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VIVIANE SALADINO PASSOS
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS EXPECTATIVAS DE MÃES
DE CRIANÇAS COM PARALISIA CEREBRAL GRAVE
FRENTE À ESCOLARIZAÇÃO.
MESTRADO EM EDUCAÇÃO:
História, Política, Sociedade
PUC/São Paulo
2007
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VIVIANE SALADINO PASSOS
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS EXPECTATIVAS DE MÃES
DE CRIANÇAS COM PARALISIA CEREBRAL GRAVE
FRENTE À ESCOLARIZAÇÃO.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do Título de Mestre
em Educação: História, Política, Sociedade,
sob a orientação do Prof. Dr. José Geraldo
Silveira Bueno.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2007
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Banca Examinadora:
______________________
______________________
______________________
RESUMO
Viviane Saladino Passos
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS EXPECTATIVAS DE MÃES DE CRIANÇAS
COM PARALISIA CEREBRAL GRAVE FRENTE À ESCOLARIZAÇÃO.
Este trabalho analisou de que forma as condições sociais de famílias, cujas filhas
eram crianças com quadro de paralisia cerebral grave, determinaram trajetórias
diferenciadas em busca de soluções dos problemas e constituíram as
expectativas das mães frente aos processos de escolarização. Tivemos como
hipótese que essas trajetórias, determinadas por condições sociais, econômicas e
culturais concretas, foram elementos fundamentais, aliados às conseqüências
orgânicas originárias da deficiência, e construíram expectativas que,
aparentemente, revelam semelhanças, mas cujos significados atribuídos por elas
são diametralmente opostos. Como sujeitos da pesquisa, foram selecionadas
duas mães, cujas filhas eram atendidas em processos terapêuticos oferecidos por
instituição privada de caráter assistencial-filantrópico que mantém atendimento de
reabilitação voltado a pessoas com paralisia cerebral grave. Neste sentido,
procuramos investigar, com base fundamental em Bourdieu, mas também nos
reportando as contribuições de Goffman e de Crochik,. como o advento de um
filho com deficiência grave e a busca de soluções foram conformando uma
determinada perspectiva tanto das possibilidades/limitações da deficiência quanto
do espaço social e educacional mais adequado. A pesquisa, de cunho qualitativa,
realizou entrevistas semidirigidas com as duas mães com base nos
procedimentos metodológicos indicados por Bourdieu. A análise dos resultados foi
realizada com base em seis eixos temáticos, quais sejam: a compreensão da
deficiência, as condições de vida, a descoberta pela família, a busca de
encaminhamentos, as experiências de escolarização e a fase atual de
escolarização. Os principais achados referem-se às formas inconscientes que
trajetórias diferenciadas na busca de soluções, especialmente no que se refere à
possibilidade de acesso a serviços de saúde, a informações especializadas, às
condições de moradia e de escolaridade mais ou menos qualificados geram
expectativas diferenciadas sobre a escolarização e o destino social de suas filhas.
Palavras-chave: paralisia cerebral – processos de escolarização - família
ABSTRACT
Viviane Saladino Passos
Social Construction of educational expectations of mothers of children with severe
cerebral palsy.
This research analyzed the ways in which families’ social levels determined the
different trajectories in the search for solutions for their children with severe cases
of cerebral palsy. These same social levels constituted maternal expectations
relating to the process of their children’s schooling. The main hypothesis relates to
the factor of social levels, composed of economic, social and cultural factors,
revealing themselves to be the fundamental elements, along with the degree of
organic deficiency present in the child, which created seemingly similar parental
expectations, but which in reality resulted in diametrically opposed significations.
This study utilized the services provided by a private, philanthropic institution
which treats and rehabilitates those with severe cerebral palsy. Two mothers,
whose girls were in therapeutic processes at said institution, were selected as the
subjects of this research. Thus, based on the fundamental works of Bourdieu,
utilizing concepts and contributions from Goffman and Crochik, the analysis
revolved around the conforming to a specific perspective not only of the
possibilities and limitations of the deficiency but also of the most adequate social
and educational spaces, arising in the first place from the necessity of the girl’s
mothers to deal with their children’s severe disabilities. A qualitative study, semi
directed interview methods were utilized with the two mothers, based on the
methodological procedures indicated by Bourdieu. The interview results were
analyzed via six thematic spokes, to whit: understanding the deficiency, socio-
economic levels, discovery of the illness by the family, the search for formal
treatment, past schooling experience and current academic level. The main
discoveries refer to the unconscious forms in which different trajectories generate
differentiated expectations about schooling and the social destinies of the
women’s daughters; especially, those trajectories which involved access to health
services, specialized information, housing conditions and formal schooling
contributed to the above mentioned expectations.
Key words: cerebral palsy, educational background process, family
Dedico à Tatiana,
minha querida filha,
Porque quando te acolho em meu
colo sinto a vida em nós
Quando escuto a doçura da tua voz
dizendo eu te amo mamãe me dou
conta que sou vencedora.
E quando te vejo quero ser um
modelo melhor a cada dia.
AGRADECIMENTOS
Ao mestre José Geraldo, por que suas correções duras e seu acolhimento
amigo que me fizeram chegar até aqui. Mais do que um simples orientador,
obrigada por ter sido mestre.
As professoras Paula e Cidinha pelas suas valiosas orientações como
membros da Banca de Qualificação.
A Betinha do programa EHPS pela ajuda sempre que precisei.
Ao CAPES pela concessão da bolsa.
A Roberta pela revisão.
Ao Andrew pela tradução.
As mães e pacientes que me ensinam a cada dia, principalmente a CARLA
e a CAMILA.
A minha mãe por tudo, tudo mesmo.
Ao Pedro pelo acolhimento.
A Fê pelo ombro amigo
A Valeria, amiga e professora.
A Cris, uma amiga de trajetórias tão parecidas.
Ao Dr. Kaoru pelo apoio.
A todos que contribuíram para meu aprendizado.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................
1
CAPÍTULO I - A ESCOLARIZAÇÃO DE ALUNOS COM PARALISIA
CEREBRAL
1.1 AS PROPOSTAS ATUAIS DE ESCOLARIZAÇÃO DE ALUNOS
COM DEFICIÊNCIA............................................................................................ 6
1.2. ESTUDOS SOBRE A INCLUSÃO ESCOLAR................................... 14
1.3. A CRIANÇA COM PARALISIA CEREBRAL..................................... 17
1.3.1 Manifestações orgânicas.................................................... 18
1.3.2. As adaptações para a criança com paralisia cerebral........ 22
1.3.3. As possibilidades/impossibilidades de inserção social do
paralítico cerebral................................................................................................ 27
1.3.4. As representações sobre crianças com paralisia
cerebral...................................................................................................... 34
1.3.5 As instituições e as expectativas os pais............................ 37
CAPÍTULO 2 -CONDIÇÕES DE VIDA E EXPECTATIVAS DE MÃES FRENTE
A ESCOLARIZAÇÃO DE SUAS FILHAS COM PARALISIA CEREBRAL
2.1. PROCEDIMENTOS DE PESQUISA.................................................. 41
2.1.1. As entrevistas...................................................................... 41
2.1.2. Caracterização dos sujeitos.................................... 45
2.2. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS EXPECTATIVAS DAS MÃES......... 51
2.2.1 A compreensão da deficiência................................. 51
2.2.2 Condições de vida.................................................... 57
2.2.3 A descoberta pela família........................................ 64
2.2.4 A busca de encaminhamentos................................ 70
2.2.5 As experiências de escolarização............................ 77
2.2.6 A fase atual de escolarização..................................
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS 98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
103
ANEXOS
43
Anexo 1 - Roteiro das entrevistas 107
Anexo 2 – autorização 108
1
INTRODUÇÃO
Este estudo surgiu de indagações originárias da minha atuação como
fonoaudióloga, na área da saúde, em uma instituição de natureza privado-
filantrópica que oferece atendimento de reabilitação para pacientes portadores de
grave deficiência motora e muitas vezes cognitiva, resultado de lesão neurológica,
conhecida por paralisia cerebral.
A princípio, apoiada por um discurso que considerava a educação inclusiva
como um novo paradigma na educação e que este, totalmente novo, tinha como
marco a Declaração de Salamanca (Conferência Mundial sobre Necessidades
Educacionais Especiais, 1994), que defendia a inclusão de alunos com
“necessidades educacionais especiais” dentro das salas regulares de ensino tinha
como discurso que incentivar a inserção dos meus pacientes na escola regular
corresponderia a melhor conduta.
Essa minha certeza vinha de uma vivência dentro da instituição que
atuava, por presenciar algumas condições de vida consideradas como
segregadoras, que isolavam esses deficientes em um único local privando-os de
convívio social mais ampliado. As situações mais dolorosas para mim eram
daqueles pacientes que eram internados nesse hospital e lá permaneciam até o
óbito, com as famílias tendo o direito de visitá-los apenas duas vezes por semana,
em horários específicos.
Esse fato me causava bastante incômodo, compartilhado por praticamente
toda a equipe técnica da instituição que, na tentativa de minimizar esse
isolamento, procurava criar pequenas situações cotidianas, como por exemplo,
passeios até um parque.
Mesmo quando os pacientes não eram internados e freqüentavam a
instituição apenas para os atendimentos, percebia que essas crianças ficavam
isoladas, pois, as mães relatavam que o único lugar que seus filhos passeavam
era para o atendimento.
Os atendimentos eram realizados quinzenalmente, mesmo contrariando
toda a literatura na área da saúde que comprovam a necessidade e as vantagens
de um atendimento intensivo a estes pacientes para que possam desenvolver ao
máximo todas as suas capacidades e minimizar os efeitos, ou melhor dizendo, as
seqüelas causadas pela lesão neurológica.
1
2
A justificativa para este fato, dada por dirigentes desta instituição, é que,
reduzindo o número de atendimentos, poderiam ampliar o número de pacientes e,
conseqüentemente, beneficiar mais crianças.
As condições econômicas da maioria das famílias que freqüentam a
instituição são bastante restritas, com uma grande maioria apresentando mínimas
condições de vida e uma pequena parcela, com condições mais favoráveis, mas,
mesmo assim, com rendas familiares de pequena monta.
Assim, diante das reais condições, atendimento reduzido e a necessidade
de um atendimento intensivo, eu e alguns terapeutas tínhamos com conduta
terapêutica mais usual a de oferecer orientações específicas para os familiares, a
fim de que pudessem cuidar de seus filhos, e muitas vezes reproduzirem em casa
exercícios, para compensarem a falta de atendimento intensivo.
As famílias, na sua maioria, iniciavam o tratamento com total descrédito
sobre as possibilidades de melhora de seus filhos especialmente porque vinham
de experiências vividas nos serviços de saúde, que as possibilidades de
desenvolvimento de seus filhos eram praticamente inexistentes.
Além disto, até chegarem na instituição e conseguirem uma tão sonhada
vaga para reabilitação, essas famílias, no geral, percorriam um longo caminho
de espera de meses por uma consulta, de várias triagens e de longo tempo
para um diagnóstico mais preciso, até conseguirem algum atendimento.
O convívio com essas famílias, a força que a maioria das mães tinham para
enfrentar todas as dificuldades, sempre foi para mim um aprendizado. Como o
foco era de orientação, o responsável pela criança, geralmente a mãe, entrava na
sala e permanecia durante a sessão. Nesses momentos, o acolhimento sobre as
dúvidas da patologia de seus filhos, a escuta sobre as angústias de não ver seus
filhos evoluírem, sempre estiveram presentes, o que auxiliou e muito, o vínculo
estabelecido com esses familiares.
Na fonoaudiologia, um dos principais aspectos a ser estimulado nas
crianças com paralisia cerebral é a linguagem e para que uma criança desenvolva
comunicação é preciso um ambiente social que propicie condições favoráveis
para que o sujeito se desenvolva como interlocutor.
No caso das crianças com paralisia cerebral, esta era sempre uma
situação pouco clara para os pais, pois, se a cada movimentação, o bebê
apresentava reflexos diferentes de todas as outras crianças, se um simples
sorriso poderia ser confundido como uma convulsão, a família se via bastante
2
3
desorientada, pois, o limite entre uma intenção comunicativa e necessidade de
ir a um hospital por uma piora clínica era muito tênue.
Assim, o trabalho fonoaudiológico residia principalmente em mostrar para
estas famílias quais movimentos tinham intenção comunicativa e quais eram
apenas reflexos patológicos e acima de tudo mostrar possibilidades de evolução
que, embora longe do desenvolvimento normal da maioria das crianças, podiam
ser paulatinamente ampliadas.
Tendo como base esses objetivos terapêuticos, o incentivo às famílias para
criarem ambientes que proporcionassem às crianças com paralisia cerebral a se
posicionarem no papel de interlocutor, sempre esteve presente em minha prática.
Qualquer forma de comunicação era incentivada, ainda que a fala não surgisse.
Orientava, então, as famílias a passearem com seus filhos em lugares do seu
cotidiano, como o supermercado, a farmácia, etc., e que fossem mostrando tudo
ao redor para a criança. Sempre solicitei, quando havia irmão, que comparecesse
na terapia e pedia para que ele fosse "meu ajudante" terapêutico. Essa situação,
no geral, tinha bons resultados, pois, conseguia que a criança com paralisia
cerebral estivesse envolvida em contextos discursivos que auxiliavam a sua
evolução.
Pela necessidade de proporcionar diversos contextos discursivos, me
deparei com um movimento, há alguns anos atrás, que no sentido terapêutico
auxiliaria, muito, na evolução dos meus pacientes, a inclusão escolar.
Nesse momento, tinha uma crítica radical acerca das instituições que não
ofereciam a estes pacientes uma qualidade de atendimento satisfatória, haja
vista, a freqüência das terapias, sem contar os casos de internação, em que
verificava que os pacientes não evoluíam ou, até mesmo, pioravam o quadro
devido ao total isolamento da vida social e cotidiana.
Nas orientações dadas às famílias, sempre obtive bastante sucesso no que
dizia respeito aos exercícios para serem realizados; quando, porém, tratava de
inserir seus filhos em uma escola regular, várias famílias se opunham à minha
orientação.
Nesses momentos, explicava o benefício que eu acreditava que tal
inserção traria a seus filhos, especialmente o convívio com outras crianças,
auxiliava a buscarem escola, entrava em contato com as coordenadoras,
conseguia vaga nas salas de aulas, porém, a resistência dessas mães continuava
3
4
freqüente e quando algumas colocavam seus filhos na rede regular, desistiam e
retornavam ao atendimento nas instituições especializadas de forma exclusiva.
Novas questões surgiam e busquei conhecimento sobre a educação
inclusiva em uma especialização, na área da pedagogia, bastante diferente da
área que atuava até então, pois, anteriormente havia cursado especialização em
fonoaudiologia hospitalar, totalmente voltada às questões clínicas.
Dentro desta especialização, tive contato com vários autores e pessoas
ligadas ao movimento de inclusão que ditavam que este era um movimento novo
e que traria uma nova escola para todos, promovendo uma sociedade mais
igualitária.
Porém, um destes autores me chamou a atenção, especialmente porque
argumentava que a educação dos deficientes não havia ocorrido após o
movimento de democratização da escola (Bueno, 1997), mas, sim,
concomitantemente, o que me instigou a buscar outras formas de analisar o os
processos de escolarização de crianças com deficiência e, dentro deles, o
movimento de inclusão escolar.
Diante desta situação, busquei um programa de pós-graduação que
pudesse me auxiliar a entender melhor este fato que ocorria em minha prática,
ingressando no PEPG em Educação: História, Política, Sociedade, da PUC/SP, à
busca de respostas para a grande questão que me instigava: quais as
expectativas que as mães tinham em relação a escolarização de seus filhos com
crianças com paralisia cerebral para resistirem a inserir seus filhos em uma escola
regular de ensino, mesmo após todo um movimento, em nível mundial, de
inclusão das crianças deficientes no ensino regular?
A deficiência se constitui uma marca, um estigma (Goffman, 1982) e tem
um peso muito importante no estabelecimento de qualquer relação, mas como
nos mostra Bueno (1997) não se pode deixar de considerar as diferentes
condições sociais, econômicas e culturais, pois, elas atuam no sentido de
minimizar ou maximizar essas marcas. Isto é, se não se pode negar que as
distintas deficiências geram limitações em relação a distintas práticas sociais, as
possibilidades oferecidas pelo meio jogam papel fundamental na minimização
dessas mesmas marcas.
Esta pesquisa teve como objetivo investigar como as expectativas sobre
a escolarização de mães de crianças com paralisia cerebral grave são
construídas dentro de experiências concretas, determinadas por suas
4
5
condições reais de vida, com base nas contribuições de Bourdieu, conforme
explicitado no capítulo 2.
Para tanto, realizei entrevistas com duas mães cujas filhas realizavam
atendimentos em instituição privada de cunho filantrópico, mas que possuíam
condições sociais diferenciadas, coletando informações sobre as marcas da
deficiência, as condições concretas de vida, as trajetórias de identificação e de
tratamento e, finalmente, a trajetória de escolarização de suas filhas.
Deste modo, a dissertação foi organizada da seguinte forma:
No Capítulo I realizo discussão sobre a escolarização de alunos com
paralisia cerebral através da análise das propostas atuais da escolarização dos
deficientes e de trabalhos acadêmicos envolvidos com o tema. Além disso,
elaborei tópico em que procuro descrever as principais características da
criança com paralisia cerebral, a fim de esclarecer com mais detalhes as suas
necessidades, possibilidades e impossibilidades de desenvolvimento,
aprendizagem e de inserção social e escolar.
No Capítulo II, apresento os resultados da pesquisa empírica sobre as
condições de vida e expectativas de mãe frente à escolarização de suas filhas
com paralisia cerebral dentro de seis eixos de análise: a compreensão da
deficiência, as condições de vida, a descoberta pela família, a busca de
encaminhamentos, as experiências de escolarização e a situação atual de
escolarização de suas filhas.
Nas considerações finais procuro enfatizar os principais achados a
pesquisa e relacioná-los com os referenciais teóricos que utilizei para a
construção da pesquisa.
5
6
CAPÍTULO I
A ESCOLARIZAÇÃO DE ALUNOS COM PARALISIA CEREBRAL
1.1 As propostas atuais de escolarização de alunos com deficiência.
Uma das principais discussões na educação especial brasileira,
atualmente, refere-se à inserção de crianças com deficiências no ensino regular
pautada na educação inclusiva. Embora este movimento, da educação inclusiva,
tenha ganhado força em nossos dias, não é uma proposta sem precedentes,
sendo que não se deve ignorar o que a antecedeu, para não cometermos o risco
de considerarmos as propostas atuais como inovadoras, aceitando o apagamento
da nossa memória, tal como já havia nos mostrado Januzzi (2006), ao discorrer
sobre a organização da educação especial no Brasil pelos diversos órgãos e
instituições filantrópicas:
Outro fato interessante de se notar é a pouca memória oficial, expressa
em documentos legais. Mostrei que desde a primeira LDB há artigos referentes à
educação do excepcional, inclusive sugerindo seu enquadramento no sistema
regular de educação, embora de maneira tímida (Lei n. 4.024, título X, artigo 89).
Depois houve a criação de dois órgãos de políticas públicas para a educação, o
CENESP, em 1973, e o de Coordenação Geral (CORDE), em 1986, que visavam
a agilizar o propósito de integração educacional e geral. No entanto,
surpreendentemente, em 1990, quando houve a extinção da SESP e a inclusão
na SENEB como um departamento, Desse, institui-se um GT (portaria n. 6 de 22
de agosto 1990) que traz na proposta a declaração: o MEC começa a encarar,
pela primeira vez a educação especial inserida no contexto global da proposta
de educação para todos. (MEC. SG. CENESP, 1974a, grifo da autora, p. 147)
Na verdade, esse movimento se iniciou na década de 1970, com a
chamada política de integração, pela inserção de deficientes nas classes
regulares, originária do movimento mundial que pregava a integração de crianças
deficientes no ensino regular.
No nosso País, com a criação do Centro Nacional de Educação Especial –
CENESP, órgão do MEC, que tinha como finalidade promover a expansão e a
melhoria do atendimento aos excepcionais, a educação especial passou a ser
prioridade pela primeira vez, abrangendo todo o território nacional, pelo menos no
discurso oficial (Cf. Bueno, 2004).
Conforme afirma Mazzotta (2003, p. 72), o que caracterizava a educação
6
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especial naquele momento era o seu caráter clínico e terapêutico, assumindo um
caráter preventivo/corretivo, o que pode ser comprovado pelo teor de um de seus
objetivos gerais: a ampliação de “oportunidades de atendimento especializado, de
natureza médico-psicossocial e educacional para os excepcionais, a fim de
possibilitar sua integração social”.
O que se verificava nessa diretriz, segundo este autor, era uma grande
dificuldade em conciliar os modelos clínicos ou médico-psicológicos com os
modelos educacionais, na medida em que não havia uma distinção clara entre as
responsabilidades dos serviços de saúde e os de educação escolar.
Se é verdade que os diagnósticos da excepcionalidade devem ser feitos
por uma equipe especializada, através de avaliações globais com procedimentos
da área biomédica e psicossocial, para que redundem em procedimentos
terapêuticos adequados a cada um, estes serviços não podem ser confundidos
com procedimentos de ensino, cujos objetivos não se restringem à minimização
das conseqüências advindas dos diferentes tipos de deficiência.
Enquanto o Conselho de Educação, em 1972 entendia a Educação
especial como "linha de escolarização", portanto, como de educação escolar, o
órgão específico do MEC sempre interpretou como linha de atendimento
assistencial e terapêutico ao invés de educacional escolar. O sentido clínico e/ou
terapêutico atribuído à educação especial norteia todas as decisões e ações
altamente centralizadas do MEC, conforme está textualmente declarado na
Portaria Interministerial nº 186/78, caracterizando o atendimento educacional aos
excepcionais "como seguindo uma linha preventiva e corretiva" (Mazzotta, 2003,
p. 191).
Apesar destas críticas, não se pode deixar de considerar que as
divergências entre aqueles que defendiam a inserção de crianças com
deficiências no ensino regular e os adeptos da sua manutenção em sistemas
segregados de educação especial são de longa data, como, por exemplo, as
políticas de segregação vigentes na década de 1950 e o movimento anti-
segregacionistas de cegos que, organizando-se em torno dos seus problemas,
fundaram, em 1954, o Conselho Brasileiro do Bem-Estar dos Cegos que se
opunha a essa política. (Januzzi 2006).
Essa discussão se arrastou por mais de uma década gerando pressão
sobre propostas políticas em torno do tema e, no início dos anos de 1970, se
observa uma disparidade entre a LDB recentemente promulgada e as
recomendações do Conselho Federal de Educação.
Em 1972, por pressão do presidente das APAEs, o Conselho Federal de
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8
Educação, atuando em conjunto com o Ministério do Trabalho e da Previdência
Social, busca criar dispositivos legais, por meio da Resolução n. 848/72 para o
incremento da inserção do deficiente no mercado de trabalho através da definição
das condições de capacidade para o exercício de determinadas funções públicas.
Em contrapartida, a proposta da LDB n. 5692, de 1971, determinava que os
alunos que apresentassem deficiências físicas e mentais, os que se encontravam
em atraso considerável quanto à idade regular de matrícula e os superdotados
deveriam receber tratamento especial, de acordo com as normas fixadas pelos
competentes Conselhos de Educação.
Portanto, o que se observa é que determinados órgãos oficiais como o CFE
e o Ministério do Trabalho procuravam regulamentar a inserção social dos
deficientes através do exercício profissional, a educação destas crianças, na
perspectiva do legislador, ainda permanecia no âmbito da segregação das
classes especiais.
Na verdade, tal como aponta Bueno (2004, p. 26), a ótica da expansão de
oportunidades educacionais aos excepcionais, assim considerados aqueles que,
em virtude de características pessoais geradas por essa condição, não
conseguiram usufruir processos regulares de ensino, não se sustenta em toda a
história da escolarização dos deficientes a partir do século XIX, porque a escola
especial teve seu aparecimento ao mesmo tempo em que o movimento da
democratização e universalização do ensino, “isto é, as dificuldades destas
crianças foram captadas antes e não depois da expansão da experiência escolar”
(p.28).
Esta situação permaneceu, em nosso País, até os anos de 1970, quando
se desenvolveram as políticas de integração do aluno deficiente no ensino
regular, considerando-se, entretanto, que as dificuldades de integração residiam
em características das crianças com deficiência que deveriam ser superadas para
que tivessem condições mínimas de incorporação pela rede de ensino regular,
processo este comprovado pela afirmação contida em documento oficial da época
de que esta Integração seria possível “sempre que suas (dos deficientes)
condições pessoais permitirem”. (MEC.CENESP, 1974, apud Bueno, 1997, p.
150)
Embora esta proposta tenha sido largamente divulgada, na verdade, foram
poucas as iniciativas, em nosso País, salvo exceções localizadas, de
implementação de políticas integracionistas. Isto deve ter ocorrido porque uma
8
9
das premissas básicas das políticas de integração era a de que se deveria
encaminhar aqueles alunos que, nos processos especiais de ensino,
conseguissem alcançar padrões mínimos que garantissem uma inserção
produtiva no ensino regular.
Como, via de regra, os resultados alcançados pela educação especial em
nosso País eram muito baixos (Bueno, 2004), era natural que poucos alunos com
deficiência alcançassem níveis satisfatórios de rendimento que possibilitassem
essa integração.
Foi a partir de 1994, com a promulgação da Declaração de Salamanca
(Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, 1994), que se
iniciou um processo de reversão dessa situação, na medida em que, ao contrário
da política anterior, na qual os alunos deficientes deveriam se adaptar às
exigências da escola regular, a Declaração reconheceu que a escola teria de
modificar suas práticas, para oferecer a todos os alunos um ensino de qualidade,
independentemente de suas condições sociais, culturais, religiosas ou físicas.
É, portanto, no bojo desta perspectiva, que a Declaração indica que todas
as crianças com deficiência deveriam ser integradas ao ensino regular, a não ser
que existissem fortes razões para esse não encaminhamento. (Conferência
Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, 1994, p. ix).
Em termos legais, no Brasil, mesmo antes desta Declaração, a
Constituição Federal de 1988, no Inciso II, do Artigo 208, já trazia que o dever do
Estado com a educação dessa população deveria ser efetivado mediante a
garantia de: atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino.
Apesar disto, foi a partir de Salamanca que a inclusão de crianças com
deficiência no ensino regular passou a ser adotada como política educacional,
tanto no nível federal, quanto nos estaduais e municipais.
Na verdade, é sob o impacto da Declaração, quando da promulgação da
Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional n. 9.394/96, que se incorporou,
pela primeira vez, um capítulo especialmente voltado à educação especial
(Capítulo V) com a perspectiva da inclusão de alunos com necessidades
especiais no ensino regular.
Da mesma forma, o Plano Nacional de Educação (2001), exigência
impreterível disposta pela nova LDBEN, reconheceu como direito que crianças e
jovens com necessidades especiais freqüentassem o ensino regular, sob o
9
10
princípio da escola como lugar de educação a todas as crianças.
Para muitos autores, portanto, a Declaração de Salamanca, colocou em
evidência a discussão sobre a “inclusão escolar”, considerada por parte da
literatura acadêmica nacional como um paradigma que substituiu o da integração,
ultrapassado e conservador:
Inclusão, então, passa a ser a nova ordem, que surge como a nova missão
da escola, expressa nas grandes propostas políticas nacionais e internacionais,
voltadas aos deficientes, seja no discurso político de todas as nuances ideológicas
ou nas ações concretas dos governantes e das escolas, ou ainda, nas produções
científicas, acadêmicas e de cunho técnico-profissional. (Bueno, 2006, p. 1)
Este mesmo autor questiona essa mudança de paradigma, já que, segundo
ele, a Declaração de Salamanca não fazia qualquer alusão à inclusão escolar,
mostrando que a primeira tradução publicada em português, realizada pela
Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência –
CORDE, do Ministério da Justiça, no ano de 1994, e que manteve fidedignidade
ao texto original em espanhol publicado pela UNESCO, não usava uma vez
sequer o termo “inclusão” e seus derivados, mas sim, a palavra “integração”.
(Bueno, 2005, p. 3)
Mostra também que a versão atual, disponível no site do mesmo órgão,
diferentemente do original em espanhol e da tradução de 1994, substituiu todos
os termos “integração” por “inclusão”. (Bueno, 2005, p. 7)
Para ele, esta transformação teve por objetivo a divulgação da inclusão
escolar como proposta inovadora, sem relação com o passado e que pretendeu
inaugurar uma nova etapa na educação mundial: a educação para todos, inclusive
para os “portadores de necessidades educativas especiais”, na construção de
uma sociedade inclusiva. (Bueno, 1999).
O que a Declaração fez, como nos mostra Bueno (1999), é o
reconhecimento de que as políticas educacionais no mundo fracassaram em
estender a todas as crianças a educação obrigatória e que é necessário modificar
as políticas e as práticas escolares baseadas na perspectiva da homogeneidade.
Sem dúvida, a Declaração de Salamanca é um marco importante, pois a
mudança de perspectiva – de reconhecimento da heterogeneidade humana e de
contraposição a políticas educacionais calcadas na homogeneidade - reforça o
direito de cada indivíduo nas suas necessidades especiais.
Outro fator levantado por Bueno, refere-se à população para a qual estes
10
11
documentos estão direcionados: pessoas com necessidades educativas
especiais.
Na Declaração de Jomtien, observamos que o foco incide no chamado
grupo de excluídos:
os pobres, os meninos e meninas de rua ou trabalhadores migrantes, os povos
indígenas, as minorias étnicas, raciais e lingüísticas, os refugiados, os deslocados
pela guerra, os povos submetidos a um regime de ocupação (Conferência Mundial
de Educação para Todos, 1990, art. 3).
Apesar desta declaração fazer alguma referência à educação de pessoas
com deficiências orgânicas, como decorrência da preocupação de igualdade de
acesso no sistema educativo, é com a Declaração de Salamanca que se define o
princípio da educação inclusiva.
Por outro lado, apesar da grande ênfase à inclusão escolar de alunos com
deficiência, o termo “necessidades educativas especiais“ não se restringe
somente a esses alunos, abrangendo, na verdade, toda a massa de alunos
excluídos da escola:
Tanto é assim que, em nenhum momento aparece no texto original da
Declaração o termo “educação especial” como a responsável pelas políticas de
integração/inclusão escolar. Com isto, fica claro que o termo “necessidades
educativas especiais” abrange, com certeza, a população deficiente, mas não se
restringe somente a ela. (Bueno, 2005, p. 06)
De qualquer forma, a tendência de incluir pessoas com deficiência no
ensino regular parece ser a nova ordem da política educacional e, sob sua égide,
não só os profissionais da educação especial, mas muitos da área da saúde, que
também oferecem atendimento a essa população, têm se manifestado em prol do
movimento de Inclusão.
O discurso político vigente no Brasil afirma que a principal meta da
educação, hoje, é garantir a todos os indivíduos uma apropriação de conteúdos
básicos que a escola deve proporcionar. Esta diretriz inclui também a educação
especial quando, por exemplo, o CEE de São Paulo afirmava que é necessário
modificar uma série de concepções e práticas para que ocorra o atendimento dos
alunos com necessidades especiais nas classes comuns das escolas em todos os
níveis de ensino. (São Paulo. CEE. Resolução nº 12/99)
É por esse mesmo documento que o CEE/SP reconhece que ações
educativas que privilegiavam a organização de salas especiais nas instituições
11
12
escolares era uma prática que reforçava a seperação/segregação; assim, para
esse órgão, a possibilidade de indivíduos com deficiência de convívio de forma
integrada com os demais alunos passa a ser considerada como uma prática que
vai ao encontro da nova sociedade que deveria oferecer oportunidades iguais
para todos, seja qual fosse a diferença.
Com base neste princípio, ficou estabelecido que uma das necessidades
especiais deveria se entender o aluno deficiente como aquele que, por possuir
significativas diferenças físicas, sensoriais ou intelectuais, decorrentes de fatores
inatos ou adquiridos, de caráter temporário ou permanente, apresenta inevitáveis
diferenças que resultariam em necessidades especiais diferenciadas da maioria
das pessoas.
A educação inclusiva seria, portanto, a indicação deste documento como
condição fundamental para a igualdade de oportunidades, pois as classes
comuns seriam, no lugar das classes e escolas especiais, o "locus" privilegiado
que permitiria o acesso desta população aos bens acadêmicos e culturais que a
escolarização proporciona:
os conhecimentos, habilidades e valores a serem alcançados pelos alunos com
necessidades educativas especiais incluídos nas turmas do ensino comum devem
ser os mesmos propostos para os seus colegas, variando todavia o apoio que
cada aluno deve receber em função de suas peculiaridades e os critério de
aquisição que foram mais conveniente para serem considerados nos processos
de avaliação educacional (São Paulo. CEE. Indicação Nº 12/99)
A partir deste posicionamento norteador, fica indicada que, para a eficácia
da inclusão, é necessário oferecer às escolas e aos professores amplo apoio
pedagógico, salas de recursos, materiais didáticos e espaço físico escolar
adequado. Quanto ao mobiliário e instalações, a recomendação é de que as
escolas devem atender à legislação vigente para a adequação de seus edifícios.
Assim o documento esclarece que o número de alunos deficientes por
classe deve ser determinado não por sua quantidade.As classes devem ser
compostas de tal forma a produzir uma riqueza de diferenças, que contribuam
para que se possa ampliar positivamente as experiências de todos os alunos.
Embora estes documentos afirmem que a inclusão é de importância
fundamental para o desenvolvimento destas crianças, consideram que, caso não
haja condições mínimas para esses alunos serem incluídos em classes comuns,
deverão receber atendimento em classes especiais segundo o tipo de
necessidade especial apresentada, decisão que cabe à equipe escolar, aos pais e
12
13
aos conselhos de escola.
Em dezembro deste mesmo ano, o Decreto n° 3298, de 1999, regulamenta
a concepção de deficiência como toda perda ou anormalidade de uma estrutura
ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o
desempenho de atividade, dentro de um padrão considerado normal para o ser
humano.
Dentre as necessidades especiais, este mesmo documento esclarece que
devemos considerar a paralisia cerebral como uma deficiência física determinada
por uma alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo
humano, acarretando o comprometimento da função física. No caso da paralisia
cerebral grave a incapacidade que as seqüelas gerarão podem ser definidas por
uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com
necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para
que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações
necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a
ser exercida. (p.1)
A Resolução SE 9, de 2000 reafirma que a integração, permanência,
progressão e sucesso de alunos portadores de necessidades especiais em
classes comuns do ensino regular representam a alternativa mais eficaz no
processo de atendimento desse alunado.
Para tanto, devem ser oferecidas todas as adaptações necessárias para
suprir as necessidades educativas especiais, tais como determina o artigo 3°, pelo
qual o trabalho pedagógico com alunos que apresentem necessidades
educacionais especiais nas classes comuns deve envolver materiais didáticos
auxiliares, acompanhamento e reforço contínuo por parte do professor da classe e
trabalho suplementar com professores especialistas, quando for o caso, ou o
artigo 4° que determina que esses educandos deverão contar com mobiliário
adequado nas salas do ensino comum.
Para que a política da educação inclusiva possa ser efetiva, algumas
indicações são dadas para o atendimento desses alunos, tais como a orientação
promulgada pela Resolução CNE/CEB n° 2 de 2001 que dita no parágrafo único
da p. 1 que a oferta de atendimento escolar dos alunos com necessidades
especiais deve ter início na educação infantil, nas creches e pré-escolas, sendo
assegurado o direito aos serviços de educação especial. Esta modalidade da
educação escolar, segundo esta resolução, deve garantir um processo
13
14
educacional por meio de propostas que assegurem recursos e serviços
educacionais especiais para promover o desenvolvimento das potencialidades
dos educandos que apresentem necessidades educacionais especiais.
O que quero deixar mais enfatizado, neste momento, é que, independente
se é esta ou aquela proposta de escolarização, o que parece ficar claro é a
ênfase, em todos os documentos, sobre a necessidade de modificações do meio
e de utilização de adaptações, recursos e equipamentos necessários para
minimização das características provenientes das deficiências, entre elas a
paralisia cerebral.
1.2. Estudos sobre a inclusão escolar
Alguns trabalhos analisam a inclusão escolar por suas práticas e
princípios, assim algumas pesquisas tiveram como objetivo realizar uma
análise de como a inserção do deficiente dentro da sala de aula tem atendido
os princípios da educação inclusiva.
Siqueira (2004), em sua pesquisa sobre a inclusão de crianças deficientes
no ensino regular, teve como objetivo analisar as possíveis distinções entre a
participação e a aprendizagem do conteúdo escolar entre os alunos deficientes
mentais e alunos não deficientes, ambos com evidentes dificuldades de
apropriação do conteúdo ministrado. Esta autora identificou que, embora
houvesse uma tentativa da professora para que a aluna deficiente mental
realizasse as tarefas, no momento em que não conseguia, ela “pareceu não ter
qualquer outro recurso senão fazer a tarefa por ela ou, então, aceitar como
aceitável qualquer resultado por ela alcançado” (Siqueira, 2004, p. 94). Também
verificou que os alunos de inclusão são um grupo desconhecido no que se refere
aos processos de aprendizagem e desenvolvimento, que pode ser observado
desde o momento da seleção dos sujeitos da pesquisa, pois, apesar da diretora
afirmar que existe um esforço real da escola para “acolher esses alunos” e mantê-
los “incluídos”, ela relatou que a escola não tinha informações sobre os
diagnósticos, muito menos sobre o que se indicava em relação às possibilidades
de aprendizagem e, portanto, a escola procedia pedagogicamente do mesmo jeito
que fazia com qualquer aluno, o que, em última instância, redundou em total
defasagem em relação à aprendizagem dos conteúdos ministrados. (p. 39)
Como não havia uma interface entre o diagnóstico do aluno e a
14
15
organização escolar, ficava praticamente impossível estabelecer quais as
necessidades especiais e traçar as adequações necessárias para garantir
qualidade de ensino. A autora mostra que os alunos de inclusão realizavam as
mesmas atividades que os outros alunos ou não realizavam nenhuma, tal como
afirmava uma professora: ele (referindo-se ao aluno de inclusão) faz a mesma
atividade para não se sentir excluído, mas ela (atividade) tem um objetivo
diferente para ele. (Siqueira, 2004, p. 97).
Esse processo foi denominado pela autora como “exclusão interna” e
acabava sendo aceito pelas crianças e pela família,
fato este evidenciado pela naturalidade com que os alunos de inclusão
aceitam a diferenciação na sala de aula, seja em relação às atividades ou
ao seu comportamento e também à falta de questionamento dos pais em
relação ao aprendizado de seus filhos, o que parece indicar que os alunos
de inclusão sejam de fato responsabilizados pela não aprendizagem dos
conteúdos escolares propostos pela escola (Siqueira, 2004, p. 96)
Dentro dessa mesma perspectiva, Bartalotti (2004) realizou uma
investigação em uma creche, na zona oeste de São Paulo, conveniada com a
secretaria municipal de educação e mantida de forma assistencial por sua ligação
com a igreja católica, com capacidade para atender 140 crianças. Neste trabalho,
pesquisou as possibilidades que as instituições regulares de educação possuem
para favorecer o desenvolvimento das crianças com deficiência, sendo um dos
sujeitos de pesquisa uma criança com paralisia cerebral, uma menina de quatro
anos de idade, que ao chegar à creche, já realizava reabilitação nas diversas
modalidades (fisioterapia e terapia ocupacional). Embora sua inserção à creche
tenha gerado inicialmente dúvidas sobre as condições que a escola possuía para
receber uma criança com essas características, a diretora obteve orientações e
acompanhamento do caso de uma profissional, professora e terapeuta
ocupacional na rede privada. Todas as dificuldades da criança foram sendo
discutidas com essa profissional que oferecia dados mais precisos sobre as
necessidades que a aluna especial tinha, desde mobiliário adequado até o
esclarecimento através de palestras sobre o caso. Além disso, a mãe da aluna, no
primeiro dia de aula, forneceu para a escola mobiliário adequado para o
posicionamento de que ela necessitava. As profissionais envolvidas, ressalta
Bartalotti (2004), não possuíam nenhuma formação específica (magistério ou
pedagogia) mas, com o apoio recebido da profissional especializada, abraçaram
15
16
com mais intensidade o desafio de promover a aprendizagem e o
desenvolvimento dessa criança (p. 111), constatações que levaram a autora a
concluir que:
O sucesso dos processos de inclusão da criança com deficiência mental na
escolar regular passa, então, por caminhos mais complexos do que a garantia da
matrícula, envolvendo, em última instância, uma transformação do olhar do
educador sobre essa criança e sobre sua própria prática pedagógica. Para que
ações verdadeiramente inclusivas sejam efetivadas é essencial possibilitar ao
educador aprender a identificar, ao se deparar com a criança com deficiência,
principalmente suas possibilidades, ao invés de centrar-se em suas dificuldades.
Mas cabe ressaltar que o atendimento que parece ter contribuído de forma
decisiva para o sucesso do caso estudado pela autora não fazia parte de um
projeto político, dando-se de forma individualizada pelo contato entre a
pesquisadora e a creche de estudo que foi o locus da pesquisa.
Santos (2001, p.203), analisando a trajetória escolar de alunos deficientes
mentais atendidos em classe especial da rede publica estadual paulista, pode
concluir que a inclusão desses alunos no ensino regular deve ser analisada em
relação ao sistema de ensino educacional atual, das reformas que vem sendo
implementadas, dos recursos que precisam ser investidos e dos interesses e
benefícios que trariam ou não aos alunos com deficiência, pois, caso contrário, a
inclusão correria o risco de, ao invés de permitir maiores possibilidades de
aprendizagem que os sistemas segregadores, se constituir num processo efetivo
de exclusão escolar.
Por outro lado, Mendes, Rosa & Zambon (2004), também analisando a
inclusão escolar pelas creches, consideram que muitas das dificuldades de
inserção social das crianças com necessidades educativas especiais emergem ou
se intensificam na medida em que ampliam as exigências acadêmicas dos demais
níveis de ensino. (p. 08) Estes autores discutem a necessidade da inclusão como
“marco zero” pela referência através do sistema de educação infantil como foco
prioritário, pois um dos pontos que o estudo evidenciou é a necessidade de
implantar cuidadosa, gradua e, planejada sistemática às políticas de educação
inclusiva. (14).
Isto é, para estes autores, é preciso cautela na generalização de resultados
positivos de inclusão de alunos deficientes nesse nível de ensino, porque eles não
podem ser estendidos de forma mecânica a níveis superiores, que têm exigências
acadêmicas crescentes.
16
17
Diante dos dados estudados, pode-se concluir que a inclusão desses
alunos no ensino regular não pode ser analisada sem que se leve em
consideração as possibilidades que a eles foram oferecidas em termos de
minimização das conseqüências geradas pela deficiência, do apoio material e
técnico que a inclusão exige, especialmente no que se refere ao trabalho do
professor, pois, caso contrário, a inclusão correria o risco de, ao invés de permitir
maiores possibilidades de aprendizagem que os sistemas segregadores,
constituir-se num processo efetivo de exclusão escolar.
Tendo como ponto de partida a perspectiva de que a paralisia cerebral,
pelas conseqüências que as alterações motoras acarretam nos processos de
socialização, requer modificações e adequações de recursos e equipamentos,
que são de fundamental importância para a escolarização desses alunos dentro
das salas regulares, assim como entendendo que as suas principais
características são pouco conhecidas do âmbito acadêmico da educação,
considero essencial que sejam apresentadas as principais características desses
sujeitos.
1.3. A criança com paralisia cerebral
A designação por deficiência mais usualmente utilizada vem do paradigma
biológico clássico que procura determinar, de forma inquestionável, a distinção
entre o normal e a doença (patológico) considerada como um desvio do estado
habitual (de saúde) desvio esse manifestado por um desvio quantitativo do
funcionamento regular do ser humano. (Bueno, 1997).
O que não se pode deixar de considerar é que o conceito de deficiência,
assim como o de doença ou anormalidade, é construído dentro das relações que
o ser humano estabelece entre si, há que se verificar até que ponto a doença se
configura como um desvio do padrão mais freqüente e, portanto, mais saudável.
Segundo Bueno (1997), esta conceituação, em primeiro lugar, tem que ser
analisada no contexto histórico, na medida em que, em cada época, o meio social
estabelece critérios distintos de épocas precedentes para identificar certas
características que não são comuns a todos os membros da sociedade, e que
geram impossibilidades e possibilidades de participação desse sujeito na
construção coletiva da sobrevivência e reprodução de diferentes grupos sociais.
Assim, como a vida não é indiferente às condições nas quais ela é
17
18
possível, não pode-se separar as manifestações orgânicas das condições do
meio, pois, quando o meio se modifica, respostas organicamente satisfatórias
podem ser consideradas insatisfatórias e vice-versa.
As modificações do meio permitem que a vida possa encontrar soluções
para os problemas de adaptações que são forçadamente obrigadas a resolver.
Assim, um ser vivo é normal num determinado meio na medida em que ele é a
solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as
exigências do meio, ou seja, uma manifestação orgânica não pode ser
considerada normal por sua maior freqüência, mas pela sua própria possibilidade
de manifestação. (p. 166)
Isso significa dizer que, quando pensamos em uma criança com paralisia
cerebral grave, temos que considerar que boa parte desses sujeitos só terão
garantidas a sua própria sobrevivência, dentro do mundo atual, pelo
desenvolvimento tecnológico que, além de evitar a sua morte no ato do
nascimento, oferece uma série de recursos que permitem, cada vez mais, a
minimização de suas dificuldades frente às exigências sociais.
Isto é, se as marcas da paralisia cerebral não podem ser negadas e
aceitas, já que causam um conjunto de dificuldades para a participação social
desses sujeitos, as possibilidades de acesso a bens e recursos de toda a
natureza (tecnológicos, de saúde, de educação, etc.) determinam, de um lado, o
quanto esses sujeitos podem superar essas mesmas dificuldades. De outro,
essas mesmas possibilidades de acesso vão, na própria trajetória de sua
apropriação, construindo uma representação das possibilidades de
desenvolvimento desses sujeitos, isto é, vão influindo decisivamente nas
expectativas que se vão criando sobre as suas possibilidades de desenvolvimento
e aprendizagem.
Assim, se partimos do princípio de que, às marcas orgânicas originárias da
paralisia, agregam-se marcas sociais construídas na própria trajetória de
socialização, tendo como parâmetro básico às condições objetivas de vida a que
esse indivíduo tem acesso, incluindo desde a possibilidade de um diagnóstico
preciso e precoce até a sua inserção profissional, passando pelas condições de
vida que possui, pelo acesso a serviços de saúde e a processos de escolarização,
cabe agora efetuar uma reflexão sobre todos esses aspectos em relação à
paralisia cerebral.
18
19
1.3.1. Manifestações orgânicas
Podemos definir a paralisia cerebral como um problema neurológico não
progressivo, atualmente reconhecido como um quadro sindrômico, que a
Associação Brasileira de Paralisia Cerebral (2007) define como:
o conjunto de alterações oriundas de um determinado acometimento encefálico,
caracterizado essencialmente pôr uma alteração persistente, porém não instável
do tônus, da postura e do movimento que se inicia durante o período de
maturação anatomo fisiológico do Sistema Nervoso Central
Ou seja, o termo paralisia cerebral refere-se principalmente a uma
desordem do movimento e da postura por um acometimento neurológico que vão
desde pequenos movimentos localizados até graves prejuízos que interferem em
praticamente todos os movimentos, como o andar e o falar. A lesão cerebral
provoca debilitação variável na coordenação da ação muscular e tem como
conseqüência uma incapacidade da criança em manter uma postura e realizar
movimentos como outras crianças o fazem. Esta deficiência motora pode ou não
estar associada a outras deficiências como a audição, visão ou mental.
Schwartzman (2004) informa que o termo paralisia cerebral deve ser
utilizado apenas nos casos em que haja uma alteração cujo prejuízo maior se
faça no aspecto motor. Caso a quadro cognitivo esteja alterado e seja o ponto
mais importante, sugere que se utilize o termo encefalopatia não progressiva. De
qualquer forma, paralisia cerebral ou encefalopatia crônica não evolutiva é um
acometimento importante e estima-se que, a cada mil crianças nascidas vivas,
seis apresentam paralisia cerebral (Petean & Murata, 2000)
Uma das características que merece destaque na paralisia cerebral é seu
caráter não progressivo, ou seja, a debilitação que a desordem neurológica
acarreta não evolui, prejudicando ainda mais o desenvolvimento do sujeito,
porém, como pontua Schwartzman (2004), a paralisia cerebral, mesmo sendo
decorrente de uma lesão não progressiva, tem determinadas características que
podem ser modificadas em função de fatores biológicos, relacionados aos
processos de maturação do sistema nervoso central, fatores ambientais ou
circunstanciais. Isso significa dizer que a criança que apresenta paralisia cerebral
terá algumas dificuldades imposta pela alteração neurológica, porém a evolução
do quadro motor está diretamente relacionada ao o tratamento que seguirá nos
anos seguintes. Quanto mais cedo e mais intensivo for esse tratamento, mais
19
20
chance das alterações motoras serem menos prejudiciais.
As manifestações motoras determinam a classificação da PC por dois
aspectos: divisão da localização da lesão no corpo e tipo clínico.
Localização da lesão no corpo
A localização no corpo tem distribuição variável e diz respeito às
subdivisões anatômicas dos membros e lados afetados no indivíduo: monoplegia
é quando apenas um membro é afetado, geralmente os superiores; tetraplegia,
quando os quatro membros são afetados; hemiplegia, quando apenas um lado é
afetado, alterando um membro inferior e um membro superior; e paraplegia,
quando são os dois membros inferiores afetados. Há ainda a triplegia, quando
três membros são afetados, porém esta é uma forma bastante rara.
Tipo clínico
As alterações musculares são traduzidas geralmente por um aumento do
tonos (espasticidade) ou menos freqüente, por uma diminuição do tonos
(hipotonia). Essas manifestações são percebidas por especialistas e também por
familiares que expressam: "meu filho é muito 'molinho', ou meu filho é muito
'durinho'".
As alterações que geram movimentos involuntários são divididas cf. o
documento Saberes e práticas da Inclusão: Dificuldades de comunicação e
sinalização, deficiência física (2006, p 18) da seguinte maneira:
ESPÁSTICA: os músculos são muito tensos, o que limita ou impossibilita
os movimentos do corpo. A criança espástica é dura demais para mover-se, todo
movimento é lento e exige um grande esforço. É o tipo mais comum de paralisia
cerebral.
EXTRAPIRAMIDAL: os músculos possuem um grau de tensão variável, o
que resulta em uma realização de movimentos indesejáveis, involuntários. É o
segundo tipo mais comum de paralisia cerebral e pode ser dividido em:
ATETÓIDE: há um grau de variação de tensão dos músculos das
extremidades do corpo (em relação aos braços, essa variação ocorre nas mãos)
levando à realização de movimentos lentos, contínuos e indesejáveis, que são
20
21
muito difíceis de dosar e controlar. A criança atetóide tem grande dificuldade de
realizar o movimento voluntário e manter a mesma postura por muito tempo.
CORÉICO: há uma variação no grau de tensão dos músculos das raízes
dos membros (em relação ao braço, esta variação ocorre nos ombros) levando a
realização de movimentos rápidos e indesejáveis. A criança coréica pode ter
dificuldade para realizar o movimento voluntário).
DISTÔNICO: há um aumento repentino de tensão da musculatura levando
à rigidez temporária de um segmento do corpo em uma postura extrema.
ATÁXICO: a alteração ocorreu em uma região do cérebro responsável pelo
equilíbrio. Os movimentos são incoordenados e bruscos, podendo haver a
presença de um certo tremor. A maior dificuldade para a criança atáxica é manter-
se parada. É um tipo raro de paralisia cerebral.
O quadro clínico da paralisia cerebral tem uma variação bastante ampla e
vale assinalar que nem sempre há a correspondência entre os graus de
comprometimento mental e motor, pois, em alguns casos, ocorre a espasticidade
sem retardo mental, sendo que o retardo mental é freqüente, com grau de
deficiência extremamente variável. (Sanvitto, 1997, p. 316).
É bastante característica a presença e exacerbação de reflexos primitivos e
reflexos motores complexos que tendem a permanecer no desenvolvimento motor
global por mais tempo que nas crianças normais. Dentre eles vale destacar
alguns que são mais facilmente visíveis e chamam bastante a atenção por sua
movimentação exacerbada e diferenciada:
O REFLEXO DE MORO OU REFLEXO DE SUSTO: é uma movimentação
que ocorre com a extensão e abdução dos braços e dos dedos da criança
seguido por uma flexão do braço. Normalmente é ativado por sons intensos ou
por determinadas movimentações. Na paralisia cerebral ocorre de forma
intensificada mediante qualquer estímulo, dependendo do caso.
O REFLEXO TÔNICO CERVICAL ASSIMÉTRICO (RTCA): é uma resposta
proprioceptiva originada nos músculos do pescoço, ligamentos e articulações da
coluna cervical. A expressão deste reflexo se dá por um movimento do indivíduo
que permanecerá com a cabeça voltada para um lado com elevação e flexão do
membro superior e inferior oposto ao da lateralização da cabeça. O RTCA pode
impedir a criança de segurar o objeto enquanto olha para ele, não pode levar o
dedo à boca porque só pode dobrar o cotovelo quando a cabeça está virada para
21
22
o lado oposto do braço. (Bobath, 1979).
O REFLEXO TÔNICO CERVICAL SIMÉTRICO (RTCS): é uma resposta
também da musculatura do pescoço, do qual o levantamento da cabeça produz
um aumento da hipertonia extensora nos braços e da hipertonia flexora nas
pernas. O Abaixamento da cabeça produz o efeito ao contrário. (Bobath, 1979)
Observa-se desta forma, que a criança e o jovem com paralisia cerebral, ao
desejar mover-se, na tentativa de andar ou pegar um simples um objeto, fazem-
no de forma desordenada e diferenciada das outras crianças. O que deve ficar
evidente na paralisia cerebral são as dificuldades típicas que a criança terá,
expressas por algumas características descritas no documento Saberes e práticas
da Inclusão: Dificuldades de comunicação e sinalização, deficiência física (2006,
p. 18):
alterações no desempenho motor ao andar ao usar as mãos para
comer,ao escrever, ao se equilibrar, ao olhar ou qualquer outra atividade que exija
controle do corpo e coordenação motora adequada, assim como
comprometimento das funções neurovegetativas (sucção, mastigação e
deglutição).
De uma forma geral, o desenvolvimento global da criança com paralisia
cerebral será mais lento em todos os aspectos se comparando ao das outras
crianças. Sua dificuldade em movimentar-se gerará conseqüências em explorar o
ambiente, em se relacionar, em se comunicar, entre outras.
1.3.2. As adaptações para a criança com paralisia cerebral
Segundo o manual publicado pelo MEC Saberes e Práticas da inclusão:
deficiências múltiplas (Brasil. MEC, 2004), a inclusão de crianças com múltiplas
deficiências na educação regular não depende do grau de severidade da
deficiência ou do nível de seu desempenho intelectual, mas da possibilidade de
interação, acolhida, socialização, adaptação do indivíduo ao grupo e,
principalmente, da modificação da escola para atendê-lo.
Este manual se propõe auxiliar de forma compartilhada os programas de
formação inicial e/ou continuada de professores da educação infantil para
inclusão escolar destas crianças, detalhando a linha de ação proposta pelos
documentos que determinam a política de inclusão.
22
23
Inicialmente, nele se considera que, para a inclusão escolar se efetivar,
deve ser assegurado o acesso aos serviços educacionais que são disponíveis na
sociedade pelas crianças com deficiência, o mais cedo possível, mesmo aquelas
com problemas mais severos no desenvolvimento, sob pena delas serem
prejudicadas em suas possibilidades de desenvolvimento pela falta de uma
estimulação precoce adequada.
Incluir, esclarecem, não significa apenas inserir crianças no contexto de
sala de aula, adaptar objetivos ou atividades ou até mesmo dar mais tempo para
que a criança consiga aprender; inclusão requer modificações de atitudes e de
estruturas das escolas, bem como comportamentos como flexibilidade, tolerância,
compreensão das necessidades emocionais, adaptação de currículos.
No caso das crianças com deficiências físicas, além de todas as condições
acima, o documento considera como essenciais adaptações de mobiliário para
execução das atividades, a disponibilidade de jogos pedagógicos e materiais
específicos, além de recursos tecnológicos que favoreçam a interação, a
comunicação e a aprendizagem.
Segundo o documento, as crianças com múltipla deficiência apresentam
dificuldades acentuadas de aprendizagem e não se desenvolvem ou aprendem
espontaneamente como as demais crianças. Elas necessitam de uma escola que
tenha como foco a qualidade e a equidade. Isso se manifesta pela eficiência nas
estratégias de comunicação e instrução, no suporte tecnológico capaz de
minimizar as desvantagens e, principalmente, nas formas diferenciadas de avaliar
e intervir no planejamento individual e coletivo.(p. 21)
As adaptações recomendadas envolvem três aspectos: mobilidade,
comunicação e adaptação individual.
QUANTO AO ASPECTO DA MOBILIDADE
A ausência de marcha é um fator determinante na classificação da paralisia
cerebral grave, portanto, em termos de adaptação temos que considerar que
mudanças tanto do meio físico como de equipamentos individuais são de extrema
importância para que a inserção no universo da escola transforme-se em uma
inclusão efetiva.
Outro manual publicado pelo MEC, que se volta especificamente para a
deficiência física (Brasil. MEC, 2003), com relação às adaptações, recomenda
23
24
que a escola busque adaptações que garantam o acesso e a permanência da
criança com paralisia cerebral, eliminando barreiras arquitetônicas, efetuando
adaptações do edifício como criação de rampas de acesso, instalação de barras
de apoio e alargamento das portas, bem como pisos antiderrapantes e banheiros
adaptados.
Para a criança é necessário um mobiliário como mesa e cadeira, os quais a
criança possa se sentar de maneira que seu corpo fique reto, seus braços
apoiados e alinhados, afastados do corpo, suas mãos devem estar na frente dos
olhos para que se favoreça a execução da atividade escolar. O corpo da criança
deve estar alinhado e seu peso igualmente distribuído nos dois lados do corpo, e
ainda é necessária a cadeira de posicionamento (tem por função, entre outras,
manter seu corpo reto e encostado diminuindo os movimentos reflexos que a
criança com paralisia cerebral apresenta para que possa estar mais bem
posicionada para a aprendizagem) como nos mostra a figura:
Figura 1
QUANTO AO ASPECTO DA COMUNICAÇÃO
As crianças com paralisia cerebral, como já dito, apresentam dificuldades
significativas na expressão oral e na escrita devido aos comprometimentos
motores, o que exige adaptações. Quando a comunicação através da fala não é
possível, é necessária a comunicação alternativa ou ampliada, termo utilizado
para designar outras formas de comunicação que são diferentes da fala. Elas
podem ser expressas por gestos, línguas de sinais, expressões faciais ou
sistemas gráficos que podem ser dispostos pelo uso de pranchas com símbolos
24
25
pictográficos e ou alfabetos, ou até mesmo pelo uso de softwares de
computadores. No caso da paralisia cerebral, os mais indicados, geralmente, são
os sistemas gráficos devido às dificuldades motoras, pois eles permitem a
comunicação apenas com pequenos gestos de apontar.
Existem vários sistemas gráficos diferentes e com logísticas próprias
(Fernandes, 2007). Fazem parte desses símbolos fotos, desenhos de alta
iconicidade, desenhos abstratos e o alfabeto. Essas imagens correspondem a
ações, objetos, pessoas e conceitos que são necessários à comunicação e são
organizados de forma semântica.
Os mais utilizados são os chamados PCS (Pictogram Ideogram
Communication Symbols), PCI (Pictogram Ideogram Communication Symbols)
e Bliss.
O PCS são sinais que, na sua maioria, caracterizam-se por
desenhos lineares e pictográficos incluindo fotos, figuras, palavras escritas
ou a combinação delas.
Figura 2
25
26
Figura 3
Mãe Casa Dormir Feliz
O PCI é um sistema basicamente pictográfico. Os símbolos
são constituídos por desenhos estilizados em branco sobre um fundo preto.
São fáceis de serem visualizados e reconhecidos, porém são menos
versáteis e mais limitados, pois os símbolos não são combináveis.
Figura 4
Mãe Comer Caminhão
O Bliss é um sistema desenvolvido por Charles Bliss em 1965
e consta de uma composição de formas chamadas de elementos
simbólicos ideográficos que seguem um sistema lógico. Esses elementos
básicos são usados em várias combinações para representar milhares de
significados. Esses símbolos podem ser de quatro tipos: pictográficos, que
são desenhos que se parecem com aquilo que se deseja simbolizar; os
arbitrários, que não têm relação pictográfica com aquilo que se deseja
simbolizar; os ideográficos, que simbolizam a idéia de uma determinada
coisa, criam uma associação gráfica entre os símbolos e o conceito que
26
27
apresenta; e os compostos que são símbolos que são agrupados para
representar objetos ou idéias:
Figura 5
+ =
Mulher
Proteção
Mãe
Todos estes sistemas podem ou não estar associados a uma prancha de
alfabeto, dependendo da capacidade e do estágio de aprendizagem de cada
criança.
Os sistemas de códigos que usualmente são utilizados apresentam um
melhor desempenho quando associados a sistemas informatizados, pois ampliam
e agilizam as possibilidades comunicativas. Esta é a forma sugerida pelo
Ministério da Educação (Brasil. MEC,2004) que nos aponta que os equipamentos
eletrônicos podem ser operados por sistemas diretos de teclado, mouse
adaptado, tela sensível ao toque ou de forma indireta pelo movimento corporal,
como por exemplo, através de um olhar, do sopro, do piscar de olhos ou por
varredura automática. Este documento nos mostra que acionadores eletrônicos
têm função de realizar movimentos, indicações e seleções pela escolha ou ação
da criança, pois podem ser acionados por qualquer parte do corpo que tenha uma
melhor função como, por exemplo, pé, braço, punho, cabeça. Esses
equipamentos auxiliam na comunicação e possibilitam independência e
autonomia na execução das atividades pedagógicas.
O documento esclarece, ainda, que há inúmeras pesquisas sendo
realizadas para desenvolver programas brasileiros a fim de atender criança com
deficiências motoras graves e dificuldade de comunicação. Capovilla (1998) cita
em pesquisas que desenvolveu sistemas computadorizados de habilitação
cognitiva, comunicação pictográfica, alfabetização e escrita alfabética, para
crianças com alterações neurosensoriais e neurolingüísticas, que permitem
compor mensagens, imprimi-las e fazê-las soar com voz digitalizada para
27
28
comunicação direta ou indireta com seus interlocutores.
1.3.3. As possibilidades/impossibilidades de inserção social do
paralítico cerebral
Este trabalho tem como uma de suas bases a perspectiva que considera
que a constituição do ser humano está determinada pelo meio coletivo desde o
momento em que a criança nasce. Vygotsky (1984, p. 33) nos mostra que,
inicialmente, as funções cognitivas se desenvolvem num plano interpessoal, isto
porque é a partir do momento que a criança experimenta ações, que são
partilhadas pelas experiências dos outros, que ela constrói suas significações: o
caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa pelo outro.
Para ele, qualquer significado interiorizado por uma criança foi vivido
primeiro no plano social, portanto, o que cada criança internaliza é a sua
percepção ditada pela realidade sócio-cultural: desde os primeiros dias do
desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um significado próprio num
sistema de comportamento social (Vygotsky, 1984, p.33).
O principal objetivo deste autor é mostrar que a construção da sociedade, a
história do ser humano, não está à mercê da ordem da natureza. O ser humano
interfere na sua construção. Assim, as conseqüências sociais que podemos
observar em um indivíduo com deficiência estão diretamente ligadas às suas
condições orgânicas, de um lado, e às interações determinadas por seu entorno
social, de outro.
É neste sentido que, no caso das crianças que apresentam "defeitos",
Vygotsky assume uma posição original em relação ao quanto o agravo deste
"defeito" cumpre papel no processo de desenvolvimento da criança e na formação
da sua personalidade.
Dois pontos são importantes. De um lado o defeito gera uma condição de
inferioridade, de limitação, de debilidade, ou seja, há uma diminuição do
desenvolvimento; por outro, certas dificuldades podem acarretar um avanço
elevado e intensificado de outras funções, ou seja, todo defeito cria os estímulos
para elaborar uma compensação (Vygotsky, 1983, p. 14). É assim, por exemplo,
no caso de uma pessoa cega: se a falta de visão lhe impõem limites, o
desenvolvimento de outras capacidades, como o tato, podem compensar um
defeito.
28
29
Porém, afirma o autor, nem todo defeito gera uma compensação. Se
abandonássemos um deficiente à própria sorte, os processos biológicos de
formação e acumulação não se transformariam em força motriz para o
desenvolvimento.
A ação do defeito não gera de forma espontânea uma compensação, ela é
resultado secundário. As conseqüências diretas dos defeitos são resultados da
posição social das crianças. Assim, o defeito se realiza como desvio social. Em
última instância, quem decide o destino da pessoa não é o defeito, mas sim as
conseqüências sociais que ele causa.
Toda criança com defeito é uma criança deficiente, entretanto o agravo ou
não deste defeito será, ou não, compensado pelo meio social e ele propõe dois
conceitos para explicar essa construção: defeito primário e defeito secundário.
(Vygotsky, 1983).
O defeito primário tem caráter biológico: a perda de visão, de audição,
deficiências motoras entre outras. O defeito secundário são as conseqüências no
desenvolvimento da criança, que são resultado do defeito primário mas,
principalmente, pela falta de condições como uma adequada educação precoce.
Vygotsky considera a linguagem o elemento essencial para o
desenvolvimento humano, pois é através dela que a criança poderá organizar
seus pensamentos, estabelecer relações entre suas produções e o meio e
adquirir a função simbólica. No caso das crianças com paralisia cerebral, a fala,
manifestação motora da linguagem, está parcial ou, no geral, totalmente
prejudicada, porém isto não equivale a dizer que esse prejuízo motor impeça o
desenvolvimento cognitivo desses sujeitos.
Para as crianças que, por algum motivo de ordem biológica, como a
paralisia cerebral, apresentam alteração orgânica e não desenvolvem a fala, o
conceito de “compensação” proposto por Vygotsky (1989) auxilia a compreender
quais as conseqüências da paralisia cerebral em seu meio. O autor esclarece que
a deficiência gera um impacto no seu meio social, porém, conforme se configuram
as mediações que o indivíduo estabelece com o meio físico e social, poderão ser
acionados sentimentos que geram uma força motriz capaz de desenvolver um
mecanismo compensatório que influencia as funções psicológicas superiores.
Quando pensamos em linguagem, função fundamental para o
desenvolvimento do indivíduo, não podemos nos cingir somente à fala, embora
esta seja a forma usual de comunicação entre os homens. A função simbólica
29
30
expressada pela fala pode ser substituída por qualquer sistema simbólico que
realize a mediação entre o homem e o meio social.
Diante deste princípio, para sujeitos que possuem graves alterações
motoras, como os paralíticos cerebrais, têm sido muito utilizadas adaptações de
sistema lingüístico, através de códigos pictográficos, detalhados no tópico
anterior, que auxiliam o desenvolvimento das funções superiores.
Os códigos pictográficos utilizados como forma de comunicação alternativa
ou ampliada têm como base dois princípios:
9 primeiro, como não faz parte de um sistema lingüístico natural
das pessoas que cercam a criança com paralisia cerebral, é preciso ser
aprendido enquanto sistema, como código; e
9 segundo, na medida em que a linguagem é desenvolvida pelo
meio que a criança vive, o desenvolvimento desse sistema alternativo
está diretamente relacionado com a experiência sociocultural da criança:
a natureza do próprio desenvolvimento se transforma, do biológico para o sócio-
histórico. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e
inata, mas é determinado por um processo histórico cultural e tem propriedades e
leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de
pensamento e fala. (Vygotsky, 2000, p. 63)
O contexto social é fator determinante para o desenvolvimento do indivíduo
no seu papel de interlocutor, pois a aquisição de linguagem é adquirida no meio
social e este determina a constituição do sujeito falante. Isto significa dizer que a
construção do indivíduo dentro da nossa sociedade, com as tecnologias que são
possíveis de serem oferecidas aos paralíticos cerebrais, pode ser superada por
formas alternativas que compensarão suas dificuldades, superando o limite que
as conseqüências da deficiência impõem a estes sujeitos.
As conseqüências da paralisia cerebral causadas pelos seus aspectos
motores criam a necessidade absoluta de adaptações nas suas atividades de vida
diária, das mais cotidianas, como escovar os dentes e se alimentar, até as mais
diferenciadas, como pegar o lápis e utilizar códigos gráficos para substituir os
grafemas na escrita.
Esta visibilidade irreversível de seus comportamentos motores “estranhos”
gera comportamentos variáveis nas pessoas que com elas se defrontam, que
podem ser sentimentos de superproteção, de estranheza e de rejeição, entre
30
31
outros. Esses comportamentos expressam a imagem social e a representação
que a comunidade tem dessas crianças.
Assim, no caso das crianças com paralisia cerebral, o corpo retrata a
deficiência e todas as manifestações corporais acabam por gerar uma expectativa
negativa nos familiares e nas pessoas que se deparam com elas. Estas
expectativas, como já dito, advêm da construção do imaginário social da
diferença.
De fato, essas crianças têm traços muito peculiares, porém o peso que
essas diferenças terão na interpretação da família é fruto de um conjunto de
fatores que só podem ser analisados dentro do contexto social. Sendo assim, a
forma como os familiares irão se relacionar com a criança, desde o nascimento,
merece ser analisada dentro de um contexto social, pois as expectativas que as
mães terão em relação aos seus filhos estão diretamente relacionadas a esses
fatores.
Um dos conceitos que auxilia entendermos essas expectativas é definido
por Goffman (1982). Em princípio, criado pelos gregos, o termo estigma refere-se
a sinais corporais que evidenciam algo extraordinário ou algum mal sobre o status
moral do indivíduo que o apresenta. Goffman (1982) afirma que este conceito é
ainda hoje aplicado com a ressalva de que atualmente refere-se mais a uma
desgraça do que propriamente a uma evidência corporal e a uma referência a um
atributo profundamente depreciativo.
O imaginário de desgraça é estabelecido na sociedade pelo oposto do que
consideramos comum e natural, resultado do que cada sociedade estabelece
para diferenciar atributos e estereótipos. Desta forma, um atributo negativo
determina a normalidade do outro e leva o indivíduo portador deste atributo ao
descrédito. As abominações do corpo (p.14), as várias deformidades físicas,
geram estigmas nítidos que impõem a atenção sobre os outros atributos
destruindo as possibilidades dos outros traços. Este indivíduo possui um estigma
que é uma característica da sua diferença e afirma no outro os atributos do
normal.
As relações sociais criam identidades sobre nós e sobre os indivíduos que
apresentam um determinado estigma, assim, quando nos deparamos com uma
pessoa, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e seus
atributos e definirmos sua identidade social virtual (p.12), baseados em pré-
concepções que transformamos em expectativas normativas. A relação perante o
31
32
estigmatizado mudará quando provar atributos e categorias que possa possuir,
impondo, assim, sua identidade social real (p.12).
Entre a identidade social virtual e a identidade social real há uma relação
perante esses sujeitos que determinam nossos comportamentos e atitudes. Vale
destacar que, no caso do paralítico cerebral, para que haja uma mudança na
relação perante o estigmatizado, de tal forma que possa provar seus atributos e
categorias é necessário que sejam oferecidas condições tecnológicas, como as
adaptações propostas pelos documentos já citados, bem como pela literatura.
Somente desta forma é que a identidade social real poderá ser visível ao outro,
pois, em um primeiro momento, apenas o atributo do estigma está visível.
Este mesmo autor nos fornece uma discussão bastante ilustrativa sobre o
contexto social com que a criança com paralisia cerebral está envolvida desde o
momento em que nasce, pelo conceito de desacreditado.
O desacreditado é um indivíduo que nas relações sociais poderia ser
recebido facilmente, mas que, por possuir determinado traço, impõe a atenção a
este destruindo a possibilidade de atenção a seus outros atributos. Esta
característica, um estigma, é diferente do que havíamos previsto. As atitudes que
nós “normais”
1
empreendemos em relação a uma pessoa estigmatizada mostram
que acreditamos que alguém “com um estigma não seja completamente humano”
(p.15).
Criamos teorias que provam a inferioridade do desacreditado, além disto,
este sujeito representa para nós um ser que inferimos outros descréditos além da
imperfeição original como é o caso do comportamento do indivíduo que grita com
um cego que escuta, pois há uma gama enorme de crenças ligadas ao
estereótipo.
Sendo a expressão corporal relevante sobre a informação social que o
indivíduo transmitirá, o sujeito com paralisia cerebral apresenta sinais congênitos
que o marcam dentro da nossa sociedade com o estigma de incapaz. Incapaz não
apenas pelo seu aspecto motor, mas desacreditado de qualquer possibilidade.
É interessante o exemplo citado pelo autor do relato de uma pessoa cega,
cujos atos mais comuns, como colocar ervilhas no prato, deixam de ser comuns e,
caso o cego as desempenhe com destreza e segurança, essas ações causam
1
Goffman define como normal: “nós e os que não se afastam negativamente das expectativas
particulares em questão” (p. 14)
32
33
nas pessoas uma certa admiração do mesmo tipo daquela inspirada por "um
mágico que tira coelhos da cartola" (p. 24). Essa admiração é a afirmação da
incapacidade que o estigmatizado carrega.
O paralítico cerebral tem seu estigma imediatamente visível ao entrar em
contato com os outros, ou seja, oferece na expressão corporal a instrusibilidade.
(p.57). Esta marca gerará interferência no fluxo da interação. Este autor cita o
exemplo da feiúra que desenvolve nas situações sociais um efeito primário que
ameaça o prazer desta relação. Nas crianças com paralisia cerebral, seu “estilo”
contorcido gerará deformidades em sua aparência que não passarão
desapercebidas na interação e gerarão uma interferência bastante significativa
nas relações sociais desde o momento do seu nascimento. Assim, a visibilidade
de um de seus atributos, a manifestação motora, pressupõe a formação da
identidade social virtual do indivíduo como desacreditado.
Outro conceito que pode ajudar a entender estas manifestações é o do
preconceito, tal como, apresenta Crochik (1997), ao se referir ao preconceito
construído dentro de um processo de socialização, pois, para ele, a identificação
preconceituosa que uma família pode ter com o filho deficiente é um
comportamento que se relaciona com estereótipos que foram determinados
dentro da sociedade. Admitindo-se que as condições sociais são determinadas
por relações desiguais, de apropriação concentrada dos bens materiais e
simbólicos, o preconceito torna-se elemento presente:
Como tanto o processo de se tornar indivíduo, que envolve a socialização,
quanto o do desenvolvimento da cultura têm se dado em função da adaptação à
luta pela sobrevivência, o preconceito surge como resposta aos conflitos nessa
luta. (Crochik, 1995, p.11)
O preconceituoso, por se fechar dogmaticamente, é impedido de ter
conhecimento sobre o objeto do preconceito, o que nos faria pensar de outra
forma e levaria-nos a uma mudança de comportamento. E as mudanças que
podem ser alcançadas nesta relação advêm do contrário que cria o preconceito.
Ou seja,
o agir sem reflexão, de forma aparentemente imediata perante alguém,
marca o preconceito, que sendo, a priori, uma reação congelada, assemelha-se à
reação de paralisia momentânea que temos frente a um perigo real ou imaginário. A
reação presente naquele que porta o preconceito pode ser denominada de
mimética, que consiste em fingir-se de morto frente ao objeto que gera estranheza.
(Crochik, 1997, p. 14)
33
34
O fato é que, diante do estigmatizado, lembranças que se quer negar são
evocadas e, mesmo em momentos em que se pode conviver, a inconveniência de
parecer identificado com o outro torna o contato incompatível. Esse sentimento
ambíguo determina o afastamento, impede o contato pelo medo de que com a
identificação sejamos analogamente humilhados.
É a dificuldade que a sociedade tem em lidar com o diferente, com o que
não é conhecido, transformando-o em inferioridade, desigualdade e exclusão. O
preconceito, então, cumpre com a função social devida, de construir o que não
está dentro do padrão como algo culpado por males e inseguranças daqueles que
são iguais.
1.3.4. As representações sobre crianças com paralisia cerebral
As manifestações motoras exacerbadas de crianças com paralisia cerebral
grave fazem com que elas não tenham qualquer condição de, em qualquer
ambiente, passarem desapercebidas, diferentemente de outras deficiências, como
a surdez e a cegueira. Estas manifestações acabam por provocar não só em
leigos, mas até em profissionais da saúde, uma reação peculiar, qual seja, a de
percepção desses sujeitos somente por essas manifestações, o que tem sido
objeto de alguns estudos.
É nesse sentido que Melo & Martins (2004, p. 80), ao analisarem o que
pensa a comunidade escolar sobre os alunos com paralisia cerebral, observam
um discurso que remete à incapacidade cognitiva destas crianças, relacionada
aos seus aspectos motores. Na grande maioria dos discursos obtidos nas
entrevistas, o aspecto visual gerado pelo quadro motor ficou em evidência, além
da comparação com a condição de normalidade. Na análise dos resultados das
entrevistas há quase sempre, um cotejamento com o comportamento considerado
normal, como afirma uma diretora da escola: “que ela não é normal como os
demais, não anda direito, mas ela entende”. Nesse sentido, concluem que valores
culturais definem o indivíduo como normal, e padrões de beleza e estética
determinam a normalidade, caracterizando o desvio, a diferença, a deficiência(:-
del) O correto são dois pontos.
Assim sendo a partir do momento que o aluno com paralisia cerebral
apresenta uma limitação ou um modo diferente de se expressar com o corpo,
34
35
fugindo da norma esperada, passa a ser visto como diferente. Com isso, ao trazer
no corpo esta diferença que se configura como uma marca, este passa a ser
estigmatizado por não corresponder às normas estabelecidas. (Melo & Martins,
2004, p.81)
Estes autores mostram que o estigma da deficiência contribui para a
discriminação e citam Manzini (1989) que, por meio do depoimento de uma mãe
de criança com paralisia cerebral, mostra que diretores e professores das escolas
regulares públicas negaram-se a realizar matrícula dessas crianças baseados
apenas no aspecto visual, desconsiderando, inclusive, avaliação de profissionais
especializados.
Também puderam constatar que a ausência de informações e
conhecimentos mais aprofundado sobre a paralisia cerebral é bastante notória e
não há uma conceituação visível pelos professores e diretores das escolas
envolvidas sobre quais são as necessidades educacionais dessas crianças. Os
autores consideram, ainda que investimentos na formação inicial de educadores
nos cursos superiores devem ser priorizados como meta para atingir os objetivos
propostos pela educação inclusiva e garantir um ensino de qualidade a esses
alunos.
Em outro estudo, Gomes e Barbosa (2006), analisando as atitudes de
professores do ensino fundamental sobre a inclusão do portador de paralisia
cerebral, e tendo como pressuposto básico que essas atitudes em relação a estes
alunos representam um importante fator de sucesso para a educação inclusiva,
constataram que a maioria dos professores consideram que a falta de formação
específica é responsável pelas maiores dificuldades na inclusão escolar dessas
crianças e que as aparências físicas, como o ato de babar e possuir um olhar
desagradável, ou o déficit motor muito visível não representavam uma influência
negativa para o processo de inclusão. Segundo autor, 67,40% dos professores
consideram a socialização do paralítico cerebral como a principal contribuição que
a escola inclusiva pode oferecer, o que, de um modo geral, demonstra que essa
ação é vista pelos professores muito mais como "humanitária" do que
propriamente educacional.
Martins, Mendes e Silva (2004), procurando compreender as necessidades
e expectativas dos pais de alunos severamente prejudicados em uma escola
especial, verificaram que 70% dos entrevistados apresentam uma “preocupação
excessiva” com relação à saúde da criança, justificada pelo fato dela apresentar
uma necessidade especial evidente.
35
36
Outra autora envolvida com o tema, Andretto (2001), em seu estudo sobre
os impactos iniciais da inclusão de crianças deficientes no ensino regular,
constatou que as dificuldades motoras interferem de forma significativa no
imaginário de todos ao redor da criança com paralisia cerebral, reafirmando a sua
condição de desacreditada. Sua análise mostra que seus colegas normais e até
mesmo a professora tendem a interagir com ela como se fosse uma pessoa sem
potencialidades, mas que, através do processo de inclusão, pode haver uma
melhora:
O simples fato de manter convívio mais freqüente com Edson parece ser
um elemento significativo para um aprimoramento quase que espontâneo das
formas como as pessoas ao seu redor lidam com suas dificuldades. É o que
aconteceu, por exemplo, com a professora que, atualmente, não o pega mais no
colo, como fazia inicialmente, para colocá-lo na cadeira: com o tempo de convívio
ela pode perceber que Edson é capaz de trocar passos e leva-o apoiando-o pelas
axilas até a cadeira de rodas. (Andretto, 2001, p. 75
)
Mazzillo (2004, p. 8), em sua investigação sobre o conhecimento dos
professores a respeito da patologia paralisia cerebral e das capacidades que os
alunos acometidos por estas deficiências possuem, relata que, embora a inclusão
esteja sendo vista como um avanço nas questões pedagógicas, como um modelo
que direciona a uma educação que "deve ou deveria" valorizar a diversidade das
manifestações humanas, nenhum dos professores entrevistados tinha
conhecimento preciso das dificuldades da PC e este desconhecimento muitas
vezes fazia com que estes profissionais não conseguissem avançar em suas
práticas na sala de aula, além de fazer com que com que atitudes dos alunos
com paralisia cerebral fossem interpretadas como deficiente mental.
Como se vê, as manifestações motoras exacerbadas e bizarras de crianças
com paralisia cerebral grave impedem que elas possam, de alguma forma, deixar
de manifestá-las em qualquer ambiente e, por este motivo, acabam por ser
desacreditadas em aspectos que, muitas vezes, não lhes trazem prejuízo, o que
as tornam pessoas constante e continuamente “desacreditadas”, na acepção de
Goffman (1982).
Segundo Bourdieu (1998, p.47), as expectativas dos pais em relação ao
destino social de seus filhos são fortemente marcadas por experiências diretas ou
mediadas pelas estatísticas intuitivas de derrotas ou de êxitos parciais de crianças
do seu meio.
Referindo-se às expectativas das famílias de estratos sociais baixos, a
36
37
metáfora - por ele utilizada na expressão “isto não é para nós” - tem dois sentidos:
se, por um lado, expressa que os indivíduos se reconhecem incapazes (ou que
seus filhos também o sejam) de atingir determinados objetivos (altos níveis de
escolaridade, de trabalho, etc.), por outro, a mesma expressão também indica
uma interdição produzida socialmente para eles.
Isto é, as experiências concretas vividas pelas famílias, como expressões
de estratos sociais comuns, bem como o que ele chama de “estatísticas intuitivas
de sucessos e fracassos vividos”, vão conformando as expectativas sociais e
escolares que elas possuem em relação a seus filhos.
Assim é que, famílias com capital cultural e econômico mais elevado vão
tendo experiências educacionais com seus filhos (assim como vêm aquelas de
seus pares de estratos sociais) cujos resultados vão possibilitando uma
perspectiva elevada de escolarização e de destino social; ao contrário, famílias de
capital cultural e econômico mais baixo se vergam ao rebaixamento dessa
perspectiva.
Se aceitamos isto em relação às famílias de crianças normais, podemos
estendê-lo às famílias de crianças deficientes.
Isto é, sem negar que as marcas de uma deficiência como a paralisia
cerebral grave (evidentes, visíveis, bizarras, estranhas), por si, já são algo a
produzir rebaixamentos de expectativas nos pais, a argumentação acima nos leva
a assumir o seguinte ponto de partida: as condições concretas de vida, de
possibilidades de busca de formas para detecção, explicitação e minimização das
conseqüências geradas pela deficiência dos filhos devem gerar diferentes
expectativas nas famílias dessas crianças.
Assim, é na intersecção das contribuições de Goffman, Crochik e Bourdieu
que este trabalho pretende analisar como se constituem as expectativas das
mães de crianças com paralisia cerebral atendidas por instituição especializada,
frente à recomendação de inclusão escolar de seus filhos, como expressão de
uma concepção de deficiência e de suas potencialidades construída em suas
relações sociais concretas.
1.3.5. As instituições e as expectativas dos pais
A relação que os familiares de crianças com déficits motores graves
estabelecem com as instituições apresentam um movimento dúbio determinado
37
38
pelas características próprias destes sujeitos que geraram a necessidade de um
atendimento específico, ao mesmo tempo em que levaram a encerrá-los nessas
instituições, o único local de relacionamento, acolhimento e convívio na nossa
sociedade.
Este fato pode ser analisado dentro da perspectiva dos sujeitos sociais e
suas mobilizações envolvidas neste contexto, pois revelam as expectativas que
têm da própria deficiência. Estes sujeitos, ou seja, tanto os familiares quanto os
profissionais envolvidos, seja da área da saúde ou da educação, são
responsáveis por determinarem o conceito de deficiência.
Essa população, marcada por sua deficiência, tem na escola especial um
espaço dentro do meio social, já que, naquela época, passaram a se constituir
como o único espaço disponível para ela.
No Brasil, a trajetória de atendimento de crianças deficientes surgiu com a
criação dos institutos imperiais para surdos e para cegos, no início da segunda
metade do século XIX, mantendo sua forma hegemônica até os anos 30 do
século XX. (Bueno, 2004, p. 108)
A partir deles, muitas outras instituições especiais, com regime de internato
foram se disseminando pelo país, se estendendo para outras deficiências com as
mentais e físicas.
No decorrer do século XX, estas instituições de internação foram perdendo
espaço, substituídas por instituições especializadas de freqüência diária (sem
internato) e por classes especiais, constituindo-se estas últimas a forma mais
disseminada de educação especial após a segunda metade deste século.
Na verdade, essa perda de espaço não foi homogênea em todas as áreas
das deficiências. Enquanto as instituições especializadas e as classes especiais
para cegos foram sendo substituídas pela inserção desses sujeitos no ensino
regular, em outras a manutenção de sistemas segregados de ensino manteve-se.
Uma das características marcantes de nossa história da educação especial
foi o surgimento e disseminação de instituições especializadas, de cunho
filantrópico, especialmente no que se refere ao atendimento clínico e educacional
para deficientes mentais (como as APAEs
2
e as Sociedades Pestalozzi), e para
deficientes físicos de origem neurológica (como a AACD, o Lar Escola São
Francisco, a Cruz Verde, a Rede Sara, entre outras), embora também tenham se
estendido para outras deficiências, mas com menos vigor. Tanto é assim que hoje
2
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.
38
39
a Federação Nacional das APAEs congrega mais de 2.000 instituições
distribuídas por todas as unidades da federação.
Atualmente, as formas de instituição como internatos são raras, embora
ainda existam e configurem-se de forma bastante diferenciada, como por exemplo
o caso da instituição em que atuei por muitos anos, na qual permanece o sistema
de internação, mas que mantém outros setores de atendimento em regime
ambulatorial.
Essas instituições têm recebido, nos últimos anos, críticas acerbas a
respeito de seu caráter segregacionista, e que redundaram nas novas políticas
oficiais que pregam a inclusão de alunos deficientes na rede regular de ensino.
Sem desconsiderar esse caráter, o que observo em minha prática, é que,
no caso específico da paralisia cerebral grave, essas instituições são, antes de
qualquer coisa, um lugar de acolhimento de pais que se encontram muito
angustiados frente à gravidade da condição de seus filhos.
Por outro lado, dada a grande visibilidade dos prejuízos motores de seus
filhos, esse pais nem pensam em procurar alguma espécie de atendimento
regular, como por exemplo a inclusão em creches, porque sua experiência de vida
demonstra que lá não serão aceitos: se nas creches conhecidas, esses pais
nunca viram um PC grave, é natural que eles infiram que este não é o espaço
para seus filhos deficientes.
Dessa forma, costumam recorrer a essas instituições desde muito cedo, e
começam a estabelecer relações com os profissionais que lá atuam e com outros
pais nas mesmas condições que vão se constituindo numa rede de relações
sociais importantes para eles.
Assim, é através da permanência nessas instituições, que as famílias
conversam entre si sobre as dificuldades encontradas na aceitação de seus filhos
pela sociedade, nas dificuldades financeiras, na ausência de apoio dos recursos
básicos necessários por parte dos serviços públicos estatais, tais como remédios,
adaptações necessárias para melhor qualidade de vida, entre outros.
Na relação com os profissionais, sentem-se acolhidos pela atenção dada a
seus filhos que são praticamente rejeitados por todos (inclusive pelo Estado), e
que passam a receber atendimento especializado (fisioterápico, fonoaudiológico,
etc) que, segundo os profissionais que aí atuam, devem minimizar as
manifestações da deficiência.
Assim, apesar de todas as críticas que essas instituições recebem, o fato
39
40
concreto e que, para a maioria dos pais de crianças com paralisia cerebral grave,
elas foram a única possibilidade de encaminhamento para o atendimento clínico
de seus filhos. E, na medida em que lá passaram a receber algum tipo de
atendimento especializado, que puderam receber orientação constante sobre os
problemas de seus filhos e de como tratá-los, que puderam estabelecer contatos
com outros pais com filhos nas mesmas condições, essas instituições passaram a
ser uma das referências de suas vidas.
Nesse sentido, parece bastante razoável que estes pais apresentem
resistência a um possível encaminhamento de seus filhos para uma escola que,
para eles, não está preparada para recebê-los.
Por outro lado, toda a argumentação acima me leva a apontar que as
expectativas das famílias frente à escolarização de seus filhos é pautada pelas
dificuldades geradas pela paralisia cerebral, mas com nuances significativas
dependendo das condições objetivas que foram sendo construídas para a
minimização dessas mesma dificuldades.
E foram exatamente esses dois aspectos, o da diferenciação de
expectativas e o da resistência à inclusão de seus filhos no ensino regular que
procurei investigar na presente pesquisa.
40
41
CAPÍTULO 2
CONDIÇÕES DE VIDA E EXPECTATIVAS DE MÃES FRENTE A
ESCOLARIZAÇÃO DE SUAS FILHAS COM PARALISIA CEREBRAL
2.1. Procedimentos de pesquisa
Para atender aos objetivos desta investigação que pretendeu analisar as
expectativas de duas mães que têm filhas com paralisia cerebral, tendo como
fundamento a perspectiva teórica oferecida por Bourdieu (1998.) de que as
condições objetivas de vida, as estatísticas intuitivas de sucessos e fracassos de
si próprias e de seus filhos são cruciais para a construção das expectativas, dos
quais, utilizei entrevistas como procedimento de coleta de dados, realizadas no
segundo semestre de 2006.
2.1.1. As entrevistas
Antes de relatar os cuidados que procurei ter na realização das entrevistas,
cabe descrever sucintamente as formas com que a instituição atua no campo da
reabilitação, na medida em procurei fazer com que a familiaridade pela minha
atuação nela durante muitos anos pudesse contribuir para minimizar a distância
entre pesquisador e pesquisado (Bourdieu, 2003), devendo ficar claro, desde já,
que nunca atuei como terapeuta de nenhuma das duas filhas, mas conhecia as
mães pelas passagens pelos corredores da instituição.
Assim, para melhor compreender a relação que estabeleci com estas
mães, cabe uma breve descrição do trabalho realizado por essa instituição
privada filantrópica.
O atendimento oferecido é ambulatorial, por diversas modalidades
(fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia e hidroterapia). As famílias, quando
iniciam o tratamento, são informadas de que receberão orientações de como lidar
41
42
com seus filhos, realizadas em cada encontro. São sugestões dentro de cada
área, dadas aos responsáveis, com a finalidade de contribuir e facilitar o cotidiano
de seus filhos, bem como proporcionar condições ao desenvolvimento da criança,
minimizando, dentro do possível, as seqüelas causadas pela paralisia cerebral.
Seus filhos são atendidos em salas individuais, nas quais as mães ficam
durante as terapias em alguns casos e, em outros, aguardam na sala de espera.
O uso do uniforme dá destaque aos profissionais que são identificados muitas
vezes como doutores, pelo imaginário construído sobre os “homens de branco“.
Cada profissional estabelece com essas famílias uma relação que pode ser
mais ou menos determinante neste imaginário, e o envolvimento pessoal varia,
mas sempre com razoável distância.
No meu caso, e de alguns profissionais, sempre procurei manter uma
relação mais estreita, por acreditar que o fortalecimento do vínculo favorece a
evolução da terapia. Nos momentos de atendimento sempre procurei acolher os
familiares em todas as suas dificuldades, que são muitas, seja de ordem
emocional, como a dor de não ver seu filho evoluir ou os momentos de tristeza
quando comparam seus filhos com as demais crianças, seja de ordem prática,
como obter remédios, consultas, acesso aos equipamentos para as adaptações
que minimizam as seqüelas motoras, entre outras, no geral, bastante difíceis de
se conseguir.
No decorrer dos atendimentos, as mães são bastante questionadas a
respeito de seus filhos, como por exemplo as ocorrências da semana, as
possíveis intercorrências clínicas, os passeios realizados, as brincadeiras com
irmãos ou com vizinhos. O detalhamento a respeito de vida desta criança é
cotidiano, pois considera-se que, por meio deles pode-se oferecer orientações às
famílias sobre como proporcionar a criança uma interação social, sobre como
levá-las para passear, sanar suas dúvidas sobre como utilizar os equipamentos
que são indicados, entre outros.
Apesar da busca por relações mais estreitas, o simples fato de sermos
profissionais especializados faz com que a relação que se estabeleça seja de
hierarquia de conhecimento, na qual nós terapeutas temos um saber a ser
ensinado.
As mães entrevistadas, mesmo não sendo minhas pacientes, conheciam-
me de dentro da instituição e, de uma forma ou de outra, carregavam esta relação
dentro do seu imaginário.
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Ao iniciar a entrevista, tive como base que, em toda interrogação científica,
deve-se tentar minimizar qualquer forma de violência simbólica, porém, distorções
estão inscritas na própria estrutura da relação de pesquisa. Estas distorções
devem ser reconhecidas e dominadas. Ou pelo menos devemos tentar dominá-
las. Para tanto, seguindo as orientações de Bourdieu (2003), somente uma
reflexidade reflexa, ou seja, um trabalho com um olhar sociológico, permite
perceber e controlar, no campo, a própria condução da entrevista, e os efeitos da
estrutura social na qual ela se realiza. Entender, desta forma, qual o papel que
ocupo dentro desta instituição foi bastante trabalhado e procurei reduzir as
distorções, sob a condição de medir a amplitude entre a natureza da pesquisa e a
interpretação do pesquisado, tentando sempre compreender o que pode ser dito e
o que não pode ser dito, as censuras que poderiam impedir de dizer certas coisas
e as incitações que encorajam a acentuar outras.
Dentro desta pesquisa, procurei minimizar esses efeitos inicialmente por
um contato em que procurei criar um ambiente o mais distenso possível,
oferecendo informações de que era uma pesquisa que não tinha relação com a
instituição, para um trabalho que estava sendo realizando fora e da necessidade
que tinha em obter dados sobre o início da vida de suas filhas, contando como as
pessoas reagiram, como haviam chegado até a instituição e sobre suas
experiências em relação à escolarização . Meu objetivo foi, acima de tudo, de
ampliar a familiaridade que já tinha com elas e de tentar esclarecer o sentido para
o pesquisado da situação, da pesquisa em geral.
Bourdieu (2003) pontua que quem inicia o jogo da pesquisa e estabelece
as regras é o pesquisador que, de uma maneira unilateral e sem negociações
prévias, determina o objetivo, muitas vezes não entendido pelo pesquisado,
situação que denomina como dissimetria, especialmente quando o pesquisador
ocupa uma posição superior ao pesquisado, principalmente pela hierarquia do
capital cultural.
Para minimizar essa dissimetria, tive o cuidado, desde o início da pesquisa,
em primeiro lugar de estabelecer uma negociação prévia, na qual expliquei e
sanei todas as dúvidas sobre a pesquisa.
Quanto à linguagem utilizada, Bourdieu (2003, p. 695) nos adverte que
o mercado dos bens lingüísticos e simbólicos que se institui por ocasião da
entrevista varia em sua estrutura segundo a relação objetiva entre o pesquisador e
o pesquisado ou, o que dá no mesmo, entre todos os tipos de capitais, em
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particular os lingüísticos, dos quais estão dotados.
Neste sentido, cabe ressaltar que, mesmo anteriormente a esta pesquisa, o
cuidado com a linguagem sempre esteve presente nas terapias devido a
importância em dizer as palavras adequadas, para que não se deixasse o outro
constrangido; assim, palavras muito técnicas sempre foram detalhadas para que
houvesse efetiva compreensão das famílias sobre as orientações.
Este sempre foi um trabalho incessante durante todos estes anos, por
sempre ter consciência que ele é acima de tudo determinante na relação. Sem
querer falsear a distância social que nos separa, o princípio básico que procurei
seguir nas as terapias e, em especial, nas entrevistas, foi o de me colocar no
lugar do outro.
Diante dos cuidados indicados por Bourdieu (2003), busquei efetivar nas
entrevistas uma escuta ativa e metódica, que procurasse não se situar nem na
não-intervenção da entrevista não dirigida, nem no dirigismo absoluto do
questionário, embora consciente de que esta é uma postura nada fácil de ser
colocada em prática.
De fato, ninguém
está livre do efeito de imposição que as perguntas ingenuamente egocêntricas ou,
simplesmente desatentas podem exercer e, sobretudo livre do efeito contrário que
as respostas assim extorquidas podem produzir no analista, sempre disposto a
levar a sério, na sua interpretação, um artefato que ele mesmo produziu sem o
saber. (Bourdieu, 2003, p. 696 )
Busquei assegurar um dos principais requisitos propostos por Bourdieu
(2003, p. 697), a familiaridade, que auxilia em uma comunicação não violenta,
pois isso facilitaria um acordo imediato e continuamente confirmado sobre os
pressupostos concernentes aos conteúdos às formas da comunicação. Nesse
sentido, procurei selecionar sujeitos para a entrevista que já haviam estabelecido
alguma relação comigo, dentro da instituição, mesmo que seus filhos não
tivessem sido meus pacientes.
Mas procurei levar em consideração a advertência de que as categorias
sociais que podem ser atingidas pelas condições otimizadas de familiaridade têm
seus limites. Não é possível recorrermos a estratégias de representar papéis,
compor identidades de um pesquisado, ocupando uma posição social
determinada para fazer falsas diligências de aquisição ou de procura de
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informação.
Outra situação sobre a qual nos alerta Bourdieu (2003) é que a
familiaridade pode ter suas complicações se há uma tendência na relação entre
pesquisador e pesquisado de se tornarem sócios. Desse modo, tudo seria natural,
e nada poderia ser dito porque nada foi questionado de fato. Nesse sentido,
procurei incentivar o pesquisado mostrando que boa parte do que perguntava eu
já sabia, mas que ele poderia me contar melhor como foi.
Assim, procurando atender a todos esses requisitos cumprimos a seguinte
sistemática:
Mãe da Carla: foram realizadas duas entrevistas dentro da própria
instituição em uma sala que foi disponibilizada para esse fim. Esta sala é utilizada
como um espaço lúdico para o atendimento aos pacientes, sendo composta
apenas por um colchão no chão, não possuindo mesas nem cadeiras. Tanto eu
como a mãe da Carla nos acomodamos neste espaço. O tempo total das duas
entrevistas foi de três horas e meia.
Mãe da Camila: foram realizadas três entrevistas, também dentro da
própria instituição, na mesma sala utilizada nas entrevistas com a mãe de Carla.
O tempo total das entrevistas foi de quatro horas.
As entrevistas foram realizadas em dias da semana diferentes. As mães,
embora freqüentem a mesma instituição, não se conhecem, pois não a
freqüentam nos mesmos dias.
2.1.2. Caracterização dos sujeitos
Para a coleta de dados, restringi-me a somente duas mães, que se
constituíram nos sujeitos de minha pesquisa com base nos seguintes critérios:
1 a família deveria ter um filho com paralisia cerebral;
2 o filho deveria realizar atendimento terapêutico em uma
instituição privada de cunho filantrópico;
3 seus filhos deveriam já ter alguma experiência de
escolarização, quer seja em escolas regulares, quer em classes ou
escolas especiais;
4 possuírem condições econômicas, sociais e culturais
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diferenciadas.
A escolha pelas mães foi determinada exatamente porque, em geral, são
elas as responsáveis pela educação doméstica de seus filhos, sendo que, em
minha experiência prática, de nove anos na instituição, são raros os pais que
assumiam a responsabilidade de acompanhamento de seus filhos para
atendimento. Em alguns casos, o pai é presente na família, porém, geralmente,
responsável por cuidar do seu sustento e não tem a mesma disponibilidade da
mãe que, no geral, param de trabalhar para se dedicar de forma exclusiva à
educação e aos cuidados do filho que exigem grande disponibilidade e dedicação.
No caso das duas mães selecionadas, o próprio relato nos mostra como
são elas que assumem os cuidados maiores com as filhas, embora ambos os pais
estejam presentes, mas com a atenção voltada para o sustento da família,
cabendo a elas as maiores responsabilidades:
MÃE: eram muitos papéis que me davam e eu sozinha, meu marido não ia
comigo. Uma vez ele foi comigo para tirar sangue, para ver o negócio do DNA,
essas coisas né. Mas uma vez só. (mãe da Carla)
PESQUISADORA: Porque foi preciso?
MÃE: sim, até para cá (para a instituição que a Carla faz tratamento), ele
veio uma vez só, então só em todos os lugares que eu caminhava tinha que ir
descobrir o endereço, até que a Carla tirou várias fotos do pezinho na genética.
(mãe da Carla)
MÃE: meu marido trabalha muito, saí cedo, nem volta relativamente tarde, mas
ele está sempre muito cansado e ele não mede nenhum esforço para fazer tudo o que ela
quer. (mãe da Camila)
MÃE: vou marcar para ir sozinha. O Ismael fica com a Camila, vou converso com
a escola vejo se está tudo bem e só depois é que todos iriam. (mãe da Camila)
Assim, embora houvesse o desejo e o interesse de seus depoimentos por
considerá-los de grande importância, não houve disponibilidade destes sujeitos,
mesmo quando manifestei o interesse em entrevistá-los.
Foram selecionadas duas mães de filhos com paralisia cerebral, que
realizam atendimento terapêutico de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia
ocupacional em uma instituição especializada, de cunho filantrópico assistencial,
mas que possuem condições diferenciadas tanto do ponto de vista econômico
quanto sócio-cultural.
O principal ponto em comum destas mães é que, na trajetória pela busca
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do desenvolvimento de suas filhas, ambas apresentaram enorme disposição em
buscar o melhor caminho para a educação e para estimular o desenvolvimento
das crianças. Entretanto, apesar de toda esta dedicação, possuem situação
diferenciada de acesso a bens materiais e culturais no que diz respeito ao
desenvolvimento de suas filhas.
Para se compreender a real situação dessas mães, a disponibilidade que
precisam ter para responderem às necessidades de suas filhas, cabe, aqui, um
relato sucinto sobre as principais características das meninas, resultantes do
quadro de paralisia cerebral que apresentam, bem como alguns dados iniciais
sobre as próprias famílias.
CARLA
Carla é uma menina que, quando da realização da pesquisa, tinha 8 anos
de idade. No seu aspecto motor, tem o diagnóstico de tetraplegia, ou seja,
apresenta alteração nos quatro membros, com distonia, o que quer dizer que a
musculatura ora está tensa, ora hipotônica, o que ocasiona um descontrole e
dificuldade em realizar todos os movimentos, chegando mesmo a impossibilidade
de alguns deles.
Há dificuldade, por exemplo, no andar que necessita ser auxiliado. Carla é
capaz de permanecer em pé, mas tem de ser amparada por alguém. Como ainda
é pequena, esta é uma tarefa que a mãe consegue realizar. Este fato auxilia a
locomoção, pois a mãe não necessita de cadeira de rodas para se mover com a
filha, mas, quando é necessário uma maior agilidade, como por exemplo andar
mais rápido para pegar um ônibus, a mãe tem que carregá-la no colo. Quando
inicia a deambulação auxiliada, apresenta um movimento desordenado de
membros superiores e inferiores, que caracterizo como desengonçado.
As conseqüências da alteração dos membros superiores refletem-se
principalmente nas atividades que exigem maior destreza manual. O movimento
de pinça, responsável por pegar um lápis ou coordenar de forma satisfatória os
talheres para comer, exige um esforço muito grande que necessita de auxílio.
Neste caso, adaptações, como por exemplo, o uso de órteses para possibilitar
maior firmeza na movimentação, ou materiais adaptados, como por exemplo um
engrossador de lápis, (uma espécie de borracha que deixa o lápis mais grosso e
permite melhor apreensão) são fundamentais para que haja condições de
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escrever. Caso contrário, necessita ser auxiliada por outra pessoa a todo instante.
Como a prancha de adaptação para as folhas tem um custo elevado, a indicação
é prender a folha de papel com durex na própria mesa, porém esta adaptação
exige um tempo maior para a troca de cada folha que geralmente rasga quando é
retirada.
Quando come, apresenta alteração significativa se compararmos com as
crianças "normais", assim, quando a mãe oferece alimentos a ela na frente de
outras pessoas o fato causa estranheza.
Utiliza óculos e apresenta um estrabismo visível a todos que a olham. É
uma criança bastante sorridente e cativante, quando quer. Não procura interação
com pessoas que não conhece, porém, quando um estranho brinca com ela,
geralmente reage com "cara de carinho".
Como conseqüência da alteração motora distônica, sua fala é bastante
prejudicada, o que dificulta a interação com outras pessoas. É necessário,
algumas vezes, que Carla repita o que quer, o que exige do interlocutor uma
disposição para tentar compreendê-la. Demonstra compreender situações
concretas, mas apresenta dificuldade de compreensão em situações mais
elaboradas. Como o discurso está truncado, só é capaz de compreender por
outras formas de comunicação que auxiliam a compreensão do que ela quer.
Uma dessas formas é a comunicação alternativa que, no caso da Carla, está
sendo introduzido por uma prancha com figuras concretas. Ainda não foi
estimulada a utilizar as figuras mais abstratas, pois esta forma necessita de um
trabalho em conjunto com o apoio pedagógico. Esta forma alternativa permite a
elaboração de um discurso mais rápido e a compreensão do outro e, por
conseguinte, propicia que ela elabore, de forma mais adequada, uma reposta,
pois oferece maior gama de possibilidades e amplia contextos discursivos.
Além disso, apresenta, em razão de seu quadro de paralisia cerebral, "peito
em pombo", que caracteriza uma deformidade bastante visível a qualquer um.
Sua família tem condições econômicas bastante limitadas e sócio-culturais
também reduzidas.
O pai exerce a ocupação de jardineiro, é o único provedor econômico da
família, pois a mãe não pode trabalhar devido aos cuidados que a filha necessita.
A mãe da Carla se define como uma pessoa bastante introvertida, tem
algumas dificuldades em tomar iniciativas, como por exemplo quando ela estava
aguardando o resultado em uma instituição para a qual havia sido encaminhada e
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solicitou que uma cunhada entrasse em contato para verificar o resultado.
Quanto à escolarização, a mãe freqüentou até terceira série e o pai até a
quarta série no local onde moravam, em uma cidade pequena no interior da
região nordeste do País.
Moram em uma casa com três cômodos (um quarto, uma cozinha e um
banheiro), situada na região periférica da cidade, na zona oeste de São Paulo, no
mesmo quintal que a avó paterna.
Carla nunca foi minha paciente, porém já fui chamada pela profissional
responsável para discutir o caso no que se refere à escolarização. Neste
momento, Carla tinha idade para freqüentar o último ano da creche. Como
apresentava evolução no seu aspecto de linguagem (compreendia o que
chamamos de ordens simples) e iniciava função simbólica, ficou determinado que
a sugestão para a família seria a de inseri-la em uma escola regular de ensino.
Antes de iniciar as entrevistas, expliquei que ela não tinha relação com a
aquela instituição específica, que era para meu mestrado, ou seja, para uma
pesquisa que estava realizando. A mãe não me conhecia até o momento da
entrevista e fui apresentada pela fonoaudióloga da Carla, mas a mãe já havia me
visto algumas vezes passando pela recepção.
DADOS OBJETIVOS
Data de nascimento: 31/01/1999
Profissão do Pai: jardineiro
Profissão da Mãe: dona de casa
CAMILA
Camila é uma menina de 12 anos de idade, que também apresenta, em
seu aspecto motor, um quadro de tetraplegia, ou seja, alteração nos quatro
membros, porém os membros inferiores são mais afetados do que os superiores.
Isso significa dizer que, para locomoção é totalmente dependente de cadeiras de
rodas. Camila demorou para sustentar o tronco, sendo necessária uma cadeira
adaptada. Camila é capaz de realizar certas atividades que exijam função manual,
por exemplo, consegue se alimentar de forma independente, porém, na
movimentação que exija maior destreza, como o movimento de pinça necessário
para escrever, não é capaz de realizar sem o auxilio de adaptações ou ajuda de
outra pessoa. Para isso sua família teve acesso ao engrossador de lápis e a sua
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cadeira adaptada tem as adequadas modificações que são necessárias para
manter a folha de papel posicionada, a fim de evitar que, quando for desenhar,
saia do lugar. Este equipamento é composto por uma prancha que prende a folha
que necessita ser trocada a cada nova atividade, mas a adaptação é de fácil
manuseio.
Apresenta uma fala com alterações na movimentação, porém sua
dificuldade maior reside na elaboração do discurso. Para se fazer entender, utiliza
gestos, aponta figuras ou utiliza como estratégia usar outras palavras que sejam
de maior facilidade na sua elaboração. Em um diálogo, o interlocutor, na maioria
das vezes, compreende a palavra que ela quis dizer, porém não compreende a
mensagem. Geralmente a mãe ou a babá explicam aos outros o que ela quis
dizer.
Camila é uma criança bastante agitada e receptiva às outras pessoas.
Quando vê alguém, chama, tenta pegar na pessoa até que receba atenção.
Nestes momentos brinca, dá um sorriso, mas logo está interessada por outra
situação ou pessoa.
A família nuclear tem uma condição econômica relativamente restrita, mas
conta com apoio dos avôs maternos, bem como da comunidade judaica a qual
pertencem.
O pai de Camila trabalha como empregado em uma loja, tendo estudado
até o segundo grau em uma escola judaica e, após isto, cursou a faculdade de
economia. O avó de Camila, assim como seus tios, possui uma grande
quantidade de bens materiais, comerciantes de lojas de médio porte. O avô
não auxilia diretamente o filho do ponto de vista financeiro, mas possibilitou que
ele estudasse em boas escolas.
A mãe da Camila concluiu o segundo grau, também em uma escola
judaica, e se formou em uma faculdade de administração. Atualmente não
trabalha, pois, após o nascimento da Camila, optou por cuidar apenas da sua
filha. Antes de ser mãe, auxiliava seus pais que tinham um pequeno comércio no
bairro do Bom Retiro. O comércio não garantiu aos avós de Camila um acúmulo
de capital muito grande, porém, hoje aposentados, vivem de forma cômoda.
Possuem um apartamento no bairro do Itaim, em São Paulo, auxiliam a filha
pagando seu plano de saúde e também o da neta, bem como ajudam em algumas
despesas diárias.
DADOS OBJETIVOS
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Data de nascimento: 24/05/1998
Profissão do Pai: comerciário
Profissão da Mãe: dona de casa
2.2. A construção social das expectativas das mães
O foco principal de análise desta pesquisa será pautado na trajetória que
as mães realizaram com as filhas para que as dificuldades impostas pela
deficiência fossem superadas dentro do possível.
Um ponto muito importante a ser considerado é a disposição que ambas
tiveram para atuar e percorrer os caminhos necessários para oferecer às filhas
condições de se desenvolverem.
As duas mães têm condições sócio-econômicas diferenciadas e ambas
comportaram-se de forma muito semelhante desde do início, buscando, de
alguma forma, a superação das barreiras por meio de uma persistência absoluta.
Para analisar os dados colhidos nas entrevistas efetuei, inicialmente, a
transcrição integral de todas as entrevistas.
Assim, conforme indica Bardin (2004) após uma leitura flutuante para
organizar o material colhido, criei, a partir dos próprios dados, os eixos abaixo
relacionados no intuito de produzir análises da relação entre as situações vividas
e as expectativas das mães:
A COMPREENSÃO DA DEFICIÊNCIA;
AS CONDIÇÕES DE VIDA;
A DESCOBERTA PELA FAMÍLIA;
A BUSCA DE ENCAMINHAMENTOS;
AS EXPERIÊNCIAS DE ESCOLARIZAÇÃO; e
A FASE ATUAL DE ESCOLARIZAÇÃO.
2.2.1. A compreensão da deficiência
A expectativa das mães em relação a suas filhas deficientes passa por um
ponto fundamental e determinado nas relações sociais que é a compreensão da
deficiência. As vivências que as mães terão para compreender as dificuldades
passam por situações que aproximam as duas mães de uma mesma marca, dada
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pela condição da deficiência. Não se pode, no entanto, dizer que essas trajetórias
tenham um resultado final equivalente, diante de certas condições impostas pelos
diferentes acessos sociais.
Um dos pontos que as aproximam e são vivenciadas por ambas diz
respeito ao entendimento que terão sobre suas filhas, e que tem um impacto
inicial a partir do momento que há uma marca que não atende a padrões pré-
estabelecidos, que na nossa sociedade são pautados no paradigma da saúde que
determina as condições normais que um indivíduo deve ter. Um dos principais
indicadores para estabelecermos o padrão de normalidade, uma lógica já
inculcada no nosso imaginário e podendo ser percebida por qualquer leigo, é o da
idade cronológica:
MÃE: as pessoas até falavam para mim, quantos dias ela tem? Ela não
tinha dias, ela tinha um ano já. As pessoas ficavam até meio bobas achando que
eu estava mentindo para elas. (mãe da Carla)
MÃE: e a Camila, eu até me lembro disto, porque no aniversário de um
ano, ela ainda não sustentava a cabeça ainda, eu não me lembrava disto, depois
vendo as fotos, eu vi que ela estava com o “pescoçinho” bem molinho. (Mãe da
Camila)
Isto é, as filhas possuíam marcas visíveis, impossíveis de não serem
expostas desde o primeiro contato, o que foi se configurando como um estigma,
uma marca negativa, que foi assumindo, por essas reações como “a característica
fundamental” da identidade de suas filhas (Cf. Goffman, 1988):
PESQUISADORA: E o que você dizia para elas?
MÃE: Ah! Elas falavam assim, que bonitinha. Quantos anos ela tem? Eu
falava, um aninho. E elas falavam, puxa, mas criança de um ano já era para estar
andando e até falando. (Mãe da Carla)
MÃE: Porque assim, nasceram várias crianças com a idade da Carla E
sempre tinha uma vizinha lá que levava a netinha dela na casa da minha sogra
que mora perto de casa. Ela tinha um pequenininho de um aninho que já era
durinho, e ela até brincava. Eu falava, Carla olha só seu amiguinho, olha como ele
fica durinho. Essa vizinha levantava ele de bruço para ver e ele gostava, mas a
Carla não. Aí eu ficava, será que ela está fazendo isso para incentivar, ou será
que está tirando saro, sei lá. Eu ficava meia naquela. Porque ela levava ele e
sempre brincava assim, mas eu ficava na minha. Ela dizia: Ah! Porque ela não faz
isso.? Eu falava: não sei, deve ser porque tem alguma coisa. (Mãe da Carla)
MÃE: (...) É uma coisa, assim, que para qualquer pessoa que você fala,
que não tem uma criança especial, nem me lembro o dia que meu filho sustentou
o pescoço, mas isso era uma coisa extremamente importante para a gente, foi
uma COISA quando a gente percebeu que ela levantava, conseguia virar a
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cabeça sozinha e tudo mais. Foi praticamente uma festa quando a gente soube
(...) (Mãe da Camila)
Essa marca passou a ser interpretada como aquela que caracterizava as
suas filhas, na comparação com outros indivíduos, pois se uma criança com a
mesma idade era capaz de realizar determinadas ações, o fato de suas filhas não
serem capaz de ter a mesma realização foi criando nos imaginários das mães de
que elas não seriam capazes de realizar nenhuma outra ação. A marca visível,
nessa situação, passa a ser um estigma, do qual, o portador sempre será
distinguido por ser desacreditado de qualquer possibilidade.
As pessoas ao se depararem com o sujeito que tem uma deficiência, com o
indivíduo que não fala direito, que tem alterações motoras visíveis, apresentam
comportamentos que revelam questões abrangentes do imaginário que fazem
desses sujeitos e estabelecem um relacionamento que está marcado por idéias
pré-concebidas e generalizadas. Assim, embora a deficiência traga uma
dificuldade em um ponto, como por exemplo, o aspecto motor, o relacionamento
que as outras pessoas estabelecem fica determinado por deixarem de acreditar
em qualquer outra capacidade que esse sujeito possa ter, que vai muito além do
aspecto motor. Este fato pode ser observado em várias situações, como por
exemplo, no caso da mãe da Camila, que ao descrever o comportamento de
pessoas comuns ao se depararem com Camila, agem como se ela não fosse
capaz de responder a qualquer pergunta que fosse significativa.
MÃE: Eu também percebo, às vezes, que sabe que ela é uma criança
especial e ao invés de perguntar as coisas para ela, perguntam para mim. A
Camila está lá tagarelando com a pessoa. É no shopping, no parque, e começam
a conversar, aí tem pessoas que param e perguntam, quantos anos ela tem?
“Pergunta para ela, ta falando com ela já....” Perguntam se ela vai à escola, enfim
falam com ela amenidades, acham, claro que ela tem uma atraso neurofisiológico,
mental, tudo isso dá para perceber; uma criança de oito anos normalmente tem
outras atitudes que ela não tem , mas percebo muito nas pessoas, ao invés de
fazer a pergunta para ela e aí se ela não responde, perguntam para mim. A
maioria das pessoas tratam ela diferente. Coisa que eu consegui, eu acho que
mimo demais ela, até a psicóloga comentou em relação a isso, você não acha
que cuida demais, não por ela ser especial, se fosse uma criança normal trataria
do mesmo jeito. (Mãe da Camila)
É interessante a observação da própria mãe, perguntam a ela amenidades,
mas, quando o assunto é sério, ainda que seja uma pergunta corriqueira como se
a própria Camila vai a escola, as pessoas desacreditam de sua capacidade para
respondê-la. A marca da visibilidade no corpo dessas crianças chama a atenção
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54
de uma forma generalizada pelos adultos:
MÃE:
Meu marido tinha percebido que o tórax dela era alto (Mãe da Carla)
MÃE: Esta tia dele que falou quando a criança tem estrabismo o mais
provável é que a criança tenha problema de saúde (Mãe da Carla)
E também por crianças de idade próxima que não reconhecem algumas
características:
MÃE: As crianças perguntavam, ela é deste tamanhozinho? Eu respondia,
porque ela está crescendo devagar, tem que ter paciência. Eles perguntavam,
você leva ela no médico para poder andar? Eu falava, levo, por isso que eu falto.
Nos dias em que eu falto, é para levar a Carla no médico para poder andar, correr
igual a vocês, conversar, fazer a lição sozinha. (mãe da Carla)
Essa marca configura o sujeito, pois, as relações cotidianas que se
estabelecem com ele não deixam de passar por situações de um preconceito e
um descrédito. Ainda que a própria mãe não reconheça algumas dessas
características, outras pessoas apontaram:
MÃE: uma coisa que eu notei, eu até me espanto, às vezes, quando
algumas pessoas olham para mim para falar porque não entenderam. Sei que ela
fala meio enroladinho, mas só que para mim é tão perfeito que né! (...) (mãe da
Camila)
O que se pode perceber é que as marcas da deficiência estão presentes de
forma visível a qualquer um que entre em contato. No primeiro momento, como
nos mostra Goffman (1988) ao definir o estigma corpóreo, aquele que não atende
aos padrões pré-estabelecidos, faz com que o outro PROCURE ALGUMA
FORMA DE ajustá-lo ou normalizá-lo. Pede-se que ele se situe no mundo em
relação à norma mas, como isto não é possível, a identidade que se forma é
fragmentada e incompleta.
O mais importante nesse momento é deixar claro que a marca da
deficiência está presente e trás implicões em qualquer família. Negar essa
marca é negar que determinadas situações cotidianas que vão se constituindo e
se tornando marcantes na vida das pessoas, pois, as relações que se
estabelecem tem como ponto de partida essa visibilidade. É assim que as
situações cotidianas em que esse estigma está sempre presente, afetam não
apenas o deficiente, mas também toda a família que se vê envolvida, em
julgamento pela sociedade, para justificar essa condição:
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MÃE: ele vem falando assim, que o pessoal comenta como a Carla está,
se está fazendo tratamento, assim curiosidade das pessoas.
PESQUISADORA: Quais são essas curiosidades?
MÃE: porque que ela nasceu deste jeito, acabaram até tendo umas
besteiras lá, mas ele (meu marido) não levou em conta porque a genética já falou,
descartou, não tem nada haver por causa da bebida (por parte do marido), que a
bebida poderia ter influenciado o feto e de ter prejudicado. Mas, eu acho que não
tem nada a ver não. O pessoal comentava mesmo.
PESQUISADORA: alguma vez que falaram isto você estava junto?
MÃE: não, não estava, aliás, falaram para o irmão dele e o comentário se
espalhou, e ele veio falar para mim. Como pode uma pessoa falar uma coisa
destas, não sabe o aconteceu e fica falando por aí. Você sabe, né? A vizinhança
como é que é. (risos) (Mãe da Carla)
É interessante que as explicações para o estigma passam por várias
situações cotidianas para oferecer uma justificativa que dê conta de explicar o
porque certo indivíduo foge da norma. Ou ainda, uma tendência a explicar como
algo de horrível, uma justificativa como um castigo divino para tal situação:
MÃE: Ah! então, eles sabiam que a menina tem não é um problema, ela é
especial. Então ela sai direto para fazer tratamento. Sempre me vêem saindo e
eles dizem, aí coitadinha da Maria. “Toda vez eu vejo ela saindo, sai cedo e volta
à noite sempre coitada” e perguntam como ela está. Eu acho que não! Não tem
nada a ver, não é coitado. Deus me deu essa filha, agora a minha obrigação é
cuidar dela. Para mim não é esforço nenhum, é o maior prazer ajudar minha filha
a se desenvolver.
PESQUISADORA: eles falam que é esforço?
MÃE: eles falam que é sacrifício, tem alguns que até falam que uma cruz
que eu tenho e que estou carregando. Não estou carregando cruz nenhuma. Ela
é minha filha. Tanto poderia ter acontecido comigo como poderia ter acontecido
com eles. Essas pessoas que estão falando besteira que não sabem das coisas
né! Entendeu? (Mãe da Carla)
MÃE: Em relação à família, por exemplo, a minha mãe sempre foi uma
pessoa que me apoiou bastante, meus pais estavam lá todos os dias da UTI, dos
156 dias da UTI, meus pais não deixaram de ir nenhum dia. Meu pai foi uma
pessoa, que não que não me apoio nem nada, mas ele ficou muito revoltado. Nós
somos judeus, ele até teve uma vez que ele falou que não acreditava em Deus,
porque nós só acreditamos em Deus, não tem santo nem nada. Nós não somos
religiosos, mas temos uma fé que é Deus, Deus, e ele veio uma vez e falou que
não acreditava. (Mãe de Camila)
PESQUISADORA: Porque isto?
MÃE: Porque ele achava que eu não merecia. Nós somos em três filhas, eu sou a
mais velha, e sabe quando assim, ninguém diz, mas eu e meu pai temos uma
ligação muito grande, trabalhe com ele muito tempo, nós temos uma afinidade
muito grande eu e meu pai, acho que mais do que ele tem com meus outros
irmãos. Ele não acreditava que Deus pudesse ter mandado uma filha assim, eu
via que ele sentia pena, pena de mim, do meu marido, porque nós estávamos lá
no hospital. Teve épocas que ela estava muito grave, um julho ela nasceu em
maio, nós quase perdemos ela, porque ela estava em uma situação bem grave e
aí o sofrimento grande, não agüentava ver, porque era um sofrimento grande,
revoltado com Deus, e teve uma hora que eu falei, se Deus quiser, ele ficou muito
55
56
estressado, falou assim: se Deus quiser o que, não existe Deus. Eu falei o que
tiver que ser,será, vou aceitá-la como for. (mãe da Camila)
O estigma modifica a vida das pessoas, interferindo nas suas relações
sociais:
MÃE: a gente não tinha vontade de sair para longe, não tínhamos vontade
de sair, só na rua, às vezes as pessoas ficavam olhando, perguntando, então, a
gente não saía, às vezes é que ficávamos na rua mesmo, em casa de família
.
(Mãe da Carla)
Esses conflitos não se restringem ao meio social em geral, mas podem
envolver, inclusive, relações familiares, tal como relata a mãe de Camila:
MÃE: ele foi almoçar com o pai dele e começou a contar todo empolgado
os progressos da Camila e o pai dele virou para ele, foi a última vez que ele falou
com o pai dele, ele disse, mas porque você está tão feliz, sua filha é uma
retardada, sua filha é uma mongolóide, sabe aquelas expressões que se usavam
há um século atrás, pelo o que eu sei, pelo que me falaram seus irmãos, que se
informaram com os médicos. Ninguém nunca tinha visto a Camila, mas começa
aquele papo criança com paralisia cerebral, vai vegetar em uma cama, não vai se
mexer, não vai andar, não vai falar, ela era uma criança que no aniversário de um
ano, era um bebê de colo, o que você está tão feliz? Sabe o Ismael saiu de lá e
nunca mais teve contato com o pai. Foi a última vez que eles se falaram. Eu fico
imaginando pelo jeito que eles falou para o Ismael, que eu me informei, que seus
irmãos me informaram, que eu falei com outros médicos, o que deve ter falado do
que ia se transformar a Camila, com paralisia cerebral. Imagino o que deve ter
rolado naquela família de preconceito, de ignorância absurda. Eu fiquei muito
chateada. Eu não acho que ele mereça conhecer a minha filha, na verdade eu
fiquei chateada em relação ao Ismael, apesar de não ter um relacionamento
muito grande, você ouvir falar isso tudo de um pai em relação a sua filha, não
posso imaginar o que é isso, mas eu me conformo. (Mãe da Camila)
MÃE: Ele já chegou a encontrar, o pai dele tem uma casa grande no Bom
Retiro, já chegou a encontrar um tio, porque é sócio com mais dois irmãos, ele viu
de longe um dos tios que ele não falava mais desde a época que a Camila tinha
um aninho e o Ismael falou: “Não posso afirmar com certeza, mas, que a hora que
ele viu o meu marido, ele atravessou a rua”. Não pode afirmar com certeza
porque eles não trocaram olhares, mas o Ismael o viu e quando olhou de novo ele
atravessando a rua entrando em uma loja, em algum lugar, fingindo, para não
cruzar de repente, não ter que passar pelo constrangimento de ter que parar, ter
que perguntar. (mãe da Camila)
Sem dúvida, a marca da visibilidade da deficiência destas crianças constrói
uma realidade que gera uma marca negativa, que faz com que seu portador seja
usualmente distinguido pelo estigma do desacreditado.
Embora seja verdade que a marca está presente nas duas situações, as
possibilidades que foram se construindo dentro de cada uma das famílias tornam
essa marca diferenciada. Isto é, se em ambos os casos partem da condição
56
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impostas pela marca da deficiência, não se pode dizer que as trajetórias destas
duas crianças se constituíram de forma idêntica.
Este enfoque, sobre a construção social do imaginário dessas mães, tendo
em vista as formas diferenciadas que tiveram de relação com o meio social
(familiar, pessoal e de acesso aos serviços de saúde e de educação), vai se
constituir no núcleo central de análise dessa investigação.
2.2.2. As condições de vida
As condições de moradia como a sua localização, o acesso a meios de
transporte, a configuração urbanístico-arquitetônica do seu entorno, bem como a
sua própria estrutura física e elementos que a compõem implicam nas formas
pelas quais as famílias vão construindo suas trajetórias e essas condições
dependem das suas condições econômicas, sociais e culturais.
Na medida em que trazem essas implicações, vão construindo as formas
pelas quais os agentes sociais vão se configurando como tal, pois as condições
objetivas de vida não apenas favorecem ou prejudicam as atividades necessárias
à sua subsistência e inserção social, como são um dos parâmetros das suas
expectativas frente ao futuro dos seus integrantes. (Bourdieu, 1998)
Nesse sentido, vale a pena nos debruçarmos sobre as diferentes condições
de moradia que cada uma das famílias dos sujeitos apresentam.
Carla mora com sua mãe, pai e um irmão em uma casa com três cômodos
(um quarto, uma cozinha e um banheiro), situada na região periférica da cidade,
na zona oeste de São Paulo. Segundo a sua descrição, há um conjunto de casas
que formam uma espécie de ruela com acesso apenas por uma escada que dá
em direção a uma rua mais movimentada. Para se dirigir a qualquer lugar, a mãe
tem que subir as escadas com sua filha no colo.
MÃE: olha a gente mora assim, tipo uma rua. Tem uma escada, então, fica
difícil sair. Só quando é para comprar alguma coisa. A gente não sai muito na rua.
(mãe da Carla)
Carla quando era menor tinha um carrinho de bebê não adaptado, o que
não facilitava a sua mobilização, pois para sair de casa a mãe tinha sempre
que ser auxiliada, pois, não era possível carregar a filha e o carrinho juntos.
Atualmente Carla consegue andar pequenas distâncias, embora de forma
57
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bastante desordenada e com apoio, porém, não consegue de forma alguma
subir escadas o que significa que ainda necessita ser carregada.
Camila reside em um apartamento de dois dormitórios, com acesso pelo
elevador, em um bairro da zona sul de São Paulo, pertencente ao denominado
centro expandido da cidade. A mãe, também tem que carregar a filha no colo para
se locomover a qualquer lugar, porém, com o auxilio de uma cadeira de rodas fica
menos difícil a locomoção. Além do elevador que disponibiliza uma tranqüila saída
para rua, mora em um local que tem acesso por rampas. A mãe optou por essa
residência e não pensa em se mudar, pois, a comodidade que ela oferece em
relação a Camila é determinante.
A associação das estruturas espaciais do edifício em que mora, da
localização, das estruturas da rua, da localização e o acesso a uma cadeira de
rodas adaptada que facilita a mobilidade dentro e fora do apartamento, oferece
oportunidades diferentes que resultam em um convívio a diferentes locais, como
por exemplo, shopping center e a parques como a mãe da Camila nos mostra em
uma conversa com seus pais (avós maternos de Camila):
MÃE: eles (avós maternos de Camila) sempre falavam para eu sair. Ás
vezes eu via alguma coisa na revista, estava eu e o Ismael e víamos que era
legal. Vai, o shopping é aqui pertinho, quanto tempo para ir e voltar, 10 minutos
para ir. (mãe da Camila)
Essa possibilidade de acesso a outros ambientes tem uma dimensão
bastante diferenciada no caso dos dois sujeitos da pesquisa, pois, proporcionam
atitudes diferentes. A mãe da Carla deseja ficar em casa, pois, sair significa um
transtorno, a mãe da Camila está mais acessível a ambientes que proporcionem
relações sociais, como por exemplo:
MÃE: eu nunca fui ao supermercado e deixei a Camila em casa. Aí é que
está, as vezes eu converso com algumas mães que ficam reclamando, que não
agüentam mais, que eu tive que deixar com a vizinha, porque que horas eu vou
ao banco, ou então, que horas que vou fazer minha mão, meu pé, meu cabelo. Eu
não agüento essas pessoas. Viviane, a Camila tem oito anos, eu nunca precisei,
deixar ela. Sempre fiz tudo, sempre fui ao banco, sempre fui fazer a unha.
Quando podia ir no horário que ela estava na escola, tudo bem, caso ao contrário
ela ia comigo. Sempre levei a Camila para todos os lugares. (mãe da Camila)
No relato da mãe de Camila ela compara sua situação com a de outras
mães que não necessariamente tenham um filho com necessidades especiais,
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isso nos mostra uma disposição muito grande desta mãe em relação à filha,
porém, ao compararmos com a mãe da Carla, ela também tem muita uma grande
disposição, mas as condições de vida de cada uma são bastante diferenciadas.
Carla, mora no mesmo terreno que a avó paterna, com outras casas como,
por exemplo, a de outro tio. Essas casas estão dispostas uma do lado da outra e
o acesso só é possível por um longo corredor que faz a ligação entre elas. Esse
corredor é estreito e para entrar deve se seguir por uma rua bastante
movimentada de veículos, com uma calçada estreita e, ao chegar no local, ainda
tem que descer uma escada bastante estreita com vários degraus, cujo espaço
mal permite a passagem de uma cadeira de rodas. Não apenas a escada, mas
todo corredor não possui nenhum espaço mais largo ou mesmo algum tipo de
quintal em que as pessoas possam parar e conversar, portanto, não há
possibilidades físicas de convivência entre vizinhos. A única possibilidade física
das pessoas se encontrarem é na casa da avó paterna que fica no final do
corredor, mas que tem um espaço atrás da casa que permite reunir um número
reduzido de parentes, o qual, com espaço exíguo, ainda assim é o único local em
que os familiares podem se reunir nos finais de semana.
Essa localização constitui o espaço de convívio social muito desejado pela
criança, como relata a mãe:
MÃE: bem, ela só quer ir para lá, ela acorda e quer ir para lá, porque lá é
mais movimentado. Até a minha cunhada disse quando eu falei que não sabia
porque a Carla gostava tanto de ficar na casa da vó dela, e ela falou, vai ver que
é porque é mais movimentado, na sua casa só tem você e ela. Meu marido
acorda e vai para lá, o Cleber acorda e vai para lá, correm tudo para lá.
PESQUISADORA: e a Carla gosta de uma farra.
MÃE: é, ela escuta alguém e já quer ir para a casa da avó.
Essa proximidade com a casa da avó tem papel fundamental, pois, esta é
uma das poucas formas da Carla estabelecer alguma relação com outras pessoas
que não a sua mãe. As dificuldades que a própria localização da residência
impõem, dificultam que Carla encontre outros espaços para estabelecer outros
contextos sociais.
Outro fator importante, é que para Carla, como o local onde moram é de
difícil acesso, os passeios ficam reduzidos, pois para se locomover para outras
regiões da cidade, é necessário pegar um ônibus que vai até o centro, trajeto este
que demora em torno de uma hora. Depois é preciso pegar outro ônibus que a
leve para onde deseja. Quando questiono se há por perto um parque ou algum
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lugar que possam passear a mãe responde:
MÃE: não! Passeava sim. Nós íamos para a rua. Mais pela rua lá de casa.
(mãe da Carla)
Para Camila, suas possibilidades são diferenciadas, na medida em que a
localização de sua residência proporciona algumas situações que favorecem o
convívio social:
MÃE: quando ela era muito pequena e eu andava com ela no carrinho de
bebê e as vezes paravam para conversar, ela não falava nada, mas chamava a
atenção de todos (...) (Mãe de Camila)
A rua e a região em que a Camila mora possibilitam saídas para passeios e
neste convívio sempre têm outras pessoas envolvidas como os funcionários que
trabalham no prédio, os vizinhos que moram em outros apartamentos do edifício,
vizinhos que moram na mesma rua. Essas situações cotidianas proporcionam a
Camila um convívio social amplo.
Se a sua residência não chega a ser de luxo, o mesmo não pode ser dito
em relação à de seus pais, cujo apartamento é utilizado para grandes festas
familiares:
MÃE: as festas grandes são os casamentos judeus, aí realmente tem muita gente
da família, que, aliás, eu só vejo nestas datas. Nas festas, tem minhas primas, tem
a família do meu irmão e as irmãs dessa minha cunhada, tem os pais do marido da
minha prima que acabam vindo, geralmente em torno de 30 e 35 pessoas. É que
dentro de um apartamento parece que fica enorme, então normalmente reúne essa
quantidade de pessoas. (mãe da Camila)
Outro fator é que pela possibilidade de ter acesso a uma locomoção
através de carro próprio, algumas situações ficam mais fáceis. A mãe costuma
visitar alguns parentes que moram perto da residência dos pais, avós maternos
de Camila, bem como alguns desses parentes costumam ir até a casa da Camila
o que proporciona algumas relações bastante prazerosas, como contatos mais
constantes com membros da família extensa, mesmo que residindo em locais
distantes:
MÃE: Eu via às vezes, que a Camila se encontrava com a prima, porque
elas brincam muito na casa da minha mãe, elas almoçam lá duas vezes por
semana. (Mãe da Camila)
60
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Da mesma forma, a casa dos avós, que residem em um outro bairro,
mas que a condução própria facilita o acesso, proporciona algumas situações
bastante diversificadas em relação ao convívio familiar. Camila tem contato
com seus primos que freqüentam constantemente a casa dos avós e
estabelecem uma relação social bastante favorável:
MÃE: minha mãe e meu pai são avós no sentido mais legal da palavra
com os três netos. A Camila, um menino da minha irmã e a Gabi da minha irmã.
Eles brincam muito. A Camila é a mais velha, tem o menino de 8 e a Gabi tem 5,
então ela teve três anos para reinar sozinha, então era um mimo, um negócio.
Mas assim, eles sempre brincam, como a Camila não pode correr eles vão até a
Camila e colocam brinquedos para ela. Meus pais, eu percebo, ainda mais agora
que eles fecharam a loja, não estão mais trabalhando, eles viraram avós mesmo.
(mãe da Camila)
Além desta facilidade dentro da dinâmica social, o acesso a lugares
diferenciados como já citados lugares públicos (shopping centers, parques entre
outros) proporcionam contato com diferentes pessoas e conseqüentemente
relações sociais diferenciadas.
Essa mesma situação, de condições diferenciadas de habitação e acesso a
transportes que proporcionem maiores mobilidades ou não, se refletem em
relação aos tratamentos.
Para a Carla chegar até o local de tratamento, a “Instituição Triângulo“, que
se localiza em bairro situado na zona sul, na região de maior concentração de
atendimento aos deficientes da cidade, ela gasta em torno de três horas e tem
que pegar três conduções. Isso equivale a dizer que a mãe entra em um ônibus
com a filha, se acomoda, desce, pega o metrô, se acomoda, desce e pega outro
ônibus para chegar até o local. No geral, a mãe comenta que são ônibus
usualmente lotados e que não é sempre que as pessoas oferecem lugar para ela
sentar com a filha. O que significa que algumas vezes ela já realizou o trajeto com
a filha no colo e em pé.
Atualmente a mãe utiliza como condução para os tratamentos, um serviço
público municipal de transporte para pessoas com dificuldade de locomoção,
chamado “Atende“. Este serviço consta de um microônibus que busca a criança
na porta de casa e a leva até o local de tratamento. Uma vaga para este
atendimento só foi possível em 2006, apesar de Carla ter iniciado atendimento na
Instituição desde 2001. Outra situação é que o microônibus, devido à demanda,
deixa Carla uma hora antes do início das terapias e a busca três horas após o
61
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término. Este fato resulta em uma demanda de sete horas para que sejam
realizados os atendimentos à Carla
Já para Camila, como a família possui um carro que fica à disposição da
mãe de Camila para transportá-la para as várias situações e mora em uma região
de fácil acesso aos tratamentos o tempo gasto gira em torno de vinte minutos.
Este fato facilita a mobilização, mas não elimina as diferentes adaptações que são
necessárias por ela ter paralisia cerebral. Para o transporte dentro o carro é
necessário uma cadeira adaptada que mantenha a Camila posicionada. Para
colocá-la ou tirá-la do carro é necessário uma força bastante significativa. Com o
crescimento da criança, o aumento do peso, a mãe da Camila tem mais
dificuldade o que resultou na contratação de uma babá.
Essa proximidade da localização e de condução própria, o acesso às
adaptações necessárias e o auxílio de alguém que ajude, contribuem para que a
Camila realize os atendimentos, bem como, consiga conciliar a escola, que
freqüenta no período da manhã, e a reabilitação, cujas terapias são realizadas no
da tarde:
MÃE: por exemplo, meu horário com as terapias da Camila, é assim, ela
saí da escola 12:40 e entra para as terapias às 14h00s, então eu vou almoçar na
casa dos meus pais três vezes por semana desde que a Camila começou a
escola. Agora tem a Maria (babá), mas antes eu almoçava correndo, colocava a
Camila no sofá, escovava os dentes, ia ao banheiro, porque eu também vou. Só
que minha filha é muito agitada, ela não para quieta, quando a coloco no sofá, ela
vai descendo, escorregando e tinham que me chamar: - Mãe, a Camila está
escorregando! E teve um dia que meu pai tentou me ajudar, por conta própria,
resolveu ajeitar a Camila e levantar, sabe assim, quando sobe ela pelos ombros.
Ficou três dias de cama. (mãe da Camila)
As precárias condições de transporte de Carla prejudicam a conciliação
dessas duas atividades extremamente necessárias, conforme relato de sua mãe:
MÃE: eu até falei para a diretora da escola, até mostrei o cartão para ela,
que é no mesmo horário, porque é sempre às 11:00 horas e ela falou não você
está arranjando um jeito de fugir da escola de não trazer a Carla. (mãe da Carla)
Mesmo quando essas dificuldades são aceitas, como foi o caso de outra
escola freqüentada por Carla, acaba acarretando em seu prejuízo, pois teria que
faltar em algum deles
MÃE: é porque ia ocupar uma parte do meu tempo. Ás vezes eu ia estar
faltando nas terapias, nos médicos. Eu já falei para a escola que no dia que for
para eu ir nas terapias, nos médicos eu vou faltar, não tem problema? Ela falou,
62
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não a gente entende. Não tem problema, a gente entende você tem que faltar
sim. (mãe da Carla)
Portanto, como essas condições são encaradas como “naturais” pela mãe
de Carla, na medida em que para toda e qualquer situação são estas as
possibilidades disponibilizadas por uma sociedade que oferece boa qualidade de
vida somente para os estratos sociais mais elevados, a posição da mãe é de
resignação, apesar de reconhecer que ambos os atendimentos são importantes:
MÃE: isso, agora eu vejo que é essencial para a Carla ela não pode ficar
sem. Sem um nem o outro, tanto as terapias como a escola. Ela tem que ter
todos, tanto as terapias como a escola, não pode faltar. Sempre a gente tem que
dar um jeito, trazendo atestado, comprovando que faltou para ir há algum lugar.
Então é isso aí. (mãe da Carla)
Outra questão é a possibilidade de adaptação da própria residência às
necessidades das duas crianças que ocorrem de forma bastante diferenciada.
A mãe da Carla, dentro do espaço exíguo de sua moradia, não possui a
menor condição objetiva para fazer qualquer adaptação que favorecesse a sua
mobilidade, pelo menos dentro de casa.
A mãe da Camila, ao contrário, tem condições de adaptar sua moradia às
necessidades de sua filha:
MÃE: (...) ela tem cadeira de rodas adaptada para ela, minha casa é
transformada para ela, é óbvio que eu estou trabalhando para conseguir um dia
tirar todas essas coisas especiais que a gente faz para ela, se der, mas também
se não conseguir, será conseqüência de tudo que nós estamos fazendo para ela,
se ela tiver que andar de cadeiras de rodas a vida inteira, nós faremos de tudo
para que ela vivia deste jeito da melhor forma possível (...)
O mais importante, a meu ver, não é simplesmente constatar essas
diferenças entre duas famílias de condições sociais muito diferentes, mas
procurar analisar as suas conseqüências em relação às expectativas de futuro
dessas meninas.
O fato da mãe de Carla se defrontar com condições básicas de vida tão
adversas (e que fazem parte do seu cotidiano, não só em relação às dificuldades
de sua filha, mas para toda e qualquer atividade), vai fazendo com que ela
naturalize essas condições, o que redunda em uma visão reduzida das suas
possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem.
Em outras palavras, se não há em seu horizonte qualquer possibilidade de
63
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modificação do ambiente para facilitar a vida de sua filha (pois mesmo no
transporte especializado é preciso gastar sete horas para chegar ao local de
tratamento), esta mãe interioriza que as dificuldades de locomoção residem
totalmente nas características peculiares de sua filha.
Por outro lado, como a experiência vivida da mãe de Camila é
diametralmente oposta, com ela vivenciando possibilidades diversas de
adaptação do meio às dificuldades de sua filha e que ela constata que fazem, sim,
diferença nos processos de socialização, de desenvolvimento e aprendizagem,
ela vai incorporando uma outra perspectiva: sua filha tem limitações que talvez
não sejam superadas, mas adaptações do meio ambiente podem minimizar essas
limitações, ou seja, sua expectativa em relação às possibilidades de Camila se
amplia pela simples razão de que as condições objetivas de vida permitem essa
ampliação.
2.2.3. A descoberta pela família
Como cada mãe se posiciona diante da descoberta da filha deficiente
configura a construção do imaginário sobre elas e conseqüentemente influi
também nas expectativas sobre a escolaridade. Sem dúvida aspecto individuais
como por exemplo características da própria personalidade influenciam essa
construção e o advento de um filho deficiente é incontestavelmente um impacto
para qualquer família, porém, o que determinará a trajetória são as condições
sociais que se iniciam desde a descoberta da deficiência. Assim, no caso dos dois
sujeitos selecionados para esta pesquisa, possibilidades diferentes determinaram
as expectativas diante da descoberta pela família de certas características nas
suas filhas.
Carla nasceu de parto normal, aos nove meses de gestação em um pronto-
socorro público perto da sua casa, na periferia da Zona Oeste de São Paulo. No
momento do nascimento não houve nenhuma intercorrência, sendo que mãe e
filha vieram para casa após período comum de permanência no hospital.
Quando completou um mês de vida, começou a apresentar quadro de
pneumonia que se repetia de forma constante. A mãe levava a filha ao pronto-
socorro mais próximo da sua residência, onde recebia indicação de medicação
que, segundo ela, "não resolvia o problema":
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MÃE: assim, os médicos só falavam que era pneumonia e falta de ar
mesmo. Tudo bem, aí ela tinha laringite também e aquela tosse, tosse direto. Não
adiantava, tomava antibiótico direto. (Mãe de Carla)
Durante o primeiro ano de vida da Carla foram constantes as vezes que
teve de ficar internada, e o diagnóstico dado era sempre o mesmo.
O primeiro local que a mãe da Carla recorria era o pronto-socorro perto da
casa onde moravam, porém, no caso deste local (e de muitos outros pronto-
socorros das periferias de São Paulo) não havia condições de receber uma
criança com quadro grave para internação, devido a falta de estrutura.
Assim, a conduta informada para mãe era de que, diante da necessidade
de intervenções mais complexas, sua filha deveria ser transferida para unidades
mais preparadas. Carla, muitas vezes, foi transferida para um hospital, porém
nem sempre era possível devido a possibilidades de vagas:
PESQUISADORA: era perto da casa de vocês, foi o primeiro hospital que
vocês foram?
MÃE: não a gente ia para o pronto socorro que é perto lá de casa, aí
quando eles viam que não tinha como deixar a Carla lá, aí sim eles transferiam
para o hospital. então é isso, em Pirituba era o pronto-socorro.
PESQUISADORA: costumava ter vaga? Como é que era?
MÃE: às vezes encaminhavam para o hospital, mas quando não tinha
[vaga] ela ficava lá [no pronto-socorro].
A associação das intercorrências no quadro clínico da Carla e a falta de
estrutura dos serviços de saúde faziam com que ela permanecesse sendo
transferida de um local para outro, sendo que a permanência em um ou outro não
estava condicionada as necessidades do caso, mas a possibilidade de vagas.
Diante desta situação, a mãe da Carla, acatava a orientação dos médicos e os
encaminhamentos sem questionar. Somente após um ano e várias internações,
foi que um médico cogitou a possibilidade da Carla ser uma criança deficiente:
MÃE: teve um médico de Pirituba que falou que a Carla era uma criança
especial, não uma criança normal e precisava de atendimento especial. Ele
encaminhou para o “Hospital Capacitado”
3
para fazer tratamento até descobrir o
porque de tantas pneumonias. (mãe da Carla)
A mãe de Carla, embora tivesse constatado que não recebeu informações
mais precisas, não parece ter qualquer reação negativa, de exigência de seus
direitos:
3
Estou utilizando esta denominação para que a unidade de saúde não seja identificada.
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MÃE: ele trabalhava lá, nem sei se ele ainda está lá, faz tempo. Ele foi o
único de todos os outros que a Carla já tinha passado, pois, nunca falaram nada
para a gente, não tinha como adivinhar né! (Mãe da Carla)
Camila nasceu prematura extrema, de 26 semanas, após uma gravidez
sem intercorrências em um Hospital Particular, de sua escolha. Repentinamente a
mãe entrou em um trabalho de parto e foi prontamente atendida.
Apesar da prematuridade, a mãe relata que não havia qualquer problema:
MÃE: o desenvolvimento dela estava como dentro do esperado. Muito
pequena, mas estava evoluindo. (Mãe da Camila) Idem
Aos 10 dias de idade, teve uma piora no quadro clínico com três paradas
cardiorespirátorias, principal motivo que causaram as seqüelas orgânicas. Além
disto, teve como complicador do quadro clínico, um acidente vascular cerebral,
(AVC), hidrocefalia, derrame pleural, insuficiência renal e entupimento da veia
cava. Todas essas seqüelas necessitavam de um atendimento imediato, com
várias intervenções, e que foram totalmente cumpridas.
Em casos desta gravidade qualquer demora para um dos procedimentos
pode resultar em uma seqüelas cada vez graves. Camila teve acesso a uma vaga
na UTI assim que necessário. Diante das intercorrências que a filha apresentava,
a mãe de Camila acompanhou todas as condutas que os médicos realizavam
sendo informada com detalhes, a todo momento, sobre a evolução do quadro
clínico da filha. Como tinha um parente médico, com acesso aos procedimentos
dentro do hospital, recebeu informações detalhadas sobre as necessidades de
atendimento que Camila teria durante sua permanência no hospital, como
podemos observar:
MÃE: (...) O meu tio, que é pediatra, é médico do Hospital Rico, mas ele
não é neonatal, ele entrava na UTI, mas não podia palpitar lá dentro, mas ele
tinha acesso a prontuário, e ele chegou para mim e disse, olha, está muito ruim a
situação, então você se prepare, por que está muito grave. Então era isso que
imaginavam para ela, só que aí as coisas foram acontecendo e não foram
acontecendo desta maneira. (...) (Mãe da Camila)
No caso de Camila, o atendimento oferecido pelo hospital privado, diante
do seu quadro clínico complicado, permitiu um atendimento que a própria mãe
relata ser diferenciado:
66
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MÃE: os médicos [...] falaram que o cérebro dela estava muito lesionado,
que a parada cardiorespiratória que ela teve foi muito grave, na verdade, eles me
disseram que se ela não estivesse no Hospital Rico eles não teriam tentado pela
3ª vez fazer ela voltar, ela teve duas no mesmo dia e quando tem a 3ª geralmente
eles não tentam, e tentaram graças a Deus. Teve uma enfermeira de lá, que falou
que puxou ela pelo dedinho do pé de volta. (mãe da Camila)
As expectativas diante das intercorrências das filhas se configuram de
forma diferenciada, enquanto a mãe da Carla vivencia uma forma implícita de
descaso, com intervenções médicas que não dão resultado sem nenhuma
espécie de investimento no quadro clínico da filha, a mãe da Camila recebe um
pronto atendimento que garantiu até mesmo a própria preservação da vida de sua
filha.
Enquanto no caso da primeira a expectativa que se constrói é uma criança
que não tem valor em investir que ela viva, no caso da segunda a expectativa é
de que a vida tem que ser preservada e investida de todos os esforços.
Da mesma forma segue a descoberta do diagnóstico. Embora a mãe de
Carla relate que já havia percebido que a filha apresentava algumas diferenças
com relação às crianças da mesma idade não recebia qualquer informação mais
consistente por parte dos serviços de saúde:
MÃE: Ah! Elas falavam assim, que bonitinha. Quantos anos ela tem? Eu
falava, um aninho. E elas falavam, puxa, mas criança de um ano já era para estar
andando e até falando. E eu tinha que dizer: É porque ela tem problema de
saúde, né?! Ah! Então, desculpa.
Ou mesmo outros membros da família também já tinham notado
diferenças, como o estrabismo e o “peito alto”:
MÃE: meu marido tinha percebido que o tórax dela era alto, mas a gente
pensou que, conforme ela fosse crescendo e desenvolvendo, fosse sumindo, mas
não, a gente não sabe nada disso, né? Como ela foi crescendo e continuando com
o peitinho dela alto, uma tia dele falou que quando a criança tem estrabismo o mais
provável é que tenha problema de saúde. A gente já ficando preocupada com
tantas pneumonias. (Mãe da Carla)
Foi somente depois de um ano de peregrinação, apesar de todas as
dúvidas da mãe e dos familiares, que um profissional da saúde confirmou suas
desconfianças iniciais:
Mãe: quando ela tinha um aninho que esse doutor aí falou para gente, como
eu falei para você. (...) Ele também percebeu que a Carla era pequenininha, que ela
67
68
não estava desenvolvendo, ela era assim deste tamanhinho (mostra com as mãos).
(mãe da Carla)
Assim, somente depois do primeiro ano de vida foi que a criança foi
encaminhada para um diagnóstico mais preciso, para um hospital público, porém,
mais capacitado, que começou a investigar qual o diagnóstico que a Carla tinha.
Ainda assim, o resultado final para saber qual o problema de sua filha, teve
que esperar um tempo que para a mãe, pela falta absoluta de qualquer tipo de
assistência médica mais efetiva, parece não ter demorado muito
PESQUISADORA: foram fáceis de marcar esses exames?
MÃE: Foi tudo assim, foi tudo fácil, porque você já levava o
encaminhamento em tal setor. Quando não sabe onde é eles explicavam, olha
você vai fazer isso, isso. Como eles ensinavam ia dando certo, conforme o
encaminhamento, eles já marcavam. Aí demora um pouquinho, um mês, dois
meses. Então eu tinha até ficado um pouquinho desanimada, porque fazia os
exames e nada. Ia nos retornos e eu queria saber o porque. Puxa vida, toda vez
que eu ia para lá voltava com a cabeça enorme com uma dor de cabeça, horrível.
(mãe da Carla)
É interessante notar que a referência de tempo que mãe da Carla foi
construindo em relação a doença da filha é uma noção peculiar, pois, quando ela
é questionada sobre o tempo dos encaminhamentos, ela refere que foi fácil,
demorava um mês ou dois, mas ela conseguia marcar um dos exames.
Mas, mesmo com os exames não era dado em nenhum momento um
esclarecimento mais preciso sobre problema de Carla.
PESQUISADORA: O que os médicos diziam sobre os motivos de realizar
tantos exames?
MÃE: Eles me mandavam fazer os exames e davam os remédios para a
Carla tomar, mas falar porque eles estavam pedindo não falavam, aí depois
quando veio o resultado da genética é que eles começavam a explicar o porque
de tantos exames.
PESQUISADORA: Com você se senti com eles pedindo exames.
MÃE: Uma parte, eu ficava feliz por eles estavam se preocupando com
ela, ele estava realizando os estudos para ela. Por outro lado eles não davam
retorno para mim. Até meu marido falava, você vai passear, volta de cabeça
quente. Aí eu falava, que isto era porque não era com ele. Então eu ficava
desanimada no começo. Mas, eles foram dando umas explicações, eu fui
acostumando. (mãe da Carla)
A única explicação que deram para a mãe foi que a Carla não sobreviveria,
o que foi vivenciado com bastante emoção, mas, sem nenhum movimento de
indignação por não explicarem quais os motivos por tantas internações.
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69
PESQUISADORA: Como você se sentia?
MÃE: Ah! me sentia, meio triste. Pela idade era para estar andando
falando. Não conhecia nada, não desenvolvia. Quando a médica falava para mim
que ela não podia suportar essas coisas, nossa! Eu entrava em desespero.
Quantas vezes ela falou: mãe esteja preparada porque talvez a Carla não chega
a um aninho. Ela falava isso para mim. Eu ficava com o coração na mão toda vez
que a Carla ficava doente. Era essa preocupação. (mãe da Carla)
Após um ano de espera para iniciar a descoberta do diagnóstico e mais um
ano de investigação é que foi dado um direcionamento para o caso, quando foi
indicado tratamento para reabilitação, pois Carla apresentava uma síndrome
neurológica que causaria atrasos no seu desenvolvimento.
Camila, aos cinco meses de idade, antes de sair do hospital realizou a
cirurgia para correção da hidrocefalia e durante o período de internação realizou
os exames de tomografia necessários para o diagnóstico de seu quadro clínico,
que era bastante comprometido.
Recebeu alta do hospital com prognóstico de um quadro muito grave, tanto
no aspecto clínico, quanto para seu desenvolvimento global:
MÃE: ela foi evoluindo bem e no dia 28 de outubro de 1999 eu trouxe ela
para casa, com home care, com oxigênio, com um litro de oxigênio, com sonda,
ela não conseguia se alimentar sozinha, quer dizer, eu até dava um pouco pela
mamadeira, mas o resto era por sonda para não cansar demais, porque quando
ela mamava ela cansava demais, a saturação caía. Foi assim, o prognóstico dela
era muito grave as tomos delas eram muito grave, todo mundo falava que ela não
ia andar, não ia falar, não ia se movimentar, não ia nem me reconhecer como
mãe. (Mãe da Camila)
Enquanto Carla permanecia com internações constantes sem diagnóstico,
Camila sai do hospital com um prognóstico grave e uma perspectiva de que pela
gravidade da deficiência não seria capaz de adquirir nenhum avanço no seu
desenvolvimento, mas saí do hospital com todo o suporte para superação da
deficiência.
Nos dois casos, a ocorrência de uma lesão cerebral grave que, certamente,
iria determinar para as duas crianças sérias dificuldades nos processos de
desenvolvimento e de aprendizagem, configurou-se no que Vygotsky (1997)
denominou como defeito primário.
Entretanto, as experiências dessas duas mães, frente a uma criança que
não apresentavam problemas motores graves como conseqüências de lesões
cerebrais foram diametralmente opostas;
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70
A mãe de Camila tem atendimento imediato de uma filha nascida
prematuramente; ao surgir problemas ainda na maternidade que quase levam-
na a morte, assiste a uma equipe médica conseguir reverter um quadro quase
que definitivo; mesmo antes que sua filha saia da maternidade, já tem um
diagnóstico preciso dos problemas que apresenta, bem como das
necessidades que precisam ser atendidas por processos terapêuticos. Em
síntese, essa trajetória lhe fornece a experiência inicial de que, mesmo em
condições as mais adversas, a existência de serviços especializados pode
reverter situações que inicialmente pareciam irreversíveis. Isto é, apesar de
todo o sofrimento, sua experiência pessoal lhe mostra que as expectativas
iniciais podem ser modificadas se buscadas e encontradas as condições
necessárias.
Com a mãe de Carla ocorreu exatamente o contrário, apesar de
pequena, sua filha ao nascer lhe parecia normal e o conjunto de intercorrências
de saúde, atendidas por um sistema ineficiente e demorado, vai fazendo com
que ela, pouco a pouco, vá se inteirando de forma fragmentada e mal orientada
de que sua filha apresenta, continuamente, problemas mais graves que parecia
ter. A conseqüência perversa dessa trajetória sofrida e cruel foi, entre todas as
desgraças que a própria trajetória escancara, a da construção gradativa de
uma decrescente expectativa em relação às possibilidades de sua filha, pois o
processo desumano pelo qual foi se inteirando dos problemas de Carla
tornaram “natural” a visão de que “não poderia ser de outro jeito” e que “havia
muito pouco a fazer”.
2.2.4. A busca de encaminhamentos
Após a descoberta do diagnóstico, com uma diferença significativa entre
idades, no caso da Carla aos dois anos, após uma verdadeira peregrinação pelos
serviços de saúde e no caso de Camila, com indicação precisa já na saída da
maternidade e confirmada aos cinco meses, cada mãe iniciou a busca pelo
atendimento para superar ou pelo menos minimizar as seqüelas no
desenvolvimento que a deficiência impôs.
Carla foi encaminhada ao Hospital Capacitado e pôde obter um tratamento:
MÃE: Mas o tempo foi passando e ela foi melhorando conforme o
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tratamento lá do Hospital Capacitado. As dietas, como mudar a alimentação da
Carla para não voltar para o pulmão dela, mantê-la sempre erguida, experimentar
dar a comida de pouquinho, poucas quantidades. Dependendo disto, foi
melhorando, não tanto por causa dos remédios,que eu via que os remédios não
faziam efeito. Ajudavam um pouquinho, mas mesmo assim ainda jogava [o leite,
regurgitava-o], os remédios não faziam efeito. (Mãe da Carla)
Somente a partir desse momento, a mãe começou a perceber melhora no
quadro clínico da filha, mas ainda sem qualquer acesso a processos terapêuticos,
pois o que seguiu foi uma seqüência de investigação com vários
encaminhamentos, "que são normais deles (os médicos) pedirem, né". (Mãe da
Carla), porém, no desenvolvimento global, nenhum tipo de tratamento teve início
nesse momento:
MÃE: não porque assim, conforme ela estava no Gastro, descobriram
porque ela tinha crise de pneumonias, aí encaminharam para o Neuro e cada um
deles, pediram os exames que a Carla tinha que fazer. Quem pediu os exames foi
a genética: “- Ela terá que fazer um tratamento de fisio para ajudar a estimular
mais a ficar durinha, que está sempre molinha e também tem que fazer
tratamento para ajudar na fala.” Pediram exames para ver se a Carla ouvia,
porque se ela não escutasse não tinha como falar. Todos os exames deram
normais.
Após um longo período de espera por um diagnóstico, Carla foi
encaminhada para atendimento de reabilitação fisioterápica, fonoaudiológica e de
terapia ocupacional. E inicia-se um longo caminho até conseguir tratamento.
Desta vez, com Carla aos 2 anos de idade, a mãe saiu do hospital com um
laudo e um encaminhamento para uma instituição especializada. Com todos os
documentos que foram solicitados, a mãe segue querendo uma vaga para a
reabilitação de sua filha, que já tinha nessa época um quadro de atraso grave no
seu desenvolvimento neuropsicomotor.
Quando se deparou com a primeira instituição, teve como resposta que a
sua filha não se enquadrava para tratamento, simplesmente pelo exame dos
documentos que foram apresentados pela mãe, pois não houve qualquer tipo de
procedimentos clínicos de triagem. Apesar dessa recusa, relata que,
contraditoriamente, a instituição solicita que ela aguarde até ser chamada.
MÃE: acho que tinha uns dois aninhos, por aí, acho que é isso mesmo,
2001, o laudo dela, não me lembro. Então eles encaminharam para lá. Eu levei os
papéis para lá, a assistente social falou você espera que eles vão entrar em
contato com a senhora. Veio a cartinha que a Carla não se enquadrava no
tratamento deles e que era para eu esperar. Esperar o que? Eu não entendia
nada disso. Minha cunhada ligou para lá, para saber e eles falaram que era isso
mesmo que ela era muito pequenina e não tinha como se fazer o tratamento nela.
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(mãe da Carla)
A mãe retornou ao Hospital Capacitado sem perspectiva de conseguir
atendimento para sua filha, que segundo os especialistas era de fundamental
importância para que ela desenvolvesse.
MÃE: Lá no HOSPITAL CAPACITADO. Não me davam nada, só papel e
pediam para aguardar, não tinha conseguido nada. (mãe da Carla)
Finalmente conseguiu mais um encaminhamento por meio do serviço social
do hospital:
MÃE: Ah! eles me encaminharam para a assistente social, que vê também esses
lugares que fazem terapia. Aí me encaminharam para a Instituição Pa. Aí me enrolaram
por mais ou menos um ano. Eu tinha o cartãozinho dela lá, com os dados e no final da
história também não aceitaram ela lá. (mãe da Carla)
Nota-se que a mãe esboça insatisfação, quando expressa que o tempo que
a deixaram esperando foi uma forma de protelar qualquer decisão, porém não
possui, dentro de sua ótica, perspectivas sobre quaisquer outras alternativas.
Assim, restou à mãe ficar esperando novo encaminhamento para uma
instituição onde sua filha pudesse ser aceita, mas, enquanto isso, a idade da
Carla avança. Neste momento ela já estava com três anos e meio sem
atendimento, o qual, segundo as indicações técnicas mais atuais é de
fundamental importância para o desenvolvimento de crianças como Carla.
MÃE: Lá na Instituição Pa disseram que tinham que mandar a Carla para uma
escolinha especial. “- Mas a Carla precisa de fono e fisio, era o que vinha na minha
cabeça.” E falavam que não, que ela não se enquadrava também. Encaminharam para a
Lapa, Para Francisco Morato, foi indo, foi indo, perto lá do CEASA, eu já andei por tudo
quanto é lugar. (mãe da Carla)
As informações foram as mais disparatadas possíveis, pois inicialmente os
especialistas indicaram processos de reabilitação e nessa instituição a indicação
foi de escola especial o que, ao fim e ao cabo, acabaram criando mais dúvidas
sobre as reais necessidades de sua filha. De qualquer forma, essa foi mais uma
tentativa frustrada, pois recebeu a informação da escola especial indicada de que
ali também não seria possível Carla receber atendimento, pois não havia vaga.
Enfim, a mãe de Carla não teve outra saída do que aguardar uma
instituição que tivesse uma vaga enquanto sua expectativa foi sendo minada,
restando a ela somente a esperança de um lugar que em que a filha fosse aceita,
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sem qualquer possibilidade de escolha.
Ao lado disso, recebeu também indicações para procurar instituições
privadas que, segundo informações dos profissionais, receberia atendimento
imediato.
MÃE: Onde eles encaminhavam era pago, mas pago não tinha condições de
pagar, porque eram caras as terapias. Mas pago não tinha condições de pagar
naquele tempo. Perguntei se tinha gratuito? Gratuito não, nenhum. Aí a Iara, lá do
Hospital Capacitado, eu falei não esta tendo jeito. Todos os lugares que eu vou é
não.
PESQUISADORA: Iara era a assistente social lá do Hospital Capacitado?
MÃE: É, foi aí que me encaminharam para cá, para Instituição Triângulo.
MÃE: [Ela disse): Mas tem um problema, é pago também. Eu já estava
assim, ou vai ou racha. Eu falei, não, mas eu vou tentar. Ela falou é pago, mas você
conversa com a assistente social de lá. Vocês podem até combinar como você
pode fazer para pagar. Eu vim, falei com a assistente social e ela perguntou tudo
para mim, se eu trabalhava, se a Carla recebia pensão, como era a nossa vida, se
pagava aluguel, essas coisas. Eu fui explicando para ela, levei o cartãozinho do
recém-nascido que ela pediu por telefone para levar, se ela chorou? Eu falei tudo
para ela. A gente combinou da Carla fazer a terapia e deu para ficar como isenta,
para ela me ajudar. Eu aceitei porque onde eu ia era um não, não, aí eu aceitei né.
E aqui foi que a Carla se desenvolveu. (mãe da Carla)
Até a descoberta da doença e o início das terapias se passaram quatro
anos. E ela, então, passou a ser atendida por uma instituição que, segundo a
mãe, faria o favor de atendê-la, sem que ela necessitasse pagar (“deu para ficar
isenta, para ela me ajudar”).
Camila, após cinco meses em que permaneceu hospitalizada, em unidade
de terapia intensiva, recebendo todo atendimento necessário que garantiu a sua
sobrevivência, recebeu alta do hospital com prognóstico de um quadro muito
grave, tanto no aspecto clínico, quanto no aspecto do seu possível
desenvolvimento.
Os atendimentos dentro do hospital foram seguidos pelo acompanhamento
em casa através do sistema de “Home Care” (serviços de saúde realizados nas
residências dos pacientes) custeado, em princípio, pelo plano de saúde.
Os equipamentos instalados em sua casa, necessários para manter Camila
viva e se desenvolvendo de forma satisfatória, eram compostos por oferta de
oxigênio através de galão, com custo médio de meio salário mínimo por mês,
monitoramento de saturação que necessitava de aparelhagem específica com
custo médio de um terço do salário mínimo, bomba de infusão para alimentação
com custo médio de um salário mínimo:
MÃE: ela foi evoluindo bem e no dia 28 de outubro de 1999 eu trouxe ela
para casa, com home care, com oxigênio, com um litro de oxigênio, com sonda,
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ela não conseguia se alimentar sozinha, quer dizer, eu até dava um pouco pela
mamadeira, mas o resto era por sonda para não cansar demais, porque quando
ela mamava, ela cansava demais, a saturação caía. Foi assim, o prognóstico dela
era muito grave, as tomografias dela eram muito graves, todo mundo falava que
ela não ia andar, não ia falar, não ia se movimentar, não ia nem me reconhecer
como mãe. (mãe da Camila)
Esses equipamentos foram custeados pelo convênio particular que a mãe
mantinha para a filha. Caso o convênio não custeasse esses equipamentos, a
família não teria condições de mantê-lo devido ao custo bastante elevado. O
acompanhamento por “home care” é indicado nos casos em que o quadro clínico
é estável, e num quadro crônico comprometido como o de Camila, o custo fica
menor do que o proporcionado dentro de uma unidade de terapia intensiva, além,
de oferecer mais qualidade de vida ao paciente.
Além dos equipamentos Camila contou desde do início com uma equipe de
profissionais capacitados para reabilitação:
PESQUISADORA: vocês tiveram acompanhamento com profissionais para
acompanhar isto?
MÃE: em casa eu tinha direito pelo home care, como ela usava oxigênio, eu tinha
direito a fisio[terapia] respiratória e como ela tinha direito pelo convênio, porque
ela usava oxigênio, ela fazia a respiratória e por acabar criando uma amizade
com a gente, ela [a fisioterapeuta] começou a fazer motora por conta dela. Então
ela já começou a fazer fisio motora com 6/7 meses de idade em casa. Por conta
de ela estar com a sonda, ela tinha dificuldade de engolir. Até, ela nem pegava a
chupeta por não consegui sugar e começamos a por uma chupeta para este
movimento, por orientação da fono do convênio em home care. (mãe da Camila)
Com esse tipo de atendimento, o desenvolvimento de Camila vai se
configurando com bons resultados:
MÃE: Assim fomos conseguindo. Quando começou a mamar sozinha, o convênio
corta a fono e a fisio porque ela não precisava mais de fisio respiratória e nós
ficamos apenas com a fisio particular, porque criamos uma amizade grande e ela
ficou por um tempo. Eu não sabia o que era TO (terapia ocupacional), já tinha
ouvido falar, mas não sabia para o que era. A fono para mim era só para isso, a
parte de comer, como foi tudo rápido - ela passou logo para a sopinha, para
pastoso, e depois para o sólido - a fono acabou, porque para mim era somente
isso. Como ela começou a comer sozinha, nós achamos que nem precisava mais.
Como ela não tomava nenhum medicamento, ia apenas uma vez por ano ao
neurologista, porque ela tem a válvula e precisa acompanhar. Mas, em uma das
vezes, alguém comentou: -Ah, mas ela não faz fisio, nem fono, nem nada? Aí nós
comentamos com o médico que disse que seria bom fazermos essas terapias. Foi
quando comentamos com o meu tio, pediatra dela, e ele indicou a instituição Top,
porque o meu tio, que é, pediatra conseguiu falar com alguém lá, ela fez uma
avaliação inicial e conseguimos fisio e fono. A TO nós não conseguimos porque
não tinha vaga, só que assim, eu tive uns problemas lá, algumas discordâncias e
eu acabei saindo por conta própria. (mãe da Camila)
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Quando o convênio particular deixou de custear o atendimento necessário,
a mãe de Camila teve possibilidades, ainda que tendo um custo significativo
dentro do seu orçamento, de que sua filha não fique sem reabilitação.
Por outro lado, o próprio círculo social também contribuiu para que ela
fosse adquirindo experiência sobre as necessidades da filha. No início, a mãe de
Camila desconhecia a abrangência da atuação da fonoaudiologia e considerava
que, tendo superado a questão da sua alimentação, não havia mais necessidade
der contar com esse tipo de atuação. Mas no consultório do neurologista, alguém
lhe questionou sobre isso e ela recorreu ao parente médico, que não só lhe
orientou como conseguiu que Camila ingressasse em uma instituição de ponta.
Nessa época, Camila tinha um ano de idade, o que significa que em
nenhum momento ela ficou sem atendimento: permaneceu durante cinco meses
na maternidade, recebendo todo atendimento necessário; aos cinco meses saiu
do hospital e imediatamente passou a receber atendimento especializado
domiciliar; aos oito meses, com o corte do atendimento do convênio, permaneceu
com atendimento particular de fisioterapia; e; aos 12 meses; iniciou atendimento
em uma instituição especializada.
Apesar de ter sido encaminhada para uma instituição renomada, a mãe de
Camila se insurge com algumas exigências que considera absurdas:
MÃE: lá eu tive problemas sérios a ponto, por exemplo, lá a criança não pode
faltar de jeito nenhum, mesmo com atestado médico ou se ficar internada, tem
uma quantidade de faltas, acho que é três ou quatro vezes ao mês e mesmo que
você leve uma justificativa não tem jeito, eles desligam e você perde a vaga. A
Camila é a mais velha da família nunca teve contato com outras crianças e nunca
teve doenças mais sérias, só "resfriadinho", mas ela começou a ter doenças
muito sérias por conta de ser atendido lá, porque você estava na sala de espera e
você via crianças passando muito mal porque a mãe não podia faltar de jeito
nenhum. A mãe não podia se dar ao luxo de deixar a criança com febre,
vomitando ou com alguma virose em casa descansando porque ela ia perder a
vaga. Eu via que era um descaso muito grande em relação a isto. A Camila foi
assim, ela tinha faltado duas vezes anteriores, foi uma época que ela pegou duas
infecções de garganta e eu peguei uma chuva grande, meu carro parou no meio
da enchente porque eu não queria faltar, eu ainda liguei do carro dizendo que
não queria faltar, mas que não dava para eu ir e a assistente social me fala que ia
perder a vaga. Eu estou com um bebê, de um ano e pouco, no meio de uma
enchente, estou com água no meio da canela e você me fala que eu vou perder a
vaga, é com isso que você está preocupada? Sabe assim esse tipo de coisa.
PESQUISADORA: você me disse que parece que eles estavam fazendo um
favor? Como assim?
MÃE: Eles fazem um favor. Também não era de graça, eu tinha que levar os
documentos e a assistente social estipulava quanto eu tinha que pagar; pagava
mais ou menos. Mas não era de graça, eu pagava o valor das terapias, mas eu
senti que era muito profissional, só profissional, não tinha o lado humano que eu
percebo com vocês aqui. Tinha um outro problema grande com a Camila, ela é
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super ativa, ela muito agitada, ela tem um déficit de atenção muito grande, ela
não se concentra, ela não se prende a um mesmo assunto por muito tempo, ela
sempre foi assim, desde de bebê. Então, lá na Instituição Top, a fisio é feita
assim, é um salão grande com várias crianças sendo atendidas com todo mundo
junto, tem esses tablados. Uma coisa que até hoje a Camila tem é um problema
sério em ver outra criança chorando, ela para não faz mais nada, ela fica
assustada, ela fica agitada só querendo que a outra criança pare de chorar. Óbvio
que as crianças, principalmente as mais graves, choravam. Ela nem falava nada
naquela época ainda, mas a fisio (um amor de pessoa) falou, “não consigo
trabalhar com a Camila, ela presta atenção em outras coisas, não consigo
concentração”, então era um problema sério. (mãe da Camila)
A mãe de Camila pontua um fato interessante, o risco de perder a vaga é
sem dúvida uma grande ameaça para essas mães, pois ela notava que, para as
mães que não tinham possibilidade de outra opção, a perda da vaga era vista
como uma catástrofe e se submetiam a todas as exigências.
No caso da mãe da Camila a situação foi muito diferente pois, no momento
em que a mãe não aceitou normas que lhe pareceram sem sentido, ela
suspendeu o atendimento porque teve a possibilidade de optar por outra, como
ela mesma refere:
MÃE: eu não vou para uma instituição deste tipo, eu não vou para em
lugar como a instituição Top, embora esteja muito difícil pagar as terapias
particulares dela, eu vou me virar em 1000, mas não vou parar em lugar como
este. (mãe da Camila)
Quando a mãe saiu da instituição que não considerava adequada para a
filha, buscou outro local, no qual foi prontamente recebida, onde novamente
passou por triagem e iniciou atendimento em todos as modalidades necessárias
para que Camila pudesse superar suas dificuldades.
A deficiência gerou nas duas crianças a necessidade de intervenções que
oferecessem a elas condições para minimizar as seqüelas causadas pela
deficiência, porém, a trajetória que cada um de seus responsáveis percorreu
determinou uma situação bem diferenciada. Através da vivência que cada uma
delas foi tendo em relação às possibilidades de atendimento, ao acolhimento na
oferta de serviços, determinaram, mais do que a própria deficiência, as
expectativas que cada mãe foi construindo em relação às possibilidades de sua
filha.
A mãe da Camila, diante de todos as investidas, começa a perceber
melhoras visíveis no seu desenvolvimento, isso significa que a expectativa é de
superação da deficiência e de um imaginário que foi sendo confirmado. Os pais,
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diante de dúvidas sobre o prognóstico dos médicos, passaram a procurar todas
as possibilidades possíveis de atendimento e puderam, diante de um investimento
adequado e possível dadas as suas condições sociais, constatar melhoras
significativas da filha, confirmando as expectativas de sucesso. A acolhida por
instituições e por equipes especializadas que, no decorrer dos atendimentos,
mostraram à mãe que sua filha poderia vencer dificuldades impostas pela
deficiência, passam a encarar os limites impostos por ela como passíveis de
serem superados diante das adequadas condições para estimulá-la.
Já a mãe da Carla vivenciou experiências muito negativas, sem ter
possibilidade, pela posição social ocupada, de reverter uma trajetória de
insucessos: no diagnóstico, nas possibilidades de atendimento, na quase total
falta de informação sobre o quadro concreto de problemas de sua filha.
Nesse caso, além das conseqüências diretas de piora no quadro clínico da
filha, a mãe passou a encarar a absoluta carência dos serviços públicos de saúde
como “natural”, pois essas situações em nada diferem de outras muito mais
simples em que necessitou de serviços médicos. Isto é, se essa trajetória cruel
não é vista como ferindo os seus direitos, pois que “sempre é assim”, à mãe resta
a visão de que os prejuízos causados pela paralisia cerebral são os únicos
responsáveis por suas dificuldades de desenvolvimento.
Enfim, esta trajetória é tão perversa que redunda em prejuízos concretos
para o desenvolvimento de Carla e na reiteração de uma perspectiva familiar de
irreversibilidade de problemas que poderiam ser superados ou minimizados por
meio de atendimentos adequados.
2.2.5. As experiências de escolarização
As expectativas sobre escolarização das suas filhas foram se constituindo
dentro de situações concretas, vivenciadas por cada uma das mães diante das
possibilidades de cada filha.
Carla tem uma trajetória escolar da seguinte forma. Quando ela tinha cinco
anos de idade, após ter tardiamente iniciando o atendimento de reabilitação e
passado dois anos fazendo terapias, uma das profissionais que a atendia
considerou que ela se beneficiaria do atendimento pedagógico em uma escola.
Nesse momento, a profissional da instituição indicou dois locais para que a mãe
fosse em busca de mais uma instituição indicada para ampliar as possibilidades
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de desenvolvimento da filha.
Essas duas indicações foram de escolas especiais, que a profissional
considerava de excelente qualidade para atender Carla, que mostrava
nitidamente uma evolução na capacidade em aprender, pois, nas situações dentro
das terapias, apresentava desenvoltura nas atividades que eram auxiliadas por
prancha de comunicação alternativa para comunicação e cadeira adaptada da
instituição. Quando a mãe recebeu as indicações, observou que, em uma das
escolas indicadas ela já havia sido recusada quando procurava vaga para terapia
sob a justificativa apresentada de que sua filha não se enquadrava nos critérios
da instituição:
MÃE: foi aqui na instituição, com a Fábia (fonoaudióloga), e a outra que já
saiu (Terapeuta Ocupacional), não lembro o nome dela, falaram que ela tinha que
estar freqüentando a escola para desenvolver mais e eu comecei a ir atrás de
escola, e na Escola Especial Santos não aceitaram. Mesmo se ela estivesse
fazendo terapias lá, a Carla tendo possibilidade eles falaram que não. Que a Carla
não tinha possibilidade de estar freqüentando a escola, mas eles não disseram
porque, só que eu procurasse outros lugares. (Mãe da Camila)
A Escola Especial Santos é uma instituição que, além da escolarização,
oferece atendimentos na área da saúde, e que a mãe havia procurado
anteriormente, na tentativa de que sua filha tivesse acesso aos atendimentos
terapêuticos juntamente com a inserção na escola, mas que não havia
conseguido sem uma explicação precisa sobre os motivos que levaram a
instituição a declarar que a sua filha não se enquadrava.
Outra tentativa de inserção escolar foi relatada pela mãe a partir de contato
do pai com a professora de seu outro filho:
MÃE: foi uma outra professora que falou para mim que agora eles estão
sendo obrigados a pegar crianças especiais na escola normal. Meu marido foi lá e
fez a matricula da Carla e ele falou para a escola que a Carla era assim, assim.
(Mãe da Carla)
MÃE: ela foi professora do meu filho e meu marido comentou com ela que
tinha uma criança especial. Ela falou que agora tinha um projeto em que todas as
escolas são obrigadas a aceitar as crianças especiais dentro da sala. Ela falou
para ele e realmente ele foi atrás. Meu marido foi na EMEI.
4
É assim, não é uma
sala especial. É misturado para todos. A sala é normal, mas cada sala tem uma
criança especial. (Mãe da Carla)
Diante dessa situação a mãe, pressionada, por um lado, pelos profissionais
que a atendiam dizendo que ela se beneficiaria com a freqüência em uma escola
4
Escola Municipal de Educação Infantil.
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e, por outro, sem possibilidades de vagas nos locais que tinha percorrido, entrou
em contato com os terapeutas que fizeram a indicação de escolas especiais para
se certificar da propriedade de Carla estar freqüentando uma escola pública
regular, que deram favorável, diante da evolução que Carla vinha apresentando:
PESQUISADORA: você foi procurar essa escola antes ou depois deste
encaminhamento?
MÃE: depois, porque até então eu nem sabia se iam pegar ou não. Depois
do encaminhamento e depois dessa professora que falou que eles eram
obrigados a estar pegando as crianças, aí eu fui e fiz lá a ficha dela e tudo
começou.
Assim, a mãe da Carla foi até a escola mais próxima da sua residência
para realizar a matricula da filha, que, mesmo diante da obrigatoriedade legal, só
ocorreu após um ano e Carla passou a ser aluna de inclusão dentro de uma
EMEI.
Assim, mais uma vez, a decisão sobre qual tipo de escola encaminhar
Carla foi tomada efetivamente pela disponibilidade de vaga e não propriamente
com base em critérios de qualidade que pudessem determinar a escolha familiar
pro escola especial ou regular.
A matrícula, então, foi realizada:
MÃE: então eu fui com a Carla. Ela era pequenininha, aí eu tive que ficar
com ela. Eu fiquei por dois anos. (Mãe da Carla)
Cabe ressaltar que, para esta mãe, a possibilidade de inserção de sua filha
numa escola regular se deu após a recusa da escola especial:
MÃE: a Escola Especial Santos foi à primeira escola que eu pensei. Porque
lá eles trabalham com criança especial, a minha primeira hipótese foi essa. Que
eles iam tratar a Carla como ela tem que ser tratada, dar atenção para ela. Isso
que eu queria, atenção, porque às vezes a professora lá da EMEI tinha as
atividades com as outras crianças.
A sua experiência, nesta escola, entretanto, contribuiu decisivamente para
sua visão de que a escola regular não reunia condições para trabalhar com sua
filha, até mesmo em relação a condições mínimas de acessibilidade, como a
necessidade de uma cadeira adaptada para posicionamento correto de sua filha:
MÃE: até a diretora, que viu que ela era pequenininha e não ficava na
cadeira. Então, até a diretora fez um cartaz pedindo um carrinho para a Carla e
ela conseguiu um carrinho doado. Carrinho de bebê, né. Agora você vê, na sala
de aula com um carrinho de bebê, é complicado. Você já viu né. Então ela (a
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80
diretora) viu que não dava, que a Carla não sentava direito no carrinho de bebê.
Ela se preocupou em de dar um jeito da Carla ficar dentro da sala. Até que ela
conseguiu e a partir daí eu comecei a gostar. (Mãe da Carla)
A diretora, sem dúvida, fez o possível dentro da sua realidade, haja vista
que Carla já estava em atendimento há quatro anos e não tinha conseguido, nem
por doação, uma cadeira adaptada, necessária para seu caso. A escola também
não estava preparada para essa necessidade, assim, a única possibilidade
encontrada foi esta. Embora o mobiliário que a diretora conseguiu para adaptação
da Carla não fosse o indicado, a mãe se sente acolhida por, pelo menos, não
estar em um lugar em que, como ela mesma diz: Todos os lugares que eu vou é
não (Mãe da Carla). Mais do que isto houve por parte desta diretora uma tentativa
de auxiliar a Carla a ficar em sala de aula.
Como a escola não tinha as adaptações necessárias nem profissionais
auxiliares que pudessem acolher a Carla dentro da sala de aula e oferecer o
apoio necessário, a solução encontrada foi:
MÃE: mas eu vejo que também tinha que estar em cima da Carla. Porque
a Carla não podia ficar sozinha, não tinha nada adaptado, era uma "cadeirinha"
normal que a Carla ficou sentada.
A mãe na EMEI foi instada pela escola a permanecer dentro da sala de
aula para oferecer à filha as condições necessárias de aprendizado.
Assim, as necessidades especiais de Carla não foram acolhidas nem na
escola especial, porque não tinha vaga, nem na escola regular, porque as
adaptações necessárias para transformar as dificuldades em possibilidades de
aprendizado não foram oferecidas, mas a mãe, frente a uma história repleta de
adversidades, se contenta com o mínimo de progresso que a filha teve, muito
mais direcionado para o convívio com as outras crianças do que propriamente na
parte do aprendizado:
MÃE: e assim foi indo, foi indo. No segundo ano a Carla já não quis ficar
no carrinho, ela quis ficar na cadeira junto com as outras crianças, então eu achei
muito bom sabe, esse processo assim. (Mãe da Carla)
Até mesmo porque, a inserção da Carla dentro da sala de aula, embora,
acolhida, dada as dificuldades objetivas de conciliação entre as necessidades
terapêuticas e escolares, não pode ser efetivada senão à custa de uma
freqüência completamente diferente das demais crianças:
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MÃE: não porque é assim, lá no EMEI eles entendiam que eu corria com a
Carla, não era só a Carla que tinha de especial naquela escola, eram várias
crianças, então eles entenderam o sacrifico que a gente faz. Eles não tinham
assim: “Ah, porque você faltou”, “Porque isso, porque aquilo”, eles queriam que
ela fosse na escola nem que fosse uma vez por semana, ela tinha que ir e eu ia,
três vezes por semana, mas eu ia, e aí o que eu fazia, eu faltava uma vez, eu ia
de Segunda, Quarta e Sexta.(Mãe da Carla)
Essa atitude dos profissionais da escola, que também não poderiam
vislumbras qualquer outra saída, fez com que a mãe se sentisse acolhida, porque
a escola entendia as dificuldades e seu sacrifício, mas não conseguiu atinar que
sua filha estava freqüentando a escola em período reduzido e que isto
necessariamente implicaria em prejuízos pedagógicos.
Isto é, embora houvesse por parte dos profissionais da escola uma
intenção em oferecer, diante das dificuldades, o que era possível, essas
condições estavam muito aquém das condições mínimas para atender as
necessidades especiais que Carla tinha, como a possibilidade de atendimento
mais intensivo para superar as limitações impostas pela deficiência; ao contrário,
a redução de freqüência às aulas foi considerada como um benefício para sua
filha.
Por sua vez, Camila, aos três anos de idade, já freqüentando terapias
regulares, teve indicação para iniciar seu processo de escolarização. No início,
houve uma resistência da mãe, pois a sua perspectiva, assim como a da mãe de
Carla, estava diretamente ligada à idéia de que sua filha necessitava de vários
cuidados que somente ela poderia oferecer. Diante das dificuldades da filha, a
mãe não tinha segurança que a escola estaria oferecendo o apoio que a filha
necessitava:
MÃE: A idéia de ela ir para escola, me tirou o sono. Pensava, ela não fala
nada, no máximo ela falava, papa, mama, quê. Só falava isto. Ela não constrói
frases, não sabe me contar coisas, como vou deixá-la em um lugar que eu não
vou saber como estão tratando ela. Nem imaginava que iam maltratar, bater,
chutar, nem me passava pela cabeça uma coisa dessas, até porque eu não acho
que pararia em um lugar que acontecesse uma coisa dessas, mas sabe o que me
matava, imaginar que iria deixar ela em um berço, ou na cadeira o tempo todo,
sozinha, sem fazer nada, enquanto as outras crianças estavam brincando.
No entanto, a insistência de uma terapeuta ocupacional que, durante três
meses, insistiu que ela precisava ter contato com outras crianças, levou a mãe a
se decidir por procurar uma escola para a Camila:
MÃE: Demorou três meses para a terapeuta ocupacional da época me convencer
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que ela precisava ter contato com outras crianças.
A terapeuta, então, ofereceu uma lista com indicação para escolher quais
escolas melhores atenderiam as necessidades da filha, cabendo ressaltar que
todas eram particulares e que preenchiam as expectativas dessa mãe:
MÃE: sim, na verdade eu nem pensei em uma escola pública, nem
imaginei que uma escola pública aceitaria crianças assim, com algum tipo de
dificuldade. Para mim era aquela coisa, de repente, poderia até aceitar por ordem
da lei que é obrigada. O que, um parênteses à parte, eu acho um absurdo essa lei
de qualquer escola tenha que aceitar uma criança especial. Igual eu vi uma vez,
um pai que entrou na justiça porque uma escola não aceitou seu filho, pelo amor
de deus, que eu ia impor meu filho para alguém, sabe, eu acho que a escola tem
que ter estrutura para receber uma criança, não é só física, tanto do local como
dos profissionais aptos a trabalhar com uma criança especial. Não é por força de
lei que você consegue esse tipo de coisa. Eu acho esse tipo de coisa, obrigar
qualquer escola de esquina, qualquer escola de bairro, se eu levo minha filha lá a
escola ser obrigada a aceitar, eu acho isso um absurdo, então nem pensei em
uma escola pública, eu realmente fui na lista que ela me deu. (mãe da Camila)
O tempo entre a indicação da escola, a procura e o encontro foram de três
meses. No início semestre seguinte, Camila já estava freqüentado uma escola.
PESQUISADORA: as escolas que você procurou eram todas particulares?
MÃE: sim, ela me deu uma lista de escolas particulares em que ela já tinha tido
experiência de outros pacientes. Eram escolas particulares e de inclusão. Ou
seja, tinham tanto crianças normais, como criança com todos os tipos de
dificuldades. De todos os tipos, dificuldade visual, auditiva e comecei a conhecer,
a visitar as escolas. (mãe da Camila)
A indicação foi por uma escola regular que tinha um projeto para inclusão
de alunos deficientes, porque segundo as experiências das profissionais,
pacientes que foram para escolas especiais tiveram pouco aproveitamento:
MÃE: porque me falaram de colocá-la em uma escola mista. Não uma escola
totalmente de criança especiais, nem uma escola de crianças totalmente normais,
mas em uma escola de inclusão, que tivesse tanto criança com dificuldades como
crianças normais. Não me lembro nem quem falou, acho que foi a terapeuta
ocupacional. Não sabíamos nem como a Camila seria no nível cognitivo, e a
própria terapeuta ocupacional disse que tinha casos de pacientes dela mesmo
que colocaram em escolas especiais e as crianças começaram a imitar, a fazer
igual as outras crianças mais graves e a manifestar coisas que antes não tinham.
PESQUISADORA: você quer dizer piorar?
MÃE: por estar no convívio de crianças mais graves, isso me preocupou
muito.
Assim, a mãe partiu em busca de uma escola para a filha, uma trajetória
com algumas implicações, mas tinha uma lista, não de impossibilidades, pois,
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todas as indicações eram escolas que potencialmente aceitariam a matrícula de
Camila. Embora a marca da deficiência tivesse inicialmente sido um fator de
resistência ao encaminhamento escolar, as experiências anteriores de acesso aos
serviços de saúde qualificados - os médicos, hospitais e processos terapêuticos -
mostraram a essa mãe que suas limitações poderiam ser superadas. Desta
forma, a mãe, a partir dessas experiências, foi construindo, também uma
expectativa de possibilidades de escolarização, com dificuldades, sim, mas
também de possibilidades concretas de algum sucesso.
Entretanto, na primeira escola que procura, passa por constrangimento
semelhante ao da mãe de Carla:
MÃE: a primeira experiência que eu tive, na primeira escola que estava na lista,
foi um horror. Um absurdo. Uma escola super conceituada, uma escola que é o
maternal, que fica numa travessa da avenida Santo Amaro. Na verdade quem já
tinha me falado desta escola foi um parente dessa minha tia que comentou em
uma das festas. As filhas delas não têm dificuldades, mas ela comentou que
tinham algumas crianças na escola, uma por exemplo tinha síndrome de Donw,
então isso queria dizer que aquela escola era escola de inclusão. Ela disse que
era uma escola maravilhosa, tinha até zoológico dentro, parecia uma fazenda,
porque o contato com a natureza era super legal. Aí, eu liguei. Tudo bem,pode
até ter sido erro meu de não ter falado no início, mas eu perguntei se eles tinham
vaga para o ano que vem. Eles disseram que sim, eu disse que queria conhecer a
escola. Tudo bem, marcou a entrevista, o Ismael pediu folga no trabalho e fomos
os três conhecer a escola. Pode ter sido erro meu de não ter dito que a minha
filha era especial e de não ter se tinham vaga para criança especial para o ano
que vem. Eu perguntei somente se tinham vaga. Chegamos lá, ficamos em um
pátio super bonito, aguardando a coordenadora e conforme ela passa, nós
estamos segurando a Camila em pé, ela era pequenina, era uma casa ao ar livre
e a Camila dava alguns passinhos quando nós segurávamos ela, mas quando
você vê, percebe que a criança não anda. Esta coordenadora nem falou bom dia,
nem boa tarde nada. Virou e falou assim: “Mas ela é uma criança especial, ela é
uma criança com problema, eu não tenho mais vaga para criança com problema”.
Foi isso. (mãe da Camila)
A forma como esta recusa grosseira, no entanto, foi assimilada pela mãe
de Camila foi completamente diferente em relação à submissão com que a mãe
de Camila aceitou as recusas com relação à sua filha:
MÃE: Aí eu falei, não vou mais levar a Camila nas escolas. O Ismael não vai mais
faltar no trabalho, nada disso. Agora eu vou ligar primeiro, já falar se vocês aceitam
crianças especiais, que usam fralda, que não andam, que não falam, que não comem
sozinhas, tudo isso pelo telefone, se falarem que aceitam, então tudo bem. Vou marcar
para ir sozinha. (Mãe da Camila)
Na segunda escola, embora Camila tenha sido aceita, foi considerada pela
mãe como de custo muito superior às possibilidades familiares:
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MÃE: Fui em uma que é perto da escola que a Camila está agora, uma
escola muito legal, no Campo Belo, só que o valor [era]absurdo, totalmente fora
do meu orçamento e mesmo assim, embora a Camila já fizesse fisio e fono, era
preciso que fazer as terapias de lá da escola e seria cobrado um valor a parte
porque era extra curricular.
PESQUISADORA: Era uma escola especial?
MÃE: Uma escola de inclusão, mas quem era especial precisava fazer todas
as terapias lá, após o horário. Primeiro que a Camila já fazia terapia e eu estava
totalmente satisfeita com os terapeutas da Camila e ela teria que parar porque era
muita coisa fazer os dois, mas também porque estava fora do meu orçamento. Ah
tinha outra coisa, como a Camila não fazia nada sozinha, não comia, eu teria que
contratar uma pessoa que ficasse junto para levar a Camila para trocar a fralda,
para comer. Todas as crianças especiais tinham uma babá. Eu pensei, até que
tudo bem, posso ver alguém, quando a coordenadora falou que não, quem
contrataria seriam eles, nós só iríamos pagar. A gente é que vai escolher a
pessoa. Além disso, eu também não gostei porque era muito cheio de regras,
muito rígido, muito cheio de coisa. Não gostei da escola, gostei muito da
coordenadora, mas de qualquer forma não daria mesmo. (referindo-se a
impossibilidade de arcar com os custos exigidos) (mãe da Camila)
Diante de nova recusa, a mãe procura uma terceira instituição, onde
também tem sua pretensão recusada:
MÃE: Depois eu ainda fui em uma outra, Escola Gigantinha, sei lá,
também gostei bastante, mas tinha um detalhe, a Camila usava fralda, aí não:
“Não dá, porque nós não temos estrutura o bastante, se você aceitar que ela
venha com uma fralda e vá embora com a mesma, tudo bem.”(mãe da Camila)
Foi a mãe, portanto a mais uma escola da lista que, embora fosse a
terceira indicada pela terapeuta, o que mostra que a mãe deve ter se utilizado de
critérios diferentes da classificação feita por ela:
MÃE: A Escola Especial Escolhida era a 3ª escola da lista. Faltavam duas
Liguei [para essa escola], e disseram, olha a senhora irá falar com a Eliana que é
a diretora. Eu fui sozinha. (...) Comecei a conversar com a Eliana, [contando] o
que a Camila fazia e não fazia. E assim, ela falou: “Eu tenho crianças assim, o
grupo com o qual ela trabalha são no máximo cinco alunos, tem um professor e
mais uma assistente dentro da sala. Na classe de cinco alunos, tenho grupo que
três são especiais, e dois tem dificuldades e em outros [ocorre] ao contrário, três
são especiais e dois tem dificuldades”. Mas assim, acabam tendo, mesmo as
crianças que não têm dificuldade aparente, que andam, falam e 'nam, nam". É
muito difícil um pai colocar um filho que não tem nenhum tipo de dificuldade em
uma escola assim, e não é nem por preconceito e ela está coberta de razão,
porque qualquer criança que tem dificuldade irá aprender devagar mesmo. Tem
que ir mais lento, não é? A parte pedagógica de uma escola normal consegue ir
muito mais rápido do que em uma escola especial, então, tinha problemas de
comportamento e só, déficit de atenção, não era nada assim, mas tinha um tipo
de dificuldade. (mãe da Camila)
Apesar de todas as recusas anteriores, a quarta escola (que foi a que
Camila foi matriculada), não foi a que restou para sua filha, mas o contato com
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uma escola acolhedora também teve a ver com a forma com que a mãe foi
recebida, pela segurança que sentiu com relação ao número de alunos por
classe. Além disso, um ponto fundamental priorizado pela mãe para a tomada de
decisão foi a forma diferenciada de observarem quais as capacidades que sua
filha tinha, diferente de uma experiência anterior em outra escola:
MÃE: Agora teve uma outra questão, onde foi? Acho que na escola PA que
eu fui, (...) cheguei a levar a Camila para uma avaliação. A avaliação levou uma
hora e meia, não lembro se foi com a TO ou com a fono da escola, ela pôs uns
negócios para a Camila no chão, nem sei direito, até porque, primeiro é assim,
qualquer atividade com a Camila tem que ser rápido, não pode ser muito devagar,
porque ela quer fazer várias coisas ao mesmo tempo, e você ficar insistindo em
uma atividade com ela é certo, ela vai ficar irritada, nervosa, brava ela fica super.
Precisa estar fazendo coisas e coisas o tempo inteiro. Eu me lembro que eu sai
de lá pensando o que ela poderia ter pego da Camila, apenas que ela era irritada,
brava, nervosa. Porque ela estava insistindo com a Camila, nem lembro direito,
era uma atividade com uns pinos, mas de qualquer forma, eu pensei, essa não,
vou ver as outras. (mãe da Camila)
Cotejando essa experiência anterior com a atual, a mãe constata que a
aceitação de sua filha não significou um rebaixamento da escola em relação às
exigências da primeira, mas por critérios pedagógicos diferenciados:
MÃE: conversei com a Eliana, (diretora da escola escolhida) e ela me disse: “Olha
eu acredito em tudo que você me falou da Camila, mas a gente precisa conhecer.
Nós só vamos pegar a Camila se realmente verificarmos que é para ajudá-la em
alguma coisa. Pegar a Camila para apenas ter contato com outras crianças, não”.
Achei-a muito direta. (risos) (mãe da Camila)
Isto fica ainda mais evidente com o relato das perspectivas de
aprendizagem de conteúdos escolar apontadas pela diretora e pelo fato de que
ela, também, tinha filhos deficientes:
MÃE: não é verdade, se você quer ter contato com outras crianças, vai para um
parque, vai para não sei aonde, [aqui] ela precisa aprender coisas, ela precisa se
desenvolver em outras coisa. Nós precisamos verificar se ela está aprendendo.
Ela veio me contar que tinha um casal de filhos, hoje já com trinta e poucos anos;
ela era professora e o marido um empresário, e ela teve um casal de gêmeos e a
menina tem fenilcetonuiria, sabe aquela doença do pezinho? E o menino teve
atraso mental porque faltou oxigênio no parto, há trinta anos atrás e ela percebeu
que não tinha lugar para colocar o filho dela. O marido vendeu o que eles tinham
e abriram uma escola por causa dos filhos. Sabe aquela identificação, ela sabe o
que ela esta fazendo, ela viveu isso. Aí eu já gostei disso. Por coincidência, o
professor de educação física da Camila é o filho dela. Você conversa com ele,
você percebe que ele tem uma dificuldade grande, mas ele se formou em
educação física. A menina não lê, não escreve. Ela vive lá na escola porque eles
moram perto, e ela disse que com a filha, na parte pedagógica ela não conseguiu
nada. Mas ela pinta muito bem, borda muito bem, cozinha muito bem. Então foi o
que ela falou, vou ser muito sincera com você, aqui na minha escola não ensina
nem a pintar, nem a bordar, nem a cozinhar. Meu filho ficou aqui comigo e se
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formou na faculdade, minha filha foi para outra instituição que ensina outras
coisas, trabalhos manuais. Minha filha não sabe ler, não sabe escrever. Eu só vou
pegar a Camila se eu imaginar que um dia ela vai aprender. Não estou falando
que vai com certeza, mas que ela tem condições de aprender a parte pedagógica.
Minha filha até hoje confunde coisas. Ela conhece todas as cores, mas
dependendo da hora que você perguntar para ela, fala errado. Aqui eu não ensino
isso. Posso até te indicar outras instituições que ensine outras coisas, porque
você não precisa ser feliz na vida aprendendo a ler e a escrever. Minha filha é
muito feliz e vende os trabalhos que ela faz. Eles tem bazar duas vezes por ano
que tem uma área da escola, mas para adultos que a filha dela faz trabalhos
manuais e que vendem na escola. Que é muito legal. São adultos agora que não
tiveram condições de trabalhar em postos de trabalho normal. Ela falou: “A escola
regular, para entrar, a criança tem que ter condições”. (mãe da Camila)
A necessidade de avaliação das condições de aprendizagem de sua filha
estabeleceu novamente alto nível de ansiedade na mãe, dadas as experiências
anteriores, mas que, no seu decorrer, foi lhe mostrando que, dependendo dos
critérios, poderiam ser descobertas novas possibilidades de aprendizagem:
MÃE: então você traz a Camila que nós vamos fazer uma avaliação. Quando
falou em avaliação eu até me arrepiei. Como eu tinha contado tudo para o Ismael
como foi a avaliação na outra escola, ele disse eu vou junto. Cheguei lá não foi a
avaliação com a ELIANA, foi outra pessoa. na avaliação tinha assim, um pino e
umas coisas coloridas. Ela sentou a Camila e ela já queria mexer, já jogou. Eu e o
Ismael fomos ficando péssimos, mas ela sentou a Camila e disse: Camila presta
atenção que eu quero que você me fale uma coisa, cadê a Camila? A Camila fez
assim (mostrou ela). Cadê a mamãe? Papai? E a Eder, olha o nome da mulher,
nem eu sabia quem era porque tinha esquecido o nome. A Camila começou a
procurar na sala, só faltava ela na sala. Aí a Camila apontou para ela. Ela deduziu
que era ela. Está bom. Agora para de olhar para as coisas que eu quero que você
coloque todas as argolas aqui no pino. A Camila jogando, não preste atenção no
que eu estou falando e foi lá e colocou uma. Eu quero que você coloque apenas
uma. Pega uma argola e coloque no pino. A Camila colocou. Agora tira, a Camila
tirou. Pronto. Ela pode freqüentar a escola. Eu perguntei, acabou? Acabou.
Depois eu até conversei com a ELIANA, durou dois minutos a avaliação é isto
mesmo? E ela me respondeu. Sim, ela teve condições de deduzir por si própria
um problema, então pudemos verificar que ela tem raciocínio, que ela consegue
pensar por ela mesmo e ela teve condições de aprender, ela imitou. Eu falei que
ela tinha diagnóstico de hiperatividade, mas ela disse não importa, ela tendo
condições de aprender. Ela até hoje fala, acho que vocês ficam cansados de eu
dar exemplo dos meus filhos, mas minha filha nunca apontaria quem era a Eder,
nunca teria o raciocínio de que já não tem mais ninguém aqui só pode ser ela. É
uma coisa que a criança tem condições de aprender e raciocinar por si própria,
não apenas imitar. Ela tem condições de aprender realmente. Tem muita criança
que apenas imita. (mãe da Camila)
Como se vê, embora aparentemente as duas histórias pareçam ser
similares, de buscas frustradas para inserção de suas filhas em qualquer escola
que as aceitasse, a trajetória da mãe de Camila foi lhe mostrando que escolas
potencialmente adequadas possuíam critérios diferentes e que em uma delas
esses critérios e as possibilidades de aprendizagem de sua filha foram
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compatibilizados.
Isto é, enquanto que a busca por escolarização por parte da mãe de
Camila foi ascendente em termos de incorporação das possibilidades de sua filha,
a da mãe de Camila, ao contrário, foi fazendo com que ela construísse uma
representação cada vez mais restrita sobre as suas possibilidades de
desenvolvimento e aprendizagem.
2.2.6. A fase atual de escolarização
A escolarização de Carla seguiu seu curso na EMEI, sem que houvesse
qualquer indicação de possibilidades de algum resultado em relação à
aprendizagem escolar e, após o período de dois anos na EMEI, sem que as
adequadas adaptações fossem oferecidas, pelo fato dela ter atingido a idade
limite para freqüência na educação infantil, sua mãe foi comunicada que deveria
procurar a escola de ensino fundamental que ficava perto da sua casa, apesar da
mãe considerar que havia uma outra escola pública no bairro que seria mais
adequada para sua filha.
Mais uma vez, sem qualquer possibilidade de escolha, a mãe teve que
colocar sua filha onde foi possível:
PESQUISADORA: então me conta como foi este processo de
transferência? Quem que decidiu, a escola, foi você?
MÃE: não, eles até nem sabiam para a escola que iam, eles decidiram
assim na última hora. Eu preferia o CEU, mas como eles decidiram de última
hora, eles colocaram a Carla nesta escola.
PESQUISADORA: porque você preferia o CEU?
MÃE: ah, porque lá tem mais professores, tem mais atividade lá, que
assim eu não conheço como funciona lá, mas já falaram muito bem desta escola,
e essa Escola Regular FG, desde que meu filho freqüenta lá, sempre tem polícia
para separar as brigas, porque é assim, é aluno querendo bater em professores,
é uma bagunça. (Mãe da Carla)
E qual foi à experiência inicial dessa mãe ao chegar nessa escola, sem
qualquer infra-estrutura para atender adequadamente seu alunado comum,
quanto mais alunos com limitações evidentes como era o caso de sua filha?
MÃE: lá na Escola Regular FG, transferiram ela para lá. Só que estava
uma bagunça no começo. Não tinha professor. Eu até, como se fala, eu fiquei
meia na dúvida: “Não, vou esperar um pouco até organizarem a escola”. Porque
eu fiquei com a Carla na sala de aula duas vezes, porque não tinha professores.
Eu tinha que ficar para cuidar das outras crianças. Não tinha assim, ficava um
(professor) na sala e já mudava para outro, passava alguém lá e dizia, não espera
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que vem vindo outro (professor), e o outro nunca que aparecia até abril foi assim,
essa bagunça na escola e eu não fui, para falar a verdade eu não fui, ia ficar aqui
fazendo o que com a Carla?
PESQUISADORA: não entendi. Você quer dizer que não tinha professora
nem para a Carla nem para as outras crianças?
MÃE: isso
PESQUISADORA: não era professor especializado que estava faltando na
sala, não tinha professor nenhum.
MÃE: isso. Não tinha de jeito nenhum. Era assim. A escola toda estava
assim, até ir organizando as salas não tinha professor nenhum.
(...)
PESQUISADORA: vamos retomar na questão da escola. No dia seguinte
era outra professora? É isso? Ás vezes mudava de meia em meia hora, é isso?
MÃE: isso, de meia em meia hora, porque, não tinha como ficar uma no
período inteiro da aula.
PESQUISADORA: não tinha um professor?
MÃE: isso.
MÃE: aí eu falei: “Não só vou voltar quando tiver uma professora na sala
de aula.” Porque eu fiquei duas vezes, na sala de aula para cuidar dos alunos.
PESQUISADORA: de todos os alunos?
MÃE: É, de todos os alunos.
PESQUISADORA: sem professora?
MÃE: é, sem professora. A coordenadora falou: “Mãe, você pode ficar para
gente, porque a gente está sem professor e a gente não tem como dispensar os
alunos porque a maioria dos pais foi trabalhar e nós não temos como dispensar
os alunos.” Era a escola toda que estava assim. Então não tinha como distribuir
os alunos para as outras salas, porque a escola inteira estava assim. Então não
tinha como. Tinha que ser cada um na sua sala.
PESQUISADORA: Você ficou em uma sala com 36 crianças?
MÃE: É... (mãe da Carla)
Além de se deparar com uma escola que não tinha as mínimas condições
de receber uma criança com as características de sua filha, a mãe de Carla, que
resolveu pemanecer na escola, por receio de que pudesse acontecer alguma
intercorrência mais grave com sua filha (numa escola, que nem professor tinha
durante os dois primeiros meses de aula, segundo seu próprio relato), foi
compelida a assumir, por dois dias, o absurdo papel de substituta. Isto é, mais
grave ainda do que a forma completamente inadequada com que a escola
“recebia” a sua filha, o fato de que a classe de sua filha e outras mais, não
contarem com a presença de (pasmem!) professores, e de que ela, por razões
fortuitas, fosse designada a se travestir em “professora substituta”, mostrou para
ela que uma escola de qualidade não era uma expectativa viável não só para sua
filha, mas para qualquer filho (normal ou com deficiência) daqueles que tinham
posição social semelhante à sua.
O relato da situação surrealista da mãe no papel de professora é ainda
mais marcante:
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PESQUISADORA: e o que você fez?
MÃE: olha, eu pedi para eles fazerem o cabeçalho, depois para eles
fazerem um desenho do jeito que quisesse, foi uma loucura, até o professor,
alguém vir e falar: “Pronto mãe, pode ficar sossegada.”
PESQUISADORA: me explica mais o que você fez. Você pediu para fazer
o cabeçalho. Porque eu fico imaginando, de repente...
MÃE: toda hora vinha um (aluno) e: “Maria está certo?” “Oh tia, está
certo?” Cada um me chamava de um jeito: “Está, pode fazer o que vocês
quiserem, tá certo, podem fazer o que vocês quiserem”. Aí eles fizeram os
desenhos deles.
PESQUISADORA: você pediu o desenho deles e o que mais?
MÃE: foi só isso e o que ia fazer mais? Eu não sabia o que ia fazer, aí eu
falei, faz alguma coisa: “Vamos, vocês façam o desenho que o mais bonito eu
coloco aqui na frente para os outros coleguinhas verem”. As crianças ficavam
assim: “Aí Maria, vem me ajudar”. Todo mundo queria minha ajuda, e aí eu falei?
“Assim não vale, tem que ser vocês, não está certo”. Eu fiquei boba né, duas
vezes, porque aí na segunda vez aconteceu a mesma coisa.
PESQUISADORA: em um intervalo de quanto tempo?
MÃE: na mesma semana.
PESQUISADORA: quanto tempo você ficou na classe?
MÃE: Uns 30 minutos, até vir uma substituta, ou a diretora mesmo. Muitas
vezes eu vi a coordenadora que ficou lá passando as atividades porque não
tinham professor.
A experiência inicial, mais que negativa, de inserção de sua filha no ensino
fundamental, que em tese deveria possuir organização muito mais formal do que
a educação infantil, não fez com que esta mãe tomasse a iniciativa de procurar
outra escola, mesmo porque, todas as suas experiências anteriores mostraram
que, para pessoas da condição delas, não havia oportunidades de escolhas, mas
somente um destino escolar único, mesmo que completamente indesejável.
PESQUISADORA: e isso foi fevereiro, março. Quando você desistiu e saiu
da escola?
MÃE: eu pensei, foi nesse período do carnaval, até carnaval, porque toda
semana era a mesma coisa, né! Aí eu falei, na hora que normalizar eu volto. Até
tinha as professoras - porque eu conheci praticamente todas na escola - porque
de meia em meia hora mudavam. Então elas conheciam a Carla, toda vez que
elas iam pegar as classes delas lá no pátio, elas cumprimentam a Carla. Porque
eu conhecia todas elas, assim de nome ainda não, porque é meio difícil gravar,
mas assim, conforme elas estavam na sala, eu já sabia identificar quem era.
PESQUISADORA: isso foi em que período? De fevereiro até?
MÃE: de fevereiro e acho que até maio, porque em abril eu fui umas duas
vezes e ainda estava do mesmo jeito: “Eu vou esperar ter professor fixo para
poder começar a ir para a escola.”
PESQUISADORA: Ah! Você parou de ir para a escola?
MÃE: isso
PESQUISADORA: então me conta, o primeiro dia de aula foi quando? No
começo de fevereiro?
MÃE: foi! E logo veio o carnaval, aí ficou aquele tempo em casa também,
[e quando] eu voltei, estava do mesmo jeito,
PESQUISADORA: quando você desistiu de ir para a escola e começou a
faltar mais vezes?
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MÃE: faltei
PESQUISADORA: você voltou na escola quando, depois de março?
MÃE: finalzinho de abril para maio.
Nesse momento, o primeiro semestre está na metade e ainda a Carla não
teve aula, e quando mãe retorna para a escola, que finalmente conta com
professoras, se depara com a seguinte situação:
PESQUISADORA: aí você ficou março e abril sem para a escola. No final
de abril você voltou lá, e como estava?
MÃE: aí a professora já tinha tomado conta da sala de aula. Até ela
perguntava para os alunos quem que era a Carla, aí eles (os alunos) falavam, a
criança doente, porque eles não sabem falar, e falam que a Carla era uma criança
doente, que ficava com mãe dentro da sala de aula. Ela mesmo falou isto para
mim, que perguntava para eles e eles falavam: “Que era uma criança doente que
ficava na sala”. Aí ela começou a conhecer a Carla, mas até então não se mexia
para nada. (Mãe da Carla)
PESQUISADORA: como assim, não se mexia?
MÃE: de dar atenção para a Carla, de chegar assim perto da mesa e dar
atividade para ela.
Especificamente com relação ao acolhimento de Carla pela nova
professora, o relato da mãe é de total conformismo frente a uma profissional que
também não reúne qualquer condição de exercício do magistério, mas que, com
certeza, foi das únicas professoras que deve ter aceitado trabalhar em condições
tão adversas.
O relato de sua postura frente às dificuldades de Carla é um exemplo cabal
desse despreparo:
PESQUISADORA: ela em algum momento tentou?
MÃE: tentou, não vou mentir não, tentou. Ela foi lá, abriu o caderno da
Carla e falou: “Oh Carla, a ‘pro’ vai passar na lousa, e você presta atenção como
a professora vai fazer.” Aí a Carla, que qualquer coisinha distrai a atenção dela,
então jamais a Carla ia acompanhar. Mas eu não vou mentir não, ela foi sim até a
mesa: “Oh Carla, a ‘pro’ vai fazer a lição ali na lousa e você tenta acompanhar a
‘pro’, você escreve aqui no caderno.” Mas não saiu daquilo. Ela chegou para mim
e disse, ela não consegue acompanhar né? Eu falei, não, não consegue. E ela
perguntou, então o que ela faz? Eu falei, ela rabisca, pinta, ela consegue ligar,
tudo que ela fazia, bolinha para bolinha (...) Até então que a professora perguntou
se a Carla acompanhava e eu falei que não. E ela não foi mais na mesa da Carla,
ela levava assim quando era sulfite, para criança fazer a atividade em casa, mas
mesmo assim a Carla não fazia, ela só rabiscava o que estava escrito ali, porque
ela queria mostrar para a professora. Porque ela levava como as outras crianças
assim para mostrar o caderno. Nossa dava dó da Carla, ela queria levar também,
eu falava calma Carla, calma, vamos fazer primeiro, vamos fazer bonitinho para a
professora ver. Aí ela de novo rabiscava no mesmo lugar, e ela já queria levantar
para levar, porque ela via as crianças levando as atividades para a professora
ver, e ela queria levar também.
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Na verdade, a total falta de integração entre a educação infantil e o ensino
fundamental mostra que a política educacional não está sendo implementada
para dar conta desses alunos, já que a escola que a recebeu nem sequer foi
informada pela EMEI que se tratava de uma aluna com limitações motoras
acentuadas provenientes de paralisia cerebral:
MÃE: até eles (a escola) mudaram, porque como se fala, eles não sabiam
que a Carla era especial, [pois] lá da outra escola, da EMEI, eles não passaram
para esta, que ela era especial, então eles colocaram ela na última sala. Tinha o
primeiro, segundo, terceiro andar eles colocaram ela. Ela ficou no último, aí
conforme eu comecei a freqüentar, eles falaram puxa vida, a EMEI não passou
que ela era uma criança especial, por isso que ela está na sala de cima. Aí
desceram ela no térreo, para ficar melhor para a Carla. Mas, mesmo assim a sala
da Marcia (professora especial), ficava no segundo e tinha que subir escada
porque lá não tinha elevador, na cadeira de rodas sem chance, tinha que ser tudo
no primeiro. Aí então eles estavam dando um jeito, tinha uma cadeira de uma
criança que não estava mais indo e a cadeira ficou lá, então a Carla estava
usando essa cadeira de adulto que ficou lá. Então assim, tinha que levar a
cadeira primeiro, para depois levar a Carla.
PESQUISADORA: e quem fazia isto?
MÃE: elas me ajudavam, né. Tem uma moça, lá que trabalha na limpeza e
eles estão agilizando para eles estarem ajudando as crianças lá naquela escola.
Aí ela levava a cadeira para mim e depois eu subia com a Carla.
Todas essas medidas improvisadas são a expressão mais evidente da total
falta de condições objetivas dessa escola em aceitar uma aluna com as
deficiências da escola, mas como para pais e equipe escolar essa é uma
exigência legal, não há como não aceitá-la, mesmo sem que as mínimas
condições possam ser oferecidas, apesar dos estatutos legais em vigor.
5
A inserção de Carla na escola vai mobilizando recursos que ela possuía e
que a mãe, quando da experiência inicial nem sabia que existiam, como por
exemplo, o concurso de professora especializada.
PESQUISADORA: teve uma professora ou auxiliar da parte da educação
especial?
MÃE: é, no começo ela já estava com este projeto de estar na sala de aula
com a Carla e junto com as outras crianças, né, para todo mundo fazer junto.,Que
é o certo seria a Márcia, ela queria fazer isto.
PESQUISADORA: a Marcia era a professora especial?
MÃE: não, a professora especial era a Lucia. A Marcia que queria fazer
isso.
PESQUISADORA: quem era a Marcia?
PESQUISADORA: a professora da sala, a Lucia era a professora especial.
5
Veja-se, por exemplo, as exigências dispostas na Resolução CNE n. 2/2001, sobre as
adaptações escolares necessárias para a inclusão com qualidade de alunos com deficiência física.
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Ela falou que a gente está entrando com um projeto dando as atividades para a
criança especial dentro da sala de aula. Tem o individual e tem o da sala de aula.
Ai eu falei, tudo bem né, se é para o bem dela vamos fazer o que for possível.
(mãe da Carla)
Mas a experiência de poder contar com recursos humanos especializados
vai se configurando, mais uma vez, como um problema e não como uma solução,
dada a absoluta falta de condições de vida que permitissem à mãe de Carla
conciliar os atendimentos clínicos e escolares de sua filha.
MÃE: ai ela começou, mas tinha a freqüência da Carla, que eu comecei a
ir no médico, aí eu comecei a faltar, aí um tempo atrás agora eu fui, nessas faltas
que eu faltei, eu levei o atestado, então, ela estava com a pastinha lá da Carla, aí
ela entrou com a pastinha lá da Carla e entrou com umas gracinhas dentro da
sala.
PESQUISADORA: como assim?
MÃE: assim, era para as crianças fazer um dominó e fazer um alfabeto,
com as letras do alfabeto, só que não deu certo porque a Carla faltou aí na outra
semana a Carla faltou de novo, ela pegou esse trabalho que eles iam fazer e fez
com uma criança especial de outra sala, aí ela entrou na sala de aula e falou
assim, já entrou assim, mostrando desse tamanho assim, o dominó né, Oh!
Crianças quem fez isso daqui foi o Vitor, era para a Carla ter feito, mas como ela
faltou muito não foi ela quem fez, quem fez foi o Vitor, encheu a boca para falar,
aí na hora eu vi que ela entrou com arrogância, com tom de arrogância, levantei
da cadeira , e falei assim, olha professora eu vou lá em casa, vou buscar um
guarda-chuva porque está chovendo muito e não vai ter como eu ir embora para
casa, e 40 minutos passam rapidinho é o tempo de eu ir e voltar, aí ela começou
a falar da Carla e eu saí fora, saí mesmo porque eu ia, como se diz, bater boca
com ela na sala, porque ela não deveria falar assim, o que as crianças sabem o
que está acontecendo. Tipo assim, ela quer jogar uma indireta para você e ela
está falando aqui, do seu lado e ela já chegou assim. Meu deus do céu, o que as
crianças tem a ver com o meu problema que a Carla está faltando e que não deu
para aprender a lição. Ela já entrou assim, com aquele tom de arrogância e eu
senti na hora.
PESQUISADORA: você esta falando da professora especial?
MÃE: é a professora especial, aí eu não agüentei eu saí. Na volta que eu
fui lá buscar o guarda-chuva, aí eu entrei na sala, aí eu sentei e a Carla já virou
de lado para me ver, [referindo a fala da professora] vira para cá, Carla vira para
cá faz de conta que a sua mãe não está aqui, vira para cá. Aí, oh mãe dá para a
senhora sair, porque está atrapalhando. Eu falei, tudo bem, saí, fiquei na minha.
(Mãe da Carla)
Esse conflito foi se agravando pela reiteração das exigências da escola e
pelas impossibilidades concretas de conciliação entre os horários de
atendimentos clínicos e de freqüência à escola:
MÃE: olha, sabe o que a professora está querendo falar com a senhora, é
para deixar a Carla lá. Deixar ela sozinha sem ninguém por perto, para ela ficar lá
e eu ir para casa.
PESQUISADORA: e aí?
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MÃE: logo de inicio eu falei não, e ela perguntou, porque? Porque eu não
confio em deixar a Carla sozinha na sala de aula. Eu com a Carla na sala de aula,
a senhora não vem na mesa para dar uma atividade para ela, imagine eu longe o
que vai acontecer? Ela, não, mas aí a gente vai tentar passar umas atividades
para ela, não sei o que. Porque que já não fez isso antes? Eu lá dentro da sala,
agora vai querer tirar eu de dentro da sala de aula, e fazer o que com a menina?
Eu fiquei desconfiada, porque a professora Lucia agindo daquele jeito, e ela vem
falar isso para mim. Na quarta-feira eu fui, falei porque eu tinha faltado, né. E ela
falou tudo bem a professora Marcia avisou.
MÃE: Porque ela falou das faltas que a Carla tinha muitas faltas, aí eu tive
que lembrar ela do começo, porque ela, a diretora entrou bem depois da bagunça
da escola, porque no começo também não tinha diretora, não tinha professora,
aquela escola estava um caos, uma bagunça e ela veio falar isso daí para mim.
Lembrei ela tudo de novo, é por isso, por isso, por isso, que eu faltei e toda vez
que a Carla precisar faltar para ir no médico eu vou faltar. Ela disse assim,
mãezinha você não pode, porque a Carla tem que ter uma rotina na escola. Eu
sei que ela tem que ter uma rotina. Não está tendo condições da Carla estar
vindo. Ah você tem que dar um jeito. Aí veio com a história do Morro Doce, você
está querendo correr da escola. Eu disse, não, não estou querendo correr, era
uma atividade que ela já fazia, eu falei conforme eu não estava conseguindo ir lá,
eu também não estava conseguindo vir aqui. Então eu prefiro mais as terapias
delas, os médicos do que a escola. E ela falou, então você escolhe as terapias
dela ou a escola. Então eu escolho. (mãe da Carla)
Até que a mãe recebeu o ultimato da escola:
MÃE: Aí a diretora veio com isso aí também, se eu não tivesse gostando
que era para eu sair, porque tinha mais crianças querendo estudar.
Embora muitas de suas experiências pudessem ter feito com que essa mãe
fosse construindo uma perspectiva de que as dificuldades frente às necessidades
de saúde de seus filhos fossem “naturais” já que estavam estendidas não só no
âmbito das pessoas com deficiência, a história de atendimentos inadequados, de
recusas sem explicações, de desconsideração sobre as necessidades
diferenciadas de sua filha com deficiência, foi produzindo alguma diferenciação
entre as possibilidades de reversão de situações muito desfavoráveis do filho não
deficiente e da filha com essa marca:
MÃE: olha o meu filho ele está com dificuldade muito grande no
aprendizado dele, porque, devido a esta escola, porque ele já saiu do EMEI e já
foi para essa Escola Regular FG. Então a gente tentou colocar ele na Escola
Regular Águia, onde é mais rigoroso, né. Então assim, ele não conseguiu
desenvolver nesta escola (se refere à Escola Regular FG), ele está na quinta
série e não está acompanhando, ele não sabe assim, como se diz, fazer as
palavras direito. Ele não sabe separar, então muitas mães reclamam de lá, não é
só eu, muitas e muitas.
PESQUISADORA: o Cleber da primeira à quarta série estudou nesta
escola que a Carla está?
MÃE: É. Até a quarta série, a gente mudou ele.
PESQUISADORA: então o Cleber também não aprendeu nesta escola?
MÃE: Não! Não! A gente mudou ele, durante esse período que nós fomos
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vendo como funcionava a escola, a gente foi tentando colocar ele em outra mas
não tinha como. Como ele estava matriculado lá, eles não davam preferência
porque já estava matriculado na escola, não tinha como mudar, aí conforme uma
mãe lá conseguiu tirar um outro que também estudava nesta escola, ela
conseguiu ir para Escola Regular Águia, aí meu marido falou como a senhora
conseguiu? E ela falou eu elogiei muito bem a Escola Regular Águia e falei o que
estava acontecendo na Escola Regular FG. Aí a diretora colocou ele, aceitou
essa criança que era da Escolar Regular FG, devido a que? Devido a essa
bagunça que é a escola, ele não tava aprendendo nada também, e ela mudou. Aí
meu marido, “ah então é assim?” Ele foi lá conversou com a diretora, explicou
também o que estava acontecendo que ele não estava conseguindo acompanhar,
e até hoje ele fala, ele entrou esse ano na escola Regular Águia, ele está meio
assim perdido nas matérias. Ele falta palavras, ele não consegue separar o que
tem que separar, nessas coisas ele está atrasado, a gente está até vendo que ele
não vai passar de ano. Ele entrou quase no meio do ano nesta escola.
Assim, se as possibilidades de uma escolarização de melhor qualidade são
quase que impossíveis para seu filho normal e somente após estratégias
elaboradas seus pais conseguem fazer com que uma escola considerada mais
qualificada, sob o argumento de que, na escola anterior, ele não aprendia
praticamente nada, como utilizar o mesmo argumento para uma filha que, em
todas as situações de atendimento (médico-diagnóstico, clínico-terapêutico e
escolar) lhes mostrou baixíssima possibilidade de desenvolvimento e de
aprendizagem?
Assim, no caso de Carla, não restou outra opção do que a de mantê-la
nessa escola, apesar de todos os desencontros, conflitos e incompreensões
relatados acima apesar da afirmação abaixo:
PESQUISADORA: você acha que a escola que ela esta freqüentando hoje
não é importante?
MÃE: olha, assim, se ela fosse uma escola especial, sim eu daria
importância à escola, mas como eu estou vendo que eles não estão dando
atenção para a Carla, então eu fico meia com o pé atrás. Eu não confio em deixar
a Carla lá.
Pode-se verificar, portanto, que a experiência atual de escolarização de
Carla está sendo uma sucessão de situações constrangedoras e de completo
abandono, não só em relação à sua filha com deficiência, mas às outras crianças
e à própria unidade escolar que, durante dois meses após o início das aulas, não
contava com professores suficientes para o número de classes existentes. Além
disso, a presença de professora especializada parece não ter contribuído em
nada para seu melhor desempenho e os conflitos entre as exigências da escola e
as possibilidades de conciliação dessas exigências com as necessidades de
atendimento clínico são praticamente impossíveis vão gerando uma insatisfação
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dessa mãe que, entretanto não tem condições sociais objetivas de escolher uma
outra escola que fosse e que pudesse significar melhoria da qualidade do
atendimento oferecido.
Já no caso da Camila, a vivência que a mãe teve, foi bastante diferenciada.
Ela acima de tudo teve a confiança que sua filha poderia aprender, apesar de se
constatar que, mesmo com toda a receptividade da diretora, ela ainda tinha
dúvidas sobre a qualidade do atendimento que seria oferecido à sua filha:
MÃE: eu nem fui nas outras. Sabe aquela coisa assim, é esta e pronto. Não
fui, nem liguei. O valor dela também dava no meu orçamento e era perto da minha
mãe. Comecei a levar, mas meu medo era, tudo bem a Eliana é maravilhosa, mas
a Eliana é diretora, ela não está na classe o tempo inteiro. Tudo bem que eu acho
que ela não teria profissionais ruins. Do jeito que ela é, a confiança que ela passou
para mim, para o Ismael depois, ela não teria profissionais que fossem relapsos ou
esse tipo de coisa, mas ela não estava dentro da classe o tempo inteiro.
MÃE: Como eu saberia que a Camila estava gostando de ficar, que estaria
sendo bem tratada? Mal tratada nem pensar, mas ela eu quero que ela seja bem
tratada. Foi muito legal, porque eu tinha conversado com outras mães que
também estava procurando escola e que deixavam as crianças chorando,
esperneando, mas que é normal que a criança chora, eu ficava nervosa. Isto foi
antes, porque eu fiz a matrícula, depois vieram as férias, porque eu fiz no final do
ano. Eu falava eu não vou agüentar deixar a criança chorando. Eu não deixo a
Camila nem em casa chorando. Quando tenho que ir ao banheiro, eu levo ela
junto. Como vou deixar ela na escola chorando? Não vou conseguir. Isso me tirou
o sono. (mãe da Carla)
Entretanto, a forma como Camila foi introduzida na escola foi minando
qualquer desconfiança sobre a qualidade do atendimento oferecido:
MÃE: Cheguei lá, veio a professora dela, a Ana e me apresentaram a
assistente. O Ismael foi junto. Aí falaram, Ismael dá para você esperar no pátio,
porque a mãe vai entrar. Eu entrei na classe. Eu fiquei uma semana com ela
dentro da classe. E assim, a Camila no meu colo, às vezes a professora Ana
pegava ela. Uma semana depois, porque é assim, é uma casa, tem as janelas,
tem o corredor e tem o pátio. Depois de uma semana ela falou assim, agora você
vai sair, mas você vai ficar na janela. Então, na hora que eu sai a Camila ficou
“mamãe”; “Calma, a mamãe já vem”. Eu saí correndo e fui na janela: “Calma
mamãe está aqui”. Eu estava na janela, só que do lado de fora da classe. Das
oito ao meio dia. Eu estava lá, e a Camila fazendo as atividades e daqui a pouco
ela parava e me olhava. Depois de não sei quanto tempo a professora vinha e
falava você ficará no pátio. Mas dava para ouvir: “Se a professora assistente
aparecer na janela você vem”. Assim eu fui, a Camila olhava para janela e
começava a chorar, eu corria e dizia estou aqui. A mamãe está aqui na escola,
pode ficar tranqüila. Aí, esse “mamãe, mamãe” ficou cada vez menos. Durou mais
ou menos um mês e meio. Até que teve um dia que a Camila não me chamou
mais. Eu fiquei uns três dias seguidos sentada ali sem a Camila me chamar. Aí a
Eliana falou assim, pode ir embora. Eu achei um jeito muito legal. Demorou um
pouco, mas a Camila não teve nenhum medo. Ela foi se acostumando, a criança
deve sentir muito medo, por mais que ela se distrai depois a criança deve sentir
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muito medo. Mas eu acho que aquele medo inicial ela não passou por isso. Ela se
adaptou de forma gradual sem nenhum problema. (mãe da Camila)
Este período inicial de permanência na escola, acompanhando as
atividades realizadas com sua filha e que foi sendo gradativa e paulatinamente
reduzido até a sua liberação, não serviu somente para que sua filha se adaptasse
à escola (tal como a escola encarava) nem para sua tranqüilidade como “mãe
zelosa”. Essa possibilidade de experiência compartilhada, em que sua filha foi se
acostumando com um espaço social novo, sem a presença constante da mãe,
mostrou a essa última que, com determinadas formas de adaptação social, sua
filha também poderia se acostumar com novas experiências de relações sociais
significativas.
MÃE: porque este mês e pouco, por mais que não estava na classe, eu
estava lá. Eles não fariam nada com a Camila, mas e agora como vou saber se
ela realmente está bem? Assim, a Camila mesmo estava demonstrando. Quando
eu chegava na escola, a professora vinha pegar ela na porta e ela pulava no colo
da professora. Eu tinha que pedir para me dar um beijo, mas ela nem queria
saber. agarrava no colo da professora e tchau. Na hora de embora ela agarrava
na professora. Não falava nada, mas estava dizendo, não quero ir embora. Quero
ficar aqui. Ela demonstrava, não preciso nem falar. Qualquer criança que é mal
tratada quando vê a mãe. Teve um dia que eu cheguei a deixar ela almoçar na
escola, porque tem crianças que ficam em período integral, eu cheguei a deixar
ela almoçando na escola para ficar mais um pouquinho. Acredita? Porque ela não
queria ir embora. Esse é o quinto ano da Camila na escola. (mãe da Camila)
Por fim, mas não de menor importância, a experiência que essa mãe
continua tendo em relação às possibilidades de rendimento escolar também
constituem marcas significativas na construção de seus imaginários sobre as
limitações, mas, principalmente, sobre as potencialidades de sua filha:
PESQUISADORA: o que você acha que a Camila aprendeu?
MÃE: Olha vou te falar uma coisa, ela entrou em março, na época ela tinha três
anos logo fez aniversário em maio, então ela tinha quatro anos, ela só falava ma,
pa, no final de agosto e começo de setembro ela estava falando um monte de
palavras. Ela ainda não falava artigos, mas já falava um monte de palavras e
tentava formar frase. Todas as crianças que estavam na classe dela falavam,
menos ela. Então eu acho que foi muito importante, porque ela é metida a
orgulhosa e imagina se ela ficaria para trás. Todo mundo falando e ela só, dá,
que. Depois veio as férias, o segundo ano dela na escola e eu me lembro que
muito bem, porque foi perto do meu aniversário que no segundo ano dela na
escola ela começou, um dois, três, quatro. Ela contou. Fui tendo um infarte. Do
nada. Eu estava trocando a fralda dela. Ela começa, 1,2,3,4,5,6,7,8,9,10. O que?
Camila pelo amor de deus, eu liguei para Ismael e Camila conta, mas ela só dava
risada. Você mentiu para mim. Eu comecei a ver que ela apreendeu cores muito
rápido. (mãe da Camila)
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Assim, a perspectiva que esta mãe possui sobre as diferentes formas de
escolarização de sua filha não tem a ver somente com as marcas negativas de
sua deficiência. Muito pelo contrário, são a expressão de uma trajetória de buscas
de encaminhamentos e de soluções que foram lhe mostrando que, apesar das
grandes limitações que sua filha apresenta como seqüelas da paralisia cerebral
grave, ela tem potencialidades que podem ser ampliadas, desde que tenha
atendimentos adequados.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve por objetivo analisar o depoimento de duas mães de
filhas com paralisia cerebral grave, levando em consideração o capital social de
cada uma delas, representado pelas suas relações sociais concretas e que
permitiram a construção de trajetórias diferenciadas na busca de possíveis
soluções para o problema de suas filhas, diferenças essas que foram construindo
expectativas diferenciadas em relação às limitações e possibilidades de cada uma
delas.
Essa perspectiva de análise não pretende negar que as marcas visíveis e
impossíveis de serem escondidas são altamente significativas na construção da
identidade social desses sujeitos (Goffman, 1988), assim como a sua extrema
diferença em termos de comportamentos motores comuns acarreta preconceitos
e discriminação (Crochik, 1996).
Tanto é esta a perspectiva, que procurei detalhar bastante essas
manifestações motoras, por entender que um trabalho no campo da educação (e
não de uma área específica como a fisioterapia, por exemplo), que procure
analisar esta deficiência na relação entre a manifestação orgânica e a construção
social de suas conseqüências, não pode descurar da primeira.
Entretanto, na coleta e análise dos dados, privilegiei as formas sociais
pelas quais essas mães foram sendo introduzidas no universo da deficiência,
expressas pelas condições concretas de vida, que determinaram formas
diferenciadas de uso do espaço social, do tempo e de relações sociais. Assim,
são perceptíveis os diferentes caminhos percorridos pelas duas mães para se
chegar à descoberta da deficiência e para a busca de encaminhamento
terapêutico para suas filhas, além das experiências concretas de escolarização
dessas meninas, efetivamente vivenciadas por suas mães. Estes foram
determinantes fundamentais não só para diferenças substantivas em termos de
minimização das seqüelas e da otimização de suas potencialidades, mas também
e, especialmente no caso desta investigação, para a construção das expectativas
de futuro social, incluindo a escolarização.
A análise dos dados mostrou, portanto, que diferentes capitais sociais,
entendidos como o conjunto de uma rede durável de relações mais ou menos
institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento (...) de um
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conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (...)
mas também são unidos por ligações permanentes e úteis (Bourdieu, 1998, p.
67), determinam expectativas sociais diferentes dos pais em relação aos seus
filhos.
A trajetória de vida da mãe da Carla, sofrida, sem informações qualificadas,
cumprindo um tortuoso caminho para cada iniciativa que tomava na busca
desesperada de possíveis soluções para os problemas de sua filha (que, durante
anos, mal sabia o que era), determinou não só conseqüências mais severas do
que o próprio quadro inicial indicava para ela própria, como possibilitou a criação
de uma estatística intuitiva de fracasso, justificada quase que exclusivamente,
pela deficiência da filha.
Por outro lado, embora com uma informação inicial de que a gravidade da
deficiência de sua filha parecesse indicar pouquíssimas possibilidades de
evolução, a trajetória de vida da mãe da Camila frente à deficiência de sua filha
permitiu acesso a determinados sujeitos, bens, serviços e informações, foram lhe
comprovando que a qualidade desses bens e serviços poderia, sim, fazer
diferença em relação às possibilidades de desenvolvimento e, conseqüentemente,
de seu futuro social.
Assim, as condições de moradia, representadas pelas estruturas espaciais
e de localização geográfica da residência de cada uma oferecem acessos
diferenciados: enquanto Camila pode ter contato com diferentes ambientes, não
só familiares, mas até de atividades cotidianas, como acompanhar a mãe às
compras e a passeios, dada a infra-estrutura do bairro em que reside, a mãe de
Carla, para dizer o mínimo, não conseguia sair da ruela em que morava para a
rua próxima mais movimentada, a não ser carregando a filha nos braços.
A diferença entre os meios de transporte utilizados pelas mães é mais
um exemplo de que, para uma delas, o fato de possuir condução própria e de
adaptações para sua locomoção permitiu que ela vivenciasse, as
possibilidades que adaptações do meio abriam para sua filha, bem como de
racionalização do tempo gasto com ela e para suas próprias necessidades.
Para a mãe de Carla, entretanto, o fato de ter que utilizar transporte coletivo em
uma cidade que, salvo exceções, é insuficiente e extremamente lento, a torna
refém das necessidades da filha, pois que o tempo que gasta para sua
locomoção, até para o atendimento especializado, não permite que ela faça
qualquer outra coisa.
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Essas facilidades ou dificuldades de condições de vida fazem com que
para a mãe de Carla as exigências da instituição e as impossibilidades de
compatibilização do tempo que objetivamente tem para atendê-las sejam vistas
como uma decorrência quase que natural (pois que não consegue ver isto como
uma afronta aos direitos de sua filha), enquanto que, para a mãe de Camila, a
avaliação de uma exigência desproporcional de uma instituição considerada “de
ponta” leva-a a busca de outras soluções, porque teve condições sociais para
incorporar esses serviços como direitos de sua filha, assim como tem convicção
(mesmo que intuitivamente) de que tem condições de encontrar outras instituições
que melhor se compatibilizem com suas perspectivas.
Mas mais que isso, expressam uma perspectiva de classe frente aos
serviços públicos em geral. Para a mãe de Carla, voltar do atendimento médico
sem um diagnóstico preciso, permanecer muitas horas na fila para marcar um
exame para dois, quatro ou seis meses, após ser transferida de um local para
outro até conseguir um que “faça o favor de atendê-la”, não tem nada de diferente
do relato de outras ocorrências de seu grupo social, isto é, não tem como ela não
encarar todo esse processo como “natural”.
As trajetórias dessas mães, tanto em busca de conhecimento sobre os
problemas de suas filhas, quanto em busca de encaminhamentos para
atendimento especializado, mostram como essas trajetórias acabam
interferindo nas suas expectativas frente a um futuro incerto.
Assim, o quadro clínico de Carla, no ato do nascimento, não pareceu à
sua mãe como muito grave. Entretanto, o atendimento por serviços públicos de
saúde sem estrutura, nos quais sua mãe, por vias as mais prolongadas e
tortuosas, recebeu informações truncadas e desconexas, fizeram com que ela,
pouco a pouco, se apropriasse, de forma cruel, da verdadeira gravidade do seu
caso, muito pior do que inicialmente suspeitava.
Em contrapartida, a mãe de Camila, cujo parto se deu em um hospital
privado de alta qualidade, o que, segundo ela própria, foi fundamental para que
sua filha (esperada por longos anos) sobrevivesse, que permaneceu meses na
UTI e que, ao receber alta, já tinha um diagnóstico preciso e encaminhamento
imediato para atendimento especializado, contraditoriamente, embora com
informações iniciais pouco alentadoras em relação às possibilidades de
desenvolvimento de sua filha, pelas amplas possibilidades de atendimento que
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sua posição social permitiu, foi construindo uma expectativa sempre crescente
em relação ao seu futuro.
Sem levar em consideração as diferentes possibilidades de atendimento
especializado das duas crianças, as próprias posturas das duas mães, diante
das possibilidades de atendimento oferecidas pela "Instituição Triângulo" - de
reconhecimento pelo trabalho realizado - embora na aparência sejam
semelhantes, têm uma diferença fundamental para a mãe de Carla a abertura
das portas dessa instituição significou a redenção, já que foi o único local
especializado que conseguiu, após um verdadeiro calvário de buscas
infrutíferas; para a mãe de Camila, a opção por esta instituição se deu após
uma séria divergência com normas consideradas por ela como absurdas. Isto
é, enquanto para a primeira esse atendimento significou o fim de uma enorme
caminhada de sofrimentos, para a segunda teve o sentido de resposta a seus
direitos de cidadã.
As experiências de escolarização também mostram diferenças
significativas que devem ter contribuído para as suas expectativas frente aos
processos de escolarização de suas filhas.
Os dados apresentados mostram que ambas as mães possuem muita
resistência com relação a uma possível inclusão em sala de ensino regular, o
que aparentemente as aproxima.
Mas os significados que essas resistências expressam são
diametralmente opostos.
Para a mãe de Carla, a manutenção em sistemas segregados de ensino
têm o significado de proteção a um ambiente completamente hostil e de maus-
tratos à sua filha, por ela experienciados. Assim, ela não pode enxergar outra
opção do que a sua manutenção em um local protegido, assim como não tem
qualquer perspectiva mais sólida sobre as suas possibilidades de
escolarização.
Para a mãe de Camila, no entanto, a opção por uma escola especial
privada, que pode representar também uma proteção do meio social cruel,
carrega uma outra conotação, a de que esta foi, entre tantas, a instituição que
pareceu melhor trabalhar em termos de processos efetivos de escolarização.
Tanto é assim que, enquanto a primeira não tem a menor noção do que
101
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esperar em temos de futuro escolar de sua filha, a segunda faz projeções
otimistas, mas não infundadas, em relação à alfabetização e à apropriação de
conhecimentos por sua filha.
Vale a pena ressaltar, nestas considerações finais, que não se pode
descuidar do aspecto político dessas trajetórias. Na verdade, elas expressam
uma absoluta falência dos sistemas públicos de saúde e de educação com
relação a alunos com deficiência. Se existe uma diferenciação evidente entre
elas, é o fato de que enquanto a mãe de Carla foi vítima de uma absoluta falta
de política pública minimamente consistente de atendimento qualificado de
alunos com paralisia cerebral, a mãe de Camila beneficiou-se de um conjunto
de serviços privados, esses sim, que garantem os propalados direitos de
cidadania, mas para quem consegue pagá-los. Esta parece ser a marca mais
forte das nossas políticas sociais.
Enfim, os resultados aqui apresentados devem ser interpretados como
um esforço para entender as possibilidades/limitações das deficiências para
além das suas manifestações orgânicas, sem qualquer pretensão de
desconsiderá-las. Nesse sentido, tenho absoluta convicção de que os
elementos aqui dispostos ainda são insuficientes para uma comprovação mais
global desta tese, mas espero que, com essa investigação, possa estar dando
uma pequena contribuição para o campo dos estudos da deficiência que têm
procurado, sem negar as marcas dela originárias, analisá-la como uma
construção social historicamente determinada.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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paralisia cerebral. São Paulo: Mackenzie, 2001, Dissertação de mestrado.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdos. Lisboa: Edições 70, 1995.
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275 Bytes. Formato: GIF. Disponível em: http://www.clik.com.br/caa_01.html.
Acesso em: 20 Jul. 2007.
106
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ANEXOS
ANEXO 1
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
1 – Descoberta do problema do filho
- tempo da descoberta
- reações a ela
- como lidou com a criança desde o início
- reações familiares
2 - Providências da família
- providências iniciais
- trajetória para o diagnóstico
- apoios recebidos
- encaminhamentos procurados e conseguidos
3 – Trajetórias para a instituição
- processos, tempo e indicações
- contato inicial
- atendimentos recebidos
- como se posiciona frente a ela
4 – Escolarização
- posição frente às possibilidades do filho com PC
- procura por escola
- escolaridade dos demais filhos
- expectativas sobre a escolarização do filho com PC
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ANEXO 2
Autorização
Eu ______________________________________ autorizo Viviane
Saladino Passos, aluna do Programa de Pós Graduação em Educação: Historia,
Política, Sociedade a utilizar o material das entrevistas semi estruturadas,
realizadas comigo, através de gravação com equipamento de som e imagem para
fins de Pesquisa acadêmica.
Estou ciente de que não receberei nenhum benefício financeiro pelos
pesquisadores ao participar da presente pesquisa, bem como, será mantido sigilo
quanto a minha identidade.
Assinatura do pesquisador Assinatura da Participante
___________________________ ________________________
São Paulo, ____ de ______________________ de 2006.
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