16
mão, que nem me lembrava como te devia parecer ridícula uma mulher que, sem te conhecer, te
permitia tanto.
"Quando nos separamos, arrependi-me do que tinha feito.
"Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, condenar-te a um amor infeliz e
obrigar-te a associar tua vida a uma existência triste, que talvez não te pudesse dar senão os
tormentos de seu longo martírio?!
"Eu te amava; mas, já que Deus não me tinha concedido a graça de ser tua companheira
neste mundo, não devia ir roubar ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz,
porém menos dedicada, teria de ocupar.
"Continuei a amar-te, mas impus-me a mim mesma o sacrifício de nunca ser amada por
ti.
"Vês, meu amigo, que não era egoísta e preferia a tua à minha felicidade. Tu farias o
mesmo, estou certa.
"Aproveitei o mistério do nosso primeiro encontro, e esperei que alguns dias te fizessem
esquecer essa aventura e quebrassem o único e bem frágil laço que te prendia a mim.
"Deus não quis que acontecesse assim; vendo-te só em um baile, tão triste, tão
pensativo, procurando um ser invisível, uma sombra, e querendo descobrir os seus vestígios em
algum dos rostos que passavam diante de ti, senti um prazer imenso.
"Conheci que tu me amavas; e, perdoa, fiquei orgulhosa dessa paixão ardente, que
uma só palavra minha havia criado, desse poder do meu amor, que, por uma força de atração
inexplicável, tinha-te ligado à minha sombra.
"Não pude resistir.
"Aproximei-me, disse-te uma palavra sem que tivesses tempo de ver-me; foi essa mesma
palavra que resume todo o poema do nosso amor, e que depois do primeiro encontro era, como
ainda hoje, a minha prece de todas as noites.
"Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de minha oração,
ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deus, chamo a tua imagem para pedir-te que não
te esqueças de mim.
"Quando tu te voltaste ao som da minha voz, eu tinha entrado na toilette; e pouco depois
saí desse baile, onde apenas acabava de entrar, tremendo da minha imprudência, mas alegre e
feliz por te ter visto ainda uma vez.
"Deves agora compreender o que me fizeste sofrer no teatro quando me dirigias aquela
acusação tão injusta, no momento mesmo em que a Charton cantava a ária da Traviata.
"Não sei como não me traí naquele momento e não te disse tudo; o teu futuro, porém, era
sagrado para mim, e eu não devia destruí-lo para satisfação de meu amor-próprio ofen- dido.
"No dia seguinte escrevi-te; e assim, sem me trair, pude ao menos reabilitar-me na tua
estima; doía-me muito que, ainda mesmo não me conhecendo, tivesses sobre mim uma idéia tão
injusta e tão falsa.
"Aqui é preciso dizer-te que no dia seguinte ao do nosso primeiro encontro, tínhamos
voltado à cidade, e eu via-te passar todos os dias diante de minha janela, quando fazias o teu
passeio costumado à Glória.
"Por detrás das cortinas seguia-te com o olhar, até que desaparecias no fim da rua, e este
prazer, rápido como era, alimentava o meu amor, habituado a viver de tão pouco.
"Depois da minha carta tu deixaste de passar dois dias, estava eu a partir para aqui, donde
devia voltar unicamente para embarcar no paquete inglês.
"Minha mãe, incansável nos seus desvelos, quer levar-me à Europa e fazer-me viajar pela
Itália, pela Grécia, por todos os países de um clima doce.
"Ela diz que é para mostrar-me os grandes modelos de arte e cultivar o meu espírito, mas
eu sei que essa viagem é a sua única esperança, que não podendo nada contra a minha
enfermidade, quer ao menos disputar-lhe a sua vítima durante mais algum tempo.