CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
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De todas as cidades do planeta, das diversas e íntimas pátrias que um
homem vai procurando e merecendo, Genebra parece-me a mais
propícia para a felicidade. Devo-lhe, a partir de 1914, a revelação do
francês, do latim, do alemão, do expressionismo, de Schopenhauer, da
doutrina de Buda, do taoísmo, de Conrad, de Lafcadio Hearn e da
saudade de Buenos Aires. Também a do amor, a da amizade, a da
humilhação e a da tentação do suicídio. Na memória tudo é grato, até
a desventura. Essas razões são pessoais; direi uma de ordem geral é
enfática. Diferentemente de outras cidades, Genebra não é enfática.
Paris não ignora que é Paris, a decorosa Londres sabe que é Londres,
Genebra quase não sabe que é Genebra. As grandes sombras de
Calvino, de Rousseau, de Amiel e de Ferdinand Hodler estão aqui,
mas ninguém as lembra ao viajante. Genebra, um pouco à semelhança
do Japão, renovou sem perder seus outroras. Perduram as ruas
montanhosas da Vieille Ville, perduram os sinos, as fontes, mas há
também outra grande cidade de livrarias e comércios ocidentais e
orientais. Sei que voltarei sempre a Genebra, talvez depois da morte
do corpo.
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Texto autobiográfico ou autoficção? Literatura de viagem ou prosa-poética?
Atlas é a penúltima obra publicada em vida por Borges, misto de prosa poética e poesia,
em que se volta, ironicamente, à origem oral da literatura e ao mito; refaz às avessas a
tradição ocidental, amparando-se na sombra de Homero e de outros precursores. A
literatura autobiográfica se faz como os textos de viagem, ambos apelam a
reconhecimentos diferentes. O autobiográfico necessita de leitores que o reconheçam
(discursivamente) e o autor de viagem necessita de leitores que reconheçam (não por
havê-lo visto antes) aquilo que descreve. De acordo com Molloy, os dois gêneros
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BORGES. Atlas [1999], p.473. “De todas las ciudades del planeta, de las diversas e íntimas patrias que
un hombre va buscando y mereciendo en el decurso de los viajes, Ginebra parece la más propicia a la
felicidad. Le debo, a partir de 1914, la revelación del francés, del latín, del alemán, del expressionismo,
de Schopenhauer, de la doctrina del Buddha, del Taoísmo, de Conrad, de Lafcadio Hearn y de la nostalgia
de Buenos Aires. También la del amor, la de la amistad, la de la humillación, y la de la tentación del
suicidio. En la memoria todo es grato, hata la desventura. Esas razones son personales; diré una de orden
general. A diferencia de otras ciudades, Ginebra no es enfática. Paris no ignora que es Paris, la decorosa
Londres sabe que es Londres, Ginebra casi no sabe que es Ginebra. Las grandes sombras de Calvino, de
Rousseau, de Amiel Y de Ferdinand Hodler están aqui, pero nadie las recuerda al viajero. Ginebra, um
poco a semejanza del Japón, se há renovado sin perder sus ayeres. Perduran las callejas montañosas de la
Vieille Ville, perduram las campanas y las fuentes, pero también hay outra gran ciudad de librerías y
comercios occidentales y orientales. Sé que volveré siempre a Ginebra, quizá después de la muerte del
cuerpo.” BORGES. Atlas [1984], p. 38.