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CONSUELO BIACCHI ELOY
A CREDIBILIDADE DO TESTEMUNHO
DA CRIANÇA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL NO CONTEXTO JUDICIÁRIO
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS
ASSIS
2007
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CONSUELO BIACCHI ELOY
A CREDIBILIDADE DO TESTEMUNHO DA CRIANÇA VÍTIMA DE ABUSO
SEXUAL NO CONTEXTO JUDICIÁRIO
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis UNESP - Universidade Estadual
Paulista para obtenção do título de Mestre em
Psicologia
Área de conhecimento: Psicologia e Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. José Luiz Guimarães
ASSIS
2007
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“Minha verdade, meu caráter e meu nome estavam nas mãos dos adultos; aprendera a
ver-me com os olhos deles; eu era uma criança, esse monstro que eles fabricam com suas
queixas”.
Jean Paul Sartre
Dedico este trabalho
à memória de meu irmão Juliano,
exemplo de coragem e perseverança.
AGRADECIMENTOS
Há 16 anos, ao ingressar como Psiloga Judiciária do Tribunal de Justiça do
Estado de o Paulo, conheci uma realidade que, até então, estava distante do meu
cotidiano profissional e a infância que encontrei o estava impressa nos livros
acadêmicos. Meu mais profundo agradecimento a cada criança que entrevistei no decorrer
desses anos e que me ensinou a acreditar em sua palavra, que me confiou seu segredo e que
me mostrou que é preciso ter coragem para chegar à verdade.
Contei com a valiosa contribuição da Drª. Raquel Grellet Pereira Bernardi, Juíza de
Direito, que com competência e compromisso profissional, mostrou-me os possíveis
caminhos entre o Direito e a Psicologia com um especial olhar sobre a infância. Agradeço
pelo respeito, sempre. Ao Dr. José Carlos Hernandes Holgado, Juiz de Direito, agradeço a
compreensão e as condições oportunizadas para o desenvolvimento deste trabalho. Sua
disponibilidade e receptividade à melhoria da atuação profissional me trouxeram a
esperança de que as mudanças são possíveis.
Agradeço à Pro. Drª. Elisabeth Piemonte Constantino, pelo apoio e pelos
ensinamentos; à Pro. Drª. Olga Ceciliato Mattioli, por seu incentivo ao meu trabalho e sua
sensibilidade diante da complexa temática da violência e à Profª. Drª. nia Maria França,
que me apresentou um olhar interrogativo sobre as evincias e a verdade.
A imprescindível orientação do Prof. Dr. José Luiz Guimarães que, realmente como
um mestre, guiou-me e apontou os caminhos da investigação científica. Agradeço pela
confiança e reconhecimento.
Aos meus pais, Ricardo e Rose, que me ensinaram a importância do amor e da
proteção da família. Agradeço ao meu marido, Evandro, e as minhas filhas, Amanda e
Bárbara, pelo apoio e incentivo.
RESUMO
A violência sexual contra crianças não é um evento incomum; no entanto a dificuldade
de denúncia, pois além do estabelecimento da relação de dominação que o agressor exerce
sobre a vítima, a maneira como tal fato é recebido pela sociedade e como é encaminhado
pelas instituições judiciárias responsáveis também são determinantes para as omissões. A
violência implícita ou explícita dos acontecimentos está contida nos autos processuais, por
meio das declarações das pessoas envolvidas e exige procedimentos jurídicos urgentes e
eficazes. Inserida no universo dos interrogatórios, muitas vezes, a criança causa confusão
ao desmentir o que havia falado antes, reforçando possíveis preconceitos em relação a si.
Na especificidade da atuação da Psicologia no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
em Comarca do interior foi que surgiu o presente trabalho, mediante a vivência das
dificuldades encontradas no atendimento à criança vítima de abuso sexual e a determinação
judicial para a avaliação da veracidade de seu discurso. Esta pesquisa, utilizando o
referencial da teoria das Representações Sociais, traz a análise das diferentes práticas
discursivas relacionadas ao processo de produção da verdade nos processos judiciais de
abuso sexual infantil. O principal objetivo desta pesquisa foi proporcionar uma revisão dos
paradigmas jurídicos frente à problemática da criança tima de abuso sexual,
caracterizando as relações entre a infância e a instituição judiciária, com principal enfoque
no sistema de comunicação e notificação desse crime e as conseqüentes intervenções
profissionais que buscam a validação, ou não, do relato da criança. Para tanto, foram
pesquisados 51 processos judiciais de crimes de atentado violento ao pudor e estupro contra
crianças, dos quais foram selecionados dois casos exemplares, utilizando-se a metodologia
do estudo de caso por oferecer condições para investigar acontecimentos reais em
integração com o referencial da Teoria das Representações Sociais. Os casos exemplares
apresentam características básicas semelhantes e procedimentos judiciais distintos,
revelando a interferência dos sistemas de notificação e de encaminhamento da oitiva da
criança na preservação ou desconstrução de seu discurso. Este trabalho evidencia a
possibilidade de preservar a criança da revitimização causada pela multiplicidade de
interrogatórios sem deixar de cumprir as normas jurídicas necessárias, evitando, assim, a
nulidade do processo. A fragilidade da palavra da criança está na maneira como é acolhida
pelos adultos, desde a revelação na família até a denúncia aos órgãos oficiais, revelando a
urgência de capacitação aos profissionais que atuam nos crimes de abuso sexual infantil,
para os quais a Psicologia, embora já tenha conquistado um espaço efetivo e relevante,
indubitavelmente, ainda tem muitas contribuições a dar.
Palavras-chaves: criança, justiça, abuso sexual e verdade.
ELOY, B. C.
A credibilidade do testemunho da criança vítima de abuso sexual no
contexto judiciário. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências e Letras de Assis,
Universidade Estadual Paulista, 2007. 167p
ABSTRACT
The sexual violence against children is not an uncommon event; however there is the
accusation difficulty, because besides the establishment of the dominance relationship that
the aggressor exercises on the victim, the way as such a fact is received by the society and
as it is directed by the responsible judiciary institutions are also decisive for the omissions.
The violence implicit or explicit of the events is contained in the procedural solemnities,
through the involved people's declarations and it demands urgent and effective juridical
procedures. Inserted in the interrogatorys universe, many times, the child causes confusion
when denying what had spoken before, reinforcing possible prejudices in relation of itself.
In the specificity of the Psychology’s performance in the Tribunal of Justice of the State of
São Paulo, in a interior’s District, the present work appeared, by the existence of the
difficulties found in the service to the child victim of sexual abuse and the judicial
determination for the evaluation of the truthfulness of its speech. This research, using the
Theory of the Social Representation’s referential, brings the analysis of the different
speech’s practice related to the production’s process of the truth in the infantile sexual
abuse’s lawsuits. The main objective of this research was to provide a revision of the
juridical paradigms compared to the victim of sexual abuse child's problem, characterizing
the relations between the childhood and the judiciary institution, with main focus on the
communication and notification system of this crime and the consequent professional
interventions that search for the validation, or not, of the child's report. For so much, there
were researched 51 lawsuits of crimes of violent attack to the shame and rape against
children, of which two exemplary cases were selected, being used the methodology of the
study case by offering conditions to investigate real events in integration with the Theory of
the Social Representation’s referential. The exemplary cases present similar basic
characteristics and different judicial procedures, revealing the interference of the
notification systems and of direction of the child's hearing for the preservation or
deconstruction of its speech. This work evidences the possibility to preserve the child of
being abused again, caused by the multiplicity of interrogations without leaving of
accomplishing the necessary juridical norms to avoid the procedural nullity. The fragility of
the child's word is in the way as it is received by the adults, from the revelation in the
family until the accusation to the official organs, revealing the urgency of training
professionals that act in the crimes of infantile sexual abuse, for which the Psychology,
although it has already conquered an effective and relevant space, undoubtedly, it still has a
lot of contributions to provide.
Keywords: child, justice, sexual abuse and truth
ELOY, B. C.
The credibility of the child's victim of sexual abuse testimony in the
judiciary context. Master’s Thesis,
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade
Estadual Paulista, 2007. 167p
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Casos selecionados ........................................................................................ 87
Quadro 2 - Banco de dados do caso 1 ............................................................................... 99
Quadro 3 - Banco de dados do caso 2 ............................................................................. 128
Quadro 4 - Fluxograma do Sistema de Notificação ......................................................... 143
SUMÁRIO
1 PSICOLOGIA E DIREITO: UMA RELAÇÃO HISTÓRICA .................................. 14
1.1 A PSICOLOGIA E SUA TRAJETÓRIA CIENTÍFICA .................................... 14
1.2 A INFÂNCIA: UM BREVE HISTÓRICO........................................................ 18
1.3 ABUSO SEXUAL: A INFÂNCIA VIOLADA ................................................. 21
1.3.1 Os interesses sexuais infantis ........................................................................ 25
1.3.2 Sexualidade: um território proibido ............................................................... 31
1.3.3 Indicadores do abuso sexual infantil.............................................................. 34
1.3.4 Processo Abusivo: a relação vítima-agressor ................................................. 38
1.4 A PSICOLOGIA JUDICIÁRIA ........................................................................ 47
1.4.1 A Psicologia Judiciária no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ......... 50
1.4.2 A Atuação e as Atribuições do Psilogo Judiciário ...................................... 53
2 OS (DES)CAMINHOS NA PRODUÇÃO DA VERDADE ...................................... 62
2.1 REVITIMIZANDO A CRIANÇA: A PALAVRA DESVALORIZADA ........... 62
2.2 A FRAGILIDADE DO TESTEMUNHO DA CRIAA ................................. 66
2.2.1 A Revelação: o enfrentamento da família ...................................................... 70
2.2.2 A Denúncia: o enfrentamento dos procedimentos judiciais ............................ 72
2.3 CAMINHOS DA INTERVENÇÃO: O DESCONFORTO DA DÚVIDA ......... 74
2.3.1 A Tomada de Declarações da Criança: as diferentes fases processuais .......... 76
2.3.2 A Produção da Verdade: a sentença final ...................................................... 83
2.4 PROCESSOS JUDICIAIS CONSULTADOS ................................................... 85
3 METODOLOGIA .................................................................................................... 88
3.1 ESTUDO DE CASO: O DESAFIO DA PESQUISA ......................................... 88
3.2 FONTES DE EVIDÊNCIAS ............................................................................ 92
4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS CASOS................................................................. 95
4.1 ANÁLISE DOCUMENTAL: CASOS EXEMPLARES .................................... 95
4.2 CASO 1: AS CONSEQUÊNCIAS DA REVITIMIZAÇÃO .............................. 98
4.2.1 1ª Fase - Delegacia de Pocia ....................................................................... 99
4.2.2 2ª Fase - Poder Judicrio ............................................................................ 107
4.2.3 Julgamento em Segunda Instância - Egrégio Tribunal de Justiça ................. 122
4.3 CASO 2: A LIBERDADE DA PALAVRA ..................................................... 127
4.3.1 1ª Fase - Poder Judicrio: Pedido de Provincias ...................................... 129
4.3.2 2ª Fase – Poder Judiciário: Processo-Crime................................................. 135
4.4 ANÁLISE CRUZADA ................................................................................... 141
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 145
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 154
Apresentação 9
APRESENTAÇÃO
A inserção da Psicologia no Poder Judiciário propiciou uma nova relação entre a
justiça e a infância, uma vez que sua atuação, desde a implantação do Estatuto da Criança e
do Adolescente, está direcionada aos assuntos afetos à Justa da Infância e Juventude. A
Psicologia, como mediadora entre a criança e o contexto judiciário, participa da trajetória
histórica da infância brasileira, exigindo do profissional um compromisso ético e uma boa
qualidade de escuta. Na especificidade do contexto judiciário, foi que surgiu o presente
trabalho, no qual as demandas diárias são bastantes complexas e exigem respostas sobre a
criança e sua subjetividade.
O enfoque principal desta pesquisa está direcionado para a trajetória percorrida
entre a suspeita e a validação do abuso sexual infantil, partindo do discurso da criança e do
discurso daqueles que a interrogam. Portanto, a alise foi realizada desde a revelação até
a sentença judicial, evidenciando as diferentes possibilidades de intervenção profissional a
que a criança é submetida. Os questionamentos dos adultos acerca da credibilidade da
palavra da tima se iniciam com a suspeita do abuso sexual, influenciam e limitam a
construção pessoal da narrativa da criança, uma vez que esta aprende a interpretar a
realidade a partir dos referenciais oferecidos pelos adultos que a rodeiam.
As particularidades que permeiam os acontecimentos nos casos de abuso sexual
infantil intensificam as dificuldades de expressão e de persistência da criança-vítima em
manter o discurso inicial acusatório. A sexualidade é um tema interdito para a infância e,
quando necessita das intervenções policiais e judiciárias, nem sempre a criança encontra
acolhimento adequado e eficaz que lhe ofereça segurança para sustentar e ratificar sua
narrativa anterior.
Os discursos sociais sobre o abuso sexual infantil ainda estão sendo construídos,
uma vez que, apenas três décadas, o tema tem sido mais freqüentemente debatido nas
universidades, nas organizações da sociedade civil, pelos órgãos públicos, pelos
Apresentação 10
profissionais da educação, da saúde e da justiça. A partir da criminalização do abuso sexual
infantil é que os significados produzidos socialmente se transformaram por meio da
atividade e do pensamento dos indivíduos e, assim, se individualizaram gerando valores,
conceitos e juízos que, impreterivelmente, irão interferir na atuação profissional destes.
É incontestável que, ao atingir o âmbito da justiça, as representações sociais
construídas pelos operadores do Direito sobre a infância, a sexualidade e a violência serão
também incorporadas a suas atuações profissionais. Na depenncia de tais representações,
esa atuação dos profissionais que acolhem e encaminham a notificação do crime sexual
contra a criança, buscando a verdade dos fatos e validando, ou não, o testemunho da
tima.
A utilização do conceito de representação social neste trabalho é referente à
compreensão da relação do profissional com a sociedade, a maneira como compreende,
apreende e consti sua realidade social e a transporta para sua atividade profissional. A
ciência e o senso comum são construções sociais inseridas em um processo histórico, o que
justifica que, algumas vezes, a atuação profissional pode basear-se na compreensão
espontânea dos pressupostos. Por este motivo, as áreas de conhecimento necessitam se
aliar para a compreensão de fenômenos complexos como é o caso do abuso sexual infantil
no contexto judiciário, em que a Psicologia e o Direito atuam na busca da verdade.
Os discursos contidos nos autos processuais revelam-se importantes fontes de
análise das formas de atuação profissional e de expressão das representações do abuso
sexual infantil, principalmente dos profissionais que se relacionam diretamente com a
criança na fase probatória do processo judicial.
O objetivo desta pesquisa foi proporcionar uma revisão dos paradigmas jurídicos
frente à probletica da criança vítima de abuso sexual, caracterizando as relações entre a
infância e a instituição judiciária, onde tamm está incluída a instituição policial, com
principal enfoque no sistema de comunicação e notificação deste crime e as conseqüentes
intervenções profissionais que buscam a validação, ou não, do relato da criança. Para tanto
foi utilizada a metodologia baseada no Estudo de Casos Múltiplos, sendo uma estratégia de
pesquisa qualitativa capaz de conduzir a análise dos acontecimentos dentro do contexto
real e atual em que ocorrem.
Os processos judiciais foram utilizados, nesta pesquisa, como fonte de evincia
para a análise documental e descrevem os casos, permitindo o desenvolvimento de
proposições teóricas, bem como a coleta e a análise dos dados. A observação participante
Apresentação 11
foi outra fonte de evidência utilizada, que, como profissional da instituição judiciária,
houve a participação nos eventos pesquisados, oportunizando uma visão diferenciada de
percepção da realidade.
Importante mencionar que a utilização de diferentes referenciais teóricos conduziu
a descrição e análise do presente trabalho, pois autores como, por exemplo, Michel
Foucault, Serge Moscovici, Sigmund Freud, oferecem teorias compatíveis com a exposição
dos temas relacionados ao abuso sexual infantil, com especial destaque para as práticas
discursivas e as representações da infância e da sexualidade incorporadas às formas de
atuação profissional tanto da Psicologia quanto do Direito.
O ecletismo trico se fez necessário, pois além das dificuldades de referenciais
bibliográficos que relacionassem o abuso sexual infantil à realidade não somente da
infância brasileira, como também do contexto judiciário de nosso ps, a temática exige
estudos multidisciplinares.
No Capítulo 1, serão abordados os temas que orientaram teoricamente a pesquisa,
trazendo a revisão bibliográfica desde a historicidade do desenvolvimento da Psicologia
como ciência aas diferentes relações que estabeleceu com outras áreas da ciência, com
principal enfoque no Direito. A importância da sexualidade não foi desprezada e será
abordada neste capítulo, que, além de ocupar um lugar de destaque nos estudos da
Psicologia, povoa o imaginário social interferindo nos conceitos e valores estabelecidos
pela sociedade. A discussão do abuso sexual infantil e suas modalidades também serão
tratadas, dando destaque para os indicadores psicológicos e as sugestões de abordagem
profissional.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 2º, parágrafo único, considera
“criança, para efeitos desta lei, a pessoa de até doze anos de idade incompletos, e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. Baseado no princípio da Doutrina
da Proteção Integral da Organização das Nações Unidas (ONU), tal Estatuto oportuniza a
criança um tratamento jurídico diferenciado e protetivo, garantindo-lhe direitos contra a
exposição e o constrangimento. Sob este prisma, a Psicologia e o Direito se aliam para a
produção de novos procedimentos judiciais; no entanto, na esfera criminal, ainda não
uma regularidade nos sistemas de notificação relativos aos crimes sexuais contra a criança
e que a preservem do constrangimento e da revitimizão.
Apresentação 12
Os percalços enfrentados pela vítima e pelos profissionais em uma instituição como
o Poder Judiciário, que estabelece limites, regras, punições e decide destinos, como
também materializa as relações de poder que estão ocultas na sociedade, serão encontrados
no Capítulo 2 deste trabalho. A descrição da atuação dos profissionais que compõem esta
instituição, incluindo aqueles pertencentes a outros órgãos, como Ministério blico e
Polícia Civil, demonstra a produção de práticas discursivas baseadas nas representações e
sentidos construídos nas relações sociais e pessoais.
A criança tima de abuso sexual, além de vivenciar uma relação de poder com o
adulto agressor, seja na família ou em outra instituição, depara-se com uma nova forma de
poder, o da instituição judiciária, o que dificulta ao profissional o diagnóstico da
problemática que esta vivencia, uma vez que é ela quem detém as informações, mas pode
recorrer à mentira por sentir-se temerosa em ser punida, desacreditada e desprotegida.
O Poder Judiciário baseia sua crença no material, no incontestável; assim, o medo
de falar da criança e as dificuldades dos adultos em ouvi-la, interferem negativamente nas
formas jurídicas de produção da verdade, que, diante da suspeita da veracidade do
testemunho da criança, a tendência é classificar suas declarações como parte do imaginário
infantil. Com isto, muitas vezes, pode ocorrer a revitimização da criança, que além de
abalada emocionalmente por ser desacreditada, vê-se obrigada a conviver com o agressor.
É urgente que se produzam conhecimentos que possam orientar as práticas
relacionadas ao atendimento às crianças sexualmente vitimizadas e que tragam uma
compreensão mais ampla do fenômeno em nossa sociedade, uma vez que tais atentados são
relativamente freqüentes e a evolução ulterior das timas, no sentido da elaboração da
situação vivenciada, depende tamm do ambiente em que se desenrolou a ação judicial.
A pesquisa no âmbito forense exigiu uma metodologia abrangente e flexível, o que
foi oportunizado pelo estudo de casos múltiplos e será explicitado no Capítulo 3, com a
definição de sua aplicabilidade. A diversidade de intervenções contidas no sistema de
comunicação do abuso sexual infantil poderá ser observada mediante a descrição e análise
de dois estudos de casos exemplares, que traduzem toda a complexidade do acolhimento da
denúncia.
Os processos judiciais pesquisados evidenciaram o valor do testemunho da criança,
o qual é habitualmente questionado pelo Delegado de Polícia, pelo Juiz de Direito, pelo
Promotor de Justiça e pelo Advogado do réu que, ao solicitarem o Laudo Pericial referente
Apresentação 13
à veracidade das declarações infantis, revelam as dificuldades para reconhecer e enfrentar
o fenômeno da vitimização sexual.
No Capítulo 4, serão discutidos os objetivos desta pesquisa, enfatizando a validade
do testemunho da tima de abuso sexual infantil e a possibilidade de proporcionar uma
revisão dos paradigmas jurídicos frente a esta probletica. A discussão busca
fundamentar os dados levantados na pesquisa, direcionando para a constatação do
testemunho da criança nas práticas judiciárias, a tomada de suas declarações e qual sua
representação nas decisões judiciais.
O Capítulo 5 apresenta as considerações finais, contextualizando a pesquisa aos
acontecimentos atuais no âmbito judiciário, buscando cumprir com as expectativas a
respeito da produção da verdade nos casos judiciais estudados, referenciando ainda a
importância das representações sociais e conseqüentes significações sobre a criança e a
sexualidade na atuação interprofissional.
As narrativas dos profissionais serão transcritas no decorrer de toda a pesquisa,
sendo destacadas em itálico por corresponderem literalmente aos textos encontrados nos
processos judiciais.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 14
1
PSICOLOGIA E DIREITO: UMA
RELAÇÃO HISTÓRICA
1.1 A PSICOLOGIA E SUA TRAJETÓRIA CIENTÍFICA
Ao ser inserida nas práticas judiciárias, a Psicologia teve que adaptar seus todos,
suas técnicas e selecionar as teorias que fossem compatíveis com o novo modo de atuação.
Durante muito tempo, a Psicologia esteve associada ao Direito nos procedimentos que
buscavam a normatização e a categorização dos indivíduos, gerando conceitos entre certo e
errado; normal e patológico como inerentes à natureza do ser humano, formando assim, um
domínio de saber através de tal prática. Como salienta Foucault:
No século XIX também se inventaram, a partir de problemas jurídicos, judiciários,
penais, formas de análise bem curiosas que chamaria de exame (examem) e não
mais de inquérito. Tais formas de análise deram origem à sociologia, à psicologia,
à psicopatologia, à criminologia, à psicanálise (FOUCAULT, 2001,p. 12).
O sujeito visto como o núcleo central de todo o conhecimento gerou interesses por
seu mundo interno e seus componentes privados. As condições históricas permitiram o
surgimento da Psicologia como ciência no final do século XIX; no entanto seu
desenvolvimento foi marcado pela metodologia predominante do positivismo, que aludia
uma concepção objetivista, surgida na modernidade. Por outro lado, a realidade social e
histórica da época também possibilitou os questionamentos relativos a esta visão
objetivista, através de alternativas como o materialismo histórico e dialético, a
fenomenologia e a psicanálise.
Conforme esclarece Bock (2001, p.122) ao fazer a análise histórica do surgimento
da Psicologia, “o método dialético representa uma alternativa metodológica que, ao
apontar a possibilidade de superação da dicotomia sujeito-objeto, aponta para a
necessidade e a possibilidade da transformação da sociedade” e continua,
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 15
No caso da fenomenologia, o caminho é o de identificar aparência e essência, a
partir da noção de consciência intencional, que estaria além das idéias de razão e
sensação, contrapondo à noção de substância do ser a noção de vir-a-ser. Desse
modo, se por um lado se recupera um sujeito que está em relação constante com o
objeto, por outro acabava por se absolutizar o sujeito [...]. No caso da psicanálise,
a solução proposta é peculiar. A psicanálise surge no bojo da mesma noção de
ciência da modernidade que terminou por ser objetivista. [...] A existência do
inconsciente, segundo a psicanálise, impediria o sujeito de se manter exterior ao
objeto. Sujeito e objeto relacionam-se com a presença do inconsciente; o há
como isolar ou abstrair o inconsciente. Aqui também, por outra via, ocorre na
contraposição ao objetivismo, uma absolutização do sujeito (BOCK, 2001, p. 125).
Estas alternativas, descritas acima, tiveram grande importância na história da
Psicologia por suas representatividades na manutenção da dicotomia sujeito-objeto e seus
desdobramentos, como tamm na superação de tal dicotomia, que é o caso do
materialismo histórico e dialético, que não caiu no subjetivismo. Ao contrário, foi utilizado
como método para a Psicologia, propiciando a discussão sobre a relação entre o fisiológico
e o psíquico, como também aliou os femenos psicológicos à constituição social do
sujeito.
A teoria do materialismo histórico s em evincia muitas verdades importantes.
A humanidade o é uma espécie animal: é uma realidade histórica. A realidade
humana é uma anti-phisis: ela não sofre passivamente a presença da natureza, ela
retoma em mãos. Essa retomada de posse não é uma operação interior e subjetiva;
efetua-se objetivamente na práxis (BEAUVOIR, 1980, p.73).
A Psicologia desenvolveu-se juntamente com a história do capitalismo, com sua
individualização e a noção de um mundo interno e privado aos sujeitos, onde as
singularidades de cada um e o sentimento de “Eu” foram incentivados, tornando necessário
o surgimento de uma ciência que estudasse esses fenômenos abstratos. A partir daí, os
sujeitos tornam-se responsáveis por seus sucessos e fracassos, segundo uma visão da
Psicologia que está a serviço da manutenção de uma ideologia e que contribui para ocultar
as condições de vida econômica, cultural e social, na qual o homem está inserido.
Pensar a realidade, como algo exterior ao homem e ao seu mundo psicológico, é um
desafio para a Psicologia como ciência, pois para compreender o homem terá que trazer
para seu âmbito os componentes sociais que constituem o fenômeno psicológico. Tal
perspectiva exige da Psicologia um posicionamento crítico sobre o mundo social e
psíquico, com a definição de uma ética e uma visão política sobre a realidade do contexto
em que o homem vive.
A expansão de técnicas e práticas discursivas de controle no século XIX que
incentivavam o sujeito a conhecer a si mesmo através da confissão, gerou um novo cerio
social, que abrangia diferentes segmentos, como Religo, Medicina, Política e Ciência.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 16
No ocidente, pelo menos, mesmo o auto-exame mais privado está ligado a
poderosos sistemas de controle extremo: ciências e pseudociências, doutrinas
religiosas e morais. A vontade de saber a verdade sobre nós mesmos, própria à
nossa cultura, instiga-nos a falar a verdade; as confissões que se sucedem
confissões que fazemos aos outros e a nós mesmos, e esta colocão em discurso
instauram um conjunto de relações de poder entre aqueles que afirmaram ser
capazes de extrair a verdade destas confissões através da posse de chaves de
interpretação (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.192).
O discurso científico da Psicologia evoluiu no decorrer da hisria revelando que
não se pode descuidar de isolar e analisar os componentes constitutivos do homem e as
interações entre esses componentes. Para que a Psicologia se institua como ciência e como
profissão, deve estar inserida na sociedade, saindo dos consultórios e empresas para
participar da construção de poticas blicas, edificando ões preventivas em diferentes
campos.
A Psicologia como ciência confessional lida com o que está oculto e o que o
pode ser mencionado, elaborando classificações e descrições. que se superar tal
posicionamento, já que, além da Psicologia, surgiu uma grande quantidade de ciências
interpretativas que também utilizam a tecnologia confessional, contribuindo assim, para
uma intervenção corretiva na vida dos indivíduos, constituindo um saber de evidências e
baseado em valores morais.
É importante que ao se falar de Psicologia como ciência se busque diminuir o
distanciamento entre a prática profissional e a produção de conhecimento científico.
Definir a prática profissional não como trabalho, mas como experiência no sentido dado
por Larrosa (2001): “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. O profissional com excesso de
trabalho ou com falta de compromisso pode não perceber a diferença entre estes dois
conceitos e concluir que, aliando teoria e prática, organiza e produz um conhecimento
científico. Para Larrosa a experiência não pode ser confundida com o trabalho, com a
prática profissional e descreve o sujeito moderno como sempre agitado e em movimento,
que, com seu trabalho, pretende conformar o mundo segundo sua vontade, seu saber e seu
poder. Seu conceito de experiência é completo e oferece uma importante reflexão:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um
gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer, parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,
demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a
vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 17
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço (LARROSA,2001,p.4).
Embora a experiência estabeleça uma ordem epistemológica e uma ordem ética
diferente de um saber científico, algumas características essenciais que opõem o seu
saber ao que entendemos como conhecimento; é sob este ponto de vista que devemos
pensar a Psicologia como ciência.
Ainda que a ciência moderna tenha convertido a experiência em experimento, em
que ela deixa de ser o que nos acontece para ser geradora da idéia de uma ciência
experimental, para a Psicologia, a experiência deve ser um saber que somente tem sentido
conforme o modo de conduzir-se de quem se introduz profundamente nos acontecimentos
que formam e transformam a vida dos homens.
Se existe um fenômeno específico da sociedade moderna, é que a ciência fabrica a
ideologia; aliás, trata-se de seu principal subproduto, e como todos os subprodutos
da sociedade industrial, estorva muito mais que as próprias riquezas produzidas. A
ciência deveria respeitar sua função especial, que é fabricar pensamento, e não
explicar a vida e gerir as relações entre as pessoas. Um único sistema é capaz
disso, o cultural (GABEL, 1992, p.21).
Para ser reconhecida como ciência, foi necessário à Psicologia aderir aos princípios
que evidenciavam a razão subjetiva e a naturalização dos fenômenos humanos e sociais,
afastando com isto os elementos sociais e os valores culturais da produção da ciência.
Porém, acompanhando a hisria da sociedade, outras vertentes foram surgindo na
Psicologia que buscava uma ação direcionada, intencionada e livre de valores morais,
compreendendo o desenvolvimento humano dentro de um contexto social e hisrico e
oferecendo, assim, ao profissional uma visão de sujeito como um ser ativo, transformador
do mundo e que intervém na sociedade.
O conhecimento, portanto, o está inscrito na natureza humana; ele é produzido
por realidades de naturezas diversas e esta elucidação é que é necessária à Psicologia como
ciência, que é interpretativa. que se cuidar da tarefa da interpretação, pois está
subentendido que revela uma verdade oculta da psique, da cultura e da sociedade, e com
isso corre o risco de corroborar com as estratégias de poder. Ao contrário, a abordagem e a
reflexão críticas conduzem a uma interpretação do sujeito voltada para a tentativa de
compreender o que é desconhecido do próprio sujeito e com o objetivo de desenvolver uma
teoria das práticas históricas.
Não são fáceis os caminhos a serem trilhados, quando se pensa na Psicologia dentro
dos conceitos citados, já que exige um exercício contínuo de percepção e autocrítica. As
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 18
considerações até aqui traçadas alertam para a necessidade do profissional se posicionar
adequadamente diante da análise e interpretação daquele que será seu referencial de
estudo, o ser humano, e as contribuições que as pesquisas na área da Psicologia poderão
oferecer em seu benefício.
Considerando as relações históricas que a Psicologia estabeleceu com diferentes
campos desde sua inserção na ciência, há que se destacar sua influência no discurso
jurídico-político e sua contribuição ao universo do Direito, principalmente na esfera da
infância. Assim, torna-se fundamental a referência às concepções da infância em uma
perspectiva hisrica.
1.2 A INFÂNCIA: UM BREVE HISTÓRICO
Os discursos contidos nos autos processuais o fontes importantes de análise das
formas de atuação profissional e das representações sociais da infância. Dentro desse
contexto há a possibilidade de entender como as diferentes relações que o indivíduo
estabelece em seu cotidiano influenciam na formação de suas representações e como ele as
utiliza em suas práticas. Ao se evocar a inflncia das representações sociais do abuso
sexual infantil nos discursos e retóricas produzidos pelos profissionais que atuam com a
criança, há que se analisar o campo estruturante de tais representações.
Através da História e da Arte é possível compreender a construção dos conceitos
que envolvem a infância na atualidade, sendo elucidado por Áries (1981): até o século XII
não havia registros de que se pensasse na criança como participante da vida cotidiana.
Estava claro o desinteresse sobre o mundo infantil, que a criança não era retratada nem
na Arte, nem na Literatura, sugerindo, que na vida real, também não possuía um espaço
definido.
Por volta do século XIII, já se encontram algumas representações da infância que
descrevem a criança como um adulto reduzido ou como algo sagrado, como um anjo,
sendo esses traços influenciados pela cultura dos diferentes povos, mas que se firmaram na
história.
Na sociedade medieval, não havia a consciência das particularidades da infância
que distinguisse a criança do adulto, sendo tratada como igual em todas as atividades
sociais. O alto nível de mortalidade levava os pais a não se apegarem aos filhos pequenos,
já que era grande a possibilidade de desaparecerem repentinamente de suas vidas. Porém,
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 19
superada a fase crítica da probabilidade de morte, quando adquiria mais idade, a criança
passava a compartilhar o cotidiano com os adultos.
Gradativamente, a evolução social foi diferenciando o mundo da infância e gerando
um novo sentimento, no qual a criança, por sua ingenuidade e graça, distra os adultos.
Conseqüentemente, surgiu o temor da perda e a intensificação do apego emocional à
criança, agora propiciadora de um prazer familiar. As crianças deixaram de ser assistidas
apenas pelas amas, havendo maior participação da e nos cuidados básicos aos filhos e
certo encantamento dos demais familiares com a meiguice infantil; porém tais sentimentos
ainda não eram totalmente expressos.
No século XVII, a idéia de infância relacionava-se à idéia de dependência,
aproximando-se mais do conceito atual, pois os adultos passaram a dedicar-se à
“paparicação” (ARIES, 1981) de suas crianças. Houve controvérsias sobre estas atitudes,
que a História registra manifestações contrárias em relação a este tratamento aos infantes,
no sentido de não concordar com a valorização da infância mais do que o devido. A partir
disso, novos sentimentos surgiram a respeito da infância, muitos ambivalentes,
principalmente na sociedade medieval onde a promiscuidade era presente.
Nessa época, as crianças ainda participavam de certas brincadeiras sexuais dos
adultos, sendo um costume que permitia o uso de palavras, ações e situações que
expunham a sexualidade adulta. Considerava-se, ainda, que a criança era indiferente à
sexualidade e que não haveria conseqüências em seu desenvolvimento se participasse das
práticas sexuais. Inexistia a representação de inocência infantil, mas entre os moralistas e
conservadores da época passou a se considerar indesejável que crianças se misturassem a
adultos, tanto no sentido de evitar as paparicações que as tornavam mal educadas, como
para preservá-las de atitudes sexualizadas, restringindo a presença da infância nos
acontecimentos da vida adulta e visando, com isto, a fortalecer os costumes e hábitos que
começavam a ser ditados nesse período.
Gera-se, então, um outro sentimento da infância, oferecendo uma nova visão no
contexto da época, no qual havia a necessidade de corrigir a criança, criar métodos de
educação para contê-la e transformá-la futuramente em pessoa racional e cristã. Áries
(1981,p.163) enfatiza que “o primeiro sentimento de infância caracterizado pela
paparicação surgiu no meio familiar, na companhia das crianças pequenas. O segundo,
ao contrário, proveio de uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos homens da
lei[...], preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes.” A opção por uma
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 20
educação punitiva veio a seguir, alterando mais uma vez a relação do mundo adulto com o
infantil, o que ainda, em muito, permeia a educação familiar atual e restringe o
relacionamento entre adultos e crianças a uma relação de poder.
No século XVIII, além da preocupação com a educação, também se estabeleceram
as preocupações com a higiene e a saúde física, dando a dimensão de que a criança passou
a assumir um lugar central dentro da família. A relação do adulto com a criança se
construiu mediante as necessidades do mundo dos adultos, pois projetando nelas o futuro
adulto é que se planejavam suas atividades, o que novamente não se difere em muito da
relação instituída na atualidade.
Assim se exigiram, no decorrer dos culos, estudos específicos para a
compreensão dessa fase do desenvolvimento humano que conquistou uma importância
social. Para o conhecimento do homem adulto, seria necessária a investigação de sua
infância e de suas fases sucessórias, sendo a Psicologia uma das ciências que se dedicou a
tal análise.
As modificações na relação dos adultos com a infância foram evoluindo de maneira
temporal; a criança passou a ser reconhecida como pessoa em desenvolvimento e por isto
percebida como suscetível às influências do meio e carente de proteção. A espontaneidade
infantil passou a ser reprimida pelos métodos educativos, que a moralidade dos
comportamentos se insere na educação mediante a repressão. Essas são as condições em
que a linguagem infantil se desenvolve, contudo, anteriormente a criança estabelece outros
tipos de comunicação com os adultos que exerce importante influência na organização e
assimilação da linguagem, o que lhe abre uma infinidade de relações, com diferentes
interlocutores, inclusive na expressão da afetividade e da sexualidade.
As investigações científicas da infância e suas peculiaridades foram iniciadas pelas
experiências pedagógicas e educativas, como também pelo desempenho intelectual
correspondente a cada fase do desenvolvimento. Portanto, as primeiras contribuições
científicas o do campo médico-pedagógico e tiveram início efetivo no culo XIX com a
preocupação das realizações funcionais da criança dentro do desenvolvimento evolutivo.
No século XX, uma intensificação das pesquisas sobre a infância com principal
enfoque na construção da teoria psicanalítica, a qual traz à luz as manifestações da
sexualidade da infância e causa polêmica no meio científico.
As revoluções culturais contribuíram para as mudanças na concepção da infância,
reconhecendo-a como um período, diferenciado do desenvolvimento humano, que
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 21
necessita de cuidados e proteção. O incesto, ou qualquer outro tipo de violência cometida
contra a criança, passou a ser inaceitável no final do século XVIII, embora ainda não
fosse um tema abertamente debatido ou denunciado no meio social e jurídico (Almeida,
2003).
Somente a partir da década de 60, os maus tratos sicos à infância foram
veiculados pelos profissionais que trabalhavam com crianças, principalmente na área da
saúde, receptora das queixas e da violência materializada nos corpos infantis. Na década de
70, as primeiras denúncias de abuso sexual chegavam através da fala das mulheres adultas,
que explicitavam o sofrimento que vivenciaram com as secias sexuais na infância,
abrindo assim, o espaço para as políticas de gênero e de vitimização.
A palavra das timas adultas traduziu a dor de uma infância violada; no entanto
exigiu a iniciativa das próprias vítimas que, apoiadas nas novas políticas sociais e na
credibilidade que agora a vida adulta lhes propiciava, puderam expor os prejuízos
emocionais dessa violência. Foi possível compreender que as molestações sexuais
ocorridas na infância poderiam ser recordadas e que, embora não seja uma regra, o dano
psíquico causado por esses acontecimentos pode ser intenso e devastador.
As dificuldades em denunciar o abuso sexual infantil, ou mesmo reconhecê-lo,
sejam por familiares ou profissionais, está diretamente relacionado à história da
sexualidade e a construção de seus discursos, que levará a ações e evocará sentidos.
1.3 ABUSO SEXUAL: A INFÂNCIA VIOLADA
A temática desta pesquisa transita entre as áreas da Psicologia e do Direito, sendo
necessário aludir ao abuso sexual infantil na vio de cada uma dessas áreas da ciência,
ainda que de maneira breve e simplificada.
É considerado abuso sexual infantil a situação de relacionamento interpessoal na
qual a sexualidade é compartilhada mediante a estimulação de um adulto em uma criança
mesmo que este utilize ou não a força física para vencer sua resistência. A sedução também
é uma situação abusiva em que não ocorre um embate de resistências à aproximação
sexual; ao contrário, um aparente consentimento para a prática sexual. Todavia, se
configura abuso devido à relação de poder estabelecida entre um adulto e uma criança,
levando esta a aceitar passivamente as abordagens libidinosas.
Nessa situação, é clara a contradição entre o que a vítima realmente desejaria e o
que assume em ato para não sofrer uma perda considerada maior. um conflito
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 22
entre dois veis de desejo. O primeiro, criado sob pressão, converte-se em ato, e o
segundo, que se contrapõe a ele, silencia. (FAIMAN,2004,p.28)
A conceituação de abuso sexual como “todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou
homossexual, entre um ou mais adultos e um menor de 18 anos, tendo por finalidade
estimulá-lo sexualmente e utilizá-lo para obter tal estimulação sexual em si próprio e em
outra pessoa” (AZEVEDO; GUERRA, 1989), também permite abranger o incesto, o qual
se caracteriza pelo abuso sexual e o vínculo familiar, podendo ser incluído todo aquele que
exerça papel de responsabilidade com a criança, como pai adotivo, tutor, guardião,
padrasto etc. ainda, a exploração sexual, que implica a participação de crianças em
atividades de prostituição e pornografia infantil. Qualquer dessas formas de uso de poder é
suficiente para amordaçar a fala da criança e mantê-la em silêncio, até que não suporte a
experiência destruidora da vitimização sexual.
A tima, por sua condição infantil, submete-se ao poder do adulto, percebendo-se
limitada em suas ações e reações e, conseqüentemente, em sua palavra, convivendo com o
medo da punição, da coação e da revelação. A vivência de tal sofrimento é expressa em sua
conduta que, muitas vezes, é incompreendida pelas pessoas de seu convívio, o que acentua
sua sensação de inadequação e da necessidade de manter os acontecimentos adversos na
clandestinidade.
Para reconquistar a liberdade e a autonomia de seus atos, é preciso que a tima
encontre segurança e proteção no meio familiar, reconhecendo que sua palavra é
valorizada e que poderá ser compreendida ao revelar o abuso sexual a que se submeteu e
ainda se submete.
No entanto, o abuso sexual pode ocorrer em uma diversidade de formas, desde um
incidente único até abordagens sexuais continuadas, ou ainda, em um ato exibicionista,
como também um ato sexual completo e violento. A exposição da criança a episódios de
caráter abusivo varia e dificulta uma definição universal para ao abuso sexual infantil, mas,
basicamente, está relacionado à exploração de uma relação de poder que o agressor
estabelece com a vítima para obter uma gratificação sexual.
É consenso entre os estudiosos do tema que as conseqüências do abuso sexual o
prejudiciais para a criança, o que é externalizado pelos sintomas psicológicos apresentados,
sendo os mais freqüentes a depressão, culpa e rebaixamento da auto-estima. Na seqüência
desenvolvimental, as timas demonstram uma tendência a sexualizar todas as suas
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 23
relações, relacionando-as à afetividade e, com isto, vivencia uma confusão de sentimentos
e sensações.
Os discursos sociais trazem implícitos também a idéia contrária da sedução, na qual
a criaa, de algum modo, poderia evitar o abuso sexual ou mesmo provocar o agressor, o
que sutilmente se incorpora ao discurso jurídico. As narrativas contidas nos processos
judiciais, bem como algumas normas jurídicas, solicitam da Psicologia e dos
procedimentos investigatórios a verdade dos fatos, embasando-se no consentimento ou não
da vítima para o ato libidinoso e evidenciando assim, o desconhecimento das estratégias de
coerção do agressor que impedem a criança de proteger-se.
As conseqüências psicológicas de tais atos para a vítima poderão ser sentidas
posteriormente, em outra fase do desenvolvimento da personalidade, já que a vincia
sexual de caráter abusivo se diferencia da descoberta da sexualidade pela própria criança,
não apenas pela ruptura sofrida, mas pelos sentimentos gerados em função da
clandestinidade do ato e dos comportamentos aceitos ou rejeitados pela sociedade.
Para a legislação penal brasileira, o abuso sexual é um crime que pode ocorrer em
duas modalidades: o estupro, caracterizado no art. 213 do digo Penal como a conduta
que se restringe ao ato de constranger mulher, mediante violência ou grave ameaça, à
prática do coito vaginal”, e o atentado violento ao pudor, tipificado no art. 214 do mesmo
código como “penalmente relevante à conduta de constranger algm, mediante violência
ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da
conjunção carnal(COSTA; OLIVEIRA, 2006). Tal divisão é significativa para aplicação
e variação das penas no julgamento dos acusados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente versa no art. 226 que aplicam-se aos
crimes definidos nesta Lei as normas da Parte Geral do Código Penal e, quanto ao
processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal” e no art. 227 queOs crimes
definidos nesta Lei são de ação pública incondicionada”. Portanto, os crimes sexuais contra
a criança são judicialmente tratados da mesma forma que os demais, ainda que haja
referências no Estatuto de Criança e do Adolescente que identificam a criança como sujeito
de direitos específicos nos casos relativos à vitimização, não especificamente sexual, que
estão contidos nos seguintes artigos:
Art. 5 - Nenhuma criança ou adolescente se objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na
forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 24
Art. 17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e
objetos pessoais.
Art.18 – É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-
os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor.
Art. 130 Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual
impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar,
como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
Nas pesquisas e estudos sobre o tema, considera-se como violência ou abuso sexual
infantil a utilização do corpo da criança com a finalidade de satisfazer o desejo sexual do
agressor. Tal definição é bastante abrangente tanto do ponto de vista moral, quanto
jurídico. A época, a cultura e a sociedade também são determinantes para a definição do
abuso sexual infantil, pois, na dependência desses contextos, é possível avaliar a
intensidade das conseqüências no psiquismo das timas. A faixa etária da criança e as
regras de educação familiar recebidas, rígidas ou relaxadas, também são importantes na
manifestação dos sintomas ou sinais físicos e psicológicos e as decorrentes implicações em
sua vida adulta.
O abuso sexual está relacionado à violência, o que nos remete ao entendimento de
que a criança é agredida física, moral e psicologicamente, e à sexualidade, algo
historicamente ocultado e permitido vivenc-la em uma fase de desenvolvimento
socialmente determinada. Pom, nem sempre o abuso sexual implica o uso da força física
do transgressor, podendo ocorrer através da sedução e do pacto da cumplicidade diante de
possíveis sensações prazerosas proporcionadas à criança.
Por esses motivos, e tantos outros, é fundamental a qualidade do primeiro contato
com a vítima e os cuidados a serem tomados no acolhimento da denúncia pelo Conselho
Tutelar, no interrogatório realizado pelas autoridades policiais, na tomada das declarações
pelas autoridades judiciárias, na entrevista psicológica e na redação dos documentos
processuais.
Nossos tribunais, majoritariamente, têm considerado tal crime como hediondo [...],
as dificuldades práticas para a apuração da verdade real de tais ões delitivas (o
que majora a chance de erro do julgador), vez que as mesmas são comumente
marcadas pela clandestinidade e ausência de vestígios, razão pela qual se confere
especial força probante à palavra da vítima, a qual, em oposição à versão do
acusado, pode determinar uma acusação (COSTA-OLIVEIRA, 2006. p.11-12).
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 25
Com base na experiência profissional, observa-se que o temor e o constrangimento
que se sente ao falar com uma criança sobre atividades sexuais, podem prejudicar
consideravelmente a qualidade do interrogario e da coleta de dados durante uma situação
investigativa. Podem ainda, acarretar uma análise imprecisa e incompleta e,
conseqüentemente, um desfecho processual desastroso. Tal realidade é narrada e assim
materializada nas Jurisprudências
1
relacionadas ao crime de atentado violento ao pudor, em
que figura como vítima uma criança. Cabe citar, como exemplo, uma ementa de
jurisprudência em que a defesa do réu requer a absolvição deste pela falta de provas,
alegando que os elementos que formaram a convicção do Magistrado de primeira instância
foram insuficientes, visto que se limitava à palavra da ofendida. No julgamento em
segunda instância, concluiu-se que as declarações da tima não foram minuciosas “talvez
por constrangimento da Autoridade Policial e do Juiz em não descer a minúcias, em
respeito à vítima versão não corroborada – Recurso provido (apelação criminal
146.526-3 contida na ementa da jurisprudência, datada de 03/02/94). Portanto, neste caso
foi acolhida a apelação e o réu absolvido, sendo que tal jurisprudência possivelmente
fundamentará novas decisões judiciais, baseando-se na falta de preparo das autoridades
policiais e judiciárias para a oitiva da vítima-criança.
que se interrogar sobre a trajetória histórica que o homem estabeleceu com a
sua sexualidade, gerando conceitos sociais e juízos morais socialmente preservados,
compondo, assim, as representações sociais. Desta forma, é possível compreender tal
interferência em nossas relações pessoais e profissionais, especialmente na qualidade de
escuta daqueles que interrogam a criança tima de abuso sexual. São evidentes as
dificuldades relacionadas ao tema, principalmente quando crianças estão envolvidas. “O
abuso sexual praticado contra a criaa é uma das formas de maus-tratos que mais se
ocultam: a criança tem medo de falar e, quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-la”.
(GABEL, 1992, p.11).
1.3.1 Os interesses sexuais infantis
A sexualidade infantil foi uma descoberta da psicanálise e, desde então, ela passou
a ser estudada e observada em diferentes práticas, como também passou a justificar
condutas apresentadas na vida adulta. O reconhecimento de tal fato gerou a representação
1
Jurisprudência é o conjunto de acórdãos dos tribunais que se verifica repetida e uniforme para os mesmos casos
e iguais relações jurídicas submetidas a seu veredicto. O acórdão é a resolução ou decisão tomada coletivamente
pelos Tribunais de Justiça. (De Plácido e Silva)
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 26
social da sexualidade infantil facilmente confundida com a sexualidade adulta, com os
desejos e interesses eróticos inerentes à vida adulta. Reconhecer a sexualidade na criança,
muitas vezes, leva à confusão quanto à representação que se faz desta sexualidade, já que a
mesma palavra é empregada ao adulto.
Para sublinhar a diferença entre a sexualidade das crianças e a sexualidade adulta,
Ferenczi associou a linguagem da paixão à sexualidade adulta e a linguagem da
ternura à sexualidade infantil. Apoiou-se nos trabalhos de Freud, que já havia
destacado que a capacidade de amor objetal sucedia a um estado de identificação
com o objeto; ele qualifica esse estado de amor objetal passivo como estado de
ternura.(GABEL,1992,p.47)
Portanto, a criança busca e espera afetividade em sua relação com os adultos que a
cercam e, no caso do abuso sexual, encontra um afeto diferente daquele que deseja, o que
poderá gerar sofrimento e sintomas psíquicos, uma vez que vivencia uma confusão de
sentimentos.
Encontram-se nas obras completas de Freud referências aos cuidados que devem
ser tomadas nas particularidades dos casos estudados e das contingências externas a que as
crianças estão expostas que podem acarretar efeitos traumáticos relativos à sexualidade.
Nos estudos relacionados à sedução, salienta que a criança tratada como um objeto sexual
é prematuramente ensinada a obter satisfação de suas zonas genitais, mas, por outro lado,
argumenta que uma aptidão inata que determina a disposição das crianças para a as
atividades sexuais, o que explica a pouca resistência destas em admitir as abordagens
sexuais dos adultos, pois “as barreiras mentais contra os excessos sexuais vergonha,
repugnância e moralidade ou não foram ainda constrdas ou estão apenas em processo
de construção, segundo a idade da criança” (FREUD, 1972, p.196. vol.VII).
Os interesses sexuais infantis também estão relacionados à faixa etária em que a
criança se encontra, apresentando uma curiosidade crescente nos aspectos referentes à
diferenciação sexual pessoal e dos outros, ao mistério da procrião e do nascimento e a
relação estabelecida com o sexo oposto. Por volta dos três anos, as crianças interrogam os
pais sobre o nascimento e a sexualidade e, caso recebam respostas incertas ou inverídicas,
desenvolverão desconfiança na relação com os adultos, bem como a percepção do
desconforto que o tema suscita levaà ocultação de suas investigações ou mesmo sobre
algum tipo de abordagem sexual sofrida. um tempo para a tomada de consciência e de
atitudes da criança frente às questões sexuais que sofrem influências importantes.
O nível de desenvolvimento que limita a compreensão da complexidade das
relações sexuais; o interesse pelos problemas sexuais, tendo sido estimulado, em
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 27
grande parte, pela socialização infantil, pela discussão com outras crianças e pelas
respostas mais ou menos ambíguas dos pais as suas perguntas; é durante algumas
brincadeiras sociais que podem aparecer certas manobras de reconhecimento
sexual, de tipo exibicionista ou de tipo manipulatória (AJURIAGUERRA, 1983,
p.365).
O interesse por seu próprio órgão genital, iniciado com a masturbação, é deslocado
posteriormente para os genitais de seus pares, compondo um processo de investigação
pessoal sobre a sexualidade, passando à curiosidade sobre a diferença anatômica dos sexos
e à formulação de teorias próprias. As percepções das crianças sobre as atividades sexuais
o incompletas, relacionando o ato sexual, que de alguma forma pode ter sido
presenciado, ouvido ou fantasiado, como um dano ou um ato de dominação que o
participante mais forte exerce sobre o mais fraco (SOIFER, 1992).
Além dos fatores explicitados acima, o meio sócio-cultural influencia na maneira da
criança perceber a sua sexualidade e a dos outros, já que encontra desde o seu nascimento
valores morais e conceitos sociais arraigados nas relações interpessoais. Os modelos de
conduta, masculino e feminino, muito estabelecidos, são cobrados da criança por seus
ascendentes, mediante dimicas de relacionamento socialmente aceitas e sutilmente
impostas. Portanto, os interesses sexuais das criaas se desenvolverão conforme a
receptividade e a estimulação dos adultos com quem convivem que facilitam ou proíbem
as manifestações da sexualidade.
Para a criança, os conhecimentos sexuais estão carregados de incertezas, já que a
temática comumente é evitada pelos adultos e a curiosidade é reprimida, o que explica a
representação social da sexualidade na vida adulta e as conseqüentes dificuldades
relacionadas a ela. Muitas vezes, a curiosidade da infância é saciada de maneira
inadequada, expondo a criança a situações de risco para o abuso sexual, ou mesmo
levando-a a buscar conhecimento fora da família.
que se observar a criança sob o aspecto da descoberta de sua sexualidade pela
curiosidade e pelo afeto, como também contextualizar o meio cio-familiar em que se
desenvolve e a faixa etária a que pertence. Seus interesses evoluem conforme a
estimulação ambiental que recebe e a receptividade dos adultos às suas ações e aos seus
questionamentos. Se a tendência dos adultos que a cercam é evitar o assunto, proibir ou
dissimular, a criança relaciona a sexualidade à culpa e ao interdito. Como explica Freud,
As características da vida sexual infantil [...] referem-se ao fato de ser ela
essencialmente auto-erótica (isto é, encontra seu objetivo no corpo do próprio
infante) e estarem seus instintos parciais individuais em geral desligados e
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 28
independentes um do outro na busca de seu prazer (FREUD, 1972, Vol. VII p.
203).
A interferência do adulto na evolução e nos interesses da criança é evidente e
fundamental em seu desenvolvimento, o que também se aplica à sexualidade, mas
exatamente o necessário, já que qualquer outra medida pode ser danosa. Em seu estudo
sobre a mulher, Simone de Beauvoir salienta a trajetória a que a infância é submetida para
conhecer a diferenciação sexual, inferindo que:
Se, bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde a primeira infância, ela (a
menina) se apresenta como sexualmente especificada não é porque misteriosos
instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é
por que a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus
primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada (BEAUVOIR, 1980,
p.10).
Em contrapartida, Gabel (1997) expõe um ponto de vista que enaltece a intervenção
adulta na sexualidade infantil ao lembrar que acolher a curiosidade da criança, acompanhá-
la em sua busca da “verdade”, adverti-la para eventuais abordagens abusivas, certamente
contribuirá para uma sexualidade sadia no futuro.
O olhar adulto sob a criança intervém em sua auto-imagem, que ora os adultos
o receptivos, brincam e riem com ela e ora mostram-se indiferentes, pedem que se afaste
e se cale, causando-lhe insegurança e incompreensão. A cultura histórica e literária, as
canções, as lendas, a literatura infantil e a mitologia refletem para a criança os desejos dos
adultos, o que eles esperam dela e assim contribuem para o imaginário infantil e social.
A sexualidade, vista como algo naturalmente indócil, rebelde e estranha, exerce
certo domínio nos diferentes modos de relão constituídos social e historicamente entre os
indivíduos, seja entre homem e mulher, jovens e velhos ou entre adultos e crianças. A
construção de um saber a respeito do sexo é estrategicamente utilizada na educação das
crianças, como explicita sabiamente Foucault (1989) ao descrever a pedagogização do sexo
da criança:
Dupla afirmação, de que quase todas as crianças se dedicam ou o suscetíveis de
se dedicar a uma atividade sexual; e de que tal atividade sexual, sendo indevida, ao
mesmo tempo “natural” e “contra a natureza”, traz consigo perigos físicos e
morais, coletivos e individuais; as criaas são definidas como seres sexuais
“liminares”, ao mesmo tempo aquém e no sexo, sobre uma perigosa linha de
demarcação; os pais, as famílias, os educadores, os médicos e, mais tarde, os
psicólogos, todos devem se encarregar continuamente deste germe sexual precioso
e arriscado, perigoso e em perigo; essa pedagogização se manifestou, sobretudo na
guerra contra o onanismo, que durou quase dois séculos no Ocidente.
(FOUCAULT, 1989, p.99).
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 29
Instrumentalizar a criança contra possíveis agressores sexuais não é somente
ensiná-la a correr e fugir, mediante uma repressão exagerada, mas a identificar
comportamentos manipuladores e coercitivos dos adultos, mostrando-lhes como podem
buscar ajuda. Estudos realizados com agressores (GABEL, 1992) mostram como estes se
empenham em dessensibilizar as crianças aos contatos sexuais, através de uma estratégia
progressiva do contato das regiões não-sexuais (pernas, costas) em direção aos órgãos
genitais. A relação progride de tal modo que a criaa pode sentir que deu consentimento
ao abuso, já que não protestou às carícias iniciais, provocando crenças a respeito de seus
interesses sexuais e sobre o nível de responsabilidade que tem sobre tais atos.
Durante muito tempo, o abuso sexual infantil despertou pouco interesse científico,
uma vez que o vinculavam à fantasia infantil ou ainda à crença de que tal atentado não
causava dano à criança. No entanto, no decorrer da história, as denúncias dos adultos que
sofreram violência sexual na infância tornaram-se crescentes, revolvendo o universo moral
e firmando-se como um fenômeno real.
Em cada fase do desenvolvimento, a criança busca a compreensão do significado da
própria vida, evoluindo em seu conhecimento e em sua percepção, sendo que alguns
aspectos da realidade são vistos adequadamente e outros fazem parte da fantasia. No
tocante à sexualidade, as fantasias o se assemelham à dos adultos, visto que as crianças
não atingiram nem a maturidade física nem a psicológica para se relacionarem sexualmente
com um adulto.
O mito da criança sedutora, que com sua conduta coopera para as investidas sexuais
do agressor, principalmente quando se constata que ela alimenta sentimentos positivos em
relação ao abusador e a força sica está ausente nas abordagens, contribui para a
resistência em aceitá-la como tima do crime sexual. Com tal posicionamento, incorre-se
ao erro de acreditar que a criança poderia evitar o abuso sexual, que não é percebida
como passiva diante da situação abusiva, nem apresenta comportamento aversivo em
relação ao adulto acusado.
A psicanálise descreve a sexualidade infantil e confirma sua existência, revelando
que as atividades sexuais infantis são precursoras da sexualidade adulta e destaca que a
diferença está na primazia dada pelos adultos a sua zona genital e a possibilidade de
procriar.
A concepção do desenvolvimento psicossexual estruturada pela psicanálise
esclarece sobre a atividade sexual infantil, manifestada nos comportamentos
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 30
masturbatórios que aparecem na primeira infância, entre os três e os cinco anos de idade.
Tais atitudes infantis são perturbadoras para a maioria dos adultos, levando-os a reprimir
qualquer manifestação sexual da criança, porém, segundo essa teoria, há um instinto sexual
pertencente à zona genital que está presente em diferentes fases do desenvolvimento
infantil e relaciona-se ao princípio do prazer.
Freud (1972) descreve que o objetivo sexual infantil consiste em obter satisfação
por meio do estímulo apropriado da zona erógena que foi selecionada de uma maneira ou
de outra”, podendo esta zona erógena não estar relacionada apenas a zona genital, como
também aos lábios quando a criança suga o dedo e às outras partes do corpo que buscam as
carícias.
Inicialmente, os estudos de Freud se direcionaram a sexualidade, uma vez que ao
pesquisar a vida de seus pacientes encontrou uma tida relação do tema com o psiquismo.
Ao investigar as causas dos sintomas, deparou-se com uma demanda considerável de
relatos a respeito de abordagens sexuais que as pacientes teriam sofrido por seus pais ainda
na infância. Ampliando suas observações, descobriu o trauma das fantasias inconscientes
relacionadas à sexualidade infantil, relacionando-as ao que denominou Complexo de Édipo
e definiu como a situação em que a criança se apaixona pelo genitor do sexo oposto ao seu
e encontra no outro genitor o obstáculo para cumprir seus desejos. No entanto, esclarece
que nessa fase do desenvolvimento a criança vivencia intensa angústia e necessita
proteger-se dos sentimentos ambivalentes relacionados aos pais decorrentes dessas
fantasias inconscientes, freando ou suprimindo seus impulsos.
Quando uma fantasia inconsciente se realiza, como no caso do incesto, o sofrimento
e a angústia são insuportáveis para a criança, ameaçando sua estabilidade psíquica. Freud
(1972) na Teoria da Sedução referiu-se ao abuso sexual infantil como “contingência
externa acidental e, interpretando o relato de suas pacientes timas de sevícias sexuais na
infância, analisou as conseqüências de tal acontecimento na constituição do psiquismo.
Retratou, ainda, que a criança tratada como um objeto sexual prematuro aprende, em
circunstâncias altamente emocionais, como obter satisfação de suas zonas genitais, uma
satisfação que ela, então, via de regra, é obrigada a repetir volta e meia através da
masturbação e concluiu que a vida sexual de uma criança desperta espontaneamente,
sendo desnecessária e prejudicial a influência da sedução.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 31
1.3.2 Sexualidade: um território proibido
A sexualidade é um conceito que pode ser analisado tanto do ponto de vista
individual quanto social, pois se expressa de forma particular ao mesmo tempo em que é
influenciada culturalmente. As vivências religiosas, os valores morais e os conceitos
sociaiso interiorizados mediante métodos educativos diversos, provenientes o somente
da família, mas dos grupos sociais a que o indivíduo pertence. As proibões e permissões
ensinam, desde a infância, a reprimir o que é desagradável aos olhos dos outros e que, por
esse motivo, passam a ser também para si próprio. Histórica e culturalmente, a repressão
sexual faz parte das práticas sociais de controle, o que imperceptivelmente o indivíduo
incorpora às suas práticas pessoais cotidianas, transmitindo em suas atitudes e narrativas os
preconceitos e discriminações relacionadas à esfera da sexualidade.
Os interditos à sexualidade estão intrínsecos nas relações que o indivíduo
estabelece ao longo de seu desenvolvimento e, confrontar-se com regras e normas
socialmente pré-estabelecidas, é uma constante em sua dinâmica de vida familiar e social.
Segundo Foucault (1984), o uso da palavra “sexualidade” teve sua origem no início do
culo XIX, trazendo consigo conceitos e normas apoiadas em instituições médicas,
jurídicas, religiosas e pedagógicas, que geraram diversos campos de atuação e,
conseqüentemente, diferentes práticas discursivas e tipos de saberes. Os diferentes modos
de relão dos adultos com a criança e a sexualidade no decorrer dos séculos indicam que
em distintos períodos históricos os valores morais e os conceitos sociais foram moldando-
se e mascarando-se conforme os interesses relacionados ao poder do Estado.
Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As
práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência
excessiva, e as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma
tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da
decência, se comparados com os do século XIX. Gestos diretos, discursos sem
vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas,
crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos:
os corpos “pavoneavam” (FOUCAULT, 1988, p.9).
Paulatinamente, a sexualidade foi sendo encerrada entre quatro paredes e na
particularidade da função de reproduzir, sendo calada qualquer manifestação em atos ou
palavras. A proibição e o interdito passam a ter a função de condenar ao desaparecimento e
ao silêncio um discurso sobre o sexo que incomodasse aos bons costumes da época,
sustentadores das relações de poder. O processo de produção da verdade relativa à
sexualidade começa a ser construído, através de um discurso dico, classificando como
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 32
anormal e patológico o que se desviasse dos enunciados formulados pelas diferentes
formas de saber.
A criança, vista como um ser inferior e, portanto, vulnerável a tudo e a todos é a
primeira a ser fortemente reprimida e suprimida dos contatos e das conversas que antes
eram permitidos e aceitos. Para a criança, o corpo é o instrumento com o qual compreende
o mundo, sem relacioná-lo as suas partes sexuais, mas sim aos olhos, à boca e às os. Por
isso, procura e gosta das carícias, dos beijos, dos abraços dos pais ou dos adultos a quem se
apegam, mas, no decorrer da história humana, isto lhe foi tirado ao atingir uma idade em
que pode se comunicar verbalmente. Assim, a precaução em não colocar a criança na
cama dos pais e em não falar sobre sexo em sua presença é registrada pela história,
suscitando tabus e mitos que, inevitavelmente, interferiram nas relações sociais atuais.
Por “moral” entende-se um conjunto de valores e regras de ação proposta aos
indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como
podem ser a família, as instituições educativas, as igrejas, etc. Acontece dessas
regras e valores serem explicitamente formulados numa doutrina coerente e num
ensinamento explícito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira
difusa e, longe de formarem um conjunto sistetico, constituírem um jogo
complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos
pontos, permitindo, assim, compromissos e escapatórias (FOUCAULT, 1984,
p.26).
A moralidade dos comportamentos remete ao temor do que é invisível aos olhos,
mas perceptível ao espírito, relacionado não somente às vivências religiosas, mas ao
espaço autoritário ocupado pelos pais e representantes institucionais na vivência pessoal.
Esta trajetória, desde a infância até a vida adulta, se incorpora às atitudes sociais, pessoais
e profissionais, o que exige uma reflexão crítica das verdades que são impostas durante tal
percurso, quando se pensa na construção das representações sociais. Os esforços em
disfarçar ou ocultar sentimentos e opiniões julgados pelo próprio indivíduo como
conflitantes com as regras e normas da sociedade interfere no desempenho profissional,
mais especificamente, quando envolve a temática da sexualidade e da infância.
O cristianismo antigo levou o homem a detestar seu corpo e a confessar seus
pecados, produzindo um discurso sobre o sexo que passou a julgar seus atos e seus
pensamentos. Tal fato interferiu, também, no discurso da ciência, que buscava a verdade
sobre o sexo através de práticas confessionais e interpretativas, não só no sujeito que
confessa, mas também naquele que escuta, constituindo assim um discurso tendencioso
sobre a verdade do sexo. O rito da confissão obrigatória e exaustiva foi a primeira técnica
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 33
utilizada para produzir a verdade sobre o sexo, migrando para a relação entre adultos e
crianças, para as relações familiares e para as práticas profissionais.
A confissão, como técnica para a produção da verdade, passou a ser amplamente
utilizada no Ocidente, em rituais probatórios, em práticas religiosas, médicas e jurídicas.
Trazer à luz o que é oculto tem como foco principal a sexualidade, colocando o sexo em
discurso, já que é necessário ao Estado que as condutas e as atitudes das pessoas sejam
controladas. Dizer o que somos, o que fazemos, o que pensamos tornou-se natural nos
diferentes níveis de relações que estabelecemos na sociedade, tomando como necessário e
saudável as exposições de nossa individualidade e de nossa privacidade.
Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o
sujeito do enunciado; é também um ritual que se desenrola numa relação de poder,
pois o se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é
simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, ime-na,
avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual
onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de
suprimir para poder manifestar-se (FOUCAULT, 1988, p.61).
A confissão permanece ainda hoje como produtora de um discurso verdadeiro em
uma série de relações entre as pessoas e em formas distintas, como interrogatórios e
consultas. A confissão passa também pelo poder de perdoar atribuído àquele que ouve, que
consola, sendo assim produzida uma verdade, entre aquele que fala e aquele que acolhe
julgando, analisando, criticando e conduzindo a uma verdade. Portanto, aquele que escuta
escapacitado a produzir a verdade, já que detém um saber historicamente reconhecido
através das práticas discursivas.
A sexualidade foi amplamente relacionada às práticas confessionais e às
fragilidades humanas, como impulsos, instabilidades e patologias. Como bem esclarece
Foucault (1988),o século XIX tornou possível fazer funcionar os procedimentos de
confissão na formação regular de um discurso científico, fazendo dela não mais uma prova,
mas um sinal e, da sexualidade, algo a ser interpretado”.
A história da sexualidade está atrelada à história dos discursos, principalmente
cristãos e judiciários, o que certamente tem influenciado nas análises e interpretações a que
o submetidas as pessoas, crianças ou adultos, nos aspectos que abrangem a sexualidade,
que deve ser compreendida, quando situada na esfera e nas regras culturais. As diversas
formas de organização familiar, a importância dada à família, as proibições e
permissividades sexuais dependem da sociedade em que estão inseridas, onde vivenciam
maior liberdade para manifestação da sexualidade ou intensa submissão às normas sociais.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 34
[...] a vida sexual dos primitivos do noroeste da Melanésia, mostra como as
crianças são sexualmente iniciadas desde a idade mais tenra, e em geral, assistem
aos atos amorosos dos pais. Meninos e meninas se iniciam reciprocamente, pela
manipulação dos órgãos genitais e a atividade sexual infantil é considerada como
um divertimento inocente. Posteriormente, as intrigas amorosas ocorrem longe da
família, nas casas de solteiros”. Nestas regiões, as perversões sexuais são, por
assim dizer, desconhecidas (AJURIAGUERRA, 1983, p.362).
A sexualidade é imposta a um regime rigoroso de repressão, sendo constituída
como perigosa à vida em sociedade e submetida à lei, o que gera uma interdição
generalizada e sintomas psicológicos individualizados. Segundo o enfoque histórico dado
por Foucault (1988), a sociedade passou a vigiar as práticas incestuosas no intuito de por
fim a ela, através de uma potica de proteção à infância, retirando as crianças das famílias
suspeitas de praticarem o incesto, sendo os critérios, a falta de espaço, a proximidade dúbia
e os hábitos inadequados.
Sob o ponto de vista histórico, produziram-se sentidos e representações da
sexualidade, diferenciados para as classes sociais e que mantêm seus resquícios na
atualidade, o que, indubitavelmente, insere-se nas diferentes práticas profissionais e na
produção da verdade nos âmbitos médicos e jurídicos, gerando preconceitos e
discriminações. Com o casamento, inicia-se o tabu sexual, sendo a importância de tal ato
direcionada não pela manifestação sexual, mas pela simbologia que representa na vida
coletiva e no estabelecimento de regras da sociedade. O conjunto da civilização é quem
dita os comportamentos que são aceitos e proibidos, dividindo as categorias sexuais.
A criança em interação com sua própria sexualidade começa a ser estudada no
início do século XX, mas, ainda nos dias de hoje, concepções errôneas e permeadas de
preconceito e discriminação. Os valores e conceitos construídos sobre a sexualidade
variam em conformidade com o meio cio-cultural e familiar e no contexto da cronologia
histórica.
O hábito de brincar com o sexo das crianças é abandonado com a constatação de
que a criança não é indiferente e alheia à sexualidade e que gestos e alusões podem
interferir em seu psiquismo.
1.3.3 Indicadores do abuso sexual infantil
São inegáveis as alterações na vida psíquica de uma criança que é submetida aos
atos libidinosos de um adulto, seja em que fase desenvolvimental se encontre, pois a
sexualidade possui um caráter lúdico na infância, no sentido da descoberta e não do prazer
erótico conforme é para o adulto. Portanto, a criança apresenta sexualidade e psiquismo
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 35
distintos dos adultos e deve ser avaliada com os referenciais da infância em seus aspectos
teóricos e clínicos.
Em alguns casos, incompreendida por não verbalizar sobre o atentado sexual ou
desmentir o que antes havia revelado, a criança vivencia o temor de perder o afeto dos
familiares e até mesmo do abusador, caso possua laços emocionais com ele, bem como
temor em ser desacreditada ou ainda considerada como culpada. O silêncio dependerá da
modalidade de relação estabelecida entre o agressor e a tima, ficando a revelação e a
denúncia na dependência da intensidade dessa relação.
O medo é um sentimento bastante presente na vida infantil, utilizado inclusive
como método educativo pelos pais e assim incorporado ao psiquismo da criança, cujo
papel desse sentimento no abuso sexual ultrapassa o temor das represálias.
Esse medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as (crianças)
automaticamente a se submeter à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus
desejos, a obedecer esquecendo-se completamente de si, e a se identificar
totalmente com o agressor.(FERENCZI apud VOLNOVICH, 2005, p.27-28)
O trabalho de investigação tanto psicológico, quanto policial e jurídico, é bastante
complexo nos crimes sexuais contra a criança, que o dilema se fixa na suspeita e na
validação da denúncia mediante o testemunho e a palavra desta. A confrontação da família
e dos profissionais com a situação abusiva mobiliza diferentes conteúdos internos diante de
duas situações: a credibilidade na palavra da criança e a responsabilização do abusador.
Para os familiares da tima, o envolvimento dos profissionais da área da justiça em
suas vidas e a exposição pública traz a sensação de perda de referenciais importantes,
como por exemplo, a privacidade, a intimidade das relações, os conflitos familiares e as
mudanças nas interões cotidianas. Por isso, a significação que a revelação passa a ter
após a denúncia formal poderá ser modificada no decorrer dos procedimentos judiciais e
interferir na identificação dos sinais ou sintomas psicológicos apresentados pela criança.
Em cada fase do desenvolvimento, a criança apresenta um conjunto de
características psicológicas, sicas e de socializão que norteiam seu discurso manifesto e
latente e que sofrem influências no caso da vivência sexual precoce. Os indicativos para
abuso sexual estarão, conseqüentemente, relacionados às características desenvolvimentais
da criança e o contexto sócio-familiar e cultural a que pertence. Os recursos lúdicos são
amplamente utilizados, quando a agravante de relatos incoerentes, inconsistentes ou
ainda, a criança possui pouca idade, em que não há organização da linguagem.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 36
que se esclarecer a flexibilidade existente nos sinais ou sintomas apresentados
pelas vítimas de abuso sexual, sendo que cada caso deve ser avaliado em sua singularidade,
considerando ainda as circunstâncias em que ocorreu o atentado.
Segundo Volnovich (2005, p.36-37), os indicadores são classificados como
específicos de abuso sexual infantil ou suspeita deste de acordo com o desenvolvimento
evolutivo da criança, descrevendo-os da seguinte forma:
Indicadores específicos de Abuso Sexual Infantil:
1-Físicos: lesões genitais ou anais; sangramento pela vagina ou ânus; infecção
genital não preexistente; gravidez; quaisquer dos indicadores anteriores aliados a sintomas
de maus tratos físicos, feridas, hematomas etc.
2- Psicológicos: relato da vítima.
Indicadores de suspeita de acordo com o período evolutivo da criança ou do
adolescente:
1-Pré-escolares: condutas hipersexualizadas; transtorno de sono; condutas
regressivas; enurese-encoprese; retração social; temores inexplicáveis frente a
determinadas pessoas e situações; fenômenos dissociativos.
2-Latentes: mudanças repentinas no rendimento escolar; problemas com figuras de
autoridade; fugas do lar; condutas delinqüentes; coerção sexual de outras criaas;
excessiva submissão frente ao adulto; fobias; queixas somáticas (cefaléias, dores
abdominais etc.); sobre adaptação.
3-Adolescentes: promiscuidade sexual; coerção sexual de outras crianças;
depenncia de drogas; condutas delinqüentes; condutas autodestrutivas; tentativas de
suicídio; excessiva inibição sexual; transtornos dissociativos; anorexia, bulimia.
Tais indicadores associados a outros fatores complementares poderão auxiliar na
validação da denúncia, sendo o relato da criança o destaque destes quesitos, já que traz um
conjunto de elementos importantes. A qualidade da escuta e do olhar profissional
depositado sobre a criança vítima dos crimes sexuais também exercerá influência na
identificação desses indicadores.
que salientar que a criança poderá apresentar uma variedade de sintomas, ou
nenhum sintoma, sendo as variantes decorrentes do meio cio-familiar, da
representatividade do agressor em sua vida e da intensidade dos atos abusivos a que foi
submetida. O perigo dos estigmas, ocasionados por afirmações de que toda criança tima
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 37
de abuso sexual apresentará sintomas psicológicos e/ou sexuais na vida adulta, pode gerar
discriminações ou equívocos diagnósticos.
Os efeitos causados pelo abuso sexual na infância se relacionam a determinadas
dinâmicas, as quais, nem sempre visíveis, levam a criança a desenvolver sentimentos e
condutas que poderão não estar entre os indicadores apontados nas pesquisas referentes a
tal tetica. As perturbações psicológicas podem ser interpretadas como conseqüências da
vitimização sexual ou como tentativas de reorganização após a vivência de uma situação
adversa, sendo necessário um estudo aprofundado dos diversos fatores que influenciam a
criança-vítima .
A capacitação profissional, para a avaliação psicológica da criança e para a
interpretação dos indicadores do abuso sexual infantil, é fundamental e exige a utilização
de um roteiro flexível e adequado para cada caso analisado. Baseando-se no protocolo de
avaliação utilizado no Serviço de Consulta em Psicologia da Justiça da Universidade do
Minho, em Portugal, Machado(2002) apresenta um roteiro de avaliação para situações de
abuso sexual infantil que contém valiosas sugestões para uma investigação adequada.
Dividido em cinco categorias de avaliação, o roteiro oportuniza ao profissional uma
dinâmica interpretativa eficaz.
A seguir, será relatada uma adaptação simplificada desse roteiro:
-Avaliação dos fatos e da sua veracidade: composta pelos indiciadores do abuso,
pela entrevista de revelação e pelos indicadores da veracidade da revelação. Esses
elementos referem-se à observação das reações e atitudes da criança durante a entrevista e
os cuidados a serem tomados na formulação das perguntas para que o ocorra a indução.
A veracidade das alegações do abuso poderá ser avaliada pela pertinência e riqueza dos
detalhes do discurso; pelos detalhes específicos relacionados à sexualidade que são
incomuns ao conhecimento infantil; pela linguagem utilizada pela criança, própria ou com
tros de narrativa induzida; pela expressão da afetividade e pela espontaneidade da
narrativa; pela evolução do hisrico do abuso; pelas características do segredo partilhado
entre o agressor e a criança.
-Avaliação da sintomatologia específica e das dinâmicas traumáticas: refere-se à
experiência abusiva, às percepções da criança sobre o abuso, às crenças e mitos quanto ao
abuso, às reações emocionais ao abuso e à sintomatologia diversa. Esses elementos
relacionam-se à vivência emocional da experiência abusiva e as características psicológicas
particulares apresentadas pela criança.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 38
-Avaliação do ajustamento global: esta etapa da avaliação poderá ser realizada em
conjunto ao ponto anterior, uma vez que tem o objetivo de analisar a criança o somente
pelo aspecto do abuso sexual, mas em uma análise de seu desenvolvimento geral; se ela
apresenta características esperadas para sua faixa etária, quanto às suas capacidades e
habilidades. A utilizão de testes projetivos, jogos e brinquedos oferecem condições para
que a criança se expresse, livre dos constrangimentos e ansiedades típicos desses casos,
oportunizando, também, ao profissional boas condições para a avaliação.
-Avaliação do funcionamento familiar: essa etapa é importante para a compreensão
do contexto em que a criança se desenvolveu e em que vive atualmente, bem como oferece
elementos importantes para a elucidação dos componentes externos do abuso sexual, isto é,
como foi a acolhida da revelação e como foi o suporte emocional propiciado à criança. A
entrevista com os pais é fundamental para o entendimento do caso, na qual será possível a
coleta de dados sobre as características individuais, familiares e contextuais da vítima.
-Avaliação do risco: finaliza o processo de avaliação, analisando o risco da
revitimização, principalmente, quando o ofensor continua a ter acesso à criança. Deve-se
considerar a idade da criança, em função da maior ou menor vulnerabilidade; a intensidade
do abuso, quanto ao tempo de duração e freqüência do abuso;o uso de força, de ameaça e a
percepção da criança sobre o risco; o suporte e a proteção da família e o posicionamento do
abusador, quanto à ausência de sentimento de culpa e remorso.
Os discursos sociais em muito influenciam a percepção individual e também
profissional sobre os acontecimentos, principalmente quando revestidos pelos valores
morais construídos no decorrer da história.
1.3.4 Processo Abusivo: a relação vítima-agressor
Na prática cotidiana do psicólogo judiciário, não são incomuns os casos de abusos
sexuais de crianças e adolescentes, sendo que todos trazem características particularizadas
quanto à forma de abordagem sofrida e o tempo de clandestinidade. Além do processo
judicial a que está associada a situação de sofrimento da criança, uma relação anterior
de caráter abusivo em que, habitualmente, um adulto utilizando sua autoridade que
histórica e culturalmente lhe foi conferida, submete a criança ao segredo de seus atos
sexuais, sejam incestuosos ou não, sob ameaça, terror ou sedução hetero ou homossexual.
Os adultos tendem a encobrir os fenômenos relacionados ao abuso sexual infantil,
visto que as atitudes do agressor o passíveis de punição criminal, e o envolvimento de
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 39
testemunhas e provas é necessário quando o assunto é tratado no âmbito judicial. A
temeridade de que a revelação da criança esteja relacionada às fantasias e induções são um
dos fatores que dificulta não somente a denúncia do crime sexual para a as providências
judiciais cabíveis, como também a implicação das pessoas em um assunto que comumente
é evitado.
Os fatos contidos no caso 25, um processo crime em que figura como tima de
estupro uma menina de 11 anos, filha adotiva do casal desde os quatro anos de idade,
oferece uma ilustração apropriada a respeito do processo abusivo e das dificuldades
vivenciadas pela criança diante de sua iniciativa de revelar o abuso sexual. O agressor é o
pai adotivo da tima e em diversas oportunidades a molestou sexualmente, sendo
comprovada a conjunção carnal mediante exame de corpo de delito, isto é, houve a relação
sexual completa. O agressor iniciou o processo abusivo, quando a criança contava sete
anos de idade e, se aproveitando da ausência da esposa, seviciava a filha adotiva.
Logo no início das abordagens a criança se queixou à mãe; no entanto esta não lhe
deu credibilidade, e assim, além de sofrer descrédito, a vítima foi agredida fisicamente pelo
pai por falar mentiras. Percebendo-se desprotegida e temendo novas agressões sicas, a
criança manteve-se calada no decorrer dos anos e a e não mais se preocupou com o
assunto, embora tenha percebido que o marido mostrava-se mais hostil e agressivo com a
criança do que o habitual. Somente quando o agressor foi surpreendido pela esposa durante
o ato libidinoso é que esta deu credibilidade aos fatos e denunciou-o judicialmente, bem
como passou a fazer reflexões comparativas entre a conduta familiar da tima aos quatro
anos, quando chegou à família e aos sete anos, quando apresentou significativas alterações
de humor, revelando-se chorosa e retraída.
O relato da tima durante o processo de Avaliação Psicológica expressou o
sofrimento vivenciado, quando descreveu sentimentos de mágoa e raiva pelo agressor,
afirmando que na presença da esposa ele agia como se nada ocorresse e quando estavam
sozinhos a subjugava a sua autoridade, transgredindo o poder paterno. É evidente, no
discurso da vítima, o cansaço por haver vivenciado tanto tempo a vitimizão e o alívio por
estar liberta das opressões sexuais, como também por sentir-se acreditada pela mãe.
Se, por um lado, para o agressor não havia a interdição do incesto em função da
ausência de laços sanguíneos, por outro a vítima estabeleceu com ele uma efetiva relação
pai-filha, reconhecendo-o como figura paterna e submetendo-se a sua autoridade. A
Avaliação Psicológica da vítima revelou a vivência de uma intimidade desagradável e
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 40
coercitiva em relação ao agressor, com características de linguagem e organização pessoal
que evidenciaram o sofrimento psicoemocional experienciado no decorrer dos anos de
vitimização.
Para Summit apud Gabel (1992), a criança aparece duplamente como tima: dos
abusos sexuais e da incredulidade dos adultos e descreve cinco reações características da
criança vitimizada que reforçam os preconceitos em relação a ela. As duas primeiras, o
segredo e o sentimento de impotência ligados à vulnerabilidade da criança e às outras três
o conseqüências dos abusos sexuais: a criança cai na armadilha e se adapta; a revelação é
tardia e não convence; a criança vai se retratar.
O segredo, que é solicitado à criança diante da situação traumatizante de um abuso
sexual, acontece quando ela está sozinha com o agressor e não pode ser partilhado com
mais ninguém, sob pena de ser castigada física e moralmente. As ameaças tornam os
efeitos da revelação ainda mais perigosos que o próprio ato (GABEL, 1992), pois, além de
temer as punições, a tima desconfia da capacidade dos adultos em protegê-la do agressor
e, então, mantém o silêncio.
As contradições na relação dos adultos com as crianças e nos modos e regras
educacionais impostas a elas são facilitadoras das abordagens sexuais perversas, já que ao
mesmo tempo em que é alertado à criança sobre os perigos do contato com desconhecidos,
lhe é ensinado que deve respeitar e aceitar as figuras de autoridade nas diferentes relações
pessoais e sociais que estabelece. Como afirma Azevedo (1989), entre adultos e crianças
há uma hierarquia, na qual o adulto mediante seu poder, busca socializar a criança,
transformando-a em um adulto à sua imagem e semelhança. Assim, a criança percebe-se
impotente e submete-se ao domínio do adulto que, na maioria dos casos, é uma pessoa que,
de alguma maneira, estabeleceu laços de confiança para, paulatinamente, evoluir nas
carícias e toques sexuais sem enfrentar grandes resistências mais tarde, ou quando não é
um membro familiar bastante próximo, como por exemplo, o pai.
Se a criança logo no início das abordagens sexuais não procurou ajuda ou procurou
e não foi protegida, apenas desacreditada, ela, possivelmente, desenvolve mecanismos
para adaptar-se à situação. Dependendo do tipo de relação com o agressor, seja ele pai, tio,
amigo da família, irmão ou vizinho, a criança poderá justificar os atos a que foi submetida
invertendo os valores morais, acreditando ser a culpada por causar os desejos eróticos do
agressor ou ainda por sentir algum prazer físico.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 41
A vitimizão sexual infantil, como violência interpessoal, é definida por Azevedo
e Guerra (1984) como uma forma de aprisionamento da vontade e do desejo da criança, de
submissão ao poder do adulto. Assim, a criança tima sofre a exigência da cumplicidade
por meio de um “pacto de silêncio”, que restringe sua ação e reação, cassando sua
expressividade, sua palavra e enredando-a em uma situação de medo constante.
processo abusivo que pode prolongar-se por anos, cerceando a liberdade da criança e
condicionando-a a uma posição de objeto da violência, da qual se libertará mediante a
revelação e a credibilidade dos adultos em suas palavras.
Portanto, conforme o exposto acima, observa-se como tudo conspira para a criança
se calar, desde o agressor até os demais adultos de seu convívio cotidiano. O espanto das
pessoas que não têm contato com a temática da vitimização sexual demonstra o quanto
ainda tal atentado é visto como inusitado, isolado e distante da vida da sociedade. Os autos
dos processos judiciais revelam os detalhes do processo abusivo, com diferentes
declarações, acusações e defesas, nas quais a infância é esquecida frente aos necessários
procedimentos para o acolhimento das provas. A obrigação da Psicologia Judiciária em tais
casos é esclarecer o quanto a criança está sob o domínio dos adultos com quem convive,
seja pelas pressões educacionais, pela hierarquia familiar ou pela própria relação de poder
do adulto sobre a criança que leva ao descrédito de seu discurso.
A representação da criança como sedutora e provocadora do abuso sexual, além de
ser utilizada em defesa do réu agressor, povoa o imaginário social, pois são reais as
dificuldades em aceitar os crimes sexuais cometidos contra a infância. O agressor,
justificado como um doente mental perverso, nem sempre corresponde às características
pessoais do acusado, que reúne opiniões unânimes de pessoa pacata, bondosa e dedicada à
família.
Os questionamentos das autoridades judiciárias acerca da possibilidade da criaa
evitar o abuso sexual revelam o desconhecimento das estratégias do agressor no processo
abusivo que paralisam a criança. É imprescindível que a criança encontre no atendimento
judicial um ambiente que favoreça a explicitação das ameaças, chantagens, subornos ou
terror que vivenciou durante o processo abusivo, pois assim, conforme preconiza o
Estatuto da Criança e do Adolescente, será tratada como um sujeito de direitos.
A criança possui uma percepção incompleta dos acontecimentos e ela só tenoção
da gravidade dos atos libidinosos a que foi submetida, ao confrontar-se com a reação das
pessoas próximas a quem revelou e diante das decorrentes circunstâncias policiais e
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 42
judiciais que enfrentará. O processo abusivo enreda a criança em circunstâncias para as
quais ela não está emocionalmente preparada a enfrentar e, quando se vê frustrada nas
tentativas de proteção, sucumbe aos atos delituosos.
A complexidade do abuso sexual será descrita a seguir mediante as duas
modalidades em que ocorre, dentro do contexto familiar e fora dele, onde as relações
pessoais que a criança estabelece são fundamentais para que denuncie as sevícias das quais
é vítima.
1.3.4.1 O abuso sexual intrafamiliar
Quando o abuso sexual acontece dentro da família nuclear, ele se insere no âmbito
das emoções e dos conflitos familiares. O abuso intrafamiliar ou incesto é caracterizado
por uma coação exercida por um adulto com quem a criança possui laços de parentesco,
afinidade ou responsabilidade, com o intuito de levá-la a participar de práticas eróticas
(COHEN apud AZEVEDO; GUERRA, 1997), seja ele pai, padrasto, avô, tio ou iro.
Não há um desconhecido de quem a criança possa fugir ou uma casa para onde possa ir,
podendo haver a vivência de uma situação aterrorizante, muitas vezes mediante ameaças,
violência ou mesmo pelo próprio sentimento de culpa da tima. Ocorre uma ruptura na
totalidade do mundo da criança, pois quem deveria protegê-la, a agride de diferentes
maneiras: física, sexual e psicologicamente. A presença constante do agressor rouba-lhe a
privacidade, o sono e a infância, confundindo a representação social do papel dos adultos
que conhece como figuras protetivas e provedoras.
O incesto traz um potencial de violência psíquica intensa em decorrência da função
que os pais desempenham no mundo mental de seus filhos (FAIMAN, 2004). A interdição
do incesto constitui uma regra cultural e psíquica que, ao ser transgredida, interfere
irreversivelmente no aparelho mental da criança e com uma repercussão familiar
devastadora.
Em alguns casos, ausência de força e/ou ameaça na relação entre o agressor e a
criança, estabelecendo-se uma aliança entre eles, onde o vínculo familiar é determinante
para que os atos libidinosos aconteçam e se mantenham na clandestinidade. Assim, quando
a criança o apresenta um conjunto de sintomas psicológicos que é esperado nos casos de
violência sexual, enfrenta o descrédito dos profissionais envolvidos na denúncia.
As questões de gênero soam como fator de risco para o abuso sexual infantil, já
que, o modelo e a representação social da masculinidade é a força, o poder, a superioridade
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 43
e a virilidade. No ambiente familiar, as relações de gênero se materializam com maior
intensidade, gerando condição de vulnerabilidade ao abuso sexual da menina-criança. A
literatura especializada aponta os atos incestuosos de pai ou padrasto contra a menina
como o mais freqüente em comparação com outras figuras familiares e que ocorre de
forma reiterativa e em longo prazo. São inegáveis as conseqüências psicológicas deletérias
do abuso intrafamiliar na vida psíquica da criança e, posteriormente, em sua vida adulta, já
que mesmo deixando de conviver com o agressor, não há como apagar a representação da
figura parental abusiva.
A violência sexual incestuosa, mais do que um abuso, não alude apenas ao estupro
ou tentativa de relão sexual, mas também carícias genitais e outras formas de contatos
impostos e o desejados. Este tipo de violência não é algo raro, mas sim pouco
denunciado, em função das implicações psicológicas vivenciadas pela criança em relação à
figura de autoridade familiar envolvida.
Os abusos intrafamiliares acontecem em segredo, o qual tem a função de manter a
coesão familiar e proteger a família da exposição e do julgamento de seu meio social. A
possibilidade do aprisionamento do pai-agressor e a decorrente perda do sustentáculo
financeiro da falia são um dos fatores impeditivos para a denúncia, sendo, em algumas
situações, a mãe quem recebe as queixas da criança e exige-lhe o silêncio pelo temor da
desestabilização sócio-econômica da família, da humilhação e da exposição social.
O incesto expõe as falhas da dimica familiar que não conseguiu manter a
proteção à criança e, geralmente, ocorre o desmembramento familiar para pôr fim às
sevicias sexuais, seja atras do afastamento do agressor ou mesmo da colocação da
criança em entidade de abrigo, enquanto se desenvolve o inquérito policial ou o processo
judicial.
As medidas judiciais a serem tomadas nos casos de incesto, quase sempre
provocam um rompimento na família e a criança pode ser considerada pelos familiares
como responsável, ou sentir-se responvel por essa desestabilização, intensificando seu
sentimento de culpa.
O caso 27, atendido pela Seção de Psicologia do Fórum em um processo penal em
que a vítima é uma menina de onze anos de idade, o indiciado é o pai e a natureza da ação
é o crime de estupro, esclarece as dificuldades sofridas pela criança em um processo
abusivo incestuoso. Além do atendimento à vítima, foi realizada entrevista individual com
a genitora, no qual esta relatou que, embora de temperamento taciturno, o marido sempre
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 44
foi participativo na vida familiar. Percebia que o acusado mostrava-se mais repressor em
relação à tima do que ao outro filho, um menino de sete anos, não permitindo que ela
saísse de casa com a mesma freqüência que o irmão.
A genitora teve conhecimento do abuso sexual pela informação do filho de que o
pai ia à cama da irmã e praticava os atos libidinosos com ela. Questionou a tima sobre a
veracidade das declarações de seu irmão, a qual chorou e nada falou, apenas concordou
meneando a cabeça. A mãe levou a filha ao ginecologista, sendo diagnosticada a conjunção
carnal e após a formalização da denúncia às autoridades policiais, o pai foi preso.
A vítima declarou que aos nove anos de idade sofreu a primeira abordagem sexual
do pai através de carícias e apalpamentos, que passaram a ser regulares e freqüentes. Os
atos libidinosos ocorriam ao amanhecer, quando todos ainda dormiam e foram
intensificando-se até ocorrer o ato sexual completo, não sabendo precisar quando, que
todas as abordagens foram sempre desagradáveis e dolorosas. Após os atos libidinosos, o
agressoro fazia qualquer comentário com atima, estando implícita a necessária
relação de cumplicidade e o respeito à autoridade paterna, que causavam desconforto
emocional à tima e a mobilizavam contra qualquer atitude de libertação. Ao referir-se ao
pai o classificou como bom, expressando sentimentos ambivalentes ao verbalizar: eu
tenho um pouco de raiva dele”.
Ainda que a vítima tenha revelado a vivência de uma intimidade desagradável e
coercitiva com a figura paterna, evidenciava sentimento de autocondenação que poderia
estar relacionado com a experiência de algum tipo de prazer físico proveniente da
estimulação sexual e vergonha pelo longo período em que se deixou abusar. O discurso e a
conduta da vítima deixaram claro que devido ao poder familiar exercido e transgredido
pelo abusador foi determinante para sua condescendência ao ato abusivo, mantendo-a
calada durante anos. O agressor valeu-se de sua autoridade paterna para subjugar a criança
às práticas sexuais, dispensando o uso da violência física e/ou psicológica.
Embora não desejasse o retorno do pai ao lar, a vítima mostrava-se preocupada com
seu bem-estar, consolando-se ao pensar que ele poderia retornar à cidade natal e reconstruir
sua vida junto aos familiares. Alegrou-se ao comentar sobre as mudanças futuras em seu
cotidiano e, embora ainda demonstrasse fragilidade emocional, já evidenciava sinais de
reorganização psíquica, uma vez que sofreu um corte brusco no desenvolvimento
psicossexual com as investidas sexuais, percebendo-se durante um longo período como
inadequada e diferente em relação a seus pares.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 45
O irmão da tima, denunciante do abuso sexual, também apresentou sofrimento
relativo ao complô do silêncio estabelecido com o pai, já que presenciava a vitimização da
ir, mas respeitava a representação de autoridade familiar daquele. Revelou
características de estresse emocional, não somente pelas dificuldades vivenciadas com a
repressão anterior à denúncia, quanto pela culpabilidade sentida com o aprisionamento do
pai. Ambas as crianças possuíam credibilidade entre os familiares o que foi um facilitador
para a revelação e posterior denúncia judicial.
Em contrapartida, casos em que a genitora apresenta uma cumplicidade velada
sobre a relação incestuosa, percebe que algo inusitado entre pai e filha, mas não se
motiva a descobrir. A dificuldade em assumir o papel de esposa também é um fator
importante, quando a mãe se omite ao suspeitar da relação incestuosa, permitindo que a
filha assuma tal papel no aspecto sexual e, com sua omissão, mantém a coesão familiar e
evita a incriminação do marido. Na especificidade de tal circunstância, há a possibilidade
do incesto ser integrado à dinâmica familiar de tal maneira que pode ser aceito, mas
permanecer apenas internamente conflitivo para a criança, até que atinja a fase da
adolescência e então passe a compreender a gravidade da situação relativa às relações
familiares e denuncie.
1.3.4.2 O abuso sexual extrafamiliar
Na prática profissional, certamente é mais simples o acolhimento da denuncia das
timas de agressões sexuais extrafamiliares do que aquelas em situações incestuosas.
Embora a vítima também seja pressionada a manter o segredo, através de ameaças físicas e
morais, não vivencia a desorganizão e a confusão de papéis familiares e sexuais em seu
contexto familiar.
Por ser um ato que envolve medo e vergonha, como também a incredulidade dos
adultos, a criança pode omitir os fatos durante muito tempo, prolongando seu sofrimento
físico e psíquico. Teme as reações dos pais, dos professores, dos colegas e do próprio
agressor, que, em alguns casos, é uma pessoa de seu convívio e com confiabilidade em sua
família. Tal forma de abuso, além de invadir a sexualidade da criança, envolve a
sexualidade de um adulto, sendo possível ocorrer a acusação de que a criança provocou a
abordagem sexual por exibir comportamentos julgados erotizados.
Ao abordar a criança oferecendo-lhe doces, brinquedos ou revistas infantis, o
agressor inicia o processo de sedução para a conquista de sua confiança, que também pode
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 46
envolver os pais ao estabelecer laços de amizade com eles. Não é incomum a utilização de
recompensas pelo agressor após os atos abusivos, enredando a criaa em um jogo de
cumplicidade e benefícios pessoais, dificultando ainda mais a revelação.
A exploração sexual, como a pornografia e a prostituição, é outro tipo de relação de
caráter abusivo estabelecido com as timas, geralmente crianças provindas de meio sócio-
cultural empobrecido. A troca de favores sexuais por dinheiro ou qualquer outro bem
material, leva a criança a conceituar seu corpo como objeto e interfere profundamente em
sua auto-imagem e em seus valores, que modificarão sua maneira de viver e de se
relacionar com os outros. Compulsando os processos judiciais, percebe-se que os abusos
extrafamiliares o denunciados com maior facilidade do que aqueles que ocorrem dentro
da família.
Cabe delinear o abuso sexual extrafamiliar com o Caso 26, em que a tima, uma
criança de três anos de idade sofreu abuso sexual de um vizinho da família, que durante
dois anos freqüentou a casa regularmente levando doces para as crianças. Dedicava
atenção especial à tima, levando-a para passear nas proximidades da residência, sendo
que para os genitores o indiciado representava a figura típica de um avô, confiável e
amável, do qual jamais suspeitariam qualquer tipo de agressão.
Na ocasião do atentado, o indiciado convidou a criaa para passear e ver cavalos
na rua, com a permissão da genitora. Decorridos alguns minutos, a genitora saiu da casa e
escutou a criança chamá-la, como um gemido e flagrou o abusador manipulando os órgãos
genitais da criança em um modo externo da casa. Imediatamente, a genitora fez a
denuncia à Delegacia de Pocia.
No Fórum, a criança apresentou resistência em entrar na sala da Seção de
Psicologia sozinha, aninhando-se no colo da mãe. Mostrou-se retraída e tímida durante
todo o processo de avaliação, negando-se a participar da hora lúdica e embora olhasse os
brinquedos com curiosidade, não os tocava.
Os genitores descreveram as modificações na conduta da criança após o ocorrido, a
qual se mostrava chorosa e entristecida, com forte resistência em ficar nua e em permitir
que a mãe lavasse sua genitália durante o banho. Permanecia com os olhos abaixados e não
aceitava beijos ou contatos, principalmente de homens, inclusive do pai, bem como deixou
de brincar com meninos, verbalizando que menino brincava com menino e menina com
menina. Rejeitava a alimentação e dormia excessivamente, indicando traços de depressão
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 47
durante os três meses consecutivos após o atentado, como tamm foi hospitalizada em
decorrência de infecção urinária.
Foram tomadas precauções durante o processo de avaliação, com entrevistas
individuais a cada um dos genitores para a comparação dos discursos apresentados e os
detalhes relativos ao atentado. Ficou claro que o acusado, com o intuito de conquistar a
confiança da criança e de seus familiares, ofertava-lhes doce e boa companhia, eximindo-
se da suspeita de atitudes pedófilas em relação à vítima.
Percebe-se que as conseqüências psicológicas diferem entre cada uma das timas,
já que o contexto em que vivem é distinto quanto às regras familiares e educacionais, no
qual cada caso tem suas particularidades. Entretanto, as intervenções que a criança sofre
após a revelação do abuso sexual, sejam elas familiares ou profissionais causam-lhe,
muitas vezes, conseqüências deletérias, em função da maneira pela qual são interrogadas
e/ou entrevistadas.
Os discursos dominantes sobre a infância o constituídos por modelos de
desenvolvimento e de conduta sexual apropriada ou inapropriada e contribuem para a
construção do conjunto das representações sociais da violência sexual infantil e,
conseqüentemente, sobre a prática profissional dos indivíduos. Contudo, o contato
cotidiano com o contexto da realidade e a interdisciplinaridade na atuação referente aos
casos de abuso sexual infantil, possibilita a modificação dos conceitos e juízos formulados
sobre a infância e a sexualidade. Freud (1972, Vol. IX), inovador para sua época nos
estudos relativos à sexualidade humana, já previa a importância da função das práticas
discursivas construídas sobre o tema e o compromisso daqueles “a quem a atividade
profissional concedeu oportunidades especiais para ocupar-se dos problemas sexuais”.
Nos processos judiciais, a tendência é individualizar e normatizar as condutas do
ser humano aplicando a uniformidade da lei e é neste aspecto que a Psicologia deve
questionar o saber constituído sobre o indivíduo, esclarecendo o fenômeno psicológico em
sua relão com o meio social e cultural.
1.4 A PSICOLOGIA JUDICIÁRIA
Atualmente, a Psicologia Judiciária é considerada uma especialidade da Psicologia,
com funções, objetivos e limites direcionados ao Direito e estabelecidos no decorrer de
muitos anos de trabalho pioneiro. Embora a Psicologia Judiciária tenha sido reconhecida
pelo Conselho Federal de Psicologia no ano de 2001 como área específica de atuação, e tal
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 48
órgão tenha ofertado o título de especialista em Psicologia Jurídica aos profissionais que já
atuavam mais de cinco anos nos tribunais do país, os questionamentos e as críticas
foram uma constante nesta trajetória.
Ainda que confusas, as terminologias utilizadas para designar esta área da
Psicologia, no presente trabalho será referenciado como judiciária, baseando-se na
definição do dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o qual descreve que Judiciário é
“relativo ao Direito Processual ou à organização da justiça e Jurídico é relativo ao Direito;
conforme os princípios do Direito; cito, legal”. Portanto, a Psicologia inserida nos
procedimentos judiciais, torna-se, sob tal ponto de vista, judiciária.
Os esforços foram intensos para que a Psicologia Judiciária fosse adequadamente
reconhecida em seu meio profissional para além de seu papel pericial junto ao Poder
Judiciário. O estigma de que a Psicologia Judiciária teria a função inócua de ofertar
Laudos
2
aos Juízes de Direito, a serviço de uma sociedade de controle que busca a ordem
social se desvelou através do reconhecimento da própria classe sobre o desempenho eficaz
da Psicologia nos diferentes procedimentos judiciais referentes à Justiça da Infância e da
Juventude.
A Psicologia Judiciária utiliza-se da metodologia, dos instrumentos e teorias da
Psicologia para contextualizar, sensibilizar e humanizar a aplicabilidade da lei; porém,
como bem analisa Brito (2005), há o risco a que constantemente está exposto o
profissional de Psicologia, ou seja: atuar como suporte para averiguações de ‘verdades’
frente aos procedimentos jurídicos”.
Anteriormente à Psicologia, foi a Psiquiatria que estabeleceu as primeiras relações
com o Direito na Justa Criminal, expandindo as práticas mantenedoras de sistemas de
exclusão. O hisrico das perícias judiciais está relacionado às especulações sobre a origem
dos comportamentos cruéis e criminosos, algumas vezes, atribuídos a fenômenos genéticos
e hereditários. A distinção entre a Psicologia e a Psiquiatria, no sentido da essência de seus
objetos de estudo, definiu a primeira parceria estabelecida com o Direito. A Psiquiatria
como saber sobre a loucura e a Psicologia, investigando os fenômenos e processos
psicológicos capazes de serem verificados experimentalmente, como por exemplo, a
2
A palavra laudo, como termocnico, significa o relato sucinto, sistemático, descritivo, interpretativo de um
exame (ou diversos) que descreve ou interpreta dados. O Laudo Psicológico é também chamado de
Relario Psicogico e quando sua solicitação decorre de instâncias judiciais tem sido nominado de laudo
pericial. (SHINE, 2003, p.279). Neste trabalho, também será utilizado o termo Avaliação Psicogica que é
equivalente à descrição do Laudo.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 49
percepção, as associações de iias, a memória, motivação, trouxeram ao Direito a
possibilidade de se validar o testemunho de uma pessoa mediante técnicas psicológicas.
A Psicologia do Testemunho, historicamente a primeira grande articulação entre
Psicologia e Direito, demonstra a psicologização que se encontra em curso: não
o criminoso deve ser examinado, mas também aquele que e relata aquilo que
viu que processos internos estarão propiciando ou dificultando a veracidade de
seu relato? (JACÓ-VILELLA. In: BRITO, 2005, p16).
O momento atual é de expansão da Psicologia Judiciária, fazendo um recorte
histórico entre a exigência do Direito de uma Psicologia mais prática e direta que traga
uma verdade objetiva e absoluta, para aquela fundamentada na descoberta de Freud de que,
por trás do discurso manifesto, há outro discurso latente. Com isto, o Direito compreendeu,
conforme Saunier apud Brito (2005), que a Psicologia poderia oferecer conhecimentos
sobre o comportamento humano ligados à ordem do simbólico e do imaginário.
Entretanto, foram muitas as resistências enfrentadas pela Psicologia Judiciária
quando por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passou a fazer parte do
quadro Funcional do Tribunal de Justiça. Diferentes segmentos da categoria questionavam
a fuão do Psilogo Judiciário, temendo a maneira como os profissionais atuariam frente
a esta nova proposta em uma instituição que representa o poder maior na sociedade e
materializa a sanção e a repressão. Afinal, os Laudos Psicológicos serviriam a quem e para
quê?
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente a Psicologia Judiciária se
expandiu para além da atuação na área criminal, envolvendo-se, prioritariamente, nos
feitos relacionados à família, à infância e à adolescência e rejeitando o papel
exclusivamente pericial da produção de uma verdade previamente construída sobre os
indivíduos. Pertencente aos procedimentos judiciais, a Psicologia tem como aliada a
palavra, já que, a partir dela, se consolidam os discursos, tanto dos que declaram como
daqueles que interrogam. O indivíduo, ao enunciar palavras, faz um registro de sua
verdade, aquela que não está necessariamente ligada à verdade que entra em debate
constante no cotidiano, abarrotada de ideologias e de valores morais, mas se insere na
dinâmica jurídica compondo documentos que podem tanto beneficiá-lo como prejudicá-lo.
Sob este ponto de vista, a Psicologia almeja contextualizar o indivíduo, deslocando-o de
uma posição passiva e suscetível na produção da verdade, exigindo do profissional uma
análise crítica e reflexiva capaz de distinguir os fatores emocionais dos judiciais contidos
na lide e propor inovações nos encaminhamentos jurídicos sem ferir a lei.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 50
1.4.1 A Psicologia Judiciária no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
A inserção da Psicologia no Poder Judicrio do Estado de São Paulo ocorreu
através do Código de Menores de 1979, o qual em seu artigo 4º, inciso III, definia que o
estudo de cada caso fosse realizado por equipe técnica, sempre que possível”, não
especificando o profissional de Psicologia. Porém tal artigo possibilitou a inserção formal
do psilogo no Tribunal de Justa do Estado de São Paulo em julho de 1979, onde dois
psicólogos iniciaram a atuação voluntária, como estagiários, no Serviço de Colocação
Familiar. A atuação do Psicólogo direcionava-se para a avaliação e acompanhamento de
famílias que necessitavam de auxílio econômico para manter suas crianças
desinstitucionalizadas, mediante orientação psicológica e encaminhamento aos recursos da
comunidade, visava a proporcionar apoio para a reorganização das famílias.
Em abril de 1980, os estagiários de Psicologia passaram a participar das audiências
na Vara de Menores e, a partir desse momento, é que realmente a Psicologia conquistou
um lugar efetivo no Poder Judiciário. Os casos atendidos advinham do plantão permanente
de menores encaminhados via de regra pelo Serviço Social e, em seguida, os próprios
Psilogos emitiam seus pareceres no Termo de Audiência, ou levavam os relatórios
pessoalmente ao Juiz, ao Promotor e à Assistente Social e em algumas vezes eram
discutidos pela equipe multiprofissional. Em novembro de 1981, ocorreu a primeira
contratação de psicólogos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sendo os
estagiários os beneficiados com o nculo empregatício por um ano, dando continuidade ao
trabalho já iniciado.
A formação acadêmica não prepara os profissionais de Psicologia para atuação no
âmbito da justiça e não havia precedentes nesse campo naquele período, isto é, o Psilogo
como profissional do Poder Judiciário, o que tornou necessário reestudar os procedimentos
habituais e adaptar as técnicas às condições impostas pelo ambiente forense. O próprio
Tribunal de Justiça e seus funcionários não estavam preparados para receber uma função
tão distinta das já existentes, exigindo algumas transformações nas relões de trabalho.
A contratação dos Psicólogos era renovada anualmente, até que, em fevereiro de
1985, foi efetivado o primeiro concurso para o cargo de Psilogo das Varas de Menores
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, legitimando assim o trabalho no contexto
judiciário. Visando ao aperfeiçoamento profissional, juntamente com os Assistentes
Sociais, os Psilogos principiaram uma ação conjunta, formando comissões e buscando
reflexões sobre a prática cotidiana frente à criança e ao adolescente, mediante seminários,
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 51
encontros, pesquisas, cursos e supervisões. A luta por um trabalho significativo em uma
instituição tradicional como a do Tribunal de Justiça foi difícil e, ainda é, uma vez que as
regras são formais e, muito, pré-estabelecidas. O Serviço de Psicologia suscitou
resistências, tanto nos usuários da justiça quanto nos próprios profissionais que nela
atuavam, em função da especificidade e do papel que lhe é atribuído: papel desvelador do
que está latente ou subjacente.
A importância da atuação do psicólogo na instância judiciária repousa na
possibilidade deste profissional abordar as questões da subjetividade humana, as
particularidades dos sujeitos e das relações nos problemas psicossociais, expressos
nas Varas da Infância e da Juventude, com o contexto social e político que as
definem (BERNARDI, apud BRITO, 2005, p.108).
Com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Federal Nº.
8069/90, é que se deu a inserção do Psilogo nas Comarcas sedes das Circunscrições do
interior do Estado de São Paulo em 1991, pois as equipes interprofissionais, compostas por
Assistentes Sociais e Psicólogos, passaram a ser obrigatórias e suas funções estabelecidas
nos art. 150 e 151
3
de tal lei. Será utilizada a experiência localizada da sede da
Circunscrição na qual a pesquisa se desenvolveu para elucidar o início do trabalho
legitimado pelo ECA, no sentido de ilustrar as dificuldades e as evoluções dessa trajetória
recente.
Confrontar-se com um campo de trabalho desconhecido e pioneiro exigiu muita
disponibilidade e tolerância das profissionais, que procuravam adaptar-se ao sistema de
relações hierárquicas e à linguagem jurídica. As Psilogas que ingressaram no primeiro
período da implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente participaram do Programa
de Iniciação Profissional na capital paulista, onde foram ministradas importantes palestras
sobre diferentes temas relacionados à atuação do Psicólogo Judiciário e à estrutura judicial,
o que serviu de suporte e ânimo para implantar, cada qual em sua Comarca, um Serviço de
Psicologia comprometido em garantir os direitos das crianças e dos adolescentes das
comunidades atendidas pela justiça.
A Seção de Serviço Social, implantada um ano antes da Seção de Psicologia, já
mantinha um sistema de comunicação com o cartório, com a promotoria e com o juizado
3 * Art 150 – “Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para a
manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Inncia e da Juventude.
*art 151: “Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela
legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem
assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamentos, prevenção e outros, tudo
sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista
técnico”.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 52
que foram passivamente acatadas pelas Psicólogas, que estavam em um campo novo,
desconhecido e não sabendo como nele agir. As salas contíguas e o trabalho integrado,
com trocas de informações sobre os casos atendidos, confundiam os Magistrados,
Promotores e escreventes quanto à distinção das funções profissionais. As determinações
judiciais para a realização de Avaliações Psicológicas nos processos o eram diretamente
dirigidas à Seção de Psicologia, sendo tal função informalmente delegada à Assistente
Social, a qual julgava a necessidade e sugeria ao juiz.
Assim, paulatinamente, a Psicologia foi se diferenciando do Serviço Social,
apresentando na forma de Laudo sua atuação e suas reflexões, fundamentadas em teorias e
técnicas que passaram a subsidiar efetivamente as decisões judiciais. Atualmente, em
alguns casos, a Seção de Psicologia é chamada a atuar isoladamente do Serviço Social,
sendo reconhecida sua contribuição e a especificidade de sua função para o desfecho do
processo.
Tal espaço foi construído em um embate cotidiano, buscando desmistificar a
Psicologia como produtora de um saber sustentador das relões de poder e normatizadora
dos indivíduos na sociedade.
Os órgãos legislativos e judiciários, tendo como meta o ideal da justiça,
incorporaram nos seus procedimentos noções e conceitos de outras áreas do
conhecimento, o que transformou as práticas destes órgãos. Constituiu-se então
uma nova área de prática dos psicólogos: a psicologia jurídica. Denominação
ampla e pouco definida, a aplicação da psicologia ao espo jurídico ainda suscita
desconfianças e incômodos. Afinal, por que a justiça precisa do trabalho do
psicólogo? (MIRANDA JR, 1998, p.28-29).
A inserção do psicólogo no Poder Judiciário na última década trouxe consigo a
incumbência de auxiliar na mudança da situação sócio-jurídica das crianças brasileiras
proposta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, fazendo uso crítico dos instrumentos e
técnicas da Psicologia e uma análise contextualizada da criança e sua família. A
participação dos psilogos no Judiciário Paulista começou tímida e desacreditada, sendo
que, na maioria dos fóruns, o número de Assistentes Sociais ultrapassa o de Psilogos e
estes últimos devem atender, além da comarca sede, as circunscrições, que são comarcas
de cidades vizinhas que não dispõem de tal profissional. Em 2006, diante da grande
demanda de determinações judiciais para a realização de Avaliações Psicológicas foi
realizado novo concurso objetivando a contratação de profissionais específicos para cada
comarca, demonstrando a conquista de um espaço efetivo da Psicologia em um novo
campo de trabalho.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 53
1.4.2 A Atuação e as Atribuições do Psicólogo Judiciário
A função principal do psilogo judiciário é assessorar o Magistrado nas decisões
judiciais, apresentando uma leitura psicológica dos casos, sendo a maior demanda
proveniente da Vara da Infância e da Juventude. Porém são muitas e variadas as
atribuições do psicólogo judiciário, as quais suplantam a função pericial e o rótulo de
“máquina de fazer laudo” que inicialmente foi imputado à categoria.
A Avaliação Psicológica é realizada em cumprimento a uma determinação judicial,
integrando um processo, apresentada na forma de Laudo e executada dentro dos
procedimentos cnicos e da metodologia da Psicologia. Algumas vezes, a determinação
vem acompanhada por quesitos formulados o apenas pelo juiz, mas também pelo
Promotor e Advogados das partes, a serem respondidos pelo Psilogo, delimitando a área
de interesse a ser investigada. Valendo-se de entrevistas individuais e/ou de casal, testes
projetivos, hora lúdica, observação e estudo de campo quando necessário, o Psilogo
participa da produção da verdade que envolve as práticas judiciárias, sem descuidar-se de
proporcionar à criança e aos demais envolvidos, condições favoráveis a que as
disponibilizem a falar, sem constrangimento ou opressão.
Com o objetivo de compreender e analisar a problemática apresentada nos autos
processuais, o Psilogo Judiciário faz uma abordagem clínica, mas limita sua atuação ao
foco do problema, não intencionando mobilizar conteúdos psíquicos ou intervir como um
terapeuta no caso. A situação de entrevista é particularmente angustiante para o usuário do
Poder Judiciário, uma vez que se frente a um profissional que, no imaginário social,
possui habilidade técnica para decifrar o que está oculto no ser humano, suscitando assim,
mecanismos de repressão e sentimentos intensos de insegurança e angústia que interferem
na avaliação. Tal fato é explicitado por Chauí ao definir que
Nossos sentimentos poderão ser disfarçados, ocultados ou dissimulados desde que
percebidos ou sentidos como incompaveis com as normas, os valores e as regras
de nossa sociedade. Costuma-se dizer que a repressão perfeita é aquela que não
é sentida como tal, isto é, aquela que se realiza como auto-repressão, graças à
interiorização dos códigos de permissão, proibição e punição de nossa sociedade
(CHAUI, 1990, p.17).
Portanto, o indivíduo ao defrontar-se com as formalidades do Poder Judiciário que
além de representante é também executor dos códigos interiorizados, ainda encontra outra
dificuldade a ser transposta, narrar-se frente a um profissional que interpretará suas
reações, atitudes, temores, fantasias etc. Embora a intervenção não seja intencionada, o
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 54
próprio fato de analisar a situação e sugerir medidas judiciais ao Juiz é uma forma de
intervenção propiciadora de mudanças, transformadora da vida da criança e de seus
familiares e, ao concluir um parecer, há que se fazer uma reflexão ética quanto aos
conhecimentos profissionais, referenciais teóricos e valores pessoais utilizados na
execução da Avaliação Psicológica do caso.
As pessoas atendidas são intimadas judicialmente a comparecer à entrevista
psicológica nas dependências do Fórum, o que é um diferenciador em relação às outras
áreas de atuação da Psicologia, visto que tanto a criança como sua família vêem-se
obrigados a participar de uma prática confessional, que não lhes é agradável. Além de
trazer à tona o conflito emocional, os procedimentos judiciais a que são submetidas
anteriormente também interferem na disponibilidade das crianças e dos adultos para falar
sobre si e sobre sua biografia familiar. Mas, por outro lado, a Psicologia oferece um novo
espaço para os usuários da justiça, em que lhes é permitido se comunicar, questionar e
colocar seu ponto de vista.
A atuação profissional deve ir além da sala de atendimento do Fórum e se
desvencilhar da função única de trazer à instituição judiciária o mundo interno e
inacessível daquele que será avaliado e julgado judicialmente. Não se trata de negar a
instituição de que faz parte a Psicologia Judiciária, mas sim de gerar novas formas e novas
propostas de atuação tanto dos Psilogos quanto dos operadores do Direito, modificando
paradigmas.
Ao abrir o espo de escuta do outro, o psicólogo abre também a possibilidade de
emergência do sujeito enquanto singularidade na sua relação com a lei [...] Mesmo
procurando ajustar-se aos papéis e lugares que o discurso institucional exige, o
sujeito, ao falar para um outro que se coloca disponível a escutá-lo, articula suas
demandas endereçando-as a uma instância decisória, portadora de um suposto
saber sobre a resposta ao sofrimento do qual se queixa (MIRANDA JR., 1998,
p.30).
Tamm o psicólogo judiciário pode sentir-se obrigado a atuar, pois uma
determinação judicial para tal, podendo sofrer punições administrativas caso não seja
entregue o relatório de Avaliação Psicológica dentro do prazo estipulado. Mas, deve buscar
motivação no interesse, na responsabilidade e na crença da importância do parecer
psicológico para o deslinde da ação judicial, oferecendo sugestões viáveis para que a
criança e sua família não mais necessitem da intervenção do Poder Judiciário para
resolução de seus conflitos.
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 55
Os setores técnicos (Psicologia e Serviço Social) necessitam avançar para além do
estudo/diagnóstico, propondo ações concretas de intervenção que contemple a
participação da comunidade aproveitando os recursos existentes e contribuindo
para criar novos, quando necessário. Isto significa uma interdisciplinaridade que
ultrapasse o trabalho no interior das varas. A garantia do trabalho interdisciplinar,
local e em rede, buscando parceiras e criando procedimentos que possibilitem a
melhor solução para questões referentes à criança, adolescente e família, sujeitos
da intervenção judiciária, pode contribuir para se romper com a solidão da ação
profissional e para construir alternativas que respeitem a singularidade de cada
situação (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2004).
Segundo o comunicado Nº. 345/2004-DRH, publicado no Diário Oficial do
Judiciário de 26/05/2004 (Anexo I), uma das principais atribuições do Psilogo Judiciário
é proceder à avaliação de crianças, adolescentes e adultos, elaborando o estudo
psicológico, com a finalidade de subsidiar e assessorar a autoridade judiciária no
conhecimento dos aspectos psicológicos de sua vida familiar, institucional e comunitária,
para que o Magistrado possa decidir e ordenar as medidas cabíveis. A criança deve ser a
principal beneficiária da atuação do Psilogo Judiciário, necessitando de uma ação mais
interventiva e protetiva do profissional, como por exemplo, a sugestão de medidas judiciais
que levem a sua retirada do ambiente familiar quando em situação de risco permanente e a
colocação em uma família substituta, interferindo irreversivelmente em seu destino.
As atribuições do Psilogo Judiciário o bastante diferenciadas, já que não há um
limite de idade, de classe social ou tipo de problemática a ser atendida e, embora a
Psicologia Judiciária esteja orientada para o atendimento de crianças e adolescentes, as
análises são direcionadas também às famílias e ao contexto cio-cultural de que fazem
parte.
É importante questionar quem é o cliente do Psicólogo Judiciário: a criança que é
inserida no contexto jurídico ou a instituição judiciária que solicita a demanda para a
avaliação psicológica? O papel do Psilogo Judiciário é o de perito, que é chamado a
atuar no caso pelo Juiz através de determinação judicial, com a finalidade de dar
andamento ao processo jurídico e não de resolver o foco da problemática psicológica.
Portanto, há duas faces em sua atuação, subsidiar o Juiz na decisão judicial e auxiliar a
criança em sua trajetória sócio-familiar através de uma análise ética e verdadeira, no
sentido de buscar uma verdade no discurso da ppria criança, a qual, historicamente, é
desacreditada por sua fragilidade e vulnerabilidade.
O Juiz solicita uma avaliação sempre que necessita de uma leitura psicológica da
situação, por este motivo, o laudo deve ser realizado em uma linguagem compreensível e
em uma redação adequada. O Psicólogo Judiciário, ao emitir um laudo, deve estar ciente
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 56
de que além do Juiz e do Promotor outras pessoas terão acesso ao documento, como os
Escreventes, os Auxiliares de Promotoria, os Advogados das partes e os próprios
envolvidos, portanto há que se cuidar da terminologia utilizada e selecionar os dados que
realmente são importantes para a solução da causa.
A psicologia jurídica é hoje tão fundamental para a justiça brasileira como são as
evidências materiais para a criminalística. Sem ela, o embasamento jurídico fica
mais frágil, podendo produzir uma decisão judicial capaz de produzir rupturas
emocionais profundas nas pessoas envolvidas. O poder judiciário, por exemplo,
tem recorrido cada vez mais á psicologia jurídica para contextualizar e subjetivar
situações que auxiliam o juiz durante o processo e no momento de estabelecer uma
sentença (JORNAL DE PSICOLOGIA/CRP-SP, 2003).
O Psilogo Judiciário tem limitações em sua atuação e nem sempre pode emitir
um parecer conclusivo do caso, por estar em dúvida ou pela insuficiência de dados,
justificando, através do laudo, a necessidade de novas avaliações ou apenas fazendo uma
inferência, quando não é possível responder. Porém sempre esclarecendo as dificuldades
encontradas na análise e os procedimentos e instrumentais utilizados. O caso 3, referente a
uma adolescente portadora de deficiência mental, que supostamente sofrera abuso sexual
do cunhado e que verbalizava apenas algumas palavras, é oportuno para ilustrar a limitação
do Psilogo para uma análise conclusiva. Havia conflitos familiares intensos que
levantaram a suspeita de que a adolescente seria utilizada para incriminar o cunhado ou
mesmo seria interpretada erroneamente pelos familiares, visto sua dificuldade de
comunicação e as desavenças familiares pré-existentes. A dificuldade era concreta, que
não havia discurso ou mesmo atitudes da adolescente a serem interpretados, o que foi
justificado para o Juiz no parecer do relatório de Avaliação Psicológica, sendo a análise
direcionada e limitada ao papel que esta desempenhava na dinâmica familiar e as
características das relações familiares existentes.
O parecer psicológico é importante para o bom desenvolvimento dos procedimentos
atinentes à Justiça da Infância e da Juventude e à Justiça de Família; tal parecer constitui
mais uma prova nos autos, uma prova pericial que será somada a outras provas que irão
formar as convicções tanto do Juiz quanto do Promotor. Portanto, a decisão judicial poderá
ser contrária ao parecer psicológico, o que o nega o mérito da avaliação, uma vez que a
Psicologia exerce um papel específico e direcionado a esclarecer a problemática humana,
onde a aplicação tácita da lei não pode alcançar.
O aumento da demanda de trabalho e os prazos processuais a serem cumpridos,
geralmente 30 dias quando não há urgência, também limitam a atuação do Psilogo
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 57
Judiciário, que se pressionado a emitir um parecer, na maioria das vezes com apenas
uma entrevista de cada uma das partes envolvidas. Conforme a complexidade do caso,
solicita-se ao juiz a dilação do prazo, que não ultrapassa 10 dias, porém pode ocorrer
determinação para a entrega do Relatório de Avaliação Psicológica em 05 dias ou em 48
horas, contados a partir do momento em que é assinada a carga dos autos processuais no
cartório.
Outra particularidade da Psicologia Judiciária é de que o Laudo apresentado nos
processos pode ser contestado e uma das partes envolvidas indicarem um assistente
técnico, o qual exercefunções idênticas ao do Psilogo Judiciário e estará sujeito ao
mesmo tratamento: mesmo prazo que o perito para realizar seu trabalho; mesmos motivos
de impedimento e suspeição; poderá ser convocado a comparecer à audiência para prestar
esclarecimentos sobre seu laudo e ficará sujeito à penalização se por dolo ou culpa prestar
informações inverídicas. O Psilogo Judiciário e o assistente técnico, após a averiguação
individual ou em conjunto, conferenciarão reservadamente e, se houver acordo, lavrarão
laudo unânime. Caso contrário, cada qual apresentará um Laudo, esclarecendo suas
percepções sobre o caso.
O rigor do sigilo profissional que envolve a Psicologia e que, supostamente,
predispõe a pessoa a trazer à tona o que está subjacente, como também gera um importante
vínculo com o profissional, é um ponto polêmico, quando relacionado às práticas
judiciárias. Tal fato é esclarecido nas entrevistas com os usuários da justa, uma vez que o
acesso à Avaliação Psicológica por outros profissionais e pessoas envolvidas é uma
constante, como também o Psilogo Judiciário deve estar preparado para as críticas e
contestações ao seu laudo, sendo convocado a esclarecer sua posição, por escrito ou em
audiência.
A Psicologia Judiciária é um campo de atuação relativamente novo, estando
inserida em uma instituição com normas e regras desvinculadas da especialidade da
formação acadêmica do psilogo, o que exige do profissional autocrítica e um
compromisso ético rigoroso com as pessoas que são avaliadas. Em cada caso atendido no
contexto judiciário, há conteúdo para a compreensão de outro caso, proporcionando ao
profissional um aprendizado constante em função da diversidade humana e social a que
tem acesso.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, os Psilogos atuam nas Varas da
Infância e da Juventude, nas Varas de Família e Sucessões, eventualmente nas Varas
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 58
Criminais, quando há o envolvimento de crianças e adolescentes e nos demais serviços de
atendimento a funcionários e Magistrados, sendo estes últimos restritos aos Fóruns da
capital.
A seguir será feita uma breve referência a cada uma das varas judiciais em que a
Psicologia atua, com ênfase no atendimento à criança, que é o objetivo do presente
trabalho.
1.4.2.1 A Atuação na Vara da Infância e da Juventude
O trabalho na Vara da Infância e da Juventude tem sua especificidade,
diferenciando-o das demais varas judiciais, pois tem como prioridade preservar os direitos
e interesses da criança e do adolescente e é, neste ponto, que a parceira entre o Direito e a
Psicologia se concretiza em uma nova forma de atuação, compartilhando o objetivo de
proteger a criança.
Outras atribuições publicadas no comunicado Nº. 345/2004-DRH já acima citado
o: realizar o acompanhamento de casos objetivando a clareza da definição da medida,
avaliando a adaptação da criança/família; reavaliando e constatando a efetivação de
mudanças; verificando se os encaminhamentos a recursos sociais e psicológicos oferecidos
na comunidade, e a aplicação das medidas de proteção e sócio-educativas foram
efetivados; promover a prevenção e controle da violência intra e extrafamiliar, institucional
contra crianças e adolescentes e de condutas infracionais; fornecer indicadores para a
formulação de programas de atendimento, relacionados a medidas de proteção sócio-
educativas, na área da Justiça da Infância e da Juventude, auxiliando na elaboração de
políticas públicas, relativas à família, à infância e à juventude.
Segundo descreve Bernardi apud Brito (2005), o serviço de Psicologia reflete a
demanda institucional e divide-se em áreas de atendimento:
1. Colocação de criança em família substituta que presume as medidas
judiciais de guarda, tutela, adoção, destituição do poder familiar,
institucionalização de crianças e adolescentes em situação de risco ou
abandono, cadastro de crianças disponíveis para adoção, preparação de
pretendentes à adoção.
2. Acompanhamento temporário, mediante determinação judicial ou
informalmente, à criança, ao adolescente e à família em situação de conflito
decorrentes de uso de drogas ou álcool, condutas inadequadas, pedidos de
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 59
abrigamento/desabrigamento, consentimento para casamento, suprimento de
idade.
3. Avaliação acerca de denúncias de negligências, maus-tratos sicos, abuso
sexual, violência psicológica intra ou extrafamiliar.
4. Estudo de caso referente aos adolescentes com prática de delito, visando à
discussão e avaliação de medidas sócio-educativas e protetivas, como a
advertência, liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade,
semiliberdade e internação.
5. Vistorias semestrais, juntamente com o Juiz e a Assistente Social, às
entidades de atendimento às crianças e adolescentes, governamentais e não-
govenamentais.
6. Apuração de irregularidades em entidades de atendimento.
1.4.2.2 A Atuação na Vara de Família e Sucessões
Na Vara de Família e Sucessões, a demanda provém dos processos em que
disputa de guarda de crianças e/ou adolescentes ou simples regularização de uma situação
de fato, nas ações de separação conjugal ou dissolução de sociedade de fato, modificação
de guarda e regulamentação de visitas. O Psicólogo tamm atua nos processos de
interdição, nos quais não há criança e adolescente e embora conste a Avaliação Psiquiátrica
do interditando, o Juiz determina a Avaliação Psicológica do caso, com enfoque nas
relações familiares e na motivação do requerente da ação.
A prática demonstra que a atuação do Psilogo nas lides referentes à família
conquistou um lugar efetivo no âmbito jurídico, tornando-se imprescindível para as
decisões judiciais. São muitos os conflitos emocionais camuflados pelo conflito judicial,
quando tratamos das ações das Varas de Família e muitas as reflexões sobre a inserção da
Psicologia em tal prática judiciária, o que se estenderia a variadas discussões e deslocaria o
foco da problemática a ser estudada nesta pesquisa.
1.4.2.3 A Atuação na Vara Criminal
Apesar da publicação do comunicado DRH Nº. 345/2004, ainda se discute a
respeito das atribuições funcionais dos Psilogos Judiciários, pois estes se submeteram a
processo seletivo para trabalho específico nas Varas da Infância e Juventude e nas Varas de
Família e Sucessões. No início da atuação nos Fóruns do interior, eram comuns as
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 60
determinações judiciais para cumprimento de exames criminológicos aos indivíduos
adultos que figuravam como réus nos processos penais ou encontravam-se em regime
prisional. As consultas ao departamento responsável pela supervisão dos trabalhos técnicos
respaldavam os profissionais no sentido de que não estavam habilitados para tal trabalho,
porém, o que se relacionava à avaliação de criança e adolescente tima de crimes nada
impedia a atuação do Psilogo.
Na Vara Criminal, o Psilogo é chamado a atuar nas ações de Atentado Violento
ao Pudor, Estupro e nos Procedimentos Verificatórios em que a vítima é criança ou
adolescente, porém a Avaliação Psicológica não se estende ao réu, o que não caracteriza o
Laudo como criminológico. controvérsias no próprio Tribunal de Justiça acerca da
atuação do Psilogo Judiciário nos processos que versam sobre matéria penal, pois se por
um lado argumenta-se que as atribuições deste profissional estejam restritas aos interesses
afetos à Infância e Juventude e que profissionais da área do Poder Executivo
capacitados para realizar as Avaliações Psicológicas nos processos penais, por outro, é
reconhecida a possibilidade e até obrigatoriedade de atendimento às crianças e
adolescentes-vítimas. A justificativa utilizada é de que toda criança vitimizada deve ser
acompanhada judicialmente, recebendo os cuidados que o caso requeira.
O fato de a criança-vítima estar inserida nos procedimentos judiciais de um
processo penal não a torna diferente daquela inserida em um processo da Vara da Infância
e da Juventude e, portanto, também necessita de atendimento especializado, conforme
versa o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O trabalho do Psilogo Judiciário nas Varas Criminais se restringe às ações em
que as vítimas são crianças e adolescentes e estão envolvidas em crimes sexuais, sendo que
a cada tima atendida se expande os conhecimentos, o que auxilia na compreensão de
outros casos. O relato de uma criança-tima suscita nos profissionais reações e atitudes
que podem a predispor a falar ou reprimi-la e tal fato, aprendido na prática, gera a
motivação para a busca das melhores técnicas e métodos visando condições facilitadoras e
saudáveis para a criança manifestar seus sentimentos reais. A prática responsável habilita o
profissional para a atuação e provoca, além de uma nova fase de discussões acerca da
função da Psicologia no Poder Judiciário, um trabalho especializado.
O exemplo do caso de uma criança de 06 anos de idade que foi testemunha do
homicídio do pai, embora se diferenciando da maioria e não estando relacionado ao crime
sexual, motivou o Juiz a determinar a Avaliação Psicológica da criança, sendo a análise
Capítulo 1 Psicologia e direito: uma relação histórica 61
direcionada para a veracidade de seu discurso, uma vez que seu depoimento foi colocado
em dúvida pelo Advogado do réu. O Laudo foi utilizado pela promotoria em sua
manifestação na seção do Tribunal de Júri, salientando as características psicológicas
descritas da criaa na Avaliação Psicológica e sua efetiva participação como testemunha
do crime.
Não é de hoje que o Direito evoca a Psicologia para o esclarecimento sobre a
veracidade do depoimento ou testemunho dos indivíduos envolvidos em um crime. Embora
historicamente o Direito tenha exigido uma Psicologia experimental, prática e direta,
desveladora de fenômenos psicológicos, atualmente entende que, para além da Justa
Criminal a Psicologia, oferece conhecimentos para a compreensão das subjetividades
relativas à família, à criança e ao adolescente que contribuem para a evolução dos
procedimentos judiciais.
A discussão em torno da capacidade de testemunho é habitual entre os operadores
do Direito, sendo freqüente o defensor do réu argumentar sobre a tendência da criança em
inventar histórias ou sofrer influências de terceiros em suas enunciações. No entanto, há
uma reciprocidade em tal argumentação, visto que os adultos também possuem valores e
conceitos incorporados em seus discursos que os incapacitam para uma avaliação eficaz
nos assuntos afetos à infância e, assim, utilizam o senso comum para emitir suas opiniões e
julgamentos e conseqüentemente desacreditar da criaa.
Os crimes sexuais contra a criança inscrevem a infância e a sexualidade no contexto
judiciário, temáticas com os quais os operadores do Direito estão pouco familiarizados em
função da própria formação acadêmica, como também está ausente nos métodos de
capacitação profissional recebidos pelos Promotores e Juizes.
Nos casos de abuso sexual infantil, o Psicólogo é chamado a atuar pelas
dificuldades impcitas que o tema sugere, uma vez que o testemunho da criança é
percebido como frágil e passível de sofrer sugestões ou induções não pelos adultos
envolvidos, como tamm pela trajetória de interrogatórios a que foi submetida desde o
momento da revelação. No capítulo seguinte, será descrita a problemática vivenciada pela
tima ao deslocar-se da clandestinidade da relação abusiva e enfrentar os questionamentos
e interrogarios, iniciando com a revelação à pessoa de sua confiança até os
procedimentos judiciais decisórios. O sistema de notificação do abuso sexual se
explicitado sobre o ponto de vista das práticas vivenciadas tanto pela criança-vítima quanto
pelos profissionais envolvidos na investigação do crime sexual.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 62
2
OS (DES)CAMINHOS NA
PRODUÇÃO DA VERDADE
2.1 REVITIMIZANDO A CRIANÇA: A PALAVRA DESVALORIZADA
Raramente mencionada antes de 1970, a violência sexual infantil a cada década
vem merecendo cada vez maior atenção tanto da imprensa, quanto dos estudiosos da
infância. A problemática da criança vítima de abuso sexual passou a ter importância
quando as feministas e os ativistas liberais dos Direitos Humanos lançaram o assunto.
Embora ainda tímido, desde então, o interesse científico sobre o fenômeno do abuso sexual
infantil foi crescente, e grupos de profissionais passaram a discutir e a pesquisar sobre o
tema da violência contra crianças, levando assim à organização de políticas públicas e
intervenções sociais.
No século XX, as crianças assumiram um lugar cada vez mais importante na
consciência ocidental e na teoria e na prática psicológicas. Nossos modelos de
psicologia e de desenvolvimento psicológico são inerentemente individualistas e
pressupõem que as experiências da infância têm forte influência no
comportamento do adulto. Tivemos também a tendência de pressupor que os
estudos ocidentais podem ser aplicados universalmente. Eu uso o termo
“pressupor” deliberadamente porque ficou aparente que muito do que foi
considerado importante no pensamento psicológico, após ter sido exposto a um
exame mais minucioso, estava baseado em construções sociais e em retórica
(LEVETT, 1994).
Os danos produzidos na criança tima de abuso sexual podem ser atribuídos tanto
às circunstâncias em que ocorreu o atentado, quanto ao contexto de intervenção impositiva
feita pela família e/ou por profissionais a que foi submetida após a revelação. A crença de
que a experiência do abuso sexual causa danos psicológicos à criança também interfere na
intervenção profissional, já que se espera dela um conjunto de características padronizado
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 63
pela literatura especializada baseada nos padrões norte-americanos de conduta e, quando
isto não é constatado, a tendência é descrer da criança.
As práticas incestuosas em que o agressor é o pai e a tima é a filha, encobrem
uma biografia familiar complexa e um histórico de relação conjugal difíceis de serem
desvendados em um processo penal, decorrendo disto a incompreensão frente a algumas
opiniões e reações da criança em favor do agressor. A Psicologia Judiciária tem a
responsabilidade de propiciar condições favoráveis para que tanto a criança como seus
familiares se expressem com espontaneidade e segurança e demandem informações
significativas para análise da peculiar relação interacional.
A esposa do abusador, quando toma conhecimento do ato incestuoso, pode tornar-
se também tima e reage como tal diante dos acontecimentos, sendo, algumas vezes, a
receptora da denúncia ou ainda quem flagrou o ato. A confusão dos papéis familiares, a
ruptura dos valores morais, a traição e a identificação, ou não, com a figura feminina da
filha são fatores que influenciam intensamente na reação da genitora e, conseqüentemente,
no discurso e atitudes da criaa, quando submetida aos interrogarios judiciais.
O exemplo do Caso 24 em que uma menina de 06 anos de idade foi vítima do pai,
com abordagens recentes ao período da denúncia, demonstra a intensidade dos sentimentos
vivenciados pela família e o quanto tal fato influenciou no discurso manifesto da criança.
A esposa do agressor flagrou o ato incestuoso e, imediatamente, denunciou às autoridades
policiais, o que culminou no aprisionamento do marido. Além da criança, o casal possui
um filho de 08 anos e, nesse caso, ambas as crianças voltaram-se contra a mãe, inclusive a
tima, culpando-a pelo afastamento do abusador do lar, já que este se mostrava afetivo e
participante em sua função paterna. Por fim, durante o processo de Avaliação Psicológica,
a esposa e os filhos expressaram compaixão pelo acusado, relatando manter regularidade
nas visitas à penitenciária, ocasiões em que a vítima não demonstrava resistências ao
agressor, ao contrário, conversava e segurava em sua mão. Ao despedir-se, a vítima pedia a
bênção ao pai e ,chorando, solicitava à mãe que o tirasse daquele lugar.
As características da narrativa da criança a respeito do atentado sexual dependem
das circunstâncias em que ocorreu o processo abusivo e da representação do agressor na
vida da tima. Em algumas ocasiões, os profissionais que acolhem a denúncia o
surpreendidos pela reação emotiva da criança em relação ao agressor, levando a crer que
suas palavras estão sugestionadas ou que a criança deseja apenas chamar atenção sobre si.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 64
Nestes casos judiciais, embora não devidamente valorizada, a palavra da criança
tem uma real importância, visto que, em sua vivência infantil, utiliza uma linguagem que
traduz as relações estabelecidas com os membros familiares e com seus pares no grupo
social a que pertence. As palavras utilizadas revelam o somente o grau de maturidade
psicológica da criança e a intensidade de sua compreensão da sexualidade humana, como
também a estimulação social que recebe sobre tal temática. A nomeação dada pela criança
aos órgãos genitais e ao ato libidinoso ou sexual expõe as influências que sofre em sua
narrativa, se é espontânea ou se foi constrda por pressão ou indução de um adulto. A
espontaneidade é uma característica típica do discurso infantil; todavia, no decorrer das
diferentes fases do desenvolvimento, a criança incorpora conceitos e representações sociais
que limitam sua expressividade por conta da repressão da educação. Conforme explica
Ajuriaguerra (1983) “há um longo caminho a percorrer antes que a linguagem se torne um
verdadeiro instrumento do pensamento e o meio adequado de comunicação, utilizado de
forma consciente, até chegar a uma completa conceitualização”. Observa-se que são
nesses moldes as exigências dos adultos para que a criança apresente um discurso
verdadeiro, especialmente na esfera judicial, quando o testemunho é solicitado por meio
das palavras.
A falta de credibilidade no relato da criança molestada sexualmente, em geral, e
também no âmbito judicial, é fato incontestável, mormente quando diz respeito ao
abuso sexual praticado na família. Para justificar o fenômeno, costuma-se dizer
que as crianças fantasiam, mentem, são vulneveis a sugestões, o incapazes de
separar a realidade de seus desejos sexuais etc. (DOBKE, 2001, p.37).
A desvalorização efetiva do discurso da criança se materializa quando entra no
âmbito jurídico e, apesar do grande avanço advindo do Estatuto da Criança e do
Adolescente, a prática ainda demonstra a insegurança dos profissionais em renunciar ao
ideário da criança propensa à fantasia e à indução em sua retórica. Quando tima e
testemunha compõem a mesma personagem na lide jurídica, é evidente a dificuldade a ser
enfrentada pelas autoridades judiciais responsáveis pelo caso, principalmente, quando se
trata de uma vítima criança. As falsas acusações aventadas no discurso social e jurídico
têm ampla responsabilidade nos casos de abuso sexual infantil, que é esse o mais forte
argumento utilizado pelo defensor do réu, descrevendo a criança como peça de um jogo de
poderes e condutora de fantasias.
A observação direta do que a criança diz e faz, ensina a compreendê-la, gerando a
possibilidade de reconhecimento das características da fase desenvolvimental em que se
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 65
encontra e as referências do contexto sócio-cultural em que vive. O acolhimento adequado
e cuidadoso de suas palavras e o incentivo para que apresente suas idéias e percepções são
fundamentais para que se sinta segura e apresente um discurso claro, coerente e próprio.
Mediante tal estratégia valoriza-se a palavra da criança, oportunizando-lhe um fluxo de
comunicação com a justiça capaz de garantir seu direito de expressão livre da opressão.
Considerando-se que o discurso infantil é desvalorizado pela vulnerabilidade em ser
contaminado por expressões e conceitos dos adultos, faz-se necessária a diferenciação
entre a crença e o reconhecimento da palavra da criança pelos profissionais que a atendem.
A crença seria de ordem religiosa e cultural, na qual a criança ocuparia um papel
santificado, e por isso não humana e que fala sempre a verdade. Por outro lado, o
reconhecimento levaria em conta sua humanidade, suas fragilidades e a possibilidade de
conduzir à responsabilização do acusado, como também para o acompanhamento da
criança em suas dificuldades (Informação verbal)
4
. Sob tal aspecto, percebe-se que os
sentidos formados no cotidiano podem levar a conceitos diferenciados e que a limitação
entre o senso comum e a atuação profissional podem não estar tão às claras.
No âmbito judiciário, além de toda a complexidade que o fenômeno do abuso
sexual suscita, há que se pensar na responsabilização penal do acusado e na garantia à
criança de proteção e benefícios. Contudo, são evidentes as falhas nas práticas judiciárias
relativas ao acolhimento do testemunho da criança nos crimes contra a infância, que urgem
por mudanças beneficiárias tanto para a vítima como para os profissionais.
As crianças pouco participam das decisões concernentes a sua vida, pois são vistas
como seres incapazes pela lei e pela sociedade, sendo delegado aos pais ou adultos
responsáveis o poder das decisões. Pom esta situação vem se modificando algumas
décadas, mediante a evincia de alguns fatores críticos, dentre eles a percepção de que a
família não oferece a segurança que se imaginava, sendo capaz de cometer uma série de
violências contra suas crianças.
A representação social da infância está evidenciada no processo social e judicial em
que a criança é inscrita, quando rompe o silêncio e traz à tona fatos difíceis de serem
ouvidos. Por força de crenças e teorias, a palavra da criança é desvalorizada tanto pela
família, quanto pelos agentes judiciais no momento do acolhimento da denuncia e o que
4
Palestra proferida pela Drª Marelene Iucksch, psicóloga do Tribunal da Infância de Paris, no 1º Seminário
Internacional sobre Atenção, Proteção e Prevenção a Crianças e Adolescentes Vulneráveis à Violência
Sexual, em 27/06/2007, realizado na cidade de São Paulo.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 66
era difícil, torna-se insuportável para ela, podendo levá-la a desmentir o que havia dito
anteriormente.
2.2 A FRAGILIDADE DO TESTEMUNHO DA CRIANÇA
A necessidade de responsabilização do adulto no abuso sexual é incontestável,
que a fase da infância não instrumentaliza a criança para tal iniciativa sexual e, por outro
lado, o adulto abusador tem discernimento suficiente para entender a gravidade do ato
cometido. No caso da criança apresentar comportamento sexual provocativo, o fato em si
já é um indicador de que sofreu uma possível abordagem sexual anterior.
A incredulidade no discurso da criança, muitas vezes, está relacionada à iia de
sugestionabilidade e com a possibilidade em ser manipulada por terceiros interessados em
utilizá-la para falsas acusações. Nesse caso, a criança poderá incorporar ao seu discurso
uma verdade construída por um adulto com quem tem laços de confiança, apresentando
elementos discursivos que não lhe são próprios.
Nos casos de separação conjugal, em que há a regulamentação de visitas da criança
ao genitor com quem não convive diariamente, pode ocorrer acusação de abordagem
sexual que, imediatamente, inviabilizam a continuidade dos contatos entre pai e filha. A
genitora que detém a guarda da criança recorre judicialmente para que as visitas sejam
suspensas, sendo necessária a intervenção da Psicologia Judiciária na decisão a ser tomada
pelo Magistrado. Há que se atentar para a possibilidade das falsas acusações e da utilização
da criança para a resolução dos conflitos emocionais mal elaborados do casal, que é alvo
de questionamentos indutivos.
Entretanto estudos afirmam que as falsas alegações por parte da criança e também
as mentiras sobre abuso sexual infantil são raras (ALMEIDA, 2003), mas o discurso social
que permeia esta temática em muito contribui para as especulações de que esses
acontecimentos são freqüentes. Devido a sua idade e imaturidade o erro de memória da
criança também é um fator aventado para descredibilização de sua narrativa, mas que pode
ser detectado durante um processo de Avaliação Psicológica.
Contudo a memória da criaa também poderá ser afetada pelas intervenções dos
diversos questionamentos e das reações dos familiares e pessoas próximas, o que, na área
jurídica, é dada maior atenção em função da própria formação dos operadores do Direito.
Nos estudos sobre vitimologia, são aventadas as possibilidades das falsas memórias, que se
baseiam em sugestões e/ou sensações de haver experimentado algo que, na realidade,
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 67
nunca vivenciou, e assim, pode confundir ou equivocar os julgadores, oferecendo com isto
fundamentos para a defesa do criminoso autêntico.
Nos conflitos dos adultos em que uma criança esenvolvida e com manifestações
emocionalmente intensas, inevitavelmente sofrerá influências na real perceão dos fatos,
sofrendo induções intencionais, ou o. A exposição da criança a uma série de
intervenções na família e, posteriormente, de profissionais não pode ser desprezada ao se
aferir sobre a credibilidade de seu testemunho sempre que se procura diferenciar um relato
verdadeiro e um falso.
As possibilidades dessa diferenciação estão nos indicadores apresentados pela
criança-vítima durante o processo de avaliação, tomando-se os cuidados técnicos e
metodológicos para não sugestionar ou induzir o relato. Ainda que a criança apresente
possíveis contradições em seu discurso, há que se considerar sua organização psicológica e
a fase de desenvolvimento em que se encontra, evitando comparações com a fase adulta da
personalidade.
Uma pesquisa realizada por Katheryn Kuehnle, intitulada Assessing allegations of
child sexual abuse (1996) expõe as alegações dos casos de abuso sexual na infância
diferenciando-as das falsas alegações, tomando como base as seguintes considerações
(KUEHNLE,1996 apud VOLNOVICH, 2005):
a) a criança foi tima de abuso e seu relato é crível e exato;
b) a criança foi tima de abuso sexual, mas padece de um ficit cognitivo ou
emocional que impede que se relato seja crível;
c) a criança foi tima de abuso sexual, mas tem medo de manifestá-lo;
d) a criança foi tima de abuso sexual, mas uma pretensa lealdade a impede de
relatar os fatos;
e) a criança não foi vítima de abuso e seu relato é produto de uma interpretação
errada que fez acerca da conduta dos pais;
f) a criança o foi tima de abuso, mas os pais fizeram uma interpretação errada
das condutas da criança que os levaram a considerar a suspeita do mesmo.
Tais citações demonstram que a particularidade da relação estabelecida entre a
criança e o profissional entrevistador esna dúvida que os envolve, a criança em confiar
no profissional e este em acreditar na criança. As posições tomadas por eles,
particularmente, conduzem a interlocução ao sucesso ou ao fracasso, já que a criança pode
nem afirmar nem negar a ocorrência da vitimização.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 68
A retratação da tima é um fato comum nos crimes de abuso sexual infantil que é
justificada por um conjunto de fatores explicitados neste trabalho, tais como, ameaça,
medo de punição, culpa, perda da família, sofrimento dos pais ou o aprisionamento do
abusador. Além dessas causas, há a experiência da exposição de sua intimidade a pessoas
que não pertencem ao seu meio familiar ou íntimo e que, de alguma maneira, passam a
compartilhar e interferir em sua interioridade psíquica.
Historicamente, há muitas teorias a respeito da infância, as quais passam a interferir
nos discursos sociais e profissionais de diferentes áreas. Quando a criança traz a um adulto
uma narrativa capaz de alterar a dinâmica dos relacionamentos, é imediatamente resgatada
a dúvida acerca da veracidade de sua fala, já que a fragilidade es incorporada à
representação social da infância. As pressões para que a criança fale a verdade, alertando-a
sobre a gravidade das conseqüências do que declarou, na maioria das vezes, reprime sua
espontaneidade e segurança em relatar os fatos vividos, sendo este um fator que leva ao
descrédito.
Além da proteção garantida aos adultos enquanto família, na condição de
defensores dos interesses da criança, não podemos de maneira alguma ter a certeza
de que os melhores interesses da criança estejam efetivamente garantidos, partindo
do princípio de que a criança em relação ao adulto é sempre o sujeito passivo e,
nesta condição, sequer é ouvida a respeito de seus interesses (JUNQUEIRA apud
AZEVEDO, 1984, p.171).
A credibilidade no discurso da criança extrapola os limites culturais do país, o que é
observado por Saunders (1988) que faz um estudo comparativo das atitudes dos
profissionais do sistema norte-americano de trabalho social e judiciário diante do abuso
sexual infantil. Ele pesquisou cinco grupos de profissionais entre trabalhadores sociais,
Advogados, Oficiais de Pocia, Defensores Públicos e Juizes sobre a opinião quanto à
credibilidade da vítima, à culpabilidade da tima, à culpabilidade do agressor no crime e
na punição do abuso sexual infantil. As estatísticas apontaram diferenças significativas
entre a opinião de cada profissional, principalmente quanto à credibilidade da tima e à
punição do agressor. Tal fato é corroborado pelo estudo de Christopherson (1983) que
evoca o peso da moralidade nas práticas discursivas concernentes ao abuso sexual infantil
e como os acontecimentos são relatados às autoridades judiciais para a confirmação ou não
do crime.
Nos crimes sexuais, há a necessidade de formar um conjunto probatório para a
responsabilização do transgressor, pois a insuficiência de provas ocasionará a sua
absolvição e a oitiva da criança vítima é um dos recursos judiciais utilizados. Alguns
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 69
Juízes, temendo comprometer os princípios constitucionais da ampla defesa e do direito ao
contradirio no processo judicial, não renunciam à oitiva da tima-criança, avaliando
como insatisfatório o recurso do Laudo Psicológico. Daí a importância da compreensão
dos aspectos da infância no tocante à sua diferenciação primordial dos adultos, suas
particularidades e qual a real possibilidade de sugestionabilidade. É importante destacar os
elementos intimidadores que influenciam os depoimentos judiciais das crianças, desde a
imponência contida nas dependências dos Fóruns das Comarcas até os rituais judicos
utilizados, com a peculiaridade da linguagem e da formalidade do Direito.
Dentro desse contexto, é comum que, na sala de audiências, as crianças mostrem-se
retraídas, pouco receptivas e com discurso lacônico, bem como nas Delegacias de Polícia
se mostrem assustadas e pouco elucidativas diante da intensidade dos interrogatórios e da
presença de rias pessoas. A criança tem direito à participação nos assuntos relativos à
sua vida e a tendência dos adultos em desconsiderar tal fato, dificulta ainda mais a maneira
como se preparam para ouvi-la. Aceitar que a criança possui percepção e opinião sobre as
pessoas e os acontecimentos de sua vida é o primeiro passo para compreender sua
problemática.
A utilização de uma linguagem adequada à faixa etária da criança e a aceitação dos
vícios de linguagem que esta possa apresentar em decorrência do meio que habita, o
aspectos que contribuem para a valorização de seu discurso, uma vez que encontra
segurança e respeito naquele que a escuta. Quando se questiona a validade do testemunho
de uma criança no contexto judiciário, são fundamentais as reflexões acerca da maneira
como as crianças são recebidas nas diferentes instituições pelas quais passaram
anteriormente, quando quebram o segredo da clandestinidade de uma relação abusiva e
criam coragem para libertar-se do jugo daquele que as aprisiona.
Portanto, a fragilidade está relacionada aos modos de acolhimento da denúncia do
abuso sexual, e não propriamente ao depoimento da criança, a qual anteriormente ao
enfrentamento dos procedimentos judiciais depara-se com a surpreendente reação de seus
familiares e inicia um calvário de interrogarios.
A distião entre revelão e denúncia é elucidativa para a compreensão das
diferentes intervenções sofridas pela criança desde o momento em que rompe com a
clandestinidade e torna público seu sofrimento, o que se demonstrado nos próximos
seguimentos.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 70
2.2.1 A Revelação: o enfrentamento da família
A dificuldade da criança em revelar as sevícias sexuais de que é vítima também está
relacionada às representações da sexualidade que aprendeu em sua vida cotidiana, podendo
relacionar o sexo ao que é sujo e proibido. O sentimento de estar enredada em uma
situação amoral e o temor dos castigos que poderá sofrer com a revelação, gera uma auto-
imagem negativa e um desconforto emocional constantes.
A culpa remete a uma instância moral que legisla sobre o bem e o mal, sobre os
valores dos pais e da sociedade da qual faz parte, portanto quanto mais rígidas as regras
familiares e os princípios educacionais, maior será a intensidade dos danos psíquicos e da
resistência da criança-vítima em confiar suas queixas a alguém.
Os adultos que são escolhidos pela criança ou que flagraram o abuso sexual, na
maioria das vezes, preocupados com a repercussão de tal revelação e diante da
irreversibilidade da situação provocada após a exposição familiar e social, não
compreendem o comportamento da criança e não se atêm em preservá-la de
constrangimentos ou culpas. A dúvida e/ou a acusação dos adultos sobre a criança, com a
alegação de que está mentindo, é outro fator que impede a revelação e pode levá-la a se
retratar posteriormente, que se confunde em entender o que é pior, se a clandestinidade
do que vivia ou as acusações e incredulidades a que está sendo submetida após a revelação.
A criança percebe-se e exposta a uma confusão de conceitos e valores, levando-a a
estabelecer relações e vínculos inseguros.
Na maioria das vezes, o segredo fez parte da vida da criaa por um longo período,
intervindo em seu funcionamento psíquico e gerando mecanismos mentais para suportar o
sofrimento. Por esse motivo, o momento da revelação e a maneira como é recebida
determinarão as conseqüências psicoemocionais que a criança levará consigo por toda a
vida.
Nas cidades pequenas, onde os fatos, verdadeiros ou falsos são comentados por
diferentes setores da sociedade, a criança que é vítima de abuso sexual, bem como sua
família, sofre assédios e constrangimentos intoleráveis, que podem suscitar pressões para a
criança desmentir, ou ela própria sinta tal necessidade para se preservar. Os familiares se
vêm às voltas com uma problemática que prefeririam ignorar e que gostariam que fosse
fruto da atividade imaginativa da criança. Assim, optam por omitir-se de buscar os
recursos judiciais para proteger a criança e a si mesmos, vivenciando contradições que
modificam indelevelmente a dinâmica familiar. O ato de revelar o abuso sexual é
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 71
vivenciado tanto no aspecto individual, quanto social, desvelando os limites familiares e
materializando os pecados, na significação do que é religioso e moral.
As queses de gênero relacionadas à educação das crianças são expostas frente às
reações dos familiares à revelação do abuso sexual. Por mais sutil que sejam as
manifestações dos pais, uma clara tendência ao temor de que a criança apresente algum
desvio sexual, no sentido de haver gostado dos atos libidinosos e, assim, possa desenvolver
conduta inapropriada na vida adulta. Em relação à menina, os temores são de que apresente
uma sexualidade aguçada e que se interesse por uma vida sexual ativa e não contida como
socialmente se espera dela, e quanto ao menino, há o temor que desenvolva atitudes
efeminadas e que desperte para o homossexualismo.
Muitas das reações dos pais são agressivas, descarregando sobre a criança a
angústia vivenciada diante da violação da infância de seu filho e da frustração das
expectativas geradas pelo despertar sexual deste, seja menino ou menina. A impulsividade
de um ato agressivo dos pais, quando tomam conhecimento do ocorrido, demonstra a
responsabilidade que depositam na criança sobre a permissão para o ato e em uma
proporção maior para os casos em que o agressor é o padrasto da vítima-menina. Assim, as
contradições vivenciadas pela criança no momento da revelação e a inusitada reação dos
pais são particularidades importantes a serem levadas em conta, quando são tomadas as
declarações da criança, posteriormente, no âmbito policial e judicial.
Os fragmentos do relato de uma mãe, no Caso 6, autenticam o que foi dito acima, a
qual ao flagrar o companheiro praticando atos libidinosos com sua filha de 05 anos de
idade, reagiu, primeiramente, agredindo ao abusador e, após, desferiu alguns tapas na
criança. Mostrou-se arrependida, posteriormente, ao analisar sua própria conduta, pois sua
atitude impulsiva e reacional foi de culpar também a vítima, já que uma construção
histórica que referencia a figura feminina como provocadora dos impulsos sexuais do
homem.
Percebe-se que a maneira como o fato é tratado na família e as circunstâncias em
que ocorreu a revelação vão determinar as reações da criança e sua predisposição a falar
sobre o assunto tanto no inquérito policial, quanto no processo judicial. Em contrapartida,
também a preparação e os modos de interrogatórios são determinantes para que a criança
sinta-se segura em seu depoimento e possa validar seu testemunho perante a autoridade dos
adultos. A diferenciação entre a revelação e a denúncia é necessária, uma vez que são dois
processos distintos, mas nenhum menos doloroso para a vítima.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 72
A revelação torna-se pública a partir do momento que ultrapassa as barreiras da
família e exterioriza-se para o início do processo de responsabilização, ou seja,
quando é levada ao conhecimento de alguém capaz de iniciar o processo de
responsabilização (Professora, Diretora de escola, membros do Conselho Tutelar,
Policiais Militares, Delegado de Polícia etc.) (ROCHA, 2006, p.35).
Portanto, após a revelação um novo processo a ser enfrentado, o que exige
daquele que recebeu a queixa o reconhecimento da palavra da criança, que estará
desempenhando um importante papel, não somente diante dos olhos da vítima que o elegeu
como denunciante, mas também pelo temor em comprometer-se diante do seu grupo social
e das autoridades judiciais.
2.2.2 A Denúncia: o enfrentamento dos procedimentos judiciais
A suspeita de fabulação e a busca de contradições sempre estão presentes nos
processos e inquéritos onde a criança figura como testemunha de um ato ilícito. Quando
ela é ao mesmo tempo testemunha e vítima, onde somente o seu depoimento é que
incrimina o transgressor, tal suspeita se intensifica. O depoimento da criança denuncia o
abuso sexual e provoca, ou não, os procedimentos judiciais e a decorrente punição do
agressor, sem desconsiderar a necessidade da prova material no âmbito jurídico. Na fala da
criança, serão encontrados elementos para a busca da verdade que nem todos os
profissionais e demais interlocutores privilegiam.
Após a revelação à família ou a pessoa em quem confia e, se prestada queixa às
autoridades competentes sobre a ocorrência, a criança terá que repetir mais de uma vez sua
versão dos fatos. Além da interferência familiar, a qualidade e a validade de seu
testemunho dependerão, em grande parte, de como foi realizada a tomada de suas
declarações e a quantos interlocutores repetiu sua versão. É longo o caminho a ser
percorrido até o depoimento em juízo e muitas as intervenções profissionais, o que
certamente incorporará elementos no discurso da criança decorrentes dos questionamentos
e estímulos que recebeu.
Vários estudos sobre a memória da criança justificam a necessidade de evitar os
muitos interrogatórios a que é submetida, o que é explanado por Van Gijseghem apud
Gabel (1992) nos seguintes tópicos:
-a lembrança diminui progressivamente com o tempo;
-a memória e a lembrança são contaminadas pela informação obtida depois do
acontecimento, efeito que pode ser induzido por perguntas sugestivas;
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 73
-a criança tem uma percepção do tempo diferente da que tem o adulto. Ela não é
seqüencial, mas organizada em torno de detalhes significativos associados a
acontecimentos que a tocam de perto;
-a memória de um fato pontual diminui progressivamente em prol de um “enredo”.
Por ocasião de novos interrogarios, a criaa usará esse enredo para encontrar os
elementos de suas respostas, em um processo que vai se intensificar com o tempo. Daí
pode resultar, então, uma impressão de inconsistência e de dúvida para quem estiver
fazendo a pesquisa.
Durante o processo abusivo, a criança é levada a se calar e manter o segredo e, após
um trabalho interior intenso, revela a alguém de sua confiança, sendo então incentivada a
falar aos familiares, ao Conselho Tutelar, ao Delegado, ao Juiz, ao Psicólogo, ao Assistente
Social, ao Médico e a outras pessoas de seu convívio pessoal. A contradição das situações
vivenciadas a desestabiliza emocionalmente, já que muda de posição abruptamente. Além
disso, desde a revelação até a denúncia formal, passando pelas fases investigativa e
processual um longo percurso que, às vezes, pode ultrapassar dois anos e a criança pode
ser novamente chamada a falar sobre o atentado, por diferentes circunstâncias no decorrer
do processo penal. A precisão de detalhes e a intensidade com que o abuso sexual atingiu a
organização psíquica da criança, possivelmente foram alteradas pelo tempo decorrido,
pelas relações estabelecidas posteriormente e pelos fatores já descritos acima.
Ao ingressar no mundo dos interrogatórios, a criança se forçada a uma narração
de si mesma frente a outras figuras de autoridade e à prática confessional.
o é somente porque aquele que ouve tem o poder de perdoar, de consolar e de
dirigir que é necessário confessar. É que o trabalho da verdade a ser produzida,
caso se queira validá-lo cientificamente, deve passar por esta relação. A verdade
não está unicamente no sujeito, que a revelaria pronta e acabada ao confes-la.
Ela se constitui em dupla tarefa: presente, pom incompleta e cega em relação a si
própria, naquele que fala, podendo completar-se naquele que a recolhe.
(FOUCAULT, 1988, p.65).
algumas décadas, a respeitabilidade de um adulto sendo questionada pela
palavra de uma criança soaria como um absurdo e seria abafada por diferentes vozes,
evocando justificativas relativas à fantasia e fabulação típica da infância. Porém reações
crescentes da sociedade ocidental alertam para a violência adulta contra crianças e
reivindicam a credibilidade de sua palavra.
O secular discurso sobre o sexo ou a sexualidade traz consigo proibições que quase
sempre estão ligados à moral ou às classificações científicas fundamentadas como
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 74
verdadeiras. A sexualidade, tema destinado aos adultos e ocultado das crianças, ao
ingressar no contexto judiciário é transcrita detalhadamente, exigindo o “dizer verdadeiro
da criança, quando tima do abuso sexual de um adulto. A vontade de verdade do Poder
Judiciário e suas práticas ultrapassam os cuidados e os direitos da infância, observando,
anotando, questionando relatando, provocando na criança culpa e insegurança.
A função do “dizer verdadeiro” não tem que tomar a forma da lei, e seria em vão
acreditar que ela conviva com plenos direitos, nos jogos espontâneos da
comunicação. A tarefa do dizer verdadeiro é um trabalho infinito: respeitá-la em
sua complexidade é uma obrigação da qual nenhum poder pode se furtar. Ficando
sujeito a impor o silêncio da servidão (FOUCAULT apud ESCOBAR, 1984, p.85).
Na busca pela verdade, função precípua da justiça, não se deve descuidar de um
olhar especial para a criança, contextualizando-a em sua infância. A verdade factual, aquilo
que a criança conta como aconteceu e a verdade subjetiva, aquela que não está
materializada em palavras, ambas representam as faces causadoras da dúvida angustiante
dos profissionais que atuam nos crimes sexuais. A instituição judiciária busca a verdade
jurídica, aquela que é submetida às regras de um processo e que necessita de indícios e
provas, sem eximir-se de respeitar os direitos da vítima e do acusado. Esta difícil trajetória
será a seguir exposta.
2.3 CAMINHOS DA INTERVENÇÃO: O DESCONFORTO DA DÚVIDA
Quando em contato com o tema da violência contra a infância, principalmente nas
situações em que é evocada a possibilidade de abuso sexual, o profissional vivencia um
misto de inquietude e perplexidade que suscita fantasias e temores há muito constituídos na
própria vivência infantil deste. Um exemplo disto é a lenda do homem do sacoutilizada
por diversas gerações de pais para atemorizar as crianças contra desconhecidos que de
alguma forma poderiam causar-lhes mal, um significado culturalmente apreendido pelo
senso comum, mas que passa, sutilmente, em algum momento a fazer parte do pensamento
do indivíduo adulto. O profissional, em sua prática no contexto judiciário, seja Psilogo,
Delegado, Promotor ou Juiz, ao deparar-se com o suposto agressor da criança, poderá
buscar em seu conjunto de representações, o dito homem do saco, que permeou por tantos
anos seu imaginário infantil, que com o ato delituoso roubou a criança de sua trajetória
de desenvolvimento. Tal experiência poderá provocar nos profissionais sentimentos que
influenciarão em sua análise e decisão, pois o adulto possui representações de sua infância
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 75
que produzem os sentidos em seu cotidiano, nos diferentes tipos de relações que
estabelece, sejam sociais, profissionais ou pessoais.
O exemplo acima é simplista e recheado de simbologia, mas traduz na prática como
os valores, os conceitos e os juízos fazem parte da vida psíquica dos indivíduos e
direcionam suas ações. Em contrapartida, da mesma forma ocorre quando é a criança a ser
analisada, traz consigo as representações de fragilidade, vulnerabilidade e fantasia,
podendo gerar descrédito quanto ao conteúdo de seu discurso e, principalmente quando
este está relacionado à sexualidade. Porém, conforme elucida Gabel (1992), quando
conseguimos aceitar como realidade e representar uma relação sexual entre uma criança e
um adulto, então podemos oferecer à criança a possibilidade de falar conosco.
Os aspectos subjetivos que envolvem a atuação pericial e profissional nos quais os
conhecimentos especializados o evocados para elucidar a dúvida a respeito dos fatos
relatados exigem a aceitão de diferentes ideologias e tendências científicas. Nas práticas
jurídicas e psicológicas com crianças que sofreram atentado sexual, muitas vezes, o há
outros registros da vivência pessoal da tima, sendo a sua narrativa fundamental para a
constituição da prova.
Todo profissional está envolvido, consciente ou inconscientemente, pelo discurso
dos grupos a que pertence (implicação sintagmática), pela instituição em que
transita (implicação paradigmática) e pelos ideais da sociedade onde vive
(implicação simbólica). (VOLNOVICH, 2005,p.46).
As fontes de notificação do abuso sexual infantil iniciam-se pela revelação da
criança à família, à vizinhança ou à escola e, passado o embaraço que envolve os adultos
escolhidos e a reflexão destes sobre a atitude a ser tomada, a criança é encaminhada à
Delegacia de Pocia e/ou ao Conselho Tutelar. Na Delegacia, é feito o Boletim de
Ocorrência e tomado o depoimento da criança, na presença de seus responsáveis legais e
um Conselheiro Tutelar, sendo iniciada a investigação do caso e o posterior
encaminhamento ao Poder Judiciário.
Habitualmente, os casos são encaminhados à Delegacia de Defesa da Mulher e
quando as evidências apontam para a veracidade do abuso sexual, este órgão encaminha a
tima ao Instituto Médico Legal (IML) para o Exame de Corpo de Delito, onde é realizada
a avaliação ginecológica da menina e anal do menino. Tal exame quase sempre corrobora
para a incredulidade na palavra da criança, que os atos libidinosos não deixam marcas
físicas. Outro encaminhamento concomitante e existente em alguns municípios é realizado
aos programas de atendimento às timas, que pertencem à Secretaria de Saúde e têm o
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 76
objetivo de orientar para a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis. Quando há
o estupro ou evidências de que o agressor é portador de Aids, a tima recebe um coquetel
de medicamentos em até 72 horas, já que, segundo orientações desses programas, durante
esse período, é possível impedir o desenvolvimento do rus HIV no organismo. Se
realmente houve o contágio, dentro desse período é possível eliminar o rus. Portanto, a
criança-vítima é submetida a algumas intervenções no decorrer do Inquérito Policial
bastante incomuns ao seu cotidiano, que a assustam e surpreendem pelo grau de
informações que recebe e pela percepção da gravidade dos atos a que foi submetida.
Os procedimentos que envolvem a investigação do abuso sexual infantil envolvem
técnicos e profissionais que atuam direta e indiretamente com a criança, formando um
conjunto interdisciplinar, mas que, não necessariamente, tenham suas atividades vinculadas
e equiparadas.
2.3.1 A Tomada de Declarações da Criança: as diferentes fases processuais
2.3.1.1 Conselho Tutelar
Os procedimentos legais nos casos de abuso sexual infantil iniciam-se na Delegacia
de Pocia, podendo a queixa chegar diretamente a este óro ou via Conselho Tutelar.
Quando a denúncia é dirigida ao Conselho Tutelar, a criança é interrogada e incentivada a
descrever as circunstâncias em que ocorreu o atentado para o Conselheiro de plantão, que
registra a ocorrência por escrito e encaminha à Delegacia de Polícia. O artigo 131 do
Estatuto da Criança e do Adolescente versa que o Conselho Tutelar é “órgão permanente e
autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criaa e do adolescente, definidos nesta Lei”.
As pessoas que comem o Conselho Tutelar pertencem à sociedade civil e o,
necessariamente, têm envolvimento anterior com os assuntos afetos à infância. Em
diversas situações, o primeiro contato da criança com a formalidade dos questionamentos
será com os Conselheiros Tutelares que, embora bem intencionados, comumente, não
possuem capacitação adequada para as situações delicadas que envolvem o abuso sexual
infantil. Assim, além dos familiares, inicia-se no Conselho Tutelar a linha de intervenções
que antecede o processo judicial.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 77
2.3.1.2 Delegacia de Polícia
Na Delegacia de Polícia, a criança é submetida a novo interrogatório, frente ao
Delegado e na presença de seu responsável legal. Assim, é iniciado o processo
investigativo chamado de Inquérito Policial, no qual são ouvidas, além da criança as
demais pessoas envolvidas na denúncia. O Delegado de Pocia é um funcionário blico
concursado e formado em curso superior de Direito e tem a função de presidir ao Inquérito
Policial, além de coordenar as demais ações da Delegacia que dirige. Pode agir em
qualquer espécie de crime, havendo tamm especializações dentro da mesma Delegacia,
sendo que os casos de abuso sexual infantil são habitualmente encaminhados à Delegacia
da Mulher.
O Inquérito Policial contém a denúncia reduzida a termo, isto é, na forma escrita no
qual estão inseridas as declarações e demais dados da investigação, fornecendo elementos
para o início da ação penal. O Inquérito busca elucidar a prática ilícita e revelar sua autoria,
sendo que, para isso, possui liberdade de ação prevista na lei, preconizando reunir o maior
número de provas possíveis para desvendar o crime. Constam do Inquérito Policial as
declarações da tima, do acusado, das testemunhas e o Exame de Corpo de Delito com o
decorrente Laudo dico. Após a conclusão do Inquérito, o Delegado de Polícia finaliza
com um relatório e o envia ao Fórum.
2.3.1.3 Ministério Público
O processo judicial tem início com o recebimento da denúncia pelo Juiz de Direito,
sendo esse um procedimento apenas formal, pois sem tomar qualquer medida legal
imediatamente este encaminha a denúncia ao Promotor de Justiça. Com base nas
informações policiais e/ou outras bases de informações que achar suficientes para a
admissão da acusação, o Promotor de Justiça poderá oferecer a denúncia ao Juiz, o qual, de
posse de tais dados, intima o indiciado a comparecer em juízo em data determinada, para
ser interrogado sobre o crime de que é acusado. Mas também, o Promotor de Justiça
poderá arquivar o Inquérito Policial ou devolvê-lo à Delegacia de Pocia caso necessite de
mais informações para formalizar a denúncia. Portanto, o Inquérito Policial é um
procedimento anterior ao processo judicial e requer sigilo.
Conforme explicita Romualdo (2002), embora o Inquérito Policial seja incorporado
ao processo judicial, as provas e declarações colhidas serão renovadas no decorrer da
instrução criminal, em obediência ao princípio constitucional do contraditório. Portanto, as
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 78
testemunhas e a vítima serão novamente ouvidas, mas em um momento diferente e por
outros interlocutores, nas depenncias do Fórum. As testemunhas são arroladas pelo
Promotor de Justiça e pelo defensor do réu.
A tomada de depoimentos em contextos institucionais diferenciados causa uma
multiplicação de textos e efeitos de sentidos no processo. A dupla tomada de
depoimentos na delegacia e no judiciário traz à tona entre outras queses, as
interferências dos agentes da justiça nos depoimentos e as diferenças lingüístico-
discursivas dos depoimentos, causadas pelos dois contextos enunciativos.
(ROMUALDO, 2002, p.58).
O Juiz de Direito recebe a representação do Ministério Público contra o réu,
contendo o Inquérito Policial com todas as informações necessárias para o andamento do
processo crime, objetivando julgar e decidir se há, ou não, a inculpação do réu. O papel da
criança, nesse processo, é de tima e testemunha.
2.3.1.4 Poder Judiciário
A criança será ouvida em audiência pelo Juiz, o qual lhe fará perguntas sobre o
atentado sexual, também estando presente na sala de audncias o acusado, seu Advogado,
o Promotor de Justiça e os Escreventes, sendo que, habitualmente, o acusado é retirado da
sala durante a tomada de declarações da criança. No caso do Juiz ouvir a criança sozinha
em seu gabinete, poderá ocorrer a nulidade da oitiva como prova que compõe o processo
judicial.
O Juiz de Direito e o Promotor de Justiça também são funciorios públicos
concursados, formados em curso superior de Direito. O Juiz de Direito pertence ao quadro
de funcionários do Poder Judiciário e tem a função principal de julgar os conflitos judiciais
por interdio do processo, devendo mostrar-se imparcial com ambas as partes, réu e
tima. Durante a tramitação do processo o Juiz deverá assegurar às partes a igualdade de
tratamento, sob pena de haver nulidade de todos os atos praticados. Por este motivo, a
necessidade da severidade nos procedimentos judiciais no que concerne aos recursos e a
aplicabilidade da lei.
Através do Juiz, a criança é inquirida também pelo Promotor de Justiça que é o
representante do Ministério Público e tem a função de fiscalizar a lei, velando pelo perfeito
cumprimento das disposições legais. Além do Promotor, a vítima é inquirida pelo Defensor
do réu, tamm através do Juiz, o qual julga se as perguntas são pertinentes, ou não. A
defesa do réu é feita por interdio do Advogado, que rebaterá as acusações em audiência
e por meio de documento escrito, que é a petição dirigida ao Juiz.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 79
O sistema para a tomada de declarações do ofendido, então, é o mesmo utilizado
para a inquirição das testemunhas, o chamado sistema presidencial, segundo o qual
cabe ao juiz que preside o ato, exclusivamente, fazer perguntas diretas às
testemunhas ou vítimas. As perguntas das partes são feitas por intermédio do juiz,
que tem o poder-dever de censu-las quando impertinentes (DOBKE, 2001, p.
48).
Embora a criança não tenha que responder às perguntas que o juiz julgue
impertinentes está presente quando da formulação das mesmas, o que interfere no
direcionamento de seu discurso. Não há procedimentos ou normas específicas para a
tomada de declarações da criança-vítima, sendo as mesmas utilizadas na inquirição de
adultos, exigindo tolerância e disciplina da criança que é ouvida.
No entanto, o Promotor pode requerer e o Juiz determinar a realização de Avaliação
Psicológica da vítima, dispensando sua oitiva e preservando-a de constrangimentos que
poderão revitimizá-la.
2.3.1.5 A Psicologia Judiciária e o Abuso Sexual Infantil
Além das provas testemunhais podem ser oferecidas outras provas, como por
exemplo, a Avaliação Psicológica da tima que, então, será submetida à entrevista no
Fórum. A fase do processo judicial em que a Psicologia i atuar em muito dependerá da
dinâmica de atuação de cada Juiz, podendo ocorrer a Avaliação antes ou depois da
audiência, ou ainda, nem ocorrer.
Se o Estatuto da Criança e do Adolescente entrou em vigor com o objetivo de
modificar a situação cio-jurídica da infância e da juventude brasileiras e dentro desta
proposta se deu à inserção da Psicologia em um novo campo de trabalho, como então
participar desta mudança sem sujeitar a criança? A Psicologia, no contexto judiciário, é
solicitada a revelar as virtualidades dos indivíduos, onde a prova material não alcança,
estabelecendo, assim, relações entre o homem e a verdade que devem ser interrogadas. As
complexas demandas diárias exigem respostas sobre a criança e suas subjetividades,
gerando novos tipos de saber sobre a infância, a qual tem seus direitos estabelecidos e
impostos pela lei. Mas que saber? Como é constituído? É um modo de objetivação da
criança em saber?
Esta é uma crítica necessária, quando se trabalha no Poder Judiciário, onde as
relações de poder estão às claras e a conduta do outro é analisada pelo interdito e pela lei.
Como bem definiu Foucault (2004): “trabalhar é conseguir pensar algo que não seja o que
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 80
se pensava antes” e assim, reinterrogar as evidências e o saber de vigilância
5
. Esse deve ser
o papel da Psicologia Judiciária, a qual se integra no campo do Direito, sugerindo
transformações nas formas e procedimentos jurídicos.
Com a função de contextualizar e subsidiar situações que auxiliem o Juiz durante o
processo judicial e na sentença final, a Psicologia é chamada a participar dos
procedimentos judiciais que buscam a produção da verdade relacionada à infância e à
juventude brasileiras. Não se pode dissociar a verdade do estudo dos processos de sua
produção, como por exemplo, o inquérito e o exame, sendo a verdade não um objeto, mas
uma forma, uma regra de procedimento (EWALD, 2000).
Na rotina da prática profissional, ao tomar conhecimento do abuso sexual através
dos autos processuais, há a constante necessidade da preparação para a entrevista
psicológica com a criança, com uma leitura minuciosa dos detalhes das declarações
contidas nos autos processuais. Um roteiro de intervenção eficaz (Apêndice A) e, ao
mesmo tempo não constrangedor para a tima é necessário quando se busca colocar a
técnica acima do senso comum. Muitas vezes, os fatos descritos causam angústia,
compaixão e impotência no profissional, o que interfere em sua forma de atuação, mas
como bem definem Mackinnon e Michels (1981), a entrevista é mais arte do que ciência,
habilidade que pode ser adquirida mas nunca ensinada. Isto talvez seja exato; no entanto,
muitas coisas poderão ser aprendidas para aumentar a habilidade de entrevistar”. Assim, os
cuidados com a maneira de formular as perguntas e de conduzir a entrevista psicológica
devem ser redobrados.
O conteúdo expresso na entrevista representa mais do que os significados do
vocabulário da vítima; referem-se tanto à informação concreta, quanto às próprias
intervenções do profissional e a comunicação não verbal que se estabelece entre eles.
A criança vítima de abuso sexual, na maioria dos casos, viveu por um longo
período o medo de desvendar seu segredo e, quando o faz, enfrenta incessantes
interrogarios, que implicitamente demonstram a vida dos interlocutores em seu
discurso. No momento da entrevista psicológica no Fórum, a criança percorreu todo o
caminho das intervenções, sendo necessária a desconstrução do discurso contaminado
pelas palavras e pelos conceitos que incorporou.
5
O saber de vigilância é aquele “organizado em torno de uma norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua
existência. Esta é a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar às grandes ciências de observação
como no caso do inquérito, mas ao que chamamos de ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, etc.”
(FOUCAULT, 2001).
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 81
A criança submetida à perícia, por ordem do juiz, é de fato reconhecida como
sujeito de direito (à reparação), e a perícia vai firmar sua necessidade, contanto que
ela lhe direito à palavra sobre sua vitimização, em detrimento do silêncio dos
adultos. Ligando o direito à defesa dos interesses da criança à sua posição de
sujeito (no processo judicial), a perícia permite engajar um trabalho sobre a não-
periculosidade para o adulto de uma palavra da criança que faz existir seu lugar de
sujeito (psicológico) e ao mesmo tempo seu lugar de sujeito de direito (GABEL,
1992, p.128).
Iniciar a entrevista com temas triviais e pertencentes ao meio sócio-cultural da
criança é facilitador para o alívio da ansiedade e para predispô-la a responder ou descrever
o que vivenciou, gerando assim, um clima de segurança e receptividade. Os brinquedos e
os jogos compõem a hora lúdica da entrevista, onde a criança encontra espaço para projetar
suas idéias e percepções da realidade que vivencia, como tamm traz refencias sobre o
conhecimento que possui a respeito da sexualidade e suas relações com os adultos.
Na entrevista psicológica, as crianças costumam ficar mais à vontade, em virtude da
privacidade oferecida pela sala de atendimento, em que estão apenas a psicóloga e a
tima, com brinquedos dos quais pode dispor livremente. Por meio de brincadeiras e
desenhos, além do ambiente acolhedor, a criança encontra melhor receptividade se
comparada à formalidade da audiência.
Não permitir interrupções; entrevistar a criança individualmente; explicar o motivo
da entrevista e demonstrar que acredita em sua palavra são fatores fundamentais para que a
entrevista alcance os objetivos propostos. Com a prática diária no decorrer dos anos de
atuação, o Psilogo Judiciário consegue desenvolver habilidade para lidar com a criança
no momento do depoimento, sendo os casos de fabulação ou mentira facilmente
identificados mediante a análise aprofundada do discurso da tima e de seu contexto
familiar. A criança, quando incentivada a descrever o ato libidinoso, revela os indícios de
sofrimento e constrangimento a que foi submetida por um adulto com alterações notáveis
em seu discurso, em suas atitudes e em suas reações durante a entrevista.
A entrevista psicológica não se propõe a uma ação terapêutica, que é breve e
direcionada às questões que serão discutidas no processo judicial, principalmente aquela
referente à credibilidade de seu discurso. Compreender as relações que a criança
estabeleceu com os adultos com quem convive, em que circunstância ocorreu o abuso
sexual e sua posterior revelação são elementos importantes para a análise psicodinâmica do
caso e poderá revelar a evolução da criança desde o processo abusivo até o processo
judicial.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 82
Ainda que tenha caráter investigativo, a entrevista psicológica promove o diálogo
entre a vítima, a família e o contexto judiciário, evocando o direito da criança ser ouvida e
respeitada em suas peculiaridades mediante a credibilidade de seu discurso.Na maior parte
dos casos de abuso sexual, a criança precisa relatar sua história imeras vezes para
diferentes interlocutores, antes de ser ouvida em juízo e também na entrevista psicológica.
O longo tempo decorrido entre os fatos e a entrevista psicológica no Fórum é mais um
entrave para a qualidade de seu testemunho, já que um grande lapso de tempo desde a
revelação inicial até o andamento do processo judicial.
Além das dificuldades relacionadas à memória, a criança precisa relembrar detalhes
que lhe custou esquecer e que demandou tempo para a elaboração mental e emocional,
sendo exposta a uma situação de revitimização. A entrevista psicológica, se realizada com
procedimentos adequados e cuidados que propiciem à criança conforto e alívio para a
ansiedade, cumpri com sua função sem prejudicá-la emocionalmente. Portanto, a
exposição da criança às diferentes formas de atuação e de interrogatórios e a maneira como
cada interlocutor contribui com suas próprias representações sociais na construção do
discurso dessa criança, constitui uma verdade com diversas narrativas e significações.
A linguagem da criança e sua expressividade quanto à apresentação de um discurso
espontâneo ou construído, como também as contradições, as negações ou as retratões
serão analisadas, particularmente no relato das abordagens sexuais. Todavia, nem sempre a
expressão verbal será suficiente, ou pela precariedade da aquisição e elaboração da
linguagem ou pela negativa da criança em se manifestar verbalmente, exigindo do
profissional uma habilidade com outras vias de comunicação, como o desenho e o
brinquedo, propiciando à tima expressar-se através da atividade lúdica, evocando o
caráter simbólico de suas experiências e percepções.
Observando a brincadeira da criança com as teorias oferecidas pela Psicologia e
utilizando técnicas para reduzir sua inibição, é possível criar condições para que ela
manifeste suas fantasias e percepções, revelando as experiências vividas e externalizando
suas atitudes e reações. A pequena casinha com modos, móveis e bonecos apresentados
à criança durante a entrevista permitem que represente várias pessoas, como o pai, a mãe,
os iros. Segundo Melanie Klein (1996), através dos brinquedos e atos de desenhar e
construir, a criança consegue representar seu material inconsciente mais reprimido e suas
tendências de juízo.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 83
Durante a entrevista psicológica, há a possibilidade de se constatar a vida de
fantasia da criança, o seu conhecimento sobre a sexualidade, a representação que faz da
família, do agressor e de si mesma. A organização psicológica que expressa nos desenhos e
brincadeiras no momento da entrevista mostra sua interioridade e tal possibilidade a
aproxima de seu próprio mundo infantil.
2.3.2 A Produção da Verdade: a sentença final
A busca da verdade nos casos de abuso sexual infantil, tantas vezes focada no
discurso da criança e nas contradições típicas da infância, também poderá ser encontrada
no conjunto de práticas discursivas de seus interlocutores, incorporada no decorrer do
processo judicial. No cotidiano das práticas judiciárias, quando se fala em busca ou
pesquisa da verdade, seja nos processos, nas audiências ou nos discursos, é como se o
sujeito em si trouxesse com ele enigmas pessoais a serem decifrados, como se o contexto
judiciário e a sociedade fossem neutros na produção da verdade.
Deve-se considerar que o conteúdo das entrevistas realizadas no contexto da justa
fornece informações concretas proporcionadas tanto pela tima, quanto pelo interlocutor,
seja este profissional de qualquer área. Portanto, não apenas o que é dito verbalmente
aponta caminhos para esclarecer as dúvidas ou as suspeitas, mas também o comportamento
não verbalizado e o estilo da linguagem utilizada. A qualidade do relacionamento
estabelecido entre a tima e o interlocutor durante as entrevistas é fundamental para uma
comunicação com amplitude e interação.
O processo da entrevista está implicitamente ligado às atitudes e às reações da
tima, o que exige do interlocutor uma postura flexível e confiante. Porém algumas vezes,
a narrativa da tima se altera durante a entrevista por motivos emocionais pessoais ou pela
reação apresentada pelo interlocutor, mudando os rumos do interrogatório ou da análise do
caso e nem sempre ficará claro o motivo de tais modificações.
Dessa forma, a capacitação do profissional para a entrevista de crianças timas de
abuso sexual, seja na forma de interrogatório, de tomada de declarações ou de perícia, é
essencial para o deslinde judicial do caso, já que o conteúdo da entrevista alude algo
mais do que apenas o vocabulário da vítima. Grande parte dos profissionais envolvidos nos
processos de crimes sexuais de timas crianças não recebe capacitação específica para
realizar os procedimentos necessários, sendotido o despreparo para ouvi-las.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 84
O Delegado de Pocia, ao apresentar um relatório de Inquérito Policial ao Poder
Judiciário, compõe uma narrativa baseada em diferentes informações investigativas e
também nas declarações da vítima-criança. Tal relatório, recebido pelo Promotor de Justiça
passa a incorporar o discurso deste e junto a outras informações, concilia sua manifestação
enviada ao Juiz de Direito que, por sua vez, registra todos os dados colhidos até então e
reproduz alguns dos procedimentos já desenvolvidos, como por exemplo, a tomada de
declarações da vítima.
Com base nos documentos produzidos mediante a multiplicidade de interrogatórios,
entrevistas, declarações e análises é que o Juiz irá proferir a sentença judicial, condenando
ou absolvendo o réu, sendo tal sentença o ato pelo qual o Juiz termina o processo,
decidindo a questão judicial. Com a sentença, o processo extingue-se, isso se não for
interposto recurso, pois toda decisão judicial é passível de recurso daquele que obteve a
decisão desfavorável. Os recursos podem ser interpostos pelo advogado ou pelo Promotor
de Justiça e tem dois efeitos principais, conforme cita o Manual de Iniciação Funcional do
Tribunal de Justa do Estado de São Paulo (1992):
a) Efeito Devolutivo: em curtas palavras podemos dizer que este efeito está
presente em todo e qualquer recurso, pois significa devolver ao Tribunal o conhecimento
da matéria, possibilitando, com isso, o reexame da decisão.
b) Efeito Suspensivo: este, por sua vez, estará presente nas hipóteses em que a
lei não lhe vedar, ou seja, o recurso será recebido no efeito suspensivo se a lei não
dispuser em contrário. Suspende a execução da sentença até o julgamento definitivo em
instância superior.
O julgamento em segunda instância, é realizado por integrantes de uma mara,
formada por três desembargadores, quando, após a discussão do recurso, é feita a votação,
vencendo a maioria. A decisão de segunda instância é chamada de Acóro, que poderá
reformar, total ou parcialmente, a sentença anterior ou mantê-la integralmente. Para
elucidar de maneira prática, seguem alguns exemplos de ementas (resumos) de acórdãos:
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR Caracterização Violência Presumida
tima menor de quatorze anos Materialidade confirmada em exame pericial Prova
testemunhal em consonância com o conjunto probatório Evidência de intento lascivo
Condenão confirmada recurso não provido. (relator: Andrade Cavalcanti Apelação
Criminal n. 155.458-3 – Guarulhos –14.03.94)
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 85
PROVA CRIMINAL - Atentado Violento ao Pudor – Palavra da vítima – Apoio em
outros elementos de prova existentes nos autos – Recurso parcialmente provido nos crimes
contra os costumes, quase sempre praticados sem a presença de testemunhas, as
declarações da ofendida têm valor probante, máxime quando encontram apoio em outros
elementos da prova existentes nos autos. (Relator: Celso Limongi Apelação Criminal n.
139.718-3 – Taboão da Serra/Itapecerica da Serra – 03.03.94)
MENOR Cautelar Guarda Provisória Direito de Visita Decisão que
reconsiderou suspensão imposta ao pai Hipótese em que é acusado de atentado violento
ao pudor contra a menor Inexisncia de prova idônea à increpação Inquérito Policial,
ademais, arquivado Presença paterna recomendada in casu por psilogo ouvido nos
autos Decisão mantida Recurso o provido. (Agravo de Instrumento n. 221.665-1-
Pirajuí – 13.09.94)
Note-se que nestes acórdãos há elementos que podem embasar petições,
contestações ou mesmo outras sentenças judiciais relativas a casos semelhantes, sendo esse
procedimento habitual e recomendável no meio jurídico. As jurisprudências, que são
conjuntos de acórdãos, conforme já citado, são referências fartamente utilizadas pelos
operadores do Direito nos autos processuais para fundamentar os procedimentos e
argumentações. uma multiplicidade de posicionamentos que poderão ser utilizados em
diversas situações, o que revela a flexibilidade da atuação na área do Direito e a
importância das diversas manifestações que constituem o conjunto probario.
uma regularidade na trajetória de intervenções e no encadeamento dos
acontecimentos nos processos penais referentes aos crimes sexuais contra a criança,
havendo pequenas alterações entre um processo e outro, que devem ser seguidas as
orientações do Código de Processo Penal.
2.4 PROCESSOS JUDICIAIS CONSULTADOS
Os processos consultados para a presente pesquisa foram selecionados a partir da
participação da Psicologia no conjunto probatório dos crimes de abuso sexual infantil e por
representarem os procedimentos judiciais em tais crimes. Os elementos encontrados
confirmam a participação efetiva da Psicologia nas decisões judiciais, com a utilização
regular dos fundamentos desta ciência para a constatação dos sintomas psicológicos
compatíveis para o abuso sexual.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 86
No Quadro 1, encontram-se os principais dados utilizados dos processos
consultados, sendo que, no status correspondente à Avaliação Psicológica, os termos
“confirmadoe não confirmado” para abuso sexual correspondem, respectivamente, ao
parecer
6
favorável, ou não, para abuso sexual sobre as características psicológicas
apresentadas pela tima e a espontaneidade de seu discurso. O termo “negado” refere-se
aos casos em que a tima desmentiu o que havia relatado anteriormente, porém foi
confirmado o abuso mediante as características psicológicas apresentadas na avaliação.
A cronologia na organização dos processos judiciais é irrelevante na análise dos
resultados, conforme apresentado a seguir no Quadro 1.
6
O parecer é a conclusão da Avaliação Psicológica e esclarece se os sintomas ou sinais psicológicos
apresentados pela vítima correspondem à vincia de violência sexual.
Capítulo 2 Os (des) caminhos na produção da verdade 87
Caso Crime Idade Sexo Agressor Ano
Avaliação
Psicogica
Caso 1 Atentado violento ao pudor 7 Feminino Pai 2002 Negado
Caso 2 Estupro 8 Feminino Pai 2006 Confirmado
Caso 3 Atentado violento ao pudor 14 Feminino Cunhado 2004 Não Confirmado
Caso 4 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Conhecido 2005 Confirmado
Caso 5 Atentado violento ao pudor* 9, 10 e 11 Masculino Conhecido 2002 Confirmado
Caso 6 Atentado violento ao pudor 5 Feminino Pai 2006 Negado
Caso 7 Atentado violento ao pudor 11 Feminino Conhecido 2004 Confirmado
Caso 8 Atentado violento ao pudor 7 Feminino Padastro 2004 Confirmado
Caso 9 Atentado violento ao pudor* 4 e 6 Feminino Desconhecido 2005 Confirmado
Caso 10 Atentado violento ao pudor 11 Feminino Padastro 2003 Negado
Caso 11 Atentado violento ao pudor 6 Feminino Padastro 2001 Negado
Caso 12 Atentado violento ao pudor 5 Masculino Conhecido 2003 Confirmado
Caso 13 Atentado violento ao pudor 9 Feminino Primo 2001 Confirmado
Caso 14 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Conhecido 2005 Confirmado
Caso 15 Atentado violento ao pudor 7 Masculino Conhecido 2006 Confirmado
Caso 16 Atentado violento ao pudor 5 Feminino Conhecido 2000 Negado
Caso 17 Atentado violento ao pudor 7 Feminino Conhecido 2006 Confirmado
Caso 18 Atentado violento ao pudor 3 Feminino Padastro 2006 Confirmado
Caso 19 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Conhecido 2000 Confirmado
Caso 20 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Conhecido 2003 Confirmado
Caso 21 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Padastro 2000 Negado
Caso 22 Estupro 6 Feminino Pai 2002 Confirmado
Caso 23 Atentado violento ao pudor 9 Feminino A 2005 Não Confirmado
Caso 24 Atentado violento ao pudor 6 Feminino Pai 2001 Confirmado
Caso 25 Estupro 11 Feminino Pai 2005 Confirmado
Caso 26 Atentado violento ao pudor 3 Feminino Conhecido 2001 Confirmado
Caso 27 Estupro 11 Feminino Pai 2003 Confirmado
Caso 28 Estupro 8 Feminino Tio 2005 Confirmado
Caso 29 Atentado violento ao pudor 3 Feminino Pai 2002 Não Confirmado
Caso 30 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Pai 2001 Não Confirmado
Caso 31 Atentado violento ao pudor 3 Feminino Pai 2002 Não Confirmado
Caso 32 Estupro 7 Feminino Pai 2002 Confirmado
Caso 33 Atentado violento ao pudor 11 Feminino Conhecido 2000 Confirmado
Caso 34 Atentado violento ao pudor* 7 e 8 Masculino Conhecido 2004 Confirmado
Caso 35 Atentado violento ao pudor 9 Feminino Pai 2001 Confirmado
Caso 36 Atentado violento ao pudor 12 Masculino Conhecido 2003 Confirmado
Caso 37 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Padastro 2003 Confirmado
Caso 38 Atentado violento ao pudor 10 Feminino Conhecido 2002 Confirmado
Caso 39 Atentado violento ao pudor 12 Masculino Conhecido 2002 Confirmado
Caso 40 Atentado violento ao pudor 9 Masculino Conhecido 2002 Negado
Caso 41 Atentado violento ao pudor 9 Feminino Conhecido 2002 Confirmado
Caso 42 Atentado violento ao pudor 11 Feminino Conhecido 2002 Confirmado
Caso 43 Atentado violento ao pudor 8 Feminino Padastro 2003 Negado
Caso 44 Atentado violento ao pudor* 3 e 10 Feminino Conhecido 2001 Confirmado
Caso 45 Atentado violento ao pudor 8 Feminino Conhecido 2005 Confirmado
Caso 46 Atentado violento ao pudor 5 Masculino Conhecido 2001 Confirmado
Caso 47 Atentado violento ao pudor 8 Feminino Pai 2004 Confirmado
Caso 48 Atentado violento ao pudor 12 Feminino Conhecido 2003 Confirmado
Caso 49 Atentado violento ao pudor 11 Feminino Conhecido 2003 Confirmado
Caso 50 Atentado violento ao pudor* 8 e 12 Feminino Padastro 2001 Confirmado
Caso 51 Atentado violento ao pudor* 6 e 10 Feminino Conhecido 2006 Confirmado
* Referente a casos de mais de uma vítima no mesmo processo
Quadro 1 – Casos selecionados
Fonte: Varas Criminais do Poder Judiciário de Comarcas do interior
Capítulo 3 Metodologia 88
3
METODOLOGIA
3.1 ESTUDO DE CASO: O DESAFIO DA PESQUISA
A história contida em cada processo judicial não é apenas do indivíduo que busca
ou é forçado a buscar o serviço da justiça, mas também dos profissionais que nela atuam.
Por tais motivos, a estratégia de pesquisa no acervo judiciário fornece base para uma
generalização científica, elegendo casos práticos que explicitem o fenômeno sob condições
diferentes e o estudo de caso é uma das metodologias mais adequadas a este propósito.
A coleta de dados se realiza em situações cotidianas, sem os limites controlados de
um experimento laboratorial ou da estrutura de um questionário. Assim, em um estudo de
caso, que se integrar os acontecimentos reais e cotidianos à linha de investigação
traçada no projeto de pesquisa.
Uma das vantagens do estudo de caso, e que se incorpora à Teoria das
Representações Sociais, é que se interpretam as informações à medida que estão sendo
coletadas, verificando-se conjuntamente se as fontes de informação são contraditórias e
necessitam de outras fontes. As inferências do pesquisador são realizadas sobre algo que
ocorreu, sendo as evidências do caso questionadas e delimitadas por ele.
Cabe salientar que a significação que os indivíduos atribuem a sua realidade é
expressa através da linguagem, sendo tal significação a representação social, que é
produzida coletivamente pela sociedade. A representação social como processo de
assimilação da realidade pelo indivíduo, integrada as suas experiências, seus valores e suas
informações, determina as relações que se estabelecem entre ele e o meio social. A partir
desta representação é que os indivíduos explicam e afirmam sua realidade e a interação
com os outros, constituindo formas de fazeres e saberes, compondo o profissional.
Capítulo 3 Metodologia 89
As representações sociais como referencial teórico para esta pesquisa traçam
importantes desafios para a compreensão das práticas discursivas constrdas no contexto
judiciário relativos aos crimes sexuais contra a criança.
Os discursos jurídicos e sociais revelam as significações construídas pelo
profissional que interroga, julga ou analisa a criança-tima em um processo judicial,
envolvendo ainda a representação social de sexualidade construída culturalmente. As
atividades podem ser automáticas e sem reflexão interferindo diretamente na percepção da
realidade e levando o profissional a se familiarizar com conceitos e valores, bem como a
perceber o mundo apenas em sua aparência, já que a significação prática das coisas se
apresenta como própria delas, independente da vontade humana. O profissional da área
jurídica não está isento de tal postura, principalmente pela grande demanda de trabalho e
pela rigidez exigida quanto ao cumprimento de prazos.
Sob este prisma, foi realizada a análise dos discursos dos profissionais, expressos
nas manifestações escritas e procedimentos judiciais junto à criança e contidos nos autos
processuais consultados referentes ao abuso sexual infantil. Os processos judiciais contêm
os casos que foram consultados, oferecendo elementos reais e fidedignos à pesquisa, bem
como detalhes particularizados.
A investigação de estudo de caso encontra muitas variáveis já que se baseia em
distintas fontes de evidências, sendo necessário convergir os dados. Como estratégia de
pesquisa é uma metodologia abrangente, podendo incluir tanto estudo de casos únicos,
quanto de casos múltiplos, que são duas modalidades.
No estudo de casos múltiplos cada caso é tratado de forma particular, podendo
ocorrer resultados similares ou contradirios. Conforme demonstra Yin (2005), as
melhores chances de se fazer um bom estudo estão relacionadas aos casos múltiplos,
mesmo que seja um estudo de caso “de dois casos”, já que as conclusões analíticas
independentes que surgem de dois casos são mais contundentes do que aquelas que surgem
de apenas um caso. Portanto, o mesmo estudo pode conter mais de um caso único, o que o
define como um estudo de casos múltiplos e onde cada caso contribui para o
desenvolvimento global da investigação.
O estudo de casos múltiplos segue a lógica da “replicação”, o que é diferente da
lógica da “amostragem”, pois conforme Yin (2005, p.69) “cada caso deve ser
cuidadosamente selecionado de forma a prever resultados semelhantes (uma replicação
literal) ou produzir resultados contrastantes apenas por razões previsíveis (uma replicação
Capítulo 3 Metodologia 90
teórica)”. O importante é que todos os casos se mostrem previsíveis para que forneçam
uma base convincente para o conjunto global da pesquisa.
Necessário se faz o desenvolvimento de uma estrutura teórica bem fundamentada,
que exponha as condições prováveis de se encontrar o fenômeno que foi estudado, que
seria a replicão literal, assim como as condições nas quais não haja a probabilidade de se
encontrar tal fenômeno, que seria a replicação trica. A partir da estrutura teórica, haverá
a possibilidade de generalização para casos novos, como também para a análise de casos
cruzados.
Cada estudo de caso em particular consiste em um estudo “completo”, no qual se
procuram evidências convergentes com respeito aos fatos e às conclusões para o
caso; acredita-se, assim, que as conclusões de cada caso sejam as informações que
necessitam de replicação por outros casos individuais (YIN, 2005, p.71).
Em função da lógica de replicação e não de amostragem utilizada, o número de
casos necessários ou suficientes para o estudo são irrelevantes, desde que tomados os
devidos cuidados para que o pesquisador não se mostre seletivo ao relatar seus dados na
tentativa de adaptá-los as suas idéias preconcebidas.
Tal apontamento justifica a escolha na presente pesquisa de 02 dos 51 casos
referentes aos processos judiciais que foram consultados, uma vez que os casos exemplares
oferecem elementos que podem ser generalizados para os demais. O estudo de caso pode
se basear em muitas fontes de evincias, como por exemplo, as mais comumente
utilizadas: documentação, registros em arquivos, entrevistas, observação direta e
observação participante. No presente trabalho, foram utilizadas as fontes de evidências
provindas dos processos judiciais e jurisprudências, que se constituem como documentos, e
da prática profissional exercida dentro da instituição judiciária, classificada como
observação participante.
A utilização de documentação tem a função de corroborar e valorizar as evidências
provindas de outras fontes, como a observação participante e direta. Entretanto, como
alerta Yin (2005), se deve considerar que as evidências documentais refletem a
comunicação entre pessoas que estão tentando alcançar outros objetivos, não podendo o
pesquisador desprezar tal dado.
A observação participante refere-se ao pesquisador que participa dos eventos que
estão sendo estudados e esinserido no cotidiano da instituição ou nos grupos sociais.
Esta modalidade oferece ao pesquisador a capacidade de perceber a realidade de alguém
que está dentro do estudo de caso, de um ponto de vista interno e não externo. Portanto, o
Capítulo 3 Metodologia 91
pesquisador é ativo na investigação e deve ter o cuidado de não induzir ou sugestionar-se
na busca dos resultados, sendo necessário o equilíbrio diante das oportunidades criadas ou
ofertadas.
O trabalho como Psicóloga Judiciária oportunizou a participação nos processos
judiciais consultados, tanto no contato com a vítima e sua família, quanto no conhecimento
dos procedimentos utilizados pelos demais profissionais envolvidos nos casos. A rotina do
trabalho no ambiente forense ofereceu as condições para a observação dos fenômenos que
envolvem o abuso sexual infantil nas investigações policiais e judiciárias, desde a
entrevista com a vítima e seus familiares até o contato pessoal com outros profissionais e a
participação em audiências.
Os registros das observações foram constantes, visto a determinação judicial de
apresentação de relatório de Avaliação Psicológica nos processos. Assim, a observação do
profissional que participa dos procedimentos a que o caso foi submetido cuida dos detalhes
que auxiliarão na análise e que, possivelmente, influenciarão nos discursos dos envolvidos,
efetivando a observação participante.
A interação com os demais profissionais também compõe a observação
participante, uma vez que diferentes saberes se aliam ou se opõem no transcurso de uma
ação judicial, facilitando ou impedindo a expressividade daquele que é avaliado. Além da
tarefa profissional desempenhada, a necessidade de maior conhecimento sobre o abuso
sexual infantil e o testemunho da criança foi propulsora para a utilização da observação
participante, ampliando o foco de atenção para todos os envolvidos, isto é, timas,
famílias, profissionais e a própria atuação profissional.
Estar inserida na problemática estudada trouxe oportunidades que extrapolaram o
intuito do conhecimento, gerando a modificação da ão profissional em benefício do
atendimento e compreensão da criança-tima, pois à medida que as interrogações e
descobertas surgiam não foi possível permanecer indiferente a elas.
A importância da utilização de mais de uma fonte de evidências oferece
credibilidade à pesquisa, já que as informações foram corroboradas. A organização e
documentação dos dados também foram relevantes para oferecer confiabilidade ao
trabalho, destacando do caso suas principais características, gerando um banco de dados
para uma inspeção independente.
As proposições teóricas, juntamente com as revisões feitas na literatura utilizada
orientaram a análise do estudo de caso, respondendo a questões do tipo “como” e “por
Capítulo 3 Metodologia 92
que”. A abordagem descritiva do caso também auxiliou na organização da análise,
identificando causas e conseqüências da problemática estudada.
3.2 FONTES DE EVIDÊNCIAS
Os processos judiciais são documentos que registram um encadeamento de
evidências sobre um determinado acontecimento, nos quais existe conflito de interesses
entre duas ou mais pessoas. Por esse motivo, o referenciais importantes de investigação
científica, oferecendo casos exemplares para um estudo completo.
Os Juízes responsáveis pelas Varas Criminais das Comarcas pesquisadas
concederam autorização judicial para a consulta aos autos processuais desde que
resguardadas as identidades dos envolvidos, como também dos profissionais que neles
atuaram. Os critérios utilizados para a referência aos casos foram números aleatórios, em
um recorte temporal dos anos de 2000 a 2006.
Na presente pesquisa, foram consultados 51 processos judiciais relacionados ao
abuso sexual infantil e juvenil, embora a ênfase dos estudos esteja voltada para a criança e
não para o adolescente. Porém, alguns processos chegam à Seção de Psicologia para a
elaboração da Avaliação Psicológica, quando o tempo decorrido desde a ocorrência do
crime ultrapassou dois anos, e a tima que era criança na época, na data da entrevista é
uma adolescente, ou então, a denúncia formal ocorreu na adolescência, mas o processo
abusivo continuado acontecia desde a infância. Neste último caso, a narrativa e as
recordações da tima são alteradas não somente pelo tempo, mas pelos conflitos internos
picos da fase em que se encontra; todavia para esta pesquisa a importância está na
atuação dos profissionais envolvidos e na confiabilidade que é dada ao discurso da criança-
tima.
Os casos selecionados estão organizados no Quadro 1 e relacionados aos crimes de
Atentado Violento ao Pudor e Estupro, nos quais as vítimas foram submetidas à Avaliação
Psicológica pela Seção de Psicologia do Juízo da Infância de da Juventude da Comarca a
que pertencem, conforme determinação judicial.
Seguindo a lógica da replicação, a seleção de dois processos judiciais como casos
exemplares, extraídos dos 51 processos consultados, seguiu critérios pertinentes às
características analisadas nesta pesquisa. Os dois casos eleitos explicitam diferentes
sistemas de notificação do abuso sexual e encaminhamento da oitiva da tima, em
situações de contraste. No entanto, apresentam características básicas semelhantes, como a
Capítulo 3 Metodologia 93
idade da tima, o processo abusivo intrafamiliar e a utilização da Avaliação Psicológica
como parte do conjunto probatório. Ambos os casos oferecem elementos para a
explicitação dos procedimentos e atendimentos às timas de abuso sexual infantil e para a
necessidade e a possibilidade de modificá-los, como tamm evidenciam as dificuldades
relacionadas à confiabilidade no testemunho da criança. E, em um sistema comparativo,
demonstram como as condições de acolhimento da denúncia interferem na confirmação ou
retratação da criança quanto ao seu discurso inicial .
O modelo lógico de nível individual foi utilizado para descrever como fluem os
procedimentos que envolvem a criança-tima e as diferentes interferências que sofre a
partir da revelação. O fluxo dos acontecimentos foi representado em um fluxograma
interativo entre os dois estudos de caso realizados.
Alguns dos demais casos selecionados estão citados no decorrer de todo o trabalho,
como referência ilustrativa à orientação teórica ou como explicativa das práticas
profissionais. Contudo, todos os casos foram importantes para a análise dos resultados e a
conclusão da pesquisa, que apresentam diferenças e semelhanças que se incorporam nos
procedimentos judiciais e descrevem a prática exercida na instituição judiciária.
A experiência e a participação profissional nos processos pesquisados foram
determinantes para a análise das dificuldades do contexto da realidade da atuação. A
análise de conteúdo dos processos judiciais revelou o conjunto de evidências que
colaboram para o deslinde da ação judicial e a importância e intervenção de cada
profissional para a segurança da confirmação da violência pela vítima.
A criança que se torna sujeito de um processo, qualquer que seja sua natureza
jurídica ou o objeto em debate, é apresentada com as práticas narrativas e
discursivas do psicólogo, do médico, do jurista, do pedagogo, do assistente social,
do sociólogo, etc. Seu comportamento, ou a expectativa sobre seu futuro torna-se,
em centenas de processos, subordinados às considerões expressas daquelas
fontes de estudos [...]. Isso revela que ao “vasculhar” os arquivos do Poder
Judiciário como fonte primária fundamental ao estudo de qualquer sociedade, é
necessário ao estudioso a interlocução com as ciências que m em seu bojo,
necessariamente o tema infância (FREITAS,1997, p.56).
As jurisprudências utilizadas estão relacionadas aos crimes estudados nesta
pesquisa e foram extraídas não somente da biblioteca on-line do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, como dos processos judiciais que serviram de referências aos
Magistrados e Promotores.
As transcrições das narrativas dos profissionais nos processos judiciais estão
destacadas em itálico no trabalho, sendo fartamente utilizadas por representarem as
Capítulo 3 Metodologia 94
práticas discursivas produzidas e a interdisciplinaridade evocada na produção da verdade.
As dificuldades de acolhimento da denúncia e suas conseqüências evidenciam-se no
encadeamento dos acontecimentos e discursos produzidos nos processos e favorecem a
explanação da produção da verdade.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 95
4
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS CASOS
4.1 ANÁLISE DOCUMENTAL: CASOS EXEMPLARES
A análise de documentos processuais possibilita reunir uma grande quantidade de
informação relacionada com o fenômeno do abuso sexual infantil e seu contexto no Poder
Judiciário. Os processos penais, consultados no presente trabalho, apresentam,
concomitantemente, características semelhantes e concorrentes, oferecendo parâmetros
comparativos das diferentes formas de atuação profissional e a interferência destas nos
procedimentos judiciais. Tais documentos evidenciam a representação dos operadores do
Direito relacionada à criança vítima de abuso sexual e como tal fato contribui para que esta
tenha credibilidade no contexto judiciário, traçando uma trajetória histórica da evolão
multidisciplinar da instituição judiciária.
Os dois casos judiciais exemplares estudados neste trabalho apresentam em seu
conteúdo um conjunto de ações que descrevem as dificuldades reais enfrentadas no contexto
judiciário, no qual também se inclui o contexto policial, relativas ao abuso sexual infantil e a
necessidade de alterações efetivas no atendimento à criaa-tima. Os trâmites judiciais são
necessários e complexos, ainda que se diferenciem sutilmente entre as Comarcas e as relações
de trabalho estabelecidas em cada Fórum, sendo comum nas cidades do interior a rotatividade
de Juízes e Promotores que imem ritmos de trabalho distintos e, conseqüentemente,
produções documentais também diferenciadas.
uma constância de terminologias empregadas nos Boletins de Ocorrência e nos
depoimentos nas Delegacias de Polícia, que revelam um discurso que não é o da criança, mas
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 96
o do interlocutor. As inquirições são descritas sem um esclarecimento acerca das condições
em que foram realizadas as entrevistas investigativas, não deixando de salientar, contudo, que
foram realizadas na presença do responsável legal, já que é o procedimento exigido.
A linguagem, entendida como prática social, está presente nos registros profissionais,
revelando que as práticas cotidianas das pessoas são orientadas por regras lingüísticas que
tendem a manter e reproduzir discursos. As práticas discursivas, bem definidas por Spink
(2000) como linguagem em ação, são as maneiras a partir das quais as pessoas produzem
sentidos e se posicionam em suas relações sociais cotidianas.
As práticas discursivas são constituídas pelos enunciados e pelos repertórios
interpretativos, sendo os enunciados caracterizados por expressões, palavras e sentenças
articuladas em ações situadas, que associadas às vozes, adquirem caráter social e se
constituem em diálogos, e os repertórios interpretativos são as unidades de construção das
práticas discursivas, os termos, as descrições, as figuras de linguagem e os lugares-comuns,
que possibilitam diferentes construções discursivas, situadas dentro de um contexto nas quais
as práticas são produzidas.
No entanto, são notáveis as evoluções das manifestações que compõem os relatórios de
Inquérito Policial, os requerimentos dos Promotores de Justiça e as determinações dos Juízes
de Direito frente aos casos de abuso sexual infantil. O registro contido no Caso 51, na
audiência de instrução, materializa o que foi proferido acima. A audiência foi realizada em
2006, portanto é atualizada e traz a seguinte manifestação do Juiz:
Presente o Dr. Promotor de Justiça. Ausentes o réu e seu defensor. Em apartado foram
ouvidas duas testemunhas de acusação. Dada a palavra ao Dr. Promotor de Justiça, pelo
mesmo foi dito: M.M. Juiz, considerando que nestes crimes praticados contra crianças, as
conseqüências da inquirição feita pelo Juiz de Direito com participação das partes ocasionam
seqüelas indesejáveis para as menores, além do que não permite obter respostas confiáveis,
requeiro que as vítimas sejam questionadas sobre os fatos através da intervenção de
Psicólogo Judiciário. As perguntas da defesa e da acusação deverão ser feitas através de
quesitos a serem utilizados pelo profissional, garantindo-se o princípio contraditório. A
seguir pelo M.M. Juiz foi dito: Com relação ao pedido requerido pelo Ministério Público
quanto à oitiva das vítimas pela Psicóloga do Juízo, determino que se manifeste a defesa no
prazo de cinco dias, dizendo se concorda com o referido pedido, visando preservar as vítimas.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 97
No caso de concordância deverá o defensor apresentar quesitos a serem respondidos pela
Psicóloga Judiciária, em igual prazo. Saem os presentes intimados. Nada Mais.
Observa-se que há um movimento em relação à intencionalidade das autoridades
judiciárias de preservar a criança do constrangimento e da revitimização, admitindo o
desconforto e a inadequação das condições oferecidas na audiência para sua oitiva. O
reconhecimento do Promotor de Justiça e do Juiz de Direito da necessidade da intervenção de
um profissional habilitado e familiarizado com o trato da infância, ainda que respeitando o
princípio do contraditório que exige a lei, confirma a efetiva participação responsável da
Psicologia nos procedimentos afetos aos crimes sexuais cometidos contra a criança. Todavia
não regularidade e uniformidade de procedimentos que garantam condições especiais de
oitiva à vítima que a protejam da exposição de sua experiência abusiva.
Os anos de atuação no Tribunal de Justiça propiciam aos profissionais a oportunidade
de modificarem suas formas de atuação conjuntamente, em uma evidente historicidade de
procedimentos e produção de conhecimentos. É notável a pesquisa realizada por Rocha
(2006), Promotor de Justiça e mestre em Psicologia, a qual revela que o sistema de notificação
do crime sexual contra a criança, o processo de responsabilização do agressor e as poticas
públicas de atendimento à criançatima seguem um fluxo que nem sempre beneficia a
tima; ao contrário, denuncia as falhas na articulação e capacitação dos profissionais que
atuam no atendimento e na defesa dos direitos da criança e do adolescente. O interesse do
representante do Ministério Público por tal temática exemplifica a preocupação comum aos
profissionais que atuam junto ao Poder Judiciário e a possibilidade de um atendimento
especializado aos crimes sexuais contra a criança que proporcionaria maior confiabilidade às
decisões judiciais.
No presente trabalho, o material que serve de base para a análise procede de rias
fontes, como os processos judiciais, a observação participante e as jurisprudências,
entendendo-se que estas últimas o constrões narrativas produzidas pelos próprios
Magistrados em sua prática profissional e reconhecidas como referência pelos operadores do
Direito em suas diferentes áreas de atuação. Portanto, mediante a utilização das
jurisprudências, constata-se que as variâncias analíticas de cada caso ficam a critério do Juiz e
do Promotor.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 98
A seleção de dois casos judiciais analisados como ilustrativos combinados à
experiência profissional pessoal e as referências jurídicas e bibliográficas obedecem a um
estilo corroborativo de pesquisa. A revisão bibliográfica orientou a análise de cada fase
processual, demonstrando como os diferentes procedimentos judiciais presididos pelos Juizes
podem gerar distintos resultados.
A Avaliação Psicológica também está na dependência da atuação dos Magistrados e
Promotores, não havendo uma regularidade quanto ao momento de sua inserção no processo
judicial; porém percebe-se que a qualidade de sua redação poderá gerar ou não credibilidade
ao testemunho da criança.
Os Casos 1 e 2 foram descritos e analisados, seguindo as fases dos processos judiciais a
que pertencem, buscando contextualizar a criança tima de abuso sexual e os profissionais
interlocutores nos procedimentos judiciais. A exposão e discussão dos casos serão realizadas
simultaneamente à análise das práticas discursivas que comem o processo judicial, sendo
descritas as diferentes intervenções e procedimentos a que a criança-tima foi submetida
desde a denúncia na Delegacia de Polícia até a sentença judicial em primeira e segunda
instância.
4.2 CASO 1: AS CONSEQUÊNCIAS DA REVITIMIZAÇÃO
Este caso judicial contém elementos reveladores dos efeitos dos procedimentos
judiciais sobre a credibilidade do testemunho da criança no contexto judiciário, explicitando
tanto as dificuldades da criança, como dos profissionais envolvidos. Evidencia ainda, um
conjunto de características que confirma a necessidade de alterações nos paradigmas jurídicos,
quando se trata de crime sexual contra a criança. O estudo de caso foi utilizado como
exemplar para a análise cruzada de outros processos consultados na pesquisa, já que estes são
complementares e demonstram procedimentos judiciais diversos, o que proporcionará melhor
compreensão dos objetivos a que este trabalho se propõe. O Quadro 2 - Banco de dados do
caso , apresenta características comparativas em sua semelhança ao Caso 2, que será utilizado
para a discussão dos resultados:
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 99
CASO 1 -
Ação Judicial: Crime de Atentado Violento ao Pudor
Vítima: Menina
Idade: 07 anos
Réu: Pai – processo abusivo intrafamiliar
Data da Ocorrência: 2002
Revelação: da vítima a uma vizinha
Denunciante: Anônimo
Recebeu a denúncia: Conselho Tutelar
Depoimento na Depol Confirmou
Avaliação Psicológica Desmentiu
Audiência com Juiz Não foi ouvida
1ª instância Dúvidas do Juiz – absolvição do réu
2ª instância Apelação do MP-condenação do réu
Quadro 2 - Banco de dados do caso 1
Características do caso
A tima confirmou o abuso sexual em dois depoimentos na delegacia e, após a prisão
temporária do réu, desmentiu na entrevista psicológica; a genitora também modificou seu
discurso, contradizendo em juízo seu depoimento na delegacia; a tima não foi ouvida em
audiência, sendo determinada a Avaliação Psicológica no intuito de protegê-la; a Avaliação
Psicológica confirmou o abuso sexual, embora, na entrevista, a tima tenha desmentido; o
Juiz de primeira instância absolveu o réu alegando fragilidade no conjunto probatório e
dúvidas diante do fato da criança desmentir o abuso na entrevista psicológica; apelação do
Ministério Público (MP) baseada no Laudo Psicológico; acórdão reconhecendo o Laudo
como prova para a condenação do réu; Réu condenado em segunda instância.
4.2.1 1ª Fase - Delegacia de Polícia
Boletim de Ocorrência
Lavrado o Boletim de Ocorrência na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, o qual
relata que compareceu o Conselheiro Tutelar conduzindo e acompanhando a tima e sua
genitora, noticiando que havia recebido uma denúncia anônima de que o genitor estaria
violentando sexualmente a própria filha. No Inquérito Policial, o agressor é nomeado como
indiciado, visto que somente é chamado de réu, quando o Juiz instaura o processo judicial.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 100
A tima foi interrogada na Delegada de Pocia, na presença da genitora e da escrivã
que digitou o Boletim de Ocorrência e, segundo consta em tal documento, informou que seu
pai a submetia a atos incestuosos, detalhando-os.
A narrativa apresentada no Boletim de Ocorrência faz referências aos atos libidinosos
como se a vítima os descrevesse, ora sendo utilizada terminologia chula da linguagem popular,
ora terminologia rebuscada para classificar a prática do ato, ocasionando confusão entre o que
é a fala da criança e a fala do interlocutor. A descrão dos atos traz detalhes que diferenciam a
abordagem em categorias, como, por exemplo, fazendo isto sem tirar-lhe as roupas, sempre
por cima da calcinha e esclareceu que seu pai pedia para que ela sentasse em seu colo,
informando que quando o mesmo estava de calça, abaixava o zíper para praticar o ato, o que
sugere que foram realizadas perguntas diretas. O conteúdo descritivo revela detalhes da prática
sexual que somente se questionada diretamente é que uma criança de sete anos responderia,
podendo fazê-lo apenas meneando a cabeça e, no entanto, é descrito como fala própria.
que se esclarecer que tal crítica refere-se aos métodos de entrevista utilizados, em
que a análise do discurso do Boletim de Ocorrência evidencia que a linguagem descritiva não
é da criança, mas sim do interlocutor, o qual na expectativa de coletar os dados adequados e,
sem a intencionalidade, sugestiona, induz e constrange a criança. As estratégias utilizadas em
um interrogatório podem tanto favorecer quanto prejudicar o depoimento da tima, já que o
profissional que interroga conduzirá a entrevista conforme o conjunto de suas representações
sociais.
Neste ponto, observa-se a importância da linguagem utilizada pelo interlocutor tanto
para inquirir como para registrar o que foi perguntado à tima, já que as estratégias
lingüísticas organizam , classificam e explicam os acontecimentos na percepção de quem a
expressa. Atenção especial deve ser dada às articulações produzidas pela linguagem e pela
interpretação, suspeitando que a linguagem não diz exatamente o que diz e buscar os
significados que estão ocultos, uma vez que o interlocutor é sempre uma pessoa ativa na
produção de sentidos.
Além das práticas libidinosas, a vítima informou que o indiciado, seu pai, lhe prometia
comprar doces, roupas e bicicleta se esta fizesse o que lhe pedia e a ameaçava para que não
contasse a ninguém, pois, caso contrário, descobriria e a levaria para longe de todos.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 101
Juntamente com tal relato é realizada interpretação da fala da criança pelo interlocutor:
estando a mesma se sentindo muito ameaçada com o que disse.
A forma como o interlocutor integra os conhecimentos, as informações que coletou,
suas experiências pessoais, seus contatos com valores sociais e conceitos morais são
determinantes nas formações de suas representações e conseqüentes interpretões. O
processo de assimilação do real, de sua realidade cotidiana define o que é a Representação
Social e, no caso do abuso sexual infantil no contexto judiciário, é expressa pelos documentos
que compõem o processo.
Na seqüência, o Delegado de Pocia declarou instaurado o Inquérito Policial para a
apuração da denúncia, determinando a juntada aos autos da cópia do Boletim de Ocorrência
que noticia os fatos e requisão do Exame de Corpo de Delito.
Termo de Declaração da Vítima
Nesta mesma data, foi realizada a tomada de declarações da tima, a qual foi
novamente interrogada, mas por outro Delegado de Pocia, não aquele que estava de plantão
quando da denúncia, bem como na presea de outra Escrivã de Polícia e de outro Conselheiro
Tutelar, diferentes daqueles que acompanharam seu primeiro depoimento. Nessa ocasião, foi
ouvida sem a presença da genitora, a qual é representada pelo Conselheiro.
No termo de declaração, está contida a confirmação dos fatos narrados no histórico do
Boletim de Ocorrência e novos esclarecimentos provindos dos questionamentos direcionados à
tima. Os atos libidinosos são descritos novamente como se fosse a fala da vítima e em uma
tida tentativa de novos esclarecimentos acerca de detalhes que indiquem atos mais ousados
do agressor e semelhante a uma relação sexual. O teor do termo de declaração revela as
respostas da vítima, mas não a maneira como foram elaboradas as perguntas, como por
exemplo, que também a beijava bastante na boca; que não passava a mão em seus seios.
Observa-se que o discurso não é espontâneo da criança, mas sim sua resposta a uma pergunta
pronta e indutiva que traz novidades ao seu repertório, já que, após o questionamento o que
antes desconhecia passará a ter conotação sexual para ela, como por exemplo, o toque nos
seios. A própria compleição física da vítima indica a ausência de seios, no entanto esse
aspecto da inquirição poderá ser incorporado em seu discurso e influenciar nas posteriores
declarações.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 102
Testemunha - genitora da vítima
Em seguida, foi ouvida a genitora da tima, que informou ao delegado que, em uma
conversa informal com a filha, esta lhe revelou que o pai a importunava sexualmente há algum
tempo. Os atos libidinosos são descritos pela mãe da maneira conforme recebeu a queixa da
filha, confirmando os mesmos dados levantados no Boletim de Ocorrência e no termo de
declaração da tima. Relatou ainda que notou que o acusado dispensava carinho excessivo à
tima e que gostava muito de ficar sozinho com a menina.
Nota-se, na redação do termo de declaração, que são frisadas no interrogatório
determinadas atitudes do agressor, como o fato de não tirar as roupas da tima e não
apresentar indícios de relação sexual, mas sim atos libidinosos, já que penas diferenciadas
para as duas modalidades do crime sexual, o estupro e o atentado violento ao pudor. Por esse
motivo, as perguntas sobre determinados atos são reincidentes na tomada das declarações por
diferentes profissionais, tanto aquelas dirigidas à vítima, quanto para as testemunhas.
No presente termo, há a expressão carinho excessivo, a qual não é definida e torna-se
vazia diante da ênfase dada pela genitora à relação entre o acusado e a vítima e que, se
explicitada, poderia fornecer elementos comparativos com outras declarações.
A genitora justifica que não procurou a delegacia na data em que recebeu a queixa da
filha em virtude de estar chovendo muito, dificultando a locomoção por residir no meio rural.
Relata que, no dia seguinte, o Conselheiro Tutelar esteve em sua casa e então lhe contou o
ocorrido, sendo conduzida juntamente com a tima e demais filhos para a casa de uma tia. A
reação do agressor foi de ameaça de morte à tima e à esposa, fato comentado pelos
familiares que com ele estiveram.
A reação de omissão da genitora, justificada por ela como demora, revela sua postura
de insegurança, quanto à credibilidade no discurso de revelação da filha, numa tentativa de
adiar o sofrimento ou o querer compreender o que estava acontecendo. As atitudes
maternas, muitas vezes desprezadas, oferecem elementos importantes para a análise da
validade do testemunho da criança vítima.
A mãe, neste caso, desempenhou um papel no abuso sexual, refletido na demora em
tomar as medidas necessárias e na sua resistência em acreditar na filha, já que está implicada
na rede de relações afetivas. De alguma forma, a mãe também é lesada nessa situação e no
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 103
intuito de proteger a coesão familiar, tenta negar suas próprias percepções em função de ter
que fazer uma escolha entre a filha e o companheiro.
Testemunha - Conselheiro Tutelar
O Conselheiro Tutelar informou que recebeu denúncia anônima de que a criança sofria
abuso sexual do genitor e que a pessoa que fez tal denúncia intitulava-se vizinha da tima. A
denunciante informou que a criança havia lhe confidenciado os atos incestuosos do genitor e
que diante de tal informação, procurou sua genitora para conscientizá-la da necessidade de
proteger a filha; no entanto esta se mostrou amedrontada em formalizar a denúncia, temendo
as conseqüências judiciais. Diante da falta de iniciativa da genitora, a vizinha se decidiu a
denunciar ao Conselho Tutelar.
Segundo o Conselheiro, ao entrevistar a genitora, esta lhe confirmou o relatado pela
vizinha e acrescentou perceber mudanças na conduta do indiciado com a vítima, o qual
gostava de ficar sozinho com ela e a beijava na boca freqüentemente, como um gesto de
carinho. Contou-lhe ainda, que de posse das informações da vizinha, abordou o assunto com a
filha, a qual confirmou os atos libidinosos a que era submetida pelo genitor e respondeu a uma
série de perguntas formuladas por ela.
O Conselheiro esclareceu à genitora que deveria comparecer à Unidade Policial para
registrar os fatos, ocasião em que esta declarou ter medo do indiciado, pois é agressivo com
ela. Todavia concordou em fazer a denúncia formal e, sob a orientação do Delegado de
Polícia, o Conselheiro encaminhou a família para a casa de parentes por alguns dias, no intuito
de proteger a todos das ameaças do acusado. O Conselheiro informou ainda que o indiciado
descobriu onde a família estava e continuou a fazer ameaças de morte.
Este depoimento traz elementos sobre a confirmação de que a mãe fora alertada sobre
os acontecimentos e que se mostrou indolente diante da revelação da filha, segundo a
percepção do Conselheiro Tutelar, o qual comunica suas próprias representações,
apresentando uma narrativa segura.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 104
Requerimento do Delegado de Polícia
Diante das declarações tomadas a termo e da constatação das ameaças de morte
mediante as informações do Conselheiro Tutelar, o Delegado de Polícia enviou ao Juiz um
requerimento para a prisão temporária do indiciado, com as devidas fundamentações legais.
Relatou ao Juiz que o indiciado, tão logo soube do registro do fato na Unidade Policial, passou
a ameaçar a mulher e a filha no intento de impedi-las a denunciá-lo perante a justiça. O
Delegado solicitou ao Juiz a prisão temporária do indiciado pelo prazo de 30 dias, para
facilitar as investigações pertinentes ao caso.
O Juiz enviou o pedido do Delegado ao Promotor de Justiça para que este se
manifestasse sobre a Prisão Temporária, para então autorizá-la.
Manifestação do Ministério Público
O Promotor de Justiça manifesta-se afirmando que diante dos elementos apresentados
pela autoridade policial, indícios de autoria do delito narrado nos autos, pois, segundo os
depoimentos colhidos até o presente momento, chega-se, de forma clara e induvidosa, a essa
conclusão. Alega que estão presentes os índicos de autoria e, certamente, o investigado em
liberdade irá dificultar sobremaneira as investigações, principalmente a oitiva das testemunhas
ainda restantes e demais diligências a serem realizadas.
O parecer do Promotor de Justa é pelo deferimento da representação formulada pelo
Delegado de Polícia decretando a prisão temporária do indiciado pelo prazo de trinta dias,
justificando que se trata de crime definido como hediondo pela legislação em vigor. O
mandado de prisão foi expedido pelo Juiz e o indiciado capturado e conduzido à cadeia
pública, até que tenha esgotado o prazo e as investigações policiais.
Observa-se que as práticas discursivas estão sendo constrdas em uma interação entre
os profissionais, nas quais as representações sociais estão contidas nos significados produzidos
pelos grupos de profissionais e transformados pelos indivíduos em subjetividades, cada um em
sua atuação. A maneira como os conhecimentos são apreendidos penetram nas relações
estabelecidas entre os diferentes profissionais que atuam no caso e contribuem para
determinar formas de percepção coletiva.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 105
Testemunha - amiga da genitora
A testemunha declara que foi informada pela genitora, em tom desesperador sobre os
atos incestuosos do indiciado e que esta insistiu para que a tima relatasse à testemunha as
sevícias sexuais a que foi submetida. A criança, chorando, relatou os fatos à testemunha
conforme o que já havia relatado a genitora.
Neste depoimento, percebe-se a intensidade da situação vivenciada pela tima, que
além dos esforços emocionais que teve que empreender para revelar à vizinha, pessoa
escolhida por ela, teve que reafirmar à genitora e após à amiga desta. A insensibilidade da
genitora é revelada em sua atitude de forçar a criança a expor-se para outra pessoa,
demonstrando de maneira exacerbada sua indignação e sofrimento, o que, possivelmente,
gerou na criança o sentimento de culpa e a noção da gravidade moral do que vivenciou.
Observa-se que a atitude da genitora denota sua percepção de ser tamm tima da situação
abusiva, mesmo que evidencie descrer das revelações da criança.
Laudo de Exame de Corpo de Delito
O Exame de Corpo de Delito foi realizado por um médico legista, o qual redigiu o
relatório da perícia, respondendo aos seguintes quesitos:
- Houve conjunção carnal?
- Qual a data provável dessa conjunção?
- Era virgem a paciente?
- Houve violência para essa prática?
- Qual o meio dessa violência?
- Da violência resultou para a tima: incapacidade para as ocupações habituais por
mais de 30 dias, ou perigo de vida, ou debilidade permanente de membro, sentido ou fuão,
ou enfermidade incurável, ou deformidade permanente, ou aborto?
O médico perito respondeu “não” ao primeiro quesito e prejudicado” para todos os
demais, sendo que não encontrou elementos fidedignos para a confirmação ou não dos
quesitos. Percebe-se que a formulação dos quesitos extrapola o que a perícia pode oferecer,
estando implícita a necessidade das provas para o julgamento do caso.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 106
Quanto ao exame físico o médico relatou: corpo impúbere compatível com a idade, e
referindo-se ao exame ginecológico descreveu: genitália externa impúbere compatível com a
idade. Na conclusão do relatório o perito relata que a pericianda apresenta hímen íntegro sem
características de complacência
7
, não sendo constatados sinais outros que indiquem a prática
de conjunção carnal pregressa; não sinais clínicos e/ou laboratoriais de gravidez em
evolução. Do acima exposto, concluímos que a pericianda apresentou-se virgem por ocasião
do exame.
A narrativa do perito revela a postura mecanicista assumida pelo profissional diante de
um caso de abuso sexual infantil, sem referências específicas à infância, apenas informando a
compatibilidade física da tima com relação a sua faixa etária. A representação social do
abuso sexual infantil está relacionada apenas ao aspecto biológico, não havendo nessa
narrativa qualquer referência à condição infantil da tima e de suas reações durante o exame,
importantes para o conjunto probatório.
Relatório do Inquérito Policial
Por fim, de posse de todas as informações coletadas, o Delegado de Pocia envia o
relatório do Inquérito Policial ao Juiz, detalhando cada fase do procedimento e relatando as
declarações prestadas pela tima e pelas testemunhas. Para que seja instaurado o Inquérito é
necessário que seja comprovada a materialidade e autoria do crime sexual e fundamentado
pelos artigos específicos do Código Penal e de Processo Penal, o que justifica a tomada de
declarações das testemunhas e da vítima.
O relatório do Inquérito Policial compila a série de procedimentos que foram utilizados
e produz material para o embasamento da representação que o Promotor de Justiça fará ao Juiz
de Direito. No presente caso, o Delegado de Pocia concluiu que há a comprovação da autoria
e da materialidade do crime sexual contra a vítima.
Mediante interrogatórios e entrevistas, categorias, hipóteses e informações contextuais
variadas construiu-se a representação social dos fatos, sendo a interpretação um elemento
intrínseco neste processo, não havendo assim, distinção entre o levantamento das informações
e a interpretação. Considerar o conjunto de regras de produção da verdade e reinterrogar as
7
Hímem que não se rompe com a penetração.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 107
evidências são pontos importantes nesta pesquisa que busca também compreender as
representações sociais dos profissionais da justiça que atuam nos casos de abuso sexual
infantil .
4.2.2 2ª Fase - Poder Judiciário
O Promotor de Justiça, então, denuncia o réu ao Juiz de Direito por crime de atentado
violento ao pudor, conforme artigo 214 do Código Penal
8
e requer a instauração do processo
crime, oferecendo o rol de testemunhas e a oitiva destas e da tima em audiência, e prevê a
condenação do réu.
O Juiz recebe a denúncia, relatando que a prova dos autos é suficiente quanto à
existência do crime e a autoria não admite dúvida e confirma a necessidade do indiciado
permanecer em cusdia preventiva, pois poderá comprometer a instrução processual
influenciando o ânimo das testemunhas. Ainda nesta manifestação, o juiz designa data para o
interrogatório do réu.
Termo de interrogatório do réu
O réu foi interrogado pelo juiz, sendo cientificado da acusação e respondeu às
perguntas que lhe foram dirigidas. Nega a acusação que lhe interroga a denúncia, verbalizando
que não praticou os atos libidinosos contra vítima.
O relato do interrogatório apresenta a confirmação dos dados da vida pessoal do réu,
como por exemplo, o nome de sua esposa e o fato de ser o pai da vítima e finaliza
esclarecendo que o depoente não sabe dizer como isso pode ter ocorrido, pois sendo fato
dessa gravidade não poderia partir de denúncia anônima.
Nessa fase do processo, o interrogatório do réu tem a função de cientificá-lo das
acusações e dos motivos de seu encarceramento, dando oportunidade de manifestar-se. No
8
CÓDIGO PENAL - DECRETO-LEI Nº 2.848 DE 07.12.1940 - DOU 31.12.1940 - RET 03.01.1941
CAPÍTULO I
- DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL (ARTIGOS 213 A 216)
- Atentado violento ao pudor
Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se
pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 108
entanto, não há qualquer dado em sua declaração que esclareça o noticiado no Inquérito
Policial, já que o acusado reserva-se o direito de manifestar-se através de seu advogado.
A seguir, o Juiz designa data para a audiência de instrução criminal, com a presença do
réu e das testemunhas de acusação e deixa em aberto para que o advogado de defesa se
manifeste. O advogado apresenta a defesa prévia, relatando que o réu declara que não cometeu
o crime que lhe foi atribuído na denúncia, conforme provará na fase de instrução do processo,
justificando que utilizará todos os recursos probatórios permitidos.
Ainda não se vislumbram características da defesa concreta do réu, entendendo-se que
o advogado apenas segue o protocolo judicial relativo aos prazos a serem cumpridos.
Tomada de declarações de Testemunhas de acusação
Nessa fase processual, as testemunhas são ouvidas em audiência, onde o juiz as
interroga, como também o Promotor e o Advogado do réu, sendo que estes últimos fazem as
perguntas ao Juiz e, este julga a pertinência destas para então, refazê-las às testemunhas.
Testemunha - genitora da vítima
Em audiência, a genitora da tima informou ao Juiz que nunca presenciou qualquer
ato libidinoso praticado pelo acusado contra sua filha ou suspeitou de que algo errado
acontecia entre eles. Relata que não acompanhou a conversa entre o Conselheiro Tutelar e a
tima a respeito dos fatos e declarou acreditar que quem provocou a acusação deveria ser um
inimigo do réu, já que a denúncia foi anônima.
Afirmou em juízo não ser verdadeiro o teor de seu depoimento na Delegacia de Polícia
no qual consta que a tima, em conversa informal, lhe confirmou que o réu a molestava
sexualmente e concluiu que este é bom pai e bom marido.
O depoimento da genitora é integralmente contradirio ao prestado no Inquérito
Policial, no qual confirmava o discurso da tima. Naquela ocasião, descreveu os atos
incestuosos e ameaças comentadas pela filha, inclusive justificando sua demora em denunciar
judicialmente o acusado. Apenas dois meses as a denúncia, a genitora modificou sua
postura, preocupando-se em inocentar o marido e justificando que este seria alvo do interesse
de terceiros em prejudicá-lo com uma denúncia descabida. Não é incomum no caso de abuso
sexual incestuoso que a genitora, quando dependente emocional e materialmente do marido,
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 109
renuncie a sua iniciativa inicial de proteger a prole e parta em defesa do agressor no sentido de
livrá-lo da inculpação e posterior encarceramento.
A inconsistência desse depoimento da genitora pode ser analisada pela sua descrença
no discurso da tima e por seu desejo de que nada tivesse ocorrido, como também pela
possibilidade de julgar o abuso sexual como algo o tão grave que justifique o
aprisionamento de seu marido.
Por outro lado, a mãe enfrenta o dilema da escolha da vítima, a filha ou o companheiro.
Ainda que seja esperada da mãe a reação de proteger a filha mediante qualquer suspeita, sua
dinâmica individual de personalidade, o histórico de sua relação conjugal e a construção de
seu papel materno determinará seu posicionamento, consciente ou inconsciente diante do
abuso sexual.
Testemunha de acusação - avó materna da vítima
A importância do depoimento dessa testemunha destina-se ao esclarecimento sobre a
ameaça do réu de matar a esposa e a tima, o que foi confirmado, porém justificado por ela
pelo fato do genro estar nervoso.
A justificativa da testemunha tem a clara conotação de inocentar o réu, comungando da
mesma postura da genitora da criança. O temor da punição de um falso testemunho da qual foi
alertada anteriormente à tomada de suas declarações, fez com que confirmasse a ameaça
proferida pelo réu. Esta declaração não demonstra preocupação pela necessidade de proteção
à vítima e evidencia um comportamento freqüente entre os familiares de timas-crianças, em
uma clara tentativa de preservar a coesão familiar.
Testemunha de acusação - Conselheiro Tutelar
O teor das declarações em juízo ratifica as declarações prestadas na Delegacia pelo
Conselheiro Tutelar, que respondeu às reperguntas do Promotor de Justiça, afirmando que, no
início da conversa, a tima mostrou-se inibida, porém foi respondendo aos questionamentos
do depoente em detalhes e não somente respostas de sim e não.
Percebe-se que o Promotor procura extrair do depoente sua estratégia de entrevista com
a tima, prevendo que poderia ter sofrido indução ou sugestão. Contudo, está claro que a
tima sofreu mais de uma intervenção além dos depoimentos na Delegacia. O Conselheiro
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 110
confirmou ainda dados da entrevista com a genitora, relatando que, naquela ocasião, esta
apresentou discurso concordante ao da tima, mostrando-se consciente da queixa de abuso
sexual incestuoso.
Testemunha de acusação - amiga da genitora
Seu depoimento foi integralmente concordante com aquele que prestou na Delegacia,
confirmando que foi procurada pela genitora datima e que ouviu da própria vítima a
descrição dos atos incestuosos do réu contra si. Tal declaração apenas ratifica o que já foi
questionado na Delegacia, sem maiores informações sobre o caso, porém oferece elementos
comparativos positivos para a confirmação do abuso sexual.
Termo de Deliberação
Este documento é preparado para a audiência, contendo a manifestação do Promotor de
Justa, do Advogado do réu e do Juiz, seguindo esta ordem. Passada a palavra ao Promotor
este afirma sua desistência da oitiva da vítima e requer a Avaliação Psicológica, inferindo que
o objetivo é apurar o teor de suas declarações a respeito dos fatos e, oportunamente, se
necessário, requer que seja ouvida por determinação do juízo. A manifestação do Promotor
de Justiça viabiliza a oitiva da criança por profissional habilitado, preservando-a da exposão
a novos interrogatórios e gera melhores condições para a Avaliação Psicológica da mesma.
Nessa fase processual, constata-se a efetiva participação da Psicologia nos
procedimentos judiciais, no qual o Laudo Psicológico está representado como instrumento
probatório. Por outro lado, não foi descartada a possibilidade da tomada de declarações da
tima, ficando na dependência da qualidade da avaliação a ser apresentada quanto ao
esclarecimento do crime sexual.
O Promotor de Justiça esclarece sobre a necessidade de manter a prisão preventiva do
réu, descrevendo: Não se pode perder de vista que, em liberdade, o réu poderá dificultar e até
mesmo influenciar na realização do exame psicológico a que ise submeter a vítima, a fim
de avaliar seu estado e trazer subsídios, ainda mais, para a busca da verdade real acerca dos
fatos. Tal narrativa explicita a expectativa do representante do Ministério Público quanto à
Avaliação Psicológica, aludindo a respeito da busca da verdade real, que pode ser interpretada
como a tradução da palavra da vítima ou das subjetividades infantis.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 111
O Juiz homologou o pedido do Promotor de desistência da oitiva da tima, deferindo a
realização da Avaliação Psicológica a ser realizada pela Psicóloga do Juízo da Infância e da
Juventude. Concedeu às partes prazo para a apresentação de eventuais quesitos, com
fundamento no princípio da verdade real, sendo tal terminologia habitual no Direito que traz
implícito o conceito de justiça. As práticas discursivas são determinantes para a complexidade
da produção da verdade, a qual está subentendida em cada documento que compõe o processo
judicial em suas diferentes fases.
O Advogado do réu manifestou-se solicitando a concessão da liberdade provisória,
argumentando dentro dos limites legais e não fazendo referência à vítima ou às acusações.
Apresentação de quesitos do Ministério Público e do Advogado do réu
O Promotor de Justiça apresentou os seguintes quesitos a serem respondidos pela
Psiloga Judiciária:
A tima possuía compreensão e consciência sobre a gravidade dos fatos narrados nos
autos?
A tima possuía conhecimento sobre sexualidade? Apresenta precocidade quanto a
isto?
A tima apresenta características psicológicas condizentes à sua faixa etária ou
diferencia-se quanto ao excesso de fantasiosidade e/ou sugestionabilidade?
A tima indica sinais psicológicos que caracterizem abuso sexual incestuoso ou outro
tipo de estimulação sexual?
Qual a significação da figura paterna para a vítima?
Os quesitos apresentados denotam a preocupação em esclarecer até que ponto a
condição de criança da tima influencia na credibilidade de seu testemunho. Evidenciam os
esforços do Promotor em direcionar a ênfase na peculiaridade da condição infantil da tima e
do abuso sexual intrafamiliar. Estão explícitas suas intenções em gerar fundamentos para
embasar a acusação, delegando à psicologia como ciência do comportamento humano a
responsabilidade de participar da produção da verdade com seus conhecimentos específicos,
tornando possíveis as inovações nos procedimentos judiciais.
Entretanto as respostas aos quesitos poderão ser utilizadas tanto pela acusação quanto
pela defesa do réu, sendo necessários cuidados na utilização das terminologias e dos elementos
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 112
que comem o discurso da tima. As técnicas e a metodologia da psicologia precisam ser
amplamente utilizadas no intuito de favorecer a vítima na construção de um dizer verdadeiro,
correspondente a sua condição infantil.
No caso em questão, os quesitos apresentados oferecem a oportunidade de explicitar as
particularidades da tima e revelam a compreensão do Promotor a respeito da função da
Psicologia Judiciária.
Os quesitos apresentados pela defesa do réu são os seguintes
Se a menor pode ter sido induzida pelo representante do Conselho Tutelar?
Se a criança na idade da vítima pode ter fantasiado tais fatos?
Comparados aos quesitos da promotoria, estes quesitos são mais específicos e
direcionados, porém também trazem a suspeita da indução e da fantasiosidade que permeia o
imaginário social, quando a criaa é chamada a dar seu testemunho. A representação social
do abuso sexual infantil está contida em ambos os quesitos e relacionam-se à fantasia e a
sugestão ou indução que, freqüentemente, são utilizadas contra o testemunho da criança.
As dificuldades para tais respostas são reais, que a profissional não participou da
entrevista com o Conselheiro Tutelar e somente o discurso e a postura da tima é que lhe
fornecerão material para a análise, como também a comparação de sua declaração atual com
aquela prestada na Delegacia.
No Apêndice B, encontram-se as respostas aos quesitos do Ministério Público e da
Defesa referentes à Avaliação Psicológica realizada nos autos.
Inquirição das testemunhas de defesa
Foram ouvidas três testemunhas, as quais forneceram informações sobre a idoneidade
do réu e que não possuem dados que esclareçam os fatos narrados. Todas as testemunhas
foram unânimes em afirmar que desconhecem qualquer conduta que desabone o agressor,
exaltando suas qualidades paternas.
que se salientar que os atos incestuosos aconteciam na intimidade do lar e na
clandestinidade, sendo comum, nesses casos, que apenas o agressor e a vítima vivenciem a
cumplicidade que permeia a relação. Assim, a conduta social do agressor não é abalada pela
crueldade dos julgamentos morais, o que é bem ilustrado pelos depoimentos das testemunhas,
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 113
que asseveram a idoneidade do réu e o aparente bom desempenho de sua função paterna. De
maneira implícita, a representação social está presente na afirmação de que o réu é um bom
pai e pessoa inea, o que o exime da caracterização de agressor sexual pelas testemunhas.
A seguir, o Juiz delibera que os autos sejam remetidos à Seção de Psicologia do Fórum
para que se proceda a Avaliação Psicológica da tima e para que possa se apurar o teor de
suas declarações a respeito dos fatos, respondendo ainda, os quesitos apresentados pelas
partes, conforme o caso requer para a instrução desta ação penal.
Avaliação Psicológica da vítima
A Avaliação Psicológica foi realizada após três meses da denúncia à Delegacia de
Polícia. Em comparação a outros casos judiciais, o tempo decorrido não é longo, mas exerceu
influência no discurso da tima em razão da memória e das intervenções da família e dos
demais profissionais que atuaram no caso.
A análise psicodinâmica do caso refere-se não somente à vítima, mas também ao
contexto sócio-familiar em que está inserida. Assim, a entrevista com a genitora foi
direcionada para a qualidade de seu relacionamento com o acusado e com a tima, que
renunciou as suas declarações anteriores em favor do marido.
No presente documento, a genitora classificou o acusado como bom pai e marido,
insistindo em afirmar sobre a inexistência de atitudes entre ele e a tima que a levassem a
suspeitar de algo. Alega que teve conhecimento do atentado através do Conselho Tutelar,
revelando sinais de contradição às declarações prestadas anteriormente. Negou que tenha
conversado com a tima sobre o abuso sexual em qualquer momento, estando explícita sua
intenção de amenizar as declarações anteriores, as quais classifica como inverídicas. A análise
psicológica não descuida de avaliar os elementos subjacentes no discurso manifesto da
genitora, inferindo sobre a incongruência e inadmissibilidade da atitude materna em eximir-se
de conversar com a filha sobre o atentado, mediante a gravidade dos fatos. Seria
incompreensível a indiferença da genitora nesta situação, sendo clara sua tentativa em
dissimular.
Ainda em relação a genitora, a avaliação aponta para as resistências apresentadas
durante a entrevista, oferecendo respostas evasivas e inconsistentes ao ser questionada.
Embora reconheça que a criança não possua o hábito de mentir, acredita que tenha inventado
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 114
sobre o atentado sexual, mas desconhece os motivos que a levaram a tal denúncia. Percebe-se
nesse relato a visão da genitora sobre o ato delituoso, inculpando a tima, que admite sua
incredulidade na palavra da filha, o que sugere que tenha exercido pressão sobre a criança para
que esta desmentisse.
A Avaliação Psicológica constatou que tanto a genitora como a tima modificaram
seus discursos em favor do acusado, exaltando a dominação exercida por este nas relações
familiares. A tima negou-se a repetir o que declarou na Delegacia, apenas afirmando que
inventou o fato motivada pelo desejo em mudar-se da fazenda onde moravam.
O ato de desmentir as declarações anteriores autentica a argumentação de que a
criança, além das pressões familiares, sofreu revitimização, quando foi exposta aos
interrogatórios formais e legais, não desprezando a necessidade de se angariar provas para a
investigação e posterior julgamento, mas há que se alertar para a necessidade de mudanças no
acolhimento da denúncia e dos posteriores procedimentos legais. O tempo decorrido e as
diferentes intervenções sofridas são elementos que devem ser avaliados na entrevista
psicológica com a criança, não se atendo o profissional apenas à palavra da tima, mas sim ao
conjunto de características que apresenta, bem como o contexto familiar do qual provém.
O objetivo da Avaliação Psicológica, além de oportunizar à tima um canal de escuta
alternativo no contexto judiciário mediante técnicas projetivas e brinquedos, é tamm
oferecer fundamentação para o deslinde e julgamento da ação judicial. Especialmente no
presente caso, a narrativa da profissional apresentou uma frase que denotou insegurança e
dificultou a sentença judicial, embora no conjunto discursivo tenha apresentado significações
contundentes que comprovaram o crime sexual: Em virtude da criança haver desmentido o
que denunciou anteriormente, não foi possível a confirmação da vitimização sexual
incestuosa, mas há evidências em seu discurso latente de que vivenciou algum tipo de relação
interpessoal de caráter abusivo, marcada pela coerção física e/ou psicológica. Nesse
aspecto, pode-se afirmar seguramente que a experiência profissional é determinante nas
práticas discursivas, pois ao comparar os Laudos Psicológicos no decorrer dos anos uma
evidente modificação quanto a afirmar não somente a ocorrência do abuso sexual, como
também a nomeação do agressor pela tima.
Entretanto, mais adiante e em diferentes fases processuais, será realizada a análise das
respostas, mediante a maneira como foi utilizada a Avaliação Psicológica nos procedimentos
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 115
judiciais e pelas práticas discursivas apresentadas pelos próprios operadores do Direito que se
manifestaram nos autos. O cuidado é necessário, uma vez que a profissional que atuou no
caso é a responsável pela presente pesquisa, porém, no Apêndice B, está contido o relatório de
Avaliação Psicológica na íntegra, preservadas as identidades dos envolvidos e dos
profissionais que atuaram no caso.
Seguindo o curso da instrução processual, ao receber o relatório da Avaliação
Psicológica, o Promotor de Justiça colocou-se de acordo e o Advogado nada opôs, cabendo ao
Juiz homologar o Laudo Pericial.
Alegações finais - Ministério Público
Após uma breve análise de cada fase processual, o Promotor de Justiça fundamentou a
acusação reconhecendo a ação penal como procedente. Descreveu que a autoria e a
materialidade do delito foram plenamente demonstradas nos autos, no qual mediante violência
presumida, a vítima foi constrangida pelo próprio pai a praticar ato libidinoso diverso da
conjunção carnal.
Argumenta que a materialidade está devidamente comprovada pelos testemunhos
angariados aos autos, bem como pelo laudo de Avaliação Psicológica de fls. 97/100, sendo
certo, ainda, que se harmoniza com a prova de autoria, ante o farto conjunto probatório, que
comprova, de maneira inequívoca, a prática do delito de atentado violento ao pudor por parte
do réu. Além disto, a interpretação do Promotor baseia-se em cada uma das declarações das
testemunhas, explicitando as contradições e ratificações que favorecem a acusação, sendo sua
análise bastante clara e fundamentada nas narrativas até então apresentadas. A importância das
práticas discursivas e a maneira como são redigidas e interpretadas em cada fase processual,
está evidenciada na produção da verdade a ser comprovada ou refutada por outras práticas
discursivas, cada uma em sua especificidade.
O Promotor incorpora, em sua análise, a verdade produzida pela Psicologia Judiciária
ao inferir que, pelo laudo de Avaliação Psicológica, ficou devidamente demonstrado que, de
fato, o réu cometeu o delito a ele imputado, esclarecendo que a vítima, bem como sua
genitora, procuraram eximir o acusado de suas responsabilidades. Ainda que o Promotor faça
valer tais argumentos em sua narrativa, verifica-se que não há alusão clara à culpabilidade do
réu no Laudo Psicológico, mas sim a pertinência do discurso e das características psicológicas
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 116
da criança quanto à vivência do abuso sexual, o que foi bem utilizado pelo representante do
Ministério Público. Para fundamentar suas convicções, o Promotor utiliza ainda trechos do
Relatório da Avaliação Psicológica, com grifos próprios, incorporando ao seu discurso a
leitura psicológica do caso.
Aproveita ainda jurisprudências pertinentes aos casos de atentado violento ao pudor
que corroboram sua alise e conclui que provas suficientes para a incriminação do réu,
opinando que, por se tratar de crime hediondo e réu primário, a pena seja fixada no nimo
legal a ser cumprida em regime integralmente fechado.
Advogado do réu
Ao referir-se às considerações do Promotor, o Advogado alega que as testemunhas
nada presenciaram dos fatos e basearam suas declarações no que foi relatado pela genitora da
tima e esta o confirmou, em juízo, suas alegações anteriores. Classifica as declarações das
testemunhas como confusas, atendo-se ao fato da genitora e da vítima modificarem seus
discursos e nos bons antecedentes do réu.
Contesta o Laudo Psicológico, isolando no texto o que lhe interessa, ao contrário da
narrativa do Promotor: a mãe declara que o acusado é bom pai e bom marido e que nunca
presenciou qualquer atitude inadequada do acusado com relação à tima, informando, ainda,
que possuía vida sexual com o amásio, mantendo relações sexuais diárias, valendo-se da
descrição da entrevista psicológica e o da análise decorrente.
Desmerece os procedimentos utilizados na Avaliação Psicológica ao afirmar que a
Psiloga deduziu, grifando este termo, que a genitora e a vítima tentaram camuflar a denúncia
contra o acusado ao desmentirem as declarações anteriores. Concluiu que o Laudo Psicológico
mostrou-se frágil e inconsistente, desconsiderando-o como prova do crime e, ao contrário,
servindo como prova da inexisncia do crime diante da declaração da vítima de que o fato
denunciado não ocorreu e de sua admissão que mentiu ao formular a acusação.
A narrativa do Advogado demonstra os diferentes caminhos que podem ser traçados
pela interpretação das práticas discursivas de distintas áreas de atuação, estando na
dependência da postura profissional dos operadores do Direito que incorporam diversos
sentidos aos seus discursos, como também a representação social do abuso sexual infantil de
cada profissional.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 117
Insiste o defensor em evidenciar que a contradição no relato da tima o desqualifica,
referindo que, em crimes desta natureza, a palavra da tima é fundamental principalmente
quando o Exame de Corpo de Delito nada comprova. Estas afirmações confirmam o
despreparo do profissional em compreender a modalidade do abuso sexual infantil que não
deixa vestígios físicos, mas sim sintomas psicológicos, equivocando-se em tratar tal crime
como outro crime qualquer, sem evidenciar as particularidades que envolvem a infância.
Finaliza sua narrativa requerendo a absolvição do réu pela ausência de provas.
Sentença Judicial
O início da decisão judicial proferida pelo Juiz de Direito discorre sobre o ato
delituoso, em que o acusado nega as acusações e o Ministério Público opina pela procedência
da ação penal por estarem provadas a materialidade e a autoria delitiva, bem como a defesa
requer a absolvição do réu por insuficiência probatória. Vale ressaltar que, no presente caso, o
Juiz que proferiu a sentença o é o mesmo que iniciou o processo, sendo este substituto do
primeiro.
Após a descrição das alegações finais o juiz se manifesta fazendo referência à dúvida
da existência do crime relatado na denúncia, dúvida essa que se resolve em favor do acusado,
diante do princípio do in dubio pro reo. Isso porque, não sendo demonstrada a materialidade
através da prova pericial, a única prova de materialidade em crime sexual praticado na
clandestinidade, é a palavra da vítima, que deve ser coerente e harmônica, a ponto de não
deixar dúvidas acerca da existência do delito, o que, data vênia, não ocorreu no presente
caso. A narrativa do juiz demonstra sua insegurança em fundamentar a decisão baseando-se no
Laudo Psicológico, preferindo a orientação legal de apoiar-se na palavra da tima no sentido
real do termo, desconsiderando a análise interpretativa contida na Avaliação Psicológica.
O Juiz avalia concretamente a reação da vítima na entrevista psicológica, na qual esta
se retrata afirmando à profissional que inventou o abuso sexual devido ao desejo de mudar-se
para a cidade. Percebe a justificativa ingênua da tima e complementa talvez em decorrência
de sua idade (07 anos), é certo que a vítima, ao longo de toda a conversa com a psicóloga,
não deixou de afirmar que o crime narrado na denúncia não ocorreu, ou seja, manteve sua
versão de que inventou tudo a respeito de seu pai. O Magistrado se ateve ao discurso
manifesto da tima, ignorando os referenciais psicológicos que explicam a organização
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 118
pessoal da criança, suas reações e atitudes relativas à problemática que vivenciou e que estava
vivenciando diante de sua inserção na formalidade do contexto judiciário. As representações
sociais constrdas sobre a sexualidade e a infância estão materializadas na narrativa do
Magistrado, na qual as duas temáticas envolvem também uma postura pessoal relativa às
crenças e valores do profissional.
No parágrafo seguinte, reafirma sua insegurança e confusão causada pela renúncia da
criança às acusações anteriores, evocando que tal mudança no conteúdo de suas declarações
gerou neste magistrado dúvida bastante a não autorizar o decreto condenatório, que exige a
segurança e certeza da materialidade e autoria delitiva. O juiz apega-se às contradições e
antagonismos expostos nas narrativas da tima e de sua genitora, o que o impede de proferir
uma sentença condenatória, já que não encontra respaldo legal para formar tal convicção.
Conclui a sentença afirmando não encontrar comprovação suficiente da materialidade
do delito, pois sempre haverá a dúvida se a vítima e sua genitora denunciaram falsamente o
réu e depois se arrependeram ou se denunciaram corretamente e depois se arrependeram, não
sendo suficientes indícios para a condenação deste. Insto posto, julgo improcedente a
presente ação penal, para fim de absolver o réu. Os equívocos gerados estão embasados na
teoria do falso testemunho e da vulnerabilidade natural da criança, que são conceitos oriundos
dos sentidos construídos no cotidiano e que constituem as representações sociais que orientam
os valores e juízos, conforme já descritos ao longo deste trabalho.
Em seguida, o Juiz expediu o alvará de soltura do réu. que se esclarecer que a
postura e posterior decisão do Magistrado, neste caso, é particular e não existe uma
uniformidade de sentença no exercício da magistratura quanto ao abuso sexual infantil. A
experiência e a decorrente segurança profissional são fundamentais para que o Juiz possa
utilizar-se de outras ciências em suas sentenças finais, sem temor de incorrer no erro. A prática
profissional no âmbito forense e as jurisprudências confirmam tal fato.
Recurso de Apelação do Ministério Público
O Promotor de Justiça apelou da sentença e enviou recurso ao Egrégio Tribunal de
Justa do Estado de São Paulo, Seção Criminal, apresentando inicialmente um relatório dos
autos. Mediante a análise de algumas das práticas discursivas apresentadas no decorrer do
processo judicial, apresentou a construção do conjunto probatório. Relatou que a Avaliação
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 119
Psicológica harmonizou com a prova da autoria e fez citações de bibliografias jurídicas que
versam sobre a violência doméstica e o abuso sexual infantil incestuoso, com ênfase no
domínio patriarcal e capitalista exercido pelo réu, tanto sobre a tima quanto sobre a esposa,
fundamentando que a retratação de ambas está vinculada ao temor referencial que o apelado
nelas impõe e continua, mormente por ser este o chefe da família, responsável
financeiramente do lar, somado ao fato de que a genitora prefere a libertação do apelado
mesmo sendo suscetível sua filha sofrer futuros abusos, os quais, com certeza, ocorrerão a
ver seu homem aprisionado, dele dependente financeiramente.
As alegações do Promotor trazem forte apelação social, incorporada às características
psicológicas comumente encontradas nos casos de abuso sexual infantil incestuoso e utiliza-se
da narrativa da Avaliação Psicológica para justificar suas conclusões: O laudo psicológico
veio corroborar o acima aludido, comprovando, desta forma, que de fato o réu cometeu o
delito a ele imputado, mormente porque a Srª. Psicóloga esclareceu que a vítima, bem como
sua genitora, procurou descriminar o réu. A seguir faz referências a parágrafos inteiros
contidos no Laudo Psicológico e mescla em seu discurso a leitura psicológica, colocando-a em
grifo próprio, como, por exemplo, ao referir-se a uma das afirmações da psicóloga: Afirma
também, que a ofendida apresentava características evidenciadoras de pessoas que sofreram
vitimização, sendo que os depoimentos da criança e da genitora, na Delegacia de Polícia, em
datas diferentes, são concordantes e detalhados, não podendo caracterizar, assim, discurso
induzido. Ademais, concluiu, que...há evidências em seu discurso latente de que vivenciou
algum tipo de relação interpessoal de caráter abusivo, marcada pela coerção sica e/ou
psicológica. A criança aparece duplamente como vítima do suposto abuso sexual e da
incredulidade dos adultos e cria mecanismos para adaptar-se a esta situação, percebendo que
seu depoimento deve confirmar ou anular a realidade dos fatos. Os grifos são trechos
integrais do Laudo Psicológico, porém interagem com as palavras do Promotor, formando um
conjunto de discursos integrado e facilitador para os Desembargadores que irão julgar em
segunda instância.
A importância de uma narrativa clara e consistente ao se realizar uma Avaliação
Psicológica se materializa nas apelações dos operadores do Direito que necessitam da
fundamentação das provas para formar suas convicções. Em contrapartida, podem ser
utilizados determinados conceitos de maneira descontextualizada do todo da Avaliação
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 120
Psicológica, prejudicando o deslinde adequado da ação judicial e, por este motivo, a narrativa
deve apoiar-se nos fundamentos e metodologia da psicologia, com consciência de que suas
argumentações serão utilizadas por outros profissionais.
Segue o Promotor declarando que a palavra da tima é de suma importância para a
resolução de crimes contra os costumes, em função de estes serem cometidos às escondidas e
sem presença de testemunhas. No entanto, faz referências a fase administrativa do processo,
aquela relativa ao Inquérito Policial, em que as declarações da tima e de sua genitora são
inequívocas e convincentes, devido à riqueza de detalhes, e completa, somado ao fato de que
guardou total simetria com os demais elementos dos autos, colhidos em juízo, principalmente
o laudo psicológico e os testemunhos produzidos pela acusação. Portanto, segundo a
valoração do Promotor, o Laudo Psicológico serve de fundamento para a condenão do réu,
conjuntamente com as demais provas produzidas nos autos, afirmando ainda: a conclusão da
Srª. Psicóloga é clara e precisa, não deixando quaisquer dúvidas no sentido de que tentaram
camuflar a denúncia, somado ao fato de que, em várias vezes, entraram em contradição. Isso
vem a corroborar com os testemunhos apresentados, que evidenciam tal fato.
O Promotor acolhe as críticas contidas no Laudo Psicológico quanto aos
procedimentos ocorridos anteriormente à entrevista psicológica e as utiliza como justificativa
para a compreensão da negação posterior da tima em juízo, reproduzindo mais uma vez o
discurso da Psicologia. O papel acusador do Promotor de Justiça encontra respaldo em outra
área da ciência, que não o Direito, utilizando-a no decorrer de toda a sua apelação. Percebe-se,
neste caso, uma defesa do Promotor de Justiça a cada um dos argumentos da Psicologia, visto
que estes foram refutados pelo Juiz de primeira instância, o qual ateve-se apenas à palavra da
tima.
A clara compreensão do representante do Ministério Público, neste caso, de que a
criança negou os atos libidinosos por sentir-se desprotegida e desacreditada está embasada na
Avaliação Psicológica, sendo que sua conclusão comunga com aquela apresentada no Laudo,
mesmo sem haver a palavra de confirmação da vítima. O conjunto de representações e
sentidos construídos social e historicamente a respeito da sexualidade e da infância é
fundamental para análise dos casos complexos que envolvem o abuso sexual infantil e
incestuoso. o é somente o fato de que a tima desmentiu o ocorrido que pesa no
julgamento, mas sim os atos dos quais o réu é acusado, provindos da fala de uma criança de
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 121
sete anos de idade. Mediante a vida, a tenncia é desacreditar da criança ou mesmo das
práticas discursivas que explicitam suas subjetividades e influências sofridas, como o fez o
Juiz.
O conhecimento da sexualidade infantil, objeto de estudo da Psicologia, foi explicitado
no Laudo Psicológico e utilizado para elucidar as dúvidas quanto à fantasiosidade da tima,
levando o Promotor a referendar a conclusão da Psicologia de que a criança não tenderia para
a esfera da sexualidade e com os detalhes apresentados nos depoimentos se quisesse inculpar
o réu, seu pai.
Para concluir sua apelação, utiliza uma jurisprudência bastante cavel no caso em
questão, por oferecer semelhanças que podem servir de refencia para o julgamento da ação
apelatória, transcrevendo o entendimento jurisprudencial:
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR agente que, com claro objetivo de satisfazer
sua lascívia, pratica atos atentatórios ao pudor com sua enteada, sob ameaça de morte fatos
descritos pela tima na fase policial retratação em juízo desprovida de qualquer amparo -
condenação mantida apelo improvido Nos crimes contra a liberdade sexual, é
inquestionável que a palavra da tima assume relevante valor no esclarecimento dos fatos.
Tendo a mesma imputado a autoria do réu na fase policial, descrevendo detalhadamente o
modo como ocorreu o delito, de forma coerente, restando a materialidade comprovada através
de laudo pericial, a condenação é medida que se impõe, ainda que haja retratação em juízo, se
esta é visivelmente mentirosa.”(TJSC – Acórdão criminal 98.011075-0 – SC- 2º Câmara
Criminal Relator Desembargador José Roberge – J. 03.11.1998).
A importância de cada profissional em uma ão judicial está contida nos discursos
apresentados e na forma particular de atuação dos operadores do Direito, que encontram o
suporte da Lei para diferentes resoluções. O Promotor critica a postura do Magistrado
sentenciante declarando que utilizando-se do sistema da livre convicção do juiz adotado
pelo Código de Processo Penal não analisou as provas consubstanciadas. Mediante tal
crítica e considerações finais a respeito da necessidade de proteger a vítima do convio com o
réu, dando total credibilidade a sua primeira declaração e a posterior análise psicológica dos
motivos que a levaram a retratar-se, requer a condenação do réu em regime integralmente
fechado.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 122
Advogado do Réu - contra-razões de apelação
O defensor do réu se manifesta contrário às apelações do Promotor de Justiça, tecendo
alegações a favor da sentença proferida pelo Juiz, utilizando a conclusão do Laudo de Exame
de Corpo de Delito para justificar que o vestígio do crime relatado nos autos.
Novamente, exaltou as qualidades do réu como pai e marido e as declarações das testemunhas
que não presenciaram o ato libidinoso, ignorando a revelação e denúncia inicial da tima, em
um claro descrédito ao seu testemunho.
Refere-se a algumas descrições contidas no Laudo Psicológico, utilizando apenas o que
favorece o réu e descartando a análise interpretativa da fala da tima e da genitora. Salienta
que a suposta tima relatou à psicóloga haver inventado o abuso sexual e que a profissional
deduziu que esta tentava camuflar a denúncia contra o apelado. Concluiu, repetindo as
palavras utilizadas em petição anterior, que o Laudo mostrou-se frágil e inconsistente, não
podendo ser considerado como prova do crime, e advertiu que, por estes motivos, a
materialidade e a autoria não foram comprovadas.
O Advogado alega novamente a inexistência da palavra da tima em juízo,
desqualificando sua declaração inicial e requerendo aos julgadores que neguem o provimento
ao recurso de apelação determinando pela sua improcedência. A seguir, foi feita a remessa dos
autos ao Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo.
4.2.3 Julgamento em Segunda Instância - Egrégio Tribunal de Justiça
Os autos processuais são recebidos pelo Egrégio Tribunal e apresentado à Procuradoria
Geral de Justiça do Ministério Público, seguindo os trâmites legais, conforme ocorre em
primeira instância e o Procurador de Justiça ofereceu seu parecer a respeito da apelação.
Procuradoria Geral de Justiça
O Procurador iniciou sua narrativa, utilizando linguagem jurídica e rebuscada; afirmou
que o recurso deve ser provido e ao apresentar suas considerações descreve detalhes do
discurso apresentado pela tima na fase inquisitória relativas aos atos libidinosos
denunciados. Alega que as declarações da tima apresentam-se de modo claro e detalhado,
dando credibilidade ao testemunho da criança em função das características de sua linguagem
e a pertinência dos detalhes sexuais.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 123
Reconhece que a Avaliação Psicológica realizada traz análise contextualizada da
criança e oferece elementos compatíveis ao conjunto probatório. Mais uma vez a narrativa
psicológica incorpora-se ao discurso jurídico, no qual o procurador cita segmentos do Laudo
Psicológico. As significações a respeito da infância e da sexualidade se concretizam na fusão
de discursos semelhantes e de áreas de atuação diferenciadas. Utiliza a análise psicológica
integral para justificar o fato da criança desmentir em juízo o atentado sofrido e complementa
com seu próprio discurso: A experiência forense nos ensina que, como regra, as crianças não
fantasiam os fatos, uma vez que somente relatam sua própria experncia e não podem
fabricar informação, a menos que tenham sido expostas a elas. O depoimento infantil não
pode ser desprezado. Se por um lado é certo que deve ser analisado com cautela, por outro,
quando confirmado pelos demais elementos de prova, torna-se confiável e revelador de
sinceridade. Fundamenta suas argumentações com diferentes apelações do Ministério Público
que evidenciam a importância que deve ser dada para a palavra da criaa, sendo que os
seguintes julgados demonstram que a possibilidade de se inculpar o réu baseando-se no
testemunho desta e apresentam bastante semelhança com o caso judicial em questão:
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR – Prática pelo pai – Palavra da vítima
Validade Corroboração pelos demais elementos Violência presumida eis que menor de 14
anos Recurso não provido. (Relator: Luiz Betanho Apelação Criminal 130.599-3 Tanabi
– 04.11.92)
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR Caracterização tima, menor de 14 anos,
que manteve-se firme em suas declarações Prova segura e conclusiva da imputação feita ao
réu Condenação mantida Recurso não provido.(Relator: Sinésio de Souza Apelação
Criminal nº 146.681-3 – Franca – 04.04.94)
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR Violência presumida Caracterização –
tima menor de 14 anos Materialidade comprovada diante de exame pericial Palavras da
tima, que ademais, encontram ressonância no contexto probatório Recurso não provido. A
criança, a despeito de sua imaturidade, não é mentirosa por princípio, especialmente quando se
trata de imputar a alguém, contra quem nada tem aparentemente, crime tão grave quanto
comprometedor de sua intimidade e de seu anonimato. (Relator: Canguçu de Almeida –
Apelação Criminal nº. 161.203-3 São Paulo – 30.05.94)
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 124
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR Violência presumida Vítima menor de 14
anos de idade – Pretendida a absolvição sob o argumento de que o testemunho infantil é falível
inadmissibilidade Vítima que relatou os fatos com idêntica postura e coerência nas duas
oportunidades em que foi ouvida inexistência de motivos a se impugnar o depoimento
infantil – Recurso não provido. (Relator: Renato Nalini – Apelação Criminal 97.254-3 –
Ourinhos –22.04.91)
Segundo explicita o Procurador em sua manifestação, na dialética processual cabe à
acusação a demonstração dos fatos e sua autoria. Esta tarefa se encontra perfeita e acabada,
fazendo referência à narrativa do Promotor de Justiça e sua forma de atuação,
complementando com fundamentações teóricas a respeito das provas em matéria penal.
Concluiu que é inegável, pois, que o conjunto de circunstâncias e indícios existentes nos autos
fornecem esteio para a comprovação da responsabilidade criminal do u. Em defluência da
exposição retro, respeitosamente, ofereço parecer no sentido do provimento do recurso.
Portanto, o Procurador corrobora com a apelação do Promotor, fornecendo mais elementos
que contribuirão para o julgamento final da ação, fundamentando seu discurso com apelações
primorosas sobre a validade do testemunho da criança.
Após o parecer do Procurador de Justiça, o processo segue para a apreciação do
Tribunal de Justa, no Grupo de Câmaras de Direito Criminal, onde a Apelação Criminal
será julgada por três desembargadores e será, então, firmado o Acórdão, que é a decisão
tomada coletivamente.
Acórdão
Após quatro anos da denúncia, por maioria de votos, a Primeira mara Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, deu provimento ao recurso do Ministério Público
para condenar o réu, impondo-lhe a pena privativa de liberdade de sete anos e seis meses de
reclusão em regime inicial semi-aberto.
O relario completo do acóro, no qual um dos desembargadores é o relator, inicia
com uma breve descrão da apelação do Ministério Público e da denúncia, explicitando que o
réu foi absolvido em primeira instância por insuficiência probatória e que o representante do
Ministério Público apela buscando a reforma da decisão.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 125
De início, a narrativa do Acórdão já afirma que o recurso deve ser acolhido, apesar da
negativa do delito pelo réu e da retratação da genitora, concordando que há elementos
probatórios suficientes para se concluir pela ocorrência do delito. Continua versando sobre
cada uma das declarações das testemunhas e da concordância em seus discursos, atendo-se em
detalhes da fala de cada uma delas que indicam a veracidade dos fatos.
Tal relatório faz uma análise geral do processo, integrando cada uma das práticas
discursivas, como a conclusão de um livro escrito por diferentes autores, mas que têm uma
finalidade comum. Detém-se em cada uma das declarações colhidas pelos diferentes
profissionais na fase do Inquérito Policial, sempre com o cuidado de afastar a hipótese de
imputação inventada e esclarece que cumpre observar que nem sempre é possível a
comprovação do abuso com base apenas nas declarações da vítima, sobretudo quando existe
vínculo parental entre autor e vítima. Depois, é preciso dar crédito à suposta influência que o
pai exerce sobre a família, em termos econômicos e morais. Nota-se a sensibilidade da análise
do Juiz Desembargador, sendo sua narrativa voltada para a esfera das relações sócio-familiares
e do poder que o réu exercia sobre a família. Considerou que a Avaliação Psicológica atestou a
coerência da narrativa da tima e a improvável existência de fantasiosidade em seu discurso,
concluindo que a vítima evidenciava submissão a algum tipo de coerção física ou psicológica.
O relatório fez referência ao Laudo Médico do Exame de Corpo de Delito, o qual não
verificou lesões ou escoriações compatíveis, sendo contestado mediante a descrição dos atos
libidinosos e da incapacidade lesiva destes para produzir ferimentos visíveis.
Finaliza o julgamento, versando que o recurso deve ser provido para condenar o réu,
fixando a pena em sete anos e seis meses de reclusão e determina o início da pena em regime
semi-aberto, considerando que o réu é primário. Conclui: Ante o exposto, dão provimento ao
recurso do Ministério Público para condenar o réu como incurso no art.214,c.c. o art. 224
9
,
‘a’, e 226, inc.II
10
, todos do Código Penal, impondo-lhe pena privativa de liberdade de sete
9
Aplicado o art. 214 concomitante com os artigos que seguem: reafirmou o que havia relatado na entrevista
psicológica
Art. 224 – Presume-se violência, se a vítima:
-não é maior de 14 anos
alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância
-não pode, por qualquer causa, oferecer resistência
10
Art.226 - A pena é aumentada:
I - de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 126
anos e seis meses de reclusão em regime inicial semi-aberto, vencido o juiz, que fixava
sistema inicial fechado.
Conclusão do processo
A inculpação do réu seguiu uma dispendiosa trajetória, bem como a multiplicidade das
intervenções à tima contribuiu para que esta se sentisse insegura e retificasse seu
depoimento inicial, dificultando não somente o trabalho da justiça, como também lhe
causando prejuízos emocionais.
que se salientar as dimensões psicológicas das atuações profissionais neste caso,
relacionando-as à forma como cada profissional, como indivíduo assimila a realidade social
em um processo histórico e não natural considerando a ideologia como determinante de
formas de pensar e agir. A ideologia integra também estas representações e influencia
diretamente na consciência individual, pois envolve os indivíduos em uma universalidade
imaginária, em que se identificam e se localizam. De acordo com Salles (1991) a ideologia se
concretiza nas representações sociais e é expressa no exterior, no mundo, pelas ações e
linguagem dos homens.
É preciso desfamiliarizar-se dos conceitos que se transformaram em crenças e que não
permitem que novos conceitos sejam construídos; é preciso problematizar a noção de realidade
e mudar de perspectiva sobre a verdade. Neste caso, observam-se dois tipos de posturas
distintas, a do Juiz de primeira instância que optou por manter-se apegado apenas às normas
jurídicas, a da genitora da tima que preferiu revitimizar a filha imputando a ela o papel de
mentirosa diante da exposição social e , obviamente, o defensor do réu que, aproveitando-se
das posturas destes construiu a defesa. De outro lado, encontram-se os demais profissionais,
Promotor de Justiça, Psicóloga, Procurador de Justiça e Desembargadores que utilizaram
outros referenciais e representações para a análise do abuso sexual, em uma clara valorização
à palavra da vítima.
A transparência das palavras do discurso é fundamental nas relações de comunicação,
pois podem gerar diferentes formas de interpretação. É importante questionarmos se o
discurso em questão dá ou não acesso à verdade.
II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor,
curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela;
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 127
jogos de verdade nos quais a verdade é uma construção e outros em que ela não o é.
É possível haver, por exemplo, um jogo de verdade que consiste em descrever as
coisas dessa ou daquela maneira: aquele que faz uma descrição antropológica de uma
sociedade não faz uma construção, mas uma descrição - que tem por sua vez um certo
número de regras, historicamente mutantes, de forma que é possível dizer, até certo
ponto, que se trata de uma construção em relação a outra descrição. Isso não significa
que não se está diante de nada e que tudo é fruto da cabeça de alguém (FOUCAULT,
2004, p.120).
A relação entre a linguagem e a ação confere poder aos discursos emanados de
diferentes esferas de saber, uma vez que o discurso é tão produtor de realidade, quanto a ação
concreta. A Teoria das Representações Sociais está comprometida com a desconstrução da
retórica da verdade, legitimando o conhecimento do senso comum, dos saberes cotidianos
como propulsores da transformação social.
A exposição e discussão do Caso 2 seguirão a mesma dinâmica do Caso 1, que serão
realizadas na seqüência.
4.3 CASO 2: A LIBERDADE DA PALAVRA
Em concordância com o Caso 1, a descrição e a análise deste caso foram realizadas,
simultaneamente, em cada uma das fases processuais, objetivando fornecer um estudo de caso
completo e explicativo. As formas de atuação dos profissionais e os conseqüentes
procedimentos judiciais do Caso 2 são bastante distintos do Caso 1, gerando resultados
positivos e que beneficiaram não somente a tima, como também o desempenho da justiça.
No Caso 2, observa-se que a trajetória das intervenções pode tomar diferentes rumos, estando
na dependência da maneira de acolhimento da denúncia e da iniciativa dos profissionais
envolvidos em proteger a criança-vítima e preservar seu discurso de interferências
desnecessárias.
Os processos consultados são uniformes quanto ao recebimento da denúncia na
Delegacia de Pocia e no Conselho Tutelar, o que diferencia o presente caso de todos os
demais, que a denúncia do crime sexual foi efetuada ao Juizado da Infância e da Juventude.
Tal diferencial faz deste caso um exemplo inédito em relação aos demais e bem sucedido nas
mudanças dos procedimentos judiciais, sem interferir nas necessárias providências legais.
Este caso teve início na Vara da Infância e Juventude mediante ação judicial de Pedido
de Provincias e após constatação da efetivação do abuso sexual, foi remetido à Delegacia de
Polícia para instauração de Inquérito Policial e, então, tornou-se uma ação penal. O caso
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 128
estudado foi enviado para julgamento em segunda instância, porém, os motivos que levaram
ao recurso em segundo grau não se referem à credibilidade do discurso da criança, mas
relaciona-se à contestação da fixação da pena ao réu, o que não é de interesse desta pesquisa e
não será analisado. O Quadro 3 , traz os dados comparativos ao Caso 1:
CASO 2 -
Ação: Crime de Atentado Violento ao Pudor
Vítima: Menina
Idade: 08 anos
Réu: Pai – processo abusivo intrafamiliar
Data da Ocorrência: 2006
Revelação: da vítima para a avó materna
Denunciante: Avó materna
Recebeu a denúncia: Voluntariado do Juízo da Infância e da
Juventude
Depoimento na Depol Não ocorreu
Avaliação Psicológica Confirmou
Audiência com Juiz Concordante com a Avaliação Psicológica
1ª instância Condenação do réu
2ª instância Relativa a comutação da pena
Quadro 3 - Banco de dados do caso 2
Características do Caso: A denúncia foi recebida de maneira incomum, embora
dentro da legalidade; a Avaliação Psicológica foi o primeiro procedimento utilizado com a
tima; a tima foi encaminhada ao Fórum para a entrevista psicológica sendo preservada da
multiplicidade dos interrogatórios; confirmou o abuso sexual na entrevista com a Psicóloga
Judiciária; a genitora e o acusado foram atendidos na Seção de Psicologia no dia seguinte à
denúncia, sendo cientificados do teor desta; o acusado confessou os atos libidinosos cometidos
contra a criança na entrevista psicológica, na Promotoria Pública e em audiência; a tima não
foi ouvida na Delegacia de Pocia (Depol), somente em audiência no Fórum, mas em um
momento em que se encontrava protegida e segura de ameaças; o Juiz de primeira instância
condenou o acusado utilizando a Avaliação Psicológica no conjunto probatório, sendo este réu
confesso; Recurso do Advogado do Réu pedindo diminuição da pena imputada.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 129
4.3.1 1ª Fase - Poder Judiciário: Pedido de Providências
Voluntariado da Infância e da Juventude
O voluntariado da Infância e da Juventude é composto por pessoas nomeadas pelo Juiz
de Direito, de sua confiança. Os critérios de nomeação são fixados por provimento do
Conselho Superior de Magistratura e a função principal dos voluntários é de fiscalizar os
estabelecimentos em que é proibido receber crianças ou adolescentes. Entretanto, estão a
serviço da justiça no sentido de protegê-los de qualquer situação que ameace sua integridade
física e psicológica.
No presente caso, a suspeita de abuso sexual da criança foi denunciada pela avó
materna a um dos voluntários da Infância e da Juventude da Comarca, já que não havia
Promotor de Justiça para receber tal denúncia naquele momento. Há que se esclarecer que em
diversas oportunidades, nas Comarcas de cidades de pequeno porte, o Promotor de Justiça
necessita atender em substituição a colegas nas Comarcas maiores da circunscrição e sua
presença pode não ser contínua em cada Fórum.
O voluntário solicitou as providências cabíveis ao Juiz, encaminhando uma informação
por escrito, em segredo de justiça, constatando que a avó materna compareceu ao Fórum
declarando que sua neta de 08 anos de idade lhe revelou que o genitor a molestava
sexualmente, sendo que a criança o foi ouvida pelo voluntário. Em uma atitude inovadora, o
Juiz determinou a imediata Avaliação Psicológica da tima, com entrevista agendada para a
manhã seguinte após contato pessoal com a profissional. Com tal atuação foi possível
preservar a tima de outras intervenções, bem como propiciar condições favoráveis para um
atendimento eficaz.
O Juiz enviou ao Ministério Público o Pedido de Providências do Voluntariado,
iniciando, assim, os procedimentos legais. A fim de não ocasionar interferências no discurso
da criança, nem constrangimento familiar para ela, o Juiz oficiou ao Conselho Tutelar que
buscasse a tima na escola e a acompanhasse, juntamente com a avó, ao Fórum para a
realização da entrevista. Assim, sem a participação do acusado e da genitora foi oferecida à
criança uma situação facilitadora e segura para que externalizasse seus sentimentos e
percepções, livre de sugestões ou induções. Também foi oficiada à escola a liberação da
criança ao Conselho Tutelar.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 130
É notável a iniciativa e a disponibilidade do Juiz em proteger a criança da
multiplicidade dos interrogatórios e o reconhecimento de que a Psicologia trará elementos
efetivos para o conjunto probatório desde que a criança seja preservada das diversas
intervenções, familiares e profissionais.
Avaliação Psicológica da Vítima
A Avaliação Psicológica (Apêndice C) foi realizada somente com os dados oferecidos
pelo voluntariado e pelo contato pessoal com o Juiz. A inexistência de um processo judicial
que comumente antecede toda entrevista psicológica foi um novo desafio enfrentado pela
Psicologia na instituição judiciária, sendo necessário um levantamento detalhado junto à avó
materna acerca do histórico e do contexto familiar da criança, como também sobre o crime
praticado, objetivando uma descrão minuciosa ao Juiz. Primeiramente, foi entrevistada a a
materna e ,após, a criaa.
A avó relatou que a criança reside no meio rural na companhia dos pais e da irmã de
três anos de idade e todos os sábados a visita, sendo comum pernoitar em sua casa. Nos três
meses anteriores à presente denúncia, a criança revelou à avó materna que, por mais de uma
vez o pai deitou-se sobre seu corpo, fazendo movimentos rápidos e contínuos que a sufocavam
e fazia doer seu corpo.
Após a revelação da criança e na tentativa de preservar maiores danos à família, a a
materna não soube o que fazer com as informações, em uma tida atitude de dúvida a respeito
da veracidade de sua narrativa. Tal conduta é habitual nos casos de abuso sexual infantil,
principalmente quando caracterizado como intrafamiliar, e explicita a dificuldade dos adultos
em dar crédito à criaa, ou ainda, em ouvir sobre a vitimização sofrida.
A ajustificou que, a cada encontro, a criança trazia novos detalhes, o que a levou a
conscientizar-se de que a neta estava solicitando sua ajuda e que realmente sofria agressão
sexual do pai. Assim, procurou o Fórum para denunciar o abusador e receber orientação de
como agir em relação à criança e seu retorno aos pais.
A avó foi escolhida pela criança para a revelação do abuso sexual, uma vez que o
estabelecimento de laços de confiança e segurança entre elas. Ainda que a aenfrentasse
conflitos internos durante algum tempo em decorrência das mobilizações emocionais que o
tema insufla, não se eximiu em buscar os recursos jurídicos para proteger a neta. As
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 131
pertinências da criança em reafirmar os atos libidinosos do acusado e a boa receptividade da
avó foram fatores determinantes para a efetiva denúncia formal e conseqüente deslinde da
ação judicial.
Por outro lado, a afinidade, o sentimento de proteção e disponibilidade afetiva da avó
auxiliaram a vítima a sair da clandestinidade e solicitar ajuda, trazendo, de maneia sutil, ao seu
conhecimento que algo diferente ocorria entre ela e o pai, como se experimentasse a reação da
avó. O fato da criança não mentir nem inventar histórias no meio familiar também
contribuíram e facilitaram a confiabilidade da avó nas declarações da neta.
O Relatório de Avaliação Psicológica descreve as atitudes da criança no momento da
entrevista, constatando que, embora constrangida e envergonhada, verbalizou as secias
sofridas com segurança e clareza. A Psicóloga foi a primeira profissional a abordá-la e
percebeu que seu discurso era próprio e continha dados suficientes para confirmar o abuso
sexual do pai contra a filha; no entanto sugere ao Juiz a Avaliação Psicológica dos pais da
tima, no intuito de complementar a análise com o conhecimento da dinâmica da família
nuclear e a constatação da omissão ou desconhecimento da mãe.
O objetivo maior da entrevista psicológica com os pais foi o de preparar o meio
familiar para a ruptura que a revelação do abuso sexual causa, auxiliando na compreensão da
situação conflituosa e prevenindo reações adversas que poderiam prejudicar ainda mais a
tima. Sob este aspecto, o papel da psicologia judiciária também pode ser interventivo no
sentido de auxiliar na resolução dos conflitos emocionais que antecedem os conflitos judiciais.
Ministério Público
De posse do Relatório de Avaliação Psicológica, o Promotor de Justiça ouviu a ada
tima, requereu a Avaliação Psicológica dos genitores e solicitou à Delegacia de Pocia
cópias de possíveis Boletins de Ocorrência contra o acusado.
A avó respondeu às perguntas do Promotor, reafirmando o que havia relatado na
entrevista psicológica e informando que não suspeitava de nada anteriormente, indicando
desejo em permanecer com a guarda judicial da neta.
Relatou que a tima, após a primeira revelação, continuou a afirmar sobre as
abordagens sexuais do pai e que, no último dia em que esteve em sua casa disse que o pai
havia feito tudo aquilo de novo com ela. A depoente falou para ela fugir para a vizinha e
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 132
esperar a mãe chegar, mas a menor disse que não podia porque o pai a segurava pelo braço.
O discurso da avó materializa o pedido de socorro da tima e sua impotência diante da força
física e moral da figura paterna.
O Promotor de Justiça requereu o formal indiciamento do acusado e apresentou ao Juiz
a denúncia por escrito, relatando os atos libidinosos. Percebe-se a confiabilidade depositada na
palavra da avó, bem como na atuação da profissional de Psicologia que traz uma nova
representação do abuso sexual no contexto judiciário.
Avaliação Psicológica dos genitores da vítima
Foram realizadas as entrevistas com os pais da vítima, sendo que o relatório de
Avaliação Psicológica está contido no Apêndice C. Todavia, na data da entrevista o acusado
confessou o crime para a profissional e, na seqüência, foi imediatamente encaminhado ao
Promotor de Justiça para a tomada de declarações.
Foram realizadas entrevistas individuais com os pais, os quais foram intimados sem
saber o motivo, apenas que havia relação com a tima. Primeiramente, foi atendido o
acusado, o qual se mostrou ansioso em saber o que o trazia ao Fórum e prontamente lhe foi
esclarecido sobre a suspeita de que molestava sexualmente sua filha. Para a surpresa da
profissional, o acusado confirmou as sevícias, com relato concordante ao da criança e sem
justificativa para seus atos.
Para o Psilogo Judicrio, a oportunidade de conhecer as reações e atitudes do
agressor está presente apenas quando o processo abusivo é intrafamiliar e, portanto faz parte
do contexto familiar da tima, contribuindo para a análise psicodinâmica do caso.
Comumente, o acusado apresenta discurso defensivo e nega a autoria do crime, uma vez que,
assim como a tima, sofreu a exposição familiar e pública e criou mecanismos psicológicos
para se proteger. No entanto, ao deparar-se com a confissão do agressor o profissional
vivencia uma nova situação, o somente facilitadora dos trâmites processuais, mas
principalmente, propiciadora da oportunidade de compreensão e auxilio na resolução do
conflito familiar que, conseqüentemente trará benefícios para a criança-tima.
O acusado apresentou preocupação com as reações que a esposa teria ao saber dos atos
incestuosos e as conseqüências judiciais e familiares que ele sofreria, não fazendo referências
à vítima. A profissional assegurou-lhe que não contaria à sua esposa em funções de sua saúde
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 133
debilitada, já que é epiléptica e tem fortes convulsões, delegando a ele tal responsabilidade, no
entanto, a cientificaria do abuso sexual à filha.
A entrevista com a mãe da tima foi iniciada com temas relacionados ao
comportamento da criança, sem mencionar o abuso sexual, sendo que a coleta de dados seguiu
uma seqüência de temas, desde aqueles relacionados ao cotidiano da criança até as
manifestações da sexualidade. A genitora verbalizou sem resistências, trazendo elementos
comprobatórios em seu relato quanto aos sintomas compatíveis para abuso sexual
apresentados por sua filha.
Para finalizar as entrevistas, o casal foi atendido conjuntamente; no entanto, durante o
atendimento, o acusado solicitou à profissional que a esposa tomasse conhecimento de todo o
teor da denúncia, o que foi feito. A mãe da vítima apresentou reação de incredulidade,
indicando desconhecer os atos praticados pelo abusador e não revelou reação de preocupação
quanto ao sofrimento desta, mas sim em relação à traição do marido.
A Avaliação Psicológica ratificou a análise anterior realizada com a criança,
apresentando parecer favorável para o abuso sexual do pai contra a filha. Diante da confissão
do agressor, foi necessário o contato com o Promotor de Justiça que, logo após a entrevista,
tomou suas declarações e requereu a concessão da guarda judicial da criança para a a
materna.
Observa-se, neste caso, que o contato verbal entre os profissionais foi constante e
facilitador de um sistema de notificação rápido e eficaz, sem ferir a Lei e sem revitimizar a
criança. Todo o procedimento foi enviado à Promotoria para a apuração na esfera criminal.
Termo de Declarações do Acusado
No mesmo dia em que ocorreu a entrevista psicológica, o acusado foi ouvido pelo
Promotor de Justiça e prestou as declarações, verbalizando que em meados do fim do ano de
2005, nos momentos em que sua esposa se ausentava da residência, começou a molestar sua
filha. Descreveu os atos libidinosos que praticava com a criança e afirmou que não prosseguia
adiante por que lhe batia um arrependimento, percebia que estava fazendo coisa errada,
então parava para não acontecer o pior. Finalizando declarou que não bebe, não fuma, nunca
fez tratamento psiquiátrico. Nunca passou por qualquer tratamento e acredita que tudo se deu
por um momento de fraqueza.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 134
Audiência
Ainda nesta mesma data, o Juiz ouviu o acusado em audiência, com a presença do
Promotor de Justiça, da avó materna e da mãe da tima. Após a oitiva de todos os presentes e
do compromisso de que a tima e sua irpermaneceriam sob a responsabilidade da avó,
bem como a mãe afirmou que também passaria a residir com esta, o juiz deliberou que:
Considerando a gravidade da situação, é de rigor a tomada de providências visando, por ora,
exclusivamente à segurança física e psíquica das crianças, sem prejuízo das posteriores
providências perante o Juízo Criminal. Considerando o acordo entre a mãe e a avó das
crianças, fica consignada a guarda exclusiva da mãe, afastada a guarda do pai sobre ambas.
A partir desta data, mediante o conhecimento dos fatos, ficam a mãe e a avó das crianças
advertidas e sua responsabilidade a respeito do que quer que aconteça a estas. [...]O pai das
menores somente poderá ter contato com ambas na presença da e e da avó, incumbindo a
estas a garantia de que não exista qualquer contato fora dessas circunstâncias.
O Juiz priorizou a segurança da vítima, tanto no aspecto físico como psíquico
garantindo-lhe a convincia familiar e a proteção. A continuidade da presença paterna na
vida da criança, mesmo com a necessária supervisão, pode ser vista como benéfica, que os
papéis familiares devem ser reconstruídos e reorganizados, auxiliando a tima a elaborar a
culpa vivenciada e o agressor a restaurar seu papel paterno.
Na seqüência processual, o Promotor de Justiça ofereceu a denúncia contra o acusado
ao Juiz de Direito, o qual a recebeu e decretou segredo de justiça, tendo em vista que a vítima
é criança e que a publicidade dos atos processuais pode lhe acarretar danos irreparáveis. Tal
preocupação é comum aos Magistrados que trabalham nas Varas da Infância e da Juventude,
revelando sua familiaridade com o tema e a preocupação em proteger a criaa, o que nas
Varas Criminais, embora sem a intencionalidade, não é habitual, sendo precípua a busca de
provas. Neste aspecto, percebe-se que é fundamental a integração entre os Juizes das Varas da
Infância e Juventude e Criminal.
A fim de instruir os autos do processo-crime, foi procedido pela Delegacia de Polícia o
formal indiciamento do acusado, que foi intimado, cientificado e citado para audiência, com a
presença de seu defensor nomeado.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 135
4.3.2 2ª Fase – Poder Judiciário: Processo-Crime
Termo de Interrogatório - acusado
O acusado foi interrogado e respondeu às perguntas do Juiz, o que em parte se
transcrito: Afirmo que eu estou sofrendo muito pelo que aconteceu e que me arrependo até o
último fio de cabelo. Afirmo que eu caí em tentação e não consegui me segurar [...] e que isto
aconteceu uma só vez. O Juiz inquiriu o réu a respeito de seu depoimento prestado na
Promotoria e do teor do Laudo Psicológico onde consta que os fatos ocorreram mais de uma
vez. Pelo réu foi dito: vou falar a verdade, esses fatos aconteceram diversas vezes [...] Eu
ficava com medo de que minha esposa chegasse, mas estava em fraqueza e não conseguia me
segurar.
O acolhimento da confissão do agressor pela Psicóloga, confirmado pela tomada de
declarações na Promotoria de Justiça, auxiliou no interrogatório do Juiz, o qual encontrou
elementos nestes dois procedimentos para contrapor o relato do réu. Sob este aspecto,
demonstra mais uma vez a desnecessária oitiva da criança para comparar as informações, o
que comumente ocorre.
Delegacia de Polícia - interrogatório do réu
O acusado reservou-se o direito de responder somente em Juízo, se negando a
responder às perguntas do Delegado.
Audiência de início de instrução
Presentes o Juiz de Direito, o Promotor de Justiça e o acusado acompanhado de seu
Advogado. Nesta ocasião, foram ouvidas a tima e duas testemunhas de acusação.
O Advogado do réu requer a instauração de incidente de insanidade mental do acusado;
no entanto, o Juiz delibera que interrogado em juízo, o réu não demonstrou qualquer indício de
distúrbio mental a fundamentar dúvida a respeito de sua higidez mental. Submetido à
Avaliação Psicológica, nada foi aferido a respeito. que se esclarecer que a Avaliação
Psicológica não tem o objetivo de diagnosticar a existência ou não de transtorno psíquico do
réu, visto que se destina à análise da criança-vítima e de seu contexto familiar, porém, no caso
da evidência de insanidade mental, obviamente será aferido no Laudo.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 136
Testemunha - Avó materna
A pedido da testemunha, sua oitiva foi realizada na ausência do réu, como também as
demais testemunhas, e respondeu aos questionamentos do Juiz de acordo com as declarações
prestadas na entrevista psicológica e na Promotoria de Justiça. Descreveu a maneira como a
tima lhe revelou o atentado que sofria, com detalhes precisos e revelando a real relação de
afinidade existente entre elas. O depoimento da avó traz novas informações a respeito das
relações familiares, uma vez que, após a denúncia, a e da tima fez reflexões sobre a
conduta do marido com a filha.
Seu relato é totalmente concordante com as declarações anteriores e reforça a
ocorrência do abuso sexual, trazendo conteúdo pertinente para a acusação do réu. Nota-se que
a segurança da avó em ratificar suas acusações está relacionada à adequação dos
procedimentos no acolhimento de sua denúncia.
Tomada de Declarações da Vítima
A tima foi ouvida em audiência na presença do Juiz, do Promotor, do Advogado do
réu e do Escrevente Judiciário e relatou que agora está tudo bem comigo, não acontece mais o
que acontecia na casa com o meu pai, sendo incentivada pelo Juiz a falar sobre o que
acontecia, descreveu de maneira concordante com as declarações anteriores, com detalhes
pertinentes. Neste documento, há a transcrição literal da fala da criaa, seguindo a seqüência
apresentada pelo discurso contido na Avaliação Psicológica.
No texto do documento, nota-se o cuidado na tomada de declarações, que fluidez
na narrativa, respeitando o ritmo da criança, como o transcrito a seguir: De madrugada o u
ia até a minha cama e se deitava sobre mim. Eu não agüentava, por que ele era muito pesado.
Eu dizia a ele “pára pai” e ele dizia “é um pouquinho”. [...] Depois ele ia dormir e eu
ficava chorando na minha cama. Uma vez eu sonhei que estava na casa da minha ae eu
falei alto “vó, cadê você, vó?”. A minha mãe não ouvia, porque toma remédio e dorme.
Embora ocorra a incorporação do discurso da criança a alguns termos jurídicos no decorrer da
declaração, não há sinais de indução ou sugestão.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 137
A segurança da criança em relatar o ocorrido, possivelmente está relacionada ao apoio
emocional que recebeu da avó e da representatividade desta como figura de proteção em sua
vida, inclusive referindo-se a ela em seus sonhos.
Ainda que a criança o tenha sido isenta de novo interrogatório após a entrevista
psicológica, este ocorreu em melhores condições do que ocorreria na Delegacia de Pocia e
em outro momento, eximido de tensão e angústia decorrente da recente revelação.
Testemunha - mãe da vítima
A e da tima relata como foi sua reação ao tomar conhecimento do abuso sexual,
declarando que o réu era um bom marido, a gente não brigava e ele não deixava faltar nada
em casa. [...] O réu recebeu uma intimação e nós viemos aqui para o Fórum, mas não
sabíamos do que se tratava. Fiquei sabendo o que estava acontecendo, porque o réu
confessou para a psicóloga o que ele fazia com a vítima. Eu fiquei me segurando quando a
psicóloga me contou. Eu tomo remédio e fiquei com medo de passar mal. Quando chegamos
em casa minha mãe me contou em detalhes o que estava acontecendo.[...] O réu me contou o
que havia acontecido juntamente com a psicóloga.
O relato da e da vítima confirma a confissão do réu e sua transcrição também
apresenta elementos de linguagem incorporados pelo profissional, no caso o Juiz, mas o que
não comprometeu o conteúdo da narrativa.
Testemunhas de defesa
A testemunha declarou nada saber a respeito dos fatos, exaltando as qualidades do réu
e embasada em sua religiosidade defendeu-o, acreditando que este o age fora dos
mandamentos de sua igreja.
A outra testemunha também declarou desconhecer qualquer atitude que desabonasse o
réu e que sempre soube que era bom pai. Não fez qualquer referência à vítima.
Mais uma vez, a representação social do abuso sexual infantil relaciona-se à
idoneidade e ao aparente bom desempenho do papel paterno, sugerindo a não intencionalidade
da ação do réu no crime.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 138
Alegações Finais do Ministério Público
O Promotor de Justiça descreve a trajeria desde o recebimento da denúncia até os
demais procedimentos já relatados acima e inicia seu relatório afirmando que Merece ser
julgada procedente a pretensão punitiva lançada na denúncia. O conjunto probatório é
harmônico, nada existindo a retirar sua credibilidade. O acusado confessou amplamente a
prática criminosa e sua confissão foi amparada pelas demais provas. Continua relatando
sobre as declarações do acusado para os diferentes profissionais, incorporando as falas do réu
em suas próprias afirmações e fazendo menção às declarações da avó materna, da genitora e
da vítima, com trechos de seus depoimentos.
Reconhece a Avaliação Psicológica como parte do conjunto probatório, inferindo que o
estudo psicológico foi conclusivo quanto à existência do delito e transcreve um parágrafo
literal de tal documento, salientando os sintomas apresentados pela tima compatíveis para a
confirmação do abuso sexual.
Conclui que o contexto probatório é francamente incriminador, nada existindo nos
autos a cindir a responsabilidade penal do réu. Primeiro, porque confessou amplamente o
crime. Segundo, porque vítima e testemunhas foram seguras e coerentes em seus depoimentos.
Depois, porque a avaliação psicológica foi conclusiva. A somatória das provas
sustentação à pretensão punitiva. Mais uma vez, o Promotor utiliza a Avaliação Psicológica
da tima como prova e não faz referência à oitiva da criança em juízo, levando a supor que
não haveria a necessidade de tal depoimento e possível constrangimento à criança.
Por fim, o Promotor requer a condenação do réu, com fulcro nos artigos pertinentes
para o crime de atentado violento ao pudor do Código Penal anotando que por ter respondido
ao processo em liberdade e por não vislumbrar os requisitos da prisão preventiva, deverá ser
dado ao réu o direito de apelar em liberdade.
Advogado do Réu
O Advogado apresentou a defesa do réu, relatando que por tentação ele cometeu o
delito. Hoje agradece a Deus por ter sido descoberto e assim estar obrigado a cessar com
suas atitudes pecaminosas, livrando-se de Satanás. [...] Durante a instrução nenhum elemento
foi produzido indicando que o réu não seja vítima do ofício de Satanás. O cunho religioso da
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 139
defesa e a responsabilização do crime colocada em forças sobrenaturais, como se o réu não
apresentasse consciência de seus atos, desrespeitam a infância e demonstram o despreparo do
profissional para a temática que defende.
Finaliza requerendo que seja julgada improcedente a denúncia, absolvendo o réu do
crime, justificando que o acusado está agindo favoravelmente a não praticar mais o crime.
Sentença do Juiz
O Juiz descreve todos os procedimentos judiciais que comem o processo e decide
que a ação penal é procedente, afirmando que a autoria do crime de atentado violento ao pudor
foi inequivocamente comprovada. Salienta a confissão do réu em mais de um interrogatório e
que a confissão do réu é ainda corroborada pelo laudo de avaliação psicológica, em cuja
conclusão consta que o réu assumiu a autoria dos abusos contra a vítima.
O Juiz passa a aplicação da pena, fundamentando sua decisão nas diferentes narrativas
apresentadas nos autos processuais. Define, em primeira fase, a pena-base no mínimo legal de
07 (sete) anos de reclusão, no entanto justifica a fixação da pena-base acima do mínimo legal
em razão das circunsncias e das conseqüências do crime. Em seu discurso incorpora as
alegações do Promotor de Justiça quando alega que a conduta do réu destruiu a família e
complementa, mais do que isso, a conduta do réu destruiu a inocência da infância da vítima,
que se viu forçada à prática sexual para a qual não tinha preparação física e tampouco
psicológica. Para corroborar suas afirmações cita um trecho da Avaliação Psicológica: As
características psicológicas da criança revelam que se sente física e moralmente indefesa,
que sua personalidade ainda não possui recursos suficientes para que proteste contra o
genitor, colocando entre aspas e citando as folhas em que se encontra no processo.
A sentença traz a leitura psicológica do caso judicial como recurso para a condenação
do réu, demonstrando a integração entre o Direito e Psicologia na produção da verdade e do
respeito à infância: A conduta criminosa do réu se reveste de crueldade ímpar, já que a vítima,
como sua filha, reconhece no réu a autoridade de pai, mas ao mesmo tempo o reconhece
como agressor. A dualidade dos sentimentos acarreta danos que muito provavelmente se
apresentarão como irreversíveis no desenvolvimento da personalidade da vítima. a tida
apropriação dos conhecimentos da Psicologia na prática do Direito, constituindo a atuação
interdisciplinar da instituição judiciária.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 140
Baseando-se no art. 226, inciso II do Código Penal, que refere sobre a ascendência do
réu sobre a tima, o Juiz aumenta a pena para 10 (dez) anos e 06 (seis) meses de reclusão.
Considera ainda a causa de aumento de pena pela continuidade delitiva, que o réu molestou
sexualmente a tima diversas vezes, argumentando que a mesma referência à abordagem
sexual continuada do réu contra a vítima consta no depoimento da vítima, do depoimento da
avó da vítima e do laudo de avaliação psicológica. Elucidando assim, a necessidade jurídica
das reafirmações dos depoimentos na construção do conjunto probatório.
O Juiz decide, em definitivo, que a pena aplicada ao crime resulte em 12 (doze) anos e
03(três) meses de reclusão, concedendo ao réu o direito de apelar em liberdade, justificando a
concessão do benefício em virtude deste permanecer solto durante todo o curso do processo e
não haver criado óbice à instrução, levando-se em conta ainda que é primário.
Utiliza a seguinte jurisprudência para fundamentar sua decisão e sua transcrição, ainda
que não verse sobre o crime ou esteja relacionada à criança, que é o foco deste trabalho, será
elucidativa para a compreensão do procedimento judicial sem prejuízo à vítima:
DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE CRIME HEDIONDO O
condicionamento do recurso ao recolhimento à prisão, mesmo em se tratando de crime
hediondo, reclama decisão fundamentada, apenas se justificando, quando o acusado respondeu
ao processo em liberdade, na hipótese de fato posterior indicando a necessidade de medida
constritiva. Então, quem permaneceu em liberdade durante toda a instrução criminal, em
princípio, deverá aguardar nesta mesma situação o julgamento de apelação. Recurso provido
(STJ – RO-HC 8369 – PE – 6ª T.- Rel. Min. Fernando Gonçalves –DJU 24.05.1999 – p.2002).
O Juiz conclui que a pena fixada será cumprida em regime fechado e determina que o
nome do réu seja incluído no rol dos culpados. Expede mandado de prisão e cientifica o réu do
prazo de cinco dias para recorrer da sentença.
Razões de Apelação do Advogado do Réu
O Defensor do réu apela ao Egrégio Tribunal de Justiça requerendo a pena nima de
06(seis) anos de reclusão, utilizando as mesmas argumentações anteriores sobre as forças
sobrenaturais que o impulsionaram aos atos delituosos. As demais argumentações se referem à
comutação da pena não sendo de interesse para o presente trabalho.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 141
Contra-Razões do Ministério Público
O Promotor de Justiça envia ao Egrégio Tribunal suas argumentações, reproduzindo
sua manifestação anterior e concluindo que a pena foi bem dosada, não comportando qualquer
minoração.
Conclusão do Processo
O processo judicial ainda não foi concluído, porém somente no que tange a pena a ser
cumprida, sendo decidido em 1ª instância a responsabilização e inculpação do réu no crime de
atentado violento ao pudor contra a vítima.
Neste caso não a incredulidade na palavra da tima, nem mesmo da palavra da
denunciante, já que as condições foram facilitadoras tanto para a criança, como para a
confissão do réu.
A interação entre os profissionais e principalmente a disponibilidade do Juiz em
oferecer condições para o acolhimento do testemunho da vítima foram fundamentais na
preservão e proteção da criança, como também para o deslinde rápido e eficiente da ação
judicial.
A lógica possível das intervenções demonstrou as funções da cada profissional e
também dos familiares no abuso sexual infantil. A promoção das falas de cada um e o auxílio
na reorganização familiar foram explicitados durante o processo, inclusive permitindo que o
réu respondesse em liberdade e mantivesse contatos supervisionados com a filha.
4.4 ANÁLISE CRUZADA
Os Casos 1 e 2 revelaram dois sistemas de notificação distintos que fizeram o
diferencial tanto em relação ao tempo despendido no processo de responsabilização do réu
quanto às intervenções diretas e indiretas no testemunho da criança.
As conseqüências da qualidade do acolhimento da denúncia, resguardadas as
influências familiares na revelação, estão explicitadas nos dois casos, sendo que não se
limitam apenas às funções exercidas individualmente pelos profissionais e a instituição que
representam, mas ao cuidado em preservar a vítima de intervenções desnecessárias.
Ainda que, no Caso 1, a tima não tenha sido ouvida em audiência pelo Juiz e a
Avaliação Psicológica tenha sido reconhecida como substituta para a oitiva, a demora em
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 142
formalizar a denúncia e a tomada de declarações na Delegacia de Pocia e no Conselho
Tutelar, como também a intervenção do IML, contribuíram de maneira prejudicial em seu
testemunho, já que desmentiu o ato incestuoso na entrevista psicológica. Em contrapartida, no
Caso 2, a tima foi isentada das intervenções anteriores, mas não foi dispensada da audiência
no ambiente formal do Fórum, o que pode ser entendido como revitimização, embora tenha
ocorrido em um momento menos conflituoso e não tenha prejudicado seu depoimento.
Percebe-se, no Caso 1, que no decorrer do andamento processual, após a fase
inquisitiva e com o amparo da Psicologia, houve uma tendência dos profissionais à
credibilidade da palavra da tima, exceto o julgador de primeira instância e, logicamente, o
advogado do réu. No entanto, o próprio Juiz reconheceu sua insegurança pessoal relativa à
especificidade do atendimento judicial à infância e suas singularidades, colocando a dúvida no
testemunho da criança como principal obstáculo para uma sentença condenatória.
Nos Casos 1 e 2, a Avaliação Psicológica foi utilizada como parte do conjunto
probatório, mas determinada em fases processuais distintas, o que interferiu sobremaneira no
discurso da criança. Tal fato pode ser observado no Caso 1, no qual o Juiz não aceitou o
parecer favorável da Avaliação Psicológica em virtude da tima não haver confirmado
literalmente o abuso sexual sofrido.
No primeiro caso, a Psicologia trabalhou no sentido de desconstruir a representação
social do abuso sexual pautado na incredulidade do testemunho da criaa, utilizando-se de
recursos técnicos e teóricos para trazer à luz o discurso latente da tima, justificando sua
retratação. No segundo caso, as ações precederam as concepções da representação social do
abuso sexual infantil e a Psicologia pode atuar com liberdade sobre as demandas psíquicas da
tima, preservando-a da revitimização dos múltiplos interrogatórios.
O Quadro 4 demonstra os dois sistemas de notificação e o encadeamento das
intervenções sofridas pelas timas, sendo que a linha pontilhada indica a diferenciação da
trajetória do Caso 2 em relação ao Caso 1.
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 143
Programa Municipal
12
6
7
11
1
3
Conselho Tutelar Delegacia de Policia
Ministério Público
Poder Judiciário
2a. Instância
Processo
Abusivo
Revelação
5 8 10 13
2
Mãe Instituto Médico Legal
Poder Judiciário 1a.
Instância
4 9 14
Amiga da mãe
Avaliação Psicológica
1 Nos casos 1 e 2 a vítima revelou o abuso sexual a uma pessoa de sua confiança sofrendo a primeira intervenção
2 Intervenção da mãe no caso 1
3 Intervenção do Conselheiro Tutelar no caso 1
4 Intervenção da amiga da mãe no caso 1
5
Intervenção do Conselheiro Tutelar junto à mãe gerando mais um canal de intervenção, porém no contexto familiar da vítima
6 Interrogatório na Delegacia de Pocia no caso 1
7
Nenhum dos dois casos sofreu esta intervenção, mas há a possibilidade
8 Atendimento no Instituto Médico Legal no caso 1
9 Entrevista Psicogica no Fórum no caso 1: vítima desmentiu
10 Juiz não aceitou a confirmação do Laudo Psicológico para abuso sexual pelo fato da vítima desementir no caso 1
11 Apelação do Minstério Público ao Egrégio Tribunal: decisão condenatória no caso 1
12 A avó da vítima denuncia ao Ministério Público no caso 2
13 O Poder Judiciário e o Minstério Público acolhem a denúncia no caso 2
14 A Avaliação Psicogica é a primeira intervenção profissional à vítima no caso 2, havendo a probabilidade de ser a única
Quadro 4 - Fluxograma do Sistema de Notificação
Fonte: Dados extrdos dos processos judiciais referentes aos casos 1 e 2
Nota-se que o Voluntariado da Infância e da Juventude não consta no fluxograma,
sendo justificada a omissão por não fazer parte das intervenções e por haver sido utilizado
como receptor da denúncia em uma situação episódica, em função da ausência da autoridade
judicial e da urgência do caso.
O fluxograma relativo ao Caso 1 indica o caminho habitual de todos os casos
consultados, havendo pequenas variações entre um e outro em função das peculiaridades
relativas a cada caso. O Exame de Corpo de Delito é solicitado na maioria dos casos, sendo
um procedimento rotineiro, quando a denúncia ingressa na Delegacia de Pocia, como
também o encaminhamento da vítima aos programas municipais de saúde e social.
Entretanto, o fluxo relacionado ao Caso 2 não foi constatado em nenhum dos outros 50
casos consultados, sendo único. Neste caso, o testemunho da criaa esteve isento de
interferências anteriores à Avaliação Psicológica o que contribuiu para sua credibilidade;
porém a tima não escapou da possibilidade de revitimização ao ser inquirida na audiência
Capítulo 4 Análise e discussão dos casos 144
pelo Juiz. Observa-se que a oitiva da tima pelo Juiz poderia ser evitada, que, no Caso 1,
não ocorreu e não invalidou nenhum dos procedimentos.
A confissão do acusado, no Caso 2, é uma variante importante, já que facilitou à
credibilidade do testemunho da criança e ao andamento processual, pom o encadeamento
das intervenções foi fator preponderante tanto para a proteção da tima, ofertando-lhe
segurança como para o próprio depoimento do acusado, que foi surpreendido com a revelação
da vítima e a rápida interferência do Poder Judiciário.
Capítulo 5 Considerações finais 145
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São evidentes as constatações no decorrer de toda a pesquisa da necessidade de
alterações nos paradigmas jurídicos relativos aos crimes sexuais contra crianças, uma vez que
as formas de atuação dos profissionais envolvidos podem contribuir ou não para a
credibilidade do testemunho da tima. A própria instituição judiciária reconhece a urgência
na capacitação dos operadores do Direito e demais profissionais para o acolhimento da
denúncia do abuso sexual infantil, como também para os outros crimes afetos à infância.
Recentemente, em 27/06/2007, ocorreu o Seminário Internacional sobre Atenção,
Proteção e Prevenção a Crianças e Adolescentes Vulneráveis à Violência Doméstica e Sexual,
em uma parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), a Associação dos
Psilogos e Assistentes Sociais do TJ/SP e o Instituto WCF-Childhood, fundado pela S.M.
Rainha Sílvia da Suécia. A composição da mesa para o icio dos trabalhos reuniu as maiores
autoridades judiciárias do TJ/SP (informação pessoal)
11
, compondo um marco histórico nos
compromissos firmados acerca da intervenção judicial nos crimes praticados contra a infância
e a juventude. Os discursos foram unânimes em salientar as reais dificuldades encontradas nos
processos de comunicação e de acolhimento das denúncias causadas pela falha na capacitação
11
O Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), Desembargador Dr. Celso Luiz Limongi; o Vice-
Presidente do TJ/SP, Desembargador Dr.Caio Eduardo Camguçu de Almeida; o Corregedor Geral da Justiça do
TJ/SP, Dr. Gilberto Passos de Freitas; o Coordenador da Infância e da Juventude do TJ/SP, Desembargador Dr.
Antônio Carlos Malheiros; o Diretor da Escola Paulista de Magistratura, Desembargador Dr. Marcus Vinícius
dos Santos Andrade; o Juiz de Direito Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça do TJ/SP, Dr. Reinaldo Cintra
Torres de Carvalho;a Promotora de Justiça e Presidente do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo (CAO), Drª Laila Said
Shukair, e demais representantes de seguimentos da sociedade civil envolvidos com os programas de combate
aos crimes contra crianças e adolescentes.
Capítulo 5 Considerações finais 146
dos profissionais. O foco das narrativas foi direcionado para a criança e sua proteção e
também no reconhecimento efetivo da Psicologia no contexto judiciário e na valorização da
atuação profissional, elevando mais do que a função do Laudo técnico.
Outros estados também se mobilizam para as mudanças e o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul saiu à frente dos demais tribunais do país implantando novos e modernos
recursos ao beneficiar a oitiva da criança e do adolescente, vítima de crime sexual, com a
prática do sistema Depoimento Sem Dano”. A vítima é entrevistada pela Psicóloga do Juízo
da Infância e da Juventude e acompanhada por deo na sala de audiências, pelo Juiz, pelo
Promotor e pelo réu e seu defensor. O Juiz faz as perguntas e transmite as reperguntas à
profissional que está com um ponto auditivo e então ela utiliza as técnicas necessárias para
não revitimizar a criança, predispondo-a a responder. Todo o procedimento é gravado e o CD
é anexado ao processo.
Nota-se a maior disponibilidade das autoridades judiciárias para as necessárias
mudanças na atuação junto à criança-tima, o que ultrapassa a aplicabilidade do Estatuto da
Criança e do Adolescente, migrando para a esfera criminal. Por tal motivo, a interação entre os
Juizes das Varas da Infância e da Juventude e das Varas Criminais é essencial para o deslinde
eficaz e adequado das ações referentes aos crimes sexuais infantis.
Há que se observar que a prática discursiva dos operadores do Direito propicia
referências para novas práticas, sendo referendada nas apelações e jurisprudências que apóiam
outros julgamentos. Assim, os Magistrados e Promotores, cada um em sua função, constroem
significações que servem de referências para outros profissionais. Portanto cada processo
judicial possui uma história única, na qual os profissionais atuam cada qual a sua maneira
orientados pelos mesmos princípios legais, o que, no entanto, pode ocasionar diferentes
deslindes judiciais.
As Apelações e as Jurisprudências materializam as práticas, exemplificando as
diferentes formas de atuação dos Magistrados julgadores de segunda insncia, bem como a
trajetória da produção da verdade no contexto judicrio; demonstram as significações da
infância e as contradições quando se tem apenas a palavra da criança como prova, a
insegurança na tomada de decisões e a necessidade de que o conjunto probatório seja lido e
eficaz.
Capítulo 5 Considerações finais 147
Com tal análise, fica claro que a assimilação do real pelo indivíduo o fica restrita
apenas ao seu meio cio-cultural, assimilando também o que as gerações passadas
produziram e que foram fixadas pelas significações. Portanto, as Representações Sociais
transcendem o indivíduo por serem produzidas em um processo histórico e são assimiladas,
mas também reinterpretadas, reelaboradas e transformadas no decorrer da história humana,
tornando-se um processo de mediação na relação homem-mundo.
As práticas discursivas que atravessam o cotidiano, os enunciados e os repertórios
interpretativos que circulam na sociedade e que são utilizados para dar sentido as experiências
do homem são constituídos historicamente, marcados por diferentes temporalidades, que
continuamente estabelecem conteúdos e provocam novos sentidos.
Na rede social, de nada vale pretender que o código jurídico, por si só, enjaule a
conduta. A lei só poderá produzir mudanças reais quando for capaz de atender à
cultura local. No que diz respeito à violência contra a criança, a ação dos profissionais
de saúde, psicólogo inclusive, tem sido responsável pela adoção de procedimentos que
ignoram o substrato cultural sobre o qual realizam sua intervenção, em flagrante
desconsideração das representações locais sobre infância, família, autoridade parental e
educação (GONÇALVES apud BRITO, 1999, p.151).
Observa-se que o abuso sexual infantil é tratado como outro crime qualquer, pois a
necessidade do ritual jurídico para que sejam validados os procedimentos e não causem
nulidade do processo por violação dos direitos do réu ou falta de provas concretas. A
tendência dos operadores do Direito em descrer da criança está vinculada não somente ao fato
desta desmentir o que disse anteriormente, como foi constatado no Caso 1 (nota-se que ao
fazê-lo a tima encontrou maior receptividade do que quando manteve a acusação, seja na
família ou no meio jurídico), mas também da Representação Social da infância que permeia as
atuações dos profissionais.
Os fundamentos da Teoria das Representações Sociais facilitam a compreensão dos
fenômenos encontrados em diferentes contextos da vida real, tanto no aspecto pessoal quanto
profissional. Os processos judiciais oferecem uma gama de informações que retratam a
cultura, os valores, as regras e as representações sociais contidas na sociedade relacionadas a
determinadas problemáticas do cotidiano e, no presente trabalho, especificamente aquelas
relativas ao abuso sexual infantil. No entanto, definir os casos a serem estudados, os dados
relevantes a serem coletados e como analisá-los foram difíceis fases desta pesquisa,
principalmente quando a instituição consultada não possui tradição de pesquisa.
Capítulo 5 Considerações finais 148
A instituição judiciária contém em seus arquivos e documentos, registros de eventos
reais que revelam as diferentes intervenções da sociedade no cotidiano do indivíduo, o qual
por sua condição histórica se submete às regras legais que regem a sociedade. Portanto, cada
processo judicial é um caso judicial, que contém uma história pessoal que necessita de uma
intervenção institucional para a resolução de um conflito.
Com o objetivo de sistematizar a prática profissional e explicitar o fluxo da notificação
e decorrente intervenção profissional nos crimes sexuais praticados contra a criança, a
estratégia de pesquisa baseou-se no estudo de casos. Mediante esta metodologia, foi possível
apresentar e analisar os dados contidos nos autos processuais, com uma visualização tanto do
ponto de vista individual quanto do institucional, combinado com o referencial da Teoria das
Representações Sociais.
Há uma constante construção do processo de atendimento às vítimas no contexto
judiciário que se pode perceber pela evolução não somente dos Laudos Psicológicos, mas na
elaboração dos quesitos e das determinações judiciais fundamentadas nas peculiaridades da
infância. O trabalho interdisciplinar é uma realidade no Poder Judiciário, que necessita
incorporar ao discurso judicial outros discursos que complementem e auxiliem nas decisões e
ordenamentos jurídicos afetos à infância. A cumplicidade entre os profissionais do Direito e da
Psicologia é necessária quando o caso não pode ser resolvido apenas pela norma jurídica, mas
há que se discutir o melhor caminho a ser trilhado na produção da verdade, para que esta possa
ser realmente validada como verdade.
A Avaliação Psicológica, contida nos processos penais relativos ao abuso sexual
infantil, tem por finalidade a desconstrução da representação social do abuso sexual infantil
que permeia a atividade inconsciente dos profissionais envolvidos, buscando, com isto, uma
real possibilidade de mudança de paradigma jurídico e da relação profissional-criança.
Considerando que as representações sociais, como formas de pensamento, estão
contidas no inconsciente, esta pesquisa propõe a desconstrução de representações restritivas e
estereotipadas do abuso sexual infantil e de elaboração de outras mais flexíveis (AIELLO;
VAISBERG apud TRINCA, 1997), que valorizem a infância e sua subjetividade.
As lacunas na formação acadêmica da Psicologia e do Direito relacionadas à violência
sexual infantil tornam-se evidentes, quando o profissional tem o primeiro contato com um
caso judicial e se vê frente a uma criança vitimizada. Além do distanciamento emocional, tem
Capítulo 5 Considerações finais 149
que ter o domínio das técnicas de entrevista que ofereçam o melhor instrumental. A
insegurança e o temor em referendar o discurso da criança são constatados no decurso
hisrico dos pareceres psicológicos contidos nos autos penais consultados.
Comparando-se o parecer, datado de junho de 2001 a outro de outubro de 2006, da
mesma profissional, percebem-se as diferenças quanto à terminologia e a assertividade da
narrativa. O Caso 11, de 2001, onde a criança desmentiu, em juízo, a acusação feita
anteriormente ilustra a insegurança implícita na redação da conclusão da Avaliação
Psicológica: Considero que a criança encontra-se emocionalmente fragilizada com as
modificações em seu contexto familiar, o que gera-lhe sentimentos de insegurança e
desconfiança em suas relações pessoais. Verbaliza de forma lacônica e evasiva, apresentando
discurso pré-construído e discordante do discurso da genitora, evidenciando sofrer algum
tipo de repressão. Quanto à sexualidade, a criança mostrou-se fortemente resistente em
expor-se, o que dificultou a análise de suas manifestações.
No Caso 6, em 2006, quando a criança também desmentiu o abuso, o parecer
psicológico versa: Considero que a criança apresenta sintomas psicológicos que caracterizam
a vivência de violência sexual, percebendo-se ameaçada em seu próprio meio familiar.
Nomeia o agressor com segurança e clareza, reconhecendo-o como figura paterna que possui
autoridade e dominância sobre si. Portanto, concluo que, sob o ponto de vista psicológico, a
criança foi vitimizada sexualmente.
A distinção entre as duas narrativas evoca a importância de um parecer conclusivo,
claro e fundamentado no decorrer do relatório da Avaliação Psicológica, em que o profissional
revele segurança ao afirmar a ocorrência do abuso sexual e assim referende o testemunho da
criança-vítima. Além deste aspecto, a Avaliação Psicológica poderá ser um instrumento
propulsor para modificações nos procedimentos judiciais, incorporando à prática discursiva
críticas e esclarecimentos que indiquem tais necessidades.
As respostas aos quesitos apresentados para a Avaliação Psicológica são exemplos
ilustrativos para a compreensão da estratégia utilizada para indicar as causas e efeitos da
qualidade do acolhimento do testemunho da tima e da eficiência do sistema de notificação.
Ao responder ao seguinte quesito formulado pelo Promotor de Justiça, no Caso 6, a
profissional faz uma clara tentativa de elucidação desta questão: Existem elementos
psicológicos que indiquem que a vítima passou por um trauma e que este lhe modificou a
Capítulo 5 Considerações finais 150
maneira de ser e agir? Descrever estes elementos. A resposta a este quesito é complementar
àquelas respondidas anteriormente: Sim. Além dos sintomas psicológicos típicos que
caracterizam o abuso sexual, conforme descritos acima, a vítima foi submetida a uma
multiplicidade de interrogatórios, tanto familiares quanto judiciais, o que lhe deu a dimensão
da gravidade dos atos do réu em relação a si. Por outro lado, foi inserida no mundo adulto
pela sexualidade perversa e conheceu o doloroso julgamento moral, já que nem sempre a fala
da criança tem credibilidade, podendo ser inquirida de maneira inadequada e assim
revitimizada. Portanto, não como não ocorrerem alterações na maneira da vítima agir e
perceber o mundo após a vivência de uma situação traumatizante como é o abuso sexual
infantil.
Um parecer assertivo e explicativo oferece fundamentos aos Magistrados e Promotores
não somente para a crítica aos procedimentos judiciais, mas também para a busca de novos
recursos para oitiva da tima, com o intuito de validar seu testemunho e promover sentenças
eficazes e justas.
As experiências positivas em Comarcas menores demonstram que é possível a
mudança nos procedimentos judiciais sem ferir a Lei, como por exemplo, quando a denúncia
chega à Promotoria de Justiça e é imediatamente encaminhada à Seção de Psicologia para a
oitiva da criança, não havendo a intervenção de outros profissionais, como foi explicitado no
Caso 2.
As características do Relatório de Exame de Corpo de Delito, apresentado no Caso 1,
condizem com o que comumente é encontrado nas narrativas dos profissionais que são
chamados a atuar no Poder Judiciário e oferecer um parecer técnico a respeito do abuso sexual
infantil. O compromisso perante a lei leva o profissional ao temor do erro pelo qual poderá
responder judicialmente mediante o enfrentamento de interrogatórios e audiências. Tal fator
gera uma diferenciação fundamental entre um profissional que faz um diagnóstico clínico
simplesmente, daquele que faz um parecer para o Poder Judicrio sob determinação judicial e
compromissado na forma da lei.
Ao redigir um documento para o Poder Judiciário, o profissional perito deve ter em
mente, além da preservação da ética e do compromisso com a verdade, que está diante da
oportunidade de intervir nos procedimentos judiciais relativos ao abuso sexual infantil, que
propicia conhecimentos específicos que devem ser contextualizados à realidade da criança
Capítulo 5 Considerações finais 151
atendida. A título de ilustração, tome-se o Caso 18, que contém o Laudo de Exame de Corpo
de Delito em que o médico legista declarou que não ocorrera estupro em sua forma
consumada ou tentada. Entretanto, a vítima, apesar de pouca idade, demonstrou segurança e
precisão em suas declarações, relatando em detalhes todo o ocorrido, inclusive fazendo
gestos do ato da qual foi vítima. Ainda que pese o fato de mais uma intervenção sofrida, já que
está claro que, neste caso, o médico também interrogou a criança, o relatório colaborou de
maneira contundente para a credibilidade da palavra desta.
O atendimento médico nos Postos de Saúde Municipais ou nos consultórios
particulares também pode ser o diferencial nos casos de vitimização, no sentido de preservar e
proteger a criaa dos múltiplos interrogatórios. Reza a ética médica que, ao detectar qualquer
inadequação no estado sico ou emocional da criança, o profissional não deve omitir-se; no
entanto sua postura diante do paciente, dos familiares e o encaminhamento adequado aos
recursos jurídicos revelam sua compreensão da condição especial da infância.
A fim de demonstrar a real dificuldade da tomada de declarações da tima nos crimes
sexuais infantis, o Caso 8 traz a manifestação do Delegado de Polícia que, ao final de seu
relatório, descreve: Mesmo não tendo deixado na vítima lesões aparentes, mas com certeza,
deixou lesões psicológicas, pois não foi possível efetuar sua oitiva, nem mesmo com a
presença da mãe e nem com a Conselheira Tutelar. Percebe-se, no discurso do Delegado, o
reconhecimento da necessidade de uma oitiva especializada da tima, justificando que as
presenças da mãe e da Conselheira Tutelar deveriam ser facilitadoras para uma narrativa
espontânea, porém sabe-se que, ao contrário, são inibidores e, especialmente, neste caso em
que a mãe flagrou o ato libidinoso e sua reação inicial foi agredir a filha, o que certamente
influenciou em seu testemunho.
Todos os casos consultados contribuíram de uma maneira ou de outra para a presente
pesquisa, trazendo histórias singulares e complexas. É inegável a evolução dos procedimentos
judiciais vinculada ao compromisso dos profissionais que atuam nos crimes sexuais contra a
criança e em suas tentativas de oferecer uma melhor forma de escuta para a criaa inserida no
contexto judiciário. Entretanto, a revitimização ainda ocorre por não haver uma regularidade
nos sistemas de notificação dos crimes que privilegiam a criança-vítima, estando tal fato
atrelado à atuação profissional das autoridades judiciárias.
Capítulo 5 Considerações finais 152
muito que se compreender acerca do abuso sexual infantil; no entanto já é uma
realidade o reconhecimento e o início de um processo de mudanças necessárias para a
validação do testemunho judicial da criança-vítima. Também os códigos jurídicos precisam ser
atualizados, buscando as formas mais adequadas para tratar a questão do abuso sexual infantil.
As pesquisas científicas geram conhecimentos que perpetuam a realidade em que a sociedade
se constrói e a continuidade da tarefa investigativa desenvolvida no decorrer do trabalho
científico deve ser transferida para o cotidiano profissional, na busca de soluções que emirjam
a criança da clandestinidade brutal do abuso sexual.
O homem está submetido a múltiplas determinações, o que influencia suas atitudes,
seus pensamentos e suas comunicações e a tarefa do pesquisador é apreender os sentidos
expressos por ele e o processo de produção de tais sentidos, constituídos social e
historicamente, indo além das significações. Portanto, negar a naturalidade dos
acontecimentos, utilizando uma perspectiva crítica é o ponto de partida desta pesquisa,
evidenciando as formas de atuação profissional no contexto judiciário, e o discurso que se
constrói a partir dela.
O presente trabalho traz relevância às questões judiciais que envolvem o abuso sexual
infantil e as representações que os adultos constroem em relação à infância. A maneira como
as significações e os sentidos são construídos no cotidiano do indivíduo se estendem às
atuações profissionais, como também colaboram na formação das representações sociais
através das diferentes formas de comunicação, tanto dentro, quanto fora do universo jurídico.
Os acontecimentos discutidos e analisados revelam as relações construídas entre os
profissionais atuantes nos processos judiciais, evidenciando uma evolução na compreensão do
papel de cada um . Os sentidos formulados sobre o abuso sexual infantil são veiculados nas
práticas discursivas e expressos nas interpretações e análises do discurso da criança-vítima;
entendendo-se que os discursos não são construídos isoladamente, por uma única pessoa, mas
por diversas vozes.
É inegável que as práticas discursivas, contidas nos processos judiciais, produzam
conhecimentos e retratam as relações estabelecidas, não somente entre a instituição judiciária
e a infância, mas também entre os diferentes profissionais. As transformações apontadas nessa
pesquisa relativas aos discursos tanto da Psicologia, quanto do Direito, materializam as boas
perspectivas para mudanças no sistema de notificação do abuso sexual infantil.
Capítulo 5 Considerações finais 153
Certamente, os profissionais que atuam nos crimes sexuais contra crianças se mostram
mais motivados e atentos para as complexas características que envolvem este fenômeno,
como também para o reconhecimento de que um programa de capacitação é necessário. Novas
relações se estabelecem, surgem novos olhares sobre a criança-vítima e se inicia uma nova
etapa de práticas responsáveis.
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