112
Amâncio, que ainda não conhecia de perto o que vinha ser “um processo” e estava longe de imaginar as tricas
e os ardis de que costumam lançar mão os litigantes para defender ou acusar um pobre diabo que a justiça lhe atira às
unhas, ficou pasmo, quando na ocasião de assinar os atos e termos, leu a matéria do fato criminoso que lhe argüiam.
O alferes declarou em substância que: “na noite de 16 de julho do ano tal, pela uma hora da madrugada,
estando em Santa Teresa, no sótão que então ocupava (o qual era místico ao sótão de uma outra casa, onde viera a
saber mais tarde, residira Amâncio), ouviu daí partirem gemidos angustiados e uma voz fraca, de mulher, a dizer:
Solte-me! Solte-me! Não me force! E que, tomado de curiosidade, trepara-se a espreitar para a casa do vizinho e,
então, percebera distintamente que um homem violentava uma rapariga; e que depois cessaram as vozes e só se
ouviram suspiros e soluços abafados.”
O tavarneiro depunha que: “naquela mesma noite, estando casualmente de passeio em Santa Teresa, ouvira,
ao passar pela casa onde então residia João Coqueiro com a família uma altercação de duas vozes, na qual se
destacava uma de mulher que chorava, implorando piedade e suplicando, por amor de Deus, que a não desonrassem.”
E tudo isso estava perfeitamente de acordo com que já havia declarado Coqueiro. Dissera este que “nessa
mesma noite se recolhera às três horas da madrugada, pois estivera até então em Botafogo, na companhia de seu
colega Firmino de Azevedo, e que, ao entrar em casa ouvira leves gemidos no quarto da irmã e, chamando por esta da
varanda e perguntando-lhe o que tinha, ela respondera que — não era nada, apenas havia acordado às voltas com um
pesadelo; mas que ele, Coqueiro, apesar dessa explicação, ficou muito sobressaltado e ainda mais, quando, depois de
acordar a esposa, que dormia profundamente, e perguntar-lhe se houvera em casa alguma novidade durante a sua
ausência, lhe ouvira dizer que — até às nove horas da noite podia afiançar que nada acontecera, mas que, daí em
diante, não sabia, visto que, sentindo-se àquela hora muito incomodada, se havia recolhido ao quarto com seu filho
César e, como usava água de flor de laranja para os seus padecimentos nervosos, supunha ter essa noite medido mal a
dose e tomado demais o remédio, em virtude do estranho e profundo sono que se apoderou dela até o momento em
que o marido a chamara. — Por conseguinte, das nove horas da noite as três da madrugada, Amâncio e Amélia
haviam ficado em plena liberdade”.
E mais: “que, no dia seguinte àquela noite fatal, Amélia não quis sair do quarto e que ele, indo ter com a irmã
e perguntando-lhe se sofria de alguma coisa e se precisava de médico, notou-lhe certa perturbação, certo
constrangimento e um grande embaraço na resposta negativa que deu; e que ela, todas as vezes que era interrogada,
fugia com o rosto para o lado contrário e abaixava os olhos, como tolhida de vergonha; e que, examinando-a melhor,
lhe descobrira sinais roxos nos lábios, nas faces, e pequenas escoriações no pescoço, nas mãos e nos braços; e que
então, fulminado por uma suspeita terrível, exigiu energicamente a revelação de tudo que se passara na véspera
durante a sua ausência, e que ela, empalidecendo, abrira a chorar e, só depois de muito resistir, confessou que fora
violentada por Amâncio, mas que este prometera, sob palavras de honra, em breve reparar com o casamento a falta
cometida.”
Mme. Brizard confirmou o que disse o marido a seu respeito.
Amâncio, porém, logo que foi novamente interrogado, negou: 1.º — Que conhecesse as duas testemunhas
deponentes contra ele; 2.º — Que em tempo algum houvesse sucedido o que elas afirmavam; 3.º — Que tivesse
empregado violência contra Amélia; 4.º — Que fizesse promessa de casamento a quem quer que fosse e debaixo de
quaisquer condições. E confirmou: 1.º — Que na noite, não de 16, mas de 20 de julho daquele ano, estabelecera
relações carnais com a queixosa; 2.º — Que nessa noite, permanecendo de pé o conchavo de uma entrevista
combinada entre eles, Amélia, logo que a casa se achou de todo recolhida, apresentara-se-lhe no quarto e aí ficara até
às cinco horas da manhã, sem mostrar durante esse tempo o menor indício de contrariedade, e parecendo, aliás, muito
satisfeita e feliz com o que se dera, como se alcançara a realização do seu melhor desejo; 3.º — Que de tudo isso nada
absolutamente teria sucedido, se Amélia não o perseguisse com os seus repetidos protestos amorosos, com as suas
provocações de todo o instante, chegando um dia a surpreendê-lo à banca do trabalho com uma aluvião de beijos! que
não teria sucedido, se todos os de casa, todos! — o irmão, a cunhada, ela, César, os fâmulos, não concorressem direta
ou indiretamente para aquilo, armando situações, preparando conjunturas arriscadas para ambos, explanando ocasiões
escorregadias, nas quais fora inevitável uma queda!
E Amâncio acrescentou, arrebatado pela correnteza de suas palavras:
— Nada disso teria acontecido, senhor juiz, se me não desafiassem, se me não sobressaltassem os instintos,
atirando-a todo o momento contra mim; se nos não empurrassem para o outro, com insistência, com tenacidade,
deixando-nos a sós horas e horas consecutivas: fazendo-a enfermeira ao lado de minha cama, pespegando-a todos os
dias, todas as noites, diante de meus olhos, ao alcance de minha mãos — enfeitada, perfumada, preparada, como uma
armadilha, como uma tentação viva e constante!
O delegado observou discretamente que Amâncio se excedia nas suas declarações; mas o auditório, na maior
parte formando de estudantes, protestava, atraído por aquela setentrional verbosidade que enchia toda a sala.
Rebentavam já daqui e ali, algumas exclamações de aplauso. E a voz do nortista, irônica e crespa no seu
sotaque provinciano, ainda se fez ouvir por alguns instantes, em meio do quente rumor que se alevantava.