Download PDF
ads:
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
CHE GUEVARA:
A MÍDIA COMO POTENCIALIZADORA DO MITO
JUAN DE MORAES DOMINGUES
Porto Alegre
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
CHE GUEVARA:
A MÍDIA COMO POTENCIALIZADORA DO MITO
JUAN DE MORAES DOMINGUES
Orientadora: Prof. Dra. Dóris Fagundes Haussen
Dissertação apresentada como pré-requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Comunicação Social pelo Programa de
Pós-Graduação em Comunicação Social.
Porto Alegre
2008
ads:
3
JUAN DE MORAES DOMINGUES
CHE GUEVARA:
A MÍDIA COMO POTENCIALIZADORA DO MITO
Dissertação apresentada como pré-requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Comunicação Social pelo Programa de
Pós-Graduação em Comunicação Social.
Aprovado em ___ de ___ de _____.
BANCA EXAMIDORA:
__________________________________
Prof. Dra. Dóris Fagundes Haussen
Orientadora
___________________________________
Prof. Dr. Juremir Machado da Silva
Famecos/PUCRS
___________________________________
Prof. Dr. Francisco Menezes Martins
Feevale
4
Para Filipe e Me
5
AGRADECIMENTOS
Agradecer é um ato de respeito e reconhecimento
a quem nos dispensou, em pequena ou grande
medida, atenção, compreensão, apoio e vibração.
Por isso, nesta trajetória, agradeço especialmente
à professora Dóris, por acreditar na proposta
desta pesquisa e pelo carinho e pela amizade de todos os dias,
a Maria de Fátima Záchia Paludo, pela força e
sensibilidade, a meus pais, por tudo, e a
Meire Fátima Borges da Silva,
por tudo e muito mais.
Muito obrigado.
6
Nada pode parar uma idéia cujo tempo chegou.
Victor Hugo
7
RESUMO
Este trabalho analisa a força de permanência do mito de Che Guevara 40 anos
depois de sua morte. Desde que foi morto na Bolívia, em outubro de 1967, Che se
transformou em mito, a despeito de suas distintas versões e releituras ao longo do
tempo. A famosa foto de Alberto Korda, reproduzida aos milhares nessas quatro
décadas, se tornou uma espécie de totem ideológico, mas também uma imagem
consumida por milhares de pessoas das mais diferentes maneiras.
Esta dissertação, portanto, se ocupa em verificar a trajetória deste mito e a força que
o mantém. Para isso, o estudo identifica ao menos quatro variáveis que atuam no
fortalecimento do mito de Che: a midiática, a ideológica, a imagética e a de consumo.
Embora não ajam necessariamente de forma simultânea e nem na ordem acima citada, é
este ciclo que retroalimenta o universo guevarista. É importante notar que dentre as
quatro variáveis, é a mídia que, em seus diferentes suportes, potencializa as outras três,
impulsionando a imagem, o consumo e a ideologia de Che e seu mito.
PALAVRAS-CHAVE: Che Guevara, mídia, mito.
8
ABSTRACT
This research studies the power of permanence of the Che Guevara´s myth 40
years after his death. Since he died in Bolivia, in october 1967, Che became a myth,
with various versions and new readings during this time. Alberto Korda´s famous
picture, a thousand times printed during these four decades, became an ideological
totem, but also an image bought by many people through different ways. This
dissertation, so, focus the path of the myth and the force that supports it. To do it, the
study identifies at least four variables that act to give power to the myth: media,
ideology, imagery and consumption.
Though they don´t act simultaneously and not in the order they are placed, this
cicle provides a constant feedback to guevarist universe. It is important to notice that
among the four variables, it is the media that, with your ways, gives power to the others,
leveraging the image, the consumption and the ideology of Che Guevara and his myth.
KEY-WORDS: Che Guevara, media, mith.
9
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: Ernesto, antes de ser Che ............................ 22
FIGURA 2: Che Guevara e Fidel, por Korda ................. 24
FIGURA 3: Che, por Andy Warhol ................................ 25
FIGURA 4: Che Guevara à venda .................................. 75
FIGURA 5: “Estampa superpop” ................................... 79
FIGURA 6: Revista lembra Che como violento
e autoritário ..................................................................... 84
FIGURA 7: Revista trata Che como intelectual ............. 88
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................11
1.1 Justificativa e problema de pesquisa ............................................14
1.2 Objetivo geral ...............................................................................16
1.2.1 Objetivos específicos .................................................................16
1.3 Referencial teórico.........................................................................17
1.4 Procedimentos metodológicos ...................................................... 20
2. DE ERNESTO A CHE ................................................................. 25
2.1 Adolescência e política ................................................................. 28
2.2 O revolucionário ........................................................................... 31
2.3 Che e sua época ............................................................................ 33
3. O IMAGINÁRIO E O MITO ...................................................... 41
3.1 Mito ...............................................................................................42
3.2 Imaginário ..................................................................................... 47
3.3 O imaginário desloca Che ............................................................. 53
4. FORÇAS QUE SUSTENTAM O MITO..................................... 56
4.1 A ideologia ....................................................................................60
4.2 A imagem .....................................................................................67
4.3 O consumo ........ ............................................................................76
4.4 A mídia ..........................................................................................84
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................... 100
6. REFERÊNCIAS .......................................................................... 110
7. ANEXOS....................................................................................... 113
11
1. INTRODUÇÃO
A trajetória de Ernesto Che Guevara de la Serna já é por demais conhecida,
especialmente entre historiadores, escritores e jornalistas. Ao longo dos anos, muitos
deles se ocuparam em descrever e compreender a vida do jovem médico argentino que
se tornaria um dos principais símbolos da esquerda revolucionária mundial. Há 40 anos,
mais precisamente a partir de 9 de outubro de 1967, quando foi assassinado na Bolívia
pelo exército local, o líder guerrilheiro se transformou em um mito universal, um
símbolo da esquerda mundial e da luta contra o capitalismo.
12
Algunsautoresafirmamqueaampladi mensãoalcançadaporCheseudep oisdesua
morte.Apartir daí, o guerrilheiro virou mito. Michel Maffesoli afirmaque a “morte do chefe
(papa,rei,senhor)oudainstituiçãoquelheservedesuporte”éumaespéciedesacrifíciopara
que surja “um
novo ethos comunitário e sirva de anamnese ao ato fundador que permitirá à
sociedadeconsiderarsecomotal”
1
.
Para ilustrar o que diz, Maffesoli cita a estratégia da Igreja Católica para manter
sempreacesaachamadaentreosfiéis.“AIgrejaCatólicanãoseenganouquantoaissoao
celebrarcotidianamente,atravésdeumeufemismo,amortedofilhodeDeus,nosacrifícioda
missa,
dandosemprenovovigoràuniversalidadedesuaassembléia”
2
.
Neste sentido, imortalizado por uma imagem, a famosa foto de Alberto Korda, o
mito Che Guevara atravessou quatro décadas a despeito das mudanças sociais,
econômicas e culturais em um mundo diferente daquele vivido por Che. O mito resiste,
mas não se mantém intacto. A percepção imaginária em relação a ele tem passado por
diferentes releituras. Conforme Everardo Rocha, o melhor a fazer é tentar não entender
o mito “como uma regra, uma questão de múltipla escolha, uma prova final”. Para ele,
“o mito é uma narrativa, um discurso, uma fala”
3
.
Emummundoforjadopeloprocessodeglobalizaçãoempraticamentetodasasesferas
da vida cotidiana, a imagem de Korda não é mais vista apenas em quadros pendurados nas
paredes de sindicatos de trabalhadores, de movimentos sociais ou de gabinetes de partidos

1
Maffesoli, M. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 2005, p.
76
2
Ibidem, 2005, p. 11.
3
ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.32.
13
políticos de esquerda, que se apropriaram alguns ainda se apropriam do que Che
representouumdianocenáriopolíticoeideológico.
Hoje, o rosto sério de Che Guevara está estampado nos mais diferentes suportes:
camisetas,jaquetas,bottons,cintas,bonés,biquínis,xícaras,calendários.Objetoscomafigura
do
mitoestãoàvendanasruascentraisdasgrandescidadesdaAméricadoSul,daEuropa,da
Ásia e até de metrópoles norteamericanas. Estão à venda em toda a parte. Na Internet,
centenas de portais a maioria deles produzida nos Estados Unidos que comercializam
produtos
4
comorostodeChe.Porironia, osímbolodarevoluçãosocialistasetransformouem
umíconedeconsumodosistemacapitalistaqueeletantocombateu.
AmídiatambémconsomeCheGuevaradesdesuamorte.Acadadataparamarcarsua
execução na Bolívia, meios de comunicação de todos os
cantos do planeta produzem
reportagens especiais e séries para televisão. De tempos em tempos, as editoras de livros
publicam obras inéditas, assim como novos filmes chegam às telas dos cinemas.
Independentementedesuasversões,Cheestásempreempauta.
NoBrasil,paracitar nesta introdução dois exemplos que serão abordados
commaior
profundidadenestetrabalho,aediçãodaprimeirasemanadeoutubrode2007daRevistaVeja
lembrou os 40 anos da morte de Che tratandoo como um guerrilheiro violento, sujo,
egocêntrico,sanguinárioequecomandouexecuçõessumáriasdequemseopunhaaogoverno
instaladoemCuba.Namesma
semana,tambémcomointuitodefazerumresgatehistóricodo

4
Disponível em: www.starstore.com. Acesso em: 12 jun. 2007.
14
líder revolucionário, a Revista Caros Amigos fez outra leitura do mito e valorizou o lado
intelectualdeCheGuevara.
Nesta teia em torno do mito de Che é difícil estabelecer quem influencia quem. O
imaginário social, especialmente de parte dos jovens, ainda se alimenta dos ideais de Che
comouma
marcaderebeldia,justiçaelutaporummundomelhor.Amídiatambémseocupa
do mito de Guevara não apenas para não ficar de fora deste cenário, mas, principalmente,
para tentar explorar um ponto de vista diferente da vida de Che, alguma faceta pouco
conhecidadohomemErnestoGuevarade
laSerna.
1.1Justificativaeproblemadepesquisa
A principal justificativa para tratar de Che Guevara nesta dissertação não está
somente na coincidência do período que marca os 40 anos de sua morte, lembrada em 9
de outubro de 2007, mas, especialmente, pela força do mito de Che, que se mantém no
imaginário social a despeito do enfraquecimento de seus ideais revolucionários, hoje
deslocados do cenário socioeconômico e cultural neste começo de século XXI.
Talvez o fato de ter morrido sem ter conseguido libertar a América Latina do
“império norte-americano”, sua grande obsessão, tenha contribuído para a construção do
personagem. Mas, segundo Castañeda (1997), foi a morte que deu a Che Guevara o
significado de sua vida, e sua vida a seu mito. Alguns autores defendem que o ocorrido
com Che foi uma coincidência entre o tempo e o homem.
15
Isso nos leva a refletir se outro personagem poderia ser capaz de representar tão
bem uma geração (a dos anos 60) quanto Che o fez. Mesmo uma investigação profunda
correria o risco de não achar uma resposta convincente. Para Castañeda, porém, Ernesto
só poderia ter sido o que foi naqueles anos. “Outra vida jamais teria captado o espírito
da época; outro momento histórico nunca se reconheceria em uma vida como a dele”
5
.
Desde os tiros que o mataram nas montanhas bolivianas até hoje, o mundo
mudou substancialmente. Em 40 anos, o planeta se tornou um lugar diferente e em nada
parecido com o lugar que Che sonhou.
Neste período, países se dissolveram, outros foram criados. Alguns muros foram
derrubados, outros reforçados. A industrialização segue firme o seu ritmo, embora hoje
o momento seja o das novas tecnologias de comunicação e de informação. Por causa
dessa revolução tecnológica – ainda em andamento e sempre oferecendo novas
ferramentas – sociedades inteiras modificaram hábitos e costumes sob o processo de
globalização – termo que será explorado com mais detalhes neste estudo –, mas que
pode ser explicado aqui como um conjunto de processos econômicos, sociais, culturais
e de comunicação que tem decretado a dissolução de fronteiras, reduzido distâncias e
permitido intercâmbios de toda ordem.

5
CASTAÑEDA, Jorge G. Che Guevara: a vida em vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,
p. 15.
16
Nas palavras de Bauman, “globalização é a extensão totalitária de sua lógica a
todos os aspectos da vida”
6
. Diferente do mundo no qual vivia Che, dividido em dois
pólos opostos, o comunismo soviético e o capitalismo comandado pelos Estados
Unidos, o planeta deste começo de século XXI é regido por este novo sistema. Para
Bauman, o significado mais profundo transmitido pela idéia da globalização é “o do
caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a
ausência de um centro, de um painel de controle”
7
.
A despeito de todas essas mudanças, o mito de Che Guevara ainda está presente.
Modificado, relido e até mesmo deslocado de seu habitat natural, o universo da esquerda,
segue sendo pauta da mídia mundial, em geral, inclusive no Brasil. Compreender como este
mitosemantémnoimagináriosocialeé
consumidodeformasdistintasconstituio problemaa
sertratadonestapesquisa.
1.2Objetivogeral
IdentificarcomoaforçadomitoCheGuevarasemantémaolongodotempo.
1.2.1Objetivosespecíficos
a)AnalisarvariáveisquepossamcontribuirparaamanutençãodomitoChe Guevara;

6
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.
73.
7
Ibidem,1999,p.67.
17
b) Verificar de que forma veículos de comunicação impressos contribuem para a
permanência do mito de Che com reportagens que abordam a imagem, o consumo e a
ideologiaguevarista.
c) Avaliar o tratamento dispensado a Che Guevara por dois veículos de comunicação
impressosdoBrasil,emreportagensquelembraramos
40anosdesuamorte.
1.3REFERENCIALTEÓRICO
Sob o escopo da Comunicação e da Cultura, esta dissertação aborda noções teóricas
acerca do mito em Roland Barthes, Everardo Rocha e Castor Bartolomé Ruiz, do imaginário,
em Gilbert Durand, Juremir Machado da Silva, Edgar Morin e, especialm ente, a partir da
sociologia compreensiva de Michel Maffesoli, entre outros autores, do
consumo, em Néstor
GarcíaCanclini,damídiaedaideologia,principalmenteemCiroMarcondesFilho,edaimagem
edafotografia,emautorescomoRolandBartheseIvanLima.
Porsetratarde umapesquisaqualitativa,este estudo ocupase com o que não pode
ser quantificado. Como afirma Minayo,
este tipo de pesquisa “trabalha com o universo de
significados,motivos,aspirações,crenças,valoresaatitudes”
8
.

8
DESLANDES, Suely F.; NETO, Otávio C.; GOMES, Romeu; MINAYO, M. Cecília de Souza (org).
Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 21.
18
Néstor García Canclini
9
, que admite não existir ainda uma teoria sociocultural do
consumo,procuraarticularajunçãoentreconsumidorese cidadãos,principalmenteemmeio
atantas mudançassociais,econômicaseculturais ocorridascomgrandeintensidadenasduas
últimas décadas. Para ele, consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se
realizam a
apropriação e os usos dos produtos. E vai além. Canclini acredita que o consumo
estáligadoaomododeosindivíduossecomunicaremcomosoutros,aproximandosedaidéia
dastribos,deMichelMaffesoli.
O que Maffesoli propõe é que a sociologia compreensiva seja o que ele costuma
chamar
dea “sociologia do ladodedentro”
10
.Na sociologiacompreensiva,Maffesoliutilizao
formismocomometodologia,ouseja,apráticatambémutilizadaporG.Simmelqueestuda as
formasdavidasocial.Maffesoli defendeesterecursometodológicoespecialmentequandose
pretendedarcontadaforçadeestruturaçãodaimagemdeumasocialidade.
Ao tratar das tribos e
do estarjunto, ele relaciona comunicação, informação e
imaginário, cujo cimento desta construção é a inclinação que as sociedades contemporâneas
têmpelaimagem.Comentaoautor:
O gosto atual, intenso, pelas imagens pode levar a estabelecer o laço entre
comunicação, informação e imaginário. Vale tentar: o imaginário é a partilha,

9
CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos: Conflitos multiculturais da globalização. Rio
de Janeiro: UFRJ, 2006.
10
MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum: Compêndio da sociologia compreensiva. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 25.
19
com outros, de um pedacinho do mundo. A imagem não passa disso: um
fragmento do mundo. A informação serve, então, para fornecer elementos de
organização do puzzle de imagens dispersas. Assim, as tribos de cada cultura,
partilhando pequenas emoções e imagens, organizam um discurso dentro do
mosaico mundial
11
.
Apartirdesteviés,érazoávelestabelecerrelações entreoimaginárioeoconsumodo
mito de Che Guevara por grupos que parecem buscar em sua imagem uma forma de se
comunicar, de expressar algo que possa representa mudança, independência,
posicionamentospró(próverde,porexemplo)econtratendênciasmundiais(contra
guerrase
produçãoindustrialdesmedidaqueprejudicaomeioambiente).
Trisha Ziff, curadora de uma exposição itinerante promovida em 2007 sobre a
iconografia de Che para marcar os 40 anos da morte do guerrilheiro, sintetiza o que tem
ocorridocomomitonasúltimasquatrodécadas:“AimagemdeChe
Guevaravirouumamarca,
fugiudocontrole.Elasetransformounumacorporação,emumimpérioaestaaltura”,afirma
Trisha,ementrevistaàediçãodojornalOGlobonaweb
12
.
Talvez resida nesta representação de independência, resistência e rebeldia que a
imagemdeCheeseumitoquepodemtersetransformadoemmarca,comoacreditaZiff,ou
em símbolo transnacional continuem sendo consumidos de muitas maneiras, inclusive pela
mídia,emummundotãomodificadoemrelação
aoplanetadequatrodécadasatrás.

11
Maffesoli, M. A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da comunicação). In Revista Famecos,
mídia, cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, nº 20, 2003, p. 17.
12
Globo Online: www.oglobo.globo.com, 7 de outubro de 2007 – acessado em 22 de dezembro de 2007.
20
1.4PROCEDIMENTOSMETODOLÓGICOS
Parachegaraosobjetivospropostos,esteestudoseocupadeumarevisãobibliográfica
sobre o tema, seguida de análises de leituras sobre mito, imagem, imaginário, consumo e
globalização, a partir de teorias de autores acima citados e de outros. Esta pesquisa utiliza,
especialmente, as noções da sociologia compreensiva, de
Michel Maffesoli, que percorre um
caminhomarginalàvisãoeconomicistadodadosocial.
Ele parte para uma espécie de cesura entre a sociologia positivista, para a qual cada
coisaéapenasumsintomadeumaoutracoisa,easociologiacompreensiva,“quedescreveo
vivido naquilo que é, contentandose,
assim, em discernir as visadas dos diferentes atores
envolvidos”
13
. Para Maffesoli, “O pensador não se deve abstrair; é que ele faz parte daquilo

13
MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum: Compêndio da sociologia compreensiva. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 25.
21
que descreve e, situado no plano interno, é capaz de manifestar uma certa visão de dentro,
umaintuição
14
.
Nasociologiacompreensiva,Maffesoliutilizaoformismocomometodologia, ouseja,a
práticatambémutilizadaporG.Simmelqueestudaasformasdavidasocial.Maffesolidefende
este recurso metodológico especialmente quando se pretende dar conta da força de
estruturaçãodaimagemdeumasocialidade.
O sociólogo francês pergunta o que é pertinente a um sociólogo se não “saber
dar conta da riqueza do dado social, em perpétua ebulição”
15
. Em vez de reduzir a
questão ao que chama de “menor denominador comum”, Maffesoli prefere
“compreender, em sentido estrito, estes entrecruzamentos de paixões e razões, de
sentimentos e cálculos, de devaneios e ações que se chama sociedade”
16
. Trata-se,
portanto, de uma metodologia baseada na vida cotidiana, que busca apresentar as formas
sociais como elas são. E para isso, é bom que se diga, não há um modelo pré-definido.
Cada forma tem a sua especificidade. Como o próprio nome desta teoria nos diz,
a sociologia compreensiva está mais interessada em compreender do que explicar.
Compreender o social é mostrá-lo como ele se apresenta e não como gostaríamos que
fosse. É o fluxo natural de um rio que, uma vez desviado, transformará também sua
forma. Por isso, a sociologia compreensiva, a partir do conhecimento comum, evita

14
Ibidem, 1985, p. 25.
15
Ibidem, 1985, p. 146.
16
Ibidem, 1985, p. 146.
22
desviar os leitos dos rios, não estabelece um dever-ser ao objeto social justamente para
não mudar seu curso. Ao refletir sobre o papel da comunicação nas sociedades atuais,
onde “tudo é permeável”, o autor encontra no termo tribalismo uma forma de
compreender essas sociedades. Segundo ele, este retorno do tribalismo “é causa e efeito
de uma concepção cíclica do tempo”
17
. O tribalismo reforça a idéia de encontro, de estar
agregado e exalta o desejo de estar junto.
As diversas celebrações estão aí para prová-lo, assim como a constituição das
pequenas tribos; o ressurgimento da etnicidade coroando tudo isso, a repetição,
o rito, o ciclo reforçam um sentimento vivido na proximidade. O rito, neste
sentido, favorece, para o bem ou para o mal, o desencadeamento das paixões.
Sua função principal, ou quem sabe a única, é ‘celebrar o clã, suscitar entre os
seus membros a paixão por ele
18
.
A força do conjunto, cimentada pelo desejo de manter fortalecida a união social
de determinado grupo, pode, permanentemente, revitalizar o mito, dando a ele uma nova
feição, novas cores, novos conceitos e uma nova roupagem, adequada ao momento e
adaptadas a seus objetivos. O pesquisador francês afirma:
Todo objeto ou fenômeno está ligado a outros e é por eles determinado. Em
conseqüência, fica exposto à mudança e ao acaso ou, em síntese, à
instabilidade geral das coisas (...) Da mesma forma, as categorias elaboradas
numa determinada época não são eternas e devem ser revisadas se quisermos
compreender, com menor imprecisão, a evolução em questão, cujos efeitos é
muito difícil, empiricamente, negar
19
.

17
MAFFESOLI, Michel. op. cit. p. 125.
18
Ibidem, 2005, p. 123.
19
Maffesoli, M. Mediações simbólicas: A imagem como vínculo social. In Revista Famecus, mídia,
cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, n. 8,1998, p. 7.
23
A hipótese é de que a percepção da imagem de alguém ou de algum fenômeno,
relato ou símbolo possa, de fato, vir a sofrer alterações com o passar do tempo, uma vez
que “tudo se quebra, tudo passa, tudo cansa”
20
. Maffesoli acrescenta:
Quando os diversos elementos integrantes de uma determinada identidade não
podem mais, por desgaste, incompatibilidade, fadiga, etc., permanecer ligados,
entrarão, de maneiras variadas, em outra composição, favorecendo o
aparecimento de outra identidade. (...) Talvez essa seja a única lei que
possamos identificar no transcurso caótico das histórias humanas
21
.
Com o objetivo de solucionar a questão principal deste estudo e fazer um recorte
possível de ser executado, analiso o problema a partir do que passo a chamar aqui de
variáveis,queconstituemosalicercesdesustentação damanutençãodomitodeChe.Sãoelas
a variável ideológica, a variável
de consumo, a variável imagética e a variável midiática. Esta
pesquisa se consolida com a observação dessas variáveis em duas grandes reportagens de
revistas brasileiras: Veja e Caros Amigos. As duas edições abordam os 40 anos da morte do
revolucionárioargentinocomposiçõesantagônicas.
Noquetangeàvariável
ideológica,pareceevidentequeosideaisdeCheGuevaranão
têm mais a força que tinham alguns anos. No entanto, ainda grupos que se apropriam
das mesmas utopias e exaltam a figura do Che libertário, guerrilheiro e defensor de causas
sociais,comosindicatosdetrabalhadores,centrosestudantise
movimentossociais.Mesmo
quemaiscontidadoquenasdécadasde60,70e80,afaceideológicadeCheaindaencontra
respaldosocial.

20
MAFFESOLI, op. cit. p. 8.
21
MAFFESOLI, op. cit. p. 10.
24
A variável de consumo é representada pela presença da imagem de Che nos mais
diferentes suportes, desde os biquínis da empresa Cia. Maríti ma, vestidos pela top model
Giselendchen,transferindoumíconedaesquerdaparaumprodutodemoda,atéousoda
mesma foto de Alberto Korda impressa nas bandeiras
das torcidas de times de futebol do
Brasil,comonaCamisa12,doSportClubInternacional,dePortoAlegre.
Nesses casos, talvez o que menos importa é se existe ou não o fundo ideológico por
partedequemconsomeaimagemdeChe.Ofundamentalaquiéusar,consumir,compartilhar
do mesmo imaginário. Nas palavras de Juremir Machado da Silva, que usa os Beatles como
exemplo,oimaginárioseporcontágio.“Umageraçãointeirasonhouosonho dosBeatlese
odisseminoucomosendoumacontestaçãodosvaloresentãovigentes”,lembraSilva
22
.
A variável imagética reforça o mito a partir da famosa foto de Korda. Nela, Che tem
umrostosisudo, sério, determinado, forte, bonito, jovem e destemido ao mesmo tem po.
inúmeras fotos do revolucionário circulando pelo mundo, mas é esta, e não outra, a foto do
mito. Historicamente, mitos
são marcados por uma imagem, a imagem mais forte, a que lhe
servedebasedesustentação.
Para citar alguns exemplos de celebridades marcadas por uma, entre tantas fotos:
AlbertEinstein(mostrandoalíngua),MarlynMonroe(segurandoovestido),CarmemMiranda
(balançando as mãos aoladodacabeça ornada com frutas),
GetúlioVargas(sentadonarede
da varanda da fazenda, em São Borja), Jesus Cristo (na cruz) e John Lennon (de óculos

22
SILVA, Juremir M. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 13.
25
redondos e escuros, com os cabelos desgrenhados e de braços cruzados, vestindo uma
camisetapretanaqualestáescritoNewYork).
Embora o mundo conheça e reconheça essas personalidades em centenas de outras
fotografias, as imagens que ajudam a construir mitos são únicas. No caso específico de Che,
até mesmo
as paródias em relação ao guerrilheiro se utilizam daquela famosa foto. Existem,
porexemplo,montagenscomafotodeChecomasorelhasdoMickeyMouse,comorostode
umacaveiraoucomafigurapatéticadoSeuMadruga,personagemdoseriadoinfantojuvenil
mexicano Chaves. Mesmo nessas reconfigurações,
é possível reconhecer que o objeto
modificadoéCheGuevara,aqueleChedafotodeKorda.
Por fim, a variável midiática. Esta se encarrega de manter o mito de Che Guevara
sempreempauta,detemposemtempos.Paraobemoupara omal,elogiandooucriticando,
osmeios
midiáticos imprensa,literaturae cinema(a força mitológica deCheGuevarapode
sercomparadaà de um astro de Holywood), se ocupam da história de Che, seja pelo viésde
seus românticos ideais e sua ideologia, seja pela violência com que levava a cabo seus
objetivos. É a mídia
que potencializa a força do mito ao abordar, ciclicamente, a imagem, a
ideologiaeoconsumodeChe.
26
2.DEERNESTOACHE
27
Antesdequalqueraprofundamentoteórico,éprecisoquesefaçaumarápidavoltaao
passado. Neste caso, é necessário visitar os anos de Ernesto ainda pequeno, vivendo com os
pais, passear um pouco pela adolescência, seu espírito solidário e aventureiro até chegar ao
líderrevolucionárioquese
transformouemíconedaesquerdamundialedepoisdamorte,em
mitouniversal.ErnestonasceuemRosário,emumafamíliadaaristocraciaruralArgentina,em
14 de junho de 1928. Foi o primeiro de cinco filhos de Ernesto Guevara Linch e Celia de la
Serna y Llosa, ambos descendentes de
famílias com títulos, distinções, terras e dinheiro
especialmenteporpartedamãe,cujasrendas eherançaseramabasedesustentaçãodacasa.
28
Isso porque os projetos empresariais do pai, que era arquiteto, não rendiam o retorno
financeiroesperado.
Doscincofilhos,Ernestoeraomaispróximodamãe,quemantinhaumapreocupação
zelosa e permanente porque desde os dois anos de vida, o menino passou a sofrer de asma.
Por causa da doença
de Ernesto, a família viveu anos mudando de endereço para melhor
protegerofilhodasinconstânciasclimáticas.
Para se ter uma idéia, em 1933, os Guevara trocaram San Izidro, nos arredores de
BuenosAires,pelasmontanhasdeAltaGracia,a40quilômetrosdeCórdoba.Viveramemuma
casa de campo
em Villa Chichita. No mesmo ano, mudaram para outra residência em Villa
Nydia,tambémemAltaGracia.Noanoseguinte,seestabeleceramemChaletdeFuentes.Em
1937, os Guevara fizeram novamente as malas. Deixaram Fuentes para viver em Chalet de
Ripamonte,masem39retornamparaVillaNydia,onde
viveramaté1941.
Talvez as constantes mudanças de cidade e de casa, que fizeram parte da vida de
Ernestoatéelecompletar15anosdeidade,nãotenhamtidoinfluênciasignificativanoespírito
inquieto que seria a marca do comandante em seus anos adultos e que o levaria a cruzar
as
Américas e a atuar inclusive na África. Mas não é recomendável desprezar que a rotina de
viverdeumladoparaoutropodetercontribuídoparaqueErnestoencarasseessenomadismo
comcertanaturalidade.ParaCastañeda,“anormalidadeguevaristaresidianomovimento”
23
.

23
CASTAÑEDA,op.cit.p.25.
29
Se Ernesto teve a infância marcada pela asma, Celia ficou órfã ainda criança. Nasceu
sob o manto do catolicismo até perder os pais. Passou a ser criada pela irmã, Carmen de la
Serna,queeracasadacomopoetaejornalistaCayetanoCórdovaItúrburuambosligadosao
Partido Comunista
Argentino. Celia viveu a infância e a juventude em um universo de
esquerda. Lembra Castañeda: “[...] o ambiente livrepensador, radical ou francamente de
esquerdaatransformarianumapersonagemàparte:feminista,socialistaeanticlerical”
24
.
Assimcomoasconstantesmudançasdeendereço,ofatodeamãeserumapessoade
esquerdatambémnão permiteassociaroperfilpensador deCe lia diretamenteaodestinode
Ernesto. Mas é outro ingrediente que não se pode alijar do processo de construção de sua
identidade.
2.1Adolescênciaepolítica
Ernesto herdou do pai e da mãe a admiração pelas práticas esportivas, como a
natação, o rúgbi e o golfe. Eles o incentivavam porque acreditavam que o esforço físico
pudesse aplacar a asma, que a cada crise era obrigado a permanecer de cama por dias. Os
momentos em que precisava
ficar em casa devido à doença, no entanto, fizeram Ernesto
desenvolverohábitopelaleitura.

24
Ibidem, 2006, p. 19.
30
Entreosanos30e40,aArgentinaforteerica,consideradaumoásiseuropeunapobre
AméricaLatina,passouaviver um novoperfilsocioeconômico.Aindustrializaçãonãoapenas
ocupou parte do espaço antes dominado pela produção agropecuária como gerou novas
frentes de trabalho, diferentes tipos de mão deobra
e, por conseqüência, contribuiu para o
estabelecimentodeclassessociaisdistintas.
O país viveu uma onda de imigração, gente que partia de muitos países da Europa,
especialmentedaEspanhaedaItália.Asociedadeportenhasealterousubstancialmente.Nas
escolasenasruas,ascriançasargentinaspassaramaconvivercom
colegaseamigosdeoutras
descendênciasetambém deoutrasclasseseconômicas.
Aos poucos, Ernesto começou a se interessar por livros que tratavam de temas
políticos devido à participação do tio Cayetano Córdova Itúrburu na cobertura jornalística da
Guerra Civil Espanhola como enviado especial do jornal Crítica, de Buenos
Aires, teria
influenciado o sobrinho a ler sobre o conflito. Da Europa, Itúrburu enviava jornais, revistas e
livrosparaosobrinho.
Com o marido trabalhando na Espanha, Carmen, a irmã que criou Celia, decidiu ficar
com os filhos na casa dos Guevara durante este período em uma das residências, vilas
ou
chalésdeAltaGracia.OsGuevarachegaramahospedarfamíliasexpulsasdapenínsulaIbérica.
A política fazia parte da rotina dos Guevara. Logo depois do sangrento confronto espanhol,
eclodeaSegundaGuerraMundial.
31
Ernestotinha apenas 12anos, mas aocontrário de muitas crianças de sua idade, não
ficoualheioaoconflitomundial.OpaifundouaseçãolocaldaAçãoArgentina,emcujo“setor
infantil” inscreveu Ernesto. A entidade fazia um pouco de tudo: realizava comícios,levantava
fundosemfavordosaliados,combatia
apenetraçãonazistanopaíseatédifundiainformações
sobreoavançomilitardasforçasaliadas.
OpaideErnestolembrariaanosmaistarde,deacordocomCastañeda:“Todavezque
havia um ato organizado pela Ação Argentina ou que tínhamos de fazer uma averiguação,
Ernesto me acompanhava”
25
. Durante a guerra, a casa dos Guevara começou a sofrer
mudanças.Parapior.Olar, quenuncachegouaserumacasaorganizadaninguémtinhahora
certa para fazer as refeições, as crianças estudav am em qualquer peça da casa, amigos
entravam e sa íam a qualquer momento, roupas estavam sempre
debruçadas sobre sofás e
poltronas da sala –, agora também convivia com o agravamento da situação financeira dos
Guevara.
Em 1947, com 19 anos de idade, o
filho mais velho dos Guevara pulava de
emprego em emprego, mas sempre ajudava
noorçamentodacasa.Nestaépoca,Ernesto
era aluno
do curso de Medicina da
Universidade de Buenos Aires. Em 1951,
depois de ter se alistado como enfermeiro
no Ministério da Saúde Pública, embarcou
empetroleiros

25
Ibidem, 2006, p. 41.
32
ecargueirosparaoBrasil,TrinidadeTobago,VenezuelaeoSuldaArgentina.
Em1952,com o colega e amigoAlberto Granado,desbravoucincopaísesdaAmérica
Latina em oito meses. Conhecer lugares e curar tan t os pacientes quantofosse possível era o
objetivodaempreitada.Foinestaaventura
queErnestoconheceuocontinentepobre.Viude
pertopartedo abismo sociallatinoamericano.Sempreem movimento, viajava comcadavez
maisfreqüência.
Interrompiaosestudos porumtempoelogoretomavaasaulasnauniversidade.Mas
pouco antes de concluir o curso de Medicina, escreveu para a namorada,
Chichina Ferreyra,
que“nãopensavaemengaiolarsenaridículaprofissãomédica”.ParaCastañeda,“nessesanos
deuniversidadeemBuenosAiresperdu rou anaturezamultifacetadadavidae personalidade
de Ernesto”
26
. A frase escrita a Chichina se materializaria anos mais tarde. Mesmo depois de
tornarsemédico,Ernestonuncaexerceriaaplenosuaprofissão.
2.2Orevolucionário

26
Ibidem, 2006, p. 45.
n
arChe
33
Entre o verão e o outono de 1955, no México, conheceu Fidel Castro, um jovem
revolucionário cubano que acabava de sair da prisão de 22 meses depois de uma fracassada
tentativaarmadadetomaroQuarteldeMoncadaederrubaraditaduradeFulgencioBatista,
emCuba. Meses depois,Ernestocasou
secomHildaGadea.Noano seguinte,Hildadeu luza
umamenina:HildaBeatriz.
Ideais semelhantes, vontades parecidas, idéias quase idênti cas e temperamentos
distintosforamingredientessuficientesparaunirCastro eErnesto,quepassouaserchamado
deChe,pelojeitoargentinodefalar.De acordocomCastañeda,
apaixãodeFidelporCubae
as idéias revolucionárias de Che “se uniram como a chama de uma centelha em um intenso
clarãodeluz”
27
.
Umeraimpulsivo,ooutromoderado;umemotivoeotimista,ooutrofrioe
cético. Um estava ligado unicamente a Cuba; o outro, vinculado a uma
estrutura de conceitos econômicos e sociais. Sem Ernesto Guevara, Fidel
Castro talvez jamais tivesse se tornado um comunista. Sem Fidel Castro,
Ernesto Guevara talvez jamais tivesse sido algo além de um teórico
marxista,umintelectualidealista
28
.
Che assumiu a condição de guerrilheiro no primeiro semestre de 1956, no grupo de
cubanos comandados por Fidel no México com um objetivo muito claro: desembarcar em
Cuba e tirar Fulgencio Batista do poder. Depois de muito treinamento de guerrilha em uma
fazenda mexicana, o projeto de tomar Cuba se
concretizou em 1959, quando Fidel, Che e os

27
Ibidem, 2006, p. 113.
28
VELASQUEZ, Lucila apud CASTAÑEDA, op. cit., 2006, p. 112.
34
cubanos que viviam no México levaram a caboaRevolução,depondo o governo de Batista e
instalandoFidelCastronopoder.
Ainda jovem, Che chegou a ocupar
cargos importantes no governo de Fidel,
mas queria mais. Sonhava em tornar o
mundo um paraíso socialista uma
aspiraçãoatécerto ponto
ingênua,mesmo
para aqueles anos. Sua intenção, no
entanto, foi sucessivamente frustrada em
países do Terceiro Mundo, como no
continente africano, até ser abatido na Bolívia. Mesmo assim, foi um dos grandes
representantes da geração dos anos 60, um período histórico de contestações nos mais
diferentesníveissociais,políticoseculturais.

2.3Cheesuaépoca
É fu ndamental situar a vida de Che no tempo e as peculiaridades da época. O
desprendimento de Erne sto, sua juventude e liderança incontestável trataram de fazêlo
reconhecido em diversas partes domundo, que estava às portas dos anos 60 a década em
que jovens das Américas e principalmente
da Europa exaltavam a negação a tudo. Negav am
modelospolíticos,asguerras,amoda,asartes,ocortedecabelo,amúsica,asroupas,aIgreja,
a família, os costumes, a sociedade. Por meio de uma imensa variedade de símbolos e
comportamentos,jovenstrocaramomododeserelacionarcomas
tradiçõesdomundo.
FOTO2:CheGuevaraeFidel,porKorda
35
Aoinvésdoscultos religiosos em família, o
misticismo oriental. Em vez do uso de roupas
consideradas “normais”, aderiram às calças jeans
largaseornamenta daseascamisasmulticoloridas.
Os cabelos longos substituíram a brilhantina.
Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd e Led Zeppelin
eram alguns dos ícones musicais nos Estados
Unidos,
noBrasil,noJapão,naFrançaeemmuitos
outros lugares. No teatro, Hair. Nas artes, Andy
Warhol um dos maiores ícones do movimento
popeque,elemesmo,transformouaimagemdeCheGuevaraempopart.
UmadascaracterísticasdeWarholeratrabalharimagensdecelebridadesem
arte.Foi
assim com Marlyn Monroe. Também foi assim com Che Guevara, colocando o guerrilheiro
argentinodefinitivamente no mundo e nopensamentopop.Ajuventude da épocabus cava o
rompimentocomauniversidade,ospartidospolític os,afamília,asigrejaseatradição.
Aos olhos daquela geração, era precisocontestar
um mundo que se construí a à ba se
de uma sociedade industrial, cujo modelo econômico modificou as relações sociais, de
trabalhoeascondiçõesdevidadaspopulações,agoramaisconcentradasemáreasurbanas.
A década de 60 procurou incluir na agenda mundial o amor, a liberdade, a justiça, a
paz
e a fraternidade valores relegados por uma sociedadeque cada vez mais privilegiava a
eficácia,osucesso,acompetição,avitóriaeolucro.NospaísesdoLesteEuropeu,ajuventude
FOTO3:Che,porAndyWarhol
36
reivindicava liberdade política. Nos países industrializados do Ocidente, contestava a
civilização de consumo excessivo. No Terceiro Mundo, lutava pela independência econômica
dasgrandespotênciasecontraasditadurasmilitares.
BocchieCeruti abordamadécadade 60eaclassificamcomoumimportantecapítulo
doquechamamde“revoluçãoemancipadora”
nasformasemodos davidacotidiana.Segundo
os autores de Os problemas do fim do século, obra assinada também por Edgar Morin, a
“revolução pluralista” dos anos 60 “irrompera na nossa história através dos movimentos
libertários,pacifistas,contestatóriosdaépoca”
29
.
Os autores consideram como “pluralista” a revolução daquela época por reunir em
tornodeobjetivoscomunssemabrirmãodadiversidadesocialporqueomaisimportanteera
“fazer parte” de tais movimentos
30
, era a participação planetária desses processos. Além do
cinema,queproduziutrabalhosdegrandeimportânciasobreasnovasformasdeparticipação
demilhares de pessoas em projetos pluralistas, amúsicatalveztenhasido fundamental para
aquela geração, provavelmente por se ocupar com a crítica à política. Comentam Bocchi e
Ceruti:
Ela (a música rock, soul, pop) tornou estes problemas perceptíveis ao
imaginário, ainda antes de serem apreensíveis pela inteligência, para
centenasdemilhõesdepessoas;propôsumanovarelaçãocomocarismae
com o mito, relação de partilha e não de poder; realizou o milagre de
reunir,demaneira
absolutamente não violenta, grandesmultidões quese
tornaram totalidades sem nunca deixarem de ser agrupamentos de
indivíduos autônomos; voltou a dar corpo sob formas originais à antiga

29
MORIN, Edgar, BOCCHI, Gianluca, CERUTI, Mauro. Os problemas do fim de século. 3. ed. Lisboa:
Editorial Notícias, 1991, p. 149.
30
Ibidem, 1991, p. 150.
37
relação entre poesia e êxtase; misturou, com um espírito livre, tradições,
estilos e linguagens culturais heterogêneas, mostrando que lugar no
mundo para todos e que um indivíduo pode desabrochar seguindo o seu
caminho, não em detrimento dos outros indivíduos, mas com o
desabrochamentodelenassuasprópriasvidas
31
.
Nestesentido,talvez nãopudessehaverdécadamaisadequadaparaarepresentação
universaldeumjovemrevolucionário latinoamericanoquehaviaparticipadodadeposiçãode
umgovernoditatorialapoiadopelosEstadosUnidos.AforçadarepresentaçãodeCheGuevara
entre a juventude mundial da década de 60 foi tão forte
que muitos autores denominam
aquelesanosde“ADécadaCheGuevara”.
Emir Sader afirma que Che foi aquele que “melhor personificou os sonhos de uma
sociedade humana, solidária e fraternal”
32
. Ou seja, Che significou a possibilidade de tornar
realidadeasutopiasdaquelageração.ComentaSader:
Uma biografia de Che deveria representar a forma como a geração de
revolucionários,que confluiupara os anos60, viaopassado eo futuroda
história, que iluminaram seu ‘assalto ao céu’. Os olhos de Che são
privilegiados para esse enfoque, por ter sido protagonista fundamental e
por encarar
os dilemas centrais daquela geração. Militante, intelectual,
dirigente político, comandante guerrilheiro, ele sintetizou em si o que
tantos foram em um nível ou outro. Por isso ele simboliza, no mais alto
nível,todaumageração
33
.

31
Ibidem, 1991, p. 152.
32
SADER, Emir. Cartas a Che Guevara: O mundo, trinta anos depois. São Paulo: Paz e Terra, 2003,
p. 9.
33
Ibidem, 2003, p. 9.
38
Não se pode afirmar com certeza que Ernesto tinha a real dimensão de sua
representação diante daquela geração, ainda que ele carregasse uma bagagem intelectual
suficientemente bem formada para compreender que o proces so no qual havia se envolvido
era um cam po farto para as disputas, as tensões. Tanto nas ações práticas
revolucionárias
quantonarepresentaçãodaprópriare volução noimagináriosocial
34
.
Os movimentos de Ernesto ao longo de sua trajetória sugerem que ele percebia o
poder de significação da causa pela qual decidiu lutar. E que essa causa poderia angariar
adeptos e simpatizantes pelo planeta afora justamente porque ele, Che, fazia parte de uma
épocarebelde,deumcontexto.“As
significaçõessãoatribuídas/reconhecidasapartirdolugar
que o sujeito e o texto (seja um texto verbal, um objeto, uma empresa, um político, uma
cidadeouqualqueroutracoisaquepudersersignificada)ocupamnocontexto”
35
.
O sujeito é apresentado como agente no processo de construção do seu
objeto de significações/leitura. Porém, é preciso observar que sua leitura
está fortemente marcada pelo seu lugar sociocultural, por mais que se
possa pensar que seja livre para atribuir significação, para experimentar
sentidos
36
.
Em sua tese de doutorado, Baldissera salienta que a imagemconceito
37
não é
construída “sobre a identidade em si, mas com base na percepção/compreensão que a

34
Para Dênis de Morais, o imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que
atuam como memória afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela comunidade.
Trata-se de uma produção coletiva, já que é o depositário da memória que a família e os grupos recolhem
de seus contatos com o cotidiano. Nessa dimensão, identificamos as diferentes percepções dos atores em
relação a si mesmos e de uns em relação aos outros, ou seja, como eles se visualizam como partes de uma
coletividade.
35
BALDISSERA, Rudimar. Imagem-conceito: Anterior à comunicação, um lugar de significação.
Porto Alegre: Tese de doutorado, PUCRS, 2004, p. 6.
36
Ibidem, 2004, p. 7.
37
Imagem-conceito é um construto simbólico complexo e sintetizante, de caráter judicativo/caracterizante
e provisório, realizado pela alteridade mediante permanentes tensões dialógicas, dialéticas e recursivas,
intra e entre uma diversidade de elementos-força.
39
alteridade tem sobre ela, isto é, sobre o que parece ser. De caráter simbólico, a imagem
conceitotemseusfundamentosnosprocessosdesignificação”
38
.
Éprudenteobservarqueasidentidades,deumaformaoudeoutra,refletemsentidos
e significações no ambiente social, que servirão de base para a elaboração da imagem
conceitodealguémoualgumacoisa.Ernestoeradonodegrandecapacidadedeinterpretare
atribuir sentido a tudo o que
estava em seu entorno. Sabia que cada atitude sua seria
interpretada.Paraobemouparaomal.Sobesseviés,deacordocomBaldissera,“aimagem
conceito contempla a noção de reputação, pois formar conceito implica apreciar, considerar,
ajuizar,sentenciaresancionar”
39
.
Apartirdisso,érazoáveldeduzirrqueChetinha consciênciaarespeitodeque‘costura
mental simbólica’ a sociedade capitalista fazia em relação a ele assim como provavelmente
tambémtinhaumaboanoçãosobrequeinfluências suasaçõespoderiamproduzir.
Che passou a ser a representação de algo real,
uma espécie de ídolo de parte da
juventudemundial aindaqueoídolosejaalgoidealizado, pensado paramuitoalémdoque
realmente é/foi. Ainda vivo, Ernesto teria sido uma espécie de fioterra, para usar uma
expressão de Sandra J. Pesavento
40
, capaz de ligar os anseios de uma demanda real a
rebeldia jovem que queria mudar o mundo a uma ação verdadeira, ao fazer, de fato, uma
revolução,mesmoqueemumapequenailhadoCaribe.

38
Ibidem, 2004, p. 11.
39
Ibidem, 2004, p. 11.
40
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano. Porto Alegre:
UFRGS, 1999.
40
A história de Che levou com ele uma ideologia, um desejo coletivo por mudanças
sociais. Talvez por isso tenha conseguido firmar a identidade de revolucionário e se
transformado em ídolo de uma geração. A despeito de todas as experiências que Ernesto
tenha vivido na infância, na convivência com a família, nas
amizades, no curso de Medicina,
nas viagens pela América Latina, no relacionamento com Fidel Castro e na opção pela luta
armada, que de alguma forma contribuíram para a construção de sua trajetória, a época
tambémpareceterconver gidoparaaformaçãodarepresentaçãodeCheaosolhosdomund o.
Emsuaargumentaçãosobreasnoçõesde‘representação’,ohistoriadorRogerChartier
afirmaquenasacepçõescorrespondentesaotermopodemserencontradasemdoissentidos
aparentemente contraditórios. “Uma representação faz ver uma ausência, o que supõe uma
distinçãoclaraentreoquerepresentaeoqueérepresentado;eoutraque
éa representação
deumapresença,aapresentaçãopúblicadeumacoisaoudeumapessoa”
41
.
Para Chartier, a relação de representação pode ser deturpada em função das formas
deteatralizaçãodavidasocial.Deacordocomohistoriador,“todasvisam,defato,afazercom
queacoisanão tenhaexistênciaanãosernaimagemqueexibe,quearepresentaçãomascare
ao invés
de pintar adequadamente o que é seu referente”. A relação de representação
tambémsofreinterferência,segundoChartier,pelooqueconsidera“fraquezadaimaginaçã o ”.
Issofaz comque se tomeoengodo pelaverdade,que consideraos signos
visíveis como índices seguros de uma realidade que não o é. Assim,
desviada,arepresentaçãotransformaseemmáquinadefabricarrespeitoe

41
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In Revista Annales. Paris, 1989, nº 6, p. 9.
41
submissão, num instrumento que produz uma exigência interiorizada,
necessáriaexatamenteondefaltaopossívelrecursoàforçabruta
42
.
Gilbert Durand afirma que “todo imaginário humano articulase por meio de
estruturas plurais e irredutíveis”. Essas estruturas seriam três classes ligadas a “processos
matriciais do separar (heróico), incluir (místico) e dramatizar (disseminador), ou pela
distribuiçãodasimagensdeumanarrativaaolongodotempo”
43
.
Todo pensamento humano é uma representação, isto é, passa por
articulações simbólicas. [...] no homem não uma solução de
continuidade entre o ‘imaginário’ e o ‘simbólico’. Por conseqüência, o
imaginário constitui o conector obrigatório pelo qual formase qualquer
representaçãohumana
44
.
Independentemente do grau de “desvio” sofrido pela representação de Che diante
daquela geração, Castañeda acredita ter ocorrido um encontro místico de um homem com
aqueles anos. O autor defende que “a permanência de Guevara enquanto figura digna de
interesse, investigação e leitura [...] vem da identificação quase perfeita de
um lapso da
históriacomumindivíduo”.

42
Ibidem, 1991, p. 10.
43
DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro: Difel, 2004, p. 40.
44
Ibidem, 2004, p. 41.
42
Essa coincidê ncia entre o tempo e o homem nos leva a refletir se outro personagem
poderia ser capaz de representar tão bem uma geração quanto Che o fez. Mesmo uma
investigação profunda correria o risco de não achar uma resposta convincente. Para
Castañeda,porém,elepoderiatersidooque
foi,naquelesanos.
43
3.OIMAGINÁRIOEOMITO

Che morreu sozinho, com fome e doente. Naquele dia, o exército boliviano matou o
homem, mas deu vida a seu mito. Por ironia, Che alcançou status de mito até mesmo nos
Estados Unidos, país com o qual o comandante nutria sérias divergências ideológicas. Em
44
1968,umapesquisamostrouqueeleeraopersonagemhistóricocomoqualosuniversitários
norteamericanosmaisseidentificavam,deacordocomCastañeda
45
.
OestilovoluntariosoeospensamentosdeChenãoimpregnaramapenasboaparteda
juventudedosEstadosUnidos,mastambémdaEuropaedaAméricaLatina.Naépoca,jovens
passaram a manifestar solidariedade ao Vietnã ou a Cuba. Castañeda chega a denominar
aqueles anos de “a geração Che Guevara”.
Eraa época das utopias, impregnada, em grande
parte, pelo pensamento revolucionário. Michael Löwy afirma que “em todas nas
manifestações revolucionárias da América Latina notamse traços, visíveis ou invisíveis, do
pensamentodeChe"
46
.
3.1 Mito
O fato de não ter conseguido libertar a América Latina do “império norte-
americano”, sua grande obsessão, tenha contribuído para a construção do personagem
revolucionário. Mas segundo Castañeda, foi a morte que deu a Che Guevara o
significado de sua vida, e sua vida a seu mito.
Se o comandante não fosse executado [...] teria igualmente realizado proezas
épicas e gloriosos feitos, mas seu rosto não estaria hoje em tantos milhões de
paredes e peitos. Caso o governo boliviano o tivesse indultado, ou a CIA lhe
salvasse a vida, a contribuição de Che a sua causa poderia ter sido muito
maior, mas o auto-sacrifício jamais teria as dimensões que teve
47
.

45
CASTAÑEDA,JorgeG.CheGuevara:avidaemvermelho.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2006.
46
LÖWY, Michael. O pensamento de Che Guevara. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 15.
47
Ibidem, 2006, p. 505.
45
Sãomuitososconceitoseteoriasacercadomito,comoateorianaturalista,queparte
da idéia de que o Sol e a Lua deram origem aos mitos da humanidade ainda em sua fase
‘primitiva’. Outra vertente teórica do mito é o historicismo, que, segundo Everardo Rocha,
“procurou ver no mito
um registro de episódios verdadeiros do passado [...] O mito visto,
literalmente,comoregistrodahistória”
48
.Outro trabalho sobreomito ficou conhecidocomo
animismo, que parte da idéia de que “todos os elementos da natureza poderiam ser
personificados”.Apesardedenso,oassuntoprecisaserabordadonestetrabalhopara quese
possacompreenderumpoucodosmistérioselabirintosnosquaisomitoestáenvolvido.
Para
EverardoRocha,
o mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as
sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos,
dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir
sobre a existência, o cosmos, as situações de ‘estar no mundo’ ou as relações
sociais
49
.
Castor Bartolomé Ruiz corrobora, refletindo que o mito “é uma forma de
discurso narrativo que efetiva uma interpretação vital do ser humano e uma
compreensão ‘verdadeira’ e relativa do mundo”
50
. Sob este viés, Milton José Pinto
sustenta que a “análise de discursos defende a idéia de que qualquer imagem, mesmo
isolada de qualquer outro sistema semiótico, deve ser considerada como sendo um
discurso”
51
.

48
ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.32.
49
Ibidem, 1999, p.7.
50
RUIZ, Castor B. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 143.
51
PINTO, Milton J. Comunicação e discurso: Introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker,
2002, p. 37.
46
No entanto, Durand tem uma visão diferenciada sobre o mito. Para ele, “o mito
não é um discurso para demonstrar nem uma narrativa para mostrar”. O mito, afirma o
autor, “deve servir-se das instâncias de persuasão indicadas pelas variações simbólicas
sobre um tema”
52
. Segundo Durand, os processos do mito, onírico ou do sonho
consistem na repetição (a sincronicidade) das ligações simbólicas que os compõem.
Acrescenta o autor:
[...] Quando evocamos o Diabo em nome do bom Deus é porque precisamos
dele! Como Freud já observara, o herói depende do monstro ou do dragão
para transformar-se em herói, e os trabalhos de Yves Durand mostram que,
quando o monstro é minimizado – “guliverizado”, como diz Bachelard –, o
herói pendura a espada no vestiário e calça os chinelos
53
.
Che viveu suas experiências adultas e morreu sob o manto de uma geração.
Talvez seu mito se mantenha vivo porque sua imagem ainda evoque – mesmo que de
maneira superficial – a rebeldia em relação às ‘injustiças’ do mundo, a resistência à
‘força do imperialismo’, idéias que são readequadas a um determinado contexto.
Embora as variadas teorias acerca do mito sejam importantes para essa reflexão,
como, além das já referidas, a idéia que procura ligar mito e ritual, especialmente nos
fenômenos religiosos e suas manifestações concretas, como a crença, os símbolos etc, é
fundamental aqui para a interpretação psicanalítica do mito.

52
DURAND,op.cit.p.60.
53
Ibidem, 2004, p. 83.
47
De acordo com Rocha, a teoria da mitologia sob o ponto de vista da psicanálise
apresenta uma trajetória distinta na busca do aprimoramento da definição acerca do
tema.
Numa palavra, o mito se interioriza. Quero dizer com isto que o mito ganha
um espaço dentro do ser humano. Ele passa a ser reflexo de múltiplos
movimentos de interiores. Próximo do sonho, da fantasia, do devaneio. O
mito é produto do inconsciente. Neste lugar se origina, neste lugar se
processa. Nele, também se realiza. Ainda mais, é do inconsciente uma forma
de expressão
54
.
Rocha utiliza o pensamento de Carl-Gustav Jung para ampliar a noção sobre a
relação mito-inconsciente. Isso porque Jung encontra sua interpretação sobre o mito não
no inconsciente individual, único, pessoal, mas no inconsciente coletivo. O psiquiatra
suíço usa o termo ‘arquétipo’, de Santo Agostinho, para definir a manifestação desse
inconsciente coletivo. Segundo Rocha, arquétipo é uma espécie de ‘impressão psíquica’,
como uma marca, uma imagem.
É importante lembrar que um mesmo mito pode ser interpretado de maneiras
diferentes. O próprio mito de Édipo, talvez o mais famoso de todos os tempos, tem
compreensões distintas. Neste sentido, o mito de Che Guevara pode perfeitamente estar
sendo interpretado e reinterpretado hoje de maneira completamente diferente do que
fora há 20 anos. Esta é uma marca dos mitos, de acordo com Rocha. “Eles continuam
sendo mitos, independente de suas versões”
55
.
O antropólogo Claude Lévi-Strauss afirma: “O valor do mito como mito persiste
a despeito da pior tradução”
56
. Neste emaranhado de teorias, pensamentos e até de

54
ROCHA, op. cit. p. 40.
55
Ibidem, p. 52.
56
LÉVI-STRAUSS, Claude apud ROCHA, op. cit, 1999, p. 52
48
incertezas acerca do mito, Lévi-Strauss nos ensina que não é possível entender um mito
como lemos uma notícia de jornal ou um livro. Para ele, “o mito não pode ser lido linha
por linha, da esquerda para a direita, começando no início da página e terminando no
fim dela. [...] Um mito deve ser lido como uma partitura musical”
57
.
Rocha defende a afirmação de Lévi-Strauss argumentando que o mito não tem
uma definição acabada. “Um mito não nos mostra seu significado básico, fundamental,
através da seqüência dos acontecimentos tal como são apresentados na estória linear que
lemos normalmente”
58
. Lévi-Strauss diz que é preciso lê-lo em mais de um nível:
O significado do mito está vinculado a grupos de acontecimentos que às
vezes encontram-se até afastados na estória do mito. Temos que ler o mito
em dois níveis. Tanto no sentido normal de qualquer leitura quanto como um
todo muitas vezes referenciado a outros mitos próximos daquele. Temos que
perceber o mito como se percebe uma totalidade; só assim perceberemos seu
significado. Um determinado grupo de acontecimentos num mito pode estar
relacionado com outro grupo muitas páginas adiante. Ou, ao contrário, um
grupo de acontecimentos do final da estória pode ser aproximado de um
grupo de início. Por isso, o mito parece com uma partitura musical
59
.
O mito, portanto, é da qualidade do inacabado, sem definições fechadas. Para
Rocha, é uma narrativa, sobretudo. Uma narrativa que, segundo Ruiz, é de fundamental
importância para a existência da sociedade. Ruiz analisa:
A sociedade existe como rede de representações que socializa os sujeitos,
sem determiná-los, e os insere numa forma de prática social. Qualquer
formação social manifesta uma visão de mundo, seja o modelo republicano
de Roma, o feudalismo, o reinado científico da Atlântida baconiana, a
igualdade plena da sociedade comunista, o darwinismo social do
neoliberalismo, a sociedade aberta de Popper ou a modelar sociedade do

57
Rocha, ibidem, 1999, p. 82.
58
Rocha, ibidem, 1999, p. 82.
59
ROCHA, ibidem,. p. 82
49
consenso de Habermas. Não é possível uma sociedade que ultrapasse as
representações simbólicas e conseqüentemente as narrativas míticas
60
.
A interpretação dos mitos, para Rocha, é um eterno exercício, uma procura
infinita pela saída do labirinto. “O mito não possui verdade eterna e é como uma
construção que não repousa no solo. O mito flutua. Seu registro é o do imaginário”
61
.
Por isso os mitos sofrem releituras constantes ao longo do tempo, sendo reinterpretados
permanentemente.
3.2 Imaginário
Imagem vem do latim imago, que significa representação visual de um objeto.
Em grego antigo corresponde ao termo eidos, raiz etimológica do termo idea ou eidea,
cujo conceito foi desenvolvido por Platão. À teoria de Platão, o idealismo considerava a
idéia da coisa, a sua imagem, como sendo uma projeção mental. “Platão construiu o
mundo das idéias (eidos). É o mundo da perfeição, onde se encontra o ser pleno e
determinado das coisas”
62
.
Ao contrário de Platão, Aristóteles considerava a imagem como sendo uma
aquisição pelos sentidos, a representação mental de um objeto real, fundando a teoria do
realismo. Aristóteles dizia ainda que o homem é uma mescla de pensamento e corpo.
Para ele, a humanidade seria incapaz de produzir intelectualmente sem o “socorro da
imaginação”.

60
RUIZ, op. cit. p. 144.
61
ROCHA, op. cit. p. 95
62
RUIZ, op. cit. p. 36.
50
A obra do filósofo contemporâneo francês Jean-Paul Sartre, com base no
pensamento de Descartes, sustenta que a imagem “é uma coisa corporal, é o produto da
ação dos corpos exteriores sobre o nosso próprio corpo por intermédio dos sentidos e
dos nervos”
63
. E o que seria a imaginação? Para Sartre, imaginação é o “conhecimento
da imagem” que, segundo ele, vem do entendimento.
É o entendimento aplicado à impressão material produzida no cérebro que
nos dá uma consciência da imagem. Esta, aliás, não é posta diante da
consciência como um novo objeto a conhecer, a despeito de seu caráter de
realidade corporal; isso, em verdade, remeteria ao infinito a possibilidade de
uma relação entre consciência e seus objetos. Ela possui a propriedade
estranha de poder motivar as ações da alma; os movimentos do cérebro,
causados pelos objetos exteriores, embora não contenham semelhanças com
elas, despertam idéias na alma; as idéias não vêm dos movimentos, mas não
inatas ao homem; é por ocasião dos movimentos, porém, que aparecem na
consciência
64
.
Em A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos, o filósofo e
sociólogo Jean Baudrillard apresenta um outro ponto de vista acerca da imagem,
especialmente as imagens do nosso mundo contemporâneo. Segundo ele,
a maioria das imagens contemporâneas, vídeo, pintura, artes plásticas,
audiovisual, imagens em síntese, é literalmente imagens em que não há nada
para ser visto, imagens sem vestígios, sem sombra, sem conseqüências. O
que se pressente é que, por trás de cada uma, algo desapareceu. Elas são
apenas isto: o vestígio de algo que desapareceu
65
.
A convicção de Sartre quanto ao conhecimento da imagem ecoa nas reflexões de
Castor Bartolomé Ruiz ao lembrar que os primeiros contatos do ser humano com o
mundo exterior se dão, justamente, pela imaginação. Os recém-nascidos sequer falam

63
SARTRE, Jean Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1985, p. 11.
64
Ibidem, 1985, p. 11.
65
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre fenômenos extremos. São Paulo:
Papirus, 1990, p. 24.
51
ou enxergam com nitidez em seus primeiros dias, mas percebem o entorno, os cheiros e
os ruídos por meio da imaginação. É a partir dela que, antes de tudo, estabelecemos
nossas experiências iniciais de mundo.
Poucos dias depois, o mundo aparece como imagem visual. Imagens que nos
resultam próximas ou distantes, conhecidas ou temidas, mas que invadem a
experiência existencial e vão confeccionando um sentido de mundo, um
mundo para nós. Por meio das imagens significativas do mundo, vamos
tecendo nossa identidade: somos a imagem do mundo, que de modo criativo,
refletimos em nossa interioridade e projetamos em nossa práxis
66
.
Ruiz, no entanto, estabelece relação entre imaginação e imaginário. No senso
comum, diz o autor, imaginação é o mesmo que alucinação. “O real se contrapõe à
imaginação, assim como a verdade, ao erro. O imaginado é um subproduto da
racionalidade”
67
. Neste sentido, a imaginação não faz parte do que a modernidade
estabeleceu como norma, qual seja, a de que as coisas boas e verdadeiras só podem
existir a partir da razão, da racionalidade. Comenta Ruiz:
Atribui-se à imaginação um papel de co-adjuvante da racionalidade. Ela
possibilita que o logos possa extravasar tensões, recreando-se com a
imaginação estética, aliviando-se no mundo da imaginação onírica,
alienando-se no horizonte da imaginação mística ou simplesmente
relaxando-se na arena da imaginação lúdica. O estético, o lúdico, o místico e
o onírico constituem os universos secundários aos quais é relegada
comumente a imaginação
68
.
A partir desta perspectiva, o autor alerta que imaginação e imaginário não
carregam consigo conceitos definidos, mesmo que possam ser justificados com densas
explicações racionais. Se a imaginação, abordada de forma sucinta neste capítulo,
contrapõe-se ao real e muitas vezes é tratada, até certo ponto, com certo desdém pela

66
RUIZ, op. cit. p. 30.
67
Ibidem, 2003, p. 30.
68
Ibidem, 2003, p. 30.
52
racionalidade das sociedades contemporâneas, o imaginário, segundo Juremir Machado
da Silva, é real. “Todo real é imaginário”
69
.
Ao problematizar o tema em As tecnologias do imaginário, Silva explora um
terreno movediço, difícil de se manter em pé, de se locomover e de se chegar a um lugar
pré-estabelecido. O autor, porém, nos tira do túnel escuro das incertezas e nos conduz à
claridade. Ele lembra que, convencionalmente falando, o imaginário opõe-se ao real,
como salientara Ruiz.
No entanto, Silva afirma que “o imaginário é uma introjeção do real, a aceitação
inconsciente, ou quase, de um modo de ser partilhado com outros. [...] O imaginário é
uma língua. O indivíduo entra nele pela compreensão e aceitação das suas regras”
70
.
Sob este prisma, Silva faz uma distinção do imaginário em dois tipos: o individual e o
social.
O imaginário
individual se dá, essencialmente, por identificação
(reconhecimento de si no outro), apropriação (desejo de ter o outro em si) e
distorção (reelaboração do outro para si). O imaginário social estrutura-se
principalmente por contágio: a aceitação do modelo do outro (lógica tribal),
disseminação (igualdade na diferença) e imitação (distinção do todo por
difusão de uma parte)
71
.
Tirando a névoa que por vezes dificulta uma melhor observação acerca do que
seja o imaginário, Silva define o conceito como sendo um reservatório/motor.
Reservatório porque nele estão reunidos sentimentos, emoções, lembranças,
experiências do cotidiano, “visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e,

69
SILVA, Juremir M. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 7.
70
Ibidem, 2003, p. 9.
71
Ibidem, 2003, p. 13.
53
através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de ver, de ser, de agir,
de sentir e de aspirar ao estar no mundo”
72
. Quando motor, “o imaginário é um sonho
que realiza a realidade, uma força que impulsiona indivíduos ou grupos. Funciona como
um catalisador, estimulador e estruturador dos limites e das práticas”
73
.
Nas palavras de Silva, o imaginário não tem compromisso, não é da ordem da
racionalidade, está ligado ao afetivo, ao emocional. É da ordem do estético, disciplina
que analisa o estar-junto, o compartilhamento, a relação. É da ordem do contato, da
paixão. Baseado na aceitação do modelo do outro, na disseminação e na imitação, no
caso do imaginário social, o grupo incorpora os mesmos imaginários. Silva lembra de
um dos maiores fenômenos da música pop de todos os tempos para ilustrar essa
concepção:
Uma geração inteira sonhou o sonho dos Beatles tornado planetário pela
indústria cultural. Mesmo assim, esse sonho pôde ser disseminado como
sendo uma contestação aos valores então vigentes. Milhões de jovens
incorporaram essa idéia, suportando as suas contradições, e deram-lhe ora
uma marca própria (identificação/apropriação/distorção), ora uma ampliação
(aceitação/disseminação/imitação)
74
.
A partir deste viés, é razoável considerar a possibilidade de, em certa medida, ter
ocorrido com Che Guevara o mesmo fenômeno social que observado por Silva em
relação aos Beatles. Não teria havido o que o autor chama de contágio do imaginário em
torno do revolucionário argentino (ou Che seria apenas um aventureiro a carregar na
mochila o sonho de milhares de jovens em busca de uma nova aventura, de novas
emoções) da mesma forma como aconteceu com o grupo de rock inglês?

72
Ibidem, 2003, p. 11.
73
Ibidem, 2003, p. 12.
74
Ibidem, 2003, p. 13.
54
É possível que isso tenha ocorrido, já que a idéia basilar do imaginário é a de ser
integrante de alguma coisa, de algo comum, de fazer parte de uma determinada tribo. O
sociólogo Patrick Tacussel também faz considerações sobre o imaginário social. De
acordo com ele, o imaginário social
apresenta como um trajeto do psíquico para o social-histórico, revelando
‘verdadeiras infra-estruturas do espírito coletivo’; ele permite analisar os
fatos e eventos sociais através das crenças, representações e sentimentos
comuns; enfim, ele desemboca sobre a tomada em consideração
epistemológica dos elementos simbólicos em ação nos regimes de
pensamento (racional, mítico, ideológico, religiosos, etc.)
75
.
Assim como os Beatles, Che Guevara foi um personagem da geração dos anos
60. É possível considerar que a banda de Liverpool e o revolucionário viveram sob o
mesmo ambiente ou sob o que Walter Benjamin e Michel Maffesoli chamam de aura.
Para ambos, o imaginário é uma aura, uma atmosfera, que não se pode ver, mas que se
pode senti-la. “O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção
mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não qualificável”.
76
Maffesoli não se
engana também quando relaciona comunicação, informação e imaginário, cujo cimento
desta construção é a imagem e a inclinação que as sociedades contemporâneas têm por
ela. Comenta Maffesoli:
O gosto atual, intenso, pelas imagens pode levar a estabelecer o laço entre
comunicação, informação e imaginário. Vale tentar: o imaginário é a
partilha, com outros, de um pedacinho do mundo. A imagem não passa
disso: um fragmento do mundo. A informação serve, então, para fornecer
elementos de organização do puzzle de imagens dispersas. Assim, as tribos
de cada cultura, partilhando pequenas emoções e imagens, organizam um
discurso dentro do mosaico mundial
77
.

75
TACUSSEL, Patrick. A sociologia interpretativa. In Revista Famecos, mídia, cultura e tecnologia.
Porto Alegre: Edipucrs, nº 18, 2002, p. 7.
76
Entrevista de Michel Maffesoli a Juremir Machado da Silva. In Revista Famecos, mídia, cultura e
tecnologia. Porto Alegre, Edipucrs, n
º 15, p. 75.
77
MAFFESOLI, M. A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da comunicação). In Revista
Famecos, mídia, cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, nº 20, 2003, p. 17.
55
3.3 O imaginário desloca Che
Ainda que se mantenha presente o mito guevarista, ao longo de quatro décadas
essa imagem do revolucionário e líder de esquerda tem sofrido uma espécie de
deslocamento/deslizamento no imaginário social, expressão que para Jean-Pierre
Sironneau tem três significados fundamentais:
a) Dimensão mítica da existência social: é ela que inspira as mitoanálises
sociológicas e conduz ao esclarecimento dos mitos dominantes de uma
determinada época, de uma cultura, de uma nação, de uma geração, literária
ou artística, de uma classe social. b) Imaginação de uma outra socialidade: ela
está em marcha nas utopias, nos milenarismos, nas ideologias evolucionárias. É
o imaginário da esperança (...). c) Imaginário mais moderno e cotidiano
(recente): visto nas práticas de todos os dias: paisagem urbana, objetos
familiares, encontros fortuitos, percursos usuais, distrações populares
78
.
Este deslocamento do uso da imagem de Che pode ser constatado com uma
breve observação no cotidiano social. Pôsters com o rosto do comandante vendidos em
todo o planeta deixaram de ocupar apenas as salas de sindicatos de trabalhadores, de
partidos políticos de esquerda ou de centros de estudantes universitários, grupos que se
apropriaram – e ainda se apropriam da imagem de Che para justificar suas lutas e
defender suas causas. Está em toda a parte e em diferentes suportes, como biquínis e
bandeiras de torcidas organizadas de times de futebol.
A partir desta perspectiva, é possível ponderar que ao longo desses anos a
imagem do símbolo revolucionário passou a ocupar lugar em outro universo que não

78
SIRONNEAU, Jean-Pierre in LEGROS, Patrick, MONNEYRON, Frédérick, RENAD, Jean-Bruno,
TACUSSEL, Patrick. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre, Sulina, 2007, p. 12.
56
apenas o mundo da revolução, da esquerda, da luta armada ou das utopias socialista e
comunista. Che Guevara está inserido hoje no ambiente pop de uma sociedade marcada
pelas novas tecnologias de comunicação e de informação.
O mito, como afirma Rocha, parece mesmo estar sendo reinterpretado de forma
ininterrupta. Essa transposição da percepção de Che pode ser considerada normal, de
acordo com o sociólogo Michel Maffesoli, apontado por Juremir Machado da Silva
como o único sociólogo “a praticar, realmente, uma sociologia compreensiva da
comunicação”. Segundo Silva, com a sociologia compreensiva, Maffesoli pretende
“mergulhar nos fenômenos complexos da comunicação (tudo aquilo que vai da mídia às
formas de interação interpessoal) sem se submeter a uma lógica do dever-ser
79
.
Sob este viés, o comportamento social justifica essa espécie de deslocamento da
percepção de Che Guevara 40 anos depois de sua morte. A partir da idéia de “desgaste”
de Maffesoli, é possível considerar que esse fenômeno tenha produzido um
deslizamento do imaginário do revolucionário argentino, que não faz mais parte apenas
dos discursos de partidos de esquerda, de diretórios acadêmicos de universidades ou de
sindicatos de trabalhadores. Che Guevara está estampado em roupas e objetos em
bancas de artesanato ao lado de astros da música pop, como o jamaicano Bob Marley ou
o brasileiro Raul Seixas.
Além disso, a imagem de Che também está presente no estádio de futebol – fato
que parece ser ainda mais interessante. Integrantes da torcida organizada Camisa 12, do

79
SILVA, op. cit. p. 44.
57
Sport Club Internacional, de Porto Alegre, participam dos jogos com uma enorme
bandeira com a famosa imagem de Che. Outras torcidas organizadas do país também
utilizam o rosto de Che nas arquibancadas dos estádios, como as do São Paulo, do
Flamengo e do Sport, de Recife. Essas torcidas parecem compor as tribos a que se refere
Maffesoli, grupos que buscam, sempre, o estar-junto.
Para Maffesoli, o conjunto social de nossos dias precisa, sempre, da emergência
de neotribalismos baseados na necessidade de solidariedade e proteção que caracterizam
os mais diferentes grupos e que os cimentam. Por vezes, entidades, grupos e instituições
se diluem.
Assim, surpreende constatar que as variadas instituições não são mais
contestadas nem defendidas, mas simplesmente corroídas, servindo de nicho
para microentidades baseadas na escolha e na afinidade. Afinidades eletivas
que encontramos nos partidos, nas universidades, nos sindicatos e em outras
organizações formais que funcionam segundo as regras de solidariedade de
uma franco-maçonaria generalizada
80
.
A própria dissolução dos metarrelatos e a pulverização das ideologias podem ter
contribuído para que o imaginário do mito de Che Guevara tenha sofrido um
deslizamento. É possível perceber que sua imagem mitológica parece não representar
mais o que representou um dia. É possível que Ernesto Che Guevara e seu mito tenham
sido tragados pelo liquidificador de uma nova ordem mundial e se pulverizaram em
meio à confusão de fenômenos de uma sociedade que passa por um intenso processo de
globalização e é marcada pelo efêmero, pelo fugaz e pelo consumo.

80
MAFFESOLI, op. cit. p. 7.
58
4. FORÇAS QUE SUSTENTAM O MITO
Aolongodestapesquisa,vimosqueomito,apercepçãoemrelaçãoàimagemdeChe
eoimaginárioqueoenvolvetêmsemodificadoaolongode40anos.A questão que norteia
esta dissertação é de que maneira este mito se mantém vivo, a despeito de
suas versões,
traduções e releituras. Este estudo aponta ao menos quatro variáveis que atuam
59
aparentemente dispersas, mas que se r etroalimentam e mantêm a força do mito de Che: as
variáveisideológica,deconsumo,imagéticae midiática.
Essas variáveis não atuam necessariamente na ordem descrita no parágrafo acima.
Uma variável não termina onde outra se inicia. Não uma seqüência exata para tais
ocorrênciase
nemexisteumasuperioridadeentreumaeoutra.Asquatrovariáveissefundem,
semisturam,agemsimultaneamente,formandoumateiadeinteraçõeseinterferênciasumas
nasoutras,compondoumpatchworkdefenômenosdistintos,masque,juntos,produzemum
efeitoúnico.
Ateoriadacomplexidade,deEdgarMorin,talvez sejaa
maisadequadaparadarconta
deste proces so de interações e interferências que fortalecem e mantêm vivo o mito de Che
Guevara.Aoargumentarsobreanecessidadedopensamentocomplexo,Morinafirmaque,em
um primeiro momento, “a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de
constituintes heterogêneas
inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do
múltiplo”
81
.
Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de
acontecimentos,ações, interações, retroações, determinações, acasos, que
constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se
apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da
desordem, da ambigüidade, da incerteza... Por isso o conhecimento
necessitaordenarosfenômenosrechaçando a
desordem,afastaroincerto,
isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar,
distinguir,hierarquizar.
82

81
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 13.
82
Ibidem, 2005, p. 13.
60

Aindaqueacomplexidadesejaumfenômeno quantitativo,ouseja,que identificaum
certonúmero de interações e interferências agindo em umdeterminado fato, é fundamental
esclarecerqueestateorianãoseresumeàquantidade.
A complexidade, de acordo com Morin, compreende também o imponderável, o que
nãoé
concreto.“[...]Ela(a complexidade) compreendetambémincertezas,indeterminações,
fenômenos aleatórios. A complexidade, num certo sentido, sempre tem relação com o
ocaso”
83
.Oautor comparaacomplexidadecomo umsistema,oprincípiodacaixa preta,com
entradasesaídas.
[...]consideraseasentradasnosistema(inputs)eassaídas(outputs),oque
permite estudar os resultados do funcionamento de um sistema, a
alimentaçãodequeelenecessita,derelacionarinputseoutputs,sementrar
entretanto no mistério da caixa preta. Ora, o problema teórico da
complexidadeéo
dapossibilidadedeentrarnascaixaspretas
84
.

Trazendoanoçãodecomplexidadeparaestapesquisa,érazoávelponderarqueomito
deCheentrounacaixa preta do universo imaginário de gerações desdeo final de década de
60 como o revolucionário, o símbolo da ideologia de esquerda. Entrou (input) na caixa preta
como herói socialista para
muitos, sanguinário e violento para outros tantos, e saiu de
(output) como um ídolo pop, um mito da rebeldia, um totem sempre pronto para atuar em
todaequalquercausacontraostatusquo,umabandeiraideológicadepartidosemovimentos
sociais.Che esua imagem saíramdacaixa
preta compartilhados emmilharesdeprodutosdo
capitalismo,tãoconsumidosquantoumaestreladecinema.

83
Ibidem, 2005, p. 35.
84
Ibidem, 2005, p. 35.
61
Chesetornouummitotãomidiáticoquantoumacelebridadehollywoodiana,capazde
transbordar todas as mídias tradicionais, de transformar uma caneca, um chaveiro, uma
camiseta, uma bolsa em mídia, em um meio de comunicação não verbal, mas com força
comunicacional suficiente para mantêlo presente. Por isso o que
ocorre com o mito
guevaristaencontrarepousonacomplexidadedeMorin.
Acomplexidadenãopretendeterumavisãocompletaeacabadadosfenômenosedas
coisas. Por uma razão muito simples, conforme o sociólogo francês: não podemos isolar
objetos uns dos outros. “No fim das contas, tudo é solidário.
Se você tem o senso da
complexidade, você tem o senso da solidariedade. Além disso, você tem o senso do caráter
multidimensionaldetodarealidade”
85
.
Avisãonão complexadas ciências humanas,das ciênciassociais,considera
queumarealidadeeconômicadeumlado,umarealidadepsicológicade
outro, uma realidade demográfica de outro, etc. Acreditase que estas
categorias criadas pelas universidades sejam realidades, mas esquecese
quenoeconômico,porexemplo,asnecessidades
eosdesejoshumanos.
Atrásdodinheiro, todo um mundode paixões, a psicologia humana.
(...) A dimensão econômica contém as outras dimensões e não se pode
compreendernenhumarealidadedemodounidimensional
86
.

Écertoqueasnoçõesdecomplexidadenãoexplicamtudo.Masestafaltadointegral,
do completo, faz parte desta teoria. Não existe a totalidade na complexidade. “[...] a

85
Ibidem, 2005, p. 68.
86
Ibidem, 2005, p. 69.
62
consciência da complexidade nos faz compreender que jamais poderemos escapar da
incertezaequejamaispoderemosterumsabertotal:'Atotalidadeéanão verdade'”
87


Na busca por razões pelas quais o mito de Che Guevara se mantém presente a
despeito de suas mais variadas versões e traduções, esta pesquisa não procura estabelecer
uma resposta acabada, completa, total. No entanto, as quatro variáveis que atuam na
manutençãoenarenovaçãodestemito sãobons
indíciosdequeaforçadeummitonãoage
deformaisolada.
Nãoumúnicomotivo,umaúnicaincidêncianestefenômeno.Existe,sim,umateia,uma
trama de fenômenos sociais, uma complexidade que, de forma solidária, conjunta, trabalha
rotineiramenteparamanteromitoempé.

4.1Aideologia
 Aocontráriodoimaginário, aideologiaéumaadesão.ParaCiroMarcondesFilho, éo
processo que determina a forma de agir e pe nsar dos homens em uma determi nada
realidade
88
. De acordo com o autor, “a ideologia deve ser vista antes de tudo como um
produto,umasistematizaçãoderivada dasuperestrutura
89
”.Segundooautor,paraquepossa

87
Ibidem, 2005, p. 69.
88
MARCONDES FILHO, Ciro. O discurso sufocado. São Paulo: Loyola, 1982, p. 248.
89
Ciro Marcondes Filho utiliza o termo “superestrutura” a partir do Dicionário de Sociologia Marxista-
Leninista, que a define a “superestrutura de uma respectiva sociedade compreende a totalidade das idéias,
ilusões, exigências políticas, jurídicas, filosóficas, morais, que surgem do proceso de aprendizado social,
material e humano e nas quais seus interesses sociais se refletem, bem como das instituições políticas,
63
seestabelecer,“aideologiadepende,emprimeirol ugar,dequantoelacorresponde,emuma
dada situação histórica aos interesses das forças de classe ou, do grupo dadas; portanto, da
relaçãodessesinteressescomtodasasoutrasclasses
90
 
 Aideologia,portanto,carregaconsigoumacerta“coerêncialógicoracional”,comodiz
MarcondesFilho,paralevaracabosuatrajetória.Diferentementedoimaginário,quenãotem
compromisso,nãoédaordemdaracionalidade.Nãosemudadeimaginário.Masmudasede
ideologia. O imaginário está ligado ao afetivo,
ao emocional. É da ordem do estético, a
disciplinaqueanalisaoestarjunto,o compartilhamento,arelação.
 Noentanto,aideologiaaindaestápresentenacomunicaçãonãoverbaldaimagemde
CheGuevara.Emboraosprincípiosi deológicosguevaristas,apartirdeumadeterminadaótica,
não tenham mais a
força de mobilização que tinham quatro décadas.O mito começa a
tomar forma a partirde seusideais,umaalternativa ao status quo naqueles últimos anos da
décadade60.
 
 O momento era de grande turbulência em quase todos os pontos do planeta, mas
especialmentenosEstadosUnidos,envolvido
comaGuerradoVietnãeaGuerraFria,aEuropa
e a América Latina, que vivia às voltas com governos militares ditatoriais. Morto, o
pensamento de Che Guevara e seu exemplo revolucionário e libertário passaram a servir de
cartilhaparaboapartedajuventudedaépoca.

jurídicas, culturais e outras (...), que os homens criam de acodo com suas idéias e exigências,para dar
validade aos seus interesses sociais e impô-los”.
90
MARCONDES FILHO, Ciro. O discurso sufocado. São Paulo: Loyola, 1982, p. 249.
64
ChristaBergerlembraqueaefervescêncialibertadoraquetomoucontadaAméricado
Sul (não de forma homogênea, claro
91
) passava tanto pelas propostas dos movimentos
guerrilheiros quanto pelas revisões do que se entendia por cultura, educação, vida política
92
.
Che, portanto, não apenas fazia parte daquela atmosfera como era um de seus principais
protagonistas.
CheGuevaracresceueamadureceulendotextossocialistas,comunistas.Eramarxista
declarado.Viveuemorreuporsuaideologia.OsonhodeChe,queerabanirocapitalismodo
mundo,não seconcretizou.Aocontrário.
Ocapitalismo, quetemsemodificadoao longodos
tempos, se reestruturou e se fortaleceu como sistema desde o começo de sua expansão, no
séculoXVI,atésesolidificarnasúltimasdécadasdoséculoXX, sufocando,emgrandemedida,
osocialismoeocomunismo
93
.
Esta guerra entreforças ideológicas atinge seu ápice com a queda do comunismo no
Leste Europeu. Além disso, Cuba, o grande trunfo de Che Guevara, isolase e é isolada por
grandes potê ncias mundiais. Apesar de ostentar bons resultados nas políticas de saúde e
educação,osistemaditatorialcomandadopor
FidelCastroatéocomeçode2008ailhahoje

91
Grifo da autora.
92
BERGER, Christa in HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C; FRANÇA, Vera Veiga (org). Teorias da
Comunicação:conceitos,escolasetendências.Petrópolis:Vozes,2001,p.247.
93
Desde meados de 2008, o mundo assiste a uma das maiores crises do capitalismo desde a quebra da
economia norte-americana em 1929. A economia dos Estados Unidos enfrenta grandes dificuldades
devido à falência de instituições financeiras de grande porte em virtude do não pagamento de dívidas
imobiliárias contraídas pela sociedade americana nas últimas décadas. No capitalismo global, outras
economias também são afetadas pela crise nascida nos EUA.
65
édirigida peloirmão,Raúl Castroestálongederepresentarummodeloeconômico esocial
paraofuturo,mesmocomagradualaberturadopaís.
Desde a agitada década de 60, portanto, a ideologia que moveu Che Guevara se
enfraquece,aindaquenãotenhasidobanida.Apesardediferente,
opensamentodeesquerda
nãomorreu.Etalveznuncadesapareça.Umarespostaparaestahipóteseestáempelomenos
um dos três significados da expressão “imaginário social” definidas em Sociologia do
Imaginário
94
.
Sironneau compreende o que considera a polissemia do conceito de “imaginário
social”,masbuscasimplificaraocriarcategoriasfundamentaisparamelhorelucidarotermo:
a) Dimensão mítica da existência social: é ela que inspira mitoanálises
sociológicas e conduz ao esclarecimento dos mitos dominantes de uma
determinada época, de uma cultura, de uma nação, de uma geração,
literária ou artística, de uma classe social; b) Imaginação de uma outra
sociedade:elaestáemmarchanas
utopias,nomilanerismos,nasideologias
revolucionárias. É o imaginário da esperança [...]; c) Imaginário mais
modernoecotidiano(recente):vistonaspráticasdetodososdias:paisagem
urbana,objetosfamiliares,encontrosfortuitos,percursosusuais,distrações
populares
95
.
A partir desta perspectiva, é possível afirmar que o mito de Che Guevara pod e estar
vinculado a, ao menos, duas das três significações trazidas por Sironneau. Na primeira, que
procura esclarecer grandes mitos de uma época, de uma geração, e na segunda, no
“imagináriodaesperança”,cujoprincipalsentidoé
abuscaporumanovasociedade,presente
nasutopiasenosideaisdasrevoluções.

94
SIRONNEAU, Jean-Pierre apud LEGROS, Patrick; MONNEYRON, Frédéric; RENARD, Jean Bruno;
TACUSSEL, Patrick. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2007.
95
LEGROS, Patrick; MONNEYRON, Frédéric; RENARD, Jean Bruno; TACUSSEL, Patrick. Sociologia
do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2007, p. 11.
66
Che, que era marxista, buscava a redenção do mundo por meio do socialismo, do
comunismo, em suma, de uma utopia. A despeito da impossibilidade de concretizar seu
projeto,a revolução iniciadae não concluída por Che,osideaisguevaristas persistem em
certa medida, como sentenciam os autores de
Sociologia do Imaginário: “A ideologia é o
resultado socialmente aceito, na escala de um grupo humano, das idéias interiorizadas por
cadaumdeseusmembrospara queumavisãodemundoassegureaestabilidadeecomande
osprojetos”
96
.

O imaginário social é, nesse caso, definido como “a única potência
determinante e ativa” apta a impulsionar e a dominar a prática dos
indivíduos; a ideologia substitui na imaginação a produção concreta dos
meios de sobrevivência e a existência na sua totalidade por intermédio de
representações e de projetos celestes,
sendo a religião o modelo mais
acabadoeailusãopolíticaprofana
97
.
Hoje,osprojetoseideologiasantespropostos porChenãoencontremtantosadeptos
quanto alguns anos. O espírito ideológico e o desejo de revolução, de mudança do status
quosemantêm.Modificado,mas presente.Napautadamaioriadessesgruposéprovávelque
nãohajamaisespaçoparaa
luta armada, a guerrilha, a tomada do poder por meio da força.
Uma nova agenda de temas agora é discutida, como o combate à fome e a busca por
alternativasdesustentabilidadedoplaneta,emformatodeumaresistênciapacífica.
IssonãoquerdizerqueoideáriodeChenão
estejamaispresentenoimagináriosocial.
Aocontrário. Aideologiafuncionacomoumtotem.Aimagem deCheé umtotemideológico

96
Ibidem, p. 36.
97
Ibidem, p. 36.
67
para muitos. Não porque conseguiu atingir seus objetivos, mas justamente por não los
alcançado. Ainda que não tenha tornado o mundo um lugar socialista como sonhava, Che
minouopoderenquantopôde.
Com suas ações, sua guerrilha, suas estratégias, sua violência, sua inteligência, seus
disfarces e suas aventuras, o
médico argentino foi uma força transversal, por vezes
subterrânea, anarquista. Che agia na marginalidade. Não conseguiu derrubar o muro do
capitalismo,masfragilizouseusalicercesporumperíodo.Cheeraapotência,termoutilizado
porMichelMaffesoli.Apotênciaépotênciaatéchegaraopoder,atécumprirsuamissão.
Como Guevara não terminou sua missão, permanece como potência, seguida pelo
rastro ideológico até hoje utilizado por grupos movimentos sociais. Um bom exemplo desta
espécie de apropriação da imagem de Che é o Movimento dos Trabalhadores SemTerra
(MST),noBrasil,queutilizaa invasãodeterraspormeiodetáticas
deguerrilha.Emsuasações
écomumintegrantesempunharembandeiras ouvestiremroupas comorostodeChe.
Partidos políticos de esquerda, Organizações Não Governamentais e grêmios
estudantis também se apóiam na imagem guevarista para justificarem suas causas,
reivindicaçõeselutas.Comomitocomototem,acreditamestaridentificadoscom
alguémque
tentouderrubarumgigante.Acreditamnototemenapotênciadomito.
Esta permanência do mito de esquerda em que se constitui Che Guevara parece
contrariar Roland Barthes, para quem o mito, de uma maneira geral, “é uma fala
68
despolitizada” e o mito de esquerda, em particular, “um mito pobre, essencialmente pobre.
Nãoconsegueproliferar,produzidoporencomenda,eparaumalcancetemporallimitado,não
sabereinventarse”
98
.
Podenãoserseguro,nestemomento,garantirqueomitodeChesoubesereinventar
nessas quatro décadas. No entanto, é possívelcompreender que este mito tem passado por
releiturasdiversasapartirdeumagrande variedadedepontosde vista,como observamos
aolongodestadissertação.“As
derivaçõesaouossentimentos
[...] convidam os atores a se mobilizarem em torno de um objeto ou de um projeto se
cristalizamsobafiguradomito
99
”.
Seoimagináriosocial,comovimos,atua naconduçãoaoesclarecimentodosmitos
dominantes de uma dete rminada época, se está presente nas ideologias revolucionárias e
tambémnaspráticascotidianas,éprudenteafirmarqueeleintegrafortementeosprocessos
de socialização. Mais que isso, o imaginário, de acordo com
alguns autores, intervém nes ses
processos.

[...] porque os afetos governam as crenças e os desejos, estimulam a ação
dos sujeitos e determinam um movimento universal no seio do qual se
combinam as características de base da existência na sua totalidade: a
repetição e a diferenciação. [...] Os elos que unem em profundidade os
indivíduos resultam
da simultaneidade de sua convicção e de sua paixão,
cadaumadasconsciênciasestandocertadequeestaidéiaouestavontade
é partilhada no mesmo momento por uma infinidade de seus
semelhantes
100

98
BARTHES, Roland. Mitologias. 1. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972, p. 168.
99
LEGROS; MONNEYRON; RENARD; TACUSSEL,op. cit. p. 53.
100
Ibidem, 2007, p. 48.
69
Nestateiadefé,sentimentos,adesõeseimagináriosemtornodeumaimagemneste
casoadeCheGuevara–,deummito,umtotem,umaidéiaouumaideologiaexiteumacerta
submissão por parte dos que apóiam, compartilham, reverenciam, imitam e seguem tais
íconeseseusdogmas
eregras,comoseparticipassemdeumcultoaoreligioso.Engelsaborda
ainfluênciadareligiãonopensamen tosocialista:
A religião exerce uma inegável influência referencial sobre os construtores
do socialismo moderno, mesmo que sejam, fundamentalmente ateus. Ela
aparecenovocabulárioenaescolhadosconceitos,pormeiodacomparação
[...] entre o início do cristianismo e o nascimento do movimento operário
comunista
101
.
ParaLegros,Monneyron,RenardeTacussel,asubmissãoaoquenão sepodemostrar
“éumadisposiçãouniversalporquea açãohumanaencontrasuafonteemummodelomaisou
menosvagoqueoshomenssefazemdeDeus,deseusdeveresparacomseusemelhante,de
suaalma,das
prescriçõesdivinasquepesamsobreeles”
102
.Osmesmosautores acrescentam:
“Nenhuma sociedade pode subsistir ou prosperar sem uma base de crenças dogmáticas, ou
seja,deopiniõesaceitasingenuamentesemdiscussão
103
”.
4.2Aimagem

101
ENGELS, Friedrich IN LEGROS, Patrick; MONNEYRON, Frédéric; RENARD, Jean Bruno;
TACUSSEL, Patrick. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2007, p. 31.
102
LEGROS; MONNEYRON; RENARD; TACUSSEL,op. cit. p. 53.
103
Ibidem, 2007, p. 41.
70
Antes de abordar a famosa imagem fotográfica de Che Guevara propriamente
dita, é necessário tecer algumas considerações sobre a noção de fotografia. No entanto,
não farei uma análise detalhada acerca de conceitos e processos técnicos ou químicos
referentes à fotografia. Tampouco irei tratar do funcionamento dos dispositivos óticos
ou discorrer sobre o uso das lentes e suas relações com velocidade, luminosidade,
diafragma etc. A preocupação aqui é definir o que é fotografia.
Existem duas definições básicas para Fotografia, de acordo com Ivan Lima. Uma
vem da Grécia: foto quer dizer luz e grafia, escrita. Ou seja, escrever com a luz. Do
oriente, mais especificamente do Japão, fotografia é sha-shin, que significa dizer
“reflexo da realidade”. “Por esta forma, fotografia quer dizer uma maneira de expressão
visual”
104
, afirma Lima.
Conforme o mesmo autor, também há dois tipos de usuários para a linguagem
fotográfica: o emissor (que pode ser o fotógrafo ou o veículo de comunicação que
publicou a imagem) e o receptor (quem irá ler e interpretar o fato, o acontecimento ou a
obra que está diante de seus olhos)
105
. O que Lima quer dizer é que ao “ler” a
fotografia, o receptor percorre um trajeto bastante simples, mas fundamental para a
compreensão do que vê: percepção, identificação e interpretação.
A fotografia é uma ferramenta de comunicação não-verbal. Alguém já disse, de
forma exagerada, que “uma foto vale por mil palavras”. Não é de todo verdade. Se o

104
LIMA, Ivan. A fotografia é a sua linguagem. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1998, p. 13.
105
Ibidem, 1998, p. 13.
71
ditado, de fato, encontrasse eco na realidade, jornais, revistas e sites de Internet não
precisariam utilizar o recurso da legenda para “explicar” o que a imagem mostra. No
entanto, poucos textos conseguem impor a força de uma fotografia e sua
instantaneidade.
De qualquer maneira, a comunicação não-verbal da fotografia se vale de outros
ingredientes, que não as palavras e os sons. Por meio de imagens, o fotógrafo capta
informações que não são ditas e que, na maioria das vezes, são transmitidas de forma
inconsciente pelo sujeito fotografado. “Comunicação não-verbal se aplica a gestos,
posturas, à orientação do corpo, à singularidade somática, naturais ou artificiais,
organização de objetos (...), graças aos quais uma informação é emitida”
106
.
De acordo com Lima, uma das principais observações dos fotógrafos quanto à
comunicação não-verbal reside no corpo do fotografado, que é dividido em três formas:
a expressão (o rosto, tendo como elemento principal os olhos), os gestos (braços e
mãos) e a postura (corpo direcionado pelos membros inferiores). Essa observação se
aplica, particularmente, no caso dos retratos, como o de Che Guevara, a imagem
fotográfica mais famosa do século XX, segundo o Marylan Institute, de Washington.
Parece não haver dúvida de que o mito guevarista tem se mantido vivo em
grande medida pela existência daquela imagem. A foto foi registrada no dia 5 de março
de 1960 por Alberto Korda, que era o repórter fotográfico oficial da Revolução Cubana,

106
Ibidem, 1998, p. 104.
72
em um ato em homenagem às vítimas de uma sabotagem ao barco francês La Cumbre,
dinamitado no porto de Havana. Na época, a autoria do atentado foi creditada à CIA.
Em depoimento a Ciro Bianchi Ross
107
em um site cubano, Korda revelou que
estava a cerca de 10 metros do palco onde ocorria a cerimônia e percebeu a
aproximação de Che à beira da tribuna. Havia outras pessoas com Che, mas Korda
projetou o foco no líder e fez entre dois ou três disparos com sua Leica. Korda nunca
teve a intenção de vender aquela imagem.
Em 1967, mesmo ano em que Che foi assassinado na Bolívia, Korda presenteou
um editor italiano que estava em visita a Cuba com aquela foto. Depois da morte, a
imagem de Guevara sério e vestindo boina foi reproduzida aos milhares a partir da
Itália. Distribuída mundo afora, esta imagem tem contribuído enormemente para
potencializar a força mitológica de Che.
O destino da imagem captada por Korda encontra repouso nas palavras de
Roland Barthes em suas teorias sobre fotografia. Para o pensador, “o que a fotografia
reproduz ao infinito só ocorre uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais
poderá repetir-se existencialmente”
108
. Para Barthes, o fotografado não é apenas um
alvo do fotógrafo.
Aquela ou aquele que é fotografado é o referente, espécie de pequeno
simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de
Spectrum da fotografia, porque esta palavra mantém, através de sua raiz, uma

107
http://www.blythe.org/korda/ http://www.patriagrande.net/cuba/alberto.korda/fotos.htm
108
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 13.
73
relação com o ‘espetáculo’ e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que
há em toda fotografia: o retorno do morto
109
.
O retrato “é um campo cerrado de forças”, acredita Barthes. Segundo o
pensador, é no que chama de foto-retrato que “quatro imaginários aí se cruzam, aí se
afrontam, aí se deformam”
110
.
Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que
eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que
ele se seve para exibir sua arte. Em outras palavras, ato curioso: não paro de
me imitar, e é por isso que, cada vez que me faço (que me deixo) fotografar,
sou infalivelmente tocado por uma sensação de inautenticidade, às vezes de
impostura (como certos pesadelos podem proporcionar). Imaginariamente, a
fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa este momento muito
sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas
antes sou um sujeito que se sente tornar-se um objeto: vivo então uma
microexperiência da morte (de pantese): torno-me verdadeiramente
espectro
111
.
Jean Baudrillard vai além e afirma que a fotografia é o nosso exorcismo. “A
sociedade primitiva tinhas suas máscaras, a sociedade burguesa, seus espelhos, nós
temos nossas imagens”
112
. Para ele, a imagem fotográfica é dramática e, por ser
dramática, é exaltada até mesmo pelo cinema. “O próprio cinema cultiva o mito da
câmera lenta e do congelamento como o ponto mais alto da dramaticidade”
113
.
E é este grau dramático da imagem fotográfica que provoca reações, sensações e
expressões no receptor, que constrói sentidos, ou seja, o imaginário. Silva afirma que o

109
Ibidem, 1984, p. 20.
110
Ibidem, 1984, p. 27.
111
Ibidem, 1984, p. 28.
112
BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 30.
113
Ibidem, 1997, p. 33.
74
imaginário é uma língua
114
, que nós nos comunicamos por meio de nossos imaginários.
Nas palavras do autor, o imaginário é uma narrativa mítica da era da imagem
115
. A
imagem de Che é a sua própria língua, que mesmo silenciosa, se comunica e contagia
gerações.
Nesta perspectiva, é razoável afirmar que essa comunicação da imagem de Che
Guevara por meio do imaginário, ou seja, por meio de sua narrativa mítica, se dá de
maneira semelhante a de uma estrela de cinema. As estrelas do mundo cinematográfico,
afirma Morin
116
, alcançam a condição de semidivindades. Em sua obra sobre os mitos
da tela, Morin lembra que tudo, no espetáculo do cinema, “o conteúdo, a direção e a
publicidade dos filmes gravitam ao redor da estrela”
117
. Entre as décadas de 1920 e
1930, o cinema explora, primeiro, a imagem feminina. Para isso, cria arquétipos
variados como
a virgem inocente ou rebelde, com imensos olhos incrédulos, de lábios
entreabertos[...],avamp,saídadasmitologiasnórdicas,eagrandeprostituta,
saída das mitologias mediterrâneas, se diferenciam e se confundem no seio
dograndearquétipodafemmefatale
118
.

114
SILVA, Juremir M. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 7.
115
Ibidem, 2003, p. 7.
116
MORIN, Edgar. As estrelas: mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
117
Ibidem, 1989, p. 8.
118
Ibidem, 1989, p. 8.
75
Emseguida,aindústriadocinemapassaaampliartambémosarquétiposmasculinos,
emgeralligadosàimagemdoherói.“Oheróicômicoseimpõenolongametragem.Aoredor
dos heróis da justiça, da aventura, da ousadia, descendentes fílmicos de Teseu, Hércules e
Lancelote,cristalizamseosgrandesgênerosépico”
119
.
Morin avalia que Rodolfo Valentino é o ator que “opera uma espécie de síntese
perfeita”destearquétipo. “Sheikárabe,senhorromano,aviador,deusquemorre,renasceese
metamorfoseia,comoOsíris,Átis,Dionísio,heróisdefeitosinomináveis,elepermanece, antes
detudo,ídolodoamor”
120
.
AforçadeValentinonoimaginário socialemtornodoatore deseus personagensfoi
tamanha que na ocasião de sua morte houve uma histeria coletiva. Até hoje o ator é
reverenciado. “Seu túmulo jamais deixará de receber flores
121
”. Para Morin, “as personagens
não são apenas personagens. As personagens do cinema contaminam as estrelas.
Reciprocamente,aestrelacontamina,elaprópria,assuaspersonagens”
122
.
Se Valentino foi “a síntese perfeita” do arquétipo do herói nos anos 30, James Dean
ocupouesteespaçoentreofinaldadécadade50e ocomeçodosanos60.Diferentementedo
herói comportado como Valentino, Dean exprimia uma atitude de rebeldia em relação à
sociedade.DizMorin:

119
Ibidem, 1989, p. 8.
120
Ibidem, 1989, p. 8.
121
Ibidem, 1989, p. 9.
122
Ibidem, 1989, p. 24.
76
os blue jeans, a jaqueta de couro, a camiseta, a abolição da gravata, o
desabotoado e o desleixado voluntários são igualmente signos ostensivos
(do mesmo valor das insígnias políticas) de uma resistência às convenções
sociais do mundo dos adultos, da uma postura de signos de vestuário viris
[...] e de
fantasia de artista. James Dean não inovou em nada, apenas
canonizouesistematizouumconjuntodenormasdovestuárioquepermitiu
a uma classe de idade se afirmar, e se afirmar mais ainda através da
imitaçãodoherói”
123
.

JamesDeanseencaixoumuitobemnaarquiteturacinematográfica, queabordatemas
dofolhetim,dastramasdeamoredrama,noimaginárioburguês,deacordocomMorin.Com
as temáticas em torno da “magia do duplo (sósias, gêmeos), (...) conflitos edipianos (...),
mortesacrifício do herói. O realismo, o psicologismo
e o happy end revelam precisamente a
transformaçãoburguesadesteimaginário”
124
.AcrescentaMorin:
O imaginário burguês aproximase do real ao multiplicar os sinais de
verossimilhança e credibilidade. O mesmo movimento que aproxima o
imaginário doreal aproxima o real do imaginário. Em outras palavras: avida
da alma se amplia, se enriquece, se hipertrofia mesmo, no interior da
individualidadeburguesa.Aalmaé
precisamenteolugardesimbiosenoqual
o imaginário e real se confundem e se alimentam um do outro; o amor,
fenômeno da alma que mistura de maneira mais íntima nossas projeções
identificações imaginárias e nossa vida real, ganha mais importância. O
imaginário se envolve muito mais diretamente com o
real, e o real como
imaginário. O laço afetivo entre espectador e herói tornase tão pessoal, no
sentidomaisegoístadaexpressão,queoespectadorpassaatemeraquiloque
antesexigia:amortedoherói.Ohappyendsubstituiofimtrágico.Amortee
afatalidaderecuamdiante
deumotimismoprovidencial
125
.

123
Ibidem, 1989, p. 114.
124
Ibidem, 1989, p.11.
125
Ibidem, 1989, p. 11.
77
MorinacreditaqueJamesDean,aoencarnaroarquétipodeheróirebeldeedes temido
possaterencontradonoabsolutooquedefatoencontrou:amorte.Parao sociólogofrancês,
“oheróidasmitologiastraçaoseuprópriodestinonocombatecontraomundo”
126
.
Suamortesignificaqueelefoidestruídopelasforçashostisdomundo,mas
tambémque,nestaderrota,elefinalmenteatingeoabsoluto:aimortalidade.
JamesDeanmorre;suavitóriasobreamortecomeça.(...).Osheróismorrem
jovens.Osheróissãojovens
127
.

Se Che Guevara pode ser considerado hoje uma espécie de astro de Hollywood pela
dimensãoaquechegouoimaginário socialemtornodesuaimagem,éprudente,aomenos,
estabelecerrelaçãoentreumastrodecinemapropriamentedito,comoJamesDean, eojovem
revolucionário argentino. Não quero
dizer aqui que os dois são mitos da mesma ordem ou
ícones de mesmo teor. Mas talvez, mesmo sem querer, Che alcançou o status de herói, de
mitoaodesafiaromundohostileamor te.
O paradoxo nas atitudes de Dean e Guevara está na relação entre “a mais
intensa
aspiraçãoàvidae o maior riscodemorte”
128
.Morinnãose engana quanto a isso evaialém,
afirmando que “a morte realiza o destino de todo o herói mitológico, afirmando sua dupla
natureza,humanaedivina”
129
.

126
Ibidem, 1989, p. 112.
127
Ibidem, 1989, p. 113.
128
Ibidem, 1989, 116.
129
Ibidem, 1989, 116.
78
A morte completa a profunda humanidade do herói lutar heroicamente
contraomundo,enfrentarheroicamenteumamorte queacabaráporabatê
lo. Ao mesmo tempo, a morte completa o herói em sua natureza sobre
humana, divinizandoo à medida que lhe abra as portas da imortalidade.
Somenteapósosacrifício,
noqualexpiasuacondiçãohumana,équeJesusse
tornaDeus
130
.
Oreconhecimentopopulardoheróireforçasua imagemmitificadoraeodiferenciando
dos meros mortais
131
. James Dean foi uma estrela do cinema. O perfeito arquétipo do herói
juvenil,comsuarebeldiaesuasatitudesdeheróidesafiantedomundo.
Che Guevara, que teve sua vida contada no cinema em dezenas de filmes, foi uma
estreladapolítica,maisprecisamentedaesquerda,dosocialismo.Foio
arquétipoperfeitodo
herói revolucionário. Jovem e destemi do, desafiou o mundo. Hoje, as imagens de Dean e
Guevaraseguemodestinodetodasasestrelas,detodososmitoseheróis:setransformaram
emmercadorias.
Segundo Morin, “a estrela é uma mercadoria total: não um centímetro de seu
corpo,
uma fibrade sua alma ou uma recordação de sua vida que não possa ser lançada no
mercado”
132
.
Esta mercadoria total tem outras qualidades: é a mercadoriasímbolo do
grande capitalismo. [...] A estrela tem todas as virtudes dos produtos
fabricados em série e adotados no mercado mundial, como o chiclete, a
geladeira,odetergente,obarbeadoretc.Adifusão maciçaéasseguradapelos
maiores disseminadores do mundo moderno:
a imprensa, o rádio e,
evidentemente,ofilme.Semfalarqueaestrelamercadorianãosegastanem

130
Ibidem, 1989, 117.
131
PENA, Felipe. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006, p. 84.
132
Ibidem, 1989, 76.
79
se estraga no ato do consumo. A multiplicação da sua imagem, ao invés de
alterála,atornaaindamaisdesejável
133
.
Este fenômeno mercadológico em torno de heróis, mitos e estrelas pode ser
verificada com facilidade nas ruas e lojas das grandes cidades ou na internet. No caso de
Che Guevara, especificamente, sua famosa foto estampa não apenas quadros ou
camisetas, mas uma série infinita de objetos, o que pode configurar que a imagem de
Che transbordou os suportes midiáticos tradicionais, transformando peças de artesanato,
como tapetes, ou de cozinha, como xícaras, em veículos de comunicação a partir do
consumo.
4.3 O consumo
O rosto do revolucionário argenti no, como citado em capítulo anterior, está sendo
utilizado em diferentes suportes, como em camisetas, jaquetas, bottons, cintas, bonés,
biquínis e xícaras. Objetos com a figura do mito estão à venda nas ruas centrais das grandes
cidadesdaAméricadoSul,daEuropa,daÁsia,e
atédegrandesmetrópolesnorteamericanas.
Estãoàvendaemtodaaparte.
NaInternet,centenasdeportais amaioriadelesproduzida nosEstadosUnidos
quecomercializamprodutosem alusão aChe
134
.Por ironia, o símbolo da revoluçãosocialista
foi transformado em um ícone do sistema capitalista que tanto Che Guevara combateu. A

133
Ibidem, 1989, 76.
134
Disponível em www.starstore.com. Acesso em: 12 de jun. 2007.
80
forçaimagináriados ideaisrevolucionáriosdeCheGuevaraparecetersemantidofirmeatéos
anos80,especialmentenospaísesdaAméricaLatina.Naquelaépoca,algumasnações,como o
Brasil,recémcomeçavamasairdelongosperíodosdeditaduramilitar. 
Os últimos 20 anos, no entanto, foram de intensas modificaçõ es
sociais, econômicas,
culturaisepolíticasemtodoomundo.Seassociedadesmudaram,asrelaçõeseconômicasse
alteraram e as formas de comunicação se aceleraram, é bem provável que a percepção em
relaçãoaummitotambémteriagrandeprobabilidadedesofrerreleituras.
As modificações advindas do processo de globalização
e das novas tecnologias de
informação mudaram também as rotinas sociais em muitos aspectos. Agora, as certezas de
antes hoje são dúvidas ou nem existem mais. Em um mundo de mudanças constantes,
confusas e incontroladas, quase nada parece ficar no lugar. Em seus ensaios sobre o que
denominadefenômenos
extremos,JeanBaudrillardacreditaqueasociedadeatualémarcada
por uma “contaminação respectiva de todas as categorias, substituição de uma esfera por
outra,confusãodegêneros”
135
.Paraele,
a lei que nos é imposta é a da confusão dos gêneros. Tudo é sexual. Tudo é
político. Tudo é estético. Simultaneamente. Tudo tomou sentido político,
principalmente depois de 1968: a vida cotidiana e também a loucura, a
linguagem, a mídia, assim como o desejo, tornam-se políticos à medida que
entram na esfera da liberação e dos processos coletivos de massa
136
.
Aotratardaliberaçãoemtodososdomínios,cujacolunavertebralabordaaliberação
social generalizada em qualquer sentido e direção, como “a sexual, a política, das forças

135
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre fenômenos extremos.São Paulo:
Papirus, 1990, p. 14.
136
Ibidem, 1990, p. 15.
81
produtivas, das forças destrutivas, da mulher, da criança, das pulsações inconscientes, da
arte”,processosaos quais Baudrillard denomina deorgia,eleafirma “que tudo nasociedade
contemporânea se contamina, se mistura, se contagia e se confunde, especialmente, a partir
de1968”
137
.Coincidentemente,umanodepoisdamortedeCheGuevara.
EssaatualizaçãodapercepçãodomitodeCheeatémesmodo usodesuaimagem
repousanasidéiasdosociólogofrancêsMichelMaffesoli.Paraele,“todoobjetooufenômeno
está ligado a outros e é por eles deter minado.
[...] Significa dizer que o que é não
necessariamentesempreofoienãonecessariamentesempreo será”
138
.Ocenárioglobalizado
atualémesm opropícioparaaocorrênciadestetipodefenômeno.Issoporqueesteprocess o ,
queparamuitoséoaperfeiçoamentodocapitalismomulticulturalesemfronteiras,temcomo
panodefundojustamenteoconsu mo.
É no consumo que está baseada a idéia de globalização, comandada
por
megacorporações transnacionais que estão em toda a parte, para que seus produtos sejam
consumidosem qualquer lugar,comoCocaCola, Sony,Marlboro, Nike.GeorgeYúdicenão se
engana quando diz que “a ênfase maior no contexto global das práticas culturais nos anos
1980 e 1990 é o resultado dos efeitos
da liberalização do comércio, do maior alcance global
dascomunicaçõesedoconsumismo”
139
.

137
Ibidem, 1990, p. 15.
138
MAFFESOLI, op. cit. p. 7. Michel. Mediações simbólicas: a imagem como vínculo social. In
Revista Famecos, mídia, cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, n. 8, 1998, p. 7.
139
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004, p. 124.
82
Para buscar compreender o que é consumo e como ele se processa no mundo atual,
este estudo passará a se ocupar especialmente das teorias de Néstor García Canclini. Apesar
de admitir não existir ainda uma teoria sociocultural do consumo, ele procura articular a
junçãoentreconsumidoresecidadãos
140
,principalmenteemmeioatantasmudançassociais,
econômicaseculturaisocorridas commais intensidadenasduasúltimasdécadas.
autores como Mike Featherstone também atentam para o consumo de signos e
imagens, cuja importância reside “na capacidade de remodelar incessantemente o aspecto
simbólicoouculturaldamercadoria”
141
.Emumpassadonãomuitoremoto,ovalorsimbólico
conferidoàs mercadorias,porexemplo,estavaligadoàpreservaçãodetradiçõeseaocultoà
produçãoprópria,comodestacaCanclini
142
.
Segundo ele, nos séculos XIX e XX, “comer como espanhol, brasileiro ou mexicano
significava não apenas guardar tradições específicas, como também alimentarse com os
produtos da própria sociedade”
143
. Para o autor, o valor simbólico de consumir a produção
nacionaltambémtinhaavercomopreço.Osprodutosimportadoserammaiscaros.Existiao
queCanclinidenominaderacionalidadeeconômica.
Apesardessecomportamentoracionalquedeterminavaoconsumo deprodutoslocais
emdetrimento dos estrangeiros, Canclini ressalta
quehojeessefenômeno praticamente não

140
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: Conflitos multiculturais da globalização.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
141
FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade.
São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997, p. 109.
142
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: Conflitos multiculturais da globalização.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 31.
143
Ibidem, 2006, p. 31.
83
ocorre, uma vez que o que se consome atualmente perdeu a territorialidade, o local de
produção,aorigem:
esta oposição esquemática, dualista, entre o próprio e o alheio não
parecefazermuitosentidoquandocompramosumcarroFordmontado
na Espanha, com vidros feitos no Canadá, carburador italiano, radiador
austríaco,cilindrosebateriaingleseseeixodetransmissãofrancês
144
.
O autor compara a montagem de um carro à estruturação do consumo pela ótica da
globalização.Assimcomoosobjetosnãotêmmaisrelaçãocomaorigemondesãoproduzidos,
aculturatambémpareceseprocessardemaneirasimilar.Comentaoautor:
a cultura é um processo de montagem multinacional, uma articulação
flexível das partes, uma colagem de traços que qualquer cidadão de
qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar. A globalização
supõe uma interação funcional de atividades econômicas e culturais
dispersas, bense serviços geradosporum sistema commuitos
centros,
no qual é mais importante a velocidade com que se percorre o mundo
do que as posições geográficas a partir das quais se está agindo. [...] O
problemanão étanto afalta, maso fatode oque possuemtornarse a
cadainstanteobsoletooufugaz
145
.
ParaCanclini,consumoéoconjuntodeprocessossocioculturaisemqueserealizama
apropriaçãoeosusosdosprodutos.Evaialém.Eleafirmaqueoconsumoestáligadoaomodo
deosindivíduossecomunicaremcomosoutros.
Em um sentido mais radical, o consumo se liga, de outro modo, com a
insatisfaçãoqueofluxoerráticodossignificadosqueengendra.Comprar

144
Ibidem, 2006, p. 31.
145
Ibidem, 2006, p. 32.
84
objetos, pendurálos ou distribuílos pela casa, assinalarlhes um lugar
em uma ordem, atribuirlhes funções na comunicação com os outros,
sãoosrecursosparasepensaroprópriocorpo,ainstávelordemsociale
asinteraçõesincertascomosdemais.Consumirétornarmaisinteligível
ummundoonde
osólidoseevapora.Porisso,alémdeseremúteispara
a expansão do mercado e a reprodução da força de trabalho, para nos
distinguirmosdosdemaisenoscomunicarmoscomeles
146
.
A análise de Canclini encontra eco em Mike Featherstone. Segundo este autor, “a
culturadasociedadedeconsumo[...]éconsideradaumvastocomplexoflutuantedesignose
imagensfragmentárias”
147
.Eestevolumedesignoseimagensmuitos delestransnacionais
está disperso em toda a parte. Não tem território definido, mas parece estar presente em
todos os lugares. Várias décadas de construção de símbolos transnacionais criaram o que
Renato Ortiz denomina de uma ‘cultura internacionalpopular’, com uma
memória coletiva
feitadefragmentosdediferentesnações.
148


Segundo Ortiz, essa cultura internacionalpopular se constitui a partir do movimento
de eliminação de territórios demarcados, denominado por muitos autores de
desterritorialização, “cujo fulcro é o mercado consumidor”
149
. O autor considera a existênci a
de uma memória internacionalpopular no interi or da sociedade de consumo, onde são
“forjadasreferênciasculturaismundializadas”.Conformeoautor,

146
Ibidem, 2006, p. 65.
147
FEATHERSTONE, op. cit., p 109.
148
CANCLINI, op. cit., 68.
149
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 111.
85
os personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, histórias
em quadrinhos, televisão, cinema constituemse em substratos desta
memória.Nelaseinscrevemaslembrançasdetodos.Asestrelasdecinema
GretaGarbo,MarlynMonroeouBrigitteBardot,cultuadasnascinematecas,
pôsters e anúncios, fazem parte de um imaginário coletivo mundial. Neste
sentido,
podese falar de uma memória cibernética, banco de dados das
lembranças desterritorializadas dos homens. Marcas de cigarro, carros
velozes,cantoresderock, produtosdesupermercado,cenasdopassadoou
de siencefiction são elementos heteróclitos, estocados para serem
utilizados a qualquer momento. A memória internacionalpopular contém
traços da
modernidademundo, ela é o seu receptáculo. Esses objetos
souvenirs são carregados de significados e, ao se atualizarem, povoam e
tornam o mundo inteligível. Daí, ao contemplálos, esta sensação de
familiaridadequenosinvade.
Ortiz acrescenta, ainda, que este tipo de memória funciona como um sistema de
comunicação que, “por meio de referências culturais comuns estabelece a conivência entre
pessoas”,especialmenteosjovens.Comentaoautor:
tshirt,rockandroll,guitarraelétrica,ídolosdamúsicapopepôstersde
artistas (ou até Che Guevara, “Hay que endurecer, pero com ternura”)
são elementos partilhados planetariamente por uma determinada faixa
etária. Eles se constituem assim em cartelas de identidade,
intercomunicando os indivíduos dispersos no espaço globalizado. Da
totalidade
dos traçossouvenirs, marcando desta forma sua
idiossincrasia, isto é, suas diferenças em relação a outros grupos
sociais
150
.

150
Ibidem, 2000, p. 127.
86
Mas por que Che Guevara estaria na lista das personalidades possíveis de serem
transformadasemobjetossouvenirsparaoconsumo?Oqueportrásdeumacamisetacom
o rosto do revolucionário argentino? Algumas dessas respostas podem estar na própria
trajetóriadeCheeporsuaépoca.

Che é
um personagem da década de 60. foi citado neste trabalho que alguns
autores, entre eles Jorge Castañeda, chegam a denominar aquela época de “a década Che
Guevara”.Elemorreuaindajovem,com39anosdeidade,em1967.Omundo,sabemos,vivia
emturbulêncianaquelefinaldosanos60,
especialmentecomosjovensadotandoumapostura
derebeldiaemrelaçãoàpolítica,àguerra,àfamília,àuniversidade,àmúsicaeàsartes.
Eraumaespéciedenegaçãoatudo.Umambienteuniversalcomoesseparecetersido
propício para o crescimento de um personagem como Che Guevara, que,
aos 31 anos, havia
conseguido, por meio das armas, participar da derrubada de um governo ditador apoiado
pelosEstadosUnidosemumailhadoCaribe.
A juventude da época buscava o rompimento com a tradição por meio da adoção de
símbolos e comportamentos que sinalizavam seu desejo de contrariar a
situação vigente. O
desprendimento e o destemor de Che contagiaram aquela geração na Europa, nos Estados
Unidos parte da juventude americana contrária à guerra do Vietnã se identificava com os
ideaisguevaristaseespecialmentenaAméricaLatina.

87
A imagem de Che Guevara, passados 40 anos desde sua morte, parece ainda estar
impregnada daquele imaginário jovem. No entanto, é muito provável que hoje, o sujeito que
vesteacamisetacomorostodeChenãosejaumadolescentedispostoafazerumarevolução
social ou pegar em armas
contra os governantes. É apenas alguém que se identifica com a
rebeldia daquele personagem cujos ideais estão muito longe de serem alcançados. Talvez
jamaisosejam.
Consumir a imagem de Che Guevara nesses dias globalizados pode ser um simples
desejo de fazer parte de um grupo que se identifica com
causas humanas e sociais ou que
adota posturas rebeldes em relação ao universo em que vive cotidianamente. A guerrilha de
Che, com seu trunfo em Cuba e grandes fracassos na África e na Bolívia, onde morreu, pode
nãopertencermaisaoimaginário dasnovasgerações.
Oqueparececlaro é
que a imagem de Che está
sendo permanentemente consumida e utilizada para
manifestações diversas. Na Internet, a ferramenta que
tem mudado as relações humanas, por exemplo,
também é possível encontrar sites que comparam
Ernesto a um assassino ou o apontam como herói, um
exemplo.
FOTO4:CheGuevaraàvenda
88
De qualquer maneira, notase que a arquitetura do consumo está utilizando o
significado dos ideais guevaristas para, de uma certa maneira, darlhe uma nova roupagem,
tornando o mito revolucionário em uma celebridade mundial sem ranços socialistas ou
comunistas. Em uma imagem capaz de ser consumida tanto por um adolescente
rico da
Europaquantoporumjovembrasileirodeclassebaixa.
Qualquerumpodeterumacamisetacomo rostodeCheGuevara.Ouumaxícara,uma
jaqueta,umquadronoquarto,umbiquíni,umchaveiroouumcalendário.Nãoimporta.Oque
é relevante é o consumo desses objetos
souvenirs, para util izar novamente a expressão de
Ortiz.E,namedidaemqueosconsomem,comunicamseereagrupamseemtornodegrifes,
comosefossemnovasidentidadesenovostotens.Éaidéiadaconjunção,deMichelMaffesoli,
cujabasedesustentação“éacomunicaçãoquenosliga
aooutro”
151
.
4.4Amídia
Ernesto Che Guerava é uma pauta midiática que não envelhece. De tempos em
tempos, a mídia, de uma maneira geral, trata de resgatar fragmentos da trajetória do
revolucionário argentino. As matérias giram em torno do aniversário da morte de Che,
das comemorações que marcam a revolução em Cuba, a divulgação de documentos
inéditos sobre sua vida, novas fotos de sua captura e morte nas montanhas da Bolívia,

151
MAFFESOLI, Michel. A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da comunicação). In Revista
Famecos, mídia cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, nº 20, 2003, p. 13.
89
em 9 de outubro de 1967, a infindável disputa entre Argentina e Cuba pelos restos
mortais do mito, hoje depositados em um mausoléu na cidade cubana de Santa Clara.
Reportagens de jornais e revistas, documentários para a TV, livros e filmes no
cinema são os fios condutores midiáticos que reforçam o mito de Che junto ao
imaginário social. Com a aura de uma estrela hollywoodiana, Che Guerava se mantém
como um produto midiático sempre em voga. Na edição do último dia de 1995, por
exemplo, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma reportagem sobre Che, sob o
título Guevara, o símbolo da utopia dos anos 60.
O texto afirma que “o líder rebelde da década de 60 revive em dois filmes e seis
biografias em produção”. O artigo é escrito por ninguém menos que Jorge Castañeda,
cientista político mexicano, autor de A utopia desarmada e A vida em vermelho, uma
biografia de Che. Duas fotos ilustram a matéria: o rosto de John Lennon e Che Guevara
de boina e charuto na mão esquerda. Diz a legenda:
Ernesto Che Guevara, como John Lennon e os demais Beatles, simbolizam as
mudanças da década de 60, a aparente realização de uma utopia que os anos
seguintes vieram a desmentir e que Lennon antecipou na famosa frase de 1971:
O sonho acabou. O de Guevara terminou em 67, com sua morte na Bolívia
152
.
A morte do fotógrafo Alberto Korda, em 2001, também foi lembrada pela mídia
mundial. No Jornal do Brasil, na seção Obituário, o título trata de identificar quem
morreu naquele 25 de maio: “Alberto Korda, 1929-2001, fotógrafo de Guevara”. A
famosa imagem de Che está ao lado da foto de Korda. Em maio de 2004, uma matéria

152
Jornal do Brasil, 31 de dezembro de 1995.
90
no jornal Folha de São Paulo abordou em suas páginas dedicadas à cultura e à arte
(Caderno Ilustrada) matéria de uma página com o título “Che S.A.”
153
.
No apoio, o jornal salienta que o “ícone do comunismo ressuscita em filmes (no
caso, Diários de Motocicleta, de Walter Salles), roupas de grife e bugigangas do
hipercapitalismo”.
A foto principal da reportagem é aquela famosa foto de Che com orelhas de
Mickey, personagem-símbolo de Walt Disney, um dos maiores símbolos do capitalismo
e do “american way of life”. Em um box da matéria, o título é: “Vende-se Guevara”. As
imagens que acompanham o box são uma camiseta feminina com a imagem de Che
(sempre a foto de Korda), um isqueiro, um chaveiro em formato de estrela e um biquíni
da Cia. Marítima vestido por Gisele Bündchen, que desfilou com a peça no São Paulo
Fashion Week daquele ano. Todos os produtos apresentados pelo jornal têm preço e o
endereço para comprar na Internet: www.thechestore.com.
A imagem de Gisele desfilando foi capa da revista norte-americana Time. Na
reportagem, a diretora de criação da Cia. Marítima, Fabiana Kherlakian, justifica a
utilização da foto de Che Guevara no biquíni produzido pela empresa: “Essa é uma
estampa superpop, que está em camelôs do mundo inteiro. É uma coisa que toda hora
volta”.

153
ASSIS, Diego. Folha de São Paulo. Ilustrada. 9 de maio de 2004, p. 4.
91
Na mesma edição da Folha, artigo do jornalista americano Paul Berman acusa o
filme Diários de Motocicleta de ser “piedoso” com o líder revolucionário. O texto de
Berman é uma dura crítica aos que idolatram Che e à mídia. De acordo com ele, “o
filme realiza retrato antagônico do revolucionário e que “o culto a Ernesto Che Guevara
é um episódio da indiferença moral de nossos tempos. Che foi um totalitário. Ele não
realizou nada, a não ser o desastre”
154
.

154
Ibidem, 2004, p. 4.
FOTO5:Estampapop
92
Em agosto, o mesmo jornal publica na capa do Caderno Ilustrada uma matéria
sobre a exposição de fotos e a publicação de um livro fotográfico sobre Cuba, intitulado
“Cuba por Korda”. Entre as três fotos escolhidas pela editoria de Cultura da Folha de
São Paulo para ilustrar a reportagem da mostra, claro, está o retrato de Che. Mas são nas
datas fechadas, para utilizar um termo jornalístico, é que Che Guevara volta com força.
Na passagem dos 40 anos de sua morte, jornais do Brasil e do Exterior lembraram o
mito.
Em 2007, como sempre ocorre desde que foi assassinado na Bolívia, a mídia
voltou a refrescar a memória social ao lembrar Che Guevara. Novos livros foram
lançados, filmes inéditos entraram em cartaz nas salas de cinema, reportagens buscaram
pontos de vista ainda pouco explorados da trajetória guevarista.
O Correio do Povo, de Porto Alegre, por exemplo, utiliza no dia 8 de outubro de
2007 uma chamada de capa para lembrar a data e ilustra o texto com uma foto
Associated France Press e legendada assim: “A imagem de Che estampada em bar da
Etiópia”
155
. Contrariando a própria linha editorial, que é a publicação de matérias
pequenas e resumidas, o Correio do Povo abre uma página inteira no corpo do jornal
para falar de Guevara. O título: “Che motiva polêmica 40 anos após sua morte”. Na
linha de apoio ao título, o jornal afirma: “Em meio à controvérsia sobre a autenticidade
de seus restos, revolucionário é lembrado em Cuba, na América Latina e no mundo”.

155
Jornal Correio do Povo, 8 de outubro de 2007, p. 6.
93
O jornal Zero Hora, também do Rio Grande do Sul, publica duas matérias sobre
Che no mesmo dia 8 de outubro de 2007. A editoria de Mundo abre com a matéria
“Herdeiros de Che homenageiam líder”
156
. A foto que ilustra o texto é de um grupo de
jovens argentinos empunhando bandeiras com o rosto de Che na Bolívia. A outra
reportagem ocupa a capa do suplemento de cultura e entretenimento, o Segundo
Caderno
157
.
A matéria principal, sob o título “Che vivo: passados 40 anos de sua morte, o
ícone revolucionário é tema de livros e filmes”. No texto secundário, o jornal salienta
uma nova produção cinematográfica sobre o personagem para 2008, quatro anos depois
de Diários de Motocicleta, em 2004. A película é dividida em duas partes: The
Argentine e Guerrilha, do diretor norte-americano Steven Soderbergh
158
.
Nesta dissertação, no entanto, duas edições das revistas Veja e Caros Amigos,
que lembram os 40 anos da morte de Che – e o tratam de maneiras distintas – recebem
atenção especial. A primeira estampa na capa a seguinte manchete: Che, a farsa do
herói: verdades inconvenientes sobre o mito guerrilheiro altruísta, quarenta anos
depois de sua morte. Na outra publicação, a manchete é esta: O Che: combatente e
intelectual. Dois pontos de vista antagônicos, duas versões diferentes sobre um mesmo
homem e o mesmo mito. Veja mostra um Che sanguinário, violento e amedrontado

156
Jornal Zero Hora, 8 de outubro de 2007, p. 22.
157
Ibidem, 2007, Segundo Caderno.
158
Na edição do dia 29 de outubro de 2008, o jornal Zero Hora voltou a publicar reportagem sobre che
Guevara no suplemento Segundo Caderno. Em uma página, o texto fala da estréia de “Che”, o filme de
Steven Soderberger. Com duração de mais de quatro horas, o filme é dividido em duas partes. A primeira
(The Argentine) resgata o encontro de Che com Fidel Castro, em 1956, no México. A outra (Guerrilha)
mostra Che em viagem a Nova York, em 1964.
94
diante das dificuldades. Caros Amigos apresenta um homem de coragem, lúcido,
estrategista, inteligente e generoso.
Este estudo não tem a pretensão de fazer uma análise de conteúdo nem de
discurso sobre os textos das duas revistas acima citadas. E nem quer mostrar em que
nível a mídia induz a sociedade a lembrar de Che Guevara de tempos em tempos. Ouve-
se, com freqüência, que a mídia aliena ou influencia essencialmente a vida das pessoas
com as informações por ela emitidas em suas mais variadas formas. Não é tarefa desta
pesquisa problematizar tais especulações. No caso específico de Che Guevara, a mídia,
de uma maneira bastante ampla, cita-o, basicamente, quando do aniversário de sua
morte ou das comemorações, em Cuba, da tomada do poder por ele e Fidel Castro.
No entanto, ao falar de Che, seja pela descoberta de novos documentos que
tratem do revolucionário, seja pelo lançamento de um novo filme sobre ele ou a
polêmica em torno de seus restos mortais, Che está em pauta permanente, o que
contribui para a manutenção da força do mito e do magnetismo daquela imagem de
Korda, do consumo de produtos com o rosto do guerrilheiro e até da adesão de seus
ideais por grupos sociais.
Ao trazer as revistas Veja e Caros Amigos à luz desta discussão, este trabalho
mostra que a mídia, ao escolher uma abordagem de Che, reforça o mito ao tratar,
permanentemente, de sua ideologia, seu consumo e sua imagem, independentemente da
versão escolhida e do ponto de vista editorial adotado. Assim, ao abordar Che Guevara
de forma cíclica, a mídia consolida-se como a variável que abarca as outras três
95
variáveis apontadas neste estudo, fortalece o mito e potencializa o seu imaginário.
Quase que de forma permanente, as reportagens sobre o líder revolucionário mencionam
as outras três variáveis.
A reportagem da Revista Veja
159
sobre os 40 anos da morte de Che, por
exemplo, dedica um amplo espaço para o mito. O texto de Diogo Shelp e Duda Teixeira
tem nove páginas. E abre o primeiro parágrafo tentando, explicitamente, reduzir Che
Guevara a um homem com medo de morrer ao suplicar a soldados bolivianos que não o
matassem naquele outubro de 1967. Segundo a matéria, Che teria dito: “Não disparem.
Sou Che. Valho mais vivo do que morto. [...] Você vai matar um homem”
160
. Os autores
da matéria afirmam que a História desconsiderou a importância da frase acima para
construir a lenda em torno de Che.
O esquecimento de uma frase e a perpetuação da outra resumem o sucesso da
máquina de propaganda marxista na elaboração de seu maior e até então
intocado mito. Che tem um apelo que beira a lenda entre os jovens dos cinco
continentes. Como homem de carne e osso, com suas fraquezas, sua maníaca
necessidade de matar pessoas, sua crença inabalável na violência política e a
busca incessante da morte gloriosa, foi um ser desprezível
161
.

159
Revista Veja, edição 2.28, 3 de outubro de 2007, p. 82.
160
SHELP, Diogo; TEIXEIRA, Duda, in Veja, edição 2.28, 3 de outubro de 2007, p. 82.
161
Ibidem, 2007, p. 84.
96
No parágrafo seguinte, a revista continua sua crítica a Che e a outros comunistas
históricos, como Lenin, Stalin, Trotsky, Mao e Fidel Castro: “por suas convicções
ideológicas, Che tem seu lugar assegurado na mesma lata de lixo onde a história já
arremessou há tempos outros teóricos e práticos do comunismo
162
”. No terceiro
parágrafo, Veja, enfim, justifica o tom da reportagem para lembrar os 40 anos da morte
de Che.
FOTO 6: Revista lembra Che como violento e autoritário

162
Ibidem, 2007, p. 84.
97
Os autores afirmam que conversaram com historiadores, biógrafos, ex-
companheiros de Che e no governo cubano
na tentativa de entender como o rosto de um apologista da violência,
voluntariosoeautoritário,foipararnobiquínideGiseleBündchen,nobraço
de Maradona, na barriga de Mike Tyson, em pôsters e camisetas. Seu
retratoclássico feito pelofotógrafo cubanoAlberto Kordaem 1960 éa
fotografia
maisreproduzida de todos os tempos. O mito é particularmente
enganosoporsesustentarnoavessodoqueohomemfoi,pensouerealizou
durantesuaexistência
163
.
É interessante notar que logo nos primeiro três parágrafos de uma reportagem de
novepáginasarevistaabordouasoutrastrêsvariáveisqueestetrabalhoapontacomopilares
de sustentação do mito de Che. Em uma única página, Veja reforçou o mito ao falar da
ideologia,doconsumoedoimaginário
socialemrelaçãoaolíderrevolucionário.Aoconcluira
reportagem,arevistaacreditatercompreendidocomoomitodeChefoiconstruído.
Segundoosautoresdareportagem,“oesforço deconstruçãodomitofoifacilitadopor
vários fatores”
164
, entre eles o de que quando morreu, “Che era uma celebridade
internacional.Boapinta,saíaótimo nasfotografias.Afotodo pôster que enfeita oquartode
milhõesdejovensfoitirada numfuneralemHavana[...]”
165
.Apublicação,noentanto,decide
elencartrêspontoscruciaisparaaconsolidaçãodomitoguevarista:
OprimeirofoiamorteprematuradeChe,queeternizousuaimagemjovem.
Aos 39 anos, ele estava longe de ser um adolescente quando foi abatido,
masapintadegalãlhegarantiaumaspectojuvenil.Ofimprecocetambém
o salvou de ser associado à agonia do comunismo. A decadência
física e
políticadeFidelCastro,desmoralizadopelaresponsabilidadenoisolamento
e no atraso econômico que afligem o povo cubano, uma idéia do que

163
Ibidem, 2007, p. 84.
164
Ibidem, 2007, p. 88.
165
Ibidem, 2007, p. 90.
98
poderiateracontecidocomChe,queeraapenasdoisanosmaisjovemqueo
ditador. O segundo fato foi a ajuda involuntária de seus algozes.
Preocupados em reunir provas convincentes de que o guerrilheiro célebre
estava morto, os militares bolivianos mandar lavar o corpo e aparar e
pentear sua barba e
seu cabelo. Também resolveram trocar sua roupa
imunda. Tudo isso para poder tirar fotos em que ele fosse facilmente
identificado. O resultado é um retrato com espantosa semelhança com as
pinturas barrocas de Cristo morto de expressão beatificada. A terceira
contribuição recebida pelos esquerdistas na construção do mito veio do
contexto histórico. Che morreu às vésperas dos grandes protestos em
defesa dos direitos civis, da agitação dos movimentos estudantis e da
revoluçãodecostumesdacontraculturaturbulênciasquemarcaramoano
de1968
166
.

Empoucaslinhascríticas,VejanãoreúneasvariáveisquesustentamomitodeChe
como também, ela própria, por certo de maneira involuntária, fortalece o imaginário
guevaristaaopontuarfatosqueteriam,deacordocomoseupontodevista,contribuídopara
aconstruçãodomito.
A
RevistaCaros Amigos
167
,por seuturno,dedica,pela quinta vezemseus11 anosde
existência, uma edição especial inteira para tratar do líder guerrilheiro. Em 32 páginas, a
publicaçãocontaavidadeChenainfância,naguerrilha,asdificuldadesnoCongo,osdisfarces,
a vida com a família e o gosto
pela leitura. A publicação se utiliza, basicamente, de textos e
cartas escritos pelo próprio Che Guevara a Fidel Castro, aos pais, aos filhos que viviam em
Cubacomamulher,Aleida.
Ao lançar mão de textos originais do revolucionário argentino, a revista demonstra
claramente sua intenção de resgatar os princípios
ideológicos de Che e as bases que
sustentaram o pensamento guevarista até a morte. Os textos da revista, sem exceção,

166
Ibidem, 2007, p. 90.
167
Revista Caros Amigos, nº 35, outubro de 2007.
99
exaltam, também de forma explícita, a trajetória de Che e o apontam como “combatente e
intelectual”
168
.

AediçãoespecialdeCarosAmigosprivilegiaousodeimagensdeChe.Todasasfotos,
segundo a revista, foram cedidas pelo Centro de EstudosChe Guevara, de Havana, em Cuba.
São 36 imagens em 32 páginas incluída a famosa imagem de Alberto Korda, em página
inteira.
Nocomeço da edição, a revista estampa fotos de Ernesto ainda bebê, com os pais, e
também aos 12 anos de idade, brincando com crianças em alguma rua de Alta Gracia, na
Argentina. Em uma clara intenção de apresentar Che de forma positiva, ainda que
multifacetado, em suas primeiras páginas
a publicação se preocupa em mostrálo como um
jovemfrágil ereflexivo.Da metade da publicaçãoemdiante, CarosAmigospassa aintercalar
textosecartasescritospelopróprioCheGuevaracomimagensgrandes,abertasemtrêseaté
quatrocolunas.Nacartaaoleitor,oseditoressãoclarosaos
defenderaquintaediçãoespecial
completamentededicadaaChe.SobotítuloOoutroChe,otextoafirma:
Esta é a quinta edição especial que pulicamos sobre Che Guevara, o que
significa que ele tem sido de grande ajuda à manutençãode Caros Amigos
basta ver que nenhum outro especial, dos 34 lançados até agora, teve
repeteco.[...]Assimcomonós,amídiadomundointeiroestáreverenciando
a
memória de Che Guevara nestes quarenta anos de sua morte [...].
Encerravaseacarreira,quesetornarialendária,desseargentinodeRosário
que antes de se formar em medicina percorreu a América Latina para
descobrirainjustiçasocialqueolevariaàopçãorevolucionária
169
.

168
Ibidem, 2007, p.1.
169
Ibidem, 2007, p. 3.
100

Ao longo da edição especial, Caros Amigos se ocupa, basicamente, em mostrar a
doutrinaideológicadeesquerdadeCheealgumasdesuasidéiasemrelaçãoaofuturo, comoa
proposta de criar “uma coleção de livros teóricos para formar os jovens cubanos e latino
americanos no que melhor
no pensamento humano”
170
. Para tentar ref o rçar o perfil
ideológico de Che, a revista reserva espaço para apresentar uma lista de autores que Che
costumava ler, mesmo em meio à guerrilha, como David Wise, Thomas Ross, Mao TséTung,
Lenin,José Martí,Homero,Gorki,Hegel, JohnReed,Clausewitz,J. Baldwin,MalcomX, Luther
King,
entreoutros.
Trechos de cartas de Che a amigos e à família são publicadas nesta edição de Caros
Amigos,assimcomomensagensdocomandanteaguerrilheiros.AntesdotextooriginaldeChe,
arevistafazumapequenaintroduçãodestacandoacondutaguevarista.

170
Ibidem, 2007, p. 16.
FOTO7:RevistatrataChecomointelectual
101
Guevara dava particular importância ao aspecto educativo e ao valor do
exemplo,entreoshomensqueparticipavamdeumprocessorevolucionário.
Durante a experiência na guerrilha congolesa, essa preocupação com a
disciplina,amoral,o exemplo,a modéstia,osacrifícioeasolidariedadeele
expressou neste texto (carta aos guerrilheiros)
para ser discutido pelos
combatentesinternacionalistas
171
O que Veja e Caros Amigos trataram em suas edições especiais sobre as quatro
décadas sem Che Guevara merece destaque pelo antagonismo radical entre as duas
abordagens.EnquantoVejacriticaetentarealizarumaespéciededesmascaramentodomito
de Che, Caros Amigos exalta a imagem do revolucionário e
fortalece a sua ideologia. Como
citado anteriormente neste trabalho, outros veículos de comunicação também trataram dos
40 anos da morte de Che, em outubro de 2007, em um trajeto percorrido ciclicamente pela
mídianessesanos.
A mídia percorre, com freqüência, percursos entre o novo e o velho, quase sempre
buscando
umângulodistinto,umolharapartirdeumoutropontodevista.MargaretheBo rn
Steinbergernãoseenganaaoafirmarque
a mídia garante uma atualização constante do componente “novo” das
informaçõese,aomesmotempo,reasseguraàpopulaçãoqueosistemade
significações sociais ou sistema de referências continua o mesmo. A
linguagemjornalística,naverdade,apenaspotencializaumacapacidadeque
qualquertipodelinguagemdispõedelidarsimultaneamentecom
o“novo”
eo“velho”
172
.


171
Ibidem, 2007, p. 20.
172
STEINBERGER, Margarethe Born. Discursos geopolíticos da mídia: jornalismo e imaginário
internacional na América Latina. São Paulo: Educ; Fadesp; Cortez, 2005, p. 20.
102
OqueSteinbergerquerdizerencontrarepousonestaanálise,umavezquenãoseestá,
aqui,querendoapontarseaabordagemdeVejaemrelaçãoaCheestácorretaounãonemse
aCarosAmigostrataolíderrevolucionáriodeformaadequadaounão.
O que está em
jogo agora é o imaginário da notícia, é o uso da notícia como
ferramenta tecnológica do imaginário social. Ao tratarem da imagem, da ideologia e do
consumodeChe,asduaspublicaçõesestão,cadaumacomoseupontodevista,fortalecendo
omito,mantendoode.AfirmaSteiberger:
No uso cotidiano, imaginário e imaginação são muito comumente
identificados com o fantasioso, o falso, o mentiroso, o ficcional terríveis
armadilhas para o jornalista. No entanto, não se faz jornalismo sem
desenhar cenários políticos, econômicos, sociais, culturais ou geopolíticos
como horizonte das atividades básicas de pauta, apuração, checagem,
redação. Ao
relatar secamente apenas os fatos, o jornalista não pode
ignorar que estes são recortes numa trama muito maior, num cenário
parcialmentedesconhecido,enfim,numespaço imaginário. Emprincípio, o
jornalista gosta de acreditar que esse espaço está fora da notícia. Mas a
notícia justamente na correlação com esse “outro” espaço
invisível,
descartável, irrelevante, inconsistente, jornalisticamente irreal. A notícia
nãoexistesemoimagináriodanotícia
173
.

Neste sentido, o imaginário da notícia produzida pela mídia em geral se infiltra no
imagináriosocialformandoposições, opiniõeseaconstruçãoderealidades.Deacordocoma
Steiberger, “a idéia de que o mundo é produzido socialmente pela mídia jornalística não
contradizadequeosjornaissejam
representaçõesdemundo”
174
.Eacrescenta:


173
Ibidem, 2005, p. 29.
174
Ibidem, 2005, p. 30.
103
aampladistribuiçãodainformaçãojornalísticapermitequeessemundoseja
partilhado por um enorme contingente de pessoas, que constroem seus
mapas e leituras do lugar em que vivem segundo o sistema de referências
queamídiaprovê
175
.

Sabemosqueoqueamídiaestabelece,diariamente,éumrecortedomundo.Oqueo
público recebe todos os dias em casa, o que o leitor, o ouvinte, o internauta ou o
telespectador consume diariamente é um mundo editado, formatado a partir de lógicas de
produção do conteúdo editorial.
Para Steinberger,“os sentidos do mundo da mídia resultam
de uma produção social e, ao mesmo tempo, se sedimentam a cad a vez que são
consumidos”
176
.

Issoocorrecomqualquertemaqueestejaempauta apartirdadefiniçãodosveículos
decomunicaçãodoqueépautaemdeterminadomomento.Éo queocorrecomCheGuevara,
umapautaeternaqueserenovaacadadatamarcanteoufatorelevantesobresuavidaousua
morte. Independentemente de sua versão, a imagem de Che é reconhecida, consumida,
ideologizada e midiaticamente explorada de maneira cíclica. Nesta arquitetura, o mito se
fortalece.Permanece.

175
Ibidem, 2005, p. 30.
176
Ibidem, 2005, p. 31.
104
5.CONSIDERAÇÕESFINAIS
105
Depois de meses de leituras diversas e um demorado trabalho de pesquisa, esta
dissertação chega ao fim sem, no entanto, esgotar a investigação do tema a que se propôs
problematizar.Buscarindíciosdecomosemantémaforçadeummitocontemporâneocomo
o de Che Guevara
não foi um desafio pequeno, embora o guerrilheiro, o homem, o
revolucionário,osímbolodalutadosocialismocontraocapitalismotenhasidoexploradoa
partir de muitos pontos devista. Não apenas pela mídia, que faz isso 40 anos, desde que
106
Ernestotombounaselva boliviana e setornouummito, mas tambémpormeio de trabalhos
acadêmicos.
Acuriosidadeemconheceraomenosalgumas respostasparaoproblemaestabelecido
foi, em parte, sanada. Guiada por teorias de autores como Michel Maffesoli, Edgar Morin,
JuremirMachadodaSilva,GilbertDurand,Néstor
GarcíaCanclini,PatrickTacussel,Margarethe
Born Steinberger e Everardo Rocha, que contribuíram com noções acerca do imaginário, do
mito, da mídia e da sociologia da com unicação, esta pesquisa responde ao questionamento
propostonocomeçodestetrabalho.Omitoguevaristamantémsefortepelaconvergên ciade
aomenosquatrovariáveisqueatuam
juntas,masnãonecessariamenteaomesmotemponem
obedecemaumaordemprédeterminada.
Trazidasàluznoiníciodestapesquisaparadelimitaro raiodeestudoeestabelecerum
recortepossível deseranalisado,asvariáveis quemantêmvivo omitode Chesão:avariável
imagética,avariável
ideológica,avariávelde consumoeavariávelmidiática.Emboranãohaja
umaordemnaatuaçãodasmesmas,amídiaacabaporpotencializarasoutrastrêssempreque
produz reportagens, documentários, filmes, textos e imagens para lembrar o líder
revolucionário.
Aindaqueparamuitoso pensamento deesquerdatenha
seesgotado,CheGuevara
até hoje serve de exemplo para movimentos sociais, estudantis e partidos políticos. No
entanto,tambémcarregaemsuaimagem/objetodeconsumoaidéiaderebeldia,juventudee
enfrentamento ao poder estabelecido. Para justificar suas causas e legitimar discursos, esses
107
grupos ainda se utilizam dos ideais guevaristas, ainda que sua ideologia não ostente mais o
encantamentoverificadonasdécadasde60e70.
No imaginário social, Che ainda está presente como um totem ideológico. Ainda que
ele não tenha obtido sucesso na tarefa de transformar o mundo, especialmente no que
diz
respeito ao modelo socioeconômico, Che chegou a ocupar cargos na burocracia cubana. Foi
embaixador, presidente do Banco Nacional de Cuba e ministro da Indústria. Ele chegou ao
poder, mesmo que em um pequeno país caribenho. No entanto, a conquista de Cuba não
significouparaCheomesmoqueparaFidel
Castro.AlutadeCastroseencerrouali,naretirada
deBatistadopoder.Chequeriamais.
A seu modo, com violência e luta armada, com inteligência e ousadia, com seu estilo
aventureiro,elefoiumaforçatransversal,anárquica.Ofatode serministrooupresidentede
algumórgão governamental
cubano não o seduziu. Che queria o poder da mudança. Agiu na
marginalidade.Eleeraapotência,parautilizarnovamenteumconceitodeMichelMaffesoli.
Apotêncianão derruba o muro, masodanifica,ofragiliza. Che perturbou o murodo
capitalismo,perturbou o poder.Apotência, dizMaffesoli,
épotência até chegarao poder.
FoioquefezCheaolongodesuatrajetória:provocouo poder,masnuncaoalcançoudefato.
Porisso,elepermanececomo potência.E,comotal,continuaaserseguidoporgrupossociais
quebuscamnomitooseutotemideológico.Osideais
marxistas pregadosporChepodemter
perdidosuaforça,masnãoestãodetodoeliminados.
108
Aprópria ediçãodarevistaCarosAmigos paralembrar os40anosdamortedeChe
umapu blicaçãorespeitadanoBrasilequetem11anosdeexistênciareforçaexplicitamente
osprincípios e osideaisdo revolucionárioargentino.Mais que isso.Naediçãode outubrode
2007a
revistatratouespecialmente de Che pela quintavez. Sea ideologia de Guevaraainda
resiste40anosdepoisdesuamorte,suaimageméumfenômeno.
 Anos antes de morrer, em 22 de maio de 2002, o cubano Alberto Korda, autor da
famosa foto de Che Guevara apontada pelo
Maryland Institute, de Washington, como a
fotografia mais reproduzida do mundo admitia que aquela imagem, com a qual sempre
garantiu nunca ter recebido nenhum centavo, não lhe pertencia mais. De fato, o mundo se
apropriou daquele retrato. Seja para mostrálo como símbolo do socialismo e das lutas
de
classeoucomoíconedoguerrilheiros anguinárioeassassinoimplacável.
O destino da imagem captada por Korda – reproduzida sem parar há quatro
décadas e utilizada em suportes diversos – encontra repouso nas palavras de Roland
Barthes em suas teorias sobre fotografia. Para o pensador, a fotografia reproduz ao
infinito o que só ocorre uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá
repetir-se existencialmente”
177
. Barthes lembra que o fotografado é uma espécie de
“simulacro, de eidolon emitido pelo objeto”. Segundo o autor, a fotografia tem uma
relação com o espetáculo. Para Barthes, a fotografia também carrega em si “o retorno do
morto
178
.

177
BARTHES, op. cit., 13
178
Ibidem, 1984, p. 20.
109
A fotografia é dramática para Jean Baudrillard. E as sociedades têm se utilizado
dela ao longo do tempo para legitimar suas existências. Baudrillard lembra que “a
sociedade primitiva tinhas suas máscaras, a sociedade burguesa, seus espelhos, nós
temos nossas imagens”
179
.
Porsuaforça,a imagem deChetemlugargarantido nosmais variadossuportes, que
vãodesdeacamisetaaoisqueiro,dopôsteràjaqueta,dabolsadecouroaoboné,daxícaraà
calça jeans. Neste sentido, não é exageroafirmar que sua imagem provocou uma espécie de
transbordamento
midiático, ou seja, transformou objetos e peças do vestuário em mídias
alternativas que comunicam. O grau dramático da fotografia provoca reações e constrói
sentidos.Constróioimaginário.
Lembrando Silva, o imaginário é uma língua
180
. Nós nos comunicamos por meio
de nossos imaginários. Nas palavras do autor, “o imaginário é uma narrativa mítica da
era da imagem
181
. A imagem de Che é a sua própria língua, que, mesmo silenciosa, se
comunica de forma ininterrupta, ocupa mídias tradicionais e inventa formas midiáticas
novas, contagiando gerações.
Gerações essas que consomem o mito guevarista sem parar. Um dos
protagonistas mais influentes dos anos 60, Guevara virou símbolo daqueles jovens que
pautaram aquela década pela negação às tradições e à situação vigente. Desde lá, Che
tem sofrido releituras distintas sem, no entanto, deixar de ser consumido.

179
BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 30.
180
SILVA, Juremir M. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 7.
181
Ibidem, 2003, p. 7.
110
Nos últimos anos, especialmente com a consolidação dos processos de
globalização, o mito e a imagem de Che foram tragados pelo liquidificador desta nova
ordem mundial, um cenário marcado pela aceleração das rotinas sociais sob o domínio
especialmente das tecnologias de comunicação, de informação e pelo consumo.
Néstor García Canclini diz que ainda não existe uma teoria sociocultural do
consumo. No entanto, o autor define consumo como o conjunto de processos
socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Mais que isso:
o consumo está ligado ao modo de os indivíduos se comunicarem com os outros.
Os astros dos esportes, os apresentadores programas de TV e os astros de cinema
são, de um modo geral, exemplos de fios condutores de processos socioculturais.
Alguns mais, outros menos. Mas em sua grande maioria, as estrelas, especialmente as
cinematográficas, têm o reconhecimento social do herói. Este apelo popular reforça sua
imagem mitificadora que o diferencia das pessoas comuns, dos mortais. A relação entre
o astro de cinema James Dean e o mito de Che Guevara se estabelece porque ambos,
cada um a seu modo, representam o arquétipo do herói jovem e rebelde que desafia o
mundo. Se o primeiro se encaixou perfeitamente no arquétipo juvenil, Che o encontrou
no herói revolucionário.
Che foi uma estrela da esquerda e do socialismo. Mortos, Dean e Guevara
seguem seus caminhos mitológicos como todas as estrelas e todos os mitos e heróis, ou
seja, se transformaram em mercadorias. Edgar Morin nos ajuda a compreender o
111
fenômeno: “A estrela é uma mercadoria total: não há um centímetro de seu corpo, uma
fibra de sua alma ou uma recordação de sua vida que não possa ser lançada no
mercado”
182
.
Os produtos, sejam eles quais forem, estão sempre à espera de uma estrela para
associarsuasmarcas.Chiclete, biquíni, detergente,camiseta,cigarros,bebidas etc.Depoisde
interligadasamarcadoprodutoeaimagemdaestrela,domito–,amídia,emtodasassuas
formas,segundoMorin,se
encarregadedifundilasdeformamaciçanasociedade.“Semfalar
queaestrelamercadorianãosegastanemseestraganoatodoconsumo.Amultiplicaçãoda
suaimagem,aoinvésdealterála,atornaaindamais desejável
183
.
Ao adquirir um produto com a imagem de Che Guevara, é possível que jovens
de hoje não queiram expressar o desejo de promover uma luta armada nem planejar
alguma revolução baseada em ações de guerrilha. Mas a imagem do mito pode lhes
conferir o estatuto da aparência. Ou seja, se alguém veste uma camiseta com o rosto de
Che é porque quer dizer aos outros que é contestador, que tem ideais solidários e
socialistas, é contrário à força imperialista de países desenvolvidos. Ou que também é
contra a precária distribuição de alimentos no mundo e favorável a qualquer atitude que
proteja a natureza e o meio ambiente. Se o mito pode sofrer releituras, por que os ideais
de tal mito permaneceriam intactos?

182
MORIN, op.cit., 1989, p. 76.
183
Ibidem, 1989, 76.
112
Se a ideologia, a imagem e o consumo enredam o mito de Che, deixando-o
permanentemente presente no imaginário social, a mídia arremata essas três variáveis
para fechar, enfim, as quatro bases que mantêm a força do mito guevarista. Nada
potencializa mais o mito de Che do que a mídia propriamente dita. Independentemente
do meio – jornal, revista, televisão, rádio, internet, cinema –, é a mídia que agrega os
ingredientes fundamentais para a manutenção mítica da imagem de Che.
De tempos em tempos, a mídia fala sobre Che, especialmente em datas
específicas. Em 2007, o mundo lembrou os 40 anos de sua morte. Além de citar jornais
da época, esta dissertação também utilizou duas revistas brasileiras, Veja e Caros
Amigos, para identificar em suas páginas a ocorrência de uma ou mais variáveis nas
respectivas abordagens.
Em nove páginas, a reportagem da Revista Veja abordou, de fato, as outras três
variáveis: a ideologia, a imagem e o consumo do mito. Fica claro que as duas
publicações abordam as variáveis defendidas nesta dissertação como alicerces de
sustentação do mito guevarista. Em suas 32 páginas, Caros Amigos se dedicou mais a
explorar a ideologia e a imagem de Che. Ainda que esta última não seja explícita quanto
ao consumo, a revista já ter dedicado cinco edições especiais para tratar exclusivamente
de Che Guevara é um forte indício que o mito também é alvo do interesse dos leitores e,
por conseqüência, um produto de boa aceitação no mercado consumidor.
113
É fundamental afirmar que não está em jogo, aqui, o tom dos discursos de Veja
ou Caros Amigos. Para este estudo, importa pouco se as publicações tendem ao elogio
ou à crítica. O que é relevante neste momento é identificar se tais variáveis se
entrelaçam, se elas se comunicam a ponto de fortalecer o mito de Che.
É tão nítida e forte a presença do mito de Che Guevara por parte da mídia, que
enquantoesteestudoestavasendoterminado,ocinemaprovidenciavaumanovaprodução
para lembrar Che Guevara. Em outubro de 2008, o guerrilheiro voltou à pauta. Desta vez, o
motivonãoeramais
os40anosdesuamorte.AlentemidiáticasevoltanovamenteparaChe
agoraporque,seestivessevivo,ocomandanteestariacompletando80anosdeidade.Apartir
de “Che”, um produto cinematográfico demais de quatro horas de duração, a mídia de uma
maneirageralpromoveuuma nova
ondadenotíciassobre o mito, reacendendooimaginário
social,potencializadopelofilmedodiretorStevenSoderbergh.
Ao elaborar o projeto desta pesquisa, ainda no final de 2006, muitos sugeriram a
mudançadotemasoboargumentodequeCheGuevaratemsidodebatido exaustivamenteao
longodosúltimos40
anos.Quetudooquepoderiaserditoacercadorevolucionárioargentino
teria sido dito. Para usar uma expressão popular, Che Guevara é um assunto “batido”. No
entanto,arelevânciadesteestudoestájustamentenaabordagemdeumtemarecorrente.Se
Che Guevara é um tratado demasiadamente é porque o
mito mantém sua força. É porque,
independentemente de suas versões, o mito continua vivo. Mutante, provavelmente. Mas
vivo.

114
Constatase, portanto, que o mito de Che Guevara parmanece forte e presente no
imaginário social pela ação das variáveis ideológica, imagética, de consumo e midiática.
Atuandojuntas,deforma simultânea, mas não necessariamente nesta ordem,asvariáveisse
retroalimentame,mesmodeformainvoluntária,fortalecemomito.Éinteressantenotar
ainda
queaoreforçaremomito,deumamaneiraampla,taisvariáveistambémofortificamemsuas
especificidades. Ou seja, cada vez que as variáveis fortalecem o mito, as variáveis, elas
próprias, também ganham fôlego: a ideologia gueravista se renova, a imagem ganha novos
suportes,oconsumoseampliae
amídi acriaerecrianovashistóriasapartirdepon tosde
vistaexploradosoununcaantesabordados.

115
6.REFERÊNCIAS
BAUDRILLARD,Jean.Atransparênciadomal:Ensaiosobrefenômenosextremos.SãoPaulo:
Papirus,1990.
___________________.Aartedadesaparição.RiodeJaneiro:UFRJ,1997.
BALDISSERA, Rudimar. Imagemconceito: Anterior à comunicação, um lugar de significação.
PortoAlegre:Tesededoutorado,PUCRS,2004.
BARTHES,Roland.Mitologias.SãoPaulo:Difel,1980.

________________.Acâmaraclara.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1984.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor,1999.
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: Conflitos multiculturais da
globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
_______________________.Aglobalizaçãoimaginada.SãoPaulo:Iluminuras,2003.
_______________________. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: UFRJ,
2005.
CAROSAMIGOS.Número35,outubrode2007.
116
CASTAÑEDA, Jorge G. Che Guevara: A vida em vermelho. São Paulo: Companhia das Letr as,
2006.
CASTELLS, Manuel. La era de la información: Economía, sociedad y cultura. Madri: Alianza,
1997.v.1.
CORREIODOPOVO,outubrode2007.
DESLANDES, Suely F.; NETO, Otávio C.; GOMES, Romeu; MINAYO, M. Cecília de Souza (org).
PesquisaSocial:Teoria,métodoecriatividade.Petrópolis:Vozes,1994.
DOBRANSKY,Kerry.CheGuevaraandtheriseofthepopmartyr.DoctorsThesis,
NorthwesternUniversity.
DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciênciase da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro:Difel,2004.
________________. O retorno do mito: Introdução à
mitologia. Mitos e Sociedades. In
RevistaFamecos:mídia,culturaetecnologia.PortoAlegre:Edipucrs,23,2004.722.
FEATHERSTONE,Mike.Odesmanchedacultura:Globalização,pósmodernismoeidentidade.
SãoPaulo:StudioNobel:SESC,1997.
FILHO,C.Marcondes.Odiscursosufocado.SãoPaulo:Loyola,1982.
GIDDENS, Antony.
Mundo em descontrole: O que aglobalização está fazendo de nós. 3.ed.
SãoPaulo:Record,2003.
GOMES, Saulo. Quem matou Che Guevara: o seu delator estava no Brasil. São Paulo:
Elevação,2007.
117
HOHLFELDT,Antonio,MARTINO,LuizC.eFRANÇA,VeraVeiga(org).TeoriasdaComunicação:
Conceitos,escolasetendências.Petrópolis:Vozes,2001.
JORNAL DO BRASIL, dezembro de 1995.
LANDOWSKI,Eric.Semiótica:presençasdooutro.Perspectiva:SãoPaulo,2002.
LEGROS,Patrick;MONNEYRON,Frédérick;RENARD,JeanBruno;TACUSSEL,Patrick.Sociologia
doImaginário.PortoAlegre,Sulina,2007.

LIMA, Ivan. A fotografia é a sua linguagem. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
LÖWY, Michael. O pensamento de Che Guevara. 5. Ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2003.
MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum: Compêndio de sociologia
compreensiva. São Paulo: Brasiliense, 1985.
_________________. O imaginário é uma realidade. In Revista Famecos, mídia,
cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, n. 15, 2001.
_________________. Mediações simbólicas: A imagem como vínculo social. In
Revista Famecos, mídia, cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, n. 8,1998.
_________________. A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da
comunicação). In Revista Famecos, mídia, cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs,
n. 20, 2003.
________________. Perspectivas tribais ou a mudança do paradigma social. In Revista
Famecos:mídia,culturaetecnologia.PortoAlegre:Edipucrs,23,2004.2329
_________________. A transfiguração do político: A tribalização do mundo. Porto
Alegre: Sulina, 2005.
MORIN, Edgar. A comunicação pelo meio (teoria complexa da comunicação). In
Revista Famecos, mídia, cultura e tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, n. 20, 2003.
_____________. As estrelas.
MORIN, Edgar, BOCCHI, Gianluca, CERUTI, Mauro. Os problemas do fim de século. 3. ed.
Lisboa:EditorialNotícias,1991.
118
MORAES,Dênis.(org.)Sociedademidiatizada.RiodeJaneiro:Mauad,2006.
___________________. Imaginário social e hegemonia cultural. In Gramsci e o Brasil, 2002,
http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=297.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000.
PENA, Felipe. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006.
PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: Introdução à análise de discursos. –
2 ed. – São Paulo: Hacker Editores, 2002.
ROCHA,Everardo.Oqueémito.SãoPaulo:Brasiliense,1999.
RUIZ, Castor Bartolomé. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
SADER, Emir. Cartas a Che Guevara: O mundo, trinta anos depois. São Paulo: Paz e Terra,
2003.
SARTRE,JeanPaul.Aimaginação.São Paulo:Difel,1985.
SILVA,JuremirMachado.Astecnologiasdoimaginário.PortoAlegre:Sulina,2003.
SINCLAIR,John.Televisión:Comuniciónglobalyregionalización.Barcelona:Gedisa,2000.
STUMPF, Ida Regina; CAPPARELLI, Sérgio (Org). Teses e Dissertações em Comunicação no
Brasil(19921996).PortoAlegre:PPGCOM/UFRGS,1998.
_______________________________________________. Teses e Dissertações em
ComunicaçãonoBrasil(19971999).PortoAlegre:PPGCOM/UFRGS,2001.
TACUSSEL, Patrick. A sociologia interpretativa. In Revista Famecos, mídia, cultura e
tecnologia. Porto Alegre: Edipucrs, nº 18, 2002.
VEJA.Edição2.288,3deoutubrode2007.
119
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte:
EditoraUFMG,2004.
ZEROHORA,ano44,outubrode2007.
ANEXOS
120
121
ANEXO1:
Ernesto,antesdesetornarCheGuevara
http://www.sancristobal.cult.cu/sitios/Che/Imagenes/grandes/che08.JPG
122
123
ANEXO2
FotógrafocubanoAlbertoKorda,autordafamosafotodeChe
http://www.telegraph.co.uk/arts/graphics/slideshows/che/che10.jpg
124
ANEXO3
AimagemoriginaldeAlbertoKorda,obtidaem5demarçode1960
http://www.patriagrande.net/cuba/alberto.korda/fotos.htm
125
126
ANEXO4
FidelCastroeCheGuevara
CentrodeEstudosCheGuevara,Havana,Cuba,1960
127
ANEXO5
SoldadosbolivianosfingemcercarChemortoemantidoemumapequenalavanderiaemLa
Higuera,Bolívia.
Foto:Autordesconhecido,outubrode1967.
http://www.20minutos.es/data/img/2007/10/25/697918.jpg
128

129
ANEXO6
ImagemoficialdoExércitodaBolíviadepoisda capturaemortedeChe.Outubrode1967
130
ANEXO7
UsodaimagemdeCheGuevaratransbordouamídiatradicionaleocupalugar,entre outros
suportes,emcamisetas.
131
132
ANEXO8
Calendáriostambémservemparaoconsumodomito.Sãovendidos,especialmente,nos
EstadosUnidosouporempresasnorteamericanaspelainternet.
http://www.starstore.com/acatalog/Che_Guevara07bpy.jpg
133
ANEXO9
GravatastambémestampamChe
http://www.cuffsandco.co.uk
134
135
ANEXO10
Camisetasemoposiçãoaorevolucionárioargentinotambémsãovendidas
http://mexico.blogsome.com
136
ANEXO11
IlustraçãomisturaCheGuevaraeopopularpersonagemdafamíliaSimpson,desenhoanimado
sobrearotinadeumatípicafamílianorteamericana.
http://www.thenewyorkerstore.com/Cartoobank.com
137
138
ANEXO12
IlustraçãoironizanovamenteCheGuevaraassociandosuaimagemàdeHomer,opatriarcada
famíliaSimpson.
http://i18.ebayimg.com/02/i/000/93/e1/abf1_1.JPG
139
140
ANEXO13
ImagemdeCheemmontagemcommarcasesímbolosdocapitalismo
http://disidente.franticblog.com
141
ANEXO14
W.Horvath:"TheGardenofRevolution:CheGuevara".Oiloncanvas,70x50cm.
142
143
ANEXO15
Chenoaniversáriodafilha,Hildita,em15defevereirode1960
CentrodeEstudosCheGuevara,deHavana,Cuba.
144
ANEXO16
RoupaseacessórioscomafamosaimagemdeChedividemespaçocomastrosdamúsicapop
nacionaleinternacional.
Foto:JuanDomingues,PraçadaAlfândega,PortoAlegre,outubrode2007.
145
146
ANEXO17
AcampamentodoMST.EngenhoAlegria,Escada(PE).
FotodeBetoFigueirôa/JCImagem
147
ANEXO17
EstacionamentodaPUCRS.VeículoutilizaacessórioparacobrirpneucomorostodeChe
Guevara.Foto:JuanDomingues,novembrode2008.
148
149
ANEXO18
OrecortedafotodeAlbertoKordaqueseguefortalecendoaimagemdorevolucionárioeo
mitodeChe.
AlbertoKorda,5demarçode1960.
150
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo