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RUTE ELISA JORGE MENDES
A CRIAÇÃO DO CONFLITO EM NARRATIVAS LITERÁRIAS
ESCRITAS POR MULHERES
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
SÃO PAULO
2007
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RUTE ELISA JORGE MENDES
A CRIAÇÃO DO CONFLITO EM NARRATIVAS LITERÁRIAS
ESCRITAS POR MULHERES
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre em
Língua Portuguesa, sob a orientação do Professor
Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
SÃO PAULO
2007
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Agradecimentos
A Deus, fonte inesgotável de energia;
Ao Professor Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira, pela confiança, paciência, e
pelas orientações na pesquisa e elaboração deste trabalho;
Ao Professor Doutor Luiz Antônio Ferreira e à Professora Doutora Márcia Serra
Ribeiro Viana pelas preciosas contribuições sugeridas no momento da qualificação;
A minha família, pelo amor, base de tudo nesta vida;
Aos amigos, pelo incentivo e companheirismo;
À Professora Reginalice Nakao Ferreira da Silva, Dirigente da Diretoria Regional de
Ensino – Região de Registro, por oportunizar esse processo.
À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro concedido
por meio de bolsa de estudo.
(...)
Dentro da fêmea Deus pôs
Lagos e grutas, canais,
Carnes e curvas e cós
Seduções e pecados infernais
Em nome dela, depois
Criou perfumes, cristais
O campo de girassóis
E as noites de paz.
(Tororó, Edu Lobo e Chico Buarque)
Banca Examinadora
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RESUMO
Este trabalho trata da caracterização do conflito em narrativas literárias escritas por
mulheres, com enfoque em sua construção. Desenvolve-se a partir de um modelo de
análise, que considera a estrutura narrativa, baseado no trabalho de Sayeg Siqueira
em que destaca os aspectos organizacionais, o percurso narrativo e a modalização
da atitude das personagens. Contempla ainda a análise crítica do discurso,
fundamentada na teoria de Fairclough que mostra o modo como as práticas
lingüísticas discursivas imbricam estruturas sociopolíticas mais abrangentes de
poder e dominação e esperam produzir mudanças não apenas nas práticas
discursivas, mas também nas práticas e estruturas sociopolíticas que apóiam as
práticas discursivas. Para tanto, dois contos foram analisados: “Amor”, de Clarice
Lispector; e “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles. Mediante essas
considerações, pretende-se mostrar como se constrói o conflito narrativo em textos
escritos por mulheres. Considera-se importante estabelecer a constituição do
universo feminino, e inicia-se por um breve histórico da situação das mulheres,
principalmente as brasileiras, desde a colonização até a atualidade, abordando-se
ainda outros aspectos como o gênero, que expõe como homens e mulheres
organizam-se social e culturalmente em virtude da identidade sexual dos indivíduos;
como o sexismo, que reflete sobre as atitudes discriminatórias em relação ao sexo
oposto; e ainda, como o ethos, com enfoque no ethos feminino, que permite
considerar a imagem que se constrói de si em um discurso. O discurso feminino
auxilia na formação de uma nova imagem da mulher, permite o seu reconhecimento
como sujeito social. Evidencia-se o poder que as regras sociais impuseram, e ainda
o fazem, aos papéis femininos, e caracteriza-se o conflito para esse universo com a
quebra de expectativas causadas por pressão social.
ABSTRACT
This work treats of the characterization of the conflict in literary narratives written by
women, with focus in its construction. It is developed starting from an analysis model
that considers the analysis of the narrative structure, based on Sayeg Siqueira's work
in which he shows up the organizational aspects, the narrative course and the
modalization of the characters' attitude. It also contemplates the critical analysis of
the speech, grounded in Fairclough’s theory that also shows the way how the
practices discursive linguistic overlay sociopolitical structures more comprehensive of
power and dominance and they hope to produce changes not just in the discursive
practices, but also in the practices and sociopolitical structures that support the
discursive practices. For that two short stories were analyzed: "Amor" (Love) by
Clarice Lispector and "Venha ver o pôr-do-sol” (Came to see the sunset) by Lygia
Fagundes Telles. By those considerations, we intend to show how the narrative
conflict is built in texts written by women. It is considered important to establish the
constitution of the feminine universe, for that we present a concise historical of the
Brazilian women's situation from the colonization to the present time, it still
approaches other aspects as the gender that exposes how men and women are
organized social and culturally because of the individuals' sexual identity; the sexism,
that reflects about the discriminatory attitudes in relation to the opposite sex; and still
the ethos, with focus in the feminine ethos, that allows to consider the image that is
built of itself in a speech. The feminine discursive speech assists in the formation of a
new woman’s image, it allows her recognition as social subject. It is evidenced the
power that the social rules imposed, and still do, to the feminine papers, and it is
characterized the conflict for that universe with the break of expectations caused by
social pressure.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO...........................................................................................................1
CAPÍTULO I – UNIVERSO FEMININO....................................................................21
1.1 Breve histórico....................................................................................................21
1.2 As transformações ocorridas no Século XIX ......................................................29
1.3 As primeiras escritoras (Século XIX)..................................................................32
1.4 A constituição do universo feminino ...................................................................38
1.5 O gênero ............................................................................................................41
1.6 O sexismo ..........................................................................................................43
1.7 Ethos feminino....................................................................................................45
CAPÍTULO II - ANÁLISE DO CONTO: AMOR........................................................48
2.1 Modelo de análise ..............................................................................................48
2.2 O conto: “Amor”..................................................................................................48
2.3 Análise da estrutura narrativa.............................................................................56
2.4 Análise crítica do discurso..................................................................................62
2.5 A constituição da realidade social ......................................................................68
CAPÍTULO III – ANÁLISE DO CONTO: VENHA VER O PÔR-DO-SOL ................74
3.1 O conto: “Venha ver o pôr-do-sol”......................................................................74
3.2 A autora e a obra................................................................................................82
3.3 Análise da estrutura narrativa.............................................................................84
3.4 Análise crítica do discurso..................................................................................92
3.5 A constituição da realidade social ....................................................................100
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................1111
1
INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem como tema a criação do conflito em narrativas literárias
escritas por mulheres. O conflito traz à narrativa um elemento imprevisível, surge da
necessidade de escolha entre situações que podem ser incompatíveis. Essas
situações perturbam a ação e a tomada de decisão por parte da(s) personagem (ns)
envolvida(s), o que provoca a quebra de expectativa.
Dois contos foram escolhidos para a realização de uma análise: “Amor”, de
Clarice Lispector, e “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles. Pretende-se
averiguar se os conflitos criados nas narrativas femininas são próprios desse
universo e apurar como o discurso feminino os constrói, uma vez que o discurso
retrata aspectos sociais, significações e construções da realidade que colaboram
para estabelecer as relações em uma sociedade.
Faz-se necessário apresentar um breve histórico das mulheres no Brasil, com
o intuito de subsidiar a compreensão da constituição do universo feminino e de como
os conflitos narrativos são constituídos. Reflexões sobre gênero, sexismo e o ethos
feminino também são consideradas. O universo feminino é produto de fatores sociais
de circunstâncias históricas, firmados num determinado tempo. A mulher busca seu
lugar e sua identidade e durante um longo período, confronta-se com valores
instituídos socialmente que a posicionam como inferior ao homem, estereotipada
como um ser frágil, dependente, incapaz de autonomia e liberdade.
Espera-se com este trabalho contribuir para a divulgação dos modelos de
análises que permitam a exploração dos contos em sua estrutura, bem como realizar
uma leitura na qual se percebam as intenções de um discurso como produções
sociais historicamente situadas que revelam crenças, ideologias, relações
interpessoais e identidades. Outro enfoque está na linguagem, que é construída
para manter relações de poder. A permanência ou não dessas relações dependerá
de um trabalho de conscientização que promova mudanças.
Para tanto, dois modelos de análises nortearam esta pesquisa: o primeiro,
conforme estudos de Sayeg Siqueira (1992), trata da estrutura da narrativa,
estabelece os percursos narrativos nos contos e a modalização das atitudes das
personagens.
Para uma melhor compreensão de como ocorre a construção da narrativa, em
Sayeg Siqueira (1992) encontram-se os itens da organização macroestrutural: a
2
expectativa, o conflito, a tentativa de resolução (ou a resolução) do problema, o
desfecho e a avaliação, que serão apresentados com o intuito de esclarecer e
ressaltar a sua importância.
O processo de enunciação das narrativas se constrói na criação de uma
expectativa que relate uma situação cotidiana, normal, conhecida para as
personagens da história. Essa expectativa pode estar implícita ou explícita no texto.
Cria-se um conflito, traz-se um elemento inesperado, imprevisível. O conflito
surge quando há a necessidade de escolha entre situações que podem ser
incompatíveis. Essas situações perturbam a ação ou a tomada de decisão por parte
da(s) personagem (ns) envolvida(s), provoca uma quebra de expectativa inicial e faz
com que a narrativa ganhe novos caminhos.
No tocante à extensão da narrativa, esta também depende do conflito criado.
Há um problema, que pode surgir por diferentes motivos, e que precisa ser
solucionado. É no decorrer do embate e na busca por soluções que a narrativa
ganha expansão. O texto tem uma extensão adequada não pelo seu tamanho ou
pelo número de palavras que possui, mas sim quando cumpre o propósito do autor
de transmitir a sua mensagem ao leitor. Depende do grau de complexidade do
conflito, ele pode ou não ser solucionado e isso gera a expansão da narrativa, e seu
desfecho, que é o resultado dessa solução para o problema, marca a narrativa como
sendo de sucesso ou de fracasso.
Quanto a sua finalidade, a narrativa foi concebida com o intuito de trazer para
o homem um aprendizado, uma lição de moral, um exemplo de vida. A finalidade da
narrativa revela a referência do texto.
Ao conhecer a história “Chapeuzinho Vermelho”, por exemplo, percebe-se a
intenção de ensinar às pessoas, principalmente às crianças, que para se viver em
sociedade é necessário seguir algumas regras, entre elas a de que existe uma
hierarquia. Quem não a respeita será punido, portanto, essa é a finalidade desse
texto, cuja referência está contida na “desobediência” (Chapeuzinho desobedeceu a
sua mãe). A referência é o assunto. O que garante que a referência do texto seja
mantida e exemplificada são as ações das personagens que constroem o percurso
narrativo. A finalidade na narrativa é, portanto, uma forma de trazer um ensinamento
para o homem e sua vida, e pode aparecer de maneira implícita ou explícita no texto.
3
Há uma diferença entre a narrativa e o relato. Uma narrativa deixa de ser um
simples relato de acontecimentos quando apresenta um problema que implica
transformações no percurso narrativo, na verdade, essa transformação é que
caracteriza o conflito, característica principal da narrativa de ficção. Ocorre assim a
quebra da expectativa, que envolve o leitor na situação, deixando-o curioso, ansioso
por querer saber o desfecho desse embate. Já o relato não possibilita uma
representação que possa ser qualificada como história, pois não visa à resolução de
um problema, desenvolvendo-se somente por meio de uma seqüência de
ocorrências factuais. Nele o problema poderá existir, porém não trará
transformações no percurso narrativo.
No tocante ao percurso narrativo, segundo Sayeg Siqueira (1992: 43), “os
percursos narrativos se organizam a partir de uma personagem que tem instaurado
para si, por vontade própria ou por obrigação, um determinado objetivo a alcançar
ou a cumprir”. Mas para alcançar seus objetivos, a personagem deve passar por
alguns obstáculos. Há a quebra de expectativa com a criação do conflito, que pode
ser o aparecimento de um opositor. Este não precisa ser, necessariamente, um ser
animado, pode aparecer em forma de sentimento, de uma inabilidade etc.
Para a resolução do problema, a personagem pode lançar mão de algum
artifício ou receber alguém que vem em seu auxílio, chamado de auxiliar.
Dependendo da força do auxiliar para aniquilar o obstáculo, o desfecho da narrativa
pode ser de sucesso ou de fracasso, cumprindo assim sua finalidade. Para Sayeg
Siqueira (1992:45): “Cada item da organização macroestrutural da narrativa:
EXPECTATIVA, RESOLUÇÃO, DESFECHO e AVALIAÇÃO é descrito pelo
estabelecimento de um percurso narrativo, que, no seu conjunto, forma o texto como
um todo coerente, o que possibilita o cumprimento de sua finalidade”.
Para exemplificar a esquematização do percurso narrativo, citar-se-á a
crônica de Ivan Ângelo, “Negócio de menino com menina”.
O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de
terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina, de
uns nove anos, ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de São Paulo.
Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:
_Olha que lindo! Compra pra mim?”
4
O percurso narrativo pode ser esquematizado dessa forma:
auxiliar: poder aquisitivo
P ---------------------------------------------------------------Æ O
A menina Ter o passarinho
“O homem parou o carro e chamou:
_Ô menino.
O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da
menina. O homem:
_Esse passarinho é pra vender?
_Não senhor.
O pai olhou para a filha com uma cara de deixa pra lá. A filha pediu suave
como se o pai tudo pudesse.
_Fala pra ele vender.
O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:
_Quanto você quer pelo passarinho?
_Não tou vendendo não senhor.”
A história prossegue com o homem a oferecer dez, vinte, trinta, chega até
cinqüenta mil, e o menino nada, não aceita nenhuma proposta. A menina não
desiste, quer o passarinho de qualquer jeito.
Para que a narrativa se estabeleça, é necessário o surgimento de um conflito,
assim representado:
auxiliar: poder aquisitivo
P -------------------------------------------------------------------------------Æ O
Menina opositor: resistência do menino ter o passarinho
à venda do passarinho
5
O homem tenta argumentar com o menino, mas ele não cede.
“-_Quero não senhor. Tou vendendo não.
_Não vende por quê, hein? Por quê?
O menino acuado, tentando explicar:
_ É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com
sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.
O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo
aborrecimento:
_Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam’bora.
Nesse percurso, a narrativa teria um desfecho de fracasso, porém ocorre a
substituição do auxiliar, que transforma o fracasso em sucesso.
O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:
_Amanhã eu dou ele pra você!
Ela sorriu e compreendeu.”
Auxiliar: a bondade
P---------------------------------------------------------------------------------ÆO
Menina ter o passarinho
Na tentativa de resolução do conflito, a narrativa pode expandir-se e a
personagem criar meios para solucionar seu problema, inclusive recebendo a ajuda
de um auxiliar.
Esta história conclui-se com um desfecho de sucesso, pois a personagem
consegue obter o que almejava. A avaliação indica que nem tudo se consegue só
por meio do poder aquisitivo. No percurso narrativo, devem aparecer os itens da
organização macroestrutural que garantem um texto coeso.
6
Quanto à modalização das atitudes das personagens constata-se que, no
intuito de resolver o conflito gerado na história, a personagem pode mudar seu
objetivo. A mudança está relacionada à própria alteração na atitude da personagem,
ao descobrir um valor de falsidade, segredo ou mentira, em relação ao que
acreditava como sendo uma verdade. A mudança não gerará uma quebra de
coerência do texto, pois a personagem central continua a mesma e a ela são
atribuídos os percursos narrativos. A modalização está relacionada à atitude da
personagem. Essas atitudes podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas,
secretas ou mentirosas.
Chama-se VERIDICTÓRIA a modalidade que opera com valores de verdades.
Para Sayeg Siqueira (1992:49,50), pode-se esquematizá-la dessa forma:
x A relação entre
ser e parecer nos dá o valor de verdade (é e parece ser).
ser + parecer = verdade
x A relação entre ser e parecer nos dá o valor de falsidade (não é e não
parece ser), já que são elementos não pertinentes.
ser + parecer = falsidade
x A relação entre ser e
parecer
nos dá o valor de segredo (é mas, não pode
ser).
ser + parecer = segredo
x A relação entre ser e parecer nos dá o valor de mentira ( não é,mas parece
ser).
ser
+ parecer = mentira
7
Na crônica: “Negócio de menino com menina”, o menino é e parece ser
egoísta, apresenta uma modalidade de verdade, porque insiste em dizer não à
venda, possui a habilidade de caçar passarinhos, mas recusa-se em vendê-lo.
Auxiliar: habilidade de caçar passarinhos
P---------------------------------------------------------------------------------ÆO
Menino ter o passarinho
Ao justificar o motivo da recusa à venda, apresenta uma modalidade de
segredo, pois é e não parece ser generoso, quando diz que só quer ficar com o
passarinho até mostrá-lo para sua mãe.
A modalidade de mentira instaura-se quando o menino não é e parece ser
egoísta, porque insiste na decisão de não vender o passarinho.
Ao final, o menino não é e não parece ser egoísta, ao dizer que dará o
passarinho à menina, descobre-se a mentira. O menino é e parece ser generoso,
revela-se o segredo.
Outro exemplo pode ser dado pelo conto de fadas – A Branca de Neve.
“Relata a história da princesa Branca de Neve, assim chamada por ter a pele
muito branca, os lábios vermelhos como o sangue e os cabelos negros como o
ébano e que vivia num lindo castelo com seu pai e sua mãe. Havia um príncipe do
reino vizinho que muito a admirava,mas secretamente. Passado algum tempo, o rei
enviuvou e voltou a casar com uma mulher belíssima, mas extremamente cruel e,
além disso feiticeira que desde o primeiro dia tratou muito mal a menina.
Quando o rei morreu, a feiticeira, vendo que a Branca de Neve possuiria uma
beleza que excederia a sua, obrigou-a a fazer todo o trabalho no castelo. A rainha
tinha um espelho mágico e todos os dias lhe perguntava quem era a mulher mais
bonita do mundo. Todas às vezes o espelho respondia que era ela. Um dia, ao fazer
a habitual pergunta, o espelho respondeu que a rainha era bela, mas que Branca de
Neve era mais bela do que ela. A inveja da malvada rainha a fez mandar um caçador
levar Branca de Neve, ao bosque, e lá matá-la. Como prova de que havia cumprido
este ato, ordenou-lhe que trouxesse o coração de Branca de Neve. Mas o caçador
8
teve pena da princesa e poupou-lhe a vida, ordenou-lhe que fugisse. Para
comprovar que havia obedecido às ordens da madrasta, entregou-lhe o coração de
um veado.
Branca de Neve andou pelo bosque e, quando estava muito cansada,
adormeceu profundamente numa clareira. No dia seguinte, quando acordou, estava
rodeada pelos pequenos animais da floresta, que a levaram até uma casinha no
centro do bosque. Dentro, tudo era pequeno: mesas, cadeiras, caminhas. Por todo o
lado reinava a desordem e tudo estava muito sujo. Ajudada pelos animaizinhos,
deixou a casa toda arrumada e depois foi dormir.
Ao anoitecer, chegaram os donos da casa. Eram os sete anõezinhos,
voltando da mina de diamantes onde trabalhavam. Quando a princesinha acordou,
eles se apresentaram: Soneca, Dengoso, Dunga (o único que não tinha barbas e
não falava), Feliz, Atchim, Mestre e Zangado. Ao serem informados dos problemas
da princesa, eles resolveram tomar conta dela e deixaram ela ficar.
A malvada rainha não tardou, por meio do seu espelho mágico, a saber que
Branca de Neve estava viva e continuava a ser a mulher mais bonita do mundo.
Decidiu então acabar pessoalmente com a vida da princesinha. Disfarçou-se de
pobre-velhinha-indefesa, envenenou uma maçã e foi até a casinha dos anões.
Quando eles saíram para trabalhar, ofereceu a maçã envenenada e Branca de Neve
mordeu-a e caiu adormecida.
Quando os anõezinhos regressaram, pensaram que Branca de Neve tivesse
morrido. De tão linda, eles não tiveram coragem de enterrá-la. Então fizeram um
caixão de diamantes. Estavam junto da princesa adormecida, quando por ali passou
o príncipe do reino vizinho que há muito tempo a procurava. Ao ver a bela Branca de
Neve deitada no seu leito, aproximou-se dela e deu-lhe um beijo de amor. Este beijo
quebrou o feitiço e a princesa despertou. O príncipe pediu à Branca de Neve que
casasse com ele. E o feliz casal encaminhou-se para o palácio do príncipe e foram
felizes para sempre.”
O início desta história retrata a modalização da atitude da personagem
Branca de Neve avaliada como verdadeira: Branca de Neve é meiga e uma boa
pessoa, portanto é e parece ser. Já a feiticeira é invejosa e má, sua modalidade
9
revela uma mentira, pois não é, mas quer parecer uma pessoa amável perante os
outros.
A mudança de atitude começa no momento em que a feiticeira sente-se
ameaçada pela beleza de Branca de Neve. Para alcançar seu objetivo, ser a mais
bela, precisou mudar, disfarçou-se de pobre velhinha, e passou a assumir uma
modalização de segredo, é a feiticeira, mas não pode aparecer como é para a
Branca de Neve, o que implica também mentira, pois ela não é uma boa velhinha,
mas toma atitudes que a fazem parecer. Já a personagem Branca de Neve
permanece com atitudes que podem ser avaliadas como verdadeiras, ela sempre é e
parece ser.
Ressalta-se a importância das ações das personagens. São elas que
garantem a coerência do texto e revelam sua referência pelos valores decorrentes. A
coerência é garantida pela manutenção da mesma referência em toda sua extensão.
No tocante à quebra de linearidade, pode-se prever a ocorrência de duas
narrativas se desenvolverem de forma integrada, ao apontar para uma mesma
avaliação. Não é a ocorrência de duas narrativas, mas sim de dois episódios de uma
mesma narrativa; pode haver até mais de dois episódios, dependendo de sua
complexidade. Os episódios podem estar vinculados pela manutenção das mesmas
personagens, pela referência, pela tematização, pelo desfecho ou avaliação.
Caracteriza-se a narrativa como sendo alinear quando nela houver a organização de
um ou mais episódios que por vezes rompem a linearidade dos acontecimentos no
momento em que trabalha com tempo e locais diferentes.
Vale lembrar que o texto narrativo não é caracterizado lingüisticamente só
pela presença de verbos de ação. Há dois recursos básicos utilizados para tecer por
meio do código verbal a seqüência dos acontecimentos. Esses recursos são
elementos essenciais que atuam com o objetivo de dar coesão à narrativa. São eles:
a seqüência temporal e o jogo de causa e conseqüência, e podem ocorrer com
freqüência textos que imbricam a prosseqüência, ou seja, uma seqüência
progressiva no tempo, com o jogo de causa e conseqüência.
Em relação às técnicas, há diferentes possibilidades de compor uma trama.
Cada escritor cria seu estilo, o que confere ao texto singularidade lingüística e marca
o seu jeito de escrever. O estilo individual manifesta os movimentos do pensar e do
10
sentir de cada um. Suas escolhas diante das possibilidades que o código oferece,
sua seleção vocabular, a maneira como ordena as palavras, seus arranjos próprios e
criações são elementos que constituem o escrever de cada autor e caracterizam-no
de maneira diferenciada. Neste ponto, merecem destaque o foco e os discursos
narrativos. Não se deve confundir narrador com autor. O autor é um ser real, alguém
que existe fisicamente, já o narrador é uma simulação enunciativa criada pelo autor,
um contador.
A perspectiva de quem escreve é dada pelo foco narrativo. Para contar é
preciso que o narrador assuma uma determinada posição em face dos
acontecimentos. Encontra-se em Todorov in Barthes (1971:247) uma descrição
interessante a respeito do narrador:
É êle que dispõe certas descrições antes das outras, embora estas as
precedam no tempo da história. É êle que nos faz ver a ação pelos olhos de
tal personagem, ou mesmo por seus próprios olhos, sem que lhe seja por
isto necessário aparecer em cena. É êle, enfim, que escolhe relatar-nos tal
peripécia através do diálogo de dois personagens ou mesmo por uma
descrição “objetiva”. Temos portanto uma quantidade de informações sôbre
êle, que nos deveriam permitir compreendê-lo, situá-lo com precisão; mas
esta imagem fugitiva não se deixa aproximar e se reveste constantemente
de máscaras contraditórias, indo desde a de um autor em carne e osso, à
de um personagem qualquer.
Uma história pode ser contada em 1ª ou 3ª pessoa e o narrador pode assumir
três pontos de vista na narrativa:
x Narrador participante ou personagem: O texto é narrado em 1ª pessoa
e o narrador participa dos fatos, é personagem (principal ou secundária) da história.
Pode acontecer a exploração ampla dos sentimentos da(s) personagem (ns),
o narrador demonstra conhecê-la profundamente. A esse domínio pleno da situação,
na qual o narrador traduz por meio das palavras o seu saber penetrante a respeito
da(s) personagem (ns), o que sentem, falam, pensam; dá-se o nome de onisciência
do narrador.
x Narrador-observador: Ele simplesmente narra os fatos, registra as
ações e falas da(s) personagem(s) como um espectador. A narrativa é escrita em 3ª
pessoa.
11
O narrador-observador pode ter traços de onisciência, pode conhecer e
revelar sentimentos da(s) personagem (ns), é então chamado de observador-
onisciente.
Ainda no tocante às relações que se estabelecem entre narrador e
personagem, aparecem em Todorov in Barthes (1971) como “aspectos da narrativa”
os diferentes tipos de percepção, reconhecíveis e refletidos na relação entre ele (na
história) e um eu (no discurso), personagem e narrador.
Todorov in Barthes (1971: 239,240) destaca três tipos como sendo principais:
1. NARRADOR > PERSONAGEM (a visão “por trás”):
Apresenta diferentes graus. O narrador sabe mais que a personagem e sua
superioridade pode se manifestar por meio do conhecimento de desejos secretos,
íntimos, ou ainda pelo conhecimento de muitos pensamentos das personagens, ou
na narração de acontecimentos que não são percebidos por um único personagem.
2. NARRADOR = PERSONAGEM (a visão “com”):
Nela o narrador estará no mesmo nível de conhecimento da personagem, ele
não poderá apresentar explicações antes de as personagens a terem encontrado.
A narrativa pode aparecer em 1ª ou 3ª pessoa, porém sempre segundo a
visão que um mesmo personagem tem dos acontecimentos.
3. NARRADOR < PERSONAGEM (a visão “de fora”)
O narrador limita-se a descrever o que vê, o que ouve, como se fosse uma
testemunha que, na verdade, não quer saber de nada. Ele não tem acesso a
nenhuma consciência, sabe, portanto, menos que a personagem.
Quanto à interlocução no discurso narrativo, o narrador pode reproduzir a fala
da(s) personagem (ns) empregando as seguintes possibilidades, segundo a
nomenclatura adotada: discurso direto, discurso indireto ou discurso indireto livre.
x O discurso direto: O narrador reproduz na íntegra a fala da(s)
personagem(s) ou interlocutor (es). Esse discurso vem sinalizado pelo uso do
travessão ou das aspas. Geralmente apresentam VERBOS DE DIZER, que
expressam a maneira como a personagem falou. Exemplo:
12
Emocionado e um pouco bêbado, aos cinco minutos do ano novo ele
resolveu telefonar para o velho desafeto:
- Alô?
- Alô. Sou eu.
- Eu quem?
- Eu, pô.
O outro fez silêncio. Depois disse:
- Ah. É você.
(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para se ler na
escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.83)
x O discurso indireto: O narrador reproduz ao leitor aquilo que ouviu da(s)
personagem (ns). Por meio de encaixamentos sintáticos, como as orações
subordinadas substantivas, o narrador transforma a fala da(s) personagem (ns). Os
verbos aparecem na 3ª pessoa, seguidos dos conectivos que e se para introduzirem
a fala da personagem na voz do narrador. Exemplo:
Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira
coisa que o analista de Bagé faz é dar lhe um joelhaço.
(
VERÍSSIMO, Luís Fernando. O analista de Bagé.
L&PM Editores Ltda, 1983, p.23)
x O discurso indireto livre: É o resultado da mistura dos discursos direto
e indireto e produz grande efeito estilístico. É uma espécie de monólogo interior
da(s) personagem (ns), mas expresso pelo narrador. O foco narrativo é em 3ª
pessoa, as orações são, em regra, independentes, sem pontuação que marque a
passagem da fala do narrador para a fala da personagem. Exemplo:
Fez meia volta e correu para casa, onde Maneco e Antonio combinavam o
que deviam fazer quando os castelhanos se aproximassem. Recebê-los à
bala? Era loucura. Estavam em número muito inferior e não poderiam
resistir nem durante meia hora...
(VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o vento.
31ªEd,S.Paulo:Globo, 1995,p.120)
As técnicas narrativas variam de autor para autor. São as variantes de estilo
que conferem à obra um toque especial na produção do enredo. O autor dispõe
também de muitos recursos com os quais pode brincar com o imaginário do leitor,
levá-lo a instaurar a realidade ou ainda a promover inúmeras outras situações.
Toda criação requer talento e sensibilidade. Com o texto não é diferente,
depende das intenções de quem o cria. Há uma permutação entre o leitor e a
história que o prende e, nessa troca, personagens, ações, conflitos, seguem seu
13
percurso apontando para um final no qual o leitor, ao fechar o livro, aguarda a
sensação de que algo fantástico lhe aconteceu.
Essas considerações ora apresentadas fundamentam a primeira análise da
narrativa. O segundo modelo de análise orienta-se por meio dos trabalhos de
Norman Fairclough (2001) em Análise Crítica do Discurso (ACD), que considera o
uso da linguagem como forma de prática social. A prática social possui uma relação
dialética com a estrutura social, e sendo o discurso uma prática, contribui para a
constituição de todas as dimensões da estrutura social que o moldam e o
restringem. Segundo Fairclough (2001: 92):
A constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de
idéias nas cabeças das pessoas, mas de uma prática social que está
firmemente enraizada em estruturas sociais materiais, concretas,
orientando-se para elas.
Podem-se evidenciar três aspectos dos efeitos construtivos do discurso: em
primeiro lugar, contribui para a construção das identidades sociais; em segundo,
para construir as relações sociais entre as pessoas e, em terceiro, para a construção
de sistemas de conhecimentos e crenças. Assim, a prática discursiva contribui para
reproduzir a sociedade e ainda colabora para sua transformação.
Destaca-se o discurso como práticas política e ideológica, pois as mesmas
estabelecem, mantêm e transformam as relações de poder e as entidades coletivas
(classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder.
Pretende-se abordar as relações que se estabeleceram e que, ao longo do
tempo, instituíram e moldaram o perfil da mulher na sociedade, o que contribui para
a constituição do universo feminino. Existe um mecanismo social que impõe uma
imagem à mulher, mostra-se a mulher que a sociedade dirigida por homens constrói
e quer ver representada. Caberia à sociedade estabelecer relações de reciprocidade
na eqüidade e no respeito às diferenças.
Observar as relações entre as práticas discursivas e os fenômenos sociais e
culturais mais amplos é a base dos estudos de Fairclough. Para tanto, propõe uma
análise de discurso tridimensional que foca o texto falado e/ou escrito, a prática
discursiva e a prática social na qual o texto foi produzido, e objetiva a compreensão
dessa complexa relação que existe entre discurso e sociedade.
14
Modelo tridimensional de análise de discurso:
Os textos são feitos de formas às quais a prática discursiva passada,
condensada em convenções, dota de significado potencial, são em geral
ambivalentes e abertos a múltiplas interpretações. Os intérpretes costumam reduzir
a ambivalência potencial por um sentido particular ou um conjunto de sentidos
alternativos. A análise do evento discursivo como texto privilegia a descrição dos
elementos lingüísticos, destacados em quatro itens: o vocabulário, a gramática, a
coesão e a estrutura textual.
Imaginados em uma escala ascendente, o vocabulário trata das palavras
individualmente, das lexicalizações alternativas e de sua significância política e
ideológica, da relexicalização dos domínios da experiência como parte de lutas
sociais e políticas, como certos domínios são mais lexicalizados que outros. Foca
ainda o sentido das palavras, como os sentidos entram em disputa dentro de lutas
mais amplas. A gramática trata das palavras combinadas entre as orações e frases,
toda oração é multifuncional, é uma combinação de significados ideacionais,
interpessoais e textuais. Ao escrever ou dizer uma oração, é preciso fazer escolhas
sobre o modelo e a estrutura das orações, o que resulta em escolhas sobre o
significado (e a construção) de identidades sociais, relações sociais, conhecimento e
crença. A coesão trata da ligação entre orações e frases e de como estas são
organizadas para formar unidades maiores nos textos. Para Foucault (1972:57), a
coesão seria como “vários esquemas retóricos segundo os quais grupos de
enunciados podem ser combinados (como são ligadas descrições, deduções,
definições, cuja sucessão caracteriza a arquitetura de um texto)”. E por último, a
estrutura textual que trata das propriedades organizacionais de larga escala dos
TEXTO
PRÁTICA DISCURSIVA
(Produção, distribuição. Consumo)
PRÁTICA SOCIAL
15
textos. Por exemplo, a maneira e a ordem em que os elementos ou episódios são
combinados para constituírem um texto, como uma reportagem policial no jornal ou
uma entrevista.
A dimensão de análise de um evento discursivo como prática social explica
como o texto é investido de aspectos sociais ligados a formações ideológicas,
significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as
identidades sociais); as práticas discursivas contribuem para a produção, a
reprodução ou a transformação das relações de dominação e formas de hegemonia
no todo social, considerando-as como sendo um foco de luta constante sobre pontos
de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou romper
alianças e relações de dominação/subordinação, que assumem forças políticas,
econômicas e ideológicas.
A linguagem demonstra a fronteira de interação entre mulher, homem e
sociedade, dando visibilidade ao universo cultural, social e político em que surgem
determinados discursos.
No tocante ao entendimento da complexidade do que seja o universo
feminino, Ferreira (2002:117) diz:
Para entender essa complexidade, reconhece-se a existência de uma rede
anatômica, na qual viabiliza-se o construto da identidade do ser feminino;
esse construto é revelado pela linguagem que, por sua vez, junto com o
sujeito instauram-se nos níveis social, cultural e ideológico.
Busca-se identificar como as mulheres aparecem, o que fazem, em que
situação socioeconômica se encontram, o que sentem, como são tratadas dentro
das histórias em que são criadas e recriadas, e quem são seus criadores.
Por meio dos textos analisados neste trabalho, pretende-se conferir como o
discurso retrata aspectos sociais, significações e construções de realidades que
colaboram para as relações de dominação/subordinação em uma sociedade onde
homens e mulheres buscam desempenhar um papel social que lhes traga
reconhecimento e valorização.
No tocante à Análise Crítica do Discurso, segundo Pedro (1998), opera com
uma abordagem de discurso em que contexto é uma dimensão fundamental. Toma
como base a teoria de Fairclough, que conceitua o sujeito não como agente
16
processual, mas como sujeito construído e construindo os processos discursivos a
partir de sua natureza de ator ideológico. Essa dimensão ideológica na construção
do sujeito, e por conseqüência, na constituição do discurso é que fundamenta as
diferenças na Análise Crítica do Discurso a outras abordagens. (1998:20).
Na Análise Crítica do Discurso, os seres humanos são julgados a partir de
sua socialização, de suas subjetividades e de seus usos lingüísticos como
expressões de uma produção realizada em contextos sociais e culturais, orientados
por formas ideológicas e desigualdades sociais.
A linguagem organiza o cotidiano das pessoas, é responsável pela vida em
sociedade, é instrumento de socialização, pois oferece sentido aos movimentos,
permite que as pessoas compartilhem dos significados comuns à realidade.
Fairclough (1989) discute a importância da linguagem na produção, manutenção, e
mudança das relações sociais de poder e ainda manifesta sua preocupação em
aumentar a consciência de como a linguagem contribui para a dominação de umas
pessoas por outras, visto que é essa consciência que contribuirá para uma efetiva
emancipação.
Assim, a ACD objetiva dar conta da estrutura interna, da organização global
do texto, bem como fornecer uma dimensão crítica à análise do texto. Pretende
ainda mostrar o modo como as práticas lingüístico-discursivas imbricam estruturas
sociopolíticas mais abrangentes de poder e dominação, esperam poder produzir
mudanças não apenas nas práticas discursivas, mas também nas práticas e
estruturas sociopolíticas que apóiam as práticas discursivas.
Para construção de modelo de análise da narrativa, a ACD contribui com um
modelo textual concentrado nas propriedades analíticas de textos que estão ligados
às formas como as relações sociais são exercidas e as identidades sociais são
manifestadas no discurso (serão averiguados o controle interacional, a modalidade,
a polidez e o ethos), e ainda os aspectos da análise de texto que se relacionam com
a função ideacional da linguagem e com os sentidos ideacionais, enfatizando o
papel do discurso na significação e na referência (serão vistos: conectivos e
argumentação, transitividade e tema, significado de palavras, criação de palavras e
metáforas).
Quanto às propriedades analíticas, apresenta-se primeiramente o controle
interacional. As características de controle interacional para Fairclough (2001: 178),
17
“Estão ligadas à garantia de que a interação funcione regularmente num nível
organizacional: que os turnos na conversação sejam distribuídos regularmente, que
os tópicos sejam escolhidos e mudados, perguntas sejam respondidas, e assim por
diante”.
Características como: tomada de turno, estruturas de troca, controle de
tópicos, policiamento de agendas e formulação asseguram uma boa organização
interacional. Essas características serão explicadas nas análises dos textos
selecionados para este trabalho. As realizações e negociações concretas das
relações sociais, na prática social, podem ser explicadas pela investigação do
controle interacional.
A modalidade se refere ao grau de “afinidade” do produto de um enunciado
proposicional com aquilo que está propondo. Pode ser categórica, e ainda
“subjetiva” ou “objetiva”. A “subjetiva” é caracterizada pelo grau de afinidade com a
proposição, representado geralmente pelas palavras “penso / suspeito / duvido”,
como também com a expressão “eu acho”. Na “objetiva” a base subjetiva está
implícita, não apresenta pontos de vista ou opiniões de forma clara ou particular.
Nessa última, o produtor demonstra um baixo grau de comprometimento com
sua proposição, apresentando-a como um fato ou verdade compatível e, portanto,
de forma categórica.
Fairclough (2001: 201) conceitua-a: “A modalidade é, então, um ponto de
“intersecção” no discurso, entre a significação da realidade e a representação das
relações sociais – ou, nos termos da lingüística sistêmica, entre as funções
ideacional e interpessoal da linguagem”.
a polidez na linguagem está relacionada à preservação da face. Todo
indivíduo possui duas “faces”: positiva e negativa. A negativa corresponde ao
espaço de cada um, as pessoas não querem ser incomodadas, impedidas ou
controladas por outros. A face positiva tem relação com a imagem que se passa
socialmente ao outro. Nela as pessoas querem garantir a aceitabilidade, a proteção,
o carinho.
Quanto ao ethos, compreende as posições do “eu”, ou identidades sociais
dos participantes e é estabelecido pelo discurso como um todo, mas não só pelo
discurso como também pelo comportamento em geral.
18
Focar no discurso somente as expressões de quem fala pode ser uma
contribuição um tanto tímida, porém quando se enfatiza o papel do discurso na
construção do eu, têm-se contribuições significativas, conforme constata-se em
Fairclough (2001:209):
A função da identidade da linguagem começa a assumir grande
importância, porque as formas pelas quais as sociedades categorizam e
constroem identidades para seus membros são um aspecto fundamental do
modo como elas funcionam, como as relações de poder são impostas e
exercidas, como as sociedades são reproduzidas e modificadas.
Além das propriedades analíticas, apresentam-se os tópicos analíticos
específicos, os conectivos e a argumentação que mostram de que forma as
orações e os períodos estão interligados no texto.
A coesão focaliza as relações funcionais entre as orações e pode ser usada
para investigar “os esquemas retóricos” nos textos. Em alguns textos as marcas que
revelam as relações entre orações e períodos aparecem de maneira mais explícita.
Essa variação aponta para a necessidade de distinguir dois níveis na análise de
coesão: a análise das relações funcionais coesivas (como exemplo, pode-se citar
quando nas relações entre as orações uma oração (período) elabora o sentido de
outra por meio de uma descrição ou maior especificação, ou ainda quando se
expande o sentido de outra ao acrescentar-lhe algo novo), e a análise dos
marcadores coesivos explícitos na superfície do texto, como por exemplo: as
conjunções, a elipse. Segundo Fairclough (2001:220): ”Os marcadores coesivos têm
de ser interpretados pelos intérpretes de textos como parte do processo de
construção de leituras coerentes dos textos; a coesão é um fator de coerência”.
Há que se considerar os marcadores coesivos da perspectiva do produtor do
texto. Estes estabelecem relações coesivas de tipos particulares no processo de
posicionar o (a) intérprete como sujeito. A coesão pode tornar-se, nesse processo
dinâmico, um modo significativo de trabalho ideológico por meio do texto.
A transitividade e o tema tratam dos tipos de processos que são codificados
em orações e com os tipos de participantes envolvidos, sendo os principais: os
processos relacionais entre os participantes e os processos de ação. Para tanto,
trabalha com a transitividade, função ideacional da linguagem, que verifica que tipos
de processos (ação, evento) e participantes são favorecidos no texto, que escolhas
19
de voz (ativa ou passiva) e a nominalização, que transformam processos e
atividades em estados e objetos, e ações concretas em abstratas.
Afirma Fairclough (2001: 223):
Uma motivação social para analisar a transitividade é tentar formular que
fatores sociais, culturais, ideológicos, políticos ou teóricos determinam como
um processo é significado num tipo particular de discurso (e em diferentes
discursos), ou num texto particular.
Quanto ao tema, analisá-lo significa examinar suas funções textuais e como
elas estruturam a informação. É a parte inicial da oração e final, referida algumas
vezes como rema. Vale a pena ficar atento ao que é colocado inicialmente nas
orações e nos períodos, pois isso pode auxiliar nos pressupostos e estratégias que
não são tornados explícitos.
O tema é o ponto de partida do (a) produtor (a) do texto numa oração e
geralmente corresponde ao que pode ser considerado (o que não significa
que realmente seja informação dada, isto é, informação já conhecida ou
estabelecida para os produtores e intérpretes do texto). (2001: 227)
No tocante ao significado das palavras, as palavras possuem vários
significados e estão lexicalizadas de várias maneiras. Os indivíduos como
produtores ou como intérpretes estão sempre diante de escolhas a serem
realizadas: como usar as palavras e como expressar um significado por meio delas,
e ainda, como interpretar as escolhas realizadas por outros produtores.
É possível verificar na análise as palavras-chave que apresentam significado
cultural, as palavras com significado variável, o significado potencial de uma palavra,
como elas funcionam como um modo de hegemonia e um foco de luta.
Existe ainda uma multiplicidade de meios de expressar-se com novas
palavras. Essa perspectiva contrasta com a visão de vocabulário que tem como base
o dicionário, cuja tendência é padronizar e codificar as línguas na apresentação dos
significados das palavras como únicos.
No processo de criação de novas palavras consideram-se os domínios
particulares de experiências que estão atrelados aos aspectos culturais e
ideológicos, que implicam formas diferentes de expressar e interpretar essas
experiências.
20
Outro aspecto importante no estudo do vocabulário é o da metáfora.
Inicialmente considerada como aspecto da linguagem literária, hoje penetra em
quase todos os tipos de discursos.
Por meio de seu uso retrata-se uma realidade, escolhe-se uma forma de dizer
que é esta e não outra, revela-se uma maneira de pensar e agir, traduz-se
conhecimentos e crenças de forma tão natural, que as pessoas nem percebem e
ainda consideram difícil a sua retirada dos discursos. É possível também analisar
nos discursos que fatores culturais, ideológicos e históricos determinam a escolha de
metáforas, constatando-se o efeito metafórico sobre o pensamento e a prática.
Após considerações a respeito do segundo modelo de análise desta
dissertação, apresenta-se a sua organização:
Capítulo I: nele são apresentados alguns tópicos relevantes para a
compreensão da constituição do universo feminino, tópicos que trazem à tona
questões que colaboraram para a construção do papel da mulher na sociedade.
Capítulo II: é analisado o conto “Amor” de Clarice Lispector a partir da análise
da estrutura da narrativa e da análise crítica do discurso.
Capítulo III: o mesmo modelo de análise é realizado no conto “Venha ver o
pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles.
21
CAPÍTULO I – UNIVERSO FEMININO
1.1 Breve histórico
Este capítulo pretende traçar um breve histórico sobre as mulheres,
principalmente as brasileiras, como viveram, como era o mundo que as cercava,
desde a época do Brasil colonial até os dias atuais. Revelar um pouco dessa
história que trata de sua sexualidade, da violência que sofreram, dos seus amores e
desamores, de sua forma de estar no mundo. Retratos de mulheres que viveram em
diferentes espaços, pertencentes a múltiplos extratos sociais: escravas, operárias,
sinhazinhas, burguesas, donas de casa.
A história das mulheres inclui tudo o que envolve o ser humano, suas
aspirações e realizações, seus parceiros e contemporâneos, suas construções e
derrotas. Conhecer um pouco mais sobre as intrincadas relações entre a mulher e o
grupo social do qual foi parte integrante numa determinada época, são aspectos que
colaboram para uma melhor compreensão da constituição do universo feminino.
Segundo Del Priore (2001: 09) “as transformações da cultura e as mudanças nas
idéias nascem das dificuldades que são simultaneamente aquelas de uma época e
as de cada indivíduo histórico, homem ou mulher”.
O livro História das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priore, traz
como ponto de partida dados sobre a vida das mulheres indígenas na sociedade
tupinambá. Foram os viajantes europeus que observaram a cultura indígena no
Brasil colonial, e embora os registros deixados não sejam precisos, são
representações da realidade. É importante ressaltar que a cultura indígena foi
descrita a partir dos princípios da igreja católica e do princípio de que os brancos
eram os eleitos de Deus, por isso superiores aos povos do novo continente.
A começar pelo nascimento de uma criança, documentações dos séculos XVI
e XVII registram que o nascimento de um tupinambá contava com a presença de
todas as mulheres. As crianças do sexo masculino tinham o cordão umbilical cortado
pelo pai, já as meninas recebiam os primeiros cuidados da mãe. Após o seu
nascimento eram banhadas no rio, momento em que o pai ou o compadre achatava-
lhes o nariz com o polegar e depois de secos os bebês eram untados com óleo e
22
pintados com urucum e jenipapo. Os pais aguardavam no resguardo o umbigo da
criança cair e nesse período não executavam nenhum tipo de trabalho. Após a
queda do umbigo, as mães levantavam-se e pressionavam o ventre contra os
troncos mais fortes, a fim de evitar a flacidez. Um mês depois elas retomavam o
trabalho na roça. Os chefes religiosos recomendavam a abstinência sexual para
garantir o nascimento de crianças fortes e valentes, e o não cumprimento desta
recomendação acarretaria aos pais doenças incuráveis.
Algumas práticas eram empregadas pelas mulheres ao longo da educação
dos filhos: ao chorar muito as mães punham algodão, penas ou madeira sobre a
cabeça dos pequenos; para ajudar no crescimento massageavam os recém
nascidos na palma da mão. Os filhos mamavam durante um ano e meio e as mães
não se separavam deles, carregavam-nos nas costas ou encaixados nos quadris.
Raminelli in Del Priore (2001) afirma que há alguns registros que retratam as
mães índias como feras e trazem exemplos como: uma índia caeté que para se livrar
do choro da criança resolveu atirá-la no rio; outra que trazia seu filho nas costas e se
dirigia à roça, irritada com o choro resolveu enterrá-lo vivo, e ainda índias que
engravidavam do inimigo e esperavam a criança nascer para então matá-la e comê-
la. Quando o marido adoecia, a mãe matava o filho porque se acreditava que o
restabelecimento só aconteceria com o frescor da infância, remédio capaz de
devolver força vital ao guerreiro.
É importante destacar a figura feminina dentro dessa cultura, pois sempre
desempenharam funções importantes para o grupo, funções que eram valorizadas.
A menina atingia a idade adulta depois da primeira menstruação, momento em que
acontecia um ritual, no qual cortavam seus cabelos rentes à cabeça, depois as
moças subiam numa pedra e os índios faziam incisões em sua pele com um dente
de animal, riscando-a das espáduas às nádegas. Após o primeiro ritual, elas
permaneciam em uma rede durante três dias, sem comida, sem bebida, sem
companhias e, ao término desse período, voltavam à pedra novamente e novos
cortes eram realizados. Só então retornavam à rede e alimentavam-se de farinha e
raízes cozidas e bebiam apenas água, não comiam carne e sal.
Quando se casavam, as mulheres eram proibidas de manter relações sexuais
no período menstrual, diziam a seus esposos que não estavam bem. O primeiro
fluxo menstrual era motivo de festa na tribo, pois a jovem estava adentrando no
23
mundo dos adultos e em breve poderia se casar. As relações de parentesco eram
vistas com pouca rigidez, pois o tio poderia desposar a sobrinha. As relações entre
irmãos eram proibidas e as regras para união eram simples: se houvesse o desejo
da união, o varão dirigia-se à mulher e perguntava sobre sua vontade de casar.
Observa-se como os valores eram diferentes se comparados à comunidade branca
do Brasil colonial, pois as índias podiam opinar em relação ao suposto noivo,
mostrar seu desejo, eram ouvidas, convidadas a participar. Se o interesse fosse
recíproco, pediam a permissão do pai ou do parente mais próximo. Não havia
cerimônias, bastava o consentimento e os noivos já eram considerados casados. O
marido poderia expulsar a mulher e vice-versa, e ambos poderiam procurar outros
parceiros, sem nenhum constrangimento. Mais uma vez, direitos iguais para homens
e mulheres. A maioria dos índios tinha uma mulher, mas os homens que possuíam
mais de uma eram considerados valentes. Eles tratavam-nas muito bem e
protegiam-nas de diversas formas.
Quanto à sexualidade, todos andavam nus, arrancavam todos os pêlos que
cresciam sobre a pele. Os cabelos femininos cresciam naturalmente e não eram
tosquiados na frente nem aparados na nuca. Essa seria uma diferença entre os
sexos, elas cuidavam dos longos cabelos, faziam tranças com cordões de algodão.
As índias diferiam também pelo fato de não furarem os lábios nem as faces para
ornamentação. Para alguns europeus, a nudez feminina incitava à lascívia e à
luxúria. Entre os portugueses, até mesmo os padres eram tentados por causa dos
corpos nus. Raminelli in Del Priore (2001:26) relata:
O padre Antônio da Rocha, por exemplo, confessou suas fraquezas em
relação à nudez das índias. Desde que chegara ao Espírito Santo, o
religioso não passava uma hora sem sentir “estímulos gravíssimos”. Em
Portugal, fora acometido pelos mesmos arroubos, mas lá a volúpia surgia de
forma mais branda, pois as mulheres andavam vestidas. Nos trópicos, as
índias ostentavam as partes íntimas e não hesitavam em provocar a lascívia
nos homens.
As perversões sexuais marcaram as representações dos índios. Os
tupinambás eram afeiçoados ao pecado nefando e sua prática era considerada
normal. Os índios-fêmeas montavam tendas para servirem como prostitutas.
Algumas índias abandonavam as funções femininas e passavam a imitar os homens
e ainda possuíam uma mulher para servi-la. O viajante Gabriel Soares de Sousa
24
dedicou uma parte de sua crônica para os desvios sexuais dos tupinambás,
considerou-os luxuriosos, pois cometiam todos os pecados da carne, até as índias
velhas que ensinavam aos índios com pouca idade a fazer o que eles não sabiam;
foram descritas como elemento pervertedor, cujo apetite era comparado ao desejo
de comer carne humana e deliciar-se na vingança contra o inimigo. Para Raminelli
in Del Priore (2001:42):
A Bíblia já havia representado a mulher como fraca e suscetível. Desde Eva
as tentações da carne e as perversões sexuais surgem do sexo feminino.
Os eruditos do final da Idade Média partem comumente da falta de
autocontrole para explicar as perversões sexuais das mulheres. Aí está
incluído o desejo canibal, que aproxima o ato de beber e comer da cópula.
A correlação é fartamente repetida entre os viajantes e missionários que
descrevem o cotidiano ameríndio.
Os homens não eram vistos da mesma forma pelos viajantes que preferiram
descrever mais a imagem das velhas índias. Elas apareceram estereotipadas,
primeiro por serem mulheres e depois por serem idosas, simbolizavam o
afastamento das comunidades ameríndias do Cristianismo, e de certa forma,
representavam a resistência indígena aos colonizadores europeus.
Já na colônia a igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da
sexualidade feminina. Sob o argumento de que o homem era superior e, portanto,
cabia a ele exercer a autoridade, as mulheres deveriam ficar sujeitas aos mandos
dos seus maridos, já que elas partilhavam da essência de Eva, tinham de ser
permanentemente controladas. Foram muitas as condenações feitas pela igreja às
mulheres, entre elas: o uso de enfeites, tranças, objetos de ouro e, além disso,
pregava-se que a mulher se conservasse em silêncio, com toda submissão, pois
primeiro fora formado Adão e depois Eva. Admitia-se serem as mulheres mais
impressionáveis e mais predispostas a receberem o espírito descorporificado;
possuidoras de língua traiçoeira, não se intimidavam em contar às amigas tudo que
aprendiam por meio das artes do mal. Proibia-se qualquer feitiçaria destinada a
interferir no sentimento das pessoas. Mas em Salvador as feiticeiras eram teimosas
e vendiam seus serviços a quem quisesse conquistar o amor de outrem ou ainda
àquele que estivesse carente de afeto. As mulheres que não pertenciam a esse
grupo eram sempre muito vigiadas e a sociedade pregava que havia apenas três
ocasiões em que a mulher poderia sair do lar: para se batizar, para se casar e para
ser enterrada. Assim, a igreja comandava o adestramento da sexualidade, ao
25
conduzir o destino das mulheres, que deviam respeito e obediência ao pai, depois
ao marido, além de ter uma educação exclusivamente voltada para os afazeres
domésticos.
No tocante à educação formal, Araújo in Del Priore (2001) atesta que
documentos básicos sobre a educação feminina são os estatutos elaborados pelo
bispo Azeredo Coutinho, em 1798. As mestras do recolhimento, ou seja, dos
conventos, ensinavam às meninas os princípios da religião, a fim de protegê-las das
armadilhas de seu sexo. O programa de estudos destinado às meninas era mínimo e
bem diferente do dirigido aos meninos: aprendiam latim e música, a como
administrar o lar, a ler, escrever, contar, coser e bordar, enfim, era uma educação
que projetava a mulher para o casamento. Meninas com doze anos de idade podiam
casar e se a menina de quatorze ou quinze anos ainda não casara, o pai já ficava
inquieto, pois o matrimônio era decidido por ele. A mulher desde muito cedo devia
ter seus sentimentos abafados, e a própria igreja cuidava disso no confessionário,
ao vigiar de perto atos, gestos, sentimentos e até sonhos. Após o casamento, que
poderia ser com um homem bem mais velho, seu senhor passava a ser o marido, e
a igreja continuava a interferir mesmo no leito conjugal, ao reprimir o erotismo e o
sexo em excesso, pois o ato sexual era destinado à procriação. Com prazer ou sem
prazer a mulher tornava-se mãe e a maternidade teria de ser o ápice da vida da
mulher. Agora ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mãe do salvador
do mundo.
O ideal do adestramento nem sempre obtinha sucesso, nem todo mundo
aceitava passivamente a interferência, principalmente quando as proibições
passavam dos limites aceitáveis. Os desvios da norma eram comuns numa
sociedade colonial que se formava e improvisava seus próprios caminhos. Afirma
Araújo in Del Priore (2001:54):
a troca de informações, a difusão de saberes restritos ao cotidiano feminino
davam às mulheres, em certa medida, de criar um mundo feminino,
expressado em laços de solidariedade e amizade entre vizinhas, amigas e
parentes, nos expedientes alternativos de esperança e num poder informal
e difuso.
Ao apresentarem-se, suas vestes eram notadas. O vestuário ou a falta dele
era uma forma de chamar a atenção. As mulheres diferenciavam-se na maneira de
vestir, as mais abastadas usavam tecidos de qualidade, como veludos, sedas e
26
ornamentos; e as pobres andavam pelas ruas de Salvador quase nuas, com camisas
desgarradas que deixavam ombros e peitos à mostra. As escravas que se
prostituíam faziam de tudo para atrair seus homens com trajes feitos para chamar a
atenção. Araújo in Del Priore (2001:58) confirma: “Trajes sumários, trajes
excessivos, trajes decompostos, todos eram artifícios culturalmente aceitos e
admirados para incitar o desejo masculino, confirmar posição social e sublinhar a
sedução do feminino”.
Quanto ao adultério, a mulher arriscava-se muito ao cometê-lo. A lei era
rígida, pois permitia ao homem matá-la, caso a encontrasse em adultério. Mas nem
sempre as aventuras extraconjugais femininas acabavam tão mal, era freqüente o
marido mantê-la num recolhimento, ou se separava ou ainda dava-lhe uma boa
surra.
As transgressões não se acabavam no adultério. Uma das maneiras de
violar, agredir e se defender estava no refúgio ao amor de outra mulher, pois o
homossexualismo (ou sodomia) era condenado na legislação civil que instituía:
“quem o pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado e feito
fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos
os seus bens sejam confiscados para a Coroa”, e salientava o sexo feminino “E
esta lei queremos que também se estenda e haja nas mulheres que uma com as
outras cometem pecado contra natura, e de maneira que temos dito nos homens”.
As mulheres eram alertadas quanto à punição, mas a verdade é que, no Brasil
colonial nenhuma delas foi queimada; foram apenas ameaçadas, repreendidas,
sujeitas a penitências espirituais.
A Igreja persistia em manter sob controle os impulsos femininos, a mulher
podia ser mãe, irmã, filha, esposa, religiosa, mas jamais amante e até a doença
seria uma advertência divina. O corpo feminino era visto como palco nebuloso no
qual Deus e o Diabo se digladiavam e qualquer doença que atacasse uma mulher,
era interpretada como um castigo de Deus contra os pecados cometidos. O estudo
de seu corpo era associado ao aspecto moral e metafísico. Del Priore (2001:78) cita
a explicação do médico Francisco de Melo Franco, dada em 1794:
27
Se as mulheres tinham ossos “mais pequenos e mais redondos”, era
porque a mulher era “mais fraca do que o homem”. Suas carnes, “mais
moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular mais esponjoso e cheio
de gordura”, em contraste com o aspecto musculoso que se exigia do corpo
masculino, expressava igualmente a sua natureza amolengada e frágil, os
seus sentimentos “mais suaves e ternos”.
A ciência médica, além de investir em conceitos que subestimavam a mulher,
passou a perseguir aquelas que possuíam conhecimentos sobre como tratar de seu
corpo, saber transmitido de mãe para filha, necessário à sobrevivência e
manutenção dos costumes. Os médicos eram substituídos por curandeiras,
benzedeiras, que com suas palavras, ervas e orações chegavam onde eles não
conseguiam. Nesse período, todo conhecimento médico existente sobre o corpo
feminino dizia respeito à reprodução. Insistir na dignidade da procriação, na
excelência dos sentimentos maternos e na necessidade do equilíbrio para evitar as
“afecções morais” era a prática médica que só enxergava a vocação biológica das
mulheres. Para Vainfas in Del Priore (2001: 116), muitos são os retratos
perfilados pelos historiadores sobre a mulher e destaca:
As mulheres brancas, em pequeno número no acanhado litoral do século
XVI, teriam vivido em completa sujeição, primeiro aos pais, os todo-
poderosos senhores de engenho, Depois aos maridos [...] As mulheres
índias, essas sim, foram amantes dos portugueses desde o início... As
índias eram as “negras da terra”, nuas e lânguidas, futuras mães de
Ramalhos e Caramurus, todas a desafiar, com seus parceiros lascivos, a
paciência e o rigorismo dos jesuítas [...] A mesma fama tinham as negras da
Guiné, as crioulas, especialmente as da casa-grande, amantes de sinhôs e
sinhozinhos.
Vainfas in Del Priore (2001) confirma que inúmeros historiadores
demonstraram em pesquisas recentes, outras facetas das mulheres que diferem
desses estereótipos comuns. Eram mulheres que saíam às ruas para vender
quitutes, agiam como chefes de família quando abandonadas, gerenciavam tudo que
dizia respeito à maternidade, desde os mistérios do parto até as práticas de
contracepção, e souberam construir sua identidade. Mulheres que experimentaram
relações homoeróticas (algumas uma só vez, outras sempre, casadas ou não). No
entanto, para falar sobre os amores femininos, é preciso falar da própria inquisição,
que estabelecida a partir de 1536 com o propósito de perseguir os cristãos novos,
ampliou os limites de seu foro. Ainda no século XVI, passou a julgar determinados
delitos morais, desvios de conduta familiar ou sexual que por vários meios foram
28
considerados heresias. Dos desvios de conduta transformados em erros de crença,
o mais perseguido foi a sodomia. Os teólogos medievais deram conotação ampla ao
termo sodomia, entendendo-o não só como indicador das relações entre pessoas do
mesmo sexo, mas também como variados excessos sexuais.
Muitas mulheres antes de casar costumavam extravasar sua sexualidade com
relações homoeróticas, realizando-as com meninas de tenra idade. Na maioria das
vezes, essas relações nasciam no cotidiano que irmanava senhoras, escravas e
mulheres livres, na troca de segredos, mexericos e alcovitagens; da mesma maneira
que ocorria com os meninos da casa-grande e os moleques, eram relações que não
passavam de flertes próprios de jovens recém-saídos da puberdade.
Quanto aos casos femininos, é possível afirmar que as mulheres eram muito
discretas em suas relações. Ao contrário dos homens, elas costumavam manter
suas relações em sigilo, e se envolviam com mulheres das mais variadas posições
sociais. Assim, a sexualidade feminina foi registrada nos documentos da Inquisição
de maneira quase imperceptível, porém esses valiosos documentos permitiram
rastrear a sexualidade feminina de séculos atrás.
Há um registro curioso, segundo Vainfas in Del Priore (2001:135), redigido no
século XVIII pelo dominicano português Frei Lucas, que mostra como as mulheres
usavam de várias palavras para se referirem às partes íntimas, a seus prazeres e a
do seu corpo:
As freiras de santa Ana as chamavam de “passarinho”; as de santa Marta ,
“carriso”, as do Salvador, “clitário”; as da Rosa, “covinha”; as de santa Clara,
“montezinho”; as putas, “ave de rapina”; as castelhanas, “correio”; as
melindrosas, “cousinha”; e assim por diante. Conhecimento feminino da
própria anatomia, valorização, com graça, de tal ou qual sensação de
prazer, eis o que sugere semelhante vocabulário, a um só tempo barroco e
popular.
Seguir aos impulsos sexuais e fazer as vontades do corpo, eram atitudes que,
algumas vezes, geravam problemas, entre eles uma gravidez indesejada, fruto de
uma relação proibida, ou sem planejamento. Para resolver esse problema, outro era
criado, o abandono das crianças que nasciam. Durante o período colonial, segundo
Venâncio in Del Priore (2001), muitas mulheres precisaram abandonar seus filhos e
esse abandono revelou importantes aspectos da condição feminina no passado
colonial. Os motivos diferem: boa parte das crianças conheceu o abandono em
29
decorrência da morte da mãe, outras podiam ser filhas de escravas que fugiam ou
de mulheres brancas que, por motivos morais ou miséria, encaminhavam os filhos a
outros domicílios. Alguns historiadores sugeriram como interpretação que o
abandono seria uma forma de controle de natalidade, uma maneira de determinar a
dimensão ideal da família, já que não havia métodos contraceptivos seguros, e o
aborto era considerado crime, uma prática demoníaca.
Em uma sociedade que herdara a religião européia, o abandono causava
indignação, repercutia de forma negativa, o que gerava preocupação. Coube às
Santas Casas auxiliarem a essas mulheres, implementando junto à parede lateral ou
frontal do hospital um cilindro que unia a rua ao interior, dispositivo bastante
difundido em Portugal, e então a Casa de Misericórdia passou também a receber
essas crianças na chamada Roda dos Expostos. Abandonavam-se também crianças
mortas, pois a Roda servia de cemitério gratuito às famílias e mães pobres que
queriam garantir um enterro cristão a seus filhos. Os abandonados pagavam um alto
preço por não terem nascido em uma sociedade não estruturada, pois não havia
orfanatos tampouco leis favoráveis à adoção.
Os diferentes ritmos de crescimento do mundo colonial afetavam na condição
de vida das crianças. No campo, em área dominada por pequenos agricultores, o
abandono raramente acontecia, pois os camponeses não tinham escravos e a força
do trabalho familiar ocupava um papel fundamental na sobrevivência da unidade
doméstica. As mães ensinavam os filhos a realizarem pequenas tarefas desde muito
cedo e abandonar um filho significava também perder uma ajuda preciosa na
economia da família, que embora pobre, não vivia em condição de miséria; o mesmo
não se podia garantir às crianças que viviam na cidade, pois lá o trabalho infantil
tinha pouco valor.
1.2 As transformações ocorridas no Século XIX
Durante o século XIX, o capitalismo firmou-se e a vida urbana oferecia
alternativa, até mesmo para as mulheres que podiam reorganizar suas atividades
domésticas e familiares, sua sensibilidade e sua maneira de amar. A burguesia
emergia e buscava adaptação à nova sociedade. Essas mudanças colaboraram
para que a sociedade remodelasse o papel da mulher.
30
A vida urbana passou a existir e trouxe com ela uma série de situações
novas, exigiu medidas que trouxessem limpeza, organização, enfim, leis públicas
que regulamentassem o uso da cidade. Nascia o espaço público, as ruas passaram
a ser lugares públicos e com isso ganharam um significado oposto ao do uso
particular. As casas mais ricas passaram a receber outras famílias para que a
apreciassem. As salas de visita e os salões, espaços entre o lar e a rua eram
abertos de tempos em tempos para a realização de saraus, festas, jantares. A
mulher da elite passou a marcar presença em cafés, bailes, teatros, porém era
sempre vigiada pelo marido e agora pela sociedade, por isso teve de aprender a
comportar-se em público. Mulheres casadas ganharam um uma nova função:
contribuir para o projeto familiar de mobilidade social por meio de sua postura na
vida cotidiana como esposas modelares e boas mães. Redefiniu-se o papel feminino
e reforçou-se a idéia de que para ser mulher era preciso ser mãe dedicada,
atenciosa e esposa exemplar, pois dela dependia o sucesso da família, embora a
autoridade familiar se mantivesse em mãos masculinas do pai ou do marido.
Ainda com relação ao espaço público, na Europa os grandes magazines, os
salão de chá, e a igreja eram lugares importantes para as mulheres de certa
condição financeira freqüentarem. As mulheres das classes populares encontravam-
se nas ruas, no mercado e na lavanderia, lugares de sociabilidade, de comunicação
e de ajuda mútua. Perrot (1998) afirma que homens e mulheres situavam-se em
extremidades na escala de valores. Os homens públicos desempenhavam papel
importante e reconhecido, participavam do poder; a mulher pública era depravada,
rapariga, uma criatura que pertencia a todos. Há que se considerar que foi nesse
espaço que homens e mulheres se encontraram, se evitaram ou se procuraram.
O lugar das mulheres no espaço público sempre apresentou problemas. Três
santuários constituíram espaços onde as mulheres não poderiam estar, núcleos de
poder e símbolos que diferenciavam os sexos: o militar, o religioso e o político, como
três ordens da Idade Média.
Desde a Grécia antiga, a cidadania foi construída considerando a política
como o centro das decisões e do poder, temia-se a intrusão das mulheres na
política, pois a percepção da mulher estava ligada a uma idéia de desordem:
instintiva, selvagem, mais sensível do que racional, ela incomodava e ameaçava.
Para Perrot (1998:09):
31
Essas representações, esses medos atravessam a espessura do tempo e
se enraízam num pensamento simbólico da diferença entre os sexos, cujo
poder estruturante foi mostrado pelos antropólogos. Mas assumem formas
variáveis conforme as épocas, assim como as maneiras de geri-las.
Nas sociedades que pensam o político, isso se traduz por uma divisão
racional dos papéis, tarefas e dos espaços sexuais.
Da prostituição à galanteria, surgiram os bordéis, que atendiam a várias
categorias. O bordel propriamente dito tinha uma clientela mais popular, porém havia
lugares mais sofisticados que atendiam o burguês. Perrot (1998) retratou os
privilégios do burguês que podia ter várias mulheres: uma para cuidar de sua casa e
de seus filhos, outra para os momentos de escapadas na cidade, e outra ainda para
ser amante sofisticada e fervorosa.
A mulher definiu-se pelo seu corpo, pelos critérios de beleza e passou a possuir
poder por meio da estética. O brilho das cortesãs alcançou imediatamente as
mulheres da alta burguesia, que passaram a imitá-las nas vestes ao mesmo tempo
em que passaram a ditar a moda da época. Na França, uma ordenação imperial
proibiu o uso de calças. O uso de chapéu implicava respeito, pois as mulheres
precisavam andar com a cabeça coberta, não podiam sair sem capuz; as burguesas
usavam chapéus e as mulheres do campo uma touca simplificada ou um boné. Eram
cobrados comportamentos exemplares: gestos, palavras, a maneira de se
apresentar em público eram vigiados o tempo todo, principalmente sendo a mulher
ainda solteira.
Seu corpo também marcaria a sua moral, a sua honra. Essa concepção impôs
ao gênero feminino o desconhecimento de seu próprio corpo e permitiu a repressão
de sua sexualidade; a mulher passou a manter uma relação de culpa, de impureza,
de vergonha por não ser mais virgem ou por estar menstruada. É importante
destacar que a virgindade feminina era um quesito fundamental, funcionava como
um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor econômico e
político. Assim, a mulher permaneceu por longo tempo sem poder dispor livremente
de seu corpo, de sua sexualidade, violência que construiu outras violências. Afinal,
pureza era fundamental num contexto em que a imagem da Virgem Maria era o
exemplo a seguir.
Nem seu corpo nem suas vontades eram respeitados. Ao pai caberia a
escolha do cônjuge e amar ou se apaixonar por alguém que não fosse o escolhido
implicava problemas. Apesar disso os enamorados não se intimidavam e sempre
32
encontravam oportunidades para manter uma aproximação. Em relação às moças
mais pobres esse controle era mais flexível, já que, entre outras coisas, não havia
recursos a serem trocados pelas famílias envolvidas na união. A literatura informa
que as mulheres das classes mais baixas tiveram mais oportunidades de poder amar
pessoas de sua condição social, enquanto as mulheres de mais posses sofreram
com a vigilância e a autoridade exercida sobre elas, não tendo o direito a realizar
suas próprias escolhas no amor.
Em relação ao trabalho, não havia espaço nem era permitido às mulheres
trabalharem fora de casa. Aquelas mais empobrecidas, que necessitavam trabalhar,
as viúvas ou as abandonadas faziam doces, arranjos de flores e bordados para
manter a prole, mas essas atividades não eram bem vistas nem valorizadas e
tornavam-se alvos daqueles que passavam a julgar a incapacidade do homem da
casa, quando havia, e sua decadência econômica. Por isso, muitas vendiam seu
produto por intermédio de outras pessoas para não se exporem.
O estereótipo do marido dominador e da mulher submissa, próprio da classe
dominante, não se aplicava plenamente às camadas subalternas. Muitas mulheres
reagiam à violência doméstica, não suportavam situações de humilhação e abriam
mão do matrimônio. Ao partilharem com seus companheiros as despesas para
manter o lar, ganhavam uma relação mais simétrica, ao contrário dos estereótipos
vigentes na época, que previam a subordinação feminina.
Soihet in Del Priore (2001) considerou que as dificuldades sofridas pelas
mulheres em uma sociedade injusta e discriminatória, não as intimidaram de se
apropriar de diversos espaços e as obrigaram a uma constante luta pela
sobrevivência e pelos seus direitos. E com esse espírito as mulheres adentraram no
mundo letrado.
1.3 As primeiras escritoras (Século XIX)
Segundo Telles in Del Priore (2001), o número de mulheres que escreveram
nessa época não foi insignificante como alguns pensam. Elas habitaram diversas
áreas do Brasil, pertenceram a mais de uma classe social, da mais abastada a bem
pobre, foram brancas arianas ou negras africanas. Escreveram abordando os
conflitos da época: a educação das mulheres, a posição da mulher na sociedade,
33
suas reivindicações de igualdade, a sociedade escravocrata, o sufragismo... O
surgimento de mulheres escritoras ocorreu principalmente a partir do século XIX, no
contexto da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol
dos direitos das mulheres. Nesse período também surgiram os primeiros textos
escritos por mulheres brasileiras que tiveram alguma divulgação entre o público
letrado. Perrot (1998) afirma que na França, a palavra das mulheres passou
primeiramente pelo domínio da conversação, que se firmou nos salões do século
XVII. Conscientes do poder das palavras, passaram a ocupar um lugar importante
como donas de salões onde se encontravam homens que conversavam sobre
política, período em que os homens eram os únicos escritores e filósofos. Atentas e
curiosas, as mulheres discutiam sobre tudo, e pela conversação criaram possíveis
réplicas entre vozes femininas e masculinas.
No Brasil dos tempos coloniais, a mulher nada escreveu, ou escreveu, mas os
textos não apareceram ou apareceram como exceção, entre a maioria quase
absoluta de textos escritos por homens. Vale lembrar Tereza Margarida da Silva e
Orta – filha de um português e de uma brasileira, que viveu desde os cinco anos em
Portugal. Escreveu obra de cunho moralista, intitulada Aventura de Diófanes
publicada em 1752, que é considerada por alguns como o primeiro romance
brasileiro, já que a escritora nasceu no Brasil, e por outros como obra portuguesa, já
que a autora foi menina para Portugal e nunca mais retornou ao Brasil.
Num contexto de cultura colonial, em que a fundação de universidades era
proibida, em que o analfabetismo imperava e em que as tipografias passaram a
funcionar livremente apenas depois de 1808, quando a família Real chegou ao
Brasil, os textos feitos por mulheres, se é que existiram, devem ter circulado
oralmente. Outros textos por elas escritos fariam parte de um contexto de cultura
bem específico: o espaço doméstico registrado nos livros de receitas, diários, cartas,
anotações, orações, pensamentos, lista de deveres e obrigações, que em sua
grande maioria desapareceram.
Podem-se citar os textos escritos por Nísia Floresta Brasileira Augusta, como
exemplos de textos de caráter mais artístico, que eram exceções. Nísia foi
considerada a primeira feminista brasileira. Dionísia Gonçalves Pinto ou “Nísia
Floresta” (1810-1885), foi poetisa e prosadora potiguar das mais importantes do
século XIX. Escritora e combatente pelas causas mais nobres, teve forte
participação na imprensa nacional desde 1830 e publicou vários livros no Brasil, na
34
França e na Itália, nos quais se destacou a defesa consciente da mulher.
Republicana e abolicionista, escreveu em jornais do Rio de Janeiro, mas suas idéias
provocaram polêmica e adotou o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta.
Outras escritoras também mereceram destaque pela forma como atuaram na
tentativa de construir uma sociedade que propiciasse um papel mais digno à mulher.
Vejamos algumas delas: Maria Firmina dos Reis (1825-1917), mulata bastarda
nascida no Maranhão, foi professora primária e em 1859 publicou Úrsula, primeiro
romance abolicionista do Brasil. Foi colaboradora assídua de jornais e publicou em
1887 o conto A Escrava, o Hino da Libertação dos Escravos e deu voz ao escravo
que, pela primeira vez em nossa literatura, contou a sua História desde a África.
Narcisa Amália (1852-1924), poeta fluminense, foi também a primeira jornalista
profissional do Brasil. Movida por forte sensibilidade social, combateu a opressão da
mulher, o regime escravista, defendeu os oprimidos e foi um dos raros nomes
femininos que falaram de identidade nacional, buscou sua própria identidade numa
poética uterina que imprimiu o retorno ao lugar de origem. Júlia Lopes de Almeida
(1862-1934), foi jornalista e autora de livros de sucesso. Casou-se com o jornalista
Filinto de Almeida e em suas crônicas fez campanha em defesa da cidade, da
educação da mulher, do divórcio, da exposição de flores, da abolição e da
República. Era palestrante e viajou muito. Escreveu peças de teatro e a mais
conhecida A Herança foi representada pela primeira vez no Teatro da Exposição
Nacional, em 1908. Talvez tenha sido a única escritora do período que conseguiu
ganhar dinheiro com seu trabalho.
No campo da poesia outros nomes mereceram destaque: Adélia Fonseca
(1827-1920), poetisa baiana, com seu verso comovente, marcado pela economia do
qual exclui qualquer exagero sentimental e de influência camoniana, teve sua força
reconhecida por Machado de Assis em resenha no Diário do Rio de Janeiro. Beatriz
Francisca Brandão (1779-1868), poetisa mineira e professora publicou bastante nos
periódicos da época. Escreveu sonetos primorosos em que o tema do amor fundiu
tradição clássica com lampejos românticos. Sua concepção do amor como valor
maior da existência chegou a assumir um tom filosófico. Maria Clemência S.
Sampaio (1823-?), gaúcha, deixou uma poesia de exaltação da natureza local, e
captou bem o clima generalizado de euforia pós-independência. Sua poesia teve
mais valor documentário que estético. Ildefonsa L.César (1794-?), poetisa baiana,
levou vida amorosa à margem das regras sociais. Professora, mãe solteira, deixou
35
uma poesia marcada pelo tema da paixão e foi a primeira autora cuja poesia teve
condimento erótico, afrontando a sociedade com revelações de paixões proibidas.
Esteve acima de outros poetas de seu tempo pela franqueza e naturalidade. Muitos
outros nomes destacaram-se: Rita Barém de Melo (1840-1868), notável poetisa
gaúcha; Gabriela de Andrade (1852-1922), poetisa paulista; Adelaide de Castro
Guimarães (1854-1940), poetisa, irmã de Castro Alves; Maria Carolina Souza –
(1856-1910) catarinense; Alexandrina da Silva C. dos Santos (1859-1934), poetisa
do Rio de Janeiro; Júlia da Costa (1844-1911), paranaense; e Ana Luísa de Azevedo
e Castro (1823-1869), catarinense, educadora, avançada e romancista, simpática
aos índios.
A literatura feminina foi presença constante nos periódicos do século XIX,
tanto nos dirigidos por homens quanto nos criados e mantidos por mulheres e teve
papel fundamental no despertar da consciência das mulheres brasileiras. Podem-se
destacar algumas dessas autoras, primeiramente as pioneiras: Josefina Álvares de
Azevedo (1851-?), nascida em Recife, jornalista e dramaturga cuja luta em prol do
sufragismo foi marcante; Corina Coaracy (1859-1892), nascida nos Estados Unidos
e radicada no Rio de Janeiro, foi abolicionista ativa, intelectual acima da média,
dramaturga, cronista, tradutora, crítica de artes, dotada de visão avançada da
história e da cultura; Carmem Dolores (1852-1910), fluminense, foi dramaturga,
romancista, cronista e boa contista, mesclava literatura e jornalismo. Via o divórcio
como uma necessidade, mas foi ambígua em relação a outros direitos da mulher.
Observaram-se ainda algumas mulheres muito atuantes nos periódicos: Ana Aurora
do Amaral Lisboa, Ildefonsa Laura César, Maria Firmino dos Reis, Júlia Lopes de
Almeida, Delia, entre outras.
Uma das razões para a criação dos periódicos de mulheres no século XIX
partiu da necessidade de conquistarem direitos. Em primeiro lugar o direito à
educação, em segundo lugar o direito à profissão, e bem mais tarde, o direito ao
voto, sendo que um dos primeiros veículos dessa emancipação foi o jornal carioca O
Espelho Diamantino, lançado em 1827, que divulgava questões relacionadas às
mulheres e textos literários ou políticos escritos por mulheres.
Considerado o primeiro jornal feminino fundado em nosso país O Jornal das
Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha, anunciava a colaboração para a
educação da mulher. No editorial do primeiro número do O Jornal das Senhoras, em
1º de janeiro de 1852, ela afirmava que o que a motivava era a vontade e o desejo
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de propagar a ilustração, e cooperar com todas as suas forças para o melhoramento
social e para a emancipação da mulher. Dezenove anos antes do surgimento do O
Jornal das Senhoras, apareceu uma gaúcha, raramente mencionada, chamada
Maria Josefa Barreto Pereira Pinto, que foi poetisa, escritora, professora e jornalista.
Fundou um jornal como meio de subsistência, pois seu marido desaparecera após
ser condenado. Seu jornal era estranhamente intitulado Belona Irada contra os
sectários de Momo, popularmente conhecido por Belona. Era um periódico fundado
na província e o que se passava nesse lugar ficava ali confinado.
Em 1873, foi fundado o primeiro jornal feminista Sexo Feminino, de
propriedade de Francisca Senhorinha de Mota Diniz, defensora da capacidade
intelectual da mulher para as ciências, a literatura, a filosofia, a história, a geografia,
a química, o que quer que fosse e que tinha como objetivo defender a educação da
mulher. Outro foi o jornal A Família, fundado por Josefina Álvares de Azevedo em
1888. Josefina era abolicionista, republicana, e defendia a emancipação da mulher.
Em 1890, publicou no folhetim A Família uma comédia em um ato O voto feminino,
apresentada no palco em 23/06/1893 e noticiada por um jornal feminino em Paris.
No Rio Grande do Sul, o Escrínio e o Corymbo das irmãs Revocata Heloísa
de Melo e Julieta de Melo Monteiro durou sessenta anos (1884-1944) e durante todo
esse tempo cobriu aventuras de mulheres brasileiras em vários campos de atuação.
Outros jornais saudavam essas iniciativas femininas, bem como o aparecimento de
livros escritos por mulheres.
A Revista Mensageira, da escritora Prisciliana Duarte de Almeida, surgiu no
final do século, 1897, em São Paulo. Seu objetivo era levar idéias novas aos lares, e
ao mesmo tempo, estabelecer uma simpatia espiritual pela comunhão dessas
mesmas idéias. Noticiava todos os livros publicados por escritoras em todo o Brasil e
no exterior, resumia conferências e conquistas profissionais, foi solidária com as
mulheres do mundo todo ao publicar artigos sobre mulheres inglesas, polacas,
francesas, suecas e chinesas. Entre as colaboradoras freqüentes: Júlia Lopes de
Almeida, Áurea Pires, Narcisa Amália, Francisca Júlia, Auta de Souza, Ignez Sabino,
Josefina Álvares de Azevedo e a portuguesa Guiomar Torrezão, todas bem
conhecidas.
Na Europa, nos primeiros tempos da construção da democracia, as
correspondências aumentaram consideravelmente, tornando-se meio de
comunicação generalizado. A mulher passou a escrever, principalmente cartas aos
37
familiares, mas opinava sobre política e educação, consciente do desafio que isso
representava para seus filhos.
A partir do século XVIII, principalmente no século XIX, a imprensa não tinha
concorrência e não parou de crescer. Lentamente as mulheres apropriaram-se
desse universo masculino cuja leitura a princípio era quase proibida, pois os lugares
que possuíam jornais eram reservados aos homens: casas burguesas, escritórios e
bibliotecas ficavam localizadas no primeiro andar, e os espaços destinados ao
público feminino ficavam no térreo. Elas iniciaram suas escritas na Grã-Bretanha,
mas também na França e na Inglaterra, primeiro na imprensa da moda, como
redatoras ou diretoras. Em seguida passaram a fazer do jornal um modo de
expressão do feminismo em quase toda a Europa.
As últimas décadas do século XIX no Brasil apontaram para outras
necessidades, e a mais importante delas era a da educação para a mulher. Segundo
Louro in Del Priore (2001:471):
O discurso sobre a educação e o ensino, sobre os sujeitos que deveriam
reger o processo educativo ou sofrê-lo, ou seja, sobre mestres e mestras e
estudantes, transformavam-se, alimentavam-se de novas teorias,
incorporavam novos interesses, refletiam e constituíam novas relações de
poder. As mulheres professoras teriam de fazer-se, agora, de modos
diferentes, incorporando em suas subjetividades e em suas práticas as
mudanças sociais.
Já nos anos 1950, segundo pesquisas de Bassanezi in Del Priore (2001),
democracia e participação eram idéias fortalecidas nos discursos políticos.
Entretanto as distinções entre os papéis femininos e masculinos permaneciam
nítidas; o trabalho da mulher era cercado de preconceito e a moral sexual
diferenciada permanecia forte. Os homens tinham autoridade e poder sobre as
mulheres, e eram os provedores da família. As características próprias da
feminilidade aguçavam a maternidade, a resignação e a doçura; a mulher ideal
definida a partir dos papéis femininos tradicionais.
Muitas moças fugiram aos padrões estabelecidos, jovens transgrediram as
normas de diferentes maneiras: fumavam, liam coisas proibidas, exploravam a
sensualidade no uso de roupas e nas formas dos penteados, investiam no futuro
profissional, discordavam dos pais, muitas abriram mão da virgindade e do
casamento para viverem além dos limites impostos.
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Houve um aumento da participação feminina no mercado de trabalho, o que
exigiu que as mulheres se qualificassem e fossem em busca de escolaridade, fato
que promoveu mudanças em seu status social. Mulheres inteligentes ou cultas
poderiam ajudar o marido, desde que ele não se sentisse humilhado.
As insatisfações femininas eram desqualificas e qualquer forma de protesto
desestimulada, restando às mulheres usarem de estratégias sutis para fazer valer os
seus desejos. A grande ameaça era a separação, pois as deixava em uma situação
muito delicada perante a sociedade: mulheres separadas eram mal vistas, e a sua
realização percorria os caminhos do casamento.
Quanto aos filhos, os casais de classe média alta praticavam o controle da
natalidade, entretanto ter filhos era um processo natural. Para a mulher, mais que
um direito ou uma alegria, era uma obrigação social, uma sagrada missão feminina
da qual dependia a continuidade da família.
Fatores sociais, políticos e econômicos explicaram as mudanças ocorridas
durante esses anos e ajudaram a desvendar e compreender um pouco mais a
respeito da história das mulheres; suas atitudes, seu comportamento perante uma
sociedade tão castradora, e ainda, a revelar os papéis vividos e estabelecidos num
determinado tempo e espaço, revelar uma história que caminhou paralelamente à do
homem.
1.4 A constituição do universo feminino
Para estabelecer a possibilidade de que existe um universo feminino, é
necessário reconhecer o seu oposto, o universo masculino. Mulheres e homens são
diferentes, e essa concepção tão visível foi ao longo da história o fator predominante
que gerou inúmeras formas de estabelecer referências entre os dois seres. Seja na
atuação política, social ou conjugal, seja nas relações com o outro, o ser diferente
serviu para que as práticas sociais marcassem o papel de cada um.
Desde a origem da espécie humana, ao homem compete a tarefa de
alimentar a família, proteger os filhos e a mulher, trabalhar para manter o bem-estar
de todos. Assim, ao homem é oferecido o mundo externo, a exploração do espaço
39
que está fora de sua casa, o que sempre lhe oportunizou uma participação política e
social mais intensa.
À mulher coube a procriação, ter filhos, educá-los e assim propagar a
espécie. Seu mundo ficou reduzido ao lar, aos afazeres domésticos, o que lhe
possibilitou maior contato com os filhos. As tarefas destinadas à mulher nem sempre
exigiam força física, mas requeriam coragem, determinação, sensibilidade, ao
possibilitar a troca de experiências nas relações com o outro, tornando-a mais
sensitiva. Já afirmava Meneses (2001:21): “É no contexto de uma relação afetiva
que se flagra o fundamental do feminino”.
Essa mesma mulher educa meninos e meninas e já distingue na sua
educação o papel que cada um deverá exercer, prepara-os conforme os modelos
estabelecidos socialmente: brincadeiras de meninos são diferentes das de meninas,
isso é permitido para os meninos e não para as meninas, roupas para meninos e
para meninas... As diferenças continuam e as crianças devem reconhecer e aceitar
o seu sexo; será encaminhada para um crescimento e terá autonomia conforme seu
sexo, o que influenciará também o meio social e cultural de seu tempo, moldados
pelos adultos que perpassam e se impõem como modelos.
Pode-se constatar que em sociedades primitivas essa organização é
diferente. Existem tribos em que as mulheres têm uma vida mais ativa e participativa
no grupo, outras nem tanto, há outras ainda que reconhecem às mulheres igualdade
ou superioridade. Enfim, os costumes variam de um tipo de cultura para outra.
Mas quem preparou e designou os papéis do homem e da mulher na
sociedade? Pode-se encontrar uma resposta nas pesquisas realizadas por Simon
(1976:25), que declarava:
Não foi a luta dos sexos, um contra o outro, mas a necessidade de enfrentar
um conjunto de tarefas, igualmente urgentes para a sobrevivência da
espécie, tarefas para as quais quer o homem, quer a mulher encontram-se
mais bem preparados por sua constituição e sua função fisiológicas.
Assim, a mulher passa a ter um papel complementar na sociedade composta
e formada pela força masculina. E como se constitui o seu universo? A partir do
espaço que a sociedade reserva-lhe, a mulher molda sua história, ora passiva ora
defensora de seu grupo, entre a omissão e a coragem, observa e reconhece as
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mudanças contínuas pelas quais passa toda sociedade e nesse compasso começa
a se organizar para reivindicar um novo papel e um novo espaço.
O universo feminino é produto de fatores sociais e circunstâncias históricas,
firmados num determinado tempo. Nesse contexto, a figura feminina busca seu lugar
e sua identidade. Segundo Lobo in Silva (1993:120): “É possível o conhecimento de
que a qualidade feminina vem da admissão de que ser mulher faz parte de um
caminho, de uma história. E que, como toda história, é escrita no desconhecido e
lida a posteriori”.
O estereótipo de seres frágeis, dependentes, inferiores, sem vida própria e
incapazes de liberdade e de autonomia, já não vigora com tanta força. Seu universo,
hoje, não está configurado em apenas parir, criar, cuidar, coser, servir ao seu marido
e permanecer no espaço lar, ele amplia-se e ganha outras formas de estar no
mundo e de ser.
A luta feminina não é pela diferença e sim pela igualdade, não a igualdade do
outro, a imitação de um pelo outro, mas aquela que permite aos homens e mulheres
aspirações e desejos individuais, porém idealizadores de situações vividas que
exijam a colaboração dos dois sexos e que os levem a tornarem-se mais humanos.
O universo feminino é o retrato do que o homem permitiu à mulher, e mais do
que isso, é o próprio universo constituído pelo ser mulher. Definir esse ser não é
tarefa fácil, porém há alguns aspectos que se aproximam do território feminino:
vínculo com a natureza, atenção às relações humanas, intuição como forma
desenvolvida de percepção. É óbvio que não são características exclusivas do sexo
feminino, mas há que se concordar que se revelam com maior predominância e
constância nas mulheres. Conforme dizia Oliveira (1993:108):
Não há como nem por que conceituar a cultura feminina, mas há sim como
tocá-la, percebê-la, intui-la, talvez. E saber que dela, desse universo fluido e
fugidio, pode vir um enriquecimento certo e seguro para o diálogo humano.
Ela falará, por exemplo, de melhorar a relação entre as pessoas, de melhor
entender os mistérios dessa relação, mistérios tão ou mais densos que os
mistérios da natureza. Falará de mais reciprocidade entre nós e a natureza,
pois que entre as mulheres e a natureza há uma relação ancestral que se
pode transmutar em nova aliança.
A diferença entre o homem e a mulher é o elemento que revela a existência
de um universo feminino. Um corpo que faz experiências histórica e social, um ser
41
que faz cultura, que lança a mulher aos centros do saber e do poder, possibilitando
se fazer ouvir e existir: corpo e alma, juntos constituindo valores para a formação da
identidade feminina que hora surge em todas as esferas e dimensões da vida social
para pertencer ao grupo.
Faz-se necessária a exploração de dois tópicos que complementarão essa
análise ao universo feminino: o gênero e o sexismo.
1.5 O gênero
As diversidades entre homens e mulheres remetem à noção de sexo.
Socialmente surgem inúmeras explicações sobre diferenças entre homens e
mulheres baseadas nas distinções de sexo e centradas, na maioria das vezes, nas
diferenças físicas. Todo ser humano nasce com características que são específicas
para homem e mulher; exemplo disso é a capacidade de procriar das mulheres.
Elas representam o corpo, a reprodução da espécie, a natureza. Eles
representam o social. Essas características, embora variem em algumas
sociedades, são usadas como referenciais na construção de um conjunto de
representações sociais, culturais, de valores e atribuições sociais. Aquino (1998:96)
estabelece uma definição de gênero:
O gênero começou a ser utilizado como uma maneira de se referir à
organização social entre os sexos, de insistir no caráter fundamentalmente
social das distinções baseadas sobre o corpo, e de destacar o caráter
relacional das definições normativas da feminilidade e da masculinidade,
isto é, mulheres e homens passam a ser definidos em termos recíprocos.
Gênero remete, portanto, a uma tentativa de incorporar, na análise,
aspectos que são socialmente construídos, observando que cada cultura
define o que é masculino e feminino. Ou seja, trata-se de definições
mutáveis que podem e, por vezes, devem ser alteradas.
Assim, cada sociedade organiza sua divisão de trabalho firmada no princípio
das diferenças, ao considerar também a tendência praticada socialmente que
estabelece a separação da vida social entre homens e mulheres; cabe ao homem a
política e o mercado de trabalho, portanto a esfera pública; e a mulher a esfera
privada, doméstica.
42
A medicina, as ciências biológicas e a antropologia colaboraram muito para a
expansão dessas normas sociais, devido às explicações que justificavam as
desigualdades entre homens e mulheres. O homem teria uma composição biológica
que favorecia a caça, e a mulher, o cuidado com os filhos e a coleta de alimentos. A
força física passou a ser um referencial masculino que conduzia o homem ao seu
papel de líder do grupo. A base da identidade masculina era construída sobre a
força física e a virilidade. Já a mulher tinha sua base identitária em seu papel
reprodutivo, sendo, portanto, fêmea, nutridora, maternal, centrada no domínio da
família. A própria história registrou fatos em que esses padrões precisaram ser
rompidos, e relações de aliança e cumplicidade, amor e amizade foram
fundamentais. Perrot (1998) registrou que na Europa, em tempos de guerra, os
homens foram para as frentes de batalhas, enquanto as mulheres tiveram de invadir
espaços que nunca ocuparam: dirigir bondes e táxis, trabalhar em usinas e fábricas;
no campo, lavraram e venderam gado em feiras. Quando a guerra acabou, as
mulheres devolveram os lugares aos homens e retornaram a seus lares.
É fato que nesses aspectos muitas transformações já ocorreram nas relações
de gênero. As sociedades atuais exibem um quadro diferente, no qual homens
dividem com suas companheiras o cuidado com os filhos, as tarefas da casa e até
mesmo o orçamento doméstico. As mulheres não são mais vistas somente no lar;
ocupam cargos antes previstos apenas para homens, participam de decisões na
esfera pública, ou seja, em todos os aspectos políticos e sociais, com todos os
direitos e deveres que antes eram aprovados somente aos homens. Ainda assim,
masculino e feminino se definem por uma relação que privilegia as diferenças, como
se fossem sinais determinados a conduzir o percurso de cada ser.
O refrão da diferença sexual aparece como alicerce da própria cultura em
diferentes tipos de sociedade; ao marcar modos de organização e de relações entre
os seres, deixa de se observar que cada ser se define não somente em função de
suas relações com o outro sexo, mas em função de relações que estabelecem com
os outros, com as coisas e com o mundo.
A existência da separação e da diferença emerge como princípio modelador
da imagem e da função de cada sexo. Não importa o que cada ser adquira em suas
experiências pessoais tampouco que variem os conteúdos do universo de cada
43
sexo, o que se evidencia é o fato de que toda cultura mantém, de uma forma ou de
outra, acesa a chama desse dualismo sexual. Para Simon (1976: 53):
As indicações da anatomia e da fisiologia separam nitidamente os dois
sexos; os modelos sociais, propostos pelas civilizações ou pelos grupos sob
a forma de imagens coletivas do homem e da mulher ou de papéis a
realizar, tendem mais ainda a diferenciar, mesmo a opor a existência dos
homens e das mulheres.
Institui-se um mundo de homens e mulheres, lado a lado, mas com traços
distintos que se tornam cada vez mais evidentes. Homens que observam as
mulheres como um “outro” e vice-versa; cada qual desenvolve sua própria
psicologia, sua sociabilidade, seu jeito de ser e de estar no mundo. O traço essencial
está no fato de que todo homem e toda mulher é antes de tudo um ser humano,
porém essa característica, na prática social, parece estar dissolvida e só é oportuno
lembrá-la em contextos mais específicos, os quais necessitam de uma
representação mais abrangente. Para Oliveira (1993:143): “Dissolver e fundir
homens e mulheres, masculino e feminino, no magma de uma natureza humana
indiferenciada é romper a própria dinâmica da vida”.
1.6 O sexismo
A princípio, a cultura masculina construiu representações das mulheres como
sendo seres inferiores, alheias aos problemas sociais, frágeis, mais instintuais que
os homens; nelas a natureza guardaria seus direitos de permanência, de
regularidade. O discurso masculino sempre definiu o que é uma mulher, seu lugar,
seu papel, sua imagem e identidade e as dissidentes desses modelos eram
rejeitadas para fora do campo de visibilidade social.
As mulheres obtiveram um lugar diferenciado na cultura humana. O seu
confinamento na relação limitada com alguns aspectos do meio ambiente
transformou-se em desigualdade de status e de poder. As representações
ideológicas e mitológicas confirmaram a existência dessa hierarquia, marcada pelas
diferenças que se iniciavam no corpo. Assim, a existência feminina esteve atrelada à
natureza, pautada na permanência e regularidade, levando-a então à condição de
dominada e o homem à condição de dominador. Essa condição explicava-se e
44
mantinha-se somente por uma determinação sociocultural e por fatores biológicos. A
sociedade reproduziu esses conceitos e criou estereótipos. Simon (1976:33)
afirmava que: “O estereótipo é uma espécie de clichê mental coletivo, carregado de
tradições, de saudosismo, de aspirações insatisfeitas que crêem exprimir-se
racionalmente em um julgamento de conjunto”.
Portanto, cada cultura oferece à mulher e também ao homem uma imagem
deles mesmos, um estereótipo; imagem concebida e expressa pelos próprios
homens e que separa os indivíduos em categorias.
O espírito de dominação não é uma exclusividade do ser homem, existem
mulheres que são dominadoras, líderes, que seguem a frente do grupo; assim como
a submissão ou a doação de si, não é uma exclusividade feminina. Ambas são
formas de estar no mundo que podem ser vivenciadas independentemente do sexo.
A origem dessa hierarquia é ainda um ponto obscuro, o que fez o masculino se
transformar em autoridade política e social, impondo seu modelo às dimensões da
convivência humana, não é fato que se possa justificar.
As desigualdades vivenciadas e aceitas pelos membros do grupo favorecem
as relações de subordinação de gênero, e produzem os preconceitos diversos. Não
há como não as reconhecer, mas não se pode renunciar à idéia de igualdade, ao
menos como um desejo político de que as relações entre os sexos não se baseiem
na desigualdade e na subordinação de um pelo outro.
Reforça-se a desigualdade quando não há posição crítica diante de atitudes
preconceituosas. Há um processo de acomodação e resistência pertinente às
atitudes e aos comportamentos definidos para homens e mulheres, o que dificulta a
possibilidade de ruptura e de construção de novas definições do que está, e é
socialmente concebido como masculino/feminino.
As relações que denotam subordinação: adulto/criança, homem/mulher,
mulher/homem, adulto/idoso; são fortificadas por um discurso que insiste em se
impor e que aparece em vários contextos, ora para ironizar ora para desprestigiar
um ser dentro da relação. Exemplos: “criança e velho não têm querer” / “mulher só
pilota fogão” / “fórmula do casamento duradouro: sopa quente, sexo sempre” ...
Entende-se que não há pensamento sem representação. E As
representações sociais são mutáveis. A todo o momento, formulam-se novas idéias,
45
noções, valores e imagens como resultado das relações com o meio. É comum que
as diferenças e o preconceito façam parte do cotidiano, visto que a conduta é
apoiada num conjunto de representações sociais.
Seria interessante investir em uma educação que tivesse como proposta a
possibilidade de investigação e de descobertas de novas relações que até então não
foram percebidas, possibilitando assim a produção de novos sujeitos.
Colaborarão para a compreensão da constituição do universo feminino,
considerações a respeito do ethos, pois reúne características que contribuem para a
construção do eu e de identidades sociais.
1.7 Ethos feminino
Deliberadamente ou não, ao efetuar um discurso o orador realiza uma
apresentação de si. Suas crenças, seu estilo, sua competência lingüística, seu
vocabulário, são elementos suficientes na construção de uma representação de sua
pessoa. Essa apresentação se efetua nas trocas verbais corriqueiras e mais
pessoais. Essa imagem de si que se constrói no discurso é designada pelo termo
ethos.
A intenção do falante é criar uma boa imagem de si por meio de sua fala, nem
sempre se importando se o discurso é verdadeiro ou não; basta lembrar do discurso
político, por exemplo. Em Imagem de si no discurso, Amossy (2005:10) destaca: “Os
antigos designavam pelo termo ethos a construção de uma imagem de si destinada
a garantir o sucesso do empreendimento oratório”.
É possível reconhecer qual foi a imagem da mulher no contexto social de
algumas décadas ou séculos passados. Mas que imagem ela teria de si? A imagem
que cada um faz de si mesmo é influenciada por diversos fatores: a cultura, a
educação, a pressão social, e ainda pelos anseios e desejos do grupo ou do
indivíduo, portanto não é difícil concluir que para a mulher, a submissão a moldou
por um longo período.
A princípio, a trajetória das mulheres na sociedade foi modelada por um
discurso masculino, que contribuiu para gerar o estereótipo da mulher ideal; porém
com as mudanças ocorridas nas diferentes esferas sociais, o discurso feminino
emergiu com o intuito de promover mais modificações.
46
Essas mudanças puderam ser constatadas nas mais diversas áreas de
atuação do universo masculino. A mulher passou a mostrar a sua voz, o seu corpo, a
sua alma; como se descortinasse e se mostrasse mulher. E foi por meio de seu
discurso que o feminino apareceu para traçar uma nova trajetória na sua história.
Como já assegurava Oliveira (1993:70):
O movimento feminista foi o fio que permitiu às mulheres tecerem um novo
desenho na trama do social. O desvio não é uma disfunção parcial e
passageira que deve ser corrigida, mas um processo fundamental da
existência das sociedades. É o acontecimento inesperado sobre o qual
repousam o crescimento e a complexificação do sistema social.
O impulso que levou as mulheres a reivindicar seu espaço no mundo
masculino foi motivado por várias situações: o desejo da independência econômica,
o acesso ao saber, a novas instruções, a novas experiências, à convivência com o
outro, o direito a fazer e a rever escolhas sexuais, o controle de seus corpos...
Para isso, o discurso feminino ousou com firmeza em seus ideais e
convicções, e a mulher precisou construir-se forte; tarefa nada fácil a uma sociedade
ainda preconceituosa. Foi preciso esquecer e desviar as comparações (universo
masculino x universo feminino), fazer-se ouvir e ser compreendida por meio de
ações e ainda articular um discurso mais autônomo, que lhe permitisse transitar num
universo de valores, em cultura feminina, próprio e diferente, fundamentado numa
proposta de igualdade.
Chegava o tempo de dizer à sociedade que todo trabalho oriundo da força
feminina, até então desvalorizado porque gratuito, poderia ser dividido com o
universo masculino, sem que isso menosprezasse ou diminuísse alguém. Chegava o
tempo da linguagem, de poder dizer e encontrar a força da palavra.
Assim, a imagem que a mulher constrói de si, vem desenhada em seu dizer,
somada às suas atitudes, às suas vestes, aos seus movimentos, à postura que tem
ou apresenta em diferentes situações. Ela é atualmente a mulher do lar, do mundo
dos negócios, a aventureira, a prostituta, a amante, a mãe, a religiosa, enfim, tudo o
que queira ser.
Ao tratar da noção retórica de ethos à análise do discurso, Amossy (2005) cita
a posição de Benveniste ao introduzir a noção de “quadro figurativo”, na qual a
enunciação, como forma de discurso, apresenta duas figuras necessárias, uma que
47
emite o enunciado e a outra que o ouve. Durante o discurso o emissor faz uma
imagem de si e de seu interlocutor e reciprocamente, o interlocutor faz uma imagem
do emissor e de si mesmo.
Amossy (2005) menciona as pesquisas realizadas por Erving Goffiman, numa
perspectiva interacional e que destacam a produção de uma imagem de si nas
interações sociais e o quanto essa interação contribui para que os atores forneçam
uma impressão de si mesmos que os auxilie a influenciar o outro do modo desejado.
Para investigar o ethos na análise do discurso, Amossy (2005) destaca os
trabalhos realizados por Dominique Maingueneau, para o qual a noção de ethos se
desenvolve de forma articulada à cena de enunciação. O discurso comporta uma
distribuição preestabelecida de papéis, cabe ao locutor escolher sua cenografia.
Exemplifica com o discurso político, no qual o candidato pode falar a seus eleitores
sob diferentes ângulos: como homem do povo, como homem experiente, ou como
tecnocrata.
A maneira de dizer constrói uma imagem de si, na medida em que o locutário
se vê obrigado a depreendê-la, contribui para estabelecer a inter-relação entre o
locutor e seu parceiro. A imagem pode causar impacto, favorecer a sua adesão ao
discurso, quando as palavras são colocadas de maneira eficaz.
Permite-se concluir que o discurso feminino, construído com intencionalidade,
colabora na construção de uma nova imagem do feminino, consente à mulher ser
reconhecida como sujeito social.
Os capítulos que seguem, trazem a análise narrativa e a análise crítica de
dois textos que constituem objetos de estudo deste trabalho, ambos escritos por
mulheres; visa-se buscar elementos auxiliadores na identificação da construção do
conflito num universo feminino. Os textos são intitulados “Amor” e “Venha ver o pôr-
do-sol”, de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, respectivamente.
48
CAPÍTULO II - ANÁLISE DO CONTO: AMOR
2.1 Modelo de análise
Este capítulo apresenta o modelo de análise baseado, primeiramente, na
estruturação da narrativa: seus aspectos organizacionais e seus percursos
narrativos, nos quais serão descritos os itens da organização macroestrutural; e
ainda a modalização das atitudes das personagens.
Em seguida, faz-se uma análise textual baseada na teoria de Fairclough em
ACD, que destaca a estrutura interna do texto, sua organização global, com intuito
de fornecer uma dimensão crítica à análise do texto.
Para tanto, contribui com um modelo textual centrado nas propriedades
analíticas de textos que estão ligados às formas como as relações sociais são
exercidas e as identidades sociais são manifestadas no discurso, bem como os
aspectos da análise de texto que se relacionam com a função ideacional da
linguagem e aos significados ideacionais. O capítulo III também apresentará o
mesmo modelo de análise. O texto ora analisado é intitulado “Amor”, de Clarice
Lispector.
2.2 O conto: “Amor”
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana
subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-
se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam
banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha
era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no
apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas
que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa,
olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha
na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua própria
49
conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus
filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de
fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo,
tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que
plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No
entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era
de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando
estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há
muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo
decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto
que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma
aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E
isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de
mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com
quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros.
Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia
aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia:
abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como
quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana
antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação
perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em
troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e
escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando
a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família
distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava
um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura
pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa
lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para
consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da
tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua
50
tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava
os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a
ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E
alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e
escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais
úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana
respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar.
Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os
outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham
avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma
coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um
homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo
que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada,
olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma
na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como
se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma
mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu
uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô
despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de
parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros
olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se arrumava pálida.
Uma expressão de rosto há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda
incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas
os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas
pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as
mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos
foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o
bonde deu a nova arrancada de partida.
51
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos
trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A
rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer
com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao
redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade
a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do
acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O
mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas
escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram
periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e
por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para
onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas
com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com
que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado,
tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia
prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar
empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura
sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as
pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora
de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um
empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana
caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.
Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as
roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o
filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego
mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma
vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na
fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas
52
débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não
conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de
medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que
descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-
lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um
pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava apressadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia
ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um
atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela
adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos
ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas
entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde.
De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido
de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia
se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos
eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no
chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter
caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela
começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços
secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco
estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas.
No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do
mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que
pensávamos.
53
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os
dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por
parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse
uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando
Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à
garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra.
Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um
mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas
flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau
ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as
pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados
pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais
adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve
medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na
sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante,
e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada,
ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho
obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua
impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a
madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.
Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A
piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu,
sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as
maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava —
que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora
pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou
correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a
abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era
54
periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do
mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago
sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a.
Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal
— o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de
tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O
que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e
ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as
costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe,
chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe
mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e
correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que
jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha
vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e
a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que
tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se
enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem
pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado que
lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com
horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar
a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria
apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada.
Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos
ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora
verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas
era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,
estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como
um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os
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olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja.
Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a
empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão,
onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o
horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho
secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O
pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na
água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros
inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror.
Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em
torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma
noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria
o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos
irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia,
ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom.
Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era
verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente
com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas
janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não
discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam de tudo, com o coração bom e
humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma
borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse
seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela
era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente.
O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até
envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas
com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as
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vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim
Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou
correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a
si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele
sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa
tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de
dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural,
segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do
perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do
espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como
se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
2.3 Análise da estrutura narrativa.
Após apreciações sobre o universo feminino, considerar-se-á neste capítulo a
escrita feminina no tocante à caracterização do conflito, ou seja, como se constrói o
conflito em narrativas femininas. A escrita nas narrativas deve seduzir, transgredir
normas, invocar o imaginário. Que objeto melhor para análise que as ciladas textuais
de uma mulher?
Contar histórias significa ter disposição para vivê-las, o que requer o
enfrentamento de papéis femininos, ainda que a escritora não se conforme com eles.
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Por meio da escrita é possível experimentar, em suas múltiplas possibilidades, e
revelar o gosto, o desgosto, o medo e o que incomoda.
O gênero feminino carrega uma espécie de poder, de que a mulher pode
usufruir e tirar proveito como escritora, já que, como se observou nos capítulos
anteriores, por muito tempo, a sociedade quis excluí-las da posição de sujeito, sob o
domínio de um poder patriarcal.
Sabe-se que a escrita feminina nem sempre é feita por uma mulher, há
grandes escritores que têm sua escrita enquadrada nessa categoria. Porém, a
condição de ser mulher implica e garante uma maior familiaridade com o que
nomeamos “feminino”, que, mesmo não sendo exclusivo, lhe é próprio. Peixoto
(2004:18) já denunciava em suas pesquisas, características de Clarice Lispector em
sua luta com o gênero e a narrativa.
Desafiando limites e cortejando o excesso, ela invoca uma força dionisíaca
em sua tentativa de pôr em xeque as expectativas de papéis associados ao
sexo, aos gêneros literários e às formas narrativas estabelecidas,
quebrando-lhes a fixidez. Com isso, pretende autorizar uma escrita que não
só represente a vida de mulheres como muitas vezes afirma ser ela mesma,
a escrita, movida por forças especialmente acessíveis às mulheres.
É importante ressaltar que desde os anos 1970, a produção literária escrita
por mulheres se impôs à crítica e despertou interesse não só pela literatura infantil e
juvenil, como também pela literatura da negritude. Segundo Coelho (1993), foi
inegável a emergência do diferente, das vozes divergentes, oprimidos pelo sistema
de valores dominantes. Foi na área da ficção que a ruptura com o tradicional e a
busca pelo novo surgiu de forma contundente. Questionar a maneira de seu estar no
mundo, deixar os temas absolutos e dar lugar às sondagens existenciais, redescobrir
o mito ou a história, foram propósitos que dinamizaram uma significativa produção
literária empenhada na busca da identidade do ser mulher.
Nesse contexto, o ser mulher interrogou as realidades, buscou e lutou com as
palavras no encalço de um novo conhecimento do mundo e dos outros e, mais que
isso, buscou a mulher o conhecimento de si mesma e dos mistérios que circundam a
vida.
Clarice Lispector destacou-se com contribuição definitiva para a renovação da
ficção brasileira atual. A crítica atenta reconheceu de imediato a originalidade e
58
grandeza de sua obra. Coelho (1993) cita Sérgio Milliet, em 15 de janeiro de 1944,
no jornal Diário Crítico-II, p.32, quando, ao comentar a respeito da obra inaugural de
Lispector Perto do coração selvagem, concluía:
A obra de Clarice Lispector surge no nosso mundo literário como a mais
séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor
nacional vai além, nesse campo quase virgem da nossa literatura, da
simples aproximação.(...) Penetrar até o fundo da complexidade psicológica
da alma moderna, alcançar em cheio o problema intelectual, vira no avesso,
sem piedade nem concessões, uma vida eriçada de recalques.
Neste conto “Amor”, Clarice Lispector, por meio da personagem Ana, permite
ao leitor a descoberta de que todas as pessoas são prisioneiras de um mundo de
aparências, estratificado em rituais rotineiros, convencionais e irredutíveis, pois é
preciso manter o funcionamento do sistema social, que condena o indivíduo a ser e
estar no mundo de um modo inconsciente, quer dizer, submisso a um sistema que
nem sempre oferece possibilidades para a autodescoberta. Ana reconhece o que a
aprisiona, mas se afasta, sem coragem de assumir uma nova maneira de estar no
mundo.
Coelho (1993) comenta sobre duas posturas conflitantes no pensamento
contemporâneo: sentir ou pensar a vida? Manifestadas nos primeiros romances e
contos de Clarice Lispector. Ana, personagem do conto, inclui-se no sentir apenas e
como tantas outras personagens de suas obras, vive a mesmice diária,
absolutamente alienada de suas possíveis verdades – a não ser em súbitos
momentos de revelação que logo se desvanecem. Coelho (1993:184) conclui:
É através dessa perspectiva da leitura que se torna mais fácil
compreendermos a grande arte clariceana, cuja coerência orgânica resulta
de um perfeito amálgama entre a problemática universal e a sua verdade
íntima, cada vez mais aprofundada nos desvãos do seu ser- em- si em
busca do ser-com-os-outros, em um nível de integração que ultrapasse de
muito o mero convívio superficial cotidiano ou social.
A obra de Clarice Lispector revela uma longa aprendizagem existencial e
criadora que testemunha a crise das certezas e incertezas vividas pelo homem. Os
textos analisados são registros de impressões femininas que nortearam esta
59
pesquisa, no tocante à criação da expectativa para identificação do conflito no
universo feminino.
Em “Amor”, de Clarice Lispector, o percurso narrativo esquematiza-se assim:
P----------------------------------------------------------------------ÆO
Ana vida familiar
Há uma mulher (Ana), protagonista, que durante o percurso da história tem
como objetivo manter uma suposta felicidade, centrada em sua vida familiar.
A modalização da sua atitude revela uma mentira:
ser + parecer = mentira,
Ana não é, mas representa um papel social e tenta mostra-se feliz, o que denota sua
mentira, pois sabe que não é feliz.
Ao deparar-se com um cego, ocorre um momento de revelação crucial, a
personagem ganha, de repente, a consciência de seus desejos reprimidos. É um
momento em que a consciência altera-se, Ana compreende o seu aprisionamento,
gera-se o que ela denomina como a crise, ao deixar à mostra a culpa e o medo que
a acompanham, o questionamento de seu papel convencional. O cego proporcionou-
lhe uma visão apavorante de seu destino. O percurso narrativo ganha um obstáculo,
no qual se instaura o conflito:
P------------------------------------------------------------------------------ÆO
Ana Opositor : Infelicidade
Fluxo de consciência
O percurso conta agora com um obstáculo, um problema que necessita ser
questionado e resolvido. Embora Lispector atribua papéis femininos tradicionais às
suas personagens mulheres; nesse caso, Ana é o estereótipo da mulher frágil, dona
de casa, mulher dedicada, que busca equilíbrio e realização em seu casamento;
revela também que as ambições e os desejos são diferentes e existem para esse
60
universo. Contesta esses papéis tradicionais e mostra que a lealdade aos outros
impõe um preço alto para aquelas que aceitam desempenhar tais papéis. É a
instituição da família que sustenta essa personagem, ao mesmo tempo em que a
aprisiona.
Teria Clarice Lispector escolhido o nome da personagem Ana na tentativa de
aproximá-la a um anjo? Pela forma com que Ana aceita, resignada, as implicações
de sua vida, não é difícil acreditar que para ela era mais fácil ser um anjo ou ser
designada uma santa do que ser humana. Santa Ana, cujo nome em hebraico
significa graça, teve seu marido censurado por não ter filhos. Já idosa e estéril
possuía como características marcantes a paciência e a resignação, tal qual a Ana
de Lispector ao enfrentar os revezes de sua vida. O casal estéril, confiante no poder
divino, algum tempo depois, alcança a graça e Santa Ana engravida, recebe por filha
aquela que havia de ser a mãe de Jesus. A personagem Ana encerra seu dia,
resignada, aguarda uma graça em sua vida.
Quanto ao conflito gerado, é próprio do universo feminino e surge a partir de
uma situação aceita pela personagem Ana: desempenhar o papel imposto pela
sociedade, mesmo tendo em seu íntimo a sensação de que a mulher requer algo
mais, e ainda, que abdicar de seus sonhos e vocações fizeram-na infeliz. É a sua
postura diante do mundo a partir de uma perspectiva interior. O mundo representado
por uma sociedade que a marginaliza, que não lhe permite mostrar-se tal como é,
não revela o seu íntimo. Neste ponto, a modalização de sua atitude enfatiza uma
verdade: ser + parecer = verdade. Ana parece e está infeliz, portanto, sua única
verdade revelada é ser infeliz.
O conflito está presente em Ana, em sua consciência, na própria essência de
seu existir, na força que a empurra a desempenhar um papel que a aprisiona. Só a
mulher permite-se adentrar no íntimo do que é humano, pois possui sensibilidade e
observa o mundo com um olhar mais propenso a considerar o sentir, a emoção mais
que a razão, as relações com o outro e com o universo. A sua própria condição
permitiu-lhe apropriar-se desses atributos. Esteve sempre próxima à natureza,
adquiriu habilidades que acentuaram sua intuição, evidenciando a subjetividade.
A crise dramatiza os campos de força que movem a consciência de Ana, há o
impasse entre o que ela é e o que deixa de realizar, ou seja, o que poderia ter sido.
A expectativa criada pela narrativa sugere que mediante tal crise haverá um
61
confronto, uma ação que liberte a personagem para que assim alcance seu objetivo:
ser feliz.
O conflito, portanto, é revelador ao leitor, mas para a personagem é só o
momento no qual ela coloca em xeque a sua realidade; pois, em seguida, ela retorna
em busca de um refúgio, retira-se à procura do espaço que possui, seu espaço: o
seu lar. Essa fuga é uma tentativa de aplacar seu fluxo de consciência. O percurso
narrativo passa a ser representado assim:
Auxiliar: aplacar o fluxo
P-----------------------------------------------------------------------------ÆO
Opositor: fluxo da consciência vida familiar
Não ocorre o enfrentamento ou uma possível revolta, nenhuma transgressão
que a liberte para um outro papel. As pressões sociais, a vida em família, embora
proporcionem às mulheres a satisfação dos laços afetivos, também as restringem ao
papel subordinado de atender, primeiramente, às necessidades dos outros,
privando-as de realizar seus desejos pessoais.
Ana reencontra-se com a verdade, a de que sua dedicação à família exclui
qualquer possibilidade para si mesma. A personagem não se rebela, o que os
leitores talvez aguardassem ou quisessem, simplesmente retira-se em busca da
suposta proteção que o âmbito familiar lhe oferece.
A indiferença com que aceita o seu destino espelha para Ana as suas
próprias limitações, coloca-a diante da verdade: a falta de liberdade pessoal na vida
que escolheu. O percurso narrativo poderia ser retratado desta forma:
Auxiliar: retorno ao lar como fuga
para aplacar o fluxo
P---------------------------------- ----------------------------------------------------ÆO
Ana Opositor: fluxo de consciência Infelicidade
62
Ana não atinge seu objetivo, não demonstra possuir coragem necessária para
enfrentar os possíveis reveses que um novo papel lhe traria, continua assegurando
sua modalização:
ser + parecer = mentira, ou seja, não é, mas parece ser feliz.
Constata-se a influência e o poder que as regras sociais impõem aos papéis
femininos. Não há como negar que a mulher utiliza-se da escrita para mostrar essas
forças sociais e o quanto elas interferiram no ser mulher.
No conto “Amor”, a escritora desenha a sociedade da época, retrata o seu
poder e sua influência na vida da personagem Ana. Revela ainda que o papel
escolhido por Ana foi, na verdade, imposto pela sociedade. Se por outro lado Ana
recusasse desempenhar esse papel, teria forças suficientes para se impor, ser
aceita na sociedade, desempenharia uma profissão e seria feliz? Esse era o desafio
que Ana não ousou vivenciar. Tem-se uma narrativa com desfecho de fracasso.
P-----------------------------------------------------------------------------------ÆO
Ana vida familiar
infeliz
No conto, a liberdade que Ana almeja não acontece, mas instiga e mexe com
os conceitos e o pensar do leitor, ao revelar a intenção da autora, que ao tecer um
mundo tão real e conflituoso, descortina a face de uma sociedade que limita e
aprisiona os papéis femininos.
2.4 Análise crítica do discurso
O Controle Interacional é uma dimensão da estrutura textual, e tem como
característica garantir que a interação funcione num nível organizacional, pertencem
à construção das relações sociais e do eu. No conto “Amor”, aparecem poucos
diálogos, os primeiros entre Ana e seu filho e, posteriormente, entre Ana e seu
marido. A primeira interação acontece com Ana abraçada ao filho:
63
“__A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta.”
“__Tenho medo.”
“__Mamãe, chamou o menino.”
“__Não deixe mamãe te esquecer.”
Nessa seqüência de enunciados, Ana deixa transparecer a sua necessidade
de proteção. Demonstra uma fragilidade que ao mesmo tempo em que a convida
enfrentar outras realidades, traz-lhe também a possibilidade de transformação, uma
mudança tão perturbadora que a aproxima da loucura: Ana teme esquecer seu filho.
O tópico sugerido é uma reflexão sobre a vida e o quanto viver implica um processo
doloroso, sofrido, o que causa medo à personagem.
As marcas de controle de interação aparecem em sua última fala “não deixe
mamãe te esquecer”. Em sua súplica, tenta partilhar a responsabilidade da
manutenção dos laços afetivos entre ela e o filho. O filho chama-a, como se
quisesse trazê-la ao estado normal, quer reconhecê-la, e logo em seguida esquiva-
se, busca refúgio em seu quarto. Há um policiamento de agenda, um mecanismo de
defesa manifestado pelo silêncio. O olhar que o filho remete à mãe, descrito como
confiante, devolve a Ana sua condição de fragilidade.
Nesse discurso as relações mãe e filho invertem-se. Na prática social cabe à
mãe proteger os filhos. Na situação descrita a mãe recorre ao menino e manifesta
seu desejo de proteção, está implícita a idéia de que os homens são mais fortes,
portanto, devem amparar e proteger as mulheres, condição instituída socialmente. A
mãe reafirma por meio de suas ações e palavras essa proposição e, de certa forma,
impõe-lhe o papel que terá de representar por ser homem.
No discurso com seu marido a personagem grita ao fazer a primeira pergunta.
Essa entoação já é indício de seu desespero, de seu medo:
“__O que foi?”
“__Não foi nada, disse, sou um desajeitado.”
A resposta do marido já é enunciada com uma justificativa, ou seja, se ele é
desajeitado é natural que provoque pequenos acidentes. A seqüência dada à
interação revela uma Ana preocupada em perder o que acredita realmente possuir:
64
“— Não quero que lhe aconteça nada, nunca!”
O marido percebe a sua aflição e tenta tranqüilizá-la, lembrando-a de que na
vida tudo pode acontecer, inclusive um simples incidente como o do fogão.
“— É hora de dormir! É tarde!”
A palavra final é a do homem, cabe-lhe tirar de Ana todas as suas aflições.
Nas relações de poder, o homem enuncia a palavra final. O término da interação é
figurado, nesse trecho, como sendo uma forma de controle, de determinação.
Essas são as interações explícitas no texto. Há, porém, interações que são
manifestadas no decorrer de todo o texto, interações provocadas pela personagem
Ana no duelo entre o que ela vive e o que ela sente, no instante em que sua
consciência parece lhe revelar uma Ana adormecida.
A personagem desencadeia relações entre ela e sua própria consciência,
instaura-se o conflito:
P------------------------------------------------------------------------------------ÆO
Opositor: fluxo de consciência Vida familiar
“O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança?”
“Por quê? Teria esquecido de que havia cegos?”
“E o cego?”
Para cada indagação, a personagem tece dentro do percurso narrativo, as
próximas ações. A princípio perturbada com o que chama de crise, busca encontrar
o equilíbrio dentro do Jardim Botânico, até que ao olhar em seu entorno, começa a
perceber que também ali há uma decomposição profunda: “De onde vinha o meio
sonho pelo qual estava rodeada?” Percebe que o equilíbrio que buscara não existe,
só o encontrará quando apagar o que a transtorna: seu fluxo de consciência.
Auxiliar: Ida ao Jardim
P--------------------------------------------------------------------------------------ÆO
Ana Opositor: Fluxo de consciência Vida familiar
65
Na seqüência abandona o jardim, como se quisesse voltar ao seu mundo.
Retorna a sua casa: “Que nova terra era essa? E o cego e o belo jardim? De que
tinha vergonha?” Precisa livrar-se de seu conflito, retomar o equilíbrio, encontra uma
saída: abafar seus próprios pensamentos. Decide voltar a seu mundo, e, como se
despertasse de um sonho, desvanece aquilo que a perturba, o seu fluxo de
consciência, mais que depressa, retorna a sua vida, a sua casa, pois lá tudo volta ao
normal, tem seus afazeres, seus filhos, a proteção de seu marido, a casa é a
representação do amparo, da proteção de que tanto necessita para livrar-se de suas
crises.
Auxiliar: Retorno ao lar
P--------------------------------------------------------------------------------------ÆO
Ana Opositor: Fluxo de consciência Vida familiar
São as indagações de Ana, apresentadas por um narrador onisciente, que
promovem a tomada de turnos. Como participante dominante a personagem sugere
os tópicos: aceitação de sua posição, a desconfiança, o sofrimento, a piedade, o
desespero, o medo, o encontro consigo mesma, a vergonha, o viver. Todos esses
tópicos são relevantes para o desenvolvimento de um tópico geral. Nesse texto, o
tópico geral está contido nas descobertas da personagem que a levam a uma
reflexão profunda sobre sua vida.
Quanto à modalidade, é um ponto de intersecção no discurso, entre a
significação da realidade e a representação das relações sociais. O verbo ser, no
presente do indicativo; “A vida é horrível” mostra uma modalidade categórica, na
qual o falante demonstra não ter dúvida quanto à verdade de seu enunciado.
“— Tenho medo, disse. – Estou com medo!”
Nesse exemplo a modalidade é subjetiva, está explícita, a personagem deixa
claro o seu grau de afinidade com a proposição expressa. Os dois exemplos
demonstram a fragilidade da personagem perante a vida. Já no trecho:
“— Não foi nada, sou um desajeitado!”, há um indício de baixa afinidade
expressa no marcador de modalidade subjetiva (sou) mais o adjetivo (desajeitado).
66
Primeiro ele ameniza a situação “não foi nada” e em seguida justifica-se: “sou um
desajeitado!”
Nos exemplos:
“__Não deixe mamãe te esquecer!”
“__Não quero que lhe aconteça nada, nunca!”
A negação no início do enunciado é uma forma de expressar alta afinidade
com a proposição, é o mesmo que a afirmação “Mamãe deve lembrar de você/
Mamãe sempre lembrará de você!” e “— Você está protegido, nada lhe acontecerá!”
Demonstra ainda solidariedade e afinidade com a pessoa com quem se fala.
Uma pergunta com negativa antecipa uma resposta positiva. Há de maneira
implícita um pedido de proteção, é o que faz aplacar o fluxo, e a personagem não
quer vê-lo negado.
Nos diálogos com o filho “A vida é horrível...”, “Tenho medo...”, “Não deixa
mamãe te esquecer.” a personagem reproduz relações sociais e de poder, pois
explicita sua fragilidade feminina diante dos problemas do mundo. Recorre ao filho
como se lhe pedisse proteção. A polidez está relacionada à preservação da face
positiva, pois Ana admite seu medo e quer ser protegida.
Na interação com o marido, a preservação é a mesma. Ao dizer “Não quero
que lhe aconteça nada, nunca!”, está implícita a idéia de dependência, ao marido
nada pode acontecer porque ela necessita dele. O “não quero” não atribui à Ana
uma conotação de poder, mas sim de dependência. Essa relação de dependência
permite à Ana demover seu fluxo de consciência.
Na análise textual, o ethos constitui a identidade social do indivíduo, pois é
capaz de demonstrar os sentimentos e as atitudes dos seres humanos em relação
ao universo. Maingueneau (1993:138) afirma que o ethos não é dito explicitamente,
mas é mostrado:
O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz que é
simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está,
dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel que
corresponde a seu discurso, e não ao indivíduo “real”, (apreendido)
independentemente de seu desempenho oratório: é portanto o sujeito da
enunciação uma vez que enuncia que está em jogo aqui.
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O ethos da personagem principal é construído e mostrado nas escolhas que
são efetuadas pelo orador, neste caso, o narrador onisciente, que a apresenta por
meio de ações, movimentos e pensamentos, conforme os exemplos:
“Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de
vida”.
“Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se”.
“No fundo, Ana sempre tinha necessidade de sentir a raiz firme das coisas.”
“Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento...”.
“Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves
do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim”.
O narrador onisciente tece o perfil da personagem e no decorrer da história,
Ana conforma-se e aceita a posição de mulher na sociedade da época, a mulher que
foi criada para ser mãe, dedicada ao lar, à família.
Nos trechos que seguem:
“Incapaz de se mover para apanhar as compras, Ana se aprumava pálida”.
“A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente”
“Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco”
“O que chamava de crise viera afinal”
“Desviou o olhar depressa”
“Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa”
“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse...”
“Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto”
“Seu coração batia de medo”
O ethos que se instaura é de uma pessoa frágil, temerosa, com receio de tudo
e de todos, inclusive dela mesma, por isso quer aplacar o fluxo e voltar para casa.
Teme o momento no qual ela se depara com seus sentimentos e constata que não é
feliz. Nota-se que a autora do texto faz uma escolha lexical que conota o sentido de
debilidade: incapaz, pálida, sufocava, respirava pesadamente, crise, caíra, dolorosa,
fraqueza, atingia, batia. Nos trechos finais:
68
“Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre”.
“A vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco
de viver”
“Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula”.
“Tenho medo”
“Não havia como fugir”
“Um cego me levou ao pior de mim mesma”
“— Não quero que lhe aconteça nada, nunca”.
A participação da personagem, a sua postura diante dos fatos ocorridos, a
maneira como se manifesta e se apresenta, constroem um ethos típico da mulher
que necessita do homem para protegê-la. Esse papel tem início nas relações
estabelecidas entre pai/filha, posteriormente ganha força também nas relações entre
namorado/namorada, filho/mãe, até chegar à instituição do casamento no qual o
marido passa a assumir o controle da situação, arcando com as responsabilidades
de sustento, proteção e amparo.
Ana reproduz a condição de sexo frágil, de ser inferior perante o homem.
Nessa perspectiva, o sujeito é posicionado ideologicamente, à medida que incorpora
significações para manter as relações de poder. Possui ainda um discurso no qual
admite suas fragilidades, e atitudes que a afastam de tomadas de decisões; ao
estabelecer e permitir uma dependência total dos outros. Dessa forma, as ideologias
representadas nesse contexto tornam-se naturalizadas e alcançam o status de
senso comum. Ao observar a personagem, não aparece resistência ou tentativa de
luta para remoldar as práticas discursivas que pertinentemente colocam a mulher na
posição de frágil.
2.5 A constituição da realidade social
Nesta análise serão considerados os aspectos da análise de texto que se
relacionam com a função ideacional da linguagem e com os sentidos ideacionais,
69
enfatizando o papel do discurso na significação e na referência. Para tanto, os
tópicos analisados serão: conectivos e argumentação, transitividade e tema,
significado de palavras, criação de palavras e metáforas.
No tocante aos conectivos e argumentação, a coesão num texto é usada para
relacionar os períodos e, além disso, para servir de base aos esquemas de
argumentação. No texto encontram-se exemplos nos quais a coesão trará uma visão
expansiva, ou seja, um período expande o outro, acrescentando-lhe uma informação
nova. Observam-se casos com os usos dos conectivos: e (junção); mas
(contrajunção) e ou (disjunção). Transcrevem-se apenas alguns exemplos:
“Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.”
“O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de
sorrir, sorrir e deixar de sorrir.”
“... sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo”.
“Ela plantara as sementes que tinha nas mãos, não outras, mas essas
apenas.”
“O moleque dos jornais ria entregando-lhe um volume. Mas os ovos se
haviam quebrado no embrulho de jornal.”
“A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe
parecia seu, sujo, perecível, seu.”
“Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar...”
“Como se soubesse de um mal – o cego ou o belo Jardim Botânico?”
“Já não sabia se estava ao lado do cego ou das espessas plantas.”
Esses conectivos aparecem com a função de ligar uma oração à outra,
constituindo os períodos que se encadeiam uns com o outro para tecer o discurso. A
argumentação sugerida constitui um ethos para Ana no qual se notam algumas de
suas características: conformada com seu destino, instável quando se depara com
suas verdades, insegura. Com predominância descritiva, a argumentação revela
características do seu cotidiano e institui o tipo de identidade social atribuída à
personagem.
70
Há ainda exemplos de uso da coesão em orações que realçam o significado
de outras, qualificando-as de várias maneiras: pela referência de tempo (quando,
então, enquanto, depois), de condição (se), de espaço (onde) e de comparação
(como), respectivamente.
A estrutura argumentativa do texto poderá variar dependendo da escolha dos
elementos coesivos, tornando-se um modo significativo de trabalho ideológico que
ocorre no texto.
“Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde,
quando a casa estava vazia sem precisar mais dela...”
“Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava
chicles...”
“Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os
arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar...”
“Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois
atraiu-a a si, em rápido afago”.
“Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que
se quisesse podia parar e enxugar a testa...”
“O que faria se seguisse o chamado do cego?”
“De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?”
“... estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde
vitórias-régias boiavam monstruosas.”
“... e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura...”
Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha nas mãos...”
“Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem
arrependidos...”.
“A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara”
A coesão lexical ocorre com a repetição de palavras ou expressões, pois
estabelece relações coesivas de base semântica pela seleção vocabular.
71
Desempenha ainda uma função referencial no texto, o que se pode constatar nos
exemplos:
Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite
cálida...”.
“E cresciam árvores. Crescia sua própria conversa com o cobrador de luz,
crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com
comidas...”.
“Assim ela o quisera e o escolhera”
No contexto abaixo, a repetição aparece como uma marca que evidencia os
fatos do cotidiano, a rotina que se estabelecia na vida da personagem:
“E cresciam árvores. Crescia sua própria conversa com o cobrador de luz,
crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com
comidas...”.
A transitividade é marcada pelo verbo, que registra a relação existente entre
os participantes numa interação. A princípio todas as ações são marcadas por um
narrador observador que usa a voz ativa para tecer as ações da personagem Ana,
mas suas narrações e também as descrições que faz dela contribuem para a
constituição de uma personagem extremamente fragilizada perante a vida.
As interações que ocorrem entre Ana e o filho são marcadas pelos verbos ser
e ter: “A vida é horrível...” - “Tenho medo”, e ainda pelo processo de ação, no qual
aparece o agente em busca de um objetivo:
“Não deixe mamãe te esquecer”.Neste processo a ação é dirigida, o agente
age em direção a um objetivo.
Na interação entre a Ana e seu marido, “O que foi?” – “Não foi nada, disse,
sou um desajeitado”, há o verbo (ser) que marca uma relação entre os participantes,
nela há indício de cumplicidade. Já nas falas seguintes:
“— Não quero que lhe aconteça nada, nunca!”.
“— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro”.
A transitividade é marcada pela voz ativa nas duas falas: em ambas, as ações
são dirigidas, estão explícitos os desejos de Ana e de seu marido.
72
O tema é o ponto de partida para a discussão do texto, é a informação dada
pelo autor. Nesse texto o tema seria “um acontecimento” que gerasse conflito e que
perturbasse a vida construída por Ana, acontecimento que a levaria ao medo e à
fragilidade. Assim a transitividade e o tema reforçam o fator cultural e ideológico de
que a mulher é um ser frágil que necessita de proteção.
Quanto aos significados das palavras, existem vários, que são “lexicalizados”
de várias maneiras. Quando se produz um texto, o autor fica diante de escolhas
sobre como usar uma palavra e como expressar um significado por meio de
palavras, e o leitor sempre se confrontará com decisões sobre como interpretar as
escolhas que os produtores fizeram, ou seja, que valores atribuir a elas. As escolhas
e as decisões são individuais. Os significados das palavras e a lexicalização de
significado são questões que são variáveis e contestáveis socialmente.
Destaca-se no conto “Amor” o uso de metáforas que contribuíram para a
construção de uma personagem que se encontra, a princípio num estágio de
conformismo e aceitação da vida que escolhera:
“... a vida podia ser feita pela mão do homem”
“Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher”.
“Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto”
Em seguida aflige-se por ter de enfrentar a vida e assumir uma nova postura
diante dela, o que para Ana é um processo doloroso:
“A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido”
“O mundo se tornara de novo um mal estar”,
Num terceiro momento, surge a fragilidade humana, a sua fragilidade
declarada, a vontade de não ter de viver as horas mais perigosas das tardes.
“Ela adormecia dentro de si”.
“A vida é horrível, faminta”.
Neste conto, apresentou-se um estereótipo de mulher que seguiu as regras
determinadas pela sociedade quanto ao sexismo e ao ethos: casar, ter filhos, cuidar
do lar, dos filhos e do marido, essas eram as funções e esse era o papel a ser
73
desempenhado pela mulher. Ao seguir essas regras, abdicou de seus sonhos, inibiu
suas vontades e desejos, e, embora tivesse consciência de que a vida que
escolhera a deixava infeliz, temerosa, preferiu continuar a rotina a mudá-la. Ana era
muito frágil, desempenhou seu papel e temeu os momentos de crise, pois a
colocavam diante da verdade.
Constatou-se a força que as regras sociais impuseram à mulher durante muito
tempo, impedindo-a de realizar outros projetos em sua vida, limitando-a, tornando-a
prisioneira de um sistema que serviu de modelo ideal, estabelecido para as relações
entre as pessoas, o que colaborou para a constituição desse universo feminino e
revelou ainda o ser mulher em sua total fragilidade, pois a sua dependência e
obediência eram primordiais para que fosse reconhecida como um ser social.
74
CAPÍTULO III – ANÁLISE DO CONTO: VENHA VER O PÔR-DO-SOL
3.1 O conto: “Venha ver o pôr-do-sol”
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas
iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos
baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro,
algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na
quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo
blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de
estudante.
— Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
— Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes.
Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria
aqui em cima.
Ele riu entre malicioso e ingênuo.
— Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece
nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas,
lembra?
— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela,
guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hein?!
— Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço.
— Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul
e dourado...Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse
perfume. Então? Fiz mal?
— Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso
aí? Um cemitério?
75
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de
ferro, carcomido pela ferrugem.
— Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem
os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo –
acrescentou, apontando às crianças na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou
a fumaça na cara do companheiro. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o
programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
— Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um
instante e te mostrarei o pôr- do -sol mais lindo do mundo.
Ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
— Ver o pôr- do -sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um
último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta
buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr- do- sol num
cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
— Raquel , minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu
gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se
isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que
vive espiando pelo buraco da fechadura...
— E você acha que eu iria?
— Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então
pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada...- disse ele,
aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério.
E, aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos
ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão
astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede
de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e
meio desatento.
Você fez bem em vir.
76
— Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num
bar?
Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
— Mas eu pago.
— Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque
é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não
concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber
que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das
suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se
arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado,
veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos
gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que
estivemos aqui.
É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E
se vem um enterro? Não suporto enterros.
Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a
mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos
sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos
canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores,
invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua
violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram
andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam
sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre
os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança.
Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos
medalhões de retratos esmaltados.
77
É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável,
que deprimente – exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um
anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei
onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite,
está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um
crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar
mais.
Ele é tão rico assim?
Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já
ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a
se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente
escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de
tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso não
entendo como agüentei tanto, imagine, um ano!
É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda
sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora.
Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a
inscrição de uma laje despedaçada: — A minha querida esposa, eternas saudades.
— leu em voz baixa. — Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
78
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra
mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse
apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da
fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as
raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem
o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo
que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir
assim. – Deu-lhe um beijo rápido na face. — Chega, Ricardo, quero ir embora.
Mais alguns passos...
Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para
trás. — Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a
para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se
vê o pôr do sol. — Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com
minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha
trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e
minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo
tantos planos.
Agora as duas estão mortas.
Sua prima também?
Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente
bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os
seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que
toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
Vocês se amaram?
Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim, não tem
importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
79
Eu gostei de você, Ricardo.
E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
Esfriou, não? Vamos embora.
Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta
rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes
enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar
meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquiria cor do tempo. Dois vasos
de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da
cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como
farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede
lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de
pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos
da capelinha.
Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.
Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas,
sinais da minha dedicação, certo?
Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse
abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a
morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da
portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das
quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
E lá embaixo?
Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó-
murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta
80
no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A
cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
Todas estas gavetas estão cheias?
Cheias?....- Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está
o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as
pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
Vamos, Ricardo, vamos.
Você está com medo?
Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu
um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato,
duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se
exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e
gravemente.__ Não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é
impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando!
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
Pegue, dá para ver muito bem... — Afastou-se para o lado.- Repare nos
olhos.
Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se
apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria
Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito
e ficou um instante imóvel. — Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há
mais de cem anos! Seu menti... Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo
meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No
81
topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio
inocente, meio malicioso.
Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais
cretina! — exclamou ela, subindo rapidamente a escada. — Não tem graça
nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro.
Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou,
torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É
no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na
porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do
sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!-
Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por
entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. —
Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles,
reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
Boa noite, Raquel.
Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços
por entre as grades, tentando agarrá-lo.__Cretino! Me dá a chave desta porcaria,
vamos! — exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as
grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até
a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando
contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o
corpo. Foi escorregando.
Não, não...
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Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi
puxando as duas folhas escancaradas.
Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola.
Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve
silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos.
E, de repente, o grito medonho, inumano:
NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram,
semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando
mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que
atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento.
Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e
foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
3.2 A autora e a obra
A busca de um novo conhecimento do mundo, aliada ao conhecimento de si
mesma, é marco para a ruptura com as estruturas tradicionais da literatura escrita
por mulheres, conforme comentários já feitos anteriormente. Num processo lento,
abre-se caminho para as contestações, enquanto outras trabalham no nível da
realidade cotidiana. Para Coelho (1989), Lygia Fagundes Telles é das primeiras a
desvendar a face maldosa e perigosa da mulher, na qual se oculta o medo de não
agradar aos outros, de não corresponder aos modelos exigidos pela sociedade.
Em seu conto, o tema amor é fonte de conflito das situações dramáticas, ora
como ausência inexplicável, ora como desencontro ou frustração, jogos de disfarces
e desencontros que geram a solidão a dois. Ela foca os problemas que vivem as
83
mulheres e as projeta como seres humanos. Consagrada ficcionista, Coelho (1993)
atesta que Lygia Fagundes Telles é uma das mais lúcidas e apaixonantes
testemunhas deste mundo em crise, um mundo que traz uma burguesia convicta em
suas verdades; valores como a fé que criam culpa nos homens ou ainda o sucesso
material como forma de avaliar o valor das pessoas. Certezas e valores que foram
geradores de medo, insatisfação e insegurança, sentimentos que corroem as
relações humanas. Coelho (1993:245) acrescenta:
Seu mundo de ficção dá pleno acesso ao leitor, embora não lhe dê o
conhecimento direto ou definitivo dos dramas ou situações em causa. A
ficção de Lygia Fagundes Telles empenha o leitor e entrega-lhe a cada
momento a decisão sobre o que acontece, e como.
Neste conto revela-se extraordinária a capacidade da autora para construir a
síntese dramática. A ação caminha paralela ao diálogo e nos detalhes,
complementando-se reciprocamente. Ataíde (1972) afirma que é comum nas
narrativas em terceira pessoa, a escritora deixar que suas criaturas se revelem por
meio do diálogo, é uma conquista das personagens diante do mundo. Ela só
intervém quando é necessário, indispensável para que o leitor compreenda o
enredo. Ainda acrescenta que a autora dá liberdade para que suas personagens
vivam a vida. Tudo isso elaborado com talento e sensibilidade, ao visar à criação de
uma atmosfera que ilustre a situação e o ambiente. Para isso, ela utiliza técnicas que
encontra prontas e deixa sua sensibilidade fluir sobre ela. Para Ataíde (1972:111):
“Não é o processo técnico que faz do ficcionista um escritor moderno ou não, é o
emprego do processo num conjunto humano que faz a modernidade da obra e a
valoriza”.
O conto Venha ver o pôr-do-sol”, que apresenta um desfecho trágico, envolve o
leitor nas complexidades humanas. Desvenda a personagem condenada à solidão
por falhar em seu relacionamento com o outro (solidão ontológica - inerente à
condição humana). Em Lygia Fagundes Telles é possível o leitor deparar-se consigo
mesmo, ao perceber que a matéria de sua ficção é, pois, matéria viva, que decorre
das relações que se estabelecem entre a consciência do homem, os seres e as
coisas que o rodeiam.
84
3.3 Análise da estrutura narrativa
Ao selecionar o conto Venha ver o pôr-do-sol considerou-se a escolha da
protagonista, neste caso, a personagem principal é um homem, e pode-se observar
que tal personagem foi criada para que, por meio de sua existência, fosse possível
avaliar suas atitudes diante das mulheres e observar a mulher sob o enfoque
masculino.
A linguagem feminina rodeia-nos de afeto, revela a aptidão para atenuar as
diferenças, o amparo nas relações face a face; contudo seu poder de comunicação
traz à tona também outras nuances que revelam o cotidiano de maneira sedutora e
ao mesmo tempo surpreendente.
No conto “Venha ver o pôr-do-sol” o protagonista é um jovem chamado
Ricardo, que, ao ser abandonado por sua namorada, planeja um encontro com a
intenção de vingar-se. Porém é necessário considerar que o fato motivador da
vingança é gerado antes dos acontecimentos narrados no conto. Há uma situação
inicial, uma relação amorosa vivida por Ricardo e Raquel, na qual o protagonista
encontra-se bem e feliz. A sua modalização de atitude revela uma verdade: ser +
parecer = verdade, ou seja, ele é e parece ser o amante de Raquel. O percurso
narrativo esquematiza-se abaixo:
P ----------------------------------------------------------------------------------Æ O
Ricardo Felicidade
Amante de Raquel
O fato que gera a inquietação de Ricardo também se encontra num período
que antecede o conto. Ao abandoná-lo, Raquel provoca o seu sofrimento, um
desconforto, instaura-se o conflito. Representa-se o percurso narrativo:
P -------------------------------------------------------------------------Æ O
Ricardo Obstáculo: Abandono Felicidade
85
A modalização de sua atitude permanece com a verdade, ele não é e não
parece feliz, o que pode ser confirmado em sua atitude ao planejar uma vingança à
amada. O conto inicia-se com o protagonista colocando em prática seu desejo de
vingança.
Sua modalização altera-se, prevalecerá o segredo, seu aliado na conquista de
seus propósitos. Ele é (está magoado, ferido e quer vingar-se), mas não pode
parecer; constrói um ethos de pessoa confiável, e por meio de argumentos e da
persuasão pretende ganhar a confiança de Raquel.
A expectativa é criada, inicialmente, com enfoque nas ações de Raquel, pois
dela dependerá o desenrolar da trama e o sucesso do plano de Ricardo. Aceitar ou
não os seus propósitos, segui-lo ou não, continuar a conversa ou encerrá-la, esses
são os aspectos que constroem a expectativa inicial:
“— Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes.
Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria
aqui em cima.”
“— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela,
guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. __Hein?!”
“— Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso
aí? Um cemitério?”
“— Ver o pôr-do-sol!... Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um
último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta
buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num
cemitério....”
“— Raquel , minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu
gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se
isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que
vive espiando pelo buraco da fechadura...”
“— E você acha que eu iria?”
As ações de Raquel caracterizam-na como sincera, portanto sua modalização
é de verdade: ela é e parece estar insatisfeita com a situação, quer resolver logo o
embate entre os dois, não precisa mentir nem simular. Tem-se o percurso narrativo:
86
Auxiliar: sinceridade
P --------------------------------------------------------------------------------ÆO
Raquel Opositor: astúcia de Ricardo Resolver a
situação
É na manutenção do diálogo que a história se desenvolve. Ricardo é quem
expande a narrativa, pois conta com a habilidade que possui de persuadir,
envolvendo-a por meio de simulações e mentiras. Sua modalização permanece no
segredo, pois precisa que Raquel acredite nele. Esquematiza-se o percurso
narrativo:
Auxiliar: astúcia
P---------------------------------------------------------------------Æ O
Ricardo Vingança
Na tentativa de resolver sua situação com Ricardo, Raquel ainda recorre às
desculpas, mas tem como opositor a sagacidade de Ricardo, a forma como ele a
envolve com argumentação consistente.
“__ Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num
bar?”
“__Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.”
“__ Mas eu pago.”
“__Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque
é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não
concorda comigo? Até romântico.”
“__Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber
que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das
suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.”
87
“__Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se
arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado,
veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos
gonzos gemeram. __ Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que
estivemos aqui.”
“__É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E
se vem um enterro? Não suporto enterros.”
“__Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a
mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos
sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.”
A modalização das duas personagens não se altera, Raquel continua
verdadeira e Ricardo permanece no segredo, ele guarda o segredo da vingança.
Tem-se o percurso narrativo:
Auxiliar: desculpas
P---------------------------------------------------------------------------------------Æ O
Raquel Opositor: astúcia de Ricardo Resolver a
Situação
A mesma situação analisada sob a perspectiva do protagonista, apresenta
este percurso:
Auxiliar: astúcia
P--------------------------------------------------------------------------------------Æ O
Ricardo Opositor: desculpas de Raquel Vingança
Com um discurso persuasivo e intencional, ao objetivar sua vingança,
Ricardo constrói um ethos de pessoa confiável, delicada e sensível, características
que permitem a Raquel aderir a suas idéias. Recorre às mentiras como artimanha
88
para resguardar o segredo da vingança. Usa sempre um tom suave, palavras
afetuosas:
“__Raquel, minha querida, não faça assim comigo.”
“__Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.”
“__Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se
arrisque, meu anjo.”
“__Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.”
No decorrer da trama, Raquel consente às ações de Ricardo, aceita-as,
abandona sua resistência. Restabelece a confiança, baseada no relacionamento que
outrora tiveram e é envolvida por um discurso carregado de emoção e
reminiscências:
“__Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para
trás. — Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta”.
“__A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a
para frente. __Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se
vê o pôr do sol. — Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com
minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha
trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e
minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo
tantos planos.”
“__Agora as duas estão mortas”.
“__Sua prima também?”
“__Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente
bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os
seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que
toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.”
“__Vocês se amaram?”
89
“__Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. – Enfim, não tem
importância.”
“__Eu gostei de você, Ricardo.”
“__E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?”
Ricardo posiciona-se como vítima da situação, promove um discurso cheio de
inverdades, apresenta proposições com a intenção manipulativa. Constata-se em
Fairclough (2001:91): “O discurso é um modo de ação, uma forma em que as
pessoas podem agir sobre o mundo, sobre os outros, como também um modo de
representação.”
Somente no desfecho, a protagonista muda sua modalização de atitude,
passa a ser verdadeiro, já que, finalmente, tem seu propósito concluído. Nos trechos
abaixo, a verdade se instaura: ser + parecer = verdade; ele é e parecer estar
realizado com sua vingança. Não precisa mais mentir, seu propósito está revelado,
conseguiu tudo o que almejara.
“__Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na
porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-
sol mais belo do mundo.”
“Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles,
reapareceram as rugazinhas abertas em leque.”
“__Boa noite, Raquel.”
Embora Ricardo conseguisse seu objetivo: vingar-se de Raquel, a narrativa é
de fracasso, pois o protagonista destrói o objeto de sua felicidade.Tem-se o percurso
narrativo:
Auxiliar: astúcia
P--------------------------------------------------------------------------------ÆO
Ricardo Opositor: abandono Infelicidade
Ausência do amor
Quanto à avaliação, destaca-se o papel da mulher que é castigada por
abandonar o amante, neste conto a mulher é retratada como um objeto de posse. A
90
argumentação de Raquel não apresenta forças suficientes para mudar sua situação.
Ela pede, ameaça-o, implora e ao final grita, desesperadamente, não obtendo êxito
algum. Vê-se a mulher na sua condição de ser frágil. Há a comparação de Raquel a
um animal que, enjaulado, será enterrado vivo, embora o desfecho do texto não seja
explícito, podendo-se apenas presumi-lo.
Não há para Raquel nenhum fator que a auxilie, o que a deixa em uma
posição bastante delicada, e contradiz sua imagem constituída até então: mulher
forte, determinada e ambiciosa. No conto, Raquel aparece com o estereótipo da
mulher que sai do espaço lar e ganha o externo, fato que não a intimida. Está em
busca de sua felicidade, mesmo que lhe custe alguns sacrifícios. Abandona o
namorado (Ricardo) e uma situação de privações para relacionar-se com um homem
que lhe proporciona uma vida financeira mais confortável, possivelmente, não o
ama, pois não há indícios no texto de que essa relação tenha outros interesses
senão o conforto que o dinheiro possibilita.
O perfil da mulher é traçado pelo olhar de Ricardo. É ele quem aponta em
suas ações o retrato de uma mulher que cai facilmente em uma cilada, é persuadida,
manipulada, é ele quem revela o quanto a mulher, embora queira parecer dona da
situação, é passível de sedução. Consegue provar que com um discurso meigo,
ingênuo, que eleve a auto-estima da vítima, é possível sim enganá-la. Descortina a
face de Raquel, um ser frágil, que quer ser tratada como alguém especial, facilmente
envolvida em seu plano de vingança. Basta constituir um ethos de bom menino e de
bom rapaz, apaixonado, que a mulher já se ilude e sai da retaguarda.
Ao se estabelecer o conflito, a autora sugere uma reflexão: Até que ponto é
possível confiar no outro? O que levaria alguém a cometer, com tanta frieza, um ato
tão insano? E vai além quando permite ao leitor deparar-se com as formas de poder
que transitam na sociedade. O amor e o ódio são paixões, forças que permitem
estabelecer nas relações a luta pelo poder e determinar quem é o mais forte.
O homem não pode ser apontado como o ser fraco, aquele que sofre por
amor, muito menos ser abandonado por uma mulher, o que implica ter sua virilidade
e sua força contestadas. Essas afirmações podem se confirmar nas palavras de
Muszkat in Silva (1993:77):
91
O modelo de herói masculino, cultivado por todas as culturas, não mostra
qualquer condescendência com a fraqueza. As grandes guerras mundiais
deste século em nada contribuíram para desfazer o mito do herói guerreiro...
... ser homem na cultura patriarcal também é uma tarefa difícil. Nos homens
detectamos duas obsessões básicas: seu desempenho profissional e seu
desempenho sexual.
Para o protagonista a vingança é o único meio de recuperar-se e retornar a
seu papel social. O abandono o incomoda, o sofrimento pela ausência de Raquel e,
conseqüentemente, a rejeição ao seu amor, perturbam-no, é preciso ser forte e
resolver o conflito. Deve-se considerar que Ricardo sofre por não admitir a perda, e é
movido pela paixão. Para Aristóteles (1998:35), a paixão faz o homem oscilar e
correr o risco de se perder de alguma maneira, e conceitua:
A paixão é a relação com o outro e representação interiorizada da diferença
entre nós e esse outro. A paixão é a própria alteridade, a alternativa que
não se fará passar por tal, a relação humana que põe em dificuldade o
homem e, eventualmente, o oporá a si mesmo. Compreende-se, nessas
condições, que a paixão remete às soluções opostas, aos conflitos, à
diferença entre os homens.
No tocante à construção do conto, a autora pode instalar-se no corpo de um
homem e promover a história através de um narrador para alcançar as
cumplicidades da narrativa com estruturas violentas de dominação.
Justifica-se o conflito criado pelo feminino no momento em que a autora faz
uso de toda a sua sensibilidade para envolver o leitor na trama e revelar-lhe também
por meio do universo masculino a face da mulher, representada neste conto por
Raquel. A imagem que a sociedade cristã, burguesa, patriarcal, propõe como
modelo de comportamento é contestada pelas atitudes de Raquel, é uma forma de
mostrar-se livre. Porém a figura de Ricardo impõe o padrão de comportamento
aceitável às mulheres; e confirma a elas uma certa inferioridade por serem
manipuladas com facilidade, por ouvirem mais a voz do coração do que da razão.
Vale ressaltar que os textos abordados neste trabalho permitem às autoras
mostrarem os impasses da vida de mulheres como Ana e Raquel, mas elas não têm
a intenção de defendê-las ou colocá-las sempre como vítimas de um sistema, têm
sim o intuito de instaurar uma conscientização aguda das lutas em que elas
necessitam ser participantes ativas.
92
Conforme citação de Muszkat in Silva (1993:77): “O mito feminista de que a
mulher é o único ser prejudicado pela cultura patriarcal acaba por conduzir a
interpretações unilaterais e simplistas. Acaba reafirmando a condição de vítima para
um e de carrasco para outro”.
3.4 Análise crítica do discurso
Em “Venha ver o pôr-do-sol”, o controle interacional aparece pelas interações
que são marcadas por um jogo de perguntas entre as personagens Ricardo e
Raquel. No início do texto, essas sucessões de perguntas marcam uma insatisfação
por parte da personagem Raquel, um certo descontentamento:
“... Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui... — Hein?!”
“__ Então? Fiz mal?”
“— Podia ter escolhido um outro lugar, não? — E que é isso aí? Um
cemitério?”
A princípio é Raquel quem controla a organização básica da interação. Ao
abrir e fechar o ciclo de conversação, promove a expectativa no conto. Não há
indícios de que tenha uma agenda preestabelecida. As perguntas são abertas e
Ricardo ao respondê-las busca o controle da situação, porque percebe claramente o
desconforto de Raquel:
“... Ver o pôr -do-sol! Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso! “
“— E você acha que eu iria?”
“— Mas eu pago.”
“— Não gosto de cemitério. E ainda mais cemitério pobre.”
Nas falas seqüenciais a interação ainda é marcada por perguntas e
respostas. Ricardo agora é quem tem o controle e expande a narrativa. Ele tenta
persuadi-la, elogia-a, argumenta, conduz a conversa e manipula-a para a aceitação.
Assim ele realiza o controle dos tópicos que o conduzem ao seu objetivo. Por meio
93
de seus argumentos consegue ganhar sua confiança, tranqüiliza-a. Os tópicos são
mudados pelo participante Ricardo que mantém o domínio da situação e traz uma
agenda estabelecida previamente, pois age conforme o que deseja alcançar: a
vingança.
“__Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima...”
“__Você fez bem em vir.”
Há no discurso de Raquel traços que a caracterizam como sendo irônica,
interesseira, prepotente. O uso de verbos no imperativo conotam a sua forma de
dizer e de se colocar perante o outro. Esses trechos atribuem a Raquel um certo
poder, uma postura de quem está em situação de vantagem perante o outro, mas
suas formulações, aspecto do controle interacional, não ganham a aceitação de
Ricardo:
“... Ver o pôr-do-sol! Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso! “
“— E você acha que eu iria?”
“— Mas eu pago.”
“— Esfriou, não? Vamos embora.”
“— Chega, Ricardo! Você vai me pegar!”
Há a formulação também no discurso de Ricardo, que tenta ganhar a
aceitação de Raquel para o que diz:
“— Então? Fiz mal?”
“— Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende”
“— Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? ...”.
“— Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa”
“— Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo”.
“— E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?”
94
Outro aspecto é a determinação e o policiamento de agendas mantidos por
Ricardo para iniciar a interação e encerrá-la. A sua maneira de conduzir a interação,
inicia-se com elogios a Raquel e, na seqüência, com uma justificativa:
“— Minha querida Raquel!”
“— Você está uma coisa de linda...”
“—Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do
mundo.”
Há hesitação no momento em que Raquel mostra-se bem ao lado do outro
homem:
“__Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então
pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada...”
“__Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já
ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...”
“Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão.”
Ricardo retoma a interação e a conduz, alterna os tópicos e o mantém por
perguntas abertas, que propiciam a retomada de situações vividas no passado:
“__Eu também te levei um dia para passear, lembra?”
“__É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda
sentimental. E agora? Que romance está lendo agora?”
Com muita astúcia, introduz novos tópicos à conversação, elogia Raquel,
pondera, é carinhoso e aos poucos, Raquel é conduzida ao seu destino:
“___Já chegamos, meu anjo.”
“__ A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato,
duas semanas antes de morrer...”
“... é impressionante como tinha os olhos iguais aos seus.”
95
Ao final, seu discurso encerra com determinação, a mesma que o conduz ao
sucesso de suas intenções. A última interação revela a despedida e não requer
resposta, encerra-se apenas: “__Boa noite, meu anjo!”
Observa-se a posição do sujeito na modalidade categórica das seguintes
proposições enunciadas por Raquel. É possível utilizar uma entonação firme com o
propósito de afirmar com convicção a sua fala:
“— Ele é ciumentíssimo”
“— É um risco enorme!”
“— É imenso, hein!... é deprimente.”
“— Que triste é isto, Ricardo...”
Aparece uma proposição um pouco menos categórica em:
“— Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã...”
A categorização é amenizada pelo emprego do verbo (acho) que gera a
subjetividade na proposição e projeta o ponto de vista de quem fala. A subjetividade
presente nos trechos abaixo deixa à mostra o grau de afinidade do falante com a
proposição:
“— Juro que tinha que ver uma vez toda essa beleza...”
“— Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí...”
“— Prefiro beber formicida...”
No exemplo seguinte, Ricardo, com o intuito de convencê-la,
categoricamente afirma: “— Mas é esse abandono na morte que faz o encanto
disto.”
É importante salientar que na modalidade há mais do que o comprometimento
do falante com suas proposições. Para Fairclough (2001:200):
Os produtores indicam comprometimento com as proposições no curso das
interações com outras pessoas, e a afinidade que expressam com as
proposições é freqüentemente difícil de separar de seu sentido de afinidade
ou solidariedade com os interagentes.
96
Há hesitação na proposição: “— Ela me amou. Foi a única criatura que... —
Faz um gesto – Enfim não tem importância.” , uma proposição falsa, pois há
intenções com esse discurso. A pausa é o marco da hesitação citada, representada
graficamente pelo uso de reticências. Pode-se verificar também que o
comprometimento com as proposições no curso das interações está ligado à
afinidade presente entre as personagens. Nos exemplos abaixo, perguntas
negativas pressupõem que a afinidade é compartilhada de maneira solidária com o
outro, as frases negativas carregam tipos especiais de pressuposições que
funcionam intertextualmente.
“— não se zangue, sei que não iria...”
“... não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado...”
“— não insista nessas brincadeiras, por favor.”
“—... não tenha medo...”
“— não gosto de cemitérios, já disse.”
“— Não é grandiosa?”
As perguntas negativas ao final do enunciado antecipam uma resposta
positiva, como se o emissor pedisse o consentimento, o aval do ouvinte para as suas
proposições:
“— Jamais, não é?”
“— Podia ter escolhido outro lugar, não?”
“— Esfriou, não?”
Nota-se a polidez no encontro das personagens, que é iniciado com um tom
de insatisfação por parte de Raquel, que não gosta do local nem da situação em que
se encontra. Suas indagações permitem concluir que ela tenta preservar sua face
positiva, embora esteja presente também a face negativa, no momento em que
explicita que não quer ser impedida ou controlada pelo outro. Destacam-se
exemplos de face positiva, nos quais procura demonstrar afeição, simpatia:
“— É um risco enorme, já disse.”
97
“— Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Apesar de tudo,
tenho às vezes saudade daquele tempo...”
“— Vamos embora, Ricardo, chega.”
“—... pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.”
“— Eu gostei de você, Ricardo.”
“— Que triste é isto Ricardo, nunca mais você esteve aqui?”
“— Ouça meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos,
abra...”
Na preservação da face negativa, destaca-se o uso do pronome “você”, o que
chama a atenção para as atitudes de Ricardo. Exemplo de preservação de face
negativa:
“— Só mesmo você inventaria um encontro destes...”
“— E você acha que eu iria?”
“... só mesmo um cara como você podia me divertir tanto assim.”
“— Você vai me pagar! “
Já o protagonista tenta o tempo todo construir mediante seu discurso uma
face positiva e a mantém ao longo do conto.
“— Jamais, não é?”
“— Quando você andava comigo... lembra?”
“— Então? Fiz mal?”
“— Não se zangue, sei que não viria, você está sendo fidelíssima...”
“— Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida...”
“—... não quero que você se arrisque”
“— vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.”
“— Ah, Raquel, olha um pouco esta tarde! Deprimente por quê?”
98
“— Eu também te levei... lembra?”
“— Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.”
Existem atos que ameaçam a face positiva de Ricardo, quando Raquel critica-
o, esnoba-o, humilha-o:
“— E você acha que eu iria?”
“— Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então
pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele,
aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério.
E, aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos
ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão
astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede
de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e
meio desatento.”
“__Ele é tão rico assim?”
“__Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já
ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a
se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente
escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.”
“__Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?”
Por meio de um discurso polido, Ricardo usa da estratégia do argumento
associada a sua astúcia, cativa Raquel, ganha sua confiança e afasta qualquer
possibilidade de conflito entre ambos. Nesse caso, a polidez foi usada como forma
de manipulação, ocultando suas reais intenções. Ricardo alia a polidez aos seus
argumentos, conquista dessa forma seus objetivos:
“— Sei que você gostaria de encontrar tudo limpo certo?”
“— A cômoda de pedra. Não é grandiosa?”
“— Você está com medo?”
99
Em nenhum momento ele muda o seu tom polido no discurso, nem mesmo
para encerrá-lo:
“— Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na
porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você verá o pôr-do-
sol mais belo do mundo.”
“— Boa noite, meu anjo.”
A face positiva mantida até então se perde para dar entrada à face negativa
com a qual impõe o destino de Raquel.
Fairclough (2001) ressalta outra parte importante da polidez, a propriedade de
indiretividade da estratégia implícita, ou seja, quando se dizem coisas indiretamente.
Constatam-se no discurso de Ricardo trechos em que ele aponta suas intenções,
porém de maneira sutil e indireta que dessa forma não são percebidas por Raquel:
“... não tem lugar mais discreto que um cemitério.”
“__Ah! Raquel, olha um pouco esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde
foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está
no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo
numa bandeja e você se queixa.”
“__Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra
mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos...”
No tocante ao ethos, os discursos construídos e os comportamentos
apresentados fazem que se perceba em Raquel, uma mulher determinada, segura
de si... Preocupada em não perder sua posição social, deixa claro que mantém por
interesse um relacionamento e não quer que nada a traga de volta para uma vida de
pobreza. Seu discurso destaca-se como discurso da razão, invertendo assim os
papéis representados socialmente pelo homem e pela mulher. Contestadora e
segura, representa uma ameaça para Ricardo, que se vê frágil perante essa mulher.
Porém sua ingenuidade e confiança, a facilidade com que se deixa enganar,
aparecem como reforço ao discurso instituído de que toda mulher age mais pela
emoção, pelos sentimentos, fatos que a levaram à prisão.
Configura-se em Ricardo um ethos de homem apaixonado, que vê na dor da
perda, a possibilidade de vingança ou ainda a idéia de que “se a amada não é
100
minha, não será de mais ninguém”.Todas as ações são, a princípio, previamente
planejadas e em seus discursos constrói a imagem de um homem calmo, sensível,
apaixonado, amante da natureza, apegado à família. Constrói, portanto, uma
imagem agradável de si mesmo.
Suas dificuldades financeiras parecem não lhe afetar muito. É passivo e
aceita-as com normalidade. Porém, toda essa normalidade não revela realmente o
ethos da personagem, que simula o tempo todo. O homem é racional por natureza.
Constata-se que seu discurso, bem como suas atitudes, são assim conduzidos
intencionalmente, porque possui um objetivo. Suas ações revelam uma personagem
apaixonada sim, mas fria, calculista, sem piedade, motivada pela perda amorosa a
cometer uma loucura.
As relações de poder constituem-se, nesse texto, no propósito de que o
homem não pode ser abandonado por uma mulher. Em uma relação amorosa o
homem é o dominante, é o provedor, é o que dá a última palavra, enfim, a sociedade
espera que a sua força e sua posição sejam mantidas, inclusive sua honra. Qualquer
abandono ou traição efetiva a constatação de homem fraco, adjetivo que a
sociedade rejeita ao homem. Assim, a personagem colabora com as práticas
discursivas que mantêm o homem nas relações de poder, como o ser mais forte.
Inicia-se a análise do discurso com enfoque na significação e na referência.
3.5 Constituição da realidade social
Há coesão marcada pelos conectivos que expandem o sentido das orações,
atribuindo-lhes algo novo; nas orações com uso de conectivos e – nem (junção);
mas (contrajunção) e ou (disjunção)..
Aditivas (ligam termos ou argumentos)
“— Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me
aparece nessa elegância.”
“— Você está uma coisa linda. E fuma agora uns cigarrinhos...”
101
“— Quer dizer que o programa... E não podíamos...”
“— É imenso hein? E tão miserável...”
“— E eu te amei. E eu te amo ainda.”
“— Suba e vamos embora...”
“... a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite...”
Adversativas (indicam uma contraposição)
“— Raquel, minha querida,... Você sabe que eu gostaria era de te levar ao
meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda.”
“__É, mas fiz mal. Pode ser engraçado, mas não quero me arriscar mais.”
“.. . Não era propriamente bonita, mas tinha olhos...”
“__Ouça, meu bem, foi engraçado, mas agora preciso ir mesmo, vamos
abra...”
Variação (apresentam uma alternativa)
“... Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos
aqui.”
Outra relação entre as orações que pode ser destacada é a de realce,
marcada pelas referências de tempo, lugar e modo, comparação, espaço, causa e
condição. Exemplos:
Tempo (operadores que servem para dar continuidade ao texto)
“... Quando você andava comigo...”
“— Então fiz mal?”
“— Se nos pilha juntos, então sim...”
“— palavra que, quando penso não entendo até hoje como agüentei tanto,
imagine um ano”
“— Tínhamos então doze anos”
102
“... morreu quando completou quinze anos”
“... depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho.”
O advérbio circunstancial de lugar faz orientação por referência ao falante,
“aqui” fixa o ponto de referência do evento da fala, indica lugar próximo ao falante.
“... aqui estão meus mortos”
Já o advérbio “lá” indica distância do evento da fala:
“__Dobrando esta alameda, fica o jazido, é de que se vê o pôr-do-sol”
“__ E embaixo?”.
Espaço
“... todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa
capelinha onde já estava enterrado meu pai.”
Modo
“... Depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho”
Causa
“... escolhi este passeio porque é de graça e muito decente...”
“... lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque,
meu anjo.”
As conjunções “se” indicam uma forma de condicionar uma proposição a
outra. É um ponto de apoio para a referência condicional.
“... então pensei, se pudéssemos conversar um instante. “
“... Se nos pilha juntos, então sim...”
103
“... e se vem o enterro?”
A comparação faz referência a outro item encontrado no texto para sua
interpretação.
“... não tem lugar mais discreto do que um cemitério”
“... eram assim verdes como os seus.”
Dentre as marcações coesivas de superfície, há um exemplo de elipse, que
realiza um elo coesivo, com a ausência do verbo “estar” na segunda frase:
“... Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes.”
Há também exemplos de referências, marcadas pelo uso do pronome
demonstrativo referindo-se a uma parte anterior e outra posterior ao texto. Um
elemento anafórico fará referência a todo enunciado anterior:
“__Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui?”
“__Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí”
“... nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.”
“__Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros”
Um elemento de referência catafórica dependerá de algo que segue no texto:
“ __E que é isso aí? Um cemitério?
A coesão lexical é marcada pelas repetições de palavras e expressões.
Estabelecem coesão por meio das relações semânticas desses vocábulos, conforme
os trechos:
“... não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja,
completamente abandonado.”
“... eram assim verdes como seus olhos, parecidos com os seus... “
104
“... , meu anjo, .”
O advérbio aparece como modalizador e tem como característica expressar
uma intervenção do falante na definição da validade e do valor de seu enunciado,
modalizar quanto ao dever:
“__Ricardo, abre isso imediatamente! Vamos, imediatamente!”
E modaliza para definir a atitude:
“... depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho.”
Os marcadores coesivos, segundo Fairclough (2001), devem ser
considerados também da perspectiva do produtor do texto, que estabelece relações
coesivas de tipos particulares no processo de posicionar o (a) intérprete como
sujeito.
Quanto à transitividade, está aparente nos processos relacionais onde
aparecem os velhos ser e ter entre os participantes:
“— Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.”
“— É, mas fiz mal.”
“— Sabe Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Apesar de tudo,
tenho às vezes saudade daquele tempo.”
“... tínhamos então 12 anos...”
“—... foi a única criatura que...”
“— É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses...”
No texto aparecem também verbos intransitivos. A ação não dirigida envolve
um agente e uma ação, sem explicitar o objetivo:
“— E você acha que eu iria?”
“— Não se zangue, sei que não iria...”
“— Mas eu pago.”
“— Não quero que você se arrisque, meu anjo.”
105
“— Já chegamos, meu anjo.”
Esses verbos aparecem com mais freqüência nos trechos em que Ricardo
usa seus argumentos para convencer Raquel a aceitar sua proposta, tomando
cuidado para não revelar suas reais intenções. Já na parte final do texto, a
transitividade é marcada pela presença de verbos transitivos, as ações são dirigidas
por um agente em direção ao objetivo:
“— Ela me amou... — Enfim não tem importância.”
“— Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho...”
“— Ela adiantou-se.”
“— Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta... “
“— Ela cruzou os braços.”
“— é impressionante como tinha os olhos iguais aos seus”
“— Ela desceu as escadas...”
“— Pegue, dá para ver muito bem... – Repare nos olhos.”
“— Deixou cair o palito no chão...”
“— Olhou ao redor.”
“— No topo, Ricardo a observara.”
“— Não tem graça nenhuma, ouviu?”.
“— Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta ...”
Há uma incidência de temas marcados pelos pronomes pessoais Eu/Ele/Ela,
pelos nomes Ricardo/Raquel e pelo pronome Você, colocando as personagens em
evidência e revelando o ponto de partida para a discussão.
A escolha do tipo de processo pode significar um processo real e ter
significação cultural, política e ideológica. O texto constrói-se a partir de verbos
afetivos (gostar, temer) e cognitivos (pensar) geralmente concretizados como
orações transitivas que promovem a interação, ao mesmo tempo em que permitem a
Ricardo contornar algumas situações e garantir o seu propósito.
Em relação às metáforas, elas estruturam o modo de pensar e de agir, bem
como o sistema de conhecimento e crença de forma penetrante e fundamental. O
106
autor não faz uso de muitas metáforas, mas, nos exemplos abaixo, fica implícita a
idéia da morte. Na primeira oração, ao usar a palavra “viva”, sugere morte as demais
notas; e na segunda oração, ao estabelecer a comparação, cita Medusa, divindade
da mitologia grega, que possuía o dom de matar e ressuscitar pessoas.
“A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.”
“... a dona é uma medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura.”
Destaca-se o uso da palavra anjo, repetida por várias vezes nos discursos de
Ricardo. Na tentativa de aproximá-la as criaturas celestiais, enaltecê-la, com o intuito
de demonstrar um afeto que extrapola os sentimentos do que seja humano, “meu
anjo”, é a forma que ele encontra para referenciar ou eternizar esse amor.
Outro destaque é o título do conto Venha ver o pôr-do-sol. A primeira leitura
sugere um convite romântico, valoriza-se a natureza, a oração possui um sentido
angelical, pacífico e harmonioso. Após a leitura do conto, a oração ganha um sentido
totalmente oposto ao inicial, aquilo que parecia harmonioso, torna-se trágico,
sinistro.
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos estudos realizados, identificam-se as mulheres analisadas nos
contos “Amor” de Clarice Lispector e “Venha ver o pôr-do-sol” de Lygia Fagundes
Telles, como estereótipos de mulheres que se constituem a partir de atitudes
discriminatórias e que se comportam socialmente pela submissão. A primeira
personagem, Ana, do conto “Amor”, aparece como uma mulher submissa, frágil,
dependente, que vivia com e em função da família, possuía uma situação
socioeconômica estável, mas não era feliz. Em alguns momentos do dia, quando
ninguém mais precisava dela, sentia uma enorme angústia pela vida que escolhera,
e deparava-se com o que chamava de crise. Não podia ser o que quisera, estava
condenada a representar um papel que lhe determinaram. Já Raquel, personagem
da Lygia Fagundes Telles, aparece como uma mulher que ousou escolher outro
destino, seguir um novo caminho ao lado de um homem que lhe proporcionava uma
situação financeira confortável, e para isso fez uma escolha e abandonou Ricardo.
Não se sentia infeliz, estava muito bem, mas foi fisgada pela astúcia e pela mentira e
assim tornou-se presa fácil para Ricardo que não admitiu ser abandonado.
Impossibilitado de sonhar com seu ideal de felicidade, ter Raquel, buscou solucionar
o problema que manchava seu papel social, mas não resolveu o problema maior,
sua solidão. Preferiu levar a esperança para o túmulo a ter que viver sem o seu amor
e sem a sua honra.
No primeiro capítulo, realizou-se um breve histórico sobre as mulheres, com
enfoque nas brasileiras, desde a época do Brasil colonial até os dias atuais. Uma
história de opressão da população feminina ao longo dos tempos. No Brasil colônia
as mulheres foram exploradas pelos homens, serviram aos pais, aos patrões, aos
maridos, manipuladas pela Igreja. Foram excluídas desde o início e não ofereceram
nenhum tipo de resistência significativa.
No Brasil Imperial a mulher ganhou um novo papel a ser representado
socialmente: ser mãe, esposa e responsável pela organização do lar. Seu espaço
era a sua casa, enquanto aos homens cabiam as decisões políticas, portanto o
108
espaço público. Com o desenvolvimento iniciou-se uma ínfima participação das
mulheres na sociedade. Algumas passaram a freqüentar as escolas e outras até
ingressaram em universidades.
O século XIX foi palco de grandes transformações e uma das mais
significativas, sem dúvida, foi a aparição das primeiras escritoras, o que possibilitou
uma conscientização da situação das mulheres e abriu espaço para que
reivindicações importantes fossem discutidas, como por exemplo a luta pelo direito à
educação, à profissão e ao voto.
Conhecer um pouco a respeito da história das mulheres, colaborou na
compreensão sobre a constituição do universo feminino, ponto importante para as
análises ora exibidas neste trabalho. Foram apresentadas também reflexões sobre
gênero, que estabeleceu explicações sobre as diferenças entre os homens e as
mulheres, baseadas nas distinções de sexo e centradas nas diferenças físicas;
sobre o sexismo que comportou as atitudes discriminatórias em relação ao sexo
oposto, e sobre o ethos, que considerou a imagem que as mulheres construíram de
si nos discursos analisados.
O universo feminino é produto de fatores sociais e circunstâncias históricas,
formados em uma determinada época, e sua existência se dá em oposição à
existência de outro universo: o masculino.
Produziu-se no capítulo II a análise do conto “Amor”, de Clarice Lispector. A
autora apresentou uma personagem extremamente fragilizada, que abdicou de seus
sonhos para assumir um papel imposto pela sociedade, o de ser mãe e esposa
zelosa, e pagou um alto preço pela escolha. A análise da narrativa inicia-se com a
personagem Ana em busca de um objetivo, encontrar felicidade, porém já na sua
modalização de atitude isso se revelou uma mentira, pois Ana não era feliz, mas
representava um papel social e mostrava-se feliz a todos. O percurso narrativo
recebeu um obstáculo, um opositor: o fluxo de consciência de Ana, seu inimigo,
aquele que trazia a Ana um conflito impiedoso e que necessitava, portanto, ser
solucionado. Ao ver um cego mascando um chicle, ela deparou-se consigo mesma,
com o que era, o que queria para si, e tudo isso a perturbara, e a partir de então, o
conflito se instaurou. Averiguou-se que o conflito tornou-se próprio do universo
feminino, ao revelar a abdicação, a aceitação das condições que lhe foram impostas.
Ao encontrar-se com suas verdades, Ana considerou os laços afetivos e voltou-se
109
para atender às necessidades daqueles que a cercavam, privou-se de realizar seus
desejos mais íntimos. Era no lar que sua figura tinha valor, e lá ela se refugiou.
Sabia que não era feliz, porém não se arriscou a vivenciar outros papéis. A narrativa
teve um desfecho de fracasso, porque Ana preferiu voltar às suas atividades
rotineiras e continuar oprimindo qualquer possibilidade de não aceitação desse
papel que lhe fora imposto.
Na análise crítica do discurso, realizada segundo o modelo de análise de
Fairclough (2001), observaram-se as marcas de controle de interação entre as
personagens, o tópico, a modalidade, a polidez no discurso, o ethos e ainda as
considerações feitas a respeito dos aspectos da constituição da realidade social, que
destacaram: os conectivos e a argumentação, a transitividade e o tema, o significado
das palavras, a criação das palavras e as metáforas, itens que comprovaram o perfil
da mulher estereotipada como frágil, inoperante, aquela que precisava ser protegida.
Ana não demonstrou resistência alguma, não lutou para remoldar as práticas
discursivas que colocaram a mulher na posição de fragilizada e dependente.
Observou-se a força com que as regras sociais impuseram às mulheres
papéis femininos e o quanto influenciaram suas escolhas. Dessa forma, as
ideologias alcançaram o senso comum e mantiveram o discurso de que a mulher
pertence ao sexo frágil, é dependente, só pode se realizar no lar e desempenhar
suas funções: ser mãe e esposa fiel, esses são os papéis que lhe são reconhecidos
socialmente.
O mesmo modelo de análise seguiu para o conto “Venha ver o pôr-do-sol” de
Lygia Fagundes Telles, no capítulo III. Constatou-se a construção do conflito e pode-
se averiguar que a autora revelou o universo feminino por meio do olhar masculino,
pois foi a personagem principal, Ricardo, quem descobriu as faces da mulher neste
conto.
A análise da estrutura narrativa teve em seu percurso o objetivo da vingança,
já que Ricardo fora abandonado pela amante Raquel. Ricardo contou com a astúcia
para realizar seus planos e para tanto, permaneceu na sua modalidade de atitude o
segredo, pois não podia revelar suas reais intenções. Para sustentar essa
modalidade, contou com argumentos mentirosos. Apareceram como obstáculos as
desculpas de Raquel para não aceitar suas propostas, porém ela foi ludibriada,
envolvida, seduzida por palavras doces, por um discurso de homem apaixonado,
110
amante da natureza, que só queria passar um dia, uma tarde ao lado de sua amada.
Ricardo conseguiu seu objetivo, porém a narrativa teve seu desfecho de fracasso,
pois ao concretizar seu plano e prender Raquel no jazigo de um cemitério
abandonado, ele destruiu o objeto de sua felicidade.
A análise crítica do discurso, bem como a constituição da realidade social,
trouxeram elementos que comprovaram o discurso como meio manipulador e
permitiu a Ricardo mostrar-se forte e vencedor, mesmo não obtendo a felicidade de
conviver com sua amada, reforçou-se a idéia de que ao homem, nas relações
amorosas, não cabe ser o perdedor, pois era ele quem oferecia as regras do jogo.
Ao papel desempenhado por Raquel, instituiu-se o ser manipulável, a mulher que
agiu pela emoção, e que foi facilmente seduzida por um bom discurso, por palavras
suaves e mentirosas. Revelou-se um processo real de significação ideológica,
política e cultural, que teve por princípio ser o homem mais forte que a mulher. As
relações de poder foram estabelecidas e mantidas nos discursos do conto.
A partir das análises e dos estudos efetivados, considerou-se que os conflitos
analisados nos contos escritos por mulheres foram construídos a partir de
ideologias, próprias de uma época, que marcaram as relações interpessoais, e
estabeleceram nas relações de poder a condição da mulher e seu papel social. As
análises permitiram também observar o quanto as regras estabelecidas pela
sociedade atuaram como forças que impulsionaram o agir das personagens. Ora
movidas pela paixão, ora pela necessidade em ter seu lugar social garantido, as
personagens buscaram resolver seus conflitos, porém encontraram resistência
nessas mesmas forças, que as detiveram, ao impossibilitar qualquer movimento de
libertação.
111
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