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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Sergio Manoel Rodrigues
Carnavalização e paródia em Álbum de Família, de Nelson Rodrigues
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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SERGIO MANOEL RODRIGUES
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a
orientação do Prof. Dr. Fernando Segolin.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora:
___________________________________
___________________________________
___________________________________
Dedico aos meus pais, familiares e amigos que, além de acreditarem em mim, tiveram a
bondade de aturar minhas crises, impulsos e obsessões.
Agradeço a Deus, que me deu coragem e perseverança.
A todos os professores com os quais convivi durante o curso de Mestrado, em especial,
Prof. Dr. Fernando Segolin, meu orientador, e aos professores que contribuíram, direta
ou indiretamente, para este trabalho, sobretudo aos que integraram a Banca do Exame
de Qualificação: Profa. Dra. Dulcília Lúcia de Oliveira Silva e Profa. Dra. Olga de Sá,
bem como seus suplentes, Prof. Dr. João Batista Freitas Cardoso e Profa. Dra. Maria
Aparecida Junqueira.
À secretária do PEPG em Literatura e Crítica Literária, Ana Albertina, pelos úteis e
esclarecedores conselhos.
“Qualquer indivíduo é mais importante que toda a Via Láctea.
(Nelson Rodrigues)
RESUMO
O presente trabalho estuda o gênero dramático, desde suas origens, as
encenações ritualísticas dos antigos, até as principais manifestações teatrais da
contemporaneidade. Centra-se, a seguir, no contexto brasileiro, ao tratar da obra teatral
de Nelson Rodrigues, dramaturgo que inovou a linguagem cênica e instaurou a
modernidade no teatro nacional, uma vez que, antes disso, as encenações em nosso
país se apropriavam somente de comédias ou de textos estrangeiros. Por meio da
investigação e da análise, esta pesquisa visa a desenvolver um estudo crítico de Álbum
de família (peça escrita pelo referido autor, em 1945), com o objetivo de lançar luz
sobre aspectos específicos da ação dramática do mencionado texto teatral, que se
divide em dois planos narrativos que se contradizem. A dualidade e ambigüidade,
inscritas no texto da peça, são discutidas e analisadas do ponto de vista de certos
temas universais (adultério, incesto, violência, homossexualismo, prostituição,
preconceito, machismo e pedofilia), considerados tabus pelos mais conservadores e
postos em destaque por meio de procedimentos literários sobretudo a carnavalização
e a paródia –, com os quais o autor pretende desnudar o caos que aflige a sociedade e
o homem contemporâneos. Tais procedimentos revelam um universo peculiar, em que
instituições, como a família e a Igreja, têm suas funções postas em xeque pelas
mazelas sociais e humanas. Além disto, por meio da crítica à sociedade e à família,
Nelson Rodrigues procura desconstruir mitos, temas e ideologias que servem de
fundamento ao teatro clássico e também à sociedade burguesa, ao mesmo tempo em
que dialoga com outras manifestações teatrais, impondo-se, assim, como o criador de
uma autêntica tragédia brasileira, carnavalizada, paródica e, acima de tudo,
moralizante.
Palavras-chave: gênero dramático, Nelson Rodrigues, carnavalização, paródia
ABSTRACT
The present work studies the dramatic gender, since its origins, the ritual
stages of the old ones, until the main theatrical manifestations of the contemporaneity. It
is centered, afterwards, in the Brazilian context, when dealing with the theatrical
workmanship by Nelson Rodrigues, playwright that innovated the scenic language and
restored modernity in the national theater, a time that, before this, the stages in our
country only appropriated of comedies or foreign texts. By means of the inquiry and of
the analysis, this research aims at to develop a critical study of Album of family (play
written by related author, in 1945), with the objective to bring specific aspects of the
dramatic action of the mentioned theatrical text into the open, that divides itself in two
narrative plans that contradict themselves. The duality and ambiguity, enrolled in the text
of the play, are argued and analyzed for the point of view of certain universal subjects
(adultery, incest, violence, homosexuality, prostitution, preconception, maleness and
paedophilia), considered taboos for the more conservatives and ranks in prominence by
means of literary procedures over all the carnival theory and the parody –, with which
the author intends to show the chaos that afflicts the contemporary society and the man.
Such procedures disclose a peculiar universe, where institutions, as the family and the
Church, have its functions put in check for social and human blemishes. Moreover, by
means of the criticism to the society and the family, Nelson Rodrigues looks for to distort
myths, subjects and ideologies that serve of ground to the classic theater and to the
bourgeois society too, at the same time where he dialogues with other theatrical
manifestations, imposing himself thus, as the creator of an authentic Brazilian tragedy, in
agreement with the carnival theory and the parody and, above all, morality.
Keywords: dramatic gender, Nelson Rodrigues, carnival theory, parody
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................... 10
Capítulo I – Teatro e Sociedade ................................................................................. 15
1.1 – O Gênero Dramático: Tradição e Contemporaneidade ........................................ 16
1.2 – Breve Histórico do Teatro no Brasil ...................................................................... 28
1.3 – O Teatro de Nelson Rodrigues e as Mazelas da Sociedade ................................ 34
Capítulo II – Carnaval e Crítica Social ....................................................................... 44
2.1 – Os Gêneros e Elementos Carnavalizantes .......................................................... 45
2.2 – Carnaval e Carnavalização .................................................................................. 53
2.3 – Carnaval e Crítica Social: uma Trama em Dois Planos ....................................... 60
2.4 – As Revelações das Fotos do Álbum ..................................................................... 69
Capítulo III – Paródia e Realidade .............................................................................. 77
3.1 – Paródia: Recurso Moderno da Antigüidade .......................................................... 78
3.2 – O Mito, a Paródia Mítica e a Configuração da Realidade .................................... 84
3.3 – O Teatro Clássico e a Tragédia Carnavalizante ................................................... 91
Considerações Finais ............................................................................................... 109
Bibliografia ................................................................................................................. 116
10
Introdução
De repente, o teatro surgiu em minha vida e, conseqüentemente, trouxe até
mim a obra de Nelson Rodrigues. A partir da leitura do seu texto mais consagrado,
Vestido de noiva, seu universo peculiar, estranho e instigante tornou-se minha
obsessão. As obras teatrais, as crônicas e os romances do autor pernambucano foram
surgindo pouco a pouco, até que me deparei com Álbum de família e o elegi, dentre os
demais textos de Nelson que conheço, como o meu favorito.
Mais tarde, participando de cursos, debates e eventos sobre teatro,
também notei que Nelson Rodrigues era tido como um deus (ou um demônio) por
muitos profissionais das artes cênicas. Muito se discutia sobre o “método rodrigueano” e
o “modo correto” de encenar suas peças. Muitas vezes, os grupos teatrais, que
resolviam encená-las, fracassavam na representação cênica, conforme dizia a crítica
especializada, pois faltava uma compreensão ou um estudo mais aprofundado,
segundo tais críticos, da vida e obra do autor. “O teatro de Nelson Rodrigues é
complicado”, alguns diziam, ou como certa vez ouvi de um crítico teatral a respeito das
montagens das peças de Nelson: Os grupos querem algo fácil e pegam Nelson na
prateleira, pensando que já têm um teatro pronto”.
Entretanto, essa defasagem entre o texto e suas possíveis encenações,
sobretudo em relação ao teatro rodrigueano, continuou a me intrigar e, mais adiante,
em meus estudos acadêmicos, pude observar que o texto teatral raramente é analisado
e adequadamente compreendido, quer por alunos de literatura, quer por profissionais
das áreas da educação e das artes e até pela maioria dos leitores interessados. A
pouca importância que se dá à leitura atenta das peças teatrais, deve-se ao fato de as
mesmas estarem atreladas a particularidades próprias, advindas precisamente do
sucesso ou insucesso de sua representação cênica. O teatro supõe, efetivamente, o
estabelecimento de um diálogo fecundo entre a textualidade e a teatralidade, que,
juntas, buscam seduzir e conquistar o receptor.
11
Nelson Rodrigues, além de inaugurar a modernidade nas artes cênicas no
Brasil, criou, com suas peças, um novo gênero trágico, constituído por personagens
complexas, marcadas por denso teor mítico e psicológico. A peça que aqui se procurará
analisar é classificada como uma tragédia em três atos, a qual, de certo modo, sintetiza
os principais temas abordados nos demais textos dramáticos do autor, e na qual ele
coloca em cena certos traços problemáticos da sociedade brasileira, tendo por centro a
instituição familiar.
Álbum de família, peça escrita em 1945, causou muita polêmica,
sobretudo, devido ao seu caráter crítico e inovador. Seu conteúdo tem sempre, porém,
de ser levado em consideração, pois, a partir de sua manifestação como produto
literário, capaz de transcender o tempo e o espaço, traz a representação viva das
experiências e pensamentos do autor, ao tratar de temas sociais polêmicos e bastante
atuais.
Devido a tais aspectos, minha pesquisa visa à abordagem do texto teatral,
a partir de um enfoque crítico, em que se configura o valor pragmático do discurso
literário no cotidiano humano. Neste trabalho, incide, primeiramente, a presença, no
corpus, de dois planos narrativos: um formado pelas “fotografias do álbum”, que são as
imagens de um convívio convencional entre os membros da família protagonista,
membros estes que são apresentados e comentados pelo Speaker
1
, personagem que
assume, neste plano, a função de narrador; e outro constituído pelo convívio
absolutamente anticonvencional entre os mesmos integrantes do grupo familiar. Na
tentativa de conjugar esses dois alicerces nucleares da obra, estabelece-se um
descompasso entre ambos. A forma como essa tensão é desenvolvida no plano do
enredo merece destaque, porque será a responsável por legitimar a obra como texto
literário. Deste modo, a produção rodrigueana requer um novo enfoque, cuja proposta
de leitura se concretiza pelo viés das teorias literárias e revela uma severa crítica a
certos modelos institucionais, por meio do “desmascaramento” das mazelas sociais e
de certas ações humanas, que sempre provocaram escândalo na sociedade, como:
incesto, adultério, prostituição, violência, homossexualismo, preconceito, machismo e
pedofilia.
1
Em português, locutor.
12
Nelson Rodrigues, da mesma forma que os grandes nomes da dramaturgia
moderna, produz em seu teatro um tipo de texto que nasce de um trabalho de
reestruturação da linguagem com a finalidade de criar realidades capazes de mobilizar
o senso crítico do leitor/espectador. Por meio da carnavalização e da paródia, suas
peças visam a um questionamento radical da sociedade. Por isso, a obra rodrigueana
não deve ser tratada apenas como imoral e obscena, como foi e ainda é vista por
alguns críticos e leitores, ou, simplesmente, considerada como envolvida apenas com a
representação teatral, mas sim como manifestação literária e artística que exibe e põe
em xeque conflitos, misérias e dramas sociais que afligem o homem e o mundo
contemporâneos.
Para o estudo do teatro rodrigueano e da peça escolhida, dividi a pesquisa
em três partes. No capítulo inicial, abordei os pontos de convergência entre teatro e
sociedade, destacando o papel social da literatura e do texto teatral como expressões
artísticas capazes de transformar o convívio social, desde os rituais da antiga Grécia,
considerada o berço do teatro ocidental, até às produções contemporâneas. Da mesma
forma, procurei acompanhar a evolução do teatro brasileiro, que, a partir das primeiras
tentativas de encenação, seguiu modelos vindos da Europa, chegando até a grande
ruptura provocada pelo universo ficcional rodrigueano. Além disto, farei uma rápida
síntese biográfica do autor e um levantamento das características básicas de seu
teatro, apresentando, também, uma breve fortuna crítica de sua obra. Tudo isto com o
intuito de contextualizar o corpus de análise face às encenações teatrais mundiais e
brasileiras, tendo como apoio, principalmente, os estudos de Margot Berthold sobre o
teatro em geral e, especificamente, os dos pesquisadores da produção rodrigueana,
sobretudo os de Sábato Magaldi.
No capítulo seguinte, embasado nas teorias de Roberto DaMatta, Mikhail
Bakhtin e Soren Kierkegaard, pretendi elucidar os elementos que caracterizam o
carnaval e a carnavalização. A partir daí, procurei expor o método criativo do
dramaturgo, em que se revelam as críticas feitas à sociedade, ocultadas, até então, por
representações convencionais da vida em família, mas que nas peças de Nelson são
despidas de suas máscaras.
13
Por fim, no último capítulo, procurei estudar a tragicidade da obra
rodrigueana como meio de ligação entre o teatro e a realidade que se pretende
representar. Os estudos de Linda Hutcheon sobre a paródia serviram de base para a
compreensão do realismo paródico em Álbum, responsável pela recriação das antigas
tragédias gregas, principalmente Édipo-Rei, de Sófocles. Para isso, procurei apoiar-me,
em especial, nas reflexões de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquet a respeito do
mito e da tragédia grega, continuamente evocados na obra rodrigueana, além de refletir
sobre a paródia, que acabou revolucionando o gênero trágico.
de se ressaltar, como já disse anteriormente, que pretendo demonstrar
que a crítica social apresentada na peça permanece bastante atual, além de comprovar
a existência de elementos estéticos que marcam o teatro rodrigueano. Muito se
pesquisou sobre a obra de Nelson Rodrigues, entretanto a renovação que ela provocou
na dramaturgia brasileira está, diretamente, relacionada com seu esforço em dialogar
com seu público, sendo este um dos objetivos dessa pesquisa, pois, apesar do choque
que o leitor/espectador sofreu e ainda sofre ao se deparar com suas peças, a
compreensão e a significação da obra do grande dramaturgo dialogam entre si,
resultando não em uma simples leitura superficial, mas sim em um aguçado olhar sobre
sua “obsessiva” escritura. Não é à toa que muitas foram as alcunhas dadas a Nelson,
tais como: “anjo pornográfico”, “flor de obsessão” e “reacionário”. De qualquer forma,
apesar de admirado por muitos e criticado por outros, é inegável que Nelson Rodrigues
trilhou, em nosso teatro e literatura, um caminho originalíssimo. É exatamente isto que
procurei demonstrar neste trabalho.
14
Foto 1 – O dramaturgo Nelson Rodrigues.
15
CAPÍTULO I – TEATRO E SOCIEDADE
16
1.1 – O Gênero Dramático: Tradição e Contemporaneidade
O gênero dramático abrange textos literários que têm por objetivo a
encenação, ou seja, devem ser representados por atores no palco, diante de
determinada platéia. Suas características, evidentemente, divergem das do conto, da
novela, do romance ou do poema. Além dos recursos técnicos utilizados na montagem
de uma peça teatral, incluindo direção, cenografia, sonoplastia, figurinos e iluminação,
fazem-se necessárias a leitura e a compreensão da obra feita para encenar, já que para
esse tipo de produção literária é considerada a representabilidade viva da palavra.
Literariamente, as funções cognitiva, lúdica, diacrônica e de engajamento, bem como os
elementos estruturais, são primordiais, tanto para o leitor quanto para o espectador ou,
até mesmo, para o artista que irá representar o texto dramático.
Devido a essa particularidade, uma dualidade persiste nos estudos das artes
cênicas: o texto e a representação. A dramaturgia, como ato de criação de peças
teatrais, tem valor literário ao privilegiar a utilização artística das palavras e das ações
que as personagens desenvolvem no âmbito da peça. Sob esse ponto de vista, os
participantes desta polaridade, ao mesmo tempo em que se chocam, interagem entre si,
pois o texto teatral não deve ser compreendido apenas como um roteiro ou como um
mero enredo a ser seguido. Despontam, ao mesmo tempo, diante de uma escritura que
supõe e implica encenação, a Literatura e o Teatro. Entretanto, a escritura pode tornar-
se independente da encenação, de acordo com algumas teorias que visam à
concretização da teatralidade, como questiona Ryngaert (1996, p. 06): “Quando a
encenação se afirma todo-poderosa, a natureza do texto perde em importância”. De
qualquer forma, o Teatro assume esse hibridismo capaz de fazer o leitor ou o
espectador ir além da mera idealização de um mundo imaginário.
A dicotomia entre texto e representação teatrais consolidou-se na Grécia
2.600 anos. Todavia, essa não foi a única preocupação do povo grego e de outras
civilizações, que ensaiaram as primeiras tentativas de expressão cênica. Toda obra
teatral preza a abordagem de questões humanas e sociais, pois é uma forma de Arte
17
que tem homens representando outros homens em seus diversos meios, já que o
objeto do Teatro sempre foi a natureza humana. Segundo Berthold (2006, p. 103): “O
teatro é uma obra de arte social e comunal; nunca isso foi mais verdadeiro do que na
Grécia antiga”.
Nelson Rodrigues, por sua vez, também vai transpor em sua obra o
complexo domínio do humano, e a inovação que ocasionou no panorama teatral
brasileiro fez com que a trajetória de suas peças, sobretudo Álbum de família,
dialogasse com a produção teatral em nível mundial. Ainda que haja comparações
entre a produção rodrigueana e a de outros grandes nomes da dramaturgia, Nelson
jamais teve conhecimento de qualquer teoria teatral. As possíveis semelhanças de suas
peças com as tragédias gregas, por exemplo, nunca foram propositais, confessou
várias vezes o dramaturgo.
As representações e as celebrações em louvor aos deuses gregos
inauguraram a tragédia (do grego: tragos = bode e ode = canto), que recebeu esse
nome por ser uma festa de adoração, na qual seus participantes cantavam, dançavam
e trajavam peles de bode. Essa festividade acontecia nas grandes Dionisíacas,
solenidades públicas que cultuavam Dionísio, deus da sensualidade e da embriaguez, e
que mais tarde se transformariam em grandes festivais teatrais. Foi Téspis que, na
cidade de Atenas, centro da Arte e do Comércio, inovou ao inserir diálogos nesses
rituais. Pode-se dizer que, com essa novidade, ele instaurou o texto na representação,
fazendo com que as encenações dessa época passassem da simples declamação para
a ação, como cita Pallotini (2005, p. 67): “O diálogo não revela um estado mental,
apenas; ele atualiza esse estado. A personagem fala para exprimir-se, e assim age”.
Aqueles que participavam dessas representações começaram a ser chamados de
atores, porque agiam em cena e eram atuantes ao mostrar para o público os
acontecimentos que deveriam ser contados.
Os rituais de culto a divindades sagradas na Grécia de antigamente são
resgatados em Álbum de família, uma vez que a figura do pai é idolatrada e temida por
todos os demais membros do clã familiar, confundindo sua imagem com a de Cristo,
conforme rubrica em Rodrigues (2004, p. 50): “Retrato imenso de Nosso Senhor,
inteiramente desproporcionado [...] em vez do rosto do Senhor, o que se vê é o rosto
18
cruel e bestial de Jonas”. As atitudes das outras personagens mostram essa devoção
por Jonas, como a submissão de sua esposa, Senhorinha, a paixão de sua filha Glória,
o ódio de seus filhos e a dedicação de Tia Rute, responsável por providenciar
adolescentes que satisfaçam o apetite sexual dele. Jonas é o Dionísio dos gregos, que,
segundo Berthold (2006, p. 104), “[...] é o espírito selvagem do contraste, a contradição
extática da bem-aventurança e do horror [...] da vida procriadora e da destruição letal”.
A presença do coro no final da trama também retoma um rito próprio das encenações
gregas, bem como a força sensual do corpo, ao descrever as características físicas das
personagens, também evidencia tais celebrações, como mostra Rodrigues (2004, p.
84): Pouco depois, entram quatro homens. Cai a luz; os homens trazem tochas. Vão
levar o esquife de Edmundo. São pretos, de grandes pés, e nus da cintura para cima”.
Contudo, foram as obras de Sófocles que inspiraram Aristóteles a idealizar
e conceber a teoria da tragédia. A obra sofocleana e também a de seus
contemporâneos narraram e adaptaram para o palco as histórias míticas, cuja autoria
anônima podia ser considerada como uma manifestação de cunho artístico da
coletividade, como explica Candido (1975, p. 25): O que chamamos arte coletiva é a
arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo,
que parece dissolver-se nele [...]”. Os antigos gregos, como será abordado no terceiro
capítulo, usaram a mitologia para transmitir conhecimentos e ela surgiu das
inquietações humanas e da necessidade do homem no sentido de explicar o mundo. O
mito era, portanto, produto de uma sociedade que não procurava controlar a
imaginação e que, por meio de metáforas, tornava concretas suas realidades. Sófocles
recontou os mitos para esclarecer o desconhecido aos leitores e espectadores, o que
os transformava também em indivíduos atuantes, porém como agentes e participantes
em sua sociedade, diante dos sonhos, dos medos e das dúvidas que os cercavam. Da
mesma forma, os mitos, evidenciados em Álbum de família, resgatam temáticas do
teatro grego: explicar a natureza da alma humana e como ela se comporta perante as
vicissitudes da vida e dos mistérios do universo. Fatores estes primordiais e que
ocorrem com todas as personagens trágicas, à medida que elas cumprem seu destino e
dele não têm escapatória.
19
Por sua vez, o pensamento aristotélico propunha às obras de arte o
estabelecimento do prazer estético na representação do real. Destarte, as encenações
para Aristóteles objetivavam a verossimilhança, como afirma Soares (2006, p. 59), “[no]
dramático [...] o mundo nele representado (pois o texto dramático se completa na
representação) apresenta-se como se existisse por si mesmo”. Contudo, esse
verossímil não era tratado como fato que realmente aconteceu, mas sim como algo que
possivelmente poderia acontecer, por meio de instâncias que regravam o fazer teatral
daquela época, principalmente em relação à estruturação e à organização da peça a
ser encenada.
Aristóteles viu no teatro uma seqüência narrativa, em que os diálogos e as
ações das personagens geravam uma tensão na obra, na qual os acontecimentos
representados poderiam ser numerosos, mas todos ligados a um conflito único, o que
proporcionaria uma unidade de ação à peça. Aliado a isso, o tempo e o espaço também
deveriam ser únicos: o enredo tinha de transcorrer em até vinte e quatro horas e ser
ambientado em apenas um local. Não era admissível uma representação, cuja duração
fosse de poucas horas, pretender ser verossímil em acontecimentos que durassem
dias, meses ou anos e, muito menos, apresentar espaços múltiplos, uma vez que o
teatro (a sala) não poderia se multiplicar e desdobrar-se no decorrer da apresentação.
Embora haja uma superposição entre ficção e encenação, é a teoria das unidades de
tempo, espaço e ação que torna possível o verossímil e, por fim, a catarse.
O efeito catártico no teatro aristotélico era um processo de “purificação”
experimentado por quem assistia à encenação. Deste modo, ocorria uma espécie de
identificação entre o público e a situação representada, além do reconhecimento do
espectador como ser humano, detentor de imperfeições e de sentimentos, sobretudo de
piedade e medo. Portanto, a tragédia, que teve como berço a sociedade grega do
século V a.C., e que se originou dos cantos em louvor aos diversos deuses, era o tipo
de peça que melhor traduzia os paradigmas do pensamento aristotélico sobre o teatro,
segundo Roubine (2003, p. 20): “De fato, Aristóteles observa que as duas emoções em
questão não podem ser experimentadas senão por um espectador que adira
intimamente aos sofrimentos do personagem trágico”. A tragicidade era o elemento que
unia público e personagens pela identificação com a ação representada. Não é à toa
20
que as platéias das primeiras encenações das “peças desagradáveis” de Nelson
Rodrigues reagiam diante de tudo o que era exposto no palco. Vaiavam, aplaudiam,
xingavam e até ameaçavam o autor. Nelson conseguiu aproximar as atitudes catárticas
de seu público com as dos espectadores das antigas encenações gregas, que eram
afetados de forma plena pelas histórias e manifestavam-se ativamente no decorrer das
encenações. As liberdades de expressão e de crítica facultadas ao povo grego
remetiam a rituais sagrados, em que as palmas significavam a aprovação e as batidas
de pés e os assobios a não-aceitação do que estava sendo encenado.
Os grandes autores do teatro grego deram pouca importância aos
“recursos técnicos” das encenações e centraram-se na ação e no sofrimento do herói
trágico, que deveria ser modelar e, finalmente, mostrar sua verdadeira face perante
todos, resgatando, assim, o eterno conflito entre o Bem e o Mal, próprio de toda
humanidade.
Com Eurípedes teve início o teatro psicológico do Ocidente. ‘Eu represento os
homens como devem ser, Eurípedes os representa como são’, Sófocles disse uma
vez. O terceiro dos grandes poetas trágicos da Antigüidade partiu de um nível
inteiramente novo de conflito. Ele exemplificou o dito de Protágoras a respeito do
‘homem como a medida de todas as coisas’. (BERTHOLD, 2006, p. 110).
Juntamente com a tragédia, surgiu a comédia (do grego: komos = orgias
noturnas), cujo fim era “castigar o povo e os homens poderosos”. Suas origens também
provêm dos cultos a Dionísio, das orgias e das festas da colheita. A comédia, ao
contrário da tragédia, ridicularizava os homens, os deuses e os mitos, com a
representação das fraquezas e dos vícios humanos. Conforme Soares (2006, p. 62),
“[para Aristóteles] essa forma dramática se volta para os homens de mais fraca psique
[...] não causando sofrimento, caem no ridículo e produzem o riso”. Autores como
Aristófanes e Quiônides deram enfoque a problemas individuais e sociais, o que
também fez da comédia um tipo de manifestação teatral que objetivou o coletivo e a
comoção na remota civilização grega.
Os estudos desenvolvidos por Aristóteles foram os que mais contribuíram
para a definição das características do gênero dramático. Foram bastante utilizados e
difundidos por estudiosos no decorrer dos tempos, como a seguir será mostrado, mas,
21
obviamente, algumas críticas e outras concepções foram acrescentadas à metodologia
de Aristóteles. A dramaturgia (do grego: drama = ação, sendo a dramaturgia a
composição de dramas), de acordo com Pallotini (2005, p. 27), “[nasceu] da
necessidade humana de ver a ação representada; mas não pacificamente, e sim por
meio de um conflito de circunstâncias, paixões e caracteres [...]”. Assim, o texto teatral é
o elemento que dialoga com a encenação e que a une às mais variadas manifestações
artísticas.
Os componentes tradicionais do teatro na Antigüidade, no entanto, não
foram adotados pela Idade Média. Esta sociedade celebrou o religioso em suas
encenações, dando relevância aos ideais cristãos e não admitindo cultos e celebrações
a deuses considerados pagãos, como faziam os gregos. As representações dramáticas
desse tempo tinham por base o Evangelho, com o objetivo de disseminar, ainda mais, o
pensamento cristão.
Ao contrário da Antigüidade Clássica, no teatro da Idade Média
prevaleceram a técnica e a encenação, com a construção de palcos, praticáveis e
cenários mais elaborados, o que contribuía para o tom realista dos espetáculos.
Todavia, as representações medievais se assemelharam às gregas ao representar,
também, mitos, mas neste caso, mitos bíblicos, como ocorria nos autos pascais e
natalinos, com a finalidade de promover a submissão dos espectadores a Deus. Em
contrapartida, configuraram-se outros tipos de manifestações cênicas populares, nas
quais, como cita Berthold (2006, p. 252), “[o] povo da cidade e o alegre desfrutar da
vida violavam todos os tabus, deliciando o público [...] tanto no aspecto sexual e fecal
quanto no político e moral”. As quermesses passaram a ser os locais dessas
apresentações, em que predominavam os autos camponeses e de carnaval, a farsa e
as moralidades, encenações caracterizadas pela sátira como crítica empenhada em
denunciar problemas sociais e convertidos em situações cômicas, com o “propósito
didático” de estimular a virtude e a prática dos bons costumes.
Os traços característicos do teatro grego foram revividos pela Renascença,
a partir da montagem das tragédias de Sêneca e das comédias de Plauto, em 1486,
período este em que ocorreu a retomada dos valores da Antigüidade. A religiosidade e
as manifestações populares de outrora abriram-se para uma manifestação teatral
22
interessada na “arte do discurso dramático”, que não fez uso unicamente dos recursos
técnicos da encenação, mas reformulou as unidades de Aristóteles e incorporou
objetivos didáticos e pedagógicos. De acordo com Berthold (2006, p. 272): “O teatro
dos humanistas [...] para encarar a herança medieval, relacionando-a com a [...]
Antigüidade, [preparou], assim, uma base intelectual e teatral para o novo espírito da
Renascença”. A razão aristotélica era, para os renascentistas, o princípio da perfeição e
da criação estética, como formas de imitação do real e de alcance do belo.
As tragédias passaram a colocar em cena o horror, marcado por incestos e
assassinatos, juntamente com temas políticos, como: a disputa pelo trono e as
biografias e feitos dos imperadores. as comédias renascentistas tinham por enfoque
temático as críticas à sociedade e à vida política. Entretanto, fazia-se necessário o
compromisso dessas representações com o verdadeiro e o verossímil, pois devido às
especificidades da natureza humana, o não-envolvimento com certo realismo poderia
tornar-se um impedimento para a identificação do espectador. Por outro lado, em tais
encenações, evitou-se a inserção do maravilhoso e das cenas de violência, que eram
apenas narradas e não mostradas pelas personagens, como solução aristotélica para
representar o horrível sem exibi-lo.
Por essa razão, os autores irão preferir evitar os episódios mais conhecidos da
Lenda ou da História. Escolherão antes acontecimentos acerca dos quais tudo
indica que o público tem apenas uma noção extremamente vaga. [...] Essa
observação é evidentemente muito mais fiel ao pensamento de Aristóteles, que
não admitia na ação trágica o acontecimento historicamente atestado, portanto
verdadeiro, senão na medida em que respondesse à exigência da verossimilhança.
(ROUBINE, 2003, p. 33).
durante o reinado da rainha Elizabeth I, o gênero dramático, no teatro
renascentista inglês, recuperou sua “origem literária”, pois, segundo Berthold (2006, p.
319): “O que importava no teatro elizabetano, como em outros, não era a invenção de
uma trama, mas sua elaboração criativa”, visando-se sempre, como tema principal da
Renascença, à conscientização humana. Contudo, foi com as encenações das peças
de William Shakespeare que o teatro elizabetano ganhou destaque. Shakespeare
quebrou os paradigmas teatrais da época ao romper com as três unidades aristotélicas.
23
Na dramaturgia de Nelson Rodrigues, fundem-se valores pagãos e
cristãos, experiência esta que retoma certas características do teatro medieval. Nas
suas peças classificadas como míticas, principalmente em Álbum, o Cristianismo
aparece como ordenador da conduta moral dos homens, porém os instintos e os
desejos descontrolados desequilibram esse princípio e servem como denúncia da
hipocrisia religiosa:
Jonas [...] – Gosto de menina sem-vergonha. Mulher, não; menina. De 14, 15 anos.
Desbocada. (com angústia) Aliás, não sei por que mulher não pode dizer nome feio
como nós, por quê, ora essa? (com absoluta dignidade, quase com sofrimento)
Numa conversa, durante a refeição; a Ceia do Senhor, pendurada na parede, e a
dona de casa dizendo palavrões! (RODRIGUES, 2006, p. 20).
O jogo de contrastes, tão comum na obra rodrigueana, como no trecho acima
(“menina” “mulher”; “Ceia do Senhor” “palavrão”), rompeu com os paradigmas do
teatro brasileiro. Essa inovação não foi percebida na época, e Nelson foi alvo de
inúmeras críticas negativas. Até o jornal em que ele trabalhava o criticou certa vez. Foi
Francisco de Assis Barbosa, jornalista amigo de Nelson, que tentou reanimá-lo:
‘Não ligue para isso, Nelson. A peça é genial, digna do melhor Shakespeare! Você
foi profundo!’
‘Você acha mesmo, Chico?’
‘Acho, perfeitamente!
Nelson foi rápido no gatilho:
‘Você escreve isso?’
‘Sem dúvida. Me dê um papel’, disse Francisco de Assis Barbosa [...]
‘Você não vai assinar?’
‘Claro. Quer também que eu reconheça a firma?’
E Nelson, sério:
‘Qual é o cartório?’ (CASTRO, 2001, p. 277).
Neste ínterim, Nelson é denominado, por alguns estudiosos de sua obra,
como o Shakespeare brasileiro, pois o autor inglês foi o responsável pela renovação do
gênero dramático de seu tempo, aproximando sua literatura teatral da estética
renascentista, ao propor a brutalidade humana como estopim das mazelas da
sociedade e ao dar novo rumo à tragédia clássica.
No entanto, dentre os movimentos culturais, o Romantismo provocou
transformações e mudanças em várias áreas. A Arte não seria do jeito que é se não
houvesse acontecido o movimento romântico, pois foi ele que melhor contribuiu para o
24
pensamento humano, propondo a reflexão filosófica, o culto à natureza e o
nacionalismo. O Teatro, assim como as demais Artes, pretendia a evolução da criação
artística, visando a uma quebra dos paradigmas estéticos estabelecidos por Aristóteles
e propunha a reflexão crítica, no âmbito das produções estéticas, segundo um princípio
socializante. A fonte de inspiração dos dramaturgos românticos foi, sobretudo,
Shakespeare, visto que foi ele quem rompeu com a tradição, e a maior preocupação do
Romantismo sempre foi a ênfase no homem como sujeito pensante.
Com sua postura crítica, o Romantismo gerou rupturas. Devido a isto e,
principalmente, por sua recusa da Antigüidade Clássica e do pensamento racional e
também cristão, o movimento romântico deu início à Modernidade. Outro fator que
também caracterizou esse período classificado como moderno foi a busca por utopias,
cuja proposta era uma visão crítica do futuro e não o apego ao passado como modelo
de perfeição. Segundo Berthold (2006, p. 436), “[...] o teatro [do Romantismo]
representou o elegante e nobre papel da tocha que acende as chamas da Revolução
[...]”. Por isso, ao se falar da ruptura causada por uma obra literária, deve-se levar em
conta o seu período e em que transgrediu, como foi o caso do Romantismo, que
vigorou na Europa entre os séculos XVIII e XIX, e teve seus fundamentos estabelecidos
não apenas com a prioridade de um movimento artístico, mas também social e
filosófico.
O teor crítico da peça rodrigueana, que mais adiante será melhor
analisado, assemelha-se à crítica instaurada pela literatura dramática do Romantismo
alemão. Com Álbum de família, o autor aproximou-se do que fez o dramaturgo
romântico Ludwig Tieck, em 1770, ao adaptar para encenação o conto infantil O gato
de botas, em que estimulava o blico a participar da trama, já que as personagens se
desvencilhavam de seus papéis e comentavam os fatos da peça. No texto rodrigueano,
isso cabe à personagem denominada Speaker, que, de acordo com Rodrigues (2004, p.
09), “[...] além do mau gosto hediondo dos comentários, prima por oferecer informações
erradas sobre a família”. O narrador, no caso, dirige-se à platéia e tece considerações
sobre as demais personagens, cabendo aos espectadores a reflexão crítica sobre o
perfil e as atitudes das mesmas, que encarnam tipos, vícios e valores sociais.
25
A partir de então, como legado da Revolução Francesa, o teatro tornou-se
acessível ao povo. A transgressão dos modelos aristotélicos fez com que o elitismo e os
valores aristocráticos viessem abaixo. A Revolução de 1789 incorporou, nas
encenações teatrais, como afirma Roubine (2003, p. 127), “[uma] utilidade social de
enternecimento sobre a virtude. Utilidade política, enfim, de representações apropriadas
a favorecerem a formação do cidadão. [O teatro] deve ser uma escola de civismo”. Por
isso, atribuiram-se aspectos norteadores à representação cênica: o esclarecimento das
virtudes e dos anseios humanos como tomada de consciência do indivíduo; a
celebração como conhecimento e compreensão dos fatos sócio-políticos e, por fim, a
estruturação de uma identidade nacional. Deste modo, foi preciso a criação de uma
nova dramaturgia voltada para “as ações de um povo”.
Com o avanço dos recursos tecnológicos de iluminação, cenografia e
sonoplastia nas encenações, bem como com o desenvolvimento de técnicas para o
trabalho do ator, estabelecidas principalmente por Constantin Stanislavski, obteve-se
como resultado o Naturalismo no teatro, que propunha que o real devia ser mostrado e
compreendido. Em contrapartida, a concepção simbolista de representação deu realce
ao texto teatral, aliado à música e à dança. Para os simbolistas, o palco era um templo
no qual a palavra se materializava a partir da livre imaginação, do sonho e dos estados
da alma, e cujas marcações cênicas se davam apenas por algumas referências
(símbolos), o que possibilitava a visão e participação criativas do público.
no início do século XX, o período entre guerras cultivou as
manifestações teatrais com o intuito de apoiar causas e ideologias revolucionárias,
contrárias às concepções estéticas do teatro considerado burguês. O gênero dramático
incorporou teorias que elevaram ou anularam seu valor, tendo em vista a instauração
de uma linguagem plural no teatro contemporâneo, daí a intensificação do embate entre
texto e representação teatral e da permanente relação entre teatro e sociedade.
Entretanto, mais do que nunca, essa foi a época em que o teatro, conforme
Ryngaert (1998, p. 40) adverte, “[tendeu a] assumir sua função de espetáculo atingindo
o maior blico possível e, no entanto, [mantendo] sua função primeira de arte que
denuncia e incomoda”. Acentuou-se o engajamento político nas representações teatrais
26
como tentativa ambiciosa de se (re)pensar o mundo, voltando-se para os problemas
sociais e contra os “ilusionismos” alienantes.
A imposição de um novo e vital objetivo ao teatro tentar melhorar, reformular,
revolucionar a sociedade autoriza, também, o uso de quaisquer recursos para
atingir esse objetivo. Ou seja: na medida em que é importante obter do teatro, além
do divertimento, ensinamentos, perde-se a cerimônia para com as regras e as leis
de qualquer técnica mais rigorosa e se parte para aceitar o que quer que nos
pareça capaz de fazer alcançar essa meta [desmontando] o aparato realista-
naturalista do fim do século anterior e, principalmente, para desmontar a sociedade
moribunda da mesma época. (PALLOTTINI, 2005, p. 99 – 100).
Por tais motivos, a dramaturgia de Bertold Brecht, nos anos 50, apareceu
como defensora desse teatro político. O autor alemão inseriu em seus textos as
questões sociais, despertando e estimulando o senso crítico do espectador. Para isso,
estabeleceu alguns métodos para a funcionalidade de seu teatro, cujos principais
pontos exigiam da platéia: a função de observador; a tomada de decisões diante dos
questionamentos; o raciocínio e a tensão, visando ao desenvolvimento e à mutação do
homem, o que tornava claros os objetivos almejados por suas peças, e, finalmente, a
reflexão crítica, por meio de uma quebra da ilusão proporcionada pela encenação
teatral, voltada para a consciência de que não se tratava apenas da “cópia” do real,
mas sim de uma leitura e representação possíveis dos problemas da humanidade.
Durante esse período, no contexto brasileiro, como será visto a seguir,
Nelson Rodrigues se tornara dramaturgo renomado. Tal como em Brecht, seu teatro
“agride”, com a finalidade de expor questões que atormentam a humanidade. Basta
tomar como justificativa, para caracterizar sua produção teatral, o seguinte depoimento
que deu, conforme Vale (2007, p. 26): “[...] o teatro é mesmo dilacerante, um abscesso.
Teatro não tem que ser bombom de licor”.
Nos anos seguintes, o texto teatral passa a ser questionado, com o
emprego de técnicas e recursos que visavam apenas ao trabalho do ator e do diretor,
entendidos como elementos fundamentais da representação. Dentre aqueles que
apoiaram essa tendência, merecem destaque os ensaístas: Grotowsky e Antonin
Artaud, cujas produções, como diz Ryngaert (1998, p. 47), “[...] consideravam o texto de
maneira diferente, às vezes secundária, atribuindo, em compensação, um valor
exemplar ao trabalho cênico”. As encenações fundaram-se, portanto, nessa concepção,
27
pela qual o gesto e a voz do ator pudessem agir sobre o espectador, proporcionando-
lhe condições para a transformação sobre seu cotidiano. Com isso, percebe-se que o
objetivo social do teatro da década anterior, como o das peças dos anos 60 e 70, era o
mesmo: o engajamento. Pretendia-se que o espectador, tal como o leitor da literatura
contemporânea, fosse co-participante ativo da encenação, refletindo sobre o que estava
em cena e não apenas se identificando com personagens ou ações, como sempre quis
a tradição clássica.
Dos anos 80 em diante, a verdade no fazer teatral esteve sempre ligada à
exposição de uma realidade como ato, em que as personagens são a representação de
um homem perdido em si e em seu próprio tempo. Todavia, as produções teatrais
sofreram certo abandono por parte da platéia, devido à arte cinematográfica, que
passou a seduzir multidões. De acordo com Guénoun (2004, p. 139): “Ninguém vai mais
ao teatro na esperança de ali se deixar envolver [...] pelos prestígios oníricos ou
fantasmáticos de uma narrativa [...] Vai-se ao teatro para ver um espetáculo, de acordo
com a expressão hoje em dia familiar”. Razão pela qual se justifica o comportamento
experimental e interacional das obras do teatro contemporâneo, caracterizado pela
renovação da linguagem e pela abordagem de novas temáticas, objetivando, deste
modo, a formação de um novo público para os espetáculos teatrais.
28
1.2 – Breve Histórico do Teatro no Brasil
Durante todo o Período Colonial Brasileiro, as encenações eram de cunho
religioso. Os autos jesuíticos, a maioria deles de autoria de José de Anchieta, tinham
função de catequese e quase nenhum cuidado com relação ao arranjo artístico das
representações. Tratava-se de “sermões dramatizados”, em português, espanhol ou
tupi, o que assegurava a participação do maior número possível de espectadores, entre
colonos europeus e índios. Esses espetáculos eram itinerantes, como se fossem
grandes procissões, de temática religiosa, com personagens alegóricas, cantos e
danças indígenas.
Também trazida pelos portugueses, mas de origem italiana, a ópera surgiu
em terras brasileiras no século XVIII. A partir de 1770, tem-se as primeiras tentativas de
se formar um movimento teatral nacional, devido ao surgimento de vários grupos
teatrais formados por pessoas do povo, tais como: escravos alforriados, estudantes,
professores, comerciantes e militares. A intensificação das peças teatrais, que se
firmaram neste período, fez com que surgisse a necessidade de profissionalizar tais
manifestações, já que, muitas vezes, as atividades cênicas ocorriam, (Prado, 1999, p.
26): “[...] por ocasião do aniversário do Governador da Província, das autoridades
eclesiásticas ou em homenagem a membros da família real portuguesa. [...] o teatro
propunha-se como cerimônia cívica”. Portanto, teórica e artisticamente, essas
manifestações ainda não se caracterizavam como teatro.
Com a chegada de D. João VI ao Brasil, as artes conheceram grande
ascensão. Surgiram os primeiros autores nacionais: Gonçalves de Magalhães, que
escreveu O poeta e a Inquisição, primeira peça brasileira, calcada no extremo
nacionalismo proposto pelo Romantismo clássico de estilo europeu; e Martins Pena,
cujas produções foram, sobretudo, comédias de costumes, nas quais eram satirizados,
em linguagem popular, tipos sociais corriqueiros, envolvidos em situações
rocambolescas de fácil resolução, mediante artimanhas cômicas, que, por finalidade
primeira, criticava a realidade política e social.
29
Se o humor de Martins Pena é lúdico, divertindo-se com as cabriolas que faz as
suas personagens executarem no palco, o seu espírito crítico é ferino [...] que
ele o põe a serviço de uma visão cômica do homem e da sociedade, cobrando
todos os erros, inclusive os políticos, que não rareiam em sua obra, muito mais
pelo riso do que pelas indignações inflamadas. (PRADO, 1999, p. 61 – 62).
Na época, o teatro e o circo eram as únicas formas de divertimento da
sociedade e, até mesmo, se confundiam. Eram comuns, antes das apresentações
teatrais, espetáculos circenses e outras atrações. O maior parte do público era
constituído pela “nata” da sociedade, e fazia-se no teatro uma sessão de exibição e
crítica de certos valores, sem revelar diretamente que as encenações, na maioria das
vezes, satirizavam os próprios atos e vícios dos espectadores. Era o que fazia, nessa
época, o Teatro de Revista.
Surgido em 1859, no Rio de Janeiro, o Teatro de Revista era derivado da
opereta francesa e se utilizava da paródia como elemento principal para denegrir
personagens, atitudes ou fatos das classes dominantes. A Revista, como era
conhecida, tem seu apogeu com as peças de Artur Azevedo, cuja linguagem cênica
valorizava o texto em detrimento da encenação, que tais representações tinham
como marca a crítica aos costumes e a certos fatos do momento.
Talvez, não fosse exagero, considerarmos, apesar de todos os pesares, o Teatro
de Revista, por carregar em seu ser encapsulado o espírito de mudança e
evolução, prevendo ou ambicionando transformações, um movimento de
vanguarda. Acanhado é natural, mas capaz de, através da paródia, da ironia, do
doublé-sense, do riso agressivo de guerreiro [...] no período que antecede a
década de 20, [preparar] terreno para que o modernismo acontecesse também
para o Teatro. (SILVA, 2001, p. 19).
O Realismo no teatro brasileiro, a partir de meados do século XIX, também
se caracterizou pela temática social. A família, como célula-mãe da sociedade, portanto,
formadora do caráter do cidadão, passou a ser questionada pela dramaturgia brasileira.
A principal questão a ser debatida por todo o teatro realista nacional foi a escravidão.
Algumas obras teatrais, como as de José de Alencar e de Castro Alves, sob essa ótica,
propuseram a liberdade dos homens como uma perspectiva de transformação para a
instauração de uma civilização do futuro.
Tendo como base o espírito crítico das peças de Martins Pena, das
Revistas e das encenações do período realista, pode-se dizer que, aos poucos, o teatro
30
nacional foi se consolidando e preparando-se para as transformações teatrais, que logo
se tornaram necessárias. E o teatro rodrigueano soube muito bem fazê-las.
Em 1900, as representações teatrais começaram a perder parte de seus
espectadores, devido ao predomínio do cinema, dos esportes, do rádio e do gramofone.
Para seduzir o público, as companhias e grupos teatrais passaram a encenar somente
comédias e peças estrangeiras. Além disso, para chamar a atenção dos espectadores,
investiram em recursos técnicos, na improvisação e no riso fácil. O teatro brasileiro,
elitizado e estagnado no tempo, padecia do excesso de profissionalismo, sem a
absorção das teorias dos grandes pensadores e críticos teatrais, e sem nenhuma
preocupação com o desenvolvimento de uma dramaturgia.
As Revistas ainda permaneciam e, a partir da década de 20, introduziram
novos elementos na produção de grandiosos espetáculos. A exposição do corpo
feminino e os quadros musicais passaram a ser explorados nas encenações. Estimulou-
se uma espécie de rivalidade entre os grandes atores e atrizes, conhecidos como
“monstros sagrados”, na disputa pela preferência do público. Por fim, o Teatro de
Revista brasileiro passou a apelar para o “escracho”, a nudez, os recursos técnicos e o
luxo, deixando de lado o tom crítico de outrora, o que o fez entrar em declínio nos anos
60.
Fazia-se necessária uma reviravolta nas artes cênicas do Brasil. Nem a
Semana de Arte Moderna de 1922 foi capaz de impor uma revolução no panorama
teatral brasileiro, que as manifestações que esse evento abrangeu estavam voltadas
para a criação individual e o Teatro, além de ser uma Arte que supõe a integração de
várias expressões artísticas, contemplava o coletivo e aproveitou apenas parcialmente,
mais adiante, de toda aquela renovação cultural.
Objetivos morais e sociais nas representações cênicas brasileiras,
passaram a existir a partir da década de 30 com os pensamentos revolucionários de
Sigmund Freud e de Karl Marx, como é caso da peça Deus lhe pague, de Joracy
Camargo, na qual o autor defendia posições socialistas e algumas teses marxistas. Ou,
ainda, Sexo, de Renato Viana, em que eram invocadas a doutrinas psicanalíticas de
Freud. Em 1937, Oswald de Andrade publica O rei da vela, texto teatral em que era
focalizada a sociedade brasileira da época. Se fosse encenada no seu tempo, a peça
31
teria sido o marco do teatro moderno brasileiro, porém, devido a seu caráter
absolutamente anticonvencional, só foi representada pela primeira vez em 1967.
O Ciclo Heróico Amador, entre os anos de 1940 e 1948, foi assim
denominado pelo surgimento de grupos teatrais amadores. No decorrer desses anos, a
Segunda Guerra Mundial assolou o Mundo, o que fez com que vários atores,
teatrólogos e diretores estrangeiros se refugiassem no Brasil. Entre eles, o encenador
polonês Zibgnew Ziembinski, que, como os demais artistas das Artes Cênicas que para
cá vieram, trouxe as técnicas e as teorias dos grandes nomes do teatro mundial.
Em 1943, Ziembinski juntou-se ao grupo amador Os Comediantes e
montou, com grande requinte, a peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, que se
tornou o marco do Modernismo no teatro brasileiro, por finalmente ter conseguido
integrar texto e encenação. No entanto, antes da estréia e conseqüente sucesso de
Vestido, Os Comediantes supriu toda sua falta de conhecimento teatral nas aulas-
ensaios” do encenador polonês. Ziembinski aboliu o “ponto”, fazendo com que seus
atores decorassem as falas e realizando com os mesmos um verdadeiro trabalho de
“dissecação” do texto, a fim de que pudessem sentir e transmitir as reais emoções e os
sentidos mais profundos. Explorou novos recursos técnicos na encenação,
principalmente ao colocar a iluminação em harmonia com a cena, dando à peça um tom
expressionista e moderno, pondo em evidência uma nova “leitura do contexto
brasileiro”. Ziembinski sabia e tinha certeza de que somente a peça de um autor
nacional, com características próprias e que não seguisse nenhum modelo estrangeiro,
poderia tirar o teatro nacional do marasmo em que se encontrava.
O texto rodrigueano, portanto, abriu caminho para a vanguarda teatral
brasileira, conforme Magaldi (2004, p. 299): “A partir da liberdade conquistada por ele
(Nelson), todas as audácias tornaram-se possíveis. Poderiam multiplicar-se, nas várias
direções, as experiências desejadas. Estavam abolidas as fronteiras do palco”. O
próprio surgimento de novos grupos teatrais amadores era fruto da influência de novas
idéias, destinadas a combater os princípios de um teatro elitizado, que poderia
sucumbir à crise proporcionada pelo advento de outras formas de entretenimento.
Os anos que se seguiram representaram a grande luta contra a ditadura.
Além dessa preocupação, os artistas sentiram a necessidade da “construção” de uma
32
verdadeira literatura dramática. O Teatro de Arena, criado por JoRenato, Augusto
Boal e Gianfrancesco Guarnieri, foi o grupo que mais se destacou durante as décadas
de 50 e 60, e suas encenações, de cunho político, caracterizaram-se por representar,
cenicamente, a luta de classes, os ideais de esquerda, a valorização do povo, o
pessimismo do presente e a esperança no futuro. Cabe ressaltar que, desde a década
anterior, a censura brasileira interditou vários espetáculos teatrais, muitas vezes ainda
nem sequer encenados, bastando apenas estarem escritos ou em processo de ensaio.
A alternativa encontrada pelo Arena foi retratar a vida de heróis brasileiros, como nas
peças Arena conta Tiradentes e Arena conta Zumbi, nas quais se glorificavam essas
duas figuras históricas por suas lutas contra a repressão, insinuando, assim, ao público,
por meio de metáforas, uma crítica ao Golpe Militar de 1964.
Em 1953, após alguns anos de censura, Nelson Rodrigues conseguiu a
liberação de Senhora dos afogados. No entanto, era preciso encontrar quem a
colocasse em cena. O dramaturgo procurou Ziembinski, mas este se encontrava em
São Paulo, trabalhando no TBC, Teatro Brasileiro de Comédia. Apresentado à Senhora
dos afogados, o encenador polonês propôs a montagem da peça à maior companhia
teatral do país, mas não conseguiu levá-la ao palco. Não se sabe ao certo a principal
causa da não realização da encenação, embora alguns motivos pudessem estar ligados
às seguintes razões:
Não havia clima para Nelson Rodrigues em São Paulo no começo dos anos 50.
Era muito ‘forte’ para a mentalidade paulistana [e] o TBC era o xodó da alta classe
média [...] Era esnobíssimo, o governador do Estado ia às estréias. Se pudesse o
TBC encenaria tudo em francês. Nelson, definitivamente, não era ‘bem’. Eles o
achavam ‘marrom’, ligado a jornais de escândalos. Digamos, grosso. (CASTRO,
2001, p. 251).
As representações paulistanas apresentavam duas vertentes principais: de
um lado, o teatro prudente, sensato e penteado demais”, como o do TBC; de outro, o
teatro político e engajado, tendo como representante maior o Teatro de Arena. Assim,
não havia espaço para Nelson Rodrigues em São Paulo, obtendo êxito nesse
panorama teatral, apenas em 1958, com a remontagem de Vestido de noiva, sob a
direção de Sérgio Cardoso, que, segundo Magaldi (1992, p. 88), “[...] ousou alterar
profundamente a encenação, oferecendo um quadro plástico diverso de Os
33
Comediantes [...]”. Mais uma vez, foi Vestido que consagrou seu autor e as novas
concepções de linguagem cênica, aliadas às exigências do texto, que resultaram no
grande sucesso da montagem de Sérgio Cardoso.
Igualmente, o Movimento do Teatro Estudantil, o CPC (Centro Popular de
Cultura), de Oduvaldo Vianna Filho, e o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa,
foram outros importantes grupos que objetivaram durante essa época a militância
política, a inovação da linguagem e a popularização do teatro. Entretanto, este é um
legado que persiste até hoje, nas encenações contemporâneas brasileiras, nas quais se
pode observar a miscelânea das técnicas e a diversidade experimental de textos feitos
para a representação teatral, aumentando, assim, a lista de dramaturgos nacionais
renomados ao lado de Nelson Rodrigues, tais como: Jorge Andrade, Ariano Suassuna,
Dias Gomes, Plínio Marcos, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque de Holanda,
Carlos Alberto Soffredini, Luís Alberto de Abreu, César Vieira e Mário Bortolotto.
34
1.3 – O Teatro de Nelson Rodrigues e as Mazelas da Sociedade
O Teatro, assim como as demais manifestações artísticas, está
intimamente ligado à sociedade desde os primórdios. Essa relação aprofundou-se cada
vez mais no decorrer dos tempos, por meio de diversos modos, seja como veículo de
propagação do pensamento cristão, como aconteceu na Idade Medieval, ou como
forma de protesto e engajamento, tal como ocorreu durante o período ditatorial
brasileiro, por exemplo. Assim, afirma Candido (1975, p. 19) que “[...] a arte é expressão
da sociedade [...], isto é, [está] interessada nos problemas sociais”. Deste modo, o
caráter de intervenção social das peças teatrais sempre esteve presente. Na
dramaturgia brasileira, principalmente na obra de Nelson Rodrigues, isso não foi
diferente.
Como já dito, Nelson Falcão Rodrigues instituiu o teatro brasileiro moderno,
como afirma Lopes (1993, p. 09): “Modernidade significa ruptura e é como tal que
Nelson Rodrigues aparece na história do nosso teatro. Um teatro que buscava, nas
décadas de 30 e 40, uma existência efetiva [...]”. O teatro rodrigueano, composto por
um conjunto de dezessete obras teatrais, foi inovador, pois conseguiu aliar, de forma
plena, texto e encenação. que, tanto para quem faz a leitura de um dos seus textos,
quanto para quem assiste a sua representação, é impressionante como esse
dramaturgo coloca às claras a decadência de um mundo conturbado, questionando a
sociedade da época, conservadora e retrógrada, acostumada aos modelos clássicos da
Literatura e do Teatro.
Nascido em 23 de agosto de 1912, no Recife, esse autor produziu muito
cedo seus primeiros escritos. Ainda criança, ganhou um concurso de redação na escola
ao narrar uma história de adultério e, já na adolescência, consagrou-se como cronista e
repórter policial em A manhã, jornal de propriedade de seu pai Mário Rodrigues. O
jovem Nelson passou a criticar o ser humano e seu contexto social. Em um de seus
primeiros textos, datado de 13 de setembro de 1928, em que faz uma espécie de crítica
às obras de Emile Zola, justifica, por meio de “bem fundamentada argumentação”, a
exposição dos podres da sociedade, o que poderia ser concretizado por meio de
35
uma literatura capaz de, segundo Rodrigues (2004, p. 101 102), “[...] lançar desânimo
aos homens, fazer com que eles vejam a vida por uma forma hedionda e anti-religiosa,
e destitui-los dos fortes princípios morais [...]”. Tal crítica aponta para todo o
pensamento que ele desenvolveu em suas peças.
Já casado com sua primeira esposa, Elza Bretanha, decidiu escrever peças
teatrais com a intenção de complementar o orçamento familiar. Ao mesmo tempo, o
teatro brasileiro começava a se despir de seu perfil de arte híbrida e entrava em
declínio, pois ainda não se conheciam as “modernas técnicas de encenação”. Por isso,
as comédias, sobretudo as de autores estrangeiros, e as chanchadas estavam em alta,
lotavam as salas de espetáculos e eram fontes de renda para muitos. Sua primeira
peça, A mulher sem pecado, era para ser mais uma daquelas peças destinadas a
provocar o riso fácil na platéia, porém, como o próprio dramaturgo confessou em uma
das inúmeras entrevistas que concedeu durante toda sua vida, as personagens e as
ações da trama fizeram com que ele desviasse sua escritura para outros caminhos. A
peça não obteve sucesso de público e causou estranhamento na crítica especializada.
na década de 40, o grupo teatral Os Comediantes implantou no Brasil a
figura do encenador nas montagens teatrais. Este profissional era o responsável por
conjugar as diferentes linguagens presentes no teatro, ou seja, sua especialidade era
unir os recursos técnicos à dramaturgia. O primeiro encenador do grupo foi Ziembinski e
o texto teatral que inaugurou seu trabalho em terras brasileiras, segundo se referiu,
foi Vestido de noiva, segunda peça de Nelson Rodrigues.
A peça, no caso, já fora bastante elogiada antes mesmo de ser encenada,
pois o dramaturgo havia divulgado a obra para certos amigos escritores, jornalistas e
profissionais de teatro, que a exaltaram. Alguns o fizeram, apaixonadamente, não à
obra, mas também ao autor, que foi alvo de elogios, como ocorreu com Manuel
Bandeira, que confessou, de acordo com Castro (2001, p. 160): “Nelson Rodrigues é
poeta. [...] O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas
da minha imaginação. ‘Vestido de noiva’, em outro meio, consagraria um autor. Que
será aqui? Se for bem aceita, consagrará... o público”. A previsão do poeta se
concretizou mais tarde e o teatro de Nelson Rodrigues ganhou força e projeção.
36
O criador de Vestido de Noiva teve a sorte de aparecer no instante justo em que
seu texto respondia a uma expectativa da comunidade, e realizou assim uma
sólida e prolífica dramaturgia [...] Não mais se apresentava uma história, promovia-
se seu desenvolvimento e por fim seu desfecho, com personagens que
empreendiam idêntico itinerário [...] Nelson agregou as fantasias da
subconsciência, abrindo perspectivas insuspeitadas para o comportamento
humano em cena. O palco brasileiro irmanou-se, por fim, à renovação que sacudiu
as outras artes, no modernismo [...] E o blico, vendo-se desnudado, sem véus
hipócritas, recusou o favor concedido a Vestido de Noiva. (MAGALDI, 2004, p.
298).
As inovações desse texto teatral eram a crítica arrazadora à família
burguesa brasileira e a divisão da trama em três planos de ação, que não se
apresentavam em sucessão cronológica, fatores estes que contribuíram para a tensão
dramática da obra.
O sucesso de público e de crítica obtido com Vestido de noiva, porém,
durou pouco tempo. Fascinado pela idéia de escrever para teatro, Nelson prosseguiu e
escreveu sua terceira obra teatral, Álbum de família, texto que será analisado nesse
trabalho e que inaugurou o que o próprio autor denominou de “teatro desagradável”.
Nele, Nelson aprofundou seu espírito crítico e definiu toda sua produção, segundo
Mostaço (1996, p. 33), “[como] uma obra pestilenta’, ‘fétida’, capaz de produzir o tifo e
a malária na platéia’”.
Com isso, passou a pôr em evidência um universo dramatúrgico composto
pelas mazelas sociais, que causaram tanta polêmica entre o público. Mas Nelson
Rodrigues tinha consciência da repugnância que toda sua produção causaria e,
também, do impacto de seu caráter inovador. Igualmente, sua personalidade era
marcada por um paroxismo crítico e autocrítico entre reacionário e de direita, e, ao
mesmo tempo, vulgar e debochado.
Vê-se, por aí, como Nelson Rodrigues pode de forma constante, ser considerado,
alternada ou simultaneamente, o mais reacionário dos autores brasileiros e o mais
próximo da revelação e da denúncia dos flagelos sociais que todos constituímos
contra nós mesmos. [...] Na sua sinceridade esculachada, disse verdades que
sempre soaram falsas: pela sinceridade, de um lado; pelo esculacho, de outro. É
como se a força de cada verdade eterna [...] escorregasse sempre na desconfiança
marota da realidade social que lhe dava vida e presentificação (VOGT; WALDMAN,
1985, p. 45 – 46).
37
Os paradoxos e a inversão dos valores são relevantes na obra de Nelson.
Nas suas peças teatrais, o ápice é alcançado com as vaias do público ao final da
representação, e não com os aplausos. Tais reações, no caso do teatro rodrigueano,
são fruto de certos procedimentos autorais, destinados a provocar, por meio de
situações trágicas, o mal-estar e, simultaneamente, o riso, colocando a nu, mediante a
ambigüidade e a polissemia de valores, a identidade sempre instável do ser humano.
As peculiaridades dos textos teatrais de Nelson Rodrigues também podem
ser explicadas pelo próprio convívio social e familiar do autor. Sua vida confunde-se
com sua obra. Nelson sempre foi testemunha das “imoralidades” da sua vizinhança e
vítima de dramas que a própria vida lhe impôs, tais como: seus problemas de saúde; o
assassinato de seu irmão Roberto; as dificuldades financeiras e a prisão de seu filho
Nelson Rodrigues Filho. Basta tomar como exemplo duas temáticas bastante
exploradas em seus textos: a morte e a cegueira, sendo a primeira resultado da sua
experiência como jornalista policial e a outra pela obsessão que ele próprio confessou
ter tido início na infância:
‘Quando minha família ia sair da Aldeia Campista para a Tijuca, aconteceu o
seguinte um menino, que brincava muito comigo, apanhou um canário e picou
com alfinete os olhos do passarinho. Eu me senti, eu, aquele canário de olhos
furados. Eu me imaginei cego, em casa, vagando por entre mesas e cadeiras.
Meninas, senhoras, visitas teriam pena de mim, amor por mim. Na rua, diriam:
‘Naquela casa mora um menino cego!’’ (VOGT; WALDMAN , 1985, p. 13 – 14).
A cegueira vai perseguir o dramaturgo ao longo de toda a vida. Ele mesmo
ficou cego, em decorrência da tuberculose, e teve uma filha que nasceu sem visão.
Algumas das personagens da sua obra são cegas ou, de acordo com Vogt; Waldman
(1985, p. 14), “[...] carregam algum outro estigma físico que funciona, dramaticamente,
como manifestação de cicatrizes da personalidade”.
Se os críticos veneraram Vestido de noiva, com Álbum de família a
dramaturgia rodrigueana foi posta à prova e condenada como “indecente” e “doentia”.
Álbum nem chegou a ser encenada na época e logo foi censurada pelo Regime Militar
do general Gaspar Dutra, em fevereiro de 1946, sob a acusação de ir contra a moral e
os bons costumes da família brasileira, que a peça, na óptica dos censores,
“preconizava o incesto” e “incitava ao crime”. Vários intelectuais foram contra a
38
proibição da peça, enquanto outros acreditavam que, com a liberação de Álbum de
família, as pessoas poderiam passar a praticar o incesto de forma desregrada, pondo
em risco, assim, a estabilidade das relações familiares.
Indignado com a atitude do governo brasileiro, Nelson, juntamente com
outros artistas, fez uma campanha pró-liberação de sua peça. Era comum vê-lo em
bares e redações de jornais repetir a seguinte frase, conforme Castro (2001, p. 197):
“Mas como podem censurar? Álbum de família’ é uma peça blica. Então teriam que
censurar também a Bíblia, que está varada de incestos!”.
Entretanto, quem atacou mais ferozmente a produção rodrigueana foi
Álvaro Lins, crítico bastante atuante e renomado na época. Antes, porém, escreveu ele
o seguinte sobre Vestido de noiva, segundo Vogt; Waldman (1985, p. 68): [...] uma
realização original e importante no teatro brasileiro [...] Tivemos agora a prova da sua
autenticidade teatral [...]”. sobre Álbum de família, em um dos seus ensaios
publicados no diário Correio da Manhã, Álvaro afirmou:
Sem estilo, sem técnica teatral, sem imaginação e sem poesia dramática, eis que
‘Álbum de família’ soçobra num mar de enganos, equívocos, erros, atrapalhações e
insuficiências. Sob o ponto de vista artístico, é uma obra para ser esquecida,
enquanto esperamos do Senhor Nelson Rodrigues uma nova peça à altura do seu
indiscutível talento criador. [...] não vejo motivo para escândalo intelectual ou
social, a não ser como mero artifício de publicidade. (VOGT; WALDMAN, 1985, p.
69)
A partir daí, Nelson Rodrigues passou a ser visto como um autor maldito e
toda sua obra como obscena. Aplaudido por uns e vaiado por outros, o instaurador da
Modernidade nos palcos brasileiros passou a viver altos e baixos em sua carreira.
Como afirma Rodrigues (1997, p. 34): Devido a esse contexto inovador, os textos para
teatro de Nelson não podiam ser julgados segundo o conceito de arte clássica, como
queria fazer a maioria de seus críticos à época”. Talvez por incompreensão em relação
às verdadeiras intenções do seu universo dramatúrgico ou pelas obsessões e inúmeras
tragédias que permeiam toda a obra rodrigueana, outros textos seus foram censurados
e Álbum permaneceu sob a vigilância dos moralistas durante vinte anos, sendo
liberada apenas em dezembro de 1965 e, finalmente, levada ao palco em julho de
1967, pelo grupo teatral carioca Teatro Jovem.
39
Das obras teatrais do autor, Álbum é a menos montada pelos grupos de
teatro, pois é um texto, assim como os demais da produção rodrigueana, que apresenta
a verdadeira e complexa alma humana, revelada por uma série de contradições e
conflitos:
Aliás, este é um dos maiores méritos de Nelson Rodrigues. [...] Trabalha com o
dia-a-dia prosaico, o sórdido e o banal, e faz neles aparecer o épico, o profundo, o
universal, o trágico e o sublime [...] Alguém em quem a sinceridade é um artifício
de segredos; o segredo, um recurso de desvelo; [...] a realidade pronta para ser
driblada pela fantasia; o recurso hábil a pieguices consagradas; [...] o exagero
como contenção; o continente como o descontido; o bandido como herói; o
mocinho como cafajeste; a donzela como puta; a destemperança como virtude; a
virtude como castigo. (VOGT; WALDMAN, 1985, p. 80 – 81).
Não é à toa que diretores e atores sempre ficam receosos quando se fala
em montar um texto desse autor, em decorrência dos embates estéticos e sociais
propostos por sua dramaturgia. É preciso dar o tom certo ao enredo, às falas e ao
pensamento do autor, porque o trágico no universo rodrigueano beira ao patético, e
uma interpretação errônea pode levar ao inverossímil.
Álbum de família ainda choca o espectador ou o leitor por mostrar as
diversas formas de abuso e de violência presentes no cotidiano do homem
contemporâneo. Na última grande montagem da peça, sob a direção de Alexandre
Reinecke, que teve estréia em junho de 2007 no SESC Anchieta, em São Paulo, foi
esta a crítica de Santos (2007, p. 04): “Desejo e o duas molas mestras em ‘Álbum
de família’ [que] é uma tragédia atual, brasileira e universal. Vivemos abusos em todos
os sentidos, do incesto ao canibalismo. Pioramos sensivelmente. É um estágio de
animalismo colossal”.
Além disto, a forma como é trabalhada a linguagem nas obras de Nelson
Rodrigues difere da maneira como outros autores a empregavam em seus textos.
Naquele período, eram comuns peças com uma linguagem pomposa, composta de
diálogos artificiais e de falas que não representavam o cotidiano brasileiro. As obras
rodrigueanas empregam a linguagem coloquial, o que indicaria, de acordo com o
pensamento de Berrettini (1980, p. 168), “[o] perfeito controle da língua, sabendo tirar
partido inclusive das incorreções [...] e que, no teatro, contribuem para a pintura
psicológica das personagens, tornando-as mais humanas”. Uma maior expressividade
40
da obra é obtida dessa maneira, causando a teatralidade do texto e o aumento do
impacto sobre o público. Tomando como exemplo o corpus de análise, percebe-se a
utilização de vários artifícios lingüísticos no teatro de Nelson, os quais colaboraram para
o fortalecimento da dramaturgia nacional. Em Álbum de família o choque entre a
linguagem formal e a coloquial. O mencionado Speaker, personagem representante
da moral e dos bons costumes, faz uso de termos não convencionais da fala popular,
como em Rodrigues (2004, p. 10): “Partem os românticos nubentes [...] Longe do bulício
da cidade, gozarão a sua lua-de-melzinha. Good-bye, Senhorinha! Good bye, Jonas! E
não esquecer o que preconizam os Evangelhos: ‘Crescei e multiplicai-vos!’”. Vocábulos
como “nubentes” ou “bulício”, além de outros de origem estrangeira, bem como a
utilização da norma padrão da língua e a extensão das falas dessa personagem,
representam a linguagem do teatro anterior ao de Nelson. Na cena seguinte, o
contraste. Nota-se a simplificação dos diálogos, uma espécie de “economia verbal”, o
que acarreta certa concisão e laconismo nas falas, sendo esta uma característica
bastante marcante da obra de Nelson Rodrigues.
Teresa – Você jura?
Glória – Juro.
Teresa – Por Deus?
Gloria – Claro! [...]
Teresa (arrebatada) Você nunca encontrará ninguém que te ame como eu
duvido!
Glória – Então, não sei?
Teresa (sempre com a iniciativa) – Me beija outra vez...
(RODRIGUES, 2004, p. 11 – 12).
Da mesma forma, ocorre a utilização de um português informal. Na citação
acima, a mescla dos pronomes “você” e tu (“te”), e o incorreto uso do pronome oblíquo
e do imperativo em “me beija” e não do padrão “beije-me”. Isto reflete o verdadeiro uso
da língua pelo brasileiro, o que determina o realismo dos diálogos. Assim, também, em
passagens como as que se observa em Rodrigues (2004, p. 40): “Depois, ela pegou
gravidez. Durante as dores, veio-se arrastando QUERIA TER O FILHO AQUI... Eu
encontrei ela no meio do caminho”. Nessa fala da personagem Guilherme, além da
variação “eu encontrei ela” em vez de “eu a encontrei”, o termo popular “pegar
gravidez” e palavras em maiúsculas separadas por travessão. Essa técnica de separar
41
ou destacar certos trechos das falas são marcas que o autor deixa para o leitor, a fim de
dar maior carga dramática a certas situações.
O excesso de didascálias também colabora para o texto. O autor, além de
escrever as tramas, dirige seu espetáculo, determinando com as inúmeras rubricas o
perfil das personagens e como os atores devem representá-las. as interrupções dos
diálogos são a representação do estado psicológico das mesmas. Exemplificando:
Guilherme – Larguei o seminário...
Jonas (espantado) Ele! (pausa; possesso, para todo mundo) Eu não disse? Eu
acabava de dizer... (ofegante) Deus confirmou as minhas palavras... (apontando
para o quadro de Jesus) Foi Deus! Deus, sim. Deus! [,,,] Eu sei para que vo
deixou o seminário; por que desistiu de ser padre... (RODRIGUES, 2004, p. 37).
O maior especialista na obra teatral rodrigueana, Sábato Magaldi, dividiu-
a, didaticamente, da seguinte forma: peças psicológicas, nas quais os fluxos de
consciência e inconsciência das personagens são colocados em cena; peças míticas,
em que os arquétipos dos antigos mitos são transpostos para outras realidades; e
tragédias cariocas, nas quais os elementos trágicos são desenvolvidos nas tramas.
Com essa divisão, Magaldi tenta facilitar para o leitor/espectador a apreensão do
universo rodrigueano, o qual suas características não são “estanques” e nem sem elos
de ligação umas com as outras. As obras psicológicas apresentam caracteres míticos e
trágicos. As peças míticas, por sua vez, abrangem o psicológico e “afloram” a tragédia.
E as tragédias cariocas resgatam o teor mítico e psicológico de todo o teatro
rodrigueano.
Como instaurador da modernidade no teatro brasileiro, Nelson Rodrigues
intensificou ainda mais o hibridismo presente no gênero dramático. Suas peças
requerem o emprego minucioso das técnicas teatrais, bem como uma dramaturgia
capaz de revelar a verossimilhança da representação. Mesmo tachado de “tarado de
suspensórios”, pelos mais conservadores de sua época, por conta de este acessório ter
feito parte de seu guarda-roupa, e de “genial” pelos mais “evoluídos”, sua escritura é a
precursora de uma nova dramaturgia que aqui se estabeleceu. O teatro nrasileiro não
evoluiu, mas nasceu após o surgimento das obras de Nelson, cogitando-se até a
hipótese de seu nome integrar a Academia Brasileira de Letras, o que poderia, como
diz Castro (2001, p. 414), [torná-lo] aquilo que ele (Nelson) sempre combatera: uma
42
unanimidade”. No dia 21 de dezembro de 1980, data de sua morte por insuficiência
cardíaca, respiratória e circulatória, houve uma grande comoção no país. Sua obra,
composta não apenas por textos teatrais, mas, também, por crônicas e romances
folhetinescos, permaneceu e continua até hoje recebendo novas edições e adaptações
para teatro, cinema e TV, porque, evidentemente, seu nome se tornou imortal no âmbito
da literatura dramática nacional e sua grandiosa produção literária continua a transmitir
ao leitor ou ao espectador novos e instigantes enfoques da sociedade brasileira.
43
Foto 2 – Capa do corpus de análise.
44
CAPÍTULO II – CARNAVAL E CRÍTICA SOCIAL
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2.1 – Os Gêneros e Elementos Carnavalizantes
Como foi feito no capítulo anterior, para apresentar os conceitos que
servirão de base para a análise proposta do texto de Nelson Rodrigues, será
necessário um retorno à Antigüidade Clássica. Esse regresso será fundamental para a
elucidação do termo carnavalização, desenvolvido pelo teórico Mikhail Bakhtin, na
década de 20, no que se refere aos estudos da Literatura e da Crítica Literária.
Retornando aos antigos gregos, existiam, de acordo com Bakhtin, vários
gêneros que abrangiam as manifestações literárias daquela época. Dentre todos, havia
aqueles que possuíam características mais expressivas: os que abarcavam o campo
sério-cômico, isto é, aqueles que, como a tragédia e a epopéia, se opunham às
particularidades das expressões ditas mais sérias. O sério-cômico era a fusão do
cômico e do filosófico, estava intrinsecamente ligado às festas folclóricas carnavalescas
e unia três importantes peculiaridades, sobretudo pelo tratamento que deu à revelação
da verdade como forma de apreciar, interpretar e representar a realidade. A
representação no sério-cômico passou a apresentar uma confluência temporal “viva do
cotidiano”, na qual os heróis dos antigos mitos e lendas recebiam formulações
atualizadas. A segunda peculiaridade do sério-cômico foi sua consagração pela
experiência e pela fantasia livre no ato de criação literária. E, por fim, a mescla de
estilos e “variedades de vozes”, que se opôs ao princípio da unidade estilística de
outros gêneros. Este último caráter do sério-cômico, conforme Bakhtin (1997, p. 108):
“Caracteriz[ou-se] pela tonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do
sério e do cômico [...] do discurso da prosa e do verso, [no qual] inserem-se dialetos e
jargões vivos [...]”. É a partir desses três princípios dos neros do sério-cômico que se
aprofundou a cosmovisão do discurso carnavalesco, servindo como determinantes para
a evolução da prosa ficcional.
Dentre os gêneros que melhor representaram o campo sério-cômico, Mikail
Bakhtin elegeu o discurso socrático e a sátira menipéia. Estes, na visão bakhtiniana,
46
foram os elementos constituintes da carnavalização, porém, para se compreender esta,
é importante examinar em que incidiam e como se formaram tais gêneros.
O diálogo socrático foi difundido por vários filósofos, na antiga Grécia, e
teve como base as atividades didático-filosóficas de Sócrates. Esse gênero tinha por
finalidade o esclarecimento da verdade, mas possuía em si um alto grau da cosmovisão
carnavalesca. Fruto, principalmente, da transição do “estágio socrático oral”, no
desenvolvimento desse gênero, para a sua fase literária, transformou-se em um gênero
de natureza memoralística, já que as palestras de Sócrates foram organizadas por seus
discípulos em anotações de tom narrativo.
No discurso socrático, a busca pela verdade se dava pela dialética entre o
perguntar e o responder. Sócrates vagava pelas ruas e campos com o intuito de
dialogar com as pessoas, fazia-se de desentendido a fim de conduzi-las à reflexão
consciente sobre os mais variados assuntos, divulgando um discurso irônico ao
responder com outros questionamentos as perguntas feitas a ele. Esse “método” partia
do pressuposto de que o filósofo nada sabia, portanto todos os homens nada sabiam.
Com essa atitude, a subjetividade de cada um era exposta, o que representava uma
ameaça para a sociedade, pois, por meio desse pensamento, se nada se sabia,
conseqüentemente não se conhecia a religião, nem tampouco as leis que regiam o
Estado.
Os homens eram então, para [Sócrates], de uma importância infinita, e quanto
mais ele se mostrava inflexível em não se submeter ao Estado, tanto mais flexível,
tanto mais maleável ele era no trato com os homens [...] Ele gostava igualmente de
falar com agricultores, alfaiates, sofistas, homens do Estado, poetas, com jovens e
velhos, falava facilmente sobre todos os assuntos, porque em toda parte
encontrava uma tarefa para sua ironia. (KIERKEGAARD, 2005, p. 142).
Juntamente com essa dialética entre o saber e o não-saber, Sócrates
desenvolvia um caráter mítico em seus discursos. Ao colocar os indivíduos frente à
pátria e aos costumes, desenvolvia o princípio de conscientização de uma vontade
própria, que julgava e tomava decisões. Tratava-se de um “demônio interior” que
comandava cada um dos homens, como uma divindade, cuja voz advertia e exaltava
sua subjetividade.
47
Na antiga Grécia, as leis eram como imperativos divinos, que regiam a vida
em sociedade e o próprio destino humano, conforme será explicado posteriormente. Os
indivíduos ainda não tinham uma consciência interior, deixavam suas decisões
subjetivas para o outro, no caso, o oráculo. Nos discursos de Sócrates, esse demônio
passa a assumir o lugar do oráculo, pois ambos, ao serem comparados, como afirma
Kierkegaard (2005, p. 131): “Tinha[m] a configuração de um saber que ao mesmo
tempo estava[m] vinculado[s] a uma inconsciência”. O demônio socrático não era a total
consciência do indivíduo, mas o provocador dessa tomada consciente e a rejeição de
uma ordem estabelecida no terreno religioso. Ao emancipar-se das forças divinas e
do Estado, o homem alcançava, por meio de sua subjetividade, a ignorância e esta, por
sua vez, acreditava Sócrates, conduzia o indivíduo à sabedoria. Sob essa perspectiva,
para muitos daquela sociedade que acreditavam no perigo iminente dos diálogos de
Sócrates, como afirma Kierkegaard (2005, p. 137): “Era como se os deuses irados
tivessem virado as costas para os homens [...] Mas num outro sentido, os homens é
que se haviam afastados dos deuses e se aprofundado em si mesmos”.
A liberdade atribuída ao indivíduo, por meio da sua subjetividade, apartava-
o das leis da sociedade, da religião e, até mesmo, da vida familiar. A visão socrática,
conforme Kierkegaard (2005, p. 147), “[...] dissolvia a lei da determinação natural em
que cada membro individual da família se baseava em toda a família [...]”. Assim, pode-
se observar que o questionamento dos relacionamentos familiares vem de longe e que,
em particular na obra de Nelson Rodrigues, tal problemática é aprofundada. Se, na
visão socrática, a família é enfocada como controladora do indivíduo, no texto
rodrigueano, a traição e o incesto colocam abaixo o ideal da instituição familiar.
Sócrates, cujo método consistia em se desprender das forças exteriores,
fez com que fosse perseguido e condenado pelo Estado. Sua “vocação divina” era
persuadir os indivíduos acerca deles mesmos e, sobretudo, conferir o julgamento
individual de todas as coisas.
Para provocar este agir individual, ele moralizava; ‘mas não era uma espécie de
pregação, exortação, ensinamento magistral, moralismo sombrio, etc’ [...] tais
coisas não combinavam com a urbanidade grega. Pelo contrário, este moralizar se
exprimia no fato de que ele levava cada um a pensar sobre suas obrigações. Com
jovens e velhos, sapateiros, ferreiros, sofistas, políticos, cidadãos de qualquer tipo
ele entrava na discussão de seus interesses, fossem interesses domésticos
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(educação dos filhos) ou interesse do saber, e orientava o pensamento deles a
partir do caso determinado rumo ao universal, ao verdadeiro e belo que vale em si
e por si. (KIERKEGAARD, 2005, p. 173).
O diálogo socrático foi concebido como o “saber que nada sabia”, colocado
como um processo investigativo da interioridade e apresentado das seguintes formas:
- por ser um método dialógico, a idéia de verdade nesse gênero não era
única, ou seja, era resultado do diálogo entre vários indivíduos. Não é à toa que
Sócrates, em seus discursos, reunia muitas pessoas e propunha discussões a fim de
estabelecer a verdade;
- pelos procedimentos da síncrise e da anácrise, sendo o primeiro o
confronto entre opiniões e pontos de vista em relação a determinado objeto, e o
segundo a técnica de provocar a palavra, de levar o interlocutor a expressar suas
opiniões. Tais procedimentos eram fundamentais para o diálogo socrático, porque
instauraram definitivamente a réplica no pensamento humano;
- pelo princípio da “experimentação da verdade”, que esse gênero
transformou em ideólogos os que disseminaram e participaram do diálogo socrático, a
começar pelo próprio Sócrates, seus interlocutores, discípulos e outros indivíduos;
- pela intenção de gerar uma atitude criativa que libertasse a palavra do
automatismo e da objetivação, revelando o caráter profundo da personalidade e do
pensamento do homem; e
- pela experiência dialógica de trabalhar as idéias, o que proporcionaria
“imagens embrionárias” das mesmas nas representações feitas pelo ser humano por
meio de outras idéias em diálogo, o que cumpria o papel da ironia no discurso
socrático, pois, segundo Kierkegaard (2005, p. 165), “[...] a ironia é, assim como a lei,
uma exigência e a ironia é uma exigência enorme, pois ela desdenha a realidade e
exige a idealidade”.
Foram estes os elementos formadores do diálogo socrático, responsáveis
pela consideração deste gênero como constituinte do procedimento irônico na
Literatura. A ironia do discurso socrático era reveladora de ações ambíguas, entre o
perguntar e o responder, a dialética e o mítico, e na representação do que era algo
negativo para o Estado, mas positivo para a “significação da consciência” do indivíduo,
por meio de um saber especulativo. Ao ser penalizado com a morte, a punição de
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Sócrates remete à de um herói trágico e, também, a um ato irônico e ambíguo, porque,
para o filósofo, a “ignorância” também tangia à morte, já que dentre seus
questionamentos pairavam dúvidas sobre o que acontecia com quem morre. Portanto:
É verdade que o herói trágico não teme a morte, mas reconhece nesta um
sofrimento, uma passagem pesada e dura, e neste sentido tem validade sua
condenação, mas Sócrates não sabe simplesmente nada, e neste sentido é uma
ironia sobre o Estado, que o condena a perder a vida, e com isso cque o puniu.
(KIERKEGAARD, 2005, p. 235).
Porém, o diálogo socrático não teve vida longa e, no decorrer de sua
“desintegração”, constituíram-se outros gêneros literários, dos quais se destaca a sátira
menipéia.
Foi Menipo de Gádara, que viveu no século II a.C., o responsável pelo
desenvolvimento desse outro gênero, a sátira menipéia, cuja denominação provém do
nome desse filósofo grego. Suas origens provêm, também, do folclore carnavalesco e,
da mesma forma que o diálogo socrático, essa modalidade do sério-cômico foi
defendida por outros autores, contemporâneos de Menipo, e estabeleceu-se, com
outras denominações, em períodos posteriores, marcando presença, na Literatura,
desde a Era Medieval até os dias de hoje, com diferentes variações. Foi, porém, na
Antigüidade que a sátira menipéia foi definida, constatando-se nela a existência das
seguintes características:
- a presença maior do cômico;
- a presença da liberdade de criação e da fantasia, livre do conteúdo
histórico-memoralístico e das lendas, enfim, descompromisso com a verossimilhança;
- a audácia da fantasia na criação de circunstâncias extremas, cujo intuito é
a busca da verdade em forma de provocação e experimentação livres. De acordo com
Bakhtin (1997, p. 114): “Com este fim, os heróis da menipéia sobem os céus, descem
ao inferno, erram por desconhecidos países fantásticos, são colocados em situações
extraordinárias reais”;
- o ajuste orgânico da fantasia, do simbólico e do stico-religioso com a
realidade do submundo e do grosseiro, ou seja, o choque entre as idéias elevadas e as
perversões e vulgaridades mundanas;
50
- o diálogo entre a criação fantástica e o universalismo filosófico”, como
visão apocalíptica de mundo que, segundo Bakhtin (1997, p. 115): “Procura apresentar,
parece, as palavras derradeiras, decisivas e os atos do homem, apresentando em cada
um deles o homem em sua totalidade e toda a vida mundana em sua totalidade”;
- a ação e o confronto das idéias, que ocorrem universalmente nos
seguintes planos: na Terra, no Olimpo e no Inferno. Esta estrutura triplanar foi bastante
utilizada nas narrativas da Antigüidade Clássica, Idade Média e na Literatura
Renascentista;
- o “fantástico experimental” como forma de se compreender determinado
objeto pela óptica do inusitado;
- os estados morais e psicológicos do homem, mostrados pela primeira vez
em uma representação anormal, na qual a loucura, o devaneio, as paixões obsessivas,
o suicídio e a fantasia são situações limítrofes na perda da perfeição e na revelação de
um outro destino, de uma outra visão acerca do ser humano;
- o escândalo, o comportamento excêntrico e o discurso inoportuno
caracterizam a sátira menipéia, liberando o comportamento do indivíduo das regras, da
etiqueta e do sagrado;
- as discrepâncias e os jogos paradoxais. Como diz Bakhtin (1997, p. 118):
“A menipéia gosta de jogar com passagens e mudanças bruscas, o alto e o baixo,
ascensões e decadências, aproximações inesperadas do distante [e] casamentos
desiguais”;
- a utopia social por meio dos devaneios ou de viagens a lugares obscuros;
- o hibridismo dos gêneros no conteúdo da menipéia: verso, prosa, epístola
e outros;
- como continuidade da característica anterior, a pluralidade dos gêneros
focaliza a palavra enquanto expressão literária e dialógica; e
- o enfoque destrutivo e atual dos acontecimentos sociais e ideológicos,
decorrendo daí o teor jornalístico atribuído a esse gênero na Antigüidade greco-romana.
As especificidades acima relatadas levam a crer que a sátira menipéia
provocou a transformação do conceito de narrativa, incorporando e instaurando outros
gêneros discursivos. Com essa renovação, a menipéia recebeu um status bastante
51
significativo, embora sua concepção venha de um momento de crise do pensamento
humano.
[A sátira menipéia] se formou na época da desintegração da tradição popular
nacional, da destruição daquelas normas éticas que constituíam o ideal antigo do
‘agradável’ [...] numa época de luta tensa entre inúmeras escolas e tendências
religiosas e filosóficas heterogêneas, quando as discussões em torno das ‘últimas
questões’ da visão de mundo se converteram em fato corriqueiro entre todas as
camadas da população e se tornaram uma constante em toda parte onde quer que
ser reunisse gente [...] (BAKHTIN, 1997, p. 119).
As características de tal gênero se estruturaram em um momento de
transformações religiosas e filosóficas, tidas como novas “visões de mundo”, marcado
pelo rompimento da idéia trágica do homem daquele período, concepção esta que será
abordada a seguir, e pela intensa conscientização do pensamento humano. Não é à toa
que muitos desses elementos se incorporaram em outros gêneros literários mais tarde.
A sátira menipéia não poupou o mundo divino. Luciano de Samósata, cujas
atividades literárias atingiram o apogeu no segundo século d.C., foi o sátiro que melhor
desenvolveu esse gênero e colocou em dúvida as crenças e a religião de sua época.
Em suas obras, como paródia ao método socrático, ele fundou um pensamento
filosófico, expondo “o sério a serviço do cômico”.
Luciano zomba de tudo e de todos, filósofos, deuses, charlatões, falsos profetas,
sábios, loucos e até dos céticos, dos cínicos e dele mesmo. Uma derrisão tão
radical acaba em sabedoria debochada diante da ‘imensa idiotice dos homens’, em
uma terra em que ‘ninguém faz nada por nada’. A moral da vida é ‘deixar passar
rindo a maior parte dos acontecimentos sem levar nada a sério’, nem a terra nem o
céu nem o inferno. (MINOIS, 2003, p. 66).
O poder do riso, que outrora era dos deuses, para melhor manterem o
temor dos homens, com Luciano, volta-se contra aqueles. Esse erudito, visto pelos
cristãos como a encarnação do diabo, fez a eles diversos questionamentos, como uma
forma de conscientização, já que, em suas críticas, qualquer um poderia se fazer
passar por Cristo e zombar daqueles que renegaram os deuses gregos, adoraram um
“sofista crucificado” e passaram a viver de acordo com os princípios deste. Por isso,
Luciano considerava os cristãos, conforme Minois (2003, p. 68), “[...] um bando de
crédulos ingênuos que [...] têm uma pressa infatigável de se fazer matar, oferecendo-
52
se, estupidamente, ao martírio [...] convencidos de que serão imortais e viverão
eternamente”. Para o povo cristão, Luciano era o demônio zombador, mas o riso
contido em suas obras estava vinculado ao infernal, à morte e à liberdade de espírito e
da palavra e, da mesma forma, era evocador de um caos que o homem desejava
organizar, tal qual o demônio socrático, questionador e revelador das certezas e
incertezas de uma sociedade que se distanciava do primitivismo. Por isso, o teor
filosófico-ideológico da sátira menipéia, da mesma forma que o diálogo socrático,
estava na experimentação de uma verdade carnavalizada.
Na observação dos aspectos desses dois gêneros discursivos, o discurso
socrático e a sátira menipéia, Mikhail Bakhtin desenvolveu sua teoria da carnavalização
como procedimento literário. Recurso este, segundo o teórico russo, bastante utilizado
a partir da Literatura Renascentista e, sobretudo, nas produções contemporâneas,
como é o caso do corpus em análise, e que, a seguir, será abordado. Antes, porém,
faz-se necessário desenvolver o conceito de carnavalização nas expressões literárias,
que é, segundo Bakhtin (1997, p. 122), “[a] transposição do carnaval para a linguagem
da literatura [...]”. Portanto, para se entender como funciona essa literatura
carnavalizada, é necessário compreender o que é e como se organiza a festa
carnavalesca.
53
2.2 – Carnaval e Carnavalização
O carnaval, de acordo com o calendário católico romano, é o momento que
antecede a ressurreição de Cristo. Caracteriza-se como um rito geralmente noturno, no
qual as praças e as ruas são os locais das manifestações. Pode-se classificá-lo como
uma festa informal, cujo período de realização é “preparatório” para uma série de
penitências e arrependimentos que virão adiante, na época da Quaresma, em que o
comportamento das pessoas é controlado pela abstinência de carne e dos vícios. As
festas carnavalescas, conforme DaMatta (1997, p. 48), “[...] são momentos muito mais
individualizados, sendo vistos como propriedade de todos, como momentos em que a
sociedade se descentraliza”.
Essa manifestação popular exige uma atuação de todos os seus
participantes. Entretanto, essa participação reflete uma “vida às avessas” ou um
“mundo às avessas”, devido aos desvios habituais que o carnaval proporciona; desvios
das regras que determinam a vida do homem, pois, durante o carnaval, tudo é
permitido: as pessoas se fantasiam, ou seja, assumem outra identidade, ficam mais
alegres, cantam, dançam e esquecem seus problemas cotidianos.
As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida
comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval [...] O
comportamento, o gesto e a palavra do homem libertam-se do poder de qualquer
posição hierárquica (de classe, tulo, idade, fortuna) que os determinava
totalmente na vida extracarnavalesca [...] O carnaval aproxima, reúne, celebra os
esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande
com o insignificante, o sábio como o tolo, etc. (BAKHTIN, 1997, p. 123).
A relação entre Deus e o homem é a marca fundamental do carnaval. O
profano e o sagrado aproximam-se, integrando o céu e o inferno, o pecado e a
salvação, o sexo e a castidade, os abusos e as continências. Essas contradições
pertencem a toda humanidade, conduzem à conjunção ou disjunção com o religioso e
conferem liberdade ao indivíduo, tornando-o semelhante ao outro. No carnaval, ricos e
pobres compartilham de um mesmo momento, tornam-se todos nobres no carnaval,
havendo uma “trégua entre dominados e dominantes”.
54
Note-se, aliás, em relação a isso, que as coletividades tipicamente carnavalescas
são [...] modos relativamente ‘espontâneos’ de associações, onde todos são
parentes, amigos, vizinhos [...] Talvez seja o momento da vida social brasileira
onde se possa expressar de modo aberto e sem censuras os laços de vizinhança,
parentesco [...]. (DAMATTA, 1997, p. 68 – 69).
Por ser uma festa tipicamente alegre, o carnaval é marcado por momentos
extraordinários, sendo a vida diária vista como algo negativo e repressivo. Nele, as
posições hierárquicas do dia-a-dia são esquecidas ou invertidas. Da mesma forma, a
palavra fantasia, que aqui no Brasil possui duplo sentido (desejar algo ou veste de
carnaval), impera no contexto carnavalesco, pois ela mais revela do que esconde.
Representa os desejos e outros papéis que o fantasiado pretende desempenhar nesse
momento de igualdade e libertação das normas sociais. Portanto:
[...] carnaval é uma festa especial e também uma trapalhada, uma confusão, uma
bagunça. Um momento em que as regras, rotinas e procedimentos são
modificados, reinando a livre expressão dos sentimentos e das emoções, quando
todos se podem manifestar individualmente. (DAMATTA , 1997, p. 157).
A instauração desses elementos na literatura contribuiu para a evolução da
prosa ficcional. As principais ações carnavalescas – a coroação bufa e o destronamento
do rei do carnaval são os rituais desse festejo que mais se incorporaram nas
expressões literárias. O ritual de coroação-destronamento dá-se de variada forma em
diversas festas carnavalescas. No carnaval brasileiro, por exemplo, tem-se a coroação
do rei Momo e toda sua corte, que reina durante todo período carnavalesco (Aqui,
verifica-se outra ambigüidade: a palavra reinar, que pode significar dominar, imperar ou
brincar, bagunçar; atos estes que ocorrem no reinado de Momo). Por fim, acabados os
festejos, o rei coroado “sai do poder” para que outro assuma seu lugar no próximo ano.
Na verdade, esse rito revela todo o caráter paradoxal do espírito carnavalesco, uma vez
que a coroação e, conseqüentemente, o destronamento de um rei às avessas
representam as mudanças e transformações do cotidiano humano. O carnaval, por si
só, é um tempo de renovações. As oposições entre coroação e destronamento são
inseparáveis. Elas não encerram um ciclo, mas também confirmam o que Bakhtin
denomina uma “morte criadora”.
55
Sob a perspectiva da coroação e do destronamento, o carnaval converte-
se em imagens biunívocas, englobando campos de mudança e de crise, no qual o riso
carnavalesco, como forma antiga ritual, ridicularizava o poder soberano dos homens e
dos deuses, com o intuito da renovação. Daí o princípio da paródia como elemento
carnavalizante na literatura e que será melhor abordado no terceiro capítulo.
É muito importante salientar o espaço, onde ocorrem as manifestações
carnavalescas, que desde a Antigüidade grega e romana é a praça pública, juntamente
com suas ruas adjacentes. A praça carnavalesca transmite uma idéia de universalidade,
o que proporciona o contato e a participação ativa de todos os seus participantes. Por
isso, na literatura carnavalizada, segundo Bakhtin (1997, p. 128 129), “[...] a praça
pública, como lugar da ão do enredo, torna-se biplanar e ambivalente [...] Outros
lugares de ação [...] ruas, tavernas, estradas, banhos públicos, convés de navios, etc
– recebem nova interpretação público-carnavalesca [...]”.
No entanto, em todos os períodos, a partir dos antigos gregos até os dias
de hoje, percebe-se a contribuição do carnaval para a cultura humana. Basta reparar
como era e é comum encontrar uma “atmosfera carnavalesca” nas feiras, festas
religiosas e folclóricas, assim como em representações teatrais. A literatura, sob a
influência do carnaval, sofreu certa marginalização e clandestinidade na Idade Média,
sendo o Renascimento, o período em que a carnavalização tornou-se freqüente na Arte
Literária. No período renascentista, como explica Vasconcelos (1996, p. 40), “[...] surgiu
uma espécie de linguagem simbólica que era porta-voz das ões, da coroação-
descoroação, das mudanças e trocas de trajes, da ambivalência, bem como dos
matizes da expressão livre de Momo [...]” e que se impregnou na poética ficcional. Com
isso, fundamenta-se uma ruptura dos paradigmas, promovida por uma desestruturação
do texto literário, porque a carnavalização, como inovação da atitude autoral, propõe a
subversão e a inversão de valores.
O Renascimento conservou o grande poder original do carnaval na
literatura: a junção dos gêneros tradicionais e dos populares. Como explica Bakhtin,
incorporou-se, durante o período renascentista, o aprofundamento de uma visão do
mundo nas obras de grandes autores da época, como Rabelais, Cervantes e
Shakespeare. Romperam-se os limites entre a literatura oficial e não-oficial, como
56
afirma Filho (1993, p. 44), “[...] devido à adoção das línguas vulgares [e] também a uma
série de outros fatores resultantes da decomposição do regime feudal e teocrático da
Idade Média”.
Contribuíram para a formação desse procedimento literário, como produtos
da Renascença, o conhecimento humanista e a “alta técnica literária”. O resultado foi o
riso carnavalesco, como resposta ao tom sério da Era Medieval, que possuía como
ideologia voltar-se para a crença religiosa, em que o pecado e o castigo eram tidos
como formas despóticas e de dominação pela nobreza e pelo clero.
Desse modo, o medo, a veneração, a docilidade constituíam os tons e as nuances
dessa cultura séria, que convivia lado a lado com a cultura carnavalesca; ambas
ocupavam a vida dos homens, mas sem se misturar: a primeira, séria, separava-se
da cultura popular e da praça pública, e a segunda restringia-se aos dias de festa e
recreação. É no Renascimento que o riso começa a deixar os limites das festas
e a penetrar em todas as esferas da vida ideológica. Isso porque o Renascimento
trazia em si a esperança de uma transformação histórica ante o ‘período das
trevasque representava a Idade Média, colocando-se, assim, a literatura do riso a
serviço dessa nova sensação histórica. (FILHO, 1993, p. 44 – 45).
Na própria imagem oficial do inferno, vista com temor pelo homem medieval,
estão presentes elementos carnavalescos, em especial, no período renascentista. O
espetáculo do julgamento final troca o medo pelo riso, segundo uma “lógica da
inversão”, originária da cultura popular, na qual os “debates carnavalescos”, formados
pelo jogo de opostos, como a vida e a morte, e pela fantasia, são introduzidos na
literatura como possíveis maneiras de se viver diferentemente do que é tido como
habitual. No inferno carnavalesco, segundo Discini (2006, p. 56), “[...] os que foram
grandes senhores neste mundo terão uma vida pobre e trabalhosa embaixo. Ao
contrário os filósofos e os que foram indigentes neste mundo, lá serão grandes
senhores por sua vez”. Esse “mundo às avessas” reflete a verdade como meio de uma
nova interpretação dos sentidos da vida.
À luz da teoria bakhtiniana, a carnavalização na literatura é a evolução e a
adaptação de uma obra poética a seus determinados “momentos históricos”, na
tentativa de se obter e expressar as verdadeiras relações humanas. Bakhtin diz que,
segundo Filho (1993, p. 45): “A carnavalização [...] permite descobrir o novo e inédito.
Ao tornar relativo todo o exteriormente estável, constituído e acabado [penetra] nas
57
camadas profundas do homem [...]”. A autenticidade da carnavalização trouxe à
literatura a ampliação dos fatos sociais. A vida humana, desde a Antigüidade até a
contemporaneidade, é marcada pelas certezas/incertezas do cotidiano, por isso, ao
assumir um caráter dualístico, a carnavalização redimensiona a interpretação
existencial e a ilimitada relação entre realidade e fantasia torna-se evidente nas
produções poéticas.
Por esta razão, afirma DaMatta (1997, p. 169): “Não parece haver dúvidas
de que o carnaval é um rito em que o princípio social da inversão é aplicado de modo
consistente”, no qual o gestual da dança carnavalesca, por exemplo, é extravasar
gestos e movimentos diferentes em um padrão não-convencional. Assim, o corpo
humano com as suas degradações, no plano carnavalesco, aproxima-se da terra,
caracterizada como nascimento e morte, ventre e túmulo, e na regeneração das
funções biológicas de suas partes inferiores o sexo, principalmente –, como forma de
comunhão com a vida. O corporal, justifica Discini (2006, p. 57), “[...] concebido na sua
função regeneradora ampara-se na reversibilidade dos movimentos, o que é fundante
do grotesco. A função regeneradora do rebaixamento grotesco compõe a cosmovisão
carnavalesca”.
Certamente, o carnavalesco introduzido na linguagem literária contribuiu
bastante para a intensificação do valor artístico da Literatura. Reflete uma concepção
nova do mundo e do homem, fazendo-o aproximar-se de seus medos e temores, ao
passo que, conseqüentemente, liberta esse mesmo homem de um sistema social cínico
e opressor. Conforme Filho (1993, p. 66), “[...] a poética carnavalesca não propõe a
negação de um tempo pelo outro, mas o encontro dos tempos, a presentificação e a
síntese, e não a exclusão”. A verdade que a literatura carnavalizada revela, vai além do
seu tempo, não fica estagnada e é sempre atual, isto porque a carnavalização coloca
em diálogo a consciência do ser humano, tornando universais os horizontes do seu
espírito e intelecto. A literatura carnavalizada, portanto, interioriza esse comportamento
“excêntrico”, no intuito de criticar aspectos ocultos da natureza humana, perceptíveis
em Álbum de família, uma vez que seu autor:
[...] foi capaz de criar um teatro que carnavaliza o próprio teatro, ao tornar ambíguo
os personagens, ao libertar-se dos modismos e se voltar mais para o cotidiano (o
58
que não era comum até então), ao apresentar um teatro mais preocupado com o
lado sombrio do ser humano (pequenos crimes, pequenas tentações, paixões e
ódios), ao colocar os personagens centrais vivendo sua sombra e acabando com
as regras estabelecidas para o teatro que o antecede. (SILVA, 2001, p. 27).
Na literatura do carnaval, tem-se a mudança de uma ordem, isto é, a
inversão de determinados valores, o que gera, como conseqüências, o grotesco e a
ironia. Para que isto seja perceptível, basta tomar como exemplo o discurso socrático,
que, ao assumir a posição invertida do não-sábio, era provocador do riso irônico acerca
de todas as coisas. o grotesco, cuja significação, durante algum tempo, ficou restrita
ao conceito de cômico ou de mau gosto, nos estudos bakhtinianos, conforme Discini
(2006, p. 58), “[...] passou então a exprimir a ‘transmutação de certas formas em outras,
no eterno inacabamento da existência’”. O termo grotesco originou-se do vocábulo
italiano grotta
2
, devido ao fato de ter sido encontrada, no século XV, em escavações
feitas na Itália, uma pintura antiga, que representava espécies vegetais, animais e
humanas que se misturavam e se confundiam entre si. Tal mistura desordenada
conceitua o termo grotesco como:
[...] o jogo livre, insólito e fantástico de formas que se confundiam, que se
mesclavam e estavam em constante processo de transformação. As fronteiras
entre as formas são ultrapassadas e não se percebe a imobilidade comum na
chamada pintura da realidade. As formas não o acabadas e tudo está em
movimento e metamorfose. (ALONSO, 2001, p. 64).
Na imagem do grotesco, Mikhail Bakhtin encontra alguns princípios básicos
da festa carnavalesca, sobretudo a contemplação do corpo, os vícios e o sexo. Aliado à
loucura alegre do carnaval, a visão do corporal, nessa estética grotesca, é a negação
daquela visão clássica do acabamento e da perfeição clássica e cristã, tendo o riso
como manifestação da degradação e do rebaixamento do corpo a uma esfera bem mais
próxima da humana. Todavia, tais princípios são originários da cultura popular
renascentista, sendo François Rabelais o representante maior da literatura popular
desse período, cuja obra serviu de fonte para os estudos de Bakhtin acerca da
carnavalização.
2
Em português, gruta.
59
Essa visão do corpo no realismo grotesco bakhtiniano, no limiar entre
morte e nascimento, revela-se como manifestação do eterno ciclo inacabado da
renovação de todas as coisas, ao qual se refere o ritual carnavalesco da coroação e do
destronamento, o dialógico presente no discurso socrático e as provocações cômico-
filosóficas da sátira menipéia, tal como acontece no corpus de análise, em que todas as
personagens apresentam essa contemplação carnavalizada do corpo, seja como forma
de satisfação ou de castigo. Por isso, esse limiar carnavalesco, conforme Discini (2006,
p. 79), “[...] está também na simultaneidade dos elementos[...]: homem/mulher;
insanidade/razão; pranto/galhofa [...] O limiar está, por fim, no exercício de
experimentação da verdade”. O limiar do discurso carnavalizado frisa a idéia da
oposição entre paraíso e inferno, dados pela sátira menipéia. Cabendo, o primeiro, aos
ingênuos e, o outro, aos céticos, uma vez que esse inferno carnavalesco, presente
tanto no mundo dos vivos quanto no dos mortos, procura desestabilizar a concepção
tradicional de tempo, espaço e, principalmente, de alguma forma de verdade acabada,
rompendo, definitivamente, com qualquer relação com as condições habituais da vida
humana e fazendo refletir sobre outros sentidos que podem questioná-la.
60
2.3 – Carnaval e Crítica Social: uma Trama em Dois Planos
Álbum de família enfoca as conflituosas relações de paixão e ódio entre
os membros de uma mesma família, o que revela, a priori, o jogo de contrastes tão
comum nas escrituras carnavalescas, pois, de acordo com Filho (1993, p. 65), “[...] as
formas que representam a linha carnavalesca [unem] o cômico e o sério, o erudito e o
popular, o oficial e o marginal, buscando a síntese que expressa a verdade das
relações humanas”. Com esta obra, Nelson Rodrigues sintetiza as temáticas presentes
em toda sua produção dramatúrgica, na qual se podem observar personagens e
situações específicas, tais como: o amor compulsivo, o adultério, os conflitos familiares
e a morte, pertencentes ao universo rodrigueano e inseridos em um “álbum”, onde são
expostas todas as obsessões do ser humano.
A trama inicia-se em um tempo carnavalizado: primeiro de janeiro de 1900,
revelado como um marco zero, início de um ciclo de renovação, primeiro dia após o
casamento de Jonas e Senhorinha, que partem para a fictícia cidade de São José de
Golgonhas, localizada no interior de Minas Gerais, estado brasileiro tido como símbolo
da tradição familiar. A cidade é um espaço carnavalizado, pois, além de fazer referência
a Congonhas do Campo
3
, aponta aqui para a subversão da moral e bons costumes,
ao referir-se, indiretamente, ao Gólgota, localidade onde ocorreu a paixão de Cristo,
que na peça, de acordo com Fraga (1998, p.74 – 75), “[é] o lugar privilegiado da paixão
de Jonas [o que] mostra a preocupação de criar um ambiente ‘genesíaco’, de fugir ao
anedótico, ao histórico [...]”. Lá, o casal tem quatro filhos, por ordem de idade:
Guilherme, Edmundo, Nonô e Glória, e origem a uma família aparentemente
modelar.
Com o passar do tempo, os filhos têm destinos diferentes: Guilherme vai
para o seminário, Edmundo casa-se com Heloísa, Noenlouquece e Glória torna-se
3
A exploração de reservas auríferas, a partir de 1700, contribuiu para o surgimento de famílias ilustres nessa cidade
mineira, resgatando a tradição e os valores burgueses, combatidos ferozmente na peça de Nelson Rodrigues. O
caráter religioso de Congonhas do Campo também serviu de base para a criação do espaço carnavalizado em Álbum,
pois, nesta cidade, estão localizadas as principais igrejas e obras da arte barroca, das quais se destacam as esculturas
de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que elevaram o nome de Congonhas a Monumento cultural da
humanidade.
61
estudante em um colégio interno. O casal protagonista vive em sua fazenda em
companhia de Tia Rute, irmã de Senhorinha. Certa vez, porém, ao chegar em casa, o
patriarca da família o vulto de um homem fugindo do seu quarto. Estava consumado
o adultério de Senhorinha. A partir daí, os relacionamentos do clã se desarticulam.
Jonas assume sua paixão pela filha e concretiza esse desejo com adolescentes, entre
treze e quinze anos de idade, que lembram fisicamente Glória e que são trazidas por
Tia Rute. Esta cumpre esse papel por estar apaixonada pelo cunhado. Os filhos do
casal também vivem paixões incestuosas: Guilherme castra-se e abandona o seminário
para ficar com a irmã; Glória, mesmo mantendo um relacionamento homossexual com
uma colega chamada Teresa, o que faz com que seja expulsa do colégio interno, nutre
grande paixão por seu pai; Edmundo é apaixonado por Senhorinha e Nonô “perde o
juízo” por ter sido amante da própria mãe (ele era o vulto que Jonas flagrou saindo do
quarto). Ao final, uma sucessão de mortes: Guilherme mata Glória e se mata por
amor; Edmundo também se suicida por não conseguir manter relações com sua mãe; e
Senhorinha mata Jonas por odiá-lo. Restam apenas: Rute, que vai embora em meio à
trama, e Senhorinha, que foge com Nonô em busca de uma nova vida.
Esse mar de incestos, mortes e perversões no texto mostram ao
leitor/espectador, de forma carnavalizada, uma preocupação em discutir os verdadeiros
valores da sociedade. Apesar de a peça apresentar a burguesia como a grande vilã e a
maior responsável pelas mazelas sociais, Nelson é bastante ousado na sua denúncia
dos conflitos humanos, como observa Lins (1979, p. 127): “A severidade da crítica
concentra-se sobre a classe média, mas vai além dela. Com maior ou menor
intensidade, todas as camadas da população comportam-se de modo mais ou menos
parecido [...] Mal ou bem, todos se sentem com as mãos sujas”. A crítica proposta
assenta-se no movimento carnavalizante das ações das personagens, que explicitam o
papel que estas desempenham na sociedade: homem/mulher, velho/jovem; pai/mãe;
pais/filhos; marido/mulher. Além disto, enfatiza-se a notória hierarquia presente na
organização do c de Jonas e D. Senhorinha, organização que poderia ser
esquematizada da seguinte forma:
62
Quadro 1: Divisão hierárquica da sociedade
A sociedade, representada na obra pela figura do Speaker, determina a
divisão dos indivíduos em dois grupos sociais. O grupo dominante, liderado pelo casal
protagonista, a que estão submetidos os filhos, caracteriza-se pelo status que assumem
e encarnam perante a sociedade, que são vistos como representantes da ordem, do
poder e da autoridade. No entanto, ao mesmo tempo em que a família de Jonas é
retratada como grupo dominante, entre seus integrantes também um sistema
hierárquico, em que as figuras do pai e da mãe deveriam ser respeitadas. Todavia, isso
não acontece em decorrência da rivalidade existente entre os próprios componentes do
grupo, que colocam em descompasso a estabilidade harmônica da família, pois os atos
passionais por eles cometidos geram ações de extrema violência, como mutilação,
estupro, assassinato e suicídio, o que acarreta, mais adiante na peça, o fim trágico de
todos.
As ações violentas permeiam toda a trama e ligam-se ao cotidiano das
personagens, como se percebe em uma das falas de Jonas, (Rodrigues, 2004, p. 75):
“[...] Vou sair para matar um homem. (Abandona a sala, com absoluta dignidade [...]
ouvem-se dois tiros ao longe [...])”. A banalização das agressões físicas e morais realça
o poder do grupo dominante, que extravasa suas angústias e perversões com
brutalidade na relação com os mais fracos, já que, como afirma DaMatta (1997, p. 213),
“[...] a violência ocorre porque ela denuncia a necessidade da hierarquização [...] Deste
modo, a violência surgiria como um recurso apenas quando [...] a moralidade estivesse
rompida ou ofendida”. Moralidade esta defendida e quase resgatada pelas
personagens, mas que, na verdade, serve como máscara social, que esconde e
reprime os desejos e as atrocidades de cada um dos integrantes da família, porque
neles, como muito bem afirma Lins (1979, p. 72), “[...] o fenômeno que então vemos
suceder é o de uma moral extremamente puritana e ortodoxa rasgada e corrompida por
[quem] mais se deleitava em defendê-la”.
>>>>>> GRUPO DOMINANTE
SOCIEDADE
>>>>>> GRUPO DOMINADO
63
Já o segundo grupo tem como representante o Avô, que não possui nenhum
parentesco com os membros do primeiro grupo, e as menores abusadas sexualmente
por Jonas. O Avô aparece na trama para “vender” sua neta a Jonas, para que este
consuma seu desejo por adolescentes virgens. Porém, o ancião é diferente das demais
personagens, pois não tem identidade própria ou ocupação definida, submetendo-se
sempre às humilhações de Jonas, que é o patriarca e o fazendeiro, como nesta
passagem texto em que o velho fala, (Rodrigues, 2004, p. 19): “Aposto que nem se
lembra de mim; também era tão novinho! O senhor, ‘seu’ Jonas, fez muito xixi, em cima
de mim, muito! Também montou na minha corcunda. Cada judiaria!”. Os atos de
pedofilia praticados por Jonas acentuam ainda mais seu poder ilimitado, a começar pela
afirmação de sua condição de macho. Os relacionamentos de Jonas com as jovens
trazidas por Rute eram do conhecimento de sua esposa e de outras pessoas, o que
reforça a visão machista e antiquada do homem, cercado de amantes, mesmo sendo
pai de família. Senhorinha, por sua vez, aceitava essa situação por não ter afeição pelo
marido, vivendo ambos um casamento de “fachada”, apenas para manter o status social
e o poder sobre os mais fracos e menos favorecidos.
O poder aguça o desejo de satisfação material, incluindo-se nele o sexo. Jonas se
aproveita de sua envergadura social para abusar e até matar impunemente
mulheres jovens, e as famílias das vítimas, das camadas mais baixas da
sociedade, colaboram com ele, depredando-se totalmente. As ações de Jonas
transformam o sexo numa metáfora social, o estupro das classes pobres do Brasil.
(GEORGE, 1990, p. 93).
Como contraponto do casal, aparece Tia Rute que, apesar de fazer parte
da família, é apenas uma agregada da casa e obedece às ordens de Jonas, tornando-
se rival da irmã. Rute conhece os “segredos” familiares, ocupa-se em arregimentar
jovens adolescentes para satisfazer o desejo do cunhado e incorpora uma postura
preconceituosa, como em Rodrigues (2004, p. 43): “[...] Mas a mim nunca houve um
preto, no meio da rua, que me dissesse ISSO ASSIM! [...] Quer dizer, toda mulher tem
um homem que a deseja, nem que seja um crioulo, um crioulo suado, MENOS EU!”.
Apesar de assumir a função de unir/desunir dominantes e dominados, Rute revela, com
essa fala, a discriminação racial existente na sociedade. Sua aparência física não atraía
nenhum tipo de homem, nem mesmo aqueles que, para aquele grupo dominante, eram
64
considerados seres inferiores. Mais adiante, homens da raça negra aparecem na trama
como empregados da fazenda, condição esta vinda do regime escravocrata e da
marginalização dada aos negros, como bem mostram essas passagens da peça.
Portanto, por meio da função social das personagens, pode-se substituir o quadro 1
pelo seguinte esquema:
Quadro 2: Função social das personagens em Álbum de família
Heloísa e Teresa, respectivamente esposa de Edmundo e “coleguinha”
de Glória, são dominadas pelo desamor com que são tratadas. A primeira por não ser
amada pelo marido e a segunda por ter sido abandonada pela amante.
A valorização do corpo e os relacionamentos sexuais, entretanto, unem os
dois grupos. Na peça, as personagens utilizam o corpo e o sexo como formas de
sedução, punição ou fuga de uma realidade decepcionante: Senhorinha e Jonas
satisfazem seus desejos sexuais; Edmundo guarda seu corpo para sua amada;
Guilherme castra-se; Nonô expõe-se nu; Glória e Teresa têm experiências homo-
afetivas; Rute é humilhada por não ter dotes físicos; Heloísa mantém-se imaculada; o
Velho apresenta uma deformidade; as meninas são deploradas por Jonas e o Speaker
é descrito como possuidor de uma voz eloqüente. Essas imagens são manifestações de
um realismo grotesco que aproxima, na obra, a função do corpo e do sexo ao
movimento da renovação da vida e da morte, porque o corpo e suas funções, para
Bakhtin, segundo Alonso (2001, p. 76), “[estão] prestes a morrer e a nascer, [estão]
misturado[s] ao mundo confundindo-se com animais e coisas, um conjunto material e
corporal em todos os seus elementos”, princípio este que amplia o caráter dúbio e
instável que as personagens de Nelson carregam, acentuando atitudes ambíguas e
complexas da humanidade.
>>>>> JONAS, D. SENHORINHA e FILHOS
|
SPEAKER TIA RUTE
|
>>>>> AVÔ e MENINAS VIRGENS
65
As situações limites, também típicas de uma literatura carnavalizada, levam
as personagens da peça ao choque com as “engrenagens” sociais, em que o embate
entre fortes e fracos é inevitável:
Em situações assim [...] as pessoas, freqüentemente possessas de raiva e
indignação, estão entregues a si mesmas e ao confronto cara a cara. Elas então
gritam e repetem, no paroxismo de personagens de Nelson Rodrigues, as marcas
de suas identidades sociais, na busca do esmagamento do adversário [em que] o
mais forte acaba por vencer o mais fraco, [confirmando a idéia] de que o mundo é
ruim [...] (DAMATTA, 1997, p. 210).
O comportamento das personagens, no decorrer da trama, beira à ordem e
à desordem social. Os conflitos interiores desenvolvem nelas a humanização,
remetendo-as aos paradoxos individuais e sociais enfrentados pelo homem, cuja vida
cotidiana, desde a Idade Média, situa-se entre o temor cristão e, paradoxalmente, o
“universo carnavalesco”.
[...] o homem medieval levava mais ou menos duas vidas: uma oficial,
monoliticamente séria e sombria, subordinada à rigorosa ordem hierárquica,
impregnada de medo, dogmatismo, devoção e piedade, e outra público-
carnavalesca, livre, cheia de riso ambivalente, profanações de tudo o que é
sagrado, descidas e indecências do contato familiar com tudo e com todos.
(BAKHTIN, 1997, p. 129).
Portanto, se de um lado, as personagens rodrigueanas apresentam suas
paixões incestuosas e atos violentos, condenados por todo meio social, de outro, elas
se mostram preocupadas com a moral e com os bons costumes, sobretudo religiosos,
como mostra esta fala de D. Senhorinha, (Rodrigues, 2004, p. 64): “[...] Um dia, não sei!
Ah, se eu não fosse religiosa! Se eu não acreditasse em Deus. [...] coisas que eu
penso, que eu tenho vontade, mas não sei se teria coragem!”. Diante de tais
hesitações, insinua-se uma outra realidade dentro da ficção, cujo objetivo é a
instauração de um “mundo social renovado”, já que a rejeição dos modelos sociais
vigentes. Pode-se dizer que as personagens da peça, por seu comportamento, segundo
DaMatta (1997, p. 265), “[...] rejeita[m] o mundo social como ele se apresenta [...]
procurando a terra da promissão, onde os homens finalmente poderão realizar seus
ideais [...]”. A “rejeição absoluta” a todas as coisas traduz-se em uma espécie de
transgressão carnavalesca à ordem social, como é o caso de D. Senhorinha que, ao
66
final da peça, entrega-se a sua verdadeira paixão e une-se a seu filho louco para “se
incorporar a uma vida nova”. Há, portanto, a rejeição à sociedade e aos modelos que
ela tenta implantar e, conseqüentemente, a libertação de um passado obscuro e a
manifestação do desejo de um futuro promissor e utópico.
A narrativa da peça desdobra-se em dois planos de ação, havendo, porém,
entre ambos uma discrepante relação que acentua a presença de um jogo de
dualidades, próprio da literatura carnavalizada. O primeiro plano é formado pelas sete
páginas do álbum de fotografias da família de Jonas e Senhorinha, comentadas pelo
Speaker, que no texto rodrigueano, assume o papel de “Opinião Pública”. Os fatos
narrados e criticados pelo narrador são momentos familiares de felicidade e harmonia.
no segundo, os relacionamentos e atos dos membros do clã são postos em cena de
forma cruel e violenta, predominando as paixões incestuosas, os assassinatos e
suicídios. O choque entre os dois planos desvela a máscara das torpezas individuais e
sociais. Enquanto nas fotografias a instituição familiar é mostrada como modelo a ser
seguido, nas relações do cotidiano, o ódio e as mazelas da sociedade invadem e
corrompem o espaço familiar.
[Essa peça] encena a vida familiar, sua forma de organização, suas aflições e
conflitos. [...] a sexualidade, no contexto [dessa] obra, funciona como uma espécie de
linguagem que expressa a própria família. Isto é, através das regras e infrações
sexuais desvela-se a dinâmica familiar e sua configuração específica. [...] o incesto
constitui o ponto nevrálgico da visão do autor sobre a sociedade e a cultura. (VOGT;
WALDMAN, 1985, p. 76).
Esse mascaramento, proposto pelo primeiro plano de ação em Álbum,
confirmado pelo discurso do Speaker, e o descompasso das relações familiares que se
estabelece no segundo, dão a idéia ritualística da coroação e destronamento, de acordo
com a teoria bakhtiniana. Tais ações, presentes nas festas carnavalescas, são
transpostas para o texto de Nelson de forma que a família representa o “rei”, que,
inicialmente, tem seus atos celebrados e exaltados por seus “súditos”. Logo em
seguida, porém, entra em decadência ao expor sua verdadeira face. Ambos os planos
são, respectivamente, o paraíso e o inferno carnavalescos: no primeiro, Jonas,
Senhorinha, seus filhos e parentes vivem uma relação harmoniosa e feliz, ou seja, uma
máscara social que se deseja impor, mas que fica em ruínas no outro plano, pois nele
67
se revela a realidade que se procura ocultar no anterior. No entanto, ao depararem com
os conflitos que as afligem, as personagens mergulham em seus infernos interiores,
fruto da proibição que as impede de concretizar suas paixões incestuosas.
Da mesma forma, desenvolvem-se os planos carnavalescos do cotidiano
social. O plano inicial da peça é a representação do que se pode chamar de rua, pois
as fotografias do álbum representam a ligação com o mundo externo, ou seja, a
maneira como a multidão vê as coisas. O segundo plano do texto, por outro lado,
representa a casa, o espaço interno, marcado por autoritarismo, repressão e relações
sexuais livres, uma vez que os desejos mais íntimos só se manifestam e se concretizam
na privacidade dos lares. Tais categorias sociológicas, embora contrárias, tornam-se
dialéticas. Uma é a continuidade da outra, pois, conforme DaMatta (1997, p. 140): “[...]
o que está associado à casa deve sempre estar escondido, a rua sendo sempre
associada ao que está fora e à exibição. Assim, é de casa que se deve ver a rua, mas
no carnaval é da rua que se observam as casas”. No entanto, as personagens voltam-
se para dentro do grupo doméstico, por intermédio do incesto e da “competição
interna”, e pelas posições hierárquicas do clã, como mostra uma das mais marcantes
passagens da obra, em que Edmundo confessa, (Rodrigues, 2004, p. 70): “Mãe, às
vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser
nós [...] Como se a nossa família fosse a única e primeira [...] Então, o amor e o ódio
teriam de nascer entre nós [...]”.
Por sua vez, o confronto entre o sagrado e o profano aparece também no
diálogo entre casa e rua, já que o referido confronto envolve diversas camadas, fazendo
com que as pessoas se desloquem de uma posição individual para uma coletiva, como
ocorre no caso dos outros espaços onde se desenvolve a trama de Álbum de família: o
colégio interno e a capela. Nesses lugares, como grandes representações da praça
pública carnavalesca, todos os seres são “irmãos”; filhos de Deus”, porém, a falsa
religiosidade cristã que permeia a peça é desmascarada pelos pecados, segundo o
Cristianismo, cometidos pelas personagens, o que aponta para uma crítica à força
repressora da religião aos desejos e instintos.
Outra questão abordada é a loucura que, como afirma DaMatta (1997, p.
171): “É precisamente por poder colocar tudo fora de lugar que o carnaval é
68
freqüentemente associado a ‘uma grande ilusão’ ou ‘loucura’”, ou seja, a loucura é a
palavra de ordem do carnaval, pois abre as dimensões da rua, na qual está presente o
homossexualismo, por exemplo, visto como algo “fora de lugar” sob a ótica moralista,
em que apenas as relações reprodutoras do “sistema” são hipocritamente defendidas.
Teresa (sempre apaixonada) – Me beija?
(Glória beija na face, com certa frivolidade.)
Teresa – Na boca!
(Beijam-se na boca; Teresa de uma forma absoluta.)
Teresa (agradecida) – Nunca nos beijamos na boca – é a primeira vez!
(RODRIGUES, 2004, p. 12).
Não é à toa que o segundo plano da obra tem início na cena citada
anteriormente, rompendo, assim, com o discurso do narrador, no primeiro plano, relativo
à primeira foto do álbum, descrita como exemplo acabado da moral e dos bons
costumes burgueses. Mas é a personagem Nonô que, no âmbito do texto, melhor
iconiza a loucura carnavalesca. No tópico seguinte, sua imagem, juntamente com as
das demais personagens, refletidas em cada uma das sete páginas do álbum
fotográfico, serão analisadas agora sob a ótica da carnavalização.
69
2.4 – As Revelações das Fotos do Álbum
As fotografias que compõem o primeiro plano de Álbum de família e que,
a seguir, serão uma a uma analisadas, contrapõem-se às verdadeiras ações das
personagens. Por isso, refletem uma postura crítica em relação à hipocrisia social, que
põe em xeque o valor de certas instituições: a família e a Igreja, bem aos moldes da
teoria da carnavalização de Bakhtin.
Conforme a rubrica inicial de Rodrigues (2004, p. 09): “[...] o mencionado
speaker, além do mau gosto hediondo dos comentários, prima por oferecer informações
erradas sobre a família”. Esse narrador, denominado Speaker, é a representação do
riso carnavalesco presente já no primeiro plano narrativo, pois seus comentários
invertem o que as fotos realmente representam. Trata-se da ridicularização e da
afirmação irônica dos valores burgueses, fator que contribui para integrar obra e leitor e,
efetivamente, situar Nelson Rodrigues como autor moderno, da mesma forma que
utiliza a fotografia, nessa sua obra, como um dos elementos evidenciadores de seu
compromisso com a modernidade.
Outra figura importante, e que aparece no decorrer das apresentações das
fotos, é o fotógrafo. Apesar de não ter falas, sua participação na peça é fundamental:
O fotógrafo está em cena, tomando as providências técnico-artísticas que a pose
requer. Esmerado nessas providências pinta o sete; ajeita o queixo de Senhorinha;
implora um sorriso fotogênico [...] De quando em quando, mete-se dentro do pano
negro, espia de lá, ajustando o foco. E vai, outra vez, dar um retoque na pose de
Senhorinha. Com esta cena, inteiramente muda, pode-se fazer o pequeno balé da
fotografia familiar. Depois de mil e uma piruetas, o fotógrafo recua, ao mesmo tempo
que puxa a máquina, até desaparecer de todo. (RODRIGUES, 2004, p. 09).
Com esses atos repetidos na preparação de todas as fotos, o fotógrafo
define-se como o elo entre os dois planos de ação e coopera para salientar a
contradição existente entre a verdade exposta e o real carnavalizado. Ele comanda as
poses e feições que devem ser assumidas pelas demais personagens, preparando-as
para o mascaramento das verdades que não devem ser mostradas no álbum de
70
retratos, elemento de carnavalização dos momentos agradáveis em família e que a
sociedade deve conhecer e contemplar.
A foto que abre o álbum e inicia o primeiro ato, conforme Rodrigues (2004,
p. 09), é “[...] datada de 1900: Jonas e Senhorinha, no dia seguinte ao casamento [...]
ele, o busto empinado; ela, um riso falso e cretino [...]”. Nessa rubrica inicial, nota-se,
pela pose dos recém-casados, o jogo das aparências, já que enquanto ele aparenta um
ar de prepotência e domínio, ela ri da pseudofelicidade conjugal, indicando, assim, o
seu verdadeiro caráter, que mais adiante se revelará. Todavia, essa imagem é
mascarada pelo discurso “ingênuo” do Speaker, (Rodrigues, 2004, p. 09 10): “[...]
Vejam a timidez da jovem nubente. Natural trata-se da noiva que apenas começou a
ser esposa. E isso sempre deixa a mulher meio assim. Naquele tempo, moça que
cruzava as pernas era tida como assanhada [...]”. A presença de valores do
comportamento social feminino justifica a expressão de Senhorinha, em que a falsidade
é transformada em pudor. Continua o narrador, (Rodrigues, 2004, p. 10): “Partem os
românticos nubentes para a fazenda de Jonas [...] E não esquecer o que preconizam os
Evangelhos: Crescei e multiplicai-vos!’”. Daí a importância dessa fotografia, pois nela
evidencia-se a trajetória da família. Nascem os filhos, como determina a citação bíblica,
e começam os conflitos, todos eles ocorridos na fazenda, da qual o casal, desde sua
lua-de-mel, nunca mais saiu. Portanto, conforme Magaldi (2004, p. 51), “Desinteressado
de manter qualquer tipo de disfarce, Nelson propôs, em Álbum de família, um exercício
de autenticidade absoluta. As personagens decidiram abolir a censura [...] para vomitar
a sua natureza profunda, avessa a quaisquer padrões”.
Jonas e Senhorinha, além de marido e esposa, eram primos, o que poderia
fortalecer ainda mais os seus laços afetivos, entretanto ele tinha paixão por sua filha
Glória, e Senhorinha era apaixonada por seu filho Nonô e alvo do amor doentio de seu
filho do meio, Edmundo. O comentário do “Locutor”, porém, com sua “habitual
imbecilidade”, esconde as verdadeiras relações existentes entre o casal, como mostra o
próximo retrato, (Rodrigues, 2004, p. 24): “E ainda quem seja contra o casamento!
[...] Uma mãe assim é um oportuno exemplo para as moças modernas que bebem
refrigerante na própria garrafinha!”. Nesta segunda foto, é ressaltada a família como
instituição plena, em que a imagem da mãe é destacada. A protagonista é tida como
71
modelo de esposa e mãe a ser seguido por todas as mulheres, comparada, mais
adiante, por Edmundo, a Nossa Senhora. Mas o próprio nome dela é carnavalizado,
pois é formado pelo pronome de tratamento Dona, o que representa uma ordem
hierárquica dentro do seu meio social e, ao mesmo tempo, marcado pelo sufixo –inha,
que o torna pejorativo e reflete a marginalidade da matriarca, representando uma
senhora sem valor moral ou uma santa diminuta, adúltera e incestuosa, embora aos
olhos da sociedade, tal sufixo aponte também, paradoxalmente, para a fragilidade e
submissão de uma esposa exemplar.
A presença do religioso aprofunda-se nos retratos também como crítica à
rejeição dos princípios cristãos pelos membros do grupo familiar. No primeiro, tem-se a
passagem bíblica por parte do Speaker; no segundo, a representação da “sagrada
família”; já no terceiro, a primeira comunhão de Glória, cuja pose, de sóbria
angelicalidade, é reforçada pelo seguinte comentário, (Rodrigues, 2004, p. 35): “A
inocência resplandece na sua fisionomia angelical. Mãe e filha se completam [...] Se
Senhorinha é uma mãe extremosa, Glória é uma filha obediente e respeitadora”.
Evidentemente, Senhorinha e Glória assumem certos valores, mas não aqueles que a
sociedade impõe. Ambas são rivais e se odeiam: a filha ama seu próprio pai e desperta
a paixão de Guilherme, seu irmão mais velho; em contrapartida Senhorinha não suporta
tê-la como filha, já que desejava apenas filhos homens, chegando a declarar sua
vontade de matá-la quando ela ainda era criança.
D. Senhorinha e Glória representam a face ambígua da mulher na
sociedade virgem e puta – , uma vez que, primeiramente, mostram-se como as
mulheres da casa, pudicas, reprodutoras e controladas pelo homem, para, logo a
seguir, revelarem seu verdadeiro rosto carnavalizado: o de mulheres da rua, que não
têm função de reprodução e são controladoras do homem.
No carnaval, [...] a glorificação não é da virgem-santa que desfila num altar,
abençoado a todos os homens que, recatadamente, baixam os olhos durante sua
solene passagem. Ao contrário, é da puta. A grande puta generalizada que, trazendo
consigo a vida, impõe pensar sobre o encontro sico, a penetração sexual e
evidentemente a reprodução do mundo. A virgem desfila tendo somente um rosto, a
face serena, linda, semi-oculta pelo véu. Seu corpo é coberto por um manto que
impede descobrir suas formas. Mas a mulher do carnaval desfila como puta. Assim,
elas estão nos andores que centralizam todos os olhares [...] O outro lado dessa
dramatização é, evidentemente, a dialética do homem como controlador (o pai) e
72
como controlado (o filho), quando ele se relaciona com essas duas vertentes do
mundo feminino. (DAMATTA, 1997, p.142).
Mãe e filha escondem, sob o “manto” da castidade e da pureza, seus
desejos mais íntimos e incestuosos, ao passo que também são objetos de desejo dos
homens da casa. Jonas, como o pai controlador de suas mulheres, diz, (Rodrigues,
2004, p. 99): “Quando se ama deve-se possuir e matar a mulher [...] a mulher não deve
sair viva do quarto [...]”. Porém, esta observação dessa personagem masculina revela o
medo, por parte do macho, de perder o controle sobre o grupo familiar, ao rejeitar, de
forma machista, os direitos femininos e ao tratar a mulher como mero objeto sexual.
Tia Rute, irmã de Senhorinha, também nutre amor por Jonas e por isso
detesta a irmã. O retrato seguinte é a scara dessa outra relação conflituosa da
família, (Rodrigues, 2004, p. 49 50): “Senhorinha [...] é irmã, também, extremosa,
como as que mais o sejam [...] Por sua vez, Rute, que é a mais velha das duas, não fica
atrás. São resultados da educação patriarcal!”. Esse trecho denuncia os “resultados” de
uma tradição, em que a figura do pai encarna os preceitos sociais, desmentidos pelas
atitudes das irmãs e, também, pelos atos de Jonas, o patriarca da obra. A disputa das
duas irmãs pelo amor do mesmo homem, tema obsessivamente freqüente na obra
rodrigueana, é intensificada pela contrastante apresentação de Senhorinha e de Tia
Rute. A primeira sempre foi a favorita de sua mãe, é “bonita e conservada”, já a outra é
uma mulher solitária e “sem o menor encanto sexual”; por isso Rute, para alimentar sua
paixão, sempre fazia as vontades do cunhado.
O terceiro ato inicia-se com a apresentação da quinta fotografia do álbum,
na qual é retratado Nonô aos 13 anos de idade. O filho caçula de Jonas e Senhorinha,
que é louco, tem relatada pelo Speaker a suposta causa de sua doença, (Rodrigues,
2004, p. 61): “[...] este retrato foi tirado na véspera do dia em que o rapaz enlouqueceu.
Um ladrão entrou no quarto de Senhorinha, de madrugada e, devido ao natural abalo,
Nonô ficou com o juízo obliterado”. Tal desculpa para a loucura de Nonô é escondida a
sete chaves pela família. No decorrer do texto, o segredo é mantido, até que, no final,
em tom de desabafo, Senhorinha confessa a seu marido que o moço ficou assim, após
relacionar-se amorosamente com ela, o que jamais poderia ser conhecido pela família e
muito menos pela sociedade conservadora. A revelação surpreende o leitor, pois,
73
quando cai mais esta máscara, quase ao fim da peça, vem à tona o verdadeiro caráter
de Senhorinha e Nonô, que, dentre todos os integrantes do clã, foram eles os únicos
que viveram conscientemente o ato incestuoso.
O estado psicológico do filho mais novo e amante de D. Senhorinha o faz
andar pelado pelos arredores da fazenda, gritando como uma besta ferida”, o que
revela, justamente, o desapego aos valores sociais e morais. A loucura é, para Nonô, a
felicidade de uma paixão incestuosa concretizada e funciona como reação anti-social.
Ele, como afirma Espíndola (2001, [s.p.]), “Anda despido para tirar a sujeira, o pecado.
Busca, dessa forma, o ‘ser puro’. Vive a sua loucura para fugir da realidade. Lambe o
chão, como se quisesse limpar a alma [...] Gosta da chuva porque lava a sujeira”. Nonô
é uma personagem amplamente carnavalizada, pois sua condição, de certa forma,
nega a verdadeira natureza humana, que se comporta como um animal selvagem,
representando o caos social e a desorganização de um “mundo às avessas”, assim
como também sua nudez retrata os instintos, as perversões e o confronto entre pecado
e perdão, peculiares aos seres humanos.
O comentário do retrato seguinte representa carnavalescamente a maior de
todas as máscaras do texto de Nelson. A foto mostra Jonas com expressão taciturna.
Contudo, o que é narrado do progenitor é a inversão de seus reais atos, propondo-se,
também, relação com o contexto histórico e político da obra, o tenentismo em oposição
à República Café-com-Leite.
Último retrato de Jonas, datado de julho de 1924. Na véspera, ele havia passado um
telegrama ao então presidente Artur Bernardes, tachando de reprovável e
impatriótica a revolução de São Paulo. Nada lhe entibiava o civismo congênito. Dois
dias depois, a sorte madrasta arrebatava três filhos deste Varão de Plutarco. Não
resistindo ao golpe, Jonas enforcou-se [...] Outros pretendem que foi a própria mulher
quem o matou. A maledicência lavrou o infrene. É um pessoal que não tem o que
fazer. [...] Orai pelo eterno repouso de sua alma! (RODRIGUES, 2004, p. 77 – 78).
Esse trecho antecipa no texto a morte do patriarca, que a seguir ele
aparece no outro plano para acertar as contas” com sua esposa. No entanto, a
grandiosidade cívica com que Jonas é descrito faz com que seu destino seja digno de
um herói carnavalesco, pois, sob essa perspectiva, apresenta um caráter paradoxal e
figura, conforme DaMatta (1997, p. 251), ”[...] como um exemplo a ser imitado e
74
possivelmente seguido, ou como um tipo a ser evitado e banido para as zonas escuras
do nosso mundo social”. Jonas foi assassinado por Senhorinha e o Speaker diz que é
boato, como tentativa de encobrir a realidade, que logo será desmascarada na
seqüência da peça. A máscara se intensifica quando o Speaker se refere ao pai como
“Varão de Plutarco”, expressão que traduz ironicamente a majestosa personalidade de
Jonas, ainda que suas atitudes, no desenrolar da trama, neguem isto. Contudo, seu
próprio nome é uma representação carnavalesca, pois remete ao profeta bíblico
engolido por um enorme peixe e que, após se arrepender de seus pecados, é expelido
do interior do animal. Esse episódio é tido na literatura cristã como uma “prefiguração
da própria morte e ressurreição”, o que garante para o Jonas da peça seu caráter mítico
e carnavalizado.
O fim cruel de Jonas enfoca as mortes, que se sucedem em Álbum, como
algo sublime, em que a união entre o pecador e o divino, embora se tenha, na
verdade, uma fuga das repressões e dos desejos, como conclui Lopes (1993, p. 36):
“Encontramos então na obra rodrigueana como um todo uma visão pessimista, uma
constatação da opressão em nível individual e social de nossos desejos mais
profundos”. Os destinos fatais encontrados pelos membros da família de Jonas, seja
pelo homicídio ou pelo suicídio, sufocam as paixões proibidas e também representam o
desejo carnavalizado de escapar da dura realidade social, que as personagens têm
como finalidade a concretização dos seus desejos oprimidos, conforme afirma Vale
(2007, p. 24), “[ao] sair de uma realidade tacanha e medíocre e entrar em um mundo
fantasioso [...] sem a existência de Deus, tudo seria permitido”.
Finalmente, a última fotografia revela outro casamento em ruínas, que é
antecipado logo pela rubrica, (Rodrigues, 2004, p. 84): “[...] pose de Edmundo e
Heloísa. É evidente que ambos não conseguem simular um bem-estar normal. Heloísa,
fria, dura, como se o marido fosse realmente o último dos desconhecidos. Ele, fechado
também incapaz de um sorriso”. Percebe-se que essa foto retoma a primeira: Jonas e
Senhorinha recém-casados, inclusive as poses de ambos os casais se assemelham, o
que fecha e inicia um ciclo no texto, enfatizando a duradoura renovação cíclica proposta
pelo carnaval, como marca de uma forte crítica à crise, cada vez mais acentuada com o
passar do tempo, enfrentada pelas relações matrimoniais. No seu comentário, o
75
narrador, mais uma vez, ignora os fatos reais, (Rodrigues, 2004, p. 85): “[...] as
fisionomias dos nubentes espelham uma felicidade sem jaça. o matrimônio perfeito
proporciona tão sadia e edificante felicidade. Quando Edmundo faleceu minado por
insidiosa enfermidade, Heloísa quase enlouqueceu de dor”. O discurso carnavalizado
do Speaker confirma a condenação da família como instituição exemplar, escondendo o
real motivo da morte de Edmundo, que se matou por ter seu amor rejeitado pela e,
além de mascarar o ódio de Heloísa por seu marido, que sempre a tratou com
indiferença e que nunca a amou de verdade.
Assim, as fotografias do “álbumfortalecem o efeito carnavalesco da obra
rodrigueana e, este, por sua vez, reflete a crítica social ao expor os “retratos” da
hipocrisia nua e crua de uma sociedade que vive de aparências, da falsa moral e da
religiosidade pecaminosa. E, o estigma de obsessivo ou “tarado blasfemador”, conferido
à imagem de Nelson Rodrigues, cede lugar ao de moralista e reacionário, que julga e
condena todos os homens por sua impotência e falta de liberdade diante do caos
amordaçante da alma humana. O método utilizado por Nelson em Álbum de família,
acrescenta Lopes (1993, p. 33), [...] [dá um] toque de humor, essa espécie de ironia,
sempre presente, é um comentário que o autor faz, subliminarmente, sobre a realidade,
sobre o teatro em si”, quer dizer, a revelação de uma genialidade autoral que propõe
sua autocrítica como manifestação literária, recuperada dos antigos gêneros literários: o
discurso socrático e a sátira menipéia, e que conduz o leitor a uma reflexão sempre
consciente das angústias e utopias advindas da modernidade.
76
Foto 3 Cartaz do filme Álbum de
família uma história devassa, de
1981, com direção de Braz Chediak.
Foto 4 Cena de Álbum de família, de 1984, no espetáculo Nelson 2 Rodrigues,
dirigido por Antunes Filho.
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CAPÍTULO III – PARÓDIA E REALIDADE
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3.1 – Paródia: Recurso Moderno da Antigüidade
Ao longo do tempo, as expressões artísticas têm se preocupado com a
transmissão de observações críticas em seus conteúdos. Essa preocupação acentuou-
se, como mencionado anteriormente, no período denominado Romântico, no qual o
espírito reflexivo e a crítica às instituições e à própria Arte fizeram com que o mundo se
tornasse moderno. Nesse contexto, surge a paródia como elemento típico da
Modernidade. Porém, controvérsias quanto às origens e à conceituação do paródico
como recurso inovador da linguagem e cada vez mais presente nas obras literárias
contemporâneas.
A utilização da paródia como procedimento da linguagem literária não é
totalmente nova. Desde os antigos gregos, a partir de Hegenon de Thaso, no século V
a.C., esse método tem sido empregado na Literatura. Conforme Sant’Anna (1999, p.
11): “[...] ele [Hegenon] usou o estilo épico para representar os homens não como
superiores ao que são na vida diária, mas como inferiores. Teria ocorrido, então, uma
inversão”. Tal inversão se deu porque a epopéia era a representação dos grandes
homens e seus feitos heróicos e, nessa ocasião, foram invertidos os papéis. Somente
no século XVII, a paródia foi institucionalizada e, mais tarde, estudada por Tynianov e
Bakhtin.
Nos textos modernos, esse efeito lingüístico é adotado como elemento
formador do pensamento crítico, revelando sua associação com a inversão de valores e
significados. Etimologicamente, a palavra paródia vem do grego, que significa: para =
contra ou ao longo de e odos = canto. A partir daí, surgem pontos de divergência entre
os teóricos, pois, ao levar em conta a tradução de para como “contra”, tem-se a
oposição entre textos que a paródia tem por objetivo resgatar, em que a intenção é o
confronto e a zombaria em relação ao texto parodiado. a segunda concepção, na
qual se traduz o mesmo termo por “ao longo de”, amplia-se essa perspectiva, o que
sugere pontos de ligação entre os textos, numa espécie de “repetição com diferença”.
79
Foram as manifestações carnavalescas da Idade Média que intensificaram
o elemento paródico por meio do chamado riso carnavalesco, caracterizado por desfiles
e representações, que eram versões cômicas e alegres de rituais eclesiásticos e da
nobreza, cujo melhor exemplo era o rito de coroação e destronamento do rei do
carnaval, abordado no capítulo anterior. Nas festas carnavalescas, era proposto o
avesso da vida cotidiana e o riso propunha a profanação dos valores, que o homem
medieval estava preso a um mundo teocentrista e absolutista, sendo o carnaval,
portanto, o extravasar de uma vida regrada pela Igreja e pelo poder do Monarca.
O parodiar é a criação do duplo destronante, do mesmo ‘mundo às avessas’ [...] O
parodiar carnavalesco era empregado de modo muito amplo e apresentava formas
e graus variados: diferentes imagens (os pares carnavalescos de sexos diferentes,
por exemplo) se parodiavam, umas às outras de diversas maneiras e sob
diferentes pontos de vista, e isso parecia constituir um autêntico sistema de
espelhos deformantes: espelhos que alongam, reduzem e distorcem em diferentes
sentidos e em diferentes graus. (BAKHTIN, 1997, p. 127).
A paródia como produto da carnavalização era a renovação, porque no ato
de se parodiar algo, destruía-se uma realidade para a sua reconstrução. Como já
faziam os antigos povos com seu riso ritual, que ridicularizava os deuses com o intuito
de forçá-los a renovar seus poderes supremos, ou seja, visando ao estabelecimento de
uma constante relação entre morte e renascimento. Por isso, a paródia carnavalesca,
como afirma Filho (1993, p. 49): “[...] o é uma simples ‘negação pobre do parodiado’.
Ela é ambivalente, joga com diferentes imagens que se parodiam [...] sob diferentes
pontos de vista [...] o que é negado o é para superar-se: a morte de um significa o
renovar-se na direção de um outro”.
Este é o caso do texto rodrigueano em análise, que, como um álbum que se
quer mostrar, desconstroe definitivamente o modelo de instituição familiar ao realizar
uma escritura parodística em relação aos antigos mitos. A inversão de valores é
intensificada. Por conseguinte, são destacados os relacionamentos daqueles entes
familiares, marcados pela crueldade, pela violência e pelo sexo, em contraponto às
fotos da família, nas quais estão registrados os aparentes momentos de felicidade e
harmonia. Álbum de família revela aquele velho ditado: “as aparências enganam”.
Nesse caso, em um nível propriamente social, uma vez que a família é uma ramificação
80
da sociedade e esta se torna responsável pela corrupção daquela. Conclui Oliveira
(2003, [s.p.]): “Assim, se a sociedade é repressora, automaticamente a família também
o será. Torna-se óbvio que qualquer relação existente fora dos padrões consentidos
será objeto de condenação”.
Quanto à categorização dessa obra como moderna, a começar por sua
recepção entre as décadas de 40 e 60, período em que a modernidade na Literatura e
no Teatro brasileiros efetivamente se concretizou, o texto de Nelson Rodrigues inovou
na linguagem, sobretudo ao valer-se da paródia. Como afirma Sant’Anna (1999, p.07):
“A paródia é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vez mais presente nas
obras contemporâneas”. No entanto, todo e qualquer texto literário recria uma
realidade. A concepção de mímese na contemporaneidade não é a cópia do real, mas a
deformação deste. As deformações ou inversões, no caso do paródico, são coerentes e
buscam o novo a partir de uma referência que deve ser criada pelo leitor/espectador.
Segundo Sant’Anna (1999, p. 30 –31): “[...] a paródia tem uma função catártica [...].
Pode-se entender, então, a paródia como algo mais que uma representação, mais que
um simples efeito teatral”. Daí a importância da representação a partir do seu contexto e
da cognição do autor/leitor, em que o papel da mímese não é meramente constituir-se o
retrato fiel de uma realidade e sim conduzir ao reconhecimento da mesma.
Não é simplesmente algo que se está apresentando, mas aquilo que veio ao
cenário de nossa consciência nos trazendo informações que estavam ocultas [...]
Ora, o que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação [...] Uma
nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do
discurso. É uma tomada de consciência crítica. (SANT’ANNA, 1999, p. 31).
No entanto, muitos confundem paródia com sátira pelo fato de esta última
utilizar meios paródicos para a ridicularização expositiva ou agressiva, estabelecendo
uma depreciação negativa do objeto. A função da paródia era, com freqüência, a de ser
maliciosa e satírica, papel que continua a desempenhar até os dias de hoje. A partir do
século XIX, a definição de paródia atinge outro patamar, que o conceito de Arte
implicava novos rumos. Já no século XX, o “alvo” do texto paródico nas expressões
artísticas não foi somente o texto parodiado. Acentuou-se seu teor crítico, o que fez da
paródia uma recriação e, até mesmo, uma arma denunciadora, ao mesmo tempo
81
moderna e subversiva, situada num determinado contexto histórico, social ou
ideológico.
Segundo Hutcheon (1985, p. 13): “A paródia é uma das formas mais
importantes da moderna auto-reflexividade; é uma forma de discurso interartístico”. A
paródia é, portanto, um recurso de tomada de consciência, em que a ironia pode ser o
mecanismo retórico pelo qual se desperta a conscientização do leitor, por meio de uma
dialética entre dois planos: plano paródico e plano parodiado.
[
Na] paródia [...] está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser
parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela
ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser
depreciativa; tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva
[com o intuito] de recontextualizar, de sintetizar, de reelaborar convenções de
uma maneira respeitosa. (HUTCHEON, 1985, p. 48 – 49).
Retomar o passado de forma reorganizada e, ao mesmo tempo, contínua,
fornecendo um “novo modelo” às expressões artísticas: eis a principal função da
paródia. Uma ativação do passado por meio de um contexto novo e de diálogo com o
leitor, tendo como marca principal a diferença e não a semelhança, como uma espécie
de jogo inferencial, realizado, muitas vezes, de forma irônica.
A paródia é a revitalização estética das obras do passado, calcada no
pragmatismo entre codificador e decodificador, pois o paródico se pela
decodificação, feita por parte do leitor, com o objetivo de pôr em realce os textos que
estão em diálogo. Da mesma forma que a metáfora, a paródia necessita de um
segundo sentido por meio de um conhecimento prévio e de um deslocamento textual.
Diferente do pastiche, que implica permanência; o imitativo, o paródico
fundamenta-se na diferenciação transformadora em relação ao modelo “copiado” e o
supõe apenas uma mera citação de outros textos, porém, como afirma Hutcheon (1985,
p. 61): “A paródia está, pois, relacionada com o burlesco, a farsa, o pastiche, o
plagiarismo, a citação e a alusão, mas mantém-se distinta deles. Partilha com eles uma
restrição de foco: a sua repetição é sempre de outro texto discursivo”.
A observância do conteúdo paródico envolve todo o ato de enunciação, na
e em torno da atividade discursiva, o que envolve também uma relação dialógica entre
textos do passado e do presente. Acredita-se na hipótese de a paródia ser uma ameaça
82
à legitimidade dos textos, mas esse paradoxo divide críticos e teóricos. Tal dualidade
pode conferir à paródia um caráter de “repetição conservadora” ou de diferença
revolucionária”, mas, conforme observa Hutcheon (1985, p. 97): “Não obstante, as
transgressões da paródia permanecem [...] Mesmo ao escarnecer a paródia reforça [...]
É nesse sentido que a paródia é o guardião do legado artístico, definindo não só onde
está a arte, mas de onde ela veio”. Tomando como modelo esta segunda peculiaridade
da paródia, pode-se ver a identificação e a afirmação do texto paródico como uma
imitação que se diferencia.
Uma obra parodística tem como intenção apresentar um objeto que mereça
ser decodificado por meio de uma crítica e de um conteúdo diferentemente (re)criado
em relação ao seu modelo parodiado, por meio das inferências do leitor, que podem ou
não dar vários sentidos àquela paródia. Assim, a voz narrativa, que faz uso da paródia,
realmente, mantém pleno contato com um receptor inscrito no texto e que, na maioria
das vezes, é manipulado veladamente pelo discurso paródico do emissor. Tal fator
fundamenta sua modernidade no campo literário, sobretudo pela autoconscientização e
valorização do papel do leitor, no sentido de o autor se responsabilizar pelos controles
da compreensão leitora.
Existe, também, uma longa tradição na literatura paródica de colocar os leitores em
posições delicadas e obrigá-los a abrir caminho por si mesmos. As regras, se o
autor joga honestamente, encontram-se geralmente no próprio texto. [...] a paródia
trabalha no sentido de distanciar-se e, ao mesmo tempo, de envolver o leitor numa
atividade hermenêutica participativa. Claro que muitas maneiras de conseguir
isto – da agressão à sedução. (HUTCHEON, 1985, p. 117).
Por isso, faz-se necessária a competência leitora para que a paródia
cumpra seu efeito, pois cabe ao leitor saber que a paródia é a re-apresentação de outro
texto, uma vez que do entendimento da paródia resulta o entendimento crítico.
Em suma, a paródia vai da crítica séria, do texto parodiado à zombaria de
um outro texto, tornando-se necessária a confiança na competência do leitor a respeito
da intenção do autor, bem como o conhecimento do contexto que os cerca, pois a
paródia se “apropria” de uma obra artística, de acordo com Sant’Anna (1999, p. 50),
“[...] como ‘ruína’, como possibilidade de desvelamento, desocultamento e revelação de
um mundo novo pelo processo de desconstrução das coisas que se acham na
83
aparência da realidade”. O texto parodiado, como inversão carnavalesca, resulta a
ambigüidade que se torna presente no texto paródico e, como conseqüência, são nele
incorporados elementos irônicos e grotescos, o que irá expor uma outra realidade.
Como acontece na peça de Nelson Rodrigues que, ao carnavalizar os antigos mitos e a
tragédia clássica, evidencia a crise da sociedade, da família e do próprio ser humano,
pertencentes a um contexto social contemporâneo e, evidentemente, bastante
longínquo daquele vivenciado pelo homem mítico e trágico.
84
3.2 – O Mito, a Paródia Mítica e a Configuração da Realidade
Segundo Gilbert Durand, a espécie humana possui um inconsciente
coletivo antropológico, decorrente da formação do corpo e da rede neurológica, o que
permite sua categorização como pertencente do gênero Homo sapiens. Juntamente
com essa propriedade, o homem tem o seu inconsciente coletivo culturalizado,
proporcionado pela língua natural e pela cultura em que está inserido. A partir desse
segundo caráter humano, as manifestações de se compreender, de forma
racionalizada, os fenômenos e acontecimentos de ordem humana e cósmica fazem com
que os mitos se formem e se relacionem nas sociedades.
O mito, para o homem primitivo, exprimia a necessidade de se explicar as
origens de todas as coisas. As histórias míticas, por meio de “entes sobrenaturais” e do
sagrado, determinavam a vida social e cultural, ou seja, o mito revelava de que forma o
ser humano se reuniu em grupos, trabalhando e vivendo de acordo com normas de
convivência. O mito narra uma “história sagrada” e, como define Eliade (2000, p. 11),
“[...] relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do
‘princípio’ [...] É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo
algo foi produzido e começou a ser”. Por isso, esse homem primeiro, para justificar o
que para ele era desconhecido, extravasava pela mitologia suas tensões, seus temores
e suas dúvidas a fim de suprir sua “orfandade” diante do Cosmos.
Nessas sociedades primitivas, os mitos se ligavam, intrinsecamente, aos
rituais, pois o rito era a repetição de determinada ação, que rememorava as ações dos
ancestrais, heróis ou deuses míticos, como exemplos a serem seguidos. O processo de
ritualização reforçava a idéia de obediência a determinados modos e regras, impostos
pelos grupos sociais, diante do que para estes era considerado sagrado. Segundo
DaMatta (1997, p. 76 77): “[...] o ritual destaca certos aspectos da realidade [...] os
rituais escondem e revelam, servem para iludir ou clarificar [...] o rito, como o mito,
consegue colocar em close up as coisas do mundo social”. Os rituais eram cerimônias
que justificavam e concretizavam a existência dos mitos, pois, ao ritualizar, o indivíduo
85
“vivia”, o que, até então, a ele parecia abstrato. Por isso, o mito não era uma mera
fabulação, mas sim a confirmação de uma realidade primeira, determinante dos
destinos da humanidade.
Torna-se claro que o mito não é o “discurso” de um grupo específico, mas
sim a visão da coletividade. No entanto, a valorização de uma atualidade viva,
sobretudo, na Antigüidade e Idade Média, deu-se pela paródia carnavalizante das
narrativas e heróis míticos. Deste modo, tanto a paródia quanto o mito apresentam uma
especificidade em comum: a renovação de determinado objeto.
O mito passa a ser desmitificado quando, de uma sociedade para outra, ele
é atualizado, apresentando outros valores e significados. Nessa refacção mítica,
determinada instituição pode ter sua função invertida com o passar do tempo em
diferentes meios sociais. Gilbert Durand cita como exemplo o Exército, que pode ter
uma função positiva em certas sociedades, devido a seu relevante papel de defesa da
pátria e, em outras, assume função negativa, visto como máquina de repressão e
autoritarismo. De acordo com Durand (1983, p. 11): “[É] através desses papéis
marginalizados que, então, o mito numa sociedade se empobrece, e uma mitologia
nova, contestatária, vai se formar”. Tal empobrecimento é gerado por uma espécie de
desgaste mítico, com o qual se pretende chegar a “imagem racionalizada” da
sociedade. É o que faz Nelson Rodrigues ao abordar em sua obra a família como uma
instituição falida nas sociedades contemporâneas. O dramaturgo desmitifica a imagem
da família, por meio da paródia dos antigos mitos gregos. Dá-lhes nova “roupagem”,
transformando, (in)conscientemente, a instituição familiar em um mito marginal e de
perversidades.
[O mito] deve ser entendido como uma anti-realidade, ou seja, ‘cada mito mostra
como uma realidade veio à existência, seja a realidade total, o Cosmo, seja um
fragmento dela’ [...] Sendo assim, os eventos narrados pelo escritor (Nelson
Rodrigues) devem ser entendidos como a incorporação de uma vivência antes da
História e da Civilização, como se fosse parte de um inconsciente primitivo que
está dentro de nós, mas que a evolução humana fez com que ficasse escondido.
Em outros termos, Nelson queria mostrar o que não deveria acontecer na
realidade, o que era compreensível apenas no plano mítico. (VALE, 2007, p. 26).
O realismo em Álbum de família se processa a partir de uma crítica por
meio do choque de contrários. Essa produção incorpora em sua estrutura textual
86
diversos flashes do dia-a-dia. A transgressão desse texto está em sua época, porém ele
ainda repercute até hoje. A linguagem literária funde-se com a jornalística, passando a
ser desenvolvida no primeiro plano, onde o Speaker conta os principais acontecimentos
familiares. Como afirma Flávio Aguiar, na apresentação da peça em Rodrigues (2004,
p. 95): “Esse locutor, baseado nas fotos de um álbum [...] narra a história da família num
tom de exaltação que era característico dos jornais noticiosos e documentários [...]”.
Com esse costume da época, dá-se a impressão de que todos tinham um
comportamento social exemplar e plenamente feliz. Entretanto, durante a peça, isso é
invertido, pois as ações e os conflitos das personagens contradizem essa suposta
relação familiar harmônica. Na sua releitura dos mitos gregos, Nelson Rodrigues faz
uma narrativa canônica, que, de acordo com os estudos sobre a análise dos mitos de
Durand (1983, p. 33): “A narrativa canônica [...] toma em consideração todas as lições
de um mito ou até todas as obras de um autor, e tenta dar o modelo delas”. Na sua
atualização do mito de Édipo, Nelson deforma essa antiga narrativa, atribuindo-lhe
variações e intenções diferentes do que pretende denunciar acerca da sociedade
brasileira e aproximando-se do real.
O mito como o “eterno retorno” às origens significa a renovação do mundo.
Não é à toa que em muitas sociedades a entronização de um rei era tida como um rito
renovador do Cosmos e inaugurava um novo tempo. Entretanto, essa imagem do rei
como reformulador do Universo remete à imagem do rei do carnaval, conforme visto no
capítulo anterior, cujos ritos de coroação e destronamento correspondem,
respectivamente, ao início e término de um ciclo de criações e destruições no âmbito da
vida humana. Igualmente, são os mitos, que tratam dos fins catastróficos de toda
humanidade, que resgatam esse mesmo momento cíclico: o fim de todas as coisas para
uma renovação cósmica. É preciso eliminar o mal que corrompe o homem para a
recriação de um Mundo novo. Como acontece em Álbum de família, em que o fim
cruel das personagens representa, miticamente, a regeneração da humanidade.
A dramaturgia de Nelson, então, parece fazer um caminho de retorno às origens,
um percurso histórico para romper ranços do presente. Talvez pudéssemos dizer
que esse percurso incomoda no sentido de que evidencia a contradição daquele
que é diferente por dentro, mas não pratica essa diferença. Cria um conflito textual.
Recupera o inconsciente. Constrói uma segunda vida, um segundo mundo como
paródia da vida ordinária, renovada, ressuscitada”. (SILVA, 1996, p. 69).
87
Na peça, o desejo que Edmundo manifesta em voltar ao útero da mãe é
uma forma de volta às origens, como aparece na seguinte fala de D. Senhorinha
(Rodrigues, 2004, p. 86 87): “Edmundo me escrevia bilhetes, mas tão bonitos! Esse
aqui tem esse pedaço que diz assim [...] ‘só você existe no mundo. Eu queria tanto
voltar a ser o que já fui: um feto no teu útero’”. Deste modo, algumas narrativas míticas
visavam à criação de uma nova sociedade a partir da procura de um Paraíso na Terra.
Os mitos bíblicos, por exemplo, recontam a criação humana, explicando, de outra
forma, as origens do Mundo. O mito de Adão e Eva representa essa busca pela
formação de um universo menos caótico e livre. A imagem mítica do casal que
repovoará o Mundo também está presente na peça de Nelson, o que representa um
ciclo iniciático, porque, de acordo com George (1990, p. 87): “Em Álbum de família,
Nelson Rodrigues projeta suas personagens para os mitos da Criação, para o tempo
antes do tempo [...] Elas hão de cumprir o destino implacável do ciclo eterno”. Somente
Senhorinha e Nonô sobrevivem ao final da trama e passam a viver sua paixão
incestuosa, conforme a penúltima rubrica (Rodrigues, 2004, p. 92): “D. Senhorinha
parte para se encontrar com Noe se incorporar a uma vida nova. Jonas morre”.
Nesse mesmo trecho, tem-se a derrota daquele que representa, na obra, uma espécie
de Anticristo: Jonas. A figura do Anticristo, na literatura cristã, é a representação do
pecado, do demoníaco e do falso Messias. A aparência de Jonas é confundida, muitas
vezes, por sua filha Glória, sua principal devota”, com a de Jesus Cristo. Sua imagem
mítica de pai é, entretanto, contraditória e configura em seu “reinado” anticristão,
segundo Eliade (2000, p. 63), “[a] total subversão dos valores sociais, morais e
religiosos; em outros termos, o retorno ao Caos”. Essa mesma comparação entre Jonas
e Jesus, intensificada por alguns traços de semelhança entre seus nomes, também
significa igualar homens a deuses, tal qual o faziam os mitos antigos, sob a visão de
poetas como Homero e Hesíodo, que acreditavam que, de acordo como Eliade (2000,
p. 133), “[...] os deuses fazem todos os tipos de coisas que os homens considerariam
vergonhosas: adultério, roubo, trapaças mútuas”.
A serpente bíblica na obra rodrigueana associa-se àquelas personagens
que cumprem a função de revelar os segredos mais íntimos daqueles que com elas se
relacionam, da tentação sexual e do erotismo. Contudo, uma ambigüidade no
88
símbolo da serpente, pois, enquanto é a simbologia da farmácia e da regeneração, em
outras mitologias, adquire o símbolo da maldade e da libido. Jonas e Rute assumem o
papel de personagens serpentes na peça:
Tia Rute (num crescendo) Vocês não podem fazer isso comigo. (grita) EU
CONHEÇO SEGREDOS DA FAMÍLIA! Sei porque Guilherme e Edmundo voltaram
Sei! Sei porque Nonô enlouqueceu porque mandaram Glória para o colégio
interno! [...] Todos estão contra mim [...] Você vai deixar, Jonas?
(Segura-o desesperadamente pelos ombros, sem que ele reaja) [...]
Jonas Não desejo você! (muda de tom) Nunca suportei as mulheres que o
desejo... POR ISSO DETESTEI SEMPRE MINHA MÃE E MINHAS IRMÃS [...].
(RODRIGUES, 2004, p. 44 – 45).
Tia Rute, por ser conhecedora dos segredos familiares, sempre ameaçava
revelá-los a todos e, por desejar o cunhado, realizava os desejos sexuais dele,
recrutando moças virgens. Jonas, por sua vez, revelava o seu e o caráter das demais
personagens, no decorrer da trama, despertando a paixão incestuosa da filha e da
cunhada, estimulando rivalidade entre as irmãs e a animosidade entre os filhos. É
comum, na obra rodrigueana, a personagem serpente aparecer como integrante de um
triângulo amoroso, no qual ela se mantém como intrusa entre dois irmãos ou duas
irmãs, que disputam a mesma pessoa. Com isso, o universo teatral de Nelson
Rodrigues, como afirma Sampaio (2003, p. 28), “[...] rememora o ritual da queda do
homem no paraíso motivado pela tentação da serpente e início de sua peregrinação em
uma terra de dor, sofrimento e maldade”.
Porém, o que marca ainda mais a presença desses mitos em Álbum de
família são os variados ritos que aparecem durante a peça. Nela, estão presentes
alguns dos rituais do cotidiano social – casamento, primeira comunhão, sepultamento –,
fazendo com que a crítica do autor se acentue pela contínua (re)criação de um universo
mítico:
O principal ritual é [o] matrimônio, uma forma arcaica retratada na obra não em sua
função positiva (renovação da união eterna), mas negativa, como uma instituição
social que destrói o desejo e impede a liberação. O dramaturgo transforma um
signo de pureza, inocência e ritual sagrado numa [...] máscara que esconde a
violência e a repressão de uma sociedade patriarcal. (GEORGE, 1990, p. 84).
O casamento que, sob a visão mítica, define o momento de pleno “acesso”
da mulher à feminilidade, é tratado por Nelson como uma mácula da sociedade, que
89
corrompe e aniquila o homem, instituindo, como observa Lins (1979, p. 159), “[...] a
família [...] com sua moral deformada e sua hipocrisia feroz, guardadas as devidas
proporções, evoca em nossa mente a imagem de modelos conhecidos e acaba, nesse
sentido, sendo realista”.
Nonô, o filho sem razão e que vive como um bicho pelo mato, é a
personagem que retoma esse estágio primitivo do homem mítico, mas são as atitudes
brutais dele, como as das outras personagens, que refletem o primitivismo das
sociedades arcaicas. Nestas, havia um macho mais velho como líder, senhor de todas
as fêmeas e temido pelos machos mais novos. Os relacionamentos das personagens
de Álbum, que são exploradas por suas condições sociais de homem ou mulher, pai ou
filho e opressor ou oprimido, remetem à organização dessas sociedades primitivas,
porque nesta família criada por Nelson Rodrigues, como afirma Martuscello (1993, p.
68), “[...] Jonas [é] exatamente como o pai da horda primitiva. Todas as mulheres que
partilham a vida na fazenda estão [...] submetidas à sua liderança despótica”. Na trama,
Teresa e Heloísa são as únicas mulheres que não se submeteram a Jonas, já que a
primeira era homossexual e a outra permaneceu casta. Entretanto, entre os homens,
somente o Speaker não sofreu com a tirania do patriarca, que fazia parte do plano
narrativo que mascara a realidade, isto é, apresentava-se como:
[...] o ‘sacerdote’ que maneja, no contexto das fotos, a linguagem litúrgica (‘crescei
e multiplicai-vos’) [...] as fotos não retratam, mas carnavalizam o mundo de
Jonas, porque é o mundo de poder, cujos rituais sancionam e reforçam o status
quo. As fotos num nível recriam o passado [...] para consagrar o presente. Mas
dada sua forma carnavalesca, as páginas do álbum constituem um anti-ritual, uma
recriação mítica burlesca. Sua intenção, nesse sentido, é subversiva; ao invés de
consagrar a ordem estabelecida controlada por Jonas, as fotos a destroem.
(GEORGE, 1990, p. 108).
O mito, portanto, permitia um regresso capaz de conferir conhecimento e,
conseqüentemente, o domínio do homem sobre todas as coisas, passando de um
estágio de pensamento “mágico” e sobrenatural para outro mais objetivo e renovador.
Sua reatualização serve para que não se cometam os mesmos erros” do herói mítico,
como mostra a tragédia ao abranger as narrativas míticas. Da mesma forma, faz Nelson
Rodrigues, cuja obra teatral, como conclui Sampaio (2003, p. 14 – 15): “[...] é visionária,
explorando o mito, o símbolo, o arquétipo [...] por isso seu efeito catártico [...] se volta
90
para as suas origens religiosas e ritualísticas, religa o homem atual ao arcaico”. Nelson,
tal como ocorre nos antigos mitos, expõe, cruelmente, a realidade humana, tornando-se
moralizador da sociedade pelo próprio escândalo que provoca em seu público.
91
3.3 – O Teatro Clássico e a Tragédia Carnavalizante
Foram os rituais religiosos, conforme explicado, que fizeram com que a
tragédia grega surgisse no século VI, em Atenas, constituindo-se como um “gênero
literário original”, pois apresentava regras e características próprias.
O problema mítico das origens de todas as coisas foi resgatado pela
tragédia como o problema de antecedentes. A instauração da tragédia na vida dos
cidadãos da antiga Grécia não teve apenas a finalidade de refletir o contexto daquela
sociedade, mas a de questioná-la, o que transformou o homem mítico em político. A
tragédia, como analisou Aristóteles, era a representação de uma ação, a mímese, isto
é, a representação de homens que se colocavam como indivíduos agentes, postos em
uma situação de escolha e, por conseqüência, obrigados a questionar e decidir pela
melhor opção, capaz de redirecionar o seu ou o destino de outrem.
Nesse período, como dito no capítulo inicial, os mitos antigos foram
levados à cena, e Édipo-rei, de Sófocles, foi a obra teatral que inspirou Aristóteles a
fundar sua teoria da tragédia. A intrigante obra sofocleana narra as desventuras do rei
Édipo, que, quando criança, foi abandonado pelos seus pais legítimos, sem nunca
saber de sua linhagem. Após uma revelação do oráculo de que mataria seu pai e
casaria com sua mãe, parte para outra cidade a fim de evitar tamanha dor para aqueles
que julgava seus reais progenitores. Entretanto, a profecia se cumpre. Ele, sem saber,
assassina Laio, seu verdadeiro pai, em legítima defesa, e casa-se com Jocasta, sua
mãe, que esta havia sido prometida àquele que salvasse Tebas do domínio da
Esfinge. Tornando-se marido de Jocasta e rei da cidade tebana, Édipo descobre toda a
verdade de sua origem e, como conseqüência, os “pecados” que havia cometido, o que
o leva, por desespero, a cegar-se.
Os elementos trágicos, presentes no mito do herói edipiano, causaram
comoção e estranhamento no público ateniense, que considerava o parricídio e o
incesto como dois crimes gravíssimos. A tragédia, portanto, tornou-se sucesso
universal, pois seu efeito catártico era revelador das vontades humanas e da constante
92
procura dos homens pelas suas origens e pela verdade da vida, como objetivavam o
diálogo socrático e a sátira menipéia, mas por meio da piedade e do medo.
[...] a tragédia [fez] sentir as contradições que dilaceram o mundo divino, o universo
social e político, o domínio dos valores [fazendo] aparecer o homem como um [...]
monstro incompreensível e desconcertante, ao mesmo tempo agente e paciente,
culpado e inocente, dominando toda a natureza por seu espírito industrioso e
incapaz de governar-se, lúcido e cegado por um delírio enviado pelos deuses.
(VERNANT; NAQUET, 1977, p. 67).
Pela teoria aristotélica, a peripécia era o elemento que se fazia necessário
à tragédia. A peripécia era a ação que “invertia” o rumo da narrativa trágica; algo
inesperado que se revelava ao herói trágico, estabelecendo a relação entre os fatos. O
resultado da peripécia era sempre um reconhecimento, como explica Malhadas (2003,
p. 32), “[...] a conversão da ignorância em conhecimento [...] entre as personagens
delineadas para a felicidade ou para a infelicidade”. Portanto, o reconhecimento era a
tomada de consciência da situação em que o herói se encontrava, antes por ele
ignorada e que o levaria ao seu destino incerto. A peripécia e o reconhecimento
formavam, em conjunto, o ideal para se assegurar a piedade e o medo, sentimentos
fundamentais ao drama trágico e abordados, anteriormente, no capítulo referente ao
histórico do Teatro. Também alinhados a eles, surgia o patético, como uma práxis, que
podia ser definida, conforme Malhadas (2003, p. 34), “[por] uma ação que causa dano
ou sofrimento, como as mortes em cena, as dores intensas, os ferimentos e tudo quanto
a isso se assemelhe”. No entanto, na teoria aristotélica, os “atos patéticos” eram, por
excelência, aqueles que se restringiam ao núcleo familiar, como, por exemplo, o pai que
arquiteta matar o filho ou vice-versa.
A peça de Sófocles apresentava todas essas peculiaridades que, segundo
Aristóteles, eram os componentes essenciais do que ele considerava como trágico. O
trágico estava condicionado ao “efeito surpresa”, decorrente de uma mudança dos
destinos por meio de escolhas a serem feitas e do despertar do medo e da piedade,
gerando “finais catastróficos”.
Com isso, o contexto dos homens da Antigüidade era julgado pela tragédia.
O exemplo maior disso era a máscara, que deixou de ser um acessório ritualístico e
93
religioso dos antigos, incorporando-se à tragédia com a função estética de representar
a “máscara humana”, já que:
[...] a máscara integra a personagem trágica numa categoria social e religiosa bem
definida: a dos heróis. A máscara faz da personagem a encarnação de um desses
seres excepcionais cuja lenda, fixada na tradição heróica cantada pelos poetas,
constitui para os gregos do século V uma das dimensões do seu passado –
passado longínquo e acabado, que contrasta com a ordem da cidade, mas que,
apesar disso, continua vivo na religião vica onde o culto dos heróis [...] ocupa um
lugar privilegiado. (VERNANT; NAQUET, 1977, p. 12).
Isso não quer dizer que a máscara fosse a representação de um herói
modelar para aquela sociedade, como bem faziam as narrativas míticas. A máscara
tornava o herói trágico uma incógnita, um problema a ser solucionado pelos demais e
por si próprio.
Na tragédia, o herói era colocado à prova. Assumia um dilema que
precisava ser solucionado, colocando-o no limite de uma situação. A sua vontade pela
melhor opção a ser tomada não era totalmente livre. O destino fazia com que ele
optasse por uma solução, mas nem sempre essa decisão o levava à eliminação do
problema. Muito pelo contrário, ao escolher determinada saída para seu dilema, o herói
trágico cometia uma falta, a hamartia
4
, que, segundo Vernant; Naquet (1977, p. 44),
“[...] é enganar-se, no sentido mais forte de desvario de inteligência, de uma cegueira
que leva à ruína”. Essa “loucura do erro” era uma potência maléfica, incorporada em um
homem que perdeu o senso e que diz sofrer as conseqüências do “pecado” cometido. A
mesma perda da razão que caracterizava as personagens da sátira menipéia, diante de
situações limítrofes e que revelam outro destino, aparece na tragédia. No sentido
religioso, a hamartia era o mal que se instaurava no seu agente, causando desgraças a
todos aqueles que estavam ao seu redor.
Confrontando a peça de Nelson Rodrigues, em relação a sua semelhança
às tragédias gregas, Mostaço (1996, p. 34) teoriza: “Ainda que intitulada pelo autor de
‘tragédia’, Álbum de Família é um drama. Poder-se-ia dizer que Nelson possuía [...]
algum compromisso com a forma trágica”. No entanto, a obra é classificada pelos
críticos como peça mítica por re-apresentar os mitos gregos, nos quais os conflitos são
4
Do verbo grego hamartánein, que pode significar enganar-se de forma intencional ou não-intencional.
94
levados a situações extremas, sendo esta uma das principais características do gênero
trágico e o que se observa nas ões das personagens de Nelson. Do mesmo modo, a
peça estrutura-se em três atos, cujas cenas são intercaladas entre os dois planos de
ação, o que remete à forma de uma tragédia, pois como explica Vernant; Naquet (1977,
p. 68): “Toda tragédia desenrola-se, portanto, necessariamente sobre dois planos” o
divino e o humano, que na peça rodrigueana, correspondem, respectivamente, às
páginas do álbum e às ações das personagens.
Da mesma forma, os temas tratados por ambas as produções também
fazem aproximar as peças de Nelson com as tragédias gregas, que, de acordo com
Oliveira (2003, [s.p.]), “[...] os temas abordados na composição rodrigueana traição,
adultério, homossexualismo, morte violenta, incesto acompanham a humanidade
desde os seus primórdios”. As narrativas da Antigüidade clássica priorizavam tais
temáticas em seu conteúdo e, a partir desse enfoque, as peças trágicas representavam
o individual por meio do herói que buscava o conhecimento ou a razão pela origem de
sua raça, a fim de se auto-reconhecer. Em Álbum, apesar do seu procedimento de
paródia, acontece o mesmo, como afirma Sant’Anna (1999, p. 72), “[...] porque a
questão da paródia [...] está relacionada, em última instância, com a procura da
verdade”, porém, no texto de Nelson, o que persiste é o coletivo, pois se tem a trajetória
dos vários componentes de um mesmo clã, desprovidos do pensamento racional e com
a necessidade de realizar seus desejos pelo instinto, tornando-se seres animalizados. A
presença dessa desumanização estabelece-se, mais uma vez, com maior força na
personagem Nonô, que após consumar relações incestuosas com a própria e, D.
Senhorinha, enlouquece e perde sua identidade humana, como é citado em Rodrigues
(2004, p. 84): “Esse Nonô, esse doido, anda no mato nu como um bicho. Apanha
terra, passa na cara, no nariz, na boca [...] Tem um corpo lindo!”. Apelidado de Nonô,
tal personagem evidencia a situação do homem atual como aquele ser sem nome ou
personalidade, que é apenas mais um na multidão, submetido às convenções sociais,
sem perspectivas e que se impõe somente pela aparência.
Os personagens ticos de Nelson Rodrigues são sempre grandes,
desmesurados, uma vez que habitantes do Olimpo participam da perenidade
dos deuses antigos. Eles são intemporais, pois lançam suas rzes na matriz da
alma humana também intemporal e deles não se pode esperar que sejam o
95
retrato do homem histórico, mas a sua transposição transfigurada para o plano do
mito. (VOGT; WALDMAN, 1985, p. 79).
Uma ambigüidade se dava pela projeção que a tragédia fazia do universo
mítico na cidade, revelando o passado das lendas em correspondência ao presente dos
atenienses e atribuindo uma dimensão religiosa ao herói trágico. A dualidade presente
entre os fatos protagonizados pelo herói trágico e a narrativa do coro, personagem
representante da coletividade, causava certa tensão na tragédia clássica. Percebe-se
tal tensão pela própria estrutura do gênero trágico, já que as partes do coro, que eram a
celebração das atitudes virtuosas dos heróis antigos e, também, por serem cantadas,
associavam-se à tradição lírica e os diálogos das demais personagens trágicas
aproximavam-se da prosa.
Segundo Vernant; Naquet (1977, p. 83): “Nenhum gênero literário da
Antigüidade utiliza, com efeito, de maneira tão ampla quanto a tragédia, as expressões
de duplo sentido [...]”. Na tragédia, o vocabulário empregado exprimia contradições.
Certas palavras proferidas da boca de determinada personagem assumiam diferentes
sentidos. A ironia da língua consistia em deixar o herói trágico “pego na palavra”, na
qual se justificava o valor semântico que tal vocábulo desempenhava, o que
demonstrava as relações conflituosas do ser humano. A personagem trágica que
melhor traduzia essa atitude ambígua da palavra nas tragédias clássicas era o oráculo.
Esse bio, com o dom da profecia, era a figura que representava a sede de
conhecimento do homem daquele tempo, cujo desejo era controlar a vida, a fim de se
igualar aos deuses. As repostas proféticas do oráculo eram imprecisas, porque, desta
forma, fazia-se com que o homem buscasse as suas verdades, por isso, como explica
Vernant e Naquet (1977, p. 76): “Na tragédia, o oráculo é sempre enigmático, jamais
mentiroso. Ele não engana, ele ao homem a oportunidade de errar”. Na obra
rodrigueana, a personagem que é a inversão carnavalizada do oráculo das antigas
narrativas é o Avô. Nestas, o idoso era a imagem da sabedoria e tinha o respeito e a
admiração de todos. Em Álbum, o ancião é mostrado como um ser sem importância
para a sociedade. Inicialmente, é descrito como uma aberração, conforme Rodrigues
(2004, p. 18 – 19): “Um velho de barbas bíblicas; apóia-se num bastão, porque tem uma
das pernas enroladas em pano, em virtude de uma aparente elefantíase”. Sua
96
descrição grotesca remete à de uma figura cristã e sua enfermidade revela uma
“mancha” de seu caráter, já que ele tinha por finalidade, na trama, vender sua neta para
a satisfação dos desejos sexuais de Jonas, o que comprova a marginalização e a
exclusão social dos menos favorecidos.
A mesma dualidade trágica é desenvolvida no caráter das personagens da
tragédia antiga. Aristóteles observou que o “jogo trágico” requereria um confronto entre
o caráter e as exigências da ação. Fazia-se necessário que, de acordo com Vernant;
Naquet (1977, p. 22 – 23), “[...] essa tensão na psicologia das personagens não
[enfraquecesse]. Os sentimentos, as falas, os atos do herói trágico dependem de seu
caráter [e] aparecem, ao mesmo tempo, como expressão de uma potência religiosa”.
Pois, pela teoria aristotélica, um daimõn
5
se expressava na manifestação do caráter da
personagem trágica, no decorrer das ações que esta se via obrigada a realizar,
colocando-a no intenso conflito das dúvidas e contradições que a cercavam, igualmente
como aquele espírito demoníaco que Sócrates acreditava existir no interior humano,
tido como entidade subjetiva e questionadora.
As atitudes das personagens da obra de Nelson Rodrigues assemelham-se
com as das personagens das tragédias gregas, mas com princípios distintos. O
Speaker, por exemplo, substitui o coro das produções da Antigüidade. Na
representação trágica, o coro aparecia como contraponto ao herói. A função daquele
diferenciava-se da deste, no sentido de que o coro tratava, de forma anônima, dos
anseios, temores, julgamentos e da condição cidadã dos espectadores. O coro do
teatro clássico apontava uma realidade propriamente dita para reafirmar a ordem social;
já o “coro rodrigueano”, apesar de julgar as atitudes individuais como exemplos a serem
tomados coletivamente, revela uma verdade aparente e enganosa ao apresentar as
fotos da família.
Outra voz [...] que se escuta ao longo da peça é a do Speaker, que anuncia e
comenta as fotos do álbum. Essa personagem [...] é um coro grego torto, um
colunista social estúpido [...] O tom salaz de seus conselhos bíblicos e suas
sugestões frívolas sobre a etiqueta contrastam absurdamente com o terror familiar.
O Speaker, junto com as fotos, serve como um contraponto furiosamente irônico à
ação central da obra, a forma para um conteúdo totalmente oposto. Enquanto esse
dispositivo é um meio de o dramaturgo manipular a linguagem da convenção
5
Demônio ou, conforme a tradução de Soares (2006, p. 61), “destino”.
97
social, subvertendo o que esta tenta esconder, o Speaker também ‘relaxa a tensão
trágica dos acontecimentos’. Seus comentários não deixam de provocar o riso do
público durante o espetáculo. (GEORGE, 1990, p. 103 – 104).
O coro era a representação maior da sociedade e, por este motivo, a
tragédia tinha como matéria o “pensamento social”, em que a religião e a moral eram os
fatores que colocavam em conflito as ações e os valores humanos. Assim, a tragédia
buscava nas lendas míticas interrogar os modelos que estas se propunham a resgatar,
confrontando-as com os preceitos religiosos, a fim de uma conscientização daquilo que
deveria ser combatido ou aceito como os verdadeiros valores sociais. O coro às
avessas da obra de Nelson, muitas vezes, confirma o caráter tico das demais
personagens da peça, ao exaltar a imagem destas ou por meio dos comentários que
faz delas em um tom moralista. Mas, como crítica aos valores burgueses, o outro plano
de ação de Álbum de família apresenta os retratos da crise do homem, colocando a nu
o que os meios midiáticos, representados pelo Speaker, tentam esconder.
Na peça, o famoso “complexo de Édipo”, desenvolvido pelo psicanalista
Sigmund Freud, aniquila as personagens, embora Nelson Rodrigues sempre tenha
declarado cultivar certa obsessão contra a Psicanálise. Os estudos de Freud, acerca
das neuroses humanas, segundo Vernant; Naquet (1977, p. 63), “[...] levou-o a ver no
amor da criança por um de seus pais, no ódio pelo outro, o nó dos impulsos psíquicos
[...]”. Baseado na tragédia de Édipo, o psicanalista tcheco concluiu, a partir do início do
século XX, que todos são governados por forças inconscientes, da mesma forma que o
herói trágico é levado a decidir por suas ações, ao mesmo tempo em que, na formação
do indivíduo, os pais assumem papéis importantes. A mãe é tida como protetora;
aquela que alimenta e aquece o filho em seu ventre, tornando-se objeto do amor da
criança. A teoria freudiana diz que o envolvimento com a mãe é fecundo, por isso que a
relação amorosa entre Édipo e Jocasta assume importância psicanalítica. Jocasta
abandonou seu filho e, mais tarde, casou-se com ele. Isso quer dizer que mãe e filho
são extremamente ligados; formam uma unidade. Unidade esta que é rompida na hora
do parto. O pai, como rival de seu filho pelo amor daquela mulher, é, de acordo com
Rocha (1999, p. 75), “[o] representante da lei, impedindo o livre curso do desejo,
[canalizando] o ódio infantil”. Assim, pai e mãe encarnam, respectivamente, o ódio e o
98
amor, a lei e o desejo, o divino e o profano, isto é, o constante jogo das incertezas do
destino de cada um.
A personagem Edmundo é, portanto, o oposto de Édipo, embora haja uma
proximidade entre seus nomes. Ambos eram apaixonados pela mãe e odiavam o pai.
Entretanto, a personagem de Sófocles difere da de Nelson porque, como evidencia
Oliveira (2003, [s.p.]): “O grande diferencial é que na obra sofocleana os erros são
cometidos de maneira inconsciente, enquanto que na rodrigueana os envolvidos têm
plena consciência dos seus laços sangüíneos”. Edmundo, ao contrário de Édipo, não
consegue concretizar a paixão que sente por sua mãe, é humilhado por Jonas, seu pai,
todavia não o mata e, finalmente, ao descobrir que Senhorinha se relacionou com
Nonô, acaba com a própria vida.
O outro filho, Guilherme, da mesma maneira, encarna o complexo de
Édipo, embora não seja apaixonado por sua mãe, mas sim por sua irmã. Porém, sua
rivalidade com Jonas é mais acentuada, que o patriarca também sente paixão por
Glória. Guilherme também não mata seu pai, mas o que o faz se aproximar da figura do
rei tebano é que ambos se mutilaram.
Guilherme (apavorado) Juro! Você diz isso porque não sabe que tive um
ACIDENTE... (baixa a voz) voluntário! Já não sou como antes [...] Pela última vez
QUERES VIR COMIGO? Vem, sim, vem!
Glória – Não.
Guilherme – Você não será dele, NUNCA!
(Puxa o revólver e atira duas vezes. Glória cai de joelhos, com as duas os
amparando o ventre). (RODRIGUES, 2004, p. 58 – 59).
Com a castração, Guilherme supunha redimir-se do seu desejo
pecaminoso e tornar-se puro com o amor casto que realizaria com a irmã. Ao contrário,
o mal que o invadiu, devido à anulação que sofreu de Glória e ao confronto com seu
pai, fez com que ele eliminasse seu objeto de desejo e se matasse. Do mesmo modo
que Edmundo, Guilherme foi vítima do desespero diante do caos, do qual não
conseguiu se libertar. Nonô, apesar de ter consumado o pecado do incesto, foi o único
dos filhos a sobreviver; contudo, do mesmo modo, sofreu uma espécie de mutilação: a
loucura. Essa sua ausência da consciência o remetia à condição de animal, sem
normas sociais ou princípios religiosos a serem cumpridos, o que o aproxima e,
também, o distancia dos preceitos do herói da tragédia de Sófocles:
99
Inconscientemente Édipo cometera o crime de parricídio e incesto, crimes que,
segundo Freud, sempre foram um desejo oculto da humanidade. Por isso, ele tinha
que sofrer para redimir a humanidade. A mutilação da cegueira é uma forma
simbólica de castração. Ele infringira as regras da moral e da natureza e, portanto,
tinha que ser sacrificado para que a ordem social fosse mantida. (SAMPAIO, 2003,
p. 42).
Em contrapartida, Glória é uma paródia de Antígona, filha de Édipo,
porque é a única a defender o pai Jonas, igualmente como fez a heroína grega, contudo
de forma sensual e incestuosa. De acordo com uma de suas falas (Rodrigues, 2004, p.
58 – 59): “[...] Que papai tenha pisado a mulher [...] Mesmo assim, eu gosto dele, adoro!
[...] Quando eu era menina... pensava que mamãe podia morrer... Ou, então, que papai
podia fugir comigo [...]”. Ao ser exterminada com dois tiros no ventre, Glória assume sua
feminilidade mutilada, como castigo pelas faltas cometidas e, como seus dois irmãos
incestuosos, desprende-se mortalmente da realidade maléfica.
O herói da tragédia de Nelson Rodrigues diferencia-se do herói clássico,
pois este último caracterizava-se pelo bom caráter e valores nobres, iniciando sua vida
em meio a desgraças e pobrezas, passando por várias provas e, por fim, cumprindo o
seu trágico destino. A figura do herói rodrigueano na sociedade brasileira é, como
afirma DaMatta (1997, p. 257), “[...] definida por meio de uma trajetória tortuosa, cheia
de peripécias e desmascaramentos [...]”, vivendo a incessante busca da felicidade,
ascensão social ou vingança. D. Senhorinha é, portanto, a heroína da peça de Nelson,
pois ela passa por vários obstáculos no decorrer da trama, como as humilhações do
marido e as rivalidades da filha e da irmã, e é a única sobrevivente das adversidades
que se abateram sobre toda a sua família, cumprindo seu destino. Porém, é uma
heroína às avessas, uma vez que suas atitudes, marcadas pelo adultério, ferem a boa
moral da sociedade e, principalmente, porque seu principal objetivo era manter o
relacionamento incestuoso com o filho mais novo. De acordo com a rubrica final
(Rodrigues, 2004, p. 92), “[...] D. Senhorinha puxa o gatilho duas vezes; Jonas é
atingido. Cai mortalmente ferido [...]”, percebe-se que a vingança de Senhorinha
resultou no assassinato de seu marido, que este era o que mais impedia a
concretização de seus desejos.
Jonas, por sua vez, torna-se a representação maior da hipocrisia da
sociedade, devido a seu temperamento repressor, dominador e a sua falsa moralidade.
100
Sua conduta durante toda a peça impõe os ideais de família perfeita, comandada por
um pai que, na verdade, é inescrupuloso e maledicente. Por isso que sua esposa o
aniquila ao término da trama, como forma de libertação, transformando-se naquela que
se salva das “amarras” de uma sociedade machista. O destino de Jonas também
acentua sua condição paradoxal, assemelhando-o ao herói das tragédias gregas, visto
pela sociedade como detentor de atitudes nobres, mas que está fadado à morte ao
defrontar-se com a triste realidade. O patriarca da peça de Nelson descobre, na mesma
cena, antes de ser atingido pelos projéteis, que se enganara ao matar aquele que
pensava ser amante de sua esposa, que, na verdade, ela o traiu com o filho deles.
Assim, como Édipo, Jonas assassina quem não deveria, causando, em seguida, o seu
sofrimento.
D. Senhorinha (abstrata) Eu me senti tão feliz, quando você matou Teotônio.
Respirei: Nonô estava salvo. (doce) Ele enlouqueceu de felicidade, não agüentou
tanta felicidade!
Jonas (afirmativo) Agora que Glória morreu, que me importa o nome do teu
amante? [...] Quando acabei de matar Teotônio, olhei para você e vi que você não
era mais nada para mim, coisa nenhuma [...] Mas eu devia ter adivinhado, desde
que Glória nasceu, que você não era meu amor! (RODRIGUES, 2004, p. 89).
A constatação da morte de sua filha Glória, no diálogo acima, que
transcorre na igrejinha, onde está sendo velado o corpo daquela, faz com que Jonas
não suporte mais viver, porque a menina era sua verdadeira paixão, como ele mesmo
afirma, conforme Rodrigues (2004, p. 91): “Minha filha morreu [...] PARA MIM ACABOU-
SE O DESEJO DO MUNDO”. Privado desse amor e rejeitado por aquela que lhe jurou
amor fiel por toda vida, o pai apavora-se: entrega sua arma a Senhorinha, implora seu
fim e aceita a morte como escapatória.
A tensão trágica da Antigüidade clássica também era manifestada no
domínio de dois diferentes tipos de religiosidade da antiga sociedade grega: o culto
familiar aos mortos e a crença pública nos deuses. Essas duas manifestações
ritualísticas, incorporadas à tragédia, conferiam o caráter sagrado às ações humanas. É
o agir que assumia a verdadeira significação e o revelar da face de seus agentes,
porém o divino aparecia na tragédia ora para ocultar, ora para revelar os
acontecimentos e os destinos dos homens.
101
O domínio próprio da tragédia situa-se nessa zona fronteiriça onde os atos
humanos vêm articular-se com as potências divinas, onde eles assumem seu
verdadeiro sentido, ignorado do agente, integrando-se numa ordem que ultrapassa
o homem e a ele escapa [...] Nesse ponto culminante da tragédia, onde todos os
nós se atam, é o tempo dos deuses que surge na cena e que se manifesta no
tempo dos homens. (VERNANT; NAQUET, 1977, p. 29 – 30).
Na peça, além dos filhos cultuarem a figura de Jonas e Senhorinha, o culto
aos filhos, depois de mortos, é evidente quase ao término da trama. Ao velarem seus
filhos, os pais revelam sua adoração por eles. O rito do sepultamento evidencia essa
veneração incestuosa, como em uma das rubricas da cena (Rodrigues, 2004, p. 84):
“Pouco depois, entram quatro homens. Cai a luz; os homens trazem tochas. Vão levar o
esquife de Edmundo [...] Antes de fecharem o caixão, D. Senhorinha beija a testa do
filho”. o pai da família idolatra Glória com tal deslumbramento, que sua paixão por
ela fazia com que a enxergasse como um “anjo” inocente e casto, como no episódio em
que se descobre o envolvimento homossexual entre Glória e Teresa e em que Jonas
defende sua filha, comentando:
No fim o que é que tem? [...] Então, já sei o que eles CONCLUÍRAM! Eles e VOCÊ
também! (terrível) Mas como são indecentes TODOS, uns indecentes! [...] Não
compreendem a inocência! São uns cachorros muito ordinários! [...] É sempre
assim! Aliás, o que fizeram com Joana D’Arc! (Rodrigues, 2004, p. 46 – 47).
Na fala do patriarca, há a tentativa de se justificar pela incompreensão dos
atos considerados pecaminosos. Glória, como seu nome indica, é “glorificada” por
Jonas e Guilherme e, ao mesmo tempo, mitificada ao ser comparada com a heroína
francesa, o que revela a hipocrisia que encobre toda aquela família ao se defrontar com
situações que poderiam ser condenadas por toda a sociedade. São com esses
relacionamentos caracterizados pela privação ou realização de desejos que o
dramaturgo expõe as atrocidades praticadas pela humanidade. Na peça, as paixões
proibidas deixam os envolvidos transtornados, fazendo criar neles sentimentos de
repulsa e ira, saciados com a prática de atos de grande violência como: suicídio,
mutilação, estupro e assassinato.
As antigas tragédias visavam à obediência aos princípios da moral, a
começar pelo respeito à instituição familiar, e à crença nos vários deuses. Assim, a
desobediência a um desses fatores deveria ser penalizada com a morte de quem foi
102
contra tais regras. Daí, a afirmação de Oliveira (2003, [s.p.]): Por exercer,
simultaneamente, fascínio e medo, repulsa e atração, e trazer em si uma aura de
mistério, a morte é um componente essencial da tragédia”. Na peça de Nelson, todos
desobedecem aos cânones morais e religiosos, ao passo que cometem seus pecados
carnais. Uma falsa religiosidade é revelada pelos atos das personagens, como em
Rodrigues (2004, p. 22), em que Jonas diz: “Mas eles estão enganados comigo. Eu sou
o pai! O pai é sagrado, o pai é o senhor! (fora de si) Agora eu vou ler a Bíblia, todos os
dias, antes de jantar, principalmente os versículos que falam da família!”. As descrições
de Jonas e D. Senhorinha denunciam isso, pois, enquanto ele apresenta “vaga
semelhança com Jesus”, ela é comparada com Nossa Senhora. Ambos são tomados
como deuses e, tal como ocorre com as demais personagens, corrompidos pela traição
e pelo incesto.
A morte é, portanto, o caminho para a exterminação dessas perversões. Há
uma sucessão de mortes: Edmundo se mata porque não realiza sua paixão maternal;
Guilherme assassina Glória e, em seguida, suicida-se, pois não tem o amor de sua
irmã; Senhorinha atira em Jonas por trair e ter sido traída. A morte é, como constata
Eliade (2000, p. 98), “[...] uma espécie de ‘comunhão’: o homem se nutre de Deus e, ao
morrer, torna a unir-se a ele no reino dos mortos”. Por isso, em Álbum de família, a
morte aparece não como um castigo para as faltas cometidas, mas como forma de fuga
da realidade humana e de vingança por meio do sagrado.
Fatalizado por seu destino, ou seja, pela escolha que foi obrigado a fazer, o
homem trágico tornava seus atos ambíguos, uma vez que sua opção era produto de
sua vontade humana e, ao mesmo tempo, de uma coação divina.
A ação trágica supõe, com efeito, que já se tenha formado a noção de uma
natureza humana que tem seus traços próprios e que, assim, os planos humano e
divino sejam bastante distintos para se oporem; mas, para que haja o trágico, é
preciso igualmente que esses dois planos não deixem de aparecer inseparáveis
[...] A tragédia exprime essa fraqueza da ação, esse despojamento interior do
agente, fazendo aparecer, atrás dos homens, os deuses agindo, desde o início até
o fim do drama, para levar cada coisa a seu tempo. O herói, mesmo quando se
decide por uma escolha, faz quase sempre o contrário do que pensava realizar.
(VERNANT; NAQUET, 1977, p. 57 – 58).
103
Na obra trágica, as imposições dos deuses e os planos ou as “paixões” dos
homens colaboravam para a definição de uma tensão constante e simultânea entre dois
pólos, caracterizando-se como a “natureza da ação trágica”. Como conseqüência, uma
vítima era sacrificada como “oferenda” aos deuses, o que se tornava, no plano humano,
em um crime a ser julgado pela justiça dos homens e, a revelação de suas fraquezas,
acentuava, ainda mais, a ambigüidade das ações trágicas.
Voltando aos ritos, para uma melhor compreensão da análise, o ritual do
sacrifício originou-se da atividade da caça. Por meio da caça e do sacrifício de sua
presa, o homem primitivo conseguia sua alimentação, mas, posteriormente, tais
atividades se desvencilharam uma da outra. A prática da caça para o antigo grego
rendeu vários mitos e representações sociais. Aos poucos, tanto para a sociedade
grega quanto para as demais civilizações, o sacrifício deixava de ser um ato pré-
histórico e tornava-se uma cerimônia ritualística, na qual era oferecida uma vítima, um
“bode expiatório”, para aplacar a fúria dos deuses, para que eles aliviassem os males
de todos os homens. Na tragédia de Sófocles, o rei é sacrificado para salvar seu povo
da catástrofe que os assola. Essa prática era comum na tradição grega, pois o
soberano sempre era responsável pelo bem-estar de seu povo. Por isso, para eliminar o
mal que corrompia os cidadãos, elegia-se um pharmakós
6
que deveria ser sacrificado:
[delegava-se] a um membro da comunidade o cuidado de assumir esse papel de
rei indigno, de soberano ao avesso. O rei passa sua carga para um indivíduo que é
como sua imagem invertida para tudo aquilo que sua personagem pode comportar
de negativo [...] semelhante a esses soberanos de carnaval que são coroados no
tempo de uma festa, quando a ordem é posta abaixo, as hierarquias sociais são
invertidas: as proibições sexuais são suspensas, o roubo torna-se lícito, os
escravos tomam o lugar dos senhores, as mulheres trocam suas roupas com os
homens; - então o trono deve ser ocupado pelo mais vil, mais feio, mais ridículo,
mais criminoso. Mas, terminada a festa, o anti-rei é expulso ou condenado à morte,
carregando consigo toda a desordem que ao mesmo tempo encarna e da qual ele
purifica a comunidade. (VERNANT; NAQUET, 1977, p. 96 – 97).
Relaciona-se o rito e a tragédia com a carnavalização, pois o sacrifício do
rei trágico ou carnavalesco era a adoração ritual de uma potência divina, capaz de
renovar e transformar os tempos, pois, de acordo com DaMatta (1997, p. 68): “A
6
Segundo Vernat; Naquet (1977, p. 94): “[...] malfeitores condenáveis, que sua maldade, sua feiúra física,
sua baixa condição, suas ocupações vis e repuganantes, designavam[-os] como seres inferiores [...]”.
104
devoção a santos [ou deuses] é um ritual, tal qual o carnaval, une o puro ao pecador, o
alegre ao triste”. Do mesmo modo que aqui se relaciona a sátira menipéia, já que nesta
a presença de relações paradoxais, do religioso e do mundano, como forças que
regem a essência humana.
Em Álbum de família, Jonas é o deus a quem as moças virgens são
ofertadas em sacrifício, porém a traição que sofreu de sua esposa e, finalmente, sua
morte, também provocada por Senhorinha, vão resultar, como diz Vernant; Naquet
(1977, p. 120), “[...] numa revirada total, numa inversão de valores: a fêmea matou o
seu macho [...] o sacrifício foi um anti-sacrifício, uma caça pervertida”. Aliás, as demais
personagens masculinas da peça, de uma forma ou de outra, sacrificam ou são
sacrificadas por culpa do feminino: Edmundo sacrifica sua esposa Heloísa pela
carência de amor, Guilherme assassina Glória, Nonô enlouquece pela paixão de
Senhorinha e o Avô “vende” sua neta, sendo que os dois primeiros se
“autosacrificaram” pela não concretização do desejo incestuoso.
Outra tradição grega era o peã, espécie de “canto purificador” que
acreditavam ter a capacidade de cessar e evitar os males e que era praticado, conforme
Vernant; Naquet (1977, p. 95), “[...] num momento muito preciso do calendário religioso,
nessa virada do ano que a estação da primavera representa quando, na entrada do
verão, se abre o período dos empreendimentos humanos: colheitas, navegação,
guerra”. A tragédia era a expressão desse canto catártico, que alimentava o desejo de
expulsar tudo o que era nocivo. Os gritos e gemidos da mulher grávida, na obra
rodrigueana, são o peã grego. Essa mulher que, constantemente, grita e geme durante
a peça em um dos quartos da fazenda, foi uma das meninas aliciadas por Jonas e por
ser “estreita demais”, sente as dores do parto.
Mulher grávida (na voz grossa de sempre) Miserável... Tu me paga [...] Vou-te
rogar tanta praga!
D. Senhorinha (para Jonas) – Que foi?
Jonas – Variando!
Mulher grávida – Tu e tua família!...
Jonas (com rancor) Disse que eu tinha uma filha; que minha filha havia de pegar
barriga... (mudando de atitude, selvagem) Então, eu dei na boca, assim [...] Que
morra!
Tia Rute (aparecendo, excitada) Está toda torta, torcida, com ataque!
(RODRIGUES, 2004, p. 71).
105
Observada, ora por Senhorinha, ora por Rute, a mulher grávida é tratada
com indiferença e violência por todos da casa, apesar de ser pronunciado em um dos
diálogos que um médico fora chamado. Os gritos da mulher, como o canto do peã,
desejam banir as perversidades e o mal que nela e naquela família se inseriram. Ela
não consegue parir; expelir esse espírito maligno presente no interior de todos os seres
humanos. Com o aborto e a morte da mulher grávida, o feminino, mais uma vez, é
anulado pela família da peça e a maldição rogada por aquela mulher, antes de falecer,
atinge a todos da estirpe de Jonas e Senhorinha. Outra passagem do texto, que aponta
para atos de selvageria semelhantes a este, é a narração de Guilherme sobre o caso
de outra garota abusada sexualmente pelo pai e assassinada pelo narrador do fato.
Guilherme – Todo mundo respeitava a muda... Ninguém mexia com ela...
Jonas (com medo do filho) – Nem eu!
Guilherme (violento) – Você, sim... Nem a muda você perdoou...
Jonas (para os outros, como se defendendo) – Mas por acaso muda não é mulher?
Só por causa de um defeito? [...]
Guilherme – Quando me viu, ela parece que adivinhou – teve medo de mim.
(Guilherme muda de tom, implacável) Ainda quis fugir mas eu, então, pisei o
ventre dela, dei pontapés nos rins! [...]
Jonas (com sofrimento) – Assassino! [...]
Guilherme Deus é testemunha de que não me arrependo! [...] (RODRIGUES,
2004, p. 40 – 41).
Amplia-se o estado de primitivismo das personagens. Neste caso, seus
atos de crueldade contra a maternidade associam-se aos ritos praticados nas tribos
primitivas, os quais as crianças defeituosas ou amaldiçoadas” são eliminadas. Nesse
mesmo trecho citado, como em outras passagens da peça, as condições moral e social
da mulher são banalizadas e Deus é evocado para aliviar os pecados cometidos. Os
integrantes da família de Jonas procuram o Criador, mas Ele está ausente do mundo
deles. O mal e as barbáries impedem qualquer possibilidade de salvação para essas
personagens. Elas são o homem mítico expulso do Paraíso e a condenação da
humanidade às trevas. Representam o homem como produto de uma sociedade imoral,
restando apenas o sexo como o centralizador das impurezas dos indivíduos.
Assim, ao observarmos o movimento de Nelson, veremos que ele é uma
encarnação do poeta-trágico, valendo-se das palavras com intuito de produzir um
efeito encantatório, ‘uma vertigem auditiva’; revive o sentimento mítico da liberdade
106
de mentir, falsificar, enganar, pois esta proporciona deleite, beleza e graça,
afastada do erro e da verdade. (CHARLIER, 1999, p. 51).
Cabe ainda ressaltar, que a grande ruptura que Nelson Rodrigues
estabeleceu com seu Teatro foi o conceito de um novo gênero: a tragédia brasileira,
que, em sua essência, é uma tragédia carnavalizada. Sobretudo ao compor Álbum de
família, segundo George (1990, p. 120), “[cuja] dimensão carnavalesca constitui um
contraponto lúdico à severidade moral do universo burguês”. No entanto, o trágico
manifesta-se quando a peça retrata a personagem rodrigueana, como representação da
humanidade, lutando contra os preceitos da sociedade e, principalmente, contra ela
mesma, na busca de reconhecer sua profundeza interior; o daimõn, que o homem
trágico carregava consigo.
A tragédia na dramaturgia de Nelson se define pela posição ambígua das
personagens entre a culpa e a inocência. Como paródia à tragédia e aos mitos gregos,
a trama da peça se desenrola pelo jogo dos contrários, como o bem e o mal e a
aparência e o ser. Afinal, ao carnavalizar esses elementos, o dramaturgo “tirou” a
máscara que a tragédia clássica e a narrativa mítica impuseram ao herói. Na sua
inversão paródica, Nelson coloca em crise o drama trágico, como crítica à decadência
dos valores sociais, familiares e humanos. Sendo assim, afirma Lins (1979, p. 155), “[...]
projeta ele não um universo europeu, nem um universo americano, por exemplo, mas
um mundo que, acima de tudo, salienta e denuncia a realidade e a sociedade
brasileiras”. As fotos, apresentadas ao longo da peça, são as máscaras que o meio
social tenta impor, mas que são arrancadas pelas ações e no convívio entre os
indivíduos. Da mesma forma que a miscelânea entre os mitos pagãos e bíblicos
apresentam-se, na obra, como fator acentuador da crise.
A presença da carnavalização se aprofunda na dualidade entre
Cristianismo e Mitologia, o que reforça a “idéia mítica” do eterno retorno às origens, da
morte geradora de “uma vida nova”. Assim sendo, conforme George (1990, p. 90), “[...]
o dramaturgo termina Álbum de família com uma oração funerária em latim, para deixar
claro que se trata de um ritual antigo, que perpetua o ciclo eterno de
nascimento/morte/re-nascimento”. O coro, que surge ao término da peça, bem aos
moldes do Teatro clássico, evoca duas figuras cristãs, Henoch e Elias, personagens
107
bíblicas que cumpriram seu destino, sendo arrebatados pelo destino, o que significa
que o mesmo aconteceria com o relacionamento entre Nonô e Senhorinha, que terá
final avassalador como o dos demais membros da família.
Assim, na medida em que desmonta a estrutura organizada das tragédias gregas,
[Álbum de família] vai se definindo como uma tragédia que recusa de saída
celebrar a ‘vida’ subjugada à ‘moral’ e aos ‘bons costumes’ impostos pela sagrada
família burguesa através do casamento, para celebrar a liberdade soberana da
‘morte’ [...] evidenciando um possível projeto de afirmação do acaso, da desordem,
do carnaval, como prenunciadores do novo, da possibilidade de criação. (SILVA,
2001, p. 72).
As personagens da tragédia rodrigueana, assim como o homem mítico, são
grandes órfãos do Pai Eterno. A morte aparece para elas como um ritual carnavalizado
de salvação para as suas hamartias. Ao contrário das obras clássicas de dramaturgia,
que revelavam o heroísmo modelar e o sagrado, o dramaturgo exalta o lado
contraditório do ser humano, pautado em suas incertezas, seus ódios e seus desejos
pecaminosos, como a traição, o lesbianismo e o incesto.
As peripécias e as situações patéticas em Álbum são decorrentes de um
destino que será cumprido. Comparadas a Édipo, que era culpado e inocente ao
mesmo tempo, as personagens do universo dramatúrgico de Nelson são todas
culpadas e punidas, com exceção de D. Senhorinha e seu filho Nonô, que transgridem
as “leis dos homens” e estão acima do Bem e do Mal. No entanto, como compara
Sampaio (2003, p. 50 51): “As famílias em Nelson Rodrigues como na tragédia grega
são famílias malditas, marcadas pela culpa [o que denota] uma humanidade condenada
pelo pecado original”.
Se em Sófocles as verdades reveladas pelas personagens invertem suas
condições ideais de dimensão humana, social e religiosa, transformando, segundo
Vernant; Naquet (1977, p. 87), “[...] aquele que para todos é célebre, o primeiro dos
homens, o melhor dos mortais [em] o mais infeliz, e o pior dos homens, um criminoso,
objeto de horror para seus semelhantes [...]”, em Nelson, em sua tragédia brasileira, as
personagens assumem postura ambígua, carnavalizada, em que a mãe, imagem da
procriação e da santidade, revela-se incestuosa e impura, e o pai, de tirano e
dominador, adquire posição de vítima do adultério e do ódio de seus filhos.
108
Foto 5 Prospecto da mais recente
montagem da peça de Nelson, sob a
direção de Alexandre Reinecke, em cartaz
de 01 a 17 de junho de 2007, no Teatro
SESC Anchieta/SP.
Foto 6 Garoto com máscara de Nelson
Rodrigues na Festa Literária Internacional
de Parati/RJ, em 2007, que teve o
dramaturgo como homenageado.
109
Considerações Finais
Álbum de família é a representação dos conflitos humanos no mundo
contemporâneo, pois reflete sobre a individualização do homem, que busca encontrar
uma nova possibilidade para amenizar seu estado lastimável, já que se sente
desamparado e tornou-se vítima de seu meio social. A exposição dessa cruel realidade
pelo texto rodrigueano, em oposição aos textos clássicos, desfaz totalmente o conceito
de família, o que causa certo estranhamento aos seus leitores e espectadores, devido à
frieza que assume ao expor as violências humanas, embora tenham se tornados
fatos comuns e corriqueiros na atualidade.
Ele [Nelson Rodrigues] deu ao teatro a possibilidade de suplantar um alcance
cotidiano de ‘realidade’ [...] A particularidade de Nelson reside em seu enfoque
principal: a sociedade brasileira de uma época em relação a condições universais
como o embate homem/mulher, as carências da relação monogâmica, a
inconstância de um mundo intranqüilo, o homossexualismo, os segredos e
anúncios da relação incestuosa. Interesses e desejos de uma sociedade que
descobria o consumo, o poder e a corrupção. (RODRIGUES, 1997, p. 24 – 25).
A intenção de Nelson Rodrigues é colocar em evidência, nesta peça, uma
outra forma de olhar, sentir, perceber e compreender a realidade, uma vez que busca
chocar o leitor e estimular o seu senso crítico. Caberá ao leitor refletir sobre o “projeto”
do escritor, já que sua crítica, que se apóia nos recursos da carnavalização e da
paródia, são marcas de uma Literatura que exige e impõe uma conscientização.
Álbum de família, como as outras obras do autor, objetiva a revelação de
uma contemporaneidade condenada ao caos, observa Lopes (1993, p. 36), “[...] que
focaliza o indivíduo entregue às complexidades da vida moderna à perda da
identidade própria na multidão, à mecanização, à instabilidade, à insatisfação, à
afirmação dos direitos da mulher, à angústia”. Isto provocou uma polêmica na época do
lançamento do texto, cuja forma de construção reflete uma conturbada e incômoda
visão de mundo.
110
A peça resgata, por meio da paródia, elementos míticos e trágicos, a fim de
estabelecer um método de criação autoral, cujo objetivo, semelhante ao de Sócrates e
também de certos autores trágicos, como Sófocles, é questionar, conhecer e mostrar a
verdadeira face do ser humano. A tragédia rodrigueana retira a máscara da tragédia
clássica, colocando-a em contraste com a máscara carnavalizada, isto é, rompe com
todos os modelos acabados do teatro clássico, da literatura, da sociedade e da
identidade humana, por meio do riso provocador do caos e da ambigüidade, mostrando
a constante busca humana pela verdade. Verdade que, como foi mostrado neste
trabalho, o homem sempre perseguiu, desde a Antigüidade, seja por meio do discurso
socrático, da sátira menipéia, do mito ou da tragédia. Nesta fala de Tia Rute (Rodrigues,
2004, p. 77): “Vou sair daqui, não sei para onde. Vou andar, andar, até cair”, tem-se a
referência a esta procura vital pela verdade por caminhos tortuosos, em que o homem,
depois de sair de um ambiente decepcionante, toma rumos desconhecidos, até “cair”
em determinada realidade que nem sempre é aquela almejada. Como em Édipo, que,
para evitar o destino, fugiu de sua cidade, mas, mesmo assim, acabou por encontrar-se
com o que procurava persistentemente evitar.
Os pontos de intersecção entre mito, tragédia e carnaval são importantes
para a compreensão do que propõe o corpus aqui apresentado. Nos discursos de
Sócrates, assim como na trajetória dos heróis trágicos, os questionamentos e decisões
eram, como os antigos acreditavam, resultantes de um demônio interior, que escolhia
os “caminhos” a serem seguidos pelo homem. Tal como ocorre com as personagens
rodrigueanas, que também possuem a mesma inclinação e decidem pela melhor
alternativa a ser tomada diante de uma situação-limite, dentro de nós existe um
demônio questionador, que nada mais é do que o despertar do nosso senso crítico de
leitor ou espectador. Deste modo, torna-se compreensível que, ao conceber sua
tragédia brasileira, Nelson Rodrigues causasse e cause tanta polêmica. A
incompreensão de sua obra perdura até hoje, porém a crítica social que nela se
apresenta é bastante atual. Tornaram-se, hoje, comuns atos de violência e abusos
praticados no convívio social e, até mesmo, aqueles que acontecem entre pais e filhos
ou entre outros membros de uma mesma família. É por esse motivo que Sábato
Magaldi (2004, p. 58) exalta o “álbum” de Nelson: “Só pelas questões que levanta,
111
Álbum de família tem um lugar privilegiado em nossa dramaturgia. Que leitores e
público precisam reconhecer”.
A ambigüidade proporcionada pela carnavalização é a mola propulsora das
questões sociais abordadas na peça. A começar pela figura do casal protagonista,
Jonas e Senhorinha, que deveriam ser tomados como exemplos de virtude e harmonia
conjugal. No entanto, eles são os heróis às avessas na obra rodrigueana, pois, durante
a trama, sua jornada remete ao cíclico rito da entronização e do destronamento, que se
faz presente nos antigos mitos, nas festas carnavalescas e nas narrativas trágicas,
que, no início da peça, Jonas era o “rei”, aquele que tinha todas as mulheres e era
temido por todos, mas, ao final, tem seu reino tomado e é aniquilado pela realidade, tal
qual Édipo ao confrontar-se com o verdadeiro mal que imperava em Tebas. Contrária é
a situação de Senhorinha, que de submissa e vítima do poderio de seu marido, torna-se
a grande “soberana” do clã, pois é a única a concretizar seus desejos e ainda manter a
idolatria de um dos seus “súditos”.
Os antigos acreditavam que o ritual da coroação e do destronamento
revelava, conforme foi visto, a renovação dos tempos. Em Álbum, esse ciclo é colocado
em evidência como algo negativo, pois, como acontece na seqüência dos retratos
expostos no decorrer da trama, as fotos que abrem e encerram a peça são imagens de
dois matrimônios fadados a um fim trágico. Desta forma, a crítica ao casamento e à
família é perceptível no texto de Nelson, já que se mostram como instituições
opressoras e regimentais à realidade individual e social do ser humano.
Ou seja, se a família deve ser um elemento de controle e disciplina sobre o
indivíduo [...] estabelece um conflito que põe em crise esse conceito.
Levanta[ndo] suspeitas sobre a validade do ideal de casamento perfeito
simbolizado no ritual ‘luxuoso’ que o concretiza. Mostra[ndo] os bastidores
labirínticos de uma relação que deveria ser exemplar. Um belo carnaval! (SILVA,
2001, p. 89).
A figura do herói é, portanto, desconstruída pelas ações das personagens
de Álbum de família. Apesar de se comportarem como heróis trágicos, quer dizer,
como aqueles que sofrem, ultrapassam obstáculos que lhes são impostos e “vão do céu
ao inferno” para a realização de suas vontades, as personagens rodrigueanas não são
nada modelares e utilizam máscaras sociais, em uma coexistência de contrários que
112
intensificam suas personalidades: opressor/oprimido; casamento/adultério; amor/ódio;
paixão/sexo; prazer/dor; virgindade/libido; sagrado/profano; vida/morte. Os locais em
que os heróis rodrigueanos se revelam são a praça pública carnavalizada e o “mundo
fechado” do espaço doméstico, dominado pelo incesto, pelas paixões desenfreadas e
pelos atos violentos das personagens. Estas, por sua vez, transformam o universo
familiar em um autêntico inferno, uma vez que, afastadas de certa “disciplina social”,
tendem a consumar os atos proibidos e condenados, tidos como verdadeiros tabus pela
sociedade, simbolizando, desta forma, o homem infeliz e insatisfeito, corrompido pelo
lado demoníaco de sua própria natureza. Encena-se, assim, o conflito existente entre a
sátira menipéia e a tragédia grega, conflito este que se incorpora na peça de Nelson
Rodrigues, uma vez que a menipéia privilegiava os escândalos” dos amores
obsessivos, da loucura, das crueldades e da morte como fontes de libertação do
homem dos comportamentos regidos pelas normas sociais e divinas, enquanto a
tragédia condenava e castigava seus heróis inocentes, que transgrediam
inadvertidamente leis tidas como invioláveis. As personagens rodrigueanas são
ambíguas, porque assumem esta dualidade carnavalizante: são inocentes e, ao mesmo
tempo, culpadas, por realizarem suas paixões incestuosas e camuflarem seus pecados.
O eterno retorno às origens míticas, também representado pelo tempo
carnavalesco da obra, manifesta-se com a perda do paraíso pela humanidade, em
virtude do egoísmo centrado, sobretudo, no sexo. Segundo Sampaio (2003, p. 23): “O
sexo para Nelson é proibido e impuro, uma divindade poderosa que causa a destruição.
Ele tem uma força muito grande que desequilibra quem o experimenta”. Na sociedade
machista que a peça retrata, a mulher figura como a grande culpada pelos pecados da
humanidade, como a personificação do egoísmo humano. Tomemos, como exemplo,
uma das falas de Guilherme, quando se referia a sua mãe, (Rodrigues, 2004, p. 49):
“Ela precisa EXPIAR, porque desejou o amor, casou-se. E a mulher que amou uma vez
marido ou não – não deveria sair nunca do quarto. Deveria ficar lá, como num
túmulo”. Todas as mulheres do texto, porém, subvertem esse pensamento, apesar de o
machismo dominante tentar reprimir e sufocar os desejos femininos. São exemplos
disto, certas situações como: Senhorinha e Rute o humilhadas; Glória é mandada
113
para o colégio interno e, em seguida, assassinada, e Teresa e Heloísa são privadas de
seus amores.
Cúmplices na busca obsessiva da realização de suas paixões, as
personagens masculinas e femininas são levadas às situações mais extremas,
culminando em homicídios ou suicídios. Somente o celibato pode redimi-las, como
acreditava Guilherme ao se castrar para viver sua paixão virginal por Glória, contudo
nem esse gesto foi o suficiente para sustentar sua crença no amor puro e eterno, tema
bastante freqüente em toda a produção rodrigueana.
A ligação do homem com o sagrado vem de tempos remotos, nos quais as
figuras míticas de deuses e semideuses eram formas de organizar e conhecer o
Cosmos, as sociedades e, até mesmo, o pensamento humano, como bem pretendeu o
discurso socrático, a sátira menipéia e as tragédias. Já nas festas carnavalescas, a
paródia e a sátira dos vícios e virtudes, das ideologias e das instituições configuram-se
como formas de libertação do homem do temor pregado pela Igreja e como meios de
renovação dos tempos. Entretanto, nos âmbitos do humano e do divino, houve uma
equiparação entre homens e deuses, quer na representação trágica, quer nas
manifestações satíricas e paródicas, pois, é na integração do riso e da dor que o
indivíduo revela sua verdadeira essência. No universo rodrigueano acontece o mesmo,
que o destaque dado à falsa religiosidade mostra que o homem ocupou,
definitivamente, o lugar de Deus. A imagem de Jonas é confundida com a imagem de
Cristo pendurada na parede da sala. Senhorinha é vista como Nossa Senhora por um
de seus filhos. As personagens da obra estão acima de todas as coisas, por isso
cometem atos terríveis, muitas vezes, para fugir daquilo que não querem enfrentar,
como é o caso dos suicídios que ocorrem no decorrer da trama. Com isso, o teatro de
Nelson Rodrigues revela-se como um corajoso mergulho no abismo da existência
humana e, como afirma Sampaio (2003, p. 68), “[...] focaliza a natureza dual do ser
humano e a ameaça que o mal representa para a humanidade [...] Assistir a suas peças
é como entrar em um templo pagão de antigos rituais, onde uma cerimônia terrível
acontece”.
O caráter peculiar das personagens de Nelson Rodrigues, que tanto
assombram e chocam o público, fez com que muitas de suas obras, como a que aqui foi
114
analisada, fossem censuradas e predestinadas ao fracasso. O universo rodrigueano,
que toma como fonte e, também, transgride as tragédias gregas, questiona o homem e
seus valores morais e religiosos, inquietando aqueles que têm medo de se defrontar
com as perversidades humanas e com a perda do sentido da vida.
Nelson Rodrigues é importante porque foi quem pela primeira vez, e realmente
com maestria, manipulou a língua com habilidade e deu vida verdadeira aos
personagens de suas peças, no Brasil [...] quer pela temática, quer pela linguagem,
com os mitos da vida nacional. (LINS, 1979, p. 124).
O instaurador da modernidade em nossos palcos inaugurou o legítimo
gênero dramático brasileiro, já que, na época em que se consagrou, o teatro nacional
seguia os modelos teatrais estrangeiros. O universo rodrigueano é, sobretudo,
moralizante e revolucionário, e seu efeito catártico provoca em nós,
leitores/espectadores, a liberação e revelação da nossa verdadeira natureza, com a
finalidade de nos ajudar a refletir sobre as atrocidades que tentamos esconder e sobre
o verdadeiro caráter de nossa relação com nossos semelhantes. Por isso, sua obra
teatral relaciona-se com toda a trajetória do teatro no mundo, que este sempre foi
uma manifestação artística de cunho social, ligada a festas, crenças e concepções
estéticas, e, principalmente, de teor crítico. Comparado, por muitos especialistas em
sua arte, a grandes nomes da dramaturgia, como Shakespeare ou Brecht, Nelson
Rodrigues coloca em cena suas obsessões – e nossas também –, projetando pequenos
flashes do cotidiano, que tomam, em suas peças, grandes proporções e nos despertam
para uma realidade que o homem e a sociedade sempre procuraram esconder.
115
“É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser
humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez”.
(Nelson Rodrigues)
116
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