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da humanidade são narrativas que afirmam o protagonismo da atividade humana para um
mundo de paz, sem guerras, fome e morte, como o faz o mito guarani da Yvy Marã Ei
sugerir a necessidade da dança ritual para a chegada à Terra Sem-Mal e como o faz o mito
da Casa da Pedra, afirmando a ação humana como criadora de mundos.
Em geral, a mitologia cosmo e antropogônica dos povos indígenas do Brasil conta
da humanidade que sai do ethos originário (geralmente um local no qual não há nenhuma
forma de mal
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) para a vida mortal no mundo do (des)conhecido
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. Saída, então, do útero
originário, a humanidade, antes imortal, passa a conviver, no mundo finito, com a fome, a
necessidade do trabalho, a morte, as guerras e a vida nascendo e morrendo constante e
circularmente.
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As narrativas mitológicas dos Desana contam que Yebá Bëló (terra,
tataravó=tataravó da terra), a avó do universo, é uma mulher que, não existindo nada, brota
de si mesma e a si mesma se faz. Depois disso, decide criar o mundo e cria os criadores do
mundo, dentre eles: Ëmëkho Sulãn Panlãmin (universo, palavra cerimonial, bisneto), que
conta com a ajuda dos outros seres criados por Yebá Bëló, os cinco trovões chamados Etãn
Bë Weli Mahsã (quartzo, que são, gente), para a criação da humanidade e de todas as coisas
por meio das casas transformadoras.
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“O mito, em si mesmo, não é uma garantia de ‘bondade’ nem de moral. Sua função consiste em revelar os
modelos e fornecer assim uma significação ao Mundo e à existência humana. Daí seu imenso papel na
constituição do homem.” (Eliade, 1994: 128)
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Pode-se afirmar sem receios quanto à verdade que a grande maioria dos mitos cosmogônicos da
humanidade tratam, sem muitas variações, da humanidade criada ou saída de um ethos originário, num illud
tempus, no qual a vida era eterna; ou, como tudo existiu desde sempre, houve a separação entre a infinitude e
a finitude (entre alguns povos australianos, por exemplo, é este caso) e, a partir de então, a humanidade, na
finitude, passou a buscar a infinitude. Em ambos os casos, a humanidade vive constantemente em busca da
vida primordial, eterna e sem mal. (ver Piazza, 1996). É a partir disso que o teólogo e biblista cristão, Carlos
Mesters, pode perguntar-se acerca do “Paraíso Terrestre”: “Saudade ou esperança?”, e afirmar sem dúvidas:
“Esperança”. (Mesters, 1978)
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É interessante anotar aqui uma contribuição do estudioso e mitólogo americano Joseph Campbell (1904-
1987):
“Existe um importante mito, da Indonésia, que fala dessa era mitológica e sem término. No início, de
acordo com essa história, os ancestrais não se distinguiam, em termos de sexo. Não haviam
nascimentos, não haviam mortes. Então uma imensa dança coletiva foi celebrada e no seu curso um dos
participantes foi pisoteado até a morte, cortado em pedaços, e os pedaços foram enterrados. No
momento daquela morte, os sexos se separaram, para que a morte pudesse ser, a partir de então,
equilibrada pela procriação, procriação pela morte, pois das partes enterradas do corpo desmembrado
nasceram plantas comestíveis. Tinha chegado o tempo de ser, morrer, nascer, e de matar e comer outros
seres vivos, para a preservação da vida. O tempo sem tempo, do início, tinha terminado, por meio de
um crime comunitário, um assassinato ou sacrifício deliberado.” (Campbell, 1990: 44)