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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
COORDENADORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS E CULTURA REGIONAL
MÁRCIA HILLEBRAND
CANTOS TRADICIONAIS: UMA LEITURA DA CULTURA GERMÂNICA
Caxias do Sul, julho de 2006
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MÁRCIA HILLEBRAND
CANTOS TRADICIONAIS: UMA LEITURA DA CULTURA GERMÂNICA
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do Grau de Mestre em
Letras e Cultura Regional.
Orientadora: Profª.Drª. Vania B. M. Herédia
Caxias do Sul, julho de 2006
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HINO DE NOVA PETRÓPOLIS
Companheiros, honremos cantando
Os heróis que com garbo e vigor
Sua Pátria deixaram chorando
E ao Brasil dedicaram seu amor;
Esta terra que tanto amaram
Ó saibamos por ela lutar
Relembremos o que nos legaram:
O Dever, Deus e Pátria amar.
(Elsa Hofstäter da Silva)
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4
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, que fez nascer em mim o gosto pela pesquisa, ainda durante a
graduação, quando fui sua bolsista de iniciação científica e por sua compreensão, paciência e
seu respeito pelas minhas escolhas teóricas.
Aos amigos, meus pais e ao Luis Fernando, que, acostumados à minha presença, tiveram
que abrir espaço para que este trabalho se concretizasse.
Aos professores: Cleodes Maria Piazza Julio Ribeiro, Flávio Loureiro Chaves,
Marília Conforto, Cecil J. A. Zinani, Martim Dreher e Elisa Batisti pela disposição e simpatia
ao dividir comigo seus conhecimentos e indicar caminhos possíveis para a conclusão deste
trabalho.
Aos amigos Renato Seibt, Valter Seger, Lorena Seger, Zuleika Wedig, Verna Kehl, Lori
Elias, que com suas histórias de vida ajudaram a compreender a cultura germânica.
Ao professor Ovídio Hillebrand, meu pai, descendente de imigrantes germânicos, que com
muita atenção traduziu as músicas escolhidas para análise.
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5
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO......................................................................................................................08
1.1 Objetivo geral.................................................................................................................12
1.1.1 Objetivos específicos............................................................................................12
1.2 Questões norteadoras.....................................................................................................13
2 LOCAL DO ESTUDO: NOVA PETRÓPOLIS................................................................14
3 METODOLOGIA................................................................................................................17
3.1 Método.............................................................................................................................18
3.2 Procedimentos metodológicos........................................................................................18
3.2.1 Primeira etapa: estudo exploratório....................................................................18
3.2.2 Segunda etapa: escolha do corpus da pesquisa...................................................21
3.2.3 Terceira etapa: análise de conteúdo dos cantos..................................................23
4 A HISTÓRIA OFICIAL: SABEDORIA DOCUMENTAL.............................................26
5 A HISTÓRIA CULTURAL: SABEDORIA DE GENTE COMUM...............................37
6 INTEGRANDO OS DADOS: INTERPRETAÇÃO DOS CANTOS
TRADICIONAIS....................................................................................................................44
6.1 Sentido da vida...............................................................................................................48
6.2 Religiosidade..................................................................................................................55
6.3 Valores da vida social....................................................................................................62
6.4 Dialética da expressão emocional.................................................................................67
7 CONCLUSÃO......................................................................................................................74
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................79
ANEXOS.................................................................................................................................83
A - Mapa do município de Nova Petrópolis.........................................................................84
B - Cantos tradicionais traduzidos.......................................................................................85
5
6
RESUMO
Este estudo tem como objetivo analisar os valores culturais contidos nas letras de
cantos tradicionais dos corais de uma comunidade de origem germânica. Nova Petrópolis é o
município escolhido por ter suas raízes na imigração alemã e conservar até os dias atuais
aspectos dessa cultura. A pesquisa utiliza o método da análise de conteúdo, tendo como
corpus dezessete cantos tradicionais que representam manifestações culturais germânicas. Do
estudo dos cantos emergiram quatro categorias temáticas: sentido da vida, religiosidade,
valores da vida social e dialética das expressões emocionais. Os temas são universais,
presentes em narrativas de todo o mundo, mas com um viés particular, regional, característico
dessa cultura específica, de seu universo de representações sociais. Para compreender o
legado cultural transmitido de geração em geração, faz-se uso da história da imigração alemã
e da importância dos cantos na tradição germânica através dos tempos. Essas categorias são
interpretadas e relacionadas com os demais estudos sobre a cultura germânica com o objetivo
de compreender seus entrelaçamentos. O referencial teórico utilizado permite o entendimento
da cultura e de como seus valores aparecem e são articulados nessa comunidade de origem
germânica. Desse modo, o estudo contribui para a compreensão da identidade coletiva dessa
comunidade.
Palavras-chave: Valores culturais. Identidade coletiva. Memória coletiva. Germanidade.
Cantos tradicionais.
6
7
ABSTRACT
This study has as objective to analyze the cultural values contained in the lyrics of
traditional songs of the choirs of a community of German origin. Nova Petrópolis is the
chosen municipality for having its roots in the German immigration and for conserving
aspects of this culture up till the present days. The research utilizes the method of the content
analysis having as corpus seventeen traditional songs that represent the German cultural
manifestations. From the study of the songs four thematic categories emerged: sense of life,
religiosity, values of social life and dialectic of the emotional expressions. The themes are
universal, present in narratives all over the world, but in a particular way, regional,
characteristic of this specific culture, of its universe of social representations. To understand
the cultural legacy transmitted from generation to generation, usage of the history of the
German immigration and of the importance of the songs in the German tradition through the
times is made. These categories are interpreted and related to the other studies about the
German culture with the objective to understand their interlaces. The theoretic referential
utilized permits the understanding of the culture and how their values appear and are
articulated in this community of German origin. This way, the study contributes for the
understanding of the of this community.
Key Words: Cultural values. Collective identity. Traditional songs. Collective. Memory.
7
8
1 INTRODUÇÃO
Esse estudo pretende trazer à luz da ciência a riqueza dos valores culturais contidos em
cantos tradicionais de uma comunidade de origem germânica. Os fenômenos culturais que
brotam desses textos fazem parte da memória coletiva e se confirmam tanto em modos de
representação como em modos de produção locais. A qualidade de vida que ainda hoje
caracteriza essa população encontra sentido em contato com esses aspectos da memória
coletiva.
A relação do homem com a cultura na qual está inserido é muito mais complexa do que
aparenta. Cada sociedade comunica, muito cedo na vida e de diversas formas, modos
sancionados e não aceitos de comportamento social e daquilo que considera valor importante
na vida. Essas sociedades utilizam os meios de que dispõem, como é o caso de contos,
músicas, críticas, diálogos, entre tantos outros, para comunicar seus valores culturais. Neste
trabalho, o canto foi visto como elemento ativo de integração do indivíduo na sociedade e de
formação de sua mentalidade, por meio dos valores transmitidos em seu conteúdo.
O período atual é de grandes transformações sociais e a globalização impõe a
interferência de uma série de valores de outras culturas que se mesclam no cotidiano das
comunidades. O homem, para não ser apenas um número em sua comunidade, precisa estar
enraizado, precisa conhecer sua história, sentido-se parte dela.
Paviani (2004, p.13) coloca que, “entre os problemas da globalização, destaca-se a
padronização cultural e dos valores das comunidades que tendem a sucumbir aos interesses
ideológicos dos meios de produção e de comunicação”. Assim, um esforço para valorizar os
dados culturais de cada etnia torna-se necessário, a fim de salvar sua identidade, valorizando o
reconhecimento do outro, da consciência e do respeito pelas diferenças.
Segundo relatório da Unesco de 1997 (CUÉLLAR, 1997), as diferenças culturais
precisam ser clarificadas, conhecidas e principalmente respeitadas. É oportuno insistir no fato
de que muitos projetos de desenvolvimento fracassaram por não considerar as implicações
dos fatores culturais. A cultura, seus valores, símbolos, rituais e suas instituições, diz o
relatório, afetam as decisões e os resultados econômicos, modelam o comportamento de seu
povo e definem formas de viver. Dessa maneira, compreende-se cultura como um sistema,
8
9
com uma lógica própria, dentro do qual formas específicas de pensar, sentir, agir, enfim, ver o
mundo, se integram num todo complexo, que pode ser interpretado como um texto.
Levando-se em conta que “o desenvolvimento divorciado de seu contexto humano e
cultural não é mais do que um crescimento sem alma” (CUÉLLAR, 1997), este estudo
colabora com um entendimento regionalizado dos valores de uma comunidade de
descendência germânica. Pode servir de referência para todo e qualquer investimento em
projetos sociais, de saúde, de desenvolvimento, econômicos e outros, protegendo a sociedade
da massificação causada pela globalização. Essa investigação busca o entendimento da cultura
e de como seus valores aparecem e são articulados nessa comunidade de origem germânica.
A região determinada para este estudo foi definida a partir de seus limites geográficos e
culturais. Os limites geográficos foram considerados por se utilizar as fronteiras espaciais do
município de Nova Petrópolis. Porém, dentro desse município, determinam-se critérios de
ordem cultural para definir a região. São analisadas as comunidades de descendentes de
imigrantes alemães, ou seja, que possuem vínculos histórico-culturais marcados pela
germanidade.
1
Para esta pesquisa foram considerados alemães todos os imigrantes que se
utilizavam da língua alemã.
Nova Petrópolis é uma das cidades que nasceu da imigração alemã e ainda conserva
muitas características específicas dessa etnia. Roche (1969) afirma que o fato de a maioria das
colônias ter ficado isolada por muitos anos, uma vez que não havia estradas que as ligassem à
capital, fez com que fosse reproduzida e mantida uma série de características culturais de sua
origem. Outro fator que fortaleceu a identidade e retardou a aculturação é citado por Gubert e
Pollini (2005, p. 67), ao lembrar que, durante o século XIX, os imigrantes alemães
mantiveram intensas relações culturais, econômicas e comerciais com a pátria de origem,
fortalecendo o sentimento de identidade cultural e a preservação de seus valores.
Quando o contato com as demais colônias se intensificou, o modo de vida dessa
comunidade estava organizado e solidificado, tornando a aculturação um processo mais
lento. Por isso, ainda hoje, a língua alemã é muito utilizada, principalmente pelos mais idosos.
Outras práticas culturais também permanecem vivas, como é o caso dos grupos de dança
folclórica; dos corais; das disputas de Tiro-Rei e Bolão-Mestre; das atividades das sociedades
culturais, recreativas e de canto; da arquitetura e da gastronomia.
Essas características criam uma região específica, marcada pela diferença com outras
comunidades e assim estabelecem uma identidade regional singular. Para compreender o
1
Germanidade é tradução de Deutschtum, que segundo tradução literal significa nacionalidade alemã. A maioria
dos autores parece utilizar este termo se referindo as características da língua e da cultura alemã.
9
1
0
conceito de região, usou-se a definição de Pozenato (in: FELTES; ZILLES, 2001, p. 586), que
a região não como uma realidade natural, mas como “um espaço construído por decisão”.
Dessa forma, podem existir regiões culturais, geográficas, políticas e históricas.
Uma das características que marca a região é o uso freqüente do canto. Desde os
primórdios da imigração germânica, o canto teve um papel importante na cultura local.
Contam os mais velhos, e também a história oficial do município, que a música sempre foi a
principal forma de lazer. Desde corais organizados nas sociedades e igrejas aa convivência
cotidiana, em todos os lugares a música sempre esteve presente. Pais e avós cantavam para
seus filhos na hora de dormir, famílias cantavam enquanto trabalhavam, grupos de amigos se
reuniam à noite ou em final de semana para cantar, como forma de lazer.
Segundo Seibt,
2
os cantos deixavam a vida mais bonita para os imigrantes alemães,
mantendo os laços com a terra natal. Na introdução da obra utilizada para análise, Seibt
coloca que “Wo man singt, da lass dich ruhig nieder, böse menschen kennen keine Lieder”.
3
Como esse fenômeno continua forte e integrado à cultura de Nova Petrópolis, a
comunidade de cantores, composta por 49 grupos em todo o município, resolveu organizar
uma coletânea com os cantos mais conhecidos pela população de descendência alemã, desde a
época da imigração. Essa comunidade, percebendo a força e a grande quantidade de cantos
transmitidos e mantidos na cultura local, investiu nessa tarefa. Os cantos permanecem vivos
no cotidiano desses grupos, mesmo com a inevitável aculturação. A presença do canto e a
força que o mesmo representa na cultura germânica desperta uma inquietação que justifica a
pesquisa dos valores culturais contidos em suas letras.
Esse trabalho de compilação dos cantos tradicionais foi realizado a partir de manuscritos,
livros antigos de canto, cadernetas escritas à mão e páginas avulsas, coletadas entre
descendentes de imigrantes alemães, que foram reunidos em um livro com 133 cantos
populares. Segundo o grupo de cantores que reuniu esses cantos, o critério de seleção foi sua
popularidade e manutenção na comunidade até os dias atuais.
4
Assim, utilizando como objeto de estudo esses cantos tradicionais, buscou-se
compreender os valores culturais dessa comunidade. Darnton (1986, p. XVII), ao escrever
sobre os métodos de pesquisa da história e da antropologia diz que [...] a expressão
2
O professor Renato Seibt é colaborador de diversos projetos de resgate e de publicação da história de Nova
Petrópolis. Participou do grupo que selecionou as músicas que foram publicadas e escreveu a introdução da
obra.
3
Tradução: Pessoas más desconhecem hinos.
4
Esta publicação não tem cunho científico; porém, do ponto de vista da história das mentalidades, tem
pertinência como instrumento para conhecimento dos valores culturais.
10
1
1
individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensações e a
entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura”. O mesmo
autor também postula que é possível ler um texto filosófico da mesma maneira que se um
ritual ou um conto, pois cada pessoa utiliza os meios que tem para dar conta das situações do
cotidiano que precisa enfrentar. Acredita-se que a poesia e o canto também sejam depositários
desses valores.
Dessa forma, este estudo analisa, através do método de análise de conteúdo, as
representações contidas nos cantos tradicionais, como maneira de penetrar na cultura local e
explicitar os valores presentes na sua constituição, compreendendo a identidade coletiva dessa
comunidade.
O ponto de partida é o princípio de que as atuais formas de vida social, as instituições e
os costumes têm origem no passado, sendo, portanto, necessário pesquisar suas raízes, para
melhor compreender sua natureza e função. A compreensão das manifestações culturais
implica um olhar sobre seu contexto de uso e uma descrição da história oficial dessa
população.
A história compreende um processo dinâmico do qual o se pode excluir nem os
personagens que a teceram nem as forças contextuais. Os efeitos da estrutura econômica,
política, social e a influência do conjunto de idéias aceitas como verdadeiras moldam a
identidade coletiva, e suas manifestações carregam informações sobre as maneiras de pensar
construídas socialmente.
Além desse contexto que a história oficial registra, existem dados culturais contidos nas
entrelinhas, nos ritos, nas crenças, nas narrativas diversas que muito dizem sobre a cultura.
Fala-se aqui daquilo que em Darnton (1986) é tratado como história das mentalidades e que
Geertz (1989) busca encontrar sentido pela interpretação semiótica. Esses conceitos e essas
teorias são explicitados no estudo e levam em conta que os imigrantes alemães trouxeram
experiências de vida da terra natal e expectativas com a nova pátria, que por sua vez foram
mescladas com as dificuldades e vitórias que obtiveram na sua trajetória. Dessa bagagem
resultou uma identidade peculiar com valores culturais característicos.
Utilizando as palavras de Darnton (1986, p. XIV): “As pessoas comuns aprendem a ‘se
virar’ - e podem ser o inteligentes à sua maneira, quanto os filósofos. Mas, em vez de
tirarem conclusões lógicas, pensam em coisas, ou com qualquer material que sua cultura lhes
ponha à disposição, como histórias ou cerimônias.”
A partir disso, torna-se relevante que a forma de vida de uma comunidade possa ser
interpretada a partir de suas produções, sejam elas literárias, arquitetônicas, ritualísticas, entre
11
1
2
outros. Autores como Gutfreind (2003), referem-se ao canto e à poesia como tendo a mesma
função de representação dos contos de tradição oral, ou seja, como formas de dar sentido à
realidade, por meio de sua capacidade de representação e de simbolização. Assim, busca-se
integrar os dados da história oficial com a interpretação do conteúdo dos cantos, chegando a
uma forma de compreensão dos valores culturais dessa comunidade.
Por meio da teoria e das possíveis interfaces com a explicitação do fato cultural, é
desenvolvido um estudo de cunho interdisciplinar, a fim de responder aos objetivos propostos
nesta pesquisa.
1.1 Objetivo geral
Analisar a cultura germânica a partir dos valores presentes nos cantos tradicionais, a
fim de compreender o modo de vida dessa comunidade.
1.1.1 Objetivos específicos:
investigar a formação da cultura germânica trazida pelos imigrantes a partir da
história oficial;
—identificar valores culturais presentes nos cantos tradicionais germânicos mantidos
por esta comunidade;
—analisar os valores culturais com fins de compreender os modos de ser coletivos
dessa comunidade.
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1
3
1.2 Questões norteadoras
—Como foi formada essa comunidade de origem germânica?
—O que se pode conhecer dos valores da cultura germânica por meio de seus cantos
tradicionais?
—De que forma os valores culturais são transmitidos e se concretizam no
comportamento dessa comunidade?
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1
4
2 LOCAL DO ESTUDO: NOVA PETROPOLIS
A escolha do município de Nova Petrópolis para realização desta pesquisa teve como
motivação principal suas características culturais. Sua população é formada basicamente por
descendentes de imigrantes germânicos, que ainda mantêm muitos costumes característicos
dessa etnia. Como exemplo, pode ser citada a culinária, a arquitetura, a participação da
comunidade nas sociedades culturais e recreativas, os corais, o uso da língua alemã, dentre
outros. Um dado que ilustra a importância da língua alemã para a comunidade é o pré-
requisito de falar alemão, quando da contratação de funcionários. Instituições como o hospital
e estabelecimentos comerciais exigem o conhecimento da língua alemã para facilitar a
comunicação com os idosos, que, muitas vezes, compreendem pouco a língua portuguesa ou
têm vergonha de se expressar por meio dela.
O termo comunidade é utilizado nas referências feitas à população em estudo,
utilizando o conceito de Lenhard:
Um conjunto de pessoas que encontra, numa determinada área geográfica, em
que convive, satisfação a quase todas as necessidades sociais. Assim entendidos,
são comunidades: uma aldeia ou vila, um conjunto de sítios dispostos ao redor de
uma capela, escola, venda, etc., uma cidade pequena ou grande.(1971, p. 37)
Nova Petrópolis não é apenas uma região geograficamente delimitada, é também um
espaço de construções simbólicas relacionadas à tradição germânica; é uma cidade que nasceu
das mãos de imigrantes alemães e carrega consigo seus valores culturais. Para Durham (2004,
p. 222), a população em estudo pode ser chamada de comunidade por suas “características de
proximidade espacial, homogeneidade, afetividade, consenso e participação numa totalidade”,
mas lembra que, quando se fala de homogeneidade, está se referindo a uma mesma cultura e
não a um consenso entre os comportamentos individuais. Lembra que, em qualquer agregado
humano, existem conflitos e paixões, “porém estes conflitos se desenrolam num universo
comum”. (DURHAM, 2004, p. 223).
14
1
5
O município de Nova Petrópolis localiza-se na Encosta Superior da Região Serrana do
Nordeste do Rio Grande do Sul e faz divisa com os seguintes municípios: ao norte, Caxias do
Sul; ao leste, Gramado e Santa Maria do Herval; ao sul, Picada Café e ao oeste, Linha Nova,
Vale Real e Feliz.
Atualmente, a cidade conta com uma população de 19.114 habitantes,
5
distribuídos
numa área de 292,8 km².
O clima é temperado, com invernos bastante frios e geadas. Quedas de neve,
esporadicamente mudam a paisagem. As variações de altitude, entre 820,8 metros e 32
metros, determinam grandes diferenças de temperatura nas diversas regiões do município.
Nos vales, o verão é quente e úmido, no inverno apresentam frio intenso. Nas regiões mais
elevadas, o calor pode chegar a 30ºC e, no inverno, o frio às vezes fica abaixo de 0ºC, com
ocorrência de geadas e até neve. Segundo depoimentos de descendentes de imigrantes, tanto a
paisagem quanto o clima lembravam a terra natal, o que amenizava a saudade.
Atualmente, a base econômica é diversificada, com destaques para as indústrias de
calçados, laticínios, móveis e malharias. O turismo também é uma importante fonte de renda
para a população local e vem crescendo a cada ano. Os turistas visitam a cidade justamente
em função de suas características de tradição germânica. O turismo foi construído
principalmente em função das tradições culturais, atraindo visitantes que vêm apreciar os
grupos de dança folclórica, os corais, as características arquitetônicas e as festas típicas das
sociedades recreativas. Posteriormente, com o desenvolvimento da indústria de malhas, a
cidade ficou sendo conhecida também pelo comércio de vestuário. Na área primária, sobressai
a produção de leite, frangos, ovos e suínos, cujos produtores são, em sua maioria, sócios da
Cooperativa Piá,
6
que beneficia e vende seus produtos.
A importância do canto e sua permanência na cultura germânica se evidencia ainda
hoje pela existência de nove corais infantis, sete femininos, nove masculinos e 24 mistos,
localizados nas diversas comunidades de origem alemã. Cada localidade possui, no mínimo,
um grupo-coral, que se reúne semanalmente para ensaios e para participar das cerimônias
(festivas ou fúnebres) da sua própria comunidade ou como convidados em outras localidades.
Esses corais estão sempre vinculados à comunidade, seja por meio da escola, seja da
sociedade ou igreja local.
5
População estimada pelo IBGE em julho de 2005.
6
Assim como a cooperativa de crédito rural, a Piá também demonstra o tão citado espírito associativista dos
germânicos.
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1
6
As localidades de origem alemã se encontram demarcadas no mapa (anexo A) e em
cada uma delas existe uma sociedade em funcionamento,
7
que são as seguintes: Sociedade
União Fraternal de Pinhal Alto; Centro Social e Cultural de Pinhal Alto; Sociedade Canto
Amizade de Vila Olinda; Sociedade Cultural e Esportiva de Linha Araripe; Sociedade
Cultural e Esportiva Canto Lyra de São José do Caí; Sociedade Cantores Alegria de Nove
Colônias; Sociedade Cultural e Esportiva de Linha Brasil; Sociedade Cultural e Esportiva
Concórdia de Linha Imperial; Sociedade Cultural e Recreativa Tiro ao Alvo da Sede;
Sociedade Cultural e Esportiva Irmandade de Linha Olinda; Sociedade Cultural e Esportiva
Juvenil de Linha Temerária; Sociedade Cultural e Recreativa de Arroio Paixão; Sociedade
Canto Alegria de Fazenda Pirajá; Sociedade Cultural e Esportiva Tirol; Sociedade Cultural e
Esportiva Linha Araripe Divisa; Sociedade Canto Alegria de Linha Pirajá.
7
A história das sociedades e a descrição de suas atividades e formas de se relacionar com a comunidade
encontram-se no capítulo referente à história oficial da imigração alemã.
16
1
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3 METODOLOGIA
A proposta deste estudo impôs uma discussão epistemológica e metodológica que
remeteu à reflexão sobre o conceito de cultura, região, tradição, valores culturais, memória e
identidade coletiva. A intenção de compreender a organização da cultura e dos valores que a
mantêm historicamente estiveram sempre presentes como objetivos a serem atingidos. Dessa
maneira, optou-se pela busca de fundamentos epistemológicos e metodológicos que
garantissem a construção desse conhecimento.
A escolha da história cultural foi uma das principais ferramentas utilizadas, partindo
da idéia apreendida em Darnton (1986, p. XVIII) de que a história cultural “pertence às
ciências interpretativas” e que o homem opera dentro de coações culturais a partir do
momento em que partilha das convenções de fala. Esse autor parte do princípio de que os
historiadores deveriam “ser capazes de perceber como as culturas formulam maneiras de
pensar” e que, independentemente de a cultura ser popular ou elitista, os problemas o
resolvidos e vistos de forma comum entre os homens. A presença das tradições e dos
costumes ajuda a entender o que a comunidade preservou e os aspectos inerentes a essa
preservação.
Dessa maneira, a análise dos cantos tradicionais foi uma opção teórico-metodológica
para a explicitação dos valores culturais da comunidade em estudo. Consideram-se valores
culturais aqueles que têm significado e validade para determinada cultura e são identificados
por meio de sinais concretos de uso. Para Pozenato (2003, p. 74-75), “os valores só podem ser
analisados nos sinais que manifestam estes valores” e considera que esse significado pode ser
encontrado em bens culturais como edificações, provérbios, canções, entre outros.
17
1
8
3.1 Método
Adotou-se a análise de conteúdo proposta por Moraes (in: ENGERS, 1994), como
método de análise dos cantos tradicionais, numa investigação de natureza qualitativa.
A análise de conteúdo constitui um processo de classificação, em que unidades de
significado são organizadas e ordenadas em conjuntos lógicos, chamados categorias. Essas
categorias são descritas e interpretadas em um processo de teorização sobre os fenômenos
investigados.
A abordagem interpretativa buscou uma compreensão dos valores culturais da
comunidade pesquisada, sem a pretensão de generalizar ou testar hipóteses. As regras de
categorização foram sendo elaboradas ao longo da análise, bem como revistas e reordenadas
até a obtenção de um final coeso e consistente que expressasse os fenômenos investigados.
3.2 Procedimentos metodológicos
Diante dessas questões, a pesquisa foi dividida em três momentos: exploratório,
escolha do corpus de pesquisa e análise de conteúdo dos cantos selecionados.
3.2.1 Primeira etapa: estudo exploratório
A fase exploratória iniciou no momento em que se tomou, como idéia central desta
pesquisa, que a forma de vida de uma comunidade pode ser interpretada a partir de suas
produções: literárias, arquitetônicas, ritualísticas ou de qualquer outra forma.
Naquele momento, o objetivo foi coletar contos de tradição oral, que se supunha,
existiam na memória coletiva dos descendentes de germânicos. Por meio deles, esperava-se
fazer uma leitura dos valores culturais dessa comunidade.
Foram realizadas diversas entrevistas em busca dessas narrativas; porém, nada foi
constatado de significativo. Ou as pessoas não lembravam, ou afirmavam que isso não era
18
1
9
costume, ou ainda que “é bobagem, nossos antepassados tinham mais com que se preocupar,
em vez de ficar imaginando histórias!”
8
Na obra Cem anos de germanidade no Rio Grande do Sul (1999, p. 291), ao se
analisar o desenvolvimento da imprensa, é observado que tentativas de publicar contos
populares e poesias não obtiveram muito sucesso, reforçando sua pouca importância para a
população em estudo.
A busca pelos contos constituiu-se numa empreitada frustrada. Porém dentre as
inúmeras informações apreendidas durante essas entrevistas, um dado chamou a atenção:
contar histórias não era uma forma de lazer comum nessa comunidade, mas cantar. Em todas
as entrevistas, foi citado o canto como passatempo em dias de chuva, como forma de lazer,
como interação entre avós e netos, como parte das festas e cerimônias comunitárias, enfim,
citavam sempre a presença do canto de alguma maneira.
A busca de material que pudesse representar os valores culturais dessa comunidade
seguiu em frente, mas investigando outra narrativa: as letras dos cantos tradicionais.
Essas entrevistas foram muito ricas em matéria de conteúdo e representatividade
cultural, cujos depoimentos e leituras reforçaram a importância do canto na cultura
germânica. Praticamente todas as obras historiográficas citam o canto como parte desta
cultura e as entrevistas confirmaram seu uso.
Dando seguimento à busca por essas narrativas cantadas, constatou-se a existência de
49 corais em todo o município, cujo repertório inclui, além de outras músicas, um número
considerável de cantos tradicionais. Utilizou-se o termo tradicional para referir-se a cantos
que permanecem em uso desde a imigração.
As entrevistas com representantes desses corais trouxeram uma série de dados que
sustentaram a opção por esse corpus de pesquisa. Citam-se aqui alguns fragmentos das
entrevistas realizadas durante a construção do projeto de pesquisa. Nesse período, foram
realizadas entrevistas semi-estruturadas com cinco pessoas envolvidas nos grupos de canto
mais de 50 anos. O objetivo foi buscar subsídios históricos sobre essa manifestação cultural.
Irmgard Schuch
“Ainda lembro que a minha mãe contava que se divertiam nos domingos cantando de
uma família para outra. Uma morava deste lado do vale, neste morro, eram os Weimer. A
8
Entrevista com Valter Seger, regente de corais de Pinhal Alto.
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outra família morava do outro lado do vale, no outro morro, eram os Hofstäter. Aí, de noite
uma cantava daqui e a outra respondia com uma música de lá.”
Verna Kehl
“Meu avô cantava o dia inteiro pela casa, enquanto trabalhava,... ensinava muitas
músicas para nós. Até quando íamos dormir ele cantava.”
Valter Seger
“Antigamente os casais se juntavam nas casas para cantar. As pessoas se
associavam na sociedade e pagavam uma anuidade para terem um coral no seu enterro. Hoje
tudo mudou, ninguém tem tempo para ir ao enterro durante a semana, então, aqui no Pinhal
Alto, nós temos um grupo de aposentados ou agricultores que, quando ouvem o sino do
falecimento de alguém, sabem que tem que ir para a igreja cantar no enterro. Sempre vai
um grupo, ninguém fica sem coral no seu enterro. Também todos sabem qual hora precisa
cantar: na hora de fechar o caixão ou de colocar a terra é muito importante cantar para
ajudar.”
Renato Seibt
“Tenho muitas letras de música e discos antigos. Era tradição para os alemães a
música. Todos sabiam cantar e não eram essas letras bobas como hoje. Eram muito bonitas.”
Walmi Zimmermann
“Até hoje eu preciso cantar. Tenho depressão, mas a música me anima. Sei muitas
músicas desde pequena, todas em alemão. Agora quero aprender a tocar flauta, sei tocar
teclado e participo do coral da Temerária.”
20
2
1
Esses depoimentos comprovam a presença dos cantos como formas de manifestação
de cultura e mostram que o hábito de cantar sempre fez parte da vida dessa comunidade.
3.2.2 Segunda etapa: escolha do corpus da pesquisa
A definição de que o objeto de estudo seriam os cantos tradicionais da cultura alemã,
presente na sociedade de Nova Petrópolis, gerou a necessidade de identificar os cantos e
verificar o uso dos mesmos por essa comunidade. A procura pelos cantos conduziu ao contato
com os representantes das localidades de origem germânica de Nova Petrópolis, que estão
divididas por “linhas”.
9
Cada linha possui um pequeno núcleo, onde ficam a escola, a
sociedade e a igreja. Essas instituições estão bastante próximas em sua localização, facilitando
a participação da comunidade nas diversas atividades que proporcionam. Os próprios corais
não possuem exclusividade de seus membros, que cantam tanto no grupo vinculado à Igreja
quanto na sociedade e, muitas vezes, nas escolas. Os corais infantis estão geralmente
vinculados às escolas.
Para atender aos objetivos desta pesquisa, foi necessário entrevistar diversos
representantes daquela comunidade, a fim de elencar cantos tradicionais que ainda são
praticados por essa população. Essas entrevistas tinham como objetivo principal conhecer a
área a ser explorada e verificar o funcionamento dos corais, a forma de seleção musical e o
registro das letras das músicas mais conhecidas. Nas primeiras entrevistas, descobriu-se que
um grupo de pessoas que participa dos corais das diversas comunidades estava para publicar
uma seleção desses cantos tradicionais. Tal grupo havia organizado uma coletânea de
manuscritos, livros de canto e repertórios da tradição oral dos corais, dos quais selecionou os
mais conhecidos. Para a publicação o grupo categorizou os cantos por tema, sendo publicados
com o título Frohe Runde.
10
Segundo os organizadores da coletânea, o número de cantos é
elevado e daria para publicar muitos livros, mas optaram por selecionar os mais conhecidos,
baseados na própria experiência como regentes de corais.
Dessa forma, o corpus para esta pesquisa foi a própria coletânea de cantos
tradicionais, seguindo orientação de Bauer e Gaskell (2002).
9
As colônias, com aproximadamente 50 hectares, foram distribuídas ao longo de linhas ou picadas,
possibilitando o aparecimento de pequenos núcleos de apoio em cada 10 km, hoje transformados em
comunidades rurais. Para a sede da Colônia destinou-se o "Statdplatz", hoje cidade de Nova Petrópolis.
10
SOCIEDADE UNIÃO POPULAR THEODOR AMSTAD. Frohe Runde. Nova Petrópolis: Amstad, 2004.
21
2
2
Esses cantos foram trazidos pelos imigrantes e lideranças comunitárias e permanecem
como manifestação cultural até os dias atuais; sendo mantidos vivos pelos quarenta e nove
corais existentes na cidade.
11
Uma vez que a seleção de cantos feita para a publicação do Frohe Runde (2004) teve
como princípio de escolha o fato de serem os mais cantados pelos grupos-corais, considera-se
que qualquer desses cantos tem igual valor cultural. Assim, podem ser interpretados naquilo
que carregam de valores dessa comunidade.
Durante a fase exploratória, foi constatado que a comunidade em questão reconhece a
coletânea, e cada um de seus cantos, como parte importante de seu vasto repertório musical. O
objetivo não é recuperar as versões verdadeiras ou fazer um levantamento quantitativo das
mais cantadas, mas compreender as marcas culturais que os descendentes de imigrantes
preservaram, para compreender os valores que dão sustentação aos modos de pensar dessa
cultura. Seguindo a proposta metodológica utilizada por Darnton (1986, p. XVII), “não se
pode calcular a média dos significados nem reduzir símbolos ao seu nimo denominador
comum”. Nesse caso, a análise de conteúdo conta de processar cientificamente dados
textuais, permitindo sua compreensão e interpretação simbólica. Moraes (in: ENGERS, 1994)
ressalta que subjetividade não é inconciliável com o rigor científico.
Para Bauer e Gaskell (2002, p. 23) “a finalidade real da pesquisa qualitativa não é
contar opiniões ou pessoas, mas ao contrário explorar o espectro de opiniões, as diferentes
representações sobre o assunto em questão”.
Dessa forma, utilizando esses teóricos como base desta pesquisa, partiu-se para a
seleção dos cantos a serem analisados.
Após a visita a todas as comunidades, constatou-se que os cantos são comuns, e que a
escolha dos mesmos em cada comunidade depende dos ritos, das festas e das cerimônias. As
pessoas entrevistadas reconhecem os cantos e referem que a escolha do repertório dos corais é
muito relativa, varia conforme a situação de festa ou da cerimônia fúnebre, de casamentos, ou
até de acordo com a preferência dos regentes e do grupo. Nos ensaios, as escolhas dependem
muito do gosto do grupo: alguns preferem, por exemplo, melodias mais lentas; outros, as
humorísticas. Mesmo com essas diferenças peculiares a cada grupo, existe uma similaridade
no conjunto: a maioria dos cantos da coletânea é reconhecida, ou seja, de uma forma ou de
outra, fazem parte do cotidiano desses grupos-corais.
11
Dentre os inúmeros cantos presentes na tradição germânica são encontrados os que foram trazidos pelos
imigrantes e os importados posteriormente por lideranças comunitárias. Sabe-se que as escolhas muitas vezes
dependiam do desejo dos padres, pastores e demais lideranças, mas não teriam sido mantidas se não houvesse
receptividade da comunidade, legitimando o papel do líder. Desta forma, considera-se que as lideranças surgem
e se mantém por serem porta-vozes da cultura.
22
2
3
Essa coletânea, que reúne os cantos mais comuns da comunidade de Nova Petrópolis,
apresenta os seguintes temas:
1. Cantos sobre ladrões;
2. Cantos sobre natureza e primavera;
3. Cantos que falam de soldados e da pátria;
4. Cantos de despedida;
5. Cantos referentes a profissões;
6. Cantos festivos;
7. Cantos fúnebres;
8. Cantos de amor;
9. Cantos humorísticos;
10. Cantos sobre sabedoria de vida;
11. Canônicos;
12. Cantos piedosos;
13. Cantos para a noite;
14. Cantos de Natal;
15. Cantos que acompanham o ato de beber;
16. Cantos de escola e infantis;
17. Cantos de profissionais ambulantes.
Diante da proposta desse estudo, optou-se pelo sorteio de um canto de cada um destes
temas, a fim de possibilitar a análise do seu conteúdo.
3.2.3 Terceira etapa: análise de conteúdo dos cantos
É utilizada a análise de conteúdo proposta por Moraes (in ENGERS, 1994), para buscar o
significado das representações culturais, ou seja, uma síntese dos dados mais importantes
contidos nas letras dos cantos. Segundo o mesmo autor, a análise e suas descrições
sistemáticas colaboram para reinterpretar as mensagens contidas nas narrativas, diferindo da
leitura comum. Os elementos que aparecem de forma mais constante nos cantos foram
categorizados, descritos, interpretados e integrados ao embasamento teórico proposto.
23
2
4
Os cantos selecionados foram traduzidos por um representante dessa mesma comunidade,
a fim de garantir maior fidedignidade dos termos e sentidos dados ao texto. A questão da
validade e confiabilidade dos resultados foi sempre tratada com prioridade. Acredita-se que,
nesse caso de textos poéticos, seja arriscada uma tradução puramente técnica e literal, pois
pode se perder o sentido cultural.
Após a tradução, os cantos foram submetidos à análise de conteúdo conforme descrição a
seguir:
a) Unitarização
Consiste na definição de conteúdos a serem posteriormente categorizados. Selecionaram-
se, em cada canto, as unidades de significado que posteriormente se transformaram em
categorias. Moraes (in GRILLO; MEDEIROS, 1998) ressalta a importância do rigor científico
necessário a essa etapa do procedimento, mesmo levando em conta que uma interpretação
nunca é definitiva, possuindo muitas leituras possíveis.
Foram trabalhadas unidades temáticas no que diz respeito a valores culturais, que foram
codificadas, a fim de poder referendar o texto original sempre que necessário.
b) Categorização
Neste momento do processo, agrupam-se as unidades em categorias de significado, até
que todas as unidades de todos os textos estejam categorizadas.
O processo foi revisado e repensado permanentemente em busca de uma confirmação da
melhor categorização para as unidades selecionadas. As unidades de significado foram
agrupadas em categorias temáticas, considerando os tipos de valores culturais expressos,
como uma síntese dos dados contidos nos cantos.
Foram considerados os critérios de validade, exaustividade, exclusividade e
homogeneidade, como critérios metodológicos científicos para construir as categorias. Uma
vez formadas e revisadas as categorias, partiu-se para a descrição detalhada das mesmas.
c) Descrição
24
2
5
Iniciou-se pela elaboração de um texto para cada categoria, comunicando os dados
desde sua formação original, passando pela determinação das unidades e por seu agrupamento
em categorias. Conforme o estudo avançava, as categorias foram sendo agrupadas pela
proximidade de seus significados, apresentando, assim, categorias iniciais, intermediárias e
finais.
d) Interpretação
Consistiu no momento de relacionar o conteúdo retirado dos cantos com seu contexto e as
escolhas teóricas, realizando uma compreensão final da pesquisa proposta, alcançando assim
os objetivos desejados.
Tanto o conteúdo manifesto quanto latente foram interpretados, constituindo assim uma
ampla compreensão dos valores culturais dessa comunidade.
É importante ressaltar que os textos podem conter diversas interpretações, dependendo
daquilo que se objetiva e da fundamentação teórica subjacente. Para Moraes (in ENGERS,
1994) a análise de conteúdo é uma interpretação por parte do pesquisador, com relação à
percepção que tem dos dados. Para tanto, a reconstrução do seu contexto de uso (tempo e
espaço) é de suma importância.
O significado do conteúdo cultural nem sempre é explícito, seu sentido precisa ser
extraído do texto num processo circular, em que todas as partes da pesquisa se integrem num
todo coeso. Alguns dados podem estar manifestos e outros latentes; por isso, precisam passar
pelo processo de interpretação para serem compreendidos.
25
2
6
4 A HISTÓRIA OFICIAL: SABEDORIA DOCUMENTAL
Este capítulo trata da história como conhecimento sistematizado e documental dos eventos
principais relativos à imigração alemã no País e o surgimento da cidade de Nova Petrópolis.
Foram descritos eventos oficiais presentes na bibliografia local e universal, para tecer um
pano de fundo sobre o qual se desenvolve a história cultural. Utiliza-se o termo documental
para tratar dos dados registrados pela historiografia a respeito da imigração e cultura
alemãs.
Para compreender a história da imigração alemã no Brasil, é preciso considerar as
condições do período onde tudo começou. Durante o século XIX, a explosão demográfica, as
constantes guerras e as péssimas condições de vida fizeram com que milhões de europeus se
aventurassem rumo à América, construindo em cima do desconhecido uma série de sonhos e
expectativas positivas. Conta a História que as companhias de emigração e seus agentes
divulgavam as vantagens da viagem, como o fato de que todos seriam proprietários, sem
qualquer referência às dificuldades que certamente teriam que enfrentar. Depoimentos de
Raymundo Zimmermann e Carlos Werle, da obra de Deppe (1988, p. 55-57) exemplificam
essa questão: “[...] Por isso eles vieram para cá, porque eles não podiam mais se sustentar
[...]. Então lhes foi dito que no Brasil havia terra boa [...].” Ou ainda, “[...] Superpovoado,
falta de terras, exploração, pobreza, desempregados, etc., tudo isso se deu em quase todas as
províncias da Alemanha, Áustria, Suíça, etc. [...]”.
Esses dados são importantes para salientar o quanto a identidade de um povo está
vinculada a muitos fatores contextuais, fazendo com que sua estruturação receba as
influências do momento histórico e das condições socioeconômicas que vivem. Nada é escrito
e pensado por acaso. Há sempre um rumo de pensamentos que devem ser trilhados para se
conceber uma nova realidade.
Dentre tantas dificuldades, surge a emigração como saída em busca de condições de vida
diferentes daquelas que encontravam na pátria e que, devido a quase inexistente mobilidade
social, eram difíceis de modificar. Muitos países ofereciam atrativos para chamar imigrantes,
e o Brasil foi um deles. Numa obra que coletou depoimentos de descendentes de imigrantes
germânicos, os pesquisadores observam: “Pelos depoimentos constatou-se que os imigrantes
do Império Austro-Húngaro muitas vezes haviam mudado de residência dentro das fronteiras
26
2
7
do Império antes de emigrarem, o que demonstra as dificuldades ali existentes” (DEPPE,
1988, p. 59).
A política brasileira de colonização teve como objetivo o povoamento do território
nacional para evitar invasões. Porém, assumiu papéis diferentes conforme a região. Em São
Paulo, por exemplo, os imigrantes deveriam substituir a mão-de-obra escrava; no Rio
Grande do Sul, a colonização visava à formação de colônias agrícolas, produtoras de gêneros
necessários ao consumo interno.
A entrada de imigrantes alemães ocorreu principalmente a partir de 1824, tendo sido
interrompida durante a Revolução Farroupilha.
12
Os primeiros imigrantes alemães chegaram
ao Rio Grande do Sul em 25 de julho de 1824, e fundaram a cidade de São Leopoldo, berço
da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Em função de crises políticas e da Revolução
Farroupilha, os imigrantes dessa primeira fase tiveram a necessidade de se unir e serem
solidários uns com os outros para poderem sobreviver, pois foram abandonados pelo governo.
As promessas de auxílio feitas na contratação da emigração foram deixadas de lado assim que
chegaram ao Brasil.
Na retomada da política de imigração, em 1845, novos projetos foram surgindo, e as
colônias alemãs, sendo ampliadas. Assim, alguns grupos de famílias se dirigiram à Serra e a
outras áreas ainda não povoadas.
A “Colônia Provincial de Nova Petrópolis” foi criada em 7 de setembro de 1858 por
imigrantes alemães vindos da Pomerânea, Saxônia, Boêmia e Hunsrück, dos quais descende a
maioria dos seus habitantes. A emancipação do município ocorreu quase um século depois,
em 28 de fevereiro de 1955. Suas terras foram divididas em linhas e picadas, de modo a
favorecer a todos com água, estrada e qualidade da terra. A cada dez quilômetros criou-se um
ponto de apoio aos imigrantes, e no centro, o Stadplatz
13
, a sede colonial que hoje é o centro
da cidade de Nova Petrópolis.
Quanto ao nome da cidade, tradicionalmente fala-se de uma possível viagem de D.Pedro II
à região e seu deslumbramento pelas semelhanças com a cidade Imperial de Petrópolis, no
Rio de Janeiro. Petrópolis significa cidade de Pedro.
12
Durante a fase inicial da imigração alemã, a Revolução Farroupilha abalou a política e a economia do Rio
Grande do Sul, causando reflexos políticos no centro do País e até nos países vizinhos. Essa revolução durou de
1835 a 1845. Foi deflagrada pelos gaúchos, que não aceitavam a situação de subordinação a que o governo
central submetia o Rio Grande. A Revolução tinha a intenção de proclamar uma república independente, e
levava, para o Sul do continente, os ideais de liberdade em voga então na Europa.
13
Lugar onde se concentravam as atividades comerciais, ou seja, a vida social e econômica. Stadt significa
cidade e platz lugar.
27
2
8
Entre os imigrantes alemães vieram ferreiros, carpinteiros, professores, parteiras, soldados,
artesãos e principalmente agricultores. As principais dificuldades encontradas eram os
problemas de saúde, o isolamento e, conseqüentemente, a dificuldade de vender seus
produtos. A interação entre os diversos grupos, oriundos de distintas regiões da Alemanha,
com religiões e dialetos diferentes, também foi um dos obstáculos a ser superado. Segundo
Deppe (1988, p. 51), nos primeiros anos da imigração, muitas famílias foram embora para
outras terras, não suportando o isolamento e as demais dificuldades. A imigração alemã, no
Sul do País, possuía uma peculiaridade: permaneceu afastada de outras etnias por um longo
período, retardando a aculturação em seu desenvolvimento. Os rios Caí e Cadeia, ao contrário
do que se supunha inicialmente, não serviram para a navegação, e a topografia da Colônia
demonstrava dificuldades para a construção de estradas. A produção agrícola era grande, mas
havia pouca possibilidade de comercialização dos produtos por falta de meios de transporte. O
isolamento foi rompido com a inauguração das rodovias BR-116 em 1941 e RS-235 no
final da década de 40.
Em função desse isolamento, observam-se em todas as áreas as características peculiares
da germanidade, cuja alteridade com os demais habitantes do estado foi observada por
pesquisadores como Roche, que descreve: “A maneira de viver e a mentalidade dos colonos
alemães distinguem-se, ainda, das dos rio-grandenses de outra origem, na medida em que
permaneceram fiéis a seus costumes, embora estes se tenham transformado de uma geração
‘brasileira’ a outra.” (1969, p. 639).
Com relação ao trabalho, verifica-se que os alemães viviam em pequenas propriedades
marcadas pela policultura. Pelo fato de permanecerem relativamente isolados, possuíam um
comércio em pequena escala dentro da própria colônia. Muitos deles eram agricultores no
seu país de origem. Viajantes traziam mercadorias e informações das cidades maiores e eram
muito esperados pelas comunidades, como uma forma de quebrar esse isolamento.
Quanto à religião, a comunidade se dividia em católicos e protestantes. Quando chegaram
os primeiros imigrantes o havia igrejas nem padres ou pastores. Assim, a própria
comunidade elegia alguém que assumisse essas funções. Geralmente os escolhidos eram os
mesmos que assumiram o ofício de professores. Os locais de encontro eram os mais variados,
até conseguirem construir suas igrejas.
A maioria dos colonos da época era protestante, mas a religião oficial brasileira era a
católica. Sobre essa diferença Dreher (1984, p. 24) lembra que a constituição imperial de 25
de março de 1824 possuía o seguinte artigo: “A religião católica apostólica romana continuará
28
2
9
a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com o seu culto
doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de
templo.” Essa rivalidade durou muito tempo, sendo que somente em 1861 a lei brasileira
reconheceu nos casamentos não-católicos o valor jurídico e efeitos civis. Mesmo assim os
primeiros imigrantes católicos, que chegaram em 1824 no Rio Grande do Sul, esperaram 24
anos até terem seu primeiro padre oficial.
Um fato causou sérias complicações na vida religiosa das colônias, que ainda estavam um
tanto abandonadas na questão religiosa. Um curandeiro e sua mulher tornaram-se referência
de uma seita que atraía cada vez mais fiéis, conhecidos como os Muckers. A revolta dos
Muckers desestabilizou a relação dos fiéis com suas crenças católica e protestante, mas a força
militar e o tempo fizeram voltar o Cristianismo. Os Muckers também se utilizavam dablia,
mas os cristãos condenavam seus rituais. Com a intervenção militar, os principais envolvidos
da dita seita foram mortos ou presos. Roche (1969) ressalta que as deficiências de
atendimento aos católicos e protestantes podem ter guiado fiéis para essa seita, em busca de
maior coesão. Após o final dessa revolta, houve uma reorganização eclesiástica dos dois
credos.
A religião foi muito importante na definição de valores, manutenção da ordem moral e
integração dos colonos, sejam eles protestantes ou católicos, como relata Roche (1969, p.
671): “A religiosidade dos colonos parece mesmo ter aumentado, em virtude, sem dúvida, da
coesão familiar e do controle exercido pela comunidade dentro do relativo isolamento de sua
vida pioneira.”
Mas não só a religião era responsável pela manutenção da ordem moral nas comunidades.
Havia posturas municipais que regiam as “regras do bem viver” e que por sua vez eram
controladas com multas em dinheiro pelo delegado da comunidade. Müller cita que, em
23.10.1850, João Daniel Hillebrand, delegado de polícia e juiz municipal, enviava à Câmara
de Vereadores o seguinte ofício:
Cumpre me participar a Vs. Sas. que por este juízo foi multado Pedro Geisbusch, na quantia
de trinta mil réis, por haver quebrado o termo de bem viver que tinha com Carlos Leopoldo
Matte, pelo que se dignarão Vs. Sas. dar suas ordens ao Procurador de receber sobredita
quantia que se acha depositada no respectivo Cartório do Tabelião desta Vila. Deus guarde
Vs. Sas. (1978, p. 51)
29
3
0
A imigrantes pacíficos e trabalhadores se juntavam aqueles que não seguiam os
princípios morais da época, ditados pelo inspetor. Independentemente dos motivos que
levavam a quebrar essa moral estabelecida pelas lideranças, quem não as respeitasse sofria
punições. O diretor de uma colônia encontrou uma solução (ROCHE, 1969): juntou os
indesejáveis e mandou em comboio para a longínqua colônia de São João das Missões. Outros
ainda eram enviados para a Colônia de Torres ou ainda encaminhados para a Guerra
Cisplatina.
Além das questões legais, o Brasil, uma colônia recentemente independente de
Portugal, precisava organizar outras instituições. Não havia ainda demonstrado a preocupação
com a educação, uma vez que não existiam ações voltadas para o ensino e para a construção
de escolas. As comunidades germânicas logo se organizaram para que pudessem alfabetizar
seus filhos. No início dessa organização, aqueles que sabiam ler e escrever ensinavam os
outros, a princípio em suas próprias casas. Os professores eram geralmente as pessoas mais
idosas ou que não tinham condições de trabalhar na agricultura. Se soubessem ler, escrever e
calcular eram designados para a tarefa de educar as crianças da comunidade.
Aos poucos, as escolas foram sendo organizadas e estavam diretamente ligadas à
crença religiosa. As pioneiras foram as escolas protestantes, criadas por pastores, que eram os
próprios professores. A educação incluía ensino religioso e valores morais severos.
As escolas protestantes são as mais antigas, com seus pastores assumindo a educação
das crianças. As católicas levaram mais tempo para se estruturar, mas evoluíram muito após a
chegada dos padres em 1850 e alcançaram um crescimento que, em 1935, chegou a
representar 41% das escolas particulares teuto-brasileiras.
Nos primeiros anos da imigração, o período escolar durava de um a dois anos apenas,
mas com seu desenvolvimento esse tempo foi sendo ampliado, e a qualidade do ensino,
elevada.
Aos poucos a comunidade foi construindo escolas, igrejas, sociedades e organizando
suas cooperativas. O trabalho em grupo, em prol da sociedade, foi uma marca do período da
imigração, podendo ser observado em muitas ilustrações e em relatos da época. Segundo
Roche (1969, p. 672) a construção das igrejas foi o primeiro trabalho coletivo. Também
muitas casas, praças e sociedades foram feitas pela comunidade.
Os momentos de encontro comunitário estavam associados às principais festas
tradicionais, geralmente ligadas à religião. Elas congregavam grande parte dos colonos que
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3
1
passavam a maior parte do ano tendo muito pouco contato com a comunidade. O Natal, a
Páscoa, o primeiro de janeiro e o Kerb
14
são momentos festivos tradicionais. Mas, após a
criação das sociedades recreativas, também se tornou tradição o Schützenfest
15
e outras
competições.
No Natal, praticamente todas as famílias colocavam em suas salas um pinheiro
ornamentado e, na entrada da casa, uma coroa verde, tradição trazida da Europa e que não
deixou de ter, inclusive, os flocos de neve feitos com algodão, representando um típico Natal
de clima frio. A tradição de fazer biscoitos, e deixar para que o “Papai Noel pintasse”,
encantava as crianças que esperavam ansiosas por essa data. Os rituais religiosos lotavam as
igrejas e era mais uma data importante de reunião com familiares e amigos, que passavam boa
parte do ano afastados em função das distâncias e do trabalho.
A Páscoa também tinha seus encantos com a confecção de cestos para receber os
doces que “o Coelho da Páscoa deixava no Sábado Santo. Roche (1969, p. 641) cita a
existência de um ritual onde um boneco representando Judas é queimado ou encostado na
porta do colono cuja conduta se deseja censurar. Este também acontecia durante o Sábado
Santo.
O kerb é considerado a festa mais típica das colônias. Podia durar até três dias e era
muito esperada por todos. Nessas datas, amigos e familiares se visitavam, havia muita música,
dança, comida e especulações para os futuros casamentos. As sociedades eram decoradas, as
roupas novas eram preparadas para essa festa, e a alegria tomava conta da comunidade. Aos
poucos, perdeu seu caráter religioso e se tornou uma festa da povoação, reunindo tanto
católicos quanto protestantes. Para Roche (1969, p. 642) essa foi a festa que menos teve
modificações desde o começo da imigração. Ainda hoje acontecem encontros de família e
amigos na data dos Kerbs em muitas cidades do interior, inclusive em Nova Petrópolis.
Atualmente, essas festas duram apenas um fim de semana, mas incluem missa ou culto, baile
na respectiva sociedade e visitas para o almoço de domingo.
O canto, objeto de estudo desta pesquisa, tem um papel importante na cultura
germânica, estando presente em todas as festas citadas e no cotidiano das famílias. Esse
fenômeno é descrito por boa parte das publicações da história da imigração. Como exemplo
cita-se a descrição de Müller:
14
Kerb é a abreviatura de Kircheweihfest, festa de inauguração da igreja, que durava três dias. Havia muita
comida, dança, música, visita de amigos e parentes de outras localidades e a preparação para os casamentos.
15
Festa do Tiro ao Alvo. Nestas festas aconteciam competições de tiro e outros esportes, como, por exemplo, o
bolão. A premiação ocorria num baile, no final de semana seguinte.
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3
2
O imigrante alemão trouxe para um dos costumes mais bonitos de sua terra:
‘Hausmusik’, a música caseira, e o ‘lied’, o canto. Entende-se que na Alemanha,
onde o inverno é comprido, os homens passassem grande parte do ano dentro de
casa. Daí o artesanato intenso com uma oficina caseira completa. À noite, a
rodinha familiar. Canto, música, leitura. Tudo isso veio transplantado para cá.
(1978, p. 125).
No âmbito do lazer, a Hausmusik, ou música familiar, passou a ocupar maior espaço
nas igrejas, nos salões da municipalidade e clubes. Desses pequenos grupos para os
Sängervereine, ou Sociedade de Cantores, foi um passo.
É sabido que os alemães são muito dados ao canto, como, de resto, à música em
geral. Por isso não é de se estranhar que na colônia alemã, no passado, muito se
cantasse. Aos domingos à tarde, quando grupos de amigos se encontravam,
sentados à sombra de bela árvore, em frente da casa, sempre havia quem começasse
um canto. Depois outro e mais, e mais outro [...] (MÜLLER, 1984, p. 43).
Grützmann (in DREHER, 2004, p. 87) se refere ao canto alemão como meio utilizado
na conservação da germanidade, colocando que “a canção possui o estatuto de poesia própria
e representativa do povo alemão, tornando-se, assim, no plano literário, seu elemento de
individuação em relação às demais literaturas nacionais e as demais nações.” Verifica-se que
o canto possui a função de manter a identidade cultural por meio dos valores que transmite
através de suas letras, e também pela alteridade com as demais etnias.
Conforme as comunidades foram se organizando com a construção das residências,
escolas e igrejas, puderam investir nas sociedades culturais e recreativas. Inicialmente os
imigrantes se dedicaram às necessidades de sobrevivência biológica, como ressalta Roche
(1969), e apenas a partir de 1855 é que criaram a primeira sociedade recreativa em Porto
Alegre. Nos anos subseqüentes, o interior também passou a organizar seus clubes, chegando a
somar, ás vésperas da Segunda Guerra Mundial, mais de 350 sociedades.
Roche (1969, p. 648) acredita que elas foram responsáveis tanto pela adaptação como
pela manutenção dos costumes germânicos, adquirindo uma importância maior do que na
própria Alemanha, representando a terceira célula da vida dos colonos, logo após a família e a
Igreja.
32
3
3
Nessas sociedades, assim como nas igrejas, o canto ocupava um lugar de destaque,
congregado a muitas outras atividades esportivas, de teatro, bailes e festas.
As sociedades de canto, que estão entre as mais antigas das recreativas, dedicaram-se não
ao canto sacro, senão também ao lied
16
alemão. Foi o meio espontâneo de evocar a
lembrança nostálgica da Pátria abandonada quando se realizavam grandes concentrações de
colonos. (ROCHE, 1969, p. 648).
Nas sociedades, a tradição mantém os grupos de corais. Estes nasceram séculos e
foram conceituados por Braga (1958, p.19)como: “uma ampla melodia adaptada a um texto
versificado – salmo ou hino – destinado à execução coletiva nos templos”. Mas, com o passar
do tempo, foram fazendo parte da cultura de diversos povos como um todo e não mais
relacionados apenas à religião.
A mesma autora coloca que a tradição do canto-coral é muito antiga. Documentos do
Egito e Mesopotâmia revelam a existência de uma prática coral ligada a cultos religiosos.
Também durante a Reforma, Lutero (1483-1545) percebeu que, por meio da música, poderia
organizar e propagar em toda Alemanha melodias populares e o canto gregoriano, com o
objetivo de que os fiéis entendessem o que estavam cantando. Na Igreja Católica, o Concílio
de Trento, que foi uma reunião de legados papais, bispos e teólogos, convocado pelo Papa
Paulo III, apresentava, entre as diversas medidas e posturas para combater o protestantismo, a
proibição da música polifônica nas igrejas, pois a polifonia confundia os fiéis, e os textos
litúrgicos estavam passando ao segundo plano. Mas, graças à genialidade de Alessandro
Palestrina, na sua composição "Missa Papae Marcelli", dedicada à Sua Santidade, seu
protetor, somente a música profana foi banida da Igreja Católica.
A prática coral foi cada vez mais se desenvolvendo e se desligando do clero, e irmandades
foram surgindo com objetivo de dedicar-se à música. A citação a seguir demonstra como a
música se tornou importante para os alemães e acabou por se tornar comum ao cotidiano, a
partir de Lutero.
No currículo escolar, ao lado do ensino religioso e lingüístico (latim, grego e
hebraico), Lutero também incluiu a lógica e a matemática exigidas pelo tempo e
deu grande relevo à ciência e à música, o que tão importantes conseqüências
trouxeram para o povo alemão. (BRAGA, 1958, p. 89)
16
Canção, canto.
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3
4
Os cantos germânicos, não apenas as religiosos, permaneceram em seu idioma de origem
e, além dos valores culturais presentes em suas letras, quando cantados pelos corais
proporcionam o encontro de pessoas que partilham da mesma identidade coletiva reforçando
o sentimento de pertença e coesão cultural. Grützmann (in DREHER, 2004, p. 89) lembra que
“o canto representa uma devoção viva e sonora à germanidade, formando o coro humano de
vozes uníssonas, que professam a mesma essência contida nas canções, uma comunidade
étnico-nacional homogênea centrada no coletivo.”
Aqui no Brasil, as sociedades, além das igrejas e escolas, tiveram a função de manter vivo
o mundo cultural dos alemães e seus descendentes. Nos primeiros anos após a chegada dos
imigrantes e por exigência de estatutos, era somente permitida a língua alemã nas atividades
das sociedades, ou seja, em seus corais, festividades e torneios.
Essa tradição é mantida até o momento atual, e geralmente as sociedades ainda têm as
mesmas atividades para as quais foram criadas, embora tenham sido modificados seus
estatutos para acompanhar a evolução social. Segundo Seyferth (1974, p. 89), essa instituição
foi organizada nos mesmos moldes que na Alemanha do século XIX. Aqui, onde reinava o
isolamento social, as sociedades recreativas (de canto, bolão, tiro, e outras atividades) tiveram
grande importância para a coletividade. Em geral, mesmo integrando diversas atividades
coletivas, levavam o nome de alguma função específica, como pode ser observado nos
seguintes termos:
Sociedades de Cantores: Sängervereine;
Sociedades de Atiradores: Schützenvereine;
Sociedades de Ginástica: Turnvereine;
Sociedades de Bolão Mestre: Kegelvereine.
Em Nova Petrópolis, as sociedades abarcam bolonistas, cantores e atiradores em um
mesmo ambiente, sendo que suas festas e disputas ocorrem até hoje. No momento dos rituais
fúnebres, um atendimento especial é dado aos sócios, com o coral da sociedade e a respectiva
bandeira que acompanha o cortejo, onde mais uma vez fica evidente o espírito de
coletividade. Segundo entrevista feita com o professor Valter Seger,
17
de Pinhal Alto, quando
17
Seger é Presidente Estadual da Ordem dos Músicos do Brasil e há 56 anos dirige corais no município de Nova
Petrópolis.
34
3
5
o sino da igreja toca anunciando algum falecimento os integrantes do coral se dirigem a ela
para realizar essa participação. É um comportamento que esinstitucionalizado, “ninguém
precisa avisar, todos já conhecem suas obrigações”. [sic.].
Roche discute amplamente essa questão do espírito de coletividade, colocando que
“que os alemães sentem prazer em agrupar-se”. (1969, p. 643). Além das sociedades
recreativas, também existiram muitas outras, das quais podem ser citadas, como exemplo, a
“Sociedade Alemã de Amparo Mútuo” (1858), que objetivava ajudar em todo tipo de
necessidade de quem estava desamparado (doenças, enterros, importação de livros); a
“Sociedade Alemã para Enfermos” (1868), que organizava todo tipo de atendimento em
saúde, inclusive aos solteiros que não tinham com quem contar; a “Sociedade
Naturista”(1894) que trabalhava com formas naturais de cuidados com a saúde e o bem-estar
do corpo e da alma.
18
O espírito associativista dos alemães se concretiza nas diversas atividades grupais que
até hoje fazem parte do seu cotidiano: as sociedades recreativas organizadas pela própria
comunidade, os kränzchen,
19
os grupos-corais, os grupos de dança, as bandas de música, os
grupos de teatro e os grupos de bolão-mestre. Muitos autores pesquisados acreditam que
provavelmente essa tradição de lazer em grupos nasceu na Europa, em função do inverno
rigoroso que impedia atividades agrícolas, obrigando a população a encontrar outras formas
de ocupação e acabou se tornando uma marca da germanidade. Aqui no Brasil, a necessidade
de união para a ajuda mútua em meio às dificuldades do isolamento fez com que essa tradição
fosse facilmente transplantada.
O trabalho coletivo se ampliou, passou das sociedades para as cooperativas e se
transformou em negócio lucrativo. Em 1902, surgiu em Nova Petrópolis o cooperativismo de
crédito, que foi a primeira instituição com esse perfil na América Latina. A liderança coube ao
Padre Theodor Amstad, de origem suíça, imigrante no Brasil. Nas condições de Terceiro
Distrito do Caí, a região evoluiu consideravelmente na primeira metade do século XX.
Outra importante entidade coletiva, que demonstra esse espírito cristalizado na
cultura local é a Cooperativa Piá, fundada em 1967. Dez anos mais tarde, o jornal A Ponte foi
fundado com o objetivo de ser o elo de ligação entre a Cooperativa Piá e seus associados, o
poder público e entidades.
18
Encontra-se uma descrição completa dessas sociedades na obra Cem anos de germanidade no RGS: 1824-
1924. VERBAND DEUTSCHER VEREINE. Trad. de Arthur Blásio Rambo. São Leopoldo: Ed. da Unisinos,
1999.
19
Pequenos grupos de mulheres que se reúnem semanalmente em rodízio, na casa de uma e de outra, para
conversar e fazer trabalhos manuais.
35
3
6
Em 1942, uma grande crise abalou os colonos por causa da Segunda Guerra Mundial.
A língua alemã, bem como todas as iniciativas culturais, foi proibida, e os colonos obrigados
a permanecer em suas casas. Escolas, sociedades e qualquer outro tipo de associação foram
proibidos; os aparelhos de rádio e livros em alemão eram confiscados, e qualquer pessoa que
utilizasse alguma palavra nesse idioma era presa. Segundo coletânea de depoimentos de
Deppe (1988, p. 273), havia soldados treinados que provocavam os colonos a falar a língua
alemã e em seguida os prendiam.
Por um longo período, não havia missas ou cultos nem encontros públicos, pois a
maioria da população falava apenas a língua alemã. Nesse período, o governo federal passou a
investir em escolas que ensinavam o português. Mesmo assim, as tradições se mantiveram
vivas e podem ser observadas ainda hoje em muitas cidades que se originaram da imigração
alemã. Atualmente, ainda são encontradas pessoas que falam apenas a língua alemã em suas
residências, e as sociedades continuam ativas, bem como seus diversos grupos de lazer.
Após esse período, inicia uma nova fase, a do progresso. São construídas e asfaltadas a
BR-116 e a RS-235, que diminuíram muito as dificuldades relativas ao isolamento. Nos anos
50, criou-se a primeira escola ginasial na Linha Brasil, o Ginásio Bom Pastor.
Em 28 de fevereiro de 1955, ocorre a instalação do município que até então pertencia a
São Sebastião do Caí.
As escolas, fechadas durante a Segunda Guerra Mundial, foram reabertas e assumidas
pelo município, e as sociedades voltaram a ter vida. Também foram abertas novas estradas
entre as comunidades e instalada energia elétrica em quase todo o município.
Assim, com a utilização progressiva de aparelhos de rádio, a criação das escolas
públicas e o contato com os luso-brasileiros, a língua portuguesa foi sendo integrada à cultura
alemã. Um importante fato que denota a aculturação, registrado nos livros de história local,
foi a entrada de músicas e danças norte-americanas. A moda era dançar com passos para
frente e para trás, usar saias curtas e cabelos cortados. Esses comportamentos causavam
horror nos mais conservadores e faziam com que os salões de baile tomassem partido. No dia
da festa lia-se em muitas sociedades: Alle moderne Tänze sind verboten.
20
.
O tempo trouxe mudanças no comportamento aparente e também no modo de pensar
da comunidade, principalmente pela influência dos meios de comunicação. Porém, acredita-se
que exista uma essência, marcas culturais que permaneceram e foram transmitidas de geração
em geração através do tempo. E é aqui que se fixam as fronteiras regionais da cultura, na
essência da identidade coletiva.
20
“Todas as danças modernas estão proibidas”.
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3
7
5 A HISTÓRIA CULTURAL: SABEDORIA DE GENTE COMUM
A complexidade das relações humanas, seu simbolismo, crenças e valores têm uma
influência decisiva no desenvolvimento de todos os povos. Porém, durante muito tempo esse
fator humano foi subestimado no mundo científico em prol dos “grandes” fatos e nomes da
História. No final da década de 20, na França, surge uma nova forma de pensar sobre as
questões historiográficas, identificada como História das Mentalidades, atualmente chamada
Nova História Cultural.
Muito antes desse reconhecimento por parte dos cientistas, durante o movimento
romântico alemão, o filósofo Herder acreditava que a ciência do espírito humano não
poderia ser a mesma da Física, dizendo: “Compreender uma coisa era, para ele, ver como ela
podia ser vista, determinada e avaliada como o era, dentro de um contexto específico, por uma
cultura ou tradição em particular.” (BERLIN, 1976, p. 140). Observava que a arte poderia ser
um caminho para a compreensão da sociedade em suas diferentes culturas e “a idéia de que os
grandes poetas expressavam o pensamento e a experiência de suas sociedades e eram seus
verdadeiros porta-vozes estava profundamente difundida durante os anos de formação de
Herder.” (BERLIN, 1976, p. 135).
Esse modo de ver as ciências do espírito foi ganhando forma, e os métodos de
pesquisa da Antropologia, Psicologia e Sociologia passaram a ser desenvolvidos para atender
a essa necessidade de produção de conhecimento.
A interpretação dos cantos selecionados foi feita com base no conceito de cultura do
antropólogo Clifford Geertz. Em A interpretação de culturas, Geertz (1989) conceitua cultura
como um sistema simbólico formado pela interação entre os indivíduos e a comunidade.
Nesse sentido, o autor critica todo tipo de abordagem mecanicista que ignore as condições
históricas originais da organização social, o envolvimento afetivo, o papel do indivíduo e suas
necessidades básicas. A cultura como um produto de símbolos, por outro lado, não seria o
resultado de mecanismos cognitivos internos, mas a resposta pública ao relacionamento
social, à lógica da vida real e não à lógica intrínseca de um conjunto formal de símbolos.
Geertz (1989) procura, portanto, compreender o comportamento humano e a sociedade como
quem um texto, visando a resgatar de modo interpretativo o significado da cultura. Em
poucas palavras, o que está em jogo é a capacidade de o investigador das culturas colocar-se
no lugar do outro, em sua tarefa interpretativa.
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3
8
O que o etnógrafo enfrenta de fato é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma,
primeiro apreender e depois apresentar. (GEERTZ, 1989, p. 7).
Para esse autor, o conceito de cultura é essencialmente semiótico, no sentido de vê-la
como uma teia de significados, que o próprio ser humano tece e analisa. Todo fato cultural é
linguagem, é produção de sentido. Em decorrência, não se admite construir sobre a cultura
uma ciência experimental à procura de leis, mas sim uma ciência interpretativa à procura do
significado. O termo cultural designa para Geertz um padrão de significações transmitidas
historicamente e veiculadas através de símbolos. É um sistema de representações herdado das
gerações precedentes e expresso sob formas simbólicas, por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seus conhecimentos e suas atitudes a respeito da vida.
Todo comportamento humano tem forças que o animam e compreendê-las sem julgar é
entender os grupos humanos.
Bruner (1997), psicólogo culturalista, esclarece que o ser humano cresce entre
narrativas e com elas cria seu mundo, ou seja, oferece alguns elementos para essa reflexão,
sobre a questão da significação cultural e sua relação com o desenvolvimento humano,
constituído na interação social e no contexto histórico-cultural. Para ele, significados estão na
mente, mas têm origem na cultura em que são construídos.
A cultura não é apenas um conjunto objetivo de obras concretas, mas um complexo
sistema entrelaçado, por meio do sentido que têm essas representações. Entende-se que o ato
de encontro para cantar propicia um sentimento de pertença, de identificação e segurança
naquilo que une uma comunidade. O fenômeno da aceitação e de exclusão dentro de uma
determinada cultura, perpassa rituais, dentre os quais o coral pode ser citado como exemplo.
Assim, pode-se afirmar que a cultura é pública e difunde a totalidade acumulada de padrões
de comportamento como mecanismo tanto de integração social quanto de manutenção de uma
ordem dos comportamentos aceitos ou condenados por determinada comunidade.
Qualquer povo somente constitui uma sociedade humana se tem uma história para
poder perpetuar sua identidade, preservar seus traços culturais e cultivar suas tradições. Essa
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3
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história é composta por fatos reconhecidamente significativos, por homens famosos e também
por especificidades que não são tão claras quanto aquelas. Existem conteúdos na memória
coletiva que são implícitos às ações concretas, subjetivos, inconscientes e que também
constituem as sociedades.
Darnton (1986, p. XIII) atenta para a carga metafórica das ações coletivas, buscando
“não apenas o que as pessoas pensavam, mas como interpretavam o mundo, conferiam-lhe
significado e lhe infundiam emoção”. Torna-se necessário, para compreender as diferentes
culturas, analisar os sistemas de significações e as regras num determinado contexto no qual o
indivíduo vive.
Todas essas questões culturais ficam armazenadas na memória coletiva e buscam
representação, para que possam ser transmitidas de uma geração a outra. A memória está na
base do que chamamos patrimônio cultural; nela, encontram-se emoções e sentimentos
variados que se concretizam nas produções culturais diversas. Na verdade, fazem-se muitas
coisas que aparentemente não possuem lógica, mas quando analisadas percebe-se que são
aprendizados culturais que as guiam, como um pano de fundo. Apreciam-se muitas danças e
não se sabe que foram os portugueses que as introduziram. Apropria-se de uma série de pratos
saborosos sem saber que foi uma contribuição dos imigrantes italianos ou alemães. Sente-se
culpa por isso ou aquilo, sem a menor consciência de que são valores que foram
internalizados e transmitidos de geração em geração.
Os estudos empreendidos por Halbwachs (1990), teórico sobre memória coletiva,
contribuíram para a compreensão dos quadros sociais que compõem a memória. Para ele a
memória aparentemente mais particular remete a um grupo. O indivíduo carrega em si a
lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. Ela está
impregnada das memórias dos que nos cercam, a que Halbwachs denomina comunidade
afetiva”. Para ele, cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. O
conteúdo da memória coletiva pode ser acessado por narrativas, manifestações culturais
(cantos, danças, arquitetura,...), modos de produção, formas de relacionamento social ou
qualquer coisa que se concretize em modos de ser e agir. Embora algumas memórias pareçam
mais individuais e outras coletivas, elas estão integradas de tal forma que não se pode separá-
las. “Quantas vezes exprimimos então, com uma convicção que parece toda pessoal, reflexões
tomadas de um jornal, de um livro, ou de uma conversa. Elas correspondem tão bem à nossa
maneira de ver que nos espantaríamos descobrindo qual é o autor, e que não somos nós.”
(HALBWACHS, 1990, p. 47).
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0
Essa questão é abordada por Bosi, para a qual o desenvolvimento da memória coletiva
se com base nos laços de convivência familiar, escolar e profissional, de forma que “ela
entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a
limpo”. (Bosi, 1994, p. 408). Assim, a lembrança é individual, mas seu conteúdo é construído
nas relações interpessoais, ou, nas próprias palavras de Bosi: “De uma vibração em uníssono
com as idéias de um meio passamos a ter, por elaboração nossa, certos valores que derivaram
naturalmente de uma práxis coletiva.” (1994,p. 407).
Essa construção coletiva da memória também é teorizada por Blondel. Ele coloca que
a memória é composta por experiências individuais e comuns a todos os membros da
comunidade à qual se pertence; afirma que “a experiência passada, assim como a presente, é
apreendida através dos quadros e das noções que nos são providos pela coletividade”. (1960,
p.187).
Partindo desses princípios, conclui-se que não conhecimento nem inteligência sem
memória e que o passado orienta a percepção do presente. A memória coletiva tem uma
importante função, isto é, a de contribuir para a identidade do indivíduo e ao sentimento de
pertença à comunidade.
Na memória coletiva fica armazenada, além da percepção dos fatos concretos, uma
imensa gama de valores culturais mantidos pela tradição e concretizados nas ações do grupo.
Considera-se tradicional a passagem de um conjunto de dados culturais (em sentido
antropológico), de um antecedente a um conseqüente, que podem configurar-se como
famílias, grupos, gerações, classes ou sociedades”. (PRANDI, 1977, p. 166).
Caracteristicamente, as tradições têm um elevado grau de integração e são bastante
visíveis, configurando como programas de conduta que a sociedade impõe ao indivíduo.
Segundo Prandi (1977, p. 169), as tradições têm as seguintes especificidades: são extrínsecas,
ou seja, embora o indivíduo as sinta como internas, elas provêm da sociedade, do coletivo;
são objetivas quanto aos conceitos de correto e incorreto, aquilo que é considerado tradicional
é sempre visto como o mais correto; possuem poder coercivo, pressionando o indivíduo a não
deixá-las, com o risco de perder sua identidade, ou seja, uma autoridade moral intrínseca
que cria culpa, vergonha, e exclui da comunidade quem não a segue; acompanha o
desenvolvimento histórico, mas mantém a essência de seus valores.
A velocidade das mudanças naquilo que é considerado tradicional vai depender do tipo
de sociedade e da necessidade desta ou daquela tradição para coesão da comunidade. As
mudanças muitas vezes são necessárias para poder manter a tradição.
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1
O homem precisa do sentimento de pertença, e essa é tarefa da identificação com sua
cultura. Dentro de cada cultura, são escolhidos aspectos que serão mantidos como tradição e
outros que ficarão apenas como passagens da História. Esse fenômeno está relacionado às
necessidades de cada comunidade que descarta ou mantém aquilo que lhe é útil, como
confirma Halbwachs:
Sociedades religiosas, políticas, econômicas, familiares, grupos de amigos, relações, e
mesmo reuniões efêmeras de salão, numa sala de espetáculos, na rua, todas imobilizam o
tempo à sua maneira, ou impõem a seus membros a ilusão de que por uma certa duração, ao
menos, num mundo que se transforma incessantemente, algumas zonas adquiriram uma
estabilidade e um equilíbrio relativos, e que nada de essencial ali se transformou por um
período mais ou menos longo. (HALBWACHS, 1990, p. 130).
A respeito disso, Pozenato (2003) aponta, dentre as características da cultura, a
estabilidade e o dinamismo. Para ele, a cultura é estável porque mantém sempre uma base
de valores e padrões de comportamento que permitem a manutenção de sua identidade;
dinâmica, porque possui um processo de mudança em razão de novas necessidades,
embora nem todas as alterações causem mudança na identidade cultural, muitas vezes
ocorrendo apenas uma integração do novo a um significado já estabelecido culturalmente.
Sendo assim, foi considerado tradicional tudo aquilo que a comunidade escolheu como
referência de sua identidade, algo que depende de vínculos comuns de origem.
As sociedades culturais e recreativas e dentro delas os grupos de canto, são citados
nesta pesquisa como forma de sedimentar e manter a identidade dessa comunidade. O
sentimento de pertença está intimamente relacionado à identidade coletiva, que neste caso
está vinculada ao mito fundador da origem germânica. Para Silva (2000, p. 85), o mito
fundador agrega os indivíduos através de “uma liga sentimental e afetiva que lhe garante
uma certa estabilidade e fixação”, proporcionando segurança e sentimento de
pertencimento à comunidade. Afirmar uma identidade, como por exemplo, “eu sou
germânico”, é também reconhecer a diferença entre as diversas culturas.
Para Woodward (in SILVA 2000, p. 8), “as identidades adquirem sentido por meio da
linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas”, produzindo sentido
e ordem na vida social.
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2
Um fenômeno coletivo precisa necessariamente fazer parte de um todo e se evidenciar nas
crenças e práticas que foram fabricadas pelas gerações anteriores e estão revestidas de uma
autoridade particular que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Elias (1994, p.
23), ao explorar as relações entre indivíduo e sociedade, coloca que “cada pessoa singular está
realmente presa; está presa por viver em permanente dependência funcional de outras”. É essa
rede de funções que Elias chama de sociedade.
Através do campo simbólico das representações, construídas socialmente, é que se pode
conhecer a realidade social de determinada região. Estão vinculados os conteúdos simbólicos
dos cantos, as origens étnicas e o modo de ser coletivo. Também Geertz (1989), ao entender a
cultura como uma rede de significados que o homem tece durante sua existência, propõe que
cada sociedade o faça de forma particularizada, que por sua vez vai definir uma identidade
regional, dependente de uma comunidade comum de origem, e garantir um lugar na
diversidade da sociedade.
Diferentes contextos culturais têm diferentes exigências, de acordo com suas visões de
mundo. Esses modelos que são internalizados desde o nascimento passam a guiar as
motivações e atitudes. São esses referenciais que dirigem os pensamentos e,
conseqüentemente, as atitudes das pessoas. Essa ordem prevalece de tal forma que passa a
constituir a estrutura básica de pensamento dentro de uma cultura.
Tomar posse, tomar consciência da cultura na qual se está inserido propicia um diálogo
com as diversas sociedades e não permite que haja uma superposição forçada de valores. É da
natureza humana formular idéias e conceitos a respeito do seu mundo. Esses pensamentos, por
sua vez, não surgem do nada, mas de aspectos culturais que regulam tanto os pensamentos
quanto as condutas.
Todos esses valores são internalizados, geralmente de forma inconsciente e definem a
postura perante a vida. Como coloca Durkheim (2002, p. 2), “não estou obrigado a falar o
mesmo idioma que meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas é impossível
agir de outra maneira”. Adquire-se essa influência pelos meios de comunicação e pelas
interações lingüísticas, projeções e expectativas que povoam o inconsciente e determinam o
comportamento. A literatura, em suas diversas formas de apresentação, é uma dessas
representações. Essa dinâmica somente é percebida, ou tornada consciente, quando alguém
tenta contrapô-la, e sofre a coerção ou pressão da sociedade, para que a conduta culturalmente
determinada seja mantida. Ou ainda, como expressa Durham: “A dimensão simbólica
constitutiva da ação humana pode ser verbalizada no discurso, cristalizada no mito, no rito, no
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3
dogma, ou incorporada aos objetos, aos gestos, à postura corporal, e está sempre presente em
qualquer prática social.” (2004, p. 259).
Como todo texto, o canto expressa cultura, mas também a constitui. É um modo de
objetivar a cultura e todos os seus recortes.
Esta pesquisa considera que os valores culturais podem ser explicitados por uma análise
interpretativa das representações que a sociedade encontra para comunicar sua forma de ver o
mundo e utiliza os cantos tradicionais para alcançar esses objetivos.
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6 INTEGRANDO OS DADOS: INTERPRETAÇÃO DOS CANTOS TRADICIONAIS
Este capítulo consiste na descrição dos valores culturais que esta pesquisa pôde
proporcionar, mediante análise de letras de músicas típicas ainda cantadas pelos corais do
município de Nova Petrópolis.
Busca-se aqui uma integração da história oficial, da teoria sobre cultura e seus
processos de representação com os dados obtidos dos cantos tradicionais por meio da análise
de conteúdo.
Dos cantos emergiram as categorias que sustentam o presente estudo. Para tanto,
parte-se de uma explanação deste trabalho com as seguintes questões norteadoras: Quem fala?
A quem? De que modo? Com que finalidade? Para dizer o que?
Quem fala?
Nesta pesquisa, o canto foi considerado uma forma de linguagem pertencente à própria
comunidade, assim como são poesias, contos ou qualquer produção coletiva. Quem fala aqui é
a voz da comunidade, com suas especificidades regionais, como as características de uso da
língua e de costumes germânicos.
As localidades que contextualizaram este estudo foram aquelas que se originaram da
criação da Colônia, que posteriormente se tornou município, e foram povoadas por imigrantes
alemães. Nas últimas décadas, outros bairros foram surgindo, com uma diversidade étnica de
características diferentes das localidades tradicionais. Nesses novos espaços, não existem
sociedades ou grupos de canto e a população não se vinculou às demais sociedades.
Quem fala são os descendentes de imigrantes alemães, com todo o legado cultural que
lhes foi transmitido de geração em geração.
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5
A quem?
Os textos em questão falam para a própria comunidade, como se fossem mensagens da
comunidade para ela própria, como um meio de projetar e transmitir valores culturais.
Geertz (1989), ao conceituar cultura, lembra que seus valores são transmitidos
historicamente e veiculados por meio de símbolos, cujo significado está na memória coletiva
e é transmitido através das gerações. Os cantos são considerados como uma das formas que
esta cultura encontra para transmitir seus valores.
Desse modo, a cultura comunica e oferece os instrumentos para organizar e
compreender o mundo.
De que modo?
Esse fenômeno de transmissão de valores culturais ocorre direta ou indiretamente, por
meio de conversas informais, ritos, lendas, contos e todos os tipos de literatura, como é o caso
da poesia e do canto. Seu conteúdo penetra na memória coletiva para atender à necessidade de
coesão da comunidade mediante valores comuns. Pozenato (2003, p. 82), ao questionar quem
estabelece e legisla os valores culturais, coloca que esse fenômeno se “num consenso
tácito, na medida em que às vezes nem chega a ser verbalizado”.
Esse processo de receber da cultura modos de ser coletivos, herdados de gerações
anteriores, lembra as palavras de Darnton (1986, p. 31) ao colocar que “até os pregadores
medievais utilizavam elementos da tradição oral para ilustrar argumentos morais”, o que
provavelmente facilitava seu entendimento.
Para Grützmann (in: DREHER, 2004, p.87) “a canção alemã, apresenta-se, então,
como um meio ideal para o fornecimento, reavivamento e cultivo da germanidade, tarefa essa
duplicada em função do idioma em que essa forma literária esta escrita [...]”, ressaltando a
importância das manifestações culturais para a transmissão de valores.
O conteúdo da memória coletiva norteia o pensamento e o comportamento de cada
comunidade social, bem como proporciona um sentido de pertencimento e de identidade vitais
para todos os seres humanos, com o passado orientando a percepção do presente.
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Sua influência na vida das pessoas é geralmente subliminar e inconsciente, como
coloca Martinelli (in MIGLIORI, 1998, p. 18): “Aquilo que nos parece óbvio e lógico pode na
verdade ser apenas o resultado de um condicionamento longamente instituído e
profundamente sedimentado.”
Com que finalidade?
O homem utiliza o que estiver a seu alcance para manter sua identidade cultural. Com
base nesse pressuposto, verifica-se a importância do ato de cantar como integração, lazer e
manutenção do sentimento de pertença à comunidade e de seu conjunto de valores. Para
Geertz (1989, p. 35), não existe homem sem cultura. Se fosse o caso não haveria uma forma
coerente e integrada de relações entre os seres humanos, e estes se transformariam numa
“monstruosidade incontrolável”.
Acredita-se que se o canto resiste ao tempo é porque ainda cumpre sua função cultural.
A cultura dispensa aquilo que não tem função nenhuma; portanto, a manutenção dessa
tradição contém, explicita ou implicitamente, algum sentido, seja ele de transmissão de
valores, ou de forma de lazer. Nas diversas comunidades do município nem todos falam a
língua alemã, mas os corais permanecem vivos, com seus integrantes se renovando de geração
em geração.
A tradição aparece, portanto, como estratégia para organizar e transmitir valores
culturais, assegurando a preservação da identidade cultural. Mediante a valorização do
patrimônio e da memória, é mantida a coesão social. Segundo Prandi (1977, p.191), um
movimento entre o passado e as necessidades do presente, para que o se perca a essência
cultural. Esse fenômeno pode ser visto no fato de estarem sendo modificados os repertórios de
cantos utilizados pelas crianças, mas mantidos os grupos corais. Os rituais de encontro, as
sociedades culturais e recreativas e a música, como manifestação cultural, precisaram alguma
modificação, ou atualização, para que fossem mantidos, como diz o ditado popular: “As
coisas tem que mudar para permanecerem iguais.”
Outras formas de evidenciar a necessidade de preservação das tradições foram: criação
de festividades como, por exemplo, a comemoração do Dia do Colono; abertura de museus
que contam a história da imigração; publicação de obras de depoimentos e pesquisas relativas
à germanidade, entre outras.
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Para dizer o quê?
Os cantos tradicionais germânicos têm conteúdos diversos que se referem aos vários
temas do cotidiano, como os próprios autores do Frohe Runde (2004) determinaram: cantos
para a noite, de despedida, de profissões, piedosos, festivos, fúnebres, canônicos, de sabedoria
de vida, de amor, de natureza e primavera, de ladrões, humorísticos, de escola e infantis, de
soldados e da pátria, que acompanham o ato de beber, de profissionais ambulantes e de Natal.
A existência de cantos para cada um desses momentos demonstra como seu conteúdo ajuda a
dar sentido, explicação, justificativa ou alento a esses aspectos da vida humana. Dessa forma,
a questão é buscar os valores culturais contidos nos cantos, que ajudam o homem dessa
cultura a viver.
Os temas analisados nesta pesquisa são universais, presentes em narrativas de todo o
mundo, mas com um viés particular, regional, característico dessa cultura específica, de seu
universo de representações sociais. Do estudo emergiram as categorias temáticas que
expressam os valores culturais presentes nos cantos tradicionais. As categorias são: sentido da
vida, religiosidade, valores da vida social e dialética da expressão emocional.
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Sentido da vida
Cada cultura determina como seu povo deve compreender a vida, a religião, os
relacionamentos, os sentimentos, enfim, através de que lentes enxergará o mundo em que vive
e, conseqüentemente, de que forma deve pensar, sentir e agir. Buscar o sentido da vida é
procurar compreender o que ela quer dizer, o que ela significa, o que se pode esperar dela.
Portanto, partindo desse princípio, pergunta-se: o que significa a vida para a comunidade em
estudo?
Para Geertz o homem não existe fora da cultura, uma vez que o mundo não pode ser
considerado em si mesmo, mas apenas da forma como cada ser o interpreta, ou seja, como
cada um vive a experiência e a representa. “Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós
nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados
historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas.”
(1989, p.37).
Assim, a questão central dessa categoria é: O que esta cultura desenvolveu, comunicou
e perpetuou no que concerne ao sentido da vida?
Um dos indicadores que se destaca na análise é a noção de processo. Existe, nos
cantos, uma lógica de início, meio e fim, um processo vital de juventude em direção à morte,
de primavera em direção ao inverno, de luta em direção à liberdade, na busca contínua pelo
alimento. Muitos são os exemplos que comprovam essa indicação, como se pode observar no
canto sobre sabedoria de vida:
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Linda é a juventude em alegres tempos
Linda é a juventude
Porém ela não volta mais
Em breve, cansado andarás pela vida
Ao teu redor haverá solidão
Vazio em teu coração
Por isso eu repito:
Linda é a juventude em bons tempos
Mas ela não volta mais!
Florescem rosas, florescem cravos
Porém todas as flores murcham
Assim também nós humanos
Um dia murchamos
E depois baixamos à sepultura.
O desenrolar do processo vital causa, à primeira vista, uma impressão de pessimismo,
uma vez que o fim das narrativas, neste e em outros cantos, é triste e com descrições de muito
sofrimento. Mesmo descrevendo acontecimentos positivos durante a narrativa, geralmente
apresentam-se concomitantemente aspectos negativos, como duas polaridades de um mesmo
fenômeno.
Por outro lado, essa situação também pode ser vista como realista, enfocando os fatos
de forma direta e racional. A falácia da falsa dicotomia, discutida por Bauer e Gaskell (2002),
pode ser observada nesses cantos, que trazem a impressão ora de pessimismo ora de realismo.
Assim, fazer uma inferência optando por uma dessas posições simplifica um movimento
complexo que pode incluir os dois fenômenos.
Essa forma racional de descrever os fatos também foi evidenciada nas entrevistas,
como na seguinte fala:
“Não existem contos, isso é bobagem, nossos antepassados tinham mais com
que se preocupar, em vez de ficar imaginando histórias!” (Seger).
Nesse exemplo percebe-se a força de uma visão racional e realista dos fatos, excluindo
idealizações e fantasias, o que também é lembrado por Roche (1969, p. 687), ao citar um
romance de Viana Moog
21
e destacando que “tem-se muitas vezes repetido que os imigrantes
21
Vianna Moog (Clodomir V. M.), advogado, jornalista, romancista e ensaísta, nasceu em São Leopoldo-RS, em
28 de outubro de 1906, e faleceu no Rio de Janeiro-RJ, em 15 de janeiro de 1988. Eleito em 20 de setembro de
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0
ou seus descendentes deviam suas qualidades às normas de vida e às idéias que haviam
herdado de seus antepassados alemães”.
Esse romance fala da rigidez dos alemães, sob o ponto de vista de um luso-brasileiro
que chama a atenção para alguns aspectos muito próximos aos observados nos cantos
tradicionais germânicos. O personagem principal do romance é Geraldo, que veio da
Amazônia para trabalhar na construção de uma hidrelétrica. Por meio da convivência com
essa comunidade de origem germânica, acaba por listar uma série de conclusões a respeito
dessa comunidade, dentre elas: “Povo de boa-fé, sempre à procura de um führer, para o bem
ou para o mal”, utilizando exemplos dos Muckers e de outras lideranças que fazem parte do
romance; “povo inteligente, de inteligência lógica, metafísica”; “povo sem senso político”,
onde as leis devem ser levadas às últimas conseqüências, sem senso de diplomacia, “cultores
exagerados do imperativo categórico”; “povo de instinto musical e poético”, que também
levam a razão às últimas conseqüências; “desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das
fachadas, tudo nela, a exceção do jardim, era grave, gido, tedesco”. (MOOG, 1973, p. 13-
125-126).
Na diferença entre as duas culturas: luso-brasileira e teuto-brasileira, citadas no
romance, evidencia-se a identidade germânica pela relação de alteridade existente entre elas.
A tônica do romance é justamente o choque cultural, mas com uma relação de julgamento
entre certo e errado, trazendo ao mesmo tempo uma comparação como forma de demonstrar o
que cada cultura possui de valor, de características próprias.
Outra característica que se repete nos cantos refere-se ao movimento entre
expectativas e dificuldades contidas nas narrativas. De um lado, uma série de desejos e de
outro uma descrição de um caminho de lutas para alcançá-los, além de certa impotência
contra as dificuldades. sempre uma relação entre um desejo e uma dificuldade
subseqüente, como o desejo de liberdade e o perigo da morte, o desejo de viajar para sua terra
natal e o risco de atravessar um bosque escuro, o desejo de apenas fazer o bem e as tentações
do mal, o desejo de que seja sempre primavera e a chegada do inverno. Parece que todos os
acontecimentos do processo vital possuem tanto aspectos negativos quanto positivos, de
forma quase inseparável. As expectativas por períodos agradáveis e felizes, mesmo que no
1945 para a Cadeira n. 4 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Alcides Maya, foi recebido por Alceu
Amoroso Lima, em 17 de novembro de 1945. Entre suas publicações, está o romance Um Rio imita o Reno,
utilizado nesta análise. Seu romance é utilizado nessa análise como mais um exemplo literário que demonstra a
influência da cultura no comportamento humano, sem considerar a veracidade histórica dos fatos citados.
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final da narrativa apareçam novamente os períodos de dificuldades e sofrimento, aparecem em
boa parte dos cantos. Na referência à primavera, pode-se ter uma clara noção dessa questão.
Rouxinol, rouxinol, como cantavas tão bem perante todos os passarinhos!
Como penetrava teu cantar em todos os corações!
Quando tu cantavas, todo mundo gritava: agora deve ser primavera!
Rouxinol, como penetrava teu cantar em todos os corações!
Rouxinol, rouxinol... O quê?! Estás silenciando? Cantaste tão pouco tempo...
Por que não queres, não queres mais cantar? Lamento isto por demais!
Quando tu cantavas, meu coração estava tão cheio de entusiasmo e alegria!
Quando o maio, o mês de maio, o maio amigável, com suas flores brilha,
Sinto-me bem de coração; nem sei como isso acontece!
Também eu queria cantar, mas não conseguia; canção nenhuma me saía.
Pois é, pois é; sinto-me tão estranho no coração! Não sei como posso me sentir assim!
A importância dada ao período primaveril é um exemplo de como algumas tradições
podem se manter estáveis, mesmo mudando seu contexto original. Esse aspecto demonstra
como a tradição é importante para a preservação da identidade cultural. Demonstra também
como o conceito de região se define nas relações culturais e não somente geográficas.
Embora muitos aspectos do clima da Serra Gaúcha lembrem a Europa, a referência à
primavera não pode ser interpretada segundo as condições de vida no Brasil, uma vez que
para as populações das regiões subtropicais, a chegada da primavera não tem o mesmo
impacto causado em regiões que enfrentam invernos rigorosos, nevascas e muitos dias
cinzentos. É oportuno lembrar que os imigrantes eram, em sua grande maioria, agricultores
que valorizavam a explosão das cores das árvores brotando, os animais reaparecendo e
fazendo seus ninhos, os dias mais longos e o sol trazendo uma nova energia ao cotidiano,
aparecendo como renovação da vida que, por alguns meses, parecia inexistir. Mesmo fazendo
uma reverência positiva à primavera, a canção o deixa de lembrar que ela terminará em
breve, mostrando novamente a relação de polaridades entre aspectos favoráveis e
desfavoráveis já observados.
Conforme Seyferth (1974, p. 13), o fato de alguns cantos se referirem às estações do
ano mostra como, no passado, as pessoas se relacionavam com o tempo, cita que “a relação
com a terra e o caráter específico da produção agrícola determinavam o ciclo anual do
trabalho camponês e da vida familiar”. Os períodos de tempo, naquela época, eram marcados
por atividades e modos de vida específicos para cada época do ano. No inverno, um maior
recolhimento e atividades domésticas; na primavera, o renascimento e o preparo da terra para
o plantio. Mesmo que nessa região o inverno não seja tão rigoroso quanto na pátria de origem,
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muitos costumes se mantiveram, bem como a importância dada ao período primaveril que se
evidencia em cantos específicos para essa época do ano. A noção de tempo parecia estar mais
vinculada aos fatos concretos do que a um calendário abstrato, ou seja, a relação do homem
com o tempo era marcada por outros rituais, além das estações do ano, como exemplifica
Roche ao concluir que “batismos, crismas, casamentos, serviços fúnebres, marcam as etapas
da existência, como as festas religiosas balizam o ano”. (1969, p. 672).
Juntamente com a primavera, a citação do rouxinol como seu símbolo, pássaro que
volta a aparecer também como mensageiro do amor na canção que faz referência a esse tema.
Ah! Deixe ir embora as aflições,
Vem junto ao verde lar.
Lá, no meu peito, somente, encontrarás amor.
E, silenciosamente, então, soprarei meu amor em teu ouvido.
Além disso, soará silenciosamente o canto do rouxinol.
O rouxinol é um pássaro famoso na literatura, sendo citado em muitos contos,
poesias e letras de música. Aparece geralmente como mensageiro do amor. No contoO
rouxinol e a rosa”, de Oscar Wilde, esse pássaro doa sua vida para ajudar um estudante a
conquistar seu amor. Hans Christian Andersen usa-o como personagem principal que
encanta o Imperador da China, emocionando seu coração e devolvendo-lhe a vida.
No dicionário de símbolos de Lurker, o rouxinol tem um significado que
demonstra o uso universal da sua representação:
Seu nome em alemão (Nachtingall) significa cantora noturna; seu canto
melodioso e ao mesmo tempo melancólico era considerado de bom agouro
na antigüidade. Na Pérsia era símbolo de amor, também entre os trovadores
provençais e ainda hoje na crença popular da Europa Central; além disso é
considerado anunciador de uma morte suave e indolor ou pássaro das
almas. (1997, p. 615).
Sua simbologia também remete a essa dialética observada na cultura germânica, entre
o bom e o ruim, a alegria e o sofrimento, a juventude e a velhice. O rouxinol, da mesma forma
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contraditória, anuncia tanto a morte como o amor, bem como apresenta um canto melodioso e
ao mesmo tempo melancólico.
Partindo dessas observações, conclui-se que a vida aparece, então, como um processo
dinâmico, onde existem bons e maus momentos. O ciclo vital é composto por uma
valorização dos aspectos positivos, mas sem a ilusão de que sejam eternos. É como se pudesse
aproveitar os bons momentos, mas nunca esquecer que um dia se te que enfrentar as
inevitáveis dificuldades, ou talvez se preparar para enfrentá-las. Essa concepção parece deixar
pouco espaço para sonhos e devaneios, ilusões e fantasias e traz a impressão de ser um povo
racional, com pensamentos predominantemente lógicos.
Além dessa relação entre as contradições, a vida também é vista como período de
provação, onde os valores referentes ao sentido da vida se encontram com as crenças da
religião. A função de apoio que a religião pode oferecer para as inevitáveis dificuldades traz
um relativo alento e a promessa de um futuro compensador, acreditando que o homem que
trabalha e sofre na vida terrena alcança a recompensa divina. Essa expectativa é evidenciada
em diversos versos, como uma forma de suportar as dificuldades da época.
Passei pelo mundo, e o mundo é lindo e grande,
Apesar disso, o meu anseio me puxa para longe da terra.
Tenho visto os humanos,
E estes procuram tarde e cedo,
Eles trabalham, eles vêm e vão,
E sua vida é trabalho e esforço.
Eles procuram o que não encontram
Em amor, em honra e sorte,
E vêm carregados de pecados
E descontentes retornam.
Há um descanso disponível
Para o pobre, cansado coração.
Dizei-o alto em todas as terras:
Aqui é silenciada a dor.
Um descanso foi encontrado
Para todos, distantes e próximos:
Nas feridas do Cordeiro Divino,
Na cruz do Gólgota.
A recompensa que a religião propõe é viável para quem suportar as agruras da vida
terrena, tornando esse processo de busca um dos principais objetivos da existência e dando
sentido aos bons, mas principalmente aos momentos difíceis.
A música natalina mais conhecida, “O pinheirinho de Natal”, corrobora os resultados
dessa interpretação, uma vez que valoriza as características de estabilidade dessa planta
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tradicional. Sendo uma árvore tão bonita no verão quanto no inverno, proporciona a
tranqüilidade de uma estabilidade que a vida não pode oferecer.
Oh! Pinheirinho de Natal, quão lindas são tuas folhas!
Não és somente verde no verão
Não, também no inverno quando neva.
Oh! Pinheirinho de Natal tu me agradas muito
Quantas vezes ao Natal, uma árvore da tua espécie
Muitíssimo me alegrou!
Oh! Pinheirinho de Natal, teu traje quer ensinar-me algo
A esperança e constância dão conforto e força a toda hora
Oh! Pinheirinho de Natal, quão rico estás adornado!
Com nozes douradas, maçãs vermelhas, flores e doce pão ( pão de açúcar ).
Oh! Pinheirinho de Natal, quão forte é teu brilho!
Dos pés à cabeça tudo é lindo
Em ti só há brilho!
Oh! Pinheirinho de Natal, quem te decorou tanto assim?
O poder milagroso do amor te fez a árvore mais linda!
Oh! Pinheirinho de Natal, se eu me deixasse adornar como estás tu,
O amor de Deus faria também de mim um enfeite do paraíso!
De forma sintética, as características que fazem parte do intrincado sistema simbólico,
chamado cultura e que caracteriza o sentido da vida dessa comunidade, são: a existência de
um processo dinâmico, ora com momentos de felicidade, ora com muitas dificuldades; um
sentido realista desses fenômenos, podendo ser interpretado ora por certo pessimismo, ora por
um realismo; uma racionalidade lógica; desejos de amor, liberdade, eternidade do bem-estar e
da juventude, alegria e aconchego e suprimento de necessidades básicas, como por exemplo o
alimento. As dificuldades diversas que sempre acompanham ou seguem os bons momentos
dizem respeito à morte,
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à ganância, às angústias e tentações do mal e da bebedeira, à solidão
e ao cansaço esperados na velhice, à impossibilidade de assumir um amor e à distância da
terra natal.
22
Mais uma vez, a contradição se faz presente, pois se a morte leva para a maravilhosa vida eterna, não precisaria
ser temida. Alguns cantos a apresentam como salvação e outros como algo a ser temido.
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Religiosidade
O termo religião deriva-se de re-ligare, que significa religar, unir. É a união do
homem com uma realidade que o transcende e que busca respostas para questões da existência
humana (PEDRO,1993, p. 265). O mesmo autor lembra que existe uma série de questões que
sempre perturbaram a humanidade, como por exemplo: de onde procedemos? Para onde
iremos após a morte? Qual é o sentido da vida? Qual o sentido do sofrimento? Por mais
dolorida ou sem sentido que seja a realidade da vida, a religião é capaz de justificar e propor
uma compreensão que traz alento, sustenta, cura, consola, abençoa, explica e esclarece,
reconcilia, regenera e redime.
A religião é considerada por Herskovitz (1947, p.157) “um elemento ativo da cultura”,
pois faz parte do conjunto de valores estabelecidos pela mesma, integrando um sistema coeso
de crenças e rituais que colabora para definir os modos de ser coletivos.
Para Geertz (1989, p. 80), “a existência da perplexidade, da dor e do paradoxo moral
do problema do significado - é uma das coisas que impulsionam os homens para a crença em
deuses, demônios, espíritos, princípios totêmicos[...]”. O papel da religião é, então, o de
explicar os conteúdos existenciais do ser humano: de onde viemos, o que estamos fazendo
aqui e como, e para onde vamos depois da morte.
Para analisar as relações que essa cultura estabelece com a religião, por meio de sua
representação nos cantos tradicionais, utiliza-se a seguinte definição de religião:
Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com
tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem
singularmente realistas. (GEERTZ 1989, p. 67).
Independentemente das especificidades das diferentes crenças, a religião possui uma
força essencial, conforme declara Durkheim: “O fiel que se comunicou com seu deus não é
apenas um homem que novas verdades que o descrente ignora, ele é um homem que pode
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mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para
vencê-las.” (1973, p. 524).
Como acontece com outros povos, os imigrantes alemães também se utilizaram dessa
força para poder suportar o investimento que estavam fazendo ao buscar uma nova vida num
país distante. Além das questões existenciais referentes a todo ser humano, eles enfrentavam
as adversidades de tamanha mudança no seu cotidiano e as conquistas que necessitavam
realizar na nova pátria.
A questão da religião perpassa as outras categorias analisadas, como aponta Durkheim
(1973, p. 513): “Toda religião tem um lado pelo qual ela ultrapassa o círculo das idéias
propriamente religiosas [...]” Uma vez que ela se constitui não apenas em rituais, mas
primeiramente em um sistema de idéias, observa-se, então que a religião também colabora
para definir um sentido para a vida. Herskovitz (1947, p. 157) postula que “qualquer que seja
a forma pela qual o homem defina o universo, por toda a parte emprega-se a religião para
encontrar e manter-se dentro do esquema das coisas”.
Dreher (1984, p.24), ao estudar a relação entre a religião e a germanidade, relata que
as diferenças de crenças entre católicos e protestantes determinava também a vida política,
uma vez que impedia acatólicos de assumir cargos políticos. Observa-se neste exemplo uma
forma de integração entre valores religiosos e políticos que ilustra a posição de Herskovits e
Durkheim quanto a influência das crenças religiosas em outras instâncias da vida cotidiana.
A religião tem uma visão de mundo e de homem própria, e estabelece as formas
aceitas, ou não, de sentir e agir esperadas para cada tipo de situação, prevendo punições caso
essas orientações não sejam cumpridas. Em outras palavras, ela possui também um papel
social e psicológico determinante na cultura. Em 1938, quando foram vetados os sermões e as
aulas em língua alemã pela administração pública, com uma justificativa nacionalista, os
padres temeram que fossem perdidas as normas de vida. Essa preocupação faz sentido ao
considerar as colocações de Geertz a respeito da importância da religião:
Os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para sua
capacidade de compreender o mundo, mas também para que, compreendendo-o, dêem
precisão a seu sentimento, uma definição as suas emoções, que lhes permita suportá-
lo, soturna ou alegremente, implacável ou cavalheirescamente. (GEERTZ,1989, p.
77).
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Para Durkheim (1973), a religião é uma das formas de sustentar a moral, necessária ao
convívio em sociedade, mas não a única. Diversas instituições, como a escola, a polícia e
muitas outras buscam o estabelecimento moral da coletividade. A moral é necessária para a
continuidade e estabilidade da sociedade, evitando conflitos sociais.
O conteúdo dos cantos demonstra claras instruções sobre os castigos reservados a
quem não seguir a ordem moral, como por exemplo, não conquistar um lugar no Paraíso
celeste e sofrer com a culpa de ter pecado, para o resto da vida. Deixa claro também que Deus
está “vendo tudo”, e inclusive conhece cada um pelo nome, conforme o exemplo a seguir:
Escrito em sua mão está meu nome,
que lhe é conhecido.
Essa mensagem orienta não apenas as formas de pensar daqueles que nela acreditam,
mas também a de sentir e de agir. Fazer o bem, acreditar na proteção divina, não roubar, não
desperdiçar, suportar o sofrimento em vida para merecer o paraíso após a morte são algumas
das mensagens que aparecem nesses cantos.
Durkheim (1973), ao estudar as formas elementares da vida religiosa, parte da idéia de
que na humanidade uma natureza religiosa essencial. Por trás das diversas formas de
crenças e ritos, existe uma significação, uma necessidade humana atendida. Quando fala de
que todas as religiões são verdadeiras, refere-se ao seu poder de atender às necessidades
humanas e não aos fatos em si.
As principais idéias e as atitudes rituais que se manifestam em todas as religiões,
segundo o autor, são: distinção das coisas em sagradas e profanas, noção de alma, noção de
espírito, noção de personalidade mítica, noção de divindade, culto negativo com as práticas
ascéticas que são sua forma exasperada, ritos de oblação e de comunhão, ritos imitativos, ritos
comemorativos, ritos de expiação.
O grau de complexidade das diversas formas de crenças religiosas difere de acordo
com cada grupo social. Geertz afirma que os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o
ethos de um povo “o tom, o caráter, e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais
e estéticas e sua visão de mundo; o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples
atualidade, suas idéias mais simples sobre ordem”. (1989, p. 66).
Dessa forma, o estudo das crenças religiosas precisa ser visto dentro de seu contexto
cultural. A comunidade em estudo é composta por católicos e protestantes, mas os cantos
analisados são comuns a ambos. O fato em questão é que a religião atende às questões
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existenciais do ser humano, sendo que não são consideradas, na discussão, especificidades
particulares das crenças religiosas.
Disposições e motivações aparecem nos cantos tradicionais germânicos,
principalmente de duas formas: tratando da religião como protetora da vida e acolhedora da
morte e colocando-a como instrumento de controle moral. Proteção e controle parecem
indissociáveis.
No primeiro caso, trata-se da necessidade de acreditar num poder superior, numa força
potente contra os sofrimentos que naturalmente fazem parte do processo vital.
Acreditar numa força superior pode ter sido muitas vezes a forma de encontrar
esperanças em tempos de dificuldades, como por exemplo, a crise que a Europa vivia no
século XIX e os primeiros anos de vida dos imigrantes no Brasil. Naquele período, a busca
pelo alimento era uma preocupação constante, e sua valorização é demonstrada na estrofe
citada abaixo, com a gratidão e o reconhecimento a Deus pelo seu suprimento.
Quando ricos grãos a lavoura produz,
O moinho então, veloz as rodas conduz.
E o céu nos doa sempre o pão,
Somos felizes e não sofremos nenhum senão.
Roche observa que as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes estimularam a
participação das comunidades na vida religiosa, mesmo sem ter tido, inicialmente, apoio das
autoridades eclesiásticas. Partilhar uma mesma crença religiosa foi uma das formas de manter
viva a cultura de origem e a coesão da comunidade. Para esse autor a “a importância da vida
religiosa nas colônias assinala-se, pois, pela profunda piedade individual e até mesmo pelo
misticismo, assim como pelo papel das comunidades cultuais do lugar e pelo vínculo da
religião com a consciência étnica.” (ROCHE, 1996, p. 671).
A crença em Deus como protetor dos seres humanos também é evidenciada nesta letra
que se refere a Ele como guardião dos familiares, sendo que o personagem que canta aguarda
pelo seu próprio sepultamento saudoso de sua terra natal.
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Não tenho mais pais; há muito estão com Deus,
Nenhum irmão, irmã; todos já se foram!
Quando um dia tiver morrido, ao cemitério levem-me,
Deitem-me na sepultura refrescante, e cantem esta canção:
Tirol, Tirol,Tirol, tu és meu torrão natal,
Onde por morros e vales ecoa a corneta alpina!
Na canção para a noite aparece uma referência à proteção divina, ou seja, Deus como
protetor do sono e do descanso. O termo descansar é utilizado no contingente de músicas,
tanto na sua forma literal, ligada ao adormecer, quanto no sentido de morte. A religiosidade
coloca Deus como protetor tanto da vida como da morte. A morte é um tema muito presente
nos cantos, em geral sinalizando o fim das narrativas, como se todas as passagens levassem
inevitavelmente à morte. Esta é vista ora como algo compensador em função das promessas
religiosas, ora como algo a ser temido.
Teus anjos tu nos envias
Pai eterno junto a nós
Com certeza nós descansamos
Fiéis, guardados com Tua proteção.
Deus cuida de seus filhos e da natureza, lembrando que conhece a todos. O fato de se
referir a Deus como conhecedor de todos os seus filhos não deixa de ter também um cunho
moral, pois, assim como cuida, também controla, de uma posição privilegiada: está no céu,
entre os anjos.
Meu pai que no céu mora,
Como rei de todos os anjos no trono
Ele está perto de mim da manhã à noite,
Cuidando dos passos meus.
Percebe-se, então, que a função da religião, denotada pelos cantos, é tanto de salvação
e proteção contra o mal, quanto de controle do comportamento social, dando sentido à
experiência emocional e moral. Para Durkheim (1973), a essência da religião é social;
portanto, só é possível o homem existir como parte ativa de uma sociedade, assimilando suas
ordenações, que, nesse caso, ficam evidentes nas letras das músicas analisadas, conforme
exemplo abaixo:
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Dá-me teu dinheiro! Tua vida acabou!
Não tenho dinheiro, infelizmente não posso te dar nada
Venha tu mesmo e abra meu peito!
O que tu carregas aqui no lado esquerdo?
O que trazes no teu pequeno peito?
É a foto de minha mais querida mãe,
Ela me deu na última saudação de despedida.
Então, de repente, cai em sua frente o bandido:
Perdão, perdão, que eu teu irmão sou!
Podes tranqüilo seguir para tua terra,
Porém, eu serei sempre um bandido no teu ver.
A música sobre bandidos representa muito bem essa questão onde a culpa pode estar
ligada ao pecado, como proibição do roubo e possível castigo divino. Aparece aqui a relação
entre o homem bom e o mau, que paga seus atos imorais com a culpa e o ressentimento, pelo
restante de sua vida.
Por vezes, a sociedade pode encontrar discordâncias entre aquilo que deseja e o que é
permitido por suas regras.
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A canção a seguir a impressão de que, no fundo, todos sabem
dos prejuízos causados pelo uso abusivo de bebida alcoólica, e que provavelmente Deus não
aprova tal atitude. Porém, o desejo pelo seu uso é imenso, de forma que se cria uma música
para justificar, inclusive perante a religião, essa escolha. A Bíblia é vista como controle moral
e implicitamente parece haver uma preocupação com a desaprovação da mesma. Para tanto, a
música justifica o uso de bebida alcoólica através da tradição, evitando recriminações.
Moisés ainda bem, não inventou um 11º mandamento;
Porém isto não está escrito na Bíblia, e já trouxe muita alegria.
Foi passado para nós porque beber e se embebedar vale a pena
Eu, porém, vos pergunto: afinal, sabeis como isso se chama?
Da proteção à vida ao controle moral e deste para uma merecida, ou não, vida após a
morte, é o caminho a que a religiosidade contida nesses cantos parece levar. Ao pensar na
morte das pessoas queridas, ou na expectativa mais do que certa de morrer um dia, o ser
humano é tomado por sentimentos e reflexões e geralmente busca subterfúgios para aliviar
seus medos. A religião tem se constituído numa explicação para questões que a ciência ainda
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Um aprofundamento deste tema encontra-se na categoria que explora a dialética da expressão emocional.
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não compreendeu, e, mesmo não possuindo dados concretos, acalma as dúvidas existenciais
que parecem ser universais.
Dizei-o alto em todas as terras:
Aqui é silenciada a dor.
Um descanso foi encontrado
Para todos, distantes e próximos:
Nas feridas do Cordeiro Divino
Na cruz do Gólgota.
O termo descansar, utilizado para se referir à morte supõe esperança de vida eterna, de
tranqüilidade e proteção divina.
Uma idéia de que o sofrimento é necessário para a salvação da alma é uma crença
própria do cristianismo, e segundo Geertz (1989, p. 76) de quase todas as religiões. Em outras
palavras, uma glorificação do sofrimento. Caracterizar a luta como santa também remete à
na religião, com um significado implícito de que sofrimento tem a ver com santificação.
Luta é sofrimento, ser santo é ser merecedor de proteção divina.
E quem achou a morte em santa luta,
também em estranho chão ele descansa
em terra natal!
Adversidades como a falta de padres e pastores, desinteresse do governo pela
organização e construção das igrejas, proibição do uso da língua alemã, além de outras, foram
superadas pela própria comunidade e corroboram as diferentes teorias de Geertz (1989) e
Durkheim (1973) quanto à necessidade de religiosidade que a sociedade tem.
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Valores da vida social
Toda relação social parte dos primeiros contatos que o ser humano faz com outros
seres humanos, o que geralmente se na família e vai sendo ampliada até abranger a
comunidade onde se está inserido, bem como a relação desta com outras comunidades.
Certamente, é uma rede complexa de relações, com prazeres e desprazeres, amor e ódio,
identificação e repugnância, respeito e violência e uma infinita gama de possíveis formas de
relacionamento. Para Elias (1994), essas relações formam uma pessoa psicologicamente
desenvolvida e que poderá ser chamada “ser humano adulto”. A forma básica dessas relações
existem antes que a pessoa nasce e são diferentes conforme a sociedades a qual pertence.
O desenvolvimento histórico e os valores culturais vão determinar a forma como as
sociedades respondem ao contato social. As comunidades de imigrantes, e neste caso os
germânicos, trouxeram consigo uma história cultural, com padrões próprios de
relacionamento social transmitidos de geração em geração, a qual foi sendo adaptada às
vivências e necessidades concretas.
Um dos valores culturais presentes nas letras dos cantos se pela referência à
família, que aparece como uma instituição importante para suprir necessidades de afeto e
segurança.
A partir do contexto do desbravamento destas terras e das dificuldades encontradas,
pode-se compreender a importância que teve a união da família para a sobrevivência dos
indivíduos, tanto no que concerne às necessidades básicas de alimento e moradia quanto às
necessidades emocionais. Para Roche (1969, p. 558), “a lula social que sustentou o
indivíduo foi a família, que muito tempo se protegeu a si própria na medida em que podia
escolher esta ou aquela arma por tabu, por palavra de ordem, por uma severa disciplina”. A
família toda trabalhava para sua sobrevivência: crianças, mulheres, homens e idosos, embora
o serviço mais pesado ficasse para os homens.
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A categoria referente à dialética das expressões emocionais cita a dificuldade dessa
população em demonstrar seus afetos, mas as entrelinhas dos cantos desvendam os
sentimentos nutridos aos familiares, de forma que possam ser feitas algumas inferências.
No que concerne ao ambiente familiar, observa-se que o lar é considerado o refúgio, o
local de descanso e proteção, conforme o seguinte exemplo:
Vede, o sol se põe no mar.
Vales e campos ficam sem gente;
Tudo se apressa para a silenciosa calmaria
De seu confortante lar.
Corroborando o pensamento de Roche (1969) sobre a importância da família, verifica-
se o quão necessário foi existir um “porto seguro” em face a tantos esforços para construir,
neste território, um espaço que pudesse ser sentido como pátria.
A questão da identidade não passa apenas pelo pertencimento a uma comunidade que
possua valores comuns, mas também pela questão do espaço. Ter um lugar é condição para
que os valores que sustentam uma cultura possam se concretizar. As referências ao lar, à
família ou à pátria-mãe reforçam essa questão.
Ao citar as famílias, os cantos fazem referências ao amor materno e à tradição dos
costumes transgeracionais, como por exemplo, o orgulho de seguir a profissão do pai, na
canção referente aos trabalhadores ambulantes. Além disso, a importância da família pode ser
percebida pela vinculação desta com os valores religiosos, pois não é raro que seja pedida
proteção divina a todo grupo familiar, numa demonstração de afeto e preocupação.
Ampliando os contatos sociais, da família para a coletividade, podem ser relacionados
exemplos de convivência grupal satisfatória, tanto pelos relatos da História oficial quanto pelo
conteúdo dos cantos. A questão do espírito coletivo está presente em muitos aspectos da vida
cultural germânica. No início da imigração, os grupos de colonos construíram juntos suas
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casas, a igreja comunitária e a escola. Foi a forma que encontraram de criar melhores
condições de vida, uma vez que foram designados para um ambiente sem nenhuma infra-
estrutura. Mais tarde, conforme foram sendo supridas as necessidades básicas, a criação de
sociedades culturais e recreativas objetivou a busca de um modo de vida em comunidade.
Estas, por sua vez, foram responsáveis por manter a coesão cultural e proporcionar momentos
de lazer.
As famílias de origem alemã têm o costume de se vincular a, pelo menos, uma
sociedade, como sócios. A relação com a sociedade à qual pertencem envolve, a hoje, a
participação do coral em atos fúnebres, um almoço anual gratuito, disputa de tiro-rei e bolão-
mestre, participação em grupos de dança, corais, treino de bolão e times de futebol, descontos
nos ingressos dos bailes, e todas as demais atividades que esta puder proporcionar.
Os cantos fazem referências à coletividade quando, por exemplo, falam de lazer e
bem-estar.
Gosto de estar onde alegres cantores costumam estar,
pois melhor em lugar nenhum pode ser,
aí a alegria constrói as colunas do seu templo para nós,
e a todos nos faz entrar.
Outro exemplo desse espírito coletivo é o fato de, após o término da Segunda Guerra
Mundial, algumas sociedades terem organizado doações para instituições alemãs que estavam
em dificuldade, bem como auxiliado os imigrantes em sua adaptação no Brasil (VERBAND
DEUTSCHER VEREINE, 1999, p. 305). Esse fato reforça a característica comentada por
vários autores que exploraram a história da comunidade germânica e que chamam de “espírito
coletivo”.
Ao analisar esta questão do espírito coletivo levanta-se a hipótese de que esta união
sustentou os traços da identidade coletiva até os dias de hoje. Chama a atenção que em 1886
foi criada em Porto Alegre a “Federação das Associações Alemãs de Porto Alegre”, que tinha
o seguinte objetivo: “Reunir as associações alemãs mediante a preservação dos direitos e da
índole alemã, assim como a promoção da germanidade como um todo, pela realização de
festas patrióticas alemãs, pelas iniciativas com finalidades beneficentes, pela proteção dos
direitos tanto dos indivíduos como dos grupos.” (VERBAND DEUTSCHER VEREINE,
1999, p. 304). Parece que esse povo é um grande admirador da própria cultura, tem
consciência de suas características e escolhe conscientemente mantê-las vivas.
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A configuração social no panorama da imigração alemã sofreu alterações importantes
de acordo com os momentos históricos vividos.
As dificuldades de adaptação à terra e ao clima, assim como a pobreza em que
inicialmente viveram, apagaram as hierarquias sociais e as classificações de valor que
haviam conhecido na Alemanha. De qualquer extração que fossem e qualquer que
fosse sua instrução, os mais resistentes e os mais enérgicos venceram. (ROCHE,
1969, p. 558).
Nos cantos analisados não existem referências diretas a uma divisão de classes, à
pobreza ou a riqueza, mas a valores que parecem ter igual peso em todos os tipos de
relacionamento, sejam eles intrafamiliares ou entre as pessoas da comunidade. Ao mesmo
tempo, observa-se que os corais sempre foram compostos por empresários e operários: o
grande produtor de hortigrangeiros e o pequeno produtor de culturas mistas, sem haver
distinção por sua posição socioeconômica.
Os valores que norteiam essas relações dizem respeito à honestidade; ao amor entre
mãe e filho; à união e fidelidade entre companheiros; à necessidade de compreensão e
reconhecimento pelo outro; à diversão e ao lazer junto aos amigos; à justiça e importância da
tradição familiar. Por outro lado, as dificuldades nos relacionamentos também são expressas e
aparecem como falta de compreensão, possibilidade de fazer mal às outras pessoas, abandono
temido na velhice e impossibilidade de ser autêntico.
A fidelidade foi citada por Grützmann (in DREHER, 2004, p.81) como “marca
registrada dos alemães e o fundamento de sua constituição moral e ação social”, estando
presente na história desde os primórdios das tribos germânicas. Essa autora observa que a
fidelidade está associada aos valores dos antepassados, as tradições familiares, ao amor pela
pátria mãe, a germanidade e as relações em geral.
Esses valores estão intimamente relacionados à moral estabelecida pela cultura e são
necessários para todo e qualquer convívio social. Como coloca Elias (1994), a sociedade é
responsável por estabelecer regras de conduta e formas de controle dos instintos, tornando
viável a convivência em grupo. Quando isso não é internalizado pelo indivíduo em sua
singularidade, precisa ser imposto, controlado por um agente externo, como policiais, juízes e
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por outras autoridades. É provável que as dificuldades de expressão dos sentimentos tenha
sido a forma encontrada pela sociedade, em algum momento de sua existência, para controlar
os instintos, o que acabou se tornando um padrão transmitido de geração em geração,
determinando a forma de relacionamento entre as pessoas.
A religião e a inserção da culpa e do conceito de pecado, os castigos dados pelos
professores e os cantos infantis com conteúdo moral são alguns dos exemplos de controle
social. Os cantos “de ladrões” trazem uma lição moral, cujo castigo é a culpa que será
carregada pelo resto da vida; na canção humorística são lembradas as varadas dadas pelo
professor como recriminação ao mau comportamento; na canção infantil verifica-se a
implícita lição de moral. Utiliza-se como exemplo de transmissão desses valores a letra de
um dos cantos elaborados para as crianças, como forma de fazer com que elas sejam
introduzidas na cultura local e aprendam atitudes esperadas para o convívio social.
Lobo, tu roubaste o ganso,
Devolva-o, por favor,
Senão o caçador vai te matar com a espingarda
Sua grande e longa espingarda,
Atira em ti o chumbo,
Que te pinta com a vermelha tinta,
E morto serás.
Querido lobinho,
Deixa-te aconselhar:
Não seja nenhum ladrão!
Pegue de preferência um camundongo,
Tu não precisas de assados de ganso.
Outras curiosidades referentes à moral, que podem ser observadas na história da
cultura alemã, já comentadas anteriormente, são a cobrança em dinheiro feita pelo juiz quando
algum colono quebrava as regras do bem viver e o ritual de colocar um boneco representando
Judas na porta do colono, cuja conduta precisava ser repreendida.
Cada sociedade enfatiza padrões de conduta que se tornam comuns entre seus
integrantes. Os cantos germânicos trazem, dessa forma, o que é importante no modo de
convivência social e é esperado tanto nas relações familiares como comunitárias.
Percebe-se, portanto, o poder imperativo presente nas mensagens que estabelecem
regras de conduta. Nesse sentido, uma forte conotação moralista nos cantos, que pregam
modos de agir e de ser, representando valores de ordem social.
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Dialética da expressão emocional
Cada sociedade impõe que seus integrantes desenvolvam um padrão de expressões
emocionais de acordo com seus valores culturais, ou seja, as emoções são da natureza
humana, mas a forma de expressá-las, a aceitação ou não de determinados tipos de
sentimentos, é uma construção cultural. Geertz (1989, p. 26) propõe que a cultura seja “um
conjunto de mecanismos de controle planos, receitas, regras, instruções (o que os
engenheiros da computação chamam “programas”) para governar o comportamento”.
Assim, conceitua-se sentimento como parte de um processo cognitivo mediado pela cultura.
Da mesma forma que o pensamento o existe isoladamente, a vida emotiva é culturalmente
ordenada, e não existe isolada do pensamento. Pode-se dizer, então, que diferentes contextos
socioculturais têm controles de expressão emocional diferenciados, como m diferentes
ocupações, crenças e períodos históricos.
Para Bruner (1997, p.123), “as reações emocionais não são estímulos em nenhum
sentido pavloviano, mas atingem seu significado em virtude de serem apreendidos em um
sistema simbólico conectado que constitui a cultura”. Cabe aqui interpretar a forma como essa
comunidade lida com suas emoções e lhes imprime valor.
Se, ao falar do sentido da vida, a palavra-chave foi processo, aqui é contradição. A
expressão de alegria vem acompanhada de tristeza, a liberdade assombrada pela possibilidade
da morte e do controle moral, a admiração pela coragem velando o sentimento de medo, a
exaltação das belezas deste mundo atenuadas pelo sofrimento, o sentimento de amor
represado por regras morais, o humor controlado pela razão, e, enfim, o sentimento
espontâneo versus o que a cultura permite.
Nesse sentido, pode ser observado que as emoções não estão desvinculadas da moral,
sendo que esta o tom de suas expressões. Souza discute amplamente essa relação entre
emoções e moral e coloca que: “A experiência da vida coloca-nos desde a infância diante de
todo tipo de situações complexas das quais se originaram os roteiros típicos que definem
nossas emoções. Estas englobam, ao mesmo tempo, emoções sutis e tipos de virtudes que
com ela se relacionam muito especificamente.” (1977, p. 519).
A presença dessa relação dialética nas entrelinhas dos versos dos cantos se deve,
provavelmente, ao conjunto de valores morais que dita o certo e o errado, a virtude e o
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defeito. Também demonstra como emoções proibidas ou difíceis de transformar em palavras
são melhor compreendidas através de metáforas. A própria Bíblia é repleta de metáforas
carregadas de valores morais, que são transmitidas por meio de seus textos ou dos cantos
utilizados em missas e cultos, interferindo subliminarmente na vida da coletividade.
O canto que segue demonstra como funciona esse mecanismo subliminar, mostrando a
relação entre a coragem socialmente aceita e o medo existente, mas não aceito no conjunto de
valores culturais. Textos metafóricos mantêm a distância necessária para não “machucar” e ao
mesmo tempo dão sentido às situações emocionais mais complicadas, sofridas ou complexas.
O fato de esses sentimentos estarem citados em letras de cantos torna-os presentes na vida
coletiva. Sentimentos de desejo pela liberdade, coragem, união, fidelidade, fé, esperança de
uma trilha vitoriosa se mesclam com a possibilidade de morte, medo e vivência de uma trilha
“ensangüentada”. Tanto na reverência à valentia do capitão e na dúvida dequem, por acaso,
tremeria?” como ao utilizar o termo “ensangüentada trilha vitoriosa”, percebe-se uma luta
entre as emoções que naturalmente aparecem e aquilo que a sociedade permite que seja
sentido e demonstrado. Verifica-se aqui a interação entre o individual e o coletivo, ou o
conhecimento local sobre a clássica temática da relação entre fato e lei, entre o ser e o dever-
ser discutido por Geertz em diversas obras de sua autoria.
O capitão, viva ele, valente nos antecede;
Nós o seguimos corajosos na ensangüentada trilha vitoriosa;
À luta ele nos conduz agora, e ao cansaço;
Porém, irmãos, um dia irá nos conduzir à casa paterna
Quem, por acaso, tremeria diante da morte e perigo?
Diante de covardia e vergonha empalidece nossa tropa!
Uma análise simplista diria que sentimentos têm vida própria, aparecem no corpo
como sensações independentes, provocadas por determinados estímulos. Nesse caso, a batalha
seria com o estímulo que provoca medo e que por sua vez é um sentimento involuntário.
Tem-se um estímulo, uma sensação e uma instrução cultural de que este não é um sentimento
aceito e deve ser reprimido para não causar vergonha ao grupo. É um exemplo clássico do que
Geertz (1989, p. 33) chamou de “mecanismo de controle da cultura”.
A repetição desse fenômeno leva a crer que existe um grande desejo de poder viver os
sentimentos espontâneos, mas as regras morais impostas pela cultura os controlam. Na canção
citada acima, o sentimento de medo não pode ser assumido e, no exemplo a seguir, é o
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sentimento de amor que fica represado. Mas, em ambas fica evidente um desejo de liberdade
muito forte.
A liberdade também é citada com vigor na canção referente às profissões, com uma
exaltação que parece corroborar as citações acima.
Amorzinho, vem junto, deixa tua casa
Fuja comigo para longe, para a liberdade.
Esse fenômeno da contradição entre aquilo que é sentido e o que é permitido expressar
pode ser novamente associado ao conteúdo do romance de Vianna Moog, principalmente
quando o narrador descreve Frau Marta e coloca que:
Em seu código íntimo havia regras nítidas e indiscutíveis no que dizia respeito à
exibição de sentimentalismo. Amava a filha de um modo exclusivo, iniludível, quase
feroz. Seria capaz de fazer por ela todos os sacrifícios. Fora, porém, educada num
ambiente em que todas as manifestações derramadas de sentimentos íntimos eram
tidas não somente como ridículas, senão também como absolutamente inúteis. (1973,
p. 167).
Até mesmo a filha dessa personagem observa as diferenças entre o relacionamento
dela com a mãe e com famílias de outra origem, como caboclos, índios e negros. Por vezes,
desejou que sua mãe também lhe desse um beijo carinhoso. Aparece claramente em seu
discurso o processo de conscientização de sua identidade, o que pode existir em relação
com o outro, aquilo que “é” em relação aquilo que “não é”, conforme Woodward (in SILVA
2000, p. 9).
Todas essas observações e comparações realizadas com o romance reforçam a idéia de
que esta seja uma característica marcante na identidade cultural germânica.
Elias discutiu amplamente a relação do indivíduo com a sociedade e parece trazer uma
compreensão muito coerente para essa questão das expressões emocionais analisadas nos
cantos:
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A dificuldade parece estar em que, nas ordens sociais que se nos apresentam, uma das
duas coisas sempre leva a pior. Entre as necessidades e inclinações pessoais e as
exigências da vida social, parece haver sempre, nas sociedades que nos são familiares,
um conflito considerável, um abismo quase intransponível para a maioria das pessoas
implicadas. (ELIAS, 1994, p. 17).
Porém, para Elias é importante considerar a possibilidade de uma convivência
dinâmica entre essas polaridades, uma vez que “a vida social dos seres humanos é repleta de
contradições, tensões e explosões”. (1994, p. 21).
A contradição também parece inevitável se a cultura for entendida como uma forma de
tornar possível a convivência coletiva, conciliando as necessidades naturais humanas com as
regras sociais impostas pela cultura. Assim, Geertz informa que:
Não dirigido por padrões culturais - sistemas organizados de mbolos significantes
o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos
sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria praticamente
qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um
ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela a principal
base de sua especificidade. (1989, p. 33).
Se cada ser humano pudesse simplesmente seguir seu instinto, dar vazão ao
sentimento natural da forma como ele se apresenta, existiria o caos. Porém, como estamos
falando de polaridades, o inverso que leva à repressão da maioria das emoções também pode
ser prejudicial. Mas, como se observa nesta interpretação, acabam por encontrar na linguagem
metafórica uma forma de expressão.
O desejo de liberdade, presente em grande parte dos cantos, também pode ser
considerado sinal dessa repressão realizada pela cultura germânica quanto à expressão das
emoções. Ela é citada na canção ao amor, ao ato de beber, aos soldados e ao trabalho
ambulante. É como se o excesso de repressão feito pelos valores culturais levasse, na mesma
intensidade, a um forte desejo de liberdade.
Além da liberdade, um outro sentimento muito citado é a alegria, cuja expressão está
associada à valorização do ato de cantar, tanto de homens quanto dos pássaros, sendo que sua
expressão se pelos cantores ou pelo rouxinol. A música é percebida como reparadora das
tristezas e dos demais sentimentos ruins, além da crença de que quem canta carrega consigo
valores positivos, como os de honestidade e companheirismo, tão claramente demonstrados
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neste ditado popular: “Onde homens cantam, deves ficar, pois pessoas más o sabem
cantar”.
A música é a demonstração de sentimentos, como, por exemplo, a motivação para a
luta, coragem, força, expressão da liberdade, do amor e, principalmente, está associada ao
estado de alegria. Porém, ao apresentar muitos enredos tristes, denota mais uma forma de
contradição. Ora cantam a satisfação por ter o pão de cada dia, pelo trabalho agradável, pela
chegada da primavera, pelo amor, ora pela tristeza que virá, pela solidão da velhice, pela
morte, pelo fim da primavera, pelo amor impossível e pelas dificuldades da vida em geral.
Muitas vezes, alegria e tristeza fazem parte da mesma canção.
A canção abaixo se refere ao alívio que o ato de cantar e beber pode dar para as
emoções difíceis como a tristeza, as preocupações, a vergonha, a dor e a indisposição.
Não se deve deixar a bebedeira; pois é a bebedeira que governa o mundo;
Também não se deve odiar o homem que sempre arruma uma confusão.
Beba, beba meu irmão, deixe as preocupações em casa;
Evite as preocupações, evite a dor; então a vida é uma brincadeira.
Amar, beber e cantar produz alegria e boa disposição,
Às mulheres vocês devem trazer algo, pois elas são tão queridas, tão boas.
Enamore-te enquanto és jovem; o principal é que ainda não estejas “azul”,
Pois quando se está no melhor da bebida, consegue-se tão fácil uma mulher.
Moisés, ainda bem, não inventou um 11º mandamento;
Porém isto não está escrito na Bíblia, e já trouxe muita alegria.
Foi passado para nós porque beber e se embebedar vale a pena
Eu, porém, vos pergunto: Afinal, sabeis como isto se chama?
Mas, além do alívio, as entrelinhas revelam novamente uma preocupação com o limite
do consumo do álcool e a cobrança da moral religiosa por esse prazer. Nesta valorização do
ato de beber percebe-se também o desejo pela liberdade, uma vez que esta libertaria o homem
das repressões morais.
A maioria dos historiadores da imigração alemã referidos nesta análise coloca o ato de
cantar como importante forma de união da comunidade, o que aliviava a saudade da terra
natal. Para as gerações seguintes, a dos imigrantes a terra natal se transformou em terra ideal e
continuou fazendo parte do repertório musical.
A expressão emocional de saudade parece ser permitida por essa cultura e está
representada em alguns cantos, geralmente fazendo referência à terra natal e carregando
consigo certo idealismo. Quando saíram da Alemanha, o Brasil era a terra dos sonhos. Depois
que estavam aqui algum tempo, passaram a idealizar a terra natal, de origem, transmitindo
assim uma imagem romântica aos filhos e netos. Cantos de saudade da terra natal são
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cantados até hoje. A idealização da terra natal dos primeiros imigrantes se tornou um mito que
permanece vivo em seus descendentes, não existe quem não deseje conhecê-la. Mesmo não
sendo os próprios imigrantes que cantam, aparece um fenômeno de identificação que provoca
a permanência desse estado emocional perante a terra dos antepassados. No instante em que o
território deixa de ser o principal, ou o possível, valoriza-se a etnicidade e suas características,
vivências e histórias que mantêm a identidade cultural, como coloca Halbwachs:
[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas noso lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais nós estivemos envolvidos, e com
objetos que nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é
necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós:
porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se
confundem. (1990, p. 26).
O uso do canto com a finalidade de trazer alento a essa saudade se dava no interior das
próprias famílias e em encontros sociais maiores. Segue abaixo um exemplo de como o canto
demonstrava esse sentimento pelas origens e denotava a saudade da terra natal.
As andorinhas migram e voltam para cá.
O homem vive só uma vez e depois não mais.
Não tenho mais pais; há muito estão com Deus,
Nenhum irmão, irmã; todos já se foram!
Quando um dia tiver morrido, ao cemitério levem-me,
Deitem-me na sepultura refrescante, e cantem esta canção:
Tirol, Tirol,Tirol, tu és meu torrão natal,
Onde por morros e vales ecoa a corneta alpina!
uma comparação com as andorinhas que migram, mas observa-se que, nesse caso,
ao contrário delas, não poderá voltar à patria-mãe. Demonstra também um sentimento de
solidão por não ter mais nenhum parente vivo, mas tem a sensação de pertencimento à sua
comunidade pela origem étnica comum.
Considera-se que os sentimentos são uma interpretação culturalmente definida e se
apresentam nessa comunidade com uma característica principal de contradição e controle de
sua exteriorização. Assim, alegria ou tristeza, medo ou coragem, amor, esperança, liberdade,
saudade, solidão e todas os demais sentimentos são reconhecidos enquanto tais, de acordo
com esse contexto específico. Em outras palavras, as emoções não são reconhecidas apenas
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por sua sensação, mas através de seu contexto e na forma de expressão determinada por sua
cultura.
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7 CONCLUSÃO
Esta pesquisa analisou os valores culturais presentes em cantos tradicionais,
explicitando o que essa comunidade considera importante e utiliza para guiar suas motivações
e atitudes.
Cada geração recebe um legado da anterior e o associa aos seus próprios símbolos. As
necessidades humanas de respostas, que eles suprem, podem ser muito semelhantes em
diferentes períodos e culturas, embora mude a descrição, o texto, a letra da música, a gravura,
ou o rito. Corso (2002), em sua compilação de entidades imaginárias e mitos brasileiros,
trabalha com a necessidade que se tem de encontrar um sentido para os fenômenos humanos e
aposta no que vão dizer as próximas gerações sobre a atualidade. Cita jogadores de futebol,
apresentadores de TV, Harry Potter e outros tantos personagens atuais que estão à nossa volta,
e, quem sabe, serão interpretados pelas próximas gerações de pesquisadores das mentalidades.
Nessa comunidade, os cantos são um dos meios de transmissão de valores, mantidos e
transmitidos historicamente por instituições, como: escola, igreja e sociedades recreativas e
culturais. Observa-se que esses cantos expressam fatos comuns da vida humana quando se
referem a sentimentos, rituais, crenças religiosas, situações pitorescas, moral, guerra,
passagem do tempo, dificuldades diversas, trabalho e festas. Esses são temas claros que
denotam o objetivo desta ou daquela canção; porém, nas entrelinhas, encontram-se aspectos
que se repetem e perpassam boa parte das narrativas, indicando valores culturais importantes
que permitem uma compreensão do modo de vida da população pesquisada.
Ao discutir a legitimidade de um fato, é necessário que, antes de mais nada, seja
escolhido sob qual prisma ele será analisado e qual o contexto em que está inserido. Isso é de
suma importância para evitar o risco de se incorrer em preconceitos ou em radicalismos que
em nada ajudariam a elucidar a questão. Para tanto, foi realizada uma busca daquilo que se
chamou ‘história oficial’, bem como foram realizados contatos com a comunidade, a fim de
evitar falsas interpretações. O conteúdo dos cantos impera como experiência de muitas
gerações, para além da História documentada, e sua interpretação levou à compreensão dos
valores culturais dessa comunidade, sem a pretensão de abarcar a totalidade da expressão
cultural.
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Mediante análise de conteúdo aplicada a esses cantos, emergiram as seguintes
categorias: sentido da vida, religiosidade, valores da vida social e dialética das expressões
emocionais. Essas categorias permitiram criar um sistema de significação entrelaçado, que
explica a cultura local e que, apesar de serem analisadas separadamente, podem ser
compreendidas num todo coeso, pois nenhuma manifestação cultural ocorre isoladamente.
Observa-se que, apesar de cada categoria ter um núcleo de significado, apresentam também
uma ligação com as demais, formando um sistema de significados.
Na categoria sentido da vida, ressalta-se que este aparece como um processo
dinâmico, oscilando entre bons e maus momentos, entre os desejos e as dificuldades que
acompanham sua busca. É composto por uma valorização dos aspectos positivos, mas sem a
ilusão de que sejam eternos. É como se pudessem aproveitar os bons momentos, mas nunca
esquecer que um dia terão que enfrentar as inevitáveis dificuldades, ou talvez se preparar para
enfrentá-las. Essa concepção parece deixar pouco espaço para sonhos e devaneios, ilusões e
fantasias, caracterizando uma racionalidade e uma forma de ver o mundo como
predominantemente lógico.
Nesse sistema de significados, percebe-se que o sentido da vida está diretamente
ligado à religiosidade, que tanto protege como controla o comportamento da comunidade.
Nesse ponto, em que ambas as categorias se complementam, observa-se como a religiosidade
ajuda a dar sentido à vida e a suportar esforços, trabalhos pesados e sofrimentos. Os
momentos difíceis da vida ganham sentido quando pensados sob o prisma da recompensa
divina e tornam-se suportáveis.
Outra função da religião é o controle sobre o comportamento de seus fiéis, que
também está ligado às demais categorias, interferindo tanto na expressão emocional quanto
nas formas de relacionamento social. As atitudes são tomadas de acordo com essas leis
baseadas nesse controle moral. Caso o estejam de acordo com a moralidade imposta,
sofrerão com a punição, tanto da comunidade quanto da sua própria consciência, que está
educada para fazer parte desse sistema de valores.
As relações sociais também seguem esses modelos, e são respeitados os princípios
morais determinados pela religião e pelo que é esperado da vida, bem como cobradas de seus
iguais as mesmas formas de relacionamento. Nesse sentido, a expressão emocional será
permitida dentro desse conjunto de valores, pois não pode ser separada da moral e do
conhecimento adquirido nos contatos sociais, como esclarece Souza (1977, p. 519), ao colocar
que “as emoções podem ser consideradas como indicações que nos são fornecidas sobre
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aspectos da vida social, valorizados de forma positiva ou negativa”. A avaliação positiva ou
negativa não deixa de ser uma forma moral de perceber as emoções.
O entrelaçamento entre processo vital, controle moral, proteção divina, luta entre
sentimentos e suas expressões, permitidas ou não pela cultura, formam esse complexo sistema
de significados que é a cultura. Valores como honestidade, amor entre e e filho, união,
fidelidade entre companheiros, necessidade de compreensão e reconhecimento pelo outro,
diversão e lazer junto aos amigos, justiça e importância da tradição familiar parecem ser
importantes ingredientes que norteiam as relações sociais nesse sistema cultural.
A categorização como processo técnico-metodológico concluiu que todas essas
categorias estão entrelaçadas. A religiosidade supre a necessidade de dar sentido a aspectos da
vida que são difíceis de compreender de outra forma; as relações sociais estão baseadas
naquilo que se espera da vida e na moral contida tanto nas regras sociais quanto na religião; as
emoções ocorrem de acordo com os fenômenos vitais, e sua expressão é determinada pelo
conjunto de valores aceitos por essa comunidade. Passando do contexto ao conteúdo dos
cantos e voltando ao contexto, fechou-se um ciclo de compreensão das idéias dessa
população, cujas categorias criadas para uma interpretação científica dos cantos voltam a ser
integradas num todo, um todo coerente denominado cultura. A expressão “teia de
significados” proposta por Geertz (1989) fundamenta a interdependência entre as categorias,
de forma que uma, inevitavelmente, está interligada com a outra.
A articulação desses valores demonstra que, apesar de aparecerem em diversas formas,
um indicador de poder imperativo que perpassa todas as categorias e cria a estrutura
básica, dentro da qual a comunidade aprende a pensar. O “dever ser” e o “dever fazer”
demonstra a força desses indicadores culturais e justifica sua permanência como estrutura da
identidade dessa comunidade.
Todos esses indicadores culturais que brotam desses textos fazem parte da memória
coletiva e determinam a qualidade de vida que ainda hoje caracteriza essa população. Porém,
é oportuno lembrar que interpretações desse tipo mantêm-se abertas a ampliações constantes;
a cada nova leitura, a cada inserção de novas informações a respeito do contexto, novas
compreensões podem ser realizadas. As categorias que surgem pela repetição de seus temas
são, por si, valores culturais. A riqueza das referências feitas ao sentido da vida e à
religiosidade, à forma de expressar as emoções e às características das relações sociais
demonstra que estes são temas de real importância para essa comunidade. Ter vergonha de
sentir medo, valorizar a honestidade, demonstrar ou não sentimentos de amor, temer os
castigos divinos, e todas as demais instruções culturais que foram discutidas nesta pesquisa é
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o que une uma pessoa a outra e caracteriza uma identidade cultural. Não certo ou errado
nas diversas formas de ser, pensar e agir, mas sim formas particularizadas desenvolvidas pelas
diversas culturas e que precisam ser reconhecidas e respeitadas dentro de cada contexto.
A manutenção dos corais e a participação de crianças nos mesmos trazem uma
inquietação: que valores culturais estariam representados nas novas escolhas de repertório
musical para as gerações mais jovens? Estariam os regentes, de alguma forma, mantendo
valores tradicionais? Esses valores teriam ligação com aqueles representados nos cantos em
língua alemã? O que, desde tempos remotos, permanece como essência dessa cultura?
Procurou-se retratar aqui parte da história da imigração alemã e os legados culturais
que foram transmitidos de pai para filho. Obviamente, desde a chegada dos primeiros colonos
até o momento atual, houve um processo gradativo de aculturação. Os alemães se tornaram
teuto-brasileiros, nem somente a cultura alemã nem somente a cultura brasileira, mas uma
combinação entre ambas. Mas parece que, no cerne de tudo isso, se mantém uma essência,
que por vezes parece imutável.
A importância dada à manutenção da cultura alemã é claramente assumida e pode ser
observada tanto em relatos históricos como no cotidiano. No estatuto da Sociedade Germânia,
fundada em 1855, consta uma cláusula que autoriza “brasileiros e outros estrangeiros”
(VERBAND DEUTSCHER VEREINE,1999, p. 308) a se tornarem sócios. Numa pesquisa
sobre biculturalidade,
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foi observado que os descendentes de imigrantes germânicos de Nova
Petrópolis se auto-denominam ‘alemães’, e não teuto-brasileiros ou brasileiros. Ao se
referirem às demais pessoas da comunidade que não descendem de imigrantes germânicos,
utilizam as nomenclaturas de ‘gringos’ para os descendentes de italianos e ‘brasileiros’ para
todos os demais. Uma expressão muito conhecida é o Das sind die brasilianer
25
O fato de reforçarem sempre suas características culturais mantém sua identidade e
com ela a forma de pensar, sentir e agir perante os outros descendentes de germânicos e
perante as demais etnias. Dessa forma, podem ser observadas tão claramente essas
características, que ainda estão presentes também no discurso do cotidiano dessa população:
“Aqui, praticamente só tem alemão”, ou então: “Lá moram uns brasileiros e logo mais adiante
uns gringos que vieram de Caxias”.
26
24
Em 2004, participei como entrevistadora de uma pesquisa: Aplicação e validação da versão em português do
questionário de biculturalidade (bcs)”, na qual, foram observadas questões qualitativas para pesquisas futuras.
Esse questionário foi aplicado a quarenta descendentes de imigrantes alemães em Nova Petrópolis. O
pesquisador responsável foi o Dr. Carlos Zubaran, da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
25
Tradução: Aqueles são brasileiros.
26
Excertos de entrevistas realizadas durante a fase exploratória. Os participantes se referem à localização espacial
das comunidades dentro dos bairros e das vilas da cidade e demonstram como a germanidade está presente, até
nos dias atuais, como forma de diferenciação e de identificação.
77
7
8
Os resultados da pesquisa apontam para a relação entre os conteúdos da memória
coletiva e o comportamento da comunidade, como expressão do sentimento de pertencimento
e dos valores que constituem sua identidade cultural. O sentimento de pertença está
intimamente relacionado à identidade coletiva, que neste estudo está vinculada ao mito
fundador da origem germânica. O estudo contribui para o entendimento dessa região e mostra
a riqueza da cultura apresentada nos cantos tradicionais.
78
7
9
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82
8
3
ANEXOS
83
8
4
ANEXO A
84
8
5
ANEXO B
1. CANTO SOBRE LADRÕES
UM HOMEM QUERIA VIAJAR À SUA TERRA NATAL
Um homem queria viajar à sua terra natal,
Então teve que passar por um bosque escuro
Quando de repente, um bandido o atacou.
Dá-me teu dinheiro! Tua vida acabou!
Não tenho dinheiro, infelizmente não posso te dar nada
Venha tu mesmo e abra meu peito!
O que tu carregas aqui no lado esquerdo?
O que trazes no teu pequeno peito?
É a foto de minha mais querida mãe,
Ela me deu na última saudação de despedida.
Então, de repente, cai em sua frente o bandido:
Perdão, perdão, que eu teu irmão sou!
Podes tranqüilo seguir para tua terra,
Porém, eu serei sempre um bandido no teu ver.
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8
6
2. CANTO SOBRE A NATUREZA E A PRIMAVERA
ROUXINOL, ROUXINOL
Rouxinol, Rouxinol, como cantavas tão bem perante todos os passarinhos!
Como penetrava teu cantar em todos os corações!
Quando tu cantavas, todo mundo gritava: Agora deve ser Primavera!
Rouxinol, como penetrava teu cantar em todos os corações!
Rouxinol, Rouxinol,... O que?! Estás silenciando? Cantaste tão pouco tempo...
Por que não queres, não queres mais cantar? Lamento isto por demais!
Quando tu cantavas, meu coração estava tão cheio de entusiasmo e alegria!
Quando o maio, o mês de maio, o maio amigável, com suas flores se vai,
Tenho uma sensação tão estranha no coração;
Se quisesse cantar não conseguiria, canção nenhuma consigo cantar.
Pois é, pois é; sinto-me tão estranho no coração! Não sei o que está acontecendo!
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8
7
3. CANTO SOBRE SOLDADOS E AMOR À PÁTRIA
PARA LONGE, AO DESCONHECIDO,
COM O FORTE SOAR DAS CORNETAS
Para longe, ao desconhecido, com o alto soar das cornetas!
Levantai as vozes às canções masculinas!
A liberdade exala e se espalha forte pelo mundo;
Pois uma vida livre e alegre certamente nos agrada!
Mantemo-nos unidos, como fiéis irmãos o fazem,
Quando a morte enfurecida nos rodeia e quando as armas descansam;
A todos nos anima um puro e livre sentir;
A um só objetivo todos nós nos faz dirigir.
O capitão, viva ele, valente nos antecede;
Nós o seguimos corajosos na ensangüentada trilha vitoriosa;
À luta ele nos conduz agora, e ao cansaço;
Porém, irmãos, um dia irá nos conduzir a casa paterna
Quem, por acaso, tremeria diante da morte e perigo?
Diante de covardia e vergonha empalidece nossa tropa!
E quem achou a morte em santa luta,
Também em estranho chão ele descansa em Terra Natal!
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8
8
4. CANTO DE DESPEDIDA
AS ANDORINHAS MIGRAM
As Andorinhas migram e voltam para cá
O homem vive só uma vez e depois não mais.
Não tenho mais pais; há muito estão com Deus,
Nenhum irmão, irmã; todos já se foram!
Quando um dia tiver morrido, ao cemitério levem-me,
Deitem-me na sepultura refrescante, e cantem esta canção:
Tirol, Tirol,Tirol, tu és meu torrão natal,
Onde por morros e vales ecoa a corneta alpina!
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8
9
5. CANTO DE PROFISSÕES
O RUIDOSO MOINHO NO RIACHO
Bate o moinho no riacho corrente; klip, klap, klip, klap,
Moe o grão para o pão de cada dia,
E tendo este, necessidade nenhuma nos judia; klip, klap, klip, klap.
De dia e de noite, o moleiro está sempre de pé; klip, klap...
Velozes giram as rodas e movem a pedra com fé; klip,klap...
E moem o trigo para farinha tão fina,
Da qual o padeiro pão e cuca nos faz
O que sempre às crianças, bom gosto lhes traz.
Quando ricos grãos a lavoura produz,
O moinho então, veloz as rodas conduz.
E o céu nos doa sempre o pão,
Somos felizes e não sofremos nenhum senão.
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9
0
6. CANTO DE CORO E DE FESTA
AÍ GOSTO DE ESTAR
Gosto de estar onde alegres cantores costumam estar,
Pois melhor em lugar nenhum pode ser;
Aí a alegria constrói as colunas do seu templo para nós,
E a todos nos faz entrar.
O cantor sabe onde florescem lindas flores
O cantor sabe onde corações inocentes brilham
Por isso gosto de estar onde alegres cantores se reúnem
Pois mais lindo em lugar nenhum pode ser.
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1
7. CANTO FÚNEBRE
PASSEI PELO MUNDO
Passei pelo mundo, e o mundo é lindo e grande,
Apesar disso o meu anseio me puxa para longe da terra.
Tenho visto os humanos,
E estes procuram tarde e cedo,
Eles trabalham, eles vêm e vão,
E sua vida é trabalho e esforço.
Eles procuram o que não encontram
Em amor, em honra e sorte
E vêm carregados de pecados
E descontentes retornam.
Há um descanço disponível
Para o pobre, cansado coração
Dizei-o alto em todas as terras:
Aqui é silenciada a dor.
Um descanso foi encontrado
Para todos, distantes e próximos:
Nas feridas do Cordeiro Divino
Na cruz do Golgota.
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2
8. CANTO DE AMOR
AH! DEIXE AS AFLIÇÕES!
Ah! Deixe ir embora as aflições,
Vem junto ao verde lar
Lá, no meu peito somente, encontrarás amor
E silenciosamente, então, soprarei meu amor em teu ouvido.
Além disso, soará suavemente o canto do rouxinol:
Amorzinho, vem junto, deixa tua casa
Fuja comigo para longe, para a liberdade.
E quando então o sol se põe, no belo oceano,
A florzinha sempre floresce, e claro, também a lua brilha
Então eu sorrateiramente me dirijo à sua janela e cochicho-lhe silenciosamente:
Ah! Amorzinho! Desce e fuja de uma vez comigo!
Eu colho duas rosas escuras na bela época de maio
Eu as colho para meu amorzinho; que felicidade,
Eu as levo à sua casinha, lá onde meu amorzinho mora,
Com um beijo estas dádivas ela me pagou.
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9
3
9. CANTO DE HUMOR
NESTE GRANDE E LONGINQUO MUNDO
Nesta grande e longínqua terra, sim, sim
Tudo deve ser muito bem entendido, sim, sim
Nesta terra está tudo entrelaçado, sim, sim
Em seu chão está posto cada coisa, sim,sim
Tudo tem o seu motivo, tudo tem a sua razão.
Sol e lua nascem e se põem
A água corre morro abaixo
Muitas árvores uma floresta compõe
No inverno geralmente é muito frio.
Cavaleiras de verdade, pontudas esporam usam.
Há também burros sem orelhas compridas
Pois quem é grande, pequeno já era.
Dia chuvoso ensolarado não é.
Na Picada Feijão consegue-se bons vinhos
Mas também bastante pedras cozidas
O Vale do Diabo, isto é um buraco.
Onde nosso professor quebrou alguma vara...
E ao lado está a Linha 48; aí o ar está especialmente abafado.
E quem ali se perde, sempre é conduzido ao caminho certo.
Suas fabricas de banha e queijo, elogia o morador da Picada Inverno
Na linda região do Forromeco, se consegue feijão preto
E o toucinho bem mais grosso.
Ferro quente se malha com martelo
Cão e gato não cabem no mesmo quarto
Chuva no Natal faz feijão de rabo
Os que muito dente batem, verdadeiros gansos são de fato.
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9
4
10. CANTO DE SABEDORIA DE VIDA
LINDA É A JUVENTUDE
Linda é a juventude em alegres tempos
Linda é a juventude
Porém ela não volta mais
Em breve, cansado andarás pela vida
Ao teu redor haverá solidão
Vazio em teu coração
Por isso eu repito:
Linda é a juventude em bons tempos
Mas ela não volta mais!
Florescem rosas, florescem cravos
Porém todas as flores murcham
Assim também nós humanos
Um dia murchamos
E depois baixamos a sepultura.
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11. CÂNONES
OH, QUANTA ALEGRIA
Oh, quanta alegria, oh, quanta alegria
Causa-nos um coração piedoso!
95
9
6
12. CANTO PIEDOSO
MEU PAI QUE MORA NO CÉU
Meu pai que no céu mora
Como rei de todos os anjos no trono
Ele está perto de mim da manhã à noite
Cuidando dos passos meus.
Ele alimenta o canário no telhado
E acorda cedo todos os passarinhos.
Ele adorna com flores florestas e campos
E cuida do enfeite da natureza.
Escrito em sua mão está meu nome;
Que lhe é conhecido. Junto a seu braço ando eu
E ele é Deus; coisa que eu mais quero?
Oh, Pai meu, quão bom és tu!
Permita que eu nunca faça coisas más
Faça-me igual aos queridos anjos
No teu grande reino celestial.
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7
13. CANTO PARA NOITE
VEDE, O SOL SE PÕE NO MAR
Vede, o sol se põe no mar.
Vale e campos ficam sem gente;
Tudo se apressa para a silenciosa calmaria
De seu confortante lar.
Teus anjos tu nos envias
Pai eterno junto a nós
Com certeza nós descansamos
Fieis, guardados com sua proteção.
Quem em lágrimas com insônia está
Embalado por lágrimas será
Teus anjos o conduzem já, ao céu em sonho.
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9
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14. CANTO NATALINO
OH! PINHEIRINHO DE NATAL
Oh! Pinheirinho de Natal, quão lindas são tuas folhas!
Não és somente verde no verão
Não, também no inverno quando neva.
Oh! Pinheirinho de Natal tu me agradas muito
Quantas vezes ao Natal, uma árvore da tua espécie
Muitíssimo me alegrou!
Oh! Pinheirinho de Natal, teu traje quer ensinar-me algo
A esperança e constância dão conforto e força a toda hora
Oh! Pinheirinho de Natal, quão rico estás adornado!
Com nozes douradas, maçãs vermelhas, flores e doce pão ( pão de açúcar ).
Oh! Pinheirinho de Natal, quão forte é teu brilho!
Dos pés à cabeça tudo lindo
Só tem brilho em ti para ver.
Oh! Pinheirinho de Natal, quem te decorou tanto assim?
O poder milagroso do amor te fez a árvore mais linda!
Oh! Pinheirinho de Natal, se eu me deixasse adornar como estás tu
O amor de Deus faria também de mim um enfeite do paraíso!
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9
9
15. CANTO QUE ACOMPANHA O ATO DE BEBER
NÃO SE DEVE DEIXAR DE BEBER
Não se deve deixar a bebedeira; pois é a bebedeira que governa o mundo;
Também não se deve odiar o homem que sempre arruma uma confusão.
Beba, beba meu irmão, deixe as preocupações em casa;
Evite as preocupações, evite a dor; então a vida é uma brincadeira.
Amar, beber e cantar produz alegria e boa disposição,
Às mulheres vocês devem trazer algo, pois elas são tão queridas, tão boas.
Enamore-te enquanto és jovem; o principal é que ainda não estejas “azul”,
Pois quando se está no melhor da bebida, consegue-se tão fácil uma mulher.
Moisés, ainda bem, não inventou um 11º mandamento;
Porém isto não está escrito na Bíblia, e já trouxe muita alegria.
Foi passado para nós porque beber e se embebedar vale a pena
Eu, porém, vos pergunto: Afinal, sabeis como isto se chama?
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16. CANTO INFANTIL
LOBO, TU ROUBASTE O GANSO
Lobo, tu roubaste o ganso,
Devolva-o, por favor,
Senão o caçador vai te matar com a espingarda.
Sua grande e longa espingarda,
Atira em ti o chumbo,
Que te pinta com a vermelha tinta
E morto serás.
Querido lobinho,
Deixa-te aconselhar:
Não seja nenhum ladrão!
Pegue de preferência um camundongo,
Tu não precisas de assados de ganso.
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17. CANTO DE TRABALHADOR AMBULANTE
MEU PAI ERA UM AMBULANTE
Meu pai era um ambulante; eu também tenho isto no sangue.
Por isso ando enquanto posso, e abano com meu chapéu.
Valeri, valerá, há, há,há,há,há.
Viajar sempre cria novos ares e mantém o coração sadio.
Meu peito respira livre lá fora, então minha boca canta alegre.
Por que o passarinho canta tão alegre sua canção?
Porque voa sempre de terra em terra, passando por campos e campos.
Por que lá murmura o riachinho e sussurra tão alegre através do cano?
Porque se movimenta livre, então o ouvido encantado escuta com prazer.
Por isso carrego a mochila e bengala mundo afora.
E até à fresca sepultura serei sempre um feliz ambulante.
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