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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
A CRISE DO PROCESSO PENAL NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS NOVAS
FORMAS DE ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA CRIMINAL
DANIEL SILVA ACHUTTI
Porto Alegre
2006
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3
DANIEL SILVA ACHUTTI
A CRISE DO PROCESSO PENAL NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS NOVAS
FORMAS DE ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA CRIMINAL
Dissertação de Mestrado apresentada à banca examinadora da
Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, como exigência parcial para obtenção do
grau de Mestre em Ciências Criminais, sob a orientação do
Professor Doutor Salo de Carvalho.
Porto Alegre
2006
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TERMO DE APROVAÇÃO
DANIEL SILVA ACHUTTI
A CRISE DO PROCESSO PENAL NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS NOVAS
FORMAS DE ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA CRIMINAL
BANCA EXAMINADORA
Orientador: Prof. Dr. Salo de Carvalho _________________________
Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies _________________________
Prof. Dr. Nereu José Giacomolli _________________________
Porto Alegre
2006
5
A Mário Goulart da Silva (in memorian)
6
AGRADECIMENTOS
Ao amigo e orientador, Prof. Dr. Salo de Carvalho, pela
confiança, parceria e constante incentivo para a pesquisa (sempre)
crítica e transdisciplinar das ciências criminais.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais da PUCRS, em especial à Profa. Dra. Ruth Maria
Chittó Gauer, coordenadora incansável do Programa e detentora de
um conhecimento assustador, e aos Profs. Drs. Ricardo Timm de
Souza e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, por todo o conhecimento
que me passaram e pela amizade desenvolvida. E, evidentemente, às
funcionárias da secretaria, Caren, Márcia e Patrícia, desde o início
prestando todo o apoio e me aturando quase todos os dias, e ao Chico
e à Raquel, pelas recentes – mas não menos valiosas – ajudas.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior (CAPES), por ter arcado com as despesas do curso e ter me
proporcionado estudar em um programa de pós-graduação de
altíssimo nível.
Aos amigos e colegas da graduação, dos grupos de estudos e
do mestrado, pelos incontáveis diálogos e apoio. Em especial, aos
mais chinelos Giovane Santin, Roberto Rodrigues, Alexandre
Pandolfo, Grégori Laitano e Marco Antônio de Abreu Scapini, cuja
permanente companhia e amizade colaboraram decisivamente para o
desenvolvimento deste trabalho.
Não posso deixar de agradecer também a Fausto Mânica,
Gustavo Corbellini, Vinícius Gil Braga, Marcelo Ruivo, Gabriel
Divan, Natalie Ribeiro Pletsch, Mônica Delfino, Saulo Marimon, Luiz
Antônio Bogo Chies, e muitos outros amigos e amigas, que não são
aqui citados por absoluta falta de memória: a todos, muito obrigado!
7
Aos Wunderlichs, Mário e Alberto, meus amigos e sócios, pela
calorosa receptividade e parceria, e Alexandre, defensor incansável de
uma advocacia criminal ética e combativa.
À Profa. Dra. Sandra Leal, coordenadora do curso de Direito
das Faculdades Planalto (FAPLAN Passo Fundo/RS), pela
confiança no desconhecido candidato a professor.
Aos meus alunos de direito penal e processual penal da
FAPLAN, motores de minha insistência acadêmica e motivos
suficientes para nunca me deixar levar pelo conformismo e pela
arrogância. E, ainda em Passo Fundo, ao colega e professor Rogério
Guedes, pelo tour gastronômico proporcionado pelas melhores (e
piores) churrascarias da cidade.
À Roberta Dias Kappel, pela incrível parceria e, claro, por seu
constante bom humor, cuja explicação permanece um imenso
mistério! Tua simplicidade, graça e alegria deram novo sentido à
minha vida.
Aos meus pais e irmãos, Maria Inez e George, Gustavo e
Mariah, por tudo.
8
“... a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos
rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las.”
Gabriel García Márquez
9
RESUMO
No presente trabalho, vinculado à linha de pesquisa Política Criminal, Estado e
Limitação do Poder Punitivo, que está inserida na área de concentração Violência do
Mestrado em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, analisa-se criticamente o processo penal brasileiro no século XXI.
Parte-se da hipótese de insuficiência do processo penal para resolver os conflitos na sociedade
contemporânea, uma vez que ancorado epistemologicamente nas raízes da ciência moderna e,
antes disso, herdeiro de modelos inquisitoriais, tipicamente medievais. Foi realizada
abordagem transdisciplinar das emergentes propostas de resolução de conflitos no Estado do
Rio Grande do Sul, a partir das experiências de “modelos alternativos de composição”. Em
um primeiro momento, são trabalhados os Juizados Especiais Criminais, como marco
histórico-legal viabilizador dessas experiências. Com a sua implantação, os Juizados
possibilitaram, a seguir, os referidos modelos, quais sejam, a Justiça Terapêutica, a Justiça
Restaurativa e a Justiça Instantânea. Antes de abordá-los de forma meramente conceitual, a
análise é feita a fim de demonstrar que estas novas formas” de gestão da justiça criminal
representam alternativas ao processo penal e, ainda, são fruto de sua própria crise,
apresentando-se como sua exteriorização formal. Ademais, foi realizada análise dos métodos
escolhidos e dos fins visados pelas novas formas de gestão da justiça criminal, demonstrando
ora as suas capacidades para ir além das possibilidades oferecidas pelo processo penal, ora a
suas insuficiências para superá-lo. A pesquisa, portanto, diagnostica os limites e as
possibilidades do processo penal neste início de século desde a sua capacidade para a
efetivação do poder punitivo estatal, o que justifica a sua vinculação à linha de pesquisa
referida, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais desta Universidade.
Palavras-chave: processo penal – crise – novos modelos de justiça criminal
10
ABSTRACT
The present study is associated with the line of research on Criminal Policy, State, and
the Limitation of Punitive Power, which is inserted in the Violence major at the master’s
degree course in Criminal Sciences from the Law School of the Pontifical Catholic University
of Rio Grande do Sul. It is a critically analyze of the Brazilian criminal procedure in the 21st
century. One starts from the assumption that the Brazilian criminal procedure is unable to
solve conflicts in contemporary society, as it is epistemologically based on the roots of
modern science and, above all, it is heir to inquisitional and typically medieval models. One
has adopted a transdisciplinary approach to the emerging proposals to solve conflicts in the
Rio Grande do Sul State based on the experiences of “alternative settlement models”. Firstly,
one examines the Special Criminal Courts as a historic/legal milestone making those
experiences feasible. Afterwards, with their implementation, the Courts made the
aforementioned models possible, that is, the Therapeutic Courts, Restorative Courts, and
Instantaneous Courts. Instead of approaching them in a merely conceptual way, the aim is to
check whether those “new ways” of management by the criminal courts represent alternatives
to the criminal procedure and/or if they are the result of their own crisis, presenting
themselves as their formal externalization. A fundamental question – which is the objective of
the investigation – is to know whether the chosen methods and aimed purposes are superior or
inferior to the possibilities offered by the criminal procedure and whether they are consistent
with constitutional provisions. The study, therefore, diagnoses the limits and possibilities of
criminal procedure at the beginning of this century.
Keywords: criminal procedure – crisis – new criminal court models
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................14
1 A CIÊNCIA MODERNA E A SOLUÇÃO DE CONFLITOS PELO PROCESSO PENAL: DA
REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVI À CONTEMPORANEIDADE .......................................20
1.1 Galileu, Newton e a Emergência do Pensamento Moderno.........................................20
1.2 Da Continuidade do Projeto Científico Medieval: a constituição do processo penal
brasileiro a partir do sistema inquisitorial.............................................................................28
1.3 Da Modernização do Processo Penal: o abandono das justificativas teológicas .........34
1.4 O Positivismo Jurídico de Hans Kelsen: a auto-legitimação do ordenamento e o
narcisismo jurídico (penal).....................................................................................................37
1.5 A Solução de Conflitos na Contemporaneidade: o processo penal moderno..............41
1.5.1 A Função Protetiva do Processo Penal.....................................................................42
1.5.2 A Teoria do Garantismo Penal .................................................................................43
12
1.5.2.1 A vigência e a validade das normas: novo paradigma de legitimação
normativa ................................................................................................................................46
1.5.2.2 O Processo e as Garantias ...............................................................................47
2 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO E OS NOVOS MODELOS DE JUSTIÇA CRIMINAL ................51
2.1 O Processo Penal Brasileiro: breve análise da exposição dos motivos do vigente
Código de Processo Penal .......................................................................................................51
2.2 A Crise do Processo Penal Tradicional e a Emergência dos Novos Modelos de
Administração da Justiça Criminal ......................................................................................54
2.3 Os Juizados Especiais Criminais e as Novas Formas da Justiça Criminal: os
primeiros sintomas da crise ....................................................................................................59
2.3.1 Os Princípios Informadores dos Juizados Especiais Criminais ..............................62
2.3.2 A Ruptura dos Juizados Especiais Criminais: a introdução do diálogo no
processo penal .........................................................................................................................64
2.4 A Justiça Terapêutica ...................................................................................................66
2.5 A Justiça Restaurativa .................................................................................................70
2.6 A Justiça Instantânea ...................................................................................................76
2.6.1 Procedimento ..........................................................................................................76
2.6.2 Justificativas ...........................................................................................................77
2.7 Os Novos Modelos de Administração da Justiça Criminal: semelhanças e
diferenças ...............................................................................................................................80
2.7.1 Semelhanças ...........................................................................................................80
2.7.2 Diferenças ...............................................................................................................81
3 AS NOVAS FORMAS DE ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA CRIMINAL: PARA ALÉM DO
PROCESSO PENAL ................................................................................................................82
3.1 O Século XX e o Fim das Certezas ............................................................................82
13
3.2 Os Limites do Processo Penal na Sociedade Complexa ...........................................89
3.3 As Novas Formas de Justiça Criminal Assumem a Complexidade .........................92
3.3.1 Os Juizados Especiais Criminais: abordagem crítica............................................94
3.3.2 A Justiça Terapêutica: abordagem crítica .............................................................98
3.3.3 A Justiça Restaurativa: abordagem crítica ..........................................................100
3.3.3.1 A Inserção da Vítima no Enfrentamento do Problema Criminal .....................100
3.3.3.2 Um Novo Paradigma Processual Penal ......................................................... 101
3.3.4 A Justiça Instantânea: abordagem crítica ...........................................................103
3.4 Para Além do Processo Penal ..................................................................................105
CONCLUSÕES .........................................................................................................................108
REFERÊNCIAS......................................................................................................................... 117
14
INTRODUÇÃO
Ao iniciar o presente trabalho, tomamos como referência uma inquietação de Antônio
Gramsci:
é preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e
ocasional, isto é, ‘participar’ de uma concepção do mundo ‘imposta’ mecanicamente
pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos vários grupos sociais nos quais todos
estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (...) ou é
preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira crítica e
consciente e, portanto, em ligação com este trabalho próprio do cérebro, escolher a
própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo,
ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da
própria personalidade?
1
Optamos, portanto, por um trabalho crítico, que não fosse um servil aliado das
tradicionais idéias dominantes tanto no processo quanto no direito penal.
A necessidade de se pensar para além das possibilidades da teoria garantista,
admitimos, foi fundamental para o desenvolvimento desta investigação. Desde que tivemos
contato com as lições de Luigi Ferrajoli, começamos a pensar o processo penal não como um
simples meio para aplicar o direito penal e punir os cidadãos acusados da prática de um delito,
1
GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História, p. 12.
15
mas, sim, como um instrumento imprescindível para a aplicação dessa punição, como o
caminho necessário a ser percorrido quando se pretende acusar e condenar alguém.
Desde então, adotamos a teoria garantista como marco teórico de nosso pensamento
jurídico-penal. A defesa dessa teoria não é e nunca foi fácil: o discurso defensivista,
2
propagado há muito por alguns doutrinadores e por vários códigos processuais penais ao redor
do planeta, possui uma adesão facilitada, uma vez que seus argumentos são atraentes e, em
princípio, não exigem maiores abstrações teóricas para serem compreendidos. E a sua adoção
em grande parte da jurisprudência nacional, por sua vez, é explícita e latente.
E como se isso não bastasse, a ampla campanha midiática e legislativa de “caça aos
criminosos” prepara e fertiliza o terreno para a divulgação e a defesa desse discurso. A grande
desgraça da humanidade passou a ser o crime e, por óbvio, o “agente” do delito passou a ser
perseguido como responsável pelas mazelas provocadas pela sua atitude desviante. A
violência e a impunidade são constantemente lembradas pela mídia, que divulga fotos de
pessoas mortas, de crianças espancadas, de idosos roubados e, evidentemente, sempre que
possível, estampa a face dos acusados capturados pela polícia, sem o menor pudor ou respeito
à imagem dessa pessoa.
Ninguém defende que os culpados não devam ser punidos, e tampouco que a polícia
não deva cumprir o seu papel: o que surpreende é que se propaga a imagem do criminoso
como a imagem encarnada do mal. A censura midiática ilimitada não deve ser esquecida,
como deve ser terminantemente proibida: mas a dignidade humana, a onde acreditamos,
deve balizar a ética no jornalismo, sob pena de termos uma imprensa livre, porém atentatória
aos direitos humanos. Antes a dia reclamava não possuir liberdade; hoje, de tão livre,
passou de vítima a ofensora, invertendo o seu papel em uma democracia.
Desde que iniciamos o curso de Mestrado em Ciências Criminais, do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, percebemos que seria possível realizar esse trabalho, por possuir a linha de pesquisa
Política Criminal, Estado e Limitação do Poder Punitivo, que está inserida na área de
2
Sobre o tema, conferir CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias, pp. 70-77.
16
concentração Violência o pelo seu alinhamento com as idéias do referido Programa,
mas principalmente pela possibilidade de desenvolvermos um trabalho cuja principal
referência é a transdisciplinaridade para a abordagem dos problemas de pesquisa:
acreditávamos que não seria possível pensar para além do processo penal senão através de um
estudo eminentemente transdisciplinar.
Tal hipótese foi confirmada: o curso propiciou uma experiência sem tamanho quando
possibilitou a participação nas aulas de outros Programas de Pós-Graduação, como os de
Filosofia e História, por exemplo. As aulas assistidas nesses programas enriqueceram a
percepção do problema e confirmaram o que havíamos percebido: é absolutamente
complicado lidar com os problemas do direito no século XXI sem abandonar as amarras das
disciplinas científicas, sem pensar o direito a partir de referenciais outros metajurídicos, por
excelência.
Nesse contexto, iniciamos a realização do presente trabalho, sob a orientação segura
do Prof. Dr. Salo de Carvalho. A idéia era abordar uma suposta crise do processo penal desde
as novas formas de administração da justiça criminal: tomando os Juizados Especiais
Criminais como marco histórico-legal de “início” dessa análise da crise, pensaríamos como o
processo vem sendo pensado atualmente desde essas novas maneiras estatais de enfrentar os
problemas que, antes, eram de exclusividade do tradicional sistema de justiça criminal.
Partindo de um momento histórico determinado, percebemos que a raiz
epistemológica do tradicional processo penal nos remete a tempos longínquos: desde uma
reconstrução dos métodos de perseguição aos hereges capitaneados pela Igreja Católica na
idade média a a emergência do pensamento e da estruturação da ciência modernos, foi
possível notar que não bastava uma abordagem jurídica para o nosso problema de pesquisa:
uma incursão na história e, especialmente, na história das idéias – com as lições da Profa. Dra.
Ruth Maria Chittó Gauer – fez-se absolutamente necessária, a fim de demonstrarmos como se
estruturou o paradigma atual de ciência e, ainda, como poderíamos pensar o processo penal
inserido nesse contexto.
Para isto nos serviu o primeiro capítulo da dissertação, onde fizemos uma abordagem
17
histórica tanto da construção do procedimento inquisitório capitaneado pelos Tribunais da
Inquisição quanto das formas e condições que possibilitaram uma virada de eixo no
pensamento da época: em detrimento de um teocentrismo religioso, propagou-se a idéia de
um antropocentrismo laico, fundado na razão humana como diferenciador do ser humano em
relação aos demais “objetos” que o cercava.
Ao final desse capítulo, abordamos o direito como ciência (pura), para demonstrar
como essa lógica se estruturou na ciência jurídica do século XX e, em seguida, apresentamos
a teoria do garantismo penal de Ferrajoli, teoria que elegemos para servir de base para analisar
e expor o processo penal moderno como procedimento laico e desarraigado de justificativas
teológicas.
No segundo capítulo, fizemos uma abordagem das justificativas do atual processo
penal brasileiro, com a intenção de demonstrarmos que, apesar da ciência moderna estruturar
epistemologicamente o processo penal vigente, muito do que foi pensado no medievo ainda
persiste, como a pretensão de busca da verdade e a perseguição aos hereges que atentam
contra a doutrina e a cristã hoje, pode-se ler perseguição aos delinqüentes que atentam
contra a ordem.
Ainda no segundo capítulo, apresentamos sinteticamente a estruturação dos Juizados
Especiais Criminais, demonstrando como os Juizados romperam com a moderna lógica da
exclusão existente no processo, ou seja, com a lógica do sujeito-objeto, inserindo a vítima no
início de seu procedimento e viabilizando o diálogo no processo penal, o que era
absolutamente impossível no tradicional sistema de justiça criminal.
Desde a implantação dos Juizados, foi possível pensar em termos de informalização da
justiça criminal e, portanto, de possibilidades outras para além do processo penal. No
território nacional, especificamente no Estado do Rio Grande do Sul, encontramos três novas
formas de administração da justiça penal: a Justiça Terapêutica, a Justiça Restaurativa e a
Justiça Instantânea.
Um por um, esses três modelos de justiça criminal são apresentados, podendo-se
18
perceber suas premissas, suas intenções e seus discursos legitimantes, assim como a sua
viabilidade de aplicação cotidiana nos foros e tribunais. Por conta da pretensão do presente
trabalho apresentar e analisar a crise do processo penal como resultado da emergência
dessas novas formas de justiça criminal e de seus limites espaciais e temporais para a sua
concretização, não era possível um maior aprofundamento dessas justiças, sob pena de
mudança de foco e de expansão demasiada da investigação. Porém, apresentamos as mesmas
contendo o que nos pareceu imprescindível para atingirmos os nossos objetivos em relação a
essas formas alternativas: demonstrá-las como opção aplicada ao tradicional processo penal.
Por fim, no terceiro capítulo, realizamos uma análise crítica acerca das possibilidades
do processo penal no século XXI, quando apontamos os motivos da crise epistemológica da
ciência moderna e, portanto, das raízes científicas do próprio processo penal. Partindo dessa
análise, passamos a questionar se as novas formas de justiça criminal (Justiças Terapêutica,
Restaurativa e Instantânea), desde os Juizados Especiais Criminais, estão aptas a superar esse
paradigma (moderno) do tradicional sistema de justiça criminal brasileiro.
Para além de uma análise meramente conceitual, estudamos essas novas formas de
justiça criminal pensando-as desde a possibilidade de sua efetivação e, ainda, se são passíveis
de apresentar melhores resultados que o processo tradicional. Quiçá, pensamos as mesmas
como possíveis alternativas futuras ao processo penal: se o processo tradicional está em crise,
necessário que se pense em alternativas, e é isso o que moveu praticamente todo esse
trabalho: a possibilidade de pensarmos em alternativas.
E a crise do processo penal aponta, necessariamente, para novos pensamentos e novas
racionalidades. Se não foi possível produzir os efeitos desejados com a atual estrutura
processual penal, o que nos impede de pensar em alternativas? Acreditamos que uma nova
roupagem está a ser construída para o processo penal. Nada, entretanto, deverá ser colocado
em prática antes de uma longa e séria discussão com os interessados: quanto a isso,
concordamos com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
3
o é possível brincar com a
liberdade dos cidadãos.
3
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Manifesto Contra os Juizados Especiais Criminais, pp. 4-5.
19
Porém, pensamos também que não é mais possível vermos o tempo fluir e
permanecermos inertes em relação a este problema: ou pensamos em novas e concretas
alternativas ao processo penal, ou mantemos esse sistema de justiça criminal defasado,
estigmatizante e cientificamente insustentável. E essas novas formas de administração da
justiça criminal são justamente o que tentamos abordar, a fim de iniciarmos uma discussão
que, acreditamos, está apenas se iniciando.
20
1 A CIÊNCIA MODERNA E A SOLUÇÃO DE CONFLITOS PELO PROCESSO
PENAL: DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVI À CONTEMPORANEIDADE
1.1 Galileu, Newton e a Emergência do Pensamento Moderno
A ordem da racionalidade, desde o século XVI, ocupa lugar de destaque em termos
científicos: o que não pode ser racionalmente (cientificamente) explicado, perde todo seu
valor como objeto de estudo e acaba se tornando invisível para o “mundo da ciência”. De
acordo com Fritjof Capra, “Galileu foi o primeiro a combinar o conhecimento empírico com a
matemática, o que lhe confere o título de pai da ciência moderna.”
4
Por sua vez, Ruth Gauer assevera que
a revolução científica do século XVI, uma das mais importantes e profundas
revoluções do pensamento humano, esteve indissoluvelmente ligada ao nome de
Galileu Galilei. O pensamento de Galileu estruturou o pensamento moderno e
abalou o suporte do saber medieval que tinha por base o critério da e da
revelação.
5
4
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental, p. 25.
5
GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de
Coimbra, p. 101.
21
Conforme Boaventura de Sousa Santos, o modelo de racionalidade que estrutura a
ciência moderna foi construído a partir da referida revolução “e foi desenvolvido nos séculos
seguintes basicamente no domínio das ciências naturais.”
6
Trata-se do que Max Weber
chamava de “desencantamento do mundo”, ou seja, os fenômenos da natureza que antes eram
explicados pela vontade divina e tinham como porta voz a Igreja, passavam a ser explicados
por uma lógica racional. A meta cientifica era dissolver os mitos e substituir a imaginação
pelo saber. Tais fenômenos, agora, seriam previsíveis e controláveis, o que permitiria ao
homem estabelecer as “leis da natureza”.
Santos ainda assinala que a nova racionalidade científica
está consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocêntrica do movimento
dos planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas dos planetas, nas leis
de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande síntese da ordem cósmica de Newton
e, finalmente, na consciência filosófica que lhe conferem Bacon e Descartes.
7
Citando análise de Edgar Morin, Ruth Gauer descreve as duas correntes que passaram
a lidar com os novos problemas emergentes do conhecimento: a primeira, conhecida por
racionalista e idealizada por René Descartes, limitava o homem à sua razão; e a segunda,
capitaneada por Francis Bacon,
8
chamada de empirista, limitava-o ao âmbito do sensível.
9
De
acordo com Franklin Baumer,
este dualismo, um triunfo da simplificação, permitia aos cientistas prosseguir as suas
investigações sem outras grandes preocupações com a teologia e a metafísica.
Embora tenha criado alguns problemas filosóficos e epistemológicos espantosos, o
dualismo forneceu a estrutura conceptual para um progresso espetacular das
ciências.
10
6
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência, p. 60.
7
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p. 61.
8
“(...) Bacon (1561-1626) foi um dos primeiros a tentar articular o método da ciência moderna, propondo – já no
século XVII -, que a meta da ciência é o melhoramento da vida do homem na terra, via indutivismo.” (ROSA,
Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes, p. 55)
9
GAUER, Ruth. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra, p. 105.
10
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vol. I, p. 69.
22
Aos poucos a racionalidade científica foi ganhando um grau de legitimidade extremo
e, portanto, barreiras morais e éticas não poderiam servir de empecilho à construção do
conhecimento. Sua fonte de legitimidade passava à realização eficiente do fim a que se
propunha. Sendo a natureza um objeto do conhecimento científico, poderia ser utilizada como
instrumento para a melhora da vida humana no mundo. Ao invés da contemplação,
11
importava a partir de então a intervenção e a domesticação da natureza para melhorar as
condições de vida. Refere Salo de Carvalho que
a racionalidade científica da modernidade postulou, desde seu nascedouro, através
do controle da natureza, a criação de mecanismos capazes de gerar felicidade aos
homens. O projeto da modernidade é centrado nesta busca do gozo constante e na
satisfação ilimitada dos desejos, como se a possibilidade de supressão da falta
gerasse (ou fosse sinônimo de) felicidade.
12
Dessa forma, é possível afirmar que
a concepção de ciência moderna ligava a investigação das forças da natureza à
utilidade das mesmas para beneficiar a humanidade; a ciência deixava de ser serva
da teologia. Nesse sentido, a contemplação formal e finalista foi substituída por um
saber que produzia uma técnica capaz de auxiliar o homem. As inovações científicas
foram a expressão do esfacelamento do mundo feudal. O racionalismo, poder
exclusivo da razão de discernir, distinguir e comparar, substituiu o dogmatismo
medieval, assumindo uma atitude crítica e polêmica perante a tradição. O
antropocentrismo eliminou o pensamento teocêntrico, possibilitando ao homem
moderno colocar-se a si próprio no centro alterando, assim, a visão de mundo.
13
Desde que Descartes começou a questionar as formas de ver o mundo impostas pela
Igreja Católica (fruto da oficialização da religião católica pelo Estado
14
por volta do século
IV
15
), o mundo não é mais o que era antes: questionando se o homem não poderia pensar o
mundo e se pensar no mundo sem a influência das interpretações eclesiásticas das sagradas
escrituras, realizadas pela mais alta cúpula da Igreja Católica, o filósofo francês deu impulso a
11
Sobre o tema, conferir MAFFESOLI, Michel. A Contemplação do Mundo.
12
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, pp. 311 e 312, respectivamente.
13
GAUER, Ruth. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra, p. 102.
14
Note-se que o termo Estado, aqui, não deve ser conceituado da mesma forma como o é hoje, em virtude da
separação temporal de mais de quinze séculos entre os séculos IV e XXI.
15
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Direito Penal Brasileiro – I, pp. 169-173.
23
uma nova visão de mundo para os humanos.
16
O pensamento moderno, como já foi
mencionado, foi construído sob uma lógica de dominação que possui como fundamento o
esclarecimento, o conhecimento e a razão em detrimento da ilusão, dos mitos, da e da
crença religiosas, da metafísica, produzidos fundamentalmente pelos católicos.
Conforme ensina Norbert Elias,
uma das precondições de Descartes foi um certo afrouxamento, uma perda de poder
por parte das instituições sociais que tinham sido guardiãs dessa tradição intelectual.
Seu pensamento reflete a crescente conscientização, em sua época, de que as pessoas
eram capazes de decifrar os fenômenos naturais e dar-lhes uma utilização prática
simplesmente com base em sua própria observação e pensamento, sem invocar
autoridades eclesiásticas ou vetustas.
17
Antes da revelação cartesiana,
18
o universo medieval era finito, esférico e hierarquizado; esse universo morreu, e,
com ele, a ‘consciência’ medieval de um ‘mundo fechado’. A ruptura criada por
Galileu contrapôs-se a esse mundo; sua teoria criou um universo ‘infinito’ e,
portanto, ‘aberto’. A dimensão religiosa do saber medieval foi quebrada. Na ‘nova’
visão, houve a separação entre razão e fé; a verdade reveladora o podia mais ser
confundida com a ciência. O ‘finito’, ao ser substituído pelo ‘infinito’, subverteu a
ordem de se pensar o mundo. O homem vive em um mundo onde eleo é o centro,
o céu abriga inúmeros mundos, e o lugar do homem no mundo passou a ser
questionado. Os espaços sagrados passaram também a ser questionados. A
geometria de Galileu eliminou os espaços heterogêneos (céu-inferno) e criou
espaços homogêneos, despojados de qualidades e passíveis de serem quantificados,
mensurados, enquanto uma nova geometria espacial. Podemos arriscar dizer que
Galileu criou a gênese do espaço democrático, uma vez que para ele todos os
espaços se equivalem.
19
De acordo com a visão de Galileu, a natureza continuava a ser pictórica, mas era
agora descrita, de modo crescente, não como um organismo, mas como uma máquina ou um
relógio, que prendeu a imaginação européia durante os duzentos anos seguintes,”
20
afirma
16
Na esteira de Ruth GAUER, vale referir que “a obra de Descartes é aqui lembrada, pois foi incentivadora da
criação de um sujeito racional, pensante, consciente, o centro do conhecimento, o chamado sujeito cartesiano.”
(In O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, pp. 139-140).
17
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos, p. 84.
18
Expressão utilizada por Fritjof CAPRA, em O Ponto de Mutação, especialmente nas pp. 52-56.
19
GAUER, Ruth. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra, pp. 105-
106.
20
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vol. I, p. 67.
24
Baumer. É a partir dessa concepção que se tornaria possível estabelecer as leis da natureza e,
portanto, prever os acontecimentos e controlá-los. Se havia uma racionalidade e uma lógica
no mundo que poderia ser conhecida pelo homem, não haveria problema em decifrá-la através
de um método rígido.
Um determinismo rigoroso consolidou-se na visão que se tinha do mundo, e tudo era
passível de explicação através da noção de causa-e-efeito: “Tudo o que acontecia possuía uma
causa definida e gerava um efeito definido: o futuro de qualquer parte do sistema poderia
em princípio ser previsto com absoluta certeza se se conhecesse em todos os detalhes seu
estado em determinada ocasião.”
21
A base filosófica originou-se a partir da divisão entre res
cogitans e res extensa, realizada por Descartes: acreditava-se ser possível explicar o mundo
sem qualquer influência do observador humano, de forma objetiva e universal.
22
A natureza, em sendo separada do ser humano, pois observável, explicável e passível
de intervenção/dominação,
é tão-só extensão e movimento; é passiva,
23
eterna e reversível, mecanismo cujos
elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; o tem
qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus
mistérios, desvendamento que o é contemplativo, mas antes activo, já que visa
conhecer a natureza para a dominar e controlar.
24
As leis da física, conforme Ilya Prigogine, não pretendiam negar o devir em nome do
ser. Porém, constituem-se em um triunfo do ser sobre o devir e o exemplo por excelência
seria a lei de Newton:
se conhecemos as condições iniciais de um sistema submetido a essa lei, ou seja, seu
estado num instante qualquer, podemos calcular todos os estados seguintes, bem
como todos os estados precedentes. Mais ainda, passado e futuro desempenham o
mesmo papel, pois a lei é invariante em relação à inversão dos tempos t- -t. A lei de
21
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p. 50.
22
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p. 50.
23
Vale fazer referência ao que traz Ilya Prigogine, quando salienta que “a concepção de uma natureza passiva,
submetida a leis deterministas, é uma especificidade do ocidente. Na China e no Japão, ‘natureza’ significa o
que existe por si mesmo’. Joseph Needham lembrou-nos a ironia com a qual os letrados chineses receberam a
exposição dos triunfos da ciência moderna.” (PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: tempo, caos e as leis da
natureza, p. 20.)
24
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p. 62.
25
Newton justifica bem, portanto, o famoso demônio de Laplace, capaz de observar o
estado presente do universo e de dele deduzir toda a evolução futura.
25
De acordo com Rodrigo Moretto, para a ciência clássica, “as leis da natureza
mostravam-se reversíveis no tempo e deterministas, ou seja, se conhecida a condição inicial
(P
0
, T
0
) de um sistema regido por tais leis, poder-se-ia calcular todas as posições subseqüentes
(P
1
, T
1
), bem como todas as antecedentes (P
-1
, T
-1
).”
26
O tempo, então, aparentava não
importar, levando a crer que passado e futuro se repetiriam infinitamente e
independentemente do sujeito e do lugar em que se estivesse: estaríamos
defronte a um mundo sem novidades, pois tudo está programado, uma vez que,
conhecidas as condições iniciais, saberemos a condição futura, se é que podemos
tratar de passado e futuro quando ambos têm o mesmo papel. Quer se dizer com isso
que teríamos um universo estático, sem criação e previamente montado, onde a
natureza e o homem em nada influenciariam, pois, se podemos saber o futuro
conhecendo o presente, para esse se mostrar não pode sofrer perturbações.
27
Essa cosmovisão mecanicista foi defendida por Isaac Newton, “que elaborou sua
Mecânica a partir de tais fundamentos, tornando-a o alicerce da Física clássica. Da segunda
metade do século XVII até o fim do século XIX, o modelo mecanicista newtoniano do
universo dominou todo o pensamento científico.”
28
Assim,
a configuração moderna dos valores subordinou o homem a novas regras, por
exemplo, o uso do relógio, que estava vinculado ao mundo público e produtivo das
cidades. Os valores como uma construção do pensamento, a precisão das máquinas,
resultado da aplicação da ciência à indústria como uma supremacia da teoria sobre a
técnica mudaram a relação entre o homem e a natureza.
29
Para Santos,
25
PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: tempo, caos e as leis da natureza, p. 19.
26
MORETTO, Rodrigo. Crítica Interdisciplinar da Pena de Prisão: controle do espaço na sociedade do tempo,
p. 3.
27
MORETTO, Rodrigo. Crítica Interdisciplinar da Pena de Prisão: controle do espaço na sociedade do tempo,
p. 4.
28
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p. 25.
29
GAUER, Ruth. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra, p. 108.
26
um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico
a ideia de ordem e estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no
futuro. Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas
operações se podem determinar exactamente por meio de leis físicas e matemáticas,
um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o
racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da decomposição nos elementos
que o constituem.
30
Tal forma de conhecimento seria mais reconhecida por sua capacidade dominadora e
transfomadora do que por sua capacidade de profunda compreensão do real.
31
Toda essa construção do pensamento e do conhecimento moderno (re)instaurou uma
concepção de busca pela verdade de todas as coisas (já presente no período medieval) que,
desde então, domina a prática científica do mundo ocidental, excluindo quaisquer outras
formas de saber não racional e espalhando-se por todos os campos do conhecimento. Vale
citar novamente Ruth Gauer, para quem “a vinculação do conhecimento ao modelo galilaico-
newtoniano e a consideração da ciência como campo privilegiado para a revelação da verdade
fundam a matriz de conhecimento mais relevante da tradição ocidental moderna.”
32
Ao desencantar o mundo e despi-lo dos mitos que o configuravam, a ciência atribuiu a
si o local privilegiado de revelação da verdade e ao fazer isso se mitificou. Substitui um mito
por outro, a saber, de que a racionalidade científica podia dar conta e explicar todos os
fenômenos do mundo. Lembra Santos que, “sendo um modelo global, a nova racionalidade
científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas
as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas
suas regras metodológicas.”
33
Corroborando o totalitarismo da unidade metodológica, Scarlett Marton é incisiva:
“Além de explicação dos fenômenos, pretende ser interpretação do mundo. E mais: a única
interpretação verdadeira do mundo. Diante dela, tudo deve ser relegado a um segundo plano,
posto que não existe nada tão necessário quanto a verdade.”
34
Conforme Ricardo Timm de
30
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p. 64.
31
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p. 64.
32
GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração (mito, verdade e tempo), p. 1.
33
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p. 61.
34
MARTON, Scarlett. Nietzsche: uma filosofia a marteladas, p. 49.
27
Souza, “o ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo,
especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo mais especialmente
outras formas de racionalidade – é sacrificado.”
35
O direito, por sua vez, operando dentro da mesma concepção cientificista e, para além
disso, mantendo a mesma lógica que movia o processo inquisitorial do medievo conforme
se verá adiante com a única diferença que, agora, havia uma justificativa racional para a
realização do objetivo fundamental do instrumento, consagrou o processo penal, através de
todos os seus métodos, como local privilegiado de revelação da verdade de um fato-crime
pretérito, que não poderia ficar de fora desta nova cosmovisão: com o processo de codificação
e a conseqüente simplificação dos fenômenos sociais, nada mais poderia escapar ao projeto
unificador e de coerência e completude da “ciência jurídica”: uma absoluta previsão dos fatos
sociais; auto-complementação da legislação, sem precisar do apoio de nada “estranho” ao
corpo jurídico normativo; extrema coerência interna; capacidade para solucionar os conflitos e
litígios sociais a partir de si mesmo e das soluções propostas na legislação; etc.
36
E é neste mundo que estamos contextualizados: o cientificismo moderno e a ciência
jurídica deixando de dialogar com a incerteza e com o reino profano da desagregação. Se a
totalidade
37
é, também, o que sacraliza o direito, é possível dizer que desde sua capitulação
moderna isso foi potencializado: nada mais importa(va), a não ser a própria norma e seus
mandamentos, o que resultou na constituição de uma suposta ciência que basta(va) por si
própria, independente de tudo o que poderia vir a lhe dar suporte. Qualquer elemento que
estivesse fora dos pressupostos da racionalidade científica não tem (tinha) validade.
A transposição irrestrita dos conhecimentos e da metodologia das ciências naturais
para a ciência do direito a condicionou e estabeleceu tetos epistemológicos de significação e
produção de sentido. Assim, a ciência jurídica passou a trabalhar numa concepção
racionalista, mecanicista e meramente instrumental, ou seja, desvinculada de quaisquer outros
35
SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como Fundamento: uma introdução à ética contemporânea, p. 34.
36
Citamos como exemplo o artigo da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42), que
dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios
gerais de direito.”
37
As palavras totalidade e desagregação foram parafraseadas do trabalho de Ricardo Timm de SOUZA,
intitulado Totalidade e Desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas.
28
fins que pudessem atrapalhar o progresso do conhecimento jurídico e, dentro do nosso tema,
de elucidação da verdade no processo penal. O direito funciona(va) da mesma forma que a
ciência: ele mesmo é a sua própria fonte de legitimação.
1.2 Da Continuidade do Projeto Científico Medieval: a constituição do processo
penal brasileiro a partir do sistema inquisitorial
Importante mencionar que a constituição do moderno processo penal não ocorreu por
acaso: toda uma história por trás do atual Código de Processo Penal brasileiro, vigente
desde 1941. Uma pequena recordação histórica, por mais incompleta e complicada de ser
realizada, faz-se necessária para que se possa perceber a forma como o processo penal
utilizado no país foi estruturado a partir de categorias medievais mescladas com justificativas
científicas modernas, desde o marco positivista.
Inicialmente, importante salientar que não pretendemos expor cronologicamente os
fatos marcantes da Idade Média para tentar explicar e entender o surgimento do processo
penal: antes tentaremos perceber as condições que proporcionaram sua emergência.
Vale justificar esse pequeno resgate histórico com Paolo Grossi, para quem
um dos papéis, e certamente não o último, do historiador do direito junto ao
operador do direito positivo seja o de servir como sua consciência crítica, revelando
como complexo o que na sua visão unilinear poderia parecer simples, rompendo as
suas convicções acríticas, relativizando certezas consideradas absolutas, insinuando
dúvidas sobre lugares comuns recebidos sem uma adequada confirmação cultural.
38
38
GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade, p. 11.
29
Pelas palavras de Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar, “não convém cair em um
reducionismo, mas urge uma contextualização geral do processo que desembocou neste corte
de onde surgiu o sistema penal tal como é concebido na atualidade.”
39
Citando Foucault, pode-se dizer que o que foi inventado no direito por volta do final
do século XII e início do XIII “foi uma determinada maneira de saber, uma condição de
possibilidade de saber (...). Esta modalidade de saber é o inquérito que apareceu pela primeira
vez na Grécia e ficou encoberto depois da queda do Império Romano durante vários
séculos.”
40
Necessário fazer a ressalva de que o processo não foi produzido para o fim que possui
hoje, nem foi fruto de uma “evolução racional”, como refere Foucault: transformou-se ao
longo da história, adequando-se às necessidades políticas e sociais de sua época, vindo a se
configurar no que hoje conhecemos como “busca da verdade real de um fato delituoso”.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho refere que o sistema inquisitório tem suas raízes
“na velha Roma, mormente no período da decadência, e alguns traços em outras legislações
antigas.” Porém, na forma que o conhecemos hoje, nasceu no seio da Igreja Católica, como
forma de defesa do desenvolvimento de “doutrinas heréticas”.
41
A partir do final do Império Romano, as populações aglomeram-se nos feudos,
geralmente estabelecidos nas montanhas (como forma de proteção natural, somando-se à
arquitetura medieval). A vida medieval, portanto, girava em torno do feudo, com seus
suseranos, vassalos, cavaleiros e clérigos (esses últimos podem ser considerados “produtores”
do conhecimento à época, por impedir à população em geral o acesso aos meios de
informação).
42
39
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro – I, p. 385.
40
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 62-63.
41
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, p. 18.
42
COUTINHO, Jacinto. O Papel do Novo Juiz..., p. 19.
30
Com o domínio dos bárbaros
43
e a redescoberta do direito romano,
44
o sistema
processual penal manteve sua base nos Iudicium Dei, sobretudo nas fórmulas do juramento,
do duelo e das ordálias, cada uma delas para determinadas parcelas da população.
45
O cenário começa a mudar, aproximadamente, a partir do ano 1000, quando aumentam
as caravanas de mercadores, freqüentemente comandadas por hebreus e árabes (e, portanto,
não-cristãos), cada vez mais aparelhadas belicosamente; começam a aparecer os entrepostos
comerciais e, de conseqüência, as cidades, os burgos.
46
E as mudanças nas relações
comerciais e de trabalho que ocorrem no século XIII trazem novos ingredientes à vida social,
revelando novas formas de convivência.
47
Os burgueses começam a adquirir significativo
potencial econômico, trazendo para o seu redor uma população que antes vivia de favores da
Igreja, próxima a mosteiros, o que configurou um ambiente nada interessante para os clérigos.
Tratava-se de una época de crisis, de decadencia, de asentamientos de pueblos por la
violéncia y de choque de culturas”,
48
refere Umberto Eco.
A partir daí, compreende-se em parte alguns motivos da edição, em 1199, da “bula
Vergentis in senium, do Papa Inocêncio III, que prepara o terreno da repressão canônica com a
equiparação das ‘heresias’ aos crimes de lesa-majestade.”
49
Segundo Foucault,
a partir do momento em que o inquérito se introduz na prática judiciária, traz
consigo a importante noção de infração. Quando um indivíduo, causa dano a um
43
Para outros detalhes, conferir também GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu Mundo, pp. 92-99.
44
“Vinculado à lei, o jurista da res publica christiana encontrará na glosa o instrumento que reduz a invenção
jurídica à simples restauração do texto e na dialética uma técnica para compatibilizar oposições; (...). A
redescoberta, no final do século XI, do direito romano justiniâneo (...) significou a invenção de um tesouro, de
um estoque infinito de regras e prescrições com aspiração a uma racionalidade e a uma exclusividade de sentido
intemporais. De fato, os juristas que protagonizaram a chamada recepção viam na compilação justiniânea não as
leis romano-bizantinas catalogadas no século VI, mas a encarnação de uma razão jurídica também inquestionável
e eterna, e essa mística cujo paradigma estava no tratamento deferido à Bíblia, aos Cânones conciliares e,
depois da reforma gregoriana, aos documentos pontifícios convertia seu ofício, como disse Berman, numa
‘teologia secular’. (...) Tal patrimônio normativo [mais tarde chamado de Corpus Iuris Civilis] vê-se
metodologicamente apropriado pelo dogmatismo legal, que naquela conjuntura é quase uma religião do texto
jurídico, ameaçada por qualquer movimento que possa ultrapassar a esterilidade minuciosa do distinguo ou
mesmo pelo costume. (...) O dogmatismo legal inaugurava lapidarmente sua aversão ao direito produzido pelas
práticas sociais, à diversidade jurídica.” (BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Direito Penal Brasileiro I, pp.
166-167.)
45
COUTINHO, Jacinto. O Papel do Novo Juiz...l, pp. 19-20. Conferir também FOUCAULT, Michel. A Verdade
e as Formas Jurídicas, pp.59-62.
46
COUTINHO, Jacinto. O Papel do Novo Juiz..., pp. 20-21.
47
In O Papel do Novo Juiz..., pp. 21-23.
48
ECO, Umberto. La Edad Media ha comenzado ya, p. 13.
49
COUTINHO, Jacinto. O Papel do Novo Juiz..., p. 21.
31
outro, sempre, a fortiori, dano à soberania, à lei, ao poder. Por outro lado, devido
a todas as implicações e conotações religiosas do inquérito, o dano será uma falta
moral, quase religiosa ou com conotação religiosa. Tem-se assim, por volta do
século XII, uma curiosa conjunção entre a lesão à lei e a falta religiosa.
50
O IV Concílio de Latrão, em 1215,
faz a sua opção (o pano de fundo era a manutenção do poder); e o novo sistema
paulatinamente assume sua fachada, constituindo-se os Tribunais da Inquisição, com
base efetivamente jurídica, pela Constitutio Excomuniamus (1231), do Papa
Gregório IX, para consolidar-se com a Bula Ad extirpanda, de Inocêncio IV, em
1252.
51
Em 1259 e 1265, esta última bula foi reeditada pelos Papas Alexandre IV e Clemente
IV, respectivamente, tendo este último realizado modificações no texto, acrescentando a
palavra “inquisidores” onde o original de Inocêncio mencionava bispos ou monges, atribuindo
maior autonomia à Igreja e resolvendo conflitos de jurisdição.
52
Mais especificamente ao modo como se realizava o procedimento, havia uma prática
na Igreja da Alta Idade Média, nas igrejas Merovíngia e Carolíngia: a visitatio, realizada
estatutariamente pelo bispo, quando percorria sua diocese: ao chegar aos locais, realizava a
inquisitio generalis, que consistia em colher dados gerais acerca do que ocorrera na sua
ausência e que pudesse confirmar práticas delituosas;
53
a seguir, tendo obtido uma resposta
positiva, o bispo realizava a inquisitio specialis, “que consistia em apurar quem tinha feito o
que, em determinar em verdade quem era o autor e qual a natureza do ato.
54
Esse todo
apresenta-se como uma espécie de instrumentalização do procedimento que viria a ser
utilizado pela Igreja a partir do século XIII com os referidos Tribunais da Inquisição.
De acordo com Batista,
50
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 73-74.
51
COUTINHO, Jacinto. O Papel do Novo Juiz..., pp. 21-22.
52
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 247.
53
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p. 70; BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 234.
54
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p. 70.
32
no procedimento inquisitório, a figura do acusador está fundida com a do juiz, e o
resultado é uma grave tolerância deste juiz-acusador para com as formas
procedimentais exploradas pelo acusador-juiz. Deve-se a Inocêncio III uma apurada
regulamentação do procedimento inquisitório, cuja referência central é o IV Concílio
de Latrão, em 1215; Inocêncio IV autorizaria o uso da tortura pelos tribunais
seculares, em 1252, através da bula Ad extirpanda; menos de um lustro depois ficava
claro, em outro documento pontifício, que os inquisidores podiam presenciar a
tortura; Bonifácio VIII, em 1298, estabeleceria o procedimento sumário e secreto.
Este último provimento permitia que o nome do suspeito e das testemunhas fossem
mantidos em sigilo junto ao bispo (...), punindo com excomunhão a violação de tal
segredo; freqüentemente o defensor do réu conhecia o teor dos depoimentos, não
porém a identidade dos depoentes.
55
Esse sistema ressurge nas práticas judiciárias do medievo a partir do momento e quem
foi necessária a ampliação da malha repressiva:
a partir da necessidade de controlar conjuntamente criminalidade comum e heresia
(crime de consciência), o mecanismo permite a ampliação do rol de culpáveis,
englobando em suas tipificações qualquer oposição ao ‘saber oficial’. Estabelece-se,
pois, estrutura maximizada e onipresente de poder que não admite a existência da
alteridade, sendo qualquer manifestação identitária diversa da tolerada pelo clero
adjetivada como (delito de) heresia.
56
Citando o historiador Brian Levack, Salo de Carvalho aponta quatro circunstâncias
que propiciaram a alteração do sistema processual punitivo. A primeira seria a superação do
procedimento acusatório (Iudicium Dei), predominante na Europa continental até o século
XII: Com a ‘redescoberta’ do Direito Romano, sobretudo com a revitalização do Corpus
Iuris Civilisno século XII pela Universidade de Bolonha e a posterior inclusão das glosas, o
clero instiga a formalização e a mudança nos procedimentos.” A segunda seria a utilização da
tortura para a conquista da “verdade real”; a terceira aparece na utilização do modelo judicial
leigo para os crimes de natureza espiritual; e, por fim, a regionalização dos Tribunais, que
contribuiria para uma melhor distribuição do poder eclesiástico e conseqüente julgamento dos
hereges,
57
surge como quarta circunstância.
Sem maiores detalhes, devido à limitação do tema do presente trabalho, essa era a
forma de busca da verdade na Baixa Idade Média, (re)instituída a partir do final do século XII
55
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 234.
56
CARVALHO, Salo. Revisita à Desconstrução do Modelo Jurídico Inquisitorial, p. 7.
57
CARVALHO, Salo. Revisita à Desconstrução..., pp. 7-10.
33
e início do século XIII
58
e que viria a influenciar de forma incisiva os sistemas processuais
penais do mundo ocidental:
Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu; e conhece.
Sem embargo de sua fonte, a Igreja, é diabólico na sua estrutura (...), persistindo por
mais de 700 anos. o seria assim em o: veio com uma finalidade específica e,
porque serve – e continuará servindo, se não acordarmos – mantém-se hígido.
59
De acordo com Aury Lopes Jr.,
o que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes
e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o
acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade
de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as
atividades do juiz e acusador e o acusado perde a condição de sujeito processual e se
converte em mero objeto da investigação.
60
Conforme se percebe da leitura do Directorium Inquisitorum Manual dos
Inquisidores
61
escrito em 1376 pelo frei dominicano Nicolau Eymerich e revisto e ampliado
por Francisco de la Peña em 1578, toda a interferência divina na revelação da verdade dos
dizeres das escrituras sagradas”, era capitaneada pela Igreja Católica e os representantes da
58
CARVALHO, Salo. Pena e Garantias, p. 8.
59
COUTINHO, Jacinto. O Papel do Novo Juiz..., pp. 18-19.
60
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, p. 157.
61
A leitura desta obra mostra-se fundamental para todos que pretendam conhecer a gica do sistema
inquisitorial e os discursos de legitimação de suas práticas. Nada mais natural que o Manual tenha sido escrito
por um frei da ordem dos dominicanos (cães de Deus) quiçá no período mais crítico para o poder da Igreja
Católica. O Manual passa a imagem dessa decadência, e aparenta ser a “última cartada” da Igreja para sua
manutenção no poder. Não obstante a emergência da nova cosmovisão que começou a ser difundida a partir do
período renascentista e, a seguir, de forma “mais racional” a partir do século XVI, com Descartes (França) e
Bacon (Inglaterra), a Igreja, com sua prática inquisitorial, acabou por influenciar um sem-número de
legisladores, teólogos e juristas acerca do processo penal em todo o globo terrestre. Uma gica de perseguição
do diferente, de exclusão da alteridade, de banimento da impureza foi instaurada, e os influxos são visíveis ainda
hoje no processo penal brasileiro, quando se percebem termos vagos e imprecisos para autorizar prisões
preventivas a qualquer momento do processo e autorização legal para que o juiz possa produzir provas em nome
do “esclarecimento dos fatos” (arts. 312 e 156, respectivamente, do Código de Processo Penal brasileiro). Para
uma análise minuciosa da lógica inquisitorial, a leitura do prefácio do Manual dos Inquisidores da Editora Rosa
dos Tempos, de autoria de Leonardo Boff, mostra-se imprescindível. Tendo sido condenado pela Congregação
pela Doutrina da (substituto dos Tribunais do Santo Ofício da Inquisição), Boff esboça de forma breve e
instigante o surgimento da Inquisição e explica suas raízes, seus motivos, seus discursos legitimantes, dentre
outras informações importantes. (EYMERICH, Nicolau. Directorium Inquisitorum Manual dos Inquisidores
[escrito em 1376]. Revisto e ampliado por Francisco de la Peña em 1578. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1993).
34
vontade de Deus: os bispos e o Papa.
62
Era de suma importância que alguns poucos fossem os
responsáveis por esclarecer a vontade divina, ou então estaria instalado o caos e um
perspectivismo religioso poderia se instalar naquele momento.
63
Não foi à toa, portanto, que
“segue, recolhido na produção literária da célebre Querela das Investiduras (fim do século
XI), uma exposição concisa das qualidades do pontífice sob a rubrica: os ditos do papa
(dictatus papae).”
64
Através desse dictatus, ficava claro e estabelecido quem podia dizer o quê
e de onde vinha a interpretação correta e, portanto, a verdade.
65
Nada mais conveniente em um período de decadência da conjuntura política e
econômica da Igreja Católica: o discurso é legitimado pelos clérigos porque os próprios
clérigos dizem que quem diz a verdade são eles mesmos. Está criado o círculo vicioso e
aquele que o contestar, será considerado herege.
1.3 Da Modernização do Processo Penal: o abandono das justificativas teológicas
Embora muito se fale de uma nova postura científica a partir dos séculos XVI e XVII,
parece-nos que pouco (ou nada) mudou em sede processual penal: as categorias hoje
existentes refletem nada mais nada menos do que traços medievais travestidos de
cientificidade.
Com a laicização de determinadas práticas, pode-se dizer que o moderno direito
processual penal apropriou-se da maneira de busca da verdade como a Igreja realizava nos
períodos dos Impérios Merovíngio e Carolíngio: utiliza-se da visitatio, conforme exposto
62
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica..., p. 158.
63
“O Direito Canônico se erige, então, como a vontade de Deus revelada aos homens de boa esperança (de um
mundo melhor), cuja obediência se mostrava como um dever, uma imposição ética justificada pela origem
divina.” (ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes, p. 27)
64
LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática, p. 62.
65
Como exemplos, citamos alguns ditados: “Seu nome é único no mundo; Nenhum texto canônico existe fora de
sua autoridade; Sua sentença o deve ser reformada por ninguém e ele pode reformar a de todos; Ele não
deve ser julgado por ninguém; Ninguém pode condenar uma decisão da apostólica; A Igreja romana nunca
errou e, como atesta a escritura, jamais poderá errar; Com sua ordem e com sua autorização, é permitido aos
sujeitos acusar.” (LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor..., p. 62)
35
acima. Busca-se descobrir se houve crime (através do inquérito); na dúvida acerca da
existência ou não do delito, o Ministério Público denuncia o suspeito, para que o processo
legal, então, revele “a” verdade e aguarda que o juiz os impulsos necessários para o início
do processo penal – sempre em busca da verdade dos fatos, como quer grande parte da
doutrina nacional.
66
A justificativa predominante do processo penal no Brasil – apresentada como “o
objeto” do processo penal por alguns autores e como a “finalidade”, por outros (conforme
visto acima) não mudou essencialmente da justificativa apresentada pelos inquisidores na
Idade Média, ou seja: a busca da verdade (real). O processo continua sendo visto como um
mecanismo apto a reconstituir o passado principalmente
67
através das palavras das
testemunhas, da(s) vítima(s) e do(s) acusado(s). Os discursos ganham força e formam o que é
chamado pelo senso comum teórico
68
de “fato”, reconstituindo-o através das falas.
Exatamente como nos procedimentos utilizados pelos Tribunais da Inquisição, ainda
se praticam os atos de interrogatório, de inquirição de testemunhas, de reconstituição de fatos,
dentre outros. Para Salo de Carvalho, “na lacuna entre os projetos [medieval e moderno],
pode-se perceber que não há, necessariamente, ruptura.”
69
Por sua vez, Alexandre Morais da
Rosa refere que “as matrizes do ‘Direito Canônico’ ganharam nova embalagem, mantendo,
contudo, em seu hermetismo e multiplicidade de métodos (ditos) científicos, a censura e o
adestramento sobre o que pode e deve ser dito.”
70
O que antes era dito/revelado pelo Papa,
agora é traduzido pelos especialistas do Direito, ou pelos “juristas de ofício”,
71
como refere
66
Gilberto THUMS (Sistemas Processuais Penais, p. 195, nota de rodapé n. 98) cita alguns autores e suas
respectivas obras, em que é salientada a função da verdade real no processo penal: TOURINHO FILHO,
Fernando da Costa. Processo Penal, p. 36; TORNAGHI, Hélio Bastos. Curso de Processo Penal, p. 272;
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso Completo de Processo Penal, p. 90; ESPÍNDOLA FILHO, Eduardo. Curso de
Processo Penal Brasileiro Anotado, p. 347 e 434.
67
O termo principalmente foi o selecionado para salientar que as provas testemunhais não excluem outras de
diferentes espécies, como as documentais, por exemplo. Porém, a palavra dos envolvidos é quase sempre a prova
mais importante no processo penal.
68
A expressão é de Luiz Alberto WARAT. Conferir o primeiro capítulo da obra Introdução Geral ao Direito,
vol. I.
69
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p. 316.
70
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes, p. 32.
71
“Por possuir as ‘chaves do céu’, o Papa acomete o poder de julgamento a seus bispos, que é detentor da
‘geração da palavra divina’ e seu avalista. A artimanha se completa porque ele assume o papel do ‘Ausente’,
possuidor de qualidades plenas.” A seguir, o autor continua: “Os guardiães, os pastores, enfim, os juristas de
ofício’ logo irão cercar as possibilidades interpretativas, garantindo por suas autoridades o verdadeiro sentido do
texto, porque deles se afastar, lembre-se, é pecado. (...) O Direito, por seus especialistas, pretende possuir as
36
Rosa. Ou seja, as coisas foram modificadas para que continuassem exatamente como sempre
foram...
Mais recentemente, talvez desde a última (re)democratização do país, ainda é possível
perceber que práticas ultrapassadas estão sendo (re)afirmadas, como podemos depreender da
análise da proliferação de leis processuais penais que ampliam o poder do magistrado e do
investigador. Efetiva-se, assim, aquilo que Fauzi Hassan Choukr chamaria de processo penal
de emergência,
72
qual seja, uma instrumentalização repressiva desmesurada do processo sem
a menor preocupação com a efetividade desse incremento processual e, menos ainda, com a
observação dos direitos e garantias fundamentais dos investigados/acusados.
Percebe-se, a partir da instrumentalização repressiva do processo penal, que Grossi
tem razão ao afirmar que “simplismo e otimismo parecem ser os traços que mais caracterizam
o jurista moderno, fortalecido no seu coração pelas certezas iluministas”:
73
simplifica-se uma
situação complexa e, ancorados no aparelho jurídico penal, emerge entre os juristas (e a
população em geral) uma onda de otimismo, acreditando-se que o sistema penal possui
condições, por si (eis que é auto-justificável), de dar conta dos problemas sociais
contemporâneos.
Enquanto as justificativas de hoje se revestem de cientificidade ou de uma causa
(como o combate à criminalidade, para citar apenas um exemplo), as justificativas de outrora
se revestiam de uma justificativa teológica (a crença nas interpretações católicas do mundo,
da vida e da morte, e a manutenção da unidade de pensamento cristão) e, igualmente, de uma
causa: a perseguição aos hereges através da busca da verdade. A funcionalidade do sistema
continua a mesma, e a sua lógica permanece inalterada. O bode expiatório da vez,
chaves do céu e da produção de subjetividade, os únicos a revelar a palavra do Outro. (...) Resultado disso são os
discursos jurídicos com pretensão de plenitude, que vendem a idéia de respostas corretas e seguras, promentendo
a ilusão da segurança jurídica...”. (ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes, pp.
28 e 32-33, respectivamente)
72
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
73
GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas..., p. 15. Segue o autor: “Mas o muitos os problemas evitados, as
interrogações que não se quis pôr, assim como é muito fácil sentir-se satisfeito ao contemplar um mundo
povoado por figuras abstratas, projetadas por uma lanterna mágica muito bem manobrada.” (GROSSI, Paolo.
Mitologias Jurídicas..., p. 15.)
37
evidentemente, é o desviante.
74
A operacionalidade repressiva e a lógica inquisitiva,
75
portanto, mantêm-se intactas desde a Baixa Idade Média.
1.4 O Positivismo Jurídico de Hans Kelsen: a auto-legitimação do ordenamento e o
narcisismo jurídico (penal)
Importante perceber que, em um contexto de abandono das explicações teológicas em
favor dos postulados racionais, uma separação entre direito e moral tornava-se imprescindível
para o sucesso, para esse paradigma científico emergente, na tentativa de desvinculação total
dos antigos fundamentos, sob pena de não se efetivar nenhuma de suas pretensões. Nesse
contexto, a secularização surge como imprescindível para tanto.
Conforme as lições de Salo de Carvalho, “o termo secularização é utilizado para
definir os processos pelos quais a sociedade, a partir do século XV, produziu uma cisão entre
a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas (laicização), mais especificamente entre a
moral do clero e o modo de produção da(s) ciência(s).”
76
Explica o autor que o processo de secularização propiciou às ciências centrar suas
investigações na razão do homem, negando qualquer perspectiva ontológica de verdade,
quando se iniciou o processo que redundaria na universalização dos direitos humanos, no
século XX.
77
Para Canotilho, teria sido a secularização do direito que, substituindo a noção de
direito divino pela “natureza ou razão das coisas”, originou uma concepção laica do direito
natural, desenvolvida a seguir por Grotius, Pufendorf e Locke. O direito natural apresentar-se-
á, na história, sob três formas: cosmológico, teológico e antropológico. O avanço
secularizador seria precisamente o momento de transição e transformação do jusnaturalismo
teológico para o antropológico.
78
74
PASTANA, Débora. Cultura do Medo, p. 101.
75
Sobre o tema, conferir THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
76
CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena e Garantismo, p. 5.
77
CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena..., p. 6.
78
CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena..., pp. 6-7.
38
Nesse sentido, a ciência jurídica, como exemplo de ciência social aplicada
(eminentemente moderna), atingiu o ponto mais alto de seu auto-enclausuramento com a obra
Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, datada de 1935. Nela, o autor expõe sua teoria da
“autonomia da normatividade jurídica, na defesa de um encerramento do direito sobre si
mesmo.”
79
O direito, então, seria auto-suficiente, buscando dar segurança aos cidadãos e
baseando-se na objetividade e na previsibilidade na identificação do direito, autônomo em
relação à moral (valores) e em relação à política (poder).”
80
Produzir o direito pressupõe uma intervenção do poder. Mas, se o interferência
da política (poder) no direito, algo que se fazer para torná-lo autônomo. Diante dessa
necessidade, a construção positivista distingue poder fático de poder jurídico: o primeiro seria
aquele não constituído ou exercido em conformidade com as normas jurídicas; e o segundo, o
realizado em conformidade com normas válidas.
81
Pelas palavras do próprio Kelsen,
o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra
norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é
figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que
é, em relação a ela, a norma inferior. Na verdade parece que se poderia fundamentar
a validade de uma norma com o facto de ela ser posta por qualquer autoridade, por
um ser humano ou supra-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade
dos Dez Mandamentos com o facto de Deus, Jehova, os ter dado no Monte Sinai
(...).
82
No entanto, reconhece o autor que o questionamento do fundamento de validade de
uma norma não pode perder-se no interminável, devendo terminar em uma norma, a mais
elevada, que, como tal, “deve ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma
autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. (...) Uma tal
79
FRANCO DE SÁ, Alexandre. Metamorfoses do Poder: prolegómenos schmittianos a toda a sociedade futura,
p. 114.
80
BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart,
p. 19.
81
Conforme BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo...,pp. 21-31.
82
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, pp. 267-268.
39
norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental
(Grundnorm).”
83
A seguir, assim conclui o positivista:
A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes
a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O facto de
uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu
último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma
fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto
representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem
normativa.
84
Para Luis Fernando Barzotto, “é fácil ver, então, que o verdadeiro fundamento de
validade de uma norma não é o poder, mas outra norma. Daí o positivismo poder falar em
autoprodução do direito. O direito não é contaminado pela política na medida em que não é
produzido pelo ‘mero’ poder, mas pelo poder constituído pelo próprio direito.”
85
Com esse latente amor à Lei
86
e uma aparente ojeriza ao que lhe é estranho, o direito
passa a operar em uma lógica de auto-suficiência, de auto-produção: códigos, leis e artigos
(meros textos) como imperativos legais na aplicação do direito, resultando em pouca (ou
nenhuma) reflexão acerca do fenômeno jurídico enquanto fato social, cultural, histórico,
político, etc. Ou seja, enquanto um fenômeno essencialmente transdisciplinar. O ensino
jurídico, por sua vez, é tomado pelas rédeas da codificação e levado a transmitir apenas o
que diz a lei”, influenciando juristas de várias gerações no sentido de considerar a norma
como a Justiça em si.
Assim, temos um problema marcadamente epistemológico, pelo qual “...o importante
é sair da metodologia e do ensino como disciplina que produz embalagens educacionais”.
87
E
nesse processo de auto-enclausuramento do saber jurídico, delimitamos a nossa análise ao
83
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 269.
84
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 269.
85
BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo..., pp. 21-22.
86
Sobre o amor à Lei, conferir LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática.
87
WARAT, Luis Alberto. Sobre a Impossibilidade de Ensinar Direito: notas polêmicas para a desescolarização
do direito.
40
saber jurídico-penal, do qual nada se poderia esperar senão uma atitude narcísica
88
e,
portanto, expansiva, desde os seus operadores: o direito e o processo penal, como aparelhos
estatais de controle social, justificáveis por si mesmos e autônomos em relação ao mundo real,
seriam os mais eficientes
89
meios para se proteger a humanidade e mais: para proteger até
mesmo o seu futuro.
90
Como assevera Rosa, muitos são os
auto-intitulados cientistas do Direito que, seguindo um método empírico,
normalmente confundido com uma simples coleta de dados, observações e
conseqüentes derivações em leis universais de padrões gerais, organizados por um
procedimento lógico, determinam o que é científico juridicamente.
91
No processo penal, especificamente, o número desses cientistas jurídicos praticamente
se estende à unanimidade, restando muito poucos que admitem a fragilidade epistemológica
88
Sobre o narcisismo do direito e, em especial, do direito penal, conferir CARVALHO, Salo de. A Ferida
Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade
contemporânea).
89
Importante mencionar a diferenciação entre eficiência e efetividade, realizada por Jacinto Coutinho (In:
Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais, pp. 145-146): enquanto
a primeira está ligada aos meios utilizados para alcançar o resultado desejado, a segunda vincula-se aos fins
visados. Para Gilberto Thums, “sustenta o professor Jacinto que a eficiência, aliada ao tempo, pode ser sinônimo
de exclusão de direitos ou garantias. Esta observação é precisa, visto que os recentes movimentos nos Estados
Unidos encaminham-se para, em nome da pseudo-eficiência no combate ao terrorismo, suprimir direitos e
garantias individuais. (THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais, p. 43) Nesse sentido, o Patriot Act,
editado logo em seguida aos ataques de 11 de setembro de 2001 e, mais recentemente, o Military Comission Act,
são exemplares, uma vez que, neste último, o procedimento secreto e até a tortura são autorizados para a
malfadada busca da verdade. Sempre em nome da segurança da nação, para o bem da pátria...
90
Na esteira de Salo de Carvalho, lembramos Jorge de Figueiredo Dias, que pode ser considerado o carro-chefe
dessa ode ao direito penal, quando menciona que se cabe ao direito penal proteger os principais bens jurídicos
da humanidade, como poderia eximir-se do enfrentamento de (possíveis) ações que colocam em risco o seu
futuro? Como deixaria de atuar em situações limite que ameaçam as gerações vindouras?” (In: O direito penal
entre a ‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade do risco’, p. 58. Apud CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcísica
do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea),
p. 200). Vale citar a crítica de Carvalho: “... a potência da fala tende a cegar o prolator, impedindo-o de perceber
suas limitações e sua real capacidade de ação. O sonho narcísico de resolução das grandes questões da
civilização, tutelando a Humanidade de sua própria extinção, ao mesmo tempo em que entorpece o pensamento
jurídico-penal, ofusca a realidade, fornecendo elementos irreais para anamnese e, conseqüentemente, prognose.
(...) Uma dupla falência na criticada sistemática do direito penal é gerada. À ineficácia desnudada pelas ciências
sociais do controle penal nas demandas relativas aos direitos liberais e sociais é agregada uma nova expectativa
(tutela dos direitos transindividuais). O resultado parece anunciado: inefetividade operacional decorrente da falta
de novos mecanismos para enfrentar novos problemas. Todavia, a narcose retórica impede o dar-se conta do
problema, criando outra crise, desta vez na própria estrutura genealógica do direito penal liberal, pois, ao ser
flexibilizada para alcançar os novos fins, acaba por aumentar a ineficácia primeira. Neste quadro, o discurso
penal fica perdido, estagnado em uma crise circular.” (In: A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras
observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea), p. 200)
91
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal..., pp. 54-55.
41
desse (in)falível método. Daí que se aceitam os resultados dos processos penais como
verdades absolutas, “como se fossem a emanação daquilo que efetivamente ocorreu no
mundo da vida, por ser o resultado de um método (dito) científico, trazendo o selo de
qualidade: cientificamente comprovado.
92
Nada além, portanto, do que se poderia esperar: aos narcisistas do Direito, deverá
corresponder um narcisismo científico-jurídico cuja legitimação não exige maiores desgastes
argumentativos: a ‘completude’, a ‘unidade’ e a ‘coerência’
93
do ordenamento jurídico bastam
por si só, e explicam a inabalável crença que se mantém na sistemática do processo penal. Tal
instrumento, apesar de possuir cientificidade duvidosa, continua com a credibilidade intacta
nos tribunais e em grande parte da doutrina, conforme se verá adiante.
1.5 A Solução de Conflitos na Contemporaneidade: o processo penal moderno
Nesse contexto de pureza jurídica e soberba do direito para o enfrentamento dos
problemas, o processo penal é apresentado como a fórmula mágica para a solução dos
conflitos criminalizados na contemporaneidade. Através de seu arcabouço teórico
cientificamente legitimado, juntamente à sustentação científica da ciência (pura) do direito
como um todo, o processo penal assume o seu lugar de destaque e habilita-se como meio
eficiente para a reconstrução de um evento pretérito, a atribuição de culpas no presente e a
determinação de uma pena a ser cumprida no futuro.
A Teoria do Garantismo Penal, de Luigi Ferrajoli, que elegemos como teoria de base
para a presente análise, servirá para demonstrar como o processo penal foi pensado e
estruturado desde as raízes científicas que legitimam e fundam o arcabouço teórico da
modernidade. Não obstante a sua importância jurídica, consideramos tal teoria o mais
próximo possível de um processo penal laico, com fundamentação científico-moderna, o que
nos levou a apresentá-la neste momento.
92
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal..., p. 54.
93
Conferir BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, pp. 37-70, 71-114, e 115-160.
42
Em um ambiente onde o indivíduo é pensado acima de tudo, nada mais lógico do que
inverter a lógica do processo inquisitorial de proteção divina para se estabelecer a lógica da
proteção individual. A inversão que a secularização propõe é visível inclusive no moderno
processo penal, uma vez que deixa-se de lado a busca de uma verdade para se buscar a
proteção do indivíduo face ao poder punitivo estatal, conforme se verá a seguir. O perigo, no
entanto, é deixar-se tal estrutura à mercê de uma pureza metodológica, como queria o
positivismo jurídico.
1.5.1 A Função Protetiva do Processo Penal
Pelas palavras de Alberto Binder,
em um Estado de Direito, o julgamento de uma pessoa, em conseqüência do qual ela
pode perder sua liberdade, às vezes pelo resto de sua vida, está regulado por um
conjunto de princípios historicamente configurados e que têm como finalidade
proteger os cidadãos das arbitrariedades cometidas ao longo da história por esse
poder de encarcerar os concidadãos que se reconhece ao Estado (...).
94
Aury Lopes Jr., por sua vez, salienta que
a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com
uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias
individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta
no processo penal, pois trata-se de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal, à
pena, às garantias constitucionais e aos fins políticos e sociais do processo.
95
E, conforme Luigi Ferrajoli, “el proceso, como la pena, se justifica precisamente en
cuanto técnica de minimización de la reacción social frente al delito: de minimización de la
94
BINDER, Alberto. O Descumprimento das Formas Processuais, p. 41.
95
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, p. 10.
43
violencia, pero también del arbitrio que de otro modo se produciría con formas aun más
salvajes y desenfrenadas.”
96
No sentido dos três autores acima, nota-se que o processo penal teria uma finalidade
protetiva dos acusados da prática de delitos, que não podem ser penalizados antes de serem
processados. Não seria possível, portanto, efetivar-se a punibilidade de um acusado sem que,
prévia e formalmente, tenha sido ele levado a julgamento. E mais: tal julgamento não pode ser
realizado sem a observância dos instrumentos de proteção dos acusados traduzindo: dos
direitos e das garantias individuais, que, no caso brasileiro, podem ser encontradas na
Constituição da República.
No entanto, embora o CPP brasileiro deva ser, necessariamente, compatibilizado com
a Constituição,
97
o que se percebe, na prática, é não um absoluto desrespeito pela
Constituição por parte das regras do CPP, como também uma total não aplicação das regras
constitucionais por parte dos juízes (em primeiro e em segundo graus, e também nos
Tribunais Políticos).
1.5.2 A Teoria do Garantismo Penal
De acordo com Salo de Carvalho,
A teoria do garantismo penal, antes de mais nada, propõe-se a estabelecer
critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando
qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a ‘defesa social’
acima dos direitos e garantias individuais. Percebido dessa forma, o modelo
garantista permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à tutela
dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados.
98
96
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 604.
97
Caso contrário, poderá ocorrer a declaração de inconstitucionalidade tanto por parte do Supremo Tribunal
Federal, quando por parte de qualquer juiz que tenha sido provocado para se manifestar a respeito
tecnicamente, trata-se das declarações coletiva e difusa de insconstitucionalidade.
98
CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena e Garantismo, p. 19.
44
Entende o autor que se trata de um elogio ao direito, uma vez que ele se apresenta
como a única forma de conter a irracionalidade da vingança pública ou privada, revelando-se
necessariamente como a lei do mais fraco, que no momento do crime é a parte ofendida, no
momento do processo é o réu, e no momento da execução penal é o condenado.”
99
A teoria do garantismo penal mostra-se, pois, como um esquema tipológico baseado
no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, limitando o
poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública
ou privada.”
100
Segundo o pai do moderno garantismo penal, o italiano Luigi Ferrajoli,
los axiomas garantistas (...) no expresan proposiciones asertivas, sino proposiciones
prescritivas; no describem lo que ocurre, sino que prescriben lo que debe ocurrir; no
enuncian las condiciones que un sistema penal efectivamente satisface, sino las que
debe satisfacer en adhesión a sus principios normativos internos y/o a parámetros de
justificación externa.
101
Trata-se, por outras palavras, de implicações deônticas, normativas ou de dever ser,
cuya conjunción en los distintos sistemas que aquí se axiomatizáran da vida a
modelos a su vez deónticos, normativos o axiológicos. La adopción de estos
modelos, comenzando por el garantista en máximo grado, supone, pues, una opción
ético-política en favor de los valores normativamente tutelados por ellos.
102
Cada uma das implicações deônticas ou princípios caracteriza, assim, uma
condição sem a qual é proibido castigar. As garantias no direito penal têm, especificamente, a
função de condicionar ou vincular e, portanto, deslegitimar o exercício autoritário do poder
punitivo estatal.
103
99
FERRAJOLI, Luigi. La pena in una Società Democratica, p. 529. Apud: CARVALHO, Salo. Pena e
Garantias, p. 97; e Aplicação da Pena e Garantismo, p. 20.
100
CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena..., p. 21.
101
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 92.
102
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 92.
103
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 92.
45
Distinguindo os requisitos penais (delito, lei, necessidade, ofensa, ação e
culpabilidade) dos requisitos processuais (juízo, acusação, prova e defesa), Ferrajoli explica
que os princípios que dos primeiros se extraem se chamarão garantias penais (ou formais),
enquanto que os extraídos dos segundos, garantias processuais (ou instrumentais).
104
Ao expor tais requisitos, o professor da Universidade de Roma Trè chamará de
garantista, cognitivo ou de estrita legalidade ao sistema penal que incluir todos os axiomas.
Adverte o autor, ainda, que se trata de “un modelo límite, sólo tendencial y nunca
perfectamente satisfacible”.
105
O sistema garantista (SG) criado por Ferrajoli conterá, então, uma tábua axiomática
seguindo a tradição escolástica, com as seguintes máximas latinas: nulla poena sine crimine;
nullum crimen sine lege; nulla lex (poenalis) sine necessitate; nulla necesssitas sine iniuria;
nulla iniuria sine actione; nulla actio sine culpa; nulla culpa sine iudicio; nullum iudicium
sine accusatione; nulla acusatio sine probatione; e nulla probatio sine defensione.
106
Refere Ferrajoli, ainda, que os dez princípios acima
foram elaborados sobretudo pelo pensamento iusnaturalista dos séculos XVII e
XVIII, que os concebeu como princípios políticos, morais ou naturais de limitação
do poder penal ‘absoluto’. E têm sido posteriormente incorporados, mais ou menos
íntegra e rigorosamente, às constituições e codificações dos ordenamentos
desenvolvidos, convertendo-se assim em princípios jurídicos do moderno estado de
direito.
107
As seis primeiras constituirão os princípios penais e, as quatro últimas, os princípios
processuais. Trataremos, fundamentalmente, das garantias processuais, uma vez que o objeto
do presente trabalho é o processo penal. Não se pode deixar de salientar, no entanto, que a
correlação entre os dois tipos de garantias para a solidificação de um modelo garantista é
fundamental, ou seja: a vinculação direta entre um modelo de direito penal mínimo e um
104
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, pp. 92-93.
105
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 93.
106
CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena..., p. 26.
107
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 93. (Tradução livre)
46
processo penal garantista é imprescindível para a solidificação de um modelo democrático de
direito e processo penal.
1.5.2.1 A vigência e a validade das normas: novo paradigma de legitimação
normativa
Não se pode deixar de mencionar o diferencial que Ferrajoli traz quando atribui ao
princípio da legalidade uma nova forma (mera legalidad e estricta legalidad),
108
atribuindo a
esse princípio a proteção dos direitos fundamentais como sua principal função.
Estabelecendo um contraponto ao modelo juspositivista clássico quando a simples
observância dos procedimentos formais era suficiente para a sua validade o modelo
garantista, representado pelo que o próprio Ferrajoli denomina de Estado Constitucional
Democrático de Direito,
109
apresenta uma nova racionalidade de admissão das normas,
fundando um novo paradigma.
Assim, torna-se necessária uma nova teoria que submeta o conteúdo substancial da
norma jurídica (estrita legalidade) aos princípios estabelecidos pela Constituição. A simples
existência (vigência) da lei, mesmo que para tanto tenha respeitado os procedimentos formais,
por si não a torna substancialmente válida: é necessário que todas as normas respeitem ao
conteúdo da Constituição da República, quando se fará valer seu sentido substancial.
Ressalta Ferrajoli que
de aquí se desprende una inovación en la propia estructura de la legalidad, que es
quizá la conquista más importante del derecho contemporáneo: la regulación jurídica
del derecho positivo mismo, no sólo en cuanto a las formas de producción sino
también por lo que se refiere a los contenidos producidos.
110
108
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 379.
109
Conferir FERRAJOLI, Luigi, Derechos y Garantías. La Ley del Más Débil.
110
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La Ley del Más Débil, p. 19.
47
Pode-se chamar de sistema garantista a este sistema de dupla legalidade que garante o
cidadão de um direito ilegítimo, em sentido contrário ao modelo paleopositivista.
111
Cria-se, portanto, um modelo que exige não a vigência das normas (quando são
respeitadas as formas de sua produção), mas também a sua validade (quando será observado a
sua consonância com o conteúdo da Lei Maior) para que seja, efetivamente, válida.
Portanto,
el paradigma del Estado constitucional de derecho o sea, el modelo garantista – no
es outra cosa que esta doble sujeción del derecho al derecho, que afecta a ambas
dimensiones de todo fenómeno normativo: la vigencia y la validez, la forma y la
substancia, los signos y los significados, la legitimación formal y la legitimación
sustancial o, si se quiere, la ‘racionalidad formal’ y la ‘racionalidad material’
weberianas.
112
Após essas breves notas introdutórias acerca da teoria do garantismo penal, as
garantias processuais penais apresentam-se, conforme referido acima, como instrumentos
necessários a serem respeitados pelo Estado para que durante o processo penal (incluindo
igualmente os demais procedimentos aptos a produzir a privação da liberdade de alguém) a
característica democrática que delineia o nosso Estado de direito não seja apagada por
aspectos autoritários de um processo inquisitório.
1.5.2.2 O processo e as garantias
Partindo, então, para o processo, entendemos o mesmo como um espaço democrático
de debates (acusação e defesa) e julgamento a que tem direito de ser submetido todo cidadão
acusado da prática de um crime: trata-se, portanto, de um instrumento a serviço do cidadão
(direito subjetivo) frente ao poder punitivo do Estado.
111
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías..., pp. 19-20.
112
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías..., p. 22.
48
Pelas palavras de Aury Lopes Jr., o processo “é a única estrutura que se reconhece
como legítima para a imposição da pena”.
113
Segue o autor dizendo que “a pena não pode
prescindir do processo penal,” uma vez que o processo é o caminho necessário para a
pena”,
114
definindo-o como instrumento a serviço da xima eficácia de um sistema de
garantias mínimas”.
115
Gomez Orbaneja, citado por Lopes Jr., extrai daí o princípio da necessidade do
processo penal, que não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem
processo senão para determinar o delito e atuar a pena.
116
Para que o processo penal seja válido, necessário que siga todas as formas prescritas
em lei e que, naturalmente, respeite todas as garantias processuais constitucionalmente
previstas (art. 5º, incisos, XI, XXXV, XXXVII, XXXIX, XL, XLI, XLVII, XLIX, L, LII,
LIII, LIV, LV, LVI, LVII, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVIII; art. 22, inciso I;
art. 93, inciso IX; dentre outros artigos da CR), que são nada mais nada menos do que os
axiomas de Ferrajoli positivados em nossa Carta Política de 1988.
Tais garantias m a função de assegurar a aplicabilidade dos direitos humanos
positivados e confirmar o processo como um espaço público de defesa dos direitos
fundamentais
117
da pessoa humana exclusivamente, neste caso, do acusado. O processo
oferecerá, segundo os mandamentos garantistas, que seja reduzido ao mínimo o número de
inocentes condenados. Claro que, em contrapartida, alguns culpados serão isentos de culpa e
punição: mas esse é o preço a ser pago por um Estado de Direito que possuir um processo
penal garantista e democrático.
113
LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, p. 3.
114
LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação..., p. 6.
115
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, p. 2.
116
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica..., p. 2.
117
Para Luigi Ferrajoli, o direitos fundamentais “todos aquellos derechos subjetivos que corresponden
universalmente a ‘todos’ los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas
con capacidad de obrar; entendiendo por derecho subjetivo’ cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o
negativa (de no sufrir lesiones) adstricta a un sujeto por una norma jurídica; y por statusla condición de un
sujeto, prevista asimismo por una norma jurídica positiva, como presupuesto de su idoneidad para ser titular de
situaciones jurídicas y/o autor de los actos que son ejercício de éstas.” (FERRAJOLI, Luigi. Los Fundamentos de
los Derechos Fundamentales, p. 19.)
49
A partir do momento em que abriu mão da solução privada de seus conflitos,
outorgando ao Estado o monopólio da jurisdição e da resolução dos conflitos sociais, o
cidadão passa a ser detentor do direito ao processo. Segundo Aury Lopes Jr.,
frente à violação de um bem juridicamente protegido, não cabe outra atividade que
não a invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização da
estrutura preestabelecida pelo Estado o processo judicial em que, mediante a
atuação de um terceiro imparcial, cuja designação o corresponde às vontades das
partes e resulta da imposição da estrutura institucional, será solucionado o conflito e
sancionado o autor.
118
Nesse sentido, vislumbramos, então, o princípio nulla poena sine iudicio. Segundo
Luigi Ferrajoli, esta é a principal garantia processual, constituindo-se em pressuposto de todas
as demais.
119
Para Salo de Carvalho, por causa deste princípio “o Estado há de submeter a sua
pretensão punitiva ao crivo do Poder Judiciário, tendo o ônus de alegar e provar determinada
prática delituosa, assegurados constitucionalmente a instrução criminal contraditória e o
princípio da ampla defesa...”
120
As garantias, nesse contexto, não poderiam significar outra coisa senão uma limitação
ao próprio Estado, uma vez que quando o indivíduo abriu mão de solucionar seus conflitos
outorgando ao Estado essa função, a fim de evitar a vingança privada, receber em troca um
mínimo de segurança e estabelecer um avanço civilizatório fundamental, ele jamais o teria
realizado se não previsse algumas formas de contenção de um provável abuso de poder.
Face ao contraponto emergente entre um processo democrático e um autoritário, dois
modelos (ou sistemas) processuais penais, pois, se apresentam, quais sejam, o inquisitório,
121
característico de um Estado autoritário (ou de um Estado Democrático “de fachada”), e o
acusatório,
122
presente nos Estados realmente democráticos.
118
LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, p. 3.
119
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 538.
120
CARVALHO, Salo. Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo, p. 24.
121
O modelo inquisitório caracteriza-se pela união da função de acusar e julgar em uma única pessoa, que poderá
buscar as provas como bem entender; pelo sigilo processual; pela primazia da forma escrita sobre a oral; pela
consagração da confissão como a “rainha das provas”; dentre outras características. (LOPES JR., Aury.
Introdução Crítica..., pp. 156-162; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo
Penal, pp. 18-31).
122
Este modelo caracteriza-se pela clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; pela limitação da
iniciativa probatória unicamente às partes; pelo juiz tido como terceiro imparcial; pelo tratamento igualitário às
50
Luigi Ferrajoli, ao estabelecer os axiomas garantistas jurisdicionais, separa em a
jurisdição em duas: a “jurisdicionalidad lata” e a “jurisdicionalidad estricta
123
.
A primeira faz-se representar pelas máximas nulla poena, nullum crimen, nulla culpa
sine iudicio, podendo comportar tanto um sistema processual acusatório quanto um
inquisitório. a segunda é representada pelos princípios nullum iudicium sine acusatione,
sine probatione y sine defensione, podendo apresentar unicamente um processo penal
acusatório: “mientras la jurisdicionalidad en sentido lato es uma exigencia de cualquier tipo
de proceso, sea acusatorio o inquisitivo, la jurisdicionalidad en sentido estricto supone la
forma acusatoria del proceso”.
124
Assim, a ampla defesa, o contraditório, o ônus da prova por parte do órgão acusador, a
motivação racional das decisões, a presunção de inocência, a separação do poder de julgar dos
de acusar e defender, o devido processo legal, dentre outras, são as características marcantes
de um processo acusatório-garantista, definitivamente incorporados na Constituição da
República de 1988. Tais princípios devem orientar não o processo penal ordinário, mas
também todo e qualquer processo cujo final possa culminar em uma condenação do acusado
e, consequentemente, possa vir a suprimir a liberdade do mesmo.
partes; pela publicidade do procedimento; pela prevalência da oralidade; pelo contraditório e pela ampla defesa;
pelo duplo grau de jurisdição; dentre outras (LOPES JR., Aury. Introdução Crítica..., p. 154; COUTINHO,
Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz..., pp. 31-42).
123
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 539.
124
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 539.
51
2 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO E OS NOVOS MODELOS DE JUSTIÇA
CRIMINAL
Neste momento, demonstraremos a estrutura do processo penal brasileiro a partir do
Código de Processo Penal de 1941, a fim de demonstrar como foi estruturado o referido
código e como a influência medieval se faz presente de forma significativa neste ramo do
direito.
2.1 O Processo Penal Brasileiro: breve análise da exposição dos motivos do vigente
Código de Processo Penal
A partir da leitura da exposição de motivos do Código de Processo Penal brasileiro
(decreto-lei nº. 3.689/1941), nota-se que a sua lógica característica privilegia os interesses da
sociedade aos interesses dos indivíduos. Desde esse apontamento inicial, é possível fazer a
leitura da sistemática legislação processual penal brasileira, que é fundamentada a partir da
52
imposição do “objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os
que delinqüem.”
125
Para Salo de Carvalho, o atual CPP
foi marcado pelo signo da eficiência da repressão penal. De corte nitidamente
autoritário, pois inspirado na reforma do Código de Processo Penal italiano realizada
por Rocco (Ministro da Justiça de Mussolini), a legislação codificada optou pela
minimização dos direitos e garantias fundamentais, adotando um modelo processual
de corte nitidamente inquisitivo.
126
O referido decreto-lei foi criado com a finalidade de coordenar sistematicamente as
regras do processo penal em um código só para todo o Brasil (pois até então existiam Códigos
de Processo Penal estaduais),
127
tendo sido pensado desde uma perspectiva defensivista.
Resultou, efetivamente, em uma diminuição das garantias e dos favores” das antigas leis
processuais penais então vigentes, que tornavam “defeituosa e retardatária” a repressão penal
conforme acreditavam os reformistas, que consideravam os referidos “favores” como
estimulantes indiretos da expansão da criminalidade. Diz a exposição de motivos do CPP que
“urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela
social,” não sendo possível contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do
bem comum.”
128
Durante a leitura da exposição de motivos do CPP, percebe-se que o juiz resta
autorizado a produzir provas “complementares ou supletivas, quer no curso da instrução
criminal, quer a final, antes de proferir a sentença”. Tal idéia é reforçada mais adiante, quando
volta o expositor de motivos a ressaltar que
o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na
atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e
julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis
ao esclarecimento da verdade.
129
125
In Código de Processo Penal: exposição de motivos do código de processo penal, p. 397.
126
CARVALHO, Salo de. As Reformas Parciais no Processo Penal Brasileiro, p. 84.
127
CARVALHO, Salo de. As Reformas Parciais..., p. 84.
128
In Código de Processo Penal: exposição de motivos..., p. 397.
129
In Código de Processo Penal: exposição de motivos..., p. 399.
53
E, em relação ao interrogatório do acusado, o expositor foi igualmente enfático: “é
facultado ao juiz formular ao acusado quaisquer perguntas que julgue necessárias à pesquisa
da verdade, e se é certo que o silêncio do réu não importará confissão, poderá, entretanto,
servir, em face de outros indícios, à formação do convencimento do juiz.”
130
Em seguida, o expositor se reporta à prisão preventiva, que, segundo a idéia daquele
momento histórico,
desprende-se dos limites estreitos até agora traçados à sua admissibilidade.
Pressuposta a existência de suficientes indícios para imputação da autoria do crime,
a prisão preventiva poderá ser decretada toda vez que o reclame o interesse da
ordem pública, ou da instrução criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal.
131
Entretanto, para os crimes a que sejam cominadas penas iguais ou superiores a 10
(dez) anos, a decretação da prisão preventiva será obrigatória, dispensando outro requisito
além da prova indiciária contra o acusado.”
132
Ao final, porém, ressalta o expositor que o então projeto de CPP visava o “equilíbrio
entre o interesse social e o da defesa individual, entre o direito do Estado à punição dos
criminosos e o direito do indivíduo às garantias e seguranças de sua liberdade.”
133
Não obstante apresentar frases soltas que afirmam a pretensão estatal de também
garantir o cidadão frente ao próprio poder punitivo, a reforma do processo penal, para Salo de
Carvalho,
operou-se sob o enfoque da minimização das barreiras formais (garantias
processuais) em nome de uma maior eficácia repressiva. Em toda a exposição de
motivos (...) o argumento era claro: a formalidade, nominada burocracia, impedia o
incremento de uma política criminal de Defesa Social. (...) Claro, pois, que o
estatuto em vigência possui um déficit de garantismo.
134
130
In Código de Processo Penal: exposição de motivos..., p. 401.
131
In Código de Processo Penal: exposição de motivos..., p. 401.
132
In Código de Processo Penal: exposição de motivos..., p. 401.
133
In Código de Processo Penal: exposição de motivos..., p. 405.
134
CARVALHO, Salo de. As Reformas Parciais..., p. 99.
54
2.2 A Crise do Processo Penal Tradicional e a Emergência dos Novos Modelos de
Administração da Justiça Criminal
A estrutura do processo penal moderno apresentada no capítulo anterior,
pretensamente laicizada apesar de sacralizada apresenta sintomas de crise: uma vez que
nem os interesses dos indivíduos são resguardados pelos Tribunais, e sequer o interesse social
de repressão aos delinqüentes pode ser atingido pela existência e conseqüente aplicação do
direito e do processo penal, aumenta-se a malha repressora do direito penal e expande-se a
instrumentalidade repressiva no processo penal.
Enquanto no direito penal percebe-se uma desenfreada busca da segurança através da
edição de inúmeras leis penais, do aumento das penas em abstrato já existentes e da criação de
novos tipos penais inseridos em leis atualmente em vigor, no processo penal é possível dizer
que três opções são colocadas à disposição dos atores jurídicos: (a) utiliza-se aquilo que
Choukr chamou de Processo Penal de Emergência;
135
(b) inicia-se o respeito à Constituição
da República e a todos os seus princípios processuais penais (que nunca foram observados da
forma como devem, registre-se); ou (c) passa-se a pensar em novas formas de administração
da justiça criminal.
Parece-nos que a opção pelo processo penal de emergência já foi utilizada, e
demonstra não ter surtido o efeito que seus defensores pretendiam: desde a leitura da
exposição de motivos do atual CPP é possível notar que a instrumentalização dos poderes
instrutórios do juiz é convocada a auxiliar na “busca da verdade”. Porém, não é razoável
acreditar que tanto tempo a mesma idéia persiste e é perseguida por tantos atores
jurídicos
136
(para tanto, basta uma leitura simples, por exemplo, das leis nº. 8.072/1990,
135
Ver nota nº. 67.
136
Para que se demonstre a ampla crença na busca da verdade, vale conferir o que dizem os magistrados pelos
tribunais país afora, a começar pelo Superior Tribunal de Justiça: não há falar, à luz das normas insertas nos
artigos 156 e 502, parágrafo único, do Código de Processo Penal, em impedimento de magistrado que, na busca
da verdade real, determina, ex officio, a oitiva de testemunhas.(Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus
nº. 31294/PR, 6.ª Turma, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, publicado no Diário da Justiça em 09/10/2004,
55
9.034/1995, 9.613/1998 e 9.807/1999, para se chegar a uma conclusão sobre os efeitos
nefastos que o aumento dos poderes instrutórios do juiz pode causar
137
). Além de
ultrapassada, tal estratégia não passa de mero paliativo frente à criminalidade, uma vez que o
processo penal não serve para combater o crime e o delinqüente, mas tão-somente para que
ninguém seja penalizado sumariamente, sem direito a defesa, contraditório, etc. Na mesma
linha de Aury Lopes Jr., salientamos que o processo deve ser o caminho necessário para a
aplicação da pena.
138
A observação dos direitos e garantias individuais por parte dos Tribunais, por sua vez,
apesar de economicamente possível e juridicamente necessária, continua afastada da praxe
forense. Enquanto a onda de repressão da criminalidade a todo custo persistir e a propaganda
midiática de que o culpado pelos males do mundo é o delinqüente,
139
a concretização dos
p.362.) No mesmo sentido, ressaltam também que a “busca da verdade real (...) deve sempre prevalecer em face
da importância dos interesses envolvidos na esfera do processo penal.(Superior Tribunal de Justiça, Habeas
Corpus nº. 58833/RJ, 5.ª Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, publicado no Diário da Justiça em 12/09/2006,
p.334.) Ainda, conforme entendimento da Ministra Laurita Vaz, nada impede que o novo Juízo competente,
caso assim entenda, proceda à oitiva das demais testemunhas faltantes, da defesa e acusação, a teor da
possibilidade de iniciativa probatória do juiz, expressa no art. 156, do Código de Processo Penal, como forma
de obtenção do alcance da verdade real, que sempre deve prevalecer no processo penal.” (Superior Tribunal de
Justiça, Habeas Corpus nº. 32578/MG, 5.ª Turma, Rel. Ministra Laurita Vaz, publicado no Diário da Justiça em
01/08/2006, p.464.) Em outra decisão, a mesma ministra salientou que “é tarefa precípua do Estado-Juiz a busca
do esclarecimento dos fatos e da verdade real.(Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº. 50721/SP, 5.ª
Turma, Rel. Ministra Laurita Vaz, publicado no Diário da Justiça em 01/08/2006, p.477.) Já nos âmbitos
estadual e regional, percebe-se que a busca pela verdade real permanece em seu lugar de destaque: o juiz está
comprometido com a verdade real e não macula de parcialidade sua atuação quando no interrogatório
questiona o réu sobre sua reconstituição anterior dos fatos, diversa da apresentada.(Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, Apelação Crime n.º 70015504210, Terceira Câmara Criminal, Relatora: Elba Aparecida
Nicolli Bastos. Julgado em 13/07/2006.) As palavras do Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro, do
Tribunal Regional Federal da Região, para quem até mesmo o juiz pode produzir provas para atingir a
finalidade do processo penal, por sua vez, são significativas: em nome do princípio da verdade real, o julgador
pode requerer, ex officio, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (art. 156 do CPP)”. (Tribunal
Regional Federal da Região, ACR n.º 2000.70.010018404/PR, Oitava Turma, Relator: Élcio Pinheiro de
Castro, publicado no Diário da Justiça da União em 17/08/2005, p. 787.) Tais entendimentos deixam claro que a
postura dos magistrados em pleno século XXI permanece a mesma apresentada pelos inquisidores medievais. A
tarefa do inquisidor, antes de qualquer outra coisa, era a de buscar a verdade acerca dos eventos tidos como
delituosos, para que então fosse possível punir um cidadão pela prática de um delito de heresia. Como se
percebe, nada mudou: apenas o foco foi (re)direcionado em direção a outros objetivos, pretensamente científicos.
Por fim, vale citar um trecho de uma decisão do Supremo Tribunal Federal: “... torna-se legítima a instauração
da ‘persecutio criminis’, eis que se impõe, ao Poder Público, a adoção de providências necessárias ao integral
esclarecimento da verdade real (...).” (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n. 82393/RJ, 2.ª Turma, Rel.
Ministro Celso de Mello, publicado no Diário da Justiça em 22/08/2003, p. 49.)
137
Para uma análise pormenorizada nesse sentido, conferir CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de
Emergência.
138
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, p. 1.
139
Conferir PASTANA, Débora. A Cultura do Medo. Vide nota n. 69.
56
princípios processuais penais constitucionais
140
continuará tão distante quanto hoje. Seus
aplicadores (em um número bastante restrito no país) ora são tachados de defensores de
bandidos”, ora de “utópicos” ou “idealistas”, quando, na verdade, tudo o que defendem é a
própria democracia no processo penal, incluindo as devidas punições, quando comprovada a
condição de culpado de um acusado. A exposição da teoria garantista acima deixa claro que
não é a impunidade que se defende, mas a aplicação da Constituição.
E, por fim, desde o momento em que a sistemática de busca da verdade declarada na
exposição de motivos do atual CPP deixou de ser o único meio para tanto, sua infalibilidade
começa a ser questionada e seus dogmas deixam de ser intransponíveis. A edição da lei
9.099/95 evidencia a confirmação do que já se podia perceber: a falência do modelo de
processo penal atualmente em vigor no Brasil.
Novas formas de enfrentar os conflitos criminais têm surgido, demonstrando que
novas possibilidades estão sendo criadas e colocadas à disposição da sociedade como um
todo. Antes de analisar conceitualmente essas novas formas, a abordagem das mesmas se dará
de uma maneira mais ampla, de forma a refletirmos se representam ou não sintomas da crise
do processo penal como gestor dos conflitos criminais.
Especificamente quanto ao sistema formal de controle social, novas propostas e
algumas reformas foram efetuadas, tendo sido colocadas em prática. A partir dos anos 70,
passaram a ser buscadas formas alternativas de resolução de litígios
141
e no Rio Grande do
Sul, especificamente, novos modelos de gestão de conflitos criminais estão em plena
atividade.
Enquanto em relação ao direito penal material o que se percebe é uma enérgica
tentativa de ampliação dos tipos penais, no direito processual penal é possível averiguar
intenções semelhantes porém, dentro da sua área de interferência: ao invés de ampliação
repressiva, o que se percebe é uma diminuição protetiva dos acusados, que pode ser
verificado a partir da ampla estruturação persecutória estatal, diminuindo os direitos e
140
Conferir LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais.
141
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Conciliar ou Punir? Dilemas do controle penal na época contemporânea,
p. 65.
57
garantias individuais daqueles em prol de uma eficiência punitiva, apesar do processo penal
ser apresentado desde os clássicos iluministas
142
como um instrumento protetor da liberdade
individual contra essa mesma opressão estatal.
Conforme Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo,
no âmbito do sistema judicial, as reformas institucionais são apresentadas como
tentativas de dar conta do aumento das taxas de criminalidade violenta, do
crescimento geométrico da criminalidade organizada e do sentimento de insegurança
que se verifica nos grandes aglomerados urbanos. A pressão da opinião pública,
amplificada pelos meios de comunicação de massa, pressiona no sentido de uma
maior eficácia, tendo como paradigma preferencial a chamada política de ‘tolerância
zero’, adotada pela prefeitura de Nova Iorque no início dos anos 90, e defendida por
diferentes setores do espectro público. O pressuposto dessa política de segurança
pública é a perda de eficácia das estratégias brandas ou informas de controle
social.
143
E, em relação especificamente à esfera penal, salienta Azevedo que tais reformas são
operadas através de mecanismos de descriminalização e de informalização processual,” com
mudanças na legislação vigente.
144
A seguir, o autor apresenta as características que configuram um tipo ideal de
informalização da justiça nos estados contemporâneos:
uma estrutura menos burocrática e relativamente mais próxima do meio social em
que atua; aposta na capacidade dos disputantes promoverem sua própria defesa, com
uma diminuição da ênfase no uso de profissionais e da linguagem legal formal;
preferência por normas substantivas e procedimentais mais flexíveis, particularistas,
ad hoc; mediação e conciliação entre as partes mais do que adjudicação de culpa;
participação de não juristas como mediadores; preocupação com uma grande
variedade de assuntos e evidências, rompendo com axima de que ‘o que não está
no processo não está no mundo’; facilitação do acesso aos serviços judiciais para
pessoas com recursos limitados para assegurar auxílio legal profissional; um
ambiente mais humano e cuidadoso, com uma justiça resolutiva rápida, e ênfase em
uma maior imparcialidade, durabilidade e mútua concordância no resultado; geração
de um senso de comunidade e estabelecimento de um controle local através da
resolução judicial de conflitos; maior relevância em sanções não coercitivas para
obter acatamento.
145
142
Por todos, conferir BECCARIA, Cesare de Bonesana. Dos Delitos e das Penas.
143
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Informalização da Justiça e Controle Social, pp. 100-101.
144
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Conciliar ou Punir? Dilemas do controle penal na época contemporânea,
p. 66.
145
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Conciliar ou Punir?..., pp. 67-68.
58
Enquanto o processo penal está constitucionalmente limitado por direitos e garantias
individuais (muito embora de observação limitada por parte dos Tribunais brasileiros), os
modelos consensuais de resolução de conflitos apresentam uma estrutura que, por vezes,
abandona alguns desses direitos e garantias em prol de uma resposta estatal que possa admitir,
trabalhar e enfrentar a complexidade que envolvem os casos criminais.
Necessário questionar, nesse sentido, se esses novos modelos de justiça criminal já não
nascem com os mesmos pressupostos e as mesmas pretensões típicas do antigo processo
penal. A Teoria do Garantismo Penal, de Luigi Ferrajoli, base teórica principal da presente
investigação, estabelece uma série de limitações penais e processuais penais aos legisladores e
operadores jurídicos, e possibilita colocar em questão todas essas novas formas de justiça
acerca de sua adequação constitucional, bem como de sua funcionalidade e, ainda, se elas
estão ou não a dar continuidade à mesma racionalidade do modelo processual penal
tradicional motivos esses que nos levaram a escolher essa teoria para realizarmos a nossa
análise.
A questão, ao abordar esses novos mecanismos de gestão da justiça criminal, coloca-se
no âmbito dos objetivos desses projetos, uma vez que todos apresentam a característica da
informalização e da aceleração nas decisões dos casos. Seriam eles capitaneados pela lei
9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais (JEC). Em se tratando de mudanças
estruturais na forma do processo penal, os JEC podem ser considerados como as condições de
possibilidades para a informalização daquele, vindo a possibilitar, ainda, novas experiências
procedimentais.
Quanto aos demais modelos de gestão criminal, apresentaremos as “justiças”
Terapêutica, Restaurativa e Instantânea, atualmente em plena atividade no Rio Grande do Sul.
Entendemos que essas aparecem como corolário da implantação dos JEC, tendo sido
viabilizados, em alguns casos, somente após a entrada em vigor da lei 9.099/95.
59
2.3 Os Juizados Especiais Criminais e as Novas Formas da Justiça Criminal: os
primeiros sintomas da crise
Tomados como sintoma motor da crise do processo penal, os Juizados Especiais
Criminais, nascidos a partir da Lei 9.099/95 (em cumprimento a mandamento
constitucional),
146
instituíram
uma lógica de informalização, entendida não como a renúncia do Estado ao controle
de condutas e no alargamento das margens de tolerância, mas como a procura de
alternativas de controle mais eficazes e menos onerosas. Para os Juizados Especiais
Criminais vão confluir determinados tipos de delitos (com pena máxima em abstrato
até um ano), e de acusados (não reincidentes). Com a sua implantação, se esperava
que as antigas varas criminais pudessem atuar com maior prioridade sobre os
chamados crimes de maior potencial ofensivo.
147
Conforme Azevedo, após a promulgação da Constituição de 1988, o Presidente do
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Juiz Manoel Veiga de Carvalho, constituiu grupo
de trabalho para a elaboração de Anteprojeto de lei tratando da matéria.”
148
O referido grupo,
por sua vez, elaborou um anteprojeto que
foi discutido em São Paulo, na seccional da Ordem dos Advogados do Brasil,
recebendo sugestões de aprimoramento de representantes de todas as categorias
jurídicas, tais como advogados, juízes, membros do Ministério Público, delegados
de polícia, procuradores do Estado no exercício das funções de defensores públicos,
professores, estudantes de direito e interessados em geral.
149
O anteprojeto, então, foi finalizado e apresentado ao Deputado Federal Michel Temer,
que acolheu a proposta e protocolou-a na Câmara dos Deputados, transformando-a no Projeto
146
Art. 98, CR/1988: “A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais,
providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de
causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os
procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de
recursos por turmas de juízes de primeiro grau. (...) § Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais
no âmbito da Justiça Federal. (Renumerado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”
147
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Conciliar ou Punir? Dilemas do controle penal na época
contemporânea, pp. 68-69.
148
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Informalização da Justiça e Controle Social, p. 119.
149
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance;
GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995, p. 33.
60
de Lei 1.480/89. O Deputado Ibrahim Abi-Ackel, relator de todas as propostas na Comissão
de Constituição e Justiça da mara dos Deputados, por sua vez, selecionou este Projeto,
conhecido como Projeto Michel Temer, no âmbito penal e, no âmbito cível, foi selecionado o
Projeto Nelson Jobim. Os dois Projetos foram unidos, culminando em um Substitutivo, sem
que houvesse interferência de uma esfera sobre a outra. Posteriormente, o Substitutivo foi
aprovado, resultando na lei 9.099 de 26 de setembro de 1995.
Ainda tratando do Projeto Michel Temer, o mesmo previa a conciliação entre as partes
como primeiro passo procedimental. Inexitosa a tentativa de acordo, e não sendo caso de
arquivamento, o Ministério Público poderia propor a transação penal, com aplicação imediata
de pena restritiva de direitos ou multa, que equivaleria à denúncia do MP e a impediria de ser
oferecida. O u reincidente e aquele que tivesse feito transação penal em outro processo no
prazo de cinco anos, não teriam direito à transação ou, ainda, quando os antecedentes, a
conduta social e a personalidade do réu, bem como os motivos e as circunstâncias indicassem,
conjuntamente, não ser indicada a adoção da medida.
150
Com a aceitação da proposta de transação, o acordo não seria registrado na folha de
antecedentes do acusado: o registro seria apenas para impedir nova transação dentro do
período dos cinco anos. E a transação, ao contrário da conciliação, não produziria efeitos
civis, o que obrigaria à vítima propor, querendo, eventual ação indenizat ória no juízo cível.
151
Frustrada a proposta de transação penal, o Ministério Público ofereceria a denúncia.
Para os delitos de lesões leves e culposas,
o projeto Temer passava a exigir a representação da vítima ou de seu representante
legal, sem o que o MP o poderia oferecer a denúncia. Nos crimes com pena
mínima prevista igual ou inferior a um ano, o MP, ao oferecer a denúncia, poderia
propor a suspensão condicional do processo, por dois ou quatro anos, desde que o
réu não estivesse sendo processado ou não tivesse sido condenado por outro crime, e
estivessem presentes os requisitos do sursis.
152
Devidamente editada, a referida lei
150
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Informalização da Justiça..., p. 120.
151
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Informalização da Justiça..., p. 120.
152
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Informalização da Justiça..., pp. 120-121.
61
foi saudada por setores expressivos da comunidade jurídica brasileira como
instrumento capaz de revolucionar o sistema de justiça criminal vigente,
supostamente regulado pelas ultrapassadas regras extraídas do Código de Processo
Penal de 3 de outubro de 1941 (Decreto-Lei nº. 3.689).
153
O novo modelo de justiça criminal foi recepcionado, portanto, como “depositário de
expectativas de transformação de um obsoleto, seletivo e estigmatizante sistema de justiça
criminal,”
154
incidindo nos chamados crimes de menor potencial ofensivo, definidos como
aqueles cuja pena máxima não ultrapassasse um ano. Tal definição viria a ser modificada com
o advento da lei 10.259/01 que, ao instituir os Juizados Especiais na Justiça Federal, ampliou
este conceito, considerando como de menor potencial ofensivo aqueles crimes cujas penas não
ultrapassassem dois anos.
Neste ano de 2006, porém, para dirimir quaisquer dúvidas que pudessem ainda
sobreviver acerca da potencialidade ofensiva desses crimes, a lei 11.313 alterou o artigo 61 da
lei 9.099/95, aumentando para dois anos o alcance do procedimento dos Juizados Especiais
Criminais.
Para Nereu José Giacomolli,
o legislador ordinário não se limitou a estabelecer o que constitui uma infração de
menor potencial ofensivo, mas regulamentou um novo processo penal para estas
infrações, denominando-o de sumaríssimo, além de criar um microssistema dentro
do ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não totalmente independente, pois se
aplicam, subsidiariamente, as normas do Código Penal e do Código de Processo
Penal.
155
O novo processo penal estaria caracterizado, dentre outras particularidades, “pela
oralidade, pela concentração da audiência em um único ato processual, com a defesa prévia à
acusação, o interrogatório como último ato da instrão.”
156
153
PRADO, Geraldo. Transação Penal, p. 1.
154
PRADO, Geraldo. Transação Penal, p. 1.
155
GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, Oportunidade e Consenso no Processo Penal: na perspectiva das
garantias constitucionais, p. 312.
156
GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, Oportunidade..., p. 308.
62
2.3.1 Os Princípios Informadores dos Juizados Especiais Criminais
Conforme se depreende da leitura da lei 9.099/95, o processo penal dos Juizados deve
ser orientado pelos critérios da oralidade, da informalidade, da economia processual e da
celeridade. Leciona Azevedo que deve o processo, ainda, objetivar, “sempre que possível, a
reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.”
157
Deve-se também observar que tais princípios são próprios dos Juizados,
acrescentando-se, conforme Geraldo Prado e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho,
os princípios da “disponibilidade da ação penal, [e] o duplo grau de jurisdição com Juízes de
grau (...).”
158
Os autores salientam ainda que os princípios da informalidade, da economia
processual e da celeridade representam a lógica dos Juizados,
159
informando a forma de
proceder que deverá ser seguida pelos operadores atuantes nesses locais.
Dispensando o inquérito policial,
a Lei nº. 9.099/95 determina que a autoridade policial, ao tomar conhecimento do
fato delituoso, deve imediatamente lavrar um termo circunstanciado do ocorrido e
encaminhá-lo ao Juizado, se possível com o autor do fato e a vítima, providenciando
a requisição dos exames periciais necessários para a comprovação da materialidade
do fato (art. 69). Não sendo possível o comparecimento imediato de qualquer dos
envolvidos ao Juizado, a Secretaria do Juizado deverá providenciar a intimação da
vítima e do autor do fato, por correspondência com aviso de recebimento, para que
compareçam à audiência preliminar (art. 71).
160
A informalidade preza por uma maior participação dos envolvidos na tentativa de
resolução do problema, propiciando um equilíbrio na atuação entre o autor do fato, a vítima e
os seus advogados.
161
A expansão da possibilidade de participação das partes no processo
157
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Conciliar ou Punir?..., p. 70.
158
PRADO, Geraldo; CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Lei dos Juizados Especiais Criminais:
comentada e anotada, p. 33.
159
Lei dos Juizados..., p. 34.
160
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Conciliar ou Punir?..., p. 70.
161
Enquanto Prado e Grandinetti de Carvalho acreditam ser essa conseqüência oriunda do princípio da oralidade
(In Lei dos Juizados..., p. 35), acreditamos ser o entrelaçamento deste princípio com o da informalidade que
propicia esse aumento da participação das partes no enfrentamento da questão. A oralidade por si
63
viabiliza um enfrentamento mais incisivo das questões conflituais diretamente relacionadas
com o problema jurídico em tela, relativizando o que será redigido pelos procuradores
posteriormente.
Pode-se dizer, conseqüentemente, que a oralidade anda paralelamente à informalidade,
fazendo-a valer em vários momentos. “Processualmente, a oralidade indica menor
formalismo.”
162
Enquanto nos modelos inquisitoriais a prevalência era da manifestação escrita
dos envolvidos, a lei 9.099/95 inverte a lógica e faz preponderar a oralidade para a
intervenção dos interessados.
A oralidade o possibilita uma mais ampla frente de diálogo entre os envolvidos,
como também faz a imposição legislativa da celeridade, efetivando-a. O encontro dos três
princípios até aqui mencionados (informalidade, oralidade e celeridade) amplia a crise do
processo penal, ao passo que: (a) preza pela informalidade no desenvolvimento do processo;
(b) afasta as manifestações redigidas e aproxima os envolvidos através do diálogo; e (c)
sintoniza o procedimento dos Juizados com a necessidade legal da celeridade (agora também
uma preocupação constitucional)
163
para a abordagem dos conflitos de menor potencial
ofensivo apresentados ao Poder Judiciário.
Conseqüência lógica desses três princípios é a economia processual, elencada
igualmente como princípio pela Lei nº. 9.099/95. Conforme Grinover et alii,
o rito sumaríssimo introduzido pela lei prestigia a verdadeira oralidade, com todos
os seus corolários. E o julgamento dos recursos por turma constituída de juízes de
primeiro grau, que tão bem tem funcionado nas pequenas causas cíveis, é outro
elemento de desburocratização e simplificação.
164
acreditamos não possui capacidade de viabilizar tal possibilidade; porém, juntamente com a informalidade,
pensamos ser possível tal concretização.
162
PRADO, Geraldo; CARVALHO, Luis Gustavo G. C. de. Lei dos Juizados..., p. 36.
163
Art. 5º, inciso LXXVIII da Constituição da República: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, o
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (grifo
nosso)
164
GRINOVER et alii. Juizados Especiais..., p. 36.
64
2.3.2 A Ruptura dos Juizados Especiais Criminais: a introdução do diálogo no
processo penal
Embora não tão entusiasmados com uma inovação levada a efeito pela via legal, não
podemos deixar de concordar com Grinover, Gomes filho, Fernandes e Gomes, e mencionar
que “entre todas essas inovações [trazidas pela lei 9.099/95], é oportuno dar ênfase especial
ao modelo consensual introduzido pela lei e a suas medidas despenalizadoras.”
165
Nessa linha principiológica, importante perceber a ruptura que ocorre com o
tradicional sistema processual penal brasileiro: enquanto neste não espaço para o diálogo,
para a composição de danos, para a tentativa de conciliação entre os envolvidos e, também,
para uma eventual proposta de acordo por parte do Ministério Público, os Juizados Especiais
Criminais introduziram no Brasil todas essas possibilidades, colocando-se de encontro à
lógica moderna do processo penal tradicional e desvelando o seu discurso legitimante da
civilização versus a barbárie.
166
Para Nereu José Giacomolli,
a Lei 9.099/95 conceituou as infrações de menor potencial ofensivo, delimitando o
consenso na esfera do processo penal, introduzindo a possibilidade de transacionar,
inclusive, sobre a continuação ou não do processo, ademais de outorgar efeitos
impeditivos da dedução de uma pretensão penal ao acordo civil.
167
Ainda conforme Giacomolli,
todos os mecanismos de consenso criminais foram introduzidos na legislação penal
brasileira pela Constituição de 1988, e pelo legislador ordinário de 1995. Até então,
não se admitia qualquer espécie de solução consensuada no processo penal, seja de
natureza civil, criminal ou processual, pois regia o princípio da legalidade em sua
pureza.
168
165
GRINOVER et alii. Juizados Especiais..., p. 36.
166
Acerca do processo penal como solução de conflitos civilizada em contraponto à solução presente entre os
bárbaros, conferir WUNDERLICH, Alexandre. Sociedade de Consumo e Globalização: abordando a teoria
garantista na barbárie. (Re)afirmação dos direitos humanos.
167
GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, Oportunidade..., p. 308.
168
GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, Oportunidade..., p. 312.
65
Enquanto o processo penal tradicional expurga a vítima do enfrentamento da situação
conflitual, os Juizados trazem-na para a mesa, possibilitando um local de fala a quem nunca
foi ouvido. A introdução desse mecanismo viabilizador do consenso dentro do processo,
representa não só uma ruptura com o antigo sistema, mas um avanço no sentido de reconhecer
a falácia de um local privilegiado de exposição do poder que nunca quis saber quem de fato
estava do outro lado.
Até a edição da lei 9.099/95, “não havia a possibilidade de reparação civil dos danos
sofridos pela vítima no próprio processo penal, ficando relegada ao papel de mera informante
na justiça penal.”
169
Não se faz aqui um elogio à presença da vítima no processo penal: sabe-se que não é
com o simples retorno da vítima que os problemas estarão resolvidos.
170
Trata-se, antes, de
reconhecer que a possibilidade de acordo entre acusado e vítima é viabilizado antes que se
possa iniciar o processo penal, de forma que ainda não processo neste momento, o que
mantém a estrutura processual penal tradicional de não autorizar a participação da vítima.
171
Um retorno da vítima ao processo penal pode significar um retrocesso, um retorno à
vingança privada (conforme leitura liberal-iluminista do processo) mas pode, também, ser
lido como um reconhecimento à existência da vítima, uma transformação da vítima-objeto em
vítima-sujeito, outorgando-a um local de fala e possibilitando que o processo penal sequer
venha a ser iniciado se houver composição entre os envolvidos.
169
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Conciliar ou Punir?..., p. 69.
170
Para tanto, basta ler o trabalho de Alexandre WUNDERLICH, intitulado A Vítima no Processo Penal
(impressões sobre o fracasso da Lei nº. 9.099/95).
171
Conhecemos a posição de Maria Lúcia Karam, para quem “a proposta da chamada ‘transação’, nos moldes
das regras do art. 76 da Lei 9.099/95, não se dá, como muitos entendem, em ‘um estágio anterior e obrigatório à
instauração do processo’. Tampouco a pena não privativa de liberdade, aplicada por meio do ato do juiz que
homologa a anuência do imprópria e precipitadamente denominado ‘autor da infração’, constitui uma
‘alternativa pré-processual’ ou uma forma extraprocessual de solução de conflitos’.” (In: Juizados Especiais
Criminais: a concretização antecipada do poder de punir, p. 88). No entanto, discordamos da autora, por
motivos que serão expostos ao longo do trabalho.
66
Conforme Prado e Grandinetti de Carvalho, a reparação do dano não é somente
compor pecuniariamente prejuízos. É, antes de tudo, pacificar os conflitos de interesses. Esse
parece ser o melhor sentido para a expressão reparação de danos.”
172
Resta-nos averiguar as demais formas de solução de conflitos que, em um primeiro
momento, parecem emergir justamente da implantação dos JECrim, a dizer, a Justiça
Terapêutica, a Restaurativa e, de forma menos direta, a Instantânea.
2.4 A Justiça Terapêutica
Conforme consta do Projeto Justiça Terapêutica, trata-se de “um projeto originalmente
concebido pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, visando à atenção ao
usuário de drogas infrator.”
173
Ainda de acordo com o referido projeto, a partir de 2000, o
programa foi encampado pela Corregedoria-Geral da Justiça, que lhe ampliou a abrangência,
estendendo-o a áreas como o Direito de Família e a Justiça de Infância e Juventude e vem
procedendo à sua implementação nas comarcas do interior do Estado.”
174
A Justiça Terapêutica
pode ser compreendida como um conjunto de medidas que visam aumentar a
possibilidade de que infratores usuários e dependentes de drogas entrem e
permaneçam em tratamento, modificando seus anteriores comportamentos
delituosos para comportamentos socialmente adequados.
175
A Justiça Terapêutica teve sua origem no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/90), mais precisamente no artigo 98, inciso III, que em razão da conduta de uma criança
172
In Lei dos Juizados..., p. 37.
173
Projeto Justiça Terapêutica, p. 1. Disponível em www.mp.rs.gov.br. Acesso em 20 de setembro de 2005.
174
Projeto Justiça Terapêutica, p. 1.
175
In Justiça Terapêutica: um instrumento para a justiça social. Disponível em
www.anjt.org.,br/index.php?id=1. Acesso em 28 de junho de 2006.
67
ou de um adolescente, será aplicada uma medida de proteção. “Esse é o primeiro instrumento
de operacionalização da Justiça Terapêutica”, segundo Luiz Achylles Petiz Bardou.
176
Segue o autor dizendo que
na seqüência dispositiva, encontramos o artigo 101, que prevê, especificamente, as
medidas de proteção ajustadas às previsibilidades do artigo 98, onde constatamos,
pela leitura dos incisos V e VI, a possibilidade da autoridade competente, o Juiz, no
caso, intervir para o tratamento médico ou conduzir crianças ou adolescentes para
programas de orientação a alcoólatras e dependentes químicos.
177
para os penalmente responsáveis, a viabilidade de aplicação do projeto veio a ser
possível a partir a implantação dos Juizados Especiais Criminais (lei n° 9.099 de 1995),
visando dar atenção integral também aos infratores envolvidos com drogas maiores de 18
anos. “Começamos, assim, a trabalhar a filosofia do Estatuto da Criança e do Adolescente nas
Promotorias e Varas Criminais como forma de enfrentamento ao problema dos adultos no
binômio drogas/crime.”
178
A Justiça Terapêutica foi pensada levando-se em consideração a falência do sistema
tradicional (prisão) para lidar com os viciados em drogas, priorizando a recuperação do
infrator e a reparação dos danos à vítima. “É um instrumento judicial para evitar a imposição
de penas privativas de liberdade ou até mesmo penas de multa - que, no caso, podem se
mostrar ineficientes -, deslocando o foco da punição pura e simples para a recuperação
biopsicossocial do agente.”
179
Conforme Arnaldo Fonseca de Albuquerque Maranhão Neto,
a adoção desse sistema nos demonstra uma certa preocupação com a sociedade,
coma dignidade da pessoa humana, fazendo com que profissionais da área jurídica e
da área da saúde trabalhem juntos, com o mesmo objetivo comum: o de aplicar o
176
BARDOU, Luiz Achylles Petiz. Justiça Terapêutica: origem, abrangência territorial e avaliação, p. 1.
Disponível em www.anjt.org.br/index.php?id=99&n=89. Acesso em 28 de junho de 2006.
177
BARDOU, Luiz Achylles Petiz. Justiça Terapêutica..., p. 1.
178
BARDOU, Luiz Achylles Petiz. Justiça Terapêutica..., p. 2.
179
BARDOU, Luiz Achylles Petiz. Justiça Terapêutica..., p. 2.
68
Direito não para fazer valer a Justiça, mas na melhor perspectiva de também
exercer a cidadania.
180
Esta atuação integrada, através de uma equipe interdisciplinar, atenderia ao que
Bardou chamou de “integração operacional”,
181
em atendimento ao disposto no artigo 88,
inciso V do ECA.
Refere Ricardo de Oliveira e Silva que “a idéia base da Justiça Terapêutica é retirar o
acusado em delitos envolvendo drogas, do sistema de encarceramento e colocá-lo no sistema
de tratamento”,
182
tornando possível a almejada redução do encarceramento de pessoas
envolvidas com drogas. O mesmo autor menciona que a legislação brasileira permite, “desde
logo, sem embargo de edição de legislação especial sobre a matéria, a adoção do sistema de
imposição de tratamento aos envolvidos com delitos que têm a droga como fator
intercorrente.”
183
Assevera Oliveira e Silva que a primeira hipótese legal de aplicação da JT está no
Código Penal, no capítulo referente às penas restritivas de direitos, mais especificamente a
limitação de fim de semana – quando o apenado, aos sábados e domingos, deverá permanecer,
por pelo menos cinco horas diárias em casa de albergado, onde poderão ser ministrados cursos
e palestras educativas.
A segunda possibilidade de aplicação encontra-se na suspensão condicional da pena,
quando preenchidos os requisitos para tanto – desde que o crime cometido tenha sido
praticado por algum tipo de envolvimento com drogas e, na sentença, tenha o magistrado
especificado a “obrigatoriedade do agente se submeter a tratamento, sujeito a fiscalização
judicial”.
184
180
MARANHÃO NETO, Arnaldo Fonseca de Albuquerque. Estudos sobre a Justiça Terapêutica, p. 22.
181
BARDOU, Luiz Achylles Petiz. Justiça Terapêutica: origem, abrangência territorial e avaliação, p. 2.
182
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica: um programa judicial de atenção ao infrator usuário e ao
dependente químico, p. 10. Disponível em http://www.anjt.org.br/index.php?id=99%n=86. Acesso em 28 de
junho de 2006.
183
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica..., p. 10.
184
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica..., p. 11.
69
a terceira hipótese de aplicação da JT seria através do sistema dos Juizados
Especiais Criminais, quando nos crimes de menor potencial ofensivo e não sendo caso de
arquivamento, o Ministério público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de
direitos ou multa,
185
quando poderá ocorrer o que se convencionou chamar de transação penal.
A quarta possibilidade também está assentada na lei 9.099 de 1995, mas dessa vez
quando se tratar da possibilidade de oferecimento de proposta de suspensão condicional do
processo pelo Ministério Público, no momento do oferecimento da denúncia. Todavia, reza o
artigo 76 da referida lei que “o juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada
a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado”. Entende Oliveira
e Silva que esta cláusula da lei
autoriza o juiz do processo a estabelecer outras condições a que fica subordinada a
suspensão. E é razoável a interpretação de que uma dessas outras condições possa
ser a obrigatoriedade de o acusado se submeter a tratamento contra as drogas,
exatamente dentro do conceito filosófico da Justiça Terapêutica.
186
Por fim, desnecessário mencionar que a quinta e mais expressa possibilidade de
aplicação da Justiça Terapêutica está inserida no Estatuto da Criança e do Adolescente,
conforme referido acima.
Oliveira e Silva termina sua exposição das hipóteses legais de aplicação da JT dizendo
que
dessa forma, resumidamente pode-se afirmar que, sem embargo da adoção pelo
Brasil de legislação específica a regular a submissão de infratores a tratamento
compulsório, quando o delito praticado envolver o uso e consumo de substâncias
que causem dependência, as boas técnicas de hermenêutica autorizam, desde logo,
com base na legislação existente, a adoção do princípio do tratamento
compulsório.
187
(grifo nosso)
185
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica..., p. 11.
186
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica..., p. 12.
187
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica..., p. 12.
70
Um dos objetivos da Justiça Terapêutica também seria a pretensão de diminuição da
reincidência nos delitos que envolvam o uso de drogas, tanto direta quanto indiretamente. O
Projeto Justiça Terapêutica objetiva a prevenção “dessas espécies de infrações, bem como a
promoção do bem-estar físico e mental e da segurança dos indivíduos que nelas se
envolveram, incentivando políticas de saúde e sensibilizando e conscientizando a sociedade
em geral para o direito à cidadania.”
188
Percebe-se que o usuário ou dependente químico seria submetido a uma intervenção
terapêutica, com acompanhamento de uma equipe interdisciplinar, restando a dúvida da
limitação temporal desse tratamento. Conforme Silva et alii, (...) encerrado o processo, a
indicação de continuidade ou não do tratamento, seria realizado pela equipe de saúde.”
189
Na
hipótese de descumprimento das condições estabelecidas na terapêutica, o processo penal
seria novamente instaurado.
2.5 A Justiça Restaurativa
Quanto à Justiça Restaurativa segundo novo modelo de administração da justiça
criminal que escolhemos para analisar – trata-se de uma aproximação que pretende enfrentar o
fenômeno da criminalidade privilegiando “toda forma de ação, individual ou coletiva, visando
corrigir as conseqüências vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito
ou a reconciliação das partes ligadas a um conflito.”
190
Surge, portanto, como alternativa à
falência estrutural do modelo tradicional de sistema criminal, tendo como desafio retrabalhar
os dogmas da justiça criminal, a fim de restaurar o máximo possível do status quo anterior ao
delito.
Para Alison Morris, por um lado, trata-se de
188
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica..., p. 12.
189
SILVA et alii, Justiça Terapêutica, p. 04.
190
JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa, p. 6.
71
uma reação à perceptível ineficiência e alto custo (humano e financeiro) dos
procedimentos da justiça convencional e, por outro, como uma reação ao fracasso
desses sistemas convencionais em responsabilizar expressiva ou significativamente
os infratores ou em atingir adequadamente as necessidades e interesses das
vítimas.
191
Frontalmente associada, em seu início, ao movimento de descriminalização, Mylène
Jaccould refere que a Justiça Restaurativa deu
passagem ao desdobramento de numerosas experiências-piloto do sistema penal a
partir da metade dos anos setenta (fase experimental), experiências que se
institucionalizaram nos anos oitenta (fase de institucionalização) pela adoção de
medidas legislativas específicas. A partir dos anos 90, a justiça restaurativa conhece
uma fase de expansão e se vê inserida em todas as etapas do processo penal.
192
Seus objetivos seriam “restituir à vítima a segurança, o auto-respeito, a dignidade e,
mais importante, o senso de controle”, e atribuir “(...) aos infratores a responsabilidade por
seu crime e respectivas conseqüências; restaurar o sentimento de que eles podem corrigir
aquilo que fizeram e restaurar a crença de que o processo e seus resultados foram leais e
justos.”
193
Para L. Lynette Parker,
os valores da justiça restaurativa encontro, inclusão, reparações e reintegração
enfatizam a restauração dos prejuízos causados pelo crime, levando a pessoa a
assumir a responsabilidade por suas próprias ações e trabalhando para criar um
futuro mais positivo para vítima e o infrator.
194
Conforme Jaccould, as diferenças entre o direito penal e o direito restaurador residem
no fato de (a) o primeiro centrar seu apoio na infração cometida, enquanto o segundo adota
como referência os erros causados pela infração; este, (b) concede à vítima um local central e,
aquele, relega-a a um lugar secundário; (c) o direito restaurativo encontra seus objetivos a
partir da satisfação vivenciada pelos principais envolvidos pela infração, enquanto o direito
penal está centrado na noção de justa pena aos culpados, dentre outras diferenças.
195
191
MORRIS, Alison. Criticando os Críticos: uma breve resposta aos críticos da justiça restaurativa, p. 3.
192
JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências..., p. 4.
193
MORRIS, Alison. Criticando os Críticos..., p. 3.
194
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: um veículo para a reforma?, p. 2.
195
JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências..., p. 4.
72
A Justiça Restaurativa pretende, ainda, apoiar-se “no princípio de uma redefinição do
crime. O crime não é mais concebido como uma violação contra o estado ou como uma
transgressão a uma norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e
conseqüências”,
196
focando a atenção na possível solução do problema através do diálogo
entre as partes (direta ou indiretamente envolvidas: agressor, vítima, amigos, parentes,
pessoas importantes para as partes, etc.). A infração, então, deixa de ser um mero tipo penal
violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de origens
obscuras e complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito.
Morris enfatiza esse mesmo aspecto, salientando que “os sistemas de justiça
convencional vêem o crime principalmente (muitas vezes exclusivamente) como uma
violação dos interesses do Estado e as respostas a tal transgressão são formuladas por
profissionais representando o Estado,”
197
excluindo, portanto, a vítima da relação processual
pós-transgressão e relegando-a a segundo plano.
Consoante assevera Marcos Rolim, os procedimentos da Justiça Restaurativa exigem
que as partes exponham com toda a franqueza seus sentimentos, suas angústias, seus temores
e que tornem mais claro quais são as suas expectativas.”
198
Serão chamadas para que
exponham seus pontos de vista, suas versões do acontecido, e será oportunizado um momento
para que cada um dos envolvidos se manifeste, mesmo que não tenha estado presente no
momento da infração. No entanto, as partes não poderão ser obrigadas a participar desse
procedimento: deverão fazê-lo de forma voluntária, sob pena de haver prejuízo latente para
que se atinjam os resultados pretendidos.
199
O modelo restaurativo “pressupõe a concordância
de ambas as partes (réu e vítima), concordância essa que pode ser revogada unilateralmente,
sendo que os acordos devem ser razoáveis e as obrigações propostas devem atender ao
princípio da proporcionalidade.”
200
196
JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências..., p. 7.
197
MORRIS, Alison. Criticando os Críticos..., p. 3.
198
ROLIM, Marcos. Justiça Restaurativa: para além da punição, p. 25.
199
ROLIM, Marcos. Justiça Restaurativa..., p. 25.
200
GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil?, p. 4.
73
De acordo com André Gomma de Azevedo, a Justiça Restaurativa introduz uma nova
tendência sistêmica, onde “as partes envolvidas em determinado crime (e. g. vítima e ofensor)
conjuntamente decidem a melhor forma de lidar com os desdobramentos da ofensa e suas
implicações futuras,”
201
enfatizando-se a busca da reafirmação da “responsabilidade de
ofensores por seus atos ao se permitirem encontros entre estes e suas vítimas e a comunidade
na qual estão inseridos.”
202
Oferecer “genuínas oportunidades de total e direto envolvimento
das partes nos procedimentos judiciais”, de forma absolutamente diversa dos modos
convencionais de justiça criminal, é o que defende Pedro Scuro Neto, para quem a inclusão
das partes no desenvolver do enfrentamento do problema é característica fundamental do
modelo restaurativo.
203
Renato Sócrates Gomes Pinto chama a atenção para uma possível democracia
participativa na Justiça Criminal, que poderia ser realizada a partir de práticas restauradoras,
“uma vez que a vítima, o infrator e a comunidade se apropriam de significativa parte do
processo decisório, na busca compartilhada de cura e transformação, mediante uma
recontextualização construtiva do conflito, numa vivência restauradora.”
204
O processo
ultrapassaria a superficialidade e buscaria o aprofundamento “no conflito, enfatizando as
subjetividades envolvidas, superando o modelo retributivo.”
205
Para Jaccould, “a justiça restaurativa abrange uma tal pluralidade de objetivos que o
é mais possível inserir isto em um modelo de justiça específico”, e cita uma famosa definição
de Robert B. Cormier, que já estaria defasada:
A justiça restaurativa é uma aproximação de justiça centrada na correção dos erros
causados pelo crime, mantendo o infrator responsável pelos seus atos, dando
diretamente às partes envolvidas em um crime – vítima(s), infrator e coletividade – a
oportunidade de determinar suas respectivas necessidades e então responder em
seguida pelo cometimento de um crime e de, juntos, encontrarem uma solução que
permita a correção e a reintegração, que previna toda e qualquer posterior
reincidência.
206
201
AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação Vítima-Ofensor na Justiça Restaurativa: uma breve
apresentação de uma inovação epistemológica na autocomposição penal, p. 1. Apud ASHFORD, Andrew.
Responsabilities, Rights and Restorative Justice, p. 578.
202
AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação..., p. 2.
203
SCURO NETO, Pedro. Chances e Entraves para a Justiça Restaurativa na América Latina, p. 5.
204
GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa..., p. 3.
205
GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa..., p. 3.
206
A definição exposta pode ser encontrada em CORMIER, Robert B.
74
No mesmo sentido, Gomes Pinto assevera que por se tratar de um novo paradigma, o
conceito de Justiça Restaurativa ainda é algo inconcluso”, não podendo ser mensurado senão
como um movimento ainda emergente.
207
Porém, apesar de se constituir, de fato, em um paradigma emergente, pode-se dizer
que já há “um crescente consenso internacional a respeito de seus princípios, inclusive oficial,
em documentos da ONU e da União Européia, validando e recomendando a Justiça
Restaurativa para todos os países.”
208
Na Resolução nº. 2000/12, de 24 de julho de 2000, do Conselho Econômico e Social
das Nações Unidas, a Organização das Nações Unidas divulga os “Princípios Básicos para a
Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal”. Instituiu-se, a partir
da referida Resolução, que:
(1) Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use
processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos; (2) Processo
Restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando
apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por
um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime,
geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir
a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e
círculos decisórios (sentencing circles); (3) Resultado Restaurativo significa um
acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem
respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário,
objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das
partes, bem assim promover a reintegração da vítima e do ofensor; (4) Partes
significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da
comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo
restaurativo; (5) Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira
justa e imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo
restaurativo.
209
A prática restauradora deve ser marcada, portanto, pela voluntariedade na participação
e pelo consenso por parte da vítima e do ofensor quanto aos fatos essenciais relativos à
infração e, ainda, pela assunção da responsabilidade por parte do infrator, conforme
207
GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa..., p. 3.
208
GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa..., p. 5.
209
Disponível em http://www.restorativejustice.org/rj3/rjUNintro2.html . Acesso em 15 de setembro de 2006.
75
entendimento de Renato Campos de Vitto.
210
Para o autor, deve ainda “haver indícios que
sustentem o recebimento de uma acusação formal para que possa ela ser iniciada”,
211
de forma
a não ser excluir da Justiça Restaurativa os direitos e garantias individuais do suposto infrator.
Reunindo os interessados em local neutro, deve se desenvolver, “basicamente, em
duas etapas: uma na qual são ouvidas as partes acerca dos fatos ocorridos, suas causas e
conseqüências, e outra na qual as partes devem apresentar, discutir e acordar um plano de
restauração.”
212
No entanto, é fundamental que sejam asseguradas às partes as informações
necessárias sobre as etapas do procedimento e as conseqüências de suas decisões, sem excluir
a garantia de suas seguranças física e emocional; o sigilo de todas as discussões levadas a
efeito durante a prática restauradora; e a redação do eventual acordo em termos claros e
precisos, devendo o mesmo ser razoável, proporcional e líquido, com a previsão das formas
para se garantir seu cumprimento e a fiscalização das condições nele instituídas.
213
Para Chris Marshall, um encontro pode ser considerado restaurativo se: (a) for guiado
por facilitadores competentes e imparciais; (b) esforçar-se para ser inclusivo e colaborativo;
(c) contar com a participação voluntária das partes; (d) fomentar um ambiente de
confidencialidade; (e) reconhecer convenções culturais; (f) enfocar necessidades; (g)
demonstrar respeito autêntico por todas as partes; (h) validar a experiência da vítima; (i)
esclarecer e confirmar as obrigações do infrator; (j) visar resultados transformativos; (k)
observar as limitações de processos restaurativos.
214
A ausência de um desses valores pode
tornar o processo restaurativo obsoleto e inútil.
A preocupação com as partes, por sua vez, não se limita ao período da prática
restaurativa: também é necessário um acompanhamento após o encontro, para que se monitore
o acordo e avalie o seu cumprimento.
215
Porém, e no mesmo sentido exposto acima, salienta ainda Vitto que não é possível
210
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos, p. 4.
211
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal..., p. 4.
212
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal..., p. 5.
213
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal..., p. 5.
214
MARSHALL, Chris. Como a Justiça Restaurativa Assegura a Boa Prática: uma abordagem baseada em
valores, pp. 6-9.
215
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal..., p. 5.
76
avançar além do estabelecimento das linhas mestras do modelo, por duas razões: o
sistema caracteriza-se por uma considerável diversidade, contemplando a realização
de círculos, painéis e conferências restaurativas, entre outros métodos; o
procedimento é profundamente marcado pela flexibilidade, que este que deve
ajustar-se à realidade das partes, e não forçá-las a adaptarem-se aos ditames gidos,
formais e complexos, caracterizadores do sistema tradicional de justiça.
216
2.6 A Justiça Instantânea
O Projeto Justiça Instantânea: criado pela resolução nº 171/1996 do Conselho da
Magistratura do Rio Grande do Sul para concretizar o que prevê o art. 88, inc. V do ECA,
217
o
Projeto Justiça Instantânea (JIN), anteriormente situado no prédio administrativo da Fundação
de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASERGS), hoje localizado no
Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente, iniciou suas atividades em 08
de maio de 1996, pretendendo dar maior rapidez aos trâmites processuais envolvendo
adolescentes acusados de atos infracionais.
estão reunidos Poder Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público e a
Secretaria de Justiça e Segurança, através de duas Delegacias de Polícia, de forma a propiciar
um “pronto-atendimento” – em “tempo real” – a tais ocorrências.
No local foi possível acompanhar inúmeros episódios envolvendo os adolescentes
abrigados no Abrigo Municipal Ingá Brita que eram acusados da prática de ato infracional.
2.6.1 Procedimento
216
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal..., p. 4.
217
“ECA. Art. 88: São diretrizes da potica de atendimento: (...) V integração operacional de órgãos do
Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança blica e Assistência Social, preferencialmente em um
mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato
infracional.”
77
Inicialmente levados à Delegacia Estadual da Criança e do Adolescente (DECA), a(s)
vítima(s) narra(m) o fato ao delegado que, a seguir, ouve o adolescente acusado. Verificada a
real hipótese de ocorrência de delito, o adolescente é enviado ao Ministério Público. Este, por
sua vez, ouve o adolescente novamente e decide pela proposta ou não de remissão,
218
nos
termos do art. 127 do ECA: caso decida pela remissão, cumulada ou não com aplicação de
medida sócio-educativa, é assinado um termo e o adolescente, após a homologação judicial, é
liberado; caso se decida pela representação, o adolescente é encaminhado ao Poder Judiciário,
que dispõe de um magistrado no local, de forma a ser realizada a primeira audiência
mesmo. Pode o Ministério Público, ainda, requerer a internação provisória do adolescente, o
que também será apreciado pelo juiz plantonista. Ali, de regra, são imediatamente
solucionados, com sentença.”
219
2.6.2 Justificativas
Com o intuito de propiciar uma resposta imediata aos adolescentes acusados da prática
de atos infracionais, a Justiça Instantânea está alicerçada no art. 88, inciso V do Estatuto da
Criança e do Adolescente, como mencionado acima, sendo diretriz da política de atendimento
ao adolescente acusado de ato infracional a operação integrada do Poder Judiciário, do
Ministério Público, da Defensoria Pública, da Segurança Pública e da Assistência Social,
preferencialmente em um mesmo local, de forma a se realizar o atendimento inicial de
“maneira ágil”.
Com essa base legal, criou-se o Projeto Justiça Instantânea. E, após alguns anos de sua
implantação, uma rotina de procedimentos manteve-se e, pelo que se pôde observar, será
mantida por longo tempo (se é que algum dia poderá ser modificada).
218
A remissão do ECA originou a transação penal da Lei 9.099/95, sendo esta semelhante em praticamente todos
os aspectos àquela.
219
SARAIVA, João Batista Costa. A Idade e as Razões: não ao rebaixamento da imputabilidade penal, p. 101.
78
José Antônio Daltoé Cezar, juiz da infância e da juventude em Porto Alegre, redigiu
texto em que explicita os objetivos, os procedimentos e mais alguns dados acerca da Justiça
Instantânea.
220
Com essa base, depreende-se que o projeto,
que busca uma justiça ágil e eficiente, colocando os reais interesses dos adolescentes
acima de dogmas forenses, como o de que sua proteção poderá ocorrer através do
processo formal de conhecimento, seria de pronto extinto em razão da pouca ou
nenhuma serventia para o sistema de Infância e da Juventude.
221
O magistrado segue a exposição das suas idéias, referindo que
a idéia defendida por alguns, embora respeitável, de que a concessão de remissão e a
aplicação de medida socioeducativa pode apenas suspender o processo de
conhecimento e que o seu não-cumprimento o autoriza, em hipótese alguma, a
regressão para internamento prevista no art. 122 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, salvo melhor juízo, desconsidera não apenas o objetivo maior dessa
legislação, que visa a proteção e a recuperação do infrator, que ocorre também
quando a ele se impõem limites que ainda não conseguiu internalizar, sobrepondo a
elas vetusto entendimento de que proteção se apenas por instrumentos formais,
tal como ocorre no Processo Penal, que em regra servem mais para estender no
tempo o julgamento do processo, sem qualquer intento de reeducar o infrator.
222
Caso fosse majoritária a conclusão de que a remissão apenas suspende o processo de
conhecimento, a Justiça Instantânea perderia
sua razão de existir, pois injustificável seria que o Poder Judiciário, nos
dias atuais, carente de recursos humanos em seus quadros, designasse com
exclusividade Juiz de Direito e servidores para atender imediatamente as ocorrências
policiais derivadas de atos infracionais, aplicando as medidas socioeducativas, e os
infratores só as cumprissem quando e como quisessem, mesmo após aceitá-las,
necessitando, para isto, manter em cartório milhares de procedimentos sem
andamento, com os custos financeiros e demora na tramitação de processos d
decorrentes, pela mera expectativa de que alguns deles possam ser reabertos.
223
Quanto à importância da imediatidade na apuração de atos infracionais, Daltoé Cezar
elenca sete justificativas, referindo que a atuação imediata do Poder Judiciário colabora ainda
na formação do adolescente como ser humano, ensejando: (a) o fim do mito da impunidade, já
220
O texto encontra-se disponível em http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.home.
221
CEZAR, José Antônio Daltoé. Projeto Justiça Instantânea, p. 2.
222
Projeto Justiça Instantânea, p. 3. (grifamos)
223
Projeto Justiça Instantânea, p. 3.
79
que a medida sócio-educativa tem também um caráter sancionatório; (b) uma maior eficácia
na reprimenda de adolescentes bem integrados ao meio onde vivem, acusados da prática de
infrações de pequena repercussão social, em contraponto à lentidão do processo, que
tramitaria por seis ou mais meses e poderia levar o adolescente à estigmatização perante sua
família; (c) em atos infracionais de maior repercussão social, quando necessária a internação
do adolescente, a transmissão da idéia de que a medida não apenas procura punir o
adolescente, mas reeducá-lo, que receberia a ordem de internamento do próprio magistrado
a quem relatou sua versão; (d) a diminuição do número de processos no e Juizados da
Infância e da Juventude do Foro Central de Porto Alegre, bem como diminuição considerável
do tempo de instrução e julgamento dos mesmos em que o adolescente acusado está
internado, uma vez que a maioria dos procedimentos iniciam e terminam na JIN (em 2003
foram 78,80% dos casos); (e) a praticamente inexistência de serviço cartorial convencional;
(f) a inserção das Instituições Públicas na moderna visão de que o serviço prestado deve ser
efetivo não apenas formalmente, ocupando o espaço do Estado como detentor do poder de
resolver os conflitos sociais; e (g) a possibilidade de ação em tempo de tentar mudar a visão
do adolescente acerca das relações sociais e como elas se resolvem, afastando da Justiça
Criminal muitos casos que certamente a ela seriam apresentados no futuro.
224
Por fim, conclui o magistrado que
a ação desenvolvida, fruto da iniciativa e despreendimento de poucas pessoas, que
não hesitaram em contestar conceitos antigos, como os de que se protege os direitos
dos adolescentes, primeiro através da forma, consubstanciada no processo
contraditório convencional, e depois pela imposição de medidas socioeducativas,
esta própria do processo penal, procurando, ao contrário, com a transação, tempo
infinitamente inferior, com a redução de todos os custos passíveis de aferição, e
também com aumento de eficiência, merece o reconhecimento de todos, e,
exatamente por o ser um projeto fechado, está constantemente sendo
aperfeiçoado, sempre com o intuito de reconhecer o calor humano presente em todas
as pessoas e viabilizar, para aqueles que transgredirem as regras para uma boa
convivência, a possibilidade e o interesse na mudança, e que isto será bom não só
para ele, mas para todo o conjunto.
225
224
Projeto Justiça Instantânea, pp. 3-4.
225
Projeto Justiça Instantânea, p. 6.
80
2.7 Os Novos Modelos de Administração da Justiça Criminal: semelhanças e
diferenças
Inicialmente, cumpre notar que as três novas formas de justiça criminal analisadas
acima (Justiças Terapêutica, Restaurativa e Instantânea) apresentam semelhanças e diferenças.
Enquanto umas aparentam seguir a mesma linha do tradicional processo penal, outra revela-se
bastante distante daquele sistema. Cada uma apresenta as suas características próprias e, por
mais que se negue, tentam sempre oferecer uma alternativa à resposta comum do sistema
criminal, a pena privativa de liberdade, através de outros caminhos processuais.
2.7.1 Semelhanças
Em primeiro lugar, importa salientar que tanto a Justiça Terapêutica quanto a Justiça
Instantânea são aplicadas levando-se em consideração os mesmos aspectos do tradicional
sistema de justiça criminal: buscam imunizar o culpado, seja através de um tratamento
(terapia), seja através da aplicação de uma medida sócio-educativa.
Aparentemente, esses dois modelos de justiça penal não conseguem se desvencilhar da
mesma forma de esclarecimento que encontramos no processo penal comum. Suas
características próprias não nos autorizam a pensar que representam, de fato, alternativas
concretas ao processo penal atualmente em vigor no Brasil.
Outro ponto importante a salientar é que toda nova tentativa de oferecer alternativas ao
sistema de justiça criminal tradicional é, via de regra, experimentado na esfera do direito da
infância e da juventude. Ora por considerações dogmáticas o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) o possui natureza penal, conforme entende parte da doutrina e da
jurisprudência sobre o tema
226
ora por se acreditar que “a justiça da infância e da juventude
226
O artigo 198 do ECA (“Nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude fica adotado o sistema
recursal do Código de Processo Civil [...].”) prevê a adoção do sistema recursal do Código de Processo Civil aos
procedimentos afetos à Justiça da Criança e do Adolescente. Esse artigo acaba sendo determinante no raciocínio
81
representa um campo de ação estratégica na prevenção do alastramento da violência e da
criminalidade” e, ainda, por se acreditar que “essa área da justiça é vista pelo projeto como
um espaço estratégico para testagem e implementação de tecnologias restaurativas, que
poderão ressignificar a abordagem do crime e atualizar o próprio modelo de justiça, em
benefício da sua efetividade.”
227
As Justiças Restaurativa e Instantânea, especificamente, são
experimentadas justamente com os adolescentes.
2.7.2 Diferenças
Nota-se que a Justiça Restaurativa diferencia-se dos demais modelos de justiça
criminal por oportunizar à vítima e aos interessados no conflito um local de fala.
Notoriamente a Justiça Terapêutica preocupa-se tão-somente com o acusado: pretende impor
um tratamento, mesmo que contra a vontade do sujeito, a fim de encerrar um problema
criminal. A vítima, nesses casos, sequer existe, uma vez que o bem jurídico tutelado – a saúde
pública – não é palatável, não pode ser facilmente percebida.
a Justiça Instantânea não só mantém a estrutura tradicional do processo penal como
também a potencializa: reduz o tempo de duração do processo e sacrifica o tempo necessário
para a maturação da decisão judicial. A vítima, novamente, resta esquecida.
A grande diferença, como se viu, está na Justiça Restaurativa, que oportuniza uma
complexificação do conflito, tornando impossível uma resposta meramente jurídica ao
problema em pauta.
de muitos juristas quando refletem acerca da natureza jurídica da medida sócio-educativa e, portanto, de todo o
Estatuto. Sem considerá-lo de natureza penal, acabam acreditando que, justamente por isso, podem fazer
“experiências” e “testagem de produtos” nessa esfera jurisdicional.
227
BRANCHER, Leoberto. Justiça, Responsabilidade e Coesão Social: Reflexões sobre a implementação da
Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre, p. 18.
82
3 AS NOVAS FORMAS DE JUSTIÇA CRIMINAL: PARA ALÉM DO PROCESSO
PENAL
3.1 O Século XX e o Fim das Certezas
Acontece que, no direito mormente nos direitos penal e processual penal a
arrogância
228
de seus operadores e doutrinadores impede o reconhecimento da falência do
atual modelo estrutural de processo penal, baseado e fundado na lógica inquisitorial,
absolutamente inconciliável com o que é trazido hoje pelos críticos do modelo científico
moderno.
Para Moretto,
se ainda é possível se falar em ‘ciência’, devemos ter claro que essa, desde o começo
do século XX, está abalada. Essa ciência, à qual estávamos acostumados, veio
durante os últimos dois séculos sofrendo profundas modificações e rupturas. A
228
“... nas ciências sociais, notadamente nas jurídicas, o homem é arrogante, petulante, audacioso (soberbo) e ao
mesmo tempo temerário, ao afirmar que busca a verdade real absoluta no processo penal.” (THUMS, Gilberto.
Sistemas Processuais Penais, p. 186)
83
procura por regras fixas e deterministas mostrou-se profundamente irreal, ou seja,
inoperante no mundo real.
229
Conforme Ruth Gauer, ao final do século XIX e “início do XX, várias foram as
expressões sobre o horror trazido à humanidade pela ciência e pela técnica baseadas em um
suposto império da razão, (...) o qual levaria a humanidade ao paraíso construído na Terra,
pela racionalidade científica.”
230
Desde a chuva de bombas inaugural da Primeira Guerra Mundial foi possível perceber
que a técnica e a ciência o servem somente para a evolução da espécie humana, podendo
servir, igualmente, para a sua aniquilação. Tal percepção desvelou um mundo sujo,
ganancioso, violento, que, antes, pensava-se poder ser corrigido com a ciência, em princípio
somente pensada para o bem da humanidade. Mas a máscara caiu: o projeto moderno da
salvação entrou em crise; não mais que se pensar no futuro, mas no presente, viver cada
minuto como se fosse o último.
231
Para Edgar Morin, é preciso “ensinar e propagar a má
notícia: não há salvação neste mundo.
232
Uma única forma de pensar foi imposta, excluindo as demais apenas por ser esta
considerada científica, que bastaria por si só, sem necessidade de justificativa e/ou
fundamentação. Salo de Carvalho assevera que “a crença na unidade do discurso e na potência
dos métodos científicos forjados na modernidade ofusca o olhar do pesquisador, impedindo-o
de perceber a dimensão das revoluções e dos desafios (riscos) contemporâneos.”
233
O velho paradigma newtoniano pressupunha um espaço absoluto, universal e estável.
“Todas as mudanças verificadas no mundo físico, eram descritas em termos de uma dimensão
separada, denominada tempo; essa dimensão, por sua vez, também era absoluta, sem qualquer
vínculo com o mundo material e fluindo suavemente do passado através do presente e em
229
MORETTO, Rodrigo. Crítica Interdisciplinar da Pena de Prisão..., p. 1.
230
GAUER, Ruth. O Reino da Estupidez..., p. 137.
231
Como obra exemplificativa dessa visão, sugerimos a leitura de LIPOVETSKY, Gilles. La era del
vacio: ensayos sobre el individualismo contemporâneo. Barcelona: Anagrama, 1986; e, do mesmo autor, O
império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.o Paulo: Companhia das Letras, 1991.
232
MORIN, Edgar. Para Sair do Século XX, p. 276.
233
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p. 312.
84
direção ao futuro.”
234
O que ocorre hoje é fruto do que ocorreu ontem e pode dizer o que virá
a acontecer amanhã, numa seqüência interminável e linear: A linearidade do tempo
apresenta-se como unificadora do tempo histórico”.
235
Conforme Ruth Gauer,
O conceito de tempo no pensamento moderno, o tempo cronológico do calendário
cristão, foi utilizado pelo iluminismo europeu como correspondendo a uma noção
universal de temporalidade. A universalidade temporal dos acontecimentos
sucessivos e irrepetíveis foi consubstanciado pelo racionalismo moderno, cobrindo
todo o mundo ocidental.
236
Nesse sentido, acreditava-se que era possível, ao fazer história, poder “apreender um
reflexo exato do passado. (...) Ao olhar para trás, o historiador apreendia os tempos dessas
saliências, e o instinto da história era delimitado por esse eixo harmônico inalterável.”
237
Ou
seja: pensava-se ser possível apreender um determinado “espaço de tempo” do passado no
presente e esmiúça-lo, até que fosse revelada a verdade – autorizada porque científica.
Novamente lembrando Capra, percebe-se que “duas descobertas no campo da física,
culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os principais
conceitos de visão do mundo cartesiano e da mecânica newtoniana”.
238
Primeiramente, cumpre salientar que a partir do momento em que Einstein,
percebendo
a impossibilidade de o observador estabelecer a ordem temporal dos acontecimentos
no espaço não havendo na natureza velocidade superior à da luz, para medir a
velocidade faz-se necessário conhecer a simultaneidade dos acontecimentos –, põe
em dúvida o caráter absoluto do tempo e do espaço, ele rompe com a cosmovisão
moderna. Einstein demonstra que a simultaneidade dos acontecimentos distantes o
pode ser verificada, tão-só definida e, dada a arbitrariedade das medições, a hipótese
de contradição dos resultados é forçosamente incorporada. Sob esse aspecto, uma
nova concepção de conhecimento afeta a visão do tempo que lhe será associada.
239
234
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, pp. 48-49.
235
GAUER, Ruth. Falar em Tempo, Viver o Tempo!, p. 17.
236
GAUER, Ruth. Falar em Tempo, Viver o Tempo!, p. 18.
237
GAUER, Ruth. Falar em Tempo, Viver o Tempo!, p. 18.
238
CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação, p. 69.
239
GAUER, Ruth. O Reino da Estupidez..., pp. 174-175.
85
Segundo Norbert Elias, As correções trazidas por Einstein para o conceito
newtoniano de tempo ilustram essa mutabilidade da idéia na era moderna. Einstein mostrou
que a representação newtoniana de um tempo único e uniforme, através de toda a extensão do
universo físico, não era sustentável.”
240
Ao dizer que é impossível ao observador estabelecer
a ordem temporal dos acontecimentos no espaço (...) põe em dúvida o caráter absoluto do
tempo e do espaço”,
241
rompendo incisivamente com a cosmovisão moderna: “o tempo no
mundo, ao tornar-se incerto, torna-se, por conseqüência, diferente do tempo das ciências
modernas, onde era definido pela possibilidade de definir leis universais e eternas da
natureza.”
242
Desde então, pensar o tempo como um fator absoluto, universalmente válido, tornou-
se complicado, ocasionando importante ruptura com o modelo cosmológico newtoniano, em
que o tempo era o mesmo para todos. “Em outras palavras, a teoria da relatividade sela o fim
do conceito de tempo absoluto!”,
243
afirma Stephen William Hawking, considerado por
muitos o sucessor de Galileu, Newton e Einstein.
A história (e qualquer outra ciência) não pode mais ser produzida partindo da idéia de
que irá relatar exatamente a “verdade” do que ocorreu naquele espaço-tempo pretérito, sendo
forçada a assumir que resgatará apenas um fragmento do fato, a partir dos pontos de vista dos
historiadores (e nas demais ciências, têm-se juristas, psicólogos, etc.). Tal conseqüência
revela-se fundamental para o processo penal, quando a “pequena história” do fato-crime em
questão não pode mais ser resgatada integralmente, como se fosse um mero objeto à espera de
seus sujeitos.
Não podemos deixar de mencionar, também, o que foi percebido por Werner
Heisenberg, em 1926: o princípio da incerteza. Conforme Hawking,
240
ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo, p. 35.
241
GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração (mito, verdade e tempo), p. 6.
242
GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração..., p. 6.
243
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo: do big bang aos buracos negros, p. 44.
86
a fim de prever a posição e a velocidade futuras de uma partícula, devemos ser
capazes de medir, com precisão, sua posição e velocidade atuais. O procedimento
para se obter esta medição é projetar luz sobre a partícula. Algumas ondas de luz se
dispersarão pela partícula indicando sua posição. Entretanto, não seremos capazes de
determinar a posição da partícula de maneira mais precisa do que através da
distância entre as cristas das ondas de luz, de forma que será preciso usar luz de
ondas curtas para se ter um grau razoável de confiabilidade no resultado do
experimento. Mas, segundo a hipótese quântica de [Max] Planck, não se pode usar
uma quantidade arbitrariamente pequena de luz; temos que usar pelo menos um
quantum. Este quantum perturbará a partícula e mudará sua velocidade de forma não
previsível. Quanto mais precisamente se medir a posição, mais curto o comprimento
de onda de luz necessário para atingir a mais alta energia de um único quantum.
Assim, a velocidade da partícula será perturbada por uma quantidade maior. Em
outras palavras, quanto mais precisamente se tentar medir a posição da partícula,
menos precisamente se pode medir sua velocidade, e vice-versa.
244
Tal princípio coloca principalmente o determinismo possivelmente a característica
mais marcante do cientista moderno em situação complicada: a partir da impossibilidade de
se verificar simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula em um determinado
instante, torna-se inviável saber qual será a velocidade ou a posição futura dessa mesma
partícula. Em termos mais próximos à realidade, percebe-se que não é possível prever as
conseqüências de nossas ações. “O princípio da incerteza teve profundas implicações na
forma de percepção do mundo que, mesmo ultrapassados cinqüenta anos, ainda não foram
completamente examinadas pelos filósofos e se mantêm na pauta de muitas controvérsias.”
245
Nesse sentido, não há mais que se falar em previsibilidade de resultados, possibilidade
de êxito e/ou derrota, etc.: o que são probabilidades, e essas não são passíveis de
previsibilidade ou determinação. Para Hawking,
o princípio da incerteza assinala o fim do sonho de Laplace de uma teoria da ciência,
um modelo de universo completamente determinístico; o se pode certamente
prever eventos futuros com precisão, uma vez que também não é possível medir
precisamente o estado presente do universo!.
246
Essas descobertas e observações não só colocam em xeque toda a estrutura do
pensamento moderno como delineiam a urgente necessidade de se repensar o próprio
244
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo..., p. 87.
245
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo…, p. 87.
246
HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo…, pp. 87-88.
87
pensamento. A estrutura do pensamento jurídico, nesse contexto e, dentro da nossa
abordagem, a estrutura do processo penal – é colocada sob suspeita. Urge a necessidade de se
repensar totalmente o que se pode entender como processo penal.
No seio das descobertas da sica no século XX, como visto acima, foi estruturada a
teoria pura kelseniana. Porém, apesar da sua localização temporal” coincidir com tais
descobertas, não foi possível inseri-las na ciência jurídica. A repulsa pelo que é estranho ao
corpus iuris é tão grande que nem mesmo atualmente tais concepções são pensadas como
relevantes para o direito por grande parte da doutrina.
Como primeiros passos para se pensar em uma nova prática científica, Carvalho
aponta “eximir-se da pretensão de busca de verdades definitivas e exortar as unidades
totalizantes próprias dos projetos da Modernidade (...).”
247
Agindo de outra maneira, o
cientista estaria voltando a incidir no mesmo problema dos modernos: pretender buscar
apenas uma verdade e unificar o método.
A epistemologia da certeza com a qual trabalhamos resta, outrossim, questionável. Daí
dizer que a inteligência racionalizadora fragmenta o que se apresenta como complexo e,
novamente com Morin, apontamos a cegueira desta lógica:
os desenvolvimentos disciplinares das ciências não só trouxeram as vantagens da
divisão do trabalho, mas também os inconvenientes da superespecialização, do
confinamento e do despedaçamento do saber. Não produziram o conhecimento e
a elucidação, mas ignorância e a cegueira.
248
Dilui-se, assim, tudo o que é subjetivo e criador.
249
247
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p. 311.
248
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 15.
249
Esclarecedor é o que Morin traz em nota de rodapé: O pensamento que recorta, isola, permite que
especialistas e experts tenham ótimo desempenho em seus compartimentos, e cooperem eficazmente nos setores
não complexos de conhecimento, notadamente, os que concernem ao funcionamento das máquinas artificiais;
mas a lógica a que eles obedecem, estende à sociedade e às relações humanas os constrangimentos e os
mecanismos inumanos da máquina artificial e sua visão determinista, mecanicista, quantitativa, formalista; e
ignora, oculta ou dilui tudo que é subjetivo, afetivo, livre, criador”. (MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita, p.
15.)
88
que falamos em cegueira, impossível não pensar na literatura de José Saramago e,
com ele, viajar num mundo de cegos: “Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver
sem olhos, mas não deixará de ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se
considerará ainda tão humano como antes cria ser.”
250
Quer dizer, a possibilidade de
construção do sentido não se esgota apenas naquilo que é visível com os olhos. algo
inominável que caracteriza também nossa compreensão e que foi relegado pela tradição
racionalizante, mas que é permanente e acolhedor da fatalidade, do acaso: “...Dentro de nós há
uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.
251
É uma questão de olhar (visage)
que assume a impossibilidade do todo e o caráter perspectivo dos sentidos.
Saramago escreve um texto corrido, sem pontuações e com poucos parágrafos, mas
para além de compreender a (des)forma do escritor é importante perceber que a cegueira dos
personagens da referida obra é branca. Ora, a Razão é iluminada, limpa, asséptica, pura. A
pureza, por sua vez, é branca, não pode ser preta: estaria o premiado escritor fazendo uma
crítica à cegueira da Razão branca, limpa, asséptica, pura?
252
A redução da complexidade mundana a meras leis matemáticas acaba por apresentar
uma simplificação insustentável quando se trata de enfrentar uma ciência social aplicada,
como o direito, cujos fenômenos não podem ser descritos através de fórmulas ou símbolos,
sob pena de um reducionismo que beira a irracionalidade.
253
Nesse sentido, pensar o processo penal como meio para se buscar a verdade real de um
fato pretérito não vai de encontro às últimas descobertas das ciências exatas como também
evidencia o conservadorismo característico da dogmática atinente ao tema.
254
A insistente
250
SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira, p. 244.
251
SARAMAGO. Ensaio Sobre a Cegueira, p. 262.
252
Conferir ACHUTTI, Daniel; PANDOLFO, Alexandre Costi. A Razão Asséptica: elementos para pensar o
direito no século XXI.
253
“(...) a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um
horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais
interesse humano, ficam por conhecer.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p. 72.)
254
“... o homem das ciências naturais a cada dia busca desvendar novos horizontes, eis que se encontra diante de
desafios constantes, enquanto o homem das ciências jurídicas ainda o acordou para os ‘novos tempos’. O
Direito, como ciência social, apesar da necessidade de acompanhar a evolução da sociedade e de seus fenômenos
que exigem normatização, o consegue cumprir o seu papel, manifestando exagerado apego ao
conservadorismo, refletido nas leis e nas decisões dos tribunais.” (THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais
Penais, p. 8)
89
natureza reveladora do processo penal, legitimada não pela doutrina
255
como pela
jurisprudência,
256
submete os acusados em geral a um procedimento injustificável
cientificamente, sustentado apenas pela crença no que se pode chamar de ilusão moderna,
qual seja, a de que o homem é capaz de reconstituir, através da memória testemunhal e/ou
documental – um fato pretérito e, ainda, formar um juízo de certeza acerca do mesmo,
baseado (sempre) no método cartesiano.
3.2 Os Limites do Processo Penal na Sociedade Complexa
O que seria o processo penal senão uma fórmula redutora de complexidade, ou aquilo
que Salo de Carvalho chama de método de despedaçamento?
257
Senão vejamos: (a) através de um procedimento inquisitorial (inquérito), procura-se
averiguar a existência ou não de um crime (materialidade e autoria); que (b), em caso
positivo, seremetido ao Ministério Público que (c), por sua vez, reduzirá a termo o que
lhe disseram, denunciando o então investigado, que passará à qualidade de acusado; e, (d)
através de um exercício coletivo de rememorização (do qual participam as testemunhas, a
vítima e o acusado), cada um participando no momento apropriado, pré-estabelecido pela lei,
na tentativa de se demonstrar àqueles que não presenciaram o evento (juiz, promotor e
advogado) o que, de fato, aconteceu no passado, para que possam se manifestar e participar
dentro de suas limitações; para (e), ao final, o juiz, legitimado pelo Poder Público para decidir
o entrave, a partir de uma visão geral sobre todas as partes trazidas ao processo, proferir a sua
sentença. Neste momento, o juiz irá expor as suas razões fundamentadamente, mostrando que
entendeu todas as pequenas partes do processo, decidindo a causa. É a aplicação perfeita do
método cartesiano ao procedimento inquisitorial. Ou seja: o que mudou, pode-se dizer, foi
tão-somente a linguagem e os termos atribuídos aos atos processuais. O procedimento, as
justificativas, a finalidade e, principalmente, a crença, continuam as mesmas.
255
Conferir nota n. 62.
256
Conferir as notas n. 71 a 77.
257
In Criminologia e Transdisciplinaridade, p. 311.
90
Quanto se fala em rememorização dos eventos, trata-se de evidenciar a função da
memória, que é chamada ao processo (penal) para que resgate o que “sobrou” do fato e tente
reconstruí-lo no presente. E quanto maior o número de testemunhas, mais fidedigna restará a
recomposição do fato (e mais tranqüilo ficará o julgador ao sentenciar).
Nesse sentido, resgata-se a noção de espaço e tempo absolutos: acreditando ser
possível abarcar perfeitamente um fragmento do passado (que circunscreve o delito), o juiz
procura descobrir o que aconteceu, quem foi o autor do crime e qual foi o dano produzido,
através do questionamento às testemunhas (e, às vezes, à própria vítima), exatamente como
ocorria no inquérito relatado por Foucault.
Não é novidade que, com o passar do tempo, a memória vai deixando para trás alguns
detalhes do que fora anteriormente presenciado. De fato, “podemos, inconscientemente,
alocar uma série de informações sobre o outro que não se relacionam aos seus atos, mas sim a
um olhar que acabamos consolidando sobre tudo aquilo que pressupomos que o outro seja.”
258
De acordo com António Damásio, toda vez que lembramos de “um dado objecto, um
rosto ou uma cena, não obtemos uma reprodução exacta, mas antes uma interpretação, uma
nova versão reconstruída do original. Mais ainda, à medida que a nossa idade e experiência se
modificam, as versões da mesma coisa evoluem”.
259
Segue o neurologista português dizendo
que
a negação de fotos permanentes do que quer que seja possam existir no cérebro tem
de ser reconciliada com a sensação, que todos nós partilhamos, de que podemos
evocar, nos olhos ou ouvidos da nossa mente, imagens aproximadas do que
experienciámos anteriormente. O facto de estas aproximações não serem exactas, ou
de serem menos vívidas que as imagens que tencionam reproduzir, não é uma
contradição.”
260
258
VASCONCELLOS, Silvio José Lemos; GAUER, Gabriel José Chittó. Contribuições da Psicologia Cognitiva
para a compreensão dos diferentes olhares direcionados ao comportamento delitivo., p. 134.
259
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes, p. 116.
260
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes, pp. 116-117.
91
Tais imagens poderiam ser, então,
construções momentâneas, tentativas de réplica, de padrões que foram
experienciados pelo menos uma vez e para os quais a probabilidade de se obter uma
réplica exacta é baixa, sendo de notar que a probabilidade de ocorrer uma réplica
substancial pode ser superior ou inferior, dependendo das circunstâncias em que as
imagens foram assimiladas e estão a ser acedidas. Estas imagens evocadas tendem a
ser retidas na consciência apenas de forma passageira, e, embora possa parecer que
constituem boas réplicas, são frequentemente imprecisas ou incompletas.
261
A partir de então, é natural que a memória preencha esses espaços de esquecimento
com outras informações (in)conscientemente construídas, muitas vezes sem qualquer relação
com o que de fato ocorreu. Pelas palavras de Rui Cunha Martins, “a memória, ou a sua
reprodução na consciência, é passível de revisão”, mas parece persistir, “colado à memória,
um aviso de não mexer, ou de agitar com cuidado. Críptico, inconfessado, um tabu instalado
em torno da memória dá mostras de resistir.”
262
De acordo com François Ost, “Não
memorização sem triagem seletiva, não há comemoração sem invenção retrospectiva.”
263
Henri Bergson, no final do século XIX, antecipava o que veio a ser comprovado pelos
neurocirurgiões às vésperas do século XXI, conforme visto acima: O que você tem a
explicar, portanto, não é como a percepção nasce, mas como ela se limita, já que ela seria, de
direito, a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, àquilo, que interessa a você.”
264
O mecanismo de verificação da lembrança das testemunhas e vítimas do evento
delitivo durante a instrução criminal encontra-se completamente defasado frente às novas
concepções de tempo, espaço, velocidade, memória, etc., oriundas da sociedade
contemporânea. Como se situaria, então, o direito em especial, o direito processual penal
nesse contexto de crise das condições de possibilidade da própria ciência moderna? Com um
tempo reconhecidamente diferente daquele do modelo newtoniano, uma memória
indubitavelmente falível (e, justamente por isso, demasiado humana) e uma impossibilidade
de apreender por completo um fato pretérito (no caso, o fato-crime), o processo penal teria
261
DAMÁSIO, António. O erro de Descartes, p. 117.
262
MARTINS, Rui Cunha. O nome da alma: “memória”, por hipótese, pp. 22 e 23.
263
OST, François. O Tempo do Direito, p. 63.
264
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, p. 39.
92
como manter sua proposta de reconstituir o fato e buscar o que realmente ocorreu em uma
linguagem jurídica, a tão visada “verdade real”?
Para além de quaisquer considerações acerca da (in)viabilidade de concretização dessa
crença, vale lembrar o que diz Aury Lopes Jr.: “A verdade absoluta é sempre intolerante, sob
pena de perder seu caráter ‘absoluto’.”
265
A exposição das limitações do processo penal, desde a sua lógica inquisitorial de
presentificação do delito,
266
procuram demonstrar a sua (in)capacidade para lidar com
fenômenos complexos, uma vez que fundado em bases epistemológicas ultrapassadas e,
portanto, inaptas para comportar uma resposta” satisfatória aos delitos. E os novos modelos
de gestão de conflitos em sede criminal, não podem simplesmente ser apresentados como
solucionadores dessa crise, mas também necessitam ser exaustivamente questionados se,
como possíveis substitutos do processo penal, poderão ser, de fato, mais eficazes do que o
processo penal.
3.3 As Novas Formas de Justiça Criminal Assumem a Complexidade
Na esteira de Luiz Antônio Bogo Chies, “aquilo, pois, que chamamos de crime (...) é
um complexo fenômeno permeado por interesses e valorações de interesses que se enfrentam
a partir de referenciais também permeados de interesses e valorações.”
267
De acordo com esse
entendimento, não é difícil perceber que a lógica do direito e do processo penal modernos são
absolutamente contrários a essa noção: enquanto o crime é uma violação da lei, em que ocorre
um enfrentamento à ordem jurídica, o processo penal é a forma necessária que deve ser
observada para que alguém possa vir a ser penalizado. Ou seja: o crime e o processo penal
modernos não levam em consideração absolutamente nada além de sua própria
265
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, p. 170.
266
Sobre o assunto, conferir CARVALHO, Salo de. Memória e Esquecimento nas Práticas Punitivase, ainda,
GARAPON, Antoine. Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário.
267
CHIES, Luiz Antônio Bogo. É Possível se Ter o Abolicionismo como Meta, Admitindo-se o Garantismo como
Estratégia, pp. 195-196.
93
sustentabilidade. Não alteridade no direito penal, e não outra forma de resolver os
conflitos criminais senão por aquela via pré-estabelecida pela legislação.
Nesse sentido, mais cedo ou mais tarde a totalidade da lei iria se confrontar com a
diversidade de culturas, de idéias, de valores e de referências: quando da emergência do
pensamento moderno, a Razão se estabeleceu como a única forma de revelar a verdade,
explicar o mundo e controlar a natureza, em substituição a uma forma anterior de revelação
igualmente totalitária: a palavra do Papa e dos bispos da Igreja Católica.
Evidentemente que em um contexto de totalidade de pensamento, de imposição de
uma forma de pensar sobre outras, o direito acabou sendo inserido nessa lógica: a lei,
expressão da vontade comum, revela a única maneira para se solucionar os conflitos em
sociedade. O que não es na lei, não pode ser usado, sob pena de uma relativização que
poderia arruinar os pilares de sustentação da base epistemológica do direito.
No entanto, não há mais que se duvidar que, de fato, o multiculturalismo e o
pluralismo jurídico
268
impedem que uma única lei possa dar conta de todos os problemas
criminais em um país inteiro mormente quando se trata de um país de dimensão continental
como o Brasil. A crise do direito vem se desenvolvendo desde o momento em que a sua
estrutura foi considerada como válida para todos e, portanto, universalmente aceita. O
impedimento de outras formas de pensamento é impositivo, e a conseqüência não poderia ser
outra: a deflagração da impossibilidade de se alcançar o sucesso através de uma fórmula
única, de um pensamento único. A crise do direito e, para a nossa análise, a crise do direito
processual penal, não pode mais ser desconsiderada.
As novas formas de resolução dos conflitos criminais devem assumir a complexidade
do fenômeno criminal ou então, acreditamos, estarão fadadas ao fracasso. Ignorar que o crime
não pode ser analisado somente pelo viés jurídico deixou de ser uma postura inovadora para
se tornar uma condição necessária para o enfrentamento das questões criminais
contemporâneas.
268
Conferir WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico.
94
Nesse sentido, salientamos que, apesar da simplicidade de alguns modelos de justiça
criminais, não podemos também deixar de mencionar o grande avanço propiciado pelos
Juizados Especiais Criminais, quando possibilitaram o ingresso da vítima no campo de
discussão do problema penal e, assim, oportunizaram que a crise do processo penal fosse
encarada oficialmente, uma vez que o próprio Estado editou uma lei (a 9.099, para o nosso
caso) que deflagrou a falência do sistema processual penal vigente.
Uma abordagem crítica dos Juizados Especiais Criminais, bem como das outras três
formas de justiça criminal, será realizada a seguir, de forma a se constatar se ou o uma
assunção da complexidade dos conflitos criminais por parte de cada uma dessas formas
processuais penais.
3.3.1 Os Juizados Especiais Criminais: abordagem crítica
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é incisivo na crítica à lei 9.099/95, e assevera que
se tratava de “um aceno a uma nova perspectiva, com os limites fixados no texto e, por óbvio,
para gerar uma estrutura compatível com os demais princípios da matéria na própria Carta.”
269
Seria necessário, portanto, discutir até onde tais critérios poderiam avançar; mas, para esse
autor, não foi o que aconteceu:
Com a desculpa de que se tratava de algo novo (...) lançou-se mão, de modo
açodado, da técnica que se tem utilizado ultimamente para se fazer passar, à revelia
do país, as leis de que tanto se tem falado mal: sem discussão (pelo menos de
relevância, onde a sociedade, diretamente interessada, seja realmente ouvida), os
governos têm proposto anteprojetos de leis que, não raro, são promulgados por
acordos de lideranças; e à traição da nação, que vai pagar pelos prejuízos. (...) No
caso da Lei 9.099/95 não foi diferente. Mais uma vez se evitou um amplo debate
nacional, inclusive para se saber se ela era necessária; e, adiante, na forma
atabalhoada como foi aprovada.
270
Continua o autor referindo que
269
COUTINHO, Jacinto. Manifesto Contra os Juizados Especiais Criminais (Uma Leitura de Certa
“Efetivação” Constitucional), p. 4.
270
COUTINHO, Jacinto. Manifesto Contra os Juizados..., pp. 4-5.
95
a CR consagra, em definitivo, um sistema processual penal acusatório (...), o qual
deveria servir de base à legislação toda, inclusive à estrutura que se fosse criar para
atender às infrações penais de menor potencial ofensivo, mas tal não ocorreu e a lei,
então, já nasceu velha, sem que isso seja, por certo, questão a ser imputada ao
Parlamento. Enfim, era necessário legislar bem; em conformidade concreta e não
só discursiva – com a CR; e com uma cara efetivamente nova.
271
No mesmo sentido, Alexandre Wunderlich refere que “a ausência de debate e a
publicação de textos sem critério científico ou mesmo sem qualquer investigação empírica
vêm construindo o paradigma da miséria acadêmica dos últimos anos.”
272
Para Coutinho e
Wunderlich, portanto, trata-se de uma questão que poderia ter sido enfrentada quando da
discussão do projeto de lei que resultou na lei 9.099/95. Porém, a ausência de um diálogo
acadêmico sério colaborou para o fracasso da lei dos Juizados Especiais.
O autor assevera, ainda, que se “o conflito chega à justiça retratado em infração com
dignidade penal, é porque merece ser solucionado à luz de um modelo de garantias que se
legitima como um sistema de poder mínimo, no plano político, capaz de minimizar violência
e de maximizar liberdade.”
273
Nesse sentido, não seria possível abrir mão das garantias
quando uma pessoa fosse acusada formalmente da prática de um crime, sob pena de retorno a
um processo penal que não propiciasse efetivos meios de assegurar o acusado do poder
punitivo estatal.
E, para finalizar a sua contundente crítica, Wunderlich apresenta um diagnóstico do
fracasso da lei 9.099/95, apontando dez razões para tanto: (1) o excessivo número de conflitos
e a burocratização judicial; (2) o processo de seletividade exercido pela vítima e o seu “poder
denunciante”: a facilidade do registro do termo circunstanciado e a obrigatoriedade do
encaminhamento aos Juizados; (3) ser decisor” e ser conciliador”: o despreparo dos juízes
na mediação do conflito; (4) a ausência da vítima em audiência: criação do instituto da
desistência tácita em ação penal pública; (5) conciliação infrutífera nos casos de violência
contra a mulher e ausência de assistência estatal no pós-conflito; (6) o descumprimento dos
271
COUTINHO, Jacinto. Manifesto Contra os Juizados..., p. 6.
272
WUNDERLICH, Alexandre. A Vítima no Processo Penal (impressões sobre o fracasso da lei nº. 9.099/95),
p. 32.
273
WUNDERLICH, Alexandre. A Vítima no Processo Penal..., p. 27.
96
termos legais da audiência preliminar: audiências á distância e/ou coletivas; (7) realização de
audiências sem a presença do MP e as partes sem assistência jurídica; (8) dificuldade para o
arquivamento, imposição de aceitação da transação penal e ausência de critério razoável para
o oferecimento da proposta; (9) a transação penal como imposição de pena e o seu
descumprimento: pena sem processo; e, por fim, (10) transação penal: ausência do devido
processo legal, violação ao princípio da presunção de inocência e privatização da justiça.
274
Para Aury Lopes Jr., não se pode pactuar com o desvirtuamento do processo penal,
transformando-o numa via mais cômoda, econômica e eficiente (pelo caráter coativo), para
obtenção de um ressarcimento financeiro. Ora, para isso existe o processo civil...”
275
Entende o autor que a interferência da premissa neoliberal de Estado mínimo obteve
reflexo também no processo penal, uma vez que
a intervenção jurisdicional também deve ser mínima (na justiça negociada o Estado
se afasta do conflito), tanto no fator tempo (duração do processo), como também na
ausência de um comprometimento maior por parte do julgador, que passa a
desempenhar um papel meramente burocrático.
276
Para Lopes Jr., grande parte da doutrina brasileira, quando se deparou com a
possibilidade de negociar no processo penal, acreditou estar diante de “uma inovação
revolucionária (ou perigoso retrocesso?). Contudo, com o passar dos anos, a criatura virou-se
contra o criador, ou melhor, mostrou sua verdadeira cara.”
277
O sistema negocial, conforme o
processualista penal, não faz parte do sistema acusatório implicitamente presente na
Constituição, pois haveria a violação aos princípios da (a) jurisdicionalidade; (b)
inderrogabilidade do juízo; (c) separação das atividades de acusar e julgar; (d) presunção de
inocência; (e) contradição; e (f) fundamentação das decisões judiciais.
278
Por fim, vale lembrar o que leciona Salo de Carvalho, quando diz que quando “se há a
possibilidade de reparação do dano, a via penal não é a adequada, devendo-se, ao contrário de
274
WUNDERLICH, Alexandre. A Vítima no Processo Penal..., pp. 35-48.
275
LOPES JUNIOR, Aury. Justiça Negociada: utilitarismo processual e eficiência antigarantista, p. 101.
276
LOPES JUNIOR, Aury. Justiça Negociada..., p. 114.
277
LOPES JUNIOR, Aury. Justiça Negociada..., p. 99.
278
LOPES JUNIOR, Aury. Justiça Negociada..., pp. 117-118.
97
privatizar o conflito penal, descriminalizar a conduta, substituindo sua coloração jurídica.”
279
Ademais, assevera o autor que
ao não vermos o processo penal como instrumento adequando para satisfazer a
vítima e buscar a reparação do dano, não propugnamos uma abstenção estatal na sua
tutela. Todavia, a ação não pode ocorrer no interior do necessário processo penal,
que diz respeito fundamentalmente à tutela do réu. Ressalte-se: o processo penal é
revestido de uma instrumentalidade garantista, direcionada à defesa do
imputado/réu contra os poderes públicos e/ou privados desregulados, e não da
vítima.
280
Desde um ponto de vista garantista, o procedimento instaurado pela lei 9.099/95,
acreditamos, não apresenta sustentação constitucional. Para tanto, seriam necessárias
modificações legislativas na lei dos Juizados para que fosse possível adaptá-la aos parâmetros
constitucionais.
Diferentes opiniões, portanto, têm surgido no cenário jurídico, e debates têm sido
promovidos para se debater a eficácia e a utilidade dos Juizados. Mas percebe-se também que
tais opiniões, ora no mesmo sentido, ora em sentido contrário, parecem não oferecer
resistências a uma nova proposta no âmbito criminal – seja para informalizar, seja para
protestar por mais garantias no processo penal. Muito embora critique (e de forma veemente)
os Juizados, até mesmo Coutinho, quiçá o crítico mais incisivo da lei 9.099/95, indiretamente,
poderia vir a admitir os mesmos caso houvesse espaço para o diálogo antes de sua
implantação, o que ensejaria o debate necessário acerca de sua (obrigatória) adequação
constitucional.
Antes de analisarmos criticamente a eficácia dos Juizados, trataremos de abordá-los
como o primeiro sinal da crise do processo penal. Ademais, outra possibilidade de análise
crítica surge a partir desse viés: a de que o processo penal, que muitas vezes não oferece
chances de resolver um problema complexo por sua simplicidade, quando se trata de enfrentar
conflitos de baixo potencial ofensivo, parece ser um instrumento demasiado desproporcional,
inadequado para lidar de forma tão ampla com um conflito de pouca relevância social/penal.
279
CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as Incongruências da Justiça Penal Consensual: retórica
garantista, prática abolicionista, p. 149.
280
CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as Incongruências..., pp. 149-150.
98
3.3.2 A Justiça Terapêutica: abordagem crítica
Inicialmente, podemos referir, com Salo de Carvalho, que “o projeto de Justiça
Terapêutica não apenas retoma os modelos defensivistas que substituem penas por medidas,
como reedita perspectiva sanitarista na qual o usuário de drogas é visto invariavelmente como
doente crônico, reincidente e incurável”, sendo nítido o estabelecimento, por parte do projeto,
de pautas moralistas e normalizadoras próprias de modelos penais autoritários fundados no
periculosismo.”
281
Segue o autor referindo que
sob o declarado fim de auxiliar, via tratamento, o individuo envolvido com drogas, o
projeto lhe retira a qualidade de sujeito, negando-lhe possibilidades de fala. A
propósito, esta é a característica marcante dos discursos penais que se fundem com a
lógica psiquiátrica, como se pode perceber, no caso do direito penal das drogas, do
tratamento imposto ao condenado ou das medidas aplicadas aos inimputáveis (art.
29, Lei 6.368/76).
282
Nota-se que o discurso dos propositores da JT está estruturado em um empirismo
quase absoluto, negando qualquer possibilidade de uma abordagem científica ao mesmo. Ao
se mencionar uma postura impositiva do juiz (vide princípio do tratamento compulsório),
está-se a negar a própria condição de sujeito do envolvido com drogas, como se o seu uso (ou
a sua dependência) retirassem do cidadão a sua condição humana. A sua capacidade de
diálogo, no caso, é reduzida a zero – sob o argumento de que nos Estados Unidos,
os Promotores e Juízes de Miami, rompendo com o entendimento psiquiátrico
padrão de então, o qual entendia que para haver tratamento deveria haver a vontade
do paciente de se tratar, passaram a propor tratamento aos envolvidos com drogas,
em substituição aos processos criminais, dando início a uma verdadeira revolução na
matéria naquele país.
283
281
CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (estudo criminológico e dogmático), p. 229.
282
Idem, ibidem.
283
SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica: um programa judicial de atenção ao infrator usuário e ao
dependente químico, p. 8.
99
No entanto, vale lembrar que a realidade estadunidense é absolutamente diversa da
realidade brasileira: a viabilidade de aplicação (imposição) de um tratamento psiquiátrico aos
envolvidos com drogas, naquele país, o constitui um problema a mais para as autoridades
públicas. Em terras brasileiras, a situação é diversa, e a possibilidade de se obter êxito em uma
“cruzada” dessas como refere um documento assinado pelo Conselho Nacional de
Procuradores-Gerais de Justiça
284
mesmo que seja através do sistema público de saúde (que,
apesar de não representar uma despesa extra para a aplicação da JT, não consegue atender à
sua demanda normal imagine-se, então, como seria tratada essa nova demanda oriunda da
JT).
Ademais, esquecem-se os seus defensores que o Código de Ética Médica, como
lembra oportunamente Salo de Carvalho, veda aos médicos, por exemplo,
(a) efetuar qualquer procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévios
do paciente ou de seu responsável legal; (b) exercer sua autoridade de maneira a
limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar;
(c) desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de
práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida,
285
etc.
A Justiça Terapêutica, caso pretenda ser absorvida pelo sistema judicial brasileiro,
antes deverá observar os direitos e garantias individuais dos acusados em geral para, somente
depois, pensar na sua aplicabilidade prática. Lembramos, vez mais, o que diz Salo de
Carvalho, quando leciona que “parece ser premissa fundamental o reconhecimento do
envolvido com drogas como sujeito com capacidade de diálogo. Este deve ser o pressuposto
de qualquer modalidade de intervenção”,
286
pois, lembrando as palavras de Mariana Weigert,
“o paciente deve ter o direito de decidir sobre a sua vida, sobre seu corpo e sua mente,
inclusive para contribuir para que os resultados do tratamento sejam atingidos.”
287
284
Citado por SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça Terapêutica..., p. 6.
285
CARVALHO, Salo de. A Política Criminal..., p. 231.
286
A Política Criminal..., p. 232.
287
WEIGERT, Mariana. O Discurso Psiquiátrico na Imposição e Execução das Medidas de Segurança, p. 608.
100
3.3.3 Justiça Restaurativa: abordagem crítica
A preocupação em deixar o velho paradigma processual penal aparenta estar presente
no modelo de Justiça Restaurativa, uma vez que rompe com algumas características básicas
do modelo processual penal atualmente em vigor: (a) a vítima poderá participar dos debates;
(b) o procedimento pode não resultar em prisão para o acusado, mesmo que ele venha a
admitir que praticou o delito e provas venham a corroborar a confissão; (c) a possibilidade
de acordo entre as partes independentemente de homologação judicial; (d) os operadores
jurídicos deixam de ser absolutamente imprescindíveis nesse modelo, embora não sejam
dispensáveis, abrindo espaço para um enfrentamento interdisciplinar do conflito interpessoal;
dentre outras características.
3.3.3.1 A Inserção da Vítima no Enfrentamento do Problema Criminal
Nota-se que se trata de uma tentativa de criação de um novo modelo de justiça
criminal, desvinculado do excessivo formalismo típico da modernidade e procurando
pensar em solucionar a situação-problema, e não simplesmente em atribuir culpa a um
sujeito.
Vale o registro de André Gomma de Azevedo, para quem
a Justiça Restaurativa apresenta uma estrutura conceitual substancialmente distinta
da chamada justiça Tradicional ou Justiça Retributiva. A Justiça Restaurativa
enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade ao
mesmo tempo em que os ofensores (réus, acusados, indiciados ou autores do fato)
são efetivamente responsabilizados perante as pessoas que foram vitimizadas,
restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de
oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões.
288
288
AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação..., p. 6.
101
Renato Campos de Vitto acredita que a Justiça Restaurativa o pode ser dissociada
do modelo de proteção dos direitos humanos em função de visarem o mesmo bem: o respeito
à dignidade humana.
289
Adverte o autor, no entanto, que
em um contexto de proliferação da chamada “cultura do medo” e a amplificação,
pelos meios de comunicação de massa, da doutrina da lei e da ordem, há que se
cercar de todas as cautelas possíveis para que o empoderamento da comunidade na
busca das soluções de seus próprios conflitos não se em detrimento de todo o
processo histórico de proteção e afirmação dos direitos humanos.
290
Em outras palavras, o autor trata com restrições a possibilidade de se colocar a vítima
no desenvolvimento do processo, sob pena do procedimento restaurativo fugir aos limites dos
direitos humanos quando mal gerenciado, com a delegação de poderes desmesurados nas
mãos da vítima. Necessário, portanto, um maior aprofundamento do debate acerca da maneira
como pode a vítima intervir no desfecho do conflito, de forma a o extrapolar os limites
constitucionais existentes.
3.3.3.2 Um Novo Paradigma Processual Penal
Acreditamos, no entanto, que “a Justiça Restaurativa representa um novo paradigma
aplicado ao processo penal, que busca intervir de forma efetiva no conflito que é exteriorizado
pelo crime, e restaurar as relações que foram abaladas a partir desse evento.”
291
E a aparição do novo paradigma reside justamente nesse ponto: a possibilidade de um
diálogo entre vítima, ofensor e quaisquer outros interessados no conflito, a partir da idéia
apresentada por Eduardo Rezende Melo, de que
o pluralismo que um modelo restaurativo de justiça nos permite entrever é este, de
que as avaliações que realizamos não se remetem logicamente a valores dos quais
deduzimos as condutas que haveremos de adotar, mas se referem, pelo contrário, a
maneiras de ser, de viver, de sentir que haveremos, em nossa singularidade
289
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos, p. 7.
290
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal..., p. 7.
291
VITTO, Renato Campos de. Justiça Criminal..., p. 8.
102
existencial, de procurar estruturar e justificar, com tudo aquilo de que somos
providos sentimentos, paixões, razões –, para nos afirmarmos no mundo. E esta
afirmação de ser feita perante um Outro concreto com o qual nos relacionamos,
com seu modo de existência todo diverso, incapaz ele também de, por si, nos
entender.
292
Vale citar novamente Melo, que sintetiza os motivos que demonstram, efetivamente, a
emergência de um novo paradigma processual, a partir da Justiça Restaurativa, para o
enfrentamento dos conflitos criminais: primeiramente, ela oportuniza uma outra percepção da
relação entre o indivíduo e a sociedade “no que concerne ao poder: contra uma visão vertical
na definição do que é justo, ela vazão a um acertamento horizontal e pluralista daquilo que
pode ser considerado justo pelos envolvidos numa situação conflitiva”; em segundo lugar,
salienta que a JR foca “na singularidade daqueles que estão em relação e nos valores que a
presidem, abrindo-se, com isso, àquilo que leva ao conflito”; em terceiro lugar, se o foco está
mais voltado para a relação do que para a resposta punitiva estatal, o próprio conflito e a
tensão relacional adquirem outro estatuto, “não mais como aquilo que de ser rechaçado,
apagado, aniquilado, mas sim como aquilo que há de ser trabalhado, laborado, potencializado
naquilo que pode ter de positivo, para além de uma expressão gauche, com contornos
destrutivos”; em quarto lugar, “contra um modelo centrado no acertamento de contas
meramente com o passado, a justiça restaurativa permite uma outra relação com o tempo,
atentado também aos temos em que hão de se acertar os envolvidos no presente à vista do
porvir”; e, em quinto lugar, “este modelo aponta para o rompimento dos limites colocados
pelo direito liberal, abrindo-nos, para além do interpessoal, a uma percepção social dos
problemas colocados nas situações conflitivas.”
293
Trata-se, conforme as palavras do autor, de
superar uma situação em que a regra se mostra alheia e impessoal, em que falta ao
homem a capacidade de julgamento do justo de sua ação, cumprindo-lhe apenas
obedecer, sujeitar-se, internalizar algo cuja sintonia com suas condições de vida lhe
escapam e que apenas lhe provoca um ressentimento generalizado, de que a própria
manifestação de violência é expressão, como sobretudo de um niilismo existencial
aniquilador.
294
292
MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafios Histórico-Culturais. Um ensaio crítico sobre
os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva, p. 11.
293
MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafios..., p. 7.
294
MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafios..., p. 10.
103
Por fim, importante salientar que práticas restaurativas estão em pleno funcionamento
no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre e, ademais, está em tramitação no
Congresso Nacional, protocolada sob o número 99/2005, uma sugestão legislativa para alterar
alguns dispositivos do Código Penal, no Código de Processo Penal e na lei 9.099/95 a fim de
se instituir legalmente a justiça restaurativa no país.
3.3.4 Justiça Instantânea: abordagem crítica
Segundo Alexandre Wunderlich, “as alterações sofridas nas categorias velocidade e
tempo na sociedade complexa também tiveram eco no campo do processo penal”.
295
Escancaradamente marcada pela supressão de direitos e garantias, bem como da
instantaneidade das respostas, ambos exigidos pela ideologia neoliberal, a Justiça Instantânea,
mesmo sem o notar (ou notando muito bem) tornou-se um espaço de enfraquecimento da
Constituição e de deificação da velocidade. Inúmeros discursos têm sido proclamados para
justificar toda a agilidade que o Projeto pressupõe, e que essa sim responderia a um ideal de
justiça que toda a sociedade almeja (note-se aqui presente, uma vez mais, a pretensão
universalista do discurso neoliberal).
296
Acontece que acaba-se deixando de lado os direitos
constitucionalmente assegurados para dar razão à toda essa prática antigarantista, violadora
dos direitos e garantias dos cidadãos.
Como refere Salo de Carvalho, “as perspectivas indicadas na nova ordem internacional
parecem-nos aterrorizantes para a tutela dos direitos humanos, fundamentalmente pelo fato de
que a quebra dos limites do poder, não mais concentrado no Príncipe ou no princípio
(Direito), mas no Mercado, não sofre quaisquer resistências pela sociedade civil.”
297
295
WUNDERLICH, Alexandre. A Vítima no Processo Penal: impressões sobre o fracasso da Lei 9.099/95, p.
262.
296
AZEVEDO, Plauto Faraco. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo, pp. 96-133.
297
CARVALHO, Salo. Garantismo Penal e Conjuntura Político-Econômica: resistência à globalização
neoliberal: breve crítica, p. 58.
104
Tomada pelo medo e pelo instantaneísmo, a sociedade tenta atribuir ao direito (penal)
a função de restabelecer a ordem perdida. Como que numa guerra “da gente” contra “eles”,
legitima-se instrumentos repressivos para combater uma insegurança desenfreada que ameaça
(?) a população, em que o eleito como responsável é, naturalmente, o delinqüente
298
.
Em um contexto que prima pela solução penal dos problemas sociais, essa mesma
sociedade tenta desesperadamente barrar essa suposta opção generalizada pelo crime” dos
adolescentes brasileiros mais especificamente os adolescentes de rua: nada mais se poderia
esperar do que uma responsabilização juvenil de uma parcela dessa “enchente de crimes” que
assola as “pessoas de bem”.
O reflexo imediato disso tudo não poderia ser diferente: supressão de garantias e
aumento da velocidade (ou supressão da mesma: o instantaneísmo exclui o tempo, que, por
sua vez, suprime a velocidade) na punição; atribuir a causa de um crime a uma pessoa e
isentar o contexto sócio-econômico-histórico-cultural em que se vive; campanhas (irracionais)
pela redução da maioridade penal; etc. Através de exemplos isolados, busca-se criar regras
gerais que possam diminuir os índices de criminalidade juvenil. Ignora-se, porém, que tais
índices jamais (repetimos, para não surgirem dúvidas: jamais) serão reduzidos através da
criação de (mais) leis penais e do endurecimento das penas.
“Resposta instantânea”, essa é a idéia. “E com justiça!”, dirão alguns.
Negamos, no entanto, a concepção ontológica de crime, lembrando as palavras de Nilo
Batista: o direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas
dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira.
299
Assim, concordamos com Andrei Zenkner Schmidt, quando afirma que “o crime é, na
verdade, uma convenção estabelecida segundo os ditames sociais e políticos de um
determinado país, devendo ser reputadas falaciosas as conclusões jusnaturalistas acerca do
crime natural”.
300
A mágica e desmesurada solução penal dos problemas sociais acaba por
298
PASTANA, Débora Regina. Cultura do Medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e
cidadania no Brasil, p. 101.
299
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 19.
300
SCHMIDT, Andrei Zenkner. O Principio da Legalidade Penal no Estado Democrático de Direito, pp. 146-
147.
105
negar inteiramente o caráter antropológico da violência que, segundo Ruth Gauer,
301
pertence
ao homem e jamais será afastado dele enquanto viver em sociedade.
Enquanto a hipocrisia (real ou fingida) relativamente a este tema perdurar, não existirá
luz no fim do túnel. E para tornar visível tal luz, o que poderia ocorrer através de respostas
(“respostas”, no plural, pois para problemas complexos não existem respostas simples e
tampouco únicas) na esfera social, tenta-se penalizar o problema, como se a cadeia fosse a
solução para os males do mundo.
302
Se assim o fosse, os mais de duzentos anos desde o
nascimento da prisão já teriam comprovado a sua (in)eficiência.
Eis então que se justificam as palavras de Alexandre Wunderlich: “Daí a importância
da afirmação de movimentos políticos de resistência teórica e prática que visem maximizar
garantias e limitar o poder punitivo estatal, a fim de evitar e/ou minimizar as violações aos
direitos fundamentais.”
303
3.4 Para além do processo penal
Como se percebe, não se discute aqui acerca da necessidade do processo penal estar
cercado do máximo de garantias possível mas, antes, pretende-se questionar se este modelo
de processo penal, tendo como características a racionalidade, a objetividade, a neutralidade,
etc., é capaz de dar conta dos conflitos criminais emergentes a todo instante na sociedade
contemporânea. Os novos modelos de administração da justiça criminal podem ser
observados, então, como sintomas da crise do processo penal no século XXI?
Acreditamos que os Juizados Especiais Criminais, oriundos de mandamento
constitucional, ofereceu as condições para o questionamento do modelo de processo penal
apresentado pelo Código de Processo Penal vigente porém, desvinculado de uma
301
GAUER, Ruth Chittó. Alguns Aspectos da Fenomenologia da Violência, pp. 13 e ss.
302
Sobre a panpenalização e o aumento dos programas de tolerância zero, veja-se o trabalho de Loïc
WACQUANT, As Prisões da Miséria.
303
WUNDERLICH, Alexandre. Ob. cit., p. 242.
106
capacitação completa de todos os envolvidos com a sua operacionalidade e, ainda,
desarraigado dos princípios e das diretrizes constitucionais penais e processuais penais, a sua
prática não modificou a realidade do sistema criminal – e, pelo contrário, apresentou sinais de
piora.
Por sua vez, as justiças Terapêutica e Instantânea não fogem da mesma base
epistemológica do tradicional processo penal: enquanto a primeira é colocada em prática a fim
de neutralizar e sedar determinados tipos de desviantes, sem que haja a possibilidade de
diálogo entre estes e o Poder Público, a segunda apresenta a mesma funcionalidade e, quiçá,
uma lógica ainda mais inquisitorial do que a existente no processo penal tradicional, em
função da supressão do tempo na aplicação da(s) punição(ões).
a Justiça Restaurativa, apresenta-se portando um novo ideal, uma nova
possibilidade de se enfrentar os conflitos criminais, abandonando-se o velho paradigma de
culpa-castigo para um paradigma de diálogo-consenso. A sua adequação ao ordenamento
jurídico brasileiro ainda não é clara, e as suas premissas são pouco difundidas tanto nas
academias quanto nos tribunais país afora. Porém, um maior aprofundamento de sua
sistemática e uma mais ampla divulgação nas universidades e nos tribunais poderá torná-la no
novo paradigma processual de (re)solução de conflitos criminais.
Fazemos coro às palavras de Chies, quando assinala que
trata-se, pois, (...), de compreender a dinâmica para melhor operar a partir da
mesma, sem ilusões que escapem aos limites e as possibilidades dos sistemas, ou,
ainda, se for o caso, reconhecer a incapacidade do sistema para tais fins e funções, as
quais somente poderão ser alcançadas através de outros sistemas ou, então, a partir
de reestruturações do sistema em questão; opção que pode implicar no colapso de
um sistema, em busca de uma reestruturação ou substituição do mesmo.
304
Necessário, portanto, conhecer o modo de funcionamento do sistema processual penal
para, conhecendo suas limitações, reconhecer a sua incapacidade para resolver os conflitos
criminais. Enquanto temos um processo penal ancorado epistemologicamente no pensamento
304
CHIES, Luiz Antônio Bogo. Do Conflito Social ao Litígio Judicial (limites e possibilidades de um constructo
autopoiético), p. 182.
107
moderno, as garantias são inafastáveis e, antes disso, constituem-se em condição de
possibilidade da democracia processual penal.
A Justiça Restaurativa, porém, sinaliza um novo caminho para o enfrentamento dos
conflitos criminais, totalmente desarraigado dos pressupostos modernos mas que, no
entanto, não poderá ser implementado sem uma mudança considerável no que se entende por
ciência jurídica atualmente.
108
CONCLUSÕES
1. A racionalidade moderna, ancorada nas idéias de universalização e abstração,
estruturou a forma de perceber o mundo desde o século XVI, quando Galileu Galilei
combinou o conhecimento empírico com a matemática. Os fenômenos da natureza, antes
explicados pela vontade divina, cuja porta voz era a Igreja Católica, passaram a ser explicados
por uma lógica racional. A meta cientifica era, portanto, dissolver os mitos medievais e
substituir a imaginação pelo saber. Tais fenômenos, a partir de então, seriam previsíveis e
controláveis, o que permitiria ao homem conhecer e estabelecer as “leis da natureza”.
2. Um determinismo rigoroso consolidou-se na visão que se tinha do mundo, e tudo
era passível de explicação através da noção de causa-e-efeito: “Tudo o que acontecia possuía
uma causa definida e gerava um efeito definido: o futuro de qualquer parte do sistema poderia
em princípio ser previsto com absoluta certeza se se conhecesse em todos os detalhes seu
estado em determinada ocasião.”
305
A base filosófica originou-se a partir da divisão entre res
cogitans e res extensa, realizada por Descartes: acreditava-se ser possível explicar o mundo
sem qualquer influência do observador humano, de forma objetiva e universal.
305
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p. 50.
109
Essa cosmovisão mecanicista foi defendida por Isaac Newton, “que elaborou sua
Mecânica a partir de tais fundamentos, tornando-a o alicerce da Física clássica. Da segunda
metade do século XVII até o fim do século XIX, o modelo mecanicista newtoniano do
universo dominou todo o pensamento científico.”
306
3. A construção do pensamento e do conhecimento modernos (re)instaurou uma
concepção de busca pela verdade de todas as coisas (já presente no período medieval) que,
desde então, domina a prática científica do mundo ocidental, excluindo quaisquer outras
formas de saber não racional e espalhando-se por todos os campos do conhecimento. Ao
desencantar o mundo e despi-lo dos mitos que o configuravam, a ciência moderna atribuiu a si
o local privilegiado de revelação da verdade e, ao fazer isso, mitificou-se. Substituiu um mito
por outro, a saber, de que a racionalidade científica podia dar conta e explicar todos os
fenômenos do mundo.
4. A ciência jurídica, por sua vez, passou a trabalhar numa concepção racionalista,
mecanicista e meramente instrumental, ou seja, desvinculada de quaisquer outros fins que
pudessem atrapalhar o progresso do conhecimento jurídico e, dentro do nosso tema, de
elucidação da verdade no processo penal. O direito funciona(va) da mesma forma que a
ciência: ele mesmo é a sua própria fonte de legitimação.
Operando dentro da mesma concepção cientificista e, para além disso, mantendo a
mesma lógica que movia o processo inquisitorial do medievo, o direito consagrou o processo
penal, através de todos os métodos científicos modernos, como local privilegiado de revelação
da verdade de um fato-crime pretérito.
5. Concordamos com Foucault
307
quando faz a ressalva de que o processo o foi
produzido para o fim que possui hoje, nem foi fruto de uma “evolução racional”: transformou-
se ao longo da história, adequando-se às necessidades políticas e sociais de sua época, vindo a
se configurar no que hoje conhecemos como “busca da verdade real de um fato delituoso”.
306
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p. 25.
307
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 62-63.
110
6. Embora muito se fale de uma nova postura científica a partir dos séculos XVI e
XVII, parece-nos que pouco (ou nada) mudou em sede processual penal: as categorias hoje
existentes refletem nada mais nada menos do que traços medievais travestidos de
cientificidade. Com a laicização de determinadas práticas, pode-se dizer que o moderno
direito processual penal apropriou-se da maneira de busca da verdade como a Igreja realizava,
sempre com a justificativa da necessária busca da verdade dos fatos.
A justificativa predominante do processo penal no Brasil não mudou essencialmente
da justificativa apresentada pelos inquisidores na Idade Média, ou seja: a busca da verdade
(real). O processo continua sendo visto como um mecanismo apto a reconstituir o passado,
principalmente através das palavras das testemunhas, da(s) vítima(s) e do(s) acusado(s). Os
discursos ganham força e formam o que é chamado pelo senso comum teórico de “fato”,
reconstituindo-o através das falas. Exatamente como nos procedimentos utilizados pelos
Tribunais da Inquisição, ainda se praticam os atos de interrogatório, de inquirição de
testemunhas, de reconstituição de fatos, dentre outros. As coisas foram modificadas para que
continuem exatamente como sempre foram.
7. Grossi tem razão ao afirmar que simplismo e otimismo são os traços característicos
dos juristas modernos:
308
simplifica-se uma situação complexa e, ancorados no aparelho
jurídico penal, emerge entre os juristas (e a população em geral) uma onda de otimismo,
acreditando-se que o sistema penal possui condições, por si (eis que é auto-justificável), de
dar conta dos problemas sociais contemporâneos.
Enquanto as justificativas de hoje se revestem de cientificidade ou de uma causa, as
justificativas de outrora se revestiam de uma justificativa teológica (a crença nas
interpretações católicas do mundo, da vida e da morte, e a manutenção da unidade de
pensamento cristão) e, igualmente, de uma causa: a perseguição aos hereges através da busca
da verdade. A funcionalidade do sistema continua a mesma, e a sua lógica permanece
inalterada. A operacionalidade repressiva e a lógica inquisitiva,
309
portanto, mantêm-se
intactas desde a Baixa Idade Média.
308
GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas..., p. 15.
309
Sobre o tema, conferir THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
111
8. Com um deflagrado amor à Lei e uma latente ojeriza ao que lhe é estranho, o direito
opera em uma lógica de auto-suficiência, de auto-produção: o direito expulsa outros modos de
pensamento (outras disciplinas) e ignora a realidade, acreditando estar no caminho certo para
a resolução dos problemas da sociedade.
9. A teoria garantista apresenta o modelo de justiça criminal ideal mais próximo de
uma laicização total. A tentativa de se expurgar as justificativas teológicas parecem atingir
seu cume na exposição de Ferrajoli. O processo penal é visto, conforme o autor, como um
meio de proteger o indivíduo do poder punitivo estatal e de minimizar os danos provocados
pela estrutura punitiva, para fazer frente a possíveis abusos de poder.
10. Salta aos olhos a lógica característica do atual processo penal brasileiro: a primazia
dos interesses da sociedade sobre os interesses dos indivíduos. De corte nitidamente
autoritário, pois inspirado na reforma do Código de Processo Penal italiano realizada por
Rocco (Ministro da Justiça de Mussolini), a legislação codificada optou pela minimização dos
direitos e garantias fundamentais, adotando um modelo processual de corte nitidamente
inquisitivo.
310
11. Enquanto no direito penal percebe-se uma desenfreada busca de segurança através
da edição de inúmeras leis penais, do aumento das penas em abstrato já existentes e da criação
de novos tipos penais inseridos em leis atualmente em vigor, no processo penal é possível
dizer que, além da instrumentalização repressiva do processo penal e para além das garantias
constitucionais processuais penais, passou-se a pensar em novas formas de administração da
justiça criminal.
Desde o momento em que a sistemática de busca da verdade declarada na exposição
de motivos do atual CPP deixou de ser o único meio para tanto, sua infalibilidade começa a
ser questionada e seus dogmas deixam de ser intransponíveis. A edição da lei 9.099/95
evidencia a confirmação do que já se podia perceber: a falência do modelo de processo penal
atualmente em vigor no Brasil.
310
CARVALHO, Salo de. As Reformas Parciais no Processo Penal Brasileiro, p. 84.
112
12. Enquanto o processo penal está constitucionalmente limitado por direitos e
garantias individuais, os modelos consensuais de resolução de conflitos apresentam uma
estrutura que, por vezes, abandona alguns desses direitos e garantias em prol de uma resposta
estatal que possa admitir, trabalhar e enfrentar a complexidade que envolvem os casos
criminais.
13. Os Juizados Especiais Criminais podem ser considerados como as condições de
possibilidades para a informalização do processo penal tradicional, vindo a possibilitar, ainda,
novas experiências procedimentais. Tomados como sintoma motor da crise do processo penal,
os Juizados Especiais Criminais fundam um novo processo penal.
Importante perceber a ruptura que ocorre com o tradicional sistema processual penal
brasileiro: enquanto neste não espaço para o diálogo, para a composição de danos, para a
tentativa de conciliação entre os envolvidos e, também, para uma eventual proposta de acordo
por parte do Ministério Público, os Juizados Especiais Criminais introduziram no Brasil todas
essas possibilidades, colocando-se de encontro à lógica moderna do processo penal tradicional
e desvelando o seu discurso legitimante da civilização versus a barbárie.
Enquanto o processo penal tradicional expurga a vítima do enfrentamento da situação
conflitual, os Juizados trazem-na para a mesa, possibilitando um local de fala a quem nunca
foi ouvido. A introdução desse mecanismo viabilizador do consenso dentro do processo,
representa não só uma ruptura com o antigo sistema, mas um avanço no sentido de reconhecer
a falácia de um local privilegiado de exposição do poder que nunca quis saber quem de fato
estava do outro lado.
14. A redução da complexidade mundana a meras leis matemáticas acaba por
apresentar uma simplificação insustentável quando se trata de enfrentar uma ciência social
aplicada, como o direito, cujos fenômenos não podem ser descritos através de fórmulas ou
símbolos, sob pena de um reducionismo que beira a irracionalidade.
Em um contexto de totalidade de pensamento, de imposição de uma forma de pensar
sobre outras, o direito acabou sendo inserido nessa lógica: a lei, expressão da vontade comum,
113
revela a única maneira para se solucionar os conflitos em sociedade. O que não está na lei,
não pode ser usado, sob pena de uma relativização que poderia arruinar os pilares de
sustentação da base epistemológica do direito.
O impedimento de outras formas de pensamento é impositivo, e a conseqüência não
poderia ser outra: a deflagração da impossibilidade de se alcançar o sucesso através de uma
fórmula única, de um pensamento único. A crise do direito e, para a nossa análise, a crise do
direito processual penal, tornou-se explícita.
15. As novas formas de resolução dos conflitos criminais devem assumir a
complexidade do fenômeno criminal ou então, acreditamos, estarão fadadas ao fracasso.
Ignorar que o crime não pode ser analisado somente pelo viés jurídico deixou de ser uma
postura inovadora para se tornar uma condição necessária para o enfrentamento das questões
criminais contemporâneas.
Nesse sentido, salientamos que, apesar da simplicidade de alguns modelos de justiça
criminais, não podemos também deixar de mencionar o grande avanço propiciado pelos
Juizados Especiais Criminais, quando possibilitaram o ingresso da vítima no campo de
discussão do problema penal e, assim, oportunizaram que a crise do processo penal fosse
encarada oficialmente, uma vez que o próprio Estado editou uma lei (a 9.099, para o nosso
caso) que deflagrou a falência do sistema processual penal vigente.
16. O Projeto Justiça Terapêutica não apenas retoma os modelos defensivistas que
substituem penas por medidas, como reedita perspectiva sanitarista na qual o usuário de
drogas é visto invariavelmente como doente crônico, reincidente e incurável”, sendo nítido o
estabelecimento, por parte do projeto, de pautas moralistas e normalizadoras próprias de
modelos penais autoritários fundados no periculosismo.”
311
A Justiça Terapêutica, inserida na mesma lógica estrutural do processo penal
tradicional, expurga a palavra do acusado e não o autoriza a falar, resultando no mesmo que a
aplicação de uma pena privativa de liberdade: impõe-se algo indesejado. Lembramos, vez
311
CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (estudo criminológico e dogmático), p. 229.
114
mais, o que diz Salo de Carvalho, quando leciona que “parece ser premissa fundamental o
reconhecimento do envolvido com drogas como sujeito com capacidade de diálogo. Este deve
ser o pressuposto de qualquer modalidade de intervenção”,
312
pois, de acordo com as palavras
de Mariana Weigert, “o paciente deve ter o direito de decidir sobre a sua vida, sobre seu corpo
e sua mente, inclusive para contribuir para que os resultados do tratamento sejam
atingidos.”
313
17. A preocupação em deixar o velho paradigma processual penal está presente na
Justiça Restaurativa, uma vez que rompe com algumas características básicas do modelo
processual penal atualmente em vigor, pois (a) a vítima poderá participar dos debates; (b) o
procedimento poderá não resultar em prisão para o acusado, mesmo que ele venha a admitir
que praticou o delito e provas venham a corroborar a confissão; (c) há a possibilidade de
acordo entre as partes independentemente de homologação judicial; (d) os operadores
jurídicos deixam de ser absolutamente imprescindíveis nesse modelo, embora não sejam
dispensáveis, abrindo espaço para um enfrentamento interdisciplinar do conflito interpessoal;
dentre outras características. Tais condições possibilitam que a Justiça Restaurativa instaure
uma nova lógica processual, rompendo com a epistemologia que legitima o atual processo
penal.
18. Escancaradamente marcada pela supressão de direitos e garantias, bem como da
instantaneidade das respostas, a Justiça Instantânea tornou-se um espaço de enfraquecimento
da Constituição e de deificação da velocidade. Inúmeros discursos têm sido proclamados para
justificar toda a agilidade que o Projeto pressupõe e que, essa sim, responderia a um ideal de
justiça que toda a sociedade almeja. Acontece que se acaba deixando de lado os direitos
constitucionalmente assegurados para dar razão à toda essa prática antigarantista, violadora
dos direitos e garantias dos cidadãos. Imprópria, portanto, a Justiça Instantânea para funcionar
no atual sistema jurídico brasileiro, por violações constantes e incessantes de princípios e
valores constiticionais.
19. Acreditamos que os Juizados Especiais Criminais, oriundos de mandamento
constitucional, oferecem as condições para o questionamento do modelo de processo penal
312
CARVALHO, Salo de. A Política Criminal..., p. 232.
313
WEIGERT, Mariana. O Discurso Psiquiátrico na Imposição e Execução das Medidas de Segurança, p. 608.
115
apresentado pelo Código de Processo Penal vigente porém, desvinculado de uma
capacitação completa de todos os envolvidos com a sua operacionalidade e, ainda,
desarraigado dos princípios e das diretrizes constitucionais penais e processuais penais, a sua
prática não modificou a realidade do sistema criminal. Pelo contrário, apresentou sinais de
piora.
20. Por sua vez, as justiças Terapêutica e Instantânea não fogem da mesma base
epistemológica do tradicional processo penal: enquanto a primeira é colocada em prática a fim
de neutralizar e sedar determinados tipos de desviantes, sem que haja a possibilidade de
diálogo entre estes e o Poder Público, a segunda apresenta a mesma funcionalidade e, quiçá,
uma lógica ainda mais inquisitorial do que a existente no processo penal tradicional, em
função da supressão do tempo na aplicação da(s) punição(ões).
Ademais, as justiças Restaurativa e Instantânea – apresentam uma perversidade sem
tamanho: buscam realizar experiências com os adolescentes acusados da prática de um ato
infracional (leia-se delito). Como se fosse possível, consideram a esfera da justiça da infância
e da juventude um “laboratório para boas práticas jurisdicionais”,
314
desconsiderando que essa
área também está inserida em um contexto de poder punitivo e, além disso, também deve ser
tutelado pelos direitos e garantias constitucionais impeditivos de atuação desmesurada do
poder público. Como referiu Emilio García Mendez, “las peores atrocidades contra la
infancia se cometieron (y se cometen todavía hoy), mucho más en nombre del amor y la
compasión que en nombre de la propia represión.”
315
Novamente nos deparamos com a
freudiana bondade dos bons, como questiona Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.
316
21. A Justiça Restaurativa, entretanto, apresenta-se portando um novo ideal, uma nova
possibilidade de se enfrentar os conflitos criminais, abandonando-se o velho paradigma de
culpa-castigo para um paradigma de diálogo-consenso. A sua adequação ao ordenamento
jurídico brasileiro ainda não é clara, e as suas premissas são pouco difundidas tanto nas
academias quanto nos tribunais país afora. Porém, um maior aprofundamento de sua
314
BRANCHER, Leoberto. Justiça, Responsabilidade e Coesão Social: Reflexões sobre a implementação da
Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre, p. 17.
315
MENDEZ, Emilio Garcia. Adolescentes y Responsabilidad Penal: un debate latinoamericano, p. 238.
316
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti,
para os Operadores do Direito, p. 188.
116
sistemática e uma mais ampla divulgação nas universidades e nos tribunais poderá torná-la no
novo paradigma processual de (re)solução de conflitos criminais.
A Justiça Restaurativa, portanto, apesar de alguns problemas que podem e devem ser
discutidos, sinaliza para um novo caminho para o enfrentamento dos conflitos criminais,
consideravelmente desarraigado dos pressupostos modernos, mas que, no entanto, o poderá
ser implementado sem uma mudança substancial no que se entende por direito penal e
processual penal atualmente.
117
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