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Os últimos cantos do Poema, preciosos como são, parecem novas galerias
acrescentadas à nave central. Neles a história Portuguesa que se tinha desenrolado
majestosa nos outros torna-se biográfica e individual; ornamentos são amontoados
uns sobre outros; o Império da Índia toma o lugar proeminente, ao passo que o
Poeta está cansado, vê-se obrigado a repetir-se, queixa-se, irrita-se, lança mão da
sátira, e ameaça até as Ninfas de abandonar a obra se elas o não inspiram.
Excetuai o Canto IX, acomodado, estou certo, às exigências e aos escrúpulos
da Inquisição, mas que, apesar disso, e das explicações provavelmente forçadas do
Poeta, parece uma página da Renascença, um fresco da Farnesina, ou melhor a
representação viva da Caça de Diana do Dominiquino, natural, sadia, alegre,
sensualmente ideal; excetuai a Ilha dos Amores, que podia estar reservada na idéia
do Poeta para encerrar Os Lusíadas primitivos, e o que vedes? Os últimos cantos
nos revelam que depois da interrupção, não sei de quantos anos, que houve na
composição do Poema, ou pela imposição de uma poética ortodoxa à qual ele não
soube forrar-se, ou pela idéia que uma grande obra é forçosamente uma obra
grande, ou pela reflexão que tantas vezes destrói a beleza do pensamento
espontâneo, qualquer que fosse o motivo enfim, o Poeta, se conseguiu igualar-se a
si mesmo em eloqüência, não conseguiu todavia, o que era impossível, renovar a
faculdade criadora. Foi esta entretanto que enriqueceu os domínios da Arte com a
figura colossal de Adamastor, e com a figura poética de Inês de Castro; com as telas
épicas das batalhas, e os quadros risonhos da mitologia; com esses episódios todos
que seriam num poema árido verdadeiros oásis para a imaginação, mas que em Os
Lusíadas podem ser comparados aos quatro rios que cortavam a relva do Paraíso,
além de tantos incomparáveis versos, cada um dos quais poderia encerrar por si só
a alma de um artista, porque são a verdadeira veia de ouro da inspiração, e nem um
só deles podia ser obra senão de um grande poeta.
O trabalho da composição do Poema não nos revela, como o da composição
da Divina Comédia, nenhum sofrimento trágico do espírito, debruçado sobre os
abismos da sua própria alucinação, querendo seguir com os olhos fechados a réstia
de luz que precede a Dante nesse Inferno, que ele criou talvez com o receio ingênuo
e católico de que ele não existisse; ou tampouco, senhores, nos revela aquela
composição a liberdade serena com a qual Goethe olha como naturalista para o
homem, autor das suas próprias desgraças morais, do seu próprio destino
intelectual, desprezando idealmente a vida numa ilusão inexplicável, que o torna
inferior a qualquer borboleta dos trópicos, que contenta-se com viver alguns dias, e
para a qual a Natureza é um poema de luz, de cores, de amor, e de vida!
Os Lusíadas não resumem o homem, nem a vida; não são o espelho do
Infinito subjetivo, nem o da Natureza; eles são como obra de arte o poema da pátria,
a memória de um povo. Foram, há três séculos, dia por dia, o testamento de uma
grande raça, e são hoje a sua bandeira.
Portugal, senhores, podia ter tido uma vida modesta; preferiu porém num dia
encher o mundo e a posteridade com o seu nome. Um príncipe de gênio da casa de
Avis teve a intuição da missão histórica da sua pátria, o Infante Dom Henrique.
À beira do mar, às vezes azul, unido, luminoso, atraindo mais e mais com a
sua calma, com o seu silêncio, e o seu horizonte, a vela do pescador; às vezes
revolto, caótico, infernal, querendo tudo destruir; Portugal não podia escapar à
irresistível fascinação do desconhecido, a cuja borda ele estava inclinado. O que
podia haver além de tão terrível? A morte? Mas quando a morte certa, e inevitável
mesmo, impediu a nossa espécie de realizar um desejo, de satisfazer um capricho,
de descobrir uma verdade, de afirmar um princípio! Portugal obedecia a essa força