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Os três grandes clubes,Tenentes do Diabo, Democráticos
e Fenianos, no período carnavalesco anterior à abolição, com-
pravam escravos para aforriá-los depois apresentá-los nos seus
desfiles, em cima dos carros, com um estímulo e uma lição.
O mesmo se deu em relação aos ideais republicanos. As
sociedades cerraram fileiras em torno dos que lutavam para
derrubar a monarquia e as armas usadas foram a sátira e as
alegorias. Fato igual aconteceu com relação a adoção do voto
feminino e à luta contra a ditadura do Estado Novo (durante
os anos 30 e 40).
Como se pode constatar estas organizações, que também
se dedicavam ao culto da música e letras, foram peças funda-
mentais para grandes conquistas da nossa história política.
Esta é uma das originalidades do nosso carnaval.
Herdeiras dos ranchos e das grandes sociedades, as esco-
las de samba,que surgiram no carnaval carioca nos primeiros
anos de década de 30, incorporam elementos das duas for-
mas e criaram um modelo novo e irresistível. Nascida no
bairro do Estácio de Sá e logo se espraiando pelo morro da
Mangueira e os subúrbios de Oswaldo Cruz e Madureira,
estas agremiações são a síntese de todas as manifestações
acontecidas desde a chegada dos primeiros navios negreiros
e dos festejos dos primeiros cucumbis.
As escolas de samba são, creio firmemente, uma fatalida-
de histórica. Elas são a síntese do país e do nosso povo.
Felizmente não nasceu com forma definitiva e acabada. Ao
longo dos anos aconteceram modificações, o que é natural,
mas sem lhes tirar a essência e mantendo a condição de teste-
munha do seu tempo e espelho das ansiedades e expectativas
dos seus componentes. Uma das instituições mais democrá-
ticas de que se tem notícia, as escolas não limitam em
nenhum grau o ímpeto da sua adesão. Entre os seus desfilan-
tes, que hoje chega ao espantoso número de 4.000, em
média, e só no grupo mais importante são 14 escolas, estão
pessoas de raças, profissões e origens as mais diversas, que se
irmanam para desfilar 90 minutos cantando e dançando.
Em todo este período, desde o primeiro desfile-concur-
so realizado no dia 7 de fevereiro de 1932, as escolas têm
crescido como agremiações, ou grêmios recreativos como é
a sua denominação oficial, muitas delas dedicam-se à reali-
zação de um trabalho social de grande impacto, usando o
esporte e os estudos profissionalizantes como cunha para
abrir os caminhos da plena cidadania para um apreciável
contingente de jovens.
Dando continuidade a este lado original do nosso carna-
val, que o diferencia de qualquer outro, as escolas de sambas
têm exercido um magnífico papel no resgate de personagens
e episódios da nossa história, muitos até desconsiderados
pela história oficial.Quantas figuras marginalizadas,quantos
momentos importantes na formação do nosso país, ignora-
dos pelos livros didáticos, ganharam sua devida dimensão
através dos enredos das escolas e seus sambas. Aleijadinho,
Chica da Silva, Dona Beja, o baile da Ilha Fiscal, Delmiro
Gouveia,a revolta dos malês,Zumbi dos Palmares,Monteiro
Lobato, Villa Lobos, a crítica aos vários planos econômicos
dos quais já fomos vítimas,a mitologia afro-brasileira,as alter-
nativas em torno da versão do descobrimento do Brasil,
enfim, as escolas de samba passaram a ser um fórum para se
discutir e conhecer o Brasil. E tudo isto sem pretensões aca-
dêmicas, com linguagem e visualização artísticas de fácil
compreensão porque, afinal, tudo é feito em canto e dança.
Nos dias atuais o barracão é o grande caldeirão da alqui-
mia carnavalesca, onde tudo se transforma e cria vidas através
das mãos dos artesãos que misturam suor,cola,prego e ferra-
gem para materializar visões e delírios. Diferente de um ate-
lier ou oficina, o barracão mergulha numa magia que é com-
partilhada pelos que lá trabalham e compreendida pelos que
o visitam.
O fenômeno escolas de samba extrapolou primeiro os
limites do Rio e, depois, os limites do Brasil. Hoje existem
escolas em cidades tão diferentes como Los Angeles, Porto,
Oslo, Toquio ou Londres, adot
ando não só o nosso ritmo
como também a sua essência.
Do bombo do Zé Pereira ao bumbo que marca o tempo
forte na bateria das escolas, muita coisa aconteceu. O nosso
carnaval,através delas,tem sido a trilha sonora da história do
país,registrando,adotando, transformando, modificando ges-
tos e modos, comportamentos e aparências. E mais, dão ao
mundo um exemplo de beleza, fraternidade e tolerância.
Haroldo Costa é ator, produtor cultural e autor dos livros Fala,
Criolo; Salgueiro, Academia de Samba; É Hoje (com o caricaturista
Lan),Na Cadência do Samba e 100 Anos de Carnaval do Rio de Janeiro.