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Versão para PDF por Marcelo C. Barbão
Janeiro de 2002
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Sumário
NOTÍCIA BIOGRÁFICA ................................... 4
INTERLOCUTORES ......................................... 6
QUESTÕES SOBRE A ÓTIMA REPÚBLICA 64
ARTIGO PRIMEIRO ...........................................................64
ARTIGO SEGUNDO ............................................................71
ARTIGO TERCEIRO ...........................................................81
4
NOTÍCIA BIOGRÁFICA
Tommaso Campanella nasceu em Stilo, no dia 5 de Setembro
de 1568. Ainda muito jovem, já se revelava em seu espírito o
pendor para a filosofia. Seu pai, contrariando-lhe a vocação, quis
fazer dele um jurista, ao que Campanella se opôs tenazmente. Sua
primeira obra foi a Philosophia Sensibus Demonstrata (1), que lhe
valeu a acusação de heresia. Tendo deixado o convento em que
iniciara os estudos, empreendeu uma viagem pela Itália, através da
qual ficou conhecendo os homens mais ilustres do seu tempo.
Voltando a Stilo e sempre preocupado em operar uma reforma
que servisse para enfraquecer o domínio da autoridade, Campanella
iniciou sua atividade política tentando organizar uma conspiração
contra o despotismo espanhol. Isso o levou ao cárcere, onde
permaneceu vinte e sete anos. Libertado em 1626, seguiu para
Roma, onde foi bem recebido pelo papa Urbano VIII. Logo,
porém, tornou-se alvo de novos ataques e, perseguido, foi obrigado
a fugir para a França. Morreu em Paris, em 1639.
Mártir do livre pensamento, Campanella ocupa, também como
filósofo, um lugar importante entre os grandes homens de sua
época. Suas obras, quer o Prodromus Philosophiae Instaurandae
(2), quer os Dogmata Universalis Philosophiae (3), quer a Realis
Philosophiae Partes Quatuor (4), oferecem aspectos doutrinários
que, embora discutíveis, não deixam de ser extremamente
interessantes.
A Cidade do Sol é a mais popular das obras de Campanella.
(1) “A Filosofia Demonstrada pelos Sentidos”.
(2) “Pródromo da Filosofia em Instauração”.
(3) “Os Dogmas da Filosofia. Universal”.
(4)”As Quatro Partes da Filosofia Real”.
5
Essencialmente idealista, está no mesmo plano da Utopia, de
Thomas More (5), e da República, de Platão (6). Sem entrar na
apreciação do sistema proposto por Campanella, é forçoso
reconhecer em A Cidade do Sol uma das obras-primas da literatura
universal.
(5) Thomas More (1478-1535). Nascido em Londres. Grande chanceler da
Inglaterra sob o reinado de Henrique VIII. Autor da Utopia romance político e
social. Morreu decapitado por não ter continuado fiel ao catolicismo e não ter
querido reconhecer o poder espiritual do rei. Beatificado em 1886.
(6) Platão (429.348 a. C.). Célebre filósofo grego, nascido em Atenas. Discípulo
de Sócrates, fundou a escola acadêmica. Expôs suas doutrinas nos Diálogos, que
trazem os nomes dos mais ilustres interlocutores: Pedro, Protágoras, Timeu, etc.
Escreveu várias obras sobre questões políticas e sociais, destacando-se a República.
6
INTERLOCUTORES
O Grão-Mestre dos Hospitalários (7) e um Almirante genovês,
seu hóspede.
Grão-mestre - Vamos, peço-lhe, conte finalmente o que lhe
aconteceu durante essa viagem.
Almirante.- Já lhe disse como fiz a volta da terra e, por fim,
perto da Taprobana (8), como fui constrangido a desembarcar e,
com receio dos habitantes, a embrenhar-me numa floresta, de onde
só sai, depois de muito tempo, para alcançar uma extensa planície
sob a linha do equador.
G.-M. - E que lhe sucedeu, então?
ALM. - Subitamente, encontramos um numeroso grupo de
homens e mulheres, todos armados, alguns conhecendo nossa
língua, que logo nos fizeram companhia e nos levaram à Cidade
do Sol.
G.-M. - Pode dizer-me como é construída essa cidade e qual
a sua forma de governo?
ALM. - A maior parte da cidade está situada sobre uma alta
colina que se eleva no meio de vastíssima planície. Mas, as suas
múltiplas circunferências se estendem num longo trecho, além das
faldas do morro, de forma que o diâmetro da cidade ocupa mais
de duas milhas, por sete do recinto total. Mas, achando-se sobre
uma elevação, apresenta ela uma capacidade bem maior do que se
estivesse situada numa planície ininterrupta. Divide-se em sete
círculos e recintos particularmente designados com os nomes dos
sete planetas. Cada círculo se comunica com o outro por quatro
(7) Ordem religiosa baseada no serviço hospitalar.
(8) Ilha do mar das Índias, hoje Ceilão.
7
diferentes caminhos, que terminam por quatro portas, voltadas
todas para os quatro pontos cardeais da terra. A cidade foi
construída de tal forma que, se alguém, em combate, ganhasse o
primeiro recinto, precisaria do dobro das forças para superar o
segundo, do triplo para o terceiro, e, assim, num contínuo
multiplicar de esforços e de trabalhos, para transpor os seguintes.
Por essa razão, quem se propusesse expugná-la precisaria
recomeçar sete vezes a empresa. Considero, porém, humanamente
impossível conquistar apenas o primeiro recinto, de tal maneira é
ele extenso, munido de terraplenos e guarnecido de defesas de
toda sorte, torres, fossas e máquinas guerreiras. Assim é que,
tendo eu entrado pela porta que dá para o norte (toda coberta de
ferro e fabricada de modo que pode ser levantada e abaixada,
fechando-se com toda a facilidade e com plena segurança, graças
à arte maravilhosa com que as suas engrenagens se adaptam às
aberturas dos possantes umbrais), o que primeiro me despertou a
atenção foi o intervalo formado por uma planície de setenta passos
de extensão e situada entre a primeira e a segunda muralhas.
Distinguem-se, daí, os grandiosos palácios que, de tão unidos
uns aos outros, ao longo da muralha do segundo círculo, parecem
mais um só edifício. A meia altura desses palácios, vêem-se surgir,
de fora para dentro do círculo, várias arcadas com galerias
superiores, sustentadas por elegantes colunas e circundando quase
toda a parte inferior do pórtico, à maneira dos peristilos ou dos
claustros religiosos. Em baixo, além disso, só estão encravados
na parte côncava das muralhas, e é caminhando no plano que se
penetra nos compartimentos inferiores, ao passo que, para alcançar
os superiores, devem subir-se umas escadas de mármore que
conduzem às galerias internas, chegando-se então às partes mais
altas e mais belas dos edifícios, as quais recebem luz pelas janelas
existentes tanto na parte côncava como na convexa das muralhas,
estupendas por sua sutileza. Cada muralha convexa, isto é, a sua
parte externa, tem uma espessura de cerca de oito palmos, por
três somente da parte côncava, ou seja a sua parte interna, enquanto
os tabiques têm apenas um, ou pouco mais. Atravessada a primeira
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planície, chega-se à segunda, mais estreita uns três passos, e aí se
descobre a primeira muralha do segundo círculo, igualmente
guarnecido de palácios que, como os do primeiro círculo, possuem
galerias em baixo e em cima, havendo na parte interior outra muralha
interna que circunda os palácios e tem em baixo sacadas e peristilos
sustentados por colunas, sendo que em cima, onde se acham as
portas das casas superiores, apresenta preciosas pinturas. E assim,
por esses círculos e duplas muralhas que cercam os palácios,
ornados de galerias sustentadas por colunas, chega-se à última
parte da cidade, sempre caminhando no plano. Só quando se entra
pelas portas duplas dos vários circuitos, uma na muralha interna e
a outra na externa, é que se sobem uns degraus de tal forma
construídos que mal se sente a subida, pois estão colocados
obliquamente e muito pouco mais elevados uns do que os outros.
No cimo do monte, encontra-se, então, uma espaçosa planície,
em cujo centro se ergue um templo de maravilhosa construção.
G.-M. - Continue, vamos, suplico-lhe, continue.
ALM. - O templo é todo redondo e não está encerrado entre
as muralhas, mas apoiado em maciças e elegantes colunas. A
abóbada principal, obra admirável, ocupando o centro ou o pólo
do templo, compreende uma outra, mais elevada e de menores
dimensões, que apresenta no meio uma abertura, diretamente voltada
para cima do único altar, situado no meio do templo e todo cercado
de colunas. A capacidade do templo é para mais de trezentos e
cinqüenta passos. Por fora dos capitéis das colunas e apoiando-
se nestas, erguem-se outras arcadas de cerca de oito passos de
extensão, sustentadas externamente por outras colunas, às quais
adere, em baixo, uma grossa muralha de três passos de altura.
Dessa forma, as colunas do templo, e as que sustentam a arcada
externa formam, no seu intervalo, as galerias inferiores, de
magnífico pavimento. Interiormente, a pequena muralha é
freqüentemente interrompida por portas e, de espaço a espaço, se
vêem bancos fixos, além dos numerosos e elegantes bancos
portáteis que se encontram entre as colunas internas que sustentam
o templo. Em cima do altar, há dois globos: no maior está pintado
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todo o céu, e no menor a terra. Na área da abóbada principal,
estão pintadas as estrelas celestes, da primeira à sexta grandeza,
todas assinaladas com seus nomes, seguidos de três versículos
que revelam a influência que cada estrela exerce sobre as
vicissitudes terrenas. Os pólos e os círculos maiores e menores,
segundo o seu aproximado horizonte, acham-se indicados, mas
não acabados no templo; de vez que em baixo não há muralha;
parecem, contudo, existir em sua inteireza, dada a relação com os
globos colocados em cima do altar. O pavimento é ornado de
pedras preciosas, e sete lâmpadas de ouro, cada qual com o nome
de um dos sete planetas, ardem continuamente. A pequena abóbada
do vértice do templo é circundada por celas estreitas, mas elegantes
e, depois do espaço plano existente sobre as arcadas das colunas
internas e externas, há outras celas espaçosas e bem mobiliadas,
habitadas por quarenta e nove sacerdotes e religiosos. Uma bandeira
móvel, indicando a direção dos ventos (dos quais eles distinguem
até ao número de trinta e seis), eleva-se acima do ponto extremo
da abóbada menor, e assim conhecem a estação que trarão os
ventos, as mudanças que se verificarão na terra e no mar, mas
unicamente sob o clima próprio. Sob a mesma bandeira, observa-
se um quadrante escrito com letras de ouro.
G.-M. - Homem generoso, explique-me o modo por que se
rege essa gente. Eu esperava, impaciente, por esse ponto.
ALM. - O supremo regedor da cidade é um sacerdote que,
na linguagem dos habitantes, tem o nome de Hoh. Nós o
chamaremos de Metafísico. Sua autoridade é absoluta, estando-
lhe submetidos o temporal e o espiritual. Depois do seu juízo,
deve cessar qualquer controvérsia. É incessantemente assistido
por três chefes, chamados Pon, Sin e Mor, nomes que, entre nós,
equivalem a Potência, Sapiência e Amor.
A Sapiência tem o governo de tudo o que se relaciona com a
paz e a guerra, como de tudo o que se relaciona com a arte militar.
Esse triunvirato não reconhece superiores na administração militar,
exceto Hoh. Preside aos magistrados militares, ao exército,
competindo-lhe vigiar as munições, as fortificações, as
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construções, em suma, tudo quanto diz respeito a tal gênero de
coisas.
À Sapiência compete a direção das artes liberais, mecânicas,
e de todas as ciências, bem como a dos respectivos magistrados,
dos doutores e das escolas de instrução. Obedecem-lhe, pois,
tantos magistrados quantas são as ciências. Há um magistrado
que se chama Astrólogo, outro Cosmógrafo, Aritmético, Geômetra,
Historiógrafo, Poeta, Lógico, Retórico, Gramático, Médico,
Fisiólogo, Político, Moralista, havendo para eles um único livro
chamado Saber, no qual, com maravilhosa concisão e clareza,
estão inscritas todas as ciências. Esse livro é por eles lido ao
povo segundo o método dos pitagóricos.
A Sapiência, além disso, com ordem admirável, fez adornar
as muralhas externas e internas, superiores e inferiores, com
preciosíssimas pinturas representando todas as ciências. Nas
muralhas externas do templo e nas cortinas, que se abaixam quando
o sacerdote faz o sermão, para que a voz não se disperse, vêem-
se pintadas as estrelas com suas virtudes, grandezas e movimentos,
tudo explicado em três versículos especiais.
Na parede interna do primeiro círculo, foram pintadas todas
as figuras matemáticas, muito mais numerosas do que as
descobertas por Arquimedes (9) e Euclides (10) e tão grandes
quanto o permitem as proporções das paredes. Um breve conceito,
contido num verso, faz conhecer o significado de cada uma, com
definições, proposições, etc.
Na parede externa do mesmo círculo, descobrem-se,
primeiro, uma completa e extensa descrição de toda a terra e, em
seguida, as cartas particulares das províncias, cujas cerimônias,
costumes, leis, origens e forças dos habitantes vêm brevemente
esclarecidos. Os alfabetos das diversas nações aparecem,
igualmente, ao lado do alfabeto da Cidade do Sol.
No interior do segundo círculo, ou seja das segundas casas,
(9) Célebre geômetra, morto na tomada de Siracusa pelos romanos.
(10) Famoso matemático de Alexandria.
11
estão todos os gêneros de pedras preciosas e comuns, de minerais
e metais, não só representados por gravuras, mas também existindo
em pedaços verdadeiros, cada qual com explicações especiais
em dois versos. Na parte externa desse círculo, aparecem indicados
todos os mares, rios, lagoa e fontes da terra, assim como os vinhos,
óleos e licores, com a sua procedência, qualidade e propriedades.
Em cima das arcadas, há vários frascos ligados à muralha, cheios
de diferentes líquidos, existentes de cem a trezentos anos, que
servem como remédios para diversas enfermidades. Além disso,
figuras especiais e versículos dão instruções sobre o granizo, a
neve, os trovões e tudo quanto se forma na atmosfera. Os cidadãos
solares conhecem também a arte pela qual se podem reproduzir,
dentro de uma habitação, todos os fenômenos meteorológicos,
os ventos, as chuvas, o trovão, o arco-íris, etc.
No interior do terceiro círculo, encontram-se as gravuras de
todos os gêneros de plantas e ervas, algumas das quais vivem
dentro de vasos colocados sobre as arcadas da parede externa.
As declarações que lhes vão anexas ensinam o lugar da primeira
descoberta, as suas forças, propriedades e relações com as coisas
celestes, com as diferentes partes do organismo humano, com as
produções metálicas e marinhas, e também o uso particular de
cada uma em medicina, etc. Na parte externa, vêem-se os peixes
de cada espécie, de rios, lagoa e mares, os seus hábitos, qualidades,
modos de geração, de vida e de criação, o uso a que o mundo e
nós lhe fazemos servir, enfim, as suas relações com as coisas
celestes e terrestres, produzidas pela natureza e pela arte. Assim é
que não foi passageira a minha maravilha ao descobrir os peixes
Bispo, Cadeia, Couraça, Prego, Estrela e outros, imagens perfeitas
de coisas existentes entre nós. Vêem-se ainda ouriços, conchas,
ostras, etc. Finalmente, nesse círculo, uma pintura e uma inscrição
verdadeiramente admiráveis instruem sobre tudo quanto o mundo
aquático encerra digno de atenção.
No interior do quarto círculo, estão representadas todas as
espécies de pássaros, suas qualidades, grandezas, índoles,
costumes, cores e vida, e o que causa maior admiração é descobrir,
12
entre eles, a verdadeira Fênix (11). A parte externa apresenta todos
os gêneros de animais, répteis, serpentes, dragões, vermes, insetos,
moscas, mosquitos, tavões, escaravelhos, etc., com suas
particulares propriedades, distinções e usos, e numa abundância
apenas acreditável.
No interior do quinto círculo, aparecem todos os gêneros de
animais terrestres mais perfeitos, num número portentoso. Não
conhecemos senão a milésima parte deles; sendo muito grandes,
não poucos foram pintados na parte externa do mesmo círculo.
E, agora, quantas coisas poderia eu contar! Quantas espécies de
cavalos! Quanta beleza de figuras!
No interior do sexto círculo, encontram-se pintadas todas as
artes mecânicas e os seus instrumentos, e como as usam as
diversas nações, cada uma ordenada e explicada segundo o próprio
valor, e trazendo também o nome do inventor respectivo. Na parte
externa, estão representados todos os homens mais eminentes nas
ciências, nas armas e na legislação. Vi Moisés (12), Osíris (13),
Júpiter (14), Mercúrio (15), Licurgo (16), Pompílio (17), Pitágoras
(18), Zamolhim, Sólon (19), Caronda (20), Foroneu (21) e
(11) Fantástica ave da Arábia, da qual, segundo a lenda, só existia um exemplar.
Tinha o pescoço dourado, o corpo vermelho e a cauda azul e rósea. Ao atingir
500 anos, impregnava a mata de aromas, deixava-se queimar pelo sol e ressurgia.
(12) Profeta, general e legislador dos hebreus. Autor dos cinco primeiros livros
(Pentateuco) da Bíblia: Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
(13) Divindade egípcia.
(14) Pai dos deuses, senhor do Olimpo.
(15) Deus dos viajantes, dos ladrões e dos mercadores.
(16) Legislador espartano.
(17) Segundo dos sete reis de Roma: Rômulo, Numa Pompílio, TuloHostilio, Anco
Márcio, TarquinioPrisco, Sérvio Túlio e Lúcio Tarquinio (o Soberbo).
(18) Filósofo grego, nascido em Samos, no ano 580 a. C. Admitia a imortalidade
e a responsabilidade da alma, o número como fundamento das coisas, a Terra no
centro do universo, etc. Morreu em Metaponto, mais ou menos no ano 500 a. C.
(19) Escritor e legislador ateniense do VI século.
(20) Legislador de Túrio.
(21) Filho de Ínaco, rei de Argos.
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muitíssimos outros. Quem mais? O próprio Maomé (22) foi
representado, embora o reputem um legislador falaz e desonesto.
Vi a imagem de Jesus Cristo colocada num lugar eminentíssimo,
juntamente com as dos doze apóstolos, por eles altamente
venerados e julgados superiores aos homens. Debaixo dos pórticos
externos, vi representados César (23), Alexandre (24), Pirro (25),
Aníbal (26), e outras celebridades, quase todos cidadãos romanos,
ilustres na paz e na guerra. Como eu perguntasse, maravilhado,
como conheciam a nossa história, responderam-me que cultivavam
todas as línguas, que costumavam enviar exploradores e
embaixadores a toda parte da terra para aprender os costumes, as
forças, o governo, a história, os bens e os males de todos os
países, e que os habitantes solares são muito desejosos de tais
instruções. E eu soube que, antes de nós, foram os chineses que
descobriram a pólvora e a imprensa. Há professores que explicam
essas gravuras, habituando as crianças com menos de dez anos a
aprender sem fadiga, como uma espécie de divertimento, todas as
ciências, mas tudo pelo método histórico.
O terceiro triunvirato é o Amor, que tem o primeiro papel no
que diz respeito à geração. Sua principal função é que a união
amorosa se realize entre indivíduos de tal modo organizados, que
possam produzir uma excelente prole. Escarnecem de nós por
nos esforçarmos pelo melhoramento das raças dos cães e dos
cavalos, e nos descuidarmos totalmente da dos homens. Ao seu
governo está submetida a educação das crianças, a arte da farmácia,
como também a semeadura e a colheita dos cereais e das frutas, a
(22) Maomé (570-632). Profeta árabe, fundador do islamismo (doutrina da
“salvação”). Autor do Corão, cujo dogma é a crença num deus único, do qual
Maomé é o profeta. Toda a moral maometana procura basear-se nas leis naturais.
(23) César, Caio Júlio (100.44 a. C.). Grande escritor, general e ditador romano.
Autor dos Comentários sobre a Guerra Gálica. Morreu assassinado no Senado.
(24) Alexandre Magno, filho de Felipe e rei da Macedônia.
(25) Rei do Epiro (hoje, Albânia), célebre por suas guerras contra os romanos.
(26) Famoso general cartaginês.
14
agricultura, a pecuária e a preparação das mesas e dos alimentos.
Em suma, o Amor regula tudo quanto se refere à alimentação, ao
vestuário e à geração, como também os numerosos mestres e
mestras incumbidos desses misteres.
Esses três tratam de todas essas coisas em colaboração com
o Metafísico, sem o qual nada se faz. E assim a república é
governada por quatro, mas, em geral, onde propende a vontade
do Metafísico, inclina-se a dos outros.
G.-M. - Mas, diga-me, amigo: os magistrados, as repartições,
os cargos, a educação, todo o modo de viver é mesmo o de uma
verdadeira república, ou o de uma monarquia ou de uma
aristocracia?
ALM. - Aquele povo ali se encontra vindo da Índia, por ele
abandonada para livrar-se da desumanidade dos magos, dos
ladrões e dos tiranos, que atormentavam aquele país. Todos
determinaram, então, começar uma vida filosófica, pondo todas
as coisas em comum. E, se bem que em seu país natal não esteja
em voga a comunidade das mulheres, eles a adotaram unicamente
pelo princípio estabelecido de que tudo devia ser comum e que
só a decisão do magistrado devia regular a igual distribuição. As
ciências e, em seguida, as dignidades e os prazeres são comuns,
de forma que ninguém pode apropriar-se da parte que cabe aos
outros.
Dizem eles que toda espécie de propriedade tem sua origem
e força na posse separada e individual das casas, dos filhos, das
mulheres. Isso produz o amor-próprio, e cada um trata de
enriquecer e aumentar os herdeiros, de maneira que, se é poderoso
e temido, defrauda o interesse público, e, se é fraco, se torna
avarento, intrigante e hipócrita. Ao contrário, perdido o amor-
próprio, fica sempre o amor da comunidade.
G.-M. - Então, ninguém terá vontade de trabalhar, esperando
que os outros trabalhem para o seu sustento, de acordo com a
objeção de Aristóteles (27) a Platão.
(27) Célebre filósofo, discípulo de Platão e mestre de Alexandre da Macedônia.
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ALM. - Não me constou que isso desse motivo para
divergências, mas posso afirmar-lhe que mal se pode imaginar a
imensidade do amor que aquele povo nutre pela pátria, revelando-
se nisso superior aos antigos romanos, que espontaneamente se
ofereciam em holocausto pela salvação comum E assim devia ser,
porque o amor à coisa pública aumenta na medida em que se
renuncia ao interesse particular. Acredito, pois, que, se os nossos
monges e clérigos não estivessem viciados por excessiva
benevolência para com os parentes e os amigos, e se mostrassem
menos roídos pela ambição de honras cada vez mais elevadas,
teriam, com menor afeição pela propriedade adquirida, louvores
de mais bela santidade, e, semelhantes aos apóstolos e a muitos
dos tempos presentes, apareceriam ao mundo como exemplos da
caridade mais sublime.
G.-M. - Isso já o disse Santo Agostinho (28). Mas, por favor,
diga-me uma coisa: os habitantes solares, não podendo, permutar
benefícios entre si, conhecerão a amizade?
ALM. - Sim, e é grandemente sentida. É por isso que, embora
ninguém possa receber favores particulares, porque todos obtêm
da comunidade o necessário e os magistrados velam para que
ninguém receba mais do que merece (sem que nunca o necessário
lhe seja negado), a amizade encontra ocasião de se mostrar em
caso de guerra ou de enfermidades, ou pela prática de mútuo
auxilio no estudo das ciências e, às vezes, também pela troca de
louvores, de funções ou do necessário. Todos os contemporâneos
se chamam irmãos, adquirem o nome de pais depois da idade de
vinte e dois anos, e, antes dessa idade, dizem-se filhos, sendo
uma das funções primárias dos magistrados impedir qualquer
ofensa entre os confrades.
G.-M. - E como se consegue isso?
ALM. - Nessa cidade, o número e os nomes dos magistrados
correspondem às virtudes que conhecemos. Há os que se chamam
(28) Santo Agostinho, (356-430). Grande padre da Igreja romana. Autor de
numerosas obras: As Confissões, A Cidade de Deus, etc.
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Magnanimidade, Fortaleza, Castidade, Liberalidade, Justiça criminal
e civil, Diligência, Verdade, Beneficência, Gratidão, Hilaridade,
Exercício, Sobriedade, etc. Aquele que, desde a infância, se mostra,
nas escolas, mais propenso ao exercício de alguma dessas virtudes,
é chamado magistrado. Assim, não sendo possíveis, entre eles,
os latrocínios, os assassinatos, as traições, os estupros, os
incestos, os adultérios e outros delitos de que incessantemente
nos lamentamos, os que os praticam são declarados culpados de
ingratidão, malignidade (quando se nega uma satisfação devida),
preguiça, tristeza, cólera, baixeza, maledicência e mentira, delito
este mais detestado do que a peste. E as penas mais em voga são
a privação da mesa comum e a proibição das mulheres e de outras
honras, pelo tempo que o Juiz julgar necessário para a correção.
G.-M. - Pode explicar-me, agora, o sistema de eleição dos
magistrados?
ALM. - Antes de lhe expor o método de vida dessa gente,
não me é possível satisfazer plenamente o seu pedido. É preciso
saber que tanto os homens como as mulheres usam roupas iguais,
próprias para a guerra, com a única diferença de que, nas mulheres,
a toga cobre os joelhos, ao passo que os homens os têm
descobertos. Todos, sem distinção, são educados juntos em todas
as artes. Transcorrido o primeiro ano e antes do terceiro, os
meninos aprendem a língua e o alfabeto passeando nas salas, todos
divididos em quatro manípulos presididos por velhos veneráveis,
que são guias e mestres de probidade superior a toda prova.
Depois de algum tempo, começam os exercícios de luta,
corrida, disco e outros jogos ginásticos, feitos todos com o fim
de fortalecer adequadamente o corpo, e sempre com os pés
descalços e a cabeça descoberta, até aos sete anos de idade.
Distribuídos por manípulos, são eles conduzidos às diferentes
oficinas das artes: a dos sapateiros, a dos cozinheiros, a dos
artífices, a dos pintores, etc. Para que seja observada a tendência
especial de cada engenho, depois dos sete anos, adquiridas já as
noções matemáticas mediante as pinturas das muralhas, aplicam-
se ao estudo das ciências naturais. As lições são recitadas a cada
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manípulo por quatro mestres diferentes, os quais terminam em
quatro horas todas as partes da instrução. Em seguida, enquanto
uns exercitam o corpo, outros atendem às funções públicas ou se
dedicam às lições. Depois, começa o estudo das matérias mais
difíceis, das matemáticas sublimes, da medicina e de outras
ciências, e continuamente, no intervalo dos exercícios, travam-se
discussões científicas. Com o tempo, os que mais se distinguiram
numa ciência, ou numa arte mecânica, são eleitos magistrados. A
agricultura e a pecuária são ensinadas por meio da observação, e
todos, guiados pelo próprio chefe e juiz, dirigem-se para o. campo,
onde examinam e aprendem as modalidades de trabalho, sendo
considerado o primeiro e o maior o que tiver conhecimento de
maior número de artes e souber exercê-las com critério. Não posso
exprimir-lhe quanto desprezo têm por nós, por chamarmos de
ignóbeis os artífices e de nobres os que, não sabendo fazer coisa
alguma, vivem no ócio e sacrificam tantos homens que, chamados
servos, são instrumentos da preguiça e da luxúria. Dizem ainda
que não é de admirar que dessas casas e escolas de torpeza saiam
catervas de intrigantes e malfeitores, com infinito dano para o
interesse público.
Os outros funcionários são eleitos pelos quatro primazes -
Hoh, Pon, Sin e Mor, - juntamente com os magistrados da arte a
que devem consagrar-se. A obrigação dos quatro pontífices é
conhecer perfeitamente, em determinada arte ou virtude, a
idoneidade do que deve tornar-se seu regedor. Quando ocorre
uma eleição, os idôneos são propostos numa assembléia dos
magistrados, não sendo permitido que ninguém se apresente
candidato a se chamar alguma coisa, pois todos podem expor o
que sabem contra ou a favor dos elegendos. Ninguém aspira à
dignidade de Hoh sem conhecer profundamente a história de todos
os povos, os ritos, os sacrifícios, as leis das repúblicas e das
monarquias, assim como os inventores das leis, das artes, e os
fenômenos e vicissitudes terrestres e celestes. Acrescente-se a isso
o conhecimento de todas as artes mecânicas, cada uma das quais
eles aprendem quase no espaço de três dias, embora não se tornem
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perfeitos na execução, que é, contudo, facilitada pelo exercício e
pelas pinturas. Além disso, é mister ser versadíssimo nas ciências
físicas e astrológicas. Já não se dá a mesma importância ao
conhecimento das línguas, para as quais existem numerosos
intérpretes, que na república se chamam gramáticos. Mas, de
absoluta necessidade é conhecer integralmente as ciências
metafísicas e teológicas. Devem conhecer-se, em seguida, as
raízes, os fundamentos e as provas de todas as artes e ciências,
as relações de conveniência e inconveniência das coisas, a
necessidade, o destino, a harmonia do mundo, a potência, a
sabedoria e o amor das coisas de Deus, as gradações dos seres,
os seus símbolos com as coisas celestes, terrestres e marítimas, e
com os ideais em Deus, na medida em que isso à concedido à
mente humana. Finalmente, é necessário ter aprofundado, com
longos estudos, as profecias e a astrologia. Por isso, o futuro
Hoh é reconhecido muito tempo antes da eleição. Este só pode
ocupar tão eminente dignidade depois de completar o sétimo lustro.
O cargo é perpétuo, enquanto não se descobre outro mais sábio e
melhor indicado para governar a república.
G.-M. - Mas, qual é o homem capaz de possuir tanta doutrina?
Um cientista não será, talvez, o menos idôneo para o regime da
república?
ALM. - Essa objeção também foi apresentada por mim, e eis
a resposta que obtive: Estamos tão certos de que um sábio pode
ter aptidões para o bom governo de uma república quanto vós,
que preferis homens ignorantes, julgados hábeis somente porque
descendem de príncipes ou são eleitos pela prepotência de um
partido. Mas, o nosso Hoh, mesmo admitindo que seja inexperiente
em qualquer forma de governo, nunca se tornará cruel, celerado
ou tirano, pois possui uma imensa sabedoria. Essa objeção pode
ter força entre vós, que chamais de sábio o homem que leu maior
número de gramáticas ou de lógicas de Aristóteles ou outros
autores, de forma que, ao se querer consultar um sábio dos vossos
países, o único resultado que se obtém é uma obstinada fadiga e
um servil trabalho de memória que habituam o homem à inércia,
19
pois não encontra estímulo em penetrar no conhecimento das
coisas e se contenta em possuir um acervo de palavras, aviltando
a alma, e fatigando-a sobre letras mortas. Tais sábios ignoram
como todos os seres são governados pela causa primeira e quais
as regras e hábitos da natureza e das nações. Isso não acontece
com o nosso Hoh, uma vez que, para aprender tantas artes e
ciências, é necessário ser dotado de vastíssimo engenho para tudo,
o que o torna habilíssimo também para o governo político. Além
disso, é sabido que não conhece nenhuma ciência quem só foi
instruído numa, tendo engenho tardo e desprezível todo aquele
que, apto numa única ciência, a possui, ainda assim, tomada de
empréstimo aos livros. Semelhante juízo não se pode fazer do
nosso Hoh. Os três primazes que o assistem devem ser profundos
conhecedores, em particular, das artes que mais imediatamente se
relacionam com o seu cargo, bastando que só historicamente
conheçam as artes comuns. Assim, a Potência é peritíssima na
arte eqüestre, na de coordenar um exército, de preparar os
acampamentos, ou de fabricar as armas, e em cada assunto militar,
como estratagemas, máquinas, etc. Mas, para alcançar esse
objetivo, é mister que a Potência tenha noções de filosofia, de
história, de política, de física, etc. E o mesmo se pode dizer dos
outros dois triúnviros.
Voltando, agora, a falar sobre o seu método de vida e a
excelência dos seus meios de instrução, devo informar-lhe que,
naquela cidade, as ciências são aprendidas com tanta facilidade
que as crianças ficam sabendo num ano o que entre nós só se
adquire depois de dez ou quinze anos de estudo. Solicitado a
interrogar os alunos, nem sei exprimir-lhe que surpresa tive ao
ouvir respostas tão prontas, tão verdadeiras e tão sábias de alguns
que falavam correntemente a nossa língua. Para isso, está
estabelecido que três de cada manípulo devem aprender o nosso
idioma, outros três o árabe, três o polaco e três outros línguas
especiais.
Antes de se tornarem doutores, não lhes é concedido repouso
algum: depois do estudo, vão para o campo, onde se exercitam
20
em corrida, arco, lança, arcabuz, caça, ou em botânica, mineralogia,
agricultura, pecuária.
G.-M. - Desejaria, agora, que me expusesse e classificasse as
funções públicas, antes de me falar detalhadamente da educação.
ALM. - Eles têm em comum as casas, os dormitórios, os
leitos, todas as coisas necessárias. Mas, depois de seis meses, os
mestres escolhem os que devem dormir neste ou naquele lugar:
quem no primeiro quarto, quem no segundo, etc. - tudo indicado
pelos alfabetos existentes no alto das entradas. Homens e mulheres
se aplicam em comum a todas as artes mecânicas e especulativas,
com a diferença de que as artes que requerem fadiga e marcha são
exercitadas pelos homens, como arar, semear, colher as frutas,
trabalhar na eira, fazer a vindima, etc., ao passo que as mulheres
se dedicam a ordenhar o gado e fazer o queijo, além de se dirigirem
às hortas vizinhas das muralhas da cidade para cultivar e colher
legumes. Todas as artes, pois, que exigem que se fique sentado
ou de pé, competem às mulheres: tecer, fiar, cozinhar, cortar o
cabelo e a barba, preparar remédios e toda sorte de roupas. Estão,
contudo, isentas de trabalhar em madeira e em ferro. Se há, porém,
alguma que revele aptidão para a pintura, dão-lhe a possibilidade
de exercitar-se. A música, ao contrário, é permitida somente às
mulheres e, às vezes, também às crianças, por serem suscetíveis
de proporcionar maior deleite, excluindo-se, todavia, o uso das
trompas e dos tímpanos. As mulheres preparam também os
alimentos e estendem as toalhas, mas o serviço das mesas compete
aos meninos, bem como às meninas que ainda não completaram
vinte anos. Cada círculo possui cozinhas e despensas próprias,
além de todos os utensílios necessários para comer e beber. Cada
oficina é presidida por um velho e uma velha, que, de comum
acordo, dão ordens aos ministrantes, podendo castigar ou ordenar
que se castiguem os negligentes, os refratários, os desobedientes.
Observam e tomam nota do gênero de ofício em que mais se
distinguiu um menino ou uma menina. A juventude serve aos que
ultrapassaram os quarenta anos, e o dever dos mestres e das
mestras é vigiar à noite, quando vão descansar, e, de manhã, pôr
21
em função os que devem substituí-los, sendo escolhidos um ou
dois para cada quarto. Os jovens servem-se reciprocamente, e ai
dos renitentes! Há as primeiras e as segundas mesas, cada qual
com seus respectivos assentos. Sentam-se primeiro as mulheres,
depois os homens, e, conforme ao uso dos monges, não é
permitido nenhum rumor. Durante a refeição, um jovem lê, de uma
alta tribuna, com voz distinta e sonora, algum livro, sendo a leitura
freqüentemente interrompida pelos magistrados, que fazem
observações sobre as passagens mais importantes. Belíssima de
ver-se é essa juventude, sucintamente vestida, prestar aos seus
maiores, com grande oportunidade, toda espécie de serviços. É
um imenso conforto observar como vivem em comum, em perfeita
harmonia, com extrema modéstia, decoro e amor, tantos amigos,
irmãos, filhos, pais e mães. Cada um recebe um guardanapo, um
prato e uma porção de alimento. Incumbe aos médicos dar aos
cozinheiros do dia instruções sobre a qualidade dos alimentos
que devem ser preparados, indicando os que convém aos velhos,
aos jovens e aos doentes. Todos os magistrados recebem uma
porção um pouco maior e mais escolhida, da qual; durante a
refeição, distribuem uma parte aos meninos que de manhã mais se
distinguiram nas ciências ou nas armas. Esse favor é ambicionado
como um dos mais preclaros. Nos dias de festa, à hora do jantar,
há canto e música, mas com poucas vozes, sendo às vezes uma
somente, acompanhada por uma cítara, etc. Como o serviço da
mesa é feito por muitos e com diligência, nunca se ouve uma
queixa por faltar alguma coisa. Velhos veneráveis presidem ao
regular funcionamento da cozinha e aos preparadores dos
alimentos, como também à limpeza das camas, dos quartos, dos
vasos, da roupa, das oficinas e dos ingressos, atribuindo a tudo
isso enorme importância.
No que diz respeito ao vestuário, trazem sobre o corpo uma
camisa branca e, em seguida, o hábito, que serve ao mesmo tempo
de colete e de calça, sem pregas, lateralmente aberta no alto e em
baixo das pernas, e do meio do umbigo às nádegas, entre as
extremidades das coxas. As orlas das aberturas anteriores são
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fechadas por botões pregados por fora, e as dos laterais por laços.
As botas aderem à calça e descem até aos calcanhares. Os pés
são cobertos, também, por meias de lã da forma de semicoturnos
e presas por fivelas. Sobre essas é que vêm os sapatos. Finalmente,
como já disse, vestem a toga. Tão bem feitas são essas roupas
que, levantando a toga, verá você, claramente e sem temor de se
enganar, as partes bem proporcionadas de toda a pessoa.
Mudam quatro roupas diferentes por ano, ao entrar o Sol no
Áries (29), no Câncer, na Libra e no Capricórnio. A qualidade e a
necessidade são decididas pelo médico, ao passo que a distribuição
compete ao encarregado do vestuário em cada círculo. Você
decerto se admiraria do número extraordinário de tantas roupas,
pesadas ou leves, conforme o exija a diferença das estações. Todos
as trazem muito limpas, pois que as lavam, uma vez por mês, com
lixívia e sabão. Todas as dependências de determinada espécie de
arte, como cozinhas, despensas, celeiros, armazéns, arsenais,
banheiros, encontram-se na parte inferior das casas, se bem que,
debaixo dos peristilos, também tenham sido construídos tanques
para os banhos, cuja água se escoa por canais terminados em
cloacas. Em cada praça dos sete círculos, há as respectivas fontes,
que vertem a água tirada das faldas da colina com o simples
movimento de engenhoso manúbrio. Em geral, as águas são,
algumas primitivas, outras recolhidas em cisternas. A água que,
depois de uma chuva, escorre pelos telhados das casas, é levada
às cisternas por meio de aquedutos de areia. As prescrições do
médico e do magistrado regulam os banhos das pessoas. As artes
mecânicas são exercidas debaixo dos peristilos, nas galerias
superiores; as especulativas, em cima das sacadas, onde se
distinguem as mais preciosas pinturas; e, no templo, é ensinado
tudo o que se relaciona com as coisas divinas. Os relógios solares
(29) 0 primeiro dos doze signos do Zodíaco: Áries (Carneiro), Taurus. (Touro),
Gemini (Gêmeos), Câncer (Caranguejo), Leo (Leão), Virgo (Virgem), Libra
(Balança), Scorpio (Escorpião), Sagittarius (Sagitário), Capricornius (Capricórnio),
Aquarius (Aquário) e Pisces (Peixes).
23
e outros maquinismos que indicam as horas e os ventos se acham
debaixo dos pórticos ou nos pontos mais eminentes de cada
círculo.
G.-M. - Por favor, fale-me, agora, da geração.
ALM. Nenhuma mulher, antes dos dezenove anos, pode
consagrar-se a esse mister; quanto aos homens, devem ter
ultrapassado os vinte e um, e até mais quando de compleição
delicada. Antes dessa idade, permite-se a alguns a mulher, mas
estéril ou grávida, a fim de que, impelidos por excessiva
concupiscência, não se abandonem a excessos anormais. Às
mestras matronas e aos velhos mais idosos, incumbe proporcionar
o prazer aos que, mediante pedido secreto ou nas palestras
públicas, tenham revelado possuir mais poderosos estímulos. Mas,
é sempre necessária a licença do Grande Magistrado da geração,
ou seja o Grande Doutor da medicina, que não reconhece outros
superiores além do triunvirato Amor. Os que se surpreendem na
prática da sodomia são vituperados e obrigados a levar, por dois
dias, o calçado preso ao pescoço, punição que indica terem eles
invertido a ordem natural das coisas pondo os pés sobre a cabeça
Continuando a iniqüidade, aumenta a pena que pode chegar, às
vezes, à capital. Em compensação, os que se mantêm ilibados até
aos vinte e um anos de idade, e sobretudo os que assim
permanecem até aos vinte e sete anos, recebem, em reunião pública,
honras de festas e cantos. De acordo com o costume dos antigos
espartanos, tanto os homens como as mulheres aparecem nus nos
exercícios ginásticos, de forma que os preceptores têm a
possibilidade de descobrir os que são capazes ou incapazes para
a geração, podendo determinar ainda qual o homem mais
conveniente a determinada mulher, segundo as respectivas
proporções corporais. A união marital se realiza cada terceira noite
e depois que os geradores estão bem lavados. Uma mulher grande
e bela se une a um homem robusto e apaixonado, uma gorda a um
magro, uma magra a um gordo, e assim, com sábio e vantajoso
cruzamento, moderam-se todos os excessos. Ao cair do sol, os
meninos sobem às habitações e preparam os tálamos. Depois,
24
entram os geradores e, seguindo a determinação dos mestres e
mestras, ficam em repouso, sem poderem nunca se consagrar ao
importante mister, antes de terem digerido bem os alimentos e
terminado a prece. Nos quartos, há estátuas de homens
respeitabilíssimos, aí colocadas para serem contempladas pelas
mulheres, que, depois, pondo-se a uma janela com os olhos
voltados para o céu, suplicam a Deus que lhes conceda tornarem-
se mães de perfeita prole. Deitam-se, então, em celas separadas e
dormem até à hora estabelecida para a união. É quando a mestra
se levanta e, por fora, abre a porta tanto aos homens como às
mulheres. Essa hora é determinada pelo módico e pelo astrólogo,
que procuram escolher a ocasião em que todas as constelações
são favoráveis aos geradores e aos gerados. Consideram culpável
todo aquele que, ao se aproximar a geração, não tenha ao menos
por três dias conservado o sêmen em sua integridade e pureza,
bem como o que, tendo cometido atos impudicos, não se tenha
confessado e reconciliado com Deus. Os que, por deleite ou
necessidade, têm relações com mulheres estéreis, grávidas ou
defeituosas, não participam de nenhuma cerimônia. Os magistrados,
por serem todos sacerdotes, assim como os mestres das ciências,
só podem assumir o encargo de geradores depois de muitos dias
de abstinência. É que, como freqüentemente se observa, o emprego
das faculdades da inteligência, enfraquecendo-lhes os espíritos
animais e impedindo que possam transmitir a energia do cérebro
faz com que seja fraca de corpo e tarda de engenho a prole dessa
gente. Sábia, por conseguinte, é a prescrição que lhes ordena a
união com mulheres vivazes fortes e belas. Da mesma forma, os
homens ágeis, ardentes, de temperamento sangüíneo, devem unir-
se a mulheres gordas e frias. Dizem eles que, descurada a geração,
não se pode depois, com a arte, adquirir a harmonia dos diversos
elementos do organismo, causa de todas as virtudes, e que os
homens nascidos com má organização só praticam o bem pelo
receio da lei e de Deus; sem esse receio, ou secreta ou
publicamente, tornam-se perniciosos à república. Eis porque se
deve empregar toda diligência no mister da geração, refletindo-se
25
sobre os verdadeiros méritos naturais, e não sobre os dotes ou a
nobreza fictícia e de mentirosa espécie. Se uma mulher não é
fecundada pelo homem que lhe é destinado, é confiada a outros;
se, finalmente, se revela estéril, torna-se comum, mas lhe é negada
a honra de sentar-se entre as matronas na assembléia da geração,
no templo e à mesa. Assim procedem para que, por motivos de
luxúria, não procurem elas a esterilidade. As que concebem ficam,
por quinze dias, dispensadas de qualquer fadiga. Começam, em
seguida, trabalhos fáceis que lhes fortifiquem a prole e lhes abram
os meatos da nutrição, e se revigoram depois, gradativamente,
com exercícios. Os médicos só lhes permitem alimentos profícuos.
Depois do parto, elas próprias amamentam e assistem ao recém-
nascido em quartos comuns, que para esse fim devem ser
expressamente preparados. Por dois e mais anos, segundo as
prescrições do Físico, são amamentadas as crianças. Depois disso,
se é menina, é entregue às mestras, e, se é menino, aos mestres.
Começam, então, quase que como um divertimento, a aprender o
alfabeto, a explicar as pinturas, a exercitar-se na corrida, na luta, e
depois a estudar as histórias expostas pelas pinturas e as diferentes
línguas. Até aos seis anos de idade, vestem uma elegante roupa
multicor. Depois dessa idade, iniciam o estudo das ciências naturais,
depois de outras, quando os mestres julgam oportuno. Para o
fim, reservam-se as ciências mecânicas. Quanto aos meninos tardos
de engenho, vão para o campo, e, se alguns já provam terem feito
progressos bastantes, voltam para a cidade. Mas, como quase
todos nasceram sob a mesma constelação, assemelham-se sempre
aos contemporâneos pela virtude, pelos costumes e pelas feições,
o que dá causa a uma durável concórdia, a um mútuo amor e a
uma recíproca solicitude em se auxiliarem uns aos outros.
Os nomes não se impõem arbitrariamente, mas por inspiração
do Metafísico, depois de considerar as qualidades individuais,
segundo o costume dos antigos romanos. É assim que um se
chama Belo, outro Nasão, um terceiro Crassípede, e outros Torvo,
Magro, etc. Mas, quando adquirem excelência em alguma arte, ou
por algum feito na guerra ou na paz, ao primeiro nome se acrescenta
26
o da arte, como Pintor belo, grande, áureo, excelente, preclaro,
ou o da ação, como Nasão forte, astuto, vencedor, grande,
grandíssimo, ou ainda o do inimigo vencido, como Africano,
Asiático, Etrusco, e, quando tenha superado Manfredo (30), ou
Tortélio, recebe o nome de Magro Manfredo, Tortélio, etc. Esses
cognomes são impostos pelos magistrados superiores, que
acompanham a função, o mais das vezes, com o presente de uma
coroa conveniente ao feito ou à arte, e com uma festa musical,
pois não dão valor algum ao ouro e à prata, considerando-os
como matérias para fabricar vasos e ornamentos comuns a todos
. G.-M. - Diga-me, por favor: conhecem eles o ciúme, ou
melhor, a dor, quando alguém não obtém uma esperada magistratura
ou qualquer outra coisa que tenha ambicionado?
ALM. - Não, porque todos, além de possuírem o necessário,
gozam de tudo quanto possa deleitar a vida. A geração é
considerada obra religiosa, tendo por fim o bem da república e
não dos particulares. Por isso, todos obedecem plenamente aos
magistrados. Além disso, contra a nossa opinião, negam ser natural
ao homem, para educar vantajosamente a prole, a posse de uma
mulher, de uma casa, de filhos, e dizem, com São Tomas (31),
que o objetivo da geração é a conservação da espécie e não a do
indivíduo. Trata-se, portanto, de um direito público e não privado,
do qual os particulares só participam como membros da república.
Acrescentam que a principal causa dos males públicos reside na
maneira errônea de considerar a geração e a educação, que devem
ser religiosamente atribuídas à sabedoria do magistrado, como
primeiros elementos da felicidade de um povo.
Os indivíduos que, por sua excelente organização, têm o
direito de se tornarem geradores, ou geratrizes, Se unem segundo
(30) Manfredo (1232-1266). Filho de Frederico II. Rei de Nápoles e da Sicília.
Combatendo contra Carlos d ‘Anjou, morreu na batalha de Benevento.
(31) São Tomas de Aquino (1225-1274). Doutor da Igreja, fundador do tomismo.
Autor da SummaTheologica, enciclopédia filosófica na qual sustenta o primado da
inteligência sobre a vontade, em oposição a Duns Scot
27
os ensinamentos da filosofia. Platão acha que isso deve realizar-se
tirando a sorte, a fim de que os que são afastados das mulheres
mais belas não fiquem odiando os magistrados; e diz que devem
ser enganados no ato de tirar a sorte, os que não são merecedores
de supremas belezas, de maneira que obtenham, não as mais
desejadas, mas as mais convenientes. Esse engano, porém, é
inteiramente inútil para os habitantes solares, pois que entre eles
não existe deformidade. Além disso, como as mulheres se aplicam
continuamente a diferentes trabalhos, adquirem uma cor vivaz,
membros robustos, grandes, e ágeis, consistindo a beleza
unicamente na altura e no vigor das pessoas. Incorreria, pois, na
pena capital aquela que embelezasse o rosto para parecer bela, ou
usasse calçado alto para parecer maior, ou vestido comprido para
cobrir pés disformes. Mas, mesmo que alguma manifestasse
propensão para fazer essas coisas, não o conseguiria, porque
ninguém lhe reconheceria a faculdade. Asseveram eles que tais
enganos são frutos, entre nós, da ociosidade e da indolência das
mulheres, o que faz com que, deformando-se, empalidecendo e
tornando-se fracas e pequenas, precisem de cores, de calçado, de
vestidos compridos, e gostem mais de parecer belas por uma
inerte delicadeza do que por uma vigorosa saúde, prejudicando-
se a se próprias e à prole.
Quando um indivíduo se apaixona violentamente por uma
mulher, permitem-lhe colóquios, divertimentos e recíprocos
presentes de flores e de poesias. Se, porém, a geração corre perigo,
não se permite nunca que se unam, salvo quando a mulher já se
acha grávida de um feto pertencente a outro, ou quando já tenha
sido declarada estéril; estes, porém, só conhecem o amor de
exclusiva concupiscência e a amizade. Não se preocupam muito
com questões familiares e comestíveis, pois cada um recebe de
acordo com a própria necessidade, a não ser quando se trate de
honrar alguém. Então, e especialmente nos dias de festa, costumam
distribuir-se, aos heróis e às heroínas, à hora do jantar, em sinal de
honra, diferentes presentes, como grinaldas multicores, alimentos
agradáveis, roupas elegantes, etc.
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Se bem que, durante o dia e na cidade, todos usem roupas
brancas, à noite e fora da cidade trajam vestes vermelhas, de lã ou
de seda. Detestam, porém, e desprezam a cor preta, em oposição
aos japoneses, que preferem essa tinta. A soberba é julgada o
mais execrando dos vícios, e todo ato de soberba é punido com
as mais cruéis humilhações. Ninguém se considera diminuído ao
servir à mesa, na cozinha ou nas enfermarias: cada função é tida
como um mister, e, a seu ver, todos os atos praticados pelas
diferentes partes do corpo humano são igualmente honrosos.
Não têm o sórdido costume de possuir servos, bastando-
lhes e, muitas vezes, sendo até excessivo, o próprio trabalho. Entre
nós, infelizmente, vemos o oposto.
Nápoles tem uma população de setenta mil pessoas, mas só
quinze mil trabalham e são logo aniquiladas pelo excesso de fadiga.
As restantes estão arruinadas pelo ócio, pela preguiça, pela avareza,
pela enfermidade, pela lascívia, pela usura, etc., e, para maior
desventura, contaminam e corrompem um infinito número de
homens, sujeitando-os a servir, a adular, a participar dos próprios
vícios, com grave dano para as funções públicas. Os campos, a
milícia, as artes, ou são desprezadas ou, com ingentes sacrifícios,
pessimamente cultivadas por alguns. Na Cidade do Sol, ao
contrário, havendo igual distribuição dos misteres, das artes, dos
empregos, das fadigas, cada indivíduo não trabalha mais de quatro
horas por dia, consagrando o restante ao estudo, à leitura, às
discussões científicas, ao escrever, à conversação, aos passeios,
em suma, a toda sorte de exercícios agradáveis e úteis ao corpo e
à mente. Não se permitem jogos que obriguem a ficar sentado,
como dados, xadrez e outros, divertindo-se todos com a pela, o
balão, o pião, a corrida, a luta, o arco, o arcabuz, etc. Afirmam,
além disso, que a pobreza é a razão principal de se tornarem os
homens vis, velhacos, fraudulentos, ladrões, intrigantes,
vagabundos, mentirosos, falsos testemunhos, etc., produzindo a
riqueza os insolentes, os soberbos, os ignorantes, os traidores, os
presunçosos, os falsários, os vaidosos, os egoístas, etc. A
comunidade, ao contrário, coloca os homens numa condição ao
29
mesmo tempo rica e pobre: são ricos porque gozam de todo o
necessário, e são pobres porque não possuem nada. Servem as
coisas, mas as coisas lhes obedecem, louvando assim os religiosos
da cristandade e especialmente a vida dos apóstolos.
G.-M. - Considero útil e santa a comunidade dos bens, mas
não posso aprovar a das mulheres. São Clemente (32) romano diz
que as mulheres devem ser comuns, segundo o instituto apostólico,
e elogia Sócrates (33) e Platão por ensinarem igual doutrina; mas,
a glosa entende que essa comunidade se relaciona com o obséquio
e não com o leito. E Tertuliano (34), apoiando a glosa, escreveu
que os primeiros cristãos tiveram tudo em comum, excetuadas as
mulheres, as quais o foram, contudo, no que diz respeito ao
obséquio.
ALM. - Mal conheço essas coisas, mas posso afirmar-lhe
que, na Cidade do Sol, as mulheres são comuns tanto para o
obséquio como para o leito, mas nem sempre, como o fazem as
feras ao encontrarem a fêmea, mas somente, como se diz, por
motivo e ordem de geração. Não obstante, é possível que nisso
se enganem. Escudam-se no juízo de Sócrates, de Catão (35), de
Platão, de São Clemente (mal compreendido, como você
observou). Dizem que Santo Agostinho aprova toda comunidade,
mas não a das mulheres para o leito, que é a heresia dos nicolaitas
(36), e que a nossa Igreja permitiu a propriedade dos bens, não a
título de introduzir vantagens maiores, mas unicamente para evitar
piores males. Com o tempo, talvez seja possível que abandonem
esse costume, uma vez que, nas cidades sujeitas, são comuns os
bens, não as mulheres, salvo em relação ao obséquio e às artes.
Mas, isso é atribuído pelos habitantes solares à imperfeição das
(32) Bispo e mártir, da Igreja.
(33) Sócrates (469-339 a.C.). Fundador da filosofia. Não deixou obras,
encontrando-se sua doutrina nas obras dos discípulos, sobretudo Platão.
(34) Escritor eclesiástico, natural de Cartago.
(35) Catão, M. Pórcio (239-149 a.C.). Político e escritor romano.
(36) Sectários do heresiarca Nicolau.
30
referidas cidades, menos da própria, instruídas em filosofia. Não
obstante, costumam enviar mensageiros a outras nações e nunca
se recusam a abraçar os costumes que lhes parecem melhores. O
hábito faz com que as mulheres também se tornem aptas para a
guerra e outros misteres. Depois que conheci essa cidade,
concordei plenamente com Platão e menos com o nosso Caieta
(37), discordando por completo de Aristóteles. Um costume
apreciadíssimo e digno de imitação, entre eles, é o que consiste
em considerar que nenhum defeito é bastante para manter os
homens na ociosidade, salvo em idade decrépita, na qual ainda
são úteis dando conselhos. Assim, o coxo serve de vigia
empregando os olhos sãos; o cego, com as mãos, desfia a lã e
prepara plumas para encher leitos e travesseiros; quem é privado
de olhos e de mãos serve a república empregando os ouvidos e a
voz; finalmente, o que só possui um membro emprega-o do melhor
modo possível
G.-M. - Fale-me da guerra, que reservarei para depois as
artes, as ciências e a religião.
ALM. - A Potência, outro dos triúnviros, preside ao mestre
das armas, como também aos da artilharia, da cavalaria, da infantaria
e dos arquitetos, dos estratagemas, etc. A cada um destes
obedecem outros mestres e primeiros funcionários das respectivas
artes. Além disso, a Potência comanda os atletas, que são
experimentados e velhos capitães, preceptores dos meninos na
arte militar, depois que estes completam os doze anos, se bem
que antes dessa idade já tenham sido exercitados por mestres
inferiores na corrida, na luta, no lançamento de pedras, etc. Os
atletas ensinam a ferir o inimigo, os cavalos, os elefantes, a manejar
a espada, a lança, o arco, as fundas, a cavalgar, a perseguir, a
fugir, a ficar de ordenança, a socorrer o companheiro, a prevenir
com engenho o inimigo, numa palavra, a vencer. As mulheres
também aprendem essa arte com mestres e mestras especiais, de
forma que, quando necessário, podem prestar socorro aos homens
(37) Filósofo do Lácio.
31
em caso de guerra não distante da cidade, ou defender as muralhas
desta, a fim de nunca serem surpreendidas por uma súbita invasão.
Honram, dessa forma, as espartanas e as amazonas (38). Sabem
atirar balas de fogo com arcabuzes, formá-las com o chumbo,
lançar pedras do alto, marchar ao encontro do ímpeto inimigo. E
assim, pela freqüência de semelhantes exercícios, habituam-se a
afrontar qualquer perigo sem nenhum temor, e, quando alguma
demonstra covardia, é severamente punida.
Os habitantes solares não temem a morte, porque todos
acreditam na imortalidade da alma, que, ao sair do corpo, é
acompanhada pelos espíritos bons ou maus, conforme o tenha
merecido na vida terrestre. Embora sejam brâmanes (39),
aproximam-se, contudo, segundo certas opiniões, dos pitagóricos
(40), dos quais não admitem a metempsicose da alma, exceto uma
ou outra vez, por especial justiça de Deus. Também não deixam
de combater um povo que se mostre inimigo da república, da
religião e da humanidade. Uma vez cada dois meses, é passado
em revista o exército, sendo diário o estudo prático das armas,
quer em campo aberto, quer entre as muralhas. São contínuas,
também, as lições sobre a arte militar. Estudam a história de Moisés,
de Josué (41), de Davi (42), dos Macabeus (43), de César, de
Alexandre, de Cipião (44), de Aníbal, etc. Todos têm o direito de
(38) Povo constituído exclusivamente de mulheres da Capadócia e da Cítia.
Participavam da guerra e, para o porte das armas, cortavam o seio direito. Segundo
Amiano Marcelino, foram as amazonas as primeiras a utilizar os cavalos nas
campanhas guerreiras.
(39) Sectários do bramanismo, religião da Índia, baseada na divisão em castas e
na transmigração da alma. Brama, Visnu e Siva constituem a trindade divina.
(40) Seguidores da escola de Pitágoras, segundo a qual o número é o princípio
essencial de todas as coisas.
(41) Capitão dos hebreus, sucessor de Moisés.
(42) Rei dos hebreus.
(43) Judeus descendentes de Macabeu, martirizados ao tempo de AntíocoEpífano.
(44) Sobrenome de um ramo da família Cornélia, cujos membros mais famosos
foram Públio Cornélio Cipião (o Africano) e Cipião Emiliano, vencedores dos
cartagineses.
32
externar sua opinião. Aqui agiram bem, ali mal, aqui com probidade,
ali com utilidade, etc. assim vai respondendo e sentenciando o
mestre.
G.-M. - Mas contra que povos e por que motivos fazem a
guerra, e com que êxito?
ALM. - Mesmo que nunca precisassem entrar em guerra,
ainda assim se exercitariam na arte militar e na caça, para não se
descuidarem e não serem surpreendidos sem defesa pelos
acontecimentos. Além disso, na ilha, há quatro remos que invejam
grandemente a sua prosperidade: como o povo prefira viver à
maneira dos habitantes solares a obedecer aos regedores do pais,
eles muitas vezes movem guerra aos solares, aduzindo usurpações
de limites, ímpio modo de viver, falta de ídolos, ódio às crenças
dos gentios (45) ou dos antigos brâmanes, etc. Também os hindus,
dos quais já foram súditos, se declaram contra eles e os tratam de
rebeldes, como também os povos da Taprobana, dos quais tiveram
os primeiros socorros. Não obstante, os solares saem sempre
vencedores. Mal sofrem um insulto, uma calúnia ou uma
depredação, ou conhecidos os males dos próprios aliados, ou
ainda chamados como libertadores por povos tiranizados, reúnem-
se logo em assembléia para deliberar. Então, primeiro, ajoelham-
se perante Deus, rogando-lhe a inspiração de ótimos conselhos;
em seguida, examinam as coisas; por fim, declaram a guerra.
Subitamente, é enviado ao inimigo um sacerdote chamado Forense,
o qual pede ao inimigo a restituição da presa, a libertação dos
aliados, ou a cessação da tirania. Se os pedidos não surtem efeito,
ele intima a guerra em nome do Deus das vinganças, do Deus de
Sabaot (46), para o extermínio dos que sustentam a iniqüidade.
Quando os inimigos pedem prazo para a resposta, o sacerdote
concede uma hora, se trata com um rei, e três com uma república,
e isso a fim de impedir qualquer engano. Dessa forma, os habitantes
solares se tornam defensores do direito natural e da religião.
(45) Pagãos.
(46) Deus dos exércitos.
33
Declarada a guerra, o conjunto da execução é confiado ao Vigário
da Potência. Esse triunvirato, então, à semelhança do ditador dos
romanos, age plenamente de acordo com a própria vontade, de
forma que sejam afastadas todas as razões de atraso. Mas, se
muito grande é a importância da empresa, consulta Hoh, a
Sabedoria e o Amor. Antes, porém, um orador expõe, numa
assembléia geral, as razões da guerra e a justiça da causa. Intervêm
nessa assembléia os maiores de vinte anos, de maneira que fique
preparado tudo o que for necessário. É preciso saber que eles
conservam em arsenais especiais toda espécie de armas, das quais
freqüentemente se servem em combates simulados. As paredes
internas de cada círculo são guarnecidas por morteiros, sob a
guarda de soldados especiais. Há, além disso, outras máquinas de
guerra chamadas canhões, que são transportadas à batalha por
mulas ou burros, ou em cima de carros. E, quando se acham em
campanha aberta, encerram no meio os comboios, as artilharias,
os carros, as escadas e as máquinas, e animosamente, por longo
tempo, se disputam o terreno. Cada um se retrai, então, em torno
das próprias bandeiras. Os inimigos acreditam que estejam fugindo
ou se preparando para a fuga, e saem em sua perseguição, mas os
solares, formando duas alas em forma de chifres, retomam fôlego
e coragem, e com a artilharia atiram balas de fogo, voltando logo
em seguida ao combate contra os inimigos desorientados. Esses e
outros modos semelhantes de guerra são freqüentemente usados.
Eles superam todas as nações na ciência dos estratagemas e das
máquinas, e seguem o costume dos antigos romanos na formação
dos acampamentos. Levantadas as tendas, circundam-nas de
bastiões e fossas, com maravilhosa presteza. Cada trabalho é
assistido pelos mestres dos trabalhos, das máquinas e das
artilharias, e todos os soldados sabem manejar o machado e a
enxada. Possuem, à testa dos serviços de guerra, cinco, oito e
até, dez chefes, que conhecem profundamente a disciplina e os
estratagemas e sabem dirigir as próprias fileiras de acordo com o
plano preestabelecido. Costumam, também, conduzir à guerra
meninos a cavalo, a fim de aprenderem essa arte e se habituarem
34
ao sangue, como os lobos e os leões costumam fazer com os
filhos. Os meninos, juntamente com as mulheres, que também
assistem armadas, retiram-se no instante do perigo, mas, depois
da batalha, reaparecem para medicar, servir e confortar com carícias
e palavras os combatentes. Imensa vantagem traz a presença dessas
pessoas. Não poucos, para dar mostra de valor diante das mulheres
e dos meninos, fazem prodígios, tentam as mais arriscadas
empresas, e quase sempre o amor os faz sair vitoriosos. Quem,
na batalha, foi o primeiro a transpor os redutos inimigos, recebe
depois do conflito, das mãos das mulheres e dos meninos, uma
coroa de graminho, em meio às honras de festas militares. Obtém
a coroa cívica quem socorre o amigo, e uma de carvalho quem
mata o tirano, cujos despojos, em perpétua memória do fato, são
colocados no templo, sobrepondo-lhe o Metafísico nome da ação.
Outros recebem outras coroas. Os soldados a cavalo trazem uma
lança e duas grandes e resistentes pistolas penduradas nas selas,
as quais, sendo menores no orifício do que na base, têm força
para traspassar mesmo a mais maciça armadura de ferro. Usam,
igualmente, a espada e o punhal. Outros, ainda, são armados de
uma clava de ferro e se dizem soldados armados à ligeira. Dessa
forma, se a armadura do inimigo resiste à espada e às pistolas,
assaltam-no com a clava, como fez Aquiles (47) com o Cisne
(48), derrubam-no e o aniquilam. Ligadas à clava, pendem duas
correntes de seis palmos, com bolas de ferro na extremidade, de
forma que, atiradas contra o inimigo, lhe cingem o pescoço,
abalando-o, arrastando-o, levando-o por terra. Para com maior
facilidade manejarem a dava, não governam as rédeas do cavalo
com as mãos, mas com os pés. É por isso que as rédeas se
(47) Rei da Tessália, filho de Peleu e da deusa Tetis. Conta a lenda que sua mãe,
para torná-lo invulnerável, mergulhou-o no rio Styx, segurando-o pelo calcanhar,
que ficou sendo, assim, o único ponto vulnerável de Aquiles. Com efeito, foi morto
por Paris, que lhe lançou uma seta no calcanhar, vindo dai a expressão calcanhar
de Aquiles.
(48) Rei da Ligúria, que chorou tanto a desgraça do seu amigo Paetonte, morto
por Júpiter, que se transformou num cisne.
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trocam em cruz sobre os arções da cela, descendo para prender-
se, não nos pés, mas na extremidade dos estribos. Estes formam,
exteriormente, uma esfera de ferro e, na base, um triângulo. Desse
modo, rodando o pé sobre o triângulo, são postas em movimento
as esferas, e estas estiram as rédeas. E assim, com admirável
presteza, governam à vontade o cavalo, fazendo-o voltar com o
pé direito para o lado esquerdo e vice-versa. Esse segredo é
ignorado pelos próprios tártaros (49), que sabem governar as
rédeas com os pés, mas não sabem afastar, retrair e diminuir a
marcha do cavalo, além de não conhecerem o emprego da roldana
nos estribos. Os cavaleiros armados à ligeira começam o ataque
com arcabuzes. Em seguida vêm as falanges com as lanças, e
depois os fundeiros, muitíssimo estimados e habituados a
combater, indo alguns até quase dentro da contextura das fileiras,
enquanto outros avançam pela frente e outros marcham
concentrados. Possuem também esquadras que protegem o
exército com chuços. Finalmente, a batalha é decidida pelas
espadas.
Terminada a guerra, celebram triunfos militares, como os
antigos romanos e ainda melhor. Rendem graças a Deus com
preces, e o supremo chefe da expedição entra no templo, onde
um poeta ou um historiador, que assistiu aos fatos, bem ou mal os
expõe. Depois, Hoh coloca uma coroa de louros na cabeça do
chefe, seguindo-se a distribuição dos presentes e das honras aos
soldados que mais se distinguiram, os quais, por muitos dias, são
dispensados do serviço. Mas, os habitantes solares, não gostando
do ócio, empregam essas folgas em socorrer os amigos. Ao
contrário, os chefes que, por culpa própria, foram vencidos ou
perderam ocasião de mais completa vitória, são infamados. O
soldado que foi o primeiro a fugir só pode subtrair-se à morte
quando o exército inteiro pede graça por sua vida, assumindo
cada um uma parte do castigo. Essa indulgência, porém, raramente
é concedida e só quando militam circunstâncias excepcionais. É
(49) Ramo da raça mongólica.
36
batido com vergas quem não socorre o amigo, e quem se mostrou
desobediente é encerrado num recinto para ser devorado pelas
feras, pondo-se-lhe nas mãos um bastão, de forma que, se vencer
os ursos e os leões que o guardam, o que é quase impossível,
será novamente admitido na sociedade.
As cidades subjugadas ou que se submetem de espontânea
vontade põem logo em comum todas as coisas, aceitam guarnições
e magistrados solares e aos poucos se habituam aos costumes da
Cidade do Sol, mestra de todas, para onde expedem os seus filhos,
aos quais, sem nenhuma despesa, é dada perfeita instrução.
Obra de excessiva extensão seria falar dos exploradores e
dos seus mestres, das sentinelas, das ordens e dos usos dentro e
fora da cidade, coisas que você facilmente pode imaginar, bastando
que eu lhe observe que são escolhidos quando meninos, segundo
a inclinação individual e a constelação que presidiu ao seu
nascimento. E assim, procedendo segundo o próprio talento
natural, cada um exerce o respectivo mister com pontualidade e
também com prazer, porque está em harmonia com a índole própria.
O mesmo se pode dizer dos estratagemas e outras funções.
As quatro partes da cidade são guardadas noite e dia por
sentinelas, enquanto outras montam guarda às últimas muralhas
do sétimo circulo, sobre propugnáculos, torres, e entre os
entrincheiramentos internos. Durante o dia, também as mulheres
prestam esse serviço, mas somente os homens à noite, a fim de
não ficarem preguiçosos e prevenirem uma surpresa. A duração
de cada plantão é, como entre nós, de três horas. Ao cair do sol,
por entre sons de tímpanos e sinfonias, indicam-se aos armados
os lugares que devem ser vigiados. Amam a caça como uma imagem
da guerra e, na ocorrência de várias solenidades, há nas praças
públicas divertimentos de que participam homens a pé e a cavalo.
Nesses divertimentos, nunca falta a música, etc. De bom grado,
perdoam as ofensas e os erros dos inimigos, e, depois da vitória,
costumam beneficiá-los. Mas, quando, por lei da necessidade,
devam arrasar muralhas ou decepar cabeças, o decreto é posto
em execução no mesmo dia da vitória. Depois, continuam a
37
prodigalizar toda sorte de benefícios e dizem que não se deve
combater um inimigo para exterminá-lo, mas para torná-lo melhor.
Se, entre eles, surge uma altercação por injúrias ou outra causa
(pois quase não conhecem disputas que não sejam de honra), o
primaz e os magistrados punem o culpado secretamente, quando
o ato que constitui a afronta tenha resultado de um primeiro ímpeto
de cólera. Se a injúria consiste em palavras, esperam o dia da
batalha, dizendo que se deve lançar a ira contra o inimigo;
considera-se, então, que defendeu a melhor causa e a verdade
aquele que na guerra deu mostra de maior valor. O outro cede.
Mas, as penas são sempre proporcionais à culpa. Não se permite
nunca que os ódios se prolonguem até ao duelo, o qual, além de
destruir o poder dos tribunais, é também injusto, porque expõe a
sucumbir a parte que tem razão. Assim, na Cidade do Sol, quem
se julga imerecedor de injúria e afirma ser melhor do que o
adversário, tem a faculdade de prová-lo na guerra pública.
G.-M. - Isso é de grande vantagem, porque, evitando os ódios
particulares, impede a formação de partidos nocivos à pátria, assim
como as causas de guerras civis, das quais, tão freqüentemente,
como em Atenas e em Roma, surge um tirano. Peço-lhe, agora,
que me fale do trabalho.
ALM. - Já lhe disse que eles têm em comum a arte militar, a
agricultura e a pecuária. Todos têm obrigação de conhecer essas
artes julgadas nobilíssimas, de forma que quem exerce maior
número é considerado possuidor de maior nobreza, e quem chegou
a maior nobreza e a maior perfeição em alguma delas, é eleito
mestre. As artes mais fatigantes obtêm maior estima, como a do
artífice, a do pedreiro, etc. Ninguém se recusa a exercitá-las, porque
a elas se aplicam pela particular tendência revelada na infância, e
também porque o trabalho é distribuído de modo que nunca possa
ser nocivo à pessoa, mas, ao contrário, deva torná-la e conservá-
la melhor. As mulheres exercem as artes menos pesadas. Todos
devem ser hábeis na natação, e reservatórios especiais de água
foram preparados não longe da cidade. Já o comércio é descurado,
embora conheçam o valor das moedas e fabriquem dinheiro, com
38
o qual os embaixadores e os exploradores possam prover à
subsistência nos países estrangeiros. À Cidade do Sol costumam
chegar comerciantes das diferentes partes do mundo, que compram
dos solares o supérfluo. Os habitantes não recebem dinheiro, mas
trocam com as mercadorias de que precisam, sendo que, muitas
vezes, também as compram com moedas. Mas, de todo o coração,
riem-se os meninos solares ao verem tanta abundância de coisas
deixadas por tão poucas bagatelas; não se riem, porém, os velhos.
A fim de que a cidade não seja corrompida pelos maus costumes
dos servos e dos estrangeiros, fazem todo comércio nos portos,
vendendo os prisioneiros de guerra ou mandando-os para fora da
cidade a cavar fossas e para outros trabalhos fatigantes. Para a
guarda dos campos, são continuamente expedidos, juntamente
com os cultivadores, quatro manípulos de soldados, cada um
dos quais sai por uma das quatro portas da cidade, que dão para
o mar por estradas construídas de tijolos, de forma que as coisas
e os forasteiros tenham mais fácil ingresso na cidade. Estes são
tratados com gentileza e magnificência. Vivem, por três dias, a
expensas públicas. Ao primeiro encontro, lavam-lhes os pés e os
conduzem, depois, para a cidade, onde lhes dão lugar na assembléia
e à mesa, assistidos e servidos por pessoas especiais. Quando
desejam tornar-se cidadãos solares, são provados por um mês no
campo, por outro na cidade. Se então se decidem e a admissão é
aceita, verificam-se juramentos e cerimônias.
Grandemente valorizada é a agricultura: cada palmo de terra
dá lucro. Estudados os ventos e as estrelas, saem eles, deixando
poucos montando guarda à cidade, para arar, semear, escavar,
sachar, ceifar, vindimar, acompanhados de trompas e tímpanos, e
em brevíssimo tempo é terminado todo o trabalho, economizando,
com a arte, tempo e fadigas. Usam carros munidos de velas, que
servem mesmo quando sopra vento contrário, graças a um
admirável aparelhamento de rodas, e, quando falta o vento, é
belíssimo ver como um único animal puxa um imenso e
pesadíssimo carro. Enquanto isso, os manípulos que guardam o
território vão saindo ao redor e alternando-se freqüentemente. Não
39
fazem uso dos adubos e da lama para fertilizar os campos, pois
acham que estes corrompem as sementes e produzem cereais
malsãos, enfraquecendo e abreviando a vida, da mesma forma
que as mulheres que, sem ser belas por exercício, mas por artifício,
dão à luz filhos lânguidos e raquíticos. Por isso, não põem nada
sobre a terra e as trabalham com assiduidade, sendo que, de um
livro chamado Geórgica (50), aprendem os segredos que se
requerem para um pronto nascimento e uma feliz multiplicação
das sementes. Trabalha-se somente a porção de terra que baste
para as necessidades dos cidadãos, ficando o restante para o pasto
dos animais.
Em grande estima é tida, igualmente, a nobre arte que se
relaciona com a reprodução e a criação de bois, cavalos, ovelhas,
etc. Não mandam ao pasto os garanhões, juntamente com as éguas,
mas, quando ocorre, emparelham-nos no átrio das estrebarias
campestres, observando o Sagitário em bom aspecto com Marte
(51) e Júpiter (52). Para o gado bovino, observam o Taurus, para
as ovelhas o, Áries, etc., segundo a doutrina. A família dos animais
domésticos se acha sob as Plêiades (53). As mulheres, com prazer,
conduzem os patos e os gansos ao pasto, fora da cidade, onde há
lugares em que os encerram, havendo outros onde podem preparar
queijo, manteiga e toda espécie de laticínios. Dão também alimento
a um grande número de capões, etc., aperfeiçoando-se em tudo
isso pela leitura de um livro chamado Bucólica (54). Possuem de
tudo com fartura, desejando cada qual mostrar-se o primeiro no
trabalho, que não fatiga e é útil. Seus ânimos são dóceis e, assim,
obedecem a quem preside aos misteres e o chamam de rei. Nem
esse nome lhes desagrada, pois é criação dos habitantes solares,
que não o entendem à maneira dos ignorantes. Você, decerto, se
(50) Poema relativo à agricultura.
(51) Quarto planeta do sistema solar e o mais próximo da Terra.
(52) 0 mais brilhante dos planetas, situado entre Saturno e Marte.
(53) Constelação boreal.
(54) Poema pastoril.
40
maravilharia ao ver a ordem com que aqueles homens e mulheres,
indistintamente, procedem sob a obediência do rei. E o fazem
sem o ressentimento que se verifica entre nós, considerando-o um
pai ou um irmão mais velho. Possuem bosques e florestas
abundantes em feras e animais para o exercício da caça.
A arte náutica é muito apreciada. Possuem navios, alguns
dos quais, mediante um admirável artifício, viajam sem velas e
sem remos. Conhecem o curso das estrelas, o fluxo e o refluxo
do mar. Navegam para adquirir novos conhecimentos sobre os
povos, os países e as coisas. Não ofendem ninguém, mas também
não toleram injúrias, só brigando quando agredidos. Dizem que o
mundo alcançará tanta sabedoria que todos os homens viverão
como eles. Admiram a religião cristã e esperam, neles e em nós, a
confirmação da vida dos apóstolos Estreitaram alianças com os
chineses e com várias nações insulares e continentais, como Sião,
Calicuta, Cochinchina, etc., o que facilita as explorações. Fabricam
fogos artificiais para batalhas em terra e no mar, e possuem o
segredo de uma infinidade de estratagemas. Eis porque saem da
guerra quase sempre vitoriosos.
G.-M. - Coisa gratíssima me faria você falando dos alimentos
e das bebidas, e como e quanto tempo vivem eles.
ALM. - Sua doutrina é que se deve, primeiro, prover à vida
do todo e, depois, à das respectivas partes. Por isso, ao
construírem a cidade, trataram de ter propícias as quatro
constelações de cada um dos quatro ângulos do mundo, as quais,
como já se disse, se observam também na concepção de cada
indivíduo, porque dizem que Deus atribuiu causas a todas as coisas,
devendo o sábio conhecê-las, usá-las e não abusar delas.
Nutrem-se de carnes, manteiga, mel, queijo, tâmaras e legumes
de diferentes espécies. Houve uma época em que não queriam
matar os animais, parecendo-lhes isso uma ação bárbara, mas, ao
considerarem que também é crueldade extinguir plantas que gozam
de sentido e vida própria, para não morrerem de fome, concluíram
que as coisas ignóbeis foram criadas para beneficiar as mais nobres.
E é assim que, no presente, se alimentam de todos os animais,
41
mas, na medida do possível, poupam os mais úteis, como os bois
e os cavalos. Fazem distinção entre alimentos sãos e nocivos, e,
quanto à escolha, deixam-se dirigir pelo médico. A alimentação é
continuamente mudada por três vezes: primeiro, comem carne;
depois, peixe; por fim, legumes. Então, recomeçam com a carne,
de forma que o hábito não enfraqueça as forças naturais. Os
alimentos de fácil digestão são dados aos velhos. Estes comem
três vezes ao dia e parcamente; duas vezes, a comunidade; e quatro,
as crianças, segundo ordena o médico. Em geral, vivem cem anos,
sendo que não poucos também duzentos. São de extrema
temperança no que diz respeito às bebidas. Os jovens menores de
dezenove anos não bebem vinho, a não ser quando o requeiram
razões de saúde. Depois dessa idade, misturam-no com água. Só
aos cinqüenta anos é permitido bebê-lo puro. As mesmas regras
são válidas para as mulheres. Os alimentos variam segundo as
estações, seguindo-se sempre, a esse respeito, o conselho do
protomédico. Julgam que não são nocivos quando usados na
estação em que Deus os produz e desde que não se abuse da
quantidade. Por isso, no verão, alimentam-se de frutas, porque
são úmidas, suculentas e frias, em defesa da secura e do calor da
estação; no inverno, comem alimentos secos; no outono, grande
quantidade de uvas, concedidas pelo céu contra a bílis negra e a
melancolia. Gostam muito de usar substâncias aromáticas. De
manhã, ao levantar-se, penteiam os cabelos e com água fria lavam
as mãos e o rosto. Depois, esfregam os dentes, ou mastigam hortelã,
salsa ou erva-doce (os velhos, incenso). Em seguida, voltando-se
para o Oriente, recitam breve oração semelhante à ensinada por
Jesus Cristo. Depois, saem em vários grupos, pondo-se uns aos
serviço dos velhos, outros entregando-se às funções públicas,
etc. Acompanham as lições, depois os exercícios corporais, depois
ficam sentados em breve repouso e, por fim, vão jantar.
Escasso é, entre eles o número das moléstias. Não conhecem
a gota, a quiragra, a flatulência, pois essas enfermidades provêm
do ócio ou da intemperança, ao passo que eles se livram, com a
frugalidade e com o exercício, de toda superabundância de
42
humores. Consideram vergonhoso cuspir ou escarrar, dizendo que
esse vício denota pouco exercício ou reprovável preguiça, ou
resulta da devassidão ou da gulodice. São, antes, sujeitos às
inflamações e ao espasmo seco, em cujo tratamento empregam
alimentos sãos e nutritivos. Curam a tísica com banhos mornos,
com laticínios, com a amenidade das habitações campestres, com
moderado e agradável exercício. A sífilis não pode fazer
progressos, porque lavam assiduamente o corpo com vinho,
untando-o com óleos aromáticos, de forma que o suor elimina o
vapor fétido de que deriva a corrupção do sangue e da medula. A
tísica é rara, só muito poucas vezes sofrendo eles de catarros
pulmonares, sendo que mal conhecem aquela espécie de asma
que provém da densidade dos humores. Curam as febres
inflamatórias com beberagens de água fria, e as efêmeras com
densos caldos aromáticos, ou com o sono, a música e a alegria.
Contra a terçã, usam emissões de sangue, ruibarbo ou água, dentro
da qual fervem raízes de ervas purgativas e ácido. Finalmente,
curam as quartãs pregando sustos, ou tratando-as com ervas de
natureza oposta à quartã e com outras coisas semelhantes, tendo
me mostrado vários segredos contra as mesmas. Consagram maior
estudo à cura das febres contínuas, que são as que mais temem, e
se esforçam por cortá-las estudando as estrelas e as ervas, e
elevando preces ao céu. As febres quintãs, sextãs, oitãs, quase
não existem, pela ausência, entre eles, de temperamentos ignaros.
Conservam o asseio e a robustez do corpo com o uso de banhos,
de óleos, como entre os antigos romanos, e de outros oportunos
segredos de sua descoberta, muito úteis também contra a epilepsia,
pela qual são freqüentemente molestados.
G.-M. - Essa doença é indício de engenho invulgar, pois a
tiveram os homens mais célebres, como Hércules (55), Scot (56),
(55) Herói, filho de Júpiter e de Alemena, celebrado por sua força e por seus doze
extraordinários trabalhos.
(56) Duns Scot (1274-1308). Teólogo inglês, cognominado o Doutor Sutil
Adversário de São Tomas de Aquino. Foi um dos mais brilhantes intérpretes da
filosofia escolástica. Defensor do “realismo”.
43
Sócrates, Calímaco (57) e Maomé.
ALM. - Eles a combatem com preces e, em seguida, revigoram
o sistema nervoso da cabeça com substâncias ácidas ou excitantes,
como sopas substanciosas condensadas com flor de farinha de
trigo.
Grande é a sua habilidade no preparo dos petiscos. Misturam
noz moscada, mel, manteiga e vários aromas corroborantes.
Corrigem o excesso de gordura introduzindo ácidos. Não bebem
água gelada pela neve, nem artificialmente aquecida como os
chineses. Quando é necessário favorecer o calor natural contra a
exuberância dos humores, usam alho amassado, timo, hortelã,
basilicão e, sobretudo, exercícios corporais. Conhecem, enfim, o
segredo de renovar a vida, de sete em sete anos, sem dores e com
meios suaves e portentosos.
G.-M. - Até agora, você não disse nada sobre as ciências
nem sobre os magistrados.
ALM. - É verdade, mas, vendo-o tão curioso, acrescentarei
outras coisas. A cada lua nova e a cada lua cheia, depois do
sacrifício, convocam a assembléia, da qual participam os maiores
de vinte anos, podendo cada um expor o que julga faltar à república
e dizer se os magistrados desempenham bem ou mal suas funções.
De oito em oito dias, congregam-se também os magistrados:
primeiro Hoh e com ele a Potência, a Sapiência e o Amor. Cada
triunvirato preside a três magistrados, que, imediatamente depois
dele, têm a seu cargo a suma direção das artes. Formam, assim,
um total de treze. Nessa reunião especial, tomam parte, igualmente,
os instituidores do exército, isto é, os decuriões, os centuriões,
etc., homens e mulheres, que conjuntamente elegem os magistrados,
apenas indicados pela assembléia geral, e tratam de tudo quanto
ocorre na república. Além disso, Hoh e os três triúnviros consultam-
se diariamente sobre o que é preciso fazer, corrigindo, confirmando
e pondo em execução as decisões da grande assembléia, bem
(57) Poeta elegíaco, de Cirena, morador de Alexandria ao tempo de
TolomeuPiladelfo.
44
como provendo a toda sorte de necessidades. Ao criar um
magistrado, nunca recorrem à sorte, salvo em caso de dúvida na
escolha. Todos os funcionários podem ser substituídos de acordo
com a vontade do povo, excetuados os quatro primeiros. Estes,
depois de uma conferência, cedem os cargos aos que julgam de
maior engenho e de costumes mais puros. Tão dócil é a sua índole
e tão grandemente amam a república que os cedem sem sombra
de ressentimento e se fazem discípulos do mais digno. Mas, isso
raríssimas vezes acontece.
G.-M. E que me diz dos juizes?
ALM. - Já estava pensando nisso. Todo indivíduo é julgado
pelo supremo Mestre de sua arte. Os primeiros artífices são todos
juizes e punem com o exílio, a pancada, a desonra, a privação da
mesa comum, a interdição ao templo, a proibição das mulheres.
E, quando os excessos são muito graves, punem também com a
morte. Pagam olho por olho, nariz por nariz, dente por dente, de
acordo com a lei de talião (58), mas somente quando a culpa
tenha sido voluntária e precedida de reflexão; em outros casos, a
sentença é suavizada, não pelo juiz, mas pelos três triúnviros, que
levam o recurso também ao Hoh, não por motivos de justiça, mas
apenas para obter graça, uma vez que só ele pode perdoar. Não
possuem cárceres, a não ser uma torre destinada à reclusão dos
inimigos, rebeldes, etc. Não se escreve o libelo vulgarmente
chamado processo, mas se apresentam ao juiz e à Potência o
acusado e as testemunhas. O primeiro pronuncia a sua defesa e,
em seguida, o juiz o condena ou o absolve; havendo apelação
para o triunvirato, a condenação ou absolvição sai no dia seguinte.
No terceiro dia, Hoh concede a graça ou firma irrevogavelmente a
sentença; nesse caso, o culpado se reconcilia com o acusador e
com as testemunhas, dando-lhes um abraço e um beijo, como nos
médicos salvadores de sua moléstia. Não querendo contaminar a
república, agem sem litores ou carrascos, morrendo cada
condenado pela mão do povo, que o mata ou lapida, mas sempre
(58) Lei mosaica cujo princípio é: olho por olho, dente por dente.
45
precedido do acusador e das testemunhas. A alguns se concede a
escolha do gênero de morte, sendo que quase sempre preferem
circundar-se de saquinhos de pólvora, e então, acendido o fogo,
morrem assistidos por pessoas que os exortam a terminar bem:
toda a cidade, amargurada, suplica a Deus que aplaque sua cólera,
contristando-se todos por terem sido constrangidos a amputar
um membro arruinado do corpo da república. Esforçam-se,
igualmente, com discursos, por persuadir o culpado de desejar e
aceitar a morte. Quando não possam induzi-lo a isso, e desde que
não se trate de culpa contra a liberdade pública, ou contra Deus
ou os supremos magistrados, a sentença não é executada; é, porém,
cumprida sem misericórdia quando a condenação foi motivada
por um desses três delitos.
A religião permite que o moribundo exponha as razões pelas
quais não deveria perecer e obriga-o a revelar as culpas dos outros,
bem como as faltas dos magistrados, afirmando que todos estes,
mais do que ele, merecem a morte, e isso em presença do povo e
se assim parece à sua consciência. Se as suas razões prevalecem,
é condenado ao exílio, e, com preces e sacrifícios, é purificada a
cidade. Não molestam, contudo, os citados pelo culpado,
limitando-se a admoestá-los. Os pecados de fragilidade e de
ignorância são punidos com a desonra ou a obrigação de mais
severa castidade, ou ainda pela advertência aos culpados de que
devem mostrar-se mais diligentes e disciplinados na ciência ou
arte contra a qual pecaram. É preciso saber, além disso, que quando
um culpado, prevenindo a acusação, se descobre espontaneamente
aos magistrados, pedindo castigo, fica livre da pena do delito
oculto, a qual é transformada em outra, quando não tenha sido
acusado. Usam de grandes cautelas para impedir a calúnia, sendo
todo caluniador submetido à pena de talião. Convivendo sempre
em grande número, é requerido, como prova de um delito, o
testemunho de cinco pessoas. Sem isso, o acusado, após o
juramento, é deixado livre, sendo-lhe feitas, porém, admoestações
e ameaças. Bastam três testemunhas e até duas para ser duplamente
punido, quando é a segunda ou a terceira vez que a acusação é
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levada ao juiz. As leis desse povo são poucas, breves, claras,
escritas sobre uma tábua de bronze pendente dos intervalos das
colunas do templo, nos quais também se vêem, escritas em estilo
metafísico e brevíssimo, as definições da essência das coisas,
que são Deus, os Anjos, o Mundo, as Estrelas, o Homem, o
Destino, a Virtude, etc., na verdade com grande critério. Há ainda
as definições de todas as virtudes, cada uma das quais tem um
juiz próprio com assento numa cadeira dita tribunal e colocada
debaixo da coluna que traz a definição da Virtude que deve julgar.
Voltando-se para o culpado, diz o juiz: “Filho, pecaste contra esta
santa definição; contra a beneficência, a magnanimidade, etc. Lê...”
E, após a discussão, recebe a pena merecida pelo seu mau
procedimento. As condenações são verdadeiras e seguras
medicinas, sentindo eles mais o amor do que o castigo.
G.-M. - Desejaria que você me falasse, agora, dos sacerdotes,
dos sacrifícios, da religião e das outras crenças.
ALM. - Todos os primeiros magistrados são sacerdotes,
sendo Hoh o supremo. O seu papel é purificar as consciências.
Todos os cidadãos, mediante a confissão auricular, revelam aos
magistrados as próprias culpas, e estes, nesse mister de purificar
as almas, ficam conhecendo os vícios mais freqüentes do povo.
Depois, também os magistrados confessam aos três triúnviros as
próprias faltas e expõem mesmo as compreensíveis, sem citar o
nome de nenhuma, mas confusamente, bem como as que mais
prejudicam a república.
Por fim, os triúnviros revelam ao Hoh as próprias faltas e as
dos outros. Dessa forma, conhecidos todos os erros que se
praticam na cidade, Hoh pode aplicar-lhes os remédios oportunos.
Em seguida, oferece sacrifícios e preces a Deus, e publicamente,
no templo, confessa do alto do altar, perante o Onipotente, as
culpas de todo o povo. Só o faz, porém, quando o julga necessário
e calando sempre os nomes dos pecadores. Depois, absolve o
povo, admoesta-o a precaver-se contra as culpas citadas, oferece
um segundo sacrifício a Deus e termina suplicando-lhe que perdoe,
ilumine e proteja a cidade. Uma vez por ano, os chefes das cidades
47
sujeitas, juntamente com os próprios, confessam as faltas dos
seus concidadãos em presença do Hoh, a fim de que este,
conhecendo-as, dê remédio aos males das províncias.
O sacrifício é feito da seguinte forma. Hoh pergunta ao povo
congregado qual, dentre tantos, está disposto a sacrificar-se por
seus confrades, e o mais perfeito se oferece. Então, feitas as preces
e as cerimônias, é colocado sobre uma tábua quadrada, à qual,
por meio de fivelas, se ligam quatro cordas, que descem por quatro
roldanas presas na muralha da pequena abóbada. Depois de
suplicar a Deus misericordioso que se digne aceitar aquele sacrifício
humano e espontâneo, não brutal e involuntário como entre os
gentios, Hoh manda que as cordas sejam puxadas, e a vítima,
alcançando o centro da pequena abóbada, aí se abandona às mais
fervorosas preces. Os sacerdotes que habitam ao redor
subministram-lhe a alimentação por uma janela, mas em pouca
quantidade, a fim de que seja completa a purificação da cidade.
Depois de trinta ou quarenta dias, aplacada a cólera de Deus com
preces e jejuns, ele ou se faz sacerdote, ou então, o que raríssimas
vezes acontece, volta ao primeiro estado, mas descendo pelo
caminho externo dos sacerdotes. Passa esse homem a gozar da
estima e do amor universais, pois não hesitou em morrer pelo bem
da pátria. Deus não quer a morte de quem quer que seja. Os
sacerdotes que, em número de vinte e quatro, habitam o alto do
templo, cantam salmos a Deus, quatro vezes ao dia, isto é, à meia-
noite, ao meio-dia, de manhã e à tarde. Consiste o seu principal
empenho em estudar as estrelas, os seus movimentos com os
astrolábios, e observar a sua influência e relação com as coisas
humanas. Conhecem ainda as mudanças que se verificam ou que
devem verificar-se em determinada região e numa época
determinada, tomando em consideração tanto as predições
comprovadas como as que falharam, por meio de exploradores
enviados aos países indicados. Isso permite que, depois de
repetidas experiências, façam predições sem receio de enganar-
se. Determinam a hora da geração, os dias da semeadura, da
vindima, da colheita, tornando-se quase que internúncios,
48
intercessores e liames que unem os homens a Deus, sendo que
quase todos os Hoh são tirados dentre eles. Além disso, escrevem
os fatos dignos de história e se esforçam pelo aperfeiçoamento de
todas as ciências. Só descem para o jantar e para a ceia. Raríssimas
vezes têm relações com as mulheres e unicamente a título de
medicina. Hoh sobe diariamente, a fim de consultá-los sobre o
que descobriram e estudaram em benefício de todas as nações do
universo.
Há sempre um homem do povo no templo, a rezar diante do
altar, sendo substituído por outro depois de uma hora, como
costumamos fazer na solenidade das quarenta horas. Esse modo
de orar é chamado sacrifício perpétuo. Depois das refeições,
rendem graças a Deus com sons musicais, e cantam os feitos dos
heróis cristãos, hebreus, gentios e de todas as nações, fazendo
isso com imenso prazer, pois não têm ódio a nenhum povo. Cantam
também hinos ao amor, à sapiência e a todas as virtudes. Sob a
direção do próprio rei, cada um escolhe a mulher que mais lhe
agrada, e, entre os peristilos, se exercitam em honesta e jocunda
dança. As mulheres trazem os longos cabelos unidos, formando
uma única trança, com a qual circundam a cabeça, e os homens
fazem um topete no meio da testa e cortam todos os outros cabelos
ao redor, usando uma espécie de capuz redondo, um pouco mais
alto do que a cabeça.
No campo, cobrem a cabeça com chapéus; na cidade, com
barretes brancos, vermelhos e de várias outras cores, conforme a
arte ou o ofício. Os magistrados os possuem maiores e mais bem
guarnecidos. Com grande solenidade, celebram os dias de festa,
que transcorrem quando o sol entra nos quatro gonzos do mundo:
o Câncer, a Libra, o Capricórnio e o Áries. São representadas,
então, ações instrutivas e quase cômicas. São também dias de
festa os plenilúnios e os novilúnios, assim como o aniversário da
fundação da cidade, de uma vitória, etc., que se celebram com
sons de trompas e de tímpanos e com cantos feminis. Os poetas
cantam os louvores dos mais ilustres guerreiros. Todavia, quem
mentir, mesmo no elogio, será punido. Não é considerado digno
49
da nobre arte poetar quem, nas suas fantasias, faz entrar a mentira,
sendo esse abuso julgado uma das maiores pestes do gênero
humano, pois tira o prêmio à virtude para oferecê-lo muitas vezes
ao vício, e quase sempre por temor, ambição, adulação ou avareza.
Não se erigem estátuas em honra de ninguém, a não ser depois da
morte. Quem, porém, descobrir novas artes, ou revelar segredos
de grande utilidade, ou ainda fizer relevantes benefícios civis ou
militares, obtém, mesmo em vida, a inscrição no livro dos heróis.
Os despojos dos defuntos não são enterrados, mas queimados,
para não darem origem a pestes e se converterem em fogo, matéria
nobre e viva que desce do sol para tornar a subir ao sol; e também
para impedir toda razão de idolatria.
Sempre que fazem suas orações, voltam-se para os quatro
ângulos do mundo. De manhã, olham primeiro para o oriente,
depois para o ocidente, depois para o meio-dia. Só recitam uma
prece, pela qual pedem sanidade de corpo e de mente, felicidade
para si e para todos os povos, e terminam: “Como melhor parecer
a Deus”. Mas, a prece pública dura muito tempo e se eleva ao céu.
O altar é redondo, indo-se a ele por quatro caminhos que se cruzam
em ângulos retos. Hoh mostra-se sucessivamente a cada um e,
depois, prostrando-se, reza com os olhos voltados para o céu.
Essa cerimônia é tida como um grande mistério. As vestes
pontificais assemelham-se, pela beleza e magnificência, às de Aarão
(59). Imitam a natureza e tornam maravilhosa a arte.
Dividem o tempo segundo o ano tropical e não
arbitrariamente, mas cada ano notam quanto um antecipou o outro.
Crêem que o sol se aproxima cada vez mais da terra e, percorrendo
círculos cada vez menos amplos, chega, no ano presente, aos
trópicos e aos equinócios, mais depressa do que no passado.
Contam os meses pelo curso lunar e os anos pelo solar, só
os pondo de acordo no décimo nono ano, quando a cabeça do
dragão termina o seu curso. Fundaram, assim, uma nova,
(59) Supremo sacerdote dos hebreus, irmão de Moisés.
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astronomia. Louvam Tolomeu (60) e admiram Copérnico (61),
embora lhes anteponham Ariatarco(62) e Filolau(63). Dizem, porém,
que um observa com pedrinhas e o outro com favas, mas nenhum
conforme à verdade. Dão-lhes, pois, um valor ideal e não real.
Dedicam a esse estudo a mais séria aplicação. Reputam-no de
absoluta necessidade para se conhecer como é composto e
construído o mundo e se este deve ou não acabar. Acreditam
plenamente no oráculo de Jesus Cristo sobre a futura aparição de
sinais no sol, na lua e nas estrelas. Há tolos que, na sua ignorância,
dão a essas coisas o nome de fábulas, mas se surpreenderão com
o último dia do mundo como com o ladrão noturno. Esperam,
portanto, a renovação do século e, talvez também o seu termo.
Dizem que reina grande obscuridade sobre a origem do
mundo, não se sabendo se foi feito do nada ou das ruínas de
outros mundos ou do caos, mas julgam verosímil e mesmo certo
que tenha sido feito e não seja eterno. Desprezam, assim, a opinião
de Aristóteles, que eles chamam de lógico e não de filósofo. Das
anomalias astronômicas, deduzem numerosos argumentos contra
a eternidade do universo. Não adoram, mas honram o sol e as
estrelas como coisas vivas, estátuas e templos de Deus, e altares
animados do céu. Antes de qualquer coisa criada, estimam o sol,
mas não consideram nenhum digna do culto de Lafria (64). Este é
reservado exclusivamente a Deus, e a ele somente servem, a fim
de que, pela lei de talião, não caiam sob a tirania e a miséria. No
(60) Cláudio Tolomeu, astrônomo grego. Viveu mais ou menos no ano 160 a. C.,
em Alexandria. O seu sistema, segundo o qual a Terra era fixa, foi seguido até
Copérnico
(61) Astrônomo polaco (1473-1543). Autor do livro sobre a rotação dos astros
em torno do Sol.
(62) Aristarco de Samos, astrônomo do III século a.C. Foi o primeiro a afirmar
que a Terra gira em torno do seu eixo e em torno do Sol. Por essa opinião foi
acusado de perturbar o sono dos deuses.
(63) Filósofo pitagórico do V século a. C., nascido em Crotona. Discípulo de
Arquita.
(64) Culto de latria, adoração.
51
sol, contemplam a imagem de Deus, chamando-o de excelso rosto
do Onipotente, estátua viva, fonte de toda luz, calor, vida e felicidade
de todas as coisas. Seu altar foi erigido à semelhança do sol, e
nele os sacerdotes adoram Deus, imaginando no céu um templo,
nas estrelas altares e casas habitadas por anjos bons, nossos
intercessores junto a Deus, que mostra sobretudo no céu a sua
beleza, e no sol o seu troféu e estátua.
Negam os excêntricos e os epiciclos de Tolomeu e de
Copérnico. Afirmam que o céu é único e que os planetas se movem
e elevam por forças próprias quando se aproximam e se unem ao
sol, levantando-se mais devagar e devendo percorrer um círculo
cada vez mais amplo. Professam mil outras opiniões astronômicas,
quase todas em oposição com as que vulgarmente se conhecem.
Atribuem às coisas terrestres dois princípios físicos: o sol-
pai e a terra-mãe. Dizem que o ar é uma porção impura do céu;
que o fogo deriva plenamente do sol que o mar provém do suor
da terra ardente e fusa, constituindo um meio de união entre o ar e
a terra, da mesma forma que o sangue o é entre os espíritos e os
corpos animais. Acreditam ser o mundo um grande animal, vivendo
nós no seu ventre como os vermes no nosso, e, por isso, não
pertencemos à providência própria das estrelas, do sol e da terra,
mas somente à de Deus, porque, em relação a estas, entendidas
para outro escopo, somos apenas uma sua amplificação, tendo
nascido e estando vivendo por acaso; mas, em relação a Deus, do
qual as coisas são instrumentos, fomos criados com preciência e
ordem, destinando-nos a um grande fim. Por conseguinte, somente
a Deus devemos gratidão como a um pai, e somente Deus deve
ser por nós reconhecido como autor e concessor de todas as
coisas.
Crêem na imortalidade da alma e, depois da saída do corpo,
na sua associação com os anjos bons ou maus, conforme as ações
da vida presente, e isso porque as coisas semelhantes amam os
seus semelhantes. Diferente da nossa é a sua opinião sobre os
lugares das penas e dos prêmios. Duvidam da existência de outros
mundos além do nosso. Consideram mentecapto quem afirmar
52
que existe o vácuo, pois dizem que este não pode existir nem
dentro nem fora do mundo, uma vez que Deus, ente infinito, não
pode tolerar consigo um vácuo. Recusam, contudo, conceber um
infinito corpóreo.
Admitem dois princípios metafísicos: o Ente, que é o Deus
supremo, e o Nada, que é a falta de entidade, no termo da qual
fisicamente se produz alguma coisa, porque não se faz o que existe
e, portanto, não existia o que foi feito. É assim, pois, do Ente e do
Nada que o ser finito toma a sua essência. Da mesma forma, da
tendência ao não ser se originam o mal e o pecado. O pecado
tem, pois, uma causa de deficiência e não de eficiência. Por causa
deficiente, entendem eles a falta de potência, ou de sapiência, ou
de vontade. Somente nesta última colocam o pecado, pois quem
sabe e pode fazer o bem deve igualmente querê-lo, nascendo a
vontade das duas primeiras e não aquelas desta. Adoram Deus na
trindade, o que causa admiração, mas dizem eles que Deus é Suma
Potência, da qual procede a Suma Sapiência, que é também Deus,
e de ambas o Amor, que é Potência e Sapiência, embora o
procedente não tenha a essência daquilo de que procede e não
retrocede. Não possuem, todavia, como os cristãos, noções
distintas das três pessoas citadas, pois V não tiveram revelações,
mas reconhecem em Deus procedimento e relação própria a se,
dentro de se e por se. Todos os seres, portanto, derivam sua
essência da Potência, da Sapiência e do Amor, enquanto têm
existência, e da Impotência, da Ignorância e do Desamor, enquanto
participam do não-ser. Pelas primeiras, adquirem mérito, e, pelas
segundas, pecam, ou com ofensas contra o costume e a arte que
derivam de todas três, ou somente do terceiro, da mesma forma
que uma natureza especial peca por ignorância e impotência quando
produz um monstro.
De resto, tudo isso é preconhecido e ordenado por Deus,
inimigo de todo nada e força potentíssima, sapientíssima e ótima.
Ente nenhum que não peque em Deus pecará fora de Deus; mas,
fora de Deus, é impossível sair, mas somente de nós, quer no que
nos diz respeito, já não por causa dele, quer no que a ele diz
53
respeito, porque em nós há deficiência e em Deus eficiência. O
pecado é, por conseguinte, ato de Deus enquanto não tem entidade,
e só a deficiência em que consiste a essência do pecado está
dentro de nós e é obra nossa, que tendemos, por uma força de
desordem, ao não-ser.
G.-M. - Irra, que são bem profundos!
ALM. - Oh! se me lembrasse de tudo, se não estivesse
pensando na partida e se não receasse nada, poderia dizer-lhe
coisas muito mais admiráveis, mas perderei o navio se não me
apressar em ir-me embora.
G.-M. - Suplico-lhe, primeiro, que me responda a esta única
pergunta: que dizem eles do pecado de Adão (65)?
ALM. Confessam sinceramente que há muita iniqüidade no
universo. Os homens não são governados por superiores e
verdadeiras razões, vivendo infelizes e sem escutar os bons.
Triunfam os perversos, se bem que eles considerem miserável
esse triunfo, não havendo nada de mais vão e de mais desprezível
do que querer mostrar-se aquilo que na realidade não se é ou não
se merece ser, como tantos que se chamam reis, sábios, guerreiros
ou santos. Argumentam ainda que há, por causa ignorada, uma
grande desordem nas coisas humanas. E, quanto às primeiras,
inclinam-se a crer, com Platão, que os mundos celestes sofreram,
outrora, uma revolução do atual Ocidente para a parte agora
chamada Oriente, dirigindo-se depois para a parte oposta.
Acrescentam ser possível que o governo da terra, com permissão
do Deus Supremo, tenha sido confiado a divindades inferiores.
Mas, consideram tolice afirmá-lo de um modo absoluto, e tolice
ainda maior asseverar que, primeiro, com a máxima eqüidade, tenha
reinado Saturno (66), com menor Júpiter, e depois, sucessivamente,
os outros planetas. Não obstante, confessam que a idade do mundo
é regulada de acordo com a série dos planetas, e acreditam que
com as mutações dos astros, depois de 1.000 ou 1.600 anos,
(65) Nome do primeiro homem, pai da espécie humana.
(66) Deus da agricultura, pai de Júpiter.
54
poderão as coisas passar por grandes mudanças. Dizem que a
idade presente parece dever atribuir-se a Mercúrio, conquanto
modificada pelas grandes conjunções e repetições das anomalias
que possuem uma força fatal. Afirmam, finalmente, que feliz é o
cristão que se contenta em acreditar que toda essa revolução se
tenha originado do pecado de Adão. Opinam também que os pais
transmitem aos filhos mais o mal da pena que o da culpa. Esta
pode ser atribuída pelos filhos aos pais, quando estes tenham
descurado a geração ou a tenham exercitado fora de tempo e
lugar, ou então quando não se tenham tido em vista a escolha e a
educação dos genitores, os quais, se produziram mal os filhos,
ainda pior os instruirão. Toda a atenção é, pois, por eles dedicada
à geração e à educação, e dizem que tanto a culpa dos pais como
a pena dos filhos redundam em dano para a república, como o
provam, na atualidade, todas as cidades que, cheias de miséria, se
degradaram ao ponto de chamarem felicidade aos próprios males,
sem nunca terem conhecido o verdadeiro bem, o que levaria a
crer que o universo é governado pelo acaso. Mas, quem estuda a
construção do universo e a anatomia do homem (por eles
freqüentemente praticada nos cadáveres dos condenados), assim
como os planetas, os animais e a função de cada uma de suas
partes, deve confessar em voz alta a sabedoria e a providência de
Deus. É, pois, um dever do homem consagrar-se inteiramente à
religião e humilhar-se continuamente perante o próprio autor, o
que só é possível e fácil para quem estuda e conhece as obras
deste, obedecendo às suas leis e pondo em prática a sentença do
filósofo: “Não faças aos outros o que não queres que te façam; e
o que queres que te façam, faze-o aos outros.” Dessa forma, nós
que pretendemos dos filhos e dos homens bens e honras em troca
de poucas vantagens que lhes concedemos, devemos dar a Deus
tudo, porque dele tudo temos recebido, e estamos nele e com ele.
Glória, pois, a Deus por todos os séculos dos séculos.
G.-M. - Na verdade, assim como essa gente, que apenas
conhece a lei natural, se aproxima tanto do cristianismo, o qual às
leis da natureza só acrescentou os sacramentos (que conferem
55
força ao seguir fielmente aquelas), assim também eu deduzo um
grande argumento em favor da religião cristã, como sendo a única
verdadeira e que, eliminados os abusos, deverá dominar todo o
universo, de conformidade com o que ensinam e esperam os mais.
eminentes teólogos. E, a esse propósito, dizem eles que os
espanhóis descobriram um novo mundo (embora a primeira glória
se deva a Colombo(67), esplendor de Gênova), a fim de que todos
os povos se associem sob a mesma lei. Esses filósofos foram,
portanto, eleitos por Deus, em testemunho da verdade. Bem sei
que ignoramos o que nós próprios fazemos, mas, como somos
todos instrumentos de Deus, servimos aos seus fins, do mesmo
modo que aquele que, por ambição de riquezas, sai em busca de
novas regiões. Altíssimos são, pois, os fins de Deus. O sol tende
a incendiar a terra e não a produzir homens e plantas, mas Deus
utiliza sua luta para tais produções. A ele, por conseguinte,
rendamos louvores e glórias.
ALM. - Oh! se você soubesse quantas coisas aprenderam da
astrologia e também dos nossos profetas acerca do século
vindouro! Dizem eles que, em nossos dias, num período de cem
anos, acontecem mais fatos dignos de história do que nos quatro
mil anos do mundo anterior, e que maior número de livros foram
publicados neste último século do que nos cinqüenta passados.
Não cessam de elogiar a invenção da imprensa, da pólvora e da
bússola, sinais particulares e, ao mesmo tempo, instrumentos da
união de todos os habitantes do mundo num só ovil. Essas
maravilhosas invenções, acrescentam, verificaram-se quando uma
grande conjunção se realizou no triângulo de Câncer, na ábside de
Mercúrio e de Scorpio, sob a influência da Lua e de Marte,
poderosos nesse triângulo para as novas descobertas marítimas,
os novos exércitos e os novos reinos. Quando, porém, e não
custará muito, a ábside de Saturno entrar no Capricórnio, a de
(67) Descobridor da América (1492), nascido em Gênova. Divergem os autores
sobre a data do seu nascimento, de 1436 a 1456. Morreu no dia 20 do maio de
1506, em Valladolid.
56
Mercúrio no Sagitário, a de Marte na Virgem, após as primeiras e
grandes conjunções e a aparição de uma nova estrela em Cassiopéia
(68), surgirá uma nova monarquia, verificar-se-á a plena reforma
das leis e das artes, entender-se-ão os profetas e, no universo
plenamente regenerado, a santa nação ver-se-á cumulada de toda
sorte de bens. Mas, antes, será preciso abater e desenraizar, para
depois edificar e plantar... Peço-lhe, porém, que me deixe partir,
pois que, fora daqui, me chamam mil afazeres. Saiba somente que
eles já descobriram a arte de voar, a única que parece faltar ao
mundo. Além disso, consideram próxima a descoberta de
instrumentos óticos com os quais serão descobertas novas estrelas
e de instrumentos acústicos tão perfeitos que com eles se chegará
a escutar a música dos céus.
G.-M. - O quê? ha! ha! ha! Você fala muito bem, mas me
parece que essa gente astrologiza demais. Como podem as estrelas
fazer e saber tanto? O que lhe digo é que tudo, na terra, sucede na
ocasião determinada por Deus.
ALM. - Também eles me responderam que Deus é a causa
imediata de todas as coisas, mas só como causa universal e não
particular, primitiva e não secundária. Porque Deus não come
quando Pedro come; não rouba quando Pedro rouba, se bem que
derivem dele a essência e a faculdade de poder comer e roubar,
como causa imediata da qual depende toda outra mais particular
que modifica a imensidade da ação divina.
G.-M. - Oh ! como raciocinam bem! Os nossos doutores
escolásticos, sobretudo São Tomaz, dizem o mesmo contra os
filósofos maometanos, que professam opinião contrária.
ALM. - Dizem, portanto, que Deus atribuiu causas universais
e particulares a todo efeito, sendo que as particulares não podem
agir sem que ajam as universais. Do mesmo modo que uma planta
não florescerá se o sol não aquecê-la de perto. Os tempos são,
pois, efeitos das causas universais, isto é, das celestes. Por
conseguinte, todos nós procedemos segundo procede o céu. As
(68) Constelação situada. no círculo polar ártico, entre as do Cefeu e de Andrômena.
57
causas livres servem-se do tempo em favor próprio e, às vezes,
também pelo bem das outras coisas. Porque o homem, com o
fogo, força as árvores a florescer, e, com a lâmpada, na ausência
do sol, ilumina a própria casa. As causas naturais agem, pois, no
tempo. Da mesma maneira que algumas coisas se fazem de dia e
outras de noite, algumas no inverno e outras no verão, na primavera
ou no outono, e isso tanto por causas livres como naturais, assim
também outras coisas se fazem neste ou num futuro século. E,
como a causa livre não é obrigada a dormir quando é noite, nem a
se levantar quando chega a manhã, mas age de acordo com as
próprias conveniências, aproveitando-se das alternações dos
tempos, também não é obrigada a descobrir o arcabuz ou a
tipografia, quando se realizam grandes sínodos no Câncer, nas
monarquias quando em Áries, etc. Nem podem acreditar que o
Sumo Pontífice tenha proibido a astrologia aos cultíssimos cristãos,
mas somente aos que abusam dela para adivinhar os atos do livre
arbítrio e os acontecimentos sobrenaturais, enquanto que as
estrelas, em relação às coisas sobrenaturais, não passam de sinais
e, em relação às coisas naturais, só agem como causas universais,
não passando de ocasiões, convites, tendências. O sol, ao nascer,
não nos obriga a sair da cama, mas apenas nos convida a fazê-lo,
oferecendo-nos para isso todas as comodidades, ao passo que a
noite impede, com mil incômodos, que nos levantemos, sendo
comodíssima para dormir. Agindo, pois, indiretamente e ao acaso
sobre o livre arbítrio, ao mesmo tempo que agem sobre o corpo e
sobre a sensibilidade corpórea inerente aos órgãos corpóreos, é a
mente excitada pelos sentidos ao amor, ao ódio, à ira e a todas as
outras paixões, dependendo então do homem assentir ou opor-se
à paixão despertada. Assim é que as heresias, as carestias, as
guerras preindicadas pelas estrelas, muitas vezes se verificam na
realidade, porque muitos homens se deixam governar, não pela
razão, mas pelos apetites sensuais, dando lugar a essas coisas que
acontecem contra a razão, embora também sucedam,
freqüentemente, por terem obedecido racionalmente a uma paixão,
como quando se alimenta uma justa cólera para empreender uma
58
guerra justa.
G.-M. - Você continua a raciocinar direito, e de suas opiniões
participam o já citado São Tomaz e o nosso Sumo Pontífice, que
antepõem a astrologia à medicina, à agricultura e à náutica, O
mesmo sucede com os prognósticos conjecturais a propósito dos
atos arbitrários, sendo a última opinião admitida por todos os
escolásticos. Mas, tendo aumentado a malícia e verificando-se
abusos, proíbem não as conjecturas, mas o prognóstico
conjectural, e não porque seja sempre falso, mas porque, muitas
vezes, ou mesmo sempre, se torna perigoso. É por isso que os
príncipes e os povos que se dedicam excessivamente à astrologia
costumam imaginar males e tentar bens impossíveis, como o
provam Arbace (69), Agátoeles (70), Druso (71), Arquelau (72).
Com o tempo, também veremos coisas semelhantes, em razão do
prognóstico de Tycho (73), e o que é mais lamentável, muitos
príncipes serão enganados por charlatães. Inúmeros crédulos em
tais conjecturas ousam mil iniquidades contra os nossos Pontífices.
ALM. - Os solares, porém, dizem que se deve proibir tudo
quanto é falso ou perigoso, podendo ser instrumento de renovação
da idolatria, de destruição da liberdade ou de subversão da ordem
política. Afirmo-lhe, ao contrário, que os solares já descobriram o
modo de evitar a ação do Fado Sidéreo. Uma vez que toda arte só
nos é concedida por Deus em nosso benefício, quando está
iminente um eclipse infausto, um cometa maléfico, etc., eles
encerram o ameaçado dentro de casas brancas, impregnando o
ambiente de aromas e de vinagre rosado, acendem sete velas de
(69) Primeiro rei dos medos.
(70) Agátocles (361-289 a. C.). Rei de Siracusa, inimigo feroz dos cartagineses.
Morreu envenenado.
(71) Filho de Tibério. Morreu envenenado pela mulher, no ano 23 d. C.
(72) Rei da Macedônia (413-400 a. C.).
(73) TychoBrahe, astrônomo dinamarquês (1546.1601). Criador de um sistema
astronômico diferente dos de Tolemeu e de Copérnico. Cometeu o erro de tomar
a sério as quimeras astrológicas. Foi mestre de Kepler, a quem suas observações
permitiram a formulação das famosas leis que lhe imortalizaram o nome.
59
cera aromatizada e acrescentam alegre música e divertidas
conversações. Dessa forma, são destruídos os germes pestilenciais
emanados do céu.
G.-M. - Irra essas coisas são todas medicinas excelentes e
bem aplicadas: o céu age sobre o corpo, devendo sua ação ser
corrigida por antídotos corpóreos. Não me agrada, porém, o
número das velas, como se a virtude de curar residisse em
determinado número, coisa que cheira a superstição.
ALM. - Dão, decerto, valor aos números, apoiando-se na
filosofia pitagórica, não sei se com razão. Mas, não se baseiam
unicamente no número, e sim na medicina acompanhada de
números.
G.-M. - Nisso, não vejo superstição e não conheço escritura
nem canhão eclesiástico que condene a força dos números. Ao
contrário, os médicos costumam utilizá-los nos períodos e nas
crises das moléstias. Além disso, está escrito que Deus fez todas
as coisas com peso, medida e número, tendo em sete dias criado
o mundo; sete são, também, os anjos que tocam as trompas; sete
as taças; sete os trovões; sete os candelabros; sete os mistérios;
sete os sacramentos; sete os dons do Espírito, etc. Eis porque
Santo Agostinho, Santo Hilário (74) e Origenes (75) raciocinaram
longamente sobre o valor dos números, sobretudo dos números
sete e seis. Não serei eu que irei condenar os solares por se fazerem
médicos segundo os signos celestes e por defenderem o livre
arbítrio. Com as sete velas, imitam eles os sete planetas do céu,
como Moisés com as sete candeias. Além disso, Roma sentenciou
que só é superstição atribuir-se todo poder exclusivamente aos
números, e não às coisas numeradas. Mas, continue, agora, o
discurso interrompido.
ALM. - Dizem eles, pois, que os signos femininos trazem a
fecundidade às regiões a que presidem, da mesma forma que um
(74) Bispo e santo da Igreja.
(75) Escritor eclesiástico do II e III séculos, nascido na Grécia. Suas doutrinas
foram condenadas como heréticas pelo concílio de Constantinopla.
60
governo menos robusto nas coisas inferiores, causando e
ocasionando, traz a alguns comodidade ou incomodidade, tirando-
as de outros. A prova disso é que o governo das mulheres
prevaleceu em nosso século: nove amazonas apareceram entre a
Núbia e a Monopotapa, e na Europa vimos reinar Roxana na
Turquia, Boa na Polônia, Maria na Hungria, Elisabete na Inglaterra,
Catarina na França, Branca na Toscana, Margarida na Bélgica,
Maria na Escócia, Isabel, que favoreceu a descoberta do Novo
Mundo, na Espanha. Além disso, é pelas mulheres que um grande
poeta do nosso século inicia o seu canto:
e donne, i cavalier, l’armi, gliamori. (76) Os poetas maldizentes
e os hereges, em virtude do triângulo de Marte na casa dominante
de Mercúrio e da influência de Vênus e da Lua, falam sempre de
coisas obscenas e apaixonadas, enquanto os homens, efeminando-
se cada vez mais nos atos e na voz, se tratam por Vossa Senhoria.
Na África, onde reina a influência de Câncer e de Scorpio, além
das amazonas, vêem-se, em Fez e em Marrocos, lupanares de
homens e muitas outras coisas infames a que o clima convida,
mas não obriga. Ora, não obstante, o trígono de Câncer (pois
está no trópico, formando uma triplicidade no apogeu de Júpiter,
do Sol e de Marte), como de outra parte a Lua, Marte e Vênus,
favoreceu a descoberta de novos impérios, a possibilidade de
fazer a volta ao mundo e o governo das mulheres, e, por Mercúrio
e Marte, a descoberta da tipografia e do arcabuz, sem contar que
deu aos homens causa, ou antes, ocasião para grandes
modificações nas leis, sempre sob a providência de Deus, que os
convida ao bem quando não tenham destruído essas inclinações.
Os solares revelaram-me coisas admiráveis sobre o consenso das
coisas celestes com as terrestres e com as morais, bem como
sobre a difusão do cristianismo no Novo Mundo, a sua estabilidade
na Itália e na Espanha, e a sua ruína na Alemanha setentrional, na
(76) Primeiro verso do Orlando Furioso, poema de Ludovico Ariosto (1474-
1532). Tradução: “As mulheres, os cavaleiros, as armas, os amores.”
61
Inglaterra, na Escandinávia e na Panônia (77). Mas, não quero
repetir asses prognósticos, pois que, sapientemente, o nosso Papa
os proibiu. E, ao mesmo tempo que Xerifos (78) e Sofos (79)
introduziam modificações na África e na Pérsia, Wiclef (80), Huss
(81) e Lutero (82) atacavam a religião entre nós, enquanto os
Mínimos (83) e os Capuchinhos (84) a ilustravam. Disseram-me
como do próprio movimento do céu se serviam alguns para o
bem e outros para o mal, se bem que as heresias sejam incluídas
pelo Apóstolo entre as obras da carne e subordinadas às influências
sensíveis exercidas por Marte, por Saturno e pela Terra, graças à
vontade que espontaneamente a eles se submete. Acrescentarei
apenas que os solares descobriram a arte de voar e outras artes
sob a constituição da Lua e de Mercúrio, graças à ábside do Sol,
pois que essas estrelas têm influência no ar para a arte do vôo. E o
que produzem nas regiões aquosas pelo nado, fazem-no, nas
regiões equatoriais, no ar, pelo vôo, graças à posição da Terra e
ao lugar de mais sol. Descobriram, assim, uma nova astronomia,
porque no outro hemisfério, do equador ao austro, na cana do
Sol, há o Aquário, na da Lua o Capricórnio, etc. Tomaram em
sentido contrário todas as influências e signos, porque naquelas
regiões os signos têm outro nome e os planetas não se distribuem
como nas nossas e nas regiões polares. Não repetirei o que aprendi
daqueles sábios sobre as mutações das ábsides e a excentricidade
(77) Nome antigo da Hungria.
(78) Muçulmanos descendentes de Maomé.
(79) Adeptos do sofismo (doutrina dos místicos do Islam).
(80) John Wiclef, morto em 1384. Reformador religioso inglês.
(81) João Huss (1369-1415). Precursor da Reforma. Por ter adotado as doutrinas
de Wiclef, foi excomungado por Alexandre V e depois queimado vivo por decisão
do concilio de Constança.
(82) Lutero, Martinho (1483-1546). Nascido em Eisleben. Iniciou sua reforma
em 1517, em Wittenberg, tendo conseguido separar grande parte da Alemanha da
Igreja católica.
(83) Ordem de frades franciscanos, instituída por S. Francisco de Paula, em 1435.
(84) Frades da ordem de São Francisco, segundo a regra restabelecida cm 1528.
62
e obliqüidade dos equinócios, dos solstícios e dos pólos, dos
signos celestes e dos entrecruzamentos pelos quais agem no espaço
imenso da máquina do mundo; nem sobre as relações simbólicas
das nossas coisas com as que estão fora do nosso mundo; nem
sobre a revolução que se seguirá à grande conjunção no Áries e
na Libra, signos equinociais do restabelecimento das monarquias,
e que se verificará com grande estupor após a grande conjunção
que confirmará o decreto de quem estabeleceu a mutação e a
renovação da terra. Mas, não me faça demorar mais, pois tenho
muitas outras coisas que fazer e você sabe quantos afazeres tenho
a meu cargo. Por ora, basta saber que eles não destroem, mas, ao
contrário, edificam o sistema do livre arbítrio. E dizem que do
mesmo modo que um eminente filósofo, por quarenta horas
cruelmente atormentado por seus inimigos, que não conseguem
nunca arrancar-lhe da boca uma palavra sobre o que perguntam,
porque intimamente resolveu calar-se, assim também as estrelas
que se movem à distância e com lentidão não podem constranger-
nos a nenhum ato contra a nossa vontade, como não podem
governar-nos, nem por obrigatório decreto de Deus, pois somos
tão livres que podemos blasfemar contra o próprio Deus. Deus
não força a si nem aos outros contra si. Pode Deus, acaso, ser
dividido? Mas, como as estrelas operam nos sentidos algumas
insensíveis e ligeiríssimas modificações, sucede que sofrem sua
influência sobretudo os que obedecem mais aos sentidos do que
ao raio divino da razão. Eis porque a mesma constelação que traz
fétidos vapores das mandíbulas cadavéricas dos hereges também
serve para produzir fragrantes exalações das retas inteligências
dos que fundaram as religiões dos Jesuítas (85), dos Irmãos
Mínimos e dos Capuchinhos. Foi também sob a sua influência
que se deu a descoberta do novo hemisfério com que Colombo e
Cortez (86) abriram nova arena à propagação da religião cristã.
(85) Ordem de frades, instituída em 1534 por Santo Inácio de Loiola, com o fim
de sustentar a autoridade da Igreja católica contra os protestantes.
(86) Fernando Cortez, grande navegante espanhol, nascido cm 1485.
63
Agora, estão iminentes no mundo grandes acontecimentos,
cuja exposição reservo, porém, para melhor oportunidade.
G.-M. - Responda ao menos a esta única pergunta: como é
que, sem velas e sem remos, põem eles os navios em movimento?
ALM. - Há na popa uma grande roda em forma de leque,
presa à extremidade de uma vara que, equilibrada do lado oposto
por um peso nela suspenso, pode ser facilmente levantada e
abaixada por um menino. Todo o mecanismo se move sobre uma
prancha sustentada por duas forquilhas. Além disso, alguns navios
são postos em movimento por duas rodas que giram dentro d’água
por meio de cordas que partem de uma grande roda posta na proa
e, entrecruzando-se, circundam as rodas da popa. Posta em
movimento, sem dificuldade, a grande roda faz girar as pequenas
mergulhadas na água, à semelhança da pequena máquina de que
se servem as mulheres calabresas para enrolar e fiar o linho.
G.-M. - Espere, espere um instante.
ALM. - Não posso, não posso.
64
QUESTÕES SOBRE A ÓTIMA
REPÚBLICA
ARTIGO PRIMEIRO
Se é com razão e utilidade que se acrescenta à doutrina política
o diálogo da Cidade do Sol.
Mais dificuldades militam contra a razoabilidade e a utilidade
de uma tal república.
1o. - Do que nunca existiu, nem existirá, nem se espera que
exista, é inútil e vão tratar. Semelhante modo de viver em comum,
inteiramente isento de delitos, é impossível, nem nunca se viu,
nem se verá. Foi, pois, inutilmente que nos ocupamos com isso.
Do mesmo argumento usava Luciano (87) contra a república de
Platão.
2o, - Essa república só pode subsistir numa cidade e não
num reino, pois não se podem encontrar lugares inteiramente
semelhantes. Dessa forma, será corrompida pelos povos sujeitos,
pelo comércio ou pelas sedições que irromperem contra tão austera
maneira de viver.
3o. - Essa república foi imaginada ótima e perene. Ora, em
primeiro lugar, não poderá ser perene, porque necessariamente
acabará se corrompendo ou sendo invadida pela peste proveniente
do longo domicilio, não estando livre do vento, da guerra, da
carestia, das feras, e não podendo escapar à tirania interna, ou,
finalmente, pelo excessivo número de cidadãos, como dizia Platão
(87) Luciano, retórico samosatense, autor do Diálogo dos Mortos. Tão satírico
que não perdoava aos próprios deuses. Foi por isso considerado ímpio e ateu.
65
da sua república. Em segundo lugar, não poderá ser ótima, pois
necessariamente haverá delitos, como diz o apóstolo: Si discessimus
quia peccatum non habemus, ipsi nos seducimus (88). Além disso,
Aristóteles prova, contra Platão, que a comunidade dos bens úteis
e das mulheres torna viciosa uma república e, quando nos parece
que desapareceu um mal, deparamos em seguida com uma porção.
4o. - Esse modo de viver é mais conforme à natureza que
provado pelo uso de todas as nações. O nosso, porém, é repelido
por todas, de forma que foi inútil e leviana a nossa palestra.
5o. - Ninguém desejaria viver submetido a leis e observâncias
tão severas e sob a tutela dos pedagogos. Essa república seria
derrubada pelos próprios cidadãos, como acontece em muitas
ordens religiosas que vivem em comunidade.
6o. - É natural que os homens estudem as obras de Deus,
viajem pelo mundo, procurem em toda parte as ciências, façam
experiência de tudo. Mas, os habitantes de uma tal república seriam
como os monges, que só estudam nos livros e, quando ouvem
alguma coisa que não se acha neles, se escandalizam e se perturbam.
Assim como agora mal crêem nas observações de Galileu (89),
antes não acreditavam que Colombo tivesse descoberto um novo
hemisfério, porque Santo Agostinho o nega.
Mas, respondendo primeiro em geral, existe em nosso favor
o exemplo de Thomas More, mártir recente, que escreveu a sua
república Utopia, imaginária, exemplo no qual encontramos as
instituições da nossa. Platão, igualmente, apresentou uma idéia da
república que, embora não possa, como dizem os teólogos, ser
posta integralmente em prática na natureza corrupta, teria podido,
contudo, subsistir no estado de inocência, isto é, justamente aquele
ao qual Cristo nos faz voltar. Aristóteles, por sua vez, instituiu a
sua república. E assim muitos outros filósofos. Paralelamente, os
príncipes promulgam leis que consideram ótimas, não porque
(88) “Se supomos que não temos pecado, iludimo-nos a nós mesmos.”
(89) Galileu Galilei (1564-1642). Nascido em Pisa. Astrônomo, matemático,
filósofo, naturalista. Continuador de Copérnico.
66
imaginem que ninguém as transgredirá, mas porque julgam tornar
felizes os que as observam. E São Tomaz ensina que os religiosos
não são forçados, sob pena de pecado, a observar tudo o que é
prescrito na regra, mas apenas as coisas mais essenciais, embora
fossem mais felizes se a observassem toda: devem viver de acordo
com a regra, isto é adaptar sua vida à regra, tão comodamente
quanto possível. Moisés promulgou leis dadas por Deus e instituiu
uma ótima república: enquanto os hebreus viveram pelas normas
da mesma, floresceram; quando deixaram de observar suas leis,
decaíram. E assim os retóricos, que estabelecem as ótimas regras
de um bom discurso, isento de qualquer defeito. Assim os
filósofos, que imaginam um poema sem nenhum senão, se bem
que nenhum poeta se tenha livrado disso. Assim os teólogos, que
descrevem a vida dos santos, embora nenhum ou muito poucos a
imitem. Qual é, pois, a nação capaz de imitar a vida de Cristo, sem
pecado? E, por isso, os Evangelhos terão sido escritos inutilmente!
Jamais, e sim para que nos esforcemos por nos aproximarmos
deles tanto quanto possível. Cristo estabeleceu uma república
excelentíssima, isenta de todo pecado, que apenas os apóstolos
observaram integralmente, depois passou do povo ao clero e, afinal,
exclusivamente aos monges, sendo que, entre estes, persevera em
alguns, ao passo que, em outros, vês muito poucos institutos que
se conservam em harmonia com a mesma.
Apresentamos, pois, a nossa república, não como dada por
Deus, mas como uma descoberta filosófica e da razão humana
para demonstrar que a verdade do Evangelho é conforme à
natureza. Se, em algumas coisas, nos afastamos do Evangelho, ou
parece que nos afastamos, isso não se deve atribuir à impiedade,
mas à fraqueza humana, que, à falta de revelação, julga justas muitas
coisas que à luz da mesma não o são, como podemos dizer da
comunidade dos matrimônios. Foi por isso que imaginamos a
nossa república no gentilismo que espera a revelação de uma vida
melhor e que, vivendo segundo os ditames da razão, merece
possuí-la. Além disso, são catecúmenos da vida cristã, razão que
levou Cirilo (90) a dizer, contra Juliano (91), que a filosofia foi
67
dada aos gentios como catecismo para a fé cristã. Por conseguinte,
para ensinar os gentios a viver retamente, se não quiserem ser
abandonados por Deus, e convencer os cristãos de que a vida de
Cristo é conforme à natureza, tomamos o exemplo desta república,
como São Clemente romano tomou o da república socrática e
como fizeram São Crisóstomo e Santo Ambrósio (92).
É, portanto, claro que, com essa maneira de viver, não tendo
os magistrados motivos para ambicionar os postos, desaparecem
todos os vícios, assim como todos os abusos decorrentes da
sucessão, da eleição ou da sorte, pois estabelecemos uma espécie
de república como a dos grua e a das abelhas, celebradas por
Santo Ambrósio. Desaparecem, igualmente, as sedições dos
súditos, que decorrem da insolência dos magistrados, da sua
licenciosidade, da pobreza, da abjeção e da opressão desenfreadas.
E assim todos os males provenientes dos dois contrários, a
riqueza e a pobreza, que Platão e Salomão consideram como a
origem dos males da república: a avareza, a adulação, a fraude, os
furtos, a sordidez da pobreza; e a rapina, a arrogância, a soberba,
a ociosidade, etc., da riqueza.
Assim se destroem os vícios provocados pelo abuso do
amor, como os adultérios, a fornicação, a sodomia, os abortos, o
ciúme, as discórdias domésticas, etc.
Assim os males que procedem do excesso de amor dos filhos
ou dos consortes; a propriedade que elimina, como diz Santo
Agostinho, as forças da caridade; o amor próprio que ocasiona
todos os males, como diz Santa Catarina num diálogo; a avareza,
a usura, a iliberalidade, o ódio do próximo, a inveja dos ricos e
dos grandes. Nós, ao contrário, aumentamos o amor da
comunidade e acabamos com os ódios despertados pela avareza,
raiz de todos os males, e com os conflitos, as fraudes, os falsos
(90) Santo da Igreja. Tradutor da Bíblia.
(91) Juliano, o Apóstata. Imperador romano que renegou a religião cristã. Morreu
em combate, no ano 363 a. C.
(92) Santo Ambrósio (340-397). Bispo de Milão, doutor da Igreja romana.
68
testemunhos, etc.
Assim todos os males do corpo e da alma, provenientes do
trabalho excessivo para os pobres e do ócio para os ricos. Entre
nós, as fadigas são igualmente divididas.
Assim os males oriundos do ócio nas mulheres e que
corrompem a geração e a saúde do corpo e do espírito. Entre
nós, elas se ocupam com os exercícios e as virtudes que lhes são
próprias.
Assim os males que nascem da ignorância e da estupidez.
Em nossa república, observa-se uma grande experiência de doutrina
em cada coisa e na própria construção da cidade, onde há imagens
e pinturas que ensinam, a quem olhá-las, todas as ciências, de
forma quase histórica.
Assim se providencia maravilhosamente contra a corrupção
das leis.
Finalmente, como evitamos em cada coisa os extremos,
reduzindo todas à justa medida na qual se encontra a virtude, não
se pode imaginar república mais feliz e mais fácil. Em suma, todos
os defeitos que se notam nas repúblicas de Minos (93), de Sólon,
de Caronda, de Rômulo (94), de Platão, de Aristóteles e de outros
autores, não se encontram na nossa, pois é bem protegida e
felizmente provida de tudo, tendo sido deduzida da doutrina das
primalidades metafísicas, com as quais nada é esquecido ou
omitido. A primeira dificuldade, segundo a qual não se pode
alcançar exatamente a idéia de uma tal república, está, pois,
respondido que nem por isso se escreveu inutilmente, porque o
que se propõe é um exemplo que deve ser imitado tanto quanto
possível. Quanto à sua exeqüibilidade, está ela demonstrada pela
vida dos primeiros cristãos, entre os quais se estabeleceu a
(93) Minos, filho de Zeus. Rei de Creta, conta a lenda que suas leis eram sugeridas
pelo próprio Júpiter. O labirinto de Minos era uma construção complicada, com
uma corte central e muitos corredores, quartos, pórticos, escadas. A disposição
dos quartos fez com que se dissesse que não era possível sair do labirinto sem
guia.
(94) Primeiro rei e fundador de Roma.
69
comunidade ao tempo dos apóstolos, como o atestam São Lucas
(95) e São Clemente. Em Alexandria, observou-se o mesmo modo
de viver, ao tempo de São Marcos (96), como o atestam Filão
(97) e São Jerônimo (98). Tal foi a vida do clero até Urbano I e
também ao tempo de Santo Agostinho. Tal é, agora, a vida dos
monges, que S. Crisóstomo, considerando-a possível, deseja que
se introduza em toda a cidade de Constantinopla e que eu espero
se realize no futuro, depois da ruína do Anticristo, como nas
minhas profecias. Mesmo quem a negar aristotelicamente será
constrangido a admiti-la como possível no estado de inocência,
embora não no presente. Os padres, porém, a consideram praticável
mesmo agora, pois Cristo nos reduziu àquele primeiro estado. E,
se Luciano, gentio e ateu, ridiculariza Platão por ter imaginado
uma república impossível, São Clemente, Santo Ambrósio e São
Crisóstomo o louvam. E estes, por sua doutrina e santidade, podem
bem antepor-se a mil Lucianos.
Segunda objeção. Atribuímos um tal modo de viver somente
à capital. Mas, as aldeias imitarão, depois, esse sistema, parcial ou
totalmente, até formarem uma província. Lugares adequados serão
encontrados com facilidade e, quando faltarem, variaremos a forma,
de modo que, na parte mais alta da cidade, fique o chefe, e nos
apêndices semicirculares as habitações. Mas, mesmo no plano,
será bom o nosso modelo, desde que não o impeça a lama, que
pode ser evitada pelo calçamento das ruas e por aquedutos. Além
disso, para que os habitantes não sejam corrompidos pelo
comércio, existem no projeto os magistrados incumbidos desse
mister. Para evitar as sedições externas, há as fortalezas bem
guarnecidas da metrópole e as milícias que se movimentam
continuamente para a defesa do império. De resto, servir a
probidade da cidade dominante é uma felicidade tão grande como
(95) Autor do um evangelho.
(96) Idem.
(97) Um dos generais de Alexandre Magno.
(98) Um dos primeiros padres da Igreja, tradutor da Bíblia.
70
a dos ignorantes ao servirem o sábio e o probo. Cresce mais o
império com essa opinião de probidade do que com a força de
Roma. Já sob Pompílio, era considerado nefando atacar os inimigos
com meios contrários à virtude.
Terceira objeção. Durará até a um dos períodos gerais das
coisas humanas que dão origem a um novo século: Porque, quanto
à peste, às feras, à fome, à guerra, providenciamos otimamente,
na medida do possível, com a virtude, ou, pelo menos o fizemos
melhor do que se costuma fazer fora. Com efeito, os ventos, pelas
quatro ruas maiores, purgam a cidade, e onde as casas o impedem,
existem as janelas, colocadas de modo que possam fechar-se às
más exalações e abrir-se às salubres. Quanto ao número dos
habitantes, vede a metafísica. Afirmo que esta é uma via ótima,
que deve ser mais cuidada do que a duração.
Certamente, haverá pecados, mas não graves, como nos
outros Estados, ou pelo menos não tão grandes ao ponto de
arruinarem a república, como acontece com as ordens
estabelecidas. Quanto ao que Aristóteles objeta a uma tal república,
será desfeito nos artigos subsequentes.
Quarta objeção. Afirmo que essa república, como o século
de ouro, é desejada por todos e reclamada por Deus, quando
pedimos que a sua vontade seja feita assim no céu como na terra.
Se não é praticada, isso se deve à maldade dos príncipes, que
submetem os povos a si e não ao império da razão suprema. O
uso e a experiência demonstram, pois, a possibilidade do que
dissemos, sendo mais natural viver conforme à razão do que ao
afeto sensual, e virtuosa do que viciosamente, segundo São
Crisóstomo. Os monges são uma prova disso, e agora os
anabatistas, que vivem em comum e que, se observassem os
verdadeiros dogmas da fé, maior proveito teriam com esse sistema
de vida. Se o céu permitisse que não fossem hereges e praticassem
a justiça como a professamos, seriam eles exemplo da sua verdade.
Não sei, porém, por que tolice recusam o melhor.
Quinta objeção. E, ao contrário, uma suprema felicidade viver
virtuosamente, como diz São Crisóstomo, e se cometes uma falta,
71
logo a corriges, antes de sofrer-lhe os efeitos. A licenciosidade é a
causa dos males, sendo feliz a necessidade que nos força ao bem.
A nós, habituados ao mal, é que nos parece duro esse gênero de
vida, como aos jogadores e aos discolos a vida dos bons cidadãos,
e a estes a vida dos monges. Mas, experimentai, e vereis que os
religiosos nunca se revoltam pela severidade da disciplina, e,
quando isso acontece, é pelo comércio dos laicos, pela ambição
das honras e o amor da propriedade, ou pela libidinagem. Mas,
em nossa república, foram previstas e evitadas todas essas causas.
Não segue, pois, o exemplo daqueles.
Sexta objeção. Procuramos, igualmente, para a nossa
república, fazer tesouro das observações da experiência e da ciência
de toda a terra. Para isso, estabelecemos até peregrinações,
comunicações de comércio e embaixadas. E nem os monges se
privam desses bens mudando muitas vezes de cidade e de
província, nem a ignorância da experiência se verifica nos melhores
monges, umas somente nos vulgares. Suas querelas são um meio
de melhor discutir as coisas; depois que se esclarecem, ficam
tranqüilos todos os virtuosos. Não acharás nenhum lugar em que
mais se tenha feito pela doutrina e a conservação das ciências do
que nas ordens dos monges e dos frades. Quanto aos monges
antropomorfitas (99), que se insurgiram contra Orígenes por
instigação do maligno patriarca Teófilo, nada obtiveram depois de
um exato exame. É claro, porém, que tais sedições não se
verificarão na Cidade do Sol. O monaquismo (100) foi instituído
para o aumento da santidade e da ciência, e não para agravar a
submissão, como pretendem os hipócritas.
ARTIGO SEGUNDO
Se é mais conforme à natureza e mais útil à conservação e ao
aumento da república e dos particulares a comunidade dos bens
(99) Sectários da doutrina que concebe e representa a divindade com a forma e
os atributos humanos.
(100) Série das instituições monásticas.
72
externos, como sustentam Sócrates e Platão, ou a divisão defendida
por Aristóteles.
Primeira objeção. Contra a comunidade dos bens, no segundo
livro da Política, argumenta Aristóteles deste modo: nessa
comunidade, diz ele, ou os campos seriam próprios e os frutos
comuns ou vice-versa, ou ainda comuns tanto uns como os outros.
No primeiro caso, quem tivesse mais terra deveria trabalhar mais
para cultivá-la e obter uma parte de frutos igual à dos que não
trabalhassem, o que provocaria discórdias e ruína. No segundo
caso, ninguém seria estimulado ao trabalho e os campos seriam
mal cultivados, porque cada qual pensaria mais em si do que nas
coisas comuns. Com efeito, onde há uma multidão de servos, o
serviço é pior, cada qual deixando para o outro o trabalho que
deveria fazer. No terceiro caso, aconteceria o mesmo e, além disso,
um novo mal, pois cada qual desejaria ter a melhor e a maior parte
dos frutos e a menor das fadigas, de maneira que, em lugar da
amizade, só haveria discórdia e fraude.
Segunda objeção. Contra a comunidade dos bens úteis,
objeta-se que são necessárias mais classes de pessoas para o bom
governo da república, como soldados, artífices e governadores,
segundo Sócrates; que, se todas as coisas fossem comuns, cada
um recusaria as fadigas da agricultura e desejaria ser soldado,
sendo que, em tempo de guerra, preferiria ser agricultor, além de
não combater sem estipêndio; que, em suma, todos quereriam ser
regedores, juizes ou sacerdotes. Dessa forma, honrando alguns,
deprimir-se-iam os outros, cabendo aos primeiros menor trabalho,
de forma que subsistiria a injustiça. Por conseguinte, é melhor
dividir os bens.
Terceira objeção. A comunidade destrói a liberalidade e a
faculdade de praticar a hospitalidade, de socorrer os pobres,
porque quem nada possui de seu de nada pode dispor.
Quarta objeção. É uma heresia negar a justiça da divisão dos
bens, sustentada por Santo Agostinho contra os que tinham em
comum as mulheres e os bens, sob a alegação de que assim viviam
os apóstolos. Scot, no livro De Justitiaeet Jure, diz que o concílio
73
de Constança (101), condenou João Huss por negar que se pudesse
ter alguma coisa em particular. E Cristo disse: Reddite que sunt
Caesaris Caesari (102).
Em resposta, replicamos, em geral, com as palavras do papa
São Clemente na epístola 4, citadas por Graciano (103) no cânone
2, questão I: “Caríssimos, o uso de todas as coisas que estão
neste mundo devia ser comum; por iniqüidade, porém, um diz
que isto é seu, outro aquilo, etc.” E acrescenta que os apóstolos
ensinaram e viveram de modo que tudo fosse comum, inclusive
as mulheres. Assim ensinam, igualmente, todos os padres, ao
comentarem o princípio do Gênese, segundo o qual Deus não
distribuiu nada e deixou tudo em comum aos homens, para
crescerem, multiplicarem-se e povoarem a terra. E também assim
ensina Isidoro (104), no capítulo do jus natural. Quanto a terem
os apóstolos vivido dessa maneira, como todos os cristãos
primitivos, vê-se por São Lucas, São Clemente, Tertuliano,
Crisóstomo, Agostinho, Ambrósio, Filão, Orígenes e outros. Esse
sistema de vida restringiu-se, depois somente aos clérigos que
viviam em comum, como o atestam eles próprios e São Jerônimo,
Próspero (105), o Papa Urbano e outros. Mas, sob o papa
Simplício, mais ou menos no ano 470, foi feita pelo mesmo a
divisão dos bens da Igreja, de forma que uma parte coubesse ao
bispo, outra à fábrica, outra ao clero e uma aos pobres. Mais
tarde, Gelásio, papa pouco depois, e Santo Agostinho não quiseram
ordenar clérigos, porque estes punham tudo em comum. Mas, em
(101) Concílio de Constança, convocado em 1414. Decidiu que João Huss fosse
queimado vivo por defender as doutrinas de Wiclef.
(102) Reddite ergo quae sunt Caesaris Caesari et quae sunt Dei, Deo: “Dai a
César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”
(103) Fundador do direito canônico. Procurou conciliar as leis do foro eclesiástico
com as do secular. O Decreto Gratiani, ou ConcordiaDiscordantiumCanonum, foi
publicado entre 1140 e 1150.
(104) Bispo e escritor do século VI.
(105) Santo e escritor cristão.
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seguida, para evitar os hipócritas que ocultavam o que era seu,
isso foi permitido, mas não de bom grado. É, pois, uma heresia
condenar a vida comum ou dizê-la contra a natureza. Ao contrário,
Santo Agostinho pensa que tomar a propriedade é uma razão de
maior esplendor. Assim, quer para a vida presente, quer para a
futura, é melhor a comunidade dos bens. E São Crisóstomo
informa que esse gênero de vida existiu entre os monges e ele o
adota, insinuando-o e pregando-o a todos. Ensina ainda, na homília,
ao povo da Antióquia (106), que ninguém é dono dos seus bens,
mas apenas despenseiro, como o é o bispo dos da igreja, sendo
culpável todo laico que abusa dos seus bens sem comunicá-los
aos outros. Diz São Tomaz que somos donos da propriedade,
não do uso, pois que, em extrema necessidade, todas as coisas
são comuns. Por isso, se refletires bem, uma tal propriedade é
antes um tributo pela obrigação de reconhecer a má distribuição,
o que é, aliás, confirmado por São Basílio no sermão aos ricos e
por Santo Ambrósio no sermão 81. São Crisóstomo inculca-o em
quase todas as suas homilias e, particularmente, no capítulo 6,
sobre São Lucas, onde se acham estas palavras: Nemodicat proprio
a Deo percipimus omnia: mendacii verba sunt meumettuum (107).
O mesmo afirma Sócrates na República de Platão ou de Timeu
(108), o mesmo Santo Agostinho no tratado 8o. sobre João, e o
mesmo o poeta Cristiano:Si duo de nostristollas pronomin arebus,
Proeli acessarent, pax sine lite foret. (109)
Ovídio (110), nas Metamorfoses, I, põe esse sistema de vida
no século de ouro. Ambrósio, na carta L, sobre o salmo 118, diz:
(106) Capital da Síria.
(107) “Ninguém diga que possui, pois tudo recebemos de Deus: as palavras essa
e teu são imposturas.”
(108) Titulo de um Diálogo no qual Platão discute a transmigração das almas.
(109) “Se tirares os dois pronomes das nossas coisas, cessarão as guerras e reinará
a paz sem conflitos.”
(110) Públio Ovídio Nasão (43 a. C. - 17 á. C.), nascido em Sulmona. Autor das
Metamorfoses, da Arte de Amar, dos Fastos, etc.
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Dominus noster terras hanc possessionem omni um hominum voluit
esse communem; seda varitia possessionum jura distribuit (111).
E, no livro de Virg., diz que a violência, o morticínio e a guerra
distribuíram as coisas aos hebreus carnais, e não aos levitas (112),
que representavam o cristianismo e o clero. São Clemente, mais
tarde, afirma que isso se deve à iniquidade dos gentios. O mesmo
Santo Ambrósio, no livro I dos Ofícios, capítulo 28, prova, com
a escritura e com a autoridade dos historiadores, que todas as
coisas eram comuns, tendo sido divididas por usurpação; e, no
Hexam, V, ensina, com o exemplo da república civil das abelhas,
a vida em comum, tanto dos bens como da geração, e, com o
exemplo dos grus, desenvolve a vida comum numa república militar.
Jesus Cristo prova o mesmo com o exemplo dos pássaros, que
não possuem nada de próprio, nem semeiam, nem ceifam, nem
dividem o pasto; no entanto, como diz o jurisperito, jus naturale
est id quod natura omnia animalia docuit (113). É, pois, certo que,
por direito natural, todas as coisas são comuns.
Scot, no 4 das sentenças 15, responde que a comunidade é
de direito natural no estado de natureza, tendo sido tal direito
derrogado com o pecado de Adão. Falsa, porém, é essa resposta,
porque, como diz São Tomaz, o pecado não destrói os bens de
natureza, mas apenas os de graça. Isso ofende a natureza e a
razão, mas não introduz um novo direito; portanto, se a comunidade
era de direito, só a injustiça poderia ter introduzido a divisão. Eis
porque também a glosa sobre o texto de São Clemente diz que
esta foi introduzida per iniquitatem, id est per jus gentium contrarium
juri naturali (114). Mas, como pode ser um direito, se é contrario à
(111) “Nosso Senhor quis que esta terra fosse propriedade comum do todos os
homens; mas, a avareza dividiu os direitos de posse.”
(112) Descendentes de Levi, aos quais foi confiado o serviço divino. Agruparam-
se, ao tempo de Daví, como cantores, diáconos, porteiros, guardas do templo,
escribas.
(113) “0 direito natural é aquele que a natureza ensina a todos os animais.”
(114) “Por iniqüidade, sendo o direito das gentes contrário ao direito natural.”
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natureza, que é a arte divina? Nesse caso, o direito seria um pecado.
Scot responde que isso se deve à iniqüidade, isto é, ao pecado
original, mas esse comentário é falso, porque como explicará ele
as palavras de Santo Ambrósio, que diz ter sido a divisão
introduzida pela avareza e pela violência? De resto, São Clemente
diz que os apóstolos nos fizeram voltar ao estado de jus natural,
de onde resulta que o que foi iniqüidade o é também agora, Caetano
ensina que se tratava de uma comunidade natural negativa, isto é,
que a natureza não ensinou a divisão, e não afirmativa, como se
tivesse dito que se vivia em comum e não de outro modo. E Scot,
como de costume, adere a essa opinião, mas acrescenta: “Como
é, então, que a divisão provém da iniqüidade e da avareza, como
ensinam os santos, se a comunidade no estado de natureza era
apenas negativa?” Por isso, com mais razão ainda, ensina São
Tomaz que o uso comum é de direito natural, sendo a distribuição
e a aquisição da propriedade de direito positivo. E essa divisão
não pode ser contrária à natureza, porque essa propriedade é, no
caso, de necessidade, e, em tudo o que sucede, o necessário se
torna comunidade, como ensina ao falar das esmolas, e tudo o
que excede as necessidades da pessoa e da natureza deve ser
dado, pois de outra forma não seriam condenados no dia do juízo
os que não aliviaram os necessitados. E, embora essa doutrina de
São Tomaz pareça justificar, até certo ponto, a divisão, só lhe
reconhece, contudo, o direito de distribuir e de aliviar, de onde se
conclui, segundo a doutrina de São Crisóstomo, Basílio, Ambrósio
e do papa Leão (ser. V, de Collectis), que os ricos são distribuidores
e não donos das coisas; que, se são senhores, só o são de distribuir
e dar, como os bispos da parte da Igreja; que, por conseguinte, a
parte de que são senhores se limita à comida e ao vestuário. E
essa parte a possuem também os monges, como lhas atribui e
prova o papa João XXII nas Extrav. Uma vez que o monge e o
apóstolo comem de direito e não injustamente, têm eles igualmente
o uso de direito e não somente de fato, já que este último direito o
tem o ladrão quando come as coisas de outrem. Scot acha que
esse papa errou, tendo assim decidido pelo ódio contra os
77
franciscanos (115), pois os pontífices Clemente V e Nicolau III
concedem aos franciscanos somente o uso de fato, não de direito,
como um convidado à ceia come somente de fato e não de direito.
Mas, Scot se engana e injustamente condena um papa, pois os
pontífices por ele citados não destroem o direito de jus natural,
mas apenas o direito positivo, e também São Tomaz pensa que,
nas coisas que se destroem com o uso, não se pode distinguir o
uso do domínio, como se vê no tratado do usufruto das coisas
que se consomem com o uso (livro 2). Eis porque esses pontífices
não se contradizem entre si, como ensina João XXII, mas, ao
contrário, é herege quem nega o uso de direito aos apóstolos e a
Cristo, porque então não teriam comido de direito, mas
injustamente, como o ladrão. O ladrão tem o direito de fato, mas
na necessidade tem também o direito natural. De tudo isso resulta
a solidez da doutrina dos santos contra os tolos que põem a boca
no mundo. O convidado come de direito e o seu título é a doação,
não menor que o título de venda. Mas, pergunto: São os ricos
obrigados a restituir o supérfluo? a quem? aos pobres ou à
república? Respondo que à república e aos pobres, mas, para não
haver lugar para disputa, porque não adquiriram um direito positivo,
digo que a Deus, a quem deverão prestar contas no dia final,
como ensinam São Basílio (116), Ambrósio e Leão.
Por conseguinte, com a nossa república, são tranqüilizadas
as consciências, eliminada a avareza, raiz de todo mal, bem como
as fraudes cometidas nos contratos, os furtos, as rapinas, a
indolência e a opressão dos pobres, a ignorância que invade
também os engenhos mais bem formados, porque fogem à
obrigação quando pretendem filosofar, e as preocupações inúteis,
as fadigas, o dinheiro que mantém os negociantes, a iliberalidade,
a soberba e os outros males produzidos pela divisão: o amor
próprio, as inimizades, as invejas, as insídias, como já se mostrou.
(115) Frades da ordem de São Francisco de Assis, fundada cm 1215 e confirmada
em 1223.
(116) Um dos padres da igreja grega.
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Distribuindo-se as honras segundo as aptidões naturais, evitam-se
os males causados pela sucessão, pela eleição e pela ambição,
como ensina Santo Ambrósio falando da república das abelhas. É
assim seguimos a natureza, que é ótima mestra, como no caso das
abelhas. A eleição de que fazemos uso não é licenciosa, mas natural,
sendo eleitos os que se distinguem pelas virtudes naturais e morais.
Respondendo agora, em particular, à primeira objeção,
digamos que Aristóteles erra espontaneamente e de má fé, pois
também para Platão os fundos, os frutos e as tarefas são comuns.
Em nossa república, as tarefas são distribuídas pelos magistrados
das artes, segundo a capacidade e a força de cada um, e executadas
pelos chefes das artes com toda a multidão, como se vê no texto.
Nada pode ser usurpado de alguém, nutrindo-se todos à mesa
comum e recebendo a roupa do magistrado do vestuário, segundo
a qualidade e as estações e conforme à saúde. E é também o que
se verifica entre os monges e os apóstolos. Portanto, Aristóteles
tagarela inutilmente. Não era o caso de examinar, no texto, o modo
de distribuição das roupas segundo as estações, o trabalho, a
arte, a execução, etc., nem ninguém encontrará nisso dificuldade,
pois todas as coisas são feitas com razão, de forma que cada um
gosta de fazer aquilo que é conforme à sua disposição natural. E é
justamente o que se pratica na nossa república.
À segunda objeção, responda-se que cada um, desde a
infância e segundo as disposições naturais, é aplicado pelos
magistrados às várias artes, e quem quer que por experiência e
por doutrina se revele ótimo é preferido na arte para a qual é
idôneo. Dessa forma, só os que forem excelentes podem tornar-
se supremos magistrados, de acordo com a ordem observada no
texto. Portanto, nem o soldado desejaria tornar-se capitão, nem o
agricultor sacerdote, pois os cargos são distribuídos segundo a
experiência e a doutrina, não por favor ou parentesco, mas
adequados aos conhecimentos. E cada um exerce a profissão no
ramo em que se distingue. Os primeiros magistrados não podem
honrar uns e reprimir outros; não governando arbitrariamente, mas
seguindo a natureza, dão a cada um a profissão conveniente. Como
79
não possuem nada de próprio para poderem violar o direito alheio
com o fim de engrandecer os filhos, convém-lhes agir bem para
serem honrados. Eis porque, considerando-se todos como irmãos,
filhos e parentes, um igual amor se mantém por todos sem nenhuma
distinção. Ninguém combate mediante pagamento, mas por si, pelos
filhos e pelos irmãos. Possuindo cada qual com que viver bem,
ninguém tem necessidade de estipêndio, mas da honra que obtém
dos irmãos por suas ações valorosas. Os romanos, até à guerra
de Tarracina (117), combateram sem estipêndio e porfiavam em
morrer pela pátria; vindo, porém, o amor da propriedade, principiou
a faltar a virtude. Salústio e Santo Agostinho ensinam que eles
alcançaram tanto império por amor à comunidade. Citado por
Salústio (118), diz Catão: Publicaeopesetprivatapaupertas,
forisjustumimperium, intusindicendoanimusliber,
nequeformidininequecupiditatiobnoxius, remRomanamauxere. Em
nossa república, essas coisas se conservam muito melhores pela
comunidade dos bens úteis e honestos, sob a guia da natureza.
Terceira objeção. Tanto Aristóteles como Scot falam
inconsideradamente, para não dizer impiamente. Não serão liberais
os monges e os apóstolos por não possuírem nada de próprio? A
liberalidade não consiste em dar o que se usurpou, mas em pôr
tudo em comum, como afirma São Tomaz. Podes ver, no texto,
como se honram os hóspedes da república e como se socorrem
os miseráveis por natureza, pois não há, entre nós, nenhum
miserável por fortuna, de vez que todas as coisas são comuns e
todos irmãos, sendo indicados os mútuos ofícios com os quais
se mostra a liberalidade. E, se se insistir ainda a esse respeito, direi
que transformaram a liberalidade em beneficência, que é superior
à primeira.
Quarta objeção. Scot argumenta, como de costume, com
púnica fé, pois o próprio Santo Agostinho, no capítulo 4 de haeres,
(117) Cidade do Lácio.
(118) Caio Crispo Salústio (86-35 a. C.), nascido em Amiterno. Autor das
monografias sobre a conspiração de Catilina e a guerra de Jugurta.
80
e São Tomaz 2, 2 quest. 66, art. 2, ensinam que são hereges os
que dizem não poderem ser salvos os que possuem alguma coisa
em propriedade, do mesmo modo que os que sustentam dever
usar-se o vago concúbito das mulheres, não porque preguem a
comunidade, mas porque constitui maior heresia negar a
comunidade, que os apóstolos e os monges observam, do que a
divisão. Concedamos, pois, que a Igreja reconheceu a divisão,
antes tolerante do que positiva e diretamente. Mas, como diz Santo
Agostinho, foi porque era melhor ter clérigos coxos do que mortos,
isto é, proprietários do que hipócritas. E o próprio Scot sustenta,
depois, que a divisão foi introduzida em virtude da negligência
com que se tratavam as coisas comuns e da cobiça do próprio
interesse, cuja raiz sendo má, a divisão não pode ser boa, mas
apenas permitida, não desejada pela natureza. Como ousa, pois,
chamar de hereges os que seguem a natureza e louvar os que
pregam, com Aristóteles, a permissão introduzida pela corrupção?
Digamos que a Igreja pode conceder a divisão e permiti-la, do
mesmo modo que se toleram as meretrizes como um mal menor e
os coxos de preferência aos mortos, no dizer de Santo Agostinho.
Por conseguinte, a maneira pela qual a Igreja concedeu a
propriedade já foi explicada como tendo sido apenas uma tolerância
e não o uso do supérfluo. Alexandre, Alonso, Thomas Valden,
Ricardo e o Panormita (119) consideram herege quem afirma serem
os clérigos verdadeiros donos dos bens da Igreja, e concedem a
estes somente o uso. São Tomas dá-lhes apenas o domínio da
pequena porção que consomem, pois não passam de usufrutuários
dos fundos, não podendo deixá-los aos filhos nem aos amigos.
Assim, o que se disse dos laicos o foi superiormente. Os ignorantes
estão prontos a chamar de herege todo aquele que eles não podem
convencer com razões. A palavra de Cristo:
RedditequaesuntCaesarisCaesari só torna o mesmo senhor de
dispensar, ou de nada, pois nada pertence a César. Que possui ele
que não o tenha recebido? Todas as coisas, portanto, são de Deus,
(119) Panormita (1394.1471). Antôno de Palermo, o Panormita. Escritor italiano.
81
sendo César apenas um administrador. Veja-se, na Monarquia do
Messias, o que se escreveu a esse respeito. Diz ainda Oristo: Reges
gentiumdominanturcorum, vos autemnon sic, sedqui major
estfiatminister. Eis porque, com justiça, São Tomaz prega a
propriedade de administração e concede a comunidade do uso. O
papa é o servo dos servos de Deus, e o imperador o servo da
Igreja.
ARTIGO TERCEIRO
Se a comunidade das mulheres é mais conforme à natureza e
mais útil à geração e, portanto, a toda a república, do que a
propriedade das mulheres e dos filhos.
A Aristóteles parece mais conveniente a propriedade e nociva
a comunidade, à qual opõe:
Primeira objeção. Sócrates pensa que o amor aumentaria entre
os cidadãos se cada um considerasse os velhos como seus
genitores, estes os jovens como filhos e os iguais como irmãos.
Ao contrário, porém, isso destruiria o amor, porque, ou se
consideram todos coletivamente, ou é verdade que todos os velhos
são pais de todos os jovens, mas, neste caso, o amor de cada
velho, em particular, seria bem pequeno em relação àqueles, como
uma gota de mel em muita água, e logo se extinguiria, pois ninguém
conheceria os próprios filhos e nem estes o seu pai.
Na verdade, se se reunissem os desejos de forma que cada
um se considerasse pai de cada um, isso aumentaria o amor, mas
é impossível que alguém tenha mais de uma mãe e de um pai.
Além disso, cada um conheceria os próprios filhos pela fisionomia
e, portanto, teria mais afeto por estes.
Segunda objeção. Surgiriam discórdias entre as mulheres e,
muitas vezes, entre os pais e os filhos incertos.
Terceira objeção. No vago concúbito, não se conhece a prole,
e, no entanto, é natural no homem o desejo de conhecer a própria
descendência em que se perpetua.
Quarta objeção. Verificar-se-iam adultérios, fornicações e
incestos com as irmãs, as mães e as filhas, além dos ciúmes pelas
82
mulheres e das contendas por causa das que se desejassem abraçar.
Quinta objeção. Scot objeta as palavras: Erunt duo in carne
una (120). Não se podem, pois, ter mais mulheres sem licença
divina.
Sexta objeção. A heresia dos nicolaitas consistiu em pôr as
mulheres em comum.
Primeiramente, respondamos, em geral, com a autoridade de
São Clemente no cânone citado: Conjuges secundum Apostolorum
doctrinam communes esse debere. (121) Como, porém, isso seria
contra a honestidade cristã, deve admitir-se a glosa nesta passagem
expressa: Communes quo ad obsequium non quo ad thorum. (122)
E, na verdade, como o atesta Tertuliano, assim viveram os primeiros
cristãos, que possuíam tudo em comum, exceto as mulheres para
o tálamo, pois é patente que as mulheres serviam a todos. Mas, os
nicolaitas introduziram a comunidade no tálamo, e também eu
condeno essa heresia, mas sustento a comunidade nas funções,
embora não no governo político. Com efeito, a mulher não pode
ser magistrado nem ensinar aos homens, mas somente entre as
mulheres e no mister da geração. São lhes cometidas as artes que
se executam com pouca fadiga, ou ainda a guerra em defesa das
muralhas. E lemos que as mulheres espartanas defenderam a pátria
na ausência dos maridos, sendo que, entre os animais, as fêmeas
se batem como os machos. Na Ásia, outrora, e atualmente na
África, as amazonas fazem a guerra. Mas, Caetano, no livro de
Pulchro, diz que isso não é conforme à natureza, tanto assim que
elas precisavam cortar o seio direito para poderem manejar a lança.
Mas, com Galeno (123) e talvez com maior fundamento, afirmo
que o faziam para que a força que servia para nutrir o seio direito
passasse a reforçar o braço direito. E nem o seio direito impede,
em absoluto, de manejar a lança, mas apenas de apoiá-la no peito.
(120) “Serão dois num só corpo.”
(121) “Os cônjuges, cegando a doutrina dos apóstolos, devem ser comuns.”
(122) “Comuns quanto ao obséquio, não quanto ao tálamo.”
(123) Cláudio Galeno (130-200). Célebre médico de Pérgamo, na Ásia. Em Roma,
foi médico da corte imperial. Escreveu a Arte Médica.
83
Além disso, há outras maneiras de combater que convêm às
mulheres, como se vê entre os africanos. Aristóteles não pode
recusar esse argumento das amazonas. De resto, não as envolvemos
em todos os serviços de guerra, mas somente na defesa das
muralhas e nos prontos socorros. Não queremos formar com elas
uma república de amazonas, pois nos limitamos a fortificá-las,
para servirem à defesa e à prole. Aristóteles rejeita o argumento
das fêmeas que combatem entre as feras, sob a alegação de que
estas não têm a preocupação das coisas familiares, como sucede
com as nossas, que só para isso foram destinadas pela natureza.
Engana-se, porém, porque as feras cuidam dos seus filhotes e
procuram para eles alimento e defesa. Por outro lado, muitos
homens se ocupam com as coisas familiares, como acontece,
sobretudo, entre os monges. Não é, pois, contra a natureza, como
ele o ensina.
Diremos, ainda, que a comunidade das mulheres para o
concúbito não é contra o direito natural, sobretudo como foi
estabelecida por nós. Ao contrário, é conforme a ele e, por
conseguinte, não é heresia ensiná-la num estado dirigido por puras
luzes naturais, depois de conhecido o jus divino e eclesiástico
positivo, da mesma forma que não é heresia comer carne todos
os dias e ensinar, no estado natural, que isso é útil. Mas, depois da
promulgação da lei eclesiástica sobre a proibição de alimento, em
certos dias, para a abstinência cristã, é uma heresia fazer uso dela
e ensinar que isso é lícito. Prova-se, ainda, que todo pecado contra
a natureza destrói o indivíduo ou a espécie, ou tende a essa
destruição, como ensina São Tomaz. Por conseguinte, os
assassínios, o furto, a rapina, a fornicação, o adultério, a sodomia,
etc., são contra a natureza, porque ofendem o próximo, ou
impedem a geração, ou tendem a isso. Mas, a sociedade comum
das mulheres não destrói as pessoas, nem impede a geração; e
não é contra a ordem, mas, ao contrário, auxilia grandemente o
indivíduo, a geração e a república, como se depreende do texto.
Deve, pois, notar-se que há três espécies de vago concúbito.
Uma, pela qual cada um pode ligar-se a quem desejar e como
84
quiser, o que é contra a natureza racional do homem, embora seja
normal em alguns animais, como entre os cavalos, os burros, as
cabras, etc. Eis porque a natureza providencia para que esses
animais só em épocas determinadas sintam os estímulos à geração.
Como os homens estejam sempre dispostos para esse fim,
poderiam ligar-se com cada uma, enfraquecendo-se continuamente;
procurariam todos as mais belas e estas, pela confusão dos semens
e pela ação contrária, não conceberiam, como acontece com as
meretrizes. Quanto às mulheres feias, excitadas pelo ciúme e pela
dor, imaginariam todos os males contra as bonitas. Por esse motivo,
esse vago concúbito é uma heresia e uma impiedade contra a
natureza, tendo sido justamente a dos agnósticos (124) e dos
nicolaitas, bem como de alguns hereges modernos e de alguns
religiosos da seita de Maomé na África, que consideram lícito
unir-se a cada uma e até em público.
Outro gênero de concúbito vago é o que se segue às núpcias
legais, pela ligação em épocas determinadas, nas quais é lícita,
nas trevas, a união com quem a sorte oferece. Foi o que se
descobriu, recentemente, na Gália e em certas regiões da Alemanha,
tendo acontecido que muitos, depois de receberem o sinal,
reconheceram que se haviam unido às próprias mães. Esse sistema
é, também, contra a natureza e, certamente, contra a lei divina
positiva, pois não tem por escopo a geração, mas unicamente a
sensualidade. Dessa forma, a união vaga dos animais é ainda melhor,
porque os animais geram, não sendo a sua união contra a natureza,
de vez que é produzida a prole. Nessas uniões de hereges, ao
contrário, a geração é puramente acidental, sendo a luxúria seu
único escopo, uma vez que, para a geração, bastam os maridos
em casa.
A terceira modalidade de concúbito é, finalmente, a que
descrevemos numa sociedade quase natural, na qual só geram os
mais robustos e os melhores, sob a direção dos médicos e dos
(124) Hereges que, na primeira idade do cristianismo, se atribuíam o conhecimento
das coisas divinas, tendendo a um panteísmo platônico.
85
magistrados, em épocas próprias para geração, de acordo com a
astrologia, com temor e obséquio à divindade, e somente depois
dos 25 anos e até aos 53. Para as mulheres, prescrevemos também
um tempo no qual são para isso mais aptas. Por outro lado,
destruímos as uniões inconvenientes, isto é, as que se fazem
exclusivamente em atenção às riquezas, das quais a república não
obtém prole ou, quando a obtém, é uma prole covarde, disforme
e imbecil, como se vê pela experiência e foi notado por Pitágoras,
supremo filósofo. Impedimos, igualmente, a debilidade produzida
pelo excesso de coito ou pelas moléstias de esterilidade. Com
efeito, se uma mulher não concebe com este, pode conceber com
aquele, sendo a mudança justamente o que a natureza nos ensina
nesse caso. Já o princípio que as nossas leis estabeleceram de
que cada um só tenha relações com a própria mulher, mesmo
quando esta seja estéril, não pode ser facilmente aprovado pelo
filósofo apenas com as luzes naturais. Eis porque me limito a
sustentar que os instituidores de uma república sob o regime da
comunidade das mulheres não pecam no estado das puras luzes
naturais, a não ser que a revelação ensine que assim não se deve
praticar. Pela mesma razão, Durando e outros sustentam que nem
mesmo a fornicação é contra a lei natural, e muitos teólogos
confessam que a lei positiva não a proíbe. Quanto à opinião de
São Tomaz, que a considera contrária à geração e educação, não
pode ser sustentada quando se sabe que a mulher é estéril. Todavia,
estou de acordo com São Tomaz num ponto: através de longas
deduções, é possível prová-lo exclusivamente com a razão, mas
não torná-lo conhecido de todos. Assim, Sócrates não pecou
bebendo veneno, constrangido pela lei, embora os teólogos
provem ser isso um pecado, porque ninguém pode ser obrigado
pela lei a agir contra si próprio. Mas, essas sutis deduções, nascidas
da luz evangélica, não podiam ser conhecidas pelos antigos
filósofos, os quais provaram, ao contrário, que era lícito a alguém
matar-se por si, sendo nós os donos da própria vida, como o
estimaram Catão, Sêneca (125) e Cleômenes. Sustento, por
conseguinte, que a comunidade das mulheres, da forma pela qual
86
a consideramos, não é contra o direito natural e, se o é, não pode
sabê-lo o filósofo apenas com as luzes naturais. E que isso não se
deduz diretamente do direito natural, como conclusão imediata,
mas somente como dedução remota e, além do mais, fundada
sobre o direito positivo, que pode variar. As razões de Aristóteles
não nascem, pois, da natureza da coisa, mas exclusivamente da
inveja que ele tinha de Platão, tanto mais quanto ele próprio recorda
muitas nações que viveram desse modo. Vem, igualmente, em
nosso apoio, São Tomaz, que, na 2, 2 quest. 154, art. 9, confessa
que nenhuma conjunção é contra a natureza, salvo a do filho com
a mãe e a do pai com a filha, pois que, segundo Aristóteles, os
próprios cavalos a repelem. Eu próprio vi, em Montedoro, um
cavalo que não queria unir-se com a mãe. E assim é, não porque
não resulte a geração, mas por uma reverência natural. No entanto,
segundo o testemunho de Tolomeu, a união com as mães era um
costume comum entre os persas. Entre os animais, os galináceos
e muitos outras praticam o mesmo. Apesar disso, na república,
evitei que as mães se unissem aos filhos e os pais às filhas, embora
este último caso seja menos contra a natureza. Também Caetano
prova, apoiado no espírito de São Tomaz e na razão natural, que
a união com a irmã, ou com os afins e consangüíneos, não é
contra o direito natural, mas apenas contra o legal; que é um
preceito judicial, não moral, a proibição dos outros graus; que os
filhos de Adão se uniram com as irmãs, assim como os patriarcas
Abraão (126) e Jacó (127), do primeiro dos quais Sara era irmã. E
S. Tomaz aduz duas razões dessas proibições, a saber: o respeito
aos parentes, para que pudessem viver conjuntamente sem
escrúpulo e as amizades se multiplicassem por meio dos
matrimônios, e a sensualidade, a fim de que não se tornasse mais
(125) Filósofo e poeta trágico, mestre de Nero. Condenado à morte por ter
participado de uma conspiração, preferiu cortar as veias no banho.
(126) Patriarca dos hebreus. Em hebraico, esse nome significa pai de prole
numerosa.
(127) Terceiro patriarca dos hebreus, filho de Isaac.
87
doce com o próprio sangue. Segundo Caetano, essas razões
decidiram também da lei cristã. Mas, na república solar, não se
verificaram, pois as mulheres moram separadamente e a união só
se verifica de acordo com a lei, os tempos e os lugares prefixados.
Assim, o que se estabelece na república solar, para evitar a sodomia
ou um mal maior, é igualmente estabelecido pela religião cristã,
pois o marido pode, sem pecado, servir-se até da mulher grávida,
com o fim de extinguir o desejo e não para a geração. Providenciei
para que o sêmen não se perdesse e dei todos os preceitos para a
conservação da república. Quanto aos demais, não são reprovados
pelos próprios filósofos segundo o direito natural, sendo que
Aristóteles, em benefício da saúde, recomenda o coito aos que
não geram, do mesmo modo que Hipócrates e outros, a fim de
evitar males piores.
Respondo, agora, em particular, à primeira objeção. Aquele
todos pode ser tomado nos dois sentidos, porque todos, até a
uma certa idade, determinada no texto, são pais de todos coletiva
e separadamente: o primeiro é verdadeiro segundo o ato natural, o
outro segundo a caridade natural. Nem por isso diminui a caridade,
mas só a cobiça e a avareza, porque o homem, sob o regime da
divisão, tende a amar os próprios filhos mais do que convém e a
desprezar os alheios além da medida. Por conseguinte, o homem
sábio ama mais os melhores, mesmo que sejam alheios, e se
preocupa mais com os maus, para melhorá-los. Com efeito, é
desagradável ver tantas deformidades no gênero humano:
horrorizamos os coxos, os cegos, os miseráveis, porque são do
nosso gênero e representam a cada um a própria infelicidade Pela
comunidade dos filhos, dos irmãos, dos pais, das mães,
providencia-se de modo que diminua o excessivo amor próprio,
que é a cobiça, e aumente o amor comum, isto é, a caridade. É
por isso que diz Santo Agostinho: Amputatio proprietatis est
augmentum caritatis (128). E, na verdade, é melhor crer em Santo
Agostinho do que em Aristóteles. Com o primeiro está, igualmente,
(128) “Abolir a propriedade é aumentar a caridade”.
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São Paulo (129), que diz: Caritas non querit quae sua sunt (130),
antepondo as coisas comuns às próprias e não as próprias às
comuns. Na união dos monges, observa-se o mesmo: não
possuindo nada de próprio, o monge ama a comunidade como o
pé a todo o corpo; e, se algo possui, é como um membro amputado
ou um pé cortado, só se preocupando com o que é seu. O mesmo
acontece na república romana: quando os cidadãos eram pobres e
a república rica, todos queriam morrer pela pátria; quando, porém,
os cidadãos ficaram ricos, cada qual tornou-se capaz de matar a
própria pátria em benefício próprio. Aduz o Apóstolo o exemplo
dos membros e do corpo, o mesmo ensinando Ambrósio e
Crisóstomo. Por conseguinte, o amor, na comunidade, não seria
como uma gota de mel em muita água, mas como um pequeno
fogo, em muita estopa. Porque o amor é uma das primalidades e,
por natureza, difusivo como o fogo. Só se é feliz, na sociedade de
muitos, pela fama, pela difusão do nome, pela memória e pelo
maior número de auxílios que se recebem.
Separadamente, embora filho de um só, cada um pode ser
amado por todos os que formam um só na caridade. E é assim
que o tio, por se considerar de uma mesma família, ama os
sobrinhos, embora estes não tenham sido gerados por ele. E quanto
ao papa e aos cardeais, quem não vê quanto amam os sobrinhos e
consangüíneos, que eles não geraram? Amamos os amigos e os
filhos dos amigos, do mesmo modo que os velhos, nos mosteiros,
amam os noviços, sobretudo os virtuosos, desprezando os
inimigos da caridade.
A fisionomia engana, pois nem sempre os filhos se parecem
com o pai, mas muitas vezes com os estranhos. De pouco
obstáculo seria, aliás, essa pequena propensão em nossa república,
onde tudo é ordenado segundo a lei da natureza e do mérito. Jacó
também amou mais José, assim como outros amaram mais a outros
Isso não prejudicaria a comunidade nem a caridade. Os filhos, na
(129) 0 mais ilustre dos apóstolos escolhidos por Cristo para pregar o Evangelho.
(130) “A caridade não cogita do que é seu”.
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comunidade, não conjurarão entre si, pois vivem todos sob a
mesma disciplina. As santas mulheres dos patriarcas, como Raquel
e Lia, consideravam também seus os filhos das criadas. Aristóteles,
porém, não conhece tal caridade.
Segunda objeção. Nega-se a conseqüência, quando o todo é
governado segundo as regras e a ciência dos médicos, das
matronas e da astrologia. Pela posição do céu, segundo São Tomaz
(Polit. 5, lect. 13), conhecem-se as inclinações morais que ela
origina. Os nossos solares considerariam ilícita a união por mero
prazer e por sanidade, casos nos quais providenciaram de outra
forma. Quanto às rixas, veja-se o texto.
Terceira objeção. Como todos são membros de um mesmo
corpo, consideram-se os jovens menores como filhos, sabendo
todos perpetuar-se melhor na comunidade que nos filhos próprios.
Além disso, como todos ensinam, viver a fama que nos é
proporcionada pelas boas obras é preferível a viver a que temos
nos filhos. Com efeito, os filósofos conquistam filhos com o sêmen
de sua doutrina e não com o sêmen carnal. E nem os piolhos, por
nascerem em nós, são nossos filhos. Nem os verdadeiros filhos
de Abraão são, agora, os judeus, mas os cristãos. Buscamos a
eternidade em Deus e na república uma vida feliz, como ensina
Ambrósio. Nem os animais conhecem os filhos depois de
crescidos, o que não se dá diretamente, mas só indiretamente, por
natureza.
Quarta objeção. Digamos, com Caetano e São Tomaz, que
só é incesto contra a natureza o que é cometido pela mãe, e nós o
evitamos na república; com as irmãs, é apenas legal, e, onde não
há essa lei, não há incesto nem adultério algum. Porque o adultério
ou é natural ou é legal: o natural, como ensina Santo Ambrósio no
5 Hex., cap. 3, se observa entre animais de espécie diferente, o
burro e a égua por exemplo; o legal se verifica quando alguém se
serve da mulher de outrem, coisa que a lei proíbe, exceto em
nossa república, onde essa lei não existe: há geradores públicos,
mais úteis para essa função, não havendo, portanto, adultério,
nem prole adulterina, nem união ilegal. Assim, entre os monges,
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não pratica um furto quem come pão, porque todas as coisas são
comuns. O adultério não consiste na sensualidade; seria, porém,
adúltero o marido que se servisse de mulher alheia somente por
prazer. No entanto, agora, a lei a torna sua e só prejudicaria a
república quem dela se servisse contra a regra, do mesmo modo
que rouba os bens do mosteiro o monge que usurpa as coisas
comuns sem permissão. Mas, dir-se-á, São Tomaz ensina também
que todos os preceitos do Decálogo são preceitos naturais.
Responde-se, instituída a divisão: é que o fruto não existe sem
estar estabelecida a divisão dos bens. Outros doutores, não todos,
sustentam que aqueles preceitos são de direito natural. Na nossa
república, porém, não há divisão de propriedade, mas somente de
uso, com o fim de manter o engenho e a força dos cidadãos. Não
se, reconhece, pois, que a fornicação seja pecado só pela natureza
das coisas, e nem na República do Sol há fornicação, uma vez
que há a comunidade. Quanto às demais torpezas, o ciúme e os
conflitos, não podem verificar-se onde se regulam as coisas
segundo uma lei e uma disciplina agradável a todos. E nada do
que é próprio dos animais e de certos hereges existe aqui. Veja-se
o texto.
Quinta objeção. Se fosse de direito natural ter uma só mulher,
o próprio Deus não nos poderia concedê-la, segundo São Tomaz.
Mas, Jacó toma duas irmãs, Davi cinco mulheres, Salomão (159)
setecentas, e quase todos os patriarcas tiveram mais mulheres. E
não se veja nisso nenhuma licença, embora assim se costume julgar,
pois claro que a pluralidade das mulheres não é contra a natureza.
Todos os animais, exceto talvez a rola e o pombo, que se une
somente à irmã, conjugam-se com mais fêmeas. E, nessa república,
que se governa com as leis naturais, e não com as reveladas, isso
não podia ser conhecido. Ao contrário, a natureza ensina que quem
não gera com uma deve unir-se a outra: foi o que Sara pediu a
Abraão, desde que não houvesse revelação contrária, sendo que
Lia e Raquel deram ao marido as próprias criadas. E como poderão
os solares saber se isso é contra a natureza, quando nem os homens
nem os animais podem descobri-lo? Além disso, os nossos
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cidadãos não possuem nem uma nem muitas, mas cada qual, na
época prescrita para a geração, se aproxima daquela que a lei lhe
destina para o bem da república. E não geram para si, mas para a
república: nem mesmo nós, pois o pai, entre nós, não tem sobre o
filho tanto poder quanto a república, de vez que a parte é pelo
todo e não o todo pela parte. Se, portanto, o todo cuida da
totalidade na república solar, sem confiá-la aos particulares, isso
dá bons resultados. O marido que se une à mulher por lascívia,
quando lhe apraz, produz uma prole imbecil e degenerada.
Preocupamo-nos em possuir uma ótima geração nos nossos
cavalos, não para a nossa espécie. O próprio Aristóteles considera
contra a natureza o cruzamento que se verifica quando alguém, de
ânimo servil, procura ligar-se a mulheres generosas, e de fato a
estas se une como bem lhe parece. E São Crisóstomo, no livro do
sacerdócio, reprova, de modo figurado, o bispo ignorante que se
une à Igreja generosa.
Disse o Senhor: Erunt duo in carne una. É uma verdade e é o
que se observa em nossa república, pois Deus não ensinou, com
isso, que ninguém não devesse unir-se senão a uma. Do contrário,
nem Jacó teria tomado simultaneamente duas mulheres, nem, morta
uma, lhe seria lícito tomar outra. Assim, pois, quando de dois se
faz uma carne, é para que da mistura dos semens nasça uma prole.
E Santo Ambrósio diz, com São Paulo, que não teria conhecido
esse pecado se a lei não o ordenasse.
Sexta objeção. A heresia dos nicolaitas consistia em que
admitiam ser lícito a cada um unir-se a cada uma como bem lhe
parecesse, o que é contrário ao direito natural e impede a geração,
como já se disse. Na república solar, porém, a união obedece às
regras da filosofia e da astrologia, de forma tão ordenada que a
geração resulte melhor e mais numerosa. É, pois, uma união
conforme à natureza, só se tornando heresia depois de condenada
pela Igreja. Hortênsio, ou Catão, homem sapientíssimo e
doutíssimo, emprestou a própria mulher a Bruto para ter prole
dela, como se aquele rígido estóico, assim procedendo, quisesse
ensinar que isso estava de acordo cem a ordem natural. Como é,
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então, que os habitantes solares, orientados apenas pelas luzes
naturais, podem saber que, a não ser a nossa forma de matrimônio,
todas as outras constituem pecado, quando os próprios hebreus
e os romanos admitiram o divórcio, os filósofos reconheceram a
permuta, e Sócrates e Platão assim nos ensinaram? Aristóteles
não os censura por se afastarem do direito natural, mas porque
isso não lhe parece útil; ao contrário, ele informa que algumas
nações viveram dessa maneira. Concedo, pois, que se trate, agora,
de uma heresia na Igreja cristã, mas sustento que não basta a guia
da natureza para se reconhecer nisso um mal, quando não se
procede de modo bestial ou como os nicolaitas. Afirma São Tomaz
que o matrimônio é contra a natureza quando não favorece a prole
e a sociedade. Ora, em nossa república, ao contrário, a união é
sumamente favorável a ambas.
Os argumentos aduzidos por Aristóteles contra a comunidade,
segundo os quais esta é supérflua, como se alguém pretendesse
mostrar-se por um só pó, ou tirar harmonia de uma só corda, são
argumentos pueris e contrários à caridade e à república dos monges
e dos apóstolos, que, nesse caso, deviam ser condenados, pois
tinham um só coração e uma só alma, e não diziam que qualquer
coisa fosse própria, mas que possuíam todas as coisas em comum.
Por conseguinte, essa unidade não destrói a. pluralidade, mas
a fortifica pela união, não já de um só homem, mas de todos os
estados e condições. É o que não obtém Aristóteles em sua
república. Não é de uma só corda, mas de várias, que eles tiram a
harmonia. Aristóteles não estabelece senão a discórdia, quando
compõe a sua república de dois contrários. Nós, ao contrário,
temos a união como um carme, uma vez que todas as coisas
concordam entre se, ao passo que Aristóteles não faz senão compor
o seu carme de dois pés contrários e discordes, como se mostrou
no exame da sua república. A nossa é, pois, totalmente apostólica,
quando estabelece a comunidade, não por prazer, mas por
obséquio, como se vê em nosso diálogo.
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