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Haviam criado um território que quase existia por si mesmo, insistia,
mesmo sem estarem juntos. E era o mais difícil de romper. A memória
recolocava cada agenciamento de outra forma, diferente do que
realmente estava acontecendo naqueles últimos meses. Afinal, ele nem
ia mais esperá-la depois dos treinos, nem a apanhava aos sábados à
noite pra saírem depois do trabalho. Já haviam mexido em tudo que
lhes parecia adoecido e sem valor. Mas bastava acabar o treino que
seu olhar continuava voltando-se para terceira fila da arquibancada.
Colocaram-se um na história do outro até aderirem ao cenário. Sem
falar nos contextos que só começaram a existir a partir daquele
encontro. Agora, ela queria limpar todos esses vincos, esses vícios que
havia ficado, para poder aceitar que a arquibancada não é a única
direção naquele estádio.
Naquele sábado, alguém a esperava pra sair. E por falta de opção,
propôs um dos lugares que costumavam ir. Ainda buscava a
familiaridade. Mas precisou de vários copos de vinho pra manter-se
ali. Sentia que ainda não estava solta. Ele se aproximou e ela quis
trocar de cadeira. Queria achar um jeito de ir embora sem magoar o
rapaz. E foi exatamente quando ele pagava a conta que ela viu uma de
suas tatuagens apontando para fora da camiseta na parte posterior
do braço...
“Puxei conversa dizendo que adorava tatuagens. Ele mostrou várias.
Passei as pontas dos dedos. Deve ter começado com isso... Subimos
umas escadas. Eu ria alto, enquanto tirava os sapatos. Ele só por
gentileza. Percebi seu olhar reto. Ele trouxe uma certa medida. Um
outro tom. Ele não tava muito a fim de filme. Isso deu a ele um certo
charme. Mas o que eu poderia oferecer senão um mundo métrico? Já
fazia uns cinco anos que seguia quase sempre os mesmos passos. Acho
que se divertiu, ou será que achou patético? Afinal, pensei, pensei
diversas vezes, tentando me fazer instintiva, desejável, com um ar
inconseqüente. Eu devo ter sido patética mesmo, não há nada de
selvagem em mim há muito tempo. Ai meu deus, to enjoada”.