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ANEXO II – TEXTOS DE LITERATURA
Anne Frank, a adolescente
(FRANK, 2003)
Querida Kitty,
“Um feixe de contradições”, como terminei minha carta anterior e é o início desta.
Por favor, pode dizer exatamente o que é um feixe de contradições? O que significa
contradição? Como tantas palavras, pode ser interpretada de dois modos: uma contradição
imposta de fora e uma contradição imposta de dentro. A primeira significa não aceitar as
opiniões dos outros, sempre saber mais, ter a última palavra; resumindo, todas aquelas
características desagradáveis pelas quais sou conhecida. A segunda, pela qual não sou
conhecida, é meu segredo.
Como já disse muitas vezes, sou partida em duas. Um lado contém minha
exuberância, minha petulância, minha alegria na vida e, acima de tudo, minha capacidade de
apreciar o lado mais leve das coisas. Com isso, não quero dizer que não acho nada errado
nos flertes, num beijo, num abraço, numa piada pesada. Este meu lado costuma ficar à
espreita para emboscar o outro, que é mais puro, mais profundo, melhor.Ninguém conhece o
lado melhor de Anne, e é por isso que muita gente não me suporta. Ah, eu posso ser um
palhaço divertido durante uma tarde, mas depois disso todo mundo se enche de mim durante
um mês.Na verdade sou aquilo que um filme romântico representa para um pensador
profundo – uma simples diversão, um interlúdio cômico, algo a ser logo esquecido: que não é
ruim, mas particularmente bom. Odeio ter de ser isso, mas por que eu não deveria admitir, já
que conheço a verdade? Meu lado mais leve, mais superficial, vai sempre tirar proveito do
meu lado mais profundo, e com isso vencerá sempre. Você não pode imaginar quantas
vezes tentei empurrar para longe essa Anne, que é somente metade do que se conhece
como Anne – derrubá-la, escondê-la. Mas isso não funciona, e sei por quê.
Tenho medo de que as pessoas que me conhecem descubram que tenho outro lado,
um lado melhor e mais bonito. Tenho medo de que zombem de mim, de que pensem que sou
ridícula e sentimental, e que não me levem a sério. Estou acostumada a não ser levada a
sério, mas somente a Anne leviana consegue lidar com isso; a Anne mais profunda é fraca
demais. Se eu forçar a Anne boa ao palco por pelo menos quinze minutos, ela se fecha como
um marisco no momento em que é chamada a falar, e deixa a Anne número um dizer o texto.
Antes que eu perceba, ela desapareceu.
Assim, a Anne boa nunca é vista acompanhada Ela nunca aparece, ainda que quase
sempre assuma o palco quando estou sozinha. Sei exatamente como gostaria de ser, como
sou... por dentro. Mas infelizmente só sou assim comigo mesma. E talvez seja por isso – não,
tenho certeza de que este é o motivo – que penso em mim como uma pessoa feliz por dentro,
e os outros pensam que sou feliz por fora. Sou guiada pela Anne pura, de dentro, mas por
fora sou apenas uma cabrita fazendo cabriolas, forçando a corda à qual está amarrada.
Como já disse, o que falo não é o que sinto, e por isso tenho reputação de
assanhada e namoradeira, de sabichona e leitora de romances de amor. A Anne jovial
gargalha, dá uma resposta ferina, encolhe os ombros e finge que nem liga. A Anne quieta
reage de modo oposto. Se estou sendo completamente honesta, tenho de admitir que isso
me importa, que tento arduamente mudar, mas me vejo sempre diante de um inimigo mais
poderoso.
Uma voz dentro de mim soluça: “ Veja só, foi isso que você virou. Está rodeada por
opiniões negativas, olhares desanimados e rostos zombeteiros, pessoas que não gostam de
você, e tudo porque não escuta o conselho de sua metade melhor”. Acredite, eu gostaria de
escutar, mas não dá certo, porque se eu ficar quieta, séria, todo mundo acha que estou
representando outro papel e tenho medo de me salvar com uma piada, e nem estou falando
de minha própria família, que presume que devo estar doente, me enche de aspirina e
sedativos, sente o meu pescoço para ver se estou com febre, pergunta sobre os movimentos
intestinais e me critica por estar mal-humorada, até que eu não agüento mais, porque quando
todo mundo começa a me chatear, fico irritada, e depois triste, a parte má do lado de fora e a
boa do lado de dentro, e tento achar um modo de me transformar no que gostaria de ser e no
que gostaria de ser se... se não houvesse mais ninguém no mundo.
Sua Anne M. Frank