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África, a Ásia, e a América, para combater, conquistar e colonizar a um tempo, e a
política dos Jesuítas não podia desenvolver as forças nacionais. Quanto ao rei, a
dinastia de Avis acabava, como devia, com um herói, mas um herói que era um
louco. Magnetismo da bravura e da mocidade, entretanto! Esse rei de vinte e quatro
anos, só porque morre como um bravo, envolto na nuvem dos bereberes, só porque
o seu cadáver não repousou ao lado do de Dom João II na Igreja da Batalha, mas
foi enterrado, como o de um soldado, no primeiro cômoro de areia do deserto, é
transformado, como os guerreiros do Norte que as deusas arrebatavam no ardor da
peleja, ao primeiro sangue, num mito nacional.
Camões desejou partir com ele para ser o poeta oficial da campanha, e até
começou um novo poema, que ele mesmo rasgou, depois do desastre de Alcácer-
Quibir. Fez bem, senhores. Nada há mais triste na história da Arte do que o período
da decadência de um artista de gênio, quando a imaginação não pode mais, e o
cérebro cansado só produz a repetição banal e a imitação da obra-prima da
madureza. Felizmente, porém a dignidade do Poeta e a glória do artista não
passaram pela prova dessa palinódia dos Lusíadas.
Desde a publicação do Poema, a alma de Camões, que fora alegre e jovial na
mocidade, comunicativa e fácil durante a vida, talvez porque a sua esperança toda
resumia-se n’Os Lusíadas, torna-se trágica. A expedição Africana, que ele havia
aconselhado com a eloqüência de um Gladstone, pedindo a expulsão dos Turcos da
Europa, dera em resultado a destruição da monarquia. O seu Jau havia morrido,
legando à história um exemplo dessa dedicação, que é a honra do escravo. A mãe
de Camões, D. Ana de Sá e Macedo, que viveu até 1585, para receber a tença do
filho da generosidade de Felipe II, estava inutilizada pela idade. A pobreza do lar
era extrema, e, se a tradição não mente, chegou até a esmola, e a fome. Como devia
ser triste para ele morrer assim, recordar o passado, reconstruir a sua vida toda!
“A poesia, disse Carlyle, é a tentativa que o homem faz para tornar a sua
existência harmônica.” “Quem quiser escrever poemas heróicos, disse Milton, deve
fazer um poema heróico de sua vida inteira.” Com efeito, senhores, que poesia é
mais elevada do que, por exemplo, a vida da mulher verdadeiramente bela, quando
essa vida é tornada harmônica pelo respeito, pelo culto, pela adoração de si mesma,
como a produção de uma Arte superior, que é a Natureza? Que poema heróico é
maior do que esse em que o operário converte o trabalho, o marinheiro o navio, a
mãe o filho, o rei o reinado, a mulher o coração, o homem o dever, e o povo a
história?
Este material não é mais comum que o mármore ou o verso. A nossa própria
vida é a matéria mais difícil de trabalhar artisticamente e de converter em Poesia.
Nesse sentido, talvez, que lançando um olhar sobre o passado Camões só visse nele
os fragmentos de uma existência dispersa, da qual a memória tornara-se por fim o
registro indiferente. Por que não renunciou ele, para ser feliz, à sua própria
superioridade, à composição dessa epopéia quase póstuma da sua raça? Mas como