para conversar a respeito de certos comportamentos
masculinos que podem prejudicar a vida sexual dos casais e até trazer riscos
para a saúde. Mas as informações científicas aparecem entremeadas com
comentários sobre preconceitos, mitos e atitudes machistas do tipo Macho
acha que aids é coisa de gay e drogado e que cuidar do corpo e prevenir as
DSTs, doenças sexualmente transmissíveis, é obrigação só das mulheres
(CQ4, p. 20, exposta no ex. 130, a seguir). Nessas páginas, o tópico é
introduzido no topo, em fonte grande, com cor vermelha na palavra que indica
o aspecto conflituoso para o grupo masculino. Os exemplos a seguir expõem
um conjunto de crenças comuns a muitos homens, que, muitas vezes, até
independem do grau de escolarização: a) o uso da camisinha como empecilho
para o prazer sexual; b) os cuidados com DSTs/aids como restritos aos
homossexuais; c) as consultas e exames preventivos como preocupações
exclusivamente femininas.
140
Ex. 130 – CQ4, p. 20. Ex. 131 – CQ4, p. 21.
O personagem central se inclui no grupo dos homens que adota essas
atitudes e crenças, como demonstra o emprego da 1ª pessoa do plural
(“Temos...”). Também qualifica esse grupo como o dos “machos” (Macho acha
que...,), provavelmente numa associação ao comportamento machista a que as
atitudes e crenças explicitadas na cartilha se referem. Em vez de abordar o
assunto com distanciamento, como convém à ciência e como o fizeram as
autoridades de CQ1 e de CQ3, nessa cartilha, o tratamento é bem mais
subjetivo e pessoal. De fato, o tom de bate-papo entre homens em mesa de bar
se mantém em toda a narrativa, conforme indica o uso de gírias (“transar”) e
até de palavras consideradas chulas e classificadas como tabus lingüísticos em
dicionários (“tesão”, “dedada”) (cf. Houaiss, 2000), escolhas lexicais esperadas
nesse tipo de contexto interacional.
Em CQ5, um grupo de jovens se reúne para tirar dúvidas com um
médico, numa sala de bate-papo na internet e é esse profissional de saúde o
responsável pelas informações científicas.
Quadro 12 – Papéis sociais das personagens em CQ5
141
CQ5 – Bate-papo: dicas de prevenção às DSTs/aids
Perso-
nagens
Papéis sociais
representados
Relações sociais entre eles
Dr. Yuri Médico que mantém uma
sala de bate-papo pela
internet (Tira-dúvidas) para
tirar dúvidas de jovens
sobre DSTs/aids
Conversa com os adolescentes na sala
de bate-papo virtual, tirando suas
dúvidas. Atende outros pacientes no seu
consultório (não há tais cenas na
cartilha).
Adoles-
cente 1
Amigo dos demais (camisa
cinza com logotipo do
Batman).
Informa os amigos sobre o serviço Tira-
dúvidas da internet, inicia e finaliza o
bate-papo.
Adoles-
cente 2
Amigo dos demais (camisa
laranja com um “A”).
Pergunta sobre uso do preservativo,
DSTs/aids e a decisão de ter filhos.
Adoles-
cente 3
Amiga dos demais
(jardineira jeans).
Pergunta sobre sexo e transmissão do
vírus.
Adoles-
cente 4
Amigo dos demais (óculos
amarelos).
Pergunta sobre ter tido relações sexuais
desprotegidas com uma parceira que
afirmava só ter estado com ele. Contraiu
uma DST.
Adoles-
cente 5
Parceira do adolescente 4
(camisa verde).
Pela imagem da p. 7 (quadro 1), infere-se
que ela tem vários parceiros sexuais.
Adoles-
cente 6
Amigo dos demais (camisa
vermelha com listra azul e
preta).
Pergunta sobre o constrangimento de
passar a usar camisinha e a
desconfiança que pode causar na
parceira. Não usa preservativo.
Adoles-
cente 7
Amiga dos demais (blusa
laranja)
Pergunta sobre o receio de fazer o teste
anti-Aids.
Adoles-
cente 8
Amigo dos demais (boné
vermelho).
Pergunta sobre outras formas de
contágio, além da relação sexual.
Atendente
do laborat.
Atendente de laboratório
de exames clínicos
Entrega o exame de HIV à adolescente 7.
Atendente
do consult.
Atendente de consultório
médico
Trabalha no consultório “real” do Dr. Yuri.
Nessa cartilha, a estratégia para aproximar a voz da ciência do público-
alvo da cartilha foi inseri-la num contexto familiar à maioria dos leitores jovens e
adolescentes: os bate-papos via internet. Na verdade, os amigos que tiram
dúvidas com o Dr. Yuri não interagem em outros contextos a não ser o da
consulta no computador. As dúvidas lançadas pelos amigos ao Dr. Yuri é que
provocam a exibição de cenas em que os personagens se expõem em
situações de risco, mas com outras pessoas que não o grupo de amigos:
142
Ex. 131 – CQ5, p. 7.
Nesse exemplo, as situações de risco se referem às relações
desprotegidas, seja com um ou com vários parceiros, cujas conseqüências
podem ser tanto doenças quanto gravidez indesejada.
É importante ressaltar que, embora as interações entre os personagens
sejam marcadamente assimétricas nos momentos em que as informações
científicas são explicitadas, há uma tentativa de amenizar a distância entre a
fonte do conhecimento científico e os demais personagens que não detêm tal
saber. Isso ocorre por meio da linguagem usada pelo Dr. Yuri para responder
as dúvidas, que varia entre o registro informal e o semiformal. Busca-se, assim,
reproduzir formas de interação típicas de conversas informais, com a presença
de gírias (galera, p. 4; Pergunta esperta, cara!, p. 5; Não cai nessa..., p. 6;
mina, p. 7) marcadores conversacionais (ok?, p. 7; ahh, p. 8; não é?, p. 9),
143
expressões informais (...e por aí vai...; p. 8), vocativos (gente, p. 9; meu amigo,
p. 10) e uso da primeira pessoa do singular (Mas sabe por que eu faço?, p. 8).
A cartilha destinada aos praticantes de cultos afro-brasileiros, Atotô, traz
uma configuração bastante diferenciada das demais. Nela, não há
personagens de uma HQ que vivenciam situações-problema relativas às
DSTs/aids. Na verdade, a narrativa em quadrinhos conta lendas da cultura
africana, que representam, metaforicamente, aspectos importantes na
prevenção de DSTs/aids. A voz da autoridade é a da yalorixá (mãe-de-santo),
que conta as lendas para os filhos-de-santo, em seu terreiro. Embora os
personagens das lendas não integrem uma HQ como nas demais cartilhas,
introduzo-os também no quadro a seguir, porque alguns deles simbolizam
atitudes e comportamentos a serem problematizados na prevenção de
DSTs/aids. Na segunda coluna, destaco o papel que o orixá exerce em dada
lenda, pois um mesmo orixá pode ter atuações bem distintas de uma lenda
para outra.
Quadro 13 – Papéis sociais das personagens em CQ6
CQ6 – Atotô
Perso-
nagens
Papéis sociais
representados
Relações sociais entre eles /
Simbologia
Yalorixá Autoridade religiosa legitimada
na comunidade dos
praticantes de cultos afro-
brasileiros.
A mãe-de-santo dialoga diretamente com
os leitores focalizados pelo material, no
caso, os praticantes de cultos afro-
brasileiros
.
Filhos-
de-santo
Praticantes de cultos afro-
brasileiros
Escutam com atenção as lendas e os
ensinamentos da Yalorixá.
Lenda 1 - A disputa
Nanã Orixá Não reconhece a superioridade de Ogum
e se recusa a usar o instrumentos de
metal nos rituais.
Ogum Orixá dos metais Foi considerado o mais importante dos
orixás, porque seus instrumentos, feitos
de metal, permitiam às pessoas viverem.
Obaluayê
/Omulu
Senhor da Terra /
Filho do Senhor
Filho de Nanã
Obatalá Criador dos seres humanos --------------------------------------------
Orumilá Senhor do destino dos
homens
--------------------------------------------
Lenda 2 – O nascimento de Obaluayê
Nanã Orixá, mãe de Obaluayê. Encontra Oxalá, com quem tem o filho
Obaluayê. Abandona-o, lançando-o na
águas do rio, ao vê-lo nascer deformado
144
Perso-
nagens
Papéis sociais
representados
Relações sociais entre eles /
Simbologia
por chagas.
Obaluayê Filho de Nanã Nasce doente e, por isso, é abandonado
pela mãe.
Yemanjá Mãe do mundo Alimenta Obaluayê e cuida de suas
feridas.
Lenda 3 - O encontro de Obaluayê com Yansã
Ogum Orixá Trança a roupa de palha para Obaluayê.
Obaluayê Deus da varíola e das
doenças contagiosas;
curandeiro; a partir do
encontro com Iansã, reina
sobre os mortos.
Esconde-se sob uma roupa de palha-da-
costa, por causa das marcas em seu
corpo.
Iansã A partir do encontro com
Obaluayê, reina sobre os
mortos.
Interessou-se por Obaluayê, soprando
um turbilhão de vento sobre ele,
revelando um rapaz bonito sob a roupa
de palha-da-costa.
A lenda 1, A disputa, tematiza os rituais envolvendo sangue e
instrumentos cortantes. A lenda 2, O nascimento de Obaluayê, fala de paixão,
nascimento, solidariedade e responsabilidade com bebês e com doentes. A
lenda 3, O encontro de Obaluayê com Yansã, trata da superação das
dificuldades com a ajuda do próximo e do orixá que entende e ameniza o
sofrimento dos doentes.
É preciso ressaltar que, nessa cartilha, a informação científica surge
após a exposição dos saberes religiosos. O texto de apresentação que abre a
cartilha Atotô (p. 2) e vem antes das lendas sobre os orixás, menciona, ainda
que brevemente, a aids e as DSTs e a necessidade de cuidar do corpo, o
elemento de ligação entre os homens e os deuses. O texto relaciona, logo no
início da cartilha, a prevenção das doenças com os saberes religiosos:
Em todas as religiões, cuidar do corpo não significa
apenas cuidar da saúde do indivíduo, significa também cuidar
do elemento que serve de ligação entre os homens e os
deuses. É através do corpo que os orixás e caboclos se
manifestam e é o sangue que corre nas veias que traz o axé
(CQ6, p. 2).
Trata-se de uma estratégia para tornar o discurso da ciência mais
legítimo aos olhos da comunidade religiosa a quem se dirige a cartilha. Sabe-
145
se que o conflito entre os saberes da ciência e os saberes religiosos pode ser
um sério obstáculo nos contextos em que se deseja que os primeiros sejam
levados em consideração (cf. Kleiman, 1995), como é o caso das cartilhas.
Assim, a mãe-de-santo conta as lendas, muito importantes na simbologia
religiosa desse grupo, ao mesmo tempo em que pondera sobre a importância
de se adotarem certos procedimentos preventivos, destacando que tais
atitudes não irão implicar desrespeito aos preceitos sagrados desse grupo. O
trecho seguinte, que sucede à lenda 1, ilustra como se constrói esse discurso:
Há muito tempo que, nas obrigações de cura ou fechamento
do corpo, é utilizada uma única navalha. Na maioria das
vezes, essa navalha passa de mãe para filho. Mas os tempos
agora são outros e precisamos encontrar uma maneira de
preservar nossos preceitos e tradições, sem colocar em risco a
nossa saúde. Porque tanto a pessoa que corta, quanto a que
está sendo cortada corre o risco de pegar o vírus da aids ou
da hepatite (CQ6, p. 7).
Boa parte da cartilha Atotô, portanto, se organiza no delicado equilíbrio
entre valorizar a tradição religiosa e modificá-la com o fim de evitar doenças. A
figura da mãe-de-santo “costura” os discursos desses dois domínios
discursivos: o da religião e o da ciência, sempre se dirigindo diretamente ao
leitor. A cientificidade, nesse caso específico, se manifesta no contraponto a
certas práticas ritualísticas e tradicionais, como os cortes com navalhas
herdadas dos antepassados. Isso é realizado, de maneira aparentemente
paradoxal, no discurso de uma Yalorixá.
Diferentemente de gêneros especificamente científicos, em todas as
cartilhas, inexiste a figura do cientista/produtor dos saberes. Ao lado disso, os
propósitos comunicativos do gênero cartilha educativa justificam algumas
ocorrências encontradas. Imprimir um caráter de credibilidade às informações
científicas apresentadas é necessário, mas não suficiente. O envolvimento dos
leitores também é uma demanda, em primeiro lugar, para atrair o público-alvo
para a leitura do texto e, em segundo lugar, para incitar a mudança das
condutas preventivas quanto às DSTs/aids. Por isso, não há necessidade de
“disfarçar” a subjetividade que envolve o fazer científico com artifícios como a
voz passiva, por exemplo. Na verdade, a maioria das personagens que dão voz
ao discurso científico interage com as demais personagens e, eventualmente,
146
com os leitores, com o mínimo de assimetria aparente nos usos lingüísticos.
Para isso, a conversação face-a-face parece ser a forma de interação mais
freqüentemente escolhida para as cartilhas, na qual é possível assumir um
registro de linguagem informal, dialogar diretamente com as personagens e
usar a primeira pessoa do singular.
Essas características, a despeito das configurações mais tradicionais
dos gêneros científicos, não parecem destituir as cartilhas da necessária
cientificidade. A cientificidade das cartilhas quadrinizadas é construída, na
verdade, segundo parâmetros válidos para os propósitos desse gênero. Por
isso, pode constituir-se com base em narrativas de ficção quadrinizadas, em
que as informações científicas emanam não de um cientista, cuja subjetividade,
(e, às vezes, até a identidade) se deseja apagar. A cientificidade das CQs
surge, isso sim, da interação entre personagens que encarnam uma autoridade
e os supostos representantes dos leitores, dos quais se espera o
reconhecimento dos estereótipos e sua identificação com eles, tudo isso aliado
ao movimento retórico de ancoragem institucional, que institui ou reforça a
legitimidade do material.
No item a seguir, a cientificidade das cartilhas será abordada do ponto
de vista das escolhas lexicais das personagens. Observarei se e de que modo
as cartilhas apresentam: a) estratégias e configurações próprias da linguagem
científica; b) a “tradução” dessa linguagem e/ou a mescla entre linguagem
científica e linguagem comum/ informal (própria das HQs), sempre levando em
conta os objetivos desse gênero: envolver para informar e informar para
persuadir.
3.3.2 Jargão técnico e repertório comum
A utilização de algum jargão técnico em cartilhas sobre prevenção de
DSTs/aids é natural, dada a necessidade de abordar informações e conceitos
científicos importantes para os propósitos informativos desse gênero. Por outro
lado, um cuidado com a densidade informacional do texto também é esperado.
Assim, observarei a distribuição das escolhas lexicais sobre informações
147
científicas considerando desde o vocabulário mais especializado/ semi-formal
ao vocabulário mais comum/ informal.
Vale lembrar que as cartilhas em quadrinhos elegem certos papéis
sociais para dar voz à ciência, mas boa parte das interações verbais entre os
personagens são assimétricas (professor/aluno; médico/paciente) e baseadas
em conversas, nas quais predomina o registro informal. Assim, gírias e
expressões informais se misturam com jargão técnico a todo o momento.
Na verdade, muitos termos técnicos, devido à sua larga divulgação em
noticiários e campanhas de educação em saúde, se tornaram conhecidos da
população. Deixaram, portanto, de fazer parte do jargão especializado e
passaram a fazer parte do vocabulário comum. É o caso da sigla em inglês
AIDS (Acquired Immunodeficency Syndrome), que significa Síndrome de
Imunodeficiência Adquirida. Atualmente, aids já não é mais sigla e está
registrada como vocábulo da língua portuguesa, funcionando como radical de
palavras derivadas, a exemplo de anti-aids e aidético (cf. Houaiss, 2000).
Portanto, reconheço que nem sempre é possível estabelecer uma
fronteira clara entre o léxico especializado e o léxico comum no caso de certas
expressões, especialmente se levarmos em conta a rapidez das mudanças nos
usos lingüísticos. Assim, não pretendo criar categorias rígidas para os termos
usados, pois não suponho que todo vocabulário de uso comum se situa num
registro informal de linguagem.
De qualquer modo, considero importante, para os objetivos desta
pesquisa, fazer um levantamento de palavras e expressões relativas à
prevenção de DSTs/aids em CQs, numa gradação de grau de formalidade. Não
almejo o rigor lexicográfico para distinguir os itens lexicais em termos técnicos
ou de uso comum - o termo aids é um dos casos limítrofes - mas apenas a
exposição de um panorama das ocorrências nas cartilhas.
No quadro a seguir, agrupei as ocorrências por sinonímia (preservativo/
camisinha) e hiponímia (doenças/ hepatite, sífilis, etc.). Registrei somente as
cartilhas em que os termos ocorreram e, quando há equivalência entre um
termo técnico (preservativo) e uma palavra de uso comum (camisinha), eles
estão dispostos na mesma linha.
148
Quadro 14 – Seleção lexical sobre prevenção de DSTs/aids em CQs.
CQ Jargão técnico / semi-formal Vocabulário comum / informal (gíria)
Ocorrência Pág. Ocorrência Pág.
CQ1 Aids 4, 5, 7, 8, 9, 12,
13, 15
CQ2 Aids 2, 7
CQ3 Aids 3, 4, 6, 11, 13 Essa doença
a doença
3, 4
5
CQ4 Aids 20
CQ5 Aids 5, 7
CQ6 Aids
Epidemia
2, 7, 13, 14
2, 18
CQ1 HIV 12, 13, 15, 21
CQ3 O vírus
O HIV
O vírus do HIV
4, 5, 6, 8, 13
10, 13
13
Esse tal de HIV 5
CQ5 O vírus
HIV
6, 8, 9
8, 9
CQ3 Teste anti-HIV
Teste para sífilis (VDRL)
6
7
O exame
3
CQ4 Exame de HIV 8
CQ5 Exame sorológico 8
CQ1 Portador do vírus
Contaminado pela aids
5
5
Estar com aids 7, 15
CQ3 Soropositivo (a) 5, 11, 12
CQ5 Soropositivo 9
CQ6 Soropositivo 13 Paciente de aids 13
CQ1 DSTs (Doenças
Sexualmente Transm.)
10, Lances estranhos
Essa coceira
5
10
CQ2 Hepatite B
Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs)
DST
7
7
7, 8
Doenças
venéreas
7
CQ3 DST 3
CQ4 Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs)
20
CQ5 DST (Doença
Sexualmente Transm.)
Herpes genital,
Gonorréia
Sífilis
5, 7
5
5
5
Essa tal de DST
Essa coceira
5
6
CQ6 Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs)
Doenças venéreas
DST
Hepatite B
HPV
HTLV
Condiloma acuminado
Candidíase
Sífilis
2, 13, 14
13
18
7, 13
8
8
13
13
14
Doenças do
mundo
Doenças
Crista-de-galo/
cavalo de crista
Cancro duro
13
18
13
13
149
CQ Jargão técnico / semi-formal Vocabulário comum / informal (gíria)
Ocorrência Pág. Ocorrência Pág.
CQ1 camisinha
Camisinha fem.
4, 5, 6, 11, 13, 17
6
CQ2 Camisinha
Camisinha fem.
4, 5, 7, 8, 9, 10
8
CQ3 Preservativo 13 Camisinha
[cam.] feminina
[cam.] masculina
4, 5
4
4
CQ4 Camisinha
Camisinha fem.
6, 9, 15, 20, 24
15
CQ5 Camisinha 5, 6, 7, 10
CQ6 Camisinha
Camisinha masc.
Camisinha fem.
13, 14
14
14
CQ1
Sexo vaginal
Sexo anal
Sexo oral
Penetração
Masturbação
12
12
12
13
14
Andar com
Transar
Ficar
Tirar um sarro
Fazer umas
coisas
3
3, 6, 7
3, 6
9
16
CQ2 Relação sexual
Sexo oral
9, 12, 13
9
Sexo
Transar
Ciscar
Comer
Bicadinha
Variar
Paixão nacional
3
4, 5, 7
8, 9
9
9
5
5
CQ3 Vida sexual 4 Transar 13
CQ4 Sexo 8, 11, 13, 16, 21,
23
Transar
Comparecer
4, 9, 10, 15, 16,
23, 24
5
CQ5 Sexo 9 Fazer sexo
Transar
Ficar
Transa
6
6, 7, 9
7
7, 9
CQ6 Relação sexual
Sexo oral
Sexo vaginal
13
14
14
CQ1 Esperma
Secreção vaginal
12
13
CQ2 Esperma 5
CQ6 Secreção vaginal 14
Aquele líquido
que umedece a
vagina
Gozar
14
14
CQ1 Pegar doença
Pegar aids
Pegar o vírus
6
7
9
CQ2 Pegar doença 9
CQ3 Infecção pelo vírus
Transmissão
Contaminar
4
6
13
Passar a doença 3
CQ4 Pegar aids 21
150
CQ Jargão técnico / semi-formal Vocabulário comum / informal (gíria)
Ocorrência Pág. Ocorrência Pág.
CQ5 Pegar o vírus
Passar
6, 9
9
CQ6 Contaminar-se
Transmissão sexual
8
18
Pegar o vírus 7
CQ3 Medicamentos
Retrovirais
Anti-retrivorais
4
4
5
Remédios 5
CQ2 Lubrif. à base de água 6
Vaselina
6
CQ1 Pênis
Vagina
Vulva
9
9
9
Pinto 17
CQ2 Pinto, Pau
Perereca
3, 4
3
CQ6 Pênis
Vagina
14
14
CQ3 Tuberculose
Doenças oportunistas
12
9
CQ6 Hepatite C
Hepatite
Malária
Chagas
Doenças endêmicas
Varíola
7
14
8
8, 19
19
16, 19
CQ1 Transfusões
Sangue cont. e derivados
12
9, 12
CQ6 Transfusão 8
CQ2 Evita gravidez
Engravidar
7
7
Não faz “fio” 7
CQ5 Evitar filhos 7
CQ3 Viado 13, 20
CQ4 Viado 20
Como seria esperado, os termos relativos ao conteúdo essencial para
tratar de prevenção de DSTs/aids são os de maior freqüência (presentes em
todas as cartilhas). Centram-se nos tópicos aids, DSTs, camisinha, sexo e
transmissão da doença, numa ordem crescente de freqüência. Outros
referentes também importantes aparecem, mas não em todas as cartilhas,
como portador do vírus e HIV.
Nas CQs, alguns termos estritamente técnicos são usados apenas pelos
personagens que representam a autoridade na história contada ou aparecem
apenas em gêneros legitimados para veicular informações científicas.
151
Quadro 15 – Jargão técnico e representação social da autoridade em CQs.
CQ Representação social da
autoridade
Termos técnicos usados
CQ1 Professora de Educação
Sexual
Cartazes elaborados sob
sua supervisão
Transfusões; sangue contaminado e derivados;
pênis; vulva; vagina; esperma; secreção
vaginal; sexo vaginal; sexo anal; sexo oral;
penetração; masturbação.
CQ2 Super-herói Super-
Protegido, o Bom-de-Cama
Hepatite B; DSTs (Doenças Sexualmente
Transmissíveis); relação sexual; sexo oral;
esperma; lubrificante à base de água.
CQ3 Médico, enfermeiro,
psicólogo
Narrador
Vírus, HIV; teste anti-HIV; teste para sífilis
(VDRL); DST; preservativo; vida sexual;
infecção pelo vírus; transmissão; contaminar;
tuberculose; infecção generalizada.
CQ4 ------------------------------------- Exame de HIV; Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs);
CQ5 Médico
Cartaz
Soropositivo; herpes genital; gonorréia; sífilis.
Exame sorológico.
CQ6 Mãe-de-santo Epidemia; soropositivo; Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs); doenças venéreas;
hepatite B; HPV; HTLV; condiloma acuminado;
candidíase; sífilis; relação sexual; sexo oral;
sexo vaginal; secreção vaginal; contaminar-se;
transmissão sexual; hepatite C; hepatite;
malária; chagas; doenças endêmicas; varíola;
transfusão.
Em CQ3, um personagem que não representa a voz da autoridade usa o
termo técnico “soropositivo”. Mas vale ressaltar que essa cartilha se direciona a
casais sorodiscordantes, isto é, para quem já vive a realidade do vírus da aids,
seja porque está infectado(a) seja porque o(a) parceiro(a) está. Assim, é
provável que os leitores desse material específico dominem melhor a
terminologia relativa a DSTs/aids. Além disso, retratar um personagem
contaminado pela aids que se denomina “soropositivo” e não, “aidético” – termo
este carregado de avaliação depreciativa - também é uma maneira de evitar
um discurso preconceituoso na cartilha:
Ex. 132 – CQ3,
p. 5, quadro 6.
152
A cartilha dirigida a homens escolarizados com mais de 30 anos, CQ4,
se distingue das demais porque não conta com um personagem que
represente a autoridade científica nos moldes convencionais. Mas um dos
amigos do grupo de homens que conversa num bar – o Gatão de Meia-Idade
serve de “porta-voz” das informações que se deseja trazer ao conhecimento do
leitor e divide os mesmos medos e angústias nos questionamentos que faz.
Essa cartilha, como já dito no capítulo 2 (cf. p. 97), visa mais pôr em debate
hábitos culturais na vida amorosa/sexual masculina que informar sobre as
DSTs/aids e suas formas de prevenção e tratamento, talvez numa suposição
de que esse tipo de saber já é conhecido pelos leitores focalizados.
Ex. 133 – CQ4, p. 20. Ex. 134 – CQ4, p. 18.
Assim, a estratégia para se aproximar mais do público-alvo foi enunciar
o discurso científico na voz de um “igual”, o Gatão de Meia-Idade, que fala
diretamente ao leitor, inclusive “olhando” para ele (cf. ex. 134, p. anterior).
Na cartilha Bate-papo: dicas de prevenção às DSTs/aids (CQ5), alguns
termos são usados por jovens, quando eles estão tirando dúvidas com o
médico: a sigla “DST” (p. 3) e as expressões “vírus” (p. 6) e “exame de HIV” (p.
153
8). Já em CQ6, apenas a mãe-de-santo fala do tópico DSTs/aids e,
conseqüentemente, apenas ela utiliza expressões pertencentes ao jargão
técnico, pois os quadrinhos ali presentes narram lendas africanas.
Outra maneira de introduzir o discurso da ciência é criar diálogos entre
personagens com graus diferentes de conhecimento do assunto DSTs/aids (cf.
ex. 116, p. 104; ex. 117, p. 105, ambos de CQ2). A discrepância entre as falas
é a “deixa” para a apresentação das informações científica por parte de uma
das personagens. No exemplo a seguir, da cartilha DST/aids - A turma pode
ficar... prevenida! (CQ1), a personagem Adriana demonstra, no comentário do
quadro 2, o quanto está mal informada, para que a personagem Cristiane
introduza as orientações corretas sobre contágio na conversa:
154
Ex. 135 – CQ1, p. 7.
Em algumas cartilhas, muitos termos técnicos não são substituídos ou
referidos por um vocábulo de uso comum. Algumas palavras não são
explicadas ou “traduzidas” em sinônimos, como aids e vírus, exatamente por
elas já terem ultrapassado o universo especializado da medicina, passando a
fazer parte do repertório de uso comum. De modo inverso, apenas uma cartilha
(CQ3) utiliza a palavra “preservativo”, mais própria dos especialistas, além de
“camisinha”, enquanto todas as outras usam apenas o termo mais popular. Os
dois exemplos apontam a preferência, nesse gênero, por facilitar o acesso à
informação, uma vez que disso depende o sucesso da campanha institucional.
Apesar da baixa incidência e variedade de termos especializados,
alguns deles são explicados. Há estratégias típicas de gêneros de divulgação
científica, sempre na tentativa de deixar mais claros certos conceitos para o
público-leigo. Uma delas é a explicação parafrástica da informação científica
(cf. Gomes, 2000: 137), iniciando pelo termo especializado ou pelo termo de
uso comum, entre parênteses ou não: Remédios (anti-retrovirais) (CQ3, p. 5);
Secreção vaginal (aquele líquido que umedece a vagina) (CQ6, p. 14);
155
Soropositivo – aquele que tem o vírus HIV, o vírus que provoca a AIDS no seu
organismo mas ainda não manifestou a doença (CQ6, p. 13).
Há ainda a explicação do significado de siglas: “DSTs (Doenças
Sexualmente Transmissíveis)” (CQ1, p. 7) e “DST (Doença Sexualmente
Transmissível)” (CQ5, p. 5); “Doenças Sexualmente Transmissíveis, as DST,
também conhecidas como ‘Doenças do Mundo’ ou ‘Doenças Venéreas’” (CQ6,
p. 13).
É interessante notar que, no trecho equivalente ao movimento retórico
Formas de prevenção e tratamento, quando há instruções sobre como usar o
preservativo masculino, são freqüentes palavras de uso comum e gírias,
conforme se pode observar em CQ1 (“Ponha com ele duro”, p. 13), CQ2
(“Depois continua mantendo apertado e encosta na cabeça...”, p. 5) e CQ6
(“Retire-o com o pênis ainda firme, logo após ter gozado.”, p. 14). Essa
estratégia revela que o entendimento dessas instruções por parte do leitor está
entre as preocupações centrais das cartilhas, especialmente em se tratando de
uma informação tão importante para a saúde dos leitores e para o sucesso das
campanhas institucionais de prevenção. Ao lado do registro informal e das
gírias, as imagens, os planos e o tipo de transição usados nesses momentos
também buscam a clareza, conforme analisarei no item 3.4 deste capítulo.
Importa, ainda, destacar a relação entre o público-alvo da cartilha e as
escolhas lexicais. Comparando as palavras usadas para se referir ao ato
sexual, percebem-se situações distintas.
Em CQ1 e em CQ5, voltadas para adolescentes e jovens, as práticas
sexuais são referidas tanto por expressões técnicas (CQ1 - sexo vaginal, sexo
anal, sexo oral, penetração, masturbação; CQ5 - sexo) quanto por gírias e
expressões informais (CQ1 - andar com, transar, ficar, tirar um sarro, fazer
umas coisas; CQ5 - fazer sexo, transar, ficar, transa). O primeiro grupo de
expressões aparece em contextos relativos à voz da autoridade: nos cartazes
escolares de CQ1, que mesclam o jargão técnico e as gírias para expor as
informações científicas; e na fala do médico de CQ5. As expressões que
compõem o segundo grupo, por sua vez, são faladas/pensadas pelos
adolescentes (exceto duas ocorrências em CQ5, faladas pelo médico). Em
ambas as cartilhas, não há preocupação em “traduzir” os termos referentes a
práticas sexuais, exceto o sexo vaginal.
156
Já em CQ2, voltada para homens adultos pouco escolarizados,
regionalismos e gírias são usados para se referir a tais práticas: bicadinha
(sexo oral), variar e paixão nacional (sexo anal), sendo que apenas a primeira
expressão tem o equivalente no jargão técnico (sexo oral). Nessa cartilha, a
imagem é fundamental para esclarecer o leitor de que se está falando:
Ex. 136 – CQ2, p. 5, quadros 5-7
Ex. 137 – CQ2, p. 9, quadros 1-2
Na cartilha destinada aos homens escolarizados, com mais de 30 anos
(CQ4), sexo e transar ocorrem praticamente na mesma freqüência (6 e 7 vezes
respectivamente). A narrativa que “costura” essa cartilha não conta com um
personagem representando um papel social típico de autoridade; na verdade, o
personagem principal, o Gatão de Meia-Idade, divide suas angústias com os
amigos numa mesa de bar e também com a parceira. Assim, o enredo da HQ
enseja mais uma conversa entre iguais que uma preleção sobre DSTs/aids.
157
Já em CQ6, não há gírias nem termos informais para se referir a atos
sexuais; há apenas expressões do jargão médico: relação sexual, sexo oral e
sexo vaginal. Isso talvez se relacione com o papel social da personagem
responsável por apresentar as informações científicas: uma autoridade
religiosa, que goza de grande prestígio e respeito na comunidade religiosa por
ela liderada, o que explica, parcialmente, o tom menos informal no seu
discurso.
Em suma, o uso do jargão técnico contribui para o estatuto de
cientificidade das cartilhas muito mais pela representação social de quem o
utiliza que pela sua mera aparição no texto. Os gêneros que pertencem ao
domínio discursivo da ciência buscam o apagamento da voz do cientista, como
uma das estratégias retóricas para alcançar a cientificidade, uma vez que os
leitores dos artigos científicos, relatórios acadêmicos, teses, etc. – também
cientistas – preferem ter certeza de que não estão diante de uma investigação
parcial, conduzida mais pela subjetividade do pesquisador que pelas
evidências factuais. Já nas CQs, cujos leitores são leigos, a “encarnação” da
legitimidade da ciência em algum personagem parece ser a estratégia retórica
preferida, aquela que trará, para esse grupo específico de interlocutores, a
idéia de que se trata de informações merecedoras de credibilidade. Outra
estratégia para construir a imagem de credibilidade das cartilhas é o
movimento retórico de Ancoragem institucional, que explicita para os leitores a
fonte originária das informações expostas, bem como as instituições que
corroboram a relevância da publicação (cf. Quadro 5, p. 88).
3.3.3 Tipologia textual
Um outro recurso verbal que pode imprimir a um texto o caráter de
cientificidade são as seqüências tipológicas predominantes. Geralmente, os
textos oriundos do universo da ciência preferem seqüências tipológicas que
lhes permitam expor conceitos e postulados, no movimento dinâmico de
construir “caixas-pretas”, nas palavras de Latour. Quanto mais parecidos com
158
verdades irrefutáveis, mais científicos parecerão os enunciados dos gêneros
científicos e, portanto, estes gozarão de maior credibilidade.
O gênero analisado nesta pesquisa tem especificidades que o
diferenciam de outros gêneros científicos. Por se situarem na intersecção dos
domínios discursivos propagandístico, de divulgação científica e didático, as
CQs têm objetivos distintos de um artigo acadêmico, por exemplo. É nessa
perspectiva que empreendo a análise da tipologia textual encontrada nas
cartilhas. Utilizo o referencial de Dolz e Schneuwly ([1996]2004), com as cinco
seqüências tipológicas e a função dos textos em que elas predominam:
Quadro 16 – Agrupamentos tipológicos segundo Dolz e Schneuwly
([1996]2004).
AGRUPAMENTOS FUNÇÃO
Agrupamento da ordem
do RELATAR
Textos destinados à documentação e à memorização das
ações.
Agrupamento da ordem
do NARRAR
Textos destinados à recriação da realidade.
Agrupamento da ordem
do DESCREVER AÇÕES
Textos destinados a instruir e prescrever.
Agrupamento da ordem
do EXPOR
Textos destinados à construção e divulgação do saber.
Agrupamento da ordem
do ARGUMENTAR
Textos destinados à defesa de pontos de vista.
Retomando os dois propósitos básicos das CQs – informar e persuadir –
esse gênero deveria privilegiar as seqüências expositivas e argumentativas.
Mas não é isso o parâmetro mais regular. De modo geral, na apresentação de
informações sobre DSTs/aids, há um predomínio das seqüências expositivas
nas CQs, tipologia comum em textos destinados à divulgação do saber,
conforme a classificação de Dolz e Schneuwly. Mas há também seqüências
narrativas, o que se justifica pelo fato de o enredo da HQ conduzir o texto da
cartilha. Seqüências de descrição de ações também aparecem, especialmente
quando se faz alguma listagem de procedimentos preventivos, momentos de
prescrição nas cartilhas.
Nos trechos referentes ao movimento retórico de caracterização da
doença, em que se expõem informações sobre DSTs/aids, as seqüências
tipológicas preferidas foram as expositivas. Mas saliento, como já mencionado
no capítulo 2, que os movimentos retóricos das cartilhas não têm fronteiras
159
muito rígidas e se confundem. Além disso, nas CQs, as informações sobre as
doenças são inseridas na narrativa quadrinizada, podendo surgir durante uma
conversa de amigos que falam de uma situação de risco (fazer sexo sem
proteção). Vejamos alguns exemplos:
Quadro 17 – Seqüências tipológicas na apresentação de informações
sobre DSTs/aids em CQs.
Movimento
retórico
CQ Exemplo de seqüências tipológicas
CQ1 “Vocês transam de camisinha? / Eu nunca precisei de camisinha
! Só transo com garota que conheço bem!” (p. 4, quadro 4);
“Deixa de ser ignorante, Beto! Qualquer pessoa pode ser
portadora do vírus da aids. Como é que você vai saber se a sua
garota já não transou com outro cara contaminado pela aids? /
Não tinha pensado nisto. / Estou lascado! Eu nem consigo
colocar a camisinha direito...” (p. 5, quadros 1-2). (seqüência
argumentativa)
“Em caso de transfusão, verificar se o sangue foi testado” (p. 13)
(seqüência de descrição de ações).
CQ2
“Nosso herói sabe que sexo bom é sexo com segurança, com
camisinha.” (p. 4) (seqüência expositiva).
CQ3 (Narrador) “Cleiton fez um exame para tratar de uma DST. E
descobriu algo muito mais sério...”; “Tu tá muito estranho. Conta
logo. / Eu... não sei como dizer, Suely. Eu... tô com aids.” (p. 3)
(seqüência narrativa).
“Essa doença não é o fim do mundo. Você pode se tratar e
conviver com ela.” (p. 4) (seqüência expositiva).
CQ4 “Não estava nada bom, não rolava um sexo legal entre nós. O
casamento quase dançou.” (p. 8) (seqüência narrativa); “Amor,
sexo não é obrigação, tem que dar prazer.” (p. 8) (seqüência
expositiva).
CQ5 “Eu transei com uma mina que me disse que só tinha estado
comigo. Mas agora estou com umas coceiras meio esquisitas.
Será que foi ela?” (p. 6) (seqüência narrativa).
Apresen-
tação da
situação-
problema
CQ6 “Há muito tempo que, nas obrigações como a cura ou
fechamento do corpo, é utilizada uma única navalha.” (p. 7),
(seqüência narrativa).
“Na maioria das vezes, essa navalha passa de pai ou mãe para
filho. Mas os tempos agora são outros e precisamos encontrar
uma maneira de preservar nossos preceitos e tradições, sem
colocar em risco a nossa saúde. Porque tanto a pessoa que
corta, quanto a que está sendo cortada corre o risco de pegar o
vírus da aids ou da hepatite.” (p. 7) (seqüência expositiva).
Caracteri-
zação da
doença
CQ1 “A aids é causada por um vírus, o HIV, que só entra no nosso
corpo pelo sangue contaminado ou através de relações sexuais
com pessoa contaminada.” (p. 9) (seqüência expositiva).
160
Movimento
retórico
CQ Exemplo de seqüências tipológicas
CQ2 Não há esse movimento retórico.
CQ3 “O vírus deixa o organismo debilitado, sem resistência às
doenças. Isso é a aids.” (p. 4) (seqüência expositiva).
CQ4 Não há esse movimento retórico.
CQ5 “O sexo é bom e dá prazer também. Mas também serve para
transmitir bactérias e vírus do corpo de uma pessoa para o corpo
de outra. Isso é a tal de DST (doença sexualmente
transmissível).” (p. 5) (seqüência expositiva).
CQ6 “A aids merece destaque entre as DSTs por vários motivos:
porque não tem cura;porque seu tratamento é caríssimo (embora
o Governo brasileiro forneça os medicamentos de graça); porque
são muitas drogas que precisam ser tomadas (exigindo do
paciente disciplina e força de vontade) e porque o soropositivo
ou paciente de aids ainda sofre muito preconceito por parte das
pessoas.” (p. 13) (seqüência expositiva).
CQ1 “De jeito nenhum! Acho que ainda não é a hora. E, quando eu
resolver transar, vai ter de ser com camisinha. Com camisinha?!
Por quê?! Primeiro, porque não quero engravidar, nem pegar
doença... Depois a gente não sabe com quem os meninos
transam... É bom prevenir.” (CQ1, p. 6, quadros 3-4) (seqüência
argumentativa).
“Continuo achando que ainda é cedo pra mim, mas, por via das
dúvidas, resolvi ter sempre uma [camisinha] na minha mochila.”
(p. 17) (seqüência narrativa).
CQ2 “Quando a mulher usa a camisinha feminina, você não precisa
usar.” (p. 6) (seqüência expositiva).
CQ3 “O HIV não se transmite pelo suor ou pelo mero contato da pele.”
(p. 13) (seqüência expositiva).
“Use sempre equipamentos descartáveis.” (p. 10) (seqüência de
descrição de ações).
CQ4 CQ4 – “Temos medo de ir ao médico e pior, não fazemos
exames, o de próstata porque tem que levar dedada o de HIV
porque achamos que nunca vamos pegar aids.” (p. 21)
(seqüência expositiva).
Formas de
prevenção
e
tratamento
CQ5 CQ5 – “Não cai nessa que virgindade é prova que não se tem
DST ou Aids. Algumas dessas doenças podem contaminar sem
ser com a transa. Usando seringas e agulhas contaminadas, por
exemplo. Mas repito: quase tudo isso pode ser evitado usando a
camisinha, visitando o médico e mantendo a higiene íntima.” (p.
6, quadro 1) (seqüência expositiva).
161
Movimento
retórico
CQ Exemplo de seqüências tipológicas
CQ6 CQ6 – “Se a mãe tiver sífilis e não for diagnosticada ou não for
tratada corretamente, ela pode passar a doença para o seu
bebê.” (p. 14) (seqüência expositiva); “Nunca use a mesma
navalha em mais de uma pessoa.” (p. 7) (seqüência de descrição
de ações).
Percebe-se que as seqüências narrativas se concentram no movimento
retórico de Apresentação da situação-problema, justamente porque o uso dos
quadrinhos nesses materiais de campanhas de educação em saúde deve-se,
em grande parte, à necessidade de envolver o leitor. Para isso, é fundamental
a criação de situações-problema, vivenciadas por personagens-tipo ou
estereotipados, de modo que possam ser reconhecidos por uma grande
parcela do público a que se destina a CQ. A identificação do leitor com a
situação vivida pelos personagens é uma das chaves para que ele dê
continuidade à leitura do material.
Assim, por causa da quadrinização, que envolve necessariamente uma
narrativa em quadrinhos, a função de apresentar informações também pode ser
preenchida por seqüências narrativas, como se observa nos exemplos
expostos no quadro a seguir.
Quadro 18 – Seqüências narrativas na apresentação de informações
sobre DSTs/aids em CQs.
Informação Exemplo
Sexo sem proteção pode
transmitir DSTs.
“Se você tivesse usado camisinha antes, sabidão,
não estava agora com o pinto desse jeito.” (CQ1, p.
17);
“Eu transei com uma mina que me disse que só
tinha estado comigo. Mas agora estou com umas
coceiras esquisitas. Será que foi ela?” (CQ5, p. 6).
Em caso de acidente durante a
relação sexual, o parceiro
exposto ao risco deve tomar
anti-retrovirais durante 28 dias
“O casal foi pegar os anti-retrovirais que Suely
tomará até completar 28 dias de tratamento” (CQ3,
p. 5)
Sexo deve ser feito sempre
com o uso de preservativo.
“Sem camisinha não rola.” (CQ4, p. 6)
Em CQ2, as informações científicas são sempre apresentadas em
seqüências expositivas, nas falas do herói Super-Protegido, que chega às
162
regiões do Brasil para ensinar as pessoas a se cuidarem. Os demais
personagens apenas encenam as situações-problema.
Ex. 138 – CQ2, p. 6, quadros 1-2.
A cartilha destinada aos praticantes de cultos afro-brasileiros (CQ6) tem
duas espécies de texto, bem distintos: textos expositivos com os conceitos
científicos relativos à DSTs/aids e três lendas africanas quadrinizadas. Embora
não tragam informações sobre DSTs/aids, cada lenda tematiza um tópico
importante para as campanhas prevenção em foco: a) simbologia e uso do
sangue nos rituais; b) sexo, nascimento e doença e c) amor ao próximo e
solidariedade. Na cartilha Atotô, nota-se uma tendência maior de explicar os
conceitos, havendo inclusive um glossário na p. 13 (aids, soropositivo e
paciente de aids). A vertente didática da cartilha se reflete também nos
conceitos relativos ao universo religioso, como se percebe no trecho “Há muito
tempo que, nas obrigações como a cura ou fechamento de corpo
, é utilizada
uma única navalha.” (CQ6. p. 7). Em CQ1, os cartazes elaborados pelos alunos
(p. 10-15) substituem, na verdade, textos expositivos, que são muito comuns
em cartilhas não-quadrinizadas, folhetos, cartazes. Trata-se de um “enxerto” no
meio da história, para disfarçar o propósito informativo do gênero.
A cartilha CQ4 já tem um perfil mais diferenciado: há mais reflexão
crítica que exposição de dados, através dos diálogos entre o Gatão de Meia
Idade e seus amigos, e também dos personagens diretamente com o leitor.
Justapõem-se, portanto, seqüências expositivas, narrativas, pois muitos dos
conceitos são abordados de maneira informal. No trecho “Já que você tá se
abrindo eu também tenho que confessar que não está fácil. As mulheres que
163
eu conheço não transam mais sem camisinha.” (p. 9), percebe-se um tom de
confissão na seqüência narrativa. Outra característica é que o papel de
autoridade da ciência se dilui, pois o personagem Gatão não se coloca como o
que sabe mais, e sim como um dos homens da HQ que resolvem expor suas
angústias relativas à vida sexual.
As análises realizadas neste item permitem chegar a algumas
conclusões. A face verbal da cientificidade nas cartilhas analisadas revela-se
sob três estratégias principais: a escolha dos porta-vozes do discurso científico,
do registro de linguagem e do jargão; e das seqüências tipológicas. Todos
esses aspectos integram os propósitos informativos (de divulgação científica) e
didáticos das cartilhas. A seleção das fontes responsáveis pelas informações
científicas se baseia no papel social representado pelo personagem, o que
ajuda a dar credibilidade ao que é passado para os leitores, uma das
prerrogativas da cientificidade. Já as escolhas lingüísticas - jargão, repertório
comum, registro (semiformal e informal) e seqüências tipológicas – se orientam
por dois vetores: o da necessidade de tratar de assuntos científicos e, ao
mesmo tempo, de fazer isso de modo acessível à população. Enquanto as
seqüências tipológicas predominantes foram as expositivas, de forma
semelhante a outros gêneros científicos, o registro informal esteve presente
inclusive na fala das autoridades científicas.
Essa configuração ocorre exatamente porque a cartilha não é
propriamente um gênero científico, mas sim um gênero com propósitos
informativos e persuasivos. Nesse sentido, a configuração do discurso
científico se subordina aos objetivos maiores da cartilha educativa.
No item a seguir, discuto a cientificidade das CQs, visualmente
estabelecida.
3.4 Cientificidade visual
O uso de imagens é um recurso que vem sendo usado ao longo dos
tempos, associado ou não à linguagem verbal. No âmbito da ciência, isso não é
diferente. Latour (2000) afirma que diversos artifícios de demonstração de
postulados científicos ultrapassam o sistema verbal, como os gráficos e
164
esquemas. Nesses casos, os leitores não só lêem sobre os fenômenos, mas
podem “vê-los” acontecer. Kress (2003) também argumenta que a cientificidade
pode ser produzida multimodalmente, com texto verbal e imagens. No caso dos
recursos visuais, utilizam-se certos tipos de desenho, de enquadramento, de
perspectiva, de transição entre quadros, de fonte, de cores, etc.
Assim, a linguagem não-verbal dos textos com informações científicas
reflete a preocupação com o estatuto de cientificidade, especialmente com o
uso do jargão técnico, no caso, o “jargão visual”. As imagens usadas, o tipo de
letra
70
e até o layout refletem em parte a essência de cientificidade que se
pretende imprimir aos textos.
Considero que o uso dos quadrinhos em CQs não se justifica apenas
porque as imagens facilitariam a leitura dos iletrados ou dos pouco letrados. De
fato, o uso das imagens e da trama de ficção não só facilita a compreensão dos
que tenham dificuldades em ler textos verbais, mas também atrai um público
leitor heterogêneo, como crianças, adolescentes e adultos, devido ao fato de
associar o lúdico com a informação científica. Isso pode ser observado em
CQ4, destinada a homens escolarizados, com um relativo grau de informação
sobre DSTs/aids e que não necessitariam, portanto, de recursos facilitadores
da compreensão do texto. Os leitores dessa cartilha podem se sentir seduzidos
para a leitura leve proporcionada pelos quadrinhos humorísticos, como é o
trabalho de Miguel Paiva. A intenção maior da campanha de educação em
saúde parece ter sido a identificação dos leitores com as angústias do
personagem principal, bastante conhecido pela classe média e que, portanto,
não foi escolhido aleatoriamente.
Entretanto, como as CQs têm propósitos informativos, percebe-se,
também, um traço típico da escrita científica: certos recursos visuais com força
de demonstração e de reforço de argumentos. O caráter didático desses
recursos visuais nas cartilhas quadrinizadas também não pode ser negado,
conforme demonstrarei nas análises que seguem.
70
Segundo afirmação de Arabyan (2005), no curso “Semiótica da publicidade visual: a imagem,
o texto e a formatação da página na comunicação em papel e na internet”, ministrado na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), algumas universidades só admitem o uso de
certas fontes para artigos científicos, pois apenas essas seriam consideradas “acadêmicas”,
em contraposição a outras menos “sérias” e, portanto, menos adequadas ao uso na esfera
científica.
165
3.4.1 Tipo de desenho
O primeiro recurso a ser abordado é o uso do que denomino “jargão
visual”, ou seja, os desenhos considerados científicos, aqueles que contribuem
para atribuir um caráter de cientificidade aos textos em que figuram, conforme
Kress (2003). Segundo Vergueiro (2007b), o tipo de desenho de uma HQ vai
depender do objetivo de cada criador, e a adequação entre o tipo de desenho e
o conteúdo que se deseja passar ao leitor é uma qualidade importante a ser
observada nos quadrinhos.
O traço predominante nos desenhos das cartilhas quadrinizadas
analisadas é o estilizado (CQ1, CQ3, CQ5), seguido do caricatural (CQ2 e
CQ4). Pode-se dizer que CQ6 apresenta um traço entre o realista/naturalista e
o estilizado. O desenho estilizado predomina naquelas cartilhas em que o
humor não é a tônica, uma vez que a caricatura é mais típica de HQs de
humor. Vejamos alguns exemplos:
Ex. 139 – CQ1, p. 3, quadro 4. Ex. 140 – CQ2, p. 1,
detalhe.
Ex. 141 – CQ3, p. 8, quadro
2.
Ex. 142 – CQ4, p. 12, quadro
2, detalhe.
Ex. 142 – CQ5, p. 9,
quadro 1, detalhe.
Ex. 143 – CQ6, p. 5, quadro
4, detalhe.
Vale salientar que o traço caricatural de CQ4, antes de ter sido criado
para a CQ4, é típico do quadrinista Miguel Paiva e está presente em seus
personagens mais famosos: o Gatão de Meia-Idade e a Radical Chic. A
166
escolha dos personagens é que foi guiada pelos objetivos da campanha: atingir
o homem adulto, escolarizado, com mais de 30 anos, de hábitos urbanos,
exatamente o perfil do personagem Gatão de Meia-Idade; e, em outra
campanha, atingir a mulher adulta, escolarizada, com mais de 30 anos, de
hábitos urbanos, perfil da Radical Chic.
Em algumas cartilhas, o desenho caricatural extrapola o universo dos
personagens e cenários elaborados para o desenvolvimento da HQ e atinge
certos referentes relativos às informações científicas sobre DSTs/aids. Um
objeto constantemente caricaturado é o preservativo masculino.
Em CQ1, o preservativo aparece na capa da cartilha e nos painéis
escolares inseridos na narrativa como um personagem: mais um membro do
grupo de jovens, mais um amigo. Está sempre com uma expressão cômica,
seja amigável ou não, embora a narrativa dessa cartilha não se caracterize
pelo humor. O preservativo-personagem aparece na capa (cf. ex. 51, p. 45) e
nos painéis escolares, nos quais há trechos humorísticos. O tipo de desenho
do preservativo combina com a atmosfera humorística do restante dos painéis
escolares, em que adolescentes, cheios de dúvidas, afirmam ter “pimenta no
xixi” e “sapinho” nos órgãos genitais.
Ex. 144 – Traço caricatural e humor em CQ1, p. 11, detalhe.
167
Ex. 145 – Humor visual em CQ1, p. 10.
Em CQ2, o personagem principal representa, metonimicamente, o
preservativo, que está presente em todo o seu traje: máscara, luvas, botas,
cinto, “arma”, etc. Detalhes como o brilho próprio da borracha sintética não são
esquecidos na roupa do super-herói e nas letras do título da cartilha.
Ex. 146 – CQ2, p. 1,
detalhe.
Outro referente caricaturado são as DSTs e o vírus da Aids. Em CQ1 e
CQ5, eles aparecem como monstros que assustam as pessoas:
Ex. 147 – CQ1, p. 12, detalhe. Ex. 148 – CQ5, p. 5, quadro 1.
168
As variações de relações sexuais e de parceiros são desenhadas como
caricaturas em CQ1, a partir dos símbolos de masculino e feminino. Para o
mesmo tópico, em CQ2, a caricatura é feita com a figura humana:
Ex. 149 – CQ1, p. 12, detalhe. Ex. 150 – CQ2, p. 4, quadro 6.
É importante ressaltar que, em ambos os casos, os objetivos do
desenho são didáticos. Em CQ1, eles aparecem como reforço do texto verbal,
que explicita os riscos envolvidos em cada tipo de relação sexual. Em CQ2, ele
explicita o que está implícito no texto, adquirindo uma importância maior que o
exemplo anterior, pois a imagem, junto com a fala “E pra toda obra tem um
pau!”, é que deixa claro para o leitor o significado da expressão “pau pra toda
obra” no contexto. Elimina-se a ambigüidade do termo e, ao mesmo tempo,
cria-se um efeito humorístico.
Para Kress e Van Leeuwen ([1996]2005), em textos que utilizam
linguagem verbal e não-verbal, durante muito tempo, a imagem funcionou
como ilustração do texto verbal. Mais recentemente, a linguagem verbal
funciona como comentário da imagem. Esse parece ser o caso do ex. 149, em
que os símbolos poderiam ocupar, pelo menos, o lugar dos títulos de cada
subitem (sexo vaginal, sexo anal e sexo oral).
É interessante observar como o traço dos desenhos pode mudar numa
mesma cartilha. Ao lado do registro informal e das gírias, as imagens usadas
nas cenas de instruções de uso do preservativo também buscam o didatismo, a
clareza, e podem, por essa razão, afastar-se do perfil caricatural ou estilizado
do restante da cartilha. É o que ocorre em CQ1 e CQ6: as imagens
instrucionais são em close, seqüenciadas, reproduzindo as etapas de
169
colocação e retirada do preservativo e de desinfecção de seringas. São ainda
esquemáticas, pois mostram apenas os detalhes importantes para a apreensão
dos procedimentos expostos, eliminando o que não é relevante aos propósitos
comunicativos em jogo.
Para Kress (2003), o desenho esquemático é um objeto teórico, criado no
âmbito da elaboração científica, e não um objeto natural, do cotidiano, pois a
forma diagramática é própria do mundo científico-tecnológico. Essa abstração é
que proporciona, em alguma medida, um efeito de distanciamento do
pesquisador quanto ao objeto representado, um princípio caro aos textos
próprios do mundo da ciência (cf. Quadro 7, Estratégias retóricas para alcançar
o estatuto de cientificidade, p. 123-124).
Embora se admita que o desenho caricatural nas HQs também não tem o
objetivo de representar a realidade com fidelidade, seu distanciamento da
experiência real é motivado por razões artísticas: deseja-se um efeito cômico
que auxilie na construção do personagens e, portanto, da própria narrativa.
Trata-se de uma marca estilística do quadrinista.
Já o desenho esquemático também se distancia da realidade quanto a
alguns aspectos do ser representado, mas dela se aproxima quanto a outros, a
depender dos objetivos estabelecidos no gênero de que participa. Como são
mais comuns em textos de cunho didático, científico e de divulgação científica,
nos quais a clareza e a capacidade de demonstração são qualidades
valorizadas, os desenhos esquemáticos evidenciam os detalhes eleitos como
importantes de serem compreendidos pelos leitores.
170
Ex. 151 – Desenho esquemático em A fuga do mosquito da dengue em busca da água
prometida
71
, 4ª capa.
No esquema das fases evolutivas do mosquito da dengue, os detalhes
desenhados para cada momento são apenas aqueles que permitam ao leitor
reconhecer o ser vivo, seja em microscópio ou a olho nu. Ensinar quem lê a
cartilha a distinguir um mosquito da dengue de outro inseto semelhante, como
um pernilongo, é uma informação importante na campanha de combate a essa
epidemia. Por isso, os detalhes exibidos restringem-se àquilo que possibilita tal
reconhecimento. Nesse exemplo, os desenhos são em preto e branco,
71
A fuga do mosquito da dengue em busca da água prometida. Prefeitura da Cidade do Recife;
Sistema Único de Saúde/ Secretaria de Saúde; Agente de Saúde Ambiental. s.l., s.d.
171
combinação de cores mais comumente associada aos textos científicos; em
contraposição aos desenhos multicoloridos, mais freqüentemente relacionados
ao mundo das artes e do entretenimento
72
.
Nas CQs que compõem o corpus desta pesquisa, os desenhos
esquemáticos centram-se na desinfecção de seringas e no uso do preservativo.
O que neles está realçado corresponde, respectivamente: a) às etapas a serem
seguidas, ao tempo, aos líquidos usados (água limpa e água sanitária); e b) ao
pênis em ereção, à posição das mãos, ao modo como se manuseia o
preservativo para colocá-lo, retirá-lo e descartá-lo. Em suma, o que interessa
ensinar é aquilo que os poucos traços dos desenhos sugerem.
Ex. 152 – CQ1, p.
13, detalhe.
Ex. 153 – CQ6, p. 16, detalhe. Ex. 154 – CQ6, p. 16, detalhe.
72
O desenvolvimento e a sofisticação das infografias têm modificado esse conceito, pois elas
utilizam várias cores, só que com o objetivo de retratar, com maior fidelidade, a realidade a que
se referem, e de explicar melhor aos leitores um dado processo, fato ou o funcionamento de
algo.
172
Mas vale ressaltar que, em ambas as cartilhas, esse desenho de cunho
científico surge não em meio à HQ, traçada de forma caricatural ou estilizada, e
sim numa cena fora dela ou nela inserida por meio de outro gênero, que, de
fato, funciona como recurso discursivo do gênero cartilha quadrinizada. Em
CQ6, o desenho esquemático está localizado nos textos expositivos que
sucedem cada lenda quadrinizada. Já na cartilha DST/Aids: a turma pode
ficar... prevenida (CQ1), as imagens instrucionais são enxertadas na narrativa
como parte do gênero escolar painel, elaborado pelos alunos personagens, a
pedido da professora, personagem que encarna a autoridade científica. Nesse
gênero próprio da escola, espera-se a exposição de conceitos científicos, com
explicações didáticas. Nesse contexto de interação – alunos que produzem e
lêem painéis escolares –, é mais adequado adotar um tipo de desenho
realista/esquemático, de modo a melhor atender aos princípios de cientificidade
que marcam os gêneros produzidos no âmbito da ciência, da divulgação
científica e da escola. E é essa a escolha realizada em CQ1.
Na relação com os textos verbais, os desenhos nitidamente científicos
dessas duas cartilhas assumem um papel central para os leitores: eles é que
evidenciam o passo-a-passo do procedimento, enquanto os textos verbais os
sustentam, dando orientações quase que redundantes para a colocação do
preservativo ou para a desinfecção da seringa.
Na cartilha As aventuras do Super-protegido, o Bom-de-cama (CQ2), há
uma imagem que instrui o leitor para o uso do preservativo, mas seu traço
mantém-se como no restante da narrativa. Apesar de o tipo de desenho dar a
impressão de que tal imagem é a de um personagem integrante da narrativa,
trata-se, na verdade, de uma “janela” explicativa: a cartilha apresenta a imagem
para o leitor (quadro 3).
Os quadros 7 e 8, nessa mesma página, são outros momentos que
ressaltam o poder da imagem para explicar certos aspectos da prevenção de
DSTs/aids. Em primeiro lugar, a ajuda da parceira para colocar o preservativo –
“Ou pedir que coloquem em você. Já pensou nisso?”, uma saída para queixas
masculinas de que isso atrapalha o prazer e o desempenho sexual, implícitas
na fala do gaúcho: “Mas, bah, tu tá ali na hora, aí tem que pôr a camisinha...”.
Em segundo lugar, a dúvida do gaúcho sobre os cuidados na prática do sexo
173
anal, representado pelas nádegas de uma mulher e pelas expressões “variar” e
“paixão nacional”.
Ex. 155 – CQ2, p. 5.
Todas as imagens relativas aos procedimentos de uso do preservativo
são em close, como as observadas no microscópio em laboratórios. Embora
sejam textualmente incompletas, no dizer de Kress (2003), pois não mostram
um homem de corpo inteiro, e sim apenas o pênis, parte de seu torso e suas
mãos, são conceitualmente completas do ponto de vista da ciência, pois
174
exibem o que é importante ser exibido para se compreender como usar o
preservativo.
Em suma, a escolha por certos tipos de desenho nas CQs - entre
caricaturais e estilizados; entre esquemáticos ou realistas – atende mais aos
propósitos comunicativos do gênero que a características intrínsecas a cada
espécie de traço. A presença de desenhos técnicos nas cartilhas tem um
propósito bastante diferente da manobra retórica em artigos acadêmicos. Trata-
se de um recurso didático para que leitor leigo compreenda melhor as
informações ou instruções expostas. Em gêneros acadêmicos, o leitor –
especialista - poderia refutar as afirmações expostas com outros argumentos
(Latour, 2000), enquanto o leitor das cartilhas – leigo - pode apenas refutá-las
com desconfiança.
É justamente essa conexão entre o uso de recursos multimodais com a
situação de interação, o que inclui o gênero, os propósitos comunicativos e os
interlocutores, que Kress e Van Leeuwen ([1996]2005) adotam como
pressuposto de base para sua semiótica social. A configuração das imagens,
portanto, não pode ser analisada com base numa gramática rígida,
supostamente válida para qualquer ocorrência, especialmente se levarmos em
conta as diferenças culturais no uso e compreensão de recursos multimodais.
3.4.2 Plano e ângulo de visão
Um outro aspecto que merece atenção na análise são os planos e
ângulos de visão adotados nas CQs analisadas. Não iremos analisar o uso
desse recurso do ponto de vista artístico, por isso, privilegiaremos o que for
relevante para o status de cientificidade das informações apresentadas e para
o caráter didático das cartilhas. Adoto a classificação exposta por Vergueiro
(2007), a mesma utilizada no cinema para os planos.
Os planos que assumem maior significado nas cartilhas são os mais
fechados, justamente porque os cenários importam pouco para histórias
narradas. Planos fechados associados a ângulo de visão médio compõem a
escolha mais freqüente para apresentar informações científicas.
175
Na prescrição de procedimentos, essa combinação permite visualizar, de
perto, o que se está focalizando (uma parte do corpo, um objeto), para maior
clareza do que deve ser feito:
Ex. 156 – CQ1, p. 13, detalhe.
Ex. 157 – CQ6, p. 14, detalhe.
Se tomarmos o exemplo 157, a posição do observador (o leitor) diante
da cena ou do objeto representado é “objetiva”, de quem observa “de fora” o
que está desenhado. O leitor pode, inclusive, ver o interior do corpo feminino.
Para Kress (2003), a escolha por esse tipo de perspectiva revela uma posição
epistemológica sobre o mundo da ciência: é lá onde você pode observar coisas
que não pertencem ao mundo cotidiano, ou seja, estão distantes de quem as
observa. No caso das cartilhas, a explicação do uso do preservativo é um
176
saber teórico, conceitual, científico, a ser apreendido pelo leitor. Isso é
reforçado pela ausência de cenas com personagens das HQs das cartilhas
colocando o preservativo.
Na construção dos diálogos, os planos mais fechados podem servir para
imprimir maior dramaticidade à narrativa. Isso ocorre quando os personagens
revelam dúvida, medo, angústia ou desinformação em relação às DSTs/aids ou
quando trazem alguma informação importante. Seguem alguns exemplos de
uso do plano de detalhe e do primeiro plano:
Ex. 158 – Primeiro plano em CQs; CQ1, p. 5,
quadro 1.
Ex. 159 – Primeiro plano em CQs; CQ2, p.
8, quadro 7.
Ex. 160 – Plano de detalhe em CQ;, CQ3, p.
3, quadro 2.
Ex. 161 – Primeiro plano em CQs; CQ4, p.
22, quadro 2.
177
Ex. 162 – Primeiro plano em CQs; CQ5, p. 6, quadro 1, detalhe.
Ex. 163 – Primeiro plano em CQs; CQ6, p. 17, detalhe.
Segundo Cagnin (1975), o plano de grande detalhe “Constitui um dos
tempos intensos da narrativa e permite entrar em contato com o herói pelo seu
aspecto mais atraente ou repulsivo: o rosto.” (p. 89). Nas CQs, não há heróis
(exceto CQ2, com seu herói “bom-de-cama”, uma versão cômica do heróis); a
dramaticidade se dilui em vários personagens.
Nos seis exemplos anteriores, os personagens estão ou trazendo
alguma informação importante sobre a doença (exemplos de CQ1, CQ2 e CQ5)
ou revelando suas dúvidas ou atitudes (CQ4 e CQ5) ou participando de uma
cena de grande tensão (CQ3) ou dando algum tipo de orientaçã
Cenas integrantes da narrativa também são desenhadas em close,
algumas vezes, para enfatizar certo tipo de informação ou fato. Em CQ1, a
decisão de passar a usar camisinha é destacada pelo close em duas cenas da
p. 17. Em CQ3, a alegria do personagem por estar saudável e ativo
profissionalmente, apesar de ser portador do HIV.
178
Ex. 164 – CQ1, p. 17, quadro 1. Ex. 165 – CQ3, p. 14, quadros 4 e 5.
Quanto aos ângulos de visão, ou seja, a forma como o autor dos
quadrinhos deseja que a cena seja observada, não há muitas variações.
Apenas CQ1 faz uso da visão superior (p. 8, quadro 1; p. 16, quadro 1),
enquanto CQ6 faz uso do ângulo de visão inferior (p. 4, quadro 1). Tais
ocorrências atendem mais a critérios estéticos que a motivações didáticas ou
relativas ao caráter científico das informações apresentadas no material.
As lendas da cartilha Atotô são um caso à parte, pois não têm o objetivo
de informar o leitor sobre DSTs/aids, por isso apresentam planos e ângulos de
visão um pouco diferentes das demais cartilhas, com finalidades estéticas. É o
que se vê nas cenas a seguir:
Certo dia, os Imalês se reuniram para
discutirem sobre os seus poderes.
Ex. 166 – Planos e ângulos de visão
com finalidades artísticas em CQ6;
Ângulo inferior, p. 4, quadro 1.
Muito curiosa, Iansã aproximou-se e fez formar-se um
turbilhão de vento.
Ex. 167 – Planos e ângulos de visão com finalidades
artísticas em CQ6; Plano geral, p. 15, quadro 4..
179
No primeiro exemplo, o ângulo de visão inferior, associado aos
grafismos em espiral, dirige o olhar do leitor para a divindade à esquerda, que
está falando. Combinando-se com o plano americano, a imagem desenhada
nesse plano e emoldurada com os grafismos ressalta a magnitude das
divindades representadas. No segundo exemplo, o plano geral e as linhas
curvas na direção da divindade à direita simbolizam a força do vento lançado
por Iansã e, em última instância, o seu poder.
Outras exceções de cena em plano geral encontram-se em CQ1 (ex.
115, p. 103 deste trabalho) e CQ3:
Ex. 168 - CQ3, p. 3, quadro 6
Ainda seguindo a perspectiva de que as escolhas discursivas, tanto
verbais quanto não-verbais, devem se orientar pela produção de sentido,
analiso, no item a seguir, a transição entre cenas e sua relação com a
cientificidade e o didatismo necessário nas cartilhas.
3.4.3 Transição entre cenas
Como já dito no item 5.3 do cap. 1 – Tempo e espaço nas HQs:
transição entre cenas - não há grande variação nos tipos de transição de uma
cena a outra dos quadrinhos, predominando os mesmos três tipos mais
freqüentes nos quadrinhos ocidentais de entretenimento (McCloud, [1993]
2005), na seguinte ordem decrescente de ocorrência: ação-pra-ação, cena-pra-
cena e tema-pra-tema.
Além de servirem para possibilitar o fluxo narrativo, as transições entre
cenas podem assumir funções didáticas relevantes nas CQs. Assim, meu
180
interesse se volta, neste item da pesquisa, para o potencial didático de um tipo
específico de transição: cena-pra-cena.
Na cartilha Bate-papo: dicas de prevenção as DSTs/aids (CQ5), há
seqüências em que são apresentados ao leitor, simultaneamente, a fala e o
pensamento do personagem. Essa estratégia economiza espaço no papel e
também permite que o leitor “passeie” pelo tempo e pelo espaço, pois a
imagem mostra momentos no passado, enquanto parte do texto verbal expõe
as inquietações do jovem no presente:
Ex. 169 – Transição cena-pra-cena, CQ5, p. 6, quadro 2.
Ex. 170 – Transição cena-pra-cena, CQ5, p. 7, quadro 1.
O quadro da p. 6 mostra a pergunta feita ao médico por meio do chat e
também a imagem do garoto no passado, com sua namorada. Há outra volta
no tempo no quadro seguinte, quando a garota aparece ao lado de vários
parceiros, supostamente antes do encontro que aparece no quadro anterior,
181
evidenciando ter uma vida sexual promíscua. O leitor terá de identificar e
distinguir o bate-papo que se desenvolve via internet e as cenas do passado
(eventualmente, do futuro) de cada personagem, ilustrando as situações de
risco a que se expuseram e suas dúvidas. Essa estratégia de construção do
discurso permanece em toda a cartilha. Nesse caso, a passagem de uma cena
para outra funciona como uma estratégia explicativa, isto é, é como se a
história fosse entrecortada com exemplos, seja de atitudes que se devem ou
não adotar, seja das dúvidas sobre as doenças e suas formas de contágio e
prevenção. A narrativa “pára” a fim de que a informação científica apareça e na
forma de exemplificação, didaticamente inserida.
A mesma estratégia pode ser observada na cartilha De homem para
homem (CQ4). O personagem Gatão de Meia-Idade e seus amigos conversam
sobre sexo e relação amorosa, mas estão sempre escondendo a verdade uns
dos outros. A HQ faz o contraponto entre o que eles dizem e o que, de fato,
ocorre.
Ex. 171 – Transição cena-pra-cena, CQ4, p. 3. Ex. 172 – Transição cena-pra-cena, CQ4, p.
4.
A cartilha alterna, na mesma página, as cenas exibidas: no quadro 1, um
balão de pensamento com a cena da vida amorosa “real” de um dos homens
182
da história e, no quadro 2, a cena com esse mesmo personagem, no bar com
os amigos, afirmando acontecer exatamente o oposto do que pensa, como foi
exibido na cena 1. Essa espécie de “antítese discursiva”, construída com base
no verbal e no não-verbal, serve também para exemplificar ao leitor as atitudes
mais comuns (e equivocadas) entre os homens com o perfil dos personagens
retratados, ou seja, entre os leitores para os quais o texto foi elaborado.
Em CQ1, há uma ocorrência bastante inusitada de transição cena-pra-
cena. Na p. 5, passa-se de uma cena da história (quadro 2) para um desenho
ilustrativo, que está “fora” da história e se dirige apenas ao leitor (quadro 3). Os
quadros, na verdade, são etapas de uma seqüência de descrição de ações,
que explica os procedimentos para usar o preservativo. Enquanto o quadro 2
explica a 1
a
etapa de colocação da camisinha, o quadro 3 explica a 2
a
, mas por
meio de um desenho que ocupa todo o requadro, como se fosse uma nova
cena da narrativa que se desenrola. Já o quadro 4 explica a razão para não
deixar ar na ponta do preservativo.
Ex. 173 – Transição cena-pra-cena, CQ2, p. 5, quadros 1-4.
183
O caráter didático do quadro 3, que agencia um corte abrupto na
narrativa, é reforçado pelo cartaz que o super-herói segura no quadro 2. Esse
cartaz não aparece antes nem depois na narrativa; surge somente quando o
Super-Protegido começa a explicar ao gaúcho como usar o preservativo. As
imagens dos quadros 2 e 3 assumem uma função semelhante à de esquemas
e gráficos em artigos acadêmicos: servir como reforço na argumentação. No
caso de CQ2, explicitam como utilizar o preservativo sem arrebentá-lo, para
convencer os leitores de que o rompimento ocorre por colocação incorreta e
não por falta de ajuste anatômico.
Ainda em CQ2, há balões de pensamento que exemplificam situações
diversas: várias possibilidades para o ato sexual (ex. 80, a seguir), auxílio da
parceira na colocação do preservativo, vantagens do uso do preservativo (ex.
81, a seguir).
Ex. 174 – Transição cena-pra-cena, CQ2, p. 4,
quadro 6.
Ex. 175 – Transição cena-pra-cena, CQ2, p.
9, quadro 3.
Esses balões funcionam como recursos didáticos nas cartilhas, sevindo
de suportes para os exemplos nas cartilhas Super-Protegido: o bom de cama
(CQ2) e De homem para homem (CQ4).
Em alguns poucos casos, porém, dependendo do propósito da
seqüência de cenas na cartilha, pode haver outros tipos de transição, como o
de aspecto-pra-aspecto ou algo mesclado, que denomino cena-pra-aspecto.
184
Este tipo funciona como uma aproximação em close de um dos detalhes da
cena mostrada em quadro anterior:
Ex. 176 – Transição cena-pra-aspecto, CQ6, p. 6, quadros 1-2.
No ex. 176, o destaque dado ao manuseio de instrumentos cortantes
nos rituais com sangue é importante para a eficácia da campanha por ser este
o principal meio de transmissão de DSTs/aids entre os praticantes de cultos
afro-brasileiros. É esse o mote do texto expositivo subseqüente à lenda
africana, no qual se explica a importância de manter as tradições sem
descuidar da saúde.
No próximo item, o letreiramento é o aspecto visual a ser analisado nas
cartilhas, do ponto de vista da apresentação da informação científica.
3.4.4 Letreiramento
Para Eisner (1999), o letreiramento pode ser tomado como uma
extensão da imagem, desde que tratado graficamente de modo intencional.
Nas CQs analisadas, o potencial da escolha de fontes, seu tamanho e cor para
a produção de sentidos não é ricamente explorado. Ainda assim, quando há
um letreiramento especial, este funciona como recurso didático na maioria das
vezes.
185
Em CQ1, isso fica mais evidente nos painéis escolares inseridos no meio
da narrativa, exatamente o trecho dessa cartilha dedicado às explicações sobre
procedimentos preventivos.
Ex. 177 – CQ1, p. 12, detalhe.
A fonte em cores que se destacam do fundo da imagem e em tamanho
grande são recursos didáticos para realçar o tópico do contágio (Cuidado!
Assim pega), a informação mais importante da página. Essa configuração se
repete nas páginas seguintes da cartilha (p. 13-16). Outro recurso de
envolvimento do leitor é o uso de letras “tremidas”, simbolizando o medo que o
vírus causa, reforçado pelo monstrinho roxo do vírus da aids, que “espreita”, do
alto da página, todo o restante do texto.
Em CQ4, as fontes grandes, em cores de destaque, acompanhadas de
setas indicativas também são outro recurso didático que pontua as questões
principais abordadas: Tá faltando alguma coisa (p. 7; dificuldade masculina de
expressar o que sente), As dificuldades da vida (p. 16, tensões atrapalhando o
desempenho sexual), O poder nas costas (p. 17; pressões sociais atrapalhando
o desempenho sexual); Camisinha tira o prazer (p. 18, resistência masculina
em usar o preservativo); Homem não precisa se cuidar (p. 19, resistência
masculina em fazer exames); Que mulher é essa? (p. 20, mulher que deseja
uma vida sexual satisfatória); Que papo é esse? (p. 21, compartilhar
sentimentos como algo possível entre homens); Perfil de um Gatão (p. 22-23,
186
características de um homem bem informado, que se previne e que busca,
junto com a parceira, uma vida sexual satisfatória). Percebe-se, implicitamente,
um roteiro de produção da cartilha, com os assuntos a serem abordados. A
seguir, estão as imagens das páginas comentadas:
Ex. 178 – Letreiramento em CQ4; p. 7, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22-23.
Outros recursos de destaque são o negrito usado em certos trechos das
falas dos personagens (CQ2, p. 4) e nos textos expositivos que sucedem a
narrativa em quadrinhos (CQ6, p. 13).
A variação do tipo de balão é quase nula nas CQs analisadas. Mas, na
cartilha As aventuras do Super-Protegido, o herói bom-de-cama (CQ1), o
balão-berro (cf. Cagnin, 1975: 122), utilizado uma vez na narrativa, também
187
assume um caráter didático, à medida que destaca informações importantes.
Nessa cena, muda também o tipo de requadro, que passa a ser redondo:
Ex. 179 – CQ2, p. 8, quadros 4-5.
A linguagem dos quadrinhos tem inúmeras possibilidades de uso, mas
no tocante à cientificidade e ao caráter didático das narrativas, o gênero
cartilha quadrinizada privilegiou as seguintes características: repertório de uso
comum e das gírias, em detrimento do jargão técnico; transição entre quadros
cena-pra-cena e cena-pra-aspecto na exemplificação; uso de primeiro plano e
close-up para destacar procedimentos e envolver o leitor; preferência pelo traço
estilizado ou caricatural, estando os poucos desenhos científicos à parte da
narrativa.
No próximo capítulo, discuto sobre a intergenericidade em CQs como
estratégia para alcançar o status de cientificidade quanto para didatizar
conceitos, focalizando a inserção de certos gêneros para explicar conceitos
científicos relativos a formas de contágio, ciclo das doenças, procedimentos de
prevenção e tratamento.
188
CAPÍTULO 4 - Diversidade de gêneros em cartilhas
quadrinizadas: cientificidade e didatização
Este capítulo estuda a presença de gêneros diversos nas cartilhas
quadrinizadas (CQs) como estratégia para cumprir seus objetivos, ou seja,
fazer chegar ao público-leitor informações científicas com a máxima clareza e
persuadi-lo quanto à adoção de certas condutas. O gênero em estudo nesta
pesquisa já aponta para a presença da história em quadrinhos (HQ) na sua
própria configuração: todas as cartilhas procuram se assemelhar às HQs, em
sua forma de circulação mais conhecida, o gibi. Além disso, os propósitos
comunicativos de didatização de conceitos científicos também podem ser
cumpridos com a inclusão de outros gêneros na cartilha, tais como esquemas,
diagramas, panfletos, painéis, cartazes, etc., seja para ilustrar conceitos ou
auxiliar na exposição da informação. Assim, o assunto deste capítulo é a
discussão desses processos de construção discursiva – a intergenericidade e a
inserção de gêneros diversos em CQs - e sua função no gênero cartilha
quadrinizada, seja para atender os princípios de cientificidade e/ou as
necessidades de didatização de informações científicas.
4.1 Intergenericidade: é cartilha ou história em quadrinhos?
Ao ter em mãos um exemplar de cartilha em quadrinhos, é possível que
o leitor se pergunte, numa primeira leitura: “Isso é uma cartilha ou uma história
em quadrinhos?”. Tal dúvida, antes de constituir um problema na avaliação de
quem produz a cartilha, é exatamente o que se espera num contato inicial com
o texto. A tentativa de envolver os leitores para a leitura das CQs passa,
necessariamente, pelo jogo lúdico com outro gênero, a HQ. Sendo os
quadrinhos associados, principalmente, ao universo do entretenimento, é
esperado que boa parte dos leitores se sinta mais motivada a ler um material
com informações sobre doenças.
189
Do ponto de vista teórico, a perspectiva discursiva dos estudos de
gênero defende que um gênero se define, em primeiro lugar, por seu propósito
comunicativo e não por sua forma lingüística. Mas isso não significa desprezar,
na identificação dos gêneros, a configuração reconhecível pelos falantes,
manifestação mais evidente da relativa estabilidade dos gêneros, já apontada
por Bakhtin ([1952-1953] 2000). Assim, mesmo tomando os gêneros como
prática social, sujeita a interferências dos falantes e a modificações ao longo do
tempo, pode-se dizer que a configuração lingüístico-discursiva estável de cada
gênero é uma faceta necessária na sua constituição. É ela que permite a
intercomunicação, pois, a cada interação, não é preciso construir um novo
quadro cultural e cognitivo a respeito do gênero utilizado. Quando um
interlocutor (re)conhece o gênero usado por outro interlocutor, ele é capaz de
acionar conhecimentos prévios de ordem pragmático-lingüística, os quais serão
importantes para criar expectativas a respeito de quem está falando, com que
objetivos, de que lugar social, etc., parâmetros que, em última análise, irão
balizar a dinâmica da interação verbal. Ainda assim, saliento que a
familiaridade com o gênero não é a única chave para a intercompreensão. É
possível, ao usuário de uma língua, ser “introduzido” a um gênero sem
conhecê-lo, por meio da temática e pela prática social. Por exemplo, ao receber
uma CQ das mãos de um agente de saúde que diz “Leia isso aqui pra se
informar melhor.”, o leitor provavelmente vai se aproximar desse gênero com
os olhos de quem busca informações e não apenas entretenimento. A temática
tratada nas CQs irá reforçar esse quadro cognitivo acionado antes da leitura.
Baseada nessa dupla face dos gêneros – a estável e a plástica - um dos
mais criativos processos de elaboração de textos é a intergenericidade. Trata-
se, na verdade, de utilizar características próprias de um certo gênero para
compor um outro gênero, uma espécie de “disfarce” para ser descoberto pelo
leitor. O que se pretende é que o leitor se surpreenda, se divirta, se envolva
com a leitura. Exatamente por privilegiar o jogo lúdico na leitura, é mais comum
que a intergenericidade ocorra em contextos publicitários, literários e
humorísticos, domínios discursivos em que se admite maior liberdade nos usos
lingüísticos.
Marcuschi (2002) retoma o termo intertextualidade inter-gêneros, criado
por Fix (1997:97), autora por ele citada, para designar “uma mescla de funções
190
e formas de gêneros diversos num dado gênero” (p. 31). Para exemplificar o
fenômeno da intertextualidade intergêneros, Marcuschi se utiliza do artigo de
opinião Um novo José, de Josias de Souza, publicado na Folha de São Paulo.
A particularidade desse texto é o fato de ter sido elaborado na forma de um
poema. Além disso, o artigo estabelece uma relação de intertextualidade com o
poema José, de Drummond. Alguns trechos são:
Calma José.
A festa não começou,
a luz não acendeu,
a noite não esquentou,
o Malan não amoleceu,
mas se voltar a pergunta:
e agora José?
(Folha de São Paulo, Caderno 1, pág. 2, Opinião, 04/10/1999, apud
Marcuschi, 2002: 30)
Vejamos o diagrama elaborado por Marcuschi para melhor explicitar as
funções sociais dos gêneros no fenômeno da intergenericidade, a partir desse
exemplo.
Esquema 1 - Intertextualidade tipológica (Marcuschi, 2002: 31).
Não se trata de misturar gêneros ou de mudar de gênero: o artigo de
opinião na forma de um poema continua cumprindo a função comunicativa
própria do artigo, apesar do seu “disfarce”. Continua integrando o domínio
discursivo jornalístico com o propósito de veicular a opinião de articulistas ou
outras pessoas com algum reconhecimento social, acerca de assuntos de
191
interesse público. Ainda que em forma de poema, não é reconhecido como
produção literária pelos leitores, que o lêem para conhecer a opinião de quem
escreve.
O mesmo ocorre com as cartilhas quadrinizadas: ainda que se pareçam
com HQs publicadas em gibis, os objetivos centrais não são divertir e entreter,
mas informar e persuadir o público-leitor focalizado, preferencialmente, de
maneira divertida. Ao utilizar estratégias de textualização típicas das HQs, as
CQs conseguem, num primeiro momento, aproximar-se dos leitores, envolvê-
los para a leitura do material, essencialmente, pelo poder lúdico da imagem.
Bakhtin ([1952-1953] 2000) estabelece três dimensões que constituem
os gêneros: conteúdo temático (o que é dizível por meio do gênero), estilo
(seleção dos recursos lingüísticos) e construção composicional (organização
geral das partes do gênero). Todas elas são marcadas pela especificidade de
uma esfera de comunicação, ou seja, o tema, as escolhas lingüísticas e a
organização geral de um gênero remetem às práticas sociais da esfera de
atividade humana em que é produzido e em que circula. Vale salientar que, ao
utilizar a configuração de um gênero A para construir um gênero B, todas essas
dimensões do gênero A são, em alguma medida, incorporadas ao gênero B.
A estrutura composicional da história em quadrinhos é o elemento que,
de modo mais evidente, guia a elaboração das cartilhas. Por exemplo, as
cenas desenhadas e emolduradas em quadros, justapostas em seqüência, nas
quais os personagens interagem e cujo discurso vem em balões, no modo
direto, entre outras características. Mas também o estilo, a linguagem verbal
típica dos quadrinhos (diálogo informal, turnos de curta extensão), assim como
a não-verbal (desenhos estilizados e caricaturados, no caso das CQs) são
incorporados ao gênero cartilha com o propósito de envolver o leitor e de
didatizar as informações a serem apresentadas.
Bazerman (2006) aborda a intergenericidade como parte do fenômeno
da intertextualidade. O capítulo “Intertextualidade: como os textos se apóiam
em outros textos”, o sexto do livro Gênero, agência e escrita, traz uma
concepção bastante ampla de intertextualidade. Nele, o autor afirma que “Nós
criamos os nossos textos a partir do oceano de linguagem em que vivemos. E
compreendemos os textos dos outros dentro desse mesmo oceano.” (p. 88).
192
Bazerman distingue seis níveis de intertextualidade “por meio dos quais
um texto evoca explicitamente outros textos e se apóia neles como um recurso
consciente.” Bastante amplas e, em alguns casos, passíveis de sobreposição,
são seis as categorias criadas pelo autor (grifo meu) para denominar a que
podem se referir os textos, quando evocam outros textos: 1) declarações de
fontes autorizadas; 2) dramas pessoais explícitos; 3) declarações como pano
de fundo; 4) crenças, idéias e declarações amplamente difundidas e familiares
aos leitores; 5) tipos reconhecíveis de linguagem, de estilo e de gêneros; 6)
recursos lingüísticos disponíveis. Para cada um desses níveis de
intertextualidade, estão associadas técnicas de representação intertextual. No
caso da intergenericidade, é possível remeter a outros mundos (esferas de
atividade humana nas palavras de Bakhtin ou domínios discursivos nos termos
de Marcuschi), justamente porque os gêneros, como dito acima, trazem marcas
das práticas sociais típicas desses domínios discursivos. E é essa uma das
razões para a existência de cartilhas educativas em quadrinhos: a estratégia de
envolvimento é remeter o leitor ao universo do entretenimento, numa narrativa
que, ao mesmo tempo, expõe informações científicas.
A CQs se parecem com as HQs já a partir do layout e de outros
aspectos visuais. São impressas, na maioria das vezes, no mesmo tamanho de
revistas em quadrinhos convencionais e com um layout de capa bastante
similar aos gibis - título no alto, em letras grandes, desenho central com
personagens. São ainda freqüentes títulos parodísticos, seja o intertexto
relativo a super-heróis (As aventuras do Super-Protegido, o bom-de-cama,
CQ2) e a filmes de aventura ou a relatos bíblicos (Cartilha do Preventão: em
busca do hálito perdido, numa referência a Os caçadores da arca perdida,
famoso filme norte-americano de aventura; A fuga do mosquito da dengue em
busca da água prometida, remetendo à terra prometida, citada na Bíblia).
Observem-se os exemplos a seguir:
193
Ex. 180 –
CQ1, capa.
Ex. 181 –
Gibi As
aventuras do
Didizinho,
capa
73
.
Ex. 182 –
CQ2, capa.
Ex. 183 –
Gibi
Evangelion
(mangá),
capa
74
.
Comparando as capas de gibis com as três cartilhas, percebe-se a
semelhança, intencional, entre elas. O layout, o conteúdo anunciado pelo título
e pelos desenhos, além do estilo caricatural dos desenhos (embora haja
diversos gibis com traço realista), bem diferente de desenhos técnicos, por
exemplo, são o gancho usado para seduzir para a leitura. A organização visual
é o que percebemos primeiro no caso dos textos escritos, embora esteja longe
de ser o único referencial para a produção de sentido. Assim, o objetivo é que,
à primeira leitura, as cartilhas quadrinizadas sejam tomadas por uma HQ, o que
pode resultar mais eficaz se a HQ não for apenas inserida na cartilha, mas
constitua a cartilha como um todo. Algumas cartilhas ainda trazem
passatempos, à semelhança de gibis convencionais, o que não foi verificado no
corpus.
73
As aventuras do Didizinho. Ano 1, n
o
2, São Paulo: Escala Editorial, s. d.
74
Evangelion 2. São Paulo: Conrad Editora, [1995].
194
O modo de criação ou de aproveitamento dos personagens também
pode ser apontado como um ponto de contato entre HQs e cartilhas. Algumas
cartilhas trazem um super-herói (em CQ2), figura oriunda universo dos
quadrinhos, ou utilizam personagens cujo perfil se delineia por características
bem marcadas e limitadas. É o caso dos personagens de Maurício de Sousa –
Mônica é a brigona, Magali é a comilona, etc. – e de personagens de tiras em
quadrinhos – Hagar é o viking estúpido, Mafalda, é uma “pequena adulta”,
altamente politizada e de aguçado senso crítico. O Gatão de Meia-Idade,
personagem central da cartilha De homem pra homem (CQ4), representa o
homem de mais de 30 anos, de classe média, que faz sucesso entre as
mulheres, mas que não gosta de assumir suas dificuldades amorosas e
sexuais.
Esse perfil simplificado auxilia no processo de leitura das histórias e das
tiras, uma vez que é justamente a característica essencial do personagem o
mote a partir do qual o enredo é montado e se podem compreender os
acontecimentos. No caso das tiras em quadrinhos, o efeito humorístico, muitas
vezes, só pode ser percebido pelos leitores se eles conhecem o perfil do
personagem, se têm algum repertório de leituras acumuladas daquela tira, pois
o perfil não pode ser reintroduzido a cada edição da tira, por óbvias limitações
de espaço.
Nas cartilhas, o perfil simplificado dos personagens termina por se
revelar em papéis sociais estereotipados, conforme apontamos no item 3.3.1
do cap. 3, sobre papéis sociais dos personagens. Os personagens têm
existência apenas para ajudar na consecução dos objetivos da cartilha, isto é,
cada um exerce um papel social que, na rede ficcional construída para a CQ,
permite realizar os movimentos retóricos constituintes das CQs (cf. Quadro 5,
p. 88). Por exemplo, na apresentação da situação-problema, é preciso que
certos personagens se envolvam em situações de risco ou falem a respeito
delas; na apresentação das formas de prevenção e tratamento, é necessário
haver personagens que passem esse tipo de informação. Assim, surgem,
respectivamente, jovens ou adultos desinformados e imprudentes, e
autoridades legitimadas ou jovens ou adultos bem-informados. Estes últimos
fazem um contraponto, em seu discurso, às condutas negligentes e aos
equívocos nas informações daqueles primeiros.
195
Apesar da similitude, a forma de HQ percebida nas cartilhas analisadas
não autoriza a conclusão de que se trata de narrativas em quadrinhos com as
mesmas funções retóricas de uma história da Turma da Mônica ou do Super-
Homem. E, nisso, Miller (1994) nos lembra que, do ponto de vista da nova
retórica, o olhar obre o gênero deve voltar-se para a ação em que ele aparece
para realizar-se. Sendo peças de campanhas de promoção de saúde, as
cartilhas, ainda que elaboradas na forma de uma HQ, cumprem funções
informativas, didáticas e persuasivas.
Mesmo não sendo objetivo desta investigação fazer uma análise
qualitativa rigorosa da linguagem em quadrinhos usada nas cartilhas, considero
necessário tecer comentários sobre o aproveitamento da imagem, recurso por
excelência das HQs, na apresentação das informações. Ainda que busquem
aproximar-se das HQs, em certos momentos, as CQs delas se distanciam ao
tentar passar o maior número de informações possíveis para o leitor numa só
narrativa. Nesses casos, o risco é deixar de utilizar ao máximo o potencial da
imagem na apresentação das informações para preferir o discurso verbal em
cada cena.
Além das HQs, que funcionam como recurso de textualização nas
cartilhas, vários outros gêneros, ao serem incluídos nas cartilhas, ajudam a
concretizar os objetivos das CQs, conforme veremos no item a seguir.
4.2 Diversidade de gêneros nas cartilhas quadrinizadas: funções retóricas
As CQs analisadas apresentam uma boa diversidade de gêneros
incluídos, seja na própria narrativa em quadrinhos, seja no restante da cartilha.
Para persuadir em relação ao reforço ou à mudança de atitudes de prevenção
a doenças de um modo geral, e mais especialmente às DSTs/aids, as CQs
usam a presença de outros gêneros. O reforço na credibilidade da informação
científica, nas cartilhas, ora é obtido pelo recurso a outros gêneros inseridos,
na própria narrativa em quadrinhos, ora está situado no seu entorno
(contracapa, páginas anteriores ou posteriores à história, etc.). Em algumas
cartilhas de promoção de saúde, encontram-se esquemas de cunho científico
aliados a textos expositivos, tal como poderiam ser encontrados em folhetos
196
informativos, livros de divulgação científica ou mesmo livros didáticos. Essa
pode ser interpretada tanto como uma estratégia didática para a melhor
compreensão dos conceitos quanto como uma estratégia retórica de reforço da
credibilidade das informações científicas
75
.
Os gêneros encontrados no corpus, com seus respectivos propósitos
comunicativos foram organizados num quadro, a seguir. Não listei os gêneros
localizados no entorno das HQs (na capa, 2ª capa, 3ª capa e 4ª capa), ou seja,
nas partes introdutórias e finais da cartilha, exceto no caso de CQ6, cartilha na
qual as HQs narram apenas lendas africanas e as informações científicas vêm
sempre à parte dessas histórias.
Quadro 19 – Função discursiva dos gêneros inseridos nas CQs
CQ Exemplos de
gêneros
encontrados
Pág. Propósitos comunicativos
Diálogo
escritol
76
.
Todas,
exceto
10-16.
“Costurar” o fluxo narrativo, na manifestação dos
movimentos retóricos da CQ.
Cartaz
escolar
10-16 Apresentar as informações sobre contágio,
prevenção e tratamento das doenças.
Esquema 13 Apresentar as informações sobre uso do
preservativo e desinfecção de seringas.
Glossário 12 Explicar o significado de certos termos-chave na
campanha de informação.
CQ1
Agenda
(página)
7 Ilustrar a fala da adolescente sobre iniciação sexual
com alguém de quem se goste (na agenda, há uma
foto de um garoto adolescente).
Diálogo
escrito
Todas “Costurar” o fluxo narrativo, na manifestação dos
movimentos retóricos da CQ.
CQ2
Mapa
geográfico
3; 10 Ilustrar o alcance do super-herói por todo o Brasil,
bem como sua fala sobre a sensualidade do
brasileiro.
CQ3
Diálogo
escrito
Todas “Costurar” o fluxo narrativo, na manifestação dos
movimentos retóricos da CQ.
75
Uma perspectiva de análise da inclusão de outros gêneros nas CQs pode ser considerá-la
como recurso de intertextualidade, esta concebida num sentido amplo, a exemplo de Bazerman
(2006). Os vários gêneros encontrados seriam, assim, recursos utilizados no processo de
produção das CQs para construir o discurso científico próprio das cartilhas, o qual relaciona as
interações cotidianas e o universo da ciência. No primeiro caso, estaria o diálogo escrito,
simulacro da conversação informal, e no segundo caso, estaria a entrevista médica. Apesar de
o foco na intertextualidade ser válido como possibilidade analítica, restrinjo meu olhar à
inclusão de gêneros como recurso didático/retórico.
76
O termo “diálogo escrito” se refere ao gênero da modalidade escrita que busca se aproximar
da conversação, bastante comum em textos de ficção, como romances, contos, roteiros de
novela, etc.
197
Papeleta
77
6 Apresentar as informações científicas, na voz da
autoridade, o médico.
Entrevista
médica
4, 6, 9 Apresentar as informações científicas, na voz da
autoridade, o médico.
Receita
médica
9 Ilustrar a cena em que falta remédio no posto de
saúde.
Panfleto
informativo
78
10 Apresentar as informações científicas, num contexto
de informação para as massas, como passeata.
Outdoor
11 Servir de suporte para o discurso do narrador, sobre
fontes alternativas de informação.
Depoimento
em grupos de
auto-ajuda
11 Constituir a cena em que as pessoas compartilham
seus problemas nesses grupos e buscam ajuda.
Sessão de
análise
13 Constituir a cena em que um personagem se
consulta com o analista.
Diálogo
escrito
Todas,
exceto
24-25.
“Costurar” o fluxo narrativo, na manifestação dos
movimentos retóricos da CQ.
CQ4
Perfil 24-25 Buscar a aproximação com o universo cultural do
público-leitor, e reforçar a necessidade de adotar
algumas condutas preventivas sugeridas.
Diálogo
escrito
Todas
79
“Costurar” o fluxo narrativo, na manifestação dos
movimentos retóricos da CQ.
Chat
Todas,
exceto
11.
Apresentar as informações cient., na voz da
autoridade, o médico que tira dúvidas pelo site.
Site
3, 4, 6,
9, 10.
Integrar o cenário das cenas (p. 3, 6), veicular a voz
da autoridade (p. 4, 9, 10), médico que tira dúvidas
pelo site.
CQ5
Exame 8 Ilustrar a fala sobre o medo de fazer exame e
informar sobre o nome técnico do teste (“exame
sorológico”).
Diálogo
escrito
1-5; 7;
12; 17.
“Costurar” o fluxo narrativo, quando encontrada nas
lendas quadrinizadas, na manifestação dos
movimentos retóricos da CQ. Estabelecer um
diálogo com os filhos-de-santo/leitores.
Lenda
(quadrini-
zada)
3-6; 9-
12;
15-16.
Buscar a aproximação com o universo cultural do
público-leitor, a fim de evitar o choque entre os
saberes religiosos e os saberes científicos, estes
trazidos pelas autoridades.
CQ6
Texto
didático
80
7-8;
13-14;
Apresentar as informações científicas, na voz da
autoridade, a mãe-de-santo, que busca aliar as
77
Nos hospitais e clínicas, conjunto de papéis onde os médicos e enfermeiros fazem
observações sobre o doente (Houaiss, 2000).
78
Folha avulsa com informações breves sobre medidas preventivas e tratamento de doenças,
geralmente entregue na rua, aos transeuntes.
79
Na verdade, o chat nessa HQ se assemelha mais a uma conversação que a um bate-papo
virtual, pois não há marcas típicas desse contexto, como certas abreviaturas e reduções.
80
Uso a terminologia texto didático para designar os gêneros que apresentam informações
sobre as doenças, encontrados em CQ6. Como se assemelham aos textos oriundos do
universo escolar, destinados ao ensino e muito comuns em livros didáticos, adotei tal
198
17-19. tradições religiosas à necessidade de adaptar os
rituais aos cuidados preventivos.
Glossário 13 Explicar o significado de certos termos-chave na
campanha de informação.
Esquema 14 Apresentar inform. sobre uso do preservativo.
O gênero HQ não foi incluído no quadro porque ele é mais uma
estratégia discursiva do processo de quadrinização que um gênero inserido na
cartilha; de fato, o uso da HQ na textualização é um traço definidor do gênero
cartilha em quadrinhos.
Entre os gêneros citados, pode-se dividi-los em três grupos: a) os
destinados a fazer fluir a narrativa, preparando ou constituindo diversos
movimentos retóricos; b) aqueles voltados prioritariamente para a
veiculação/didatização das informações científicas (nos movimentos retóricos
de caracterização da doença e Formas de prevenção e tratamento); c) os
voltados para o movimento retórico de Mudança de atitudes/ mensagens de
encorajamento. Integrando o primeiro grupo, aponto certas conversações
artificiais, especialmente aquelas que preparam e introduzem as situações-
problema. Vejamos exemplos:
Ex. 184 – CQ3,
p. 3, quadros 1
e 2.
nomenclatura, embora reconheça que não é muito precisa, pois qualquer gênero, usado com
finalidade de ensinar, pode ser adjetivado como “didático”.
199
Ex. 185 – CQ1,
p. 4, quadros 1-
2.
Ex. 186 – CQ5,
p. 3, quadro 1
Ex.187 - CQ6,
p. 12, quadro 1
200
O diálogo do exemplo 184 traz a confissão do marido de Suely, de que
está com aids. Os quadros 1-2 do exemplo 185 introduzem a conversa sobre
iniciação sexual com ou sem o uso do preservativo. Na cartilha Bate-papo:
dicas de prevenção às DSTs/aids (CQ5), a pergunta do garoto expõe a
situação de risco a que se expõem vários adolescentes: ter relações
desprotegidas por conta das dificuldades de passar a usar o preservativo numa
relação estável. Em CQ6, a fala da mãe-de-santo retoma a lenda de Obaluayê
para começar a tratar da solidariedade com os amigos doentes (ex. 187).
Ainda que não seja um gênero propriamente, o discurso do narrador é
também responsável por fazer a narrativa avançar. Nas HQs, o discurso do
narrador geralmente tem a função de situar o leitor na passagem do tempo,
especialmente se há um intervalo maior de tempo entre as cenas, ou na
introdução de novos personagens e cenários. É com essa mesma função que
esse gênero aparece nas cartilhas: CQ1 - “Rola de tudo na conversa da
galera...”, p. 3; CQ2 - “Este é o nosso maravilhoso Brasil.”, p. 3; CQ3 - “Cleiton
fez exame de sangue para tratar de uma DST. E descobriu algo muito mais
sério...”, p. 3; CQ6 - “No terreiro ‘Ilê Babá Omulu’, a yalorixá costuma reunir os
seus filhos-de-santo, principalmente os mais jovens, para contar as lendas
sobre os orixás”, p. 3. Em CQ6, ele é a forma mais freqüente de organização
textual.
No segundo grupo, estão a entrevista médica, o panfleto, o cartaz
escolar e os textos didáticos. Alguns deles são originários de domínios
discursivos não propriamente científicos, mas em que o discurso científico
também é veiculado. É o caso dos cartazes escolares (cf. ex. 127 e 128, p.
131, CQ1), dos textos didáticos (cf. ex. 110, p. 99, CQ6) e dos esquemas (cf.
ex. 152, p. 167- CQ1; ex. 153 e 154, p. 168, CQ6), todos oriundos do domínio
escolar, cujas práticas de letramento envolvem a disseminação (e,
eventualmente, a produção) do conhecimento científico.
Analisando mais detidamente os cartazes escolares em CQ1, percebe-
se a mescla de estratégias humorísticas de envolvimento dos leitores com a
didatização das informações. Esses painéis também fazem parte da história,
pois foram solicitados pela professora como trabalho escolar para esclarecer as
dúvidas dos alunos, sobre DSTs/aids, numa história que se passa no universo
de adolescentes colegas de escola. Neles, unem-se tanto o caráter didático do
201
gênero painel escolar, composto de imagens e situações cômicas com que os
adolescentes se identificam, quanto o caráter científico na divulgação de
informações. O cartaz das páginas 12-13 é encabeçado pelo título, um resumo
do assunto, seguido da abreviatura DSTs. Logo depois, há um breve texto
expositivo chamando a atenção para os sintomas e para as providências a
serem tomadas. Essas constituem as informações essenciais a serem
apresentadas aos personagens alunos e, em última análise, aos leitores da
cartilha. Nesse gênero, as informações científicas se mesclam às estratégias
humorísticas de didatização dos conteúdos – desenhos caricaturais da
camisinha, do vírus e do símbolo dos sexos masculino e feminino. Há, ainda,
as dúvidas sobre as doenças e as sensações desconfortáveis pelas quais
podem passar os adolescentes: coceiras, inchaços e erupções cutâneas.
202
Ex. 188 – CQ1 - p. 10.
Ex. 189 – CQ1 - p. 12.
Nessas páginas, mesclam-se estratégias de reforço da legitimidade das
informações científicas e estratégias de envolvimento, com o intuito de “fisgar”
o leitor, de conseguir sua adesão às instruções apresentadas. Por exemplo,
após o trecho “Nas relações sexuais com penetração, usar sempre camisinha,
evitando o contato com o esperma e a secreção vaginal”, segue-se o “diálogo”
com o leitor: “Olha como é simples.” O uso do registro informal – “Ponha com
ele duro” - está ao lado do jargão técnico – penetração, sexo vaginal, secreção
vaginal, esperma.
Incluir, nas CQs, gêneros próprios das práticas de letramento científicas
é um dos recursos para alcançar credibilidade, pois eles trazem a marca de
“cientificidade”. No caso de esquemas, assim como gráficos e quadros, a
203
informação está baseada numa demonstração “visível” de argumentos, o que
adquire uma força ainda maior, segundo Latour (2000).
As entrevistas médicas também se inserem no domínio discursivo das
práticas médicas, em que se disseminam informações científicas: geralmente,
o médico informa aos pacientes sobre a doença, sua prevenção e tratamento.
Em CQ5, a entrevista médica está “disfarçada” de chat (cf. ex. 82, p. 66; CQ3),
mas sua configuração lingüística se aproxima muito mais de uma conversação
do que de um bate-papo virtual (ver nota de rodapé na p. 195).
Mas há cartilhas em que a entrevista médica pode servir também para
introduzir uma situação-problema:
Ex. 190 – CQ3, p.
9, quadro 1
Essa entrevista médica representa uma situação-problema recorrente
para os soropositivos: lidar com o preconceito, inclusive de profissionais de
saúde.
Já os panfletos informativos pertencem ao domínio discursivo das
políticas públicas, no caso, a área de educação em saúde. Um panfleto
educativo é inserido na história, como é o caso da cartilha Compartilhando a
vida. Durante a Parada Gay, uma ativista homossexual exibe os panfletos que
está distribuindo (cf. ex. 129, p. 135, CQ3). É nesse momento que o discurso
científico da prevenção fica bastante evidente, além do intuito persuasivo da
cartilha, evidenciado no uso do imperativo nas recomendações (Use sempre...).
204
Mas é preciso observar que todos esses gêneros têm um caráter de
didatização: pretendem informar claramente as pessoas sobre as doenças. Os
cartazes escolares e os textos expositivos têm esse propósito didático
evidente, dada a sua natureza escolar. Os médicos tentam, muitas vezes, fazer
os pacientes compreenderem a dinâmica da doença e do tratamento, tanto por
razões de ordem ética quanto para conseguir a adesão do paciente ao
tratamento. Os panfletos, usados em campanhas institucionais massivas,
também devem ser didáticos, para que a campanha de esclarecimento seja
eficaz para os mais diferentes leitores.
As conversações artificiais (cf. Dionisio, 2001), embora não sejam
voltadas apenas para a veiculação do discurso da ciência, também podem
fazê-lo. As interações ocorrem entre adolescentes, entre adolescente e
professora, entre pais e filhos, entre amigos, entre parceiros. Geralmente, há
uma polarização do grau de conhecimento dos personagens: os bem-
informados e os mal-informados, de modo que os últimos aprendam com os
primeiros (cf. ex. 135, p. 151). E é nesse sentido que se pode perceber um
caráter didático em algumas dessas conversas. Eis alguns exemplos:
Ex. 191 – CQ5, p. 9, quadros 1-2.
205
Ex. 192 – CQ2, p. 7, quadro 6. Ex. 193 – CQ1, p. 17, quadro 4.
A contraposição das falas dos personagens explicita para o leitor o que é
preciso saber a respeito da doença, entretanto, em CQ4 e em CQ6, não se
verifica essa tensão. Na primeira cartilha, o objetivo maior não é informar sobre
DSTs/Aids, mas expor certas posturas e angústias dos homens aos leitores.
Quem expõe o discurso sobre a prevenção é o mesmo personagem que tem
dificuldades para adotar condutas compatíveis com os cuidados anunciados,
amenizando a discrepância entre o grau de conhecimento dos personagens. Já
em CQ6, os personagens não dialogam sobre as doenças; a mãe-de-santo, a
autoridade, expõe para os leitores o que é preciso saber.
O terceiro grupo de gêneros encontrados é composto daqueles que
ajudam a veicular mensagens de mudança de atitudes e de encorajamento.
Ex. 194 – Discurso do narrador em CQs; CQ1, p. 18, quadro 5.
206
Ex. 195 – Discurso do narrador em CQs CQ2, p. 10.
Ex. 196 - CQ3 – p. 13, quadros 3 e 4.
207
Nesses três exemplos, o discurso do narrador (CQ1 e CQ3) e a sessão
de análise concretizam o movimento retórico Mudança de atitudes/ mensagens
de encorajamento. Há ainda outros exemplos, com conversações artificiais
(CQ3) e texto didático (CQ6).
Ex. 197 –
CQ3, p.
14.
Ex. 198 -
CQ5 – 1º,
quadro 2;
p. 11,
quadro 2.
208
Ex. 199 -
CQ4, p.
23.
Ex. 200 –
CQ6, p.
18,
detalhe.
O uso de gêneros diversos nas CQs obedece não só às necessidades
de expor e didatizar informações, mas também de fazer avançar a narrativa
quadrinizada, origem dessas informações (com exceção de CQ6). O caráter
científico das informações sobre DSTs/aids nas CQs se mescla à didatização já
209
que as cartilhas devem ser compostas de modo a possibilitar a compreensão
pelos leitores mais diversos.
Nas CQs de prevenção às DSTs/aids, o interlocutor é uma variável
importante na organização das informações, principalmente na escolha dos
personagens e do enredo. Logo, a escolha dos gêneros se alternará entre a
busca pela cientificidade e a aproximação com o cotidiano, contexto este
presente nas histórias quadrinizadas de cada cartilha.
Apesar de quadrinizadas, ou seja, de se assemelharem às histórias em
quadrinhos (HQs), voltadas em geral para o entretenimento
descompromissado, – e de se incluírem num vetor de popularização da
informação científica, elas não podem prescindir da legitimidade de “voz” da
ciência. Esse difícil equilíbrio é alcançado na mescla de situações de ação da
narrativa com situações de exposição de conceitos, dicas e conselhos, tudo
isso apresentado com o recurso à intergenericidade, à multimodalidade e à
inclusão de gêneros diversos na HQ.
A intertextualidade intergêneros presente nas CQs serve tanto aos
princípios da cientificidade, pois dão um tom científico às informações
expostas, constituindo uma estratégia para tornar mais “oficiais” os fatos sobre
as doenças abordadas; quanto à necessidade de didatizar informações sobre
as doenças.
No caso das CQs, o uso da quadrinização, de outros gêneros e da
linguagem científica aponta para o duplo propósito de informar e persuadir,
próprio a esse gênero. Sabe-se, porém, que a eficácia persuasiva não repousa
apenas na credibilidade do discurso científico, pois questões de ordem cultural
entram em jogo quando se trata de comportamentos.
Há indícios de que o caráter científico das informações veiculadas em
CQs fique em segundo plano numa primeira aproximação com exemplares
desse gênero, quando se percebe a proposta de uma narrativa em quadrinhos
ficcional como eixo condutor da apresentação dessas informações. Essa
estratégia permite que o leitor seja seduzido pela leitura lúdica de uma história
em quadrinhos, menos “árida” que a de um texto expositivo convencional sobre
cuidados com a saúde. Além disso, o leitor pode identificar-se com as
situações vividas pelos personagens, sempre relativas aos conflitos e dúvidas
sobre a doença, formas de contágio e prevenção, além de angústias
210
existenciais em alguns casos. Vale ressaltar que essas situações servem como
enquadre sociocultural para as eventuais dúvidas dos leitores. Homens de
escolarização precária e com relações estáveis, mas que têm outras parceiras
sexuais, podem ter dúvidas sobre o contágio dessas parceiras, como ilustraram
diversos exemplos analisados. Assim, para serem eficazes, as cartilhas sobre
DSTs/aids devem buscar também a empatia dos leitores, já que essas doenças
ainda são cercadas de tabus e preconceitos, o que pode se tornar um desafio
para os elaboradores das campanhas. É nesse sentido que a exploração de
representações sociais e, eventualmente, de estereótipos é um traço presente
nas CQs, nas quais os personagens desenhados, constitutivos do gênero HQ,
podem carregar representações sociais que remetem, em alguma medida, à
vida cotidiana de cada leitor.
211
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os exemplares de cartilhas quadrinizadas (CQs) voltadas à prevenção de
DSTs/aids, que foram analisados neste estudo, revelaram-se um gênero
situado na interface dos domínios discursivos de divulgação científica e das
políticas públicas de saúde. Por essa razão, têm um caráter didático na
apresentação das informações ao público-alvo, ao mesmo tempo em que
procuram envolver os leitores a que se dirigem, tanto para a leitura do material
quanto para a adesão às recomendações que propagam.
Nesse gênero, mesclar a linguagem dos quadrinhos a estratégias
discursivas de divulgação científica é a forma de textualização por excelência.
Isso termina por estabelecer outras bases para o estatuto de cientificidade que
as CQs devem carregar. Quanto ao objetivo geral desta pesquisa, pudemos
verificar de que maneira a quadrinização constrói a cientificidade das cartilhas,
entre outros recursos.
De um modo bastante peculiar, a narrativa quadrinizada põe em jogo uma
rede social de personagens interagindo de modo a dar conta dos movimentos
retóricos que permitam informar sobre a doença, suas formas de contágio,
condutas preventivas e tratamento. Tais personagens representam vozes
sociais distintas: desde a autoridade legitimada para apresentar as informações
científicas até pessoas comuns que representem os leitores potenciais das
cartilhas (no caso do corpus estudado, adolescentes e jovens, homens adultos
pouco-escolarizados, homens adultos escolarizados e praticantes de cultos
afro-brasileiros). Espera-se que os leitores se disponham a ler o material com o
estímulo da linguagem dos quadrinhos, que se identifiquem com as situações
narradas, que acreditem na seriedade das informações dadas (cientificidade) e,
assim, que passem a adotar as condutas preventivas sugeridas. Esse seria o
caminho de uma campanha bem sucedida.
Especificamente, observei ainda que a linguagem verbal usada para
veicular informações científicas alterna o uso do jargão técnico e o uso do
registro informal e das gírias no discurso dos personagens, com preferência
212
pelos dois últimos. Verifiquei, ainda, o predomínio das seqüências expositiva e
argumentativa na apresentação de informações científicas. No plano da
linguagem não-verbal, ou do “jargão visual”, poucas cartilhas optam pelos
desenhos técnicos, preferindo manter o traço estilizado ou caricatural dos
quadrinhos em toda a HQ. No entanto, quando a cartilha inclui desenhos
científicos, há sempre alguma estratégia para destacá-los do restante da
narrativa, possibilitando a sua inclusão coerente na seqüência do material, seja
nos cartazes escolares de CQ1 ou nos textos didáticos de CQ6
A diversidade de gêneros usados para didatizar as informações
científicas nas cartilhas estudadas não foi muito extensa. Na verdade, o gênero
diálogo escrito foi o mais utilizado, justamente porque permite avançar a
narrativa e, em meio aos encontros dos personagens, apresentar as
informações a que se propõe o material. Para reforçar o estatuto de
cientificidade, alguns gêneros do universo científico, como esquemas, foram
incorporados em certas cartilhas, mas não como tendência dominante. E isso
ocorreu justamente pelo fato de a cartilha ser quadrinizada: preferencialmente,
tudo deve ser apresentado em meio à narrativa e não, como um acréscimo.
A representação de papéis sociais manifestou-se, essencialmente, no
perfil dos personagens e na teia de relações sociais estabelecida na narrativa.
Em todas as cartilhas, havia uma voz da autoridade para abordar, com
credibilidade, aspectos relativos às DSTs/aids. Verificou-se, ainda, uma
polarização no grau de informação que detinham os personagens, a fim de
evidenciar equívocos quanto às condutas preventivas a serem adotadas. Essas
representações são muito importantes para a identificação dos leitores com as
situações vivenciadas pelos personagens: exposição ao risco de contágio,
dúvidas e angústias sobre como se prevenir e se tratar. Sua relevância está
relacionada com o público-alvo a que se destina cada cartilha: dependendo de
quem a lerá, certos personagens serão mais adequados que outros.
Como qualquer pesquisa científica, muitas questões importantes ficaram de
fora do escopo de investigação. Assim, a título de contribuição para a
realização de outras pesquisas, enumero algumas linhas de investigação que
merecem ser trilhadas para estudar as cartilhas quadrinizadas.
Um aspecto relevante seria conhecer mais a respeito da recepção desses
materiais por parte dos leitores. Do ponto de vista da elaboração das
213
campanhas, é importante compreender até que ponto e de que modo os
leitores entendem as informações veiculadas nas cartilhas. É possível também
comparar a eficácia do uso de cartilhas quadrinizadas, de cartilhas não-
quadrinizadas, de fôlderes e de outros materiais impressos nas campanhas de
educação em saúde, para que se possa decidir pelo gênero mais adequado a
cada público, ao foco específico de cada campanha.
Outra possibilidade de exploração das CQs é a relação entre o especialista
e o quadrinista na elaboração das campanhas: de que maneira se equilibram
os saberes técnicos, oriundos do universo da ciência, e o caráter lúdico e
envolvente da narrativa em quadrinhos. Para isso, estratégias de divulgação
científica são agenciadas pelos elaboradores, só que não apenas no plano da
linguagem verbal, mas também na linguagem não- verbal.
Uma análise qualitativa do uso da quadrinização nesse tipo de material
pode também ser empreendida, especialmente a partir da perspectiva dos
estudiosos em quadrinhos, especialistas na área. É comum acontecer que, no
intuito de passar o maior número de informações possível numa mesma
cartilha, as instâncias produtoras esqueçam-se de usar o grande potencial das
CQs: o poder didático do desenho. Apesar dessa qualidade intrínseca da
quadrinização, em geral, elaborar CQs não é uma tarefa valorizada pelos
quadrinistas, já que não se trata de um trabalho artístico de criação de uma
HQ, em que a preocupação estética com traços estilísticos dos desenhos é
primordial, fundida à capacidade de materializar um enredo envolvente,
equilibrando o uso de imagens e palavras. Tanto isso é verdade que muitos
quadrinistas não arquivam as cartilhas que elaboram. Do mesmo modo, não é
prática muito comum, nas Secretarias de Saúde de estados e municípios, a
formação de uma memória desses materiais.
Realizar um resgate histórico desses materiais é outra tarefa que se reveste
de importância à medida que isso traz informações sobre mudanças diversas:
a) na condução de campanhas de informação massivas no âmbito das políticas
públicas de saúde; b) na perspectiva de abordagem de certas doenças ao
longo do tempo e dos avanços dos conhecimentos científicos a respeito
81
; c) no
81
Na época das primeiras campanhas contra a aids do Ministério da Saúde do Brasil (início da
década de 1990), pouco se sabia a respeito da doença e não havia tratamento. Logo, o tom
das campanhas era assustador, porque se considerava que era preciso alertar para o perigo de
214
uso dos quadrinhos para fins de didatização de informações científicas e de
envolvimento dos leitores. Como as cartilhas integram campanhas de massa e,
portanto, são distribuídas gratuitamente em escolas, postos de saúde e outros
locais, é muito difícil obter cartilhas mais antigas, porque não se trata de um
material que se guarde. Na internet, obtive apenas trechos de uma cartilha de
educação em saúde elaborada por Luís Sá e publicada em 1949 pelo Serviço
Nacional de Educação Sanitária, no Rio de Janeiro
82
.
O discurso da ciência nasceu entre especialistas e circulou num universo
restrito durante muito tempo. No século XX, o desenvolvimento dos meios de
comunicação de massa, que passaram a difundir informações mais rápida e
eficazmente, junto aos avanços nas descobertas científicas, aumentaram o
interesse popular pelos temas da ciência. Entretanto, na maioria dos casos,
essa motivação dos leigos não vem sendo acompanhada da contrapartida
esperada, ou seja, da proliferação de textos sobre ciência que sejam, de fato,
acessíveis aos não-especialistas. Os esforços para popularizar as informações
científicas, com revistas especializadas em divulgação científica, colunas em
jornais e programas televisivos, apesar de intensos, ainda não são suficientes.
Assim, é preciso buscar alternativas para mudar significativamente o modo
como se difunde o saber específico produzido pelos cientistas.
Se considerarmos que o apelo ao lúdico sempre foi - e é – uma poderosa
ferramenta para passar informações ou adquirir conhecimento; se
considerarmos a relativa distância entre o conhecimento científico e os leitores
que desejam conhecer a respeito da ciência, estratégias que facilitem essa
aproximação são bem-vindas e ampliam as vias de democratização do acesso
às fontes de conhecimento. No caso das campanhas de educação em saúde,
ter acesso às informações é um direito de cada pessoa. Contudo, não será por
meio da leitura de gêneros científicos áridos, até mesmo para especialistas,
que poderemos atender às necessidades do cidadão comum quanto a
conhecer ciência. Assim, pode-se concluir que o gênero CQ, que parece
conseguir “driblar” essas dificuldades, é um caminho valioso para quem,
morte iminente. Posteriormente, houve mudanças, devido ao avanço da medicina com os
novos medicamentos e tratamento e também, possivelmente, porque se constatou que as
pessoas, assustadas, se negavam a saber mais a respeito da doença e, portanto, a se
prevenir.
82
Disponível em http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=921&sid=7.
Acesso em 02 jan. 2008.
215
divertindo o leitor, deve simplificar e tornar claras informações científicas que
têm como tema cuidados com a saúde.
216
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Cartilhas do corpus
CQ1
BEMFAM - Sociedade Civil Bem-estar Familiar no Brasil. DST – Aids: A turma
pode ficar... prevenida. Rio de Janeiro, BEMFAM, 1994.
CQ2
DKT do Brasil. As aventuras do Super-protegido, o bom de cama. s.l., s.d.
CQ3
ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. MASKUD, Ivia, RAXACH,
Juan Carlos; TERTO Jr., Veriano (orgs.). Compartilhando a vida. Rio de
Janeiro: ABIA, 2006.
CQ4
BRASIL. Ministério da Saúde (s.d.). De homem para homem. Criação e
desenhos de Miguel Paiva. Programa Nacional de DST/Aids: Brasília.
CQ5
Prefeitura municipal de Cubatão/SP. Secretaria de Desenvolvimento Social.
Programa Municipal de DST/Aids de Cubatão/SP. Bate-papo: dicas de
prevenção às DSTs/aids. S. d.
CQ6
PERNAMBUCO. Secretaria Estadual de Saúde (s.d.) Atotô. Diretoria de
Epidemiologia e Vigilância Sanitária/ Programa Estadual de DST/AIDS. Recife.
Obras em quadrinhos (exemplos do Quadro 1, p. 34-36)
Ex. 25
CAVALCANTI, Laílson de Holanda; FÉLIX, Luciano; GABRIEL, Pedro. Turma
do fomfom. Recife: Departamento Estadual de Trânsito; Secretaria de Infra-
Estrutura, 2003.
224
Ex. 26
CAVALCANTI, Laílson de Holanda; FÉLIX, Luciano (arte final). Parceiros da
energia: um passeio pela fauna e pela flora de Pernambuco. Recife:
Companhia Energética de Pernambuco (CELPE); Grupo Iberdrola (Grupo
Neoenergia); Centro Psicopedagógico de Atividades Integradas (CEPAI), 2002.
Ex. 27
A fuga do mosquito da dengue em busca da água prometida. Prefeitura da
Cidade do Recife; Sistema Único de Saúde/ Secretaria de Saúde; Agente de
Saúde Ambiental. s.l., s.d.
Ex. 28
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Como cuidar da hipertensão. s.l., s.d.
Ex. 29
As aventuras radicais da trupe Palomino. C&A. julho, 2002
Ex. 30
GENÉRICOS EUROFARMA. Gibinérico de Natal. S.l. Dezembro de 2004.
Ex. 31
SIMOES, Fábio Ferreira e MADEIRA NETO, Acilino Alberto. Reforma da
Previdência! Tô fora! Recife: Sindifisco/-PE/ Sindifisco-PB, 2003.
Ex. 32
Nilton está voltando nos braços do povo! Gibi eleitoral do candidato a Prefeito
de Jaboatão dos Guararapes, Nilton Carneiro. s.l., 2004.
Ex. 33
MOORE, Alan e CAMPBELL, Eddie (2002) Do Inferno – vol. 1.2 ed. São Paulo:
Via Lettera.
Ex. 34
HEUET, Stepháne e PROUST, Marcel (2003). Em busca do tempo perdido - no
Caminho de Swann: Combray. São Paulo: Jorge Zahar.
Ex. 35
SACCO, Joe (2000). Palestina: uma nação ocupada. São Paulo: Conrad.
Ex. 36
SACCO, Joe (2003) Uma história de Sarajevo. São Paulo: Conrad.
Ex. 37
A Bíblia em quadrinhos para crianças. Ano 1. N
o
3. Recife: Preciosas
Sementes.
Ex. 38
McCLOUD, Scott. ([1993] 2005) Desvendando os quadrinhos: história, criação,
desenho, animação, roteiro. São Paulo: M. Books.
225
Ex. 39
DURIC, Zoran; VELIJKOVIC, Jasna e TOMIC, Miomir (ilustrador). (2005)
Psicodrama em HQ: iniciação à teoria e à técnica. São Paulo: Daimon.
Ex. 40
FREYRE, Gilberto e RODRIGUES, Ivan W. (2000[1976]). Casa-Grande e
Senzala em Quadrinhos. Rio de Janeiro: ABEGraph.
Ex. 41
CAVALCANTI, Laílson Holanda (s.d.) Pindorama: a outra história do Brasil.
Fascículo 1. Celpe/ Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco.
Ex. 42
GONICK, Larry (2004) A história do mundo em quadrinhos: a ascensão do
mundo árabe e a história da África. São Paulo: Jaboticaba.
Ex. 43
LENT, Roberto e DEALMEIDA, Flávio (2005). Para que serve o sono. Ciência
Hoje das Crianças, set. 2005.
ANEXOS
II
ANEXO 1
Cartilha quadrinizada 1 (CQ1)
DST – Aids: a turma pode ficar... prevenida!
III
Página 1
IV
Päginas 2 e 3
V
Páginas 4 e 5
VI
Páginas 6 e 7
VII
Páginas 8 e 9
VIII
Páginas 10 e 11
IX
Páginas 12 e 13
X
Páginas 14 e 15
XI
Páginas 16 e 17
XII
Páginas 18 e 19
XIII
Página 20 (4ª capa)
XIV
ANEXO 2
Cartilha quadrinizada 2(CQ2)
As aventuras do Super-protegido, o bom-de-cama
XV
Páginas 1 e 3
XVI
Páginas 4 e 5
XVII
Páginas 6 e 7
XVIII
Páginas 8 e 9
XIX
Páginas 10 e 12
XX
ANEXO 3
Cartilha quadrinizada 3 (CQ3)
Compartilhando a vida
XXI
Página 1
XXII
Páginas 2 e 3
XXIII
Päginas 4 e 5
XXIV
Páginas 6 e 7
XXV
Páginas 8 e 9
XXVI
Páginas 10 e 11
XXVII
Páginas 12 e 13
XXVIII
Páginas 14 e 15
XXIX
Página 16 (4ª capa)
XXX
ANEXO 4
Cartilha quadrinizada 4 (CQ4)
De homem para homem
XXXI
Páginas 1, 2, 3 e 4
XXXII
Páginas 5, 6, 7 e 8
XXXIII
Páginas 9, 10, 11 e 12
XXXIV
Paginas 13, 14, 15 e 16
XXXV
Páginas 17, 18, 19 e 20
XXXVI
XXXVII
Páginas 21, 22, 23 e 24
XXXVIII
Página 25 (4ª capa)
XXXIX
ANEXO 5
Cartilha quadrinizada 5 (CQ5)
Bate-papo: dicas de prevenção às DSTs/aids
XL
XLI
Páginas 3 e 4
XLII
Páginas 5 e 6
XLIII
Páginas 7 e 8
XLIV
Páginas 9 e 10
XLV
Páginas 11 e 12
XLVI
ANEXO 6
Cartilha quadrinizada 6 (CQ6)
Atotô
XLVII
Página 1
XLVIII
Páginas 2 e 3
XLIX
Páginas 4 e 5
L
Páginas 6 e 7
LI
Páginas 8 e 9
LII
Páginas 10 e 11
LIII
Páginas 12 e 13
LIV
Páginas 14 e 15
LV
Páginas 16 e 17
LVI
Páginas 18 e 19
LVII
Página 20 (4ª capa)
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