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Tamanduateí e do Anhangabaú. Entre o final do século dezoito e início do século
dezenove, edificaram-se as chamadas “pontes de dentro” (as pontes do Carmo e do
Fonseca, sobre o Tamanduateí; e as Pontes do Lorena e do Açu, sobre o Anhangabaú),
estratégicas para o acesso à cidade. Elas foram tema de telas, fotos e comentários de
viajantes, tal como apresentado por Toledo
40
. Em conjunto com as “pontes de fora”
(entre as quais estão as do Pinheiros, de Santana e de Emboaçava), durante o século
dezenove, elas formavam um sistema de controle da chegada de feirantes à cidade, por
meio da cobrança de pedágios e impostos. Por sua natureza, permitiam assim a
passagem de pessoas e mercadorias pelos rios e terrenos de várzea que circundavam a
colina central da cidade.
Se estas construções, representadas por meio de diferentes formas artísticas e
relatos, em contextos históricos anteriores, aparecem como vias de chegada a algum
lugar – o centro da cidade –, nas imagens de A margem assumirão contornos diferentes.
Seus pontos de origem e destino serão apagados, de forma a enfatizar o caráter de
suspensão, ou ainda liminar
41
. Seu potencial como espaço transitório, de passagem é
ressaltado. Em grande parte das imagens, não se mostra de onde vêm ou para onde vão,
situadas em um espaço sem limites, que avança em grande parte das vezes para o nada.
Este infinito é composto por esboços de pequenos automóveis, inumeráveis pontes, pelo
mato, ou ainda pelos vestígios da cidade, apresentada por meio de uma ínfima parede de
prédios, esboçada junto à linha do horizonte. A ponte do início do filme refere-se a algo
transcendental, à própria passagem da vida para a morte. A mesma ponte será citada no
final de O bandido da Luz vermelha (1968), filme de Rogério Sganzerla feito pouco
tempo depois de A margem, e com o qual mantém pontos de contato como a situação de
marginalidade do personagem e o espaço de várzea, presentes no início e no final da
história. No final do filme de Sganzerla, pouco antes do tosco suicídio, o bandido
fugitivo passará por um espaço de várzea parecido com aquele de A margem, no qual se
40 Baseado em telas de Thomas Ender, Charles Landseer, Jean Baptiste Debret, em fotos de Mac Ferrez e
Militão de Azevedo, além do relato de Saint Hilaire, o autor Benedito de Lima Toledo salienta a
importante presença de tais pontes no imaginário a respeito da capital paulistana, dos séculos XVIII e
XIX, construído por meio de relatos, desenhos, pinturas e fotografias. Cf. TOLEDO, Benedito de
Lima. Op. Cit.)
41 O conceito de liminaridade foi elaborado, a partir das pesquisas de Turner, para pensar a cultura em
termos da dialética entre estrutura/ antiestrutura. Em outras palavras, entre momentos nos quais há o
respeito às normas sócio-estruturais e momentos nos quais delas se afasta. A liminaridade está
relacionada a este segundo momento. Segundo Turner: “Passagens liminares e ‘liminares’ (pessoas
em passagem), não estão nem aqui nem lá, são um grau intermediário.” “A liminaridade é
frequentemente comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade,
às regiões selvagens (...)”. (TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis:
Vozes, 2004. pp. 5 e 117. O afastamento em relação às normas sócio-culturais, representado pelo tipo
de vida levada em um terreno insalubre, bem como a proximidade com a morte, permitem aproximar a
situação dos personagens de uma espécie de liminaridade.