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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS - INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM ESTUDOS DE LITERATURA COMPARADA
TRANSCULTURAÇÃO E PODER EM ZOÉ VALDÉS E MARILENE FELINTO:
O PLURALISMO NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA LATINO-AMERICANA
ROSE MARY ABRÃO NASCIF
NITERÓI
2008
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ROSE MARY ABRÃO NASCIF
TRANSCULTURAÇÃO E PODER EM ZOÉ VALDÉS E MARILENE FELINTO:
O PLURALISMO NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA LATINO-AMERICANA
Trabalho de Conclusão de Curso
para obtenção do grau de Doutora
em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense.
Profa. Dra. Lívia Maria de Freitas
Reis - Orientadora
NITERÓI
2008
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
N244 Nascif, Rose Mary Abrão.
Transculturação e poder em Zoé Valdés e Marilene Felinto: o
pluralismo na construção identitária latino-americana / Rose Mary
Abrão Nascif. – 2008.
250 f.
Orientador: Lívia Maria de Freitas Reis.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras, 2008.
Bibliografia: f. 240-250.
1. Mulher. 2. Mulher – Condição social – América Latina. 3. Poder.
I. Reis, Lívia Maria de Freitas. II. Universidade Federal Fluminense.
III. Título.
CDD 305.4
TRANSCULTURAÇÃO E PODER EM ZOÉ VALDÉS E MARILENE FELINTO:
O PLURALISMO NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA LATINO-AMERICANA
Por
ROSE MARY ABRÃO NASCIF
Trabalho de Conclusão de Curso
aprovado com nota ______ como
requisito parcial para a obtenção
do grau de Doutor em Literatura
Comparada, tendo sido julgado
pela Banca Examinadora formada
pelos professores:
__________________________________________________________
Profa. Dra. Lívia Maria de Freitas Reis – Orientadora, UFF
__________________________________________________________
Profa. Dra. Lúcia Helena Vianna – Co-Orientadora, UFF
__________________________________________________________
Profa. Dra. Ana Beatriz Gonçalves – Membro Titular - UFJF
__________________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Mendes – Membro Titular - UERJ
__________________________________________________________
Profa. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira – Membro Titular - UFJF
Niterói, 26 de setembro de 2008
DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Através deste instrumento, isento minhas Orientadoras e a Banca Examinadora de
qualquer responsabilidade sobre qualquer aporte ideológico conferido ao presente trabalho.
_________________________________
Rose Mary Abrão Nascif
DEDICATÓRIA
À minha mãe (in memoriam) – a única reconhecida e eternamente amada –
sem a qual talvez fossem outros os caminhos percorridos, para meu deleite ou
suplício. Sua simplicidade, sua paciência e também suas imperfeições alimentaram-
me o corpo e o espírito, como uma bênção jamais esquecida. A ela, a minha
saudade e gratidão.
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Lívia Maria de Freitas Reis, da UFF, por ter aceitado a
incumbência da orientação deste trabalho, e à Professora Doutora Lúcia Helena Vianna, da
UFF, pela generosidade com que se dispôs à espinhosa tarefa de apontar caminhos.
À Professora Doutora Ana Beatriz Gonçalves e à Professora Doutora Terezinha Maria
Scher Pereira, da UFJF, pelo apoio e interesse demonstrado em relação ao tema abordado, e
ao Professor Doutor Leonardo Mendes, da UERJ, grata surpresa, pela assistência e
questionamentos oportunos. À Professora Doutora Maria Bernadette T. Velloso Porto, da
UFF, e à Professora Doutora Maria Luiza Scher Pereira, da UFJF, suplentes que muito nos
lisonjeiam com sua participação.
À Professora Doutora Mariângela Rios de Oliveira e ao Professor Doutor Silvio
Renato Jorge, respectivamente Coordenadora e Vice-Coordenador do curso de Pós-Graduação
em Letras da UFF, pela atenção aos procedimentos burocráticos inevitáveis.
Aos funcionários da secretaria de Pós-Graduação do curso de Doutorado da
Universidade Federal Fluminense, Tânia Maria de Oliveira, Tatiana Roboredo, Rodrigo M. de
Almeida Rego e com menção especial à Nelma Teixeira Pedretti, sempre solícita e paciente.
À Divisão de Apoio à Formação Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – a CAPES -, pelo apoio financeiro através da concessão da bolsa
de estudos vinculada ao Programa Institucional de Capacitação de Docentes e Técnicos –
PICDT.
Aos amigos e amigas, em especial à Heloísa Tabet, pela compreensão e incentivo.
A todos, o nosso agradecimento afetuoso.
EPÍGRAFES
“[...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés
disso, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam,
somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades
possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.”
(HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, 1992, p. 13).
“Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a
um tempo, juiz e parte.”
Paulain de la Barre, século XVII,
(In: O segundo sexo, Simone de Beauvoir, s/d, p. 15).
“Reconhecimento mútuo, troca de justificações de existência e de razões de ser, testemunhos
recíprocos de confiança, signos, todos, da total reciprocidade que confere ao círculo em que se
encerra a díade amorosa, unidade social elementar, indivisível e dotada de uma potência
autárquica simbólica, o poder de rivalizar vitoriosamente com todas as consagrações que
ordinariamente se pedem às instituições e aos ritos da ‘Sociedade’, este substituto mundano
de Deus.”
(BOURDIEU, Pierre, A dominação masculina, 1999, p. 133).
RESUMO
NASCIF, Rose Mary Abrão. Transculturação e
poder em Zoé Valdés e Marilene Felinto: o
pluralismo na construção identitária latino-
americana. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada apresentada à Universidade Federal
Fluminense. Niterói, setembro de 2008, 250 fls,
duplicadas.
Esta tese parte do pressuposto de que existe uma
equivalência entre a condição subalterna da mulher
e a do continente latino-americano, de modo que
pretendemos avaliar em que medida as obras “La
nada cotidiana” e “La hija del embajador”, da
cubana Zoé Valdés, e “As mulheres de Tijucopapo”,
“O lago encantado de Grongonzo” e “Obsceno
abandono – amor e perda”, da brasileira Marilene
Felinto constituem um microcosmo privilegiado
onde se pode ler as artimanhas de um poder
patriarcal (opressor da mulher) e de um poder
metropolitano (opressor da periferia). Procuramos
abordar as divergências e convergências entre as
autoras, sob uma perspectiva transcultural –
enquanto encontro de culturas centrais e periféricas
movido pelo deslocamento geopolítico de
intelectuais e artistas -, e sob o viés do poder –
enquanto instrumento de repressão e de exclusão.
Destacamos produções literárias hispano-americana
e brasileira produzidas no pós-modernismo dos anos
80 e 90, quando grande parte da escritura feminina
ainda permanece marginalizada pelos padrões
canônicos. Também ressaltamos o processo de
reconhecimento e de fragmentação desencadeado
pela ruptura/resgate da memória, em que as
protagonistas buscam tomar as rédeas de suas vidas
ao contestar o status quo vigente e atuar enquanto
sujeito ativo na conformação das identidades latino-
americanas.
ABSTRACT
NASCIF, Rose Mary Abrão. Transculturation and
power in Zoé Valdés and Marilene Felinto:
the pluralism in the Latin-American
identitary construction. Doctoral tesis of
Comparative Literature presented to the
Universidade Federal Fluminense. Niterói,
september of 2008, 250 sheets, duplicated.
This work assumes that there is an equivalence
between the subaltern condition of the woman and
the Latin American continent, so that we intend to
evaluate in which terms the novels “La nada
cotidiana” and “La hija del embajador”, by the
Cuban writer Zoé Valdés, and “As mulheres de
Tijucopapo”, “O lago encantado de Grongonzo” and
“Obsceno abandono – amor e perda”, by the
Brazilian writer Marilene Felinto, represent a
favored microcosm on which one can observe the
articulations of a patriarchal power (as a woman
oppressor) and a metropolitan power (as a periphery
oppressor). We intended to deal with the
disagreements and agreements between the two
writers, from a transcultural perspective – as a
meeting between central and peripherical cultures
encouraged by the geopolitical displacement of
intellectuals and artists -, and from the point of view
of the power – as an instrument of repression and
exclusion. We detached the Spanish American and
Brazilian literary outputs thoughout the 80’s and the
90’s, when the most of the feminine writings still
remains marginalized by the canonical patterns. On
the other hand, we emphasized the process of
recognition and fragmentation provoked by the
rupture/rescue of the memory, in which the main
characters intend to take charge of their own lives
by challenging the current establishment so that they
could act as an active subject for the construction of
the Latin American identities.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................10
2 A QUESTÃO TRANSCULTURAL NA EMERGÊNCIA DO PROCESSO
IDENTITÁRIO LATINO-AMERICANO ...................................................................... 17
2.1 A TRANSCULTURAÇÃO NO DISCURSO NACIONALISTA LATINO-AMERICANO ........................ 28
2.2 TRANSCULTURAÇÃO NARRATIVA: O DISCURSO LITERÁRIO NO CENÁRIO HISTÓRICO LATINO-
AMERICANO ...................................................................................................................... 31
3. PODER E FEMINISMO: O CÂNONE E A MARGEM.................................................. 35
3.1 O COLONIALISMO: ENFRENTAMENTOS GEOPOLÍTICOS ........................................................ 45
3.2 O PATRIARCADO: ENFRENTAMENTOS DE GÊNERO .............................................................. 54
4. IDENTIDADES EM TRÂNSITO: AS MÚLTIPLAS FACES DA MULHER
LATINO-AMERICANA EM ZOÉ VALDÉS E MARILENE FELINTO....................... 65
4.1 O DISCURSO NARRATIVO: ESTRATÉGIAS FORMAIS ............................................................. 67
4.2 O DISCURSO SIMBÓLICO: O IMAGINÁRIO EM RECORTES...................................................... 72
4.3 ZVALDÉS: MOBILIDADES E INCONFORMISMO - ENCONTRO CUBA-EUROPA ................... 75
4.3.1. La nada cotidiana: o ostracismo.................................................................................... 77
4.3.2 La hija del embajador: a escolha ..................................................................................124
4.4 MARILENE FELINTO: MOBILIDADES E INCONFORMISMO ENCONTRO ENTRE BRASIS ....... 152
4.4.1 As mulheres de Tijucopapo: a revolução ..................................................................... 154
4.4.2 O lago encantado de Grongonzo: a dúvida ................................................................. 180
4.4.3 Obsceno abandono: amor e perda: a recondução ....................................................... 208
4.5 AS HIPÓTESES DE UM DESTINO ......................................................................................... 224
5. CONCLUSÃO ................................................................................................................. 232
6. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 240
10
1 INTRODUÇÃO
A dependência cultural da América Latina e Caribe ante os países hegemônicos da
Europa e da América despertou o interesse de intelectuais latino-americanos desde a década de
40, com destaque para o embate entre modernização e transculturação
, ao considerar ora o
descompasso entre as idéias importadas e sua inserção nos países periféricos, ora a aceitação do
atraso como ardil para a aquisição dos empréstimos culturais.
Desse conflito eclode um período brilhante não só das letras, mas das artes em geral,
na América Latina, que consolida sua autonomia, se não rompendo de todo com os modelos
europeus que lhes serviram de fonte, pelo menos reinscrevendo-os com outra roupagem no
cenário latino-americano: nos anos 1960 e 1970, com o boom da Nova Narrativa Hispano-
americana, e no Brasil, com a nova proposta estética introduzida pelos concretistas, a
politização do teatro e da música, o Cinema Novo de Glauber Rocha, o tropicalismo. Ocorre
que o efervescente intercâmbio cultural desse período, em que se entrecruzaram
conservadorismo e modernidade, limitou-se ao domínio masculino, nas divergências político-
literárias entre os chamados autores transculturais, ou neo-regionalistas, e outros, mais
universalistas. De qualquer forma, o processo de ruptura introduzido por aquela produção
literária, apenas reiterava um processo cíclico de canonização dos textos [masculinos] que
ficcionalizavam o nacional, o público, o histórico e o transcendental, enquanto a produção
literária feminina se mantinha relegada a uma condição de “efêmera, vazia e sem importância”
(GUERRA, 1994, p. 184).
Entendido aqui como encontro de culturas, centrais e periféricas, o aspecto
transcultural deflagrou a eclosão da narrativa hispano-americana, assim como propiciou a
renovação transgressora
1
do cenário cultural brasileiro, nas décadas de 1960 e 1970.
Paralelamente, tomavam força os movimentos emancipatórios feministas, principalmente na
França, Inglaterra e Estados Unidos, onde floresce a disseminação de idéias e atitudes
contestatórias em relação ao status quo vigente. Historicamente e à revelia do posicionamento
das mulheres, esse status quo as mantêm relegadas à margem do poder decisório,
subordinadas às prerrogativas patriarcais, androcêntricas, que as querem preteridas ou nulas.
Se a transitividade cultural gerada pelo deslocamento geopolítico foi, num dado
momento, um fator preponderante para a emancipação cultural e literária da América Latina,
Este termo será definido e interpretado ao longo do capítulo.
1
Contrariando o contexto repressivo desfavorável, as citadas manifestações artístico-culturais demarcaram uma
época. Não obtiveram a mesma repercussão internacional obtida pela nova narrativa hispano-americana, mas
em termos gerais ratificaram a vocação revolucionária dessas propostas num país de dimensões continentais e
de importância crucial no destino do continente latino-americano.
11
esse mesmo esgarçamento de fronteiras poderia converter-se num fator determinante para
romper a polaridade de poder que privilegia a posição central e o âmbito público para os
homens, enquanto reserva para as mulheres a condição de margem, confinadas no âmbito
privado. Era preciso enfrentar esse poder hegemônico, e desconstruir a polarização mediante a
fusão e o intercâmbio desses espaços.
Nos anos 1960 e 1970, salvo casos pontuais, a produção literária de mulheres latino-
americanas não obteve o devido reconhecimento por conta de critérios classificatórios
desfavoráveis. Nos anos 1980 e 1990, já dissipadas as nuvens da obscuridade no campo
criativo feminino e esmaecida a visibilidade eufórica do que veio a se estabelecer como
cânone na literatura latino-americana, as margens já não se confinavam em guetos. Por fim, a
crítica literária, mormente orientada por critérios classificatórios androcêntricos, ainda que
com certa resistência, vê-se forçada a reconhecer a sua validade literária.
Para consumar-se em todas as suas possibilidades de manifestação, este encontro de
culturas deveria ter como ponto de partida as relações interpessoais até expandir-se para
níveis inter-regionais (ou intranacionais) e internacionais, sob o impulso das demandas
sociais, econômicas, políticas, ideológicas, existenciais ou de credo. Este processo dinâmico
de (re)conhecimento entre as partes favoreceria o desvelamento das múltiplas feições do
latino-americano, seja na esfera individual, coletiva ou nacional, em prol de uma construção
contínua da identidade, ou antes, das identidades latino-americanas. Afinal, enquanto latino-
americanos – mulheres e homens -, oscilamos entre dois níveis de cultura, em virtude da
condição espacialmente periférica e historicamente atrasada em relação aos centros
hegemônicos: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura
original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se
desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.” (GOMES, P.E.S., 1980, p. 77).
Historicamente, as mulheres permanecem preteridas em seu papel de sujeito e
eternamente subordinadas a estruturas da divisão sexual, como a família, a igreja, a escola e a
outras instituições, de modo a ser imprescindível mobilizar-se de uma forma mais
enfaticamente política, no sentido de resistirem à resignação encorajada pela visão
essencialista (biologista e psicanalítica) da diferença sexual, e ir mais além dos brados irados
ou dos happenings discursivos que ainda permeiam certas doutrinas teóricas feministas
2
. Se
2
Consideramos desnecessária a relação exaustiva de tais doutrinas. Detivemo-nos às principais a partir das quais
tantas outras se fundamentaram, com apreciações de cunho crítico, quais sejam as teorias de Virginia Woolf e
de Simone de Bouvoir, entre outras. Além delas, citamos as latino-americanas Beatriz Sarlo, Nara Araújo e
Lucía Guerra, sem deixar de mencionar as contribuições de Pierre Bourdieu.
12
nas décadas de 1960 e 1970, as mulheres foram incentivadas por inflamados movimentos
emancipatórios a lançar mão de métodos revolucionários para reivindicar seus direitos e a
rechaçar a “falta de poder social da mulher”, mais adiante, passaram a atuar como sujeito
ativo no seio do movimento social e a posicionar-se solidariamente contra a discriminação
simbólica de que elas são um dos alvos privilegiados, armando-se de instrumentos mais
eficazes para atingir as instituições, estatais e jurídicas, que contribuem para a eternização da
sua subordinação (Cf. BOURDIEU, prefácio, 1999). Com isso, voluntária ou
involuntariamente, as mulheres se imiscuem nos vários setores da esfera pública, sem se
afastarem da esfera privada, conciliando-as e impondo-lhes, por sua vez, um novo arranjo.
Na circunscrição literária, de um modo particular, uma nova geração de escritoras
latino-americanas se propõe, através de suas obras, a uma imersão no universo feminino, no
qual os encontros de cultura se contrastam, seja por oposição espacial (centro-periferia), seja
por oposição política (ditadura-democracia), seja por oposição genérica (mulher-homem), nas
quais as protagonistas buscam escapar aos mecanismos de poder androcêntrico e hegemônico
que as relegam a um plano inferior, para assumirem o papel de agente da sua própria história,
e por extensão, dos destinos do continente.
Para ilustrar esse encontro de culturas, recorremos a duas escritoras: uma cubana, Zoé
Valdés (1959), com as obras La nada cotidiana (1995)
3
e La hija del embajador (1994,
contemplada com o III Premio de Novela Breve Juan March Cencillo, de Palma de Mallorca,
em 1995), e uma brasileira, Marilene Felinto (1957), com as obras As mulheres de Tijucopapo
(1982, contemplada com o Prêmio Jabuti, categoria Revelação de autor, em 1983)
4
, O lago
encantado de Grongonzo (1987)
5
e Obsceno abandono – amor e perda (2002), com o
propósito de, ao tomar uma escritora de língua hispânica e outra de língua portuguesa,
averiguar suas divergências e convergências, dentro da perspectiva cultural abordada por
representantes femininas da recente geração da literatura latino-americana.
Vale acrescentar que a escolha das autoras deveu-se, em primeiro lugar, pela franca
postura anticanônica que envolve os dois nomes. No caso de Zoé Valdés, pela aberta oposição
ao regime de Fidel Castro – um cânone revolucionário latino-americano - e toda a
conseqüência socioeconômica decorrente da Revolução Cubana. Além disso, deve-se a um
cubano, Fernando Ortiz, a cunhagem do termo transculturação, uma proposta que lançou as
3
Ano da primeira edição, pela editora Actes Sud, de Buenos Aires. A edição com a qual trabalhamos foi lançada
pela Emecé, no mesmo ano (vide Bibliografia).
4
Ano da primeira edição, pela editora Paz e Terra, de São Paulo. Trabalhamos com a terceira edição, de 2004,
pela Record (vide Bibliografia).
5
Ano da primeira edição, pela editora Imago, do Rio de Janeiro. Trabalhamos com a segunda edição, de 1992,
também pela Imago (vide Bibliografia).
13
bases para o desenvolvimento do trabalho de que ora nos ocupamos. No caso de Marilene
Felinto – além da nacionalidade -, por destacar-se entre a nova geração de autoras procedentes
do nordeste brasileiro, e que trata da questão imigratória (da qual ela mesma é um exemplo)
com uma verve inconformista e raivosa voltada contra a(s) metrópole(s) excludente(s). Sem
deixar de mencionar que ambas, Valdés e Felinto, são adeptas a um feminismo de feições
finisseculares, mais diluídos no contexto sociopolítico, e desprovido de radicalismos
anacrônicos e insipientes.
A escolha das obras deveu-se à necessidade de traçar uma trajetória que implicasse na
inclusão de protagonistas com perfis variados, e delas obter diferentes perspectivas acerca dos
temas em pauta. Enquanto mulheres, e latino-americanas, deparam-se com os enfrentamentos
de cunho geopolítico, econômico e genérico, os quais, sob uma perspectiva feminista,
enfrentam e procuram, cada uma à sua maneira, sobreviver a eles, com seus temores e
convicções. Um discurso que redimensiona o feminino com um olhar menos
autodepreciativo; apenas mais consciente de suas potencialidades enquanto mulher.
A propósito, para Derrida
6
“o ‘feminino’ não é alguma natureza essencial ou a
sexualidade feminina. [...] Ser ‘feminina’ é compreender que qualquer inversão ‘feminista’ do
poder apenas priva a mulher de sua força ‘dissimuladora’ e restaura o falocentrismo, só que
agora com o ‘estudante desordeiro como mestre’” (NYE, 1995, p. 224). Na verdade, a
oposição homem-mulher resultaria mais útil no sentido de ampliar essa “consciência da
diferença”, numa outra escala: aquela que incentiva o latino-americano (homem e mulher) a
assumir a marginalidade histórica a ele imposta pelo poder central metropolitano e imposta à
mulher pelo poder androcêntrico. Ao reavaliar seu papel dentro das novas perspectivas
históricas, pós-coloniais e pós-modernas, essa “incorporação” do marginal (enquanto forma
de expressão não-canônica), confere aos latino-americanos aspectos de sua identidade que
lhes possibilita rebelar-se contra a norma, sobrepujar a alteridade e a autoridade, e assim
evadir-se de um suposto desconforto ontológico que (n)os persegue.
6
Jacques Derrida (1930, El Biar, Argélia – 2004, Paris) foi um dos ícones da Abordagem Pós-Modernista na
Teoria das Organizações - TO. Filósofo que propôs a teoria da desconstrução, que consiste em desfazer o texto,
a partir do modo como foi organizado originalmente para que se pudesse revelar seus significados ocultos.
Ainda que possa sugerir uma destruição, trata-se do oposto, pois ela busca a pluralidade de discursos, ao
legitimar a não existência de uma única verdade ou interpretação, com um caráter de disseminação de possíveis
e novas verdades. Para ele, o discurso e o conhecimento necessitam ser construídos de forma diferenciada. O
autor pós-moderno localiza suas interpretações na estruturação e lógica dos textos, por serem estes as fontes
primárias dos discursos políticos, sociais e culturais, e através dos quais transmitem suas idéias (vide relação de
obras por meios eletrônicos, no item 4 da Bibliografia, p. 247. As referências subseqüentes associadas ao meio
eletrônico figurarão com a sigla r.m.e precedida pelo nome do autor do artigo, quando o houver; se não,
constam da relação precedidas pelo número da nota correspondente).
14
Para Julia Kristeva
7
, o sexo biológico não constitui o fator determinante de seu
potencial revolucionário, mas a posição de sujeito que assume. Avessa ao feminismo liberal e
ao feminismo radical, ela defende uma terceira via, em que “[...] la misma dicotomía
hombre/mujer como oposición entre dos entidades rivales puede analizarse como
perteneciente a la metafísica. ¿Qué sentido puede tener el término ‘identidad’ o incluso
‘identidad sexual’ en un espacio teórico y científico nuevo en el que la misma noción de
identidad está amenazada?” (MOI, 1988, p. 26).
Isto posto, e ao considerar que o sujeito necessita dialogar com o outro, nas suas
várias categorias de oposição, para realizar-se enquanto expressão singular inserida numa
diversidade cultural, estabelecemos alguns objetivos a partir da análise das obras escolhidas.
Em termos gerais, procuraremos ressaltar as possíveis convergências e divergências entre as
autoras, tendo em foco a situação da mulher inserida no contexto político-cultural
predominante entre os anos 1980 e 1990, em Cuba e no Brasil.
Ao partir do pressuposto de que existe uma equivalência entre a condição subalterna
da mulher e a do continente latino-americano, pretendemos avaliar em que medida as obras
em pauta constituem um microcosmo privilegiado onde se pode ler as artimanhas de um
poder patriarcal (opressor da mulher) e de um poder metropolitano (opressor da periferia),
como um desdobramento da relação centro-margem. Paralelamente, avaliar em que termos o
processo transcultural afeta o posicionamento da mulher na sociedade latino-americana
contemporânea; em que sentido o jogo estético-ideológico contido no discurso simbólico das
autoras expressa o imaginário latino-americano; e em que medida a nova geração de escritoras
latino-americanas pode romper com esse poder hegemônico para, enquanto “porta-voz” de
uma categoria marginal, tornar-se agente ativa na condução de sua própria história e destino.
Para alcançarmos os objetivos propostos, idealizamos uma metodologia que
primeiramente introduza um arcabouço crítico-teórico que trate de conceituações pertinentes
ao recorte enfocado para, munidos desse embasamento mais abrangente, passarmos à análise
do corpus literário em si.
7
Julia Kristeva (1941, Bulgária), psicanalista, reúne em suas reflexões a lingüística, a semiótica, a filosofia e a
psicanálise. Ela tenta traduzir, para a prática, proposições teóricas tais como a de captar os “estados de
instabilidade” do sujeito, na linguagem, para além de dualismos (masculino/feminino) ou das normas de
convivência, que tornariam esse sujeito um ser mecânico. Kristeva foi buscar “inspiração” no romance policial
(“noire”) para tramar suas personagens, assim como promover violenta crítica ao mundo da televisão. O
romance policial também é alvo de seu interesse, embora seja até hoje considerado pelo cânone francês como
algo “menor”, jogado ao lado da “literatura de imigração”. Entretanto, é através dele que Julia Kristeva procura
explorar o universo da “méstissage” e da “créolisation” ao aproximá-lo do mundo dos laços antigos do ser com
o corpo da mãe (Cf. BONVICINO, [s/d], vide r.m.e.).
15
Após as observações preliminares contidas no capítulo introdutório, passaremos à
abordagem crítico-teórica nos dois capítulos subseqüentes, para, no quarto, nos determos na
análise do corpus. Por tratar-se de obras que não são de domínio público (entenda-se não
clássicas ou canônicas), pretendemos ressaltar as estratégias formais e os aspectos simbólicos
de cada obra isoladamente, para, só numa etapa posterior, fazermos o entrecruzamento das
convergências e divergências entre elas. Este procedimento visa a promover uma noção mais
ampla do conteúdo das obras, sem nos determos apenas a uma sinopse mais elaborada das
mesmas.
No segundo capítulo, abordaremos a questão terminológica que mobiliza o fenômeno
da transculturação nos discursos nacionalista e literário, e sua implicação na emergência do
processo identitário latino-americano, nos seus aspectos culturais e literários. Consideraremos
as principais variantes conceituais do termo transculturação, tomando como ponto de partida
as contribuições do antropólogo cubano Fernando Ortiz, que forjou o termo em 1940, e do
uruguaio Ángel Rama que o transplantou para a literatura. Para tanto, nos fundamentaremos
no capítulo “Los procesos de transculturación en la narrativa latinoamericana”, incluída em
La novela latinoamericana 1920-1980 (1982), de Rama. Também recorreremos às
contribuições indispensáveis encontradas nas obras América Latina em sua literatura (1979),
obra coordenada por César Fernández Moreno; A identidade cultural na pós-modernidade
(2002), de Stuart Hall; “The Politics of Recognition”, incluído em Multiculturalism (1994),
organizada por Charles Taylor; A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais
latino-americanos (2001), de Alberto Moreiras; O Realismo Maravilhoso (1980), de Irlemar
Chiampi, em Historia de la literatura hispanoamericana (1986), de Giuseppe Bellini, entre
outras leituras afins, conquanto nos apontem alternativas para a sustentação dos pressupostos
teóricos e das hipóteses formuladas.
No terceiro capítulo, abordaremos a relação entre o poder patriarcal e o feminismo,
enquanto reflexo de históricos enfrentamentos de cunho geopolítico e de gênero, que
permeiam as discussões em torno da marginalização da mulher. Para tanto, nos
fundamentaremos em várias obras que têm por foco o feminismo, sobretudo em Um teto todo
seu (1985), de Virginia Woolf, O segundo sexo - fatos e mitos, [s/d], de Simone de Beauvoir,
em A dominação masculina (1999), de Pierre Bourdieu, além de Os olhos do império: relatos
de viagem e transculturação (1999), de Mary Louise Pratt, que aborda questões do
colonialismo. Neste elenco também se incluem autoras como Toril Moi, com a Teoría
literaria feminista, (1988), Andrea Nye, com a Teoria feminista e as filosofias do homem
(1995), e uma compilação de ensaios organizados por Heloísa Buarque de Hollanda,
16
Tendências e impasses – o feminismo como crítica da cultura (1994), além de Lucía Guerra,
Beatriz Sarlo e Nara Araújo, que nos fornecem o alicerce para uma fundamentação mais
segura da produção crítica das mulheres e para uma compreensão mais consistente das
questões feministas contemporâneas.
O quarto capítulo está destinado à análise dos textos que compõem o nosso corpus
literário. Ao partir do princípio de que o mito e o arquétipo
8
funcionam como categorias
válidas para interpretar as peculiaridades da América Latina, nos valeremos das isotopias
simbólicas do imaginário desenvolvidas por Gilbert Durand, em As estruturas antropológicas
do imaginário (1989), assim como do método introduzido por Roland Barthes, em S/Z
(1970), fundamentado na decupagem dos textos em lexias (ou unidades de leitura). A
apreciação do discurso simbólico não pretende instaurar nenhuma verdade irredutível, senão
avaliar o jogo especular que envolve o intercâmbio de referenciais ali presentes, como o
histórico, o ideológico, o político, entre outros, intermediados pela literatura, sem impor-lhes
qualquer estatuto hierárquico.
Além do mito, nos ocuparemos das questões literárias nos níveis da linguagem, da
estrutura narrativa e da cosmovisão, valendo-nos tanto das proposições tranculturais de Rama,
quanto de outros autores constantes da bibiliografia, na medida de sua pertinência na análise
crítica de cada texto do corpus. No capítulo subseqüente, ressaltaremos as convergências e
divergências entre as autoras Zoé Valdés e Marilene Felinto, no intuito de formularmos
hipóteses acerca do destino, histórico e literário, da América Latina, para levar a bom termo
nossas conclusões.
Além das publicações crítico-teóricas, recorreremos a publicações especializadas,
como artigos de jornais e de revistas, em meio convencional ou eletrônico, dicionários afins,
assim como de anotações correspondentes aos cursos e de monografias correspondentes às
disciplinas cursadas, porquanto integram as etapas em que se fundamenta nossa tese.
8
Para Jung, “[...] O arquétipo é um conceito psicossomático, unindo corpo e psique, instinto e imagem. [...] Os
arquétipos são percebidos em comportamentos externos, especialmente aqueles que se aglomeram em torno de
experiências básicas da vida, tais como nascimento, casamento, maternidade, morte e separação. Também se
aderem à estrutura da própria psique humana e são observáveis na relação com a vida interior ou psíquica,
revelando-se por meio de figuras tais como anima, sombra, persona, e outras mais.[...]” (vide r.m.e.).
17
2 A QUESTÃO TRANSCULTURAL NA EMERGÊNCIA DO PROCESSO IDENTITÁRIO
LATINO-AMERICANO
Com base no etnocentrismo que desde a época colonial tem predominado na
conceituação histórica do continente americano, pode-se supor que existiriam duas Américas
superpostas. Uma delas, a mais favorecida, se destacaria pela modernidade mais afeita aos
moldes éticos, intelectuais, estéticos, culturais herdados das metrópoles européias – ou por
elas impostos -; e uma outra, considerada “inferior”, resultante da presença de componentes
étnicos não europeus, afetada por “hibridismos redutores” (GOMES, H. T., [s/d], p. 1, vide
r.m.e.).
Tradicionalmente, a segunda América – a “inferior” - tem sido alvo de
“condescendência paternalista” (como povos infantis ou exóticos) ou tem-se atribuído à sua
“má formação populacional” o seu descompasso civilizatório em relação à outra América [a
do Norte]. Paralelamente, a produção literária dos países americanos (incluindo-se aqui a
literatura sobre as Américas) emerge à sombra do espírito eurocêntrico verificado nos estudos
históricos, já que a América “que deu certo”, na verdade teria se espelhado na “civilizada”
sociedade européia em oposição a um suposto barbarismo autóctone, atávico e incorrigível.
Todavia, para além desse simplista dualismo etnocêntrico, que gera desdobramentos
de cunho econômico – como a América rica e a América pobre – há outras tantas Américas
com distinções bem complexas: “[...] Há Américas que mantêm, pouco ou quase nada
alterados, costumes e tradições milenares; há outras em que a globalização veio a galope,
trazida em grande parte pelos meios de comunicação deste final de século. Há traços comuns,
há peculiaridades irrepetíveis.” (idem).
Todas têm algo a dizer, embora a sociedade dominante lhes tenha negado ou mesmo
desqualificado as formas culturais próprias e distintivas de sua complexidade étnica, social,
política, econômica, estética. De fato, o discurso cultural eurocêntrico, desde sempre, adota
uma postura caracterizada pela exclusão, subordinação e segregação com base no
conservadorismo das elites culturais das metrópoles européias.
Para fazer frente a este eurocentrismo corrosivo, e ter reconhecidas sua emancipação e
autonomia, faz-se imprescindível assumir a própria heterogeneidade diante da homogênea
“pureza” branca colonial. Mestiços e criollos: todo o continente americano, com todos os seus
emblemáticos desníveis, é o resultado de um longo e dinâmico processo de mesclas,
hibridizações, que reitera sua vocação multirracial e policultural e, exatamente por isso, o
torna ímpar, único na sua diversidade.
18
Enquanto mistura de raças, a América se acultura. E tal conceito – aculturação - sofre
uma revisão sob uma perspectiva antropológica, a partir da qual faz-se necessária uma
releitura, no intuito de atender às peculiaridades latino-americanas, contrapostas ao
perspectivismo do colonialismo europeu que, após a gradual descolonização, carrega-se de
inferências ideológicas (Cf. RAMA, 1982, p. 209). O processo reconhecido como aculturador
torna-se alvo de reflexões “corretoras” no sentido de ampliar o estreitamento de alcance que o
termo/conceito supunha, ao limitá-lo a uma mera aquisição da cultura “vencedora” pelos
“vencidos” e reforçar um dualismo simplista, agradável aos olhos do conquistador. Cria-se o
neologismo transculturação, que pela própria etimologia pressupõe movimento, dinamismo,
intercâmbio, ao contrário da passiva e estática submissão aos valores impositivos do “outro”,
o invasor, o dominador.
Neste sentido, o fenômeno transcultural se realizaria enquanto mestiçagem cultural,
enquanto “encontro de culturas”, que ultrapassa uma certa visão limitadora de miscigenação
racial. O termo transculturação refere-se, como já mencionado, ao conceito introduzido
inicialmente pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969), no capítulo intitulado “Do
fenômeno social da transculturação e de sua importância em Cuba” de sua obra maior
Contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco (1940). Nele, além de analisar a história
econômica de Cuba, ligada à cultura do tabaco e do açúcar, Ortiz formula uma reflexão sobre
o dinâmico processo migratório cubano, responsável por um profícuo encontro de povos e de
suas culturas.
No Brasil, Gilberto Freyre produzia reflexões que mantinham estreito diálogo com as
argumentações formuladas por Ortiz em Cuba, favorável à criação de um termo que
contemplasse tal fenômeno cultural, sem que, curiosamente, um tivesse conhecimento do
outro até então. Ortiz, ao que tudo indica, gozou de maior prestígio pela cunhagem do novo
termo que logrou abranger com maior amplitude e eficiência o fenômeno transcultural em
pauta. Com sua obra síntese, ele foi o pioneiro no desenvolvimento de reflexões acerca dos
paradoxos culturais que constituem a origem e a formação do povo cubano e, por extensão,
dos povos latino-americanos. Esta contribuição, em toda sua complexidade e potencial
criativo, assentará as bases para outras tantas reflexões acerca da questão identitária da
América Latina, em busca de autonomia e de reconhecimento.
Nos anos 1970 e 1980, o uruguaio Ángel Rama (1926-1982), no artigo “Los procesos
de transculturación en la narrativa latinoamericana (1974) e na obra La transculturación
narrativa en Latinoamérica (1982), toma o artigo de Ortiz como referência para a formulação
do arcabouço teórico que transpõe o conceito formulado pelo cubano para o que chamaria de
19
transculturação narrativa. O fenômeno transcultural, portanto, implicaria em
heterogeneidade, termo este usado com recorrência tanto pela crítica literária como pelos
estudos culturais. Não obstante, houve autores que acataram ou puseram em xeque as
argumentações sustentadas por Ortiz e por Rama.
Entre eles, o brasileiro Antônio Cândido (1918), nos anos 1970, num ensaio intitulado
“Literatura e subdesenvolvimento”, propõe a criação do termo literatura super-regional, ao
tomar como ponto de partida a conscientização do atraso e do subdesenvolvimento
dominantes na América Latina depois da Segunda Guerra. Interlocutor de Rama, suas
reflexões - que tratam das relações de dependência cultural entre as metrópoles européias e as
periferias latino-americanas -, destacam a oscilação das vanguardas estéticas latino-
americanas dos anos 1920 entre a originalidade e a cópia de modelos estrangeiros. Esse
vanguardismo, aliado à consciência estético-social dos anos 1930 e 1940, pressionado pela
crise econômica e pelo experimentalismo literário posterior, gradualmente transforma a
dependência unilateral numa interdependência cultural, “o que dará aos escritores da América
Latina a consciência de sua unidade na diversidade, além de favorecer a criação de obras
maduras e originais que serão lentamente assimiladas por outros povos, inclusive de países
metropolitanos e imperialistas.” (CÂNDIDO, 1972, p. 347)
Há autores para quem a transculturação constituiria, na verdade, uma etapa a
posteriori da dinâmica da heterogeneidade, e aludiria a processos culturais ou raciais, tal
como mestiçagem ou hibridismo. A esse propósito, merece menção especial o ensaio
desenvolvido pelo martinicano Édouard Glissant (1928), na sua oportuna obra Introdução a
uma poética da diversidade (2005). Nesta compilação de ensaios em que trata de outros
temas afins, ele contrapõe o processo de crioulização ao de mestiçagem, e propõe uma
estética da Relação [intercultural], com implicações lingüísticas e literárias. Em termos
sucintos, Glissant discute as forças de coalizão entre as culturas antilhanas e as das Américas
marcadas pelo tráfico de africanos, pelo sistema de plantação e pela escravidão, que seriam
determinantes no processo de constituição da identidade cultural de grande parte dos povos
americanos colonizados pela Europa, e marcada pela presença africana. Segundo a sua teoria,
existem três Américas: a Meso-América, constituída pelos povos autóctones; a dos povos
provenientes da Europa e que preservaram seus usos e costumes, chamada de Euro-América,
e a Neo-América, que corresponde à América da crioulização
9
. A despeito dos conflitos e dos
9
Fariam parte desta América crioula o Caribe, o nordeste do Brasil, as Guianas e Curaçao, o sul dos Estados
Unidos, a costa caribenha da Venezuela e da Colômbia e grande parte da América Central e do México.
(GLISSANT, 2005, p. 16).
20
choques existentes entre as três, ele defende que nesta relação, prevalece cada vez mais a
influência da América da crioulização, embora esta continue a absorver empréstimos das
outras duas. O fenômeno da crioulização na Neo-América baseia-se na prevalência do
africano no seu povoamento.
No processo de crioulização os elementos heterogêneos em contato “se
intervalorizam”, ou seja, não há degradação ou diminuição do ser neste contato e nesta
mistura, seja internamente (de dentro para fora), seja externamente (de fora para dentro). Os
efeitos da crioulização seriam imprevisíveis, ao passo que se poderia calcular os efeitos da
mestiçagem
10
, ou seja, a crioulização seria a mestiçagem acrescida de uma “mais-valia” que é
a imprevisibilidade (GLISSANT, 2005, p. 22).
Outros nomes poderiam ser citados no sentido de estabelecer um elenco de estudiosos
que endossam ou rejeitam as reflexões antropológicas desenvolvidas por Ortiz,
posteriormente aplicadas no âmbito literário por Rama, e outros mais isentos na sua posição,
como Glissant. Todavia, nosso intuito nesta oportunidade consiste tão-somente em
demonstrar que não há nenhuma unanimidade irrefutável no que diz respeito a formulações
teóricas sobre as questões de trânsito cultural na América Latina, com todas as implicações
daí decorrentes para a modelação das identidades latino-americanas.
A despeito das disposições contrárias, ao transpor o conceito elaborado por Ortiz às
obras literárias, criando o termo transculturação narrativa, Rama promoveu algumas
correções no conceito original a fim de enquadrá-lo mais adequadamente aos casos de
“plasticidad cultural”
11
(RAMA, 1982, p. 208), resultado da interação mais proporcional entre
as tradições e as modernidades das partes envolvidas. Na sua avaliação, a ocorrência de tal
plasticidade estaria condicionada à existência obrigatória de critérios de seleção e de
inventividade, sem os quais se estancaria a energia e a criatividade de uma comunidade. Seja
como for, Ortiz e Rama, constituem referências reconhecidamente indispensáveis na
formulação das questões identitárias latino-americanas pelos aportes teóricos por eles
introduzidos. A partir de suas reflexões, desencadeou-se uma série de argumentações
10
Glissant cita como exemplo de mestiçagem o enxerto em diferentes plantas e o cruzamento de animais.
Conforme seu raciocínio, pode-se calcular que ervilhas vermelhas e ervilhas brancas misturadas, através da
técnica do enxerto, darão resultados distintos em distintas gerações. Ao contrário da mestiçagem, a
crioulização criaria nas Américas microclimas culturais e lingüísticos absolutamente inesperados, lugares nos
quais o encontro de línguas e de culturas teria uma repercussão abrupta. (GLISSANT, 2005, p. 22-23).
11
A “plasticidade cultural” constitui a terceira via da proposição aculturadora. Contraposta a esta estariam a
“vulnerabilidade cultural”, que aceita incondicionalmente as proposições externas e se abdica das próprias, e a
“rigidez cultural” que se refugia drasticamente nos produtos de sua cultura, rejeitando toda contribuição nova.
(Cf. RAMA, 1982, p. 208).
21
complementares, favoráveis ou contrárias aos seus pontos de vista, sempre tomando-os como
menção prioritária.
Assim, na visão de Rama, tanto no campo cultural – num sentido mais abrangente,
interdisciplinar -, quanto no campo literário, várias operações se manifestam no processo de
transculturação, que afetam em graus variados o exercício literário. Neste processo ocorreria
inicialmente o que se reconheceu como uma “desculturação”, perdas das referências
anteriores - abandonadas devido à sua obsolescência -, somadas a elementos sobreviventes e a
outros, agregados, provenientes da cultura original. Paralelamente, haveria a “reculturação”,
intensificação das proposições internas, identificadoras de uma cultura, para se chegar à
“neoculturação”, que se daria pela absorção de elementos externos de uma cultura
modernizada. Neste aspecto, o criador literário manejará tais proposições nos níveis
lingüístico, de composição literária e da cosmovisão (ou dos significados), oscilando entre
tendências neo-regionalistas (ou tranculturais) e vanguardistas, para promover o
acrioulamento [ou crioulização] das mensagens artísticas européias, hibridizando-as.
No nível lingüístico, a língua funcionaria como instrumento de defesa e prova de
independência frente à avalanche modernizadora instalada na América Lusa e Hispânica. No
caso hispano-americano, os modernistas oscilavam nas suas prerrogativas modernizadoras:
ora defendiam o purismo da língua espanhola clássica, ora preferiam transformar o registro
americano do espanhol em norma culta para a literatura - já que os americanismos não
constavam do Dicionário da Real Academia Espanhola -, numa postura de denúncia à
inadequação do idioma corrente, “demasiado rígido e acadêmico” (BELLINI, 1986, p. 526).
Escritores neo-regionalistas, por outro lado, já na primeira década do século XX, no intuito de
contornar a questão da diversidade de registros regionais, lançaram mão de recursos que
demarcassem tais diferenças, como o uso de aspas, de glossários e de apêndices para explicar
os usos dos falares locais (Cf. REIS, 2005, p. 472).
Mais tarde, porém, os neo-regionalistas obtêm uma maior unidade lingüística e
artística ao reduzirem o uso de dialetismos e de termos estritamente americanos e ao
abandonarem a fala popular
12
, de modo que cada escritor passa a adotar uma maneira peculiar
para se expressar literariamente. Eliminam o uso dos glossários por entenderem que o próprio
12
A fala popular ou a oralidade foi amplamente cultivada na literatura latino-americana, muito em função do
peso do analfabetismo na sociedade do continente. Merquior pondera que a oralidade das letras americanas,
porém, não se vincula a uma suposta democratização da arte, pois essa transição operou-se no registro da fala e
não da língua, além de ser um índice da situação social do autor. Ou seja, a oralidade em si mesma não teria
garantido o acrioulamento dos modelos artísticos, e nem teria impedido a imitação mecânica e constante dos
módulos transatlânticos (Cf. MERQUIOR, 1979, p. 393).
22
contexto possibilitará a compreensão do significado das particularidades lingüísticas
regionais. Para a representação das personagens em sua fala autóctone, cria-se uma língua
artificial e literária para registrar as diferenças do idioma, de modo a eliminar a fronteira entre
ela e o padrão culto oficial. Para o guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1899-1974), prêmio
Nobel de Literatura em 1967, a narrativa era uma “façanha verbal” regida por uma alquimia
sob o domínio da palavra. O importante era “individualizar” os ingredientes da mesma, de
modo que o mundo americano estivesse nela refletido (BELLINI, 1986, p. 526).
No caso da estruturação ou da composição literária, houve mais dificuldades para
contornar o enfrentamento entre a narrativa neo-regionalista ou transcultural e os novos
parâmetros introduzidos pelas vanguardas. Ao que parece, neste aspecto, os neo-regionalistas
contraíram-se mais sobre si mesmos e se ampararam num tradicionalismo avesso ao que se
entendia como “erosão modernizadora”. Exemplo ilustrativo seria a recusa em adotar alguns
recursos estilísticos muito em voga à época como a fragmentação da narrativa, bem ao estilo
do irlandês James Joyce (1882-1941), em Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939), optando
por um tradicional monólogo discursivo, de origem oral e popular, como o resgatado pelo
brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967) em Grande sertão: veredas (1956), ou o falar
dispersivo das “comadres” intercalado com vozes sussurrantes (outro recurso oral e popular),
utilizado pelo mexicano Juan Rulfo (1918-1986) na novela Pedro Páramo (1955), contrário à
justaposição de pedaços soltos na narração também tão ao gosto do britânico radicado nos
Estados Unidos Aldous Huxley (1894-1963) e do norte-americano John dos Passos (1896-
1970). Ou, ainda, optar por conjugar naturalidade a situações inusitadas, sem criar qualquer
indício de espanto diante do irreal, do fantástico, do extraordinário, tal como o fez Gabriel
García Márquez (1928) em Cien años de soledad (1967), a fim de obter a verossimilhança
necessária para relatar ações realizadas no plano do maravilhoso.
Não obstante, apesar dos atalhos encontrados para escapar ao impacto modernizador,
os neo-regionalistas não conseguiram evitar algumas perdas pertinentes ao processo de
transculturação no quesito das estruturas narrativas, ou da composição, substituídas por
esporádicas soluções vanguardistas, haja vista que estas se opunham a estruturas narrativas de
cunho mais popular (RAMA, 1982, p. 214-215). De qualquer maneira, havia uma necessidade
inconteste de renovação com o propósito de evitar os perigos do “repeticionismo” e o
resultado foi o de uma “atmosfera parricida”, iconoclasta portanto, que produziu “una
búsqueda afanosa, experimentalismo ilimitado y audaz, insatisfacción y negación de
precedentes que con su peso modélico impiden el advenimiento de nueva luz y más propia
orientación.” (BELLINI, 1986, p. 524).
23
Assim, apesar de freqüentemente negadas, reconhece-se a influência de autores como
a do tcheco Franz Kafka (1883-1924), a do alemão Thomas Mann (1875-1955), a dos norte-
americanos William Faulkner (1897-1962) e Ernest Hemingway (1899-1961), das correntes
da psicanálise e das técnicas cinematográficas sobre a então mais jovem geração de escritores
latino-americanos. Uma geração emergente que, sem dúvida alguma, abriu caminho a uma
estruturação narrativa originalíssima para o momento, com temáticas de maior complexidade
organizadas através de um caleidoscópio de pontos de vista, o uso e o abuso do monólogo
interior, uma pluralidade de planos temporais que acentuam a dimensão da narrativa. No
centro desta busca situa-se o sujeito (ibidem, p. 524-525), mais especificamente, o latino-
americano.
Já a cosmovisão tem importância fundamental por constituir a categoria na qual se
consolidam os valores, as ideologias e a força de resistência contra a ação homogenizadora da
modernização indiscriminada de origem estrangeira. Ocorre que a vanguarda refuta o discurso
lógico-racional de cunho burguês da literatura do século XIX, fazendo com que o romance
neo-regionalista, o romance social e o realismo crítico - embora ainda guardando certos
valores burgueses, racionalistas - incorporassem, cada um à sua maneira, um discurso
antiburguês e adotassem influências vanguardistas tanto na escritura quanto na estrutura. Um
precedente que contraria a tendência antimodernizadora, que afeta inclusive as obras de linha
mais cosmopolita e fantástica, como os dos argentinos Julio Cortázar (1916-1984) e Jorge
Luis Borges (1899-1986).
Com efeito, o movimento irracionalista europeu surge como parâmetro de renovação
artística e intelectual, sobretudo através do movimento dadaísta
13
idealizado pelo francês de
origem romena Tristan Tzara (1896-1963), seguido pelo expressionismo alemão
14
; o
surrealismo francês
15
, acolhido após a publicação do primeiro Manifesto (1924), do francês
André Breton (1896-1966); o futurismo italiano
16
(“...el esplendor del mundo se ha
enriquecido con una nueva belleza: la belleza de la velocidad.” – primeiro Manifesto
13
Em linhas gerais, essa revolução surge em 1916 com Tzara, que, com um grupo de amigos, buscava um nome
que denominasse o novo movimento, optando por abrir um dicionário francês e escolher a primeira palavra
encontrada. Esta palavra, dada, não tem qualquer significado referente à arte; na verdade, buscam a antiarte,
uma forma de rebelar-se contra uma civilização (e com ela a arte) capaz de deflagrar guerras que podem levar à
destruição do mundo. Foi o movimento mais anarquista do período de entre-guerras, que introduz objetos e
elementos mecânicos no campo da expressão plástica (SUMALLA, 1998, p. 86-87).
14
Considerado mais uma tendência que um movimento ou estilo. Busca uma interpretação interiorizada e
visionária do mundo e do homem. Rebela-se contra a moral vigente numa sociedade que, vivendo uma
industrialização acelerada, mantém ao mesmo tempo o autoritarismo da mentalidade antiga (ibidem, p. 86).
15
Breton, poeta e médico psiquiatra, era um bom conhecedor das obras de Freud, cujas teorias sobre a
psicanálise tiveram grande influência na arte em geral da época (ibidem, p. 88).
16
Procura representar o movimento, a velocidade, a máquina, a violência. Constitui uma das maiores tentativas
de levar a arte à vida cotidiana mediante uma defesa intransigente da modernidade (ibidem, p. 82).
24
futurista, 1909), cuja influência alcançará tanto a filosofia e a política, quanto a antropologia e
a psicanálise, ao incorporar o mito à análise das sociedades racionalizadas no século XX.
Condescendentes, os autores transculturais também descobrirão o mito, não à luz do
irracionalismo que mitifica o discurso racional pré-existente, mas como um repertório de
materiais que não tinham sido explorados nem utilizados livremente pela narrativa neo-
regionalista, embora mantivesse estreita relação com a mesma (Cf. RAMA, 1982, p. 216). A
esse respeito, o mexicano Carlos Fuentes (1928) acentua que a narrativa hispano-americana
contemporânea é “mito, linguagem e estrutura” e que estes três elementos funcionariam como
um contrapeso para evitar os riscos de um formalismo praticado, por exemplo, pelo nouveau
roman
17
francês (a nova narrativa francesa ou antinarrativa) (BELLINI, 1986, p. 526),
desenvolvida em meados dos anos 1950, cujos autores, por sua vez, também teriam sofrido a
influência de autores como Faulkner e do cinema.
Desta maneira, consegue-se elaborar um universo de livres associações, rico e único
em inventividades e ambigüidades, por fim desvelado e revigorado através do movimento
irracionalista europeu do século XX, que propicia o reaparecimento de culturas rurais latino-
americanas, vistas sob outra ótica. Alcança-se, daí, uma mediação entre as criações urbanas
cosmopolitas e as criações do antigo regionalismo, resultado de uma secular relação não
apenas política e econômica, como também de representação e de imaginação. Em
decorrência disso, desencadeia-se um gradual processo de crioulização ou hibridização, que
envolveu intelectuais e leitores de ambos os hemisférios, embora não necessariamente com a
mesma intensidade.
Tal hibridização consistiria num encontro de diferentes culturas e sociedades, tal como
o entende a autora canadense Mary Louise Pratt (1948), que na sua obra Os olhos do império:
relatos de viagem e transculturação (1999), convalida os conceitos de Ortiz e de Rama, e
introduz o que denomina “zona de contato”. Esta expressão destaca as “relações entre
colonizadores e colonizados, ou viajantes e ‘visitados’, não em termos da separação ou
segregação, mas em termos da presença comum, interação, entendimentos e práticas
interligadas, freqüentemente dentro de relações radicalmente assimétricas de poder” (PRATT,
1999, p. 32). Vale ressaltar a título de ilustração que a autora baseou-se na idéia de
“linguagens de contato”, oriunda da Lingüística, para estabelecer aquela zona de contato, em
17
Uma forma de antinarrativa introduzida em meados dos anos 1950 por Alain Robbe-Grillet, Claude Simon,
Marguerite Duras, entre outros. Rejeitavam a estrutura tradicional da ficção – cronologia, enredo, personagem
– e a onisciência do autor. No lugar dessas convenções, seus textos exigiam mais do leitor, por serem mais
condensados, repetitivos ou se apresentarem apenas parcialmente explicados, e cujo significado jamais estaria
definitivo (MERRIAM-WEBSTER’S, 1995, p. 818).
25
cujo espaço situaria a sobrevivência do feminismo (enquanto representativo de uma expressão
do marginal e do subordinado). Segundo Pratt, este contato constituiria “uma tentativa de se
invocar a presença espacial e temporal conjunta de sujeitos anteriormente separados por
descontinuidades históricas e geográficas cujas trajetórias agora se cruzam” (idem), mesmo
que de forma provisória ou inaugural, visando à preservação das linguagens e das sociedades
postas em contato.
Todavia, ainda no que se refere ao pensamento marginal, um outro autor, o argentino
Walter Mignolo (1947), promove debates nos quais ressalta as especificidades da América
Latina no cenário pós-colonial e pós-moderno. Ou seja, num âmbito mais recente, em que se
ratifica a consciência crítica ou o reconhecimento da diferença colonial desde uma perspectiva
da subalternidade - noção denominada por ele de border thinking (pensamento liminar) -,
Mignolo vislumbra um modo de pensar próprio de um lugar marginal no mundo colonial. Um
modo de pensar, aliás, que teria origem na configuração da diferença colonial desde o século
XVI, conformando o imaginário do mundo colonial/moderno, e que por essa razão consistiria
num modo de pensar “a partir de”, ou seja, já nasce subalterno, sujeito ao pré-conhecimento
hegemônico. Mignolo, porém, reconhece que o conceito transculturação, cunhado por Ortiz,
de fato se sobrepõe ao conceito mestiçagem por ultrapassar as considerações de ordem racial
18
e por ampliar as possibilidades de abrangência cultural ao reconhecer todos os componentes
constitutivos de uma sociedade. Neste arcabouço estariam incluídas as parcelas hegemônicas,
oriundas de países centrais, metropolitanos, ou mesmo crioulas, embora estas, por sua vez,
costumavam (costumam) querer desqualificar culturas indígenas, africanas, ou tantas outras
que formam o legado racial e cultural latino-americano, em favor de uma suposta
“superioridade” nórdica. Além disso, há que se considerar que tal conceito – transculturação -
igualmente favorece o reconhecimento do pensamento das margens na modelação da(s)
identidade(s) latino-americana(s), ao incluir, entre outras, as vozes das mulheres, que
certamente conferem aportes antropológicos e literários sem paralelo na dinâmica
transcultural do continente, ao introduzir seus próprios parâmetros.
Ainda assim, a busca pela identidade do “ser latino-americano”, ao conferir-lhe aquela
mencionada consciência da diferença - mesmo a partir de uma perspectiva hegemônica -,
incentiva-o a superar a marginalidade histórica imposta aos povos latino-americanos e a
assumir-se como mestiço, híbrido, enquanto resultado da assimilação biológica e cultural de
18
Considerações estas, não raro, de forte teor discriminatório, vide o cientificismo da doutrina positivista, que
teria gerado um brusco recrudescimento da imagem disfórica da América, e que desencadeou o doloroso
complexo de uma “América enferma” (CHIAMPI, 1980, p. 111).
26
várias etnias e raças. Este seria o ideário antipositivista de refutação das teorias racistas
vigentes no fim do século XIX e que fortaleceria, por exemplo, a corrente indigenista a partir
dos anos 1910 do século XX. Com efeito, a mistura de sangues faz-se aceitável, já que,
sobretudo o índio e o negro, adquirem status de humanidade, e suas culturas sofrem uma
reavaliação dentro dos novos enfoques antropológicos, apesar da resistência das correntes
mais conservadoras da sociedade.
Na verdade, ainda a propósito desses históricos enfrentamentos ideológico-raciais,
duas linhas básicas de reflexão foram detectadas nos anos 1920. Uma delas seria a do
utopismo fundamentado na mestiçagem, direcionado para a renovação dos valores da
civilização ocidental, o que, a nosso ver, mantém um estreito vínculo com prerrogativas mais
vanguardistas. A outra, seria a do utopismo com bases autóctones, reprimidas desde a
conquista ibérica, mais afeitas ao gosto neo-regionalista. Ambas as vertentes, porém, foram
superadas pelos próprios fatos históricos, como a Segunda Guerra, que consumou a perda do
particularismo europeu e provocou o fim da condição infra-histórica da América
19
.
Embora limitado no seu alcance cultural, o conceito de mestiçagem ainda goza de um
status privilegiado nos vários setores em que se indaga sobre o caráter nacional latino-
americano – como cubanidade, brasilidade, argentinidade, chilenidade -, e que orienta a
consciência crítica da realidade americana. A despeito das questões terminológicas que o
envolve, evoluiu como um conceito positivo, signo diferenciador de nossa cultura. Com
implicações ideológicas, a mestiçagem passa a ser tema para vários ensaístas, sobretudo pelas
derivações que a mistura de raças promoveu na vida e na arte crioula. A esse respeito, além de
Rama, também o venezuelano Arturo Uslar Pietri (1906-2001) atenta para a vocação hispano-
americana para a “mestiçagem literária” no ensaio “Lo criollo en la literatura” (Las nubes,
1951): “La literatura hispanoamericana nace mezclada e impura y mezclada alcanzará sus más
altas expresiones. [...] Su curso es como un río, que acumula y arrastra aguas, troncos, cuerpos
y hojas de infinitas procedencias. Es aluvial.” (CHIAMPI, 1980, p. 125).
Assim, a incorporação “aluvial” (termo mais tarde corrigido para aluvional) de
materiais artísticos, poderá ser reconhecida pelos seus efeitos estéticos excelentes, numa
19
No Brasil, por exemplo, o projeto nacionalista do modernismo prescindiu desse conteúdo utopista, embora se
propusesse à valorização do país e ao cultivo de idéias favoráveis à libertação da tutela européia. Já na
América espanhola, os conceitos de cultura nacional sofreram alguns percalços talvez por conta de um
utopismo exacerbado, embora tivessem obtido maior coesão intelectual. De qualquer forma, os discursos
americanistas dos anos 1920 procuraram restabelecer raízes perdidas e reinventar a chamada mitologia do
porvir, para situar a América, mais do que nunca, no centro das atenções dos americanos (CHIAMPI, 1980, p.
123).
27
espécie de apropriação que não só denota uma receptividade criativa de formas estrangeiras,
como também confirma sua vocação antropofágica, ao postular não a cópia pura e simples,
mas o disfarce destruidor da dignidade do modelo (ibidem, p. 127).
Para expressar esse hibridismo americano, reúnem-se nessa combinatória de
influências caracterizadoras de alguns contextos latino-americanos, não só os motivos raciais,
mas os econômicos, os ctônicos (crenças e práticas religiosas, mitos e tradições de
procedências várias), os culturais (que não dispensam a mescla da herança ibérico-greco-
mediterrânea com outras tradições, autóctones ou não), e mesmo os culinários, conformando
o que se pode reconhecer como elementos não disjuntivos
20
para a formação da identidade
latino-americana (idem). Com efeito, a transculturação, mais que a “mera” mestiçagem,
procura desfazer esse equívoco acerca do racismo finissecular que, embora condescendente
com o latino (afinal, de origem européia), dirige sua ira contra o mestiço. Ele seria o herdeiro
biológico das “qualidades” determinadas pelo meio, tais como a belicosidade, a hipocrisia, o
egocentrismo, entre outras, que desenvolviam uma doença social incapaz de promover uma
democracia saudável. A cura: o branqueamento das populações pelo “estudo positivo” da
história, da política, da economia, da sociologia... Às luzes do novo século, porém, dissipam-
se as sombras deste mito corrosivo de nossa inferioridade cultural.
20
A esse propósito, o mexicano Alberto Moreiras se pronuncia contrário ao caráter “não disjuntivo” (ou de
desaparecimento da contradição não-sincrônica através da mediação) do realismo mágico (ou realismo
maravilhoso, como prefere Irlemar Chiampi) – que se tornou uma marca indelével da narrativa hispano-
americana à época do boom. Ele considera que o princípio da contradição ali presente não se aplica à cultura
latino-americana, já que essa hibridização seria uma transculturação orientada, artificial, uma “representação
comprometida”, no sentido de que uma transculturação “bem sucedida” seria aquela em que a cultura
dominada seria capaz de se inscrever na dominante, e portanto, a não-inscrição, significaria um fracasso
(MOREIRAS, 2001, p. 222, 225). Como representação não significa necessariamente realidade, ou cópia fiel,
talvez esteja aí o motivo pelo qual o mexicano formule um contra-discurso ao conceito elaborado pelo
uruguaio – este, porém, acatado por outros autores, entre os quais, a própria Irlemar Chiampi.
28
2.1 A TRANSCULTURAÇÃO NO DISCURSO NACIONALISTA LATINO-AMERICANO
A modulação da multiplicidade identitária latino-americana vai demandar a aquisição
de um patrimônio cultural próprio, material e imaterial, que deve ser conhecido e reconhecido
por toda uma comunidade e salvaguardado por uma memória cultural própria. Neste sentido, a
partir da segunda metade do século XIX, com o deslocamento gradual de modelos ibéricos em
direção ao modelo francês
21
, os discursos literário e político se adequam a modelos próprios e
se empenham na articulação de procedimentos sociopolíticos e culturais conformados por
uma “dialética do residual e do emergente”, em que dialogam o neo-regionalismo e o
vanguardismo. O primeiro, centrado numa forma de expressão da memória da diversidade
cultural, e o segundo, na crescente modernização dos grandes centros urbanos latino-
americanos, ainda que desigualmente.
De fato, nas primeiras décadas do século XX, coexistem pólos de desenvolvimento
emergentes ou mais avançados de industrialização, enfrentamentos que reivindicam reformas
de ordem política, social, étnicas e sociais. Consistem em posturas contrárias a ditaduras que
assolam o continente, propostas antiimperialistas, novas doutrinas sociais, como o socialismo
e o anarquismo, que repercutem favoravelmente na implementação de um projeto
revolucionário - transformador e humanizador - com base no saber e na arte. Paralelamente, a
industrialização nascente acena como um campo promissor de oportunidades que vai atrair às
periferias urbanas um grande contingente de indivíduos advindos do campo ou do interior,
imbricados num interrupto processo migratório e de miscigenação racial, social e cultural,
que, uma vez ingressados no mundo urbano, passam a povoar tamm o imaginário das artes
em geral.
Assim, a urbanização implica também a abertura de espaços para a expressão cultural
de novos setores sociais, vozes que, guardadas as suas especificidades, consolidam o que se
reconhece como marca da pluralidade da identidade latino-americana, centrada nos dois pólos
de tensão, quais sejam, na modernização e no resgate da memória, da tradição.
O contato intercultural, desde as remotas eras do Descobrimento e da Conquista, em
que se tocaram as culturas européias e as autóctones, gerou um intercâmbio de
conhecimentos. Não isento de impactos traumáticos mútuos, este contato acarretaria uma
transmutação dinâmica em ambas as vertentes - tanto aquela considerada como a “vencida”,
21
A França converte-se, portanto, na “Meca cultural” (PRATT, 1999, p. 326) - nem sempre gozando de
unanimidade - para as culturas americanas, situação que se desdobrará até meados do século XX, quando
emerge a sombra dos Estados Unidos que passam a fomentar as ilusões terceiro-mundistas de uma nova
sociedade bem sucedida a ser imitada
.
29
como a que a princípio beneficiou-se das benesses da conquista graças a sua supremacia
tecnológica e bélica, impondo-se sobre o território invadido e conquistado. Não obstante, a
aculturação não seria um termo adequado a esse processo, dada a limitação de seu alcance,
cuja abordagem sugere uma absorção indiscriminada e unilateral da cultura forânea, invasora,
por parte daquela invadida. É certo que a Europa ao longo de todo um processo de conquista
constituiu-se como um modelo a ser seguido, por conta também de sua indubitável
superioridade econômica e por sua força empreendedora que lhe autorizava ultrapassar os
próprios limites, as fronteiras, em prol de seu engrandecimento, em busca do acúmulo de
poder. Cenário de inúmeras revoluções (discutíveis ou não) com propósitos de mudanças
sociais, políticas e econômicas, logra conquistas internas significativas, e a Europa
(Setentrional, sobretudo) converte-se numa invejável potência, industrializada, culturalmente
emancipada, modernizada, plenamente desenvolvida e que agiganta enquanto poder de
dominação.
Entretanto, essa posição privilegiadíssima no cenário universal não lhe habilita a
manter uma postura excludente com relação às demais culturas, visto que, enquanto
organismo vivo, as sociedades se mesclam, ainda que em graus distintos, mas efetivamente.
Neste sentido, desde o ousado empreendimento de lançar-se ao mar, em busca do caminho
mais curto para aportar nas Índias, chegando enfim ao que hoje se chama América,
colonizadores e colonizados travaram um embate inicial que se prolongou por décadas de
jugo e de autoritarismo, mas que resultou (ou vem resultando) num insofismável
compartilhamento de experiências, de (re)conhecimentos, por conta de um inesgotável
trânsito de culturas, gerando um sincretismo dotado de especificidades, de contornos plurais.
Neste circuito, que não se quer fechado, consolida-se uma relação problemática entre
um provável provincianismo, regido por valores conservadores, imbuído de tradições locais,
regionalistas, que, em maior ou menor grau de resistência, se abastece das novas tendências
renovadoras resultantes do contato com a metrópole. Resultam daí dois níveis distintos de
transculturação: aquele entre as metrópoles estrangeiras e as latino-americanas; e aquele entre
os centros urbanos latino-americanos e suas regiões internas. Em ambos os níveis, os
instrumentos tecnológicos de que dispõe a cultura (mais) modernizada, urbana, dotam-lhe de
um sistema eficaz de dominação que, antes de proporcionar uma evolução àquela sociedade
mais vulnerável culturalmente, intensifica seu submetimento, cuja resposta não será outra
senão um conflituoso impacto cultural.
Desta relação, muitas das vezes conturbada por preconceitos mútuos, concebem-se
reações díspares que, ou aderem com certo imediatismo indiscriminado às novidades
30
forâneas, ou se defendem numa submersão protetora no seio da cultura regional, maternal,
enclausurados numa austera postura de rejeição incondicional. Existe ainda a possibilidade de
uma terceira via, mais flexível, que visa a promover não um monólogo excludente, mas
estabelecer um diálogo mais produtivo e mais lúcido, de onde se poderá obter aquela
mediadora “plasticidade cultural” de Rama, em que ambas as partes interagem no sentido de
conjugar mais proporcionalmente suas tradições e suas modernidades.
Deparamo-nos, portanto, com duas categorias de relação centro-periferia: uma
internacional e a outra, intranacional. Ou seja: ao considerar que o encontro entre culturas
gera o que se concebe como transculturação, opera-se um mecanismo que envolve uma
cultura hegemônica e outra subalterna, gerando uma terceira, mestiça, mesclada, sincrética,
produto de “una dialéctica que la hace irreductible a sus componentes originales”
(PIZARRO,
1995, v. 3, p. 25). Seja em escala nacional ou regional, sempre se estabelece um atrito
edificante entre centro e periferia, em que deve prevalecer o interesse pelas transformações
mútuas, perdas e revitalizações da memória cultural, fator preponderante para dar
prosseguimento ao processo identitário, em maior ou menor escala de alcance.
Munidos desse arcabouço teórico, os literatos latino-americanos implementam a
transculturação cultural no âmbito de sua narrativa, para configurar o que Rama, muito
apropriadamente, indicou como transculturação narrativa.
31
2.2 A TRANSCULTURAÇÃO NARRATIVA: O DISCURSO LITERÁRIO NO CENÁRIO
HISTÓRICO LATINO-AMERICANO
Em linhas gerais, afirma-se que na América Latina a emancipação do discurso literário
antecede a do discurso político. Atravessa longos períodos históricos, assume diversas
modulações polêmicas, até chegar ao século XX com uma proposta que se bifurca em
vanguardista e neo-regionalista. No decorrer do século XIX, ambos os discursos - literário e
político - solidarizam-se num projeto comum que visa à constituição de um Estado nascente, o
que lhes valerá a inserção mútua na área específica de cada um deles. O discurso político
aborda polêmicas acerca da língua e da cultura e, por sua vez, o discurso literário adquire
contornos políticos marcados por questões relacionadas com o destino da nação, sempre em
busca da autonomia cultural do continente até então assentada sobre modelos europeus,
metropolitano e enciclopédico.
A ânsia pela autonomia cultural almejada por intelectuais e líderes políticos latino-
americanos, paradoxalmente esbarrava, por um lado, na manutenção do enciclopedismo
europeu e, por outro, na marginalização de expressões de cunho não canônico, de linha mais
popular, como, por exemplo, as formuladas por mulheres. A mentalidade colonial,
provinciana, fazia com que a diversidade cedesse às normas hegemônicas da alta cultura e de
uma sociedade patriarcal, racista, homofóbica e misógina. Não obstante, com o alvorecer da
República, começa a esboçar-se o reconhecimento da formação do caráter plural da cultura e
da literatura latino-americanas: emergem novos gêneros, com formas mais afeitas aos setores
populares antes marginalizados, cuja heterogeneidade adquire maior consistência expressiva
diante da complexidade sócio-cultural americana. Deste modo, pouco a pouco a corrente
residual neoclássica do período antecessor é substituída pela romântica que, paralelamente,
atuará nas discussões sobre língua e literatura nas recentes décadas republicanas em busca de
originalidade e de afirmação da autonomia.
Nesse período de emancipação integram-se a literatura e a língua no processo de
legitimação das nações, acentuando-se ou minimizando-se em distintas épocas da história
continental. Muitas vezes, atribuiu-se à literatura a responsabilidade pela reformulação da
cultura, até então reproduzida segundo um parâmetro colonial estratificado, iluminista, de
cunho canônico, mas que sofrerá uma mudança após o contato de poetas com setores mais
populares, por acolher outras alternativas oriundas de parcelas menos privilegiadas da
sociedade. O intercâmbio fará com que os poetas passem a incorporar na literatura a oralidade
dos setores populares rurais e urbanos marginais. Apesar de incipiente, o resultado de tal
providência vai alcançar uma parcela mais ampla de público, deselitizando-o, seja pela maior
32
abrangência no seu raio de recepção, seja pela pluralidade de vozes que, gradativamente,
conquista espaço e reitera a consistência da recente literatura local, enquanto promotora de
transformação social.
Neste contexto histórico emerge a complexa configuração do universo cultural latino-
americano em busca de modernização. Já no fim do século XIX, esse processo modernizador
opera o início da separação dos âmbitos literário e político, em busca da autonomia do
discurso literário, que virá a constituir o chamado “modernismo hispano-americano”
22
,
movimento que equivale no Brasil ao período transitório do parnasianismo ao simbolismo.
Assim, as culturas nacionais desse período começam a delinear o seu perfil, e os sistemas
literários absorvem os aportes rurais e os articulam com outros, para, por fim, compor um
discurso autônomo e plural que “explica la formación de la nacionalidad y establece
administrativamente sus valores”
(PIZARRO, 1994, v. 2, p. 29).
Campo e cidade de fato constituem dois pólos de tensão, que se enfrentam mas
também se complementam, e configuram, assim, duas vias de referência no universo
simbólico já no começo do século XX nas várias expressões da arte e da cultura latino-
americanas. Uma dessas linhas, o neo-regionalismo, surge do contato entre a sociedade rural
cafeicultora e açucareira de fins de século com a sociedade urbana das capitais,
metropolitanas. Daí surge uma heterogeneidade ímpar, desprendendo-se do realismo nacional
e histórico dos românticos, para, nas primeiras décadas do século seguinte, admitir no seu
circuito o indigenismo, o crioulismo, o afro-americanismo, entre outras expressões
marginalizadas. A outra linha, porém, mais afeita à modernização, se constituirá, na segunda
década do século XX , nas chamadas vanguardas estéticas.
É fato porém que, desde sua emancipação até sua expressão regional, o discurso
literário latino-americano mantém uma relação com seus modelos metropolitanos. Estes, por
sua vez, ao se infiltrarem no seio da cultura mais periférica, sofrem o contraponto de sua
influência, e se enriquecem com uma ampla gama de contribuições daí advindas, tanto no
âmbito literário como no de sua cultura em geral. Desde os primeiros olhares sobre o
território americano, o europeu já se havia encantado pelo exotismo relatado pelos meios de
informação disponíveis durante o processo de colonização, sobretudo através dos relatos de
viagem, responsáveis em grande medida pela conformação do imaginário europeu em relação
ao mundo americano.
22
Esse modernismo não corresponde ao movimento de mesma designação no Brasil. O modernismo hispano-
americano emerge no fim do século XIX, e o modernismo brasileiro, na segunda década do século XX,
período então equivalente às vanguardas estéticas hispano-americanas (PIZARRO, 1994, v. 2, p. 28).
33
No novo mundo, a cultura européia passa por uma espécie de seleção prévia, para
adaptá-la à realidade dos gostos regionais americanos, dando lugar a superposições de
elementos emergentes e residuais potencializados no novo discurso. Neste novo contexto,
convivem neoclássicos, românticos e outras correntes próprias do modernismo hispano-
americano, que, além de absorver e transformar sentidos, às vezes parodiando-os, os
reformula segundo valores mais apropriados ao universo americano. Em suma, ocorre uma
espécie de descentralização imbuída por uma dinâmica que conduzirá à transculturação,
contrária à postura de subserviência absoluta quando do contato de culturas metropolitanas,
centrais, com outras, periféricas.
Entretanto, até que isso aconteça, os dois mais representativos blocos do continente
latino-americano, quais sejam Brasil e os países de língua hispânica, norteiam-se sobretudo
pelo modelo francês, ainda que se excluam mutuamente. Esta situação dificulta o
reconhecimento mútuo de seus processos históricos e culturais, e interfere na trajetória do
processo identitário em curso, além de protelar a tão almejada integração latino-americana.
Dificuldades à parte, o irreversível processo identitário prossegue, em busca de um rosto
traçado por contornos de matizes múltiplos, mas tão reconhecidamente latinos.
Apesar da suposta interação dos dois pólos, o intelectual/escritor periférico sofreria,
por um lado, uma desvantagem, e por outro, uma vantagem, com relação ao intelectual
metropolitano. Se, por um lado, o eterno deslocamento do latino-americano lance ao mundo
sua “mirada estrábica” (PIGLIA apud OLIVEIRA, 1996, p. 2, vide r.m.e.), essa migração de
cunho transcultural lhe possibilita desenvolver uma consciência crítica e conhecer tanto a
margem quanto o centro. Já o intelectual metropolitano, conhece e às vezes reconhece apenas
o centro. Neste movimento migratório, entenda-se o centro como a matriz, a “cidade letrada”
de Rama, paradigma da alta cultura, em contraposição à cultura da tradição local, de base
colonial, provinciana.
Outras possibilidades foram propostas por inúmeros e respeitáveis intelectuais, sempre
em busca da construção de um modelo social e artístico latino-americano. A linguagem
agônica (eufórica ou não) do discurso americanista contém um forte apelo “futurista”, sempre
na expectativa de algo que há de vir – indício de uma ainda perceptível insatisfação
existencial, tomada por uma sensação de fragilidade e de inconsistência diante do que ainda
não é, do imponderável. A angústia diante de um destino inconcebível.
Seja como for, a literatura em geral cumpre um papel especial em estudos
antropológicos e sociológicos relacionados à cultura latino-americana, embora não se
pretenda fazê-la ocupar o espaço de outros discursos críticos igualmente imprescindíveis na
34
elaboração de uma expressão mais autêntica da cultura latino-americana. No que se refere ao
discurso literário, resguardadas as semelhanças e diferenças em seus posicionamentos, há que
se considerar as diversas vozes imbricadas no processo transcultural, visto que todas são parte
integrante de uma sociedade que se quer reconhecida e respeitada nas suas especificidades,
relegadas ou não a uma excludente marginalidade socioliterária.
35
3 PODER E FEMINISMO: O CÂNONE E A MARGEM
Diversas lutas foram travadas para que o processo emancipador latino-americano se
processasse com a participação direta da classe intelectual e artística, em busca de uma
identidade própria. Se no fim do século XIX já se operava uma gradual separação dos
discursos do homem letrado e do político, já nas primeiras décadas do século XX, o
distanciamento se acirra, fazendo com que os papéis do homem público político e do
intelectual/artista fossem desempenhados de modo mais específico, embora ambos se
propusessem, cada um no seu território, a participar direta e ativamente na modulação
contínua de uma expressão mais autêntica da cultura latino-americana.
Em nome da auto-suficiência gerada pela conjuntura política e econômica mundial
deflagrada à época, e em nome de uma dominação hegemônica, o político - homem público
detentor do poder decisório -, passa a priorizar o mercado em detrimento do social e do
cultural. Ele vai acolher ou rechaçar a classe artística e os intelectuais segundo as
conveniências do momento, com base na prerrogativa da manutenção da “ordem” e do “bem-
estar” da nação, e sobretudo, da sua permanência e a de seus aliados no poder.
O domínio público concentrava-se nas mãos dos homens, tanto no plano político
como no artístico, enquanto as mulheres permaneciam confinadas ao recato do domínio
privado, voltadas para as prendas domésticas, cuidando do marido, dos filhos, anuladas
enquanto seres pensantes, subjugadas pelos valores misóginos de uma sociedade restritiva e
patriarcal. Aos poucos, porém, um tímido processo de conscientização toma corpo num
mundo em efervescente transformação sociopolítica e econômica, até que, nos
revolucionários anos sessenta, avolumam-se os movimentos feministas - sobretudo nos
Estados Unidos e na França, países centrais e democratas -, com perspectivas distintas, mas
tendo em comum o repúdio à exploração machista e à “falta de poder social da mulher”
(SADLIER, 1989, p. 19).
Houve movimentos incendiários, e algumas obras-chave - como o The Feminine
Mystique (A Mística Feminina, de 1963), de Betty Friedan (1921-2006), avesso ao cânone
masculino -, impactaram o comportamento das mulheres, principalmente universitárias,
incentivando-as a sair às ruas bradando por igualdade e enfrentar milênios de dominação
masculina. Aquela década entra para a história como tendo sido uma era especial, marco
divisor de águas, que imprimiu mudanças sensíveis em vários setores. A despeito daquela
efervescência ter sido preparada pelas décadas anteriores e desencadeado resultados
irreversíveis nas posteriores, aquele foi o período a partir do qual a mulher aceita desafios,
36
assume sua sexualidade e seu corpo, e, contra preceitos religiosos, passa a querer ter o
controle da natalidade pelo uso da pílula, reelabora seu excesso de pudor e adota a minissaia,
e defende o amor livre apregoado pelo movimento hippie. Ela procura aprimorar-se
intelectualmente e a aceder com cada vez mais afinco e competência a um mercado de
trabalho até então, quase que exclusivamente, dominado por homens. Também assim na
política, também assim nas artes, para romper com um histórico discurso sexista segundo o
qual à mulher cabia-lhe o ambiente privado, sem acesso ao saber e ao conhecimento, que por
milênios procurou mantê-la alheia aos assuntos “sérios”, “de homem”, silenciando-a,
excluindo-a dos processos de integração cultural tão relevantes para todo o continente.
Processos estes que, como se sabe, advêm desde os primeiros contatos do autóctone
com o colonizador, desencadeados desde a era expansionista empreendida pelas nações
imperialistas no século XV, cujo interesse voltava-se para o que viria a se conhecer como
América. Os diários de bordo e os relatos de viagem foram as primeiras incursões narrativas
que levaram ao conhecimento do Velho Mundo a existência de uma gente “exótica” naquelas
terras recém-descobertas, mediante o testemunho dos viajantes (descobridores, pesquisadores,
cronistas) a bordo das caravelas, em companhia dos navegadores europeus. Jamais se pôde
contar com a participação ou a colaboração direta das mulheres que foram “logicamente”
excluídas das façanhas históricas, tal como das posteriores cruzadas religiosas e de
expedições naturalistas (ARAÚJO, 1997, p. 17).
Já na primeira metade de século XIX, nos deparamos com inovações tecnológicas
revolucionárias para a época que, orquestrada por países europeus, vão propiciar a
modernização das vias marítimas e o desenvolvimento das vias férreas. O aperfeiçoamento
tecnológico progressivo estimula o interesse por viajar, lançar-se ao desconhecido, ao
encontro dessa alteridade exotificada, que dinamiza os deslocamentos não só entre as nações
européias, como também intercontinentais, além-mar, de modo a constituir um fator relevante
na condução do processo transcultural latino-americano.
A propósito das mulheres, embora esse deslocamento se restringisse a algumas poucas
privilegiadas (ou ousadas), ainda assim, expandir as fronteiras geopolíticas proporcionava-
lhes um avanço no sentido de pôr em marcha um processo de ruptura com o secular
confinamento doméstico. Isoladas, privadas de uma produção intelectual expressiva, era-lhes
(e ainda o é) atribuído, em vários segmentos da sociedade, o papel de meras reprodutoras
individuais de força de trabalho em prol da coletividade: um instrumento do poder em
detrimento de um sujeito ativo provido de autonomia e de autoridade (enquanto domínio de
saberes).
37
De fato, às mulheres, segundo as prerrogativas patriarcais, foi-lhes reservado o âmbito
privado (doméstico, reprodutor, emocional), enquanto que o público (profissional, social,
econômico, político) caberia aos homens – uma dicotomia enraizada na cultura, cujas
fronteiras também deveriam ser rompidas tais como as fronteiras geopolíticas. Ruptura esta
que se converteu em alvo de estudos feministas, não com o intuito de inverter a polaridade de
poder, ao privilegiar o privado sobre o público, ou mesmo inverter a oposição – o público
como feminino e o privado como masculino -, mas desconstruí-la, rompê-la, enquanto
categoria estanque e fechada. O público e o privado seriam, antes, compartimentos, espaços
móveis, permeáveis e ou intercambiáveis (ibidem, p. 20) e, portanto, imprescindíveis na
análise de literatura de viagens e, por antonomásia, de literatura de espaços, territórios físicos
ou culturais, por onde transitam o conhecido e o desconhecido, o próprio e o alheio, o igual e
o outro, a identidade e a alteridade (idem).
Por extensão, há que se pensar no deslocamento das mulheres que partem (por
motivos diversos) de um espaço periférico para um central, para a metrópole, como as latino-
americanas rumo à Europa e, por exemplo, como as brasileiras nordestinas rumo às grandes
cidades do sul do Brasil.
Já não bastassem as restrições de reconhecimento à produção literária feminina
metropolitana, cujas vozes mantinham-se relegadas a uma condição “efêmera, vazia e sem
importância”, já que “palabras de mujer llevan la firma del viento”, do ponto de vista do
espanhol Lope de Vega (GUERRA, 1994, p. 183), mais grave apresentava-se a situação da
mulher latino-americana circunscrita num ainda mais restrito âmbito literário. Não apenas por
estarem afastadas dos centros de produção cultural, como também por reiterar-se “un proceso
que canonizaba aquellos textos que ficcionalizaban ‘lo nacional’, ‘lo público’, ‘lo histórico’ y
‘lo transcendental’, relegando los escritos de mujer a la esfera de ‘lo íntimo’, de ‘lo
introspectivo’ típico del alma femenina” (ibidem, p. 184).
Com a implementação dos transportes – terrestres e marítimos – ocorre o
aprimoramento de uma literatura de viagem, também sob o prisma feminino, a despeito das
restrições. Diários, cartas, memórias e outros gêneros dessa produção literária feminina
procura romper com os estereótipos vinculados à descrição e ao reconhecimento da cultura do
outro para descobrir a voz da mulher e imprimir autoridade intelectual à sua escritura
(ARAÚJO, 1997, p. 18). Todavia, a histórica estrutura patriarcal que reitera a “efemeridade”
da palavra de mulher, a obriga a lançar mão de subterfúgios para, disfarçada, contornar a falta
da devida atenção e burlar o conservadorismo das editoras, de caráter exclusivista. Algumas
dessas mulheres assinaram suas obras utilizando um pseudônimo masculino, uma máscara,
38
para escapar à discriminação das empresas editoriais e da crítica da época, institucionalizadas
como mais uma entre outras instâncias do poder. Sobre este tema, citamos a seguir o trecho
bastante ilustrativo de um ensaio de 1860 da escritora cubana Gertrudis Gómez de
Avellaneda (1814-1873):
Si la mujer - a pesar de estos y otros brillantes indicios de su capacidad científica –
aún sigue proscrita del templo de los conocimientos profundos, no se crea tampoco
que data de muchos siglos su aceptación en el campo literario y artístico: ¡Ah! ¡no!
también ese terreno le ha sido disputado palmo a palmo por el exclusivismo varonil,
y aún hoy día se la mira en él como intrusa y usurpadora, tratándosela, en
consecuencia, con cierta ojeriza y desconfianza, que se echa de ver en el
alejamiento en que se la mantiene de las academias barbudas. (GUERRA, 1994, p.
184).
Esta situação ainda persiste até a primeira metade do século XX, período durante o
qual, ainda resguardada a oposição de gênero, numerosas publicações de histórias e
antologias da literatura latino-americana equivalem a uma média de duzentos escritores
contra uma dúzia de escritoras, segundo dados estatísticos (ibidem, p. 185).
Mas era fato incontestável que a literatura latino-americana caminhava em direção ao
reconhecimento internacional. No final do século XIX, poetas e prosadores modernistas
constituem a primeira expressão de autonomia literária dos países hispano-americanos,
quando surgem os nomes do cubano José Martí (1853-1895), com um trabalho de atualização
da língua, de Rubén Dario (1867-1916), com a publicação de Azul (1888) e de Prosas
profanas (1896), escritor nicaragüense que consolida o movimento como continental e se
converte na sua síntese, tanto na América como na Espanha. No Brasil, desencadeado
tardiamente nos anos 1920, do século seguinte, o modernismo nutre-se “antropofagicamente”
de elementos das vanguardas européias antes da Primeira Guerra Mundial, como o cubismo e
o futurismo. Na sua primeira fase, despontam Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de
Andrade (1890-1954), Menotti Del Picchia (1892-1988), Manuel Bandeira (1886-1968),
entre outros, com o evento da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, concebida para fazer
valer o ano do Centenário de Independência do Brasil, 1922. Para Oswald, independência não
seria apenas independência política, mas acima de tudo independência mental e
independência moral (Cf. BRITO, 1959, p. XVI).
À Semana de Arte Moderna precederam movimentos literários e artísticos em geral
no sentido de arregimentar os novos valores intelectuais brasileiros, animados pela rebeldia e
pela postura aguerrida. Menotti Del Picchia publica Juca Mulato, em 1917, que se
configuraria como um “canto de despedida da era agrária diante da era industrial que se
39
inaugurava” (idem). No plano internacional, a Revolução Russa
23
derrubaria um sistema
econômico e político para impor uma nova ideologia – o socialismo. No cenário brasileiro,
mais precisamente em São Paulo, eclode uma greve de operários dispostos a firmar a posição
reivindicatória do proletariado. No decorrer dos três anos seguintes, houve o encontro e a
formação do núcleo de artistas e escritores que promoveriam uma significativa reviravolta
nos rumos da estética então em vigor, não sem despertar a indignação e o repúdio de
ferrenhos detratores, a partir do rumoroso evento realizado no Teatro Municipal de São
Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922.
Radicais inicialmente, os modernistas rejeitavam o romantismo, o parnasianismo, o
naturalismo e o realismo, e pretendiam que todos os segmentos de imigrantes fossem
integrados no corpo na nacionalidade (e não apenas a trindade étnica brasileira formada pelo
português, o índio e o negro, como elementos exclusivos do homem nacional). Posicionaram-
se contra o regionalismo, que escamotearia a nova realidade das metrópoles, e, do passado,
acatavam somente o simbolismo, que lhes forneceria o desapego às realidades imediatas,
ideal da prosa e da poesia em vigor. O ideário modernista expandiu-se por todo o país e
aportou em vários estados, fazendo com que o país participasse do “grande concerto das
nações”, ao apresentá-lo às novas diretrizes culturais, políticas e socioeconômicas do século
XX, movido pela técnica e pela força mecânica. No arcabouço modernista figuravam os
ícones da vida moderna de então, como a imagética cinematográfica, a velocidade do
aeroplano, o ritmo sincopado do jazz. Aos poucos, porém, contraditoriamente, passaram a
recorrer a aspectos da colonização, valores do passado brasileiro, paisagens e produtos da
terra, festas religiosas, e inclusive aos caipiras – também situados nos grandes centros
urbanos. Paralelamente, o burguês seria crivado pelo ridículo, enquanto representante do
23
A Rússia pré-revolucionária vivia sob o absolutismo do Czar Nicolau II. Num país economicamente atrasado e
dependente da agricultura, com 80% da economia concentrada no campo, os trabalhadores rurais pagavam
altos tributos para manter a base czarista, que não cedia espaço para a democracia. Igualmente descontentes
encontravam-se os trabalhadores urbanos que ocupavam os poucos postos de trabalho na incipiente indústria.
Em 1905, no chamado Domingo Sangrento, Nicolau II ordena o extermínio de milhares de manifestantes
oposicionistas, inclusive os marinheiros do encouraçado Potenkim [episódio levado às telas sob a direção de
Eisenstein, em filme homônimo, de 1925]. Após um longo período de greves e manifestações, ocorre a queda
da monarquia e Kerenski assume o poder, em 1917, mas poucas mudanças promoveu no país. Em outubro do
mesmo ano, Lênin e os bolcheviques organizam uma nova revolução, prometendo “paz, terra, pão, liberdade e
trabalho”, até que Lênin assume o governo e implanta o socialismo. Com isso, promoveu-se a redistribuição
das terras para os trabalhadores rurais, a nacionalização das instituições bancárias e a transferência das
fábricas para as mãos dos operários. Ele também retira o país da Primeira Guerra e instala o Partido
Comunista. Após a Revolução implantou-se a URSS, que se tornou uma potência econômica e militar, a
ponto de rivalizar com os Estados Unidos na chamada Guerra Fria. Entretanto, o Partido Comunista reprimia
qualquer manifestação contrária aos princípios socialistas, de modo que a falta de democracia continuava a
imperar na URSS (vide r.m.e.).
40
conservadorismo das idéias e do comportamento, alvo de sátiras sociais e políticas, com
intenções reformistas.
A revisão consistiu em estimular a temática nacionalista para resistir ao avassalador
cosmopolitismo da civilização industrial – moderna e necessária, mas também ameaçadora.
Por volta de 1924, o movimento da Antropofagia liderado por Oswald de Andrade, apregoado
pelo Manifesto Pau-Brasil, passou a pregar a volta ao primitivismo puro, sem compromisso
com a ordem social estabelecida, fosse na política, na religião ou na economia. Valorizou-se
o homem natural, o antiliberalismo, o anticristianismo, por considerar a moral cristã uma
moral de escravos; quis remontar às fontes da civilização brasileira anterior à civilização
portuguesa, tachada de cruel. Os modernistas declararam-se contra a realidade social, vestida
e opressora, cadastrada por Freud, e propuseram uma “realidade sem complexos, sem
loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama
24
” (BRITO,
1959, p. XXII). Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, encarnaria o “caos psicológico de
um povo”, segundo o crítico José Osório de Olivieira, e Cobra Norato (1931), de Raul Bopp
(1898-1984), constituiria um poema inovador por apoiar-se numa linguagem dialetal e
misteriosa, quase intransponível para tratar do selvagem mundo amazônico (ibidem, p.
XXIII).
No Rio de Janeiro, o grupo da revista Festa, integrado entre outros por Tasso da
Silveira (1895-1968), Murilo Araújo (1894-1988) e Cecília Meireles (1901-1964), propôs a
renovação baseada em um pensamento filosófico, político e religioso, mediante o resgate da
diretriz espiritualista de que estava desprovida. O mineiro Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987) expressou pela poesia a perplexidade do homem moderno, o sentimento de
fadiga e mal-estar perante o mundo regido pela técnica, a solidão humana e a busca de
fraternidade, quase sempre frustrada. De Recife, Gilberto Freyre (1900-1987) comandou um
movimento de cunho regionalista, cuja proposta consistia na reação contra as convenções do
classicismo, do academicismo e do purismo lusitano, e adotava as tendências do linguajar
cotidiano de todo o território nacional.
24
Ousado e libertário, tratava-se de uma utopia centrada numa sociedade matriarcal, anárquica e sem repressões.
A postura antropofágica a introduziu como alternativa entre o nacionalismo conservador e o “imperialismo”
imposto de fora, cantada no Manifesto Antropofágico e na Revolução Caraíba, de Oswald de Andrade. O
Matriarcado de Pindorama dirigia uma crítica ferina aos conceitos patriarcais da sociedade pós-colonial na
formação individual e coletiva. Também atacava o poder patriarcal representado pela sociedade burguesa e
capitalista, centrada no direito de propriedade do dominador (incluído o direito de propriedade sobre a mulher
e os descendentes), na usura, nos vícios do homem “civilizado”, na especulação lógica e metafísica, na
repressão dos instintos e da liberdade sexual. Segundo Mário Chamie, na ótica de Oswald, o patriarcado seria
“um tabu encravado no curso da História”. A propósito, Pindorama é o nome que os índios davam ao Brasil
(FREYJA, 2002, vide r.m.e.).
41
Com efeito, o Modernismo brasileiro, inicialmente moldado sob uma euforia juvenil,
mudou de atitude e feição, para compenetrar-se da complexidade emergente da história
contemporânea. Logo desfez-se dos traços característicos dos países de origem para
aclimatar-se naqueles que o adotaram, de modo a converter-se ao mesmo tempo em
nacional e universal, com plena consciência de suas raízes locais e seus alcances
mais amplos. Em cada país a poesia moderna adotou suas próprias formas e
percorreu um caminho particular, extraindo sua força tanto das diversidades e
idiossincrasias peculiares do mundo contemporâneo como das características
comuns e das experiências compartilhadas por todos (ibidem, p. XXVII).
Neste sentido, cada uma à sua maneira, as literaturas hispano-americana
[vanguardista] e brasileira [modernista] da época tinham em comum o desejo de renovação
estética, a busca da originalidade e da ruptura com as estruturas do passado, em favor da
modelação de um perfil próprio. Seguiram-se várias gerações com propostas de recomposição
de valores e de configuração da nova estética, que se aprimoravam e se estabilizavam até
incorporarem-se dinâmica e definitivamente às práticas literárias do continente.
Nada, porém, se compara com a repercussão do boom da chamada nova narrativa
hispano-americana, nos anos 1960 e 1970 do século passado, quando se destacaram nomes
tanto da linhagem mais neo-regionalista (ou transcultural) como dos vanguardistas. Apesar da
efervescência, não se tem registro de nenhum nome feminino de destaque referente a essa
fase especial das letras latino-americanas. As mulheres permanecem à margem do processo.
Nessa época, as atividades intelectuais feministas empreendem um avanço
significativo no sentido de conter a expropriação do saber a que vinham sendo submetidas.
Sobre a especificidade do saber feminino, manifesta-se a socióloga e teórica feminista chilena
Julieta Kirkwood (1937-1985): “Se ha producido con respecto de las mujeres, como con otras
categorías marginadas, una expropiación del saber. Y tal vez por eso en ocasiones el saber
recreado por las mujeres presenta aires de ‘bricolage’: se toman conceptos de otros saberes y
contextos, atribuyéndoseles un sentido diferente.” (GUERRA, 1994, p. 185).
Com efeito, esse bricolage
25
converteu-se numa das características dos pós-modernos
anos 1980 e 1990, período também correspondente ao pós-boom, no sentido de reavaliar
25
Termo francês que significa, literalmente, um trabalho manual feito de improvisos e que aproveita toda espécie
de materiais e objetos. Nas modernas teorias da literatura, o termo passa a ser sinônimo de colagem de textos
ou extratextos numa dada obra literária, o que nos aproxima da idéia de hipertexto. Também serve para
traduzir uma prática dita pós-modernista de transformação ou estilização de materiais pré-existentes em novos
(não necessariamente originais) trabalhos. Nesta acepção, tanto podemos falar de bricolage de vários
elementos textuais em romances de vanguarda como Tristram Shandy (1759-67), do irlandês Laurence Sterne
(1713-1768), como em romances pós-modernos, por exemplo, Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel
García Márquez (Cf. CEIA, 2005, [s/d], vide r.m.e.).
42
conceitos desgastados como os de democracia, poder, espaços políticos e sujeitos políticos e
sociais. Como nos períodos precedentes, questiona-se a nova realidade e, além de buscar
transcender a questão da subordinação das mulheres, visa a um projeto de transformação
global da humanidade com a participação de todos os segmentos que a compõem. Assim,
procura-se desarticular a relação de dominação sustentada na divisão sexual/genérica que se
expressa tanto no âmbito público como no privado, tal como ampliar a concepção do que se
denomina política, com o propósito de nivelar relações reconhecidas como assimétricas,
mesmo porque o exercício do poder já não se reduz ao domínio público, mas desdobra-se em
todas as dimensões do tecido social, particular e coletivo.
Deste modo, as intelectuais latino-americanas buscam a renovação progressiva de seu
discurso crítico sobre os mecanismos da autoridade masculina que lhes infligem as
prerrogativas do silêncio e do anonimato. Neste sentido, elas têm obtido uma irreversível
inserção no contexto artístico-literário respaldadas por uma tomada de consciência sobre a
impositiva condição subalterna que problematiza ainda mais a já complexa temática da
identidade latino-americana estreitamente vinculada à idéia de “[...] reconhecimento
igualitário que adquiriu diferentes formas ao longo dos anos, antes de retornar sob a forma de
exigência de igualdade de status para as culturas e sexos”.
26
Embora a priori os debates em torno da questão identitária transitem entre uma
abordagem nacionalista – coletiva, portanto -, e outra mais individualizada, hoje em dia não
se reconhece a existência de uma identidade fixa, senão de identidades plurais, ou de
identificações, de caráter provisório, em função das mutações a que estão submetidas, com
ênfase no sujeito. E três seriam as concepções de sujeito aportadas por Stuart Hall (2002, p.
10) para descrever a evolução do conceito de identidade: o iluminista, o sociológico e o pós-
moderno.
Em linhas gerais, a concepção de identidade do sujeito do iluminismo parte do
princípio de que o indivíduo é “dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação”,
apto, portanto, a promover uma identidade individualizada, particular, associada ao ideal de
autenticidade ou de originalidade, noção esta que se fortalece com a emergência das
sociedades democráticas a partir do fim do século XIX. Por sua vez, o sujeito sociológico
apóia-se na noção de coletividade, endossada pelo nacionalismo moderno, que tem por
princípio um aspecto essencial da condição humana que é o “dialogismo”, já que “não
adquirimos as linguagens necessárias para a autodefinição de nosso eu; somo antes levados a
26
“[…] a politics of equal recognition, which has taken various forms over the years, and has now returned in the
form of demands for the equal status of cultures and of genders” (TAYLOR, 1994, p. 27).
43
elas por interação com as linguagens daqueles com quem vivemos e que de fato nos
importam”.
27
Para Hall, a identidade, implicaria uma inter-relação de indivíduos, portadores e
transmissores de valores, sentidos e símbolos, forjando o que ele denomina cultura. Presume-
se, portanto, que uma cultura se legitima pela relação dialógica entre indivíduos, entre
identidades que buscam seu reconhecimento perante o outro, numa confluência de modos de
ser, de agir, de pensar, de expressar-se. Esta noção de reconhecimento rege tanto os
movimentos nacionalistas como os movimentos identitários das minorias, já que estas passam
a reivindicar sua condição legítima de sujeitos representativos de uma cultura que deve tomar
por imprescindível a participação de todos seus segmentos constitutivos.
Na segunda metade do século XX, a partir de 1960, notam-se mudanças na
configuração do sujeito. Um sujeito qualificado de “pós-moderno”, cuja identidade esfacela-
se num mosaico de identidades múltiplas, contraditórias, deslocadas, em função da
confluência de elementos nacionais, culturais, sexuais, sociais, políticos, religiosos, entre
outros, na conformação do sujeito contemporâneo (Cf. HALL, 2002, p. 13), sempre
confrontado com a necessidade de reconhecimento, no âmbito individual ou coletivo, interno
e externo.
Diante disso, pressupõe-se que a reivindicação do reconhecimento parta daqueles
indivíduos ou grupos não reconhecidos por seus interlocutores, e que permanecem à margem
de um poder hegemônico, coercitivo, mantenedor de uma estrutura hierarquizada e
hierarquizante, excludente. Pertencentes a esse grupo de marginalizados, as mulheres vêm
progressiva e efetivamente integrando-se ao processo de construção identitária latino-
americana, tornando-se uma voz pertinente e de respeitabilidade nos diversos setores das
atividades político-culturais, não apenas no nosso continente, mas nos mais recônditos
territórios do planeta. Um processo que não se consolidará caso se mantiver encerrado em si
mesmo, obstruído por uma prática endógena, ao invés de cultivar o convívio eqüitativo entre
as diversidades, visto que esse pulsante sistema transcultural se rege cada vez mais pela
heterogeneidade, pela interação, pela mistura, sob pena de colidir com suas próprias
insuficiências e estancar-se, implodir, deixar de ser.
Desta maneira, passo a passo, as mulheres, além de coadjuvantes, já protagonizam
diversos movimentos culturais no sentido de, com voz própria, desfazer fronteiras para
interferir diretamente na contínua construção da identidade latino-americana, embora ainda
27
“[…] People do not acquire the languages needed for self-definition on their own. Rather, we are introduced to
them through interaction with others who matter to us […]” (ibidem, p. 32).
44
pesem sobre seus ombros as mais variadas formas de ditaduras, tácitas ou explícitas. Sua
produção artística, em geral, e literária, em particular, evolui e transita pelas fronteiras
nacionais e internacionais, para conquistar o reconhecimento da crítica e o interesse de
leitores em busca de outras vozes, periféricas, “marginais”, que convidam à decifração de
seus enigmas e ao deleite de suas evidências.
45
3.1 O COLONIALISMO: ENFRENTAMENTOS GEOPOLÍTICOS
Acredita-se que o olhar europeu ajudou a construir uma “nova consciência planetária”,
quando os primeiros conquistadores desbravaram o interior das colônias no até então
desconhecido continente americano. Através da literatura de viagens, a nova terra foi descrita
segundo o olhar do observador europeu, imbuído de conceitos, preconceitos e noções, que
reiteraram as informações e, ao mesmo tempo, as deformações por ela veiculadas. A despeito
das deturpações, os relatos então produzidos tiveram uma participação incisiva no processo de
identidade que o latino-americano passou a ter de si mesmo, na medida em que tais descrições
estabeleceram uma relação entre aquelas formuladas pelo europeu e a auto-imagem que o
latino-americano reformulou a partir desses relatos. Construía-se, assim, o conhecimento
acerca de um novo mundo, a partir de uma perspectiva européia ou europeizante.
O desafio da descolonização pressupunha a compreensão dos mecanismos através dos
quais este “conhecimento” foi construído - conforme as ambições econômicas e políticas no
momento em que foram acionados -, e avaliar a capacidade de absorção e de produção deste e
de outros conhecimentos. Tal procedimento visava à criação de dispositivos capazes de
desconstruir a relação assimétrica entre império e colônia, ao substituí-la por uma forma de
comunicação transcultural mais equilibrada e não hierárquica. Entretanto, essa equação
permanece inalterada, no sentido de que as Américas
28
, apesar das conquistas
independentistas, ainda convivem com um legado colonial, se não necessariamente pelo
aspecto político ou econômico, certamente o é pelo cultural.
O termo “pós-colonial” (assim como pós-nacional, pós-moderno, pós-guerra, pós-
Estado, pós-marxismo, pós-feminismo), autoriza um certo desengajamento da parte de
intelectuais metropolitanos (europeus e americanos), que renovam continuamente sua licença
para se fixarem como um centro que define o resto do mundo [ou do país] como periferia,
comumente desqualificada para afrontá-los. Por sua vez, a globalização, reconhecida como a
nova ordem mundial, tem sido acusada de ser um neo-imperialismo, respaldado pelo
predomínio da cor branca como parâmetro de beleza, pela irrefutável veneração dos latino-
americanos à cultura européia e pelos mitos metropolitanos que ainda seduzem o imaginário
dos “descolonizados”.
28
“Mesmo os Estados Unidos, um poder imperial inquestionável, continuam infectados por uma imaginação
colonizada. Em várias disciplinas acadêmicas, o eurocentrismo ainda persiste como um reflexo intelectual
tanto natural como inconsciente, e a autoridade intelectual e os recursos educacionais continuam sendo
distribuídos por linhas coloniais. [...]” (PRATT, 1999, p. 16).
46
Sabe-se que o processo de automodelagem latino-americana teve início no final do
século XVIII e o início do XIX, quando os intelectuais americanos selecionaram e adaptaram
os discursos sobre a América à necessidade de se criar culturas autônomas descolonizadas, ao
mesmo tempo em que tomavam os valores europeus como parâmetro civilizatório. Por sua
vez, outras instâncias de expressão (como a indígena, por exemplo) foram introduzidas nestes
discursos com o intuito de se esboçar uma dinâmica de auto-representação no contexto da
subordinação como um ato de resistência contra a dominação colonial.
Ainda no século XVIII, muitas das dramatizações sentimentais da zona de contato
29
foram geradas em razão dos movimentos abolicionistas, período em que sexo e escravidão
constituíam temas relevantes na literatura da época. Tais temas eram abordados nas narrativas
alegóricas que invocavam o amor conjugal como uma alternativa à escravização e à
dominação colonial, ou como versão recém-legitimada das mesmas. No decorrer da história
do eurocentrismo antigo e do tráfico de escravos, este tipo de literatura - também chamada de
literatura de sobrevivência - forneceu um contexto favorável para expressar configurações
alternativas, ao abordar assuntos-tabus dentro do contato transcultural.
O drama erótico (mais sugerido do que explícito, evidentemente) - há muito presente
na imaginação européia sobre a América - ganhava as páginas da ficção literária em que a
cultura periférica, sob a ótica metropolitana, era representada na figura da mulher nativa,
objeto do desejo erótico do europeu [ou de algum nobre local]
30
. Muitos casos de amor inter-
raciais na ficção da época consistiram na transformação romântica de um modo de exploração
sexual nas colônias, segundo o qual os homens europeus a serviço da metrópole compravam
mulheres locais de suas famílias para que elas lhes prestassem favores sexuais e domésticos
durante sua estadia no continente. Os ajustes podiam ser oficialmente sancionados por
cerimônias formais de pseudocasamento e o concubinato autorizado era considerado essencial
para a sobrevivência dos europeus, dado que as mulheres sabiam como preparar a comida e
manipular os medicamentos locais, além de cuidar de suas enfermidades quando eles
adoeciam (PRATT, 1999, p. 171). Ou seja, a mulher assumia a função beneficente de “nativa
protetora” que, por piedade, bondade espontânea ou paixão erótica, cuidava do europeu
sofredor e solitário numa terra estranha e selvagem.
29
Expressão utilizada por Mary Louise Pratt, comentada no segundo capítulo deste trabalho.
30
A título de exemplo, na narrativa romântica brasileira, cite-se a obra A escrava Isaura (1875), de Bernardo
Guimarães (1825-1884), escrita em plena campanha abolicionista e que explora precisamente este tema, uma
das mais polêmicas questões discutidas pela sociedade brasileira da época. A história gira em torno de Isaura,
escrava branca e educada, de caráter nobre, vítima de um senhor devasso e cruel (BARBOSA, [s/d], vide
r.m.e.). No romantismo cubano, encontramos Sab (1841), de Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873),
que abordava um conflito dramático entre um escravo mulato e a filha do patrão (BELLINI, 1986, p. 265).
47
Com os movimentos abolicionistas e as guerras americanas de independência
deflagrou-se a crise de legitimidade que exigia a formulação de mundos que transcendessem a
escravidão e a conquista militar. Nos enredos de amor transracial percebia-se como a
supremacia européia se garantia através dos laços sociais e afetivos, em que o sexo substituía
a escravidão; em que o amor romântico, e não a servidão filial ou a força, garantia a
submissão voluntária do colonizado – ou mais exatamente, da colonizada. A alegoria do amor
romântico apenas escamoteava a continuidade da exploração.
Se os enredos de amor transracial pretendiam articular “o ideal de harmonia cultural
através do romance”, este ideal só se configuraria na medida em que se consolidasse a
chamada “mística da reciprocidade”. Neste sentido, enquanto ideologia, o amor romântico
assemelhava-se ao comércio capitalista, em que o amor entre os pares deveria ser retribuído
na justa medida do valor estimado. A falta de reciprocidade, ou de equivalência entre as
partes, significaria a falência da relação. As trocas de presentes, por exemplo, poderiam
suscitar aspirações de comércio mercantilista entre a Europa e a América Latina, assim como
suscitar aspirações americanistas de valores igualitários, o que, na prática, forçaria um
desfecho em que a harmonia cultural estaria comprometida. Em outras palavras, os amantes
separavam-se, o europeu era reabsorvido pela Europa e o não-europeu morria
prematuramente. Assim, expurgava-se o perigo de “contaminação” do europeu em virtude da
relação com o colonizado.
O fim do domínio colonial implicou um amplo redimensionamento das relações entre
europeus e americanos, de modo que a Europa teve que reimaginar a América e a América, a
Europa. Durante os anos 1820, as revoluções latino-americanas - nas quais a Grã-Bretanha e a
França foram os maiores parceiros e financiadores - tornaram-se fonte de imenso interesse dos
europeus, por impulsionar as viagens estéticas, comerciais e científicas. Em meados dessa
década, pequenas comunidades de expatriados já começavam a se formar em muitas das
capitais sul-americanas, e a situação estava amplamente favorável aos empreendimentos
econômicos de todos os tipos. Simon Bolívar (1783-1830), numa carta de 1826 destinada a
Santander, um general aliado, chega a confirmar as altas esperanças que ele havia depositado
na Grã-Bretanha, “aquela senhora do universo”, com a qual pretendia assegurar a aliança para
garantir a “felicidade futura da América” (ibidem, p. 254). Todavia, as dificuldades
tecnológicas e logísticas do comércio e da indústria sul-americanas, sucateadas e
empobrecidas por anos de guerras e de descaso, comprovaram a precipitação do otimismo
bolivariano.
48
A penetração econômica européia readquiriu o ímpeto agressivo na segunda metade
do século XIX. A partir da década de 1850, o capital europeu, especialmente o britânico,
jorrou sobre a América Latina na forma de empréstimos para a construção de estradas de
ferro
31
e de rodagem, modernização de portos e de minas, e para o desenvolvimento de novas
indústrias. Resultado: no final da década de 1880, vários países, entre eles o Brasil, haviam se
tornado basicamente dependências econômicas da Grã-Bretanha, ou antes, dos investidores da
Bolsa de Valores Britânica (ibidem, p.255).
A trajetória em direção ao neocolonialismo foi antecipada por muitos escritores-
viajantes da era pós-independência latino-americana. Entretanto, ao invés de combater os
planos expansionistas europeus em seus escritos, esses intelectuais tendiam não só a discuti-
los, mas também a consagrá-los, como meio de acelerar a emancipação latino-americana,
sem, evidentemente, deixar de prover os interesses comerciais britânicos. Tais escritores
fariam parte da chamada vanguarda capitalista (idem), formado tanto por intelectuais
europeus, como latino-americanos. Este grupo adotou uma postura antiestética em seus
escritos, em favor de retóricas de conquista e de realizações mercantilistas. Era o pragmatismo
que se imiscuía na paisagem “selvagem” e “romântica” da América Latina. Nesta literatura, a
América Latina era apresentada como um território de obstáculos logísticos ao avanço dos
europeus, cuja meta apontava para o progresso, a partir de operações econômicas.
A natureza, antes retratada sob um prisma de exuberante beleza primitiva, agora tendia
a ser vista como incômoda ou desagradável, e o seu caráter primitivo demonstrava o fracasso
da audácia humana. A negligência passaria a constituir uma característica da latinidade,
transformada em argumento para justificar o intervencionismo estrangeiro. Diferentemente da
31
Cite-se entre os empreendedores brasileiros da época o Barão (ou Visconde) de Mauá (1813-1889). Industrial,
banqueiro, político e diplomata, foi um símbolo dos capitalistas empreendedores brasileiros do século XIX.
Pioneiro no campo dos serviços públicos, implementou companhias de navegação a vapor no Rio Grande do
Sul e no Amazonas; em 1852 implantou a primeira ferrovia brasileira, entre Petrópolis e Rio de Janeiro, e
uma companhia de gás para a iluminação pública do Rio de Janeiro, em 1854. Dois anos depois inaugurou o
trecho inicial da União e Indústria, primeira rodovia pavimentada do país, entre Petrópolis (RJ) e Juiz de Fora
(MG). Associado a capitalistas ingleses e cafeicultores paulistas, participou da construção da Recife and São
Francisco Railway Company; da ferrovia dom Pedro II (atual Central do Brasil) e da São Paulo Railway (hoje
Santos-Jundiaí). Iniciou a construção do canal do mangue no Rio de Janeiro e foi responsável pela instalação
dos primeiros cabos telegráficos submarinos, ligando o Brasil à Europa. No final da década de 1850, ele
fundou o Banco Mauá, MacGregor & Cia., com filiais em várias capitais brasileiras, em Londres, Nova York,
Buenos Aires e Montevidéu. Liberal, abolicionista e contrário à Guerra do Paraguai, tornou-se persona non
grata no Império. Suas fábricas passaram a ser alvo de sabotagens criminosas e seus negócios foram abalados
pela legislação que sobretaxou as importações. Em 1875, o Banco Mauá foi à falência. O visconde foi
obrigado a vender a maioria de suas empresas a capitalistas estrangeiros (vide r.m.e.).
49
apreciação de Humboldt
32
, a beleza encontrava-se tão-somente em cenários domesticados que
remetiam aos países europeus.
Acrescente-se que o fracasso da vida econômica latino-americana não era atribuído
apenas à indisposição ao trabalho, mas sobretudo à incapacidade de seu povo em racionalizar,
especializar e maximizar a produção. Sequer os latino-americanos de ascendência européia
(os chamados criollos, na América hispânica) eram poupados, especialmente os que viviam
no interior das províncias, criticados por não desenvolverem hábitos modernos de consumo.
Os nativos em geral eram considerados imundos e repulsivos, por partilharem pratos de
comida e outros utensílios de cozinha, além das camas; as acomodações consideradas toscas;
os cavalos, difíceis de serem obtidos, e os atrasos, constantes e insuportáveis.
A campanha difamatória tinha um propósito intrinsecamente comercial. Este seria o
discurso neocolonial da chamada “missão civilizadora”, segundo o qual os povos nativos
seriam incapazes de se igualar aos europeus ou de se transformar naquilo que os europeus
pretendiam que eles fossem. Ou seja, a vanguarda capitalista autodeclarava-se imprescindível
na condução do futuro das nações as quais procurava explorar, como uma espécie de
“inevitabilidade moral e histórica” (ibidem, p. 262). Tal raciocínio justificaria o jugo sob o
qual os povos latino-americanos deveriam ser mantidos, visto que sua liberdade e sua
independência contrariavam a necessidade de “reconhecimento da superioridade euro-
metropolitana”.
Partilhadas com os adeptos latino-americanos ao liberalismo urbano, estas aspirações
visavam à dominação política e ideológica após a independência. Na época, “independência”
consistia num conceito meramente figurativo da retórica improvisada nos meios intelectuais
latino-americanos. As palavras “descolonização” e “neocolonialismo” tampouco existiam, de
modo que descolonizar-se significava “embarcar num futuro que se encontrava muito além da
experiência das sociedades européias” (ibidem, p. 301), visto que elas careciam de
precedentes desta natureza para servir de respaldo aos americanos. Assim, as elites
encarregadas de construir as novas hegemonias na América Latina foram obrigadas a
imaginar outros modos de ação, além de reimaginar-se a si mesmas enquanto indivíduos e
cidadãos de uma América Latina que se queria independente e republicana.
32
Alexander von Humboldt e Aimé Bonplant encontraram uma estrutura social intrincada e uma conjuntura
histórica crítica quando aportaram na América do Sul, em 1799. Com o abrandamento das restrições às
viagens, houve um crescente número de viajantes europeus ao Novo Continente, assim chamado por
Humboldt, onde ele permaneceu como o interlocutor mais influente no processo de reimaginação e
redefinição que coincidiu com o período da pós-independência latino-americana. Ele foi considerado como o
“explorador mais criativo de seu tempo”; suas viagens americanas vistas como “um modelo de jornada de
exploração e um supremo triunfo geográfico” (Cf. PRATT, 1999, p. 195-196).
50
Se a tarefa dos homens era a de compor e possuir tudo o que os circundava, às
mulheres caberia, antes de tudo, compor e possuir a si mesmas. Sua reivindicação territorial
recaía então sobre o aspecto privado – um império pessoal – limitado às dimensões de seus
aposentos. A partir dali, elas emergiam para explorar um mundo em expedições “circulares”
que as introduziriam ao âmbito público, com suas novidades, para, posteriormente – se assim
o desejassem – voltar ao núcleo familiar, reconhecível. Uma autonomia que lhes exigiria
coragem, desprendimento e firmeza de opinião, para enfrentar as injúrias, o descrédito e, não
raro, as ridicularizações.
Relatos como os da franco-peruana Flora Tristan
33
(1803-1844) e os da inglesa Maria
Callcott Graham
34
(1786-1842) - que veio para a América do Sul com o marido, Thomas
Graham, capitão da marinha britânica -, preconizavam um certo “reformismo social”, que, no
entanto, acabaria por ser um modelo feminino de intervenção imperial na zona de contato.
Estes relatos se enquadrariam nas chamadas “feminotropias”, ou seja, episódios que
apresentavam mundos idealizados de autonomia, poder e prazer femininos (ibidem, p. 286).
Enquanto a vanguarda capitalista tendia a elaborar o enredo de seus relatos movidos por
fantasias de domínio e de transformação, as exploradoras desenvolviam enredos baseados na
busca da auto-realização e em fantasias também, mas de harmonia social. Para elas, a
reinvenção da América Latina coincidia com a reinvenção do eu [feminino] (ibidem, p. 289).
Ainda em meados do século XVIII, as mulheres costumavam publicar suas viagens de
maneira incidental, sob a forma de cartas, diários ou através da narrativa autobiográfica,
formato que se tornou canônico enquanto fonte autorizada de informação na era burguesa. A
pretensão de “autoridade” vinculava-se diretamente ao feminismo europeu de fim do século
XVIII e início do XIX, através do qual são expostas as necessidades por que passam as
mulheres em suas viagens ao exterior, além de exortar o público feminino a se educar através
dos contatos multiculturais que o deslocamento territorial propiciaria.
Por outro lado, estar em outro lugar produziria uma dinâmica de descoberta
transculturada, que não prescindiria de uma forte carga nostálgica e de sentimento de perda.
Este exílio – premeditado ou não – contextualizava o observador e criava a alteridade entre
33
Flora Tristan tornou-se uma das figuras mais proeminentes do socialismo francês pré-marxista, e foi fundadora
do Sindicato dos Trabalhadores. Nos anos 1930, a líder socialista peruana Magda Portal a homenageou numa
biografia saudando-a como a precursora do feminismo socialista. Hoje, seu nome identifica uma das mais
influentes instituições feministas peruanas, o Centro Flora Tristan, em Lima. (PRATT, 1999, p. 268, 270). A
propósito da precursora, Simone de Bauvoir declara em seu Segundo Sexo, que Flora Tristan acreditava na
redenção do povo pela mulher, mas que se interessava mais pela emancipação da classe operária do que pela
de seu sexo (BEAUVOIR, [s/d], p. 127).
34
Autora de Voyage to Brazil (Viagem ao Brasil) e Journal of a Residense in Chile (Diário de uma estada no
Chile), de 1822 (PRATT, 1999, p. 268, 270).
51
aquele que observava e o que era observado, de modo que as diferenças culturais afluíam
vertiginosamente. A partir daí se determinaria a polarização das relações demarcadas pelo
NÓS – selvagens e subdesenvolvidos -, e ELES – civilizados e desenvolvidos. A “barbárie” -
representada pelos índios, escravos e ex-escravos, as tradicionais autocracias coloniais
conservadoras e religiosas, e a mistura entre as três - era vista como uma ameaça ao projeto
modernizador e invariavelmente responsabilizada pela incapacidade dos latino-americanos de
se “espelharem” na eficiência da civilizada e insuperável Europa. Neste sentido, as teorias do
determinismo ambiental
35
(ibidem, p. 317) continuaram a ser aplicadas aos habitantes
mestiços, em especial aos do interior das províncias, de forma a subjugá-los com o
predomínio da força bruta, do autoritarismo e da justiça sem processos ou debates. Por sua
vez, a miscigenação era considerada conseqüência da violência colonial que pilhou seres
inferiores, cuja condição de inferioridade viabilizou facilmente a conquista européia.
Em contraste com a apropriação pura e simples da estética e da ciência européias,
houve intelectuais latino-americanos dissidentes que projetaram na paisagem dramas morais e
cívicos, com o propósito ideológico de legitimar a hegemonia local, não apenas contra o
domínio luso-espanhol, mas também contra o imperialismo inglês e francês. Não obstante, na
década de 1820, houve independentistas que se posicionaram contra os freqüentes levantes
populares promovidos pela população oprimida, o que deflagrou respostas imediatas com
margem para a prática de genocídio, etnocídio, exploração de mulheres e toda sorte de
violência (ibidem, p. 319).
Reprimida e extenuada, a grande massa populacional continuaria subjugada para
manter os privilégios da elite euro-americana, de maneira que para os povos indígenas, os
escravos, os setores mestiços e pardos sem privilégio, e mulheres de todos esses segmentos, as
guerras de independência e suas conseqüências ratificariam, na maior parte dos casos, o
domínio metropolitano (europeizado) e masculino. Surgem daí os latifúndios, o trabalho
assalariado, a prostituição e outras tantas contradições internas que não poderiam ser
eliminadas facilmente por aqueles que buscavam estabelecer valores anticoloniais e
igualitários. Políticos e intelectuais empenhados na independência sentiam-se desconfortáveis
diante da falta de saneamento, de higiene, de educação – virtudes sociais que os europeus
detinham e que seriam úteis para salvar a América da “esterilidade primitiva”.
35
São teorias segundo as quais as condições ambientais, principalmente as climáticas, determinariam o
comportamento do ser humano, cuja capacidade de progredir estaria diretamente relacionada às áreas com
climas mais favoráveis. O calor intenso das regiões tropicais não as enquadrava entre as mais promissoras.
52
A despeito do deslumbramento latino-americano com relação à Europa, quando as
elites letradas do continente refletiram sobre a emergente sociedade latino-americana, elas não
assumiram de todo a perspectiva intervencionista e industrial da vanguarda capitalista. De
fato, os europeus foram lidos e traduzidos na América Latina pelos intelectuais latino-
americanos, porém estes foram desafiados a repensar as relações com a Europa. Seria
fundamental forjar modos de autocompreensão para as repúblicas em vias de consolidação em
todo o continente, a fim de que se legitimassem como classes dirigentes e projetassem sua
hegemonia em direção ao futuro. Além disso, seria preciso imaginar outras possibilidades
para o experimento histórico com o qual estavam envolvidos, a fim de se garantir a sua
autenticidade. Entretanto, uma vez traçadas as coordenadas necessárias, o método escolhido
para levá-las a cabo foi a adoção sistemática de uma estética utópica americanista codificada
pelo alemão Humboldt, que ironicamente a havia encontrado, em parte, nessas mesmas elites.
Em contrapartida, seria errôneo e precipitado afirmar que a estética latino-americana
(mesmo em suas dimensões neocoloniais) tenha sido mera imitação ou uma reprodução
mecânica dos discursos europeus. Antes, as representações locais seriam um produto da
transculturação dos materiais europeus, selecionados e empregados de forma a não reproduzir
fielmente as visões hegemônicas européias e nem legitimar incondicionalmente os desígnios
do capital europeu. Ao que parece, existia um discurso “democratizante”, em contraste com
uma postura ainda aristocrata, de vestígios coloniais, da intelectualidade latino-americana.
Esta contradição interna do latino-americano – homens e mulheres – com relação ao
europeu ou ao metropolitano fez-se patente ao introjetar em seu imaginário a condição de
“marginal”, de “inferior”. Ao deparar-se com a metrópole, o latino-americano [ou o habitante
do interior das províncias] costuma recuperar a chamada “mensagem da fronteira” (ibidem, p.
325), a partir da qual ele lê que a imagem (ficção) do europeu sobre a América Latina é a sua
realidade; o que para o europeu é exótico (um mundo ex-cêntrico) é o seu cotidiano, e o
passado europeu é o seu presente. Em outras palavras, a realidade latino-americana insere-se
numa dimensão anacrônica em que as imagens ou episódios inusitados são aceitos com
naturalidade ou resignação, ou mesmo com certa comicidade – algo incompreensível para o
civilizado Primeiro Mundo, sempre centrado em si mesmo como referência universal.
No final dos anos 1970 do século passado, os hábitos positivistas de leitura cediam
lugar aos estudos interpretativos, e os elitismos eurocêntricos perdiam força em favor dos
pluralismos pós-coloniais. Na década seguinte, iniciam-se os realinhamentos globais e as
turbulências ideológicas, quando eclodiram intensas lutas institucionais que discutiam
justamente o legado do euroimperialismo, do androcentrismo e a supremacia branca. Por um
53
lado, redimensionava-se o papel do eurocolonialismo e suas conseqüências, de maneira que,
no âmbito da cultura “oficial”, renovaram-se narrativas [inclusive fílmicas]
36
que, se por um
lado, celebravam a superioridade européia, por outro, ratificavam uma contra-história, ao
resgatar costumes e consolidar as lutas por território e autonomia das ex-colônias. Para isso,
intelectuais foram convocados para definir - ou redefinir – sua relação com as estruturas de
conhecimento e poder, tendo em vista a continuada ambição imperial que evidenciava a
enorme força histórica exercida pelas ideologias européias relacionadas à posse territorial e
global.
Na era pós-colonial, a América Latina passa por um acelerado processo de
modernização, de industrialização e de crescimento urbano, o que, a princípio, dispensaria a
intervenção astuta e aperfeiçoadora de países europeus ou do bem-sucedido “vizinho do
Norte”, os Estados Unidos. Não obstante, aos olhos desses países, as regiões e os latino-
americanos tornaram-se conglomerados de incongruências, assimetrias e de toda sorte de
perversões, que vieram a constituir a base conceitual de “Terceiro Mundo”. Ou seja, longe (ou
livre) do “protecionismo” paternalista e explorador de outrora, a América Latina comprovava
a sua inépcia em autogerir-se (para utilizar um termo mercantilista). Para confrontar tais
premissas desabonadoras, seria necessário ousar, desobedecer, insurgir contra as forças
externas e internas, às quais interessava este estado de subserviência moral, econômica,
cultural e – por que não – sexual de seus povos. Neste caso, a atuação das mulheres, em
especial das latino-americanas, tem um papel de importância estratégica na reformulação das
relações pessoais e transnacionais.
36
Filmes dos anos 1980, como Entre dois amores (Out of Africa, 1985), Passagem para a Índia (A passage to
India, 1984) e Greystoke – a lenda de Tarzã, o rei da selva (Lord Greystoke, 1984) servem de exemplo da
nostalgia imperialista que sempre procurou atribuir o fracasso da modernização nas antigas colônias à
incapacidade de seu povo em formulá-la sob os moldes ocidentais.
54
3.2 O PATRIARCADO: ENFRENTAMENTOS DE GÊNERO
Uma visão panorâmica do movimento feminista
37
revela que, na sua evolução
histórica, os anos 1970 e 1980 do século passado constituíram o período em que as
reivindicações fizeram-se mais enfáticas e explicitamente voltadas para os interesses da
mulher. No período subseqüente, as mobilizações já não se configuravam de forma tão
ruidosa. Não obstante, no início do século XIX, embora as mulheres fossem exploradas mais
do que qualquer trabalhador do outro sexo, de um modo geral o movimento reformista que se
desenvolveu à época favorecia o feminismo, ainda que de forma pontual. Além da luta
favorável ao sufrágio feminino
38
, as feministas européias engajavam-se na luta a favor da
abolição da escravatura, questões sociais com as quais se identificavam. No transcurso dos
séculos XIX e XX, as feministas empenharam-se em campanhas contra o racismo, valendo-se
do argumento segundo o qual os valores e estratégias utilizados pelo opressor para
marginalizar o negro seriam os mesmos de que ele se servia para subjugar as mulheres.
Todavia, dentro do movimento dos direitos civis, as mulheres sentiram-se traídas ao
comprovarem que os abolicionistas - negros ou brancos - negavam-se a estender às mulheres
os seus ideais libertários. Tal postura reacionária contribuiu para o afastamento de muitas
mulheres dos grupos de libertação controlados por homens: havia discrepância entre o
compromisso pela igualdade dos homens e o comportamento sexista frente a seus
“camaradas” do sexo feminino (MOI, 1988, p. 35). Para obter melhores resultados na sua
batalha política e cultural, as feministas procuraram atuar a favor de mudanças institucionais a
partir de várias frentes de ação, entre as quais, destacava-se a produção e a crítica literárias
escritas por mulher. Entre outras referências, destacam-se A room of one’s own [Um teto todo
seu] (1928), de Virginia Woolf, e Le deuxiéme sexe [O segundo sexo] (1949), de Simone de
Beauvoir.
Nos anos 1960 do século passado, o feminismo surge como força política no mundo
ocidental. Mulheres, como Betty Friedan, demonstram seu descontentamento no cerne da rica
sociedade norte-americana do pós-guerra. Década incendiária, nela surgem as primeiras
iniciativas para uma melhor organização das mulheres, com propostas de ativistas em prol dos
37
Simone de Beauvoir afirma ter sido Léon Richier o verdadeiro fundador do feminismo, ao criar em 1869 Les
Droits de la Femme e organizar, em 1878, um congresso internacional que abordava esses direitos
(BEAUVOIR, [s/d], p. 158).
38
A despeito da improcedência das objeções dos antifeministas, as francesas conquistaram todas as suas
capacidades políticas somente em 1945. Às inglesas, o direito de voto foi concedido primeiramente em 1918,
de maneira restrita, e em seguida, em 1928, sem restrições (Cf. BEAUVOIR, [s/d], p. 161-162). Consta que,
no Brasil, a primeira mulher a votar foi Celina Guimarães Viana, de Mossoró, no Rio Grande do Norte, em
1927, embora os paulistanos reclamem para si tal pioneirismo; no entanto, somente em 1946, a mulher
brasileira teve direito ao voto sem restrições (vide r.m.e.).
55
direitos civis para a mulher, e, mais tarde, em ões de protesto contra a guerra do Vietnã. No
final da década, elas começam a formar seus próprios grupos de liberação como complemento
e como alternativa às demais frentes da luta política com as quais estavam comprometidas.
Isto fez com que, no início dos anos 1970, diversas tendências políticas distintas surgissem
dentro do movimento feminista, com facções e dissidências que se desenvolveram no decorrer
da década. Havia, por exemplo, a facção liberal que reivindicava igualdade de acesso à ordem
simbólica de dominação; havia o feminismo radical, que apregoava a exaltação da feminidade
e propunha – ao contrário da facção anterior - a ruptura com o modelo masculino de
dominação; e a que defendia a negação da dicotomia metafísica entre o masculino e o
feminino (MOI, 1988, p. 26). De qualquer maneira, o feminismo enquanto movimento formal
sempre pareceu estar associado, ou antes, comprometido com outras causas políticas e sociais,
ao identificar-se, aproximar-se ou valer-se das questões paralelas de maior evidência em
determinado momento, embora não deixassem de ser legítimas. Na América Latina, região
marcada por notórias desigualdades sociais e econômicas, o feminismo procurou engajar-se
na “luta geral” por justiça contra os modelos de “capitalismo selvagem” implantado pelos
militares, as elites políticas civis, seus aliados imperialistas e da classe dominante, desde a
década de 1960. A maioria evitou imiscuir-se no cenário político convencional – considerada
excludente, opressiva e inimiga de todas as reivindicações de justiça social -, para trabalhar
junto a mulheres dos setores populares que constituíam o que mais tarde viria a ser conhecido
como “movimento de mulheres” (Cf. ALVAREZ, 2000, p. 387).
Muitas ingressaram em organizações clandestinas de esquerda, partidos legais de
oposição, em sindicatos combativos e movimentos pelos direitos humanos. Entretanto, como
a política dominante e grande parte da esquerda militante e intelectual estavam permeadas
pelo sexismo, uma vasta parcela das feministas percebeu a opressão das mulheres como um
fator cultural, dentro dos espaços e discursos públicos e privados – inclusive os da oposição,
dominado por homens, onde as questões de interesse das mulheres eram relegadas à margem
das transformações estruturais e institucionais em foco. Ao identificarem como machista e
militarista a cultura política hierárquica, então dominante na esquerda, as feministas
perceberam a necessidade de inventar “novas maneiras de fazer política”, e que sua luta
deveria ser travada também no âmbito da vida cotidiana, das relações interpessoais e sociais, e
no da “conscientização”, sem deter-se exclusivamente na abordagem das estruturas e
instituições de dominação (ibidem, p. 387-388).
No alvorecer dos anos 1980, grande parte das feministas atuava no âmbito acadêmico,
mas elas acabaram surpreendidas por uma luta de ordem profissional por postos de trabalho e
56
por promoção. Havia um conflito, ora real, ora aparente, entre as diretrizes de trabalho, de
modo que o compromisso de revisão política assumido por cada uma delas acabava por
repetir, de maneira distinta, as obras de críticas feministas da década anterior. Kate Millet
teria sido a única crítica que conseguiu preencher o vácuo entre a crítica institucional
(acadêmica) e não institucional, com uma tese de 1969, Sexual Politics, publicada em 1970,
que causou grande impacto entre um público de alcance mundial, dentro e fora do movimento
da mulher, inclusive nas gerações seguintes (MOI, 1988, p. 37). Na América Latina, as
feministas adotaram práticas menos hierárquicas e evitaram cada vez mais os esquemas de
representação em nome de seu grupo feminista, partido ou organização de classe, para
enfatizar o “falar por si mesma” de cada mulher. Ser feminista passou a significar ter uma
política centrada num conjunto de questões específicas das mulheres, que incluía agir em
certos espaços públicos (como em organizações feministas autônomas) para aprofundar a
análise da opressão de gênero e, no movimento de mulheres ainda mais amplo, promover a
consciência dessa opressão (ALVAREZ, 2000, p. 389).
Nos anos 1990, o campo da oposição de linha esquerdista em que o feminismo esteve
inicialmente inserido tornou-se mais diversificado em seus discursos e práticas, o mesmo
ocorrendo com os movimentos feministas. Na América Latina, os feminismos passam a
participar com maior veemência (ainda que um tanto marginal) do festejado fenômeno do
final do século XX, a chamada “sociedade civil global” ou a transnacionalização dos
discursos e práticas dos movimentos (ibidem, p. 385). No Brasil, com a reconquista da
democracia eleitoral e do discurso liberal sobre direitos, houve um espaço maior para a
articulação de uma política feminista, em que se propunha um “descentramento” [sic]
significativo das práticas feministas contemporâneas na América Latina (ibidem, p. 390-391).
Embora desde as duas últimas décadas do século passado tenha sido apregoado o fim das
ideologias e tenha se confirmado a descrença nos discursos contestatórios, o pensamento
feminista ganha fôlego para impor-se como uma tendência teórica de forte potencial crítico e
político. Um reconhecimento que ocorre curiosamente numa época de ascensão do pluralismo
neoliberal em que as reivindicações tradicionais de cunho feminista teriam se desgastado por
seu anacronismo. Não obstante, ao contrário da suposta desqualificação, percebe-se um
crescente interesse com relação às teorias feministas e a identificação de uma recorrente
presença da voz feminina como um traço significativo da cultura contemporânea ou pós-
moderna (HOLLANDA, 1994, p. 7).
Em contrapartida, se antes as feministas ressentiam-se de um posicionamento mais
incisivo e solidário das mulheres com relação aos movimentos que procuravam defender seus
57
direitos, não é de se estranhar a dificuldade maior encontrada nas décadas seguintes para se
levar adiante tais propósitos – pelo menos, nos moldes anteriores. Ao que tudo indica, as
mulheres – assim como a sociedade em um todo – têm se conduzido por uma rota mais
individualista, característica que se recrudesceu a partir da última década do século passado,
para promover uma revolução individual em que cada uma assume os próprios riscos e custos
da empreitada. Uma postura que vai de encontro à condição de submissão que lhe foi imposta.
Consta que foi mediante algum acontecimento histórico significativo que demarcou a
subordinação de um elemento mais fraco a outro, supostamente mais forte. Conforme Simone
de Beauvoir ([s/d], p. 12), esta teria sido a condição primária que conferiu uma relação de
domínio e de subordinação entre, por exemplo, os conquistadores e os colonos, os senhores
brancos e os escravos negros, com a introdução da escravatura no continente americano. A
desigualdade numérica (e acrescente-se, econômica e de tecnologia bélica) constituiu um fator
preponderante para uma determinada maioria perseguir ou impor sua lei à minoria. Esta,
porém, não seria uma prerrogativa passível de se aplicar às mulheres, visto que, além de não
se constituírem como uma coletividade à parte, nenhum fato histórico serviu-lhes de
justificativa para conferir-lhes o estatuto de cidadania de segunda categoria, de “segundo
sexo”, em relação aos homens. Sua dependência não teria decorrido de um evento ou de uma
evolução, mas por sua estrutura fisiológica, ou mais exatamente, anatômica. Ainda segundo
Beauvoir, outro dado a ser ressaltado consistiria na incapacidade das mulheres de reunirem
meios para formar uma unidade solidária, um partido de oposição contra o opressor. Elas
tampouco teriam um passado, uma história, nem uma religião própria, e, ao contrário dos
proletários, não disporiam de um aparato formal que defendesse seus interesses contra o jugo
androcêntrico.
Neste aspecto, caberia ressaltar a condição duplamente desfavorável das mulheres
latino-americanas, que estaria relacionada ao aspecto não só cultural, de acordo com a
perspectiva de Beauvoir, como também histórica, por terem sido, tal como os latino-
americanos homens, alvo do colonialismo europeu. Apesar dessa distinção, que distingue uma
perspectiva européia (Beauvoir era francesa) de uma latino-americana, não se pode negar que,
de um modo geral, sem um objetivo libertário específico, as mulheres viveriam dispersas
entre os homens, ligadas a eles pelo seu habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos,
pela condição social vinculada a homens – em geral, pai ou marido –, umas mais
estreitamente do que outras. As burguesas seriam solidárias aos burgueses, não às mulheres
proletárias; as brancas, aos homens brancos, não às negras, pois, como moeda de troca, os
seus opressores ofereciam-lhes proteção, estabilidade econômica (quando dispunham) e meios
58
de subsistência, sem necessidade de lutarem por estes e outros “privilégios”. Portanto, o que
se evidencia na disparidade da relação entre a mulher e o homem situa-se na dependência
econômica, em que ela desempenha o papel de serva e ele, o de senhor, a quem, por sua vez,
não interessa alforriá-la por considerá-la indispensável à manutenção de seu poder de
comando. Em outras palavras, existiria uma real necessidade recíproca entre as partes, embora
em condições alarmantemente desfavoráveis à mulher.
A despeito de uma suposta divisão demasiado rigorosa de papéis, é inquestionável que
os dois sexos jamais partilharam o mundo em igualdade de condições. Mesmo que os direitos
da mulher tivessem sido gradualmente reconhecidos, através das então organizadas lutas
reivindicatórias deflagradas a partir dos anos 1960, um longo hábito discriminatório ainda
impede que encontre nos costumes sua expressão plena. O homem continua a pensar e a agir
como sendo o único e legítimo dono do planeta, sobre cujas terras todos os demais seres
estariam sob seu domínio, entre eles, a mulher. Por sua vez, a passividade, a alienação e a
permissividade fariam da mulher uma presa fácil, pois esta postura evitaria a angústia e a
tensão de assumir sua existência na totalidade, preferindo perpetuar-se na confortável situação
de outro, de objeto.
Neste sentido, a visão androcêntrica faz-se continuamente legitimada por práticas
determinadas também pela mulher, visto que ela incorpora os preconceitos contra ela mesma,
instituídos na ordem das coisas. Esta seria a “lógica da maldição”, defendida por Bourdieu
(1999, p. 44), no sentido profundo do que ele chama de self-fulfilling prophecy [profecia da
auto-satisfação] pessimista em que a mulher provoca os resultados da profecia por ela
prognosticada. Ela seria cúmplice da própria subserviência cotidiana: a ela são relegadas as
tarefas consideradas inferiores e as providências domésticas mais ingratas, ou condutas pouco
compatíveis com a “dignidade masculina”. E exatamente por isso, não raro, a mulher é
reprovada por sua “estreiteza de espírito” e única culpada por algum eventual fracasso nos
empreendimentos a ela confiados, sem, em contrapartida, ser-lhe conferido o devido mérito,
exclusivo, em caso de incontestável êxito
39
.
Assim, já não seria de muita valia discutir o caráter histórico ou a-histórico da
dominação masculina, visto que, no caso da mulher latino-americana, esta dominação viu-se
39
Não por coincidência, pode-se verificar postura semelhante adotada pelos chamados “terceiro-mundistas”
através do costume de qualificarem com a expressão “coisa de Primeiro Mundo” os resultados
reconhecidamente bem-sucedidos dos empreendimentos locais, de qualquer natureza. Assim como a visão
androcêntrica, essa expressão convalida a suposta incompetência latino-americana em conduzir-se por si
mesma, conforme a tão depreciadora visão eurocêntrica ou, mais amplamente, primeiro-mundista. Credita-se
a eles ou como próprio deles aquilo que foi produto da inventividade, da criatividade e da competência
nativas: um exemplo tácito da disposição colonial que ainda permeia a mentalidade latino-americana.
59
imantada pelo processo histórico de dominação eurocêntrica. Portanto, ambas as estruturas de
dominação se manteriam mediante a reprodução incessante desta prática, para a qual
contribuem agentes específicos (entre os quais, evidentemente, os próprios homens, com sua
violência e despotismo) e instituições como a Família, o Estado, a Igreja e a Escola. Por sua
vez, os dominados aplicariam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às
relações de dominação, de modo a aceitá-las como “naturais” (ibidem, p. 46-47). Surgiria daí
uma espécie de autodepreciação sistemática, perceptível em representações sexuais, culturais
e mesmo estéticas, em que costumam prevalecer os valores canônicos impositivos em suas
várias manifestações, como nas artes em geral, na moda (com relação às medidas do corpo,
por exemplo), nas tarefas domésticas
40
e inclusive na escolha do parceiro
41
. Inverter ou
romper tais pressupostos implicaria no rebaixamento da parte dominadora, o que, no caso da
mulher, consistiria em diminuir-se a si mesma ao concordar ou “provocar” a diminuição de
seu homem.
Esta atitude de rebaixamento voluntário da mulher com relação ao homem em prol da
harmonia do casal, seria reflexo da necessidade de se preservar a “dignidade” do macho. Uma
dignidade reconhecida a priori por ele, que quer tê-la universalmente reconhecida, e também
por ela [a mulher], que só poderia querer e amar um homem cuja dignidade estivesse
claramente afirmada e atestada no fato de que “ele a supera” visivelmente (ibidem, p. 48).
Entretanto, vale acrescentar que a mulher que mais tem se mostrado submissa ao modelo
convencional de relação provém da classe de menor poder aquisitivo, porquanto o casamento
continuaria a ser para ela o meio privilegiado de se obter uma posição social e de resguardar-
se da pobreza. Esta dependência, porém, tendeu a minimizar-se na medida em que se
constatou o acesso mais efetivo da mulher ao trabalho profissional – inclusive como um fator
preponderante de seu acesso ao divórcio ou mesmo de optar pela vida celibatária (não
necessariamente assexuada). Isto quer dizer que, para contrariar a representação tipicamente
romântica, a inclinação amorosa não estaria isenta de uma forma de racionalidade que
consistiria, em muitas ocasiões, no que Bourdieu nomeia de amor fati, isto é, “amor ao
40
O principal obstáculo à divisão do trabalho doméstico reside no fato de que as tarefas domésticas são vistas
como algo que não cabe a “homens de verdade”, e que há mulheres que preferem ocultar a ajuda recebida do
marido por receio de diminuí-lo (BOURDIEU, 1999, p. 47).
41
Bourdieu menciona que numa dada pesquisa, constatou-se a preferência das mulheres [francesas] por homens
mais velhos e mais altos que elas, justificada como índice de maturidade e garantia de segurança (p. 47-48).
Entre nós, não só é possível chegar a essa mesma constatação, como também detectar a supervalorização de
crianças com traços europeus, como olhos azuis, cútis e cabelos claros, como índice de beleza e de
ascendência européia, por mais remota que seja.
60
destino social”
42
. Seja como for, a lógica paradoxal da dominação masculina e da submissão
feminina que parece ser, a um só tempo, “espontânea” e “extorquida”, só seria compreendida
de maneira mais ampla, na medida em que mulheres e homens atentassem aos efeitos
duradouros que a ordem social exerce sobre ambos.
Tais efeitos seriam oriundos de uma força “simbólica” equivalente a uma forma de
poder exercida sobre os corpos [e as mentes], diretamente, e como que por “magia”, sem
qualquer coação (ibidem, p. 50). Contudo, essa magia faz-se efetiva somente quando apoiada
por um trabalho prévio de “introjeção” e de “incorporação” para operar a “transformação
duradoura” dos corpos e mentes, e assim produzir as disposições permanentes que essa força
desencadeia. Tanto mais poderosa faz-se essa força quando exercida de maneira invisível e
insidiosa através da insensível familiarização com um mundo físico simbolicamente
estruturado e da experiência precoce e prolongada de interações permeadas pelas estruturas de
dominação (ibidem. p. 51). Ou seja, o aparente atavismo que permeia a relação de dominação,
e que faz com que muitos e muitas adotem a cômoda e conivente postura do “sempre foi
assim”, se deve a um sutilíssimo mecanismo composto de engrenagens dispostas no sentido
de manter a situação exatamente como está, perpetuando-a inclusive com a aquiescência
dos(as) dominados(as). Em síntese, pode-se afirmar em linhas gerais que o hábito é capaz de
gerar “verdades irrefutáveis”.
De um modo geral, a “submissão encantada” da mulher constitui o efeito característico
de uma “violência simbólica”. A revolução que o movimento feminista tem perseguido não se
reduz a uma simples “iluminação” das consciências e das vontades, pois de nada valeria
esclarecer as consciências sem romper a relação de cumplicidade que os dominados ainda
mantêm com os dominantes. A meta, portanto, consistiria na transformação das condições
sociais de produção e de reprodução das disposições que levam os dominados a adotarem,
sobre os dominantes e sobre si mesmos, o ponto de vista dos dominantes. A esse respeito,
consta que na base de toda ordem social situa-se o “mercado matrimonial”, terreno
privilegiado onde a mulher é reduzida a um objeto, que, de antemão, devesse atender ao ideal
masculino de “eterno feminino” (MOI, 1988, p. 65), ou seja, angelical, passiva, dócil,
sorridente, simpática, atenciosa, discreta e contida (ou mesmo invisível).
42
“[...] inclinação a realizar uma identidade constituída em essência social e assim transformada em destino.
[...]” (ibidem, p. 49 e 63).
61
A causa dessa idealização reside no medo do homem de deparar-se com o seu reverso,
o lado “obscuro” da fêmea, onde o anjo transforma-se em monstro. O monstro-mulher
43
que
não renuncia à sua própria personalidade e opinião, tem iniciativa, tem uma história para
contar e rejeita o papel eternamente secundário que o homem lhe impõe. Em outros termos, a
exaltação dos valores masculinos que depreciam os femininos encontra sua contrapartida nos
temores e angústias que a feminilidade suscita: consideradas vulneráveis, expostas à ofensa,
as mulheres demonstram a sua força em tudo o que representa as armas da fraqueza, como a
astúcia diabólica e a magia, e na potencial capacidade de prognosticar o futuro. Esta situação
contribuiria para fazer do ideal de virilidade o princípio de uma enorme vulnerabilidade não
feminina, mas masculina (Cf. BOURDIEU, 1999, p. 65).
Neste aspecto, para comprovar a sua virilidade em oposição à vulnerabilidade, o
homem necessita provar a si e aos “companheiros” a sua coragem. Uma coragem que, muitas
vezes, tem suas raízes numa forma de covardia: a vontade de dominação, de exploração ou de
opressão baseou-se no medo “viril” de ser excluído do mundo dos “homens” sem fraquezas,
dos que são às vezes considerados “duros” por não se sensibilizarem com o próprio
sofrimento e sobretudo com o sofrimento alheio. Seria a mesma conduta adotada por
assassinos, torturadores e chefes de todas as ditaduras e de outras “instituições totais”, como
as prisões, as polícias, as escolas ou os internatos, em suas provas de coragem corporal, como
também os patrões, que costumam manifestar o seu domínio ao humilhar ou, sem justa causa,
atirar ao desemprego os seus subordinados. Ao que parece, portanto, a virilidade consiste
numa noção “relacional” (ibidem, p. 67), construída diante dos outros homens, para os outros
homens e contra a feminilidade, para escapar a uma espécie de medo do feminino, e
construída, primeiramente, dentro de si mesmo.
Segundo a perspectiva de Bourdieu (1999, p. 69), tal concepção androcêntrica do
mundo seria resultado de uma “arqueologia histórica do inconsciente” construída num estágio
muito remoto e arcaico das sociedades, permanente em cada um de nós, homem ou mulher.
Assim, o inconsciente histórico não estaria vinculado a uma natureza biológica ou psicológica
(como a diferença entre os sexos segundo a psicanálise freudiana, por exemplo), mas a um
trabalho de construção propriamente histórica, e, portanto, suscetível de ser modificado
mediante a transformação das condições igualmente históricas de produção e de reprodução
43
Na literatura, há diversas personagens que representam as deusas-bruxas, como a Esfinge, a Medusa, Circe,
Kali, Dalila, Salomé. Todas possuem o que Moi (1988, p. 69) chama de “arte dual” que lhes permite seduzir
os homens e roubar-lhes a energia criadora. Ainda segundo Moi, existiria a “mulher dual”, cuja consciência
seria permeável ao homem, de modo a deixar que se introduza em sua mente o pensamento fálico masculino,
tal como Lilith e a Rainha da Branca de Neve, exemplos de monstro-mulher na imaginação masculina.
62
essencialmente paternalistas. Trabalho este garantido, ainda hoje, por meio das já
mencionadas instâncias principais como a Família, a Igreja, a Escola e, de uma maneira
particular, o Estado - todas articuladas objetivamente no sentido de agirem sobre as estruturas
do inconsciente para a manutenção do status quo paternalista.
Enquanto primeiro núcleo social no qual se insere o sujeito, a Família constitui a
principal instituição para a reprodução da dominação e da visão masculinas, pois nela se
estabelece precocemente a noção de divisão sexual do trabalho, garantida pelo direito e
também inscrita na linguagem. Quanto à Igreja, deliberadamente marcada por um profundo
antifeminismo, esta sempre procurou introjetar uma moral “familiarista”, dominada por
valores patriarcais e sobretudo pelo dogma da inata inferioridade feminina. Além disso,
também age indiretamente através dos referentes simbólicos dos textos sagrados, da liturgia e
até do espaço e do tempo religiosos (marcado pela correspondência entre a estrutura do ano
litúrgico e a do ano agrário
44
).
Por sua vez, o Estado consegue reforçar as determinações do patriarcado privado com
as de um patriarcado público, a partir das instituições encarregadas de gerir e de regulamentar
a vida cotidiana da unidade doméstica. Tanto nos estados autoritários, como nos
democráticos, a família patriarcal consiste no princípio e modelo da ordem social e moral,
fundamentada numa concepção conservadora e, obviamente, androcêntrica. Paralelamente, é
comum o Estado reproduzir na sua própria estrutura a divisão arquetípica entre o masculino e
feminino, ao confiar a homens os cargos administrativos e financeiros – o que ratifica sua
postura paternalista, familiarista e protetora -, e ao delegar às mulheres os cargos vinculados
ao social, não só como suas responsáveis, mas também enquanto destinatárias privilegiadas de
seus cuidados e de seus serviços.
Já a Escola, mesmo que desvinculada da tutela da Igreja, tende a transmitir os
pressupostos da representação patriarcal, baseada a priori na relação homem-mulher e
também adulto-criança. Ou seja, “ensina-se” ali – em todos os níveis, do fundamental ao
acadêmico - uma maneira de ser e de ver, de se ver e de representar as próprias aptidões e
inclinações segundo modelos e modos de pensar arcaicos, referenciados na tradição
aristotélica: o homem é o princípio ativo e a mulher, o elemento passivo. Neste meio ainda
predomina o discurso oficial sobre o “segundo sexo”, para o qual colaboram teólogos,
44
O ciclo agrário e o ciclo de procriação se equivaleriam segundo uma lógica mítico-ritual que privilegia a
intervenção masculina. Por ocasião do casamento ou do início das lavouras, os rituais são públicos, diante do
grupo, ao passo que nos períodos de gestação, tanto da mulher, quanto da terra, dá-se margem a atos rituais
facultativos e quase furtivos, como uma espécie de processo natural e passivo de “enchimento”, de que as
mulheres e a terra não são o agente, mas apenas o local, a ocasião, o suporte (Cf. BOURDIEU, 1999, p. 59).
63
legistas, médicos e moralistas, que visam a restringir a autonomia da mulher, em todos os
aspectos, em nome da sua natureza “pueril e tola” (ibidem, p. 104). Em contrapartida, há que
se reconhecer que a Escola constitui, simultaneamente, um dos espaços mais decisivos para se
implantar a mudança necessária nas relações entre os sexos, em virtude das contradições que
nela ocorrem e das que ela própria introduz em seu ambiente. Neste aspecto, a instituição
escolar corrobora de maneira incisiva para a ruptura da reprodução da hierarquia entre os
gêneros, a partir do momento em que se constata o crescente acesso das mulheres à instrução,
à cultura, e, correlativamente, à independência econômica e à transformação das estruturas
familiares.
Assim, a despeito da inércia dos hábitos e dos direitos tenderem a perpetuar o modelo
patriarcal ainda dominante, o aumento da atuação das mulheres no mercado de trabalho, afeta
diretamente os modelos tradicionais masculinos e femininos, o que acarreta, sem dúvida,
alterações significativas nas posições sexualmente diferenciadas no seio da família.
Gradualmente, elas têm se imiscuído nas áreas do poder, isto é, no domínio da produção e da
circulação dos chamados bens simbólicos (como a edição, o jornalismo, a mídia, o ensino, as
artes em geral), mesmo que ainda constituam uma paradoxal “elite discriminada” (ibidem, p.
111). Se antes era invisível aos olhos dos poderes constituídos, tornou-se visível após a
consolidação de seu direito ao voto, e a incursão nos meios intelectuais, formadores de
opinião.
Para superar a sua quase endêmica condição de “barbarismo sexual”
45
seria necessário
insistir na ousadia de enfrentar os modelos dominantes, para, finalmente, elevar-se ao patamar
dos seres pensantes capazes de alterar o rumo da sua própria história e da história da nação.
Para tanto, seria necessário não só romper as fronteiras do âmbito doméstico a que estavam
confinadas, mas preparar-se para enfrentar os desafios munidas da arma mais eficiente que a
espada: a Palavra, tão bem explorada pelos mesmas instituições de poder contrárias à
emancipação da mulher. A instrução e a educação (com todos os desdobramentos daí
decorrentes), mais do que os campos de guerra, constituem o espaço privilegiado para a
reformulação de uma sociedade paternalista retrógrada, imersa em preconceitos, e pródiga em
auto-exaltar-se.
45
Expressão usada por Virginia Woolf, em Um teto todo seu (1985, p. 117) para referir-se ao “pecado”, legado
do sexo feminino. Mary Carmichael, uma escritora que não limitou sua escritura às casas da alta classe média,
procurou ambientar-se à realidade das cortesãs e das meretrizes. Não obstante, ela demonstrava certo
constrangimento ao deparar-se com aquele universo, pois ainda estaria atada aos “velhos grilhões ordinários
da camada social”.
64
Uma vez dotadas do dom da palavra escrita, as mulheres poderiam converter a sua
escritura num instrumento reivindicatório de seus direitos, e contestatório, contra a exploração
e a eternização de seu estatuto de ser menor, inferior. Porém, para chegar ao status de
escritora, seria preciso estabelecer um vínculo diferenciado com o âmbito doméstico e buscar
um espaço particular, onde pudesse dedicar-se solitariamente à arte literária, afastada das
freqüentes interrupções que a família sob sua tutela a submetia. Condições ideais extremante
difíceis ou quase impossíveis de se conseguir nas idas décadas do século XIX, visto que a
mulher não dispunha de estabilidade econômica que lhe permitisse tamanho “privilégio”. A
menos que ela fosse favorecida com alguma herança (tal como a personagem de Woolf, não
coincidentemente no mesmo ano em que o sufrágio feminino foi reconhecido – com restrições
– na Inglaterra), seria-lhe imprescindível a conquista de sua independência econômica para
firmar-se enquanto sujeito autônomo, resguardadas as suas especificidades como mulher, na
exata medida das suas escolhas. Uma dessas escolhas, a escritura, lhe imporia
necessariamente a incursão em mundos reais e fictícios, para representá-los através da
palavra, escrevendo “[...] todo tipo de livros, não hesitando diante de nenhum assunto, por
mais banal ou mais vasto [que fosse]” (Woolf, 1985, p. 142). Um projeto que lhes exigiria
“dinheiro bastante para as viagens e o lazer, para contemplar o futuro ou o passado do mundo,
para sonhar com livros e vaguear pelas esquinas e mergulhar a linha do pensamento fundo na
corrente” (idem).
Até então, era impossível à mulher emitir qualquer opinião conflitante com a da
autoridade patriarcal, sem provocar o desdém, a ira ou o ressentimento em grau muito mais
intenso do que se fosse emitido por um homem. Porque ao homem cabia proferir julgamentos,
assim como ao conquistador europeu cabia civilizar e dominar os nativos, com um peso
redobrado sobre as nativas fêmeas, que estariam submetidas a um duplo processo de
colonização. Nestes termos, enquanto sujeito supracolonizado, a mulher latino-americana
debate-se contra os modelos culturais duplamente discriminatórios, que se arrogam o direito
de impor “verdades” particulares como universais. Enquanto mulher e procedente de uma
cultura ainda vista com desconfiança pelos olhares metropolitanos, mais caro lhe custa
contrariar uma estrutura social fortemente dominada pela ideologia masculina, autoritária e
culturalmente cingida a valores europeus.
Assim, a cubana Zoé Valdés e a brasileira Marilene Felinto, da nova geração de
escritoras latino-americanas, emprestam-nos algumas de suas obras para que possamos, a
seguir, apreciar seus posicionamentos com relação aos temas até aqui abordados.
65
4 IDENTIDADES EM TRÂNSITO: AS MÚLTIPLAS FACES DA MULHER LATINO-
AMERICANA EM ZOÉ VALDÉS E MARILENE FELINTO
Se tudo é possível ser ficcionalizado, entenda-se “falseado”, para quê (perguntariam
alguns) interessar-se pela situação e pelo destino humanos abordados “literariamente” e que,
por conta disso, apenas refletiriam uma suposta realidade da América Latina? Existem autores
– homens e mulheres -, em cujas obras se distingue uma abordagem mais veemente sobre a
condição humana (universal, portanto), ao passo que em outras, destaca-se a situação latino-
americana mais especificamente. Os primeiros se apóiam no determinismo implacável que
rege a vida, na violência, na circularidade do tempo, na maldição que pesa sobre muitas de
suas personagens, o que expressa seu profundo pessimismo existencial e uma visão trágica da
vida humana como um todo. Para os outros, o que importa é enfatizar a denúncia dos
problemas sociopolíticos, a desigualdade entre classes e a opressão ostensiva sobre os
excluídos.
De qualquer modo, não se pode negar a cosmovisão amarga e negativa, ceticista
quanto aos benefícios da sociedade contemporânea e quanto ao mito de uma sociedade
primitiva, intocável pelo aparato da modernidade. O cultivo do mito idílico de uma vida ainda
não contaminada pela modernidade corresponde quase a uma “abdicação da responsabilidade
humana”, embora sempre haja quem defenda que tudo estaria determinado por suas origens,
sem as quais, toda mudança apontaria para um resultado desastroso. Como conseqüência
desse mito e desse temor, surgiria então o conformismo e a passividade – já que a atividade
não levaria a parte alguma – ou a fé em figuras messiânicas supostamente capazes de romper
tal determinismo, mas que, em última instância, acabam por provocar mais desastres.
Há os que defendem a premissa de uma redenção da América Latina por meios
revolucionários (inclusive bélicos) para a promoção de uma justiça social capaz de minimizar
os contrastes evidentes nas sociedades latino-americanas. Ao invés de uma América Latina
paradisíaca, desvela-se uma terra corrompida e explorada pela invasão do moderno, mas
também “incapaz de hacer fructificar las semillas del progreso económico y social con o sin la
presencia de extranjeros” (SHAW, 1972, p. 114).
As antíteses, as dualidades simétricas e as imagens refletidas como num espelho,
juntam-se a uma linguagem carregada de ironia e a um certo humor cáustico, para compor
uma narrativa com uma sucessão de episódios ora absurdos ora sinistros pela sua
originalidade ou pelo lugar-comum reconhecido como algo ultrajante. Assim, ao mesclar
situações por vezes inusitadas ou trágicas com esses ingredientes, procura-se induzir o leitor a
66
ampliar seu horizonte crítico sem a prerrogativa de autodefender-se contra qualquer ameaça
de catequese ideológica.
Nas obras ora enfocadas encontramos tais elementos, em maior ou menor grau de
incidência, e a presença de um fio condutor que as une para formar um mosaico bastante
peculiar. Nelas, pode-se depreender uma similaridade entre o percurso das protagonistas
(todas mulheres) com o da América Latina (ou uma parte dela, como amostragem), que
favorece a exploração do tema do domínio dos poderes institucionalizados, centrais, em
oposição à mulher, enquanto representante de uma parcela marginal da sociedade. Uma
relação desigual entre mulheres e homens, com predominância dos valores patriarcais na
construção de identidades, e que encontra ecos desde a violação primordial das culturas
autóctones pelo conquistador europeu até a vigência de outros modelos mais recentes de
oposição centro-periferia.
A dilatação do espaço da mulher no seio das sociedades em geral, constitui um fato
bastante recente, de tal modo que não se pode afirmar que ela tenha se libertado (ou quisesse
libertar-se) de todos os mitos “fabulosos” envolvidos na sua formação social e psíquica. Ao
que parece, alguns deles apenas adquiriram uma roupagem moderna e se mantêm presentes
ainda hoje no imaginário feminino, como, por exemplo, o “príncipe encantado” do conto de
fadas tradicional, que reaparece sob novas feições. Nas distintas histórias analisadas, em
períodos que se desdobram por quatro décadas, percebe-se, contudo, não exatamente um anti-
romantismo radical, mas uma visão mais realista das personagens, com mais autonomia para
promover escolhas. A presença ou a carência do amor já não basta como elemento
conciliador: ele também deve funcionar como um agente transformador da vida das mulheres
e da sociedade como um todo.
Não obstante, o que poderia parecer um conflito irreconciliável, encontra uma zona de
convívio mais harmonioso. Por um lado, existe um apego visceral à vida manifestado por
meio do humor (mesmo cáustico) e o papel relevante do amor como proposta de sobrevida e
transformação; e, por outro lado, uma negação dessa mesma vida, cuja expressão é a solidão
das personagens atadas a um “destino” promovido por forças arbitrárias, mas que, ainda
assim, perseguem mudanças ao longo do processo narrativo.
67
4.1 O DISCURSO NARRATIVO: ESTRATÉGIAS FORMAIS
A despeito dos vestígios autobiográficos presentes nas obras aqui estudadas, de Zoé
Valdés e de Marilene Felinto, essas narrativas não se pretendem miméticas. Antes, querem
mostrar e contar uma versão possível dos “fatos”, a fim de possibilitar ao leitor desvencilhar-
se dos efeitos de encantamento resultantes de uma primeira leitura, que põe em xeque a voz
do texto. Em outras palavras, o que se “conta” na voz da narradora (portanto, o sujeito da
enunciação e o seu discurso) e o que se “ouve” através do discurso das personagens visa a
incitar o questionamento do próprio ato criador da ficção. Uma ficção que não se quer reflexo
do cânone, mas sim conceber um parâmetro “alternativo”, articulado pela introdução de uma
linguagem renovada (quase sempre “marginal”) e a desmitificação da sexualidade.
Surge daí o metatexto, que procura gerar uma nova concepção do real mediante o
deslocamento do interesse do leitor da história em si para o sujeito da enunciação. A
narradora se ausenta ocasionalmente para ceder lugar à ação conduzida pelas personagens,
numa transição quase imperceptível, implicando na destruição de uma ilusória “unidade” de
consciência e no desmascaramento provisório da narradora. Esta se alterna como narradora-
testemunha ou como narradora-personagem, sem pretender abarcar a realidade com precisão
absoluta, seja porque ver, mostrar e falar de não são o mesmo que ser, seja porque relatar o
que ocorreu e como ocorreu, sob a ação do tempo passado e dos lapsos de memória, ou pela
intervenção de fantasias, supõe o eclipse das verdades. É o mundo relativizado, passível de
conter em si situações inconcebíveis e mesmo inadmissíveis, posto que as aparências, embora
legíveis, mostram apenas o lado claro da lua; o obscuro, o inconsciente, é criado pelo
imaginário e decodificado pelo mito.
Posto isto, nas obras enfocadas ressalta-se o aspecto literariamente autobiográfico,
onde atuam elementos fictícios e reais firmados na voz das narradoras e na focalização das
personagens. Sua “onisciência”, pelas coincidências de percursos históricos, remete a uma
possível interreferencialidade (no caso a relação entre as mulheres e a América Latina como
espaços marginais) articulada pela interferência da entidade extratextual, ou seja, o ponto de
vista autoral, sem jamais prescindir da participação interpretativa do leitor. A partir de sua
leitura, com conotações também relativas, depreender-se-ão possíveis e quase sempre
ideológicas “intenções” autorais, conquanto suas interpretações sejam sustentáveis . Afinal,
segundo Umberto Eco (1994, p. 98), “é possível inferir dos textos coisas que eles não dizem
explicitamente – e a colaboração do leitor baseia-se nesse princípio -, mas não se pode fazê-
los dizer o contrário do que disseram.”
68
No que se refere à mudança de perspectiva, o chamado narrador-deus
46
, onipresente e
onisciente, passa a narrador-personagem constituindo, assim, a tese do deicídio cujo efeito
ilusório produzido seria uma espécie de “naturalização da ficção” – técnica bastante difundida
no período barroco e retomada no neobarroco hispano-americano. Por outro lado, coexiste
uma espécie de efeito especular – a mise-en-abîme
47
– privilegiado em “La hija del
embajador” através dos dons premonitórios da personagem Daniela, como se fosse dotada de
poderes extraordinários, comparáveis aos de bruxas, quase sempre identificadas com o Mal,
com o obscuro, o desconhecido. Opera-se, eno, o que se denomina de “ficcionalização da
realidade”, possível especialmente no referido texto pela antecipação do futuro, quando o real
cede terreno para o imaginário. Por sua vez, aliada a este universo imaginário, desponta uma
linguagem carregada de expressões vulgares, tanto em Zoé Valdés quanto em Marilene
Felinto, que lhe conferem um aspecto marginal, elevado ao nível literário, na intenção de
subverter o português e o espanhol padrão, respectivamente. Desta maneira, o valor literário
da linguagem se legitima como uma reivindicação da marginalidade enquanto marca de uma
condição e de uma época.
A utilização de um vocabulário mais popular e vulgarizado pretende, portanto,
articular realidades que de outra maneira não poderiam ser captadas. Estão presentes
descrições detalhadas de diferentes aspectos da sexualidade para afrontar a moralidade
vigente, seja ela burguesa ou socialista, haja vista que o erotismo presente nestas zonas
marginais, não se coaduna com o comportamento sexual considerado apropriado para uma
mulher em nenhuma das facções. A contradição constitui um dado bastante relevante na
linguagem adotada. Ao registrar os paradoxos e as incertezas da realidade brasileira e cubana
de fim de século, procura-se romper com a certeza de um mundo unívoco, alicerçado por uma
verdade absoluta. A propósito, tais contrastes já despontariam como um traço marcante da
identidade latino-americana, a julgar pelas idéias darwinistas sobre a biologia e o organismo
46
Perspectiva ou ponto de vista que o narrador ou o autor adota diante da ação e que consiste em permitir-se
conhecer e relatar a intimidade das personagens em qualquer tempo e espaço. Funciona como um deus que
conhece os pensamentos, as ações, o passado e mesmo o destino das personagens. A perspectiva exige a
terceira pessoa narrativa que permite criar um universo e um ambiente genérico no qual se destacam um ou
vários protagonistas. O narrador-deus é bastante freqüente no romance tradicional, no Realismo e em boa
parte dos relatos posteriores. (Cf. MORAL, 1996, p. 172). A tese do deicídio consiste precisamente na
“morte” desse narrador, em favor do narrador-personagem que passa a assumir o comando da narrativa.
47
Também transcrito mise en abyme [cair no abismo], utilizada por André Gide (1869-1951), é uma expressão
francesa usada para identificar um procedimento de representação narrativa, segundo a qual, no discurso de
uma determinada obra, pode ocorrer uma representação reduzida, ligeiramente alterada ou figurada da história
em curso ou de sua conclusão. A mise-en-abîme possibilita elaborações narrativas sutis, com sugestivas
conseqüências no plano semântico. Uma personagem pode prenunciar involuntariamente o desenvolvimento
da intriga e o seu desenlace através, por exemplo, de profecias, sonhos, autocontemplação ou comentário
complementares da ação (Ibidem, p. 143-144). Este procedimento também é utilizado na pintura, no cinema e
mesmo na publicidade (imagem dentro da imagem).
69
social latino-americanos. Vale lembrar que para o naturalista britânico, a sociedade americana
por si só já seria um fenômeno insólito, regida pela imoralidade, pela desarmonia psíquica,
pela indisciplina, pela falta de espírito prático e pela fantasia extremada, que comprovariam a
sua inequívoca inferioridade contraposta à superioridade racial nórdica.
Neste sentido, as personagens procedentes de territórios “menos puros” (ou mais
mestiços) reuniriam atributos determinantes de um temperamento servil, indolente, ao mesmo
tempo em que demonstrariam um comportamento cínico e dissimulado, todos associados, via
de regra, à mulher – um ser receptivo e passivo. Culturalmente relegada a um plano
secundário, quando não invisível, ela precisa superar não só a discriminação “natural” de
ordem geopolítica mas tamm de ordem genérica. A esse propósito, a estrutura espacial na
qual se movem as personagens dos textos em foco guarda coerência com a proposta de
ruptura e busca de autonomia reivindicada pelas mulheres. Um caminho possível seria o da
mobilização, no sentido intrínseco que o termo possui de movimento, de trânsito, a fim de
rebelar-se contra as práticas de caráter misógino e as tiranias que ainda assolam o continente.
Este movimento pode reduzir-se a um único passo para a construção efetiva de uma
subjetividade autônoma, embora sem prescindir do outro sujeito (a saber, o homem) - tal
como Yocandra, de La nada cotidiana -, assim como pode querer romper fronteiras
internacionais, ou antes fronteiras políticas e ideológicas com o mesmo fim, como Daniela, de
La hija del embajador, ambas de Zoé Valdés. Ou ainda, enfrentar os desafios decorrentes da
diversidade cultural existente no próprio território nacional, com seus contrastes
socioeconômicos, como o que ocorre em As mulheres de Tijucopapo, O lago encantado de
Grongonzo e Obsceno abandono – amor e perda, de Marilene Felinto. Todas confrontando
culturas distintas.
O tempo geral abordado pelas cinco narrativas perfaz uma trajetória histórica que tem
início com o triunfo da Revolução Cubana, em 1959, época do nascimento da personagem
Pátria/Yocandra (La nada cotidiana, primeira edição datada de 1995), em Havana, até a fase
adulta, com pouco mais de trinta anos de idade. Passa por Daniela (La hija del embajador,
também de 1995), que, ao contrário da primeira, desfruta das prerrogativas do cargo oficial do
pai no governo de Cuba, para deixar a ilha caribenha e estabelecer-se em Paris, um ícone da
cultura européia. Por sua vez, Rísia (As mulheres de Tijucopapo, primeira edição datada de
1982) desloca-se da periferia de Recife a fim de se estabelecer em São Paulo, com a família,
no período pós-64, época do golpe militar no Brasil, para mais tarde, já em 1980, retornar
para o interior pernambucano, movida por idéias revolucionárias. Em seguida, Deisi (O lago
encantado de Grongonzo, primeira edição datada de 1987) deixa Grongonzo para instalar-se
70
em Brasília, centro político nacional, e retorna adulta para o local de origem, quase vencida
pelas frustrações experimentadas no decorrer dos anos 1980. Por fim, a personagem anônima
(Obsceno abandono – amor e perda, de 2002), mulher imigrante estabelecida na capital
paulista, vive uma profunda decepção amorosa com outro imigrante, em plena emergência do
que se poderia denominar de terceira revolução industrial, nos anos 1990.
Em suma, embora o tempo das histórias possa abarcar toda uma trajetória de vida das
protagonistas através da memória, os textos literários (período de sua primeira edição) são
produções dos anos de 1980 e de 1990 (salvo Obsceno Abandono – amor e perda, de 2002),
quando as protagonistas encontram-se na fase adulta, em fins do século XX. Ao longo deste
percurso, observa-se a evolução das personagens na conquista do próprio espaço, num eterno
jogo de perdas e ganhos para todos os agentes envolvidos.
Assim, a trajetória traçada por cada uma das protagonistas aponta para direções e
sentidos distintos, tanto no aspecto territorial como no ideológico. Todas são produto de um
contexto político e econômico adverso que as arremessa em direção a outra realidade cultural
como alternativa possível (ou não, no caso específico de Yocandra) para promover alguma
mudança em suas vidas. Observe-se também a disparidade territorial entre um e outro país:
Cuba, uma ilha não tão diminuta com relação aos demais países do mar do Caribe, mas, ainda
assim, um pequeno país cercado pelo mar, que o isola e dificulta a acessibilidade. Menor e,
portanto, muito mais facilmente controlável pela forças opressoras do governo castrista. Por
sua vez, o Brasil compõe-se de diversos Brasis, de vários países dentro de si mesmo, para
constituir um território de dimensões continentais, e com uma diversidade igualmente
descomunal. Suas fronteiras são suas próprias discrepâncias internas que o tornam algoz de si
mesmo.
Assim, ao estarem ambientadas em países tão complexos na suas peculiaridades, estas
histórias podem estar ocorrendo em qualquer outra paragem deste território latino-americano,
onde se conjugam a opulência, a ignorância, o atraso, a inocuidade das instituições, a
incompetência das autoridades e o despreparo geral de sua gente. Um panorama ainda
desolador que endossa a tese de uma América enferma, desqualificada para levar a efeito as
proposições de uma democracia plena. Ao estar ambientada em países em que as ditaduras se
mascaram ou se confundem, percebem-se traços surrealistas ou mesmo certa herança barroca,
em que o exagero e uma modelação bem articulada das personagens refletem uma realidade
histórica latino-americana e reiteram a correlação entre texto e contexto.
Nesta correlação, os textos abordados procuram contestar os parâmetros convencionais
da narrativa, ora apresentando uma estrutura remodelada, ora uma linguagem popularizada
71
(cubanismos e brasileirismos), ou ambas, para manifestarem, assim, um “modo de dizer-se”
em consonância com a expressividade discursiva contemporânea. Eles seriam ao mesmo
tempo o canal difusor de uma época e um instrumento de reação contra as arbitrariedades
desta mesma época. Um posicionamento que atesta, enquanto latino-americano, um
“desajustamento” diante do modelo colonizador – narrativo e histórico -, entendido como o
centro dominador e hegemônico, e enquanto mulher, um “desajustamento” diante dos
parâmetros patriarcais. Esta postura se alterna entre a afirmação e a negação dessas premissas,
cujo resultado constitui o que se pode reconhecer como uma ideologia avessa aos princípios
racionais e positivistas, que coincide de uma maneira ampliada com a chamada “estética da
oposição” (CHIAMPI, 1980, p. 155).
Nestes termos, defende-se a condição existencial do ser latino-americano, que se ainda
permanece atado a uma espécie de “no-ser-siempre-todavía” (não-ser-sempre-ainda) (ibidem,
p. 156), que não quer renunciar a origem, nem a herança da condição anterior, já rejeita a
imobilidade que lhe suprime o futuro. Neste caso, a mulher em particular desempenha um
papel fundamental como agente transformador da sociedade latino-americana, na medida em
que consegue romper barreiras e imprime atitudes efetivas ao seu discurso emancipatório. Um
discurso, diga-se de passagem, que reflita o seu modo de ser e de dizer-se, e que estabeleça
um sentido renovado no âmago de suas entrelinhas. Um outro sentido diluído sob o verniz das
metáforas que vêm, precisamente por sua carga poética, povoar de poesia o grotesco e, como
fluxo volumoso de suas imagens, fazer transbordar o veio das possibilidades de significações
através dessa linguagem figurada. Uma linguagem que torna visível o discurso através da
excitação dos sentidos e pelo desvelamento dos símbolos e mitos condensados nas camadas
subliminares da psique humana.
Pois é este outro sentido, trazido à luz através da fenda aberta pela imaginação, a única
capaz de romper a opacidade de uma realidade admissível apenas na esfera da razão pura e da
lógica positivista.
72
4.2 O DISCURSO SIMBÓLICO: O IMAGINÁRIO EM RECORTES
Este outro sentido deve ser apreciado como uma outra possibilidade de leitura contida
na rede polissêmica do texto, ainda que ele seja relativamente plural. Essa porção relativa do
plural seria, segundo Barthes, a conotação – instrumento pobre para se aplicar a textos
integralmente plurais e demasiado astuto e delicado para textos unívocos.
A julgar como inoportuno e desnecessário o aprofundamento das discussões
conceituais acerca do que vem ou não a ser conotação, em suma, prefere-se acatá-la como
“[...] uma relação, uma anáfora, um traço que tem o poder de se relacionar com menções
anteriores, ulteriores ou exteriores a outros lugares do texto (ou de um outro texto) [...]”
(BARTHES, 1970, p. 14). Esta relação só se fará possível se, a exemplo do próprio Barthes, o
olhar crítico do leitor proceder o estilhaçamento do texto para, a partir dos cortes, lançar luz
sobre os fragmentos e arrebatar-lhes um “sentido” mais incisivo que foi apenas vislumbrado
na camada epidérmica do texto.
Acrescente-se que a apreciação do discurso simbólico não pretende, a exemplo do
modelo barthesiano, instaurar nenhuma verdade irredutível, senão aceitar o jogo especular que
envolve o intercâmbio de referenciais ali presentes, como o histórico, o ideológico, o político,
entre outros, intermediados pela literatura. Sem estatuto hierárquico: a literatura a todos ouve
e acata. A seleção desses elementos tem base num critério arbitrário, mas procedente, cuja
apreciação está voltada para seu conteúdo mítico, com base nas estruturas antropológicas do
imaginário desenvolvidas por Gilbert Durand, e ao mesmo tempo, no método introduzido por
Barthes em S/Z, fundamentado na decupagem do texto em lexias – ou unidades de leitura.
No que se refere à classificação estrutural dos símbolos, Durand procura desviar-se de
possíveis conflitos entre sociólogos e psicólogos, apaziguando-os sob um ponto de vista
antropológico segundo o qual “nada de humano é estranho” (DURAND, 1989, p. 29).
Todavia, ele pode ater-se com mais ou menos ênfase a uma abordagem sociológica
(“motivações sociópetas e sociófugas” do simbolismo”)
48
, a ponto de contemplar áreas
díspares como a poesia, a psicanálise, a mitologia, ou mesmo a religião. Para tanto, ele utiliza
o que chama de método pragmático e relativista que “tende a mostrar vastas constelações de
imagens”, constantes e estruturas por um certo “isomorfismo dos símbolos convergentes”
(ibidem, p. 31).
O princípio de sua classificação, que leva em conta as convergências da reflexologia,
da tecnologia e da sociologia, fundamenta-se numa ampla bipartição entre dois regimes do
48
Para Jung, ao contrário de coletividade, o termo sociedade sugere a presença de uma influência civilizadora;
resultado da interação entre pessoas individuais e a humanidade como um todo.(vide r.m.e.).
73
simbolismo - um diurno e um noturno -, que se desdobram em três dominantes, a postural, a
digestiva e a copulativa (ou sexual). Em termos suscintos, pode-se afirmar que o regime
diurno se estrutura pela dominante postural por envolver as habilidades manuais e visuais, a
tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da
purificação, ao passo que o regime noturno subdivide-se nas dominantes digestiva (sociologia
matriarcal e alimentadora, entre outros, e os elementos sensoriais) e cíclica (agrupa as
técnicas do ciclo, do calendário, os símbolos do retorno, os mitos, os dramas astrobiológicos e
o ritmo).
A título de esclarecimento, Durand procura também desvencilhar-se de
constrangimentos terminológicos e, por conta disso, evita o emprego de termos tais como
signo, emblema ou alegoria. Prefere adotar o termo genérico de esquema (squème), que
considera como uma “generalização dinâmica e afetiva da imagem [...]” (ibidem, p. 42),
responsável pela mediação entre as dominantes reflexas e as representações. Ao gesto postural
correspondem dois esquemas: o da verticalização ascendente e o da divisão visual ou manual;
ao gesto do engolimento correspondem o esquema da descida e o do recolhimento na
intimidade. Estes esquemas estão em estreita relação com os arquétipos do oco, da noite, entre
outros. Note-se que a diferença entre arquétipo e símbolo
49
apóia-se, sobretudo, na
universalidade daquele, na sua ambivalência e na sua adequação ao esquema. O arquétipo
consiste na idéia, por exemplo, da beleza, enquanto que o símbolo se resolveria num nome,
num substantivo, numa palavra – Apolo, para os gregos -, tal como o arquétipo (idéia) do
tempo teria a roda como um de seus símbolos.
Por sua vez, o mito seria um prolongamento dos esquemas, dos arquétipos e dos
símbolos, considerado sob uma perspectiva mais ampla, como um “esboço de racionalização”
já que se resolve em palavras e idéias. Segundo Durand, ele explicita um esquema ou um
grupo de esquemas: assim como o arquétipo promove a idéia, e o símbolo engendra o nome, o
mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico, a narrativa histórica lendária,
49
“O rompimento, no que tange ao componente teórico, de Jung com Freud, foi, em parte, sobre questões do que
se deve compreender por ‘símbolo’; o conceito, sua intenção ou propósito e conteúdo. Para Jung, um símbolo
sempre pressupõe que a expressão escolhida seja a melhor descrição ou formulação possível de um fato
relativamente desconhecido, que, não obstante, se sabe existir ou se postula como existente. [...] A sutileza e
desafio implícito do símbolo é muito mais que uma expressão da sexualidade reprimida ou de qualquer outro
conceito definitivo. Falando de obras de arte, Jung defende que ‘sua linguagem prenhe de sentido grita para
nós que elas significam mais do que dizem. Um símbolo permanece um desafio perpétuo para nossos
pensamentos e sentimentos. Isso provavelmente explica a razão por que um trabalho simbólico é tão
estimulante, por que nos domina tão intensamente, mas também por que raramente nos propicia um prazer
puramente estético. [...]’” (vide r.m.e.).
74
estruturado de forma dinâmica, mas mantendo um vínculo com a organização estática do que
Durand denomina de “constelação de imagens”.
Isto posto, resta acrescentar que a relatividade desta classificação deve-se à própria
transitoriedade histórica e social, e à complexidade, também relativa, das ciências. Assim, esta
estrutura admite uma certa flexibilidade, de modo a evitar agrupamentos rígidos e permitir
uma leitura que atenda aos propósitos deste trabalho. Outrossim, vale antecipar que não se
pretende enfatizar a análise dos textos sob esta perspectiva (simbólica), dotando-a de uma
exclusividade empobrecedora, mas não hesitaremos em recorrer a digressões desta natureza
sempre que se fizerem oportunas para o aprimoramento da análise.
75
4.3 ZOÉ VALDÉS: MOBILIDADES E INCONFORMISMO – ENCONTRO CUBA-
EUROPA
Zoé Valdés, auto-exilada em Paris desde 1995, já trabalhou pela delegação de Cuba na
UNESCO e no escritório cultural da embaixada cubana na capital francesa. Não esconde seu
descontentamento com o regime autoritário sob o qual continua submetido o seu país, e
defende uma posição abertamente anticastrista. Curiosamente, Valdés é acusada de produzir
uma escritura pornográfica por seus detratores, sendo considerada a versão cubana de Anaïs
Nin e Madonna pelo The New York Times, guardados evidentemente os devidos exageros.
Quanto ao erotismo, Valdés acolheu-o como um elogio; quanto ao pornográfico, comentou
que justamente no Centro George Pompidou, em Paris, haviam dedicado um ciclo de
conferências cujo tema era “Os anos pornográficos”, que, segundo ela, “são justamente os
tempos em que vivemos, depois dos anos pop, dos anos políticos, dos anos psíquicos” e que,
afinal – ainda segundo a autora -, “a obra do Marquês de Sade é mais referência social e
política de uma época do que sexual.” Não obstante, suas obras contêm um discurso político
arrebatador, sobretudo La nada cotidiana, em que ela relata sua versão acerca da realidade
cubana de fim de século XX, a partir do exílio, sob uma perspectiva politicamente anti-
revolucionária e feminista.
Neste romance, Pátria, a protagonista, recebe este nome por ter nascido em 2 de maio
de 1959, um dia após o triunfo da Revolução Cubana, em pleno discurso do Comandante.
Representa, portanto, a primeira geração dos que cresceram num sistema que se propunha a
erradicar definitivamente as injustiças praticadas pelo modelo anterior. Contudo, passam-se os
anos e as promessas transformam-se em frustrações, penúria e apatia, sentimentos aos quais
muitos dos descontentes, tomados pelo ceticismo, parecem estar atados. Neste contexto de
desolação existencial, Pátria se rebela contra uma paixão nutrida por dois homens, o Traidor
(homem mais maduro com quem chega a casar-se por conveniência) e o Niilista (um jovem
diretor de cinema cujo filme fora exibido uma única vez durante um festival). Um relato de
traços autobiográficos que trata de sua vida cotidiana junto aos amigos e inimigos que a
rodeiam, naquela ilha caribenha, para onde ela havia sido devolvida pelo mar após uma
frustrada tentativa de fuga por meio de uma balsa. No posfácio da obra escreve o editor sobre
a protagonista “[...] Escribe para vengarse, para comprenderse y para que la comprendan, con
humor, con ironía, con rabiosa lucidez, hasta que las palabras se adueñan de ella y la llevan
hacia un futuro desconocido donde brilla tenue la luz de la esperanza.”
Em La hija del embajador, a protagonista Daniela, filha de um embaixador cubano em
Paris, desorientada por uma suposta “asfixia vital”, empreende uma viagem de Havana a
76
Paris, onde a aguardam seus pais. Durante o vôo, conhece Maurice, um francês aventureiro e
milionário, que lhe oferece um diamante roubado por ele e com quem, já em território
parisiense, ela se reencontrará em situações inusitadas. Ali, ela se envolve numa aventura
marcada de erotismo cujo fim lhe reserva uma espécie de epifania, e que, apesar da curta
duração, lhe confere um contundente processo de despojamento das ilusões em favor de um
profundo e caro auto(-re)conhecimento.
Como filha de embaixador, Daniela goza de privilégios sociais proibitivos a um
cidadão cubano comum, cuja liberdade individual se mantém cerceada pelo regime autoritário
de Fidel Castro, fiel unicamente às diretrizes propostas por um “comunismo” coercitivo e
estratificador.
77
4.3.1 La nada cotidiana: o ostracismo
Precede a obra uma epígrafe do escritor e filósofo romeno Emil Cioran
50
(1911-
1995), que antecipa a abordagem da narrativa em foco: “Porquoi quelque chose plutôt que
rien?” ¿Por qué algo mejor que nada?
51
(p. 13). Mestre do desespero, ele diria em sua última
entrevista quando perguntado sobre o fenômeno do tédio: “[...] No auge do tédio se
experimenta o sentido do Nada, e neste sentido não se trata de uma situação deprimente, já
que para uma pessoa não crente representa a possibilidade de experimentar o absoluto, algo
como o instante derradeiro.” Não obstante, este Nada absoluto também representaria a
impotência diante do amordaçamento diário das expressões individuais e, por extensão,
coletivas. Uma epígrafe, portanto, que além de encerrar uma pergunta que aponta para uma
resposta iminente – o Nada seria a grande resposta para as angústias humanas -, também
sugere uma contradição diante da impossibilidade de escolha, ou seja, o Nada constituiria a
grande e única resposta porque tampouco haveria outra alternativa disponível.
A contradição surge, então, como o mote essencial da narrativa, na qual a personagem
principal – Pátria/Yocandra – não se constrange ao expor sua insegurança e fragilidade, ou
tampouco a sua coragem para enfrentar as adversidades que encontra no contexto político-
ideológico em que está inserida. O contraste fará parte da narrativa, assim como faz parte da
própria condição humana, e funcionará como uma característica identificadora da personagem.
A narrativa está composta de nove capítulos numerados, alguns dos quais são
precedidos por epígrafes, que guardam uma relação intrínseca com a abordagem principal do
capítulo a que se referem. A epígrafe que corresponde ao primeiro capítulo é de autoria da
escritora belga Marguerite Yourcenar
52
(1903-1987), primeira mulher a ser eleita, em 1980,
para a Academia Francesa:
Avoir peur de l’avenir, cela nous facilite la mort.” Tener miedo
del futuro, eso nos facilita la muerte. (p. 15).
Todo escrito em itálico, este primeiro capítulo sugere uma espécie de prefácio à
narrativa “oficial” a seguir e está dedicado ao que se poderia considerar como uma fase pré-
natal da protagonista, ainda por nascer. Um pré-nascimento que equivaleria ao período de
transição entre a morte e a vida, o estágio do Absoluto ou do Nada, onde se decidiria o
destino dos “transeuntes”.
50
Nascido em Rasinari e radicado em Paris, cuja filosofia estava permeada pelo tema do tédio e do êxtase da
existência (DAMAZIO, [s/d], vide r.m.e.).
51
As versões do francês para o espanhol foram originalmente transcritas pela autora, Zoé Valdés. Entretanto,
uma tradução sugerida para o português seria: Por que uma coisa qualquer é melhor que nada?
52
Nasce em Bruxelas e falece em sua ilha particular, Mount Desert Island, em Maine, nos Estados Unidos. Com
um pai anticonformista, dele teria herdado o adágio de que “só se pode estar bem em outro lugar”. Seus heróis
narrativos oscilam entre o gosto pelo conhecimento e a tentação da carne (SARDE, 1995, vide r.m.e.).
78
A identificação parcial da protagonista é determinada pela frase inicial: “Ella viene de
un lugar que quiso construir el paraíso.” [Ela veio de um lugar que quis construir o paraíso]
(VALDÉS, 1996, p. 15)
53
. Através do comentário, deduz-se o sexo – pelo pronome “ella” – e
a procedência - uma ilha que teria tido a pretensão de tornar-se um paraíso. Examinada de
perto por um Querubim
54
, ele vislumbrava nela um traço de ironia ou talvez de um medo
extraordinário, e presumia que não mudaria nunca e morreria jovem, com todos os seus
desejos. Poderia ser qualquer mulher, exceto por abrir os olhos “como as mulheres que
habitam as ilhas”, que deixavam advertir uma calma indiferença nas pálpebras.
A presença do Querubim confirma a ambivalência de realidades em que se encontra a
personagem, em companhia de um ser celestial, como se ambos fizessem parte de um sonho
ou de um entorpecimento delirante. Ele recomenda-lhe prudência, pois o Universo exigia uma
espécie de desprendimento radical, que não admitia ser duas coisas ao mesmo tempo.
Confusa, ela reflete sobre a obscuridade de seu passado, quando o anjo cai fulminado por um
raio (p. 18). Só e com pesar, ela olha os seios à mostra, pois está nua, sem constrangimentos.
Sente-se como um pássaro moribundo e que sua infância está enterrada, embora constate,
surpresa, que não havia envelhecido. Diante de si, o mistério; atrás, as trevas. Com o céu
estrelado, sem ser noite, ela ouvia o som ensurdecedor do silêncio. Em meio a sensações de
frescor, ela ouve uma gargalhada entre as folhagens. Descobre tratar-se do Nada, aquele “que
decide” por todos, inclusive por ela mesma. O Nada lhe explica a razão pela qual ela deve
partir, mas ela se recusa saber, pois o conhecimento implicaria reativar dores já curadas:
“Vacila, no quiere saber. No le gusta conocer, porque conocer para ella significa abrir
brutalmente una cicatriz.”(p. 19).
Entretanto, o Nada esclarece que estavam no Purgatório, onde deveria decidir por seu
destino, visto que sua alma teria sido inocente o bastante para ser conduzida ao Céu e
igualmente perversa para merecer o Inferno. Sem forças, ela se sente incapaz de argumentar a
seu favor. Assim, obrigaram-na a retornar à ilha que, “ao querer construir o paraíso, havia
criado o inferno”, de tal maneira que ela se encontrava diante de um impasse: nadar para
53
Todas as demais citações subseqüentes referentes a esta obra, serão indicadas no corpo do trabalho, pelo
número da página correspondente, entre parênteses.
54
Para um grande número de religiões, os anjos sempre foram considerados entidades intermediárias entre os
planos material e espiritual, sobretudo nas religiões de fé islâmica, judaica e cristã. Também costumam atuar
como mensageiros, guerreiros e guardiões ou protetores, neste último caso, em resposta ao desejo humano de
proteção individual. Seu antropomorfismo alado personifica a vontade divina, embora, para os filósofos
gregos, seriam os guias das estrelas e constituídos de alguma substância etérea; para a iconografia cristã,
estariam em constante estado de desmaterialização. A sua contrapartida estaria atrelada aos anjos caídos,
guiados por Satã, símbolo do pecado da soberba. (Cf. TRESIDDER, J., 1998, p. 13).
79
sobreviver ou afogar-se de vez para livrar-se de um infortúnio maior: “Ella no sabe qué hacer.
¿Para qué nadar? ¿Para qué ahogarse?” (p. 20).
Integram-se, então, os opostos para se obter daí uma multiplicação – ainda que relativa
- de sentidos na narrativa, na qual se impõe à personagem uma tomada de posição a partir de
uma única premissa: renascer. Sem escolha, portanto, ela retorna à ilha para refazer a sua
trajetória, de modo a propiciar uma avaliação mais acurada de seus atos. A missão seria
cumprida através do restabelecimento da memória, através da qual lhe seria concedida a
oportunidade de reviver-se, com a prerrogativa de poder expor com a própria voz a sua versão
dos fatos, desde seu primeiro suspiro até o momento de afogar-se, já adulta. Todos os seus
passos, pensamentos e emoções estariam sob o crivo “daquele que decide” para julgá-la e, por
fim, condená-la ou inocentá-la.
O leitor, por sua vez, se converteria não apenas numa testemunha com acesso a este
“memorial autobiográfico”, como também num potencial Juiz Celestial ou um Deus, que
deteria o poder de decidir sobre o destino da protagonista. Uma “arbitrariedade” da qual
nenhum texto literário pode escapar, a despeito da sua relativa pluralidade de sentidos.
Terminado este primeiro capítulo, que explicita ao leitor a situação sobre a qual caberá
arbitrar, a personagem assume seu papel e, em primeira pessoa, dá início ao relato de sua
história revivida, mediante a reativação da memória. Deixaria de habitar a entre-vida do
Purgatório demarcada no texto pelas letras em itálico, para adentrar o ventre materno, em
grafia convencional, a partir do segundo capítulo.
A mãe caminhava pela Havana velha até chegar à Praça da Revolução, a fim de ouvir
o discurso do presidente Fidel Castro, o Comandante, no Dia Mundial dos Trabalhadores.
Durante o discurso, ela é acometida de contrações e, ao ser removida em meio à multidão,
passa diante da tribuna onde se encontrava Che Guevara que, solidário, deposita a bandeira
cubana sobre sua barriga. O pai, trabalhador do campo, vai ao encontro da mulher que lhe
descreve a atitude de Guevara, para orgulho e satisfação do marido.
Em alguns momentos, o resgate da memória obedecia a um processo de
presentificação, ou seja, em dadas etapas revividas, a personagem “presenciava” as cenas
retratadas, como se observasse a si mesma de fora, de modo a resgatar situações das quais não
teria tido condições de testemunhar apenas pela força dos fatos. Ela descrevia, por exemplo,
as impressões intra-uterinas de um bebê prestes a nascer, que testemunhava desde as
intervenções pelas quais passava o corpo da mãe, até quando se rompe a bolsa de líquido
amniótico: “[...] De mi madre emanó abundante agua caliente y resbaladiza, como una grasita
80
agradable que la envalentonó. La mano del especialista agitó con violencia la barriga. Ahí
donde estoy. Estuve.” (p. 23).
Ao encaminharem a mãe para o salão de parto, a meio caminho do corredor, o bebê se
adianta e transpõe a cabeça pelo talho-fronteira que separava os dois mundos: ¡Esa es mi
cabeza! (p. 25), avisa a personagem, que logo percebe a dificuldade de renascer. A cabeça do
bebê estava travada, a um passo de afogar-se numa outra espécie de líquido que não era o
mar. Após o esforço derradeiro, quase sobre-humano, no instante em que “se tocaram a vida e
esse desconhecido além”, conclui-se a travessia, que converte as duas em mãe e filha. A
personagem se pergunta qual seria o limite da dor da vida, agora que ela se encontrava fora do
território protetor de sua progenitora e adentrava outro, desconhecido. Para a mãe, terminava
a dor, para ela, teria apenas começado: “¿Hasta cuándo dolerá la fuerza de la vida? Yo, fuera
de su universo, inicio el mío. Para ella terminó el dolor. Para mí acaba de comenzar.” (p. 25)
Nasce, então, a personagem. Primeira e única filha, para alegria dos pais, exceto por
uma inesperada impertinência de sua parte, que lhes rendeu uma certa decepção: havia
deixado escapar o Primeiro Dia dos Trabalhadores da Revolução triunfante, para nascer no
dia seguinte, dois de maio. Ela formava um pequeno volume enrolado na bandeira cubana e já
a reprovavam por não haver cumprido com seu dever revolucionário. O pequeno bebê
demonstrava desde cedo a tendência em contrariar expectativas, em subverter a ordem
estabelecida, através de uma outra perspectiva, contrária ao discurso oficial defendido pelo
sistema socialista cubano. O pai, incapaz de associar a impertinência a um sinal de
inconformismo, se lamentava pelo descuido de ambas: “_ Debió haber nacido ayer, por dos
minutos es hoy, ¡qué barbaridad! ¡Debió haber nacido el Primero de Mayo! No se lo perdono
a ninguna de las dos – no cesaba de lamentarse con el rostro eufórico. [...]” (p. 26).
Apesar da contrariedade, não escondia a euforia com o nascimento da filha. Indagado
sobre o nome da recém-nascida, ele hesita entre Vitória e Pátria: decide pelo segundo.
Emocionado, cai em prantos, orgulhoso de sua glória: “_¡Soy el padre, el padre de Patria, de
la Patria!¡El Padre de la Patria!”
55
(p. 26).
55
O sentimento patriótico (que deveria ser matriótico) seria apenas a intuição subjetiva do que, para Durand
(1989, p. 160), constitui o isomorfismo matriarcal e telúrico. A pátria está quase sempre representada por
traços feminizados, e o desejo tão freqüente de ser enterrado no solo pátrio não passaria de uma forma
profana do “autoctonismo místico” (ibidem, p. 163), da necessidade de voltar à própria casa, que demarca o
isomorfismo do retorno, da morte e da morada. Em algumas culturas, existem práticas, não necessariamente
agrícolas, em que a terra é considerada como meio ambiente prioritário a ser preservado de todo mal.
Algumas delas chegam a considerar pecaminoso arrancar as ervas e poder assim “ferir a mãe”, o que endossa
a crença na divina maternidade da terra, como uma das mais antigas e estáveis. A prática de dar à luz sobre a
terra difundida em vários povos, modernos e antigos, também confirma a universalidade da crença na
maternidade da terra.
81
Neste nascimento, processava-se, portanto, um movimento cíclico de eterno retorno ao
início, em que a personagem transita do estágio mórbido ao de vida, sob a forma de uma
criança – uma nova Pátria que havia acabado de nascer sob a luz da Revolução.
Já no final da década de 1980, aos trinta e poucos anos de idade, Pátria morava
sozinha num pequeno apartamento com vista para o mar. Sua rotina matinal consistia em
sentar-se à beira da cama para tomar café, contemplar o mar e admirar o movimento das
ondas. Entregue aos pensamentos, reflete sobre a eterna busca de uma perfeita harmonia entre
o infinito e o efêmero, e a dificuldade de se chegar ao mundo. Sexualmente ativa, alterna
encontros com um “traidor” e com um “niilista”, sempre desejando terminar com um o que
começou com outro: ela não consegue distinguir entre tratar-se de uma anacrônica “emoção
antiga” (p. 29) ou apenas de uma crise dos trinta.
Sem respostas, ela desperta de sua pausa reflexiva para dar continuidade aos afazeres
matinais. Procurava administrar o racionamento diário de provisões, e depois de vestir-se com
uma roupa cômoda e fresca, prende o cabelo, recolhe a bicicleta atrás do sofá, verifica se há
água suficiente para as plantas, acomoda a mochila nas costas e desce oito andares pela
escada, às escuras. Estavam sem o elevador por conta do apagão que restringia o uso de
energia elétrica. Toda manhã pedala até o trabalho, distraída, com a cabeça nas nuvens
56
. No
decorrer de dois anos, tem percorrido o mesmo caminho de casa ao escritório onde trabalha na
função de chefia de redação de uma revista de literatura, que há muito não publica nada
devido aos “problemas materiais que enfrenta o país” (p. 30).
Às duas da tarde, pedala de volta para casa, onde prepara o almoço, que costumava
iniciar por volta das três e terminar por volta das oito ou nove da noite, por conta das idas e
vindas do gás encanado. Jantaria por volta da meia-noite. Enquanto a panela se eternizava no
fogão, ela tomaria seu banho, depois de subir e descer várias vezes os oito andares com um
balde em cada mão, para trazer água da esquina. Por onde passa, deixaria seu rastro de água
que secaria com uma toalha velha, porque os enxugadores de piso custam um dólar e
cinqüenta centavos no diplomercado
57
da rua Setenta. Depois do jantar, antes de deitar-se, lê
algo ou assiste a algum filme em vídeo, caso já tenham religado a luz.
Naquela tarde, porém, de volta para casa, de bicicleta, Pátria é abordada no semáforo
por uma velha colega dos anos de 1970 que a reconhece e a chama pelo nome. Pátria simula
56
Tradução livre para a expressão original em espanhol “pensando en las musarañas” que, de uma forma mais
pejorativa ou popularesca, também poderia ser traduzido como pensando na morte da bezerra. A intenção
final é repassar a idéia de distração, de estar com a cabeça “nas nuvens”.
57
Também conhecido como “El Diplo”, é um supermercado que dispõe do estoque mais variado da capital, para
o comércio varejista e atacadista.
82
não ouvi-la, por tratar-se de uma “militona”
58
que atuava de guarda nos finais de semana e
delatava as fugas de Pátria interessada em encontros fortuitos com os rapazes da escola.
Inconformada com a indiferença de Pátria, ela se aproxima para fazer-se notar com mais
veemência. Dissimulada, Pátria se justifica dizendo-lhe que havia trocado o nome para
Yocandra, e em razão disso não reconhecia o atual como seu. A mudança é interpretada como
uma traição à pátria, embora Yocandra se justifique com fingida humildade que não estaria à
altura do antigo nome; ao que, desconfiada, a militona indaga se ela não teria, a bem da
verdade, se convertido numa “gusana”
59
, como “essas” dos direitos humanos. A dissimulação
e a traição consistiriam um código de sobrevivência num contexto de delações e de
desconfiança.
A verdadeira razão, porém, foi de ordem afetiva, aos dezesseis anos de idade, quando
apaixonou-se por um homem de trinta e três, um escritor da moda, galanteador e elegante. Ela
admirava-o e tinha pretensões de, como ele, tornar-se escritora. Depois de se conhecerem,
indiferente à diferença de idade, ela vai visitá-lo no solar onde ele vivia. Nesta noite, ele toma
conhecimento do nome da adolescente e, por esse motivo, recusa-se a deitar-se com ela. Por
sua vez, ela descobre num manuscrito versos dedicados a uma mulher chamada Yocandra.
Dominada por uma paixão juvenil e inconseqüente, ela desejou ser a outra, desejou ter
nascido em outro país, ser estrangeira de olhos azuis e cabelos louros, falar com sotaque,
conhecer outro continente. Ela não queria ser ela: “[...] no quería ser yo.[...]” (p. 35). No dia
seguinte, ela providencia toda a documentação e ameaça os pais de abandonar a escola caso
não lhe autorizassem a trocar de nome.
Quando em outra oportunidade ela retorna ao quarto do Traidor, ele a recebe com uma
gargalhada irônica - “_ ¡La Patria en persona! (p. 36) -, ao que a colegial lhe corrige
timidamente, dizendo-lhe ter trocado de nome. Para Yocandra, “a mulher de seus versos”.
Furioso, ele a repreende por ter se apoderado do nome de sua musa, nome que ele teria levado
anos para encontrar como “sugestivo”, “estranho”, um “gancho para os editores”.
Preocupava-lhe a opinião dos exegetas sobre sua obra - Los versos de Yocandra -, pois
atribuiriam a ela a sua inspiração, quando, ao contrário do suposto, teria sido ela quem havia
se apropriado das idéias dele. Decepcionada com a reação do homem, que não reconhece seu
romantismo, ela faz menção de retirar-se, mas ele a impede, a acaricia na nuca e a conduz
para a cama, apenas para contrariá-la uma vez mais. É quando se depara com a sua
58
Denominação para aqueles que se dedicam a causas pró-governo em Cuba.
59
Denominação pejorativa para os refugiados cubanos, considerados traidores da causa revolucionária cubana.
Literalmente, significa verme. Todas as traduções ao português desta obra são livres e por nós realizadas.
83
virgindade. Pátria já teria tido experiência sexual, embora por outros “canais”, que não os
convencionais. Ela costumava esperar escurecer para encontrar-se, no muro do Castillo de la
Fuerza, com um ex-preso político de cinqüenta anos de idade, condenado a treze anos de
prisão por apedrejar uma vitrine que exibia uma bandeira comemorativa do Vinte e Seis de
Julho
60
e algumas consignas do Governo. Através daquele homem, considerado um dissidente
e antipatriota, ela teria se iniciado na literatura com a obra que levava o sugestivo título de
“La tregua”
61
[A trégua], do escritor uruguaio Mario Benedetti (1920).
Seu envolvimento com o ex-presidiário político deveu-se a um ato de rebeldia para
afrontar o preconceito racial do pai, para quem constituiria um golpe mortal descobrir que a
filha havia se envolvido com um negro e, para agravar a situação, marinheiro mercante. Pátria
decide romper o relacionamento quando percebe que o amante já não se contentava com os
meios alternativos de sexo e, também, porque se deu conta de que ela mesma não possuía a
devida independência financeira para manter a rebeldia contra a intolerância racial do pai. O
desvio narrativo teria a função de fazer do leitor um confidente, ao qual esclarece que ela já
teria se iniciado na vida sexual, embora não quisesse revelá-lo ao homem que lhe interessava
no momento. A despeito da pouca idade, já se vislumbrava em Pátria uma personalidade
determinada e destemida, disposta a arriscar-se para alcançar seus propósitos.
Após a confidência, a personagem retoma a cena em quem se encontrava no quarto do
Traidor, que a expulsa de lá por supô-la virgem. Para superar o empecilho que a afastava do
escritor, ela sai em busca de seu desvirginador, sem qualquer moralismo sexista.
Numa parada de ônibus, perto do porto de Casablanca, ela se depara com um cabeludo
solitário, atordoado de tanta maconha e rum, que a acompanha até La Red (A Rede), uma
boate escura situada no Vedado, centro turístico e comercial de Havana. Pátria não concebia o
fato de que, em pleno ano de 1975, ainda existisse quem quisesse ostentar a figura de um
hippie, quando, segundo ela, ninguém mais no mundo o era, muito menos em Cuba: “[...] Se
llamaba Machoqui, y en pleno año setenta y cinco se había propuesto ser hippie cuando ya
nadie en el mundo, y mucho menos en Cuba, lo era.[...]” (p. 44).
60
No dia 26 de julho de 1953, em protesto contra a ditadura de Fulgêncio Batista, um grupo de patriotas
comandado por Fidel Castro, líder do Movimento 26 de julho, atacou o quartel de Moncada na cidade de
Santiago de Cuba, na Província do Oriente. Apesar do fracasso, aquele ato foi o começo da revolução cubana
que terminou por derrubar o regime de Batista seis anos depois (vide r.m.e.).
61
La tregua (1959) forma com Gracias por el fuego (1965) dois de seus mais representativos romances.
Benedetti é um homem das letras comprometido com o presente e o futuro de seu país e da humanidade em
geral. Sua realização literária mais completa encontra-se em seus numerosos romances e contos, com
destaque para as duas obras mencionadas (Cf. Bellini, 1986, p. 563).
84
Naquele lugar, ao som de um bolero de José Antonio Méndez
62
, a jovem Pátria se
entrega ao hippie anacrônico, depois de esbofeteá-lo, ensopar-lhe a cara de água fria e beijá-
lo, “para não perder o costume do romantismo” (p. 44). Uma vez satisfeito o pré-requisito
para ter alguma chance junto ao “escrupuloso” Traidor, Pátria se apressa em contar-lhe a
novidade. Já de madrugada, ainda com as partes úmidas por lavar, ela chega ao quarto do
escritor. Surpreso com a atitude da jovem, ele lhe oferece um balde com água e tina, e a
assiste a lavar-se ali mesmo. Dali por diante, dá-se início a história de amor com aquele que,
segundo Pátria, terminaria por converter-se no verdadeiro e mais cruel violador de seus
sonhos, por conta de suas mentiras, das quais resultaram profundas cicatrizes existenciais: “El
Traidor desvirgó mi inocencia, si hoy soy despiadada es por su culpa. Era el destinado a violar
mis sueños y lo hizo cruelmente. Era el que debía mentirme y me mató a mentiras. Era el que
marca, y aquí estoy cubierta de cicatrices.[...]” (p. 45).
A mentira passa a ser um artifício freqüente para manter em sigilo o relacionamento
entre Pátria – que a partir de então será reconhecida como Yocandra - e o Traidor. Ela deixa
de freqüentar a escola, e, ainda assim, consegue aprovação, por força do suborno ao professor
que negociou excelentes notas por mil pesos. Além disso, obtém diploma no Pedagógico, o
que a obrigaria a formalizar o juramento específico cujo lema, que teria produzido tantos
“estragos profissionais”, decretava que “a vocação não existe, a vocação é o dever cumprido”
(p. 46). Yocandra matriculou-se em Educação Física (que abandonou três semanas depois),
também graças ao suborno praticado pelo Traidor, que custeava todas as despesas para
simular a normalidade da vida escolar de sua discípula. Para o Pedagógico também eram
enviados os que aspiravam a ser psicólogos, jornalistas, diplomatas, juristas, cientistas e os
cérebros que teriam se esforçado nas atividades políticas, nas escolas de campo e em toda
sorte de reunião para serem beneficiados com a “militância”. Caso não se tornassem
militantes, muito provavelmente não lograriam a carreira desejada: “[...] Porque si no eras
militante no te ganabas la carrera de tus sueños. Pero la carrera de tus sueños se convirtió en
la de tus pesadillas cuando se impuso el deber cumplido, porque la vocación es otro invento
yanqui, pura propaganda enemiga.[...]” (p. 47)
Embora matriculada em Educação Física, jamais havia assistido a uma aula, o que
havia lhe impedido de conseguir um posto de militante. Primeiro, porque costumava fugir de
madrugada para encontrar-se com os rapazes em seus albergues – o que lhe teria valido
algumas denúncias da parte da colega “militona”, e, segundo, porque não havia cedido ao
62
Famoso compositor, violonista e cantor de bolero, nascido em Havana, em 1927 e falecido em 1988, portanto,
àquela época, ainda vivo.
85
assédio sexual do secretário geral ad UJC
63
de seu grupo. A despeito de ser a pior aluna da
turma, já freqüentava a universidade, graças à “benevolência” do Traidor que a amparava
financeiramente em troca dos serviços prestados. Ele havia se convertido numa espécie de
“anjo protetor”, desde que ela se mantivesse sob seu comando, postura esta que vem ratificar
a manutenção dos parâmetros patriarcais nas relações entre gêneros, com a devida conivência
da mulher envolvida.
Uma outra leitura possível, de caráter alegórico, ressaltaria essa mesma postura
hierárquica, segundo a qual toda uma nação se deixa manobrar por um líder que, embora
carismático, a torna refém de suas próprias conveniências. Sob o louvável argumento de
promover o bem-estar do povo, por meio da justiça social, esse dirigente centraliza poderes e
procura banir do seu caminho os obstáculos que por ventura ameacem a manutenção de seu
status quo. Uma situação de tirania que deturpa a proposta inicial e se sustenta pela
conivência “patriótica” ou apaixonada da parte submetida e, não raro, também induzida à
leniência servil pelos “homens sábios” detentores do poder.
Numa tarde, ele a teria obrigado a sentar-se diante da máquina, vedado seus olhos,
coberto o teclado com uma folha de papel em branco e, enquanto a acariciava, lhe teria ditado
poemas de En la calzada de Jesús del Monte
64
. Antes do anoitecer, ela já teria escrito cento e
vinte palavras por minuto – uma destreza relâmpago obtida em praticamente um só dia de
aprendizagem. A partir de então, a história de amor com esse homem se desenvolveria sob a
pressão de um regime militar, em que ele ordenava e ela, submissa, cumpria: “[...] Así
comenzó esta historia de amor, a lo militar, él ordenaba y yo cumplía al pie de la letra. Yo era
una extensión de su pensamiento. [...]” (p. 48).
Ela torna-se uma espécie de secretária particular e uma pesquisadora terceirizada sob
a orientação do amante. Pesquisava sobre a história do cinema, desde os Lumière, para que
ele pudesse escrever algum ensaio sobre o tema. Se ele tivesse que trabalhar em pintura
gótica, ela pesquisava e demarcava enciclopédias, nomes de quadros e autores, para que ele
encontrasse mais rapidamente as reproduções das obras às quais fizesse referência. Ele
transforma-se num tirano explorador, embora ela reconhecesse que a experiência lhe tivesse
rendido conhecimentos equivalentes aos da universidade. Ela submetia-se por amor, e ele
ordenava por interesses pessoais: “[...] Yo era la estudiante que recibía comida, cama y sexo,
y una enseñanza grandiosa, exquisita. [...]” (p.49).
63
Unión de la Juventud Comunista. Organização política da juventude cubana, de corrente marxista-leninista.
64
Livro poético de 1949, do cubano Eliseo Diego (1920, em Havana-1994, na Cidade do México), colaborador
da revista Orígenes, da qual também participava José Lezama Lima, e autor de várias obras poéticas.
(BELLINI, 1986, p. 485).
86
Ela aprendeu a utilizar os talheres à maneira francesa e os palitos chineses. Em troca,
deveria lavar e passar toda a roupa, arrumar o quarto, como uma dedicada dona-de-casa em
sua prisão domiciliar, único ambiente onde poderia pôr à prova as suas aulas de arte e de
etiqueta. Para os pais, Yocandra cursava o último ano de pré-universitário com uma bolsa
especial, outorgada pela escola por conta de sua inteligência e bom comportamento, e por ser
filha de um “implacável” dirigente sindical. Nas férias, Yocandra justificava sua ausência
dizendo-lhes que estaria colaborando nos projetos agrícolas do campo, atuando também como
dirigente estudantil. Tanta honraria inebriava o pai, de orgulho e de cegueira. Por não ter tido
oportunidade de experimentar outros estados de felicidade, senão o que aquele homem lhe
proporcionava, Yocandra sentia-se feliz. Afinal, desde muito jovem, ele teria sido o único
homem por quem ela realmente teria se interessado e a quem ela decidiu dedicar seu tempo
integral, sem questionamentos.
A despeito das privações, aquele espaço constituía-se no seu “palácio de tesouros”,
habitado por uma dócil princesa a serviço de seu tirânico príncipe encantado, enquanto lá
fora, o mundo lhe parecia feio. Enquanto ela se mantinha feliz no seu “feliz universo
privado”, ele empreendia viagens das quais ela tomava conhecimento somente quando ele
reaparecia em trajes italianos, as malas repletas de edições luxuosas de novos livros, presentes
para toda a família e para ela, que, com o tempo, se escassearam.
Ele era convidado para recepções oficiais de escritores ilustres, como uma em
homenagem a Gabo (Gabriel García Márquez), ou ao francês Régis Debray
65
(1940) – à época
“ainda de esquerda e portanto bem visto” (p. 52) -, além de almoço com Carpentier (1904-
1980), e outras homenagens a cineastas soviéticos em mostras de cinema de países socialistas.
Yocandra se mantinha sistematicamente excluída dos eventos, embora lhe coubesse cuidar da
aparência do amante: camisas e perfumes franceses, terno inglês, sapatos italianos, em lugar
da “guayabera”, considerado um típico traje nacional. Ele, porém, para evitar ostentar
demasiada elegância com artigos importados, às vezes decidia pela guayabera, de confecção
mexicana, já que as de “típica” origem cubana lhe pareciam uniformes de medíocres e
oportunistas. Assim, ele freqüentava os altos círculos da intelectualidade cubana, sob os
cuidados da jovem mulher, enquanto ela permanecia confinada num quarto, na companhia de
Proust e Baudelaire.
Esta situação perdurou por três anos, até que ele precisou apresentar-se com uma
“companheira” para obter um cargo importante num país europeu. Era necessário casar-se.
65
Intelectual, jornalista e oficial do governo francês. Nos anos 1960, atuou como professor na Universidade de
Havana.
87
Ele providenciou tudo às pressas e casaram-se, ele e Yocandra, no Palácio dos Matrimônios,
quando ela contava dezenove anos, maior de idade, sem necessidade, portanto, da aprovação
ou autorização dos pais. Intimamente, ela hesita em aceitar, porque, como a maioria das
jovens, sonhava em casar-se de véu e grinalda, e com todas as convenções de um casamento
tradicional. Uma vez mais, porém, prevaleceram os interesses profissionais do homem, e ela
acabou cedendo, para decepção dos pais que fingiram resignar-se com a decisão.
O reconhecimento oficial de sua relação com o homem amado, ao contrário do que ela
esperava, apenas consolidaria o seu papel secundário no cenário social no qual acabara de
ingressar, cujo protagonista seria, invariavelmente, o marido. A partir dessa data, ela ingressa
na “alta sociedade socialista tropical”, de forma a ter que providenciar algumas mudanças na
própria imagem. Corta os cabelos bem curtos, passa a maquiar-se, atualiza o vestuário e
aprende a dominar os saltos altos, para poder acompanhar com distinção a sua ascensão
social, embora jamais tivesse logrado visibilidade junto ao ilustre marido intelectual. Ao
acompanhá-lo em alguns eventos, ela passa a reparar na sua extrema vaidade e petulância, que
o faziam apresentar-se aos demais como “filósofo”, numa atitude ególatra que a constrangia:
“Mi ingenuidad – o ignorancia, llamémosle como quieran – no llegaba a tanto como para no
pasar vergüenza ante tan petulante y dudosa afirmación. [...]” (p. 57). Afinal, segundo a
concepção de Yocandra, Cuba era um país de boxeadores, jogadores [de beisebol],
desbravadores, construtores, especialistas em política internacional, poetas, educadores,
críticos de arte, de cinema, médicos, menos de filósofos. Filósofos, ainda segundo ela,
poderiam ser encontrados na Alemanha, não em Cuba, “con tanto calor y hambre y guardias
de comité y reuniones para reunirse en otras reuniones, consejillos, asambleas generales,
asambleas populares, en las cuales se discute la misma bobada de siempre, por qué el pan no
llega a su hora, si es que llega. [...]”
66
(p. 58).
O fato é que a filosofia sempre gozou de um alto prestígio no meio intelectual e, de
fato, a Alemanha se destaca como um dos berços dos grandes filósofos ocidentais, rivalizando
com a França, países europeus que legaram um indiscutível arcabouço filosófico para várias
gerações em todo o planeta, em maior ou menor grau. O que não era, neste aspecto, o caso de
Cuba, motivo pelo qual, soavam falsas ou, quando muito, ridículas as ocasiões em que o
Traidor, indistintamente, insistia em jactar-se de filósofo. Numa delas, saiu-se com a desculpa
– soy filósofo! - para adiantar-se numa longa fila de mercado de peixe; como resposta,
66
“Com tanto calor e fome e guardas de comitê e reuniões para reunir-se em outras reuniões, conselhos,
assembléias gerais, assembléias populares, nas quais se discute a mesma bobagem de sempre, por quê o pão
não chega na hora, se é que chega.”
88
recebeu um tabefe de uma senhora gorda, que o arremessou a um charco perto do recipiente
de peixe. Teve que se contentar em esperar por seis horas, voltando ao final da fila, meio
atordoado, distraindo-se com um livro de Derrida.
Ou seja, ali, a sua filosofia constituía a mais vã das disciplinas, desnecessária e inútil,
que o alinhava no mesmo nível dos demais mortais envolvidos com as dificuldades mais
prementes do dia-a-dia. Yocandra desdenha seus arroubos de vaidade intelectual, sustentada
na hipótese de que pensar não era uma prerrogativa de homens e tampouco condição sine qua
non para transformar qualquer pessoa em filósofo. Se assim fosse, ela mesma seria uma
candidata ao concorrido título, entre tantos pensadores, haja vista que estava sempre
“distraída”, “pensando” em alguma coisa. Ela arremata: “[...] No sólo aquí, ¿a quién en
cualquier parte del mundo actual no le avergonzaría confesar que es filósofo? ¿Para qué
sirven? ¿Sólo para pensar? ¿En las musarañas, como yo? A lo mejor también soy filósofa y
aún no me enteré.[...]” (p.58).
O tom jocoso do relato demonstra a mudança de perspectiva da narradora para aludir à
empáfia do marido. O decurso do tempo igualmente permitiu-lhe reconsiderar seus conceitos
em relação ao marido também em função do tratamento de menosprezo dispensado a ela, o
que ratificava a egolatria cultivada por ele. Cada vez mais, ele fazia por merecer a alcunha
que o caracterizava: o Traidor.
Não contente por ser um homem do pensamento, ele também se descrevia como um
homem de ação: “un Rambo del comunismo, un machista leninista” (p. 59). Seu histórico o
habilitaria a converter-se no herói nacional cinematográfico: em tenra idade teria participado
como mensageiro nas lutas clandestinas, teria alfabetizado camponeses da Sierra Maestra
67
;
aos catorze anos quase teria perdido a vida nas montanhas de Escambray
68
em luta contra
bandidos, o que lhe teria valido o reconhecimento como mártir. Mais tarde, teria prestado o
serviço militar e trabalhado em plantações de cana-de-açúcar, embora suas mãos mais
parecessem com as de um pianista, pela suavidade e brancura, sem qualquer indício de
calosidade. Teria sido repórter nos bombardeios da Nicarágua e de Angola, agente de
Segurança do Estado, sempre envolvido em alguma “missão complexa”. Tanto heroísmo em
nada impressionava Yocandra, que não havia se apaixonado pelo herói, mas pelo escritor que,
para seu desgosto, só se interessava por ela em esparsas ocasiões para gozar de seu sexo. Por
67
Cadeia montanhosa na região sudoeste de Cuba, principalmente nas províncias de Granma e Santiago de Cuba.
Entre outros fatos históricos, consta que a Sierra Maestra teria sido abrigo do Exército Rebelde na guerrilha
contra o general Fulgencio Batista e de onde Fidel Castro teria dirigido ações militares à época da revolução
(vide r.m.e.).
68
Montanha situada no centro do país, onde a CIA teria realizado operações no intuito de preparar terreno para o
ataque à Baía dos Porcos, no período entre 1960 e 1965 (vide r.m.e.).
89
isso, ela teria se habituado a masturbar-se para desfrutar, sozinha, de um amor imaginário.
Decepcionada, ela reconhece que ele não passava de uma invenção sua: “[...] Por eso me
habitué a las pajas. Sólo a hurtadillas gozaba de un amor imaginario. De mi invención. Porque
a él lo inventé yo.” (p. 60).
Era de se esperar que aquele homem culto, amante das letras e das artes, um escritor
ilustre, fosse capaz de lidar mais habilmente com o universo feminino, com base na crença,
talvez equivocada, de que a suposta sensibilidade mais aflorada lhe inspiraria a adotar uma
conduta mais compreensiva e cooperativa em relação à mulher. Prevalecia, porém, o descaso,
a tirania, a relação hierárquica que relegava a mulher a um plano secundário, fazendo dela um
mero instrumento através do qual buscava atingir seus fins: a poesia, ele guardava para si e
para as ocasiões especiais.
Por fim, em companhia do Traidor, Yocandra se transfere para um país europeu, de
identificação apenas sugerida, embora seja possível deduzir tratar-se da França, onde fixariam
residência por quatro anos. Não por vontade própria, mas por força das convenções sociais,
ela estava fadada a enfrentar in loco uma cultura diferente da sua. Se em Havana ela se
submetia aos caprichos do marido, confinada num quarto medíocre, na metrópole européia ela
seria obrigada a manter-se a maior parte do tempo na rua, “aculturando-se” em museus,
cinemas, parques, visitas às novas amigas, enfim, em qualquer atividade que a mantivesse
longe de casa. Essa havia sido uma determinação do marido que necessitava estar a sós para
produzir aquela que seria a sua obra-prima, e que contemplaria uma série de requisitos,
segundo ele, imprescindíveis para aceder à categoria de grande obra da literatura mundial.
Deveria ser gótica e hermética como as obras de Umberto Eco, ter a profundidade filosófica
das de Margueritte Yourcenar e Thomas Mann, a “emanação terrível” de O perfume, de
Patrick Süskind, a densidade poética de Hermann Broch, a “secura rigorosa” de Beckett e,
evidentemente, a cubanidade de Lezama e de Carpentier. Na opinião de Yocandra, tal
romance mais parecia uma colagem dos últimos autores resenhados na Magazine Litteraire,
revista cultural francesa de que, deduz-se, seriam, ambos, assíduos leitores.
Curiosamente, porém, a despeito da dedicação exclusiva à obra, a ninguém era
permitido ler uma linha sequer do manuscrito, que ele mantinha guardado num cofre, longe da
curiosidade alheia. Yocandra começa a suspeitar da sua “grande obra” e a cansar-se de sua
vida de escravidão, que frustrava continuamente suas expectativas românticas e a lançava
num calvário sem fim: “[...] Hasta cuándo? En las películas, en los libros, en las casas, en las
vidas de otros, el amor no era así.” (p. 62).
90
Sua dúvida se desfaz numa tarde, quando volta antecipadamente da rua, e reconhece o
manuscrito esquecido sobre a escrivaninha, enquanto o marido toma banho. Para seu espanto,
a obra se reduzia a trezentas páginas preenchidas com uma única frase: “Todos me persiguen.
No puedo escribir porque todos me persiguen.” (p. 62). Ela retorna à rua, perplexa e indignada
por ter se submetido a privações e humilhações, certa de que contribuía para a grande obra de
um escritor cubano que, além de tudo, era seu marido, e, no entanto, depara-se com aquele
resultado alarmante e impensável. Ela se remete ao filme estrelado por Jack Nicholson, The
shining
69
[Resplandor, em espanhol, e O iluminado, em português], com enredo semelhante,
numa clara alusão às chamadas transposições diegéticas entre literatura (o hipotexto) e cinema
(o hipertexto), realizadas por grandes cineastas, que confirmam o diálogo possível entre uma e
outra expressão artística.
Embora este não constitua um caso específico de transposição diegética
70
, cabe
ressaltar o aspecto intertextual anunciado pela presença de um escritor obsessivo, que escreve
uma só frase repetidas vezes. Ambos os casos se assemelham pela estrutura patriarcal
convencional, simbolizada pelos arquétipos clássicos do homem opressor e autoritário, em
oposição à mulher submissa. Entretanto, as semelhanças param por aí, pois os rumos se
bifurcam a partir de então.
Uma vez descoberta a farsa, Yocandra decide dar um basta à situação. Regressa ao
sótão onde viviam para adverti-lo de que havia lido o manuscrito e de que iria deixá-lo. Ele a
chantageia com ameaça de suicídio, ao que ela, sem alarde, lhe provê uma faca e lhe prepara
um coquetel de cianureto, sob os protestos e as acusações de espionagem dele: “_Por culpa
tuya no puedo escribir. Siento que me espías y eso me inhibe. Todos me espían, pero tú con
más encono... Tú eres la culpable...”
71
(p. 65).
69
Filme dirigido por Stanley Kubrick, de 1980, como uma adaptação da obra homônima de Stephen King, de
1977, considerado um ensaio magistral sobre a loucura e a solidão. Jack Torrance, um escritor às vistas com
um bloqueio criativo, se oferece como vigilante de um hotel longínquo e inóspito, na expectativa de concluir
seu projeto literário. Acometido de um gradual transtorno mental, converte-se num assassino em série,
empenhado em escrever a mesma frase, enquanto sua mulher, Wendy, procura salvar-se e a seu filho, perdida
numa espécie de espaço labiríntico, sempre sob a ameaça de um súbito ataque traiçoeiro.
70
Entenda-se por transposição de níveis diegéticos. A expressão nível diegético ou nível intradiegético refere-se
à localização das entidades (personagens, ações, espaços) que integram uma história e que, como tal,
constituem um universo próprio. No que se refere à distinção de níveis narrativos, as entidades do nível
diegético são as que se colocam no plano imediatamente seguinte ao nível extradiegético e precedendo
imediatamente o nível hipodiegético (quando existe) subordinado ao intradiegético.” Em linhas gerais,
segundo Genette, deduz-se que “todo evento narrado por uma narrativa se encontra num nível diegético
imediatamente superior àquele em que se situa o ato narrativo produtor dessa narrativa”[...] (REIS & LOPES,
1996, p. 179).
71
“_ Por sua culpa não posso escrever. Sinto que você me espiona e isso me inibe. Todos me espionam, mas
você com mais raiva... Você é a culpada.”
91
Entre incrédula e divertida, ela procura conter a gargalhada diante da flagrante e
hilária distorção dos fatos. Sem êxito, ele decide mudar de estratégia e, ajoelhado, lhe implora
que o mate: “_¡Mátame, mátame” ¡Asesíname!” (p.65). Ela se nega a fazê-lo, mesmo porque,
lhe vêm à mente as manchetes dos jornais e os noticiários: “Talentoso escritor cubano muere
escuartizado a manos de su esposa joven y aburrida, una inútil que lo único que hacía era
vagabundear mientras él sudaba y se desvivía trabajando en las páginas de su última y genial
novela.”
72
(p. 65-66).
A extensão e o conteúdo da improvável manchete, por si só, já demonstrariam o
caráter tragicômico da situação. Uma cena deveras digna “da mais vil teledramaturgia
venezuelana” (p. 66), em que ele se faz de vítima e ela se transforma em seu carrasco. Às
pressas, Yocandra recolhe seus pertences como pôde, e encerra aquele capítulo de sua vida
retornando para Cuba.
De volta à ilha, divorcia-se do Traidor. Apaixona-se uma segunda vez, se casa, e, dois
anos depois, o marido morre num acidente de avião. Apesar das perdas, Yocandra confessa ter
sido acometida de uma “mania de apaixonar-se”, e retoma a sua rotina diária, dedicando-se às
práticas de escambo no mercado negro e “vermelho”, uma espécie de tráfico de mercadorias
entre ladrões estatais e pessoas do povo para que estes, “por razões óbvias de humanidade” (p.
67), pudessem sobreviver. Anos depois, numa manhã de domingo, o Traidor reaparece à sua
porta, com uma orquídea murcha nas mãos. Apiedando-se da sedenta flor e do aspecto
decadente do homem – magro, calvo e encurvado, com dentes cariados -, ela lhe permite
entrar. Ao passar pelo espelho, ela vê refletida a sua própria imagem que, ao contrário da dele,
ostentava a vitalidade de uma balzaquiana, em plena ascensão, enquanto ele experimentava o
declínio.
Passados trinta anos de Yocandra e da Revolução Cubana, a personagem-narradora
teria tido um único contato direto com uma cultura estrangeira - uma metrópole européia mais
exatamente. Uma imposição a que ela se submeteu para atender a uma conveniência alheia:
uma tarefa árdua, a julgar pelas condições ultrajantes que o marido a obrigou a enfrentar.
Neste aspecto, a rotina diária de privações e de dificuldades tanto no país natal, como no país
estrangeiro, se equivaliam, salvaguardando-se o fato de que, de volta à ilha, Yocandra estaria
livre da dominação do marido, embora ainda acossada por um Estado autoritário.
72
“Talentoso escritor cubano morre esquartejado pelas mãos de sua esposa jovem e entediada, uma inútil que só
sabia vagabundear enquanto ele suava e fazia de tudo trabalhando nas páginas de seu último e genial
romance.”
92
Em outras terras, Yocandra não teria experimentado nenhum dilema em relação à
cultura local, a despeito das circunstâncias adversas enfrentadas. O deslocamento territorial
teria favorecido a ocorrência de situações limites que redundaram no rompimento com aquele
que havia se tornado, a um só tempo, seu “libertador” e algoz. De volta ao solo cubano, outra
etapa lhe aguardava.
Ali, a ação mais importante da vida é despertar, seja da letargia imposta por uma
realidade sem maiores expectativas de realização pessoal, seja acordar a cada manhã, tomar
um café e desfrutar da paisagem do mar através de seu “refúgio hexagonal”
73
. A seu modo,
seria o seu espaço privado, o seu “próprio teto”, longe da tutela dos pais ou de maridos. Desde
o seu habitat, que lhe conferia uma perspectiva diferenciada, por conta da disposição
hexagonal das janelas, ela teria uma visão multifacetada da vida, sendo capaz de avaliar os
pontos favoráveis e desfavoráveis do objeto alvo de sua observação, como o mar à sua frente,
por exemplo.
Apesar de ser uma referência poética por excelência para os espíritos românticos, o
mar também inspirava temor aos habitantes da ilha. Seja pela ameaça de altos prejuízos em
conseqüência de eventuais inundações, que arruinavam imóveis circunvizinhos; seja pelas
vidas ceifadas aos que buscavam fugir em botes improvisados. Apesar da beleza, o mar
representaria também o ostracismo existencial para aqueles que não coadunavam com o
regime de exceção ali estabelecido.
Sem ter muito o que acrescentar à sua rotina, ela procurava prolongar o período de
tempo para realizar as tarefas diárias. Após o expediente no escritório, poderia ir à praia, mas
como estava sempre de bicicleta, melhor seria ir visitar um amigo, mas já previa o tema
repetitivo das conversas. Falariam da situação crítica por que passavam – “lo mala, lo horrible
que está ‘la cosa’” (p. 73), para logo compensar os defeitos do país com a situação
supostamente pior, enfrentada por outros países, sobretudo os ex-socialistas: “Porque ahora lo
peor no es el capitalismo de los capitalistas, sino el capitalismo de los ex socialistas.” (p. 73).
Poderia ler um livro, mas temia atormentar-se ainda mais se acaso a leitura não fosse
adequada ao seu estado de ânimo atual. Ao hesitar entre as alternativas, ela acabava por
arranjar para si mesma razões que justificassem a sua inatividade, a sua letargia, que
constituía um ciclo vicioso preenchido com nada. Seu nada cotidiano, que assim como o dos
73
Em “Um teto todo seu”, de Virginia Woolf, a narradora se queixa da avalanche de bibliografia existente, já
àquele tempo, sobre mulheres. Metaforicamente, ela apreciaria ser dotada com a longevidade e a acuidade
visual – a visão múltipla – das aranhas, e dispor do tempo e da agilidade necessários para abarcar todas as
informações disponíveis para avançar em sua pesquisa sobre elas. (WOOLF, 1985, p. 37).
93
demais cidadãos cubanos, sofreria diretamente as conseqüências das articulações na esfera
política, na medida em que se modificava o desenho do mapa socialista no mundo.
Rita, por exemplo, havia trabalhado na lavoura de batatas, que lhe rendeu uma
deformação nos pés. Com o advento da queda do muro de Berlim, ocorreu a suspensão das
remessas de botas ortopédicas procedentes da Alemanha Democrática, e ela teve que adaptar-
se ao uso de sandálias plásticas para aliviar as dores de joanetes. Atualmente, trabalhava como
secretária no escritório, e costumava alertar Yocandra quando, esporadicamente, havia ovos e
queijo caseiro sendo comercializados a melhor preço na entrada do prédio. Como houvesse
muita procura pelos produtos, era preciso apressar-se, e Rita dispunha-se a descer catorze
andares com os pés doloridos para garantir a sua cota e a de Yocandra.
Alimentação era o tema preferível nas conversações com Rita, assim como com a mãe,
chamada Aída, conhecida no bairro onde antes moravam como “A Ida”, por conta de um
bloqueio de memória desde o trauma sofrido com a notícia do assassinato, em 1967, de Che
Guevara, seu ídolo insuperável.
Yocandra havia batizado a vila em que ela e os pais moravam de Solar de Babel,
devido ao grande número de pessoas com profissões e procedências distintas, inclusive
soviéticos, que chegaram no início dos anos sessenta, e se fizeram famosos pelo odor
desagradável (el “grajo”) que desprendiam dos sovacos. Na época, seu pai trabalhava como
segador, uma espécie de desbravador dos campos de cana-de-açúcar, posto pertencente à
chamada “vanguarda nacional”, quando, numa noite, um companheiro lhe comunica
pessoalmente a transferência da família para uma nova residência no Vedado, bairro histórico
e uma das maiores atrações turísticas de Cuba.
No dia do reconhecimento da “jóia arquitetônica” recém-concedida, o pai, ainda
desconfiado, passa a examinar cuidadosamente cada recanto da casa para evitar surpresas com
algum “gusano” extraviado. A mãe, entre nervosa e incrédula, roía as unhas. Missão
cumprida, o alto funcionário do CDR (Comitê de Defesa da Revolução) os deixa, apressado,
para cumprir vigilância. A casa tinha sido propriedade de um escultor, admirador das artes,
um foragido para Miami. O local tinha aspecto de museu por conta das tantas obras expostas
já ameaçadas pela umidade do lugar. A mãe, apreciadora de arte, se surpreende, extasiada, ao
descobrir um Lam
74
autêntico, reação esta que vale um comentário pejorativo do marido,
74
Wilfredo Lam (1902-1982), expoente máximo do Vanguardismo em Cuba. Sua arte aborda temas urbanos
com uma forma muito particular que confere um estilo próprio à pintura contemporânea mundial. Lam
costumava retratar figuras estilizadas, rostos parecidos com máscaras, figuras fantasmagóricas de humanos,
animais e plantas, que sintetizam a “santería” cubana, o surrealismo e o cubismo (vide r.m.e.).
94
lavrador, sem lastro cultural. A mãe: “_ ¡Un Lam, un Wifrido [sic] Lam auténtico!”. O pai,
desdenhoso: “_ ¿Tanto alboroto por ese garabato?”
75
(p. 80)
O curto e desencontrado diálogo demonstra a incompatibilidade intelecto-cultural
entre os pais. Rude mas belo, o pai pouco tinha em comum com a mãe, exceto nas “tarefas
contingentes da Revolução” (p. 81). Detestava qualquer manifestação de arte e não nutria a
mínima admiração por mobiliário antigo ou por adornos burgueses e outros “desperdícios”
dispensáveis. A primeira impressão sobre a casa foi desfavorável, de modo que, como chefe
absoluto do clã, arbitrou que aquele lugar não lhes servia, sob a súplica inconsolável da
mulher. Yocandra (àquela época, ainda, a pequena Pátria), prefere retirar-se da cena
melodramática para explorar outros cômodos daquele lugar que, ao mesmo tempo, a seduzia e
aterrorizava. Deparou-se com um tesouro em mobiliário, peças de porcelana, louças inglesas,
objetos de arte, distribuídos pelos inúmeros cômodos. Ao abrir a porta de um dos quartos,
porém, se lhe descortinou um esplendor de beleza escultural. Corpos nus, estáticos,
sorridentes ou circunspectos, expunham a sensualidade petrificada e abandonada naquele
alojamento proibido: “[...] Yo no sabía qué hacer con tanta belleza. ¡Descubría el encuerismo
masculino y estaba encantada!
76
[...] (p. 82).
A escultura de um jovem a atrai especialmente, por seus cabelos encaracolados, lábios
carnudos, úmidos, uma imagem angelical que a leva a arrastar um pequeno banco para subir e
beijar avidamente a boca petrificada da estátua. Aquele teria sido o primeiro beijo que
experimentou, embora tivesse sido dado lúdica e unilateralmente naquele que parecia ser um
anjo de pedra, passivo e inerte. Sem poder controlar a euforia por aquela novidade magnética,
ela dispara pelos corredores da casa dançando como um “cisne no lago”, até encontrar seus
pais ainda discutindo no portão principal. Seus ouvidos ainda conseguem distinguir o pai
dizer que a casa deveria estar enfeitiçada para despertar tamanho estado de possessão numa
criança; a mãe, mais condescendente, a toma pelos ombros fazendo com que se recompusesse.
De volta a si, a pequena Pátria dispara: “_ Mamá, papá, allí, en aquel cuarto hay una cantidad
de tipos con los culos y los pitos al aire!
77
[...]” (p. 83).
A revelação surtiu um efeito imediato e catastrófico, provocando ainda mais a ira do
pai, que logo tratou de dar um fim no que classificou de inaceitável. Armado de um pau,
converte em escombros o que encontra pela frente, vociferando: “_¡Escultor ni escultor,
75
Tanto barulho por esses rabiscos?
76
“Eu não sabia o que fazer com tanta beleza. Descobria o nu masculino e estava encantada”. O termo
encuerismo certamente deriva da expressão “dejar en cueros” [deixar em couro], equivalente a “deixar nu”.
77
“_ Mamãe, papai, lá naquele quarto tem um montão de gente com bundas e pintos de fora!”
95
tremendo mariconzón, bugarón de mierda!”
78
(p. 84). A mãe se desesperava em silêncio,
acompanhando impotente a fúria do marido. Depois de transformar as peças em “cadáveres de
gesso e de madeira” (p. 84), cospe sobre elas, embora algumas “zonas imensas e
provocativas” feitas de ferro e de mármore tivessem resistido aos golpes. Inconformado, ele
espalha gasolina extraída do tanque do carro russo, e lança um fósforo, transformando-as em
fogueira: “[...] La de siempre. La que cada hombre lleva muy internamente, con el único
objetivo de exterminar.”
79
(p. 84).
O comentário explicita o que a personagem considera como característica essencial do
comportamento masculino, ou seja, a propensão ao belicismo, ao uso da força em suas várias
manifestações, para exterminar tudo ou a todos que, de alguma forma, o contrariam. Imbuídos
desse princípio básico – exterminar obstáculos -, os homens, via de regra, usam e abusam do
fogo para fazer prevalecer os seus pontos de vista: assim o comprovam as guerras, o fogo da
Inquisição, os fuzilamentos e outras tantas formas de extermínio do outro, oponente.
Assim, diante das duas mulheres impotentes, o pai, não satisfeito com a depredação,
condiciona a permanência da família na casa ao desaparecimento das ofensivas peças de arte,
enquanto a mãe se extenuava diante “de tanto delírio machista e ímpio” (p. 85). Concluída a
“limpeza moral e cultural” providenciada pelo pai em nome da “decência”, Yocandra observa
perplexa a montanha dos corpos esquartejados, justo por uma delação sua: em segundos, de
amante das esculturas, ela havia se tornado seu verdugo.
Ao contrário do pai, transferir-se para aquele espaço não exigiu da então pequena
Pátria qualquer esforço de adaptação. Pior seria aceitar dispor-se das peças, não pela condição
impositiva do pai, logo preterida, mas pelas futuras circunstâncias adversas, que os obrigaria a
desfazer dos tesouros da mansão em troca de mantimentos de primeira necessidade.
Eventualmente também as vendiam a particulares por um preço irrisório ou às lojas de Hernán
Cortés, que as repassavam ao Estado, também a um preço mínimo. Ciente do valor real das
peças das quais teria que se desfazer - algumas “impagáveis como a dívida externa” (p. 87) -,
sua mãe começa a apresentar os primeiros sinais de ausência mental. A única peça que
conseguiu preservar foi seu “rabisco da alma”, o Lam. Por ocasião do assassinato de Che
Guevara, ela, irreversivelmente, começa a “ir-se” de si mesma.
Aos dezesseis anos, Yocandra conhece o Traidor e o estado da mãe se agrava devido a
um fato novo, relacionado a sansão que o governo havia imputado ao pai. O golpe fatal teria
sido o anúncio do divórcio da filha e a sua recusa, a contragosto dos pais, de retornar
78
“ _ Escultor coisa nenhuma, tremendo viadão, bicha de merda!”
79
“A [fogueira] de sempre. A que cada homem leva bem lá no fundo, com o único objetivo de exterminar!”
96
posteriormente à casa paterna. A mãe lhe implorava que reconsiderasse e reatasse com o
Traidor, alegando a importância da família e a maledicência a que uma mulher divorciada
estaria exposta, alvo de assédios mal intencionados. Yocandra, irredutível, acaba por dividir
um apartamento com a Gusana, uma amiga que tinha “vísceras de precursora”. Tempos
depois, a amiga consegue ultrapassar as fronteiras de Cuba e ir para a Europa, deixando o
apartamento aos cuidados de Yocandra.
A Gusana consiste na personagem que vai efetivamente trazer à tona a questão
transcultural, com base na sua experiência num país europeu. O fato de ter sido ela, e não
Yocandra, o canal transmissor dessas contraposições, conferiria um distanciamento desejável
para estabelecer maior imparcialidade nas abordagens, além de imprimir maior confiabilidade
ao depoimento de uma outra pessoa, mais precisamente, de uma outra mulher, que isentaria
Yocandra da acusação de querer ostentar o monopólio da palavra no tratamento dessas
questões.
Elas se conheceram numa das ocasiões em que Yocandra teria ido subornar o Decano,
do Pedagógico, com o dinheiro do Traidor. A Gusana cursava Geografia, e elas costumavam
encontrar-se para pedalarem até o muro do Malecón
80
, ousadia que lhes rendia alguns
insultos, pois, àquela época, andar de bicicleta era “cosa de putas” (p. 94). Indiferentes,
prosseguiam às gargalhadas, para contrariedade dos policiais. A irreverência, porém, resultou
na denúncia de um membro indignado do CDR, sob a suspeita de espionagem, por
estacionarem as bicicletas, pelo menos duas vezes por semana, para fumar Populares com
filtro, de frente para o mar. Suspeitavam que ali se posicionavam para fazerem sinal luminoso
com o fogo do cigarro ao imperialismo ianque, numa demonstração da paranóia dominante
com relação às ações mais banais praticadas pelos cidadãos, sobretudo os que demonstravam
um comportamento pouco convencional, como o daquelas duas mulheres.
Naquela tarde, de volta para casa, pensava no seu passado partilhado com a distante
amiga Gusana, que, se retornasse a Cuba, encontraria a ilha mais entristecida, assolada pela
miséria e pela fome. Sua previsão se confirmaria ao testemunhar um rapaz com cerca de trinta
anos tomar de assalto um latão de lixo para aproveitar as sobras de alimento. Ela evita a cena
para a qual sua geração não havia sido educada: ela não estava preparada para aquela crua
realidade latino-americana. Ela pondera, contudo, que à diferença de Cuba, os demais países
latino-americanos não se propuseram a promover uma Revolução para reverter esse quadro
80
Malecón é uma longa avenida com cinco quilômetros de extensão, que cruza todo o bairro do Vedado e o
Centro até a Havana Velha. Local apreciado para percorrer em baixa velocidade em carro ou em outro veículo
pela bela vista que oferece (vide r.m.e.).
97
que, ao contrário das expectativas, passou de ruim a deplorável, chegando à indigência. Ou
seja, teria sido uma Revolução inútil: “[...] Es cierto que en toda la América Latina se pasa un
hambre de pinga, pero ellos no hicieron la Revolución. ¿Cuánto no nos jodieron con ‘estamos
construyendo un mundo mejor’? ¿Dónde está que no lo veo?”
81
(p. 95).
Yocandra se recorda de uma série de locais e de circunstâncias das quais outrora
desfrutaram juntas, algo impensável na realidade pós-revolucionária. Numa conversa
imaginária com a amiga, a adverte de que alguns locais sofreram drásticas mudanças, outros
desapareceram, junto com os aparelhos de ar condicionado, os ventiladores e a luz elétrica. Só
o Partido era imortal.
Coincidentemente, ao chegar em casa, Yocandra é surpreendida com uma carta da
Gusana. Por este meio, a amiga assume a narrativa, para relatar as impressões e experiências
de uma cubana numa terra estrangeira. De início, ela acusa o recebimento da carta de
Yocandra, na qual fala sobre a bicicleta chinesa, sobre os apagões, a água com açúcar para
acalmar a fraqueza e de um Niilista – este último, o único motivo que teria para invejá-la. A
seu ver, porém, sua correspondência seria digna do século XIX, pelo seu tom de mártir, visto
que, apesar de tanta pobreza, ainda insistia em afirmar que não precisava de nada.
O conteúdo da carta guarda um certo estilo burlesco para falar de sua vida pessoal e
das impressões sobre a Espanha. Para chegar até lá, a Gusana se casou com um homem idoso,
calvo e repugnante, mas rico, como única alternativa para sair da ilha e viver em outro país –
europeu. Uma vez em Madrid, descobre que o marido não possuía tanto dinheiro quanto ela
supunha quando o conheceu em Havana. Afinal, na capital cubana, qualquer pessoa que
convide alguém para jantar em um hotel de segunda categoria, pode ser confundida com um
milionário. A despeito da linguagem despreocupada com a polidez – mesmo porque a sua
interlocutora é uma amiga íntima -, a Gusana demonstra um senso crítico aguçado acerca da
história e da cultura, em nada lembrando alguém frívolo ou grosseiro. A intimidade, e mesmo
a cumplicidade entre as duas, dá espaço a esse linguajar descomprometido com a elegância de
estilo.
Através da carta, ela revela a sua visão de mulher cubana contrastada com o universo
urbano não apenas madrilenho, como também parisiense: uma mulher casada por
conveniência (dela) com um homem pouco atraente e por quem não nutria nenhum afeto.
Esses constituíam motivos suficientes para procurar outros parceiros – ou parceiras -, que
81
“[...] Tudo bem que em toda a América Latina se passa uma fome da porra, mas eles não fizeram a Revolução.
O quanto já nos sacanearam com essa história de que ‘estamos construindo um mundo melhor’? Onde está
que não o vejo?”
98
satisfizessem seu apetite sexual ou amenizassem sua solidão de estrangeira casada com um
homem, acima de tudo, asqueroso e negligente.
Ela se queixa com humor sarcástico das dificuldades para encontrar algum amante,
tece comentários irônicos sobre a soberba dos espanhóis, o consumismo desenfreado
incentivado pela publicidade na TV, da vida de aparências das esposas dos amigos de seu
marido que disfarçavam, com lenços e óculos escuros, os maus tratos sofridos. Um machismo
agravado pela violência contra as mulheres que, paradoxalmente – ela acrescenta -, fundam
um clube chamado Club de las Esposas Satisfechas [Clube das Esposas Satisfeitas], como
subterfúgio para poderem reunir-se, ludibriando os maridos. Nomeada tesoureira, ela
estudaria a possibilidade de, algum dia, fundar seu próprio clube independente, o qual
batizaria de Jineteras
82
Cubanas en el Exilio [Domadoras Cubanas no Exílio], destinado a
amparar as cubanas abandonadas por seus homens ou deles fugitivas, que exercem a
prostituição e que vivem em situação ilegal no país.
Ela menciona o desgaste provocado pela falta de dinheiro, pelas guerras e pela
presença de profissionais de países ex-socialistas que invadem o mercado de trabalho
europeu. Mesmo que esses “invasores” sejam altamente capacitados, ali constituem uma mão
de obra barata que, devido ao acirramento da concorrência interna, são compelidos a se
submeterem a mais de uma jornada de trabalho, por um salário irrisório. Ela cita o exemplo de
um cientista russo que pode prosseguir com suas pesquisas, mas recebe dois dólares pelo
serviço prestado, e, para complementar seus ganhos, trabalha de taxista durante a noite. Ela
salienta que esses ex-comunistas do leste europeu, afinal, continuam com o mau cheiro de
sempre (el “grajo” soviético), não por falta de desodorante, mas pelas circunstâncias de sua
vida, sua “idiossincrasia”, que permanece difícil, azeda, mesmo em outro país.
O estilo burlesco e cáustico, mais do que a rispidez, suaviza as críticas ao modus
vivendi do europeu dos grandes centros. Todavia, igualmente denota uma certa inadequação
ou despreparo ao deparar-se com uma diversidade de conduta, quando, por exemplo, faz
alusão – nada original até -, à homossexualidade da “maioria” dos belos homens por quem se
sente atraída, mas sem sucesso. A questão da beleza masculina estar relacionada à pederastia
endossa um olhar preconceituoso (mesmo entre mulheres) que escarnece da vaidade dos
homens, como se beleza e masculinidade fossem incompatíveis. Aliás, curiosamente, a
“maioria” – garante ela – sequer é bissexual, mas irremediavelmente gay. Por outro lado, se a
82
Ao que tudo indica, este seria um termo bem particular para referir-se, não necessariamente às mulheres que
praticam a equitação (jóqueis ou domadoras), mas às jovens que se prostituem, e com as quais ela manteria
uma relação bem próxima em Madri, para prestar-lhes alguma assessoria moral e financeira.
99
beleza consiste no seu principal critério de avaliação para promover encontros amorosos
clandestinos, o poder aquisitivo teria sido o mais valorizado para contrair núpcias com um
homem, a quem se submete em troca de uma “liberdade” controlada, haja vista que se
mantém financeiramente dependente dele.
A dependência financeira da mulher em relação ao homem suscita uma discussão
bastante oportuna por Virginia Woolf em Um teto todo seu. A sociedade patriarcal impõe à
mulher a condição de “protegida”, porquanto o homem, o “protetor”, detém o poder, o
dinheiro e a influência, uma situação que determina essa dependência, às vezes consentida e
até desejada, das mulheres. A despeito dos inegáveis avanços a partir dos anos 1960 e 1970,
do século passado, ainda se percebe uma flagrante disparidade entre os gêneros masculino e
feminino, este último que constitui, a rigor, metade da raça humana, considerada
“naturalmente inferior” e, portanto, menos capaz de sobreviver por conta própria, sem a
intervenção direta e acauteladora de um homem. Daí a necessidade de se promover a
independência financeira das mulheres, para que se safem do jugo masculino e adquiram cada
vez mais autonomia de ação e de criação. A procriação deveria ser uma alternativa, não um
encargo hereditário do qual não se possa declinar sem correr o risco de desaprovação e
críticas. O mesmo ocorre entre as nações – compostas por homens e mulheres em proporções
maiores -, quando não há proporcionalidade na troca de bens de consumo material e imaterial,
que quase sempre configura uma relação de desigualdade e de exploração da parte mais bem
provida sobre a outra. Em outras palavras, faz-se imprescindível equacionar o abismo entre as
finanças dos homens e das mulheres, para que se rompa ou se flexibilize a secular
mentalidade patriarcal e colonial ainda existentes.
No caso específico da Gusana, as mudanças ocorridas na sua vida deveram-se, em
primeiro lugar, ao novo estado civil que lhe garantiria, a princípio, um novo status
socioeconômico, e também, à transferência para uma nova situação geopolítica, em ambos os
casos, graças a um estrangeiro europeu. Por essa via, ela teve acesso a outra realidade cultural
que, sem qualquer juízo de valor, no mínimo lhe daria mais respaldo para avaliar os
benefícios e os malefícios de culturas tão díspares. Afinal, se antes em Cuba predominava a
privação, na Espanha (e também na França), se surpreendia e se deslumbrava com o consumo
desenfreado, ao qual não resiste, embora demonstrasse discernimento crítico do fenômeno:
“[...] Aquí comprar es un vicio, y yo soy una viciosa, ¡tengo una sangre para los vicios! Y la
100
televisión corrompe. En eso les doy la razón a los hablacáscaras de allá, la propaganda es
realmente enemiga, pero enemiga del bolsillo. [...]”
83
(p. 105).
Todavia, ela confessa ter-se desligado da “politicagem” e se entedia com a
intelectualidade, deixando-se deliberadamente corromper pelos apelos televisivos, e se
entrega a frivolidades, sem qualquer pudor ou culpa. O que prevalece é o efeito
compensatório que a ocasião lhe proporciona, embora, enquanto mulher, estrangeira, terceiro-
mundista, procedente de um país sob regime comunista, ela se classifique como cidadã de
terceira categoria, amenizada apenas por estar casada com um nativo europeu.
Freqüenta um curso de verão de língua francesa, pois o marido, a quem se refere por
diversos apelidos depreciativos, pretende levá-la a Paris. Mal contém o entusiasmo por
conhecer a Cidade Luz e promete à amiga enviar-lhe fotos suas com a Torre Eiffel ao fundo.
Sua ambição sempre havia sido sair de seu país para conhecer outros lugares, imiscuir-se na
cultura estrangeira e, se possível, fazer fortuna e escapar das garras de quem a submete,
embora reconheça o aspecto fantasioso de suas pretensões, bem ao gosto de filmes românticos
hollywoodianos, e que provavelmente jamais se concretizarão: “[...] Planeo hacer fortuna y
huir, pero aún no sé cómo. ¿Ves? Es como una película de Hollywood.”
84
(p. 107)
Ao casar-se com o velho galego, ela dispõe de sua nacionalidade, mas se recusa
intimamente a dispor de sua cubanidade, embora admita não padecer de qualquer espécie de
nostalgia, exceto pela amiga e pelo mar caribenho. Ela argumenta que José Martí
85
viveu a
maior parte de sua vida no estrangeiro e não houve ninguém mais cubano que ele: “[...] Yo
por dentro soy más cubana que las palmas, eso nadie me lo podrá arrancar. Tampoco soy una
patriotera extremista. Yo digo que Martí vivió la mayor parte de su vida en el extranjero, y
más cubano que él hay que mandarlo a hacer.”
86
(p. 106).
A propósito do poeta cubano, ela confessa desprezar a consigna atribuída a ele e que
serve de epígrafe ao sexto capítulo: “Sólo los cristales se rajan, los hombres mueren de pie”
(p. 93). Ela não suportaria acordar dia após dia e deparar-se com um lema que incitava a todos
a morrerem de pé, numa demonstração de força inquebrantável, em oposição aos delicados
83
“Aqui comprar é um vício, e eu sou uma viciada, tenho sangue para os vícios! E a televisão corrompe. Nisso
dou razão aos contadores de lorotas daí, a propaganda é realmente inimiga, mas inimiga do bolso.”
84
“Pretendo fazer fortuna e fugir, mas ainda não sei como. Está vendo? É como um filme de Hollywood.”
85
Escritor mártir da Independência cubana, figura de destaque no momento de renovação das letras cubanas, que
transitavam do Romantismo para o Modernismo hispano-americano. Também conhecido como “a voz da
América”, símbolo vivo da luta americana pela liberdade e contra o jugo colonial espanhol. (BELLINI, 1986,
p. 280).
86
“Eu por dentro sou mais cubana que as palmeiras, isso ninguém poderá me tirar. Tampouco sou uma
patrioteira extremista. Eu digo que Martí viveu a maior parte de sua vida no estrangeiro, e está pra nascer
alguém mais cubano que ele.”
101
cristais, que se rompiam. Ao contrário do que se supunha – ela acrescenta -, os frágeis e os
fortes se rompiam igualmente, no entanto, ela mesma, do sexo frágil, estava mais intacta do
que nunca e pretendia morrer como a maioria dos humanos, na horizontal. Mesmo porque, só
de pensar em morrer na vertical, lhe causava dores nos pés. Essa era a sua vertente iconoclasta
que não sucumbia à mitificação indiscriminada dos ídolos nacionais, nem mesmo Martí, pois,
ainda segundo ela, se de fato a frase se deve a ele, apenas comprova que todos estão sujeitos a
equívocos, e que nem sempre se pode ser brilhante e irrepreensível. Fosse como fosse, ela não
concebia a perpetuação da crença incondicional em uma verdade militarizada e autoritária.
Para ela, a vida é civil: “[...] Y no acaban de darse cuenta de lo insoportables que resultan, de
lo invisible que es esa impuesta realidad. ¡Coño, la vida es civil!”
87
(p. 107).
Para finalizar a carta, a Gusana aborda um tema relacionado com o Lince, um rapaz
por quem se apaixonou antes de deixar a ilha. Confidencia que completava um mês exato que
o Lince havia fugido de Cuba numa balsa artesanal com outros companheiros, e todos –
exceto ele – teriam se afogado. Os despojos foram encontrados à deriva e o sobrevivente
resgatado por uma embarcação norte-americana. Ele mesmo lhe teria relatado o episódio, por
telefone. Entre surpresa e perplexa, ela o repreendeu por ter-se arriscado nas águas do mar.
Ela se despede e adverte a amiga que não lhe apresente ao Niilista, porque ela o roubaria. E
encerra: “[...] Cuando mires al mar ruégale a Yemanyá por el Lince y por mí. No nos olvides.
Te beso eterna. Tu Gusana.”
88
(p. 108).
A Gusana não faz menção alguma em retornar ao país de origem, a despeito da aversão
que nutre pelo marido espanhol. Jamais cita seu nome; prefere referir-se a ele como Moby
Dick
89
, a baleia branca, por Foca, por Marmota, por Urso Polar e até por Dinossauro,
animais
90
cujo traço em comum mais marcante é o porte avantajado, além das características
específicas que os singulariza. Apesar dos predicados pouco elogiosos, ela reconhece no
87
“E não se dão mesmo conta do quanto são insuportáveis, do quão invisível é essa realidade imposta. Porra, a
vida é civil!”
88
Quando olhar para o mar, reze a Iemanjá pelo Lince e por mim. Não nos esqueça. Te beijo eterna. Tua
Gusana.”
89
Em termos simbólicos, a baleia constitui um símbolo de regime noturno associado ao gigantismo, ao ventre,
cujo reflexo dominante é o digestivo. A cor branca sugere a ascendência européia do marido: o fardo pesado
que a subjuga e o fardo colonial que oprimiu os países colonizados. A baleia simboliza a escuridão abissal e
misteriosa, em oposição à claridade, à transparência. (DURAND, 1989, p. 41).
90
Os demais animais teriam relevância maior em relação ao aspecto físico e aos hábitos do marido. A título de
ilustração, cita-se a marmota, um mamífero roedor de cabeça grande, orelhas pequenas, pelagem espessa,
unhas curvas e fortes, que passa o inverno em estado de letargia; além de ser um termo pejorativo para referir-
se àqueles que tendem a dormir muito, serem pouco inteligentes ou terem gosto duvidoso. O urso detém o
papel iniciático de animal devorador, associado à lua, que aparece e desaparece conforme a estação. Estes
animais tanto podem representar o monstro sacrificador como a vítima sacrificada. (ibidem, p. 216).
102
galego a única alternativa viável de sair de Cuba, mesmo que lhe custasse abrir mão de seu
amado e pobre Lince.
Yocandra emociona-se ao ler a carta, ao mesmo tempo em que se revolta ao constatar
a dispersão dos amigos pelo mundo, forçados pelas contingências políticas e socioeconômicas
a renunciarem a seus sonhos e a si mesmos. Em seus devaneios, ela rememora a trajetória do
Lince, pouco tempo depois da partida da amiga, que o preteriu por razões econômicas. Ele
havia se graduado em História da Arte, mas como era um sem-teto (dormia em balsas
plásticas debaixo de escadarias de prédios), decidiu trabalhar de pedreiro em mutirão, para
assegurar sua sobrevivência. Meses depois, o Governo lhe concede um apartamento e, dias
mais tarde, lhe contemplaram com uma residência “régia” em Miramar, bairro residencial “de
época”, onde, porém persistiam os problemas de fornecimento de água, de luz e de gás. A
despeito do caráter pouco diligente, o Lince gozava da fama ter muita sorte. Recupera a
paixão pelas artes plásticas e consegue enviar a um concurso no Japão um quadro de sua
autoria, que, vitorioso, lhe rende um prêmio milionário, com o qual reforma e redecora a nova
residência.
Denunciado por membros do CDR diante das supostas “extravagâncias” do Lince, o
Governo toma providências para coibir seus abusos. O rapaz recebe em casa a visita
inadvertida de uma comissão sob a acusação de ter-se convertido num novo rico, motivo pelo
qual, recebe voz de prisão e o aviso de confisco dos bens. Incrédulo, ele lhes mostra o
diploma do prêmio a ele conferido pelo governo japonês que, obviamente escrito na língua
oriental, resultou-lhe inútil para comprovar a licitude das aquisições. Amontoaram todos os
seus pertences num caminhão e lacraram a sua casa. Foi julgado e declarado culpado.
A um passo da carceragem, surgiu o ministro que havia adquirido, em Tóquio, o
quadro premiado, e quis conhecer o autor, o que provocou uma súbita reviravolta nos
bastidores governamentais. Providenciaram o encontro do parlamentar japonês com o
afortunado Lince, não sem antes lhe aplicarem alguns pontapés. Alojaram o rapaz no Hotel
Nacional e recompuseram a sua imagem, no intuito de que ele cumprisse seu papel na farsa
montada para impressionar o representante nipônico. A entrevista dura alguns minutos
durante os quais somente o japonês se manifestou, sorridente e reverente. O Lince apenas o
cumprimentou com um “bom dia” e dele se despediu com um “adeus”, e recebeu do ministro
um bonsai cultivado especialmente para o cubano, seu pintor preferido. A seguir, o
parlamentar foi conduzido a uma reunião de negócios, enquanto o Lince é reconduzido a suíte
do hotel, onde lhe informaram que sua reserva havia acabado de expirar. De volta à condição
de sem-teto, ele é lançado à rua com um bonsai na mão, sem ter onde passar a noite.
103
Yocandra lamenta que em Cuba todos já nascessem culpados, que cada ato era
passível de fazer rolar cabeças. A amizade que a une aos amigos, presentes ou não, se estreita
devido à angústia diária, o terror da súbita certeza da inutilidade de suas vidas, “o rancor do
nada” (p. 113). Ela reflete sobre a juventude perdida e os dominados por um sentimento de
exílio de si mesmos, de desterro, sem alternativas que os desobrigasse a uma obediência
imposta pelas circunstâncias. Para não destoar, convinha-lhes adotar uma conduta mais
discreta que não revelasse suas dúvidas, seus questionamentos, sob pena de sofrerem sanções.
Daí, a conveniência em acatar certas convenções, inclusive dissimular expressões de
desolação do rosto sob uma máscara de contentamento, de combatividade.
Ironiza que sobre as costas da geração “dos felizes” pesa demasiada glória, a despeito
da culpa pelos fuzilamentos. Ainda assim, por medo, continuavam a acreditar nos editoriais
do Granma, jornal oficial do governo cubano: “[...] A la generación de los felices le pesa
desgarradoramente en las espaldas demasiada gloria. Nunca podremos erguirnos totalmente
por culpa de los fusilamientos. A pesar de que nos temblaban las barbillas, seguíamos
creyendo en los editoriales de Granma. Y las motivaciones, en ciertos casos, fueron
oscuras.”
91
(p. 114).
Yocandra conheceu o Lince numa sessão de vídeo na casa de um amigo comum, onde
assistiram a Taxi Driver (filme de 1976, dirigido por Martin Scorsese, estrelado por Robert de
Niro e Jodie Foster). Embora já bastante popularizado em outras partes do mundo, o VHS ou
vídeo cassete era “um artefato moderníssimo” em Havana, a “Cidade-Laboratório”. Via de
regra, o atraso tecnológico era atribuído ao embargo norte-americano, o que redimiria o
Governo do anacronismo resultante da retrógrada política adotada em nome do bem-estar
social: “[...] El vídeo era un invento bastante conocido en el mundo, pero acababa de entrar en
La Habana, Ciudad-Laboratorio. Como siempre éramos los últimos del planeta en enterarnos,
y una vez más culpábamos al bloqueo.”
92
(p. 115).
O Lince era o único que sabia operar aquele aparelho, com uma destreza que
encantava aos demais. Através do controle remoto despertava a curiosidade de alguns, que
procuravam familiarizar-se com os comandos, e o desdém invejoso em outros, que se sentiam
inferiorizados por ignorarem os avanços tecnológicos em voga. Além do apreço pelas
novidades tecnológicas, o rapaz também demonstrava um comportamento algo inusitado para
91
“Pesa dilaceradamente sobre as costas ‘dos felizes’ demasiada glória. Nunca poderemos erguer-nos totalmente
por culpa dos fuzilamentos. Embora nosso queixo tremesse, continuávamos a acreditar nos editoriais do
Granma. E os motivos, em certos casos, eram obscuros.”
92
“O vídeo era um invento bastante conhecido no mundo, mas acabava de entrar em Havana, a Cidade-
Laboratório. Como sempre, éramos os últimos no planeta a saber, e uma vez mais culpávamos ao bloqueio
[norte-americano].”
104
os padrões vigentes, seja em decorrência da carência de recursos econômicos, seja pela
adoção de um vestuário considerado impróprio pelos mais conservadores. Quando cursava
História da Arte, ele decidiu adotar a boina e a calça tubo, estilo Beatles, algo que lhe pareceu
banal e inofensivo, sobretudo porque o curso que freqüentava era considerado um reduto
acadêmico mais tolerante.
Numa determinada tarde, porém, adentra a sala de aula a professora de Estética,
conhecida como a Macha Realista Socialista, que se dirige até o Lince e retira, de um
golpe, a boina que ele usava, e com uma tesoura em punho, corta a zero o cabelo do jovem.
Ele ainda tenta desvencilhar-se alegando que Che também usava boina e cabelos longos,
argumento que, ao invés de declinar, desperta ainda mais a fúria da mulher. Inconformada, ela
declara que ele só se parecia com Che se fosse pela asma, ao que ele, insistente, se declara um
seguidor entusiasta e fiel do lema “Seremos como el Che”. Encolerizada pela ousadia, ela
saca do bolso da saia cinza uma navalha cigana, que ameaça usar no pescoço do rapaz,
enquanto dispara a sua verborragia intimidadora: “_ Para ser como el Che hay que tener unos
cojones que tú, cacho de mariquita, nunca tendrás en tu puñetera existencia de mierda.”
93
(p.
117). Impotente e humillado, ele sente a lâmina tocar seu pescoço, e gotas de sangue
mancharem sua camisa branca de nylon. Subitamente, ela se ajoelha à sua frente, como se
fosse pedir-lhe perdão, expectativa logo desfeita, pois ela passa a desferir tesouradas em sua
calça tubo, transformando-a em trapo. Uma calça que lhe havia custado uma cota de cinco
meses de arroz.
Não foi expulso por ter defendido brilhantemente sua tese e por estar prestes a receber
o diploma, mas a partir do episódio, estaria predestinado à fuga, pois dificilmente deixaria de
ser uma persona non grata. As pessoas como ele deveriam aprender a enfrentar caladas as
arbitrariedades praticadas em todas as instâncias, que procuravam extirpar qualquer espécie
de expressão individual consideradas ameaçadoras. Mais tarde, o Lince seria designado a
prestar serviços sociais em Moa, atuando na construção da Casa de la Cultura, projeto tão
bem sucedido que lhe valeu a indicação para repetir a proeza nos subúrbios de Havana, a
“Cidade-Experimento” (p. 120). Desta vez, isolado, se dá por vencido – a pior das fraquezas
para um cubano. Pede autorização para atuar como desenhista numa revista literária, onde,
mais tarde, Yocandra, recomendada por ele, viria a ocupar o cargo de diretora, já que o antigo
chefe de redação havia desertado e não dispunham de alguém “capaz” (entenda-se militante)
para substituí-lo.
93
“_ Para ser como o Che, é preciso ter uns colhões que você, projeto de maricas, jamais terá na sua fodida
existência de merda.”
105
Dois anos depois, ele consegue mudar-se para o modesto apartamento, situação que
não atendia aos propósitos de estabilidade da Gusana. Assim, sem qualquer expectativa de
uma reviravolta positiva na vida do amado, ela opta pelo galego e parte com ele para a
Espanha. Ironicamente, pouco tempo depois, ele é agraciado com o prêmio japonês, que lhe
permitiu desfrutar de um padrão de vida que, se por um lado, coadunava com preferências
pessoais mais requintadas, por outro, despertaria a ira do regime, para o qual o seu estilo era
inaceitavelmente ostensivo. Resultado: patrimônio confiscado e voz de prisão, da qual se
livrou pela intervenção providencial do ministro japonês -, cabendo-lhe depois um destino
incerto.
Devolvido à rua, com direito apenas à roupa do corpo e a um bonsai constitui uma
cena com certo apelo cinematográfico, cuja imagem se congela, para encerrar o flash-back. O
que a narradora não testemunhou pessoalmente, só foi possível ser repassado ao leitor, tempos
depois, mediante uma ligação telefônica. Depois de sobreviver a um naufrágio durante a fuga
da ilha, o próprio Lince, então refugiado em Miami, liga para Yolanda. Ela reconhece o ruído
caracterizador de grampeamento do aparelho, o que significava tratar-se de uma chamada
internacional. Um estado constante de policiamento, onde os mínimos movimentos do
cidadão são controlados pelo Governo: “[...] Un pitico rarísimo, detrás otro ruido como de
falso tono – ahí ya te pincharon el teléfono -, era una llamada de larga distancia.”
94
(p. 123).
Surpresa, Yocandra reconhece a voz do amigo do outro lado da linha. Comovida, ela
declara seu afeto pelo amigo a quem se refere como o “anjo que se foi para o Norte”, e que
Havana, a “Cidade Mortalha”, agoniza por ter perdido mais um havanês ilustre. Procede-se,
então, uma ruptura do diálogo para conceder a vez a um longo monólogo da narradora que
discorre sobre seus sentimentos de perda e de isolamento, algo improvável de ocorrer na
realidade, sobretudo sob a condição de grampeamento.
Ela indaga sobre a possibilidade de ele regressar algum dia, “radiante e sem vingança,
como costumam regressar os anjos” (p. 124), faz-lhe promessas de oração e de oferendas a
Elegguá
95
para protegê-lo e “abrir seus caminhos”. Aconselha-o a não se deixar contaminar
pelo que ela chama de “síndrome do cubano”, referindo-se à saudade de Cuba, nem tampouco
negá-la, mas senti-la aos poucos, sem obsessões, para que seja alimento espiritual, e não
veneno: “[...] No te dejes arrastrar por el síndrome del cubano, de la jodida nostalgia.
94
“Um apitinho estranhíssimo, depois outro ruído de falso tom – aí já te grampearam o telefone -, era uma
chamada de fora.”
95
Orixá das entradas e dos cruzamentos. Um dos santos guerreiros, como Xangô, Ogum, Oxossi e Ossum,
atrelado a um dos sete poderes africanos. Suas cores são o vermelho e o preto. É o mediador entre os homens
e todos os demais orixás, e por isso, comparado ao deus Hermes, dos gregos. Guardião do portal entre os
mundos divino e material (EMICK, 2002, vide r.m.e.).
106
Tampoco la niegues, dosifícala, súfrela, pero sin obsesiones, que sea alimento espiritual y no
veneno. [...]” (p. 124).
O arrebatamento emocional provocado pelas revelações permeia o monólogo
desenfreado e comovido, de ambas as partes. Ela o festeja com a cumplicidade natural
cultivada entre grandes amigos, separados por contingências da vida, e o aconselha a não mais
desafiar aquele mar que os separa e os une, a não subestimar as armadilhas do oceano. Cruzá-
lo, às vezes, poderia ser pior que a morte. Mesmo ao admitir o desespero que o teria movido,
ela não aprova as fugas via mar, por considerá-las uma batalha perdida de antemão.
Milagroso, o caso do Lince teria sido mais um de seus golpes de sorte. Ela discorre sobre os
meandros de um cubano exilado, sem direito sequer a um túmulo, ponto em que a narrativa é
dominada por um tom sombrio, melancólico, aguçado pelo sentimento de inadequação à
realidade do país e à morte.
Ele admite os perigos da fuga, mas prefere enfrentá-los a submeter-se ao racionamento
diário de alimentos e ao fornecimento per capita de provisões. Exasperavam-no os horários
de apagões publicados diariamente no único jornal de duas páginas disponível, e que nunca
correspondia à verdade. Uma sujeição com drásticos efeitos psicológicos sobre suas vidas, e
que não se diferenciava muito dos infortúnios sofridos na prisão. Em Miami, ele havia
encontrado velhos amigos solidários, embora lamentasse a ausência de Yocandra, da Gusana
e de outros tantos com os quais sempre sonhava, pois, para ele, “viver no exílio aguça o
estado onírico” (p. 129).
Neste aspecto, através do diálogo entre Yocandra e o Lince, a literatura cumpriria a
sua função denunciadora. Os depoimentos são dirigidos ao leitor, a quem se atribui o papel de
auditor e juiz, capaz de aquiescer ou rejeitar os argumentos expostos. Ao longo do diálogo,
perde-se a espontaneidade natural de uma conversa entre amigos, para ceder lugar a um tom
mais solene, com uma aura mais “literária”, mais cuidada, com parágrafos extensos,
monológicos, em que a personagem interlocutora desaparece.
Se o cotidiano real não lhes concede voz, ela se expressa via ficção. Afinal, naquele
contexto, a comunicação privada, mediante uma simples ligação telefônica, sempre estaria
sujeita ao controle do Estado, de modo que o cidadão “sob suspeita”, aquele que não
coadunava com o sistema estabelecido, deveria usar de subterfúgios para poder se
desvencilhar do policiamento e se fazer ouvir. Neste aspecto, quando bem articulada, a
literatura convert-se num porta-voz eficaz contra os mecanismos repressivos utilizados por
regimes autoritários.
107
A questão do impacto cultural experimentado pelo Lince em Miami, reside sobretudo
no fato de ele estranhar o anonimato, de ser um desconhecido em terras estranhas, numa outra
espécie de ostracismo que ele aceita com certo humor. Não obstante, ali ele adquire certa
estabilidade, mesmo tendo que trabalhar clandestinamente para sobreviver, apesar de já contar
com ofertas de trabalho para quando se legalize a sua permanência em território norte-
americano. Também consegue alugar um apartamento modesto, com vista para o sótão
hexagonal de Yocandra, para quem ele envia beijos todas as manhãs, desde a outra margem
do mar.
O mar consiste numa linha divisória a separar os dois lados - o ícone do capitalismo e
o ícone do comunismo remanescente -, que se tocam pelas mesmas águas. Em ambos os
territórios, o Lince pertenceria à margem. Em Cuba, ele havia sido condenado à prisão
acusado de um comportamento “inadequado” para os parâmetros socialistas, salvo por um
golpe fortuito do destino que o salvou temporariamente, sem, contudo, sinalizar com qualquer
perspectiva de sobrevivência futura. Na sua terra, seria olhado com desconfiança, um
potencial traidor do sistema. A única saída vislumbrada foi a fuga pelo mar. Já em Miami,
deveria submeter-se a um rigoroso processo burocrático para, uma vez amparado pela lei do
país receptor, tivesse reconhecida a sua cidadania, conquanto não se tratava de um habitante
natural daquele território. A despeito do amparo legal, ele não deixaria de ser um cidadão de
segunda categoria, estrangeiro e pertencente a um grupo discriminado, por ser de origem
hispânica.
É curioso notar que o triunfo da Revolução Cubana não foi suficiente para,
efetivamente, transformar o país em um modelo de justiça social e de política igualitária de
modo incontestável e unânime. Os métodos utilizados para a manutenção de Castro no poder,
via de regra, teriam estabelecido, paradoxalmente, um clima constante de desconfiança mútua
entre a população, sem direito à livre expressão ou a movimentos contestatórios de qualquer
natureza. Observa-se que o descontentamento partia de cidadãos que pertenciam à camada
mais intelectualizada, de modo a presumir-se que teriam consciência de sua condição, tal
como o Lince e a própria Yocandra. Não obstante, nenhum dos dois, ou de outras
personagens, teria sido adepto da luta armada, seja contra o imperialismo – afinal, a revolução
já era uma realidade -, seja contra a ditadura implantada no país, a qual não aceitavam.
Ser uma ilha de dimensões reduzidas, rodeada por águas infestadas de tubarões,
contribuía consideravelmente para a eficácia de operações do Governo empenhadas no
desmantelamento de ações anticastristas. Fugir através do mar, contudo, se apresentava como
única alternativa, apesar de ser uma empreitada arriscada e com chances remotas de êxito.
108
Neste sentido, é de se supor que as condições extremamente desfavoráveis de travessia,
praticamente anulassem a participação de mulheres nesta empreitada. A própria estrutura
machista, patriarcal, na qual as mulheres ocupavam posições submissas e quase sempre
relegadas a um papel de meras reprodutoras, fazia com que, para elas, lhes restasse como
saída o matrimônio por conveniência com um estrangeiro rico (como no caso da Gusana) ou
mesmo com um nativo (como no caso de Yocandra). Pelos próprios méritos, as mulheres
talvez tivessem obtido mais destaque nas frentes de luta armada à época da revolução
socialista liderada por Castro, com base nas doutrinas de Marx.
Ao que parece, porém, a utopia marxista que acusava tanto o capitalismo de em nada
ter contribuído para a mudar a degradação econômica e social das mulheres, quanto a família
burguesa, por oferecer apenas servidão doméstica, tampouco cumpriu as promessas
revolucionárias. A teorização contradizia as práticas resultantes das relações existenciais entre
o eu e o outro – mulher-homem, margem-centro -, de modo que a mulher, por suas condições
“naturais”, permanecia numa posição tão desprivilegiada quanto antes, salvo pelo fato de
estarem todos, homens e mulheres, igualmente sujeitos ao policiamento político-ideológico. O
Pai-Comandante os manteria sob sua proteção e controle, inclusive através de escutas
telefônicas, como a registrada entre Yocandra e o Lince.
Assim que o amigo se despede, depois de avisar que a ligação via Canadá lhe custaria
uma fortuna, Yocandra retoma a sua realidade. Agenda ir à companhia telefônica, o quanto
antes, para solicitar que lhe religassem a linha, pois a Seguradora sempre a cortava ao
constatar a ocorrência de ligações internacionais. Seriam sete da noite e só então se deu conta
da duração do telefonema, de modo que deveria apressar-se, pois à noite receberia a visita do
Niilista. Diferente do tratamento dispensado à sensualidade da adolescente de outrora em
busca de experiência, o enfoque agora se ocupa de uma mulher madura sexualmente. Se antes
a garota Pátria havia se envolvido em arriscados rituais de iniciação sexual, talvez demasiado
precoce para a época, em busca de seu “príncipe encantado”, agora, a mulher Yocandra é
quem recebe, segura de si, o homem amado, sem dissimular a intenção de seduzi-lo.
Despojada de pudores irrelevantes, a nudez circunstancial antecipa o teor do capítulo
seguinte, o oitavo, dedicado a um encontro amoroso, razão pela qual, se inicia com a
insinuação de um censor acerca dos oitavos capítulos da literatura cubana, que estariam todos
dedicados à pornografia: “Parece que los capítulos ocho de la literatura cubana están
condenados a ser pornográficos.” (p. 133).
A frase atribuída a um funcionário do Governo encarregado de avaliar e qualificar a
obra em foco, realça a intenção metaliterária, quando se prevê a conversão dos “depoimentos”
109
em literatura: a vida “real” se transplantaria para a ficção, embora estivesse passível de
sujeitar-se não só ao crivo de um censor, como também de um crítico literário. O comentário
inicial antecipava a predisposição de ambas as partes – censor e crítico – em depreciar ou
desqualificar obras que não se enquadravam aos parâmetros hegemônicos, ou seja, estariam
relegadas à margem do cânone, dos paradigmas sociais, políticos e estéticos dominantes.
As obras não recomendáveis pelo establishment do momento, produzidas num
contexto político autoritário – de direita ou de esquerda -, correriam sempre o risco de
sofrerem cortes, de serem sumariamente censuradas ou retiradas de circulação. O critério
básico consistiria na “inadequação” de uma suposta postura ideológica diluída nas entrelinhas
do enredo, contrariando as determinações de algum conselho deliberativo governamental.
Por sua vez, também estariam sob o crivo da crítica literária acadêmica, que não raro
defende uma leitura unívoca e contrária a desvios de normas sacramentadas como cânone.
Não obstante - ao contrário dos burocratas do regime castrista -, a crítica literária oficial, a
despeito de seu poder de influência no ajuizamento valorativo das obras, não detém poder de
veto à circulação das mesmas, nem de interferência [direta] no seu conteúdo, nem no seu
desempenho mercadológico.
Os critérios adotados por ambos, embora atendam a interesses aparentemente díspares,
revelam o conservadorismo dos poderes instituídos, inclusive os acadêmicos, sobretudo com
relação a obras escritas por mulheres. Em vista disso, habituada a tais procedimentos
discriminatórios, a narradora antevê o tratamento depreciativo a que será submetida a sua
obra. Assim, na intenção equivocada de desqualificá-la, o censor compara este ao oitavo
capítulo de Paradiso (obra reconhecida mundialmente, publicada em capítulos na revista
literária Orígenes, 1941-1956, portanto uma obra pré-revolucionária), de Lezama Lima. Ao
contrário do que pudesse supor o desdém do censor, a comparação seria motivo de honra para
a narradora/autora, que através do erotismo confere um efeito transgressivo à linguagem
literária. Tal como em Paradiso, o capítulo seria taxado de pornográfico, haja vista que
explora as zonas marginais que permanecem inacessíveis a qualquer forma de poder que
pretenda reduzi-las ao discurso do status quo. (Cf. MARTÍNEZ, M. I., 1999, p. 3, vide
r.m.e.). De qualquer maneira, não se tem conhecimento da procedência da associação dos
oitavos capítulos à pornografia na literatura cubana.
É possível que se deva a uma mera intervenção do acaso, embora se possa também,
através do viés simbólico, articular algumas aproximações. Ao partir da idéia de que “toda
linguagem transmite e comunica experiências”, a linguagem dos símbolos “vive a tensão que
há entre o significante e o significado”, além de dar margem a uma riqueza de interpretações
110
que mesmo os significados opostos podem combinar-se em um único símbolo, embora quase
sempre de maneira vaga e incompleta. Todavia, independente da possibilidade de imprecisões
interpretativas, a abordagem simbólica torna possível a reativação de resquícios de nosso
“pensamento plástico” atrofiado ao longo de nossa evolução (LEXIKON, 1990, p. 8). Por sua
vez, a aposta numa mera “obra do acaso” reduziria os riscos interpretativos, na mesma
proporção em que limitaria a força que a linguagem literária poderia suscitar através de uma
obra.
Neste sentido, entre outras possibilidades, o oito é o número das direções cardeais da
rosa-dos-ventos em sua forma mais simples, e também o número da ordem e do equilíbrio
cósmico. No budismo, representa o número de raios da Roda da Lei búdica; no hinduísmo, o
deus Vishnu tem oito braços que correspondem aos oito guardiões do espaço. No simbolismo
cristão, associa-se ao oitavo dia da criação, ou seja, à nova criação do homem, e por esta
razão, simboliza ao mesmo tempo a ressurreição de Cristo [do corpo material] e a esperança
na ressurreição da humanidade (ibidem, p. 147). Expansão [espacial], mobilidade e renovação
seriam, portanto, as palavras-chave associadas ao capítulo oitavo, dedicado precisamente à
sexualidade, um dos grandes tabus atacados na luta pela libertação da mulher, e que gerariam
as ações que as três palavras sugerem.
Em vista da complexidade, ou antes, sofisticação de Paradiso, a narradora acredita
que dificilmente um censor teria conseguido lê-la até o fim, devido a sua bisonha capacidade
de discernimento literário. Sequer a “pornografia” enquanto recurso apelativo para despertar
o interesse dos leitores menos exigentes lhes serviria de atrativo, embora tampouco eles
soubessem distinguir erotismo de pornografia. Ciente da previsibilidade dos argumentos da
censura a esse respeito, ela ironiza que não só o oitavo capítulo de Paradiso seria erótico, mas
toda a obra, “una de las novelas más sensuales de la literatura contemporánea”, e que por
razões mais políticas que literárias, “los censores han terminado siendo más lezamianos que el
Papa”
96
(p. 134). Ou seja, os burocratas da estética conseguiam descobrir na obra de Lezama
– e em outras – inversões de valores da moralidade cristã insuspeitáveis até mesmo pela Igreja
católica.
Essa incursão reflexiva sobre os meandros da censura que rompe temporariamente o
fluxo normal da narrativa, constitui um recurso utilizado especialmente pelo nouveau roman.
Ao contrário da lógica de ações do modelo tradicional de narrativas – contínua e linear -, essa
pausa propicia a manifestação da subjetividade da narradora. Não se trata apenas de registrar a
96
“Os censores acabavam sendo mais lezamianos que o Papa.”
111
sua presença, mas de ratificar sua posição nos planos ideológico e afetivo, em oposição à
neutralidade das narrativas históricas. (REIS & LOPES, 1996, p. 126, 193-194). Após a pausa
descritiva, retoma-se a narrativa com um salto temporal de uma hora: Yocandra continuava
nua à espera do Niilista, quando o relógio então marcava oito e meia. Quase congelada pela
baixa temperatura do ar condicionado, ouvia Show me the way [Mostre-me o caminho], uma
balada romântica do pop rock, de 1974, cantada por Peter Frampton.
Como diretor de cinema, o Niilista chegou a dirigir alguns vídeos musicais e a realizar
um longa-metragem, a partir da reutilização de sobras de películas desperdiçadas por diretores
reconhecidos. Durante sete anos, teria passado por uma diversidade de situações
contraditórias, como prêmios, interrogatórios, prisão, confinamentos, dissidência e
reintegração, de modo que sua ocupação seria um tanto indefinida, haja vista que seu filme só
teria sido exibido uma única vez, durante um festival. Por exibir uma abordagem de tendência
pós-existencialista, a fita se mantinha restrita ao circuito alternativo, visto que o povo cubano,
igualmente pós-existencialista, poderia ressentir-se ao se deparar com a própria imagem
refletida na tela. Seria, portanto, mais recomendável – segundo as conveniências do regime -,
oferecer musicais populistas e vulgares, que fomentassem uma identidade menos dura, mais
falsamente “agradável” de se ver e explorada à exaustão como atrativo turístico: “[...]
Brindémosles musicales populistas, bien vulgares. Primeros planos de meneos de culos con
celulitis – a cualquier modelo de diecisiete años ya se le malograron las nalgas, la tersura de
un culo no resiste el bombardeo de chícharos – tetas caídas, pelos oxigenados, pestañas
postizas y mucha alegría, de la buena, de la tropical, la tentadora del turismo, la
falsísima.[...]
97
(p. 135).
A crítica ácida dirigida à discriminação sofrida por produções artísticas mais
elaboradas ou mais questionadoras em favor de outras, medíocres ou coniventes, revela a
reiteração das estratégias populistas de dominação. Ver-se a si próprio, afinal, poderia
despertar reflexões indesejáveis, haja vista que o cinema detém um forte potencial
denunciativo subliminar às imagens que projeta, com resultados imprevisíveis. Daí ser mais
conveniente para os detentores do poder a exibição de imagens de jovens seminuas
esbanjando uma alegria fabricada, transformada num produto de exportação mais alinhado
com a modernidade. Afinal, cana-de-açúcar e charuto não seriam artigos tão eficazes para
97
“Ofereçamos musicais populistas, bem vulgares. Primeiros planos de requebros de bundas com celulite –
qualquer modelo de adolescente de dezessete anos já tem as nádegas condenadas, a boa textura da bunda não
resiste ao bombardeio de torresmos – peitos caídos, cabelos oxigenados, cílios postiços e muita alegria, da
boa, da tropical, a tentação do turismo, a falsíssima.”
112
convencer turistas – sobretudo do sexo masculino – a aportarem em Cuba com a bagagem
repleta de dólares.
Propaganda socialista e propaganda capitalista atendem ao mesmo interesse: eternizar-
se no poder, através da difusão de uma falsa idéia de felicidade do povo, de êxito
irrepreensível dos programas de governo, de acatamento incondicional dos procedimentos
adotados para conduzir os rumos da nação. As mensagens subliminares se imiscuem nas
imagens consumidas pelo inconsciente dos espectadores mais incautos, logo convencidos das
“verdades” ali contidas. Como se sabe, uma velha estratégia utilizada, entre outros, pelos
nazistas, fascistas, stalinistas, e também para a demonstração de prosperidade do velho
“american way of life”.
Já os videoclipes realizados pelo Niilista contrariavam essa premissa adocicada da
realidade, de tal forma que não teriam obtido boa receptividade do público, devido à postura
pós-existencialista dos roqueiros sobre os quais versavam. A despeito do apelido, o Niilista
continuava, contudo, movido pela esperança e pela dedicação próprias de jovens artistas em
início de novo projeto: no seu caso, um segundo longa-metragem de ficção. O roteiro tratava
do percurso de três jovens amigos de um ponto a outro do Malecón, até que, no clímax, se
desentendem e um deles parte para Miami numa bóia de borracha. No final, a moça por quem
o protagonista se apaixona morre afogada ao tentar a travessia com ele, em outra bóia – uma
história que guardava muita semelhança com ocorrências da vida real de cubanos
descontentes, além de sugerir a ocorrência de mise en abyme, como prenúncio do que
sucederia aos três amigos reais. Ciente da possibilidade remotíssima de ter seu projeto
aprovado pelos censores, por seu conteúdo “inadequado” e sob recomendações de
reestruturação geral, ele achou por bem abandoná-lo, mais paranóico do que triste: “[...] Y
claro, es un guión que habrá que re-trabajar, re-escribir, re-pensar, re-modelar, re-cambiar, re-
tomar, re-botar. Re-primir. El Nihilista, que no es bobo, lo abandonó, se calló, se hizo a un
lado. Más paranoico que triste.”
98
(p. 136).
Yocandra o conheceu nessa época, durante uma sessão no festival de cinema jovem,
junto a Gusana, o Lince e de companheiros, para voltarem a se ver dois anos depois, quando,
a ponto de suicidar-se ou de lançar-se ao mar, o Niilista teria sido finalmente demovido da
idéia pelos amigos. Nesta data, os três teriam assistido ao filme do jovem cineasta, cujo teor
gerou um conflito de opiniões entre ele e o Lince, embora, no final, o Niilista termina por
98
“E, claro, é um roteiro que ele terá que re-trabalhar, re-escrever, re-pensar, re-modelar, re-dimensionar, re-
tomar, re-lançar. Re-primir. O Niilista, que não é otário, o abandonou, se calou, deixou de lado. Mais
paranóico do que triste.”
113
voltar ao “reino deste mundo”, numa alusão à obra El reino de este mundo (1949), de Alejo
Carpentier (1904-1980), que conferiu um tratamento especial ao realismo mágico cubano.
Yocandra preferiu omitir-se, mais interessada em consolar (e seduzir) o jovem e
atraente cineasta, com seus atributos de fêmea, sob a bênção da “santíssima Oxum” e da
“maternal Iemanjá”. Naquela mesma noite, ele ligaria para ela sob o pretexto de saber sua
opinião sobre a fita; e ela, mais astuta que cautelosa – já que o tema discutido por telefone
poderia implicar no corte da linha -, o convida para assistirem a outro filme, The Doors
99
,
protagonizado por Jim Morrison (1943-1971). Dez minutos mais tarde, ele bateria à sua porta.
Farta das companhias efêmeras de que desfrutava, Yocandra buscava um “amante
eterno” e parecia tê-lo encontrado. Todavia, despojada de sentimentalismos, ela pretendia
preservar a sua individualidade e incentivar o espírito cooperativo na relação.
Duas seriam as ocasiões neste capítulo em que se descreve minuciosamente a relação
sexual entre Yocandra e o Niilista, motivo de escândalo para a moral puritana afeita a
apreciações de foro íntimo mais discretas. As metáforas e o vocabulário sem adornos criam
um “efeito de crueza” (ibidem, p. 3) e de provocação, em que a sexualidade aparece
desmitificada, exposta sem pudores com o intuito de transgredir o proibido, e atingir a censura
em seus discursos mais pudicos.
O frêmito da relação leva Yocandra a orgasmos múltiplos, a ponto de provocar-lhe
“visiones fantasmagóricas, de realidad virtual” (p. 151). Ela compara aquela noite às nove
semanas e meia
100
, em referência ao filme homônimo, de 1986, um clássico do cinema
erótico, em que se entrecruzam fantasia e domínio, desejo e insanidade, com a diferença de
que, em vez de morangos, cerejas, chantili e champanhe, usaram ungüento chinês como
estimulante dos sentidos. Outra diferença entre os veículos no tratamento do sexo explícito
seria de ordem instrumental, haja vista que o filme se fundamenta nas imagens, enquanto a
literatura se fundamenta nas palavras. Na literatura, as palavras não só são imprescindíveis,
como detêm uma força expressiva capaz de causar um impacto mais contundente do que nas
cenas fílmicas equivalentes. Ou seja, no aspecto descritivo, a literatura pode ser ainda mais
arrebatadora do que o cinema, dependendo da harmonização estética entre o léxico e o objeto
descrito, num arranjo capaz de definir o caráter erótico ou pornográfico da obra.
99
Biografia fílmica de Jim Morrison e da banda The Doors, uma das mais influentes dos anos de 1960. O filme,
de 1991, dirigido pelo cineasta norte-americano Oliver Stone, mostra a passagem do cantor pelo conturbado
mundo do rock’n’roll, onde as drogas e o sexo reinavam (vide r.m.e.).
100
Nove semanas e meia, de 1986, é dirigido por Adrian Lyne, e protagonizado por Kim Basinger e Michey
Rourke. Baseia-se na obra de Elizabeth McNeill, que dá nome à personagem principal do filme.
114
Neste capítulo se instaura a mais visceral das relações de alteridade, que é a
promovida pelo sexo. Através da sexualidade, se estabelece o encontro de subjetividades, em
que UM e OUTRO se fundem, movidos pelo desejo de sedução e de conquista. Pelo sexo, se
articula a união da corporalidade e da mente de elementos únicos, díspares - mesmo nas
relações homossexuais -, pois implica a ruptura de fronteiras para a descoberta de uma outra
identidade possível. Despir-se diante do outro, despir-se de trajes e de defesas, para render-se
ao conhecimento mútuo, apenas munido da energia mais potente e transformadora do ser
humano, capaz de promover o abrandamento da intolerância entre indivíduos e povos.
A partir desta perspectiva, a exploração de um pelo outro através do sexo significaria,
portanto, o encontro de dois mundos, quando ambos se dispõem a desvelar seus recantos mais
íntimos e a reconhecer suas evidências. Como se fosse a descoberta de um território novo, até
então desconhecido, a ser mutuamente cultivado, sem qualquer sobreposição hierárquica que
venha a comprometer esse processo de interação contínua.
Yocandra havia encontrado um homem sedutor, e que se deixava seduzir, que
mantinha com ela uma relação afetivo-sexual desprovida de condicionantes machistas. A
despeito da paixão, ela procurava ficar atenta a qualquer indício de desvarios fantasiosos que
ameaçassem a sua autonomia. E ele, numa inversão de papéis, durante um arroubo de
encantamento, declara todo o seu amor e o desejo de ter uma filha com ela. A despeito da
falta de originalidade, Yocandra lhe devolve a sincera declaração de amor, mas se recusa
terminantemente a endossar a idéia da maternidade, que para ela soa como uma temeridade
pela dificuldade dos tempos. Contudo, mantém uma postura condescendente diante do homem
apaixonado: “_ No son tiempos para locuras. Diera lo que no tengo por ser estéril. Debo andar
a la viva, nada más de oler semen me embarazo. _ Bostezo, diciendo lo contrario a mis
sentimientos, pero ¿para qué ilusionarnos?”
101
(p. 151).
O romantismo dele contrasta com o racionalismo dela, numa evidente intenção de
romper mitos culturais relacionados a questões de gênero. Ele apresenta características
comumente associadas ao sexo feminino - o que, de modo algum comprometia a sua
virilidade -, enquanto Yocandra, em contrapartida, demonstrava maior poder de domínio
sobre os sentimentos, sem tampouco abdicar dos atributos de feminilidade que a
caracterizavam.
Depois de confessar-lhe a intenção de realizar um novo filme, ele adormece em
posição fetal. Ao seu lado, agora mais maternal que amante, ela acaricia sua fronte enquanto
101
“_ Não são tempos para loucuras. Daria tudo o que tenho para ser estéril. Devo ficar esperta, é só sentir cheiro
de sêmen que fico grávida. _ Bocejo, dizendo o contrário a meus sentimentos, mas para que nos iludir?”
115
ouvia seus planos. Decide poupá-lo de amarguras naquela noite ao omitir o telefonema do
Lince e a carta da Gusana: bastariam-lhe as pobres ilusões e os projetos abortados. Melhor
deixá-lo sonhar com seu filme “fenomenal” e suas obsessões ilusórias, que talvez incluísse até
mesmo a premiação com um Oscar. Prefere preservar a magia momentânea com aquele
homem que jamais lhe havia dado motivos para arrependimentos, a quem comparava à bela
estátua do quarto proibido de sua infância. Um homem que a impressionava pela ternura e
pelo trato delicado, sem querer escravizá-la: “[...] ¡Qué raro! Este hombre se me antoja una
exquisita obra de arte por fuera e por dentro. Porque es tierno, paciente y pacífico. Su voz
nunca se altera en lo más mínimo. Es mi amante, no mi verdugo.”
102
(p. 141).
Cabe acrescentar que a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento
humano, já que nenhuma subjetividade (e coletividade) define-se como Uma sem colocar
imediatamente a Outra diante de si. O homem que enxerga a mulher como um Outro
autônomo, também pode encontrar nela a cumplicidade que o mantém no posto de senhor,
pelas facilidades que esta situação oferece a ela. Afinal, o “senhor e escravo estão unidos por
uma necessidade [...] recíproca que não liberta o escravo (Cf. BEAUVOIR, [s/d], p. 14) e,
além disso, sabe-se que os dois sexos jamais compartilharam o mundo em igualdade de
condições; e se hoje as mudanças percebidas sejam inegáveis, a mulher ainda arca com uma
ampla desvantagem.
Depois de um breve período de sono que pareceu durar horas, o casal é acordado com
o toque da campainha: era a visita inesperada do Traidor. Ele estava a par do envolvimento
amoroso de Yocandra com o jovem cineasta que, ao contrário, imaginava que a relação entre
ela e o ex-marido se restringisse a uma mera amizade. Ela usava de subterfúgios para
conseguir evitar que os dois homens se encontrassem, ao estipular dias específicos para um,
sob a alegação de que os demais dias estariam reservados para as aulas de francês, quando, na
verdade, seria a ocasião para dedicar-se ao outro.
O Traidor a beija comedido, embora, indiscreto, comenta sobre sua temperatura: “_
Estás caliente, ¿tienes fiebre?” (p. 154), ao que ela, sem hesitar, nega e acrescenta, entre
cínica e provocativa, que haviam acabado de fazer sexo: “_ No. Acabamos de singar.” (Idem).
Constrangimentos iniciais à parte, o Traidor explica sua presença ali por necessidade de ter
um lugar onde pudesse ler um livro de Jean-François Lyotard, o filósofo francês do pós-
modernismo, que lhe haviam emprestado. Sem luz e sem vela em casa, ele pede permissão a
102
“Que estranho! Este homem me lembra uma deliciosa obra de arte por fora e por dentro. Porque é terno,
paciente e pacífico. Sua voz nunca se altera o mínimo que seja. É meu amante, não meu carrasco.”
116
Yocandra para lê-lo no seu recanto. Ela consente e indica-lhe a varanda para instalar-se; antes,
lhe apresenta o Niilista, não pelo nome verdadeiro, mas pelo codinome.
É quando o próprio, satisfeito, toma conhecimento do apelido que ela lhe havia
designado. Por sua vez, o desavisado Niilista se dirige ao outro também pelo seu codinome,
Traidor, sem que Yocanda tivesse tido tempo de impedi-lo. Indignado, mas fingindo
passividade, ele se refere a ela como Yocandrita, no diminutivo, o que a aborrece. Ela assume
a responsabilidade pelos nomes fictícios e, no caso do Traidor, lembra-o de que teria sido ele
o primeiro a fazer piada com o verdadeiro nome dela – Pátria.
Em meio aos tripúdios e às justificativas, sem mais delongas, Yocandra deixa-os a sós
na sala, estudando-se mutuamente, e se refugia no banheiro, de onde pode ouvi-los. Yocandra
os observa através de ângulos distintos da janela: ela os tem sob mira, embora estivessem em
ambientes distintos. E a narradora, demiurga, faz um comentário sobre a situação inusitada e
aparentemente sob controle: “_Todo narrador es ubicuo.” (p. 155).
Os dois homens estão curiosos sobre a origem dos apelidos. O Niilista, mais contido,
prepara-lhes um chá. Yocandra decide voltar à sala, acomoda-se no sofá com as pernas sobre
um almofadão, e apesar de preferir calar-se a reacender reminiscências da época de casada,
acaba por dar livre curso às velhas mágoas. Desencadeia-se uma seqüência de razões pelas
quais ela o toma por traidor, num discurso monológico com força catártica, em que se
entrecruzam razões de ordem pessoal e de ordem ideológica.
Assim Yocandra faz do sofá seu divã ou sua tribuna, de onde expõe abertamente as
divergências entre ela e o ex-marido, sem se ater diante da presença do Niilista. Nega guardar
rancores pela violência física que ele lhe havia imputado; nega tê-lo aceitado de volta apenas
para que ele passe a lhe dever favores. Tudo o que faz, seria por um sentimento humano,
“porque vingança também é humana” (p. 157). O apelido não se devia a sua desilusão com
relação a ele, nem por ele ter mudado o posicionamento político, mas por ter sido um
bajulador que agora se esquivava de qualquer compromisso com o regime. Se devia ao fato de
ele não ser coerente com suas idéias, por inventar-se a si mesmo baseado numa mentira, ao
acreditar e fazer com que acreditassem que escrevia um livro. Este projeto seria sua
penitência: seiscentas páginas com um único fragmento repetido à exaustão: “Soy escritor.
Todos me persiguen y no escribo. Soy escritor.” (p. 158). Uma litania impressa até convencer-
se do contrário.
Yocandra resolve dar um basta no discurso, embora pudesse passar toda a madrugada
dizendo-lhe impropérios, e propõe ao homem a alternativa de ir-se embora. Caso insistisse em
ficar, ele encontraria ali um refúgio, desde que sob a seguinte condição: “terminó tu
117
dictadura.” (p. 159). Até então em silêncio e sem demonstrar qualquer indício de
constrangimento, ele retruca irônico: “_ ¿Y empezó la tuya?” (idem), que imediatamente
recebe três bofetadas como resposta. Absorto em sua discrição até o momento, o Niilista
intercede para impedir que a agressão prossiga, porque não pretendia testemunhar uma cena
provocada por pendências pessoais que não lhe diziam respeito. Impassível, o Traidor acende
outro cigarro antes de tomar o livro para lê-lo na varanda, enquanto sentia vibrar no rosto
avermelhado a ira de Yocandra. Ela pergunta ao Niilista se também lhe interessava a origem
do seu apelido. Ele prefere não discutir os motivos e limita-se a reforçar o seu amor por ela e
a desejar reciprocidade.
O nome próprio, a caracterização e o discurso das personagens são signos que
acentuam a condição de “unidade discreta” das mesmas, integrando-as numa rede de relações,
que permite localizá-las e identificá-las no seu processo de manifestação. Alguns desses
processos conduzem à apresentação de sentidos capazes de configurar uma “semântica da
personagem”, em que ela se associa ao sentido temático e ideológico da trama. Assim,
personagens famosas como Dom Quixote e Emma Bovary, por exemplo, estariam associadas
ao idealismo, à ambição, à hipocrisia, em função das conexões sintáticas e semânticas com
outras personagens da mesma narrativa ou, em função de associações intertextuais, com
outras obras de ficção. (Cf. REIS & LOPES, 1996, p. 195-196).
Nesta narrativa, nos deparamos com personagens tipificadas, capazes de ilustrar de
forma representativa certos aspectos dominantes do universo diegético no qual se desenvolve
a ação e, com isso, estabelecer uma relação de índole mimética com o mundo real. Não
obstante, certos tipos ultrapassam a fronteira histórico-cultural específica para aderirem a
outros contextos nos quais incide a mesma temática. Em outras palavras, ser “traidor” ou
“niilista” não seria uma prerrogativa exclusiva de cubanos pertencentes à geração acometida
pela revolução castrista, mas esta conjuntura propiciaria a inserção de personagens assim
reconhecíveis também em outros contextos similares a este.
Por sua vez, os tipos desta narrativa rompem com a condição de subcategoria a que
normalmente estariam associados, para se nivelarem à protagonista em termos de interação
diegética, deixando de ser “meros” figurantes, além de, em momento algum, serem
previsíveis ou elaborados sob a forma de clichê - um artifício muito freqüente entre os
românticos. Em vez de “pessoa”, revelavam-se aqui como entidade, cuja identidade devesse
ser preservada em seu próprio benefício e a qualquer preço, por conta do contexto adverso em
que estavam inseridas. Talvez por isso, nem mesmo na cena exageradamente melodramática,
em que Yocandra extravasa as emoções, num misto de cólera e de comoção, não se cogita
118
apontar “responsabilidades” pessoais, mas institucionais. Todos eles seriam produto do
sistema que os controlava e ao qual deveriam ser incondicionalmente fiéis, não por ideologia,
mas por obediência.
Ser infiel representaria uma prova de coragem para contrariar as contingências, e não
de covardia, segundo a crença comum. As arbitrariedades cometidas em nome da fidelidade
fazem com que ela já não acreditasse em nada e em ninguém, nem mesmo no Niilista, que a
observa inerte, diante de sua histeria. Ela chora compulsivamente ainda sob o impacto dos
últimos acontecimentos, numa reação contra a abrupta ruptura na sua rotina diária, que se
reduzia em pedalar e viver “com a cabeça nas nuvens”.
Naquele único dia, ela havia sido arrebatada pelo seu passado: sua infância, os pais, a
Gusana, o Lince, o Traidor, o Niilista, o escritório, o mar, o país. Um fatalismo inexorável se
abate sobre ela, por constatar o determinismo sob o qual a sua vida estaria condicionada desde
seu nascimento e que a impedia de ser outra pessoa e de dar outro rumo a seu cotidiano
esvaziado. Uma solução possível seria dedicar-se ao seu outro eu, o fictício, uma personagem
criada por ela mesma, para fingir estar de acordo com o teatro do mundo real que a rodeia:
uma falsa imagem de boa ventura recomendada pelos estatutos do “bem-viver” nos altos
círculos cubanos.
Yocandra aponta duas modalidades de controladores ávidos por informações,
comprováveis ou não, obtidas por métodos sutis. Seu cargo de chefe de redação de uma
revista literária de prestígio, a obriga a freqüentar tanto assembléias, conselhos e reuniões,
assim como recepções em embaixadas. De um lado, fartura de comida e de champanhe, com o
propósito de relaxar os convivas para torná-los mais loquazes e mais suscetíveis a certas
articulações promovidas pelo Governo para obter informações de seu interesse. Por outro
lado, há também os métodos menos generosos que consistem na condecoração póstuma
daqueles que se propuserem a conceder informações de interesse.
Aquele jogo de concessões e de conivências a exaspera, por fomentar a falsificação da
vida, justo a vida, único ato verdadeiramente heróico da humanidade. Enquanto isso, ela vai
perdendo os amigos, de quem não pode falar abertamente, nem demonstrar alegria por saber
que estão bem, vivos ao menos, em outro lugar. Lugares aos quais recorriam cheios de
esperança, mas nem sempre recebiam a acolhida esperada: podia ser Miami; podia ser no
México, onde poderiam ser atacados por algum coiote
103
do outro lado da fronteira; podia ser
na França, para serem tratados como índios, ou na Espanha, para serem tratados como
103
Neste caso, o termo coiote é usado coloquialmente no México para referir-se à pessoa que negocia o
cruzamento de fronteira dos imigrantes clandestinos.
119
escravos (p. 163). Os culpados por esta situação seriam “los cabrones paternalistas”, que não
se dariam conta do legado de morte deixado a seus amigos, à sua família, e que, por força de
um sectarismo onipotente, nada reconhecem, nem mesmo que se trata de seres humanos.
Todo o discurso é testemunhado pelo Niilista apenas, sua platéia silenciosa. As idéias
e as imagens pertenciam ao universo privado de Yocandra acometida de uma momentânea e
profunda crise existencial, manifestada através do fluxo de consciência. Ao oscilar entre a
memória e a falsidade do presente, ela demonstra sua apreensão com todo um histórico
adverso e um porvir incerto, nebuloso.
Perplexo diante do abatimento de Yocandra, ele quer saber se ela prefere que ele se vá,
mas ela insiste para que fique. Para distrair-se, ele inicia uma partida solitária de xadrez, e ao
perceber, horas depois, que o Traidor havia terminado de ler o livro, pergunta-lhe se havia
encontrado algo interessante sobre o pós-modernismo. O Traidor opina que não havia “nada
de novo sob o sol”, apenas teorias obscuras que, para entendê-las seria preciso viver em
cidades industrializadas, embora eles permanecessem ali, sentados, esperando para ver que
“nosso dia já está chegando”
104
. Riem-se os dois da associação com a letra de uma canção
popular cubana, para, a seguir, o Traidor ser convidado a aderir ao jogo
105
.
Neste aspecto, o Niilista e o Traidor assumem através do xadrez o papel de oponentes,
tanto nos planos intelectual e afetivo - enquanto estrategistas e competidores na disputa pela
preferência do amor de Yocandra. Pensativa, ela apenas observa a fisionomia tensa dos
homens em seus “gestos taciturnos de campeões”, depositando naquele jogo a própria vida.
Ela os compara a dois grandes xadrezistas, Karpov e Kasparov, em seus melhores dias,
exceto pelo fato de que, ao contrário dos russos, àqueles homens bastaria receber como
prêmio a sua “amordaçada” boca (p. 165). Um traço tipicamente masculino: a disputa da
fêmea pelos machos através da luta, neste caso, mental, intelectual, no intuito de, se não
demarcar, pelo menos ampliar o território que, na verdade, era dela.
104
Esta expressão refere-se a uma canção de Willy Chirino, cantor de salsa cubano que aos treze anos de idade
foi levado para Miami pelo pai, onde foi criado. O título da canção é “Nuestro dia (ya viene llegando)”, que
fala precisamente da nostalgia de viver em um país estrangeiro, embora jamais deixe de ser cubano (vide
r.m.e.).
105
Provavelmente originário da Índia, o xadrez, enquanto estratégia fria e tática, é considerado uma metáfora
antiga do domínio do livre arbítrio e do destino num universo de contrários. Também é considerado como
uma imagem dos mecanismos de guerra transferidos para o plano intelectual. O tabuleiro mágico da lenda do
Rei Arthur tornou-se uma alegoria das disputas de amor, além de que os heróis populares costumavam jogá-lo
com o diabo para resolverem alguma contenda pendente entre as partes. (TRESIDDER, 1998, p. 43). Por ser
campo da razão, da inteligência e do planejamento, o xadrez é também considerado como símbolo da ordem e
da razão cósmica. (LEXIKON, 1990, p. 209)
120
Yocandra esgueirou-se para seu “refúgio hexagonal” para apreciar o mar através das
três janelas em ângulos diferentes. Pela da direita, seu olhar alcança ondas gigantescas; pela
do meio, o mar se mostra plano, azul brilhante, “con esa estela surrealista de iluminación
tropical” (p. 165); e pela esquerda, o mar surge negro, com ondas sobre as quais flutuam
estrelas. Entretanto, em qualquer uma das três, refletem a lua e o sol ao mesmo tempo,
anoitece e amanhece num movimento intermitente, “como nos videoclipes”.
A descrição remete ao movimento, à precipitação da ação, da passagem do tempo com
a alternância de dias e noites, num ritmo frenético, como um recurso cinematográfico de fast
motion. As alusões ao movimento permanecem, porém, no campo do imaginário, tendo em
vista que no plano real sua rotina não sofre nenhuma mudança, senão pelo aspecto
meteorológico. As janelas hexagonais funcionam como um caleidoscópio que lhe oferece
perspectivas distintas a partir de um único ponto: o seu refúgio surrealista, provoca nela
efeitos de uma droga lisérgica e a arrebata de uma realidade opressiva da qual quer escapar.
A propósito, segundo Todorov (1992, p. 174-175), a droga e a infância fazem parte
dos temas do eu, do gênero fantástico. O universo da infância revela o fato de que o
acontecimento essencial que marca a passagem da primeira organização mental à maturidade
é a aquisição da linguagem. A categoria da droga impõe uma concepção inarticulada e
maleável do tempo, instaurando, ao contrário do que ocorre coma infância, um mundo sem
linguagem, bizarro, dominado pela lógica onírica em que o extraordinário é algo banal, parte
ativa da realidade. Uma realidade subjetiva criada pelo eu e para o eu, e sua razão torna-se
fantástica, excluída do mundo real, ainda que apenas temporariamente.
De onde está, no seu “refúgio”, Yocandra ouve uma espécie de concerto
protagonizado pelos animais criados pelos vizinhos, num entrecruzamento de sons, como se
conversassem entre eles. Yocandra é arrancada de seu universo onírico e arremessada de volta
ao mundo real, por ruídos irracionalmente articulados, em que intervêm o peru, o porco, a
cabra e o galo, ave tipicamente “despertadora” de toda a vizinhança. Seu canto era
“desequilibrado”, por não adaptar-se ao horário de silêncio arbitrado pelo Conselho de
vizinhos. Ali, procurava-se educar os animais para os apartamentos, e os seres humanos, para
as granjas; nas granjas, todos entrariam comunistas e sairiam religiosos... (p. 166).
O comentário carregado de sarcasmo provocativo aponta a inversão de obrigações
estipuladas para uns e para outros. Os animais não se enquadravam às regras do modelo
urbano, ao passo que os humanos que se incorporavam ou eram convocados para os
agrupamentos de trabalho rural, por motivação ideológica, acabavam submetidos a uma
doutrinação manipuladora. Tornavam-se cordeiros, submissos, religiosamente fiéis à palavra
121
do Senhor, cujo questionamento se transformava em heresia. Em suas elocubrações, a
despeito de “despertá-la” de seu prazer onírico, surrealista, Yocandra se alegra com o canto
do galo que, subitamente, faz brilhar um sol hiper-realista, ao anunciar um novo dia. Sente-se
renovada por aquela “canção” matinal que teria mais conteúdo do que qualquer outra
transmitida pela OTI (Organização de Televisões Ibero-americanas). Um galo
106
com poderes
“fantásticos” passível de ser atração num dos programas de curiosidades exibidas em cadeia
nacional.
Naquele amanhecer, em especial, ela percebe que os tambores repicam em
homenagem a Xangô, como uma declaração de guerra. Imagina uma espada em sua nuca e
reverencia à Santa Bárbara e a Xangô, do mesmo modo com que costumavam cantar hinos na
escola ou nos atos cívicos, às sextas-feiras, em prol da libertação do Vietnã nos anos sessenta.
Todas estas manifestações estariam interligadas, desde o canto do galo até o soar dos
tambores, que despertavam nela a alegria peculiar da ascendência negra: “[...] Va y a lo mejor
todo está ligado. Todo tiene que ver. Por mis venas corre sangre negra, no puedo negarlo,
nada más oigo un tambor y se me eriza el alma a la altura del huesito de la alegría, de tanto
remeneo contenido. Amazacotada está mi cabeza entre gritos sordos y cantos como lamentos.
Reclamos a la religión. ¿Reclamos a la nada?”
107
(p. 167)
Esta estranha sensação de “chamada” de que Yocandra é acometida naquela manhã,
prenuncia alguma reviravolta em sua vida. A cubanidade se manifesta na forma de um
misticismo peculiar no qual intervêm elementos biológico-raciais (a ascendência negra) e
religiosos (ritos com tambores e cantos de origem afro-cubana), e que denuncia o caráter
“mágico” rarefeito no que Yocandra identifica como o prenúncio de algo ainda indefinido
(¿Reclamos a la nada?). Um misticismo alinhado com uma intuição feminina, que se mantém,
contudo, apenas na esfera da abstração momentânea, que logo cede lugar à observação mais
acurada da realidade imediata ao redor. Percebe que enquanto os dois homens continuavam
debruçados sobre reis, rainhas, bispos, torres e cavalos, as moscas invadiam o lugar, atraídas
pelo cheiro de restos do peixe servido no jantar. Era preciso recolher o lixo acumulado.
106
Mais do que o orgulho, a arrogância e a luxúria, o galo simboliza a vigília, a coragem, a virilidade,
confiabilidade e a ressurreição solar e espiritual: atributos positivos associados à aurora, ao sol e à iluminação,
para quase todos os povos, exceto para as tradições celtas e nórdicas (TRESIDDER, 1998, p. 48-49). Neste
sentido, a despeito da rotina enfadonha, sem maiores perspectivas de mudança, cada novo amanhecer acenava
com uma nova esperança, que se renovava a cada dia.
107
“Vai ver tudo está mesmo ligado. Tudo tem a ver. Pelas minhas veias corre sangue negro, não posso negar, é
só ouvir um tambor e minha alma se eriça toda na altura do ossinho da alegria, de tanto requebro contido.
Minha cabeça está atordoada entre os gritos surdos e cantos como lamentos. Um chamado para a religião?
Um chamado para o nada?”
122
Os homens continuam concentrados num ponto central, de interesse comum, que é o
jogo concebido “à sua imagem e semelhança”, numa disputa entre eles mesmos, e ignoram as
necessidades básicas que os cercava. Ela providencia o saneamento do lugar, e desce para
despejar o lixo; na rua, constata que os containeres transbordam, e duas senhoras descartam
baldes de detritos fétidos em plena calçada. Distraída, a mais velha descarrega o comentário:
“¡Y yo que lo tenía en un altar!” (p.167). A imprudente manifestação de contrariedade
precipita uma reação em cadeia de outras mulheres armadas com paus, que logo a ameaçam
de agressão. A mais enfurecida quer saber a quem a anciã se referia. Cautelosa e ciente do
perigo iminente, ela se esquiva com uma desculpa vaga e pouco convincente, e acaba sendo
alvo de insultos e advertida a manter a boca fechada, a menos que quisesse receber pauladas
nos ossos. A anciã recua e se retira assoviando a Internacional para desfazer qualquer tipo de
suspeita o de mal-entendido.
Assim que ambas – a anciã e Yocandra – deram-lhes as costas, as mulheres passaram a
vasculhar os sacos de lixo com o intuito de encontrar qualquer indício de ideologia
“reacionária” professada pelas duas. Nem mesmo o papel higiênico sujo escapou à análise
investigativa com fins patrióticos: talvez os excrementos pudessem acusar aspectos
diferenciados a partir da alimentação ingerida por elas, segundo seu posicionamento
ideológico.
Yocandra teme ser surpreendida com algum atentado contra a vida. Sobe as escadas do
prédio e, ao chegar ao apartamento, se assusta com o ronco “orquestrado” dos dois homens na
sua cama, o tabuleiro de xadrez jogado a um lado, com as peças espalhadas pelo chão. Não
houve vencedor e o sonífero que ela dissimuladamente havia misturado ao chá, surtiu efeito.
O gesto aparentemente leviano, sem maiores implicações, ratificava a sua crescente sensação
de insegurança provocada pelo agravamento da paranóia coletiva a que estavam todos
expostos. Nem mesmo os amigos mais próximos escapavam, transformados todos em
potenciais traidores.
Uma vez mais, ela se recolhe no seu refúgio hexagonal, de onde observa o mar azul.
Vislumbra sobre ele uma multiplicidade de flores, numa combinação de luz e de cores jamais
vista. O idílio, porém, transforma-se em temor: ela já não sabe se são flores ou ataúdes, se
seria um jardim ou um cemitério. Quase em transe, ela clama por um jardim e sente um misto
de orgulho e de terror por ser cubana; não está certa de que aquele brilho é natural ou se são
faróis perseguidores. Ela se convence de que são flores, de que há um jardim no mar – talvez
sejam as oferendas aos orixás. E se estabelece um novo fluxo de consciência em que ela
reflete sobre sua experiência de vida: a Revolução lhes havia custado muito caro, talvez
123
tivesse sido maior do que eles mesmos, e que, de tão grande, desmoronou-se sobre seu
próprio peso.
Diante de um caderno pautado, ela prova do café que deveria estar mais doce do que
estava – uma desculpa para dar outro rumo a seus pensamentos: faltava-lhe coragem para
tomar a iniciativa de escrever as primeiras palavras, descrever o que considera “o nada” em
que se resume tudo o que tem. Pensa na decepção da Gusana que lhe exige um best seller.
Pensa no Lince, distante, impossibilitado de aprovar o romance, de taxá-lo de genial e
recomendar a sua publicação a qualquer preço. Mais modesta, ela dispensa a genialidade, pois
se reconhece como o “produto semântico de péssimas professoras de espanhol”, que lhe
imputaram algumas limitações na arte de escrever. Lamenta não ter lido mais das obras de
Lezama e de Proust. Beija o vidro da janela do meio e adivinha o Lince, na outra margem do
mar, devolvendo-lhe o mesmo gesto.
Ela invoca os orixás para que lhe dêem forças, e, ao mesmo tempo, procura distrair-se
com outras tarefas diárias, num ritual cerimonioso que, na verdade, escondem seu medo de
enfrentar o desafio da escritura. Escamoteia o medo. Até que supõe ver milhares de balsas no
mar repletas de cadáveres, pois o temor que a domina embrutece os sentidos e desperta nela
prognósticos nefastos, que a impedem de começar. Trava-se uma luta íntima entre ela e as
palavras: ela se autocensura, enquanto as palavras a desafiam a libertá-las, para que tomem
forma, que tenham vida própria. Nesse amálgama de intenções e de relutâncias, surge a
primeira linha de sua obra, sem fim, que sempre retorna ao começo, num eterno movimento
circular: “Ella viene de una isla que quiso construir el paraíso...” (p. 171).
A trajetória cíclica e contínua, em que o epílogo remete ao capítulo inicial, projeta a
ficção como um processo de reprodução sistemática de si mesma: a estratégia especular,
mediante a qual uma narrativa nasce de outra, alternando-se em mundo “real” (referencial) e
mundo “fictício” (criado a partir de). Assim, Yocandra – protagonista de uma obra de ficção -
se estabelece como a autora implicada (segundo nomenclatura proposta por Genette, que a
prefere à autora implícita) da obra emergente, constituindo-se como o espelho da autora real,
Zoé Valdés. Com a interposição de realidades (fictícia e factível), a personagem-narradora
adquire um status de “autoridade”, que visa a conferir maior autenticidade à história e
promover maior credibilidade junto ao leitor. Uma vez criatura, ela passa a ser criadora, com
autonomia para criar seu próprio mundo.
Esta seria uma entre outras funções da literatura: estabelecer essa verossimilhança
representativa mútua, em que a realidade ficcional pode se tornar referência para a realidade
“real”, ambas alternando-se em seus papéis transformadores.
124
4.3.2 La hija del embajador: a escolha
Inicialmente, vale conferir a capa da edição espanhola (Bitzoc), da qual consta uma
representação indiana do enlace do fogo e da água, tendo cada elemento quatro mãos, para
assinalar a força de atuação de ambos. Fonte de luz e de calor, o fogo relaciona-se
freqüentemente com o sol, com o sangue e com o coração, por sua energia vital e também
como fonte das emoções e do prazer sexual. Esta relação íntima entre elementos díspares –
fogo e água – sugerida já a partir da capa introduz a idéia de encontro de opostos que buscam,
um no outro, a sua complementação. Neste caso, o masculino e o feminino estariam ali
representados, enquanto princípios ativo e passivo, ambos criativos e destrutivos, com
propriedades curativas e regenerativas, em todas as suas manifestações, inclusive os
sentimentos, como a paixão e o ódio, e outros que envolvam relação de ardor (sentimento
patriótico e religioso, inclusive), em que o entusiasmo e a fé, ou a mágoa e a dor, estejam
presentes. Esse encontro entre elementos aparentemente incompatíveis, guardaria em si o
mistério da descoberta do outro, independente das conseqüências daí decorrentes, desde que
promova a transformação das partes envolvidas.
Isto posto, percebe-se que a questão simbólica faz-se bastante significativa, com
ênfase exatamente sobre o sangue e a água, elementos recorrentes no desenvolvimento desta
narrativa. A começar pela fratura na cabeça sofrida pela protagonista, Daniela, no dia anterior
à sua partida de Cuba rumo à França, que lhe rendeu sete pontos no couro cabeludo. Chovia
torrencialmente na ocasião do acidente, provocado por uma telha solta: ela havia sangrado
sob o aguaceiro.
A presença recorrente do sangue e da água
108
logo no início da narrativa tanto ratifica
o aspecto considerado miticamente “nefasto” da feminidade, quanto enfatiza o caráter de
mistério e de imponderabilidade que esse mesmo atributo feminino faz despertar no
imaginário coletivo. Essas referências míticas diluídas no texto instalam um processo de
metaforização que busca a renovação da terminologia ali utilizada ao retirá-la de seu destino
etimológico unívoco a fim de lançá-la numa espécie de antidestino, para além de seu “sentido
108
Enquanto símbolo nictomorfo, a água que corre (a chuva, por exemplo) ou a “água vital” que nos escapa
também se equiparam ao sangue, ou mais precisamente, ao mistério do sangue que corre nas veias ou se
escapa por uma ferida. A esse respeito, o aspecto menstrual, característica fundamentalmente feminina,
estabelece uma relação estreita com a temporalidade. Ou seja, assim como o destino, o sangue se
constituiria em um elemento temível, pois seria o senhor da vida e da morte, e porque na sua feminidade
seria o primeiro relógio humano, o primeiro sinal humano correlativo do drama lunar, outro aspecto
feminino associado ao obscuro, à morte, geradores [sangue e morte] de uma angústia atávica. (DURAND,
1989, p. 79).
125
próprio”
109
. O sentido figurado possibilita desviar-se de uma “tendência patológica” do
racionalismo e amplia o horizonte poético através da máscara que consiste na “defesa contra
a morte” (DURAND, 1989, p. 278). Máscara esta que Daniela personifica, ao assumir um
comportamento de insubordinação como uma forma de resistência à acomodação objetiva,
confirmada na sua busca de aventuras, de novas experiências, sem, contudo, medir as
conseqüências de suas escolhas.
Em seu quarto, ela preparava as bagagens para a viagem, enquanto as imagens da TV,
“o esconderijo do progresso” (VALDÉS, 1994, p. 12)
110
na sua acepção, provocavam-lhe
náuseas e vertigem. Sensações estas associadas à possibilidade de queda, uma grande
epifania
111
imaginária da angústia humana, vinculada às trevas e à agitação, e que, no caso de
Daniela, seriam desencadeadas pelo movimento progressivo ou desenfreado que as imagens
televisivas suscitavam. Por sua vez, a viagem também redundaria em movimento, em
mudança ou em rupturas com o que foi e com o que é, temporal e espacialmente. Ela partiria
para mais uma viagem, ainda que o ato de fazer as malas sempre lhe incutisse uma sensação
de perigo iminente.
Ela procuraria compensar a perda das pessoas e lugares representativos deixados para
trás com os que ainda estavam por vir, num dinâmico jogo entre passado e futuro. O passado,
ela o sentia “masculinamente” e pressentia o futuro “como un efebo ante su maestro de
filosofia”. Masculinizar o passado equivaleria a concebê-lo como de feitos “memoráveis”,
“heróicos”, quase sempre atribuídos à virilidade, de modo que ela consideraria apenas as
ocorrências “fortes” (masculinas) de sua história pessoal, mesmo se fundamentadas na
imaginação, que, segundo Durand, “pode mascarar tudo o que não a serve” (1989, p. 51). O
futuro, por sua vez, trazia-lhe a perplexidade, o questionamento, por estar diante de um
destino imponderável, o grande mestre diante do qual Daniela se curvava.
Paris acenava-lhe com esta possibilidade e Daniela partiria durante o outono, estação
que na iconografia cristã corresponde à maturidade. Sabe-se que as estações do ano são
símbolo universal do ciclo da natureza e da vida humana, de modo que essa expectativa de
109
Durand alerta para que não se confunda sentido próprio com o primeiro sentido, pois todos os léxicos e
dicionários comprovam que nunca há sentido próprio, objetividade de um termo, mas sim sentidos segundo
o contexto, o autor, a época. Ou seja, a palavra apenas é real porque vivida num contexto expressivo,
empenhado num papel metafórico que alia o aspecto estilístico com o semântico (DURAND, 1989, p. 285).
110
As demais citações subseqüentes referentes a esta obra, serão indicadas no corpo do trabalho, pelo número da
página correspondente, entre parênteses.
111
Conforme Durand, as grandes epifanias imaginárias da angústia humana estariam relacionadas com o medo
atávico de certos animais (símbolos teriomorfos, associados à libido sexual), e o medo atávico das trevas e
do barulho (símbolos nictomorfos, associados ao pecado, à angústia, à revolta e ao julgamento). O terceiro
temor seria o da queda (símbolo catamorfo, associado ao tempo e ao movimento) (ibidem, p. 52, 65-66, 80).
126
mudança, enquanto celebração da vida em oposição à morte, do futuro em oposição ao
passado, configurava-se através da viagem que Daniela estava prestes a realizar, com o
atrativo adicional de ser por via aérea.
Ocorre que, não gratuitamente, ela sempre quis ser aviadora, uma ocupação que a
manteria bem acima da superfície terrestre, pois, nas alturas, teria alcançado um patamar mais
etéreo, fora do alcance das aflições mundanas e mortais. A despeito de ter frustrada tal
profissão, ainda assim Daniela desfrutava do privilégio de “estar no ar” com freqüência,
devido à ocupação do pai que lhe facilitava deslocamentos por avião. Por outro lado, a
necessidade de desligamento com a realidade, nem que fosse momentânea e artificiosa,
impeliu-a para o alcoolismo; tornou-se uma “alcoólatra empedernida”, dependente de
substâncias que, de certa forma, a mantinham “alta”, num estado, se não acima, ao menos
diferente da “normalidade” vigente, num “estado alterado” de consciência.
Daniela procurava desvencilhar-se de qualquer sentimento de nostalgia, embora fosse
eventualmente acometida por lembranças que ela classificava de “simples martillazos de
sellos en sobres cerrados”(VALDÉS, 1994, p.14)
112
, referentes aos primeiros de alguns fatos
marcantes em sua vida. Lembra-se da primeira comunhão, da primeira página de livro, da
primeira amiga, da primeira regra menstrual, da primeira morte, da primeira doença, do
primeiro castigo, da primeira traição e, entre outros, da primeira pedra – de toda uma série de
acontecimentos que a marcariam para sempre.
Ela partia para esquecer, para “acabar con la memoria” (p. 15). Os seus atos buscavam
romper com resquícios do passado: o álcool; a altitude que a erguia do chão; a viagem, a
busca por outro lugar. A sua angústia existencial não se fundamentava em motivações
socioeconômicas, mas pessoais. Filha de um embaixador cubano, gozava dos privilégios
concedidos aos altos funcionários do governo, num claro contraste com a situação diária dos
cidadãos cubanos comuns, como, por exemplo, Yocandra, de La nada cotidiana.
Uma diferença flagrante residia no desembaraço para obter a autorização de
deslocamento de um a outro país, mais exatamente de Cuba a França, segundo a sua
disponibilidade no momento. Não que estivesse dispensada das formalidades burocráticas de
praxe, porém, gozava de certas prerrogativas proibitivas aos demais cidadãos, haja vista que
lhe coube decidir por si mesma a melhor ocasião para a partida. Com todas as despesas
112
“Simples carimbadas em envelopes fechados”, embora a frase traduzida perca a aliteração original, que
enfatiza a lembrança repetitiva de certas ocorrências registradas na memória como sendo de categoria
confidencial [cerradas]. Como esta, as demais traduções ao português desta obra são livres e por nós
realizadas.
127
financiadas pelo governo cubano, tampouco necessitava contrair matrimônio com algum alto
funcionário do governo para obter o “salvo-conduto” que lhe garantisse o livre trânsito
internacional, condição indispensável no caso de Yocandra e da Gusana.
Daniela decola, ganha os céus, e deixa para trás a ilha cercada pelas águas caribenhas
e mergulha no centro de um caleidoscópio iluminado: do seu assento escuta “[...] miles de
pasos y voces históricas. Discursos y batir de pañuelos. [...]” (p. 16). Uma vez “nas nuvens”,
recordava-se das batalhas “terrenas” travadas em favor do socialismo, quando os reveses
deveriam ser convertidos em vitória, quando se faria de cada minuto um tempo
revolucionário. A conquista deveria ser alcançada a qualquer preço, mesmo que lhes custasse
a vida, uma tarefa assumida com tamanha urgência e obstinação pelos revolucionários, que
Daniela a considerava letal. Para ela, socialismo e morte se equiparavam, numa primeira e
irônica alusão ao seu posicionamento pessoal sobre o tema, ao parafrasear o lema marxista:
“[...] Convertiremos el revés en victoria. Siempre se puede más. ¿Por quién? [...] Y haremos
de cada minuto, um minuto revolucionário. Hacer más con menos. Socialismo o muerte,
valga la redundancia. [...]” (p. 16)
A sua postura crítica com relação ao regime político adotado em seu país, e que
perdura por quase cinco décadas, revela seu desacordo com as práticas implementadas pelos
membros do Partido Comunista. Eles estariam por todos os lugares, inclusive naquele vôo,
exclusivo para diplomatas de várias nacionalidades (e outros convidados menos ilustres), em
que até a tripulação manteria algum vínculo direto com o governo cubano. Irônica, Daniela
declara que o céu não acolhia “seres celestiais” e nem era fonte de “mensagens do além”; ao
invés de fadas madrinhas
113
, era habitado por aeromoças, como a que lhe servia, “desdenhosa
e complicada”. No céu também havia “cucarachas”, numa referência a estas aeromoças de
uniforme escuro, que Daniela comparava às baratas, tal como a designação utilizada
pejorativamente pelos norte-americanos para referir-se aos latino-americanos em geral.
Algumas ocorrências durante o vôo serviriam para ilustrar o quanto aquelas pessoas se
perdiam nas suas obsessões pessoais e o quão mal disfarçavam a sua discriminação étnica e
social. A certa altura, Daniela percebe o olhar insistente da embaixadora alemã que a
confundia com a princesa Stefanie, de Mônaco. A diplomata comentava dissimuladamente
com o marido, pouco interessado no assunto, sobre a tintura aloirada do cabelo da suposta
113
Como o nome sugere (fada deriva do latim fate, que em inglês significa destino), as fadas surgem para
explicar essencialmente a ação “mágica” do destino sobre as personagens ao conceder-lhes dádivas e
decepções imprevisíveis. Os contos de fadas, ricos em simbolismos sociais e psicológicos, retratam os
desafios a serem enfrentados nos diferentes estágios da vida (TRESIDDER, 1998, p. 77). Naquele contexto,
porém, as fadas haviam sido substituídas por aeromoças sem qualquer lastro “mágico” ou benevolência.
128
princesa, sobre o quanto havia engordado e o quanto se vestia mal: mais parecia uma roqueira
que uma representante da monarquia monagasca. Para a inconformada alemã, aquilo não
passava de um disfarce da nobre representante, com fama de megalômana. O comentário
também indicava que nem mesmo o alto escalão da “diplomacia” internacional se furtava às
frivolidades acerca das (supostas) celebridades européias. Para Daniela, a diplomata não
passava de outra cucaracha, dessas “louras e pequeninas” que “no hay dios ni baygones que
acaben con ellas”, cuja presença incômoda e asquerosa persiste indefinidamente.
Neste aspecto, o gosto pela intriga que domina o alto circuito político internacional
assemelhava-se bastante ao dos cidadãos comuns, a ponto de confundirem-se personagens e
os rumores se alastrarem com a mesma leviandade e indiscrição encontrada nos circuitos
mais populares. A despeito do aparente convívio amistoso entre diplomatas de procedências
distintas ali presentes, a discriminação se insinuava por meio de olhares e observações
capciosas. Segundo o Adido Cultural Inglês, por exemplo, Daniela não passava de uma filha
de um embaixador de um país pobre, uma subdesenvolvida, embora com uma “inegável
distinção”, uma característica que certamente a credenciava a partilhar da companhia dele,
legítimo detentor de qualidades “superiores”. Daniela traga em seco a “cuspida raivosa”
destinada ao rosto anglo-saxão, furiosa diante da arrogância daquele agregado designado para
atender aos interesses ingleses: uma personalidade de segunda categoria infiltrada entre eles,
mas que não perdia a oportunidade de lançar as suas farpas discriminatórias, ainda que sob
um manto de boa educação e complacência.
Os contrastes se avolumam (calor/frio; campo/cidade; flor/neve; mar/céu;
ilha/continente; passado/presente; desenvolvido/subdesenvolvido; rico/pobre), demarcando a
oposição entre um país periférico dos trópicos e países hegemônicos europeus. Embora
tivesse acesso àquele círculo fechado freqüentado por autoridades da alta cúpula
internacional, Daniela tinha clara a noção das diferenças que os separava e das semelhanças
que os aproximava. Ela não se melindrava diante das conveniências decorrentes da ocupação
paterna, mas não se enquadrava no parâmetro comportamental recomendável pelas regras
protocolares. Entretanto, estar consciente das discriminações passíveis de ocorrência não a
demovia da vontade de deixar sua terra em busca da efervescência da capital francesa: Paris
representava a ruptura com o passado recente e remoto, a passagem do isolamento periférico
em direção a um dos mais influentes e democráticos centros culturais europeus. Ali,
acenavam-lhe o esquecimento e a esperança, a liberdade e a aventura.
Esquecimento de um passado que a aterrorizava pelas lembranças nefastas de um
incidente provocado por ela na infância e que resultou na morte do irmão mais novo.
129
Esperança de libertar-se de sua angústia existencial mais premente – a culpa – e de encontrar
um sentido renovado para a vida, longe do ambiente que lhe trazia lembranças corrosivas. A
excitação que Paris lhe provocava compensaria a solidão e o tédio de viver na melancólica
capital cubana: “[...] ‘¡A Paris!’ Atrás, en el verdor de los campos quedó su amiga. Atrás,
perdido en la ciudad despintada, descascarada, descarada, quedó su novio, el singante
cubanito sin dólares. Los padres siempre la esperaban en algún punto del mundo, nunca en
casa, siempre en los aeropuertos. [...]”
114
(p. 17).
Apesar do contentamento que as viagens lhe proporcionavam, sobretudo quando se
tratava de Paris, cidade-ícone da civilização européia, que exerce um profundo fascínio sobre
o colonizado latino, seduzido por sua ostensiva força cultural e artística, que fez da França o
maior centro referencial da cultura do Ocidente. O comentário indicava também um
indisfarçável ressentimento com relação à ausência freqüente dos pais, os quais encontrava
esporadicamente em aeroportos de distintos países, onde fixavam temporária residência
diplomática. Paris seria a próxima parada e a terceira vez em que ela ali se fixaria,
entusiasmada pelo glamour e pela imponente beleza da capital francesa.
O vôo prossegue. No intuito de dormir sem sonhar e de querer “saborear a morte”,
Daniela ingere vários comprimidos de barbitúricos, sem dispensar uma generosa dose de rum,
uma receita que logo a lançou no mais profundo sono. Entretanto, ao contrário do que
pretendia, sonha: sentia-se alegre em um bosque encantado; no castelo, a Rainha Mãe lia
documentos políticos e o Rei cochilava babando na coroa caída sobre sua barriga. Ao longe,
um caçador despertou-a.
O estranho sonho com característica de fábula freudiana com implicações políticas faz
com que ela se desperte, no meio da noite, no avião às escuras. É quando Daniela também
testemunha o quão vulneráveis se encontram as altas autoridades ao seu redor, todos
nivelados no mesmo estágio ridículo da condição humana: a embaixadora alemã descansa
seus joanetes sobre as coxas do marido, com a maquiagem escorrida, o tailleur enrugado e
manchado de chá; o adido cultural inglês, se afogava nos próprios roncos e no ruído
provocado pelo choque de seus dentes postiços.
Do toalete masculino sai um jovem que lhe chama a atenção. Sorridente, ele se
aproxima, toma as mãos dela entre as suas, as beija com delicadeza, e se apresenta em francês
como sendo um ladrão. Embora ela se perguntasse intimamente o que um ladrão poderia
114
“‘A Paris!’ Para trás, no verdor dos campos ficou sua amiga. Para trás, perdido na cidade descolorida,
descascada, descarada, ficou seu namorado, o cubaninho comedor sem dólares. Os pais sempre a esperavam
em algum ponto do mundo, nunca em casa, sempre nos aeroportos.”
130
roubar em pleno vôo, sua reação inicial foi conferir a sua nacionalidade: “¿Êtes-vous
français?” (p. 19), para, a seguir, identificar-se a si mesma: “_Daniela.”
115
Curiosamente, o
nome soa ambíguo ao jovem, que passa a expressar-se em espanhol ao perceber pelo sotaque
dela que essa língua lhe era familiar. Ele se acomoda a seu lado e o assunto inicial gira em
torno do nome de Daniela, justificado como tendo sido escolha do pai.
Segundo a jovem, o nome estaria reservado para o primogênito varão, mas ela havia
nascido primeiro e o assumiu, adaptado para o feminino. O desejo dos pais de ter um casal de
filhos foi deveras satisfeito com o nascimento do irmão, mas frustrado com sua morte
prematura. Daniela prefere evitar o assunto e o jovem finge condolências pela morte daquele
desconhecido, no intuito de permanecer ao lado de seu mais recente alvo de interesse. Se o
nome de Daniela deveu-se à escolha do pai, o dele teria sido antes submetido à apreciação de
familiares seus, segundo suas preferências artísticas pessoais ou que identificasse algum
atributo que lhes parecesse de maior relevância. Para citar alguns, poderia chamar-se Jean,
como quase todos os franceses; Henry, pelo rei; Patrick, que definiria um caráter, segundo
sua mãe; Bernard soaria respeitoso, segundo seu pai; Cyrano, literário, para seu tio; Arthur,
por causa de Rimbaud, para sua tia; Charles, por Baudelaire, para sua avó; Marcel, por
Proust, para seu avô; Gustav-Amadeus, por Mahler e Mozart, para sua irmã, entre tantos
outros. Até que ele decidiu chamar-se a si mesmo de Maurice, por ter sido o único nome não
mencionado por ninguém, algo simples, sem qualquer referência a grandes personagens da
história ou da arte.
A autodenominação de Maurice demonstrava seu desprezo pela opinião alheia, de
modo que sua marca nominal seria uma prerrogativa exclusivamente sua, passível inclusive
de revisões ocasionais. Mesmo porque tratava-se de um ladrão confesso, ou seja, pouco
confiável nas suas declarações. O seu nome poderia não passar de uma identidade provisória,
falsa. Por outro lado, a alusão aos nomes de celebridades históricas e artísticas européias
(majoritariamente francesas), ratifica a sua relevância e as distingue enquanto modelo cultural
e artístico universal, motivo de orgulho para seus conterrâneos. Mais tarde, Maurice adotaria
o codinome Barón Mauve (malva, uma cor entre violeta e lilás), numa referência ao possível
hibridismo resultante da união entre os dois, quando se mesclariam o azul de seus olhos e o
verde dos olhos de Daniela.
115
Daniel era o nome do jovem judeu deportado para a Babilônia, protagonista de feitos significativos narrados
no livro que leva seu nome, sobretudo no que se refere à profecia sobre a chegada do messias. Este livro é o
mais típico representante do gênero apocalíptico no Antigo Testamento (PEDRO, 1998, p. 66).
131
A informalidade cresce espontaneamente na conversação, durante a qual passa a
predominar o uso de tu, em vez de usted, até que ele oferece à Daniela um diamante de rara
limpidez, e diz tê-lo roubado para ela. Daniela recusa o agrado, sobretudo por tratar-se de um
roubo, pede que o devolva e que a deixasse em paz. Ele coloca o diamante junto a seu rosto e
a pedra o ilumina na penumbra, como uma estrela. Lamenta que ela o recuse, já que ambas
“se favoreciam mutuamente”, ela e a pedra. Daniela se irrita e exige com um palavrão que ele
não a aborrecesse mais e se afastasse. Ele se diverte com a expressão chula usada por uma
filha de embaixador e, ao perceber a aproximação da aeromoça, pede-lhe que sirva vinho
rosado a Daniela.
Ela finge adormecer para ver-se livre dele. Em instantes, ela pressente o silêncio e
percebe que o jovem havia desaparecido e deixado a fulgurante pedra sobre a manta com que
se cobria. Ao notar o retorno da aeromoça com o vinho, Daniela esconde o diamante na boca.
Sob o olhar da tripulante, prova da bebida e se deleita com seu paladar, enquanto a aeromoça
se afasta, satisfeita por ter proporcionado prazer a alguém, “cosa que no era muy frecuente en
los miembros del Pecé [Partido Comunista]” (p. 22). Daniela prova de novo do vinho, tateia
com a língua o interior da boca para reaver a pedra, e se dá conta de tê-la engolido. E conclui,
contrariada, que deveria lançar mão de outros meios para expulsá-la do corpo, para livrar-se
de uma espécie de semente que teria ingerido involuntariamente.
As pedras preciosas, sobretudo os diamantes
116
, são elementos bastante recorrentes
nos contos de fadas (haja vista as minas de diamantes dos setes anões em A bela adormecida,
para citar apenas um), assim como as estrelas
117
, que alimentam o imaginário de vários povos
desde as mais remotas eras. Neste caso em particular, a pedra preciosa ingerida constituiria o
componente fantástico da narrativa, já que provocaria efeitos inusitados ao ter seus poderes
potencializados pela intervenção do sexo.
116
O diamante implica em radiação solar, imutabilidade e integridade, em que a combinação de brilho e dureza
concedem à pedra uma dimensão espiritual. Na tradição oriental, ele simboliza a incorruptibilidade e as
virtudes morais, como a sinceridade e a constância – daí o seu uso em anéis de noivado. Nas crenças
supersticiosas, foram-lhe creditados poderes curativos e de proteção, motivo pelo qual Satã evitaria a sua luz,
funcionando, portanto, como um amuleto contra o mal (TRESIDDER, 1998, p. 64).
117
As estrelas constituem referência simbólica em vários aspectos. Para diversas crenças antigas, elas regulavam
e influenciavam a vida humana, e na mitologia grega, o céu era povoado por deuses e heróis estelares. Na
religião, as estrelas formavam a coroa das grandes deusas-mãe, como, por exemplo, a Virgem Maria, pois
representavam a janela cósmica para o paraíso. No Velho Testamento, a “estrela de Jacó” é um símbolo
messiânico, que reaparece no Novo Testamento como “a brilhante estrela da manhã” para descrever Cristo.
No simbolismo em geral, as estrelas mais significativaso a Estrela Polar, símbolo do centro do universo, e a
“estrela” de Vênus, cujo brilho intenso está associado à guerra e à energia vital enquanto estrela matutina, e
ao prazer sexual e à fertilidade, enquanto estrela vespertina. Vênus também é uma alternativa para a mística
Estrela de Belém (ibidem, p. 191).
132
Sem outra alternativa senão esperar o momento oportuno para seus propósitos
“depuradores”, Daniela procura esquecer temporariamente o incidente, quando é arrebatada
pelas imagens de outro, ocorrido na infância. Nesse ínterim, a narrativa sofre um corte, para
reconstituir em flash-back toda a seqüência das situações bizarras e agourentas que
culminaram com a morte do irmão de Daniela. O insólito tende a provocar um efeito
impactante no universo reconhecível, confiável, familiar do leitor que, diante das situações
conflituosas apresentadas, vê-se envolvido pela chamada “poética da incerteza” (CHIAMPI,
1980, p. 59), engendrada precisamente para obter o seu estranhamento. Neste aspecto, o
fantástico reitera o questionamento sobre os limites entre o real (evidente) e o irreal
(aparente), negando tal oposição ao reconhecer seus termos, e possibilita a incursão do leitor
num universo de estranhezas. Ambígua, essa oposição representaria a quintessência da
literatura, seja por contestar tais limites, seja por dar vazão a uma espécie de linguagem
metafísica (entenda-se transcendente ou sutil no seu discurso) mesmo que seja para recusá-la
(enquanto estereótipo, por exemplo). Essa seria uma alternativa literária também disponível
para tratar desse jogo especulativo de aparências e evidências, com o objetivo de atingir o
universo estável, palpável, do leitor.
Zoé Valdés não se furta a incorporar esta modalidade narrativa (o fantástico) em suas
obras, em maior ou menor grau, como uma forma de provocar no leitor alguma inquietação
intelectual (a dúvida, a incerteza). Nesta obra em particular, o fantástico se manifesta em
formas distintas: uma, através do relato da protagonista sobre as circunstâncias (não
comprováveis) da morte do irmão; a outra, através da ocorrência de fenômenos estranhos
decorrentes dos encontros sexuais entre Daniela e Maurice. Ou seja, manifestam-se de modo
intrínseco (discursivo) e extrínseco (fenomenal) com relação à Daniela, dominada por uma
visão fantasiosa do mundo, ao mesmo tempo em que se transforma num veículo através do
qual tais “assombros” se manifestam. Acrescente-se a isso, a particularidade de que, enquanto
mulher (milenarmente associada a bruxarias) e procedente de um país afeito a experiências
“bizarras”, Daniela carrega consigo o gene do imponderável, que eventualmente se manifesta
na forma de previsões, quase sempre nefastas. Igualmente, a chamada santería (prática
religiosa afro-caribenha) desperta a curiosidade do estrangeiro, sobretudo no seu aspecto
sincrético, em que estão combinados elementos cristãos e pagãos, e cujos praticantes estariam
habilitados a contatar diferentes tipos de espíritos. É nesta atmosfera mística, algo insondável,
que se desenvolve o episódio do incidente fatal.
Ainda criança, Daniela teria decapitado uma pomba por meio de uma pedrada certeira,
fazendo com que a ave se esvaísse em sangue. Do nada, teria surgido uma mulher coberta de
133
colares, que recolhe a pomba ainda trêmula e sorve seu sangue com avidez. Em seguida, ela
cai ao chão, sorridente, com os lábios e dentes manchados pelos coágulos. Antes de morrer,
ela teria profetizado que algum dia Daniela escreveria um poema ao qual chamaria de
Mercedes
118
, seu nome. Daniela sente um calafrio diante da expressão de felicidade da
mulher recém-morta. Subitamente, um cachorro teria se aproximado latindo, para lamber
todo o sangue no rosto de sua dona, depois o resto do corpo, até separar-lhe as pernas para
lamber-lhe a “água escura”
119
. Poucas horas mais tarde, de tanto latir, o cão teria rompido
alguma artéria vital e os tímpanos, causando-lhe a morte. Daniela testemunhava toda a cena,
até que uma enxurrada de sangue a alcança, e ela mergulha o dedo anular no charco, para
prová-lo. Neste instante, surge seu irmão, que se acomoda numa gangorra e insiste para que a
irmã o empurrasse com toda força. Daniela hesita porque pressente a morte do irmão, mas
acata o pedido. Com o ímpeto, as correntes se partem, arremessando a gangorra e o irmão ao
vazio, deixando como rastro um grito interminável. Ela corre em direção ao local da queda,
mas só encontra outro charco de sangue e miolos esfacelados. Ainda agachada, ela percebe
que um filete de sangue escorria pelas coxas e nádegas, o que faz com que ela fuja dali e
retorne ao edifício, em cujo corredor ela encontra o chofer, a quem mostra o sangue vertido
como prova de que havia acabado de assassinar uma pomba, uma bruxa, um cachorro e o
irmão. O impacto da notícia teria provocado uma paralisia no lado direito do homem, a quem
tiveram que aposentar, e que morreria poucos meses depois. Um fio de sangue alinha todos
esses episódios, que a despeito de sua improbabilidade, estão constituídos de uma forte carga
dramática e simbólica.
Este encadeamento de situações absolutamente inconcebíveis pela lógica racional,
adquire uma dimensão fantasmagórica e mórbida, ao mesmo tempo em que se aproxima
muito de uma atmosfera onírica ou de delírio psicótico. Ele também se opõe aos contos de
fadas tradicionais, nos quais prevalece uma certa brandura na linguagem e nas imagens,
enquanto que neste caso prevalece o pesadelo, a obscuridade, a morbidez, além de uma
reincidente vinculação dos aspectos malévolos à intervenção – involuntária que seja - do
elemento feminino. As frases curtas encadeiam os “fatos” sem qualquer clemência; são
abruptas, diretas, sem rodeios.
118
Palavra derivada de Merced, que significa graça, honra, favor concedido a alguém, em espanhol.
Corresponde também ao antigo tratamento que equivale a usted [su o vuestra merced], ou seja, nas linhas
daquele poema trágico estaria escrita, de próprio punho, a vida da própria Daniela.
119
Essa “água escura” , ou água “nefasta” por excelência, equivale ao sangue menstrual, elemento que remete ao
tema da feminidade “terrível”, associada aos símbolos da queda e da carne. Segundo o Levítico, o sangue
feminino seria a prova da impureza da Feiticeira-Mãe e da infecundidade momentânea das mulheres: seria
‘o interdito principal das potências sobrenaturais criadoras e protetoras da vida’ (DURAND, 1989, p. 77-
78).
134
O sacrifício de uma ave, símbolo da paz, da pureza e da esperança, desencadeia toda
uma seqüência de ocorrências tenebrosas, que prenunciam a passagem de Daniela para um
estágio impuro, pecaminoso, sujo e “manchado”. Pelas suas mãos foram sacrificados dois
símbolos emblemáticos da cristandade: o Espírito Santo (a pomba) e o filho do Pai (seu
irmão). Era como se a ordem divina a tivesse punido pela violência sanguinária de seus atos
com a aparição do primeiro mênstruo. Biologicamente, o sangramento mensal denota a
indisposição para a criação, o que é interpretado por distintas crenças religiosas como uma
contrariedade ao princípio sagrado da luz, cuja ousadia seria castigada com a culpa e com a
queda.
Na verdade, Daniela experimenta um doloroso processo iniciático, um rito de
passagem do mundo infantil para o mundo adulto. Ela se torna uma fonte potencial de vida,
numa época coincidente com a da morte do irmão, em que ela teria tido uma participação
incidental. A valorização excessivamente negativa do sangue concorre para destacá-lo como
arquétipo coletivo, inscrito num contexto somático em que se entrecruzam emoção (temor e
insegurança) e tomada de consciência (amadurecimento da razão). Por outro lado, segundo
Durand (1989, p. 78), este isomorfismo terrificante, de dominante feminóide, definiria o que
ele chama de “a poética do sangue, poética do drama e dos malefícios tenebrosos”, porque o
sangue nunca seria feliz.
Neste aspecto, esta poética feminóide do sangue se contraporia a uma possível poética
“varonil” do sangue, em que as armas e a guerra constituiriam os elementos mais
significativos, igualmente associados à morte. Com uma diferença básica: o sangue
derramado por uma suposta poética da guerra também constitui crime doloso, voluntário,
condenável pelas leis divinas e humanas, porém justificável como medida de conquista
territorial e de proteção da prole, do povo, da nação. No caso da mulher, ao contrário, o seu
mênstruo subtrairia as vidas daquilo que seria a própria prole, algo portanto injustificável e
condenável. Recordações sinistras invadem o espaço aéreo e se imiscuem no estado entre
onírico e entorpecido de Daniela, ainda sob o efeito dos soníferos ingeridos com álcool. Neste
sentido, é provável que a morte do irmão com a sua participação seja factível, o que não se
garantiria com relação às circunstâncias.
No saguão do aeroporto de Orly, Daniela reencontraria os pais com as recomendações
de sempre, já que aquele era “outro país”, e teriam, ainda, que manter uma conduta condigna,
sobretudo em função da representatividade do cargo do pai, ao qual toda a família estava
vinculada. Enquanto providenciavam a retirada da bagagem, entre uma informação e outra,
Daniela tenta contar à “Maternal Diplomata” o episódio do diamante, o que a mãe considerou
135
como mais um de seus caprichos ou delírio fantasioso. Por isso, não lhe deu qualquer crédito
ao ser comunicada sobre o diamante roubado e engolido.
A mãe, contudo, insiste para que, diferentemente do que ocorria em Londres, Daniela
mudasse de estilo em Paris, onde deveria permanecer nos próximos cinco anos, ou mais, para
estudar. De modo que Daniela deveria apresentar-se de uma maneira mais apropriada à
posição do pai, mesmo que os subsídios liberados pelo governo cubano para a manutenção da
família em terras estrangeiras, os obrigassem a certos malabarismos econômicos para manter
o padrão que gostavam de ostentar. Gastavam somas astronômicas na aquisição de roupas e
calçados das mais caras grifes, enquanto se contentavam em alimentar-se com as ofertas
especiais de um restaurante popular. Assim, formula-se uma crítica ao jogo teatral articulado
no universo político internacional, em que se cria uma aparência de poder na esfera pública,
incompatível com a situação real na esfera privada.
Nas relações interpessoais, as questões ideológicas não conferiam qualquer empecilho
nos envolvimentos de foro mais íntimo: nos bastidores da política, os envolvimentos
amorosos entre supostos inimigos desconsideravam as diferenças, num convívio mútuo bem
mais amigável e tolerante do que costumavam mostrar para a opinião pública. Entre eles,
predominava uma certa cumplicidade mútua, não necessariamente em prol de uma boa
convivência, mas em prol dos interesses políticos comuns, muito mais valorizados que os
eventuais “deslizes” afetivo-sexuais de seus pares: essa seria a essência de uma autêntica
diplomacia voltada para propósitos mais elevados da Pátria.
Deste modo, Daniela já teria tido um caso amoroso com um embaixador norte-
americano, inimigo político de seu pai, que, por sua vez, teria tido um caso amoroso com a
mulher do embaixador norte-americano, enquanto sua mãe teria tido um caso com o filho
desse mesmo embaixador. Ou seja, havia um verdadeiro conluio amoroso interfamiliar entre
representantes de duas nações reconhecidamente inimigas, sem, contudo, despertar qualquer
constrangimento de ordem moral ou cívica, ainda que se defendesse em alto e bom som tal
missão. A mãe, por exemplo, numa tentativa de convencer Daniela a portar-se com mais
cautela com relação a desconhecidos, ensina: “[...] ¡Debes entender que estamos aquí
cumpliendo un deber, tenemos que poner el nombre de la patria muy en alto, lo más alto
posible!” (p. 26).
Ao recordar os casos amorosos do passado ocorridos em Paris, Daniela não percebe a
aproximação de um desconhecido com luvas brancas que se dizia estar a mando do patrão
para ajudá-la com a bagagem. A intervenção do pai não impede que o homem leve a maleta
da jovem até o Peugeot diplomático dos pais, ainda sob a suspeita da mãe, inconformada com
136
as inconseqüências da filha. A certa distância, Maurice os observava de dentro de uma
limusine.
Ao chegar à residência na elegante Avenue Rapp, Daniela mal repara na decoração da
casa, embora se detenha no mobiliário “aceitável” de seu quarto, tudo pago pela população
cubana que havia ficado para trás, inclusive a amiga e o namorado. Daniela refletia sobre os
diversos cursos não concluídos em distintas universidades do mundo, não necessariamente
por insuficiência de recursos, mas por tê-los aplicado em outras “necessidades” mais
prementes, quando a mãe a chama pelo nome abreviado (Danny), para entregar-lhe um
envelope com dinheiro. Ambas as atitudes da mãe a aborrecem: diminuir o seu nome e
entregar-lhe dinheiro para comprar roupas, com a finalidade de comparecer, com os pais, a
um almoço oficial no dia seguinte. Sem outra alternativa, a jovem deixa o apartamento e,
depois de contornar toda a parafernália eletrônica em que consistiam os dispositivos de
segurança, e controlar o medo diante de um doberman que “mordía con la pupila” na guarita
de entrada, consegue finalmente chegar à rua.
Uma vez fora do cerco diplomático, Daniela sentia-se livre do cordão umbilical e
assumia outra identidade, criada por ela mesma, como se fosse um papel cinematográfico que
ela deveria desempenhar por conta própria. Segundo seu entendimento, este procedimento
consistia numa espécie de instinto de sobrevivência para um cubano no estrangeiro:
Desde que desguindó el abrigo había comenzado su película. Cuando un cubano
pone los pies en el extranjero ya no vive, actúa. Viajar es como entrar en
Hollywood. Ya en la calle actuaba para primeros planos, sonreía fingiendo
distracción, caminaba rápida y suelta y sin vacunar, como se había fijado que
marchaban los rockeros en los video-clips, incluso tarareó una cancioncilla de
moda, alborotó su pelo. [...] (p. 28-29)
120
.
Entusiasmada e decidida a ser o mais convincente na sua atuação, a sua primeira
providência foi comprar gel para o cabelo e deixar–se levar por outras tantas “divinas
tentações” de Paris. Toda essa mal-gerência consciente do dinheiro provocava em Daniela o
“complexo de culpa terceiro-mundista” ao comparar o desperdício em supérfluos com as
privações a que eram submetidos seus compatriotas em solo cubano. Entretanto, era um
sentimento passageiro, logo substituído pela satisfação dos prazeres mais imediatos: não
havia culpa socialista que resistisse àqueles apelos consumistas.
120
“Assim que pôs de lado o casaco, começou o seu filme. Quando um cubano põe os pés no estrangeiro já não
vive, atua. Viajar é como entrar em Hollywood. Uma vez na rua atuava para primeiros planos, sorria fingindo
distração, caminhava rápida e solta e sem vacilar, como havia reparado no caminhar dos roqueiros de vídeo-
clips, inclusive cantarolou uma canção da moda, desalinhou o cabelo.”
137
Daniela fazia parte de um grupo social diferenciado, a meio termo entre dois
extremos: de um lado, o povo cubano, com o qual guardava em comum a procedência, as
raízes; e, de outro, o estilo de vida mais cosmopolita, com trânsito livre e mordomias
financiadas por um governo cujo regime era francamente avesso a excessos de tais naturezas.
Em seu país, seriam condenados e taxados como efeitos maléficos do capitalismo, entendido
como fonte inesgotável das injustiças sociais no planeta. Uma incongruência da qual Daniela
também estava ciente, o que, de certa forma, a fazia oscilar nessa bipolaridade, sem jamais
abrir mão dos privilégios dos quais poderia usufruir ao pertencer à elite de seu país
revolucionário.
Apesar de amar a terra natal, Daniela – como todo latino-americano - deixava-se
extasiar pelas grandes metrópoles européias, sobretudo Paris, onde estava destinada a
permanecer por mais tempo, por conta dos estudos. Entretanto, a despeito das facilidades a
seu dispor, das quais nem mesmo um cidadão francês comum desfrutaria regularmente,
naquela terra ela não passava de uma estranha, uma estrangeira procedente de um país centro-
americano, socialista, subdesenvolvido e literalmente ilhado. No seu caso particular, contudo,
essas diferenças eram amenizadas pelo fato de ser filha de embaixador, que a credenciava a
circular pelos ambientes mais seletos e requintados, a ter acesso a cursos em centros
acadêmicos de renome internacional, a tudo enfim que a mesada patrocinada pelo governo
cubano pudesse proporcionar.
Fora do alcance do olhar da maioria da população, do alto das esferas oficiais, a elite
cubana, afinal, conduzia-se como qualquer outra procedente de um país capitalista, agravado
pelo fato de que a família de Daniela constituía um núcleo de representantes oficiais de um
país sob regime socialista. Já não teve a mesma sorte a amiga cubana Marcela, fotógrafa
121
profissional radicada em Paris, depois de ter sido expulsa de casa e do país, taxada de
“gusana” (traidora e escória, vide a Gusana, de La nada cotidiana) e de ter sido agredida
121
Não gratuitamente, Marcela era uma fotógrafa que, com sua lente, vê, registra, denuncia: é o “olho
testemunho”. A fotografia é considerada a mais universal das linguagens, podendo fazer frente às demais
artes pelo seu imediatismo e precisão. Dentro da perspectiva idealista de Platão, a palavra e a imagem
substituem a visão, enquanto vidência, enquanto capacidade de mostrar. Por outro lado, a “objetiva” da
máquina fotográfica, ao depender de uma angulação subjetiva, nunca será de todo objetiva, já que a
contemplação do mundo por si só já transformaria o objeto. Embora considerada uma expressão iconográfica
“realista” por excelência, a fotografia não deixa de contemplar o campo do imaginário, pois a ocularidade
detém uma qualidade elementar do fantástico ao manter os objetos enfocados livres do constrangimento
perspectivo, quando o “horizonte tem tanta existência como o centro” (DURAND, 1989, p. 279-280). Neste
sentido, Marcela funcionaria como testemunha ocular dos fatos, seja pelo aspecto objetivo de sua percepção
que a profissão exigia, como também subjetivo, por manter uma relação afetiva com Daniela, e portanto, não
isenta de cumplicidade.
138
fisicamente “con una bandera con la hoz y el martillo
122
, ovos e tomates (p. 31). Contava
dezenove anos quando primeiramente expulsaram seus pais, por um motivo não detalhado,
que, sem alternativa, fugiram pelo porto de Mariel, deixando a filha para trás sob a fúria dos
“traídos”. No ano seguinte, Marcela se casa com um francês senil, e de quem mais tarde se
separa, já em solo francês. Para sobreviver, trabalha em diversas frentes, inclusive na
semeadura e na colheita de milho, até que consegue adquirir uma máquina fotográfica de
segunda mão com o dinheiro que ganhava como babá. O trabalho árduo e as privações não
atenuaram a vontade de rever os poucos amigos em Cojímar que ainda não tinham se lançado
ao mar. Antes do regresso temporário, se abastece de uma caixa de tomates e outra de ovos
para presentear a presidente do CDR, que havia liderado o movimento para sua expulsão
tempos atrás.
Ao recebê-la, a mulher se desdobra em demonstrações de falso arrependimento e se
apodera dos presentes sem qualquer constrangimento. Diante da mulher, Marcela lhe recorda:
“¿_Tú no me tiraste huevos y tomates? Ahora te hacen falta, te los devuelvo, y comprados en
dólares, eso es lo que mereces... ¿Yo no soy una traidora? Aquí tienes a la traidora, gracias a
ella podrás comer unos cuantos días.”
123
(p. 32)
A mulher procura esquivar-se das acusações ao insinuar que a própria Marcela havia
se confundido entre a palavra “traidora” e a expressão “trae dólar”, o que teria incorrido num
inevitável mal-entendido. A explicação soa ao mesmo tempo irônica e cômica, de modo que
Marcela desiste da abordagem ao perceber estar lidando com alguém tão incorrigivelmente
dissimulada: “Ay, m’hija, en la vida yo te grité traidora, tú lo que no me entendiste, yo te
decía: ‘trae dólar, trae dólar’... Ves que es casi igualito?”
124
(idem).
O episódio reitera com outros matizes o clima de animosidade plantado no seio da
sociedade cubana já retratado da em La nada cotidiana. A estratégia do regime para
preservar-se no poder consiste em fazer de cada cidadão um policial, um defensor dos
interesses “da nação”, com base numa relação conflituosa entre cidadãos considerados
favoráveis e contrários aos propósitos “revolucionários”. Contraditoriamente, porém,
enquanto os cidadãos comuns pró-governo se esmeravam em seu papel fiscalizador contra os
supostos “traidores”, “gusanos”, os representantes oficiais desse mesmo governo desfrutavam
122
A foice e o martelo que figuram na bandeira da antiga União Soviética, como símbolo da força e do trabalho,
neste caso transformaram-se em instrumento de agressão contra os (supostos) opositores.
123
“Você não me atirou ovos e tomates? Agora te fazem falta, eu os devolvo, e comprados em dólar, isso é o que
você merece... Não sou uma traidora? Aqui está a traidora, graças a ela você vai ter o que comer por uns
dias.”
124
“Ai, minha filha, jamais na minha vida te chamei de traidora, você é que não me entendeu, eu te dizia: ‘traz
dólar, traz dólar’. Tá vendo como é quase igualzinho?
139
nababescamente dos recursos públicos controlados com o rigor de penúria dentro do próprio
território. Ao que parece, a “justiça social” apregoada pelo socialismo de Castro,
fundamentado na distribuição eqüitativa de renda para toda a população, não passava de uma
quimera, ou antes, de um embuste ideológico que não atingia as prioridades caprichosas dos
membros protegidos pelo governo. O dinheiro (o dólar, neste caso específico) continuava a
corromper os mais radicais dos “militantes” e a desvirtuar as mais bem-intencionadas das
ideologias.
Assim, Marcela (a fotógrafa) e Daniela (a filha do embaixador) constituíam dois pólos
opostos. A primeira, oriunda da classe proletária, que se estabeleceu pelos próprios méritos,
embora tenha também se valido de um matrimônio para deixar Cuba; a segunda, filha de um
embaixador cubano no exterior, embora demonstre uma postura crítica com relação ao regime
sob o qual vive seu país, porém incapaz de dispensar as benesses por ele financiadas. Por
outro lado, ambas se complementam pela amizade sincera que as aproxima e pelo caráter
inconformista que as move, cada uma à sua maneira.
Reencontraram-se por acaso em Londres, numa exposição de pintura a qual Marcela
havia sido encarregada de fotografar. Sem hesitar, Daniela foi ao encontro da conterrânea que
a recebeu sem rancores, sem projetar sobre todos, indistintamente, responsabilidades sobre o
episódio da expulsão de que foi vítima no passado. Primeiro, examinaram-se mutuamente,
porque os cubanos “[...] siempre se revisan desconfiados para saber quien es el informante”
(p. 33). Após a aprovação recíproca, dali por diante, tornaram-se amigas, cúmplices, e se
procuravam de país em país. Marcela não pensava em retornar a Cuba, embora jamais tivesse
deixado de sentir-se vinculada àquele país; já Daniela permanecia curtos períodos em Cuba e
em outros lugares, em razão da ocupação itinerante do pai, de modo que desconhecia a
sensação de regresso a qualquer parte, exceto a Cuba, pois todos os demais lugares eram-lhe
passageiros, sem passado, sem infância.
Em Paris, naquela oportunidade, Daniela liga para Marcela e marca um encontro
numa elegante loja de departamentos, mais precisamente na seção de roupas íntimas. Daniela
coreografava os gestos como se estivesse sob a mira de uma câmera cinematográfica,
enquanto Marcela se divertia em provar os mais caros modelos de peças íntimas.
Acariciavam-se, cantavam fragmentos de canções inesquecíveis e recitavam versos, até que
Marcela se veste com várias peças de seda, depois de cortar os lacres de preço e de segurança
com uma lâmina de barbear. Em seguida, toma Daniela pela mão e fogem do local com mil
francos de seda preta. No metrô, Marcela presenteia a mercadoria roubada à Daniela. O
140
motivo alegado para a desapropriação: o gosto pelo perigo, pela aventura, caso contrário, o
presente não valeria a pena!
A complementação do vestuário para o almoço oficial do dia seguinte seria
providenciada por Marcela, que emprestaria à amiga algumas de suas peças pessoais.
Sugestão acatada, poderiam, assim, desfrutar de mais tempo juntas no “café existencialista”,
assim conhecido por ser um local freqüentado por intelectuais e artistas afeitos à corrente
existencialista
125
.
Naquele café, poderiam, enfim, trocar confidências e falar de suas últimas
“aventuras”, uma delas relacionada ao diamante engolido involuntariamente por Daniela
durante a viagem. Surpresa com os detalhes da história, Marcela aconselha a amiga a ir a um
hospital para livrar-se da pedra, conselho este que a outra se recusa a seguir, pois o pequeno
objeto não a incomodava, nem o roubo em si. Perplexidade causou-lhe a ousadia do
desconhecido galanteador, um larápio romântico, que lhe havia presenteado com o objeto de
um roubo confesso.
Coincidentemente, aquele homem se encontrava naquele bar, e solicita ao garçon que
servisse champanhe às jovens antes de servir a ele. Por um momento, Daniela suspeita de que
ele teria vindo reclamar o diamante, diante do que, Marcela sugere que ela fosse ao toalete
para expelir a pedra por que meio fosse, lavá-la e devolvê-la, sem maiores delongas. Marcela
percebe que deve afastar-se, para deixar que o assunto seja, por fim, resolvido entre as partes
interessadas. Ela despede-se da amiga e deixa o local arrastando suas botas negras de ponta
de metal prateado, prometendo voltar a vê-la em breve, incentivando a amiga a aproveitar a
oportunidade para acertar-se com o seu “príncipe encantado”.
Com efeito, as situações limítrofes exerciam um certo fascínio sobre Daniela, que se
deixa envolver por aquele estranho francês, um habitué dos mesmos ambientes que ela, mas
que ninguém sabia de quem realmente se tratava. Por sua vez, ele parecia saber quem era ela
e quais os seus costumes, a ponto de promover encontros “casuais”, numa demonstração
inequívoca de seu interesse pela cubana, filha de um embaixador. Um interesse
aparentemente desvinculado a questões econômicas, pois, além de uma sofisticação singular,
125
Vale recordar, em termos bem sucintos, que o existencialismo, cujos momentos-chave se concentraram nos
séculos XIX e XX, propunha que, num mundo sem verdades fixas, nossa existência deveria ser inventada e
reinventada por nós mesmos, criando assim nossos próprios valores. Esse objetivo seria alcançado por meio
das opções que fizéssemos – ou evitássemos fazer – sobre o modo de conduzir nossas vidas. Jean-Paul Sartre
(1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), sua mulher, assim como o alemão Nietzsche (1844-1900),
foram alguns dos mais relevantes adeptos dessa corrente inaugurada pelo dinamarquês Sören Kierkegaarde
(1813-1855), que rejeitou o conceito de inevitabilidade histórica de Hegel, enfatizando o primado da
experiência individual.
141
ele ostentava um alto padrão financeiro, apesar dos hábitos pouco recomendáveis ou nobres,
como o da apropriação indébita de pertences alheios.
Todavia, o receio de Daniela acerca daquele desconhecido fundamentava-se mais na
intuição do que nas aparências. Afinal, o fato de ser um ladrão milionário ou um milionário
ladrão por si só geraria suspeitas, sobretudo por esta condição ter sido revelada e comprovada
a queima-roupa sem qualquer constrangimento. Por outro lado, a situação não era de todo
inusitada, haja vista que, segundo a opinião da mãe de Daniela, rico
126
e ladrão não se
distanciavam muito.
Ambos tinham em comum o acesso a circuitos sociais mais fechados, restritos a uma
classe mais abastada; ou seja, se alinhavam socialmente. Já em termos de procedência
nacional, ele era um representante (não autorizado) da cultura francesa, reconhecida como um
indiscutível paradigma ocidental, enquanto Daniela provinha de um país periférico que, a
despeito da inegável força de seu legado literário, por exemplo, ainda amargava uma
condição de subdesenvolvimento, de atraso, numa postura “voluntária” de isolamento heróico
e pseudo-revolucionário, bem ao gosto do populismo ditatorial latino-americano. Ainda
assim, a despeito das questões étnicas, centro e margem se miravam, se cortejavam,
enamorados.
A princípio, Daniela procura esquivar-se das investidas do homem, cujas intenções
não sabia ao certo distinguir: se ele estaria ali para reaver o diamante ou se estaria de fato
apenas interessado nela. Diante do impasse, ela decide demonstrar mais determinação e pôr
fim naquilo que julgava uma enfadonha brincadeira de adolescentes. Afinal, pensava ela, eles
não eram compatíveis, embora ele exercesse uma forte atração sobre ela. Para impressioná-lo
com uma atitude de mulher moderna e liberal, pretende abordá-lo com alguma frase
impactante, como “_Quiero templar contigo” (p. 38), idéia que logo abandona ao ver-se de
frente com ele. Com o domínio da situação, ele desliza a mão pelo pescoço e pelo seio de
Daniela, que o rejeita indignada. Então, ele a convida para um passeio noturno de avião, e ela
aceita, desde que não houvesse qualquer envolvimento com roubos.
Ainda reticente, Daniela cede à sua verve aventureira, mas intimamente receia ter se
precipitado. Mesmo assim, na mesma limusine que a tinha recepcionado no aeroporto, ela
acompanha o francês até o subúrbio parisiense. Naquela noite acinzentada, ela conhece a sua
126
A propósito do comentário, acrescente-se que uma das causas da Revolução Francesa (1789) teria sido a
desigualdade social crescente, por conta da exploração às camadas menos favorecidas da população, que
pagavam mais impostos, enquanto a aristocracia francesa permanecia isenta. A monarquia usurpava da classe
desfavorecida o produto de seu esforço em benefício da realeza, que tão-somente desfrutava das mordomias
que o sistema feudal lhe franqueava. Uma prática, aliás, que tem resistido a tantas revoluções com propósitos
corretivos de justiça social, apenas sob uma nova roupagem e protagonizada por um elenco renovado.
142
elegante residência, ocupada com móveis cobertos por panos alvíssimos, e em cujo pátio se
encontrava um pequeno avião negro. Antes de subirem a bordo do aparelho, Maurice lhe
presenteia com um ramalhete de violetas. Em seguida, ele encobre parte do rosto com uma
máscara escura, e Daniela tem seu rosto encoberto por outra, salientando-lhes a cor dos olhos.
Maurice aciona os botões coloridos do painel de controle para levantar vôo.
Note-se que num breve trecho ocorrem diferentes referências a cores, inclusive a
violeta (neste caso, flor e cor) que, conjugadas com as máscaras, compõem uma atmosfera
dominada por sensações visuais. Nas culturas primitivas, a máscara detinha um valor sagrado,
mágico ou religioso; na Grécia, estava associada à origem do teatro, além de ser utilizada em
Roma e na commedia dell’arte. O recurso, portanto, produz maior teatralidade às
personagens, potencializa as expressões e distancia os acontecimentos dos espectadores (ou
leitores, neste caso). Esse panorama colorista e teatral prenuncia todo um ambiente em que a
metáfora sobrepõe-se à descrição meramente “realista” do primeiro encontro amoroso do
casal, sobrevoando Paris. Estariam, portanto, num plano superior, nos céus, num paraíso
particular exclusivo dos seres especiais, celestiais: o cume em oposição ao abismo, à queda,
reservada para os seres mortais. As personagens assumem, portanto, a sua persona literária,
para distanciar-se, assim como no teatro, do mundo real e adentrar, neste caso específico, o
fantástico.
Passam, então, a sobrevoar o subúrbio, onde viviam os imigrantes, e Daniela distingue
os dois lados da capital parisiense, o dos cartões postais ou da “cidade-luz”, e o da
marginalidade (entenda-se periferia, fora do centro reconhecível), mergulhado em
penumbras. Ela retira a mão fria que há pouco descansava sobre uma coxa de Maurice; ele a
retoma e a estende sobre seu sexo, que Daniela acaricia para, em seguida, abrir o zíper e
deixar saltar o “pájaro palpitante” (p. 39). Sobrevoavam agora a região da boêmia, perdida
em luzes néons, até chegarem ao Arco do Triunfo, acima do qual se consumia o ato sexual
entre eles. Daniela se achava entre dois céus: o de cima, incrustado de estrelas, e o de baixo,
incrustado de olhares interrogativos, surpreendidos com aquele vôo noturno sobre a cidade.
A “ave latente” aterrissou sobre o corpo de Daniela, até que ela se dá conta de que não
levava consigo nenhum preservativo; e ele, indiferente, afirma nunca tê-los usado. Ela temia
as doenças sexuais, e pergunta ao homem se ele era promíscuo. Ele nega com a cabeça, sem
desviar-se da atividade que mais lhe interessava no momento. Ciente do risco, Daniela
comenta em pleno ato: “_¡Dios santo, qué peligro, no debo hacerlo con extranjeros que no
sean seguros! (p. 40), certa de que a observação pudesse arrefecer o entusiasmo do
143
companheiro. Não obstante, alheio aos temores dela, ele prossegue em seu ímpeto sexual e a
corrige com outra observação: “_Olvidas que la extranjera eres tú.” (idem)
O comentário algo capcioso demonstra o quanto ele tinha plena consciência da
diferente situação entre eles: ele, o dominador, o nativo, legítimo “senhor” do espaço,
enquanto ela era uma estranha que deveria adaptar-se aos costumes daquela cultura, da
mesma maneira que se submetia a ele naquele momento. Daniela, porém, não se deixa
perturbar e se entrega ao prazer que ele lhe proporciona, terno, sem arrebatamentos, pois “los
franceses no son tan frenéticos cuando tiemplan como lo son los cubanos” (p. 41).
Subitamente, ela deixa escapar um gemido e de seus lábios brota um raio branco,
como se fosse “poeira lunar”. Entre surpreso e curioso, ele forceja uma vez mais, e o
fenômeno se repete, uma e outra vez: “un haz plateado directo a Venus” (idem), planeta
sabidamente associado ao amor e aos prazeres do sexo. O gozo provocado pelo sexo fazia
com que Daniela refletisse o brilho do diamante alojado em seu útero, quando roçado pelo
bico da ave libidinosa: “[...]El canto del ave hizo eco en las cincuenta y ocho facetas y
Daniela se hizo de una transparencia fosforescente, parecía una actriz de Spielberg,
iluminando de inigualable castidad la noche parisina. [...]”
127
(idem).
Ocorre que o orgasmo literalmente fenomenal de Daniela havia produzido um efeito
“reparador” nas prostitutas de Saint-Denis, região suburbana ao norte de Paris. Elas teriam
recuperado novamente a virgindade, já que seus hímens teriam sido reparados, sem
possibilidade de rompê-los enquanto durou o fenômeno da luminescência de Daniela. Teria
ocorrido uma espécie de milagre da santificação ou purificação das mulheres “pecadoras”, o
que equiparava aquele ato sexual a um fenômeno místico como o da gravidez da Virgem
Maria. O sexo pelo sexo, ao contrário dos princípios cristãos, seria um ato sagrado, destituído
da mácula pecaminosa que costuma ser-lhe atribuído quando não a serviço da reprodução.
Nesta altura na narrativa, a narradora introduz um comentário irônico acerca da
descrição metafórica do ato sexual. A preferência pela metáfora atenderia a um apelo mais
poético reivindicado pela literatura, em detrimento de uma abordagem mais crua e objetiva
do tema. Neste caso, ainda segundo a narradora, a objetividade deveria ceder lugar aos
atenuantes literários, como os proporcionados pela metáfora, já que a literatura seria, muito
amiúde, uma “mariconzona católica” (idem), ou seja, extremamente moralista.
Já de madrugada, Daniela desperta no quarto de Marcela, local que a princípio não
reconhece, ainda sob o efeito do excesso de champanhe consumido na noite anterior.
127
“O canto da ave ecoou nas cinqüenta e oito facetas e Daniela se fez de uma transparência fosforescente,
parecia uma atriz de Spielberg, iluminando de inigualável castidade a noite parisiense.”
144
Lembrava-se do avião, do ladrão beijando-a, mas o restante da memória tinha se esvaído com
a mesma volatilidade do álcool. Junto ao despertador descobre uma nota escrita com a letra
de Marcela, que avisa ter partido a serviço e que em breve estaria de volta; no quarto
contíguo haveria um “enxoval diplomata” à disposição da amiga. Daniela se levanta e vai
examinar o local e os presentes: vários pacotes de roupas de etiquetas caras, que lhe serviriam
para aplacar a fúria da mãe descontente com o seu desaparecimento e ansiosa pelo almoço ao
qual deveriam comparecer impecavelmente trajados.
Sem opção de transportes àquelas horas, salvo os táxis, que ela detestava, Daniela
decide voltar caminhando para casa. A poucos metros, porém, Daniela é resgatada pelo
impávido e emudecido motorista de Maurice, que a mando do patrão, a leva para casa de
limusine.
Os pais estariam dormindo, dentro em pouco amanheceria. Daniela deixou os pacotes
bem à vista e dirigiu-se para o quarto, a fim de retomar o sono interrompido. Ela sonha, e o
estado onírico permitiu-lhe antever certos acontecimentos, dentre eles, aquele que mais temia:
aquele homem jamais se apaixonaria por ela. Mais tarde, já às voltas com os preparativos
para o almoço, após safar-se da censura materna por sua ausência prolongada, Daniela toma
conhecimento de que um misterioso avião havia sobrevoado a Torre do Triunfo na noite
anterior e provocado certa apreensão entre os espectadores. Teriam interpretado a estranha
luminescência como refletores, que deixaram consternadas as prostitutas de Saint-Denis, pois
haviam sangrado como a primeira vez. Chamaram-no de Barón Mauve, e mauve [cor lilás ou
violeta] seria a cor do arrependimento
128
(p. 44).
Valdés institui com esta narrativa toda uma circunstância de farsa na qual predomina o
absurdo, o exagero, o inusitado. A própria personagem Daniela oscilava entre o real, o
humano, como uma caricatura de si mesma, ainda em busca de uma identidade, esgarçada
pelas bruscas rupturas às quais esteve submetida, como a morte acidental do irmão, a
ausência ostensiva dos pais, a mudança constante de residência. Sua subjetividade era
construída a partir do cinema, de um modelo hollywoodiano, que lhe servia de parâmetro –
uma espécie de suporte tático - para mover-se no exterior, num local onde ela não conseguia,
afinal, ser ela mesma, uma cubana, simplesmente. Era preciso ostentar uma certa
“sofisticação metropolitana” para ocultar a sua insegurança (constatada inclusive com a
128
No simbolismo das cores, violeta associa-se à temperança, à moderação, à espiritualidade e ao
arrependimento, ou ainda, à transição do ativo para o passivo, de macho para fêmea. Cristo e Maria usam
túnicas violetas em algumas pinturas que retratam cenas da Paixão (Cf. TRESIDDER, 1998, p. 218).
145
dependência do álcool) e a necessidade extrema de ser amada por aquele excêntrico (fora do
centro, fora do modelo) francês, diferente de tudo que ela já havia conhecido.
De fato, Daniela vivia num mundo bastante particular. Um mundo cooptado pela
literatura mediante um tratamento igualmente fantasioso, numa espécie de exortação à fábula
urbana contemporânea, em que não se dispensam seus elementos primários, como por
exemplo, o diamante “mágico”, o príncipe encantado, a carruagem (no caso, a limusine), o
tapete voador (no caso, o pequeno avião). Diferentemente do que ocorre em La nada
cotidiana, em que a personagem Yocandra está revestida de atributos mais verossímeis e
mais próximos à realidade cubana, Daniela está provida de uma aura mais universalizada,
muito em função de sua caracterização algo pasteurizada que a aproxima a muitas das
personagens de séries televisivas ou de cinema, sobretudo as norte-americanas. Uma
pasteurização, aliás, proposital, travestida nesta narrativa com uma roupagem de “romance
rosa”
129
, embora permeado de erotismo e de outros temas considerados “inadequados” para
esse subgênero, como menstruação e aborto. Não gratuitamente, a narradora cria todo um
clima “mágico” e lança mão de metáforas atenuantes para descrever o primeiro encontro
sexual entre Daniela e Maurice: afinal, a literatura – ou mais precisamente esse tipo de
literatura -, conforme comentário da própria narradora, ressentia-se de certos pudores
moralistas.
Com efeito, o comportamento algo pueril e inconseqüente, típico de grande parte dos
jovens de todo o mundo, faz de Daniela uma personagem que extrapola uma cubanidade mais
explícita, e que se dilui em meio ao ambiente pantanoso da padronização universal.
Paradoxalmente, em terras estrangeiras, a sua sobrevivência enquanto mulher (e não como
uma garota mimada) e enquanto cubana (e não como um arremedo de cidadã européia)
exigiria dela atitudes drásticas para reconciliar-se consigo mesma e alcançar a sua autonomia
de modo irrevogável, ao assumir todos os riscos de suas escolhas.
129
Subgênero narrativo, em geral considerado como subliteratura, que tem como conflito central da intriga as
relações sentimentais dos protagonistas. Na Espanha, atinge o auge na segunda década do século passado,
mas sua vigência se estende até hoje. Está dirigida a um certo público feminino (adolescentes pouco cultas),
o que não impede que atraia leitores masculinos. Costumam repetir modelos estereotipados e conservadores,
tanto ideológicos, como técnicos, cumprindo uma função essencialmente evasiva. As personagens tendem a
um comportamento maniqueísta, são bonitas, fortes, saudáveis, jovens, e se movem sem limitações
econômicas (vivem em palácios, mansões, etc), atendidas por serviçais, etc. A partir dos anos setenta,
algumas dessas obras incorporaram o erotismo em seus enredos, embora os recursos literários costumam ser
os típicos do folhetim ou do melodrama, e a linguagem sustentar-se em expressões hiperbólicas e tópicas (Cf.
REYZÁBAL, 1998, p. 92).
146
Até que isso aconteça, Daniela se esmera para compor um modelo que se adequasse à
ocasião do almoço em homenagem ao escritor italiano Alberto Moravia
130
. Transfigura-se, ao
substituir o vestuário despojado por uma elegância sóbria, postura que logo quis abandonar
ao dar-se conta, ao longo do trajeto, de que o almoço se realizaria no campo. A mãe obrigou-
a a recompor-se no assento do automóvel.
Entre os convidados estariam representantes políticos de vários países, exceto os
“imperialistas yanquis”, além de artistas, jornalistas, intelectuais, desportistas, e o Barón
Mauve, que assistia divertido aos movimentos da restaurada Daniela. Num determinado
momento, enquanto ela conversava com o escritor italiano, seu pai intervém para apresentá-la
a Vassilis Vassilikos
131
, escritor grego, autor de “Z” (1967), romance adaptado para o cinema,
em 1969, pelo cineasta também grego Constantin Costa-Gravas. O escritor grego repara e
comenta que coincidentemente ela levava uma letra Z
132
na corrente do pescoço; ela justifica
que guardava uma relação especial com as letras e os nomes, e que aquela correspondia à
letra inicial do nome que gostaria de ter (vide o nome da autora, Zoé). Na verdade, aquele
seria um “ene”, ou “z” invertido, letra inicial do nome do ex-amante norte-americano,
inimigo político do pai.
A presença de romancistas da estatura de um Moravia e de um Vassilikos, imiscuídos
entre personagens fictícias naquela recepção, serviria para rasurar os limites entre ficção e
realidade, e emprestar maior realismo à narrativa, além de representar uma homenagem
pessoal da autora. Não por acaso, ambos os autores devem perfilar entre os romancistas que
Valdés tem em alta estima, por se alinharem contra regimes autoritários que se pretendem
revolucionários, mas que apenas mascaram o terror com o disfarce de justiça social (caso de
Vassilikos), ou que mantenham uma postura crítica contra a desenfreada globalização, que
conspiraria contra a preservação das identidades culturais (caso de Moravia).
Indiferente a todo esse movimento, circulava o desconhecido intruso Barón Mauve,
com quem Daniela troca algumas palavras simulando desinteresse, embora internamente
controlasse o impulso de lançar-se sobre ele ali mesmo. Sem levantar suspeitas, eles marcam
130
Consagrado romancista italiano, de origem judaica, Alberto Moravia (1907-1990) criticava a modernidade, o
desmoronamento das tradições, a melancolia, a incapacidade de amar e a obsessão pela sexualidade, que
considerava uma fuga. Salientam-se entre suas obras “Os indiferentes” (1929), “A romana” (1947), “O
conformista” (1951) e “Eu e ele” (1970) (vide r.m.e.).
131
Escritor e diplomata grego que em “Z” trata das atrocidades cometidas pelo regime militarista que o exilou da
Grécia em 1967. Vive atualmente em Paris e, além de escritor, atua como representante da Grécia na
UNESCO (vide r.m.e.).
132
A letra Z, do antigo grego, significa “Ele está vivo”, e constitui uma metáfora utilizada pelo pensamento
revolucionário (SILVA, 1994, p. 3).
147
um novo encontro para aquele noite, na Place Saint-Michel, quando ela passaria a participar
dos inusitados “roubos” planejados por Maurice.
Num primeiro momento, Daniela procurou evitar dar continuidade àquela aventura,
mas retrocedeu. Romântica e apaixonada, ela deposita naquele “pirata dos céus” as mais
íntimas expectativas de um futuro a dois em Paris. Ela estaria vivendo “un delirio de bolero”,
cujas intenções incluíam substituir a casa paterna pela do homem amado e trocar de
nacionalidade, sem outras exigências adicionais, como, por exemplo, casamento.
As evidências indicavam que Maurice jamais se submeteria a esse “despretensioso”
enquadramento social para atender às necessidades pessoais de Daniela. Uma vez mais, a
mulher se propunha a apenas substituir uma condição paternalista por outra – do pai para o
marido -, além de, neste caso em particular, ser-lhe facultada a concessão da cidadania
francesa como benefício adicional. Ela passaria de uma moderna mulher submissa cubana a
uma moderna mulher submissa (pseudo-)francesa: a história se repetiria, como tantas outras
vezes, independentemente da classe social ou da etnia.
Para as cubanas, casar-se com um estrangeiro, preferencialmente europeu, acenava-
lhes com uma oportunidade real, não só de mudança de status econômico, como também de
sair de Cuba, por vias legais, sem correr riscos de afogamento ou submeter-se a ritos
sumários de prisão e de fuzilamento, em caso de deserção. Ocorre que o fato de ser filha de
embaixador não garantiria à Daniela a preservação perpétua dos privilégios adquiridos: a
idéia de um futuro estável para um embaixador socialista era equivocada, pois ele poderia ser
destituído a qualquer momento, segundo os humores da política externa. Portanto, a pretensão
de desfrutar despreocupadamente das regalias proporcionadas pelo cargo do pai e a vaidade
que esta condição concedia à Daniela chegaram a provocar o riso irônico do próprio Maurice,
mesmo porque sua aparência “rebelde” não coadunava com a de uma filha de embaixador.
Todas las hijas de embajadores eran igual de pretenciosas, se creían las dueñas del
futuro, sin sospechar cuán efímera podía ser la idea del futuro en la vida de un
Embajador socialista. Hoy era embajador y mañana podrá ser enterrador.
Estalló la irónica carcajada. Nadie lo creería, que ella fuera la hija de un embajador.
No tenía nada que ver con ese mundo. Olvidaba que era la hija de un embajador de
un país en desgracia, pobre, solitario, y ‘socialista’. Más bien parecía una rockera, o
una trapecista. [...] (p. 54)
133
133
“Todas as filhas de embaixadores eram igualmente pretensiosas. Se achavam as donas do futuro, sem
suspeitar o quão efêmera poderia ser a idéia de futuro na vida de um Embaixador socialista. Hoje era
embaixador e amanhã poderia ser coveiro. Explodiu a gargalhada irônica. Ninguém acreditaria que ela fosse
filha de um embaixador de um país em desgraça, pobre, solitário, e ‘socialista’. Mais parecia uma roqueira,
ou uma trapezista.”
148
Havia, portanto, um descompasso cultural e econômico entre aquele experiente
francês e a desavisada cubana, imersa em expectativas ilusórias acerca de seu romance com o
presunçoso larápio. Ele, o dominador; ela, a dominada, a dependente. A propósito dessa
diferença entre ambos, vale mencionar que esta obra, ao ser traduzida para o francês por
Alexandra Carraso, mereceu o título de “La sous-développée” [A subdesenvolvida], editada
em 1996, pela Éditions Actes-Sud, que ressalta a condição de “subdesenvolvida” de Daniela,
contraposta à condição “desenvolvida” do francês. Um desenvolvimento tão inerente ao
francês, que o credenciava a protagonizar jogos audaciosos para comprovar a sua inabalável
supremacia artística e cultural, inclusive entre seus compatriotas, ainda que fosse por mera
diversão.
Essa audácia se revelaria nos atos praticados por ele e sua quadrilha na calada da noite
contra (ou a favor de, corrigiria ele) o patrimônio alheio. Suas ações consistiam em planejar e
executar minuciosamente a troca de objetos de arte, antigüidades, tapetes e outros artefatos
falsificados, por seus correspondentes genuínos, sem que o proprietário viesse a perceber a
mudança. Os “roubos” noturnos prosseguiram. Passaram, inclusive a trocar réplicas de
esculturas públicas por outra, ou telas famosas de um para outro recinto, como um Balzac
retirado do metrô e exposto no jardim do Museu Rodin. Semanas depois, o ladrão “benfeitor”
desfaria a troca, numa manobra igualmente intrépida e insuspeitável.
Nisto consistia o seu entretenimento: jogar com as aparências, interagindo com o
cenário privado e público. No primeiro caso, no âmbito mais reservado, demonstraria a
inépcia de pretensos especialistas, que não sabiam distinguir cópia de original. Por outro lado,
ao promover a troca de lugar das peças expostas em áreas públicas, estimulava a capacidade
de percepção estética em plano coletivo, congelada por força do hábito. Ao que parece, sua
intenção não seria nada mais que desafiar a cegueira generalizada ocasionada pela ignorância
e indiferença às quais a rotina paralisante induzia.
Cada vez mais, o Barón Mauve tornava-se uma personagem tão célebre quanto
desconhecida, devido aos contínuos e intrigantes vôos noturnos sobre a cidade, sem que
nenhum veículo de comunicação fosse capaz de precisar a quem atribuir tal façanha. Nem
mesmo os estranhos relâmpagos num céu estrelado e a súbita virgindade das prostitutas
despertavam tanto interesse, afinal, elas pertenciam à margem, sem qualquer valor para o
caro mundo dos holofotes midiáticos; e quanto às luzes celestiais noturnas não passariam de
algum fenômeno meteorológico facilmente explicável pela ciência.
Por aquela época, os pais de Daniela jamais se mostraram tão satisfeitos com a notável
erudição e a impecável desenvoltura demonstrada pela filha nas recepções sociais das quais
149
participavam. Não desconfiavam de que o crescente interesse pela arte e pela cultura de um
modo geral devia-se mais à paixão que nutria pelo excêntrico milionário francês do que
necessariamente por convicção. Uma paixão que a encorajava a acompanhá-lo nas suas
aventuras noturnas.
Para ela, amor e perigo se confundiam, ao passo que para ele, toda relação amorosa
constituía um campo de batalha, em que cada encontro de olhar correspondia a um disparo de
míssil. Ela tomava por base os romances lidos apenas para deleitar-se, com os finais felizes;
no entanto, na sua história particular, cada frase, cada momento, trazia consigo um detalhe
único e inesperado, que corroboravam para a imprevisibilidade do final. Entretanto, a
despeito da sensação de plenitude que a relação com aquele homem lhe proporcionava, num
recanto da memória de Daniela permanecia uma sensação de isolamento, comparável ao de
uma mulher solitária, uma ilha, tal como era seu país: “[...] La ternura era más, era tener a ese
hombre acariciándola y sentir un erizamiento en el gran simpático, miedo a que se
desvaneciera y al mismo tiempo valentía ante la duda y la capacidad de salvación. En cambio,
disfrutaba de todo eso y no podía quitársele de la cabeza aquella isla, ese país tan mujer, tan
sola.” (p. 67)
As diferenças entre os dois se manifestavam inclusive no nível lingüístico, pelo
emprego de termos que refletiriam intrinsecamente a oposição entre abundancia e escassez
existente entre os dois povos, francês e cubano, respectivamente. Num determinado momento
de arroubo sentimental, Daniela deixa escapar uma declaração de amor, que Maurice acolhe
com carinho mas com reservas:
“_Te amo – susurró después de meditar largamente.
_Ojalá pueda yo amarte como tú me amas, princesa.”
O vocativo princesa serviu-lhe como termo comparativo para refletir sobre as
diferenças no tratamento lingüístico-afetivo utilizado por cubanos e franceses: “En París no
se decía ‘mi chinita, mi mamita rica’, sino princesa, tesoro, joyita, y otras edulcoradas formas
de la abundancia. Tanta sinceridad le arrancó lágrimas y jeremiqueos a ella.” (p. 67)
Uma sinceridade que encobria uma verdade indecifrável, que Daniela pressentia como
um sinal inquietante de instabilidade futura, que ela preferia ignorar no momento. Ele observa
que as mulheres estariam sempre dispostas a prever tragédias, diante do que Daniela admite
que, efetivamente, as mulheres conformariam um exército de Sibilas. Elas seriam profetisas,
feiticeiras, cujo potencial profético contido no mistério de suas palavras as equiparava à
própria poesia. E, muito em breve, Daniela poderia comprovar a força de suas previsões.
150
Naquela noite, excepcionalmente eles não se veriam. Daniela deveria acompanhar os
pais a uma recepção comemorativa de alguma data nacional de algum país. No dia seguinte,
Marcela chegaria de Toulouse.
Bem cedo pela manhã, ainda na cama, Daniela lê a notícia da partida do indecifrável
Barón Mauve que, como despedida, havia deixado pintada em spray uma mensagem sobre o
Arco do Triunfo: “‘Princesa: por mi parte toda esa historia debe cesar, tengo que partir. Sé
que tú no la terminarás, tu aventura terminará cuando mueras. No mueras; sé fuerte con tu
verdad. Te besa. El barón Mauve.’” (p. 68)
Na opinião do pai, a mensagem encobria uma declaração de amor a Paris por um
homem misterioso que se despedia da cidade, cujo comportamento neurótico seria muito
comum naqueles países. O embaixador acrescenta que a novidade deveria ser devidamente
relatada ao seu ministério, apesar de soar aparentemente inofensiva. O desconhecimento e a
paranóia do pai não chegaram aos ouvidos de Daniela, que, assolada por uma seqüência
desencontrada de recordações de fatos remotos e recentes, vê-se repentinamente caminhando
pela estação do metrô em direção ao apartamento de Marcela.
Não havia recados na secretária eletrônica da amiga e, embora os televisores lhe
provocassem náuseas, Daniela liga a TV. Ela depara-se com a imagem de Maurice sorrindo
para os flashes dos fotógrafos, que cobriam a matéria sobre aquele que se revelava como um
nobre francês de partida para uma curta temporada em Cuba. Ela preferiria ter experimentado
a sensação de um “desmayo finisecular” para provar seu amor, tal como faziam as damas
quando seus cavaleiros partiam para a guerra em séculos anteriores. Pela TV, Maurice se
havia transformado em seu “pequeno príncipe”, personagem ícone da literatura juvenil dos
anos 1970, que a abandonava para perfazer o caminho inverso, ao dirigir-se para Cuba, sem
responsabilizar-se pelo que havia cativado.
Daniela busca consolo numa garrafa de whisky, e refugia-se no banheiro. Ali, procura
provocar com o dedo médio a saída do diamante alojado no útero – a semente involuntária
que ela havia tragado. Apesar do esforço, a pedra resiste à escavação, mas deixa escapar
coágulos de sangue. Banhada em suor e contorcida de dor, Daniela usa de uma agulha de
tricô para alcançar a pedra, que afinal se desprende para cair sobre o mármore, alojada na
garganta de um feto moribundo, o fruto que não vingou.
Por um lado, o aborto representava o crime através do sexo, em que concorriam
sangue e suor, elementos que iniciam e encerram toda uma trajetória de vida baseada em
falsas aparências, em superficialidades, em ilusão. Significavam despedida, solidão, fim de
uma etapa. Por outro, o sacrifício do fruto daquele romance frustrado, metaforicamente
151
representava a possibilidade de reabilitação consigo mesma, um rito de passagem para o seu
renascimento pessoal, longe das amarras paternalistas, longe dos romances ilusórios como o
que havia acabado de viver.
A narrativa desenha uma trajetória circular, cujo início e fim se tocam para reiterar a
presença ativa dos elementos feminóides do sangue e da água (o suor e o subseqüente banho
para lavar-se). Além disso, reitera-se a representatividade da vertigem e da queda (de Daniela
e do próprio feto sobre o mármore frio), que salienta a brutal e irremediável condição
terrestre da raça humana. No caso específico de Daniela, pelo fato de ser mulher, este
esquema ainda reforça a ação do tempo nefasto e mortal, moralizado sob a forma de punição,
em decorrência de alguns “pecados” cometidos, como os relacionados com o sexo, a idolatria
e o assassinato (do irmão e do filho).
Com esta obra, Zoé Valdés obtém uma paródia demolidora dos ingênuos e
despretensiosos “romances rosas” (comumente conhecidos entre nós como “água com
açúcar”) que alimentam as ilusões das jovens românticas, ainda hoje. Numa época em que a
gravidez ocorre cada vez mais precocemente, e a ânsia por modelos comportamentais cada
vez mais voltados para o supérfluo e a efemeridade, a identidade feminina se atrela a
artifícios cada vez mais pasteurizados ou uniformizados de uma cultura globalizadora e
descartável.
Na verdade, a despeito de Daniela superestimar a questão da cidadania cosmopolita,
ela reconhecia os preconceitos étnicos a que estava sujeita em terras européias, mesmo em se
tratando de uma filha de embaixador. Restava-lhe, portanto, produzir uma reviravolta através
de sua própria iniciativa para resistir às imposições do destino e para dominar os perigos do
tempo e da morte de si mesma: seria preciso refazer-se, reconstruir-se a partir das cinzas. Zoé
Valdés não se furta a inserir o contorno moralista à obra, efetivamente presente, tal como nas
fábulas principescas, mas lhe confere um sabor mais agridoce, diferentemente das insossas ou
melífluas narrativas do gênero. Não tão cáustica quanto La nada cotidiana, La hija del
embajador revela-se cética e, curiosamente, ao mesmo tempo, guarda um fio de esperança na
capacidade de reação e de discernimento crítico consciente da mulher. Apesar de todo
romantismo ilusório que ainda lhe possa caracterizar, refletida na literatura da pós-
modernidade.
152
4.4 MARILENE FELINTO: MOBILIDADES E INCONFORMISMO – ENCONTRO
ENTRE BRASIS
A brasileira Marilene Felinto nasceu em Recife e graduou-se em Português, Inglês e
Literatura pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em
1981. Mantinha uma coluna na Folha de São Paulo, tendo sido afastada do cargo por motivos
até hoje não esclarecidos; supõe-se que suas palavras tenham atingido algum alvo proibitivo e
suscitado a reação punitiva de alguém pertencente ao alto escalão do jornal...
Seu primeiro romance, As mulheres de Tijucopapo, foi traduzido para o inglês,
holandês e francês. Nele, Rísia, personagem central, é uma garota pobre, nascida em
Pernambuco, numa região sacrificada por um clima seco e açoitada pela escassez de recursos.
Ela cresce em meio a esse desastre social, até que parte com sua família para São Paulo, na
ilusória expectativa de encontrar melhores condições de vida. Após algum tempo, desiludida
não só pela perda do homem amado, mas também pela rudeza da família e pela relação
conflituosa com “a maneira de ser” reinante no maior e mais importante centro urbano do país
(“São Paulo é de um jeito que não é o meu”) (FELINTO, 2004, p. 113), ela empreende uma
viagem de volta ao seu mundo agreste, onde pretende recuperar as ilusões achacadas pela
aspereza da cidade grande.
Em O lago encantado de Grongonzo, composta por lapsos temporais e espaciais, a
protagonista Deisi [sic], uma mulher procedente de uma cidade portuária do nordeste,
chamada Grongonzo, povoado sem lei onde havia “assassinatos sinistros no meio da rua, na
Avenida Militar do porto, pai copulando com mãe a pulso no quarto ao lado” (FELINTO,
1992, p. 18), mescla reflexões sobre a vida, sobre o ser humano, suas raízes, sobre o passado
remoto (a infância) e o recente, quando havia se relacionado com “outro” tipo de gente, bem
diferente das antigas amizades, que temia reencontrar por motivos que ela não ousava
confessar.
Assim, às vésperas de rever três velhos amigos - Estefânia, Lena e Demian (um antigo
namorado), Deisi, agora casada com Levi, com quem teve um filho, reflete sobre sua vida
pregressa, a infância naquele lugar para onde ela havia retornado depois de ter vivido, entre
outros lugares, em Brasília, onde conheceu os amigos que estavam prestes a visitá-la em sua
terra natal, por motivo de férias.
Em Obsceno abandono – amor e perda, novela dividida em duas partes – Abandono e
Obsceno -, Felinto nos relata as frustradas relações amorosas da protagonista (anônima e
imigrante) com alguns homens, com destaque para Charles (também imigrante), com quem
manteve um relacionamento clandestino durante cinco anos. Casado, ele se recusava a
153
separar-se da “esposa legítima” para assumi-la de vez. Quase uma história banal de triângulo
amoroso com a “legítima” desconhecendo a existência da “outra”. A obviedade apontada na
narrativa consiste na certeza de que o amante jamais deixará a esposa para assumir uma
relação que - adivinha-se – ele prefere manter na clandestinidade, sempre lançando mão de
um discurso evasivo que anulava as investidas ou as queixas da companheira, para que tudo
permanecesse exatamente como estava.
A convite da editora Record, Obsceno abandono integrou a coleção Amores
Extremos, que reuniu novelas inéditas entre aquelas consideradas como as mais significativas
escritoras brasileiras da atualidade para falar do amor.
154
4.4.1 As mulheres de Tijucopapo: a revolução
À primeira vista, esta constituiria mais uma narrativa entre outras tantas de cunho
regionalista que abordam o movimento migratório a que uma significativa parte da população
nordestina brasileira se submete para escapar à miséria. As notórias desigualdades
econômicas e sociais que marcam o território nacional constituem a base desse deslocamento
populacional em busca de melhores condições de vida nos grandes centros urbanos. Num
país de dimensões continentais como o Brasil, é possível afirmar que a região sudeste
equivale para a região nordeste o que a Europa equivale para a América Latina: ou seja, o
Brasil se equipara a um continente luso-americano recortado por regiões (equiparáveis a
países) de características díspares, com a hegemonia econômica da região sudeste sobre as
demais.
São Paulo surge como a metrópole-mor, o mais importante pólo irradiador de cultura e
onde se concentra a maior riqueza econômica do país, motivo pelo qual exerce sobre as áreas
menos favorecidas o mesmo fascínio que os grandes centros europeus exercem sobre os
latino-americanos. Transferido para um contexto bíblico, numa alusão ao êxodo do povo
judeu, a capital paulista assume um status de Terra Prometida, ao acenar como alternativa de
trabalho e de mais conforto para famílias inteiras, que abdicam do pouco que possuem na terra
natal em prol de um futuro tão promissor quanto incerto na grande urbe cosmopolita.
Neste contexto se insere a família de Rísia, obrigada pelo pai a realizar o mesmo
trajeto de tantas outras, convencido de que no “sul maravilha” encontraria a solução para as
mazelas a que estavam expostos num subúrbio pobre de Recife. Entretanto, uma vez na
metrópole, são arrebatados pelo impacto cultural que os arremessa a uma espécie inusitada de
ostracismo, do qual dificilmente serão capazes de escapar, imersos numa realidade cruel e
extremamente seletiva, para a qual não estavam preparados. Contrariada, Rísia, a
protagonista-narradora, quer dar uma orientação diferente a seu destino, de modo que, depois
de viver alguns anos na capital paulista com a família, rompe as amarras para empreender
uma jornada solitária de volta às raízes, numa trajetória inversa, em direção ao interior
pernambucano.
Um retorno que se converte numa alegórica viagem ao interior do ser, com resquícios
mítico-religiosos, com os quais a personagem procura fundar um novo começo para sua
própria história. Somente após abordar sua realidade interior (existencial e geográfica) de
forma plena e restabelecer sua consciência enquanto mulher e nordestina, ela poderá
posicionar-se como seu eixo central e assumir o comando de sua existência
155
Diferentemente de Yocandra, em La nada cotidiana, de Zoé Valdés, Rísia não estaria
submetida a uma espécie de paralisia espacial por força do regime ditatorial que impede o
trânsito livre do cidadão comum. Ao contrário de várias gerações cubanas, condenadas a se
fixar, várias gerações da população nordestina brasileira estão condenadas a se mover, a
deixar para trás seu chão, seu universo mítico, sua singularidade. A ilha cubana cerceia a
mobilidade dos filhos; o nordeste brasileiro expulsa-os de seu território, de seu nicho nativo.
O abismo sócio-cultural discriminatório, assim como a frustração amorosa, a solidão e
a incompatibilidade familiar, levadas ao extremo na capital paulista, fazem com que Rísia
abdique do ilusório sonho urbano acalentado pelo pai, para resgatar-se a si mesma e promover
uma revolução pessoal (com desdobramentos sociais) sob os auspícios de mulheres
guerreiras: as mulheres de Tijucopapo
134
.
O desamor e a miséria seriam combatidos através da expiação de culpas atribuídas à
mãe, ao pai, aos irmãos, mas sobretudo, à miséria de seu lugar de nascimento, considerada a
grande responsável pelo exílio a que o povo nordestino estava quase sempre destinado. A
redenção só se daria ao reconhecer nas suas raízes a força, a beleza e o amor de que esteve
privada para, então, livre dos ressentimentos acumulados, cultivar seu próprio espaço, um
lugar onde pudesse construir seu reino particular. Concomitantemente, o mutismo a que
esteve fadada durante anos seria superado pelo seu “grito literário”, corporificado numa carta
destinada à mãe, uma espécie de catarse através da palavra escrita para relatar toda a sua
odisséia pessoal. Uma carta, aliás, que Rísia pretendia versar para o inglês, a mais “viva” das
línguas (p. 90), uma versão que ela acreditava poder emprestar à sua luta pessoal uma aura de
universalidade: “Essa carta que vou mandar, eu queria que fosse língua estrangeira, assim as
pessoas não entenderiam exatamente. E assim os fatos seriam mais mundiais, não é? Código
de guerra.” (FELINTO, 1984, p. 23)
135
.
O inglês representava uma sofisticação intelectual à qual os familiares não teriam tido
acesso, o que lhes dificultava o entendimento e os matinha alheios ao relato confessional
contido na carta: “Inglês é de um material estrangeiro que me fascina e me separa dessa
proximidade toda de enviar uma carta de mim na língua de minhas pessoas, a minha língua.
134
Na mitologia pernambucana, Tijucopapo figura como símbolo de resistência. Em 1946, durante a invasão
holandesa a Pernambuco, movidos pela fome, os flamengos da Nova Holanda invadem a pequena vila de
Tijucopapo, hoje município de Goiana, a 63 quilômetros de Recife. Conta-se que, sem armas de fogo, as
mulheres do lugarejo enfrentam a tropa com panelas e pimenta, e vencem a batalha (XAVIER, [s/d], p. 11).
135
Todas as demais citações subseqüentes referentes a esta obra serão indicadas no corpo do trabalho, pelo
número da página correspondente, entre parênteses.
156
Não quero que saibam de mim assim, tão proximamente. Quero que não me entendam. Inglês
me dá distância:[...]” (p. 91).
Escrita em primeira pessoa, a narrativa se compõe como um mosaico, fragmentos que
se ajustam ao sabor da memória de Rísia, em que ela se expõe despudoradamente, sem
poupar o leitor de sua sinceridade cáustica e agressiva, com uma linguagem direta, sem
subterfúgios. Todavia, sua agressividade apenas escamoteia uma profunda carência afetiva
sobretudo com relação à mãe omissa e impassível, e a Jonas, o homem que “se morreu dela”,
morte com a qual Rísia não se conforma nem perdoa, por sentir-se abandonada, traída:
“Quando você morreu eu não sei se odeio você ou se a vida, ela que ousa ainda me viver
enquanto te mata. Foi a vida que te matou? Essa vida que me vive? (p. 85)
Ou, ainda: “Quando você morreu eu não te perdôo, pois você preferiu se morrer de
mim a ficar comigo.” (p. 86). Emprega-se, pois, um jogo antagônico de tempos verbais, em
que se conjuga o verbo morrer com outros verbos, em tempos contrapostos, o que cria uma
novidade semântica de efeito impactante: “Quando você morreu eu vou fazer uma elegia.” (p.
83), que demonstra o estado de contrariedade e de confusão em que se encontrava.
A perda do homem, amado desde a infância, privou-lhe do único apoio com o qual
ainda podia contar, e que redundou numa paralisia quase que absoluta para enfrentar a vida,
para conquistar seus sonhos: “Eu, um buraco, um oco, um seco, um vazio. Eu de manhã
noite. Nunca mais terei sol? A chuva me fere a cara dum céu tão cinza. Cinza, meu Deus,
essa morte.” (p. 82).
Por sua vez, mitos como o da maternidade protetora e o da infância inocente caem por
terra, muito em função das experiências negativas com relação ao pai negligente e adúltero,
que castigava a menina, com a anuência submissa da mãe. Por conta das amantes do pai,
cujos nomes invariavelmente continham “ana” na sua formação (ou soavam próximo a isso -
Analice, Diana, Babiana ou Estefânia), Rísia associava as mulheres assim nomeadas à
traição, à deslealdade e à infidelidade, pessoas que não lhe inspiravam perdão ou
condescendência. À exceção de Naninha, uma irmã de caridade, Rísia as equiparava à Eva,
pecadora a quem condenaria à castração e à expulsão do Paraíso, numa referência explícita à
iconografia bíblica
136
: “Irmã Naninha é a única mulher chamada Ana cujo nome não me vem
136
Considere-se que tanto Jonas, o homem que a abandonou (“morreu-se” de Rísia), como Ana (ou Eva) são
nomes com referenciais bíblicos. O primeiro foi um profeta que, ao tentar escapar da incumbência divina de
predicar em Nínive, foi lançado ao mar, engolido por um grande peixe – quase sempre representado por uma
baleia – e expelido de volta à terra, numa referência simbólica, entre outras coisas, à morte de Cristo, ao
sepultamento e à ressurreição (LEXIKON, 1990, p. 31). Já o segundo, seria o nome da mãe do profeta
Samuel, embora os apócrifos também confiram este nome à mãe da Virgem Maria, ou seja, à avó de Jesus
Cristo (PEDRO, 1998, p. 18).
157
lembrar traição. Pois que se eu pudesse trocava todos os nomes de Ana por Eva, a pecadora.
Todas as Anas são umas traidoras. Capemo-las. Expulsemo-las do paraíso.” (p. 23)
Seu temperamento tempestuoso e rebelde era proporcional à hostilidade generalizada
a que estava exposta, motivo suficiente para despertar-lhe sentimentos vingativos que sequer
poupariam o pai. Rísia não só assumia uma pré-disposição parricida, como também pretendia
vingar-se dele tornando-se prostituta, homossexual, louca, bêbada, bandida, enfim, qualquer
condição marginalizada socialmente, para atingi-lo. Não obstante, ela atribui a
impossibilidade de assumir tais papéis à fraqueza e ao medo de viver à margem, onde
somente os fortes sobreviveriam: “[...] E (vou até falar baixo) esse é o mesmíssimo poder que
me torna capaz de virar uma prostituta, uma homossexual, uma louca, uma bandida, uma
marginal. E, não, eu não sou de agüentar a margem da vida. Na margem sou fio que se
quebra. Na margem só ficam os fortes. Sou fraca, fina e frágil.[...]” (p. 24).
A vitimização e a passividade ostensiva da mãe despertaram em Rísia a curiosidade
sobre a origem materna, e, conseqüentemente, a sua própria. Em virtude disso, Tijucopapo,
lugar de nascimento da mãe, converte-se no destino da protagonista, após a sua longa
permanência em São Paulo. E é através da palavra (a carta inicialmente dirigida à mãe), que a
personagem consegue revolver a memória para, aos poucos, em fragmentos, reconstituir um
todo compreensível e autônomo. O caráter confessional da carta descreve a peregrinação de
uma mulher nordestina solitária de volta à terra natal, à procura de uma identidade perdida:
uma peregrinação de contornos mítico-religiosos, uma alegoria do (re)nascimento de Cristo,
cuja mãe não seria a Virgem Maria, mas a própria Rísia, numa intenção evidente de subverter
os dogmas religiosos mediante a desconstrução de alguns de seus mitos. Essa intenção se
estenderia a certos dogmas literários, cujas “verdades” inquestionáveis pretendia contestar,
como, por exemplo, a adequação lingüística, bem comportada, “literária” ou academicista,
que a personagem transforma num “vulcão de emoções” e descarrega sobre o leitor,
transformado-o em testemunha de suas angústias. A literatura também se prestaria a esse
papel, que demandaria a coragem dos marginalizados para manterem-se à margem e, ao
mesmo tempo, reforçarem sua vocação iconoclasta, contrária a qualquer espécie de
beatificação das instituições esgarçadas pela inocuidade de seus discursos excludentes.
A infância da protagonista constitui-se no arcabouço fundamental de sua cosmovisão:
teria sido durante esse período que Rísia havia formulado alguns conceitos acerca das pessoas
e da vida, e os registrado na memória. Tudo o mais seria uma compilação desses registros dos
quais Rísia se torna refém. Contudo, através da palavra, ela procurava manter sob controle o
animal indômito que existia dentro dela, ao mesmo tempo primitivo e puro, mas também
158
feroz e impiedoso. Um primitivismo que guardava uma certa inocência, uma certa pureza
ainda não contaminada pelas “safadezas” do mundo adulto, quase sempre seduzido pelo sexo,
independente de crenças religiosas.
A miséria e o abandono à própria sorte faziam parte da ancestralidade de Rísia e
assombrariam não apenas seu universo infantil, mas tamm o adulto, quando ela tem que
lidar com a perda de Jonas, sua paixão desde os tempos de menina. A carência se revela não
só pela falta de provisões essenciais para uma subsistência decente, como também pela
incompetência dos pais no tratamento afetivo em relação aos filhos. A omissão da mãe e o
descaso do pai comprometiam um convívio familiar sadio, já tão sacrificado pela aspereza de
um cotidiano de privações.
Rísia jamais se miraria na progenitora para servir-se dela como modelo. O fracasso
generalizado de sua família afetava-lhe de tal modo, que fazer parte daquele núcleo familiar a
revoltava. Um dos motivos da revolta seria o fato de ter descoberto que a mãe havia sido
adotada, algo que equivaleria a não possuir uma base histórica sólida, confiável. No seu
entendimento, a mãe careceria de um referencial legítimo, não seria uma pessoa “de
verdade”, não teria nascido, teria uma identidade falsa que se estenderia a seus descendentes:
“Tudo na minha mãe é adotado ou adotivo. Minha mãe não tem origens, minha mãe não é de
verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu.” (p. 47). Essa constatação encontraria ecos em São
Paulo, quando Rísia perceberia a si e a família também como seres adotados: eles não faziam
parte daquele universo, aquela “mãe” não os reconhecia como filhos legítimos. Eles não
pertenciam àquela terra, eram estrangeiros em seu próprio território, forasteiros da periferia,
da porção mais indigente do país. Rísia não se reconhecia e nem era reconhecida como parte
daquela realidade, mas um ser à parte, marginal, discriminado em virtude da origem
nordestina, agravado pelo fato de ser mulher. Uma nova candidata a ocupações servis ou à
prostituição na metrópole paulista.
A questão identitária adquire contornos mais bem delineados quando, mediante o
recurso do fluxo de consciência, a personagem discorre sobre promover mudanças no seu
modo de ser e de conduzir-se. A natureza nas suas várias manifestações (inclusive animal)
exercia uma forte influência sobre seu comportamento, positiva ou negativamente. A começar
pela lua, a que Rísia responsabilizava por ela ser uma pessoa “aluada”, “em estado de porre
sem nunca ter bebido” (p. 50), meio fora da realidade. Ela havia nascido em Poti, a “vila-
lua” (um bairro pobre), tinha ascendência índia (por parte do avô) e negra (por parte da avó),
condições que a remetiam à terra, à raiz, a um universo que se contrapunha à nulidade
referencial na qual a modernidade urbana de São Paulo a havia lançado.
159
Seu processo de interiorização permitia-lhe reabilitar um certo equilíbrio consigo
mesma, para não sucumbir à loucura com a qual o mundo externo a ameaçava.
Paradoxalmente, a irracionalidade também aparecia como alternativa viável para garantir a
sua sanidade mental, pois através dela poderia expressar-se livremente sem as amarras de um
mundo civilizado mas hostil. Daí que ela guardava mais afinidade com bichos, a ponto de
desejar transformar-se numa égua, pela impetuosidade característica do animal que lhe
permitiria sair em disparada “arrancando patacas de lama da campina encharcada ou fazendo
poeira do barro seco das serras” (p. 49), para esquecer suas frustrações. Desde criança, o
sentimento de inadequação em relação ao entorno familiar e social despertava nela o desejo
de partir, de extrapolar os limites da rua em que morava para ganhar o mundo.
Para ela, a vida não deveria reduzir-se à miséria e ao descaso que ela reconhecia ao
seu redor, que condicionava os entes mais próximos a repetirem as mesmas fatigantes tarefas
diárias, sem perspectiva de melhorias, que os condenava ao atraso endêmico. Na sua
perspectiva infantil, ela imaginava a vastidão de um mundo projetado para além dos limites
da rua onde morava, provavelmente atraída pelas histórias de prosperidade sobre a “cidade-
grande” do sul, com as dimensões infinitas de seu sonho de menina nordestina. Nas suas
fantasias, os barquinhos de papel confeccionados em dias de chuva representavam o meio
através do qual ela poderia empreender uma viagem em busca de “outro mundo” que não o
seu, pequeno e estreito espaço periférico. Barquinhos que lhe incitavam o desejo de livrar-se
das amarras que a prendiam ao chão de terra seca, árida como a vida se lhes apresentava – a
ela e aos seus -, e negava-lhes a pujança arrebatadora com que a metrópole lhes acenava. A
partir dali, construía-se o olhar utópico voltado para as “maravilhas” de um lugar que não
estava ao seu alcance, ao qual não pertenciam.
Neste sentido, a chuva consistia numa outra modalidade de existência que acalentava
a sua idéia de liberdade. Rísia queria ser chuva, pois somente a chuva ousava “penetrar a
morada profunda e esguia dos grãos de areia, a terra negra” (p. 62), além de levar os barcos
para outros confins. A chuva também representava o choro de tristeza que a acometia,
sobretudo quando sentia falta da presença da mãe para protegê-la, como no episódio em que o
pai a castigou com “uma surra pela sua fuga” (p. 63). Naquele dia chuvoso, Rísia tinha
aceitado passear na garupa da bicicleta de Jonas, com quem cruzou toda a campina,
recebendo chuviscos no rosto e experimentando a sensação de liberdade. O pai recebeu-a na
varanda, com cinturão em punho, para castigá-la por sua tentativa de fuga - entendida por ele
como uma afronta à sua autoridade -, além de deixá-la sem almoço, molhada de lágrimas e de
chuva. A mãe se encontrava na maternidade para dar à luz a Ismael (que morreria dois dias
160
depois de nascido), daí a sua ausência e a impossibilidade de intervenção em favor da filha,
contra os violentos métodos “corretores” do marido.
O episódio reforça a opressão patriarcal sob a qual vivia a família, refém da violência
e da intolerância paterna para com os supostos “desvios” de conduta de seus “subordinados”.
Uma opressão quase militar, em especial no seio familiar nordestino em que a figura do pai se
equipara a de um “coronel” onipotente, a quem se deve obediência incondicional, sob pena de
o infrator sofrer “merecidos” corretivos em razão do inconcebível atrevimento. Desde tenra
idade ficava estabelecido que ao pai se devia obediência cega e submissão, a despeito das
arbitrariedades e dos excessos que ele viesse a praticar em nome da preservação da ordem
familiar e da sua autoridade. Não obstante, num ímpeto de liberdade, Rísia provocou a ira
paterna ao romper as regras, o que lhe custou o castigo imputado pelo pai, convencido da
necessidade e eficiência de seus procedimentos.
Como desdobramento mítico, Jonas teria sido o “messias redentor” que, através de um
rito de iniciação à vida externa (sair de bicicleta campina afora), teria proporcionado à
menina a experiência da liberdade, aos sete anos de idade. O pai, o deus contrariado, com
poder de punição pela força e pela fome, sem discernimento e sem clemência.
Naquele dia, as ruas largas da cidade de Recife ficaram alagadas, pois teriam
sucumbido ao chamado das águas do rio Capibaribe, tal como Rísia havia sucumbido ao
convite de Jonas para passear na garupa de sua bicicleta. O rio representaria para Recife,
“cidade fogosa e ardida” (p. 64), o que Jonas representava para Rísia: fonte de perigo
(inundação e castigo) e de liberdade (através do rio, se chegaria a outro lugar, e através de
Jonas, Rísia havia ultrapassado os limites da rua), que acenava com uma possibilidade de
salvar a ambas – cidade e pessoa – da imobilidade, da inércia a que estavam condenadas pelo
isolamento e pela arbitrariedade.
Por sua vez, Rísia sequer habitava a região central de Recife, mas a periferia, um
bairro pobre, invariavelmente desassistido pelo poder público. Em outras palavras, ela era um
produto da periferia de uma periferia, e mulher, o que agravava ainda mais a sua condição
marginal numa sociedade ainda mais arcaica, paternalista, misógina, étnica e socialmente
segregada e segregadora.
Uma pessoa bastante significativa nos seus relacionamentos de infância foi Nema,
amiga e confidente, a quem Rísia invoca durante grande parte da narrativa. Ainda criança,
Nema mudou-se com a família para Pedra Branca, motivo do ressentimento de Rísia, que
entendeu a partida como um abandono por parte da amiga. Nema agora fazia parte do
passado e, para compensar sua ausência, Rísia a retém na memória e a transforma em sua
161
interlocutora imaginária, com quem partilha muitas das suas experiências vividas em Recife e
em São Paulo. Assim, Nema, nada mais era do que Ninguém; ninguém a ouvia: as palavras de
Rísia poderiam ser “palavras ao vento”, palavras “de mulher”, sem qualquer repercussão
significativa, sem receptores que as acolhessem. E esse seria mais um desafio a ser
enfrentado: promover a revolução de si mesma através da Palavra, contra o mutismo, contra
as forças intimidadoras que lhe impunham o silêncio e a nulidade.
Tampouco agradava-lhe o fato de ter sido obrigada, ainda criança, a deixar as praias
“ainda maravilhosas” de Boa Vista, na “Recife coitada”, para morar num porão qualquer na
capital paulista. O seu mundo suburbano, periférico, entre porcos, galinhas e tapiocas, apesar
de miserável, conferia-lhe uma referência de valor afetivo que ela pretendia manter intocável
pelos descaminhos da maioridade: “Não vou desrespeitar nunca a menina que existe dentro
de mim. A menina que existe dentro de mim está sentada num trono. [...]” (p. 98). A partir da
infância, única e insofismável, ela teria projetado as suas expectativas futuras: “[...] Não há
espaço que preencha uma infância. Uma infância são ânsias. Uma infância não preenche
espaço algum, ela não cabe, ela se espalha no que eu sou até hoje, no que vou ser sempre.”
(idem).
Isto se deve ao fato de que, uma vez em São Paulo, seu universo infantil se choca com
o hotel imundo no Brás, bairro pobre de São Paulo, onde o pai primeiramente havia alojado a
família para depois transferi-la para um porão minúsculo. Ali, uma vez instalados, Rísia não
demora a constatar outras formas de degradação, ao flagrar um homem masturbando-se no
tanque coletivo. Lembra-se, então, das obscenidades praticadas pelos crentes no fundo do
quintal depois de pousarem de puritanos à frente da igreja que freqüentavam em Recife.
Neste aspecto, não houve muita mudança. São Paulo estava longe de ser o paraíso estampado
nos panfletos sedutores distribuídos pela capital pernambucana. Rísia se decepcionava: afinal,
haviam trocado uma forma de miséria por outra.
Por esta época vigorava no Brasil o regime militar, sob o comando do general
Garrastazu Médici, empossado em outubro de 1969. Período de perseguições políticas aos
descontentes que resistiam ao golpe de 1964 e de horror promovido pelo movimento
anticomunista, contra os chamados “subversivos” da lei e da ordem em vigor. Rísia, ainda
menina, recém-chegada de Pernambuco, dificilmente teria a agudeza de espírito para perceber
de imediato o panorama obscuro que se ocultava sob aquela superfície repleta de luzes da
grande capital. Entretanto, aos poucos, o próprio flagelo social gerado pela cada vez mais
abissal desigualdade econômica, faz com que Rísia desenvolva um senso crítico mais apurado
a respeito das mazelas socioeconômicas, com base em experiências pessoais.
162
Morar no Brás não a impedia de freqüentar ambientes diferenciados e de ter amigos
moradores de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, habitado por “gente felizarda”,
indiferente à miséria ao seu redor: “[...] Tem vezes que odeio gente felizarda porque não sei
entender certa gente que nunca comeu terra nem cagou lombriga. Gente que nunca passou
sede nem fome. Gente que sempre sentou a bunda em tapetes e almofadas. Gente gorda e
rosada. Gente até safada. E gente que nunca foi desgraçada.” (p. 101).
Sua postura crítica, porém, não a impedia de relacionar-se com pessoas de classe
social privilegiada. De certa forma, aquele mundo exercia um certo fascínio sobre ela,
embora ela não se identificasse com tal estilo, que tampouco ocultaria o lado obscuro da vida:
“[...] A cidade me expõe aos mais perigosos perigos, delitos, crimes. Sinto muito saber que
vou perder todas as festas, pois no fundo sou fascinada por luzes e brilho. Acontece que nas
festas não há somente luzes e brilho. Nas festas há doces sofrimentos cortando corações como
o meu.” (p. 118).
Perigos dos quais Rísia procurava esquivar-se, para não sucumbir ao vício, à
prostituição ou à loucura. Pelo caminho das drogas, ela chegaria a um estado de torpor que
lhe permitiria distanciar-se temporariamente de uma realidade perversa e mesmo criar
histórias extraordinárias, passíveis de ocorrer em decorrência de algum estado de alucinação.
Já a liberdade sexual sem critérios acenava com a iminente promiscuidade, cujo risco poderia
precipitar uma jovem nas condições desfavoráveis como as de Rísia para a prostituição,
sobretudo depois da morte de Jonas.
Hesitante entre o moralismo provinciano e o liberalismo metropolitano, ilhada entre
os automóveis e açoitada pela solidão em meio a uma massa de transeuntes desconhecidos,
Rísia quase cede aos apelos comerciais da sexualidade. Mas para preservar seu corpo, único
patrimônio de que dispunha de fato, ela se nega a transformá-lo em moeda de troca num
negócio desprovido de qualquer condescendência. Ademais, ela temia a marginalidade, que,
segundo seu ponto de vista, era uma prerrogativa dos fortes, motivo pelo qual ela passa a
acalentar a idéia de deixar São Paulo:
[...]Lá, às vezes naquelas ruas de entardecer, lá eu parava no meio da ilha esperando
que os carros passassem, eu displicente e desconsolada, e me queria dizendo que era
uma puta: ‘Sou uma puta, me levem para onde quiserem.’ Pois que só assim poderia
eu entregar-me à displicência plena e total que é a dar o meu próprio corpo, sem
orgulho, sem dignidade, sem amor, sem dor.
Saí de são Paulo para não ser puta. Pois nós éramos pobres. E eu perdera o
amor de Jonas (p. 137).
163
A questão familiar também adquire uma relevância fundamental nas deliberações da
personagem para fazer o caminho de volta às origens. Se em Recife o relacionamento de
Rísia com os familiares carecia de amabilidades mútuas, em São Paulo o quadro se agrava. A
nova realidade com a qual se depararam poderia tê-los incentivado a unir-se solidariamente
em torno de um propósito comum de sobrevivência, mas o despreparo e os ressentimentos
mútuos consolidaram o isolamento de cada um dentro de um casulo intransponível. Eles se
desentendiam inclusive por comida: “[...] Saí de casa porque a comida era comprada com
meu dinheiro e meus irmãos não deixavam jantar para mim. Saí de casa por vários motivos.
Porque as pessoas ou brigavam ou não se falavam. Porque havia rancores, porque... [...]” (p.
105).
E Rísia efetivamente empreende o trajeto de volta a Tijucopapo. Deixa para trás um
mundo ilusório, produto de uma propaganda enganosa que havia transformado sonhos em
pesadelo. Rísia havia conhecido outras pessoas que, imbuídas da mesma ilusão que ela,
teriam deixado sua terra natal seduzidas pelas imagens paradisíacas de terras estrangeiras,
também veiculadas pelo cinema. Buscaram sucesso, conforto, prosperidade, a admiração dos
amigos, um marido bem-sucedido; em troca, obtiveram frustração, escárnio e amargura.
Voltaram sem a vida que haviam perseguido e, não raro, sem a própria vida ou sem a própria
referência, que teria se perdido por lá. Este seria o perigo das imagens cinematográficas que
incitavam os espectadores mais desavisados a empreender uma aventura para a qual não
estariam preparados. Para eles, não haveria perdão: aquela outra realidade tão distante era
uma dama sedutora e voraz, que jamais concedia algo sem tomar algo em troca, dissimulada e
esquiva, às vezes fatal: “[...] Elas foram, então, procurar essa vida que não havia. Um perigo.
Porque elas não acharam nunca. Não acharam mesmo. E voltaram sem vida nenhuma. A vida
daqui elas tinham perdido também. E voltaram sem a de lá, que não tinham achado. Essas
telas rolando imensas bolas coloridas na nossa frente, esses cinemas no fim de semana são
perigosas ilusões de máquina.” (p. 130)
Disposta a não perseverar num projeto equivocado e que não era seu, Rísia não hesita
em deixar São Paulo. Se numa longínqua época de outrora ela havia sido seduzida pela
possibilidade de “ganhar o mundo”, uma vez alcançado, ela percebia o equívoco cometido ao
acreditar num sonho fadado ao fracasso. O pai teria sido o mentor da aventura migratória a
quem toda a família deveria seguir em busca do “eldorado” urbano que São Paulo
representava, especialmente para os nordestinos. Malogradas as apostas no projeto utópico de
prosperidade, restavam-lhes a frustração e a marginalidade, que Rísia se recusava a assumir
passivamente como destino irreversível. Só então ela decide romper com o pacto paternalista
164
para percorrer um caminho próprio, sem a interferência de terceiros que lhe arbitrassem
decisões segundo as conveniências alheias. Falidas as expectativas de êxito naquela cidade-
madrasta, de agora em diante, Rísia almejava comandar a própria vida.
Parte num domingo, o pior dia da semana para ela, quando se sentia mais abandonada,
apesar de rodeada pelos pais e pelos irmãos: “Eu saí de minha casa porque um domingo em
minha casa era uma coisa de louco. Nós éramos tão pobres. E havia uma coisa de um
abandonar o outro. Nós éramos sós, adotivos.” (p. 91). Ao sair de casa, sua mãe lhe indaga o
que pretendia fazer, e ela responde: “- A Revolução! A Revolução!” (p. 124).
Uma revolução pessoal para livrar-se daquele estado de espírito depressivo que a
máquina urbana lhe insuflava. Para tanto, ela dispunha de dois caminhos distintos: o real, por
via aérea, que duraria algumas horas, e o mítico, numa espécie de peregrinação mística, com
uma duração de significativos nove meses. O primeiro, obviamente, pelo céu, e o segundo,
embrenhada pelas matas, cruzando paisagens típicas do Nordeste brasileiro, até chegar a seu
destino, onde, determinada, fincaria seus sonhos. Ela partilhava com Nema as suas intenções:
Hoje eu vou de volta para Tijucopapo, Nema.
Hoje eu quero ver Zana, Hozana, e ter um filho no bucho e três na barra da saia e
morar na miserável vila da usina de açúcar, contanto que o que eu tenha seja amor o
suficiente para me dar forças e me levar a descobrir. Hoje eu volto para as canas,
Nema. Volto para descobrir. Volto para conseguir
. (p. 91)
Estar naquele avião, no céu, já significava uma vitória pessoal contra as privações que
a pobreza lhe impunha. Aquela situação remeteu-a de volta a um Natal de sua infância
quando esperava ganhar um par de meias com pompons, e sua mãe, já prevendo a
impossibilidade do presente, dizia-lhe que “o céu não era perto”, para adverti-la sobre a
impossibilidade de realização de seu desejo. De fato, ela ficou sem o par de meias, algo
demasiado requintado para sua família, desprovida de recursos para satisfazer-lhe
extravagâncias daquela natureza: “[...] Quando chegou o Natal, Papai Noel não trouxe minha
meia e mamãe gritou lá da cozinha, eu choramingando na sala com nenhuma meia de
pompons nas mãos: ‘pensa que o céu é perto?’” (p. 133)
De alguma maneira, porém, Rísia consegue chegar ao céu, não por qualquer
providência divina, mas seus próprios meios. De certa maneira, ela havia se posicionado num
patamar “mais elevado” que o dos seus, de quem, aliás, procurava se afastar, ao contrário de
solidarizar-se com os esmoleres, as prostitutas e os ladrões que encontrava à margem do
caminho. Neles enxergava um grupo social do qual Rísia se negava a participar, por
princípios e por medo, embora se sentisse culpada pela sua quase indigência. Entretanto,
165
tampouco os isentava de sua parcela de culpa, visto que a sua inconsciência e imobilidade
com relação a si mesmos não lhes serviria de justificativa para serem poupados daquele
flagelo: “[...] O que são eles? Devem ser algo, já que algo refletem. Mas o que é? É chorar de
culpa sobre os pãezinhos do lanche do avião da Varig. Eu sou a que sente culpa porque já sou
consciente dela. Eles são culpados inconscientes. Mas eles não escapam de serem culpados
também. É assim? O que será?[...]” (p. 103).
Filha de mãe crente e de pai ateu, a jovem relutava entre os preceitos bíblicos
defendidos pelos evangélicos e a paradoxal descoberta da relatividade do mundo, no decorrer
de sua passagem por São Paulo. O Salmo 91, no qual ela costumava amparar-se, intitulado
“Sob a sombra do Altíssimo”, que versa sobre os que encontram em Deus seu refúgio e
baluarte contra o “laço do passarinheiro e da peste perniciosa”
137
, já não tinha o poder de
convencimento de outrora. Quando menina, ela costumava aplacar os medos infantis com a
leitura do Salmo 91, orientada por uma fé que durou até a morte de Jonas, época em que
ainda costumava caminhar pelas ruas de São Paulo, munida da Bíblia, o que lhe costumava
render o menosprezo alheio: “- Lá vai a passadista moralista. O salmo andante.” (p. 109).
Aos poucos, porém, os prognósticos daquele Salmo já não demonstravam a mesma
eficácia, pois Deus havia se transformado num trapaceiro, cujos milagres já não tinham
serventia para aliviar-lhe a dor pela perda de Jonas: “[...] Meu Deus, por que você não vem
pra Terra? Olhe, seja um mágico e me dê esse homem de volta. Vá logo, me dê. Ora, o senhor
só faz mágica de merda. Suas mágicas saem todas ao contrário. Em vez de amor sai morte de
sua cartola negra.” (p. 87).
Revolta e descrença se alternavam com misticismo e religiosidade. Rísia sequer
estava segura da existência de Deus – ela tendia para o não -, ao contrário da crença em
bruxas e fantasmas, aos quais continuava a temer, pois a perseguiam, na forma da lembrança
da morte de Jonas, cuja imagem não deixava de assombrá-la, não deixava que ela seguisse
seu rumo em paz. Jonas invade seus sonhos e seus estados de vigília, motivo pelo qual ela
começa a incomodar-se com a sua onipresença. A despeito do amor que nutria pelo morto,
sua sombra constituía um empecilho ao seu desenvolvimento, pois não conseguia
desvencilhar-se de sua imagem, obsessivamente cultuada por ela. Uma dependência
consciente que a paralisava e da qual ela começaria a livrar-se a partir da tomada de atitudes
137
“[...] Pois disseste: O Senhor é o meu refúgio./Fizeste do Altíssimo a tua morada./ Nenhum mal te
sucederá,/praga nenhuma chegará à tua tenda./ Porque aos seus anjos dará ordens a teu respeito,/ para que te
guardem em todos os caminhos. [...]” (Trecho do Salmo 91, “Sob a sombra do Altíssimo”, livro IV do
Antigo Testamento da Bíblia Sagrada, edição da Sociedade Bíblica do Brasil, de 1993, p. 417).
166
afirmativas, no intuito de reverter esse quadro patológico, aprisionador. À determinada altura,
um primeiro lampejo de reação: “_ Jonas, foda-se.” (p. 108).
Houve ocasiões em que ela sentiu-se tentada a recuar e desistir de sua “missão
revolucionária” em favor de um amor ilusório de um homem que já não existia. Ela decidiu
manter-se firme em seus propósitos, sob pena de pôr a perder a oportunidade de conquistar a
sua autonomia e construir uma vida real, sem a interferência de mortos, queridos ou não: “[...]
Minha capacidade de me iludir é maior que minha capacidade de viver. Mas como decidi que
já era chegada a hora de começar a viver, pus-me a caminho de novo, lábios trêmulos. E aqui
estou. [...]” (p. 148).
Era a luta pessoal de Rísia para constituir-se como sujeito ativo, para sobrepujar as
ilusões que a enganavam e paralisavam. Ela só seria bem-sucedida em seus objetivos se
abrisse mão de Jonas. Algumas pequenas mas representativas atitudes demonstravam a sua
disposição em promover mudanças efetivas, a começar por rasgar as cartas do amado e atirar
os pedaços água abaixo, para, só assim, sentir-se livre para amar outro homem. Naquele dia,
o sol abrasivo no decorrer da caminhada a incitava a desfrutar a vida, sem medos, sem
fantasmas, sem pudores moralistas que a anulassem, mas sem perder de vista certos ideais de
caráter romântico que ela ainda cultivava.
Em Tijucopapo, Rísia pensava encontrar nas mulheres a força motriz para sua luta
revolucionária e, com elas, formar uma rede de solidariedade contra o conformismo e o
desamor. Por sua vez, Pedra Branca configurava-se como o seu “reino encantado” de
bonança, intocável pelas injustiças do mundo exterior, e onde ela pretendia constituir família
junto a seu “príncipe”. A imagem de Jonas se esvaecia, para que a de outra figura mítica se
erigisse em seu lugar: a de Lampião
138
, lendária personagem da história nordestina, que, neste
novo contexto, lideraria o movimento revolucionário, com o suporte das mulheres de
Tijucopapo.
138
Assim passou a ser conhecido Virgulino Ferreira da Silva, nascido em 1897, em Vila Bela, atual município de
Serra Talhada, em Pernambuco. Em 1915, o desentendimento entre sua família e a de um proprietário vizinho
em virtude de roubos de bode, inicia-se uma rivalidade interminável, que rendeu mortes de ambas as partes,
inclusive da mãe e do pai de Virgulino, que jurou vingança. À época, Lampião já liderava seu bando, cujos
integrantes variavam de trinta a cem membros, e passou a atacar fazendas e pequenas cidades em cinco
estados brasileiros, quase sempre a pé e às vezes a cavalo, durante vinte anos, de 1918 a 1938. Existem duas
versões para seu apelido: dizem que, ao matar uma pessoa, o cano de seu rifle, em brasa, lembrava a luz de
um lampião; ou que ele iluminou um ambiente com tiros para que um companheiro achasse um cigarro
perdido no escuro. Comparado a Robin Hood, Lampião roubava comerciantes e fazendeiros, e distribuía parte
do dinheiro com os mais pobres. Entretanto, seus atos de crueldade valeram-lhe a alcunha de “Rei do
Cangaço”. Lampião foi morto em 1938, em Sergipe, vítima de uma emboscada de uma tropa de 48 policiais
de Alagoas. Ele, Maria Bonita e nove cangaceiros foram mortos e tiveram as cabeças decepadas. O cangaço
terminou em 1940, com a morte de Corisco, o “Diabo Loiro”, o último sobrevivente do grupo de Lampião
(vide r.m.e.).
167
À sombra de Jonas contrapunha-se a luz de um “Lampião”. Aqui se estabelece um
jogo de oposição entre um e outro: Jonas, outrora aquele com quem Rísia partilhou a sua
primeira grande aventura, ao conhecer com ele outros recantos montada na garupa de uma
bicicleta, agora representava a supressão da vida, a paralisia de um amor que a mantinha
inerte, em estado de torpor, sob o peso de sua sombra, de sua onipresença amorfa.
Alegoricamente, Jonas tinha fracassado em seus “desígnios messiânicos” ou “heróicos”, pois
havia sido devorado pela monstruosa metrópole (a grande baleia), e levado consigo as
melhores expectativas de Rísia, que nele confiou seus sonhos de aliança, de proteção. Jonas
passa a ser o fogo fátuo, enquanto Lampião, por um lado, era o fogo tênue de uma lanterna, e
por outro, o fulgor infernal e ameaçador, por ter seu nome associado ao do controvertido líder
do cangaço, na primeira metade do século XX. Assim, Jonas, a figura mítica e distante, cede
lugar a Lampião, herói verdadeiro de existência histórica comprovada, palpável.
Evidentemente que este Lampião não passava de um simulacro da personagem real,
“ressuscitada” para promover uma revolução com um bando diferenciado, do qual fariam
parte as mulheres de Tijucopapo e a própria Rísia. Elas, mulheres aguerridas que, como
Lampião, representavam o espírito combativo e a capacidade de mobilização dos povos do
Norte e do Nordeste brasileiro, e que, ungidos por uma aura literária, reproduziam o ideal
revolucionário acalentado por Rísia. Um ideal revolucionário que se bifurcava numa vertente
de vocação armamentista e numa vertente pacifista, ambas bastante em voga na década de
1970.
O socialismo era proclamado como solução político-econômica para enfrentar as
desigualdades sociais e combater a concentração de riqueza em poder de uma minoria que o
sistema capitalista propiciava. Desde 1959, a revolução cubana promovida por Fidel Castro
tornou-se modelo para movimentos urbanos e rurais na América Latina, assim como o
movimento de guerrilha rural na Bolívia, liderado por Che Guevara, que soou ameaçadora
para as forças de segurança até sua morte em 1967. Com a vitória da guerra de guerrilhas em
Cuba, sua fórmula foi seguida por grupos de esquerda que surgiram em toda a América
Latina. Em vários países, entre eles o Brasil, jovens estudantes da classe média organizaram
focos guerrilheiros de orientação marxista no intuito de tomar o poder por meio da luta
armada. O imperialismo conduzido pelos Estados Unidos converteu-se no foco principal de
seu ataque, o inimigo a quem responsabilizavam pelas mazelas por que passava o continente.
Forças oposicionistas reagiram com uma violenta repressão a esses movimentos,
considerados de viés comunista, numa contra-ofensiva que serviu para legitimar as ditaduras
militares que se instalaram em vários países latino-americanos (CATELLI, 1993, p. 95).
168
No Brasil, quando ocorreu o golpe de Estado que estabeleceu o regime militar, em
abril de 1964, Rísia, ainda criança, havia sido surpreendida pelo toque de recolher que a
obrigou a abandonar, a contragosto, um guaraná pela metade sobre o balcão de um bar no
centro de Recife. Este teria sido o episódio narrativo que serviria para contextualizar as
históricas transformações políticas por que passava o país, e que na concepção infantil da
protagonista apenas renderam-lhe mais privações de prazeres tão banais quanto raros, como o
de deliciar-se com um guaraná, inteiro, só para ela.
Ressalte-se também que entre 1969 e 1973, vigorou no Brasil o período denominado
“milagre econômico”, em plena ditadura militar (ou os chamados “anos de chumbo”). Neste
período “áureo” da economia brasileira, ocorreu a discrepante concentração de renda e o
aumento da miséria, visto que as vantagens do fenomenal desenvolvimento econômico não
promoveram a distribuição equânime dos recursos arrecadados entre as diversas camadas da
população, monopolizado pelos grandes capitalistas e pelas classes com poder aquisitivo mais
elevado. Em 1969, a família de Rísia parte para São Paulo, justo na fase inicial desse
“milagre”, período no decorrer do qual ocorreu um dos maiores fluxos migratórios da história
do país, que culminou com o êxodo rural. Trabalhadores rurais, expostos a um regime arcaico
e ineficiente de trabalho, e de baixa produtividade, acabavam por ser “expulsos” do campo,
onde tinham vivido durante gerações, na expectativa de ascenderem na escala
socioeconômica. Contaminados pelo otimismo dominante em torno do crescimento
econômico, concentrado sobretudo nas áreas urbanas, e inclusive incentivados por leis
federais
139
, muitos se aventuraram na busca da parcela que acreditavam lhes caber, mas se
depararam com uma realidade espinhosa, bem distinta do que poderia supor a sua ingênua e
vã credulidade. Entre eles se incluiriam famílias de retirantes do Nordeste, como a de Rísia,
que se perderam nas ilusórias promessas da “terra das oportunidades”.
Paralelamente, o movimento da contracultura
140
, surgida nos Estados Unidos em
1961, se expande e ganha adeptos entre a juventude dos quatro cantos do mundo. Um
139
Citam-se, por exemplo, a Lei n° 4.214, de 2 de março de 1963, que dispõe sobre o Estatuto do Trabalhador
Rural, alterado em 1973, e a Lei Complementar n° 11, de 25 de maio de 1971, que regulamentou o Prorural,
programa criado durante o governo Médici, que concedia meio salário mínimo mensal a todo lavrador ou
pequeno proprietário que completasse 65 anos de idade (vide r.m.e.).
140
Precursora desse movimento foi a chamada geração Beat que, desde a década de 1950, denunciava a
instituição conhecida por “american way of life”. A primeira obra considerada beat foi “On the road
(1957), de Jack Kerouac (1922-1969), cujo tema básico gira em torno das experiências com alucinógenos,
do jazz, do sexo, entre outras. Outro nome de destaque dessa geração foi Allen Ginsberg (1926-1997), que
escreveu num manicômio criminal o livro de poemas intitulado “Howl” (1956), considerado um manifesto
beatnik, contra a violência e os sistemas repressivos. Tem como tônica a necessidade de romper com o
establishment, negar as máquinas e retornar à simplicidade da vida a partir da natureza e do corpo
(CATELLI, 1993, p. 96).
169
movimento que clamava por uma cultura alternativa, fundamentada na contestação e numa
ideologia revolucionária sem conotações necessariamente socialistas ou marxistas, cujos
temas mais recorrentes gravitavam em torno do pacifismo (o movimento do flower power,
assumido pelos hippies), do terceiro-mundismo, das drogas, da liberação sexual e do combate
ao racismo.
Rísia parecia convencida da necessidade de um confronto armado como forma de
defender as camadas oprimidas e exploradas da sociedade brasileira, e de enfrentar a exclusão
social de uma classe que ela mesma representava. Rísia pretendia engajar-se num movimento
rural de resistência, cujos protagonistas seriam o Lampião, em versão setentista do anti-herói
pernambucano, e as mulheres de Tijucopapo, a versão nordestina das lendárias Amazonas
141
.
Não por acaso, salientou-se a presença de mulheres de índole combativa como a delas, visto
que somente mulheres com esta característica estariam aptas a lutar contra a flagrante
injustiça social e contra o machismo de militantes que se opunham à presença feminina nas
ações diretas das missões revolucionárias. Mulheres como as de Tijucopapo ou as Amazonas
tanto desmentiam a fragilidade feminina nos campos de batalha, para os quais acreditava-se
estarem despreparadas, como ratificavam seu potencial combativo que contrastava com a
imagem plácida e passiva da mulher submissa e alienada.
Por outro lado, Rísia sucumbia aos apelos de uma vida bucólica, ao lado do homem
amado, longe da moderna turbulência urbana. Um modo de viver que, se não exatamente
inspirado na filosofia pacifista e universal de “paz e amor” - avessa à adoção de armas que
implicasse em matar ou morrer para defender qualquer causa, justa ou não -, ao menos dela se
aproximava. Nestes termos, o ambiente campestre e idílico de Pedra Branca consistia no local
mais favorável ao abrandamento da ira de Rísia, palco a partir do qual ela poderia promover
uma revolução pacífica, sem a necessidade de verter sangue de qualquer das partes
envolvidas no processo de transformação social, a começar pela transformação de si mesma.
Com isso, delineia-se uma paródia à revolução feminista localizada na periferia de um
país sul-americano: um feminismo de raiz, que nasce e cresce longe das teorias acadêmicas,
como reação instintiva contra a submissão e a alienação. Restava decidir a linha de ação a ser
adotada para levar a cabo os propósitos pretendidos. A despeito de buscar naquele homem e
141
O mito das amazonas – assim como o das Valquírias – também se associa ao mito das mulheres viris,
examinado sob um enfoque, não raro, marcado por preconceitos sexistas. Para os gregos, as amazonas eram,
antes de tudo, “bárbaras”, o que para eles significava ignorar o que constituía a qualidade preeminente da
pólis (cidade), ou seja, elas transgrediam as suas leis. Ésquilo as mostrava como devoradoras de carne, e
para quase todos os comentaristas elas eram guerreiras que combatiam a cavalo e armadas com o arco: para
maior desembaraço no manejo deste, elas queimavam o seio direito – daí o nome de amazonas (a – mazôn:
“sem seio”). O mito que se refere a essas “temíveis criaturas” como filhas de Ares, belicosas e inimigas do
homem e do casamento, inclina-se na mesma direção (BRUNEL, 1998, p. 744-745).
170
naquelas mulheres os aliados mais capacitados para tais propósitos, Rísia parecia hesitar em
acatar o extremismo de ações armadas, quando poderia matar ou morrer. Não que lhe faltasse
coragem, mas a adoção desses métodos contrariava a sua expectativa de recolher-se no
aconchego de um lar junto à sua família, constituída por ela, seu homem e seu filho. A sua
revolução assim concebida parecia distorcer seus planos iniciais, que efetivamente visavam a
mudanças, mas por meios que não eram os seus:
[...] Tudo acontecia mesmo num intervalo de pensamentos e sonhos. Eu sempre
dissera que seria uma voluntária à guerra até que se matasse em mim esse poder
meu para qualquer coisa do resto que não fosse uma mulher casada numa casinha
branca. Mas daí até uma guerra... Daí até uma guerra havia sonho e pensamento.
[...] E quem planejara essa guerra que inventei? Quem fizera dessa guerra uma
guerra? Aquele homem? As mulheres de Tijucopapo? (p. 158-159).
Na sua revolução particular, ao invés de armas letais, Rísia se munia de lápis de cera
“em cor vermelha de muitas cores” (p. 79), com os quais pretendia modificar o seu entorno.
Ao longo do caminho, Rísia desenha numa folha em branco uma paisagem recortada por
babaçus, canaviais e mocambos. Nela inclui as figuras coloridas das mulheres de Tijucopapo,
imbuída pela prerrogativa que a imaginação lhe concedia: moldar a paisagem segundo uma
perspectiva própria, para marcar com seu traço pessoal, subjetivo, a realidade objetiva que a
cercava. Desta maneira, ela acreditava poder manipular a realidade imediata ao representá-la
em conexão com outras imaginárias (as mulheres e Lampião) e, através desse mecanismo de
“retoques” (ou decalque) reinscrever seu mundo subjetivo numa nova realidade, criada por
ela. Ao corrigir e retocar essa imagem, ela pretendia delinear os contornos de um mundo
melhor, a começar por transgredir as feições caricaturais de seu próprio espaço físico,
mediante o uso da força imaginativa em detrimento da força bruta. O pensamento (a
inteligência) e o sonho ao invés da guerra...
Paralelamente, a potencialidade metafórica do desenho concebia uma relação
especular com o próprio livro de Marilene Felinto, no sentido em que ambos – desenho e
livro –equivaliam-se enquanto promotores da ação dialógica entre representação e realidade.
A ambas – autora fictícia e real - era facultado o poder de representar o fato real através da
ficção, criando, assim, um desdobramento contínuo na condução do rumo da história,
passível de ser alterado conforme as necessidades autorais. Em suma, um poder demiúrgico
que rege atores reais e fictícios, tal como Felinto (a criadora) e sua criatura (Rísia), que ganha
vida própria para também promover mudanças no seu mundo de “literatura”, onde outras
personagens “lendárias” se moviam. E pela literatura, as fronteiras desses mundos se diluíam.
171
Tijucopapo era a matriz de Rísia: redescobri-la sob a luz de um olhar renovado era a
sua meta. Ao contrário do caráter submisso e impassível da mãe, o das mulheres daquele
lugar era destemido e imponente, não afeitas ao servilismo, difíceis de serem domadas. A
lama de que eram moldadas lhes teria conferido essa característica escorregadia, que Rísia
teria herdado: “[...] Eu sou feita de lama que é negra da terra. Sou escorregadia. [...]” (p. 79).
O negro tijuco consistia na matéria primordial de Rísia, o que significava que ela renegava a
sua descendência direta de Adão
142
, cuja matéria prima teria sido o pó
143
da terra e de cuja
costela as mulheres teriam sido concebidas.
Deste modo, Rísia contraria a gênese bíblica, não só por rejeitar essa concepção
androcêntrica, mas também por conferir a uma simbiose de elementos – a água e a terra negra
– o princípio fundamental do seu ser, assim como o das mulheres de Tijucopapo. Elas
compartiam esse “bem de raiz” (CAVALCANTI, [s/d], p. 4, vide r.m.e.), a lama, que lhes
concedia a força da terra, em contraposição aos bens apenas residuais ou os “apetrechos de
sobrevivência” que faziam parte do cotidiano de homens e mulheres provenientes dos vários
recantos do país, deserdados de sua terra e sem qualificação. O desenraizamento acarretaria o
esmorecimento da força primordial de que estariam dotados, de modo que, no caso específico
da mãe de Rísia, essa ruptura teria se consumado com a sua adoção, o que a teria afastado de
seus “princípios legítimos”, situação que corroborou para que Rísia buscasse uma “verdade”,
uma “legitimação” que a reinserisse num contexto reconhecível, interiorizado, onde pudesse
resgatar o elo perdido: “[...] Mulheres como minha mãe trazem a sina das que desembestam
mundo adentro
144
escanchadas em seus cavalos, amazonas, defendendo-se não se sabe de
quê, só se sabe que do amor. Só se sabe que do que o amor as fez sofrer. Só se sabe que do
que o amor as fez traídas. [...]” (p. 80).
Desalojada e só, Rísia procura reaproximar-se de seus espaços e se reintegra à sua
dimensão cultural, em busca de uma saída alternativa ao desagregador condicionamento
urbano a que esteve submetida. Assim, ela não se importa de ceder aos pedidos de desistência
e à brutalidade da grande metrópole, visto que, na verdade, ir para São Paulo havia sido uma
deliberação paterna, um sonho alheio nela implantado. Voltar às origens significava retomar
as rédeas da sua vida, cada vez mais afastada do raio de influência dos meios paralisantes de
142
Adão originalmente significa “homem” de forma genérica, embora logo foi adotado como nome próprio do
primeiro homem. São Paulo assinala o paralelismo entre Adão e Cristo. O primeiro Adão é considerado como
o pai do homem caído; o Novo Adão – Cristo – considerado como a origem da humanidade redimida
(PEDRO, 1998, p. 11).
143
Na Bíblia e na literatura cristã, o pó simboliza muitas vezes a transitoriedade da vida humana; no Gênese, ele
é também símbolo da posteridade de Adão (LEXIKON, 1990, p. 162).
144
Note-se que as mulheres desembestam mundo adentro e não mundo afora, o que reforça o movimento de
interiorização adotado para o resgate de si mesma. O grifo da citação é nosso.
172
dominação, que incluía a influência sombria de Jonas, ainda que involuntário. Houve
momentos em que Rísia sofreu recaídas, mas reagiu à tentação de recuar e se manteve
determinada na realização de seus propósitos.
Na medida em que se aproxima de Recife, “a insolarada” [sic]
145
, Rísia se depara com
um clima cada vez mais convidativo à aventura amorosa. O calor abrasivo da região desperta
a sua sexualidade, um estado libidinoso que invade os recantos “labirínticos” de seu ser e que
a incita ao envolvimento sexual com outro homem: “[...] Eu estou insolarada e labiríntica. É
que estou próxima de Recife e Recife me confunde toda. Recife está sempre morrendo de
alucinação. De febre de não sei quantos graus. As alucinações de Recife não são de peiote
não. São de insolação. Recife, a insolarada. [...]” (p. 151)
Rísia e Recife compartilham o mesmo estado febril e de alucinação provocado pela
ação do sol. Ambas são acometidas tanto pela excitação sexual, como pela insolação, traços
que conferem características humanas - ou mais exatamente femininas - a Recife, cujo estado
de ânimo se equipara ao de Rísia, que se divide entre o entusiasmo libertário e o temor ao
pecado induzido pelo sexo. Por outro lado, as temperaturas elevadas, típicas da região,
sugerem o final apocalíptico anunciado pelo fogo do Inferno: uma situação asfixiante que se
contrapõe ao frescor idílico de Pedra Branca:
“[...] Recife está se queimando em queimaduras de não sei quantos graus.
_ Fogo!
_ Morre, desgraça! Acaba, desgraça! Some de vez, desgraça!
_ Água!
_ Fogo!
146
_ Água.” (p. 151).
Assim representada, Recife se configura como uma cidade regida por pólos extremos
de temperatura e de temperamento, passível de incendiar-se em febre como também deixar-se
145
Ao contrário do que se poderia supor, a grafia do termo tal como aparece – insolarada, e não ensolarada -, é
proposital, por pretender realçar o abatimento de Recife provocada pela insolação, com implicações tanto
patológicas como terapêuticas para Rísia.
146
Sol e fogo costumam compartilhar aspectos de bonança e de maldição. Na Bíblia, encontram-se diversas
imagens que simbolizam Deus ou o divino por meio do fogo. O Apocalipse menciona rodas de fogo,
animais que cospem fogo e outras referências; no Antigo Testamento, Deus aparece, por exemplo, como
uma coluna de fogo ou uma sarça [selva, matagal] ardente. Ao mesmo tempo, o fogo está estreitamente
associado ao complexo de significados simbólicos da destruição, da guerra, do Mal, do diabólico, do
Inferno ou da ira de Deus. O incêndio de Sodoma e Gomorra foi visto na Idade Média como a prefiguração
do fogo do Inferno. Além disso, a obtenção do fogo mediante a fricção associa-se, em muitas culturas, à
sexualidade; muitas vezes, atribui-se o surgimento do fogo ao ato sexual de seres ou animais míticos
(LEXIKON, 1990, p. 99-100).
173
afogar pelas águas transbordantes durante as cheias do rio Capibaribe. Em ambas as
circunstâncias, prevalece o excesso, o exagero ao invés da temperança: “Recife se incendeia,
embebedada no sol de si mesma, se sufoca, do mesmo jeito como se alaga – seduzida pelas
águas dos seus rios que sucumbem ao fascínio da chuva – e se afoga, e se entrega. Não há
ninguém que analise as inconstâncias térmicas de uma cidade como Recife. [...]” (p.152).
A descrição acima revela uma Recife imersa num clima de sedução, em que a
instabilidade meteorológica adquire conotações sexuais emparelhadas com as variações de
humor da mulher. Enquanto “filha da terra”, Rísia reconhece tais particularidades locais e
com elas se identifica, por projetar nelas suas próprias inquietações. Ao espelhar-se nas
contradições da humanizada Recife, Rísia admite estar prestes a ceder à sensualidade
dominante, a menos que conseguisse aplacar seu ardor sexual nas águas da praia de Boa
Viagem. Até que isso não aconteça, ela se deixa guiar pelos instintos e não resiste ao assédio
de um dos homens com quem havia se cruzado ao longo do caminho no interior da mata.
O encontro ocorreu durante uma madrugada banhada por um “luar melado de luz”,
uma expressão que insinuava a disposição receptiva de Rísia com relação a uma possível lua-
de-mel com o seu sedutor. Ele a acomoda no lombo de seu jegue, para seguirem até o
estábulo mais próximo, onde se consumaria o ato sexual. A descrição do espaço percorrido de
um ponto a outro privilegia tanto o aspecto poético como o sensual que se estende inclusive
aos animais do entorno, incapazes de se manterem imunes à sensualidade local, tal como nos
revela a linguagem no trecho a seguir, com evidente apelo sexual:
[...] Nós cruzamos campinas a galope lento. O homem e eu nos roçando a cada
trote. Nós cruzamos campinas, passamos por cocheiras, por moinhos, por fontes nas
pedras, por hortos e quintais de fazendas, por canteiros de flores, nós passamos por
canteiros de flores vermelhas finalmente, eu vira flores vermelhas então, e ouvira o
cantar de grilos e o piar de corujas e o uivar de lobos, e urros, e silvos e cios e
gosma e sangue, rasgos, buracos, beijos e abraços, os sons que compunham a nossa
música, os sons que se juntavam numa ária que era nossa, dele homem e de eu
mulher cruzando uma noite de raríssima lua melada. O homem e eu deitamos no
capim onde as éguas deitam [...] (p. 153).
A madrugada escura iluminada pela lua preparava uma ambientação misteriosa,
comandada pela irracionalidade e pela inconsciência, ao mesmo tempo em que remetia ao
aspecto fecundo e acolhedor do aconchego materno propiciado pelo leito de capim.
Rísia se entrega despudoradamente àquele estranho, em busca da “perfeição do ato”,
que abrangesse a todos os que já havia experimentado, até que, ao final, ela se comove e
sucumbe ao sono, reconfortada como se tivesse se banhado nas águas do mar. Aquela entrega
havia adquirido a força de um rito iniciático ou de regresso à vida, ao consumar-se o enlace
174
entre o fogo e a água na esfera sexual, tal como a disposição da convidativa Recife, acalorada
e que se deixava alagar pelas águas dos rios da região.
[...] Nós nem sequer dormimos. Eu queria a perfeição de um ato. O homem e eu nos
movemos em todos os atos. Nós nem sequer dormimos. E quando eu quis coroar o
membro do homem com minhas mãos e ele se excitou, e quando eu quis acalmar na
minha boca e ele se molhou como uma criança se molha, eu chorei. Eu chorei com
a boca cheia de líquido salgado de lágrimas, acariciei o membro do homem que eu
engolira e dormi como quem saiu das ondas do mar (p. 154).
O amanhecer desponta com o espocar de bombas, que Rísia confunde com rojões de
festa de São João, uma suspeita que, se confirmada, significaria a antecipação de sua chegada
a Tijucopapo. Sua intenção, porém, era alcançar seu destino em torno das festas natalinas e
não das juninas, que os estrondos pareciam anunciar. Para sua surpresa, o homem lhe informa
tratar-se do início de um levante que avançava em direção ao sul, através da rodovia, com
tropas de bloqueio que partiriam de Tijucopapo para São Paulo.
Ainda sob o impacto das novidades, Rísia se ergue e, antes de vestir-se, aceita a
sugestão do homem para se banharem num curso de água enquanto ele a deixa a par dos
últimos acontecimentos. Fazem-se perguntas um ao outro, e Rísia lhe informa estar indo para
Tijucopapo, ao que ele acrescenta ser aquele “o melhor lugar”, de onde se precipitou o
motim, apoiado pelo primeiro grupo feminino armado que os amotinados conseguiram
montar. Mais tarde, já em Tijucopao, ela vai se dá conta de que aquele desconhecido era
Lampião, articulador da guerrilha, que contava com a adesão das mulheres guerreiras,
descendentes daquelas que outrora haviam reagido contra os invasores estrangeiros.
Coincidentemente, Rísia depara-se com a possibilidade de atuar como uma ativista
revolucionária, aliada àquele homem, para expurgar os males a que ela havia estado
submetida, assim como uma vasta parcela da população nordestina.
Antes, ele era apenas um desconhecido por quem Rísia se havia deixado seduzir,
levada pelos instintos, para, a seguir, revelar-se alguém com quem compartilharia os mesmos
ideais revolucionários. Mas Rísia era avessa aos confrontos armados, de modo que aquela
guerra não estava prevista em seus planos, a despeito de que ambos lutassem pelas mesmas
causas sociais. A fissura entre os métodos defendidos por um e por outro, de alguma maneira
desvirtuava as pretensões de Rísia, no sentido de que o modus operandi dele acabaria por
sobrepor-se ao dela que, deliberadamente, se inclinava a acatar outros procedimentos.
Não se pode perder de vista que a personagem havia optado pelo discurso mítico para
relatar a sua experiência de retorno às origens. Portanto, aquela era uma guerra mítica –
175
entenda-se imaginária -, porquanto a alternativa mítica autorizava a incursão de personagens
lendárias que estivessem associadas à guerra, e cuja função primordial seria a de atuar como
fiéis escudeiros com os quais Rísia formaria um bloco de aliados para defender a sua causa.
Mas a estratégia de tessitura mítica não escondia a matéria-prima fantasiosa com que
construía o seu discurso, que era ao mesmo tempo poético e violento, apaixonado e
rancoroso. Rísia se debatia entre a necessidade de vingar-se da cidade de São Paulo, “a rica”,
que personificava o mal a ser vencido, e a urgência de trégua para encontrar a paz e o amor
que igualmente perseguia. A sua “missão divina” encontrava rugosidades que rompiam com
a certeza de um “final feliz”, típico de filmes de cinema em língua inglesa, nos quais tudo
termina bem, visto que, para Rísia, “[...] o mundo, de São Paulo a Recife e aos lugares todos
onde se rodam filmes de cinema, o mundo mesmo dói demais” (p. 155), mas como não havia
outro lugar para se viver, ela clamava por um destino que lhe fosse favorável. Diante disso, a
sua saída seria desvencilhar-se da armadilha da incerteza e orientar-se em direção a uma
terceira via que lhe garantisse a harmonia da ordem sonhada.
Matar seria assumir uma marginalidade para a qual Rísia não tinha coragem suficiente
para pôr em prática, ao passo que Lampião surgia como a “luz no fim do túnel” para salvá-la
da solidão, do desamor e da miséria. Assim, para deflagrar uma guerra Rísia deveria dispor
de um outro tipo de arma, com a anuência do amado e aliado guerrilheiro, de cuja união
nasceria um filho, fruto de um encontro amoroso numa noite enluarada. A revolução de Rísia
residiria na Palavra, com a força de combate herdada das mulheres de Tijucopapo, que seria
transmitida de geração a geração através do filho – o novo salvador -, cujo nascimento estava
previsto para o Natal, numa clara alusão à chegada do Cristo. Recriava-se, então, uma nova
história mítica de feições místicas, em que se transgredia a versão bíblica do nascimento de
Jesus, e de um cristianismo que parece estar aquém das necessidades reais de seus filhos
injustiçados do mundo, sobretudo os nascidos no Nordeste brasileiro, excluídos da bem-
aventurança dos homens e dos santos. Nesta história não haveria virgens, nem gestações pelo
espírito-santo, nem milagres da divisão de pães, mas a revolução possível acionada pela
intelectualidade e pela sexualidade, uma proposta de resultados mais lentos que os de
guerrilhas sangrentas, mas efetivamente mais duradouros, porque optava pela vida e não pela
morte. Reescrevia-se, portanto, uma outra história possível: parodiava-se a versão existente e
aceita, de maneira a torná-la mais crível, mais próxima da realidade palpável, embora fosse,
paradoxalmente, criada por uma vertente literária, apócrifa, ao contrário da outra, autorizada,
porém mais fantasiosa que a própria “fantasia”. Neste sentido, o substrato bíblico religioso
estende-se ao imaginário ficcional.
176
Para operar tal milagre, Rísia deveria primeiramente alcançar Tijucopapo, um lugar
concreto de onde absorveria a força necessária para implementar a sua proposta.
Curiosamente, ela aporta no local por meio de uma queda, depois que alguns vigilantes, os
“macacos”, interceptaram-na a caminho da pequena cidade e ordenam que apeasse da égua a
qual montava. Ela recusou-se a obedecer e fugiu em disparada, mas um tiro atingiu o animal
e provoca a queda
147
de Rísia. Ao despertar, ela percebe estar em Tijucopapo cercada de
mulheres em torno de sua cama, onde havia sido recolhida depois de resgatada das mãos dos
macacos malfeitores pelo bando de Lampião. Em outras palavras, ela desperta de seu torpor
após os nove meses de viagem, e se descobre como o centro das atenções das mulheres, sob
seus cuidados e proteção - as suas Mães fortes - numa situação bem distinta da que havia
deixado para trás, quando imiscuída e anulada na metrópole.
Quando eu acordei eu já estava em Tijucopapo.
-Alô! mamãe? Sim, eu vou bem. Eu viajei nove meses. Quando eu acordei eu já
estava em Tijucopapo. Eu viajara nove meses. Eu cheguei no Natal. Eu quis logo
telefonar. Mas minha cama estava cercada de mulheres. Havia mulheres em volta da
cama onde eu estava deitada. Mulheres bonitas e fortes, mulheres de uma cara
morena de longas caminhadas ao sol. Mulheres de verdade? Uma delas tocou-me a
testa. Mulheres de verdade. [...] (p. 179).
Essas “mães” haviam quase se transformado numa entidade arquetípica, na mesma
proporção em que o espectro de Jonas havia se instalado na sua órbita afetivo-emocional. Se
até aquele momento de sua vida Rísia havia estado relegada a uma condição marginal, a partir
de agora, ela contaria com a cumplicidade e o suporte de seus pares, de seus “iguais”, para
juntos formarem uma força-tarefa contra a Avenida Paulista, o centro financeiro de São Paulo,
onde estão as principais filiais de grandes bancos estrangeiros e de multinacionais no país. Era
uma espécie de mutirão socialista investindo-se contra o capitalismo, sistema ao qual se
atribuía, entre outras mazelas, a disparidade socioeconômica entre o Nordeste e o Sudeste
brasileiro, em que se contrastavam a escassez e o excesso, respectivamente. Era a insurgência
da periferia contra o poder hegemônico da capital paulista: uma luta de classes, em que Rísia,
a proletária explorada, investia contra a burguesia paulistana, de quem ela pretende cobrar
uma dívida pelas crueldades e injustiças sofridas: “Mamãe, eu cheguei a Tijucopapo, o lugar
147
Segundo DURAND (1989, p. 80), a queda constitui o terceiro temor atávico (símbolo catamorfo, associado
ao tempo e ao movimento). Neste contexto sugere, no plano real, a aterrissagem de Rísia, e, no plano mítico,
seu despertar já em território habitado pelas mulheres de Tijucopapo. A partir de então, ratifica-se o processo
de epifania experimentado pela persoangem, no sentido de elucidar os seus reais propósitos e colocá-los
efetivamente em prática. A queda lhe projeta para um novo salto, com uma visão mais ampla e ação.
177
que você não honrou. Cheguei depois da inconsciência de uma queda. Estou indo de volta
pela BR que leva e traz carros de São Paulo mas o alvo é a Avenida Paulista. [...]” (p. 185)
Lampião era o elemento complementar de Rísia, aquele que vai restaurar a sua
fragmentação existencial e ideológica, numa integração entre razão e sentimento. Mas a
revolução propriamente dita começaria a esboçar-se por meio da carta, que seria ditada por
Rísia a Lampião, para que ele a redigisse em seu lugar, no intuito de conseguir, assim, o
distanciamento necessário entre ela e uma possível autocensura sentimentalista que a
impedisse de relatar o que tinha em mente: “[...] nesse dia eu perguntei a Lampião se ele
escreveria a carta que eu lhe ditasse. Pois que eu queria uma distância qualquer me separando
das palavras que eu ditasse. [...]” (p. 184). Na carta, a projeção revolucionária de Rísia ganha
ares de vingança pessoal contra seus detratores e desafetos, para só então adquirir uma
proporção maior, com a tomada de consciência acerca dos problemas socioeconômicos do
país, pelos quais se sentia vitimada. Ela delegava àquele homem a função de porta-voz da
causa revolucionária e de suas reivindicações político-sociais; mas ao contrário de estar à sua
sombra, ela determinava os termos da campanha. Para aquele papel, ela retirava as armas das
mãos do homem e, em seu lugar, apresentava-lhe o lápis
148
, para traçar as linhas citadas por
ela.
Da união entre ela e Lampião nasceria seu Filho, gerado na noite enluarada nos capins
do estábulo, fruto do “amor perfeito”, que desempenharia o papel de mediador. A referência
ao Natal fecha o ciclo da peregrinação mística, quando está prestes a nascer aquele que ela
associaria ao nascimento do menino Jesus, que desceria do céu à terra ou da terra aos infernos
para mostrar o caminho da Salvação, visto que, ao participar de duas naturezas – a de macho
e a de fêmea, a divina e a humana, ele atuaria como o reconciliador dos contrários (Cf.
DURAND, 1989, p. 206). O produto da sexualidade benfazeja promoveria não só a
perpetuação da espécie, mas também, metaforicamente, a perpetuação da Palavra
transformadora, “iluminada” pela luz da intelectualidade. A viagem havia chegado ao ponto
final, que se converteria no início de uma nova etapa, num movimento cíclico contínuo: Rísia
havia passado da alienação individualista à condição de ser político, atuante, consciente.
Por fim, da janela onde estava, ela contemplava as mulheres de Tijucopapo, enquanto
dialogava com Lampião sobre os planos revolucionários e sobre o conteúdo da carta a ser
148
Este seria o instrumento mais eficaz de que dispunha, que faz parte do isomorfismo do fogo, cuja divindade
no Zênite é Agni que repousa sobre a Palavra, tal como na Bíblia o fogo se vincula à palavra de Deus e à
palavra do profeta cujos lábios são “purificados” com um carvão ardente (DURAND, 1989, p. 122), por sua
vez, também um instrumento de escrita em potencial.
178
redigida. Rísia havia se unido àquelas mulheres e esperava com elas traçar um destino mais
promissor para si mesma e para os herdeiros daquela terra, onde pretendia fincar morada e
formar família junto a seu homem e ao filho que estava por vir. Um lugar sem os vícios de
São Paulo, onde ela pudesse imprimir sua marca pessoal, longe da pasteurização urbana e
reconciliada com o passado, ao reconhecer ali o seu rosto, cujos traços se confundiam com as
linhas daquela paisagem agreste e ensolarada, bravia e sedutora.
Nesse dia, o dia em que eu me refizera, um dia que era assim um dia de Tijucopapo,
um dia onde o entardecer podia ser o que fosse que seria sem traições, sem
safadezas nem histórias perdidas como as daquelas cidades como São Paulo, um dia
em que, sentada no rochedo, eu escutava o choro da madeira vir do quintal de
minha casa branca na colina verde, como se Lampião cortasse madeira para o
balanço de nosso filho – sim, pois que estava próximo o Natal e eu não sabia se
alguém tinha sido gerado nos capins do estábulo onde as éguas se deitam; [...] (p.
184).
Uma imagem de contornos bastante românticos para quem acalentava deflagrar uma
guerra por motivações não só sociais como também pessoais. Um posicionamento a
princípio contraditório, mas que rejeita precisamente a “naturalização” dos comportamentos
esperados para homens e mulheres, pois amplia as construções sócio-culturais de gênero, ao
vislumbrar outras noções de masculinidade e de feminilidades além da hegemônica. Rísia não
se furtaria a assumir papéis culturalmente reservados para homens, nem declinaria de funções
também culturalmente associadas à mulher, de modo que a “casa branca” em meio a uma
paisagem bucólica não chegava a constranger a sua vocação de guerrilheira. Na condição
única de que essa complementação de opostos contemplasse um desfecho feliz.
Assim, Rísia converteria-se no ponto aglutinador a clamar por justiça, amor e paz,
palavras de ordem dos anos 1970. E sem máculas, visto que justamente sob o sol do meio-dia
nos transformamos em um ponto centrado em nós mesmos, sem que a projeção de nossa
sombra se faça maior que nós mesmos. Em outras palavras, a luminosidade da hora mais
clara do dia – o “Meio-dia, o justo” -, permite a maior nitidez dos contornos ao reduzir a ação
das sombras, da dúvida, da insegurança. Por outro lado, luz, palavra e fogo formam um eixo
relacionado à intelectualidade e à formulação de pensamentos bem fundamentados: Rísia não
era só sonho, ou emoção, mas também razão, pensamento, ação. “O que eu fiz foi um
pensamento. As mulheres de Tijucopapo eram, enfim, como eu fazendo sombra no chão,
meio dia de sol de fogo, caminho da BR” (p. 188).
Em termos mítico-literários, confirma-se a projeção de um complexo romântico de
retorno à mãe primordial com propensão para o mito da mulher redentora que empreende
179
uma espécie de “epopéia humanitária” (DURAND, 1989, p. 160). Assim se manifesta a
feminidade indulgente que se orienta em direção a um “lugar ao sol”, disposta a safar-se da
obscuridade imposta por uma discriminação obsoleta, que não combina com os arrebatadores
e oportunos finais felizes dos “filmes em língua inglesa”. Por fim, Rísia, cujo nome se associa
ao riso – não o riso que ri, mas o riso de que ela era alvo em São Paulo -, anseia por preservar
uma pureza infantil, em meio a crueza de uma realidade dura que lhe exigiu um
amadurecimento rápido: “[...]ontem eu tive uma noite de muitos sonhos, entre os quais o de
que estou mesmo indo vingar a menina que existe dentro de mim e que eu não posso
desrespeitar, e que é uma menina sentada num trono, [...]” (p. 188).
A carta destinada à mãe evolui para uma narrativa literária que extrapola o restrito
círculo familiar e atinge uma gama diversificada de leitores. A proposta de Rísia floresce
como sementes na primavera, estação em que a personagem-narradora, por fim, conclui a sua
obra, que nasceu de uma carta-manifesto contra a miséria e o desamor. E a expectativa de
acerto superava a de frustração, porque Rísia, finalmente, não estava só: “É isso mesmo,
mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema em outra língua, em
língua inglesa. Eu quero que tudo me termine bem.
setembro, 1980” (idem).
180
4.4.2 O lago encantado de Grongonzo: a dúvida
Composta de sete capítulos, a narrativa tem início com a retomada súbita de um fluxo
de pensamento em que se entrecruzam uma crença local e ditados populares
149
, de conteúdo
ameaçador para as crianças: “Era conversa. Achavam-se monstros até nas barras dos rios
doces. A pessoa que marchasse direito: olha que o bicho te pega, olha que o bicho te come.”
(FELINTO, 1992, p. 13)
150
. Às primeiras palavras, Deisi [sic], a protagonista, demonstra
certa contrariedade com a perspectiva da visita inesperada de alguns velhos amigos,
procedentes de Brasília, um lugar onde vigoravam as “falsas gentilezas e as afinidades
fuleiras”. O período de férias teria início no dia seguinte, quando eles chegariam à sua casa,
em Grongonzo
151
, pequena cidade portuária de Pernambuco.
Através de um monólogo interior, ela expõe seu tédio com relação à vida e às pessoas
que a rodeiam naquela localidade longínqua e selvagem, onde havia “sangue espirrando,
assassinatos sinistros no meio da rua, na Avenida Militar do porto, pai copulando mãe a pulso
no quarto ao lado” (p. 18). Deisi havia se recolhido a seu reduto de origem depois de viver
anos em outros locais, entre os quais, Brasília, última estadia antes do retorno a Grongonzo.
Predominava uma sensação de desconforto diante do iminente reencontro com os
antigos companheiros, consideradas pessoas estranhas àquele lugar, as quais ela preferiria
manter como arquivo morto. Os reveses experimentados dentro e fora de seu habitat
repercutiram de forma avassaladora na sua cosmovisão e a compeliram a um senso crítico tão
aguçado quanto ácido, movido pelo ressentimento e pela baixa auto-estima. O mundo
circundante era alvo de sua indiferença, por estar habitado por seres cujas existências seriam
inúteis - inclusive ela mesma -, apenas à espera da morte; seres descartáveis como qualquer
artigo sem valia, vazios e invasivos, a quem ela parecia sempre dizer: “_Você não devia
nunca existir, não vê? Eu mesma só existo porque espero o dia em que você há de não mais
existir, nem importa que seja eu quem primeiro desapareça. [...] (p. 17).
149
Após a construção de um aterro que passou a unir a Ilha dos Ratos à da Boa Vista, houve uma invasão de
ratos que, afugentados de seus domínios, representavam uma evidente ameaça à população local. O temor
era usado como recurso para assustar as crianças mais rebeldes e fazê-las comportar-se melhor. Uma alusão
aos ditos populares referentes a monstros: “se ficar o bicho come, se correr o bicho pega” ou ainda “marcha
soldado, cabeça de papel, se não marchar direito, vai preso pro quartel”. Essa imagem ilustra a disposição
contrária da narradora à inoportuna presença de seres que subitamente invadem seu território, os quais ela
compara aos ratos do aterro que uniu terras antes isoladas uma da outra.
150
Todas as demais citações subseqüentes referentes a esta obra, serão indicadas no corpo do trabalho, pelo
número da página correspondente, entre parênteses.
151
O morro de Grongonzo fica situado no município de São Bento, Pernambuco. No morro, que é arredondado,
conta a lenda que aparece e desaparece, sem deixar vestígios, um grande lago que guarda no fundo de suas
águas, riquezas incalculáveis. Quem viu o lago uma vez, não tornará a vê-lo (LÓSSIO, [s/d], vide r.m.e.).
181
Ela sustentava uma noção sombria sobre gente: os homens seriam piores do que ratos
e as mulheres eram “a mais mentirosa das generosidades”. E cada qual deveria dedicar-se aos
seus interesses pessoais, porque o mundo era “naturalmente” individualista – constatação que
ela resumia na ambígua e freqüente interjeição “normal”, recorrente na linguagem despojada
de jovens para demonstrar a banalidade com que certos fatos eram aceitos numa dada
conversação, às vezes em tom irônico: “Há muito tempo era cada um que se cuidasse.
Normal. [...]” (p. 13). Por isso, ela temia o reencontro, pois a presença daquela gente
“estranha” implicaria revolver experiências passadas que poderiam abalar a sua estabilidade
atual. A diversidade representava adversidade, uma afronta aos conceitos profundamente
arraigados que a impediam de assimilar o modus vivendi de um ambiente urbano, no qual ela
já havia se imiscuído, mas que agora procurava manter à distância.
O que mais a pré-dispunha contra essa outra cultura teriam sido os relacionamentos
interpessoais, que, segundo seu ponto de vista, seriam movidos por interesses falseados. Estes
constituiriam a base de uma sociedade consumista provida por valores efêmeros em que as
pessoas descartavam umas às outras como se fossem produtos cujo prazo de validade expirava
conforme as conveniências de cada um. Uma cultura afeita a uma variante moderna de
colonialismo, perceptível na incorporação gratuita de estrangeirismos, numa deslocada
demonstração de modernidade com aura de falsa erudição ou por mero exibicionismo. O
descomprometimento com a cultura local era percebido pela assimilação de toda sorte de
modismos, inclusive lingüísticos, mediante a adoção do uso de palavras em inglês, como, por
exemplo, catchup. Para Deisi
152
, a palavra estaria semanticamente vazia com relação ao
produto que identificava; antes, a partícula cat que compunha o vacábulo, mais sugeria um
nome de animal em inglês, do que propriamente molho de tomate, que, por sua vez, mais
parecia sangue coagulado. Além da disparidade entre significante e significado, este não
passaria de mais um injustificável costume gastronômico importado, dispensável e
desnecessário.
A propósito, a personagem-narradora se cerca de elementos de seu universo familiar
(entenda-se mais rural) para compor todo um quadro referencial de valores no plano moral e
estético. Neste aspecto, ela costumava atribuir características a animais e vegetais nativos para
estabelecer um parâmetro entre o mundo “selvagem” e o “civilizado”, o periférico e o central,
152
Não por acaso, um nome com grafia aportuguesada oriunda da palavra inglesa Daisy, que significa margarida
- uma flor frágil e silvestre. Ela mesma teria sido “vitimada” por esse gosto de certos pais em batizar os filhos
com nomes estrangeiros, sem qualquer vínculo com a genealogia familiar, mas para agregar-lhes algum
diferencial que os destacasse dos demais.
182
representado pela diferença cultural entre Grongonzo e Brasília, respectivamente. Uma
diferença de proporções geoeconômicas que repercute no plano genérico, com agravantes
quando se trata da relação entre mulheres, a qual se fundamentaria em ardis articulados para
se chegar a algum fim, com a meticulosidade de uma tecelã:
[...] E tinha das cumplicidades odiosas que mulheres teciam de uma pra outra. Aliás,
amizade com mulheres por pouco não se tornara a mais insuportável das coisas que
já tivera. Aliás, era entre mulheres que a vida corria descaradamente mesquinha – a
mesquinhez que a vida tinha de se constituir ponto por ponto, pouco a pouco, de
carreira a carreira do tricô na beleza da blusa final (p. 26).
A metáfora da tecelagem remete ao artifício dos fios e da teia de aranha para ilustrar o
relacionamento entre as mulheres. Neste caso, segundo Durand (1989, p. 75), o animal
implicitamente determinado – a aranha -, permanece às sombras, feroz e ágil para envolver as
presas num fio mortal, e desempenha o papel de vampira, que condensa todas as forças
maléficas. De modo que esta imagem detém um simbolismo negativo, em que o fio, por um
lado, funciona como a potência mágica e nefasta da aranha, associada à mulher fatal e
feiticeira, e, por outro, simboliza a condução do destino humano. Também se aproxima do fio
do labirinto, conjunto metafísico-ritual que contém a idéia de dificuldade, de perigo existente
nas “ligações” temporais que permeiam a condição humana, regida pela consciência do tempo
e da maldição da morte (idem, p. 76-77). Por sofisma, enquanto mulher, a narradora deteria os
mesmos atributos de fiandeira como todas as demais mulheres, de modo que, para fugir ao
risco da competição, decidiu romper definitivamente as relações com as antigas amigas e
reservar para si um “destino de silêncio onde jamais uma mulher se sentisse perdoada” (p.
26), disposta a responsabilizar-se pelas próprias escolhas e arcar com possíveis punições a ela
imputadas.
Quanto aos homens, seria possível amá-los, mas sem arroubos sentimentalistas, apenas
o suficiente para deixar-se semear com a mesma delicadeza que a terra fértil se entrega ao
trabalho de arado antes da semeadura. Assim ela procede com seu marido, Levi, a quem ama
com sinceridade, embora não alimente expectativas acerca de uma vida a dois abastecida por
romantismos ou heroísmos, pois ele, como todos os homens, era “aquela inocência cheia de
músculos” (p. 22), desprovido da acuidade necessária para perceber as mais profundas
inquietudes da mulher. A inadequação da sensibilidade masculina era análoga à corporal, no
sentido de que, para Deisi, o sexo masculino propriamente dito se excedia num volume inútil
e incômodo situado entre as coxas, lugar de movimento, em contraposição aos seios da
mulher, localizados ao alto. O local plano do sexo feminino conferia às mulheres uma
183
anatomia mais aperfeiçoada que a dos homens, cujo volume mal situado revelaria tão-somente
a sua fragilidade - e não a feminina, como se fazia crer -, numa referência ao mais vulnerável
ponto do corpo masculino. Outrossim, a observação vem contrariar o jargão chauvinista
popularizado a partir da teoria psicanalítica de Freud que propugnava a idéia de que as
mulheres sofreriam de um defeito anatômico original – uma espécie de castração -, que as
incitaria a desenvolver uma odiosa “inveja do pênis”
153
. Ao que parece, Deisi não só repudia
tal premissa, como enaltece a anatomia e a localização dos órgãos sexuais femininos; os
masculinos é que seriam disformes e estariam “fora do lugar”, e seu desempenho “heróico”
não passaria de um engodo machista, tal como a referida teoria do Pai da Psicanálise:
Pois como podia um homem? Como podia um homem guardar aquela coisa murcha
entre as pernas? Um chocalho mudo. Ela, não, que era plana ali onde se devia ser, o
entre-as-coxas, o lugar do incômodo, do passo, do entre-passo, do movimento. Os
peitos, não, que eram sempre eretos no mundo. Agora, os homens? Eram heróis
envergonhados [...]. (p.23)
Entretanto, antes do amanhã, Deisi havia reservado a noite para recolher-se com o
marido na intimidade do quarto para enrijecer-lhe o sexo e fazer-lhe acreditar num pacto
comum entre casais: de que a sua união seria a mais importante e sagrada do mundo. Entre
cética e desdenhosa, a narradora cedia ao lugar-comum para não destoar dos demais, embora
ela mesma desconfiasse de certas crenças acatadas como verdades incontestáveis, pois, a seu
ver, a única certeza possível seria a chegada da morte. O canto impassível do galo a cada
alvorecer consistiria no alarme diário, alheio ao sono do mundo, para avisar da inexorável
passagem do tempo, a chegada do futuro, enquanto o seu entorno permanecia inerte. Por isso,
o ato sexual planejado para a noite se restringiria a uma satisfação natural de apetites, como
qualquer outra necessidade fisiológica, sem maiores expectativas, a não ser pela
imprevisibilidade do novo dia anunciada pelo canto do galo.
[...] Porque tinha uma coisa em casais que era: trancados no quarto, darem-se a
maior importância do mundo – e como se abençoados fossem. Pois ela desconfiava
sobretudo dessas importâncias comuns e consumadas que o mundo dava.
Desconfiava. Como quem dissesse: amanhã, morre-se. [...] A pessoa antes
153
Expressões utilizadas por Freud em sua teoria psicanalítica foram popularizadas e, não raro, utilizadas de
forma equivocada e ultrajante pelos detratores dos movimentos libertários das mulheres. Freud procurava
demonstrar que a suposta inferioridade feminina estaria demonstrada pela obsessão da mulher com a aparência
física, a mesquinhez, o revanchismo e a incapacidade para o julgamento moral, além de estar relacionada
também à sua especificidade biológica e à sua anatomia. Elas seriam histéricas devido às mudanças
hormonais, deprimidas por terem útero, dóceis e receptivas por terem a genitália aberta; por isso, elas seriam
incentivadas a superar sua infantil “inveja do pênis” para tornarem-se “normais” com interesses centrados no
lar e nos filhos (NYE, 1995, p. 144-145).
184
entendendo que o canto incansável do galo é de desdém ao sono do mundo, um
chamado para além das existências constituídas. (p. 24)
A despeito da visão cética e desesperançosa de Deisi com relação ao ser humano e ao
futuro, ela se apegava ao afeto dedicado ao marido como forma de manter vivo um lastro
ínfimo que fosse de “amor ao próximo”. Desta maneira, ela não cairia no vazio absoluto de
sua existência, visto que em seu íntimo ela se debatia contra a reles importância que conferia a
ele, seu homem, tal como o faziam as mulheres em geral: “Mas amava o marido. E para além
de tudo. E dava a ele a maior importância do mundo, mesquinha como somente as mulheres
sabiam ser” (p. 24). Na verdade, o marido fazia parte de uma outra realidade, e Deisi não
poderia contar com ele para ajudá-la a encontrar uma saída capaz de fazer com que os amigos
declinassem da idéia de irem visitá-la. Afinal, ele desconhecia fatos do passado e ela não
encontrava nenhuma justificativa convincente para recusar-se a recebê-los em sua casa,
mesmo porque a sua vinda parecia ser algo irreversível, embora não tivesse “precisão
nenhuma”
154
(p. 14).
O amanhã a ameaçava com a imposição de um “passado vagabundo, de garatujos
155
urbanos, longo feito uma rodovia, e carregado da farsa dos morangos
156
” (p. 27). A lembrança
da cidade grande estava imersa nas misérias e fealdades banalizadas nas metrópoles, em que a
população se vê rodeada pela excessiva poluição visual e sonora, afetada por toda sorte de
atentado aos sentidos. “[...] A cama era um ônibus parado, estacionado ali por tanto tempo
que a pessoa ia apodrecendo, marginal, fuligem, anos e anos de seboseira, crosta de tanto
mijo, de tantos cheiros, de nódoas arroxicadas de fezes, vermelhas, acre-doces de catchup e
outras marcas coloridas. [...]” (p. 28).
154
Expressão ambígua que revela tanto a desconhecimento da narradora sobre o horário exato da chegada,
quanto à falta de propósito da visita dos amigos.
155
Garatujo provém do verbo italiano grattuggiare que, neste contexto, parece referir-se àqueles rabiscos
ilegíveis espalhados pelas edificações das cidades, cujos autores parecem se divertir ao desafiar as alturas
para deixarem sua marca nos locais mais improváveis, dos quais nem mesmo os monumentos históricos ou
artísticos se salvam. A versão hoje em dia reconhecida como arte de rua denomina-se “grafitti”. Também
podem referir-se aos esgares ou expressões faciais que a narradora julgava típicas da população local.
156
Os morangos podem simbolizar tanto o prazer carnal, como nas pinturas de Bosch, que mostra morangos
gigantes crescendo no Jardim das delícias terrenas (1495), como também podem simbolizar o fim da
chance de retorno à vida. (TRESIDDER, 1998, p. 193). Por sua vez, esta é uma menção velada a um livro
infantil intitulado “As fadas dos moranguinhos”, com o qual a narradora tinha sido premiada por obter a
maior nota escolar no fim do último ano letivo, ainda criança, quando partiria de Grongonzo. Não obstante,
os morangos e o chantilly de que normalmente vinham acompanhados não eram apreciados por Deisi que os
classificava como frutas “falsas”, incompatíveis com a natureza local.
185
Ali, homens e mulheres marginalizados sobreviviam na clandestinidade, em que as
condições sub-humanas lhes privavam de noções básicas de higiene pessoal, deixando-os
expostos à degradação física e moral.
[...] Amanhecia era no meio das ruas, das avenidas armadas, esfrangalhada [sic]
157
,
esmigalhada por dinossauros noturnos, entre retalhos de lençóis cor de cinza e só. Se
fosse homem, amanhecia com a barba de anos, carregada de carrapatos e outros
bichos agoniantes. Mulher, acordava com coceira na vagina, microcoisas pastando
entre as pernas entupidas de cabelo, resultado de anos de águas sujas por onde
boiavam detritos e espumas de outros paus. A cabeleira entre as pernas, embaçada,
cheia de feridas que os dedos abriam. E só. [...] (p. 28)
Um cenário lúgubre descrito sem a condescendência dos eufemismos, para demonstrar
toda o aspecto sórdido de uma marginalidade concreta relegada à imundície e à solidão, sem
qualquer perspectiva de mudança, vide a ambígua expressão “e só”. Os “dinossauros
noturnos” nos remetem aos arranha-céus “monstruosos”, cujas sombras se debruçavam sobre
os transeuntes como para devorá-los na sua insignificância de indigentes sociais. A cidade
seria um caldeirão de bestialidades entre as quais se incluía a população de excluídos sociais,
que por sua vez eram “habitados” por outros seres ignóbeis: configurava-se uma visão
escatológica da metrópole, que ostentava uma beleza superficial, enquanto proliferava na sua
camada subepidérmica a fealdade, a sujeira, o fétido. Deisi temia chegar àquele estado de
degradação, que comparava ao de figuras folclóricas que povoavam reminiscências da
infância, como “Caçarola ou Maria Doidinha, mulheres miseráveis que vadiavam pelas ruas
de Grongonzo em seu tempo de menina” (idem). Estas imagens faziam com que ela acordasse
“aniquilada, segundos inteiros sentada na cama, pra se recuperar das sensações sebosas. E só.
Passado urbano, sem nenhuma misericórdia. E só.” (idem).
Brasília era o retrato amarelado na memória de Deisi, uma capital marcada pela
contradição entre a sua forma arquitetônica revolucionária, de vanguarda primeiro-mundista,
e a realidade social brasileira, atrasada e miserável. A nova capital representava a frustração
de um projeto utópico de modernidade em pleno planalto central, acalentado nos anos
sessenta por Juscelino Kubtscheck, mas que se perdeu entre um emaranhado de fracassos
resultantes de políticas públicas tacanhas e ineficientes. Para Deisi, Brasília ostentava o
esplendor passageiro de uma beleza postiça obtida à força de uma maquiagem corretiva que
só fazia ocultar suas mazelas sob uma aura de progresso e civilidade. Visão semelhante Deisi
157
A concordância aqui é com o sujeito “ela” (Deisi), oculto na frase: Era ela quem amanhecia esfrangalhada e
esmigalhada pelos dinossauros noturnos [...].
186
lançava sobre Estefânia e Lena, amigas de outrora, procedentes da capital federal: elas e a
cidade compartilhavam a mesma artificialidade feminina.
Por sua vez, as amigas contrastavam paradoxalmente com aquelas figuras repugnantes,
quase demoníacas, que perambulavam pelas vias brasilienses. Estefânia e Lena seriam
moldadas à perfeição dos anjos, limpas e perfumadas, afeitas a uma assepsia de cosméticos à
qual Deisi não tinha acesso, e que agora vinham em busca da paisagem edênica de
Grongonzo:
[...] as amigas pareciam moldadas perfeições, anjos a caminho de onde o céu fosse
do azul que lá não era, de vastidões de estrelas prateadas que não havia, de revoadas
musicais de pássaros que os caminhões emudeciam. Amigas perfeitas como
meninas, que não fedem entre as pernas; a consistência mansa dos talcos, a
suavidade de óleo de amêndoas em água morna. Mas ela mesma, não. Normal. (p.
28-29)
Por ocasião das férias, costumava ocorrer o movimento de turistas em direção ao
litoral à procura do lazer e das belezas naturais da orla marítima. Seduzidos por propagandas
veiculadas pela mídia, vários recantos turísticos tinham sua rotina habitual alterada pela
invasão temporária de uma população flutuante, numa onda migratória peculiar cuja
passagem costumava deixar por ali seus resíduos culturais, levando outros consigo. Os amigos
de Deisi haviam eleito Grongonzo para desfrutarem as férias daquele ano, local aonde
chegariam exatamente no primeiro dia de carnaval, período propício aos mais diversificados
entrecruzamentos culturais.
À Deisi, porém, incomodava-lhe encarnar subitamente a preferência turística de
amigos os quais não pretendia rever e que sequer havia convidado. Ela se recusava a ser
revista, outro termo ambíguo, no sentido de que ela tampouco se dispunha a ser vista de novo
por eles, e nem se prestaria a tornar-se uma figura estampada nas publicações de turismo
exploradas por olhares de pessoas que não lhe eram bem-vindas. Ela se desobrigava de
participar desse contato: “[...] As insuportáveis férias que durassem até o fim de um janeiro ou
de um fevereiro. Férias, como se ela fosse revista. Ela que nem sequer escrevera cartas. Que
tinha decisões a preservar pela vida afora. Que o lugar ali, Grongonzo, azul, com um céu por
cima, não era foto para propaganda. Que férias, nunca mais. [...]” (p. 29)
Grongonzo configurava-se como um microcosmo regido pela luminosidade do
regime diurno, solar, em que prevalecia a transparência e a visibilidade dos contornos. Em
contrapartida, o microcosmo urbano seria regido pela nebulosidade das aparências que, uma
vez submetidas a um exame mais apurado, ressaltariam aspectos antes irreconhecíveis. Tal
187
como a lua, que sob o foco da lente de aumento de uma luneta deixava transparecer detalhes
invisíveis a olho nu, as amigas Estefânia e Lena mostravam a sua verdadeira face quando
submetidas a uma análise mais cuidadosa. Assim como Brasília, elas disporiam de artifícios
que exerciam sobre os incautos o fascínio arrebatador de um mundo de fantasia, como se
fossem seres fabulosos de “outro planeta”, mas fugazes:
Nas férias, as amigas partiam sempre, fadas dos moranguinhos, ou angelicais, pra
qualquer lugar azul, com um céu por cima, pra fazendas ou beiras de praia, onde a
lua se fizesse tão próxima, tão próxima, que tivesse para além do encanto de lua –
que tivesse o visível analisável de crateras e fendas pelo foco duma luneta. Amigas
de outras eras, precisas, interplanetárias, monstros ou duendes, heteromorfas, eram
astronautas de purpurina. (p. 29)
Deisi não se sentia capaz de enfrentar a perspicácia das amigas. Não dispunha de
armas eficientes o bastante para antecipar e anular as artimanhas engendradas por mulheres
que compartiam interesses em comum contra um alvo mais vulnerável, tal como ela se
considerava. A assunção de sua impotência converte-se em capitulação, cujo resultado é o
recolhimento às próprias origens, pois quando “não se pode com outros tempos, volta-se ao
lugar.” (p. 35). A subjetividade da personagem incorpora-se à estrutura narrativa, por meio do
discurso indireto livre, na intenção de que ambos – estrutura e discurso - falem em uníssono,
fazendo emergir daí uma voz “dual” (Cf. REIS & LOPES, 1996, p. 198). O discurso procura
dar vida à realidade subjetiva da personagem sem que a narradora se abdique de seu estatuto
de mediadora. Este teria sido um recurso discursivo empregado desde o século XIX, embora
se desenvolvesse sobretudo no romance do século XX.
Híbrido, neste tipo de discurso a terceira pessoa e os tempos da narração coexistem
com o dêitico
158
(designações demonstrativas), as interrogações diretas, os traços interjetivos
e expressivos, entre outras intervenções textuais, que tornam o discurso “suspenso entre o
imediatismo da citação e a mediação operada pela narrativa” (idem). O deslocamento da
primeira pessoa para a terceira, para referir-se a si mesma, procurava conferir mais
credibilidade aos comentários ou circunstâncias relatadas, por expandir o campo de domínio
do sujeito. Assim, a personagem ora assume o papel de agente ativo da ação, ora o de agente
passivo, cujo relato das ações é delegado à narradora, que intercede para maior
convencimento do leitor. Este jogo dúbio também atende à inter-relação do estado subjetivo
158
Dêitico ou dêixis é uma propriedade da linguagem para demonstrar ao invés de conceituar. Na citação, o
estado de suspensão da tarde está demonstrada pela resistência do vento em trazer o bafo úmido (de vida) do
lago atrás do morro, numa forma de partilhar com Deisi o estado de tensão provocado pela iminente e
“ameaçadora” intervenção externa.
188
da personagem com o entorno, que chegam a confundir-se, como no exemplo em que a
imobilidade e a tensão de Deisi coaduna com a imobilidade e a tensão do lugar:
[...] A própria tarde estava suspensa. O vento resistia, não se fazia ao longo, não
trazia, como de costume àquela hora, o bafo úmido do lago atrás do morro. Não
choveria, então. Não aconteceria, então. Podia-se, inclusive, morrer. Mas morrer na
bainha que chuleava ali, a fogo, o fim do dia? Morrer nas artes do demônio, no tricô
da besta-fera? Normal. Tudo bem, ela já entrava a morrer. Entrava a morrer, os
membros moles, a cabeça desvariando na falta de intenções quaisquer – que é como
se fica em tarde de mormaço, ao balanço duma rede, o olhar vadiando no nada – [...]
(p. 35-36).
Seria o “nada cotidiano” de Deisi, análogo ao nada cotidiano de Yocandra, em “La
nada cotidiana”, de Valdés, que à sua maneira corroía diariamente o que a personagem
denominava de existências constituídas; com a diferença de que, para Yocandra, esta teria
sido uma imposição insustentável, asfixiante, ao passo que, para Deisi, seria uma condição
voluntária de imobilidade. Uma situação semelhante a do calangro (calango, iguana, lagarto
pequeno), imóvel no tronco de um coqueiro, camuflado, que compunha um quadro no qual
Deisi se via refletida. Uma súbita epifania que lhe revelava a sua paralisia existencial –
consentida -, que inadvertidamente estava prestes a sofrer uma incômoda interferência
externa: a visita dos amigos de Brasília. O calangro lhe provoca a urgência de rever sua
posição com relação ao futuro, ao seu destino, numa postura oposta a que havia assumido até
então. As razões do calangro seriam as suas próprias:
[...] O que queria o calangro afinal? Que ela se movesse na rede. Calangros estão
sempre à espera de um momento para escapulir. Precisavam, com urgência, que
alguém os visse e ameaçasse. [...] Há que tempo o calangro estava ali? Quanto
ficaria ainda, naquela vida superposta, tilitante? Entre encantada e incomodada,
Deisi foi se enchendo de intenções que um minuto antes julgava perdidas para
sempre na modorra da tarde. [...] (p. 36)
Num piscar de olhos se lhe escapuliu o calangro, do mesmo modo que lhe escaparia a
vida se não começasse a ensaiar alguma reação. A primeira que lhe ocorreu foi a de
repreender o marido que, absorto no trabalho e descuidado com a postura, deixava entrever o
sexo pela perna do calção que usava. As reprimendas, contudo, mantinham-se no plano
imaginário, na pura intenção não concretizada, que o advérbio “quase” deixava transparecer.
Ela quase perguntou, numa mesquinharia da pior espécie, ela quase deu-lhe um
baile, ela quase gritou, o que há tempos não fazia, ela quase perguntou:
_ Mas que diabo!? Por que você não veste uma cueca? Você me faça o favor de
amanhã não ficar aí mostrando essa sua coisa... amanhã vêm mulheres aqui... E é
189
isso mesmo. A língua é essa, sem melindres. Pra ficar claro que não sou idiota...
Você me faça o favor. (p. 38).
Depois de escolher o marido como a meta inicial de uma reação pessoal em cadeia,
Deisi se propõe a resistir às investidas dos “forasteiros”, nem que fosse preciso lançar mão de
“outras baixezas do tempo do onça: atos de violência da infância ali em Grongonzo, [...]” (p.
39). Deisi lançava o olhar na direção do amanhã imprevisível que os “outros” (os amigos)
trariam, e constata a imersão no estado “anestésico”, de quase catalepsia, que o presente lhe
conferia, herança de tempos melindrosos. Um passado cruel, mas reconhecível, tal como a
avó encarnava – familiar, mas rude, arredia e intolerante -, que tinha o hábito de demonstrar
sua amargura e sua contrariedade com o mundo por meio de insultos e de expressões
populares de intenção pejorativa, sem sequer poupar a neta ou o próprio Deus.
A avó havia adotado Airine, menina trazida de Igaraçu, para ajudá-la a cuidar dos
netos desde a morte da mãe de Deisi. Fogosa, Airine apreciava namorar os marujos com a
cumplicidade de Corina, sua melhor amiga, uma relação que chegou a despertar a admiração
de Deisi que, até então, as considerava um exemplo de confiabilidade possível entre as
pessoas. Para surpresa de todos, porém, numa madrugada chuvosa de outubro, a família
recebe por um soldado a notícia da morte de Airine e de sua amiga. Convencida de que
Corina lhe havia traído com seu homem, um carregador do porto, Airine havia desferido na
traidora vários golpes de faca e se matado em seguida, providenciando antes uma confissão
em carta encontrada em seu sutiã. Por ocasião do velório do corpo de Airine, a avó
protagoniza uma cena de contornos tragicômicos que descrevia a inútil revolta da avó contra o
poder divino:
[...] A avó caiu prostrada sobre o caixão maldizendo mundos e fundos. Depois
desembestou campina afora, o povo atrás, a velha correndo desesperada, doida
varrida, um revólver na mão, disparando tiros pro céu, mirando Deus:
_ Eu te arrombo, gritava entre soluços, eu te arrombo, ô ladrão safado, ô larápio
duma figa”.
Era com Deus. Os meninos assistiam esperando que de repente o céu se lavasse do
sangue de Cristo ou de Deus morto. A mulher deu não se sabe quantos tiros, mas
Deus invulnerável, e nenhuma gota de sangue escorreu do céu que desfilava
taciturno lá por cima, apenas azul na manhã imensa. [...] (p. 66-67).
Abalada pelo episódio da traição consumada e vingada com morte, Deisi desenvolve
um campo defensivo com relação às mulheres, que, no seu ponto de vista, seriam todas
traiçoeiras. O crime em si não a havia afetado mais do que a constatação de que existiam
pessoas traidoras, e desde então procura prevenir-se, sobretudo contra as companhias
femininas, supostamente falsas e invejosas. Perigosas. A morte de Airine havia agravado a
190
intolerância da avó que, além das antigas implicâncias, procurava coibir as relações de
amizade da neta com outras meninas. A influência negativa reforçada pela avó fez com que
Deisi, ainda criança, se retraísse e se reservasse “um destino de silêncio, apenas.” (p. 70):
“[...] As simpatias por Tânia, Deisi, guardara num esconderijo. Os tempos modificados, já não
se devia ter uma melhor amiga. _ Onde vai a corda, vai a caçamba. Mulher não é flor que se
cheire, ouviu? a avó advertia a Deisi que se botava aos cochichos com as amigas pelo
terreiro.” (p. 69).
A velha mulher preconizava a crença na chamada sabedoria popular para exercer sobre
a neta uma influência nefasta, de conseqüências igualmente sombrias. Seja por seu conteúdo
conservador, que imprimia uma veracidade absoluta às idéias reacionárias dominantes, seja
por estimular uma postura extremamente misógina, o radicalismo retrógrado da avó
representava a prevenção contra a dinâmica natural do tempo, contra o novo, o desconhecido,
contra tudo o que não poderia manter sob seu domínio. Assim, também induzida pelos
conselhos “bem intencionados” do pai, Deisi se previne contra as pessoas, convencida desde
cedo de que o outro seria sempre um inimigo em potencial, a ser mantido afastado: “[...] As
pessoas, devia-se primeiro farejá-las. O inimigo escondia-se muita vez nas ventas da gente.
Amizade era coisa de lei. Ou era feito fruta, abrigando bichos debaixo da casca verde-rosa.
Era dizendo e bacurau escrevendo, sem volta.” (p. 70)
A expressão “era dizendo e bacurau escrevendo” provavelmente se referia às lições
que Deisi (ou qualquer outra criança) herdava como aprendizagem. Os pequenos bacuraus
eram educados para registrá-las como regra a ser seguida, uma espécie de termo de
sobrevivência num “mundo-cão”, onde as pessoas deveriam ser “farejadas” para que suas
reais intenções fossem identificadas. Todos ocultariam interesses inconfessáveis por trás de
uma aparência amistosa e inofensiva. O valor mais precioso das pessoas encontrava-se no seu
interior, algo a se explorar como um “tesouro” resguardado contra a investida de aventureiros
ou outros vilões mal intencionados.
Mas Deisi ressentia-se de ter sido submetida a um tipo de ensinamento tão
excessivamente escrupuloso, que ao invés de prepará-la para a dinâmica da vida, a induzia a
um retraimento auto-defensivo e a equívocos de julgamento. Além dos próprios exemplos
caseiros, ela responsabilizava os professores de sua infância pela falta de orientação adequada
e por terem promovido uma falsa idéia sobre ela mesma. Eles teriam preterido informações
valiosas em favor de outras, desnecessárias, nas variadas áreas do saber. Por isso, ela os
repreendia e pensava reuni-los numa sala de aula fictícia, onde os avaliaria e lhes atribuiria
191
uma nota segundo um critério particular, numa óbvia mudança de papéis, em busca de
“acertos de contas” (p. 131).
Dona Cremilda, por exemplo, teria se equivocado ao elogiar o desempenho escolar de
Deisi e ao agraciá-la com prêmios e palavras incentivadoras. Deisi estava convencida de que,
na realidade, ela não passava de uma criança sem qualquer préstimo e predestinada ao
fracasso, tal como a havia feito crer a sua avó, nas previsões sombrias para a neta,
reproduzidas por ela no comentário:
[...] Dona Cremilda é que se enganara redondamente. Não havia uma pessoa sequer
que fosse pedra rara, gema, preciosa. Que valesse outra coisa qualquer senão outra
reles outra pessoa. Na verdade desde menina, pingando leite, não tinha o mínimo
préstimo, era ruim, da ponta do cabelo ao dedo do pé sujo, e morreria na unha,
comendo o pão duro com goiabada, ou no borralho, a tristeza de anos a fio trançada
por bilros de não sabia quem. [...] (p. 130)
O professor Galdino, de Ciências, teria omitido a real localização das pedras preciosas
e o conteúdo de suas aulas não teria tido qualquer valia de ordem prática.
[...] Professor Galdino, eu queria saber, com muito respeito, por que, em Ciência, o
senhor nunca me disse, com todo respeito, que as pedras, gemas e preciosas,
escondiam-se de nós lá no fundo, isso sim. Olhe, suas aulas sobre pedras entraram
por um ouvido, saíram pelo outro. [...] As verdadeiras pedras eram outras, que o
senhor nunca disse. [...] (p. 132-133).
A professora de Geografia, Dona Yolanda, não a teria prevenido contra a urbanidade
excludente de Brasília, embora sempre insistisse em informar a sua população, para a qual,
curiosamente, não se ofereciam calçadas. Haveria uma discrepância entre o discurso oficial
das disciplinas e a realidade factível ao alcance da população local:
_ E, Dona Yolanda, por que a senhora não me disse que, em Brasília, só mesmo fora
de Brasília? Não me disse, não foi? Que os poderes eram alheios. [...] pouco me
importava saber de países melhores de letras ultra W e Y. E muito menos me
serviria saber hoje a população de lugares urbanos como o de Estefânia e de Lena.
Lugares que nunca foram o meu. [...] A população! A quem interessa a população,
se, a começar por Brasília, não há calçadas? [...] (p. 133-134).
Deisi seria mais condescendente com o professor Alexandre, de Matemática, pois ele
ensinaria tal conteúdo “filosoficamente”, com resultados mais proveitosos. Paradoxalmente,
teria sido ele o responsável pela obsessão de Deisi em alcançar uma única e exata
possibilidade de vida, como se fosse uma fórmula matemática. Não obstante, por conta dessa
192
“exatidão”, ela teria abolido a possibilidade de fantasias ou de romantismo, algo que sua irmã
lhe cobrava, e dos quais ela sentia-se desprovida.
[...] Matemática, filosoficamente como você ensinava, talvez sirva pra alguma coisa.
Mas quero confessar, com o coração aqui na mão, que sofro muito ainda pra atingir
a exatidão que você dominava em única possibilidade e, pela qual, me apaixonei.
[...] Mas não sei o que dizer a minha irmã que acredita em existências menos
precisas de príncipes e princesas, coisas desse tipo a que você se negava. [...] (p.
134-135).
Deisi assume as prerrogativas de um juiz para deliberar sobre o desempenho dos
mestres, a quem julga, condena ou perdoa. O período em que lhe impuseram trocar o bodoque
pelo lápis com borracha na ponta havia representado a sua iniciação no mundo das letras no
seu estágio mais inocente, quando ela passa a delinear as primeiras palavras e figuras, a
manipular as cores e reconhecer as emoções correspondentes. O que de início poderia trazer-
lhe contentamento, trouxe-lhe contrariedade. Deisi questionava a utilidade prática da troca a
ela imposta, visto que, ao mesmo tempo em que o lápis registrava certos fatos consumados, a
borracha lhe permitiria apagá-los para corrigi-los ou para reescrevê-los ao sabor das
conveniências pessoais ou históricas.
[...] O lápis? Mas o lápis só faz palavras! E tantas vezes falta um na caixa, um que
seja cor do vazio no coração. [...] E, pior, castigo, não sei se jogo fora o lápis, se não
jogo. Se mato os verbos ou se não mato. De que cor deve ser o lápis que escreva o
passado sem que se use borrachas? Eu, confesso, com toda admiração sincera por
você, que as únicas borrachas em que eu acreditava eram as do meu bodoque,
elásticas, de pneu. [...] (p. 136)
Seu argumento residia no fato de que “estar escrito” não implicaria necessariamente
em verdade empírica, comprovável, pois sempre poderia haver espaços para controvérsias.
Por conta disso, Deisi ainda confessa a um dos professores que ela se envergonhava de seu
passado, razão pela qual ela teria se esquivado da irmã, curiosa sobre sua vida pregressa em
Brasília. Por outro lado, a postura retraída e defensiva teria sido determinada a partir da morte
de Airine, considerada a experiência mais marcante de sua infância, cujas implicações
psicossociais acabaram por moldar seu perfil comportamental no decorrer dos anos. Uma
conduta que confirmaria a índole taciturna e desconfiada que costumava caracterizar o
cidadão interiorano, avesso a exposições e capaz de rejeitar qualquer interferência externa que
considerasse ameaçadora. No caso de Deisi, essa rejeição intrínseca não pouparia sequer os
comentários de cunho psicanalítico de seu ex-namorado Demian, os quais desdenhava por
considerá-los pretensiosos e infundados quando direcionados ao comportamento algo
193
paranóico de Deisi, para quem a alma – objeto da psicanálise – não passaria de uma concessão
divina totalmente dispensável: [...] Por que Deus dava alma a quem não pedia alma? [...]” (p.
80). Na sua concepção, o ser humano reduzia-se a um mero corpo físico, de modo que as
análises e as conclusões a seu respeito seriam inúteis, assim como os psicanalistas,
considerados por ela profissionais exploradores e oportunistas - um “luxo” moderno
desnecessário -, e por quem ela se recusava a ser desvendada com o intuito de enquadrá-la
adequadamente à sociedade.
Assim como a psicanálise, as palavras também representavam outra sofisticação da
modernidade, da qual ela preferia se esquivar. Para ela, o imediatismo de certas atitudes
constituiria um método mais eficiente do que a argumentação verbal; não que as palavras
fossem inócuas, mas parecia-lhe um desperdício utilizá-las com quem não as merecesse,
mesmo com a intenção de atacar os desafetos. Desde criança, Deisi era mais afeita ao
primitivismo prático de seu bodoque para alcançar certos resultados, do que à elaboração mais
complexa exigida na comunicação verbal – oral ou escrita. Como já não dispunha dos
bodoques da infância, ela opta pela proteção simplista do silêncio voluntário.
[...]Que ela se tornara uma mulher ruim, cópia fiel da avó, pra lá de Igaraçu. Era.
Mas faltava a arma em riste de V, ou de Y, que fosse. Agora, o lápis? Fazia
palavras, apenas. Que até matavam pessoas – palavras matam também e ela sabia –
mas era luta sofisticada, tão civil que dava pena. E poucos são aqueles que merecem
o esforço de uma palavra que se lance a eles. Não merecem. Havia que passar em
silêncio e só. [...] (p. 48)
Tais reminiscências foram recuperadas no curto lapso de tempo decorrido entre o
levantar-se da rede de onde ela havia surpreendido o calangro e o entrar na sala onde o marido
trabalhava. O impulso inicial de repreendê-lo por sua distraída exposição do sexo foi logo
substituído pela intenção de retomar a leitura de um livro interrompida na página 99. Custava-
lhe, porém, concentrar-se no texto, pois sua história pessoal insistia em desviar-lhe a atenção,
obrigando-a a reiniciar a leitura repetidas vezes. Era como se aquelas linhas descrevessem a
sua biografia até o presente momento e se negassem a revelar-lhe o futuro, que se
descortinaria a partir da página cem. Observe-se que o numeral cardinal cem se equivale
prosodicamente à preposição sem, que indica falta, privação, exclusão, entre outros sentidos
de ausência, numa clara alusão a um futuro incerto, imprevisível.
[...] Amanhã seria um redondo cem. Mas o cem, era autor anônimo quem fazia.
Quem fazia a página cem amanhã? Ela é que não era. Limitava-se ao 99. Temia o
cem, mas ao mesmo tempo queria o cem redondo e arrematado. Se as folhas
194
passassem. Mas não passavam. Nem as horas passavam. Vida Sem. Nem as folhas.
Não era outono, era asfixiante e não vinha o vento do lago. (p. 57)
Literariamente, percebe-se neste trecho um caso particular de metalepsis, bastante
comum, por exemplo, na narrativa de Julio Cortázar
159
. Ao siginificar etimologicamente
“transposição” ou “transnominação”, a metalepsis consiste na passagem de elementos de um
nível narrativo a outro. A suposta “biografia” retratada no livro lido faria de Deisi, a um só
tempo, leitora e personagem, numa espécie de projeção contínua e recíproca entre ficção e
“realidade”. Haveria, pois, um plano fictício (a biografia), em que ela atuava na qualidade de
personagem, e o plano “real”, em que ela se lia na qualidade de leitora. Ou seja, exisitiria uma
relação entre o diegético - universo espaço-temporal em que se desenvolve a história, e o
extradiegético, o que, via de regra, nos permite entender a metalepsis como toda conexão
mediata estabelecida entre o mundo real e o “mundo possível”, configurado no plano da
ficção (G. Genette, apud REIS & LOPES, 1996, p. 64, 143).
Este recurso literário procura expandir fronteiras do universo literário para além do
circuito puramente realista, ao estabelecer com este um diálogo mais ativo. Essa idéia parte do
princípio de que a literatura não deveria ser tão-somente uma projeção mimética da realidade
factível, fiel a expectativas pequeno-burguesas, muito comum na segunda metade do século
XIX, mas romper esta barreira a fim de revigorar a própria literatura diante das visíveis
transformações por que passava a sociedade. Nestes termos, na citação acima, o cair das
folhas das árvores corresponde à passagem das folhas do livro e à mudança das folhinhas do
calendário, numa alusão metafórica à transição do tempo. Um tempo que se estaciona na
página 99 do livro lido (ficção), impedido que está pela imobilidade “real” da estação do
momento, o verão, quando não há vento vindo do lago a soprar as folhas, como ocorre no
outono. A conclusão de cada história, porém, estaria a cargo de autores anônimos, uma obra
inacabada, sem estimativa de final feliz ou não.
Segundo Durand (1989, p. 285), enquanto recurso ficcional, a metáfora consiste num
processo de expressão com poder de renovar terminologias, de arrancá-las de um destino
etimológico limitado, pautado apenas numa objetividade ilusória. Igualmente para Deisi, a
realidade estaria construída sobre pilares ilusórios sempre prestes a ruir, de modo que sua
expectativa assentava-se na possibilidade de interferir na escrita de sua história, ao assumir
159
Cita-se como caso exemplar o curtíssimo conto “Continuidad de los parques”, na obra Final de Juego
(Madrid: Alfaguara, 1993, p. 13), magistralmente elaborado pelo autor, em que realidade e ficção se
confundem, a ponto desta tornar-se um retrato fiel e ameaçador daquela. Outro exemplo, não literário, seria
o filme “A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen (1985), com Mia Farrow e Jeff Daniels, em que a
personagem salta da tela para a sala de exibição.
195
para si a tarefa de conduzir seu destino, nem que tivesse que inventá-lo. Ela parafraseia uma
expressão bastante recorrente em certas obras de ficção para alertar contra possíveis
semelhanças entre as obras e fatos reais, justificadas como mera coincidência
160
. Convencida
da própria ficcionalidade da vida, Deisi confessa: “_ A realidade não existe pra mim: eu vivo
é um mundo de sonhos que sempre desaba: minha vida é é larga: minha vida é ficção,
qualquer coincidência é pura.”
161
(p. 76).
A despeito de que a personagem não faça distinção entre vida e realidade, caberia
traçar um paralelo entre os termos, sob pena de se incorrer em equívocos de ordem
terminológica e semântica. O fato de que Deisi afirme viver num “mundo de sonhos” não
significa necessariamente que não seja real, pois a realidade contempla inclusive o universo
onírico, fantasioso ou fantasmagórico; a imaginação e a loucura também são categorias do
real. Por sua vez, a ficção sugere o fingimento, o simulacro, através da imaginação, da
capacidade inventiva, mas sempre preservará um vínculo com a realidade, por mais tênue que
seja, ou não haverá qualquer possibilidade de se fazer crível, por mais absurda que se
apresente. Haja vista a realidade possível em obras de ficção científica e do realismo mágico
(ou realismo maravilhoso), por exemplo, que guardam um grau de verossimilhança com a
realidade reconhecível, factível. Para Deisi, a vida plausível era precisamente o da ficção, a
vida-inventada, que lhe proporcionava mais possibilidades de realizações do que a vida-real,
limitada e acidental.
Em seu caso específico, a vida seria produto do acaso, pois ela teria sobrevivido
mesmo sem a presença materna, situação bastante comum em Grongonzo. O contexto
desfavorável de miséria e de falta de assistência fazia com que inúmeras mães tivessem morte
prematura ou abandonassem a casa para “ganhar o mundo”, fugir da extrema carência de
recursos para criar os filhos. Uma violência velada tão corriqueira que a população já a
recebia com a resignação dos impotentes: uma realidade absurda que predispunha suas
vítimas a uma visão fantasiosa de mundo, como uma espécie de paliativo encorajador, mas
que, cedo ou tarde, se desfaria em frustração e desamparo. Deisi e seus irmãos foram criados
pela avó, cujo despreparo havia infundido nas crianças as mesmas crenças distorcidas que ela
160
Em certas obras de ficção costuma-se inserir a advertência “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança
com pessoas ou fatos terá sido mera coincidência”, para isentar o autor de qualquer constrangimento penal.
161
Note-se que a frase desdobra-se em outras demarcadas por dois pontos, como se estivesse complementando-
se por etapas consecutivas, tal como a vida de que trata. Em “[...]: minha vida é é larga: [...]” [sic] (grifo
nosso), a repetição do verbo ser é proposital, no intuito de representar fielmente o discurso oral da
personagem, e preservar a informalidade que garanta a “despretensão” literária da obra. Ao mesmo tempo,
paradoxalmente, corrobora com a versão de que a literariedade não se sustentaria apenas no vocabulário
empolado, clássico ou canônico. O mundano e a literatura se complementam, de modo que, para Deisi, sua
vida e a ficção se coincidem, sem necessidade de justificativas.
196
teria herdado da geração anterior. Deixar Grongonzo decerto significou uma ruptura, embora
os resquícios de uma orientação preconceituosa e pródiga em moralismos inócuos resistissem
ao tempo e à mudança geográfica.
Viver em Brasília teria aguçado o conflito cultural que Deisi carregava dentro de si, a
ponto de fazê-la desenvolver uma armadura de autodefesa contra o que ela entendia como
uma provocação externa. Para ilustrar uma dessas supostas provocações, Deisi recorda que ela
quase teria sido atropelada por um carro conduzido por “uma mulher mais bonita do que
devia”, numa das longas avenidas de Brasília, onde as “mulheres dirigiam mal”.
Inconformada com a hipotética agressão, ela recorre a esse apelo machista sobre mulheres ao
volante, para revidar a investida da potencial homicida que teria atentado contra sua vida
propositalmente. Este episódio contribuiria para confirmar a sua tese de que nada valia a vida
das pessoas, sobretudo na cidade grande onde se era “esqueleto e sangue, mamulengo
162
sem
o mínimo préstimo” (p. 77), principalmente quando se tratava de confronto entre mulheres.
Ainda segundo sua tese, elas seriam perigosas, sobretudo as belas, por terem o poder de
enfeitiçar os homens com seus encantos efêmeros de Cinderela e de serem impiedosas com
relação à outra mulher, quase sempre considerada objeto de inveja e de revanchismo, às vezes
sem qualquer razão plausível.
_ Dirigem mal e porcamente.
Porque sim. Uma vez escapara por um triz de uma mulher mais bonita do que devia,
no tráfego. Mais bonita do que precisava. Uma mulher que não se podia ser, ou que
somente se era em festa até a meia-noite, uma que se fazia pra todo mundo querer
ser, que enfeitiçava os homens, transformava os homens – a inocência cheia de
músculos – em príncipes. A mulher trocou de pista sem olhar, numa mesquinharia
da pior espécie. [...] (p. 77)
Da mesma maneira hostil, Brasília se comportaria com os cidadãos de outras
procedências que não se adaptassem ao seu estilo de vida. Na avaliação de Deisi, a capital
federal exibia uma modernidade elitista e desumana, com avenidas que mais pareciam
rodovias e com denominações estranhas que dificultavam a identificação e o acesso aos
logradouros nos diversos pontos da cidade: “[...] Brasília não tinha avenidas, tinha verdadeiras
rodovias 703 W3-norte, CRS Y2-sul, com endereços que não localizavam ninguém. [...]” (p.
104). Uma cidade voltada para os carros, as máquinas velozes que dominavam as pistas
amplas, mas que desdenhava os humanos: “[...] E não tinha calçadas para pedestres, não
ligava a mínima para os seres humanos. [...]” (p. 104).
162
Fantoche, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986, p. 1074.
197
O estranhamento impactante desencadeia em Deisi um processo crescente de repulsa e
de distanciamento do modus vivendi dominante em Brasília, incompatível com o da jovem
interiorana. Sentia-se uma estrangeira numa cidade cujas características arquitetônicas e
sociais demonstravam ilusória vocação futurista que ressaltava ainda mais as diferenças entre
Brasília e o resto do país. Uma capital construída no centro do território nacional, mas que a
despeito da proposta integralizadora do projeto inicial, a capital-mor parecia alheia e
inacessível, apta apenas a atender aos interesses de políticos envolvidos nos jogos de poder.
De um modo geral, a população não passaria de uma massa de manobra, mais propensa à
desorientação e ao abandono: “[...] Era como se Brasília fosse uma cidade estrangeira e como
se, então, o país fosse governado de fora do país. [...]” (p. 104). Projetada para centralizar o
poder político nacional, Brasília, ao contrário, não passaria de um recanto longínquo e
excludente, que não se prestava a ser referência para ninguém:
[...] Brasília ou era o fim do mundo, ou sem começo. Mas pensava que era o centro.
Pensava que era o centro e em torno dela giravam cidades satélites onde Deisi
tornou a perder-se e a sentir que talvez nunca tivesse sentido tão estrangeira a
própria vida. Ali, interplanetária a cidade, qualquer pessoa perdia o planeta do
próprio signo, perdia o signo e a flecha do signo. [...] (p. 107)
Apesar dos contornos futuristas, a capital era desprovida de passado, de tradição. Para
compensar essa lacuna, criaram-se monumentos de beleza esplendorosa, porém vazios de
história; um indício da sua artificialidade que camuflava as imperfeições e a inexpressividade
por debaixo de sua epidérmica aparência de perfeição: “[...] Brasília era uma ilusão. Não fora
construída, era uma trama de ratos nos subterrâneos por onde os fios corriam. Brasília não
tinha fios externos, expostos, não tinha feridas, fios por onde passasse a eletricidade que faria
os fachos de luz. Brasília era sem sentimentos. [...]” (p. 105)
A cidade assumia características humanas, sem, contudo, humanizar-se. Pelo
contrário: muito embora fosse comparada a uma jovem mulher estendida na areia de uma
praia, e mesmo provida de “asas” – o que lhe favoreceria com vantagens sobre as demais -,
Brasília permanecia inerte e robotizada, incapaz de mobilizar-se por algo, insensível ao que se
passava ao seu redor e no seu interior. Seria uma miragem num deserto longínquo:
[...] Que Brasília não tinha vida própria e era alheia, em terra estrangeira, e
estendida num plano alto, como uma moça que nem soubesse nadar, que a despeito
das asas não voasse, que não conhecesse os arroubos, as ousadias por única questão
de fé, já que não tinha mar, já que não tinha história, já que se cristalizara num
monumento. Brasília era uma mentira. (p. 106)
198
Deisi havia acumulado suas impressões pessoais e as havia resumido numa descrição
carregada de subjetividade e de parcialidade, enquanto percorria as ruas naquele que seria seu
derradeiro dia na capital federal. Ao longo do percurso, ela ainda se indignaria com uma
incômoda semelhança entre Grongonzo e Brasília: ambas acolhiam militares em abundância.
Enquanto “fêmea”, Brasília queria apossar-se do que não lhe pertencia; surrupiar
características alheias, de outra fêmea – Grongonzo, por exemplo -, numa espécie de
vampirização que lhe agregaria outros traços peculiares: “[...] Em Brasília não faltavam fardas
pelas ruas. Onde estava? Brasília querendo ser o que não era – Grongonzo dos tempos do
onça. Mas não era. Não era. Porque: e o mar? E o mar? E o mar e tudo mais? Brasília fazendo
de conta. [...]” (p. 107)
Sua obstinada aspiração de cosmopolitismo faria da capital federal um simulacro de si
mesma, um arremedo de várias localidades, embora se mantivesse alheia, distante, desprovida
da autenticidade que singularizava as demais: “[...] Brasília, num minuto duma esquina
qualquer lembrava qualquer cidade conhecida, mas não era nenhuma delas. [...]” (p. 104).
Uma cidade onde se concentravam as instâncias mais altas do poder político, cujas decisões
determinavam o rumo da vida de cidadãos procedentes de todo o território nacional, mas que
ali, sob seus olhos, desapareciam. Ela seria a representação mais contundente de um centro
desagregador submetido por sucessivas forças partidárias que se alternavam no comando do
Governo, e das quais seríamos todos reféns.
A sensação de exclusão não se resumia a um provável e natural impacto provocado
pelos evidentes contrastes sócio-culturais, mas sobretudo pela impressionante grandiloqüência
ostentada pela capital. Mais do que em qualquer outro lugar, em Brasília o valor do indivíduo
se media pelas cifras de sua conta bancária: o capital, portanto, seria o critério preponderante
para a aceitação ou rejeição de alguém no circuito social. Egocêntrica e arrogante, Brasília
mantinha o olhar voltado para si mesma, alheia às aspirações da sociedade; algo semelhante à
postura de políticos que se encerram nos diversos escalões do poder, entrincheirados nos
corredores palacianos, longe da plebe assalariada.
[...] Nunca sua vida fora tão alheia quanto ali em Brasília, enquanto caminhava
diante dos edifícios onde lhe governavam a própria vida. Brasília humilhava a
pessoa – como um banco onde se tivesse conta e pouco crédito, onde portanto os
caixas espicaçassem você pelo último cheque sem fundo, pelo saldo vermelho e a
conta enfim corrente apenas catitamente pelos subterrâneos. Brasília era a caixa-
prego. [...] (p. 105)
199
Marginalizada, Deisi se dispõe a fazer o caminho de volta ao litoral pernambucano,
para fugir à solidão no seio de uma sociedade tão postiça quanto excludente. Preferiria a
margem geográfica à margem social: a despeito de situar-se à beira-mar, que lhe conferia o
aspecto “marginal”, Grongonzo ainda se apresentava como uma possibilidade de integração
num meio em que Deisi se sentisse uma “igual”. Com essa alternativa em mente, ela decide
deixar aquela “terra estrangeira”, convencida de que Brasília havia sido “[...] Um erro. Porque
Brasília era o centro do mundo, não podia excluir a pessoa. Como excluía. E excluía. Em
Brasília não se encontra ninguém e a pessoa alarmava-se da própria solidão e sentia o
primeiro medo inteiro – nem de gato nem de rato. Medo da vida que, temendo-se a vida,
temia-se tudo.[...]” (p. 106)
Por outro lado, recolher-se à sua “insignificância”, em Grongonzo, representaria
abdicar-se de um sonho que lhe resultou impossível por incompatibilidade. Depois de viver
em outros lugares, outras culturas, Brasília teria sido “a mais insuportável das coisas que já
vivera” (p. 107), de modo que, depois “[...] de um dia de vontades clássicas mas de atitudes
românticas [...]”, Deisi abandona aquele centro urbano, “onde as mulheres eram a mais
mentirosa das generosidades e olhavam uma pra outra com vaga inveja.” (p. idem). Em outras
palavras, a sua boa intenção de aventurar-se por outras terras – uma vontade clássica –, tal
como a dos antigos conquistadores e colonizadores, se esmorece diante do peso de uma
urbanidade altamente seletiva que, em contrapartida, a faz refugiar-se no romantismo de um
lugar idílico ainda intocado pelos vícios da modernidade.
Naquele dia, no vôo de volta a Grongonzo, Deisi conhece o tenente Levi, também
natural da cidade portuária, que tempos mais tarde, se tornaria seu marido. Ambos haviam
conhecido lugares variados: ela, por questões pessoais; ele, por força das obrigações da
Marinha. Já ligeiramente embriagado, mais pelo modo inusitado de expressar de Deisi do que
propriamente pelas doses a mais de bebida consumida no avião, Levi a compara a uma sereia.
Ela rechaça a comparação que pretendia ser um elogio; primeiro, porque as sereias seriam
seres fantásticos e, portanto, não mereceriam seu crédito; segundo, se existissem de fato,
teriam o cabelo
163
escorrido como o das amigas Estefânia e Lena, e assim como elas, seriam
163
A mitologia feminiza monstros teriomorfos como a Esfinge e as sereias. Basta lembrar que Ulisses, de
Homero, faz-se atar ao mastro do seu navio para escapar simultaneamente ao laço mortal das sereias, a
Caribde, e às mandíbulas armadas de uma tripla fileira de dentes do dragão Cila. Toda a Odisséia constituiria
uma epopéia da vitória sobre os perigos das ondas e da feminidade (DURAND, 1989, p. 75). Por sua vez, a
cabeleira - que reforça a imagem da feminidade fatal -, associa-se à água, não por ser feminina, mas se
feminiza por ser hieróglifo da água cujo suporte fisiológico seria o sangue menstrual. Ao mesmo tempo, a
cabeleira seria signo microcósmico da onda e, tecnologicamente, se associa ao fio natural que serve para tecer
os primeiros nós. O fio, na Odisséia, funciona como símbolo do destino humano (idem, p. 76-77).
200
gentis e traiçoeiras. Intuitivamente, Deisi percebia estes elos arquetípicos vinculados à figura
da mulher, e usava a intuição como instrumento de defesa contra possíveis artimanhas
articuladas por elas: “[...] Que as mulheres, ela achava, o pior lado das mulheres era esse de
sereia. [...]” (p. 112).
A já austera postura defensiva com relação às mulheres, teria se agravado devido a um
episódio ocorrido em Brasília, que envolvia Deisi, Estefânia e Demian. A amiga de cabelos de
sereia teria viajado de férias com Demian, seu antigo namorado e o primeiro homem que
Deisi amou. Na ocasião, a despeito do namoro já ter sido rompido, a inesperada aliança entre
o ex-namorado e a amiga, repercutiu como traição na análise de Deisi que, a partir do
ocorrido, ratifica seu conceito negativo a respeito das mulheres, sempre escorregadias e
invejosas. Ressentida, Deisi se nega a perdoar o que considerava um procedimento
condenável da parte da amiga, a quem jamais teria coragem de atingir com o mesmo
“pecado”. Impressionava-a não o sentimento em si, mas a constatação de sua prática entre
amigos, que cobiçavam para si um bem ou virtudes alheias. Em contrapartida, o episódio
serviu-lhe para contrariar a idéia autodepreciativa de que ela jamais poderia ser alvo de inveja,
pois não se reconhecia como portadora de atributos invejáveis, o que, de certa forma, lhe
havia despertado a vaidade, outro pecado condenável.
Não obstante, a contumaz autodepreciação de Deisi a isolava numa ilha de virtudes às
quais outras mulheres não teriam acesso, e com as quais ela sempre havia mantido um
relacionamento regido pela prevenção. Qualquer deslize de conduta seria julgado segundo os
rígidos preceitos morais sob os quais a jovem teria sido educada e por conta das amargas
lembranças da infância.
Na véspera da chegada dos amigos – entre os quais se incluía Demian -, Deisi se
prontifica a comentar com o marido o motivo da sua apreensão quanto à chegada inesperada
das visitas. Deitados na cama, minutos antes de se dirigirem ao lago, a conversa gira em torno
do tema da traição entre mulheres, quando ela expõe o motivo de sua antiga contrariedade
com relação à amiga Estefânia. Perguntado sobre sua opinião, Levi traça um paralelo entre as
relações masculinas e as femininas, para as quais a base da amizade se assentaria na
cumplicidade, nos seguintes termos:
_ O que eu penso? Ele disse, penso que entre mulheres as amizades se formam na
cumplicidade e que, por isso, qualquer movimento em falso vira traição. Diferente
de como os homens se movimentam entre si, eu acho. Quero dizer: se penso em
meus amigos e eu, vejo que deixamos sempre um espaço na aproximação,
preenchido por alguma coisa assim como a bola de futebol... Então, somos
cúmplices da bola, não somos um do outro... Um do outro somos parceiros, do
mesmo time, entende isso? [...] Duvido que me sentiria traído se algum amigo meu
201
namorasse você. Sentiria muita coisa, mas traído, como se então ele me devesse
cumplicidade, não... (p. 114-115).
Levi ressalta que Estefânia não necessariamente teria premeditado a situação, como se
quisesse enredá-la numa armadilha. Inquere o porquê de, em nenhum momento, Deisi ter feito
qualquer menção à atitude de Demian, com relação a ambas. Deisi contra-argumenta que seria
“normal” esperar de amigos o que se esperava de amantes, sem ocultar a sua decepção com a
amiga que teria “tricotado” na “maciez excessiva das lãs” (p. 115) tudo o que havia
acontecido. Em outras palavras, ela alude por metáforas à trama articulada meticulosamente
pela amiga a fim de conquistar para si o que havia sido de Deisi.
A questão envolve idéias preconcebidas acerca da natureza feminina, compartilhada
inclusive entre mulheres. A sua inclinação “natural” à traição remonta a era cristã e se acirra
após este período. Historicamente, construiu-se uma imagem da mulher como um ser pouco
confiável, cujas atitudes, assim como sua palavra, seriam a fonte do infortúnio do homem, a
quem ela sempre teria envolvido em suas tramas
164
. Arrebatada por estes conceitos e pela
perplexidade algo puritana, Deisi teria imputado à amiga, e só a ela, o romance inesperado
com Demian: um fato decisivo para sua visão cáustica e preventiva acerca das pessoas em
geral, e das mulheres, em particular. No dia seguinte, porém, estariam todos frente a frente
depois de um longo período de afastamento, um reencontro a princípio inofensivo, mas capaz
de promover mudanças imprevisíveis e desastrosas. Deisi temia enfrentar o amanhã por
acreditar que ele “soprava um grão de poeira e borrava as felicidades” (p. 117), capaz de
abalar sua pacata e resignada vida familiar.
Como se sabe, por ser o primeiro grupo social com o qual se tem contato, a família
constitui a base fundamental das relações humanas, e a partir dela, formula-se toda uma
referência de vida. Deisi não escapava a essa regra, e a despeito de disposições contrárias, a
avó continuava a ser uma referência, nem que fosse para contestá-la. Ela reconhece que havia
adquirido traços de personalidade da avó, como a crença em uma única possibilidade para o
mundo, uma exatidão reforçada pelo professor de matemática, na sua idade colegial. A
diferença entre elas consistiria no fato de que a avó havia criado uma barreira entre ela e o
mundo externo, ao passo que Deisi havia se permitido aventurar-se em sistemas sociais
diferentes do seu, mesmo que sua partida tivesse sido, num primeiro momento, uma
164
O exemplo mais relevante continua sendo o de Eva, representação mítica da Mulher, a primeira de que se tem
conhecimento, segundo o Gênesis, onde os versículos descrevem seu nascimento, sua união com Adão, sua
tentação pela serpente, sua culpa, sua condenação, seu nome e seu destino. O tema teria carreira duradoura na
literatura, em autores como Vitor Hugo (1802-1885), Émile Zola (1840-1902), em Milton (1608-1674) e Lope
de Vega (1562-1635) (BRUNEL, 1998, p. 300).
202
determinação paterna. De certa maneira, o contato com a diversidade havia forçosamente
ampliado seus horizontes culturais, inclusive ao conceder-lhe mais tarde, o benefício da
escolha: ao rejeitar o que testemunhou, decidiu voltar – algo impensável para a avó,
paralisada pelos próprios preconceitos.
Desde o regresso de Deisi, a avó costumava queixar-se de que tudo ali em Grongonzo
havia se transformado e estaria irreconhecível. O lugar teria mudado do “caldo de cana pra
aguardente” (p. 120): “_ Não mais parecença. Remodelaram tudo, botaram tudo fora do
lugar.” (idem). Em Grongonzo já não se desfrutaria da tranqüilidade de outrora, pois os vícios
da cidade grande haviam contaminado o lugar, trazidos por uma espécie de gente que não se
via por ali em outros tempos. Principalmente com a proximidade do carnaval, época em que a
região era invadida por turistas de várias procedências:
[...] E que, em fevereiro, pelo Carnaval, Deisi veria, o povo desgraçava o lugar, o
frevo da molesta corria solto nos Tijolos
165
; não se podia mais andar na rua porque o
diabo andava solto e a rua estava cheia de gente safada; além das babaquaras de
Prazeres, agora tinha homem que virava mulher. Mas que era Carnaval, o povo dizia
que era, como se então tudo se pudesse e a tudo perdoasse. Que a televisão, então,
nunca ligava. (p. 121)
O conservadorismo intransigente da avó opunha-se ao avanço da modernidade por
aqueles rincões. A presença de gente com costumes e práticas estranhos aos do local
despertavam a desconfiança e o repúdio da população mais resistente, mormente mais idosa.
Ao que parece, as queixas mais freqüentes recairiam sobre o aumento das ocorrências de
roubo e de furto em suas várias modalidades, desde mangas verdes para satisfazer desejo de
mulher grávida até a tentativa de apropriação indébita das economias dos mais incautos ou
ignorantes.
Em decorrência disso, a avó teria procurado alfabetizar-se no ABC
166
dos animais na
tentativa de dominar as letras, apesar da idade avançada. Frustrada, ela atribui o fracasso à
falta de paciência da neta (irmã de Deisi) para ensinar-lhe e à complexidade das palavras, que
desarranjavam umas às outras, dificultando sua compreensão. Ela desiste: “_ Cada palavra
tem seu desmantelo, disse.” (p. 120)
165
Tijolos seria um local de gafieira de Prazeres, zona boêmia de Grongonzo: “[...] Na rua, isso mesmo, onde
acontece que ficava a gafieira dos Tijolos, onde as mulheres engulhavam, babaquaras de Prazeres e outras
paradas, bêbadas, vomitavam feijão com farinha e fiapos de coentro.[...]” (p. 54).
166
Deisi havia sido alfabetizada com um curioso método que consistia em associar as letras a animais e agregar a
eles um adjetivo iniciado com a letra correspondente. Vide o trecho: “[...] Estudavam juntos no mesmo
Patronato Maria Teresa. Aprenderam juntos o mesmo ABC dos animais onde o A era da astuta Águia, o B,
da bela Borboleta, o C, do conhecido Cágado, o D, do difícil Dromedário, até o Z, da zelosa Zebra. Mas os
filhos dos tenentes metiam-se a falar bem, a não se misturar com ninguém, a encher a boca pra dizer os
nomes que tinham: em W, em Y, letras ultra de outros países melhores.[...]” (p. 49-50).
203
Ela reunia vários quesitos caracterizadores do atraso endêmico dominante no lugar. A
despeito dos aspectos negativos associados – não injustamente – ao incremento da migração
populacional (em ambos os sentidos), a resistência sistemática e indiscriminada à
modernização poderia promover uma espécie de autofagia corrosiva que terminaria por
decretar a falência de outras possibilidades de integração. Reduziria-se a apenas uma: a
manutenção do atraso, do declínio vertiginoso em decorrência do isolamento estéril e
paralisante. Por outro lado, sua resistência também revelava o temor à potência invasiva dos
veículos de comunicação que traziam as notícias de fora e, nelas embutidas, comportamentos
incompatíveis com a cultura local. O desnível de escolaridade também contribuiria para
infundir desconfiança no trato com as novidades forâneas, pois demarcavam uma luta
desigual entre os iletrados autóctones e o pedantismo desrespeitoso de certas propostas
modernizadoras. Medo e fragilidade, portanto, precipitariam ações preventivas da parte da
avó, no sentido de não se deixar corromper pela modernidade daquele mundo que lhe era
estranho e hostil.
A TV e o Carnaval constituiriam o protótipo da permissividade (virtual e real) que a
avó abominava. Ela mantinha desligado o televisor e se confinava em casa durante o período
carnvalesco, para evitar o contato com o mundo exterior: “_ Essa televisão é cheia de diabo,
só tem bicho preto, desliga isso, dizia indignada.” (p. 121). “[...] Que, o lago, o lago mesmo só
dali a uma semana, quando terminasse o Carnaval. Ia ficar trancada na casa dela, que o povo
se danava pela rua, acabando com tudo.” (p. idem)
Com efeito, o Carnaval condensaria, na sua manifestação espontânea e popular, a
forma mais ampla e contundente da diversidade cultural. Excessos à parte, a festa de Momo
promoveria o congraçamento entre os distintos segmentos da sociedade, propiciando a
reconciliação entre oponentes. O estado de festa suscitaria o rompimento – temporário que
fosse - de certos convencionalismos considerados intocáveis pelo senso comum, muitas vezes
orientados por moralismos hipócritas. De qualquer maneira, a avó sentia-se mais segura ao
resguardar-se na fortaleza impenetrável de seu desprezo e de seus temores. As pernas
enfermas, contudo, denunciavam o abatimento de suas forças, que o tempo e a própria
obstinação se encarregaram de declinar. Às voltas com a erisipela, que as moscas rondavam, a
velha senhora resistia à insistência de Deisi em levá-la a uma boa médica na capital, para
tratar-se. Firme na sua misoginia, ela retrucava: “_ Médicas não prestam. São a malvadeza na
expressão da palavra. Só vou se for médico, homem. Mulher não tem pena de mulher.
Maltratam-se se puderem. Judiam que só.” (p. 119-120).
204
De fato, a avó mantinha uma forte influência na cosmovisão da neta; não obstante,
nem sempre Deisi teria sido adepta a convencionalismos institucionalizados. A família, por
exemplo, seria uma instituição em eterno estado de gravidez, concebendo uma geração após
outra, indivíduos consangüíneos ou não, para compor toda uma ascendência ou uma estirpe
particular. Ela não se reconhecia como parte integrante daquele grupo de pessoas e,
intimamente, os rechaçava pela viscosidade doentia de suas relações: “[...] Família, pois era,
podia ser o puro óleo, pegajosa, não-degradável, não-diluível, que afetava os fígados, dava
nos bofes. [...]” (p. 125). Entretanto, uma vez de volta a Grongonzo, já casada e com um filho,
Deisi teria revisto seu conceito acerca da instituição antes renegada. Ali, reintegrada à sua
terra natal, chegava a lhe agradar a atmosfera familiar e fraterna, fator de estabilidade que lhe
restabeleceu a noção de pertencimento.
O processo de “interiorização” (no sentido de descentralizar-se) se consumaria
mediante a revisão dos valores inerentes à condição de mulher e interiorana. Por outro lado,
diante de si configurava-se um novo dilema: acatar ou abdicar-se do papel mediador entre a
cultura local e a forânea, escolher entre o conservadorismo ou a flexibilização, o isolamento
ou a abertura. Até então, Deisi fazia um paralelismo entre ela e o lago encantado de
Grongonzo, que expunha na face a mesma transparência das águas cristalinas e resguardava
nas profundezas um tesouro de valor inestimável, reservado somente aos eleitos. Na falta
destes, ela recolhia-se ao silêncio, como um voto a ser cumprido “[...] até quando notasse
enfim as coisas melhores e pegasse o sorriso se formando quase sem resistência no canto da
boca, assim como a onda vai se armando lá no longe do mar, [...]” (p. 88-89).
Não obstante, enquanto todo esse tesouro permanecia intocável sob os escombros de
uma austeridade inflexível, Deisi continuava a agir como se estivesse sob o efeito de algum
“encanto” ou feitiço lançado às mulheres de Grongonzo. Segundo antiga lenda local, o lago
teria poderes de transformar em pedra as mulheres das redondezas ou aquelas que acudiam às
suas águas para lavar a roupa, enquanto entoavam um canto triste: “Dizia-se em Grongonzo
dos tempos do onça, troncha, pau, dizia-se que o lago transformava mulheres em pedra. Que
nas redondezas do lago era capaz de uma mulher virar pedra onde se quarava roupa alva, onde
se batia roupa suja. Uma mulher era pedra. Pérola, não.” [...] (p. 90)
A metáfora sugere que as agruras da vida local teriam transformado as mulheres em
seres empedernidos, embora intimamente guardassem consigo uma rara generosidade.
Entretanto, com estratégica prudência, Deisi procura reavivar antigas mágoas para prevenir-se
205
contra possíveis impulsos românticos e condescendentes, e, assim, resguardar seu mais
valioso patrimônio: sua singularidade, representada pelas pedras preciosas
167
.
A fada que ela nunca fora. Quando as coisas melhorassem para ela, prometera-se
esfregar sal grosso nas feridas pra que elas ardessem e não se esquecesse. Embora
hoje, que inteiravam anos, percebesse que a ferida criara nova casca, mais fina,
rósea e delicada. E até delicada até. E a cicatriz começava a se formar pelas bordas,
enrugada, escura, feia e forte. As unhas cresciam e ela estava viva. [...] (p. 90-91)
Isto posto, Deisi permanecia apreensiva quanto ao seu futuro imediato. Reconhecia
seu comportamento arredio e intratável, mas o tinha como ponto pacífico, algo do qual o
tempo já havia se encarregado de sedimentar, e, portanto, o supunha irremediável. Parte da
apreensão devia-se à sua habilidosa capacidade inventiva, da qual havia lançado mão no
decorrer dos anos com o propósito de criar histórias mescladas de realidade e ficção,
perfeitamente críveis. Por isso, ela não poderia deixar-se envolver pelos demais, já que ela
mesma não seria uma pessoa confiável, às voltas com enredos fantasiosos capazes de
convencer até os mais astutos. Talvez ela fosse tão artificial quanto Brasília e as pedras
preciosas de seu interior, afinal, não passassem de bijuteria barata. Com a chegada dos amigos
do passado, era possível que a sua versão dos fatos sofresse algum revés, contribuindo para o
seu desmascaramento.
Ainda na cama com o marido, ela se obstinava em falar dos acontecimentos passados,
até que eles se esgarçassem, perdessem a força. Naquele momento, Deisi expunha-se sem
medo, mas procurava manter o controle sobre o que dizia para não ir além do recomendável,
“como se os acontecimentos em si não importassem a ela; importasse somente o que sobrava
deles, [...]” (p.97). Numa pausa súbita, o marido, intrigado, quer saber o que, de fato, lhe
havia sucedido, ao que ela responderia como quem já tivesse ensaiada a resposta: “[...] Nada.
Tudo coisas que inventei. Todas as coisas que eu invento são acreditáveis. Então, como posso
eu confiar num mundo que confia em mim? Minha vida é ficção, qualquer coincidência é
pura.” (p. 98). A dúvida, portanto, constituía-se no elemento dominante de um jogo em que já
não se poderia aferir os limites entre realidade e fantasia, verdade ou mentira, lucidez ou
delírio. Memória e imaginação interagem, alternando-se onde havia lacunas de uma ou outra,
até alcançarem a página 99, quando Deisi interrompe a leitura (e a escritura) de sua
167
Uma lenda cristã faz referência às pedras preciosas como tendo sido espalhadas pela terra quando da queda do
arcanjo Lúcifer (nome dado a Satã enquanto residia no paraíso), em forma de fragmentos de uma luz celestial.
Já na psicologia jungiana, as jóias (entenda-se pedras preciosas) simbolizam o autoconhecimento obtido do
inconsciente. Além disso, sempre simbolizaram a iluminação espiritual, a pureza, o refinamento, a
superioridade, a durabilidade, com poderes mágicos de cura e de proteção (TRESIDDER, 1998, p. 113).
206
“autobiografia”, sob a incerteza do que estava por vir, sem saber que final traçar para sua
história: “Fechou o livro na ainda página 99 que a vida era – uma dobradinha, dois patinhos
no lago da sorte e do azar da víspora. Então entrou no quarto onde havia um espelho frontal e
escandaloso. Lá estava – visível e invisível como o próprio espelho – a cara, pesada de alma.”
(p. 91).
A página cem estava reservada para amanhã, primeiro dia de carnaval, quando
convenções se romperiam e se projetariam outras possibilidades de encontros, às vezes
insuspeitáveis. A inquietude de Deisi traduzia-se na sua expectativa quanto à reação dos
amigos, sobretudo Demian, objeto de ciúmes e de desentendimentos passados. Ela oscilava
entre recebê-los com diligência discreta ou demonstrar-lhes todo seu apreço com uma
recepção calorosa, certa apenas de que teria um sorriso estampado no rosto, como sinal de
civilidade, que nem sempre ela havia encontrado na cidade de onde eles vinham. Tampouco
esconderia o quanto apreciaria que Demian ainda gostasse dela, apesar da incompatibilidade
entre seus modos de vida: “Mas era amanhã e acontecia de mandarem que se formasse no
canto da boca dela um sorriso irreverente, sem resistência: _ Demian! (E então ela ria)
Confesso que você era muito moderno pra mim. E por demais só inteligente. [...]” (p. 150).
Ele tinha o domínio intelectual, racional, o conhecimento de língua estrangeira, era
natural de um centro urbano ungido de modernidade que não se afinava com a simplicidade
da vida interiorana e telúrica de Deisi. Nem por isso a sofisticação cultural do ex-namorado a
entusiasmava; ao contrário, soava-lhe enfadonha pela arrogância e pelo egocentrismo. Estes
seriam os sintomas de uma sociedade afetada por um obsessivo desejo de prosperidade, de
consumo e de visibilidade socioeconômica, além de um individualismo excessivo que resistia
inclusive às relações amorosas. Irremediavelmente só, desaparecida no anonimato que a
cidade impunha, Deisi se recolhe, convencida da inadequação entre o ritmo urbano e o seu, de
cujo descompasso resulta uma dissonância comunicativa até seu total emudecimento:
[...] A cidade era um disco bambo, ligeiramente riscado. Cheia de pessoas que não
emprestavam discos. A cidade (E ela ria), um dis-c, -c, -c. Um dis-c, -c, -c. Um
disco riscado. A pessoa sem fala. Um disco risca-d, ca-d, ca-d. (Ela ria) Um disco
risca-d, ca-d, ca-d. Um disco riscado. E como se a pessoa, eu, fosse a faixa,
inadequada à fineza duma agulha. [...] (p. 150-151).
À meia-noite, Deisi desliga a vitrola onde tocava o disco riscado, para banhar-se na
banheira com óleo de amêndoas despejado na água – um precedente à sofisticação da capital.
Imersa na água perfumada e cálida, ela prevê receber os amigos com um bolo de boas-vindas,
contrariando toda a aversão ruminada no decorrer do dia com a iminência da até então
207
inoportuna visita. Reconhece no íntimo que a sua rendição talvez fosse uma questão de
tempo. Apesar do silêncio da hora, ouve os ecos da canção que “quase a matara
suavemente”
168
- lembranças “de amores passados mas eternamente amores, que sempre
magoam” (p. 117) -, que há pouco tocava na vitrola. Depois de vestir-se e de certificar-se do
sono do filho, Deisi se deita ao lado do marido adormecido, e se entrega ao “monstro”
emocional que gradualmente a domina e esmorece sua resistência: “[...] Mas, ao encostar o
ouvido no colchão, o colchão sendo de molas, ouviu o próprio coração batendo e se
propagando no oco, e ressoando. Como se o coração fosse um piano e dentro dele vivesse, de
fato, um monstro que a matava suavemente.)” (p. 151)
168
Esta é uma referência a um verso da canção intitulada “killing me softly with his song” (Charles Fox-Norman
Gimbel), êxito musical de 1973, na voz de Roberta Flack.
208
4.4.3 Obsceno abandono - amor e perda: a recondução
Composta por dois capítulos – Abandono e Obsceno - esta curta narrativa de Felinto
aborda o tema da perda e do arrependimento, sob a perspectiva de uma mulher, habitante de
São Paulo, em plena eclosão da era digital. As relações amorosas parecem acompanhar a
expansão do processo globalizador, através da mídia virtual, embora sejam passíveis de se
sustentarem com a mesma efemeridade de um suspiro, tamanha a diversidade de “ofertas” e a
rapidez com que se alternam. Para coibir as fraudes e as (des)ilusões que permeiam as
relações humanas, e evitar o dolo decorrente do abusivo trânsito interpares no território
amoroso, a protagonista - vítima do que considera um engodo amoroso - propõe a
regulamentação legal de conduta das partes envolvidas.
A questão da alteridade e do pertencimento manifesta-se no seu estágio mais primário,
o de indivíduo para indivíduo, elemento fundamental para a formação de um núcleo
inicialmente bipolar que se expande em direção à constituição familiar até chegar ao ainda
mais diversificado agrupamento nacional. O corpo de cada homem e de cada mulher constitui
o primeiro e talvez o único território sobre o qual seja possível deter o mais amplo e legítimo
sentido de pertencimento: para além de suas fronteiras prefigura-se o território alheio, a
subjetividade integral de outro ser, com os quais guardam-se mais ou menos afinidades.
Ultrapassar os limites de si para alcançar o outro e com ele (ou ela) formar o primeiríssimo
encontro entre “iguais” consistiria o passo inicial para a formação de tribos, de grupos afins,
de uma rede infinita de possibilidades que se estende desde os primórdios da vida humana no
Planeta até os dias correntes. Cada ser é uma ilha em busca de um canal de comunicação com
as demais ilhas de um arquipélago humano, cada qual com a paisagem física que lhe é
peculiar. Cada qual com a identidade que evidencia a sua singularidade.
A complexidade da expansão dessa rede toma proporções inimagináveis na medida em
que um indivíduo ou uma casta se declara superior às demais e pretende submetê-las mediante
argumentos espúrios de “proteção” e “respeito”, meramente por privilégio de força. É quando
se inicia o exercício de opressão de uma parte sobre outra, quando o poder se torna o único
mote plausível para satisfazer a sede de domínio e de submetimento em função de gênero, cor
da pele, etnia, poder aquisitivo, orientação sexual, crença religiosa, posicionamento político,
entre outros fatores de conflito. A “verdade” comum, a convencional , a que co-venceu, relega
à marginalidade os contrários, os “estranhos”, os “diferentes”, que, afinal, não são nada
menos que o complemento de um todo, que põe em marcha um processo dinâmico de revisão
contínua de (pré-)conceitos mútuos.
209
A relação a dois configura o primeiro momento de um contato com potenciais
desdobramentos de proporções mais amplas, na qual se confrontam aspectos genéricos e
culturais que, neste caso em particular, se problematiza no período pós-moderno de uma
metrópole latino-americana. Nela, nativos e imigrantes anônimos se entrecruzam, num
cotidiano marcado por encontros e desencontros, como pontos ínfimos em movimento, sob a
trama da poluição sonora, visual e olfativa, e a presença de outras mais recentes marcas
alusivas à contemporaneidade, cuja força motriz se concentra no imediatismo dos resultados,
na velocidade dos movimentos da massa urbana.
A despeito da urgência no estabelecimento e ruptura dos vínculos, a protagonista se
debate contra o iminente rompimento de um caso amoroso que se desdobrava por cinco anos.
O abandono seria o mais obsceno dos atos praticados pela pessoa amada, incapaz de
corresponder ao amor e à fidelidade de quem ama, num jogo patético de posse e de vaidades
contrariadas. A epígrafe escolhida para representar a obra, “O amor, já de si, é algum
arrependimento”, de Guimarães Rosa, aponta para a perspectiva de equívocos e de transtornos
provenientes de tramas de ordem afetiva. Especialmente neste caso, o risco de quebra da
harmonia ocorre quando o parceiro resiste a sujeitar-se à exclusividade cobrada, embora
tampouco se conforme com a ruptura da exclusividade oferecida, com a possível perda de sua
soberania. Por outro lado, apesar do doloroso processo de separação, quase sempre motivo de
ressentimentos e acusações mútuas, persistem as apostas neste autêntico jogo de azar, em que
os erros antes cometidos nem sempre bastam para impedir outras investidas. Pelo contrário, às
vezes constituem um atrativo adicional, seja por mero gosto pela aventura, seja pela ilusória
pretensão de moldar o outro à sua imagem e semelhança, a fim de superar divergências.
Expectativas frustradas, tensões reincidentes e a solidão se alastram até que um novo par –
igualmente “inesquecível” e “insubstituível” – seja vislumbrado no momento seguinte.
Procedente de uma região fronteiriça, nos arredores da Serra do Espinhaço, entre
Minas Gerais e Bahia, a personagem, anônima, contabilizava um habitante a mais na
população da capital paulista. Liberada sexualmente, desprovida de moralismos provincianos
e independente financeiramente, seu desafio atual consistia no enfrentamento da perda.
Apesar dos inúmeros casos amorosos precedentes, ela não cogitava procurar por eles nos
momentos de solidão para preencher as eventuais lacunas afetivas que a acometiam. Preferia
recolher-se à solitária rotina, partilhada com milhões de seres em igual situação naquela
metrópole cosmopolita e gigantesca: “[...] Acostumar-se com que eu não tenha hoje nenhum
compromisso marcado, como não tive ontem (quando terei?). Aceitar as caçadas solitárias do
210
meu coração. Reconhecer a minha como uma agenda de possibilidades em código, de
encontros marcados com gente que não vou encontrar.” (FELINTO, 2002, p. 29-30)
169
.
Recorrer a antigos amores ou deles receber qualquer tentativa de reaproximação,
mesmo para parabenizá-la pelo aniversário, significava uma oferta de consolo inoportuna e
desprezível. Uma vez rompido o vínculo, não haveria possibilidade de retorno nem clemência
pelo abandono então provocado; ao seu redor, ela construía um muro intransponível para
afastar as ofertas de comiseração: “Pois eu li com desprezo a mensagem – simplesmente
porque eu detesto ex-namorados, acho todos uns cínicos, não quero contato, não quero saber.
Ex-namorados são a lembrança da minha dor, a espetada na ferida. [...]” (p. 40).
De maneira que lhe restava a busca de outro pretendente, alguém diferente da
experiência pretérita, cujo critério de seleção não raro reincidia na crença ilusória de
promessas infundadas. Até que as esperadas atitudes fossem continuamente proteladas, e aos
poucos o romance antes eterno ruísse sob o peso de um engodo disfarçado de cumplicidade.
A relação sucumbiria ao esvaziamento das expectativas de enlace matrimonial, por parte da
mulher, e, do lado masculino, por conta da manutenção da retórica machista de bigamia
tolerada. O mundo efetivamente já não seria o mesmo após a revolução sexual deflagrada
pelos movimentos feministas; no entanto, a despeito das mudanças substanciais, a maioria
massiva das mulheres - liberadas ou não - continuava a acalentar o sonho do príncipe
encantado em seu cavalo majestoso, que lhes dedicasse amor exclusivo. O paradigma
romântico apresentava-se envolvido por uma aura de modernidade, embora as aspirações
femininas e masculinas de felicidade conjugal continuassem atreladas a convencionalismos
apenas remodelados. A força motriz do mundo continua sob o comando dos homens, pois
percebiam os benefícios de que poderiam gozar ao reconhecer os espaços conquistados pelas
mulheres, desde que não ameaçassem a estabilidade de seu reinado. Desta maneira, a relação
de poder estaria preservada nas relações com base nos antagonismos genéricos, culturais,
econômicos, raciais, étnicos, para citar apenas alguns.
Nos centros de grande adensamento populacional, imersos na chamada pós-
modernidade, os avanços tecnológicos não só acompanharam as reformulações
comportamentais, como imprimiram o ritmo acelerado e a despersonalização do sujeito.
Tempo do excesso: o grande volume de informações, obtido por todos os veículos de
comunicação, em especial por meio da TV, constitui a tônica do momento, que aborda tanto
169
Todas as demais citações subseqüentes referentes a esta obra, serão indicadas no corpo do trabalho, pelo
número da página correspondente, entre parênteses.
211
os aspectos antagônicos ao período anterior (considerado “fora de moda”, “démodé”), como
também, ao mesmo tempo, a eles se refere. A exaltação da máquina, da velocidade e do
dinamismo desenfreado da vida cotidiana predispõe a sociedade ao individualismo
exacerbado e à padronização de perspectivas. Quanto maior a concentração desses indivíduos,
maior a diversidade de olhares e de comportamento, e de alternativas sócio-culturais; assim
como, na mesma proporção, ampliam-se os confrontos e os mecanismos de autodefesa. Era de
paradoxos.
A satisfação dos interesses individuais em detrimento dos coletivos, o ritmo frenético
dos transeuntes dispersos entre estruturas monumentais de arranha-céus, a disposição
labiríntica das vias abarrotadas pela morosidade mecânica e asfixiante da massa automotiva,
retratam o painel da realidade da capital paulista, tão similar ao de tantas outras metrópoles,
latino-americanas ou não. Voltadas para si, pessoas circulam ao largo umas das outras, com
um objetivo definido a ser executado diariamente, alheias a eventuais infortúnios sofridos
pelo cidadão ao lado, por indolência ou temor. A rotina prossegue ao sabor da
imprevisibilidade de um destino de múltiplas faces:
[...] Moro em São Paulo, onde parece que os edifícios é que caminham, passam
andando por mim com seus membros gigantes, seus pés de elefantes. Sequer me
esmagam, passam sólidos, pesadamente desviando de mim, que não sou senão um
cisco, um molambo que o vento atira para lá e para cá, um argueiro no olho, uma
febre: eu que despenco na vida como um limpador de vidraças despenca do alto dos
edifícios amarrado a uma única corda; eu que sou uma aranha e somente um fio me
liga ao mundo. (p. 28).
A animalização dos indivíduos e, por extensão, da própria cidade, sugere um
reposicionamento crítico acerca da antítese conceitual entre civilização e barbárie. Os avanços
tecnológicos e o progresso promoveriam a gradual automação dos seres humanos,
desumanizando-os, ao torná-los cada vez mais estranhos uns aos outros, resguardados nas
suas jaulas domésticas para fugir à selvageria externa. Os vínculos afetivos cedem lugar à
desconfiança; o outro é visto como um potencial competidor na disputa pelo objeto amado,
tornado artigo de luxo no mercado sentimental, sem qualquer garantia, prazo de validade ou
cobertura legal para eventuais prejuízos de ordem emocional impetrados ao “consumidor”.
Contrariamente à civilidade urbana, o amor pertenceria a um território sem lei, selvagem e
instável, em que as partes envolvidas estariam sujeitas a experimentar estados de pleno
regozijo ou de duras penas. Em razão da exposição às imolações de ordem afetiva, a
personagem equiparava-se a animais desamparados, relegados à própria sorte, cujas dores ela
reconhecia como suas: “[...] Eu estou tão ferida, tão ferida de amor recusado que é como
212
quando ferem um bicho e ele não resiste, ainda vivo, quando não o mataram de todo. Eu sou
um urro só, uma dor inteira. Só estou aqui para que alguém me mate, me livre da minha dor
animal. Estou perdida.[...]” (p. 34).
Abatida pelo rompimento com seu mais recente parceiro amoroso, ela também se
sentia fragilizada como uma borboleta deslocada de seu habitat natural. Era como se ambas
tivessem sido surpreendidas em pleno vôo rasante e arrebatadas pelo pára-brisa de um
“alienígena móvel de metal e vidro” (p. 45), em decorrência da desorientação provocada pela
perda. Uma circunstância passível de desdobramentos nefastos, como a morte, motivo pelo
qual o abandono seria não apenas um ato obsceno, mas também criminoso. Enquanto vítima,
ela julgava que algozes dessa natureza não deveriam permanecer impunes: para compensar as
penas e agravos, ela propunha a elaboração de um decreto específico para os romances mal
sucedidos. Ele constaria de normas jurídicas que coibissem “as fraudes amorosas” e a
“usurpação das ilusões”, e resguardasse “o direito humano inalienável e incontestável de ser
amado pela pessoa amada”: “_ Uma pessoa não pode fazer isto com a outra – deveria haver
uma lei, um decreto cheio de artigos, parágrafos, itens e subitens que proibissem esse tipo de
usurpação das ilusões, de fraudes amorosas. Do direito humano inalienável e incontestável de
ser amado pela pessoa amada.” (grifos da autora, p. 31).
Haveria disposições com a justa adequação ao caso particular da personagem:
E deveria haver um parágrafo único sobre a minha dor inteira.
ESTATUTO – Lei n° 0000/Do início dos tempos
Título I: Do Amor
Título II: Do Sexo
Título III: Das Disposições Transitórias
Título I
Do Amor
Art. 1° - O amor abrange os processos formativos que... Diz a filosofia: ‘Se, como
os animais, temos necessidades, somente como humanos temos desejo.’ A essência
dos seres humanos é desejar. Somos seres desejantes. ‘Não apenas desejamos, mas
sobretudo desejamos ser desejados por outros.’
PARÁGRAFO ÚNICO – ‘O desejo não suporta o tempo, ou seja, desejar é querer a
satisfação imediata e o prazer imediato.’
§ 1° - Esta Lei disciplina o amor.[...] (p. 32).
A personagem destaca as disposições mais cabíveis às circunstâncias que ora a
afligem, como a que lhe resguarda o direito de tomar as providências necessárias para a
satisfação de seu desejo mais urgente. O atendimento sexual seria um direito assegurado aos
213
que se entregam por amor, e, ao contrariar tal dever, o infrator estaria obrigado a reparar o
prejuízo contraído pela vítima de abandono. Para saciar o apetite sexual, a personagem
demonstra urgência em substituir por outro o homem que a deixou, alguém que se dispusesse
a prestar-lhe tais favores, segundo a sua conveniência e aos preceitos legais: “_ Eu preciso é
arranjar um novo macho, Charles, para enfiar o pau entre minhas pernas. [...] Foram cinco
anos perdidos, Charles, para sair com uma mão na frente, outra atrás, mas não é ódio mortal o
que sinto. Não é ódio mortal, é tristeza profunda o que me dá. [...]” (p. 34).
Entretanto, enquanto não se consolidasse a substituição do parceiro sexual, seria
recomendável adotar outras medidas para que a personagem expurgasse de sua vida as
lembranças do amante que a havia rejeitado. Casado, ele manteve com ela uma relação
clandestina relativamente duradoura, no decorrer da qual eles compartilharam viagens – uma
delas a Paris -, e uma vida conjugal paralela, em que ele usufruía com freqüência do espaço
doméstico da amante. Ali, ele teria deixado vestígios de sua presença, os quais ela pretendia
apagar no intuito de livrar-se das lembranças que o invocavam; com este propósito em mente,
ela o contata por telefone para exigir que ele retirasse seus pertences de sua casa: “_ Charles,
venha tirar as suas coisas da minha casa! Eu preciso esquecer que você existe.” (p. 36).
Impiedosa, a memória obstruía a fluidez de uma vida renovada, livre dos resquícios
amorosos de outrora. Resquícios que deveriam ser banidos, sob pena de alastrarem seu poder
de domínio sobre o território conquistado: as raízes firmadas pelo detrator deveriam ser
extirpadas, antes de se tornarem motivo de dor e de arrependimento:
[...] É uma tarefa monstruosa, porque a pessoa está instalada lá, como uma raiz
instala e infiltra seus tentáculos no mais profundo da terra, esparramando-se a perder
de vista, numa rede sem começo nem fim, numa meada sem ponta de fio, em nós
que não desatam, como uma árvore de grande caule, de tronco poderoso e áspero e
antigo, que é preciso arrancar pela raiz ou esperar a eternidade que vai levar até que
ela apodreça, tombe e caia. É preciso cortar pela raiz (idem).
Uma vez desprovida da irrigação contínua que o gozo sexual proporcionava, o corpo –
tal como a terra - ressentia-se do abandono. A dor da perda equivaleria a uma imolação física
causada por um corte profundo, cujo sangramento não pudesse ser estancado. Nestes termos,
o abandono seria um ato de covardia e de brutalidade, no sentido de que o ser abandonado
teria sido tão-somente um objeto de prazer temporário para ser deliberadamente deixado ao
léu depois de desfrutado. Via de regra, as relações amorosas teriam sido moldadas a um
sistema mercantilista de intercambio, em que o parceiro (ou parceira) seria cotizado de acordo
com os interesses do mercado, conforme as leis da procura e da oferta. Era preciso, pois, criar
214
mecanismos que protegessem os consumidores das falcatruas e minimizassem os prejuízos
passíveis de ocorrência num ambiente tão competitivo. O decreto sugerido seria uma
alternativa com este fim, embora não extinguisse reminiscências do passado, nem impedisse
as penas e o arrependimento decorrentes da malversação do patrimônio afetivo adquirido.
Para a personagem, ela não teria passado de uma aventura lucrativa para o parceiro, em quem
havia depositado expectativas mais promissoras:
_ Abandonar alguém é um ato de covardia. É de uma brutalidade típica da morte.
Somente a morte pega as pessoas assim desarmadas, de pernas abertas, nuas. Você
já aprendeu a ficar sem mim, Charles. Você sempre soube. Na verdade, eu nunca
passei de um lucro na sua contabilidade amorosa, um lucro dispensável e
desimportante, um lucro supérfluo (p. 38).
O arrependimento constituía um fardo a mais em seu prejuízo. Ela arrependeu-se de
ter aceitado um homem que não a queria de fato; de ter-se deixado iludir contra todas as
evidências de imbróglio; de não ter amado a si mesma tanto quanto a ele; de não ter tido mais
cautela para evitar reincidir nos mesmos erros, como “o de perder tudo sempre” (p. 50).
Apesar do compadecimento, ela não admitia comparações com a “Madeleine bíblica e
santificada da estação de metrô” [de Paris, onde havia estado com Charles] (p. 49), por estar
ciente da imprudência de entregar-se incondicionalmente, como se fosse uma adolescente
desorientada e crédula. Um equívoco vinculado à Madalena, figura sobre a qual incidem
qualificações pejorativas em razão de seu comportamento pouco recomendável socialmente,
via de regra associado ao de uma prostituta. No intuito de contestar a “versão oficial” do que
seria uma “madalena”, a personagem lança mão do verbete constante em dicionário, de modo
a partilhar com o leitor a consulta e o significado do antropônimo encontrado:
Verbete: madalena
[Do antr. Madalena.]
S. f.
1. Mulher dedicada à vida religiosa, em reparação do passado airado ou libertino.
Madalena arrependida.
1. Pessoa que, havendo procedido mal com outra, vem depois dar provas de
arrependimento (p. 50).
Com isso, a personagem pondera sobre o relativismo do conteúdo de certos verbetes,
no sentido de que careceriam de variantes mais abrangentes. Ela, por exemplo, poderia
autodefinir-se como uma “madalena arrependida”, porém sem enquadrar-se em nenhuma das
definições apresentadas. Ela desprezava os julgamentos de conotações moralistas, de modo
215
que se recusava a assumir o papel de “pecadora”, além de não descartar a possibilidade de
repeti-lo. O foco da questão não era o pecado em si, mas a imprudência com que ela se havia
deixado envolver, embora fosse uma mulher emancipada, independente e experiente. Nem por
isso sentia-se constrangida, pois, afinal, ela não estava “neste mundo para agradar a ninguém,
muito pelo contrário” (idem); apenas vislumbrava o dever de arcar com as conseqüências de
suas escolhas, haja vista que não era mais uma menina, mas uma mulher, com “o resto da vida
perdido” (idem). Naquele dia, seu estado de ânimo confundia-se com a situação
meteorológica, ao sentir-se dominada por uma sensação de imobilidade e de desamparo:
“Hoje o dia amanheceu igualzinho a mim: nublado, cinza, apagado por dentro e por fora, uma
tristeza. Não há emergência, pois. Nem ninguém me procurou pelos telefones. Está tudo
intacto e os telefones não tocaram.” (p. 50-51).
Constatada a irreversibilidade do abandono, ela procura desqualificar as virtudes ou
ressaltar as deficiências do alvo de sua idolatria, como tática para conseguir esquecê-lo: “[...]
Eu preciso reduzi-lo a nada, aumentar suas pequenas manias. Eu preciso esquecer.” (p. 51).
Contraditoriamente, porém, ela traz à tona recordações de cada primeira ocorrência em
companhia do amado: primeira carta, primeiro encontro, primeiro beijo, primeiro jantar,
primeira noite juntos, para a qual teria se mantido confinada em casa, para simular uma
virgem enclausurada, prestes a entregar-se pela primeira vez a quem a iniciaria nos prazeres
do sexo. Para evocar uma atmosfera de romance, sem a interferência inoportuna de canções
letradas sobre casos de outrem, ela ouviria apenas música instrumental, mais exatamente,
erudita. Havia optado por Ein Sommernachtstraum [Sonho de uma noite de verão], valsa
composta pelo alemão Mendelssohn (1809-1849), obra rica em efeitos atmosféricos e de
lirismo melódico, com referência incidental para a peça homônima shakespeariana, e que
também inclui a reconhecida Marcha Nupcial: modelo de clássicos românticos que em
circunstâncias normais ela abominaria. Entretanto, o estado de embevecimento ocasionado
pelo amor alterava seu estado emocional, além de repercutir na sua conduta com relação ao
objeto amado.
Ela acabava por reproduzir padrões de comportamento de mulheres apaixonadas, que
além da obviedade romântica, também se deixavam conduzir pelas conveniências do ente
querido para não perdê-lo. Ao temer a perda, ela deixava-se anular numa auto-renúncia em
favor da paixão, que, por sua vez, redundava em cobranças cujas respostas costumavam ficar
bem aquém da expectativa almejada. Amor e medo seriam os componentes básicos da sua
adoração, tal como ela havia expressado em sua primeira carta destinada ao amante: “[...]
Metade da minha vontade em relação a você é de medo. A outra metade é de puro amor.”
216
(p.53). Todavia, o ardor inicial cedia espaço ao desespero, quando ela procurava agarrar-se a
si mesma, para não deixar romper os elos que a atavam à realidade. Ela partia do pressuposto
de que no corpo físico estariam fincadas as raízes da cultura à qual pertenciam originalmente,
de modo que, mesmo fora de seu habitat natural, cada ser carregaria consigo vestígios de sua
identidade cultural. Assim, cada um deles seria o depositário de raízes transplantadas para um
território diverso onde deveriam demarcar o próprio espaço; ali cultivariam a si mesmos a fim
de equacionar o processo contínuo de trocas entre as variantes daquele universo cosmopolita:
“[...] Ele, como eu, não era daqui; vinha de outro lugar – como eu, dessas pessoas que
amadurecem no trauma dos lugares grandes para onde são um dia transplantadas feito árvore,
a raiz pendurada, arrastando no chão, procurando vínculo com um monturo qualquer de terra
onde possa reviver. [...]” (p. 55-56).
A mulher tinha claro o panorama que se descortinava diante dela, seja no aspecto
particular, em que travava uma luta pessoal a fim de obter exclusividade sobre o homem
amado, seja no coletivo, que até então lhe havia exigido perícia para impor-se num contexto
duplamente competitivo e hostil. Afinal, ela era mulher, de procedência interiorana, que trazia
consigo referências díspares nem sempre compatíveis com a modernidade de um grande
centro urbano. Não se deixar pasteurizar pela homogeneização descaracterizadora da
identidade minimizaria os efeitos nocivos provenientes do impacto cultural, e partilhar com
alguém a mesma situação de “exílio”, ainda que voluntário, proporcionaria um alento em
meio à adversidade. O aspecto favorável decorrente dessas particularidades sustentadas em
outro contexto consistiria na possibilidade de se destacarem do plano comum. Neste aspecto,
a linguagem verbal consistia em um desses traços identificadores - incluídos aqui o léxico, o
sotaque, a entonação, entre outros diferenciadores lingüísticos -, que promoveriam uma
resistência efetiva contra a uniformização cultural, além de ressaltar o caráter de diversidade
no seio de uma sociedade massificada. No caso particular da personagem, ela mesma teria
sido atraída pelo modo “diferente” de ser daquele homem, inclusive no seu modo de falar:
“[...] Como não era daqui, tinha um sotaque, palavras e entonação diferentes, que eu achava
de uma sensualidade excitante. E ele tinha um jeito carinhoso de tratar as pessoas, na voz, no
tom – diferente de mim, que eu, em princípio, não gosto de pessoas, sou grossa e grosseira,
rude. [...]” (p. 56).
Apesar da ressalva de ser um imigrante, nada além do nome – Charles - advertia sobre
a procedência exata do amante: tanto poderia ser um estrangeiro, como um brasileiro batizado
com um nome estrangeiro. O que importava, porém, era que ele a resgatava da solidão, e sua
companhia lhe bastava, a ponto de ela descartar todas as demais pessoas, sobretudo as que de
217
alguma maneira a tivessem magoado. Ela as desconsiderava porque, junto a ele, ela faria parte
do restritíssimo grupo das pessoas felizes. Não obstante, desavisada sobre as intempéries da
vida, ou antes, iludida pela promessa de exclusividade, ela se precipita do alto de sua
felicidade ao constatar o abandono. Aquela perda representaria o declínio de sua equivocada
estratégia de conquista e de realização enquanto mulher e imigrante bem sucedida: “[...] Diria
a todas: até logo, não preciso mais de vocês, já me amam. Pois eu trocava tudo para ser igual
às pessoas felizes. Mas não: fui atropelada pela vida, caí, do alto de minhas pernas fracas e no
lugar errado – sou uma imigrante, uma imigrante nunca se recupera da perda.” (p. 56).
Uma vez que a queda se relaciona à rapidez do movimento, à aceleração e às trevas,
mormente resulta numa experiência dolorosa e fundamental. Além disso, ela constitui um
componente dinâmico para a consciência por abranger no seu esquema tanto os aspectos
temíveis da temporalidade, como os aspectos moralizantes e psicopatológicos que a confunde
com a possessão pelo “mal” (Cf. DURAND, 1989, p. 80-81). Do ponto de vista temporal, a
queda nos permitiria conhecer o poder fulminante do tempo, e sob a perspectiva moral,
conteria um caráter punitivo, sobretudo em se tratando de uma mulher, a quem são atribuídos
os infortúnios da humanidade desde a Eva bíblica. No seu caso específico, a personagem teria
cometido alguns pecados imperdoáveis para a moral cristã, entre os quais o de querer usurpar
o marido alheio, o que implicaria corromper dogmas consagrados por instituições religiosas e
jurídicas.
Embora constitua crime, a bigamia masculina goza de uma espécie de salvo-conduto
para tal desvio de comportamento, justificado inclusive pelas “naturais” necessidades
biológicas do macho – e apenas as dele. Ao contrário do homem, à mulher recomenda-se o
recato, a discrição e a obediência, que devem ser redobrados se ela pretende contrair bodas e
cultivar uma harmoniosa vida conjugal. Caso contrário, a ela caberão as injúrias e as penúrias
por ousar romper com paradigmas androcêntricos, historicamente intolerantes e perversos
diante da suposta permissividade feminina. À personagem não lhe faltava coragem, tampouco
abnegação e empenho no projeto de conquista do homem amado, movida pela certeza de que
se apossaria dele com a exclusividade pretendida, mesmo que ele já “pertencesse” a outra
mulher. Não obstante, o repentino rompimento a surpreende e, além da comunicação,
pulverizaram-se as suas mais bem intencionadas projeções de um final feliz a dois:
De um dia para o outro, terminaram os planos de amor. E nós não nos falamos mais.
Nossa comunicação truncou-se num diálogo do ‘não’:
_ Eu não quero mais viver isso...
_ Não quer?
_ Não, não quero. Adeus...[...] (p. 57).
218
Na impossibilidade de ter revertida a situação, ela se debate na tentativa de apontar
responsáveis pelo dano sofrido e exigir ressarcimento. Comprovada a inutilidade da revolta, a
personagem se resigna sob protestos, mas procura, aos poucos, refazer-se do golpe. Antes,
porém, resgata da memória a fase terminal de seu romance, quando começava a deteriorar-se
a comunicação entre eles: “No final, já não nos falávamos; só havia o ruído de nosso lixo
amoroso, somente o nosso desentendimento.” (p. 59). Ou, ainda: “No final, só nos
comunicávamos por via eletrônica (seria esta a verdadeira e dura comunicação?), por
máquinas, a dele numa ponta, a minha na outra – no final só restara o monólogo de cada um,
sem conexão, sem nexo, sem ponte que nos ligasse de fato.” (idem).
Em meados dos anos noventa, eclode no Brasil o fenômeno que já se reconhecia como
a Segunda Revolução Industrial ou como Revolução Digital, a partir da qual alguns dos mais
tradicionais meios de comunicação passam a dividir espaço com as modernas versões
eletrônico-digitais. A última década do século passado testemunha o adensamento de
mudanças significativas, de alcance mundial, mediante o aprimoramento progressivo e a
sofisticação de tecnologias que impõem outros parâmetros de relacionamentos interpessoais.
Com a transformação contínua da realidade, transforma-se também a relação afetiva com a
mesma – com maior ou menor resistência – para, por fim, reconhecê-la como fato irreversível
na sociedade contemporânea.
Na aurora dos tempos digitalizados, novos mecanismos de comunicação são
disponibilizados para o público em geral, que a eles se rende na medida em que o acesso se
torna mais popular. Paradoxalmente, o que se prestava de início a facilitar contatos e agilizar
resultados, acaba por constituir, em certos aspectos, um verdadeiro entrave – não raro,
intencional – ao propósito comunicativo. Na presente circunstância, por exemplo, o casal em
vias de rompimento lançava mão da conveniência dos aparelhos eletromecânicos para expor
de imediato seus pontos de vista, sem as intervenções naturais do interlocutor ocorridas nas
conversações presenciais. Assim, revezavam-se mensagens de uma e de outra parte – dele e
dela –, registradas na secretária ou na caixa de correio eletrônicos, cada um com o propósito
de ora esquivar-se, ora atacar, ora defender-se, valendo-se de manobras discursivas nem
sempre com êxito.
O senso de previsibilidade não os inibia diante de subterfúgios banalizados pelo
excesso de uso – os chamados clichês –, embora tivessem por resultado apenas o
aprofundamento da distância entre eles. Num dado momento, ela teria se ressentido por ter
sido excluída de uma viagem que ele planejava, e o acusava de covardia por omitir tal
intenção. Por sua vez, ele insistia em manter com ela uma relação sem as inconveniências de
219
assumi-la oficialmente: “[...] Podemos ter um encontro especial, diferente, em que cresçamos
nas nossas limitações, nos nossos desassossegos, nos nossos desencontros. Não tenho nome
pra isso. Você me entende?” (p. 60).
Ela revolta-se com a proposta que ratificava a indisponibilidade do amante separar-se
da esposa. Ele pondera que sua intenção era a de preservar a felicidade de ambos e a de
“mudar o mundo”. Ela rejeita a oferta e rebate com a óbvia constatação de quem reconhece o
imbróglio: “[...] Você pode até querer mudar o mundo por fora, no exterior. Dentro você não
muda porra nenhuma. A única coisa que mudou no teu mundo depois que eu apareci é que
você se casou mais. [...] Tua vida é a coisa mais previsível.” (p. 61).
Houve fases em que as mensagens não passavam de uma troca de informações frívolas
sobre o cotidiano ou em contemporizadas declarações de amor da parte dela, que oscilavam
entre a ironia e a crítica em razão da ausência do amado: “Meu príncipe, teu e-mail foi a
melhor coisa que eu podia ter recebido hoje de manhã. Foi como um abraço, teu abraço forte,
quente, do teu corpo firme perto do meu. Me senti abraçada e querida como não me sinto faz
muito tempo. [...]” (p. 67).
A tecnologia digital credenciava-lhes a prevalência do “eu” sobre o outro. Em termos
estruturais, a relação dialógica destes “eus” estaria demarcada pela anteposição dos pronomes
pessoais Eu e Ele para enfatizar a alternância do discurso direto de cada personagem, além
dos convencionais sinais ortográficos. Os pronomes antepostos em alguns trechos do diálogo,
sobretudo na etapa conclusiva do capítulo final, sugere o gradual desaparecimento do Outro
(Ele), enquanto um único Eu (Ela) assume o comando da conversação. Aos poucos, Ele vai
sendo apagado da vida dela: o que ele diz já não lhe importa, até que a voz dela o suprime
totalmente. Em uma das derradeiras intervenções do homem, para esquivar-se de uma
reiterada acusação de omissão e de covardia, ele dispara: “Ele: O que você quer comigo?
Filhos?” (p. 72). Surpreendida pela inesperada insinuação, ela reage indignada e declara que
filhos não fazem parte de seus planos, pois seriam necessários amor e estabilidade financeira
para criá-los. Do último item, ela dispunha; já do amor, ela ainda se sentia incapaz de doar-se
para tal fim. Mais do que isso, ela recusava-se a participar da produção incessante de pessoas,
cujo número aumentava vertiginosamente, num mundo já superpovoado: “[...] Além disso,
esta infinita produção de gente, me provoca náuseas. Eu quase faço questão de ser um
intervalo, uma pausa, um elo perdido dessa corrente infinita. Não quero ter um filho com
você. Filho não é curativo para a solidão de ninguém. [...]” (p. 72).
Ela se nega a assumir o papel de reprodutora destinado à mulher, como primeira e
única justificativa de sua presença no planeta. A fêmea não passaria de um repositório de
220
espermatozóides para garantir a existência de gerações futuras, sob o comando do macho
dominador e provedor das necessidades das crias. O machismo escamoteado por falsos
modernismos fez com que ela, aos poucos, percebesse a dimensão exata da incompatibilidade
entre os dois, e cada vez mais, procurava apoio em si mesma. Ele chega a sugerir a
aproximação das duas mulheres – a esposa e a amante – para que se fizessem amigas, ao que
ela retruca:
Eu:
_ Eu nunca sentei para ‘conversar’ com tua mulher não por falta de coragem, mas
porque eu simplesmente não quis. Isso você não engole até hoje. Não resolvo meu
afeto a três, em mesa de bar, não fico amiga de mulher de caso meu, não quero
saber. [...] (p. 73-74).
E sucedem-se os “eus” desfalcados dos “eles”, empenhados na busca de uma definição
para um romance desgastado:
Eu:
_ No momento, só tenho uma tristeza profunda, como eu senti poucas vezes na vida.
Nem raiva eu consigo sentir. Eu não esperava que você aceitasse uma única palavra
do que eu disse. Esperava exatamente o que você fez: tripudiar da minha cara, da
minha pessoa. [...] (p. 75).
Para, afinal, decretar: “E eu: _ Tripudiar da minha cara e da minha dor é que você não
vai, nunca mais.” (idem). Sua primeira providência consistiu em apagar todos os registros
relacionados ao amante, passíveis de serem encontrados por todos os recantos da casa, a
começar pelo disco rígido do computador. Qualquer vestígio, virtual ou não, deveria ser
extinto, como cartas, bilhetes, presentes, tudo o que testemunhasse o naufrágio de seu
romance. Restava-lhe a memória real, para a qual ela logo trataria de buscar uma solução
plausível, para encobrir o desejo por aquele homem recém-perdido. Sentia-se enferma,
viciada e insana, carente de algum recurso terapêutico que remediasse o arrependimento
alojado em seu cérebro – que não era eletrônico. Privada da vida sexual com quem mais lhe
havia aprazido, ela procura satisfazer seus desejos a partir da ficção cinematográfica dedicada
exclusivamente ao sexo: passa a freqüentar as salas de exibição de filmes pornográficos,
locais públicos onde ainda teria a oportunidade de conhecer alguém. Por outro lado, sob a
proteção do anonimato, ela também adere às salas virtuais de relacionamentos, cuja
abrangência universal lhe concederia um maior leque de opções, sem a inconveniência de
comprometimentos indesejados: “[...] Só me interessava o sexo virtual das telas, os bate-
papos entre desconhecidos que nem ao menos se vêem, que se comunicam pela imaginação,
221
pelas falhas, pelos espaços vazios, pelas lacunas, pelas fantasias da imaginação. Eu estava
disposta a arranjar um amante que me quisesse.” (p. 76).
A realidade virtual se lhe apresentava como uma salvação; através dela procuraria
preencher os compartimentos vazios da realidade tangível ou “real”. Inserida no contexto
interativo, aquela mulher não se intimidava nem se constrangia em lançar mão dos mais
recentes recursos midiáticos que assaltavam o cotidiano contemporâneo. Bastava que
estivessem ao seu alcance, ao seu comando, para ativá-los ou desativá-los em favor de causa
própria. O computador pessoal lhe resguardaria o acesso a um território sem fronteiras por
onde pudesse transitar inclusive incógnita. Por esta via escoaria a sua solidão de mulher
abandonada, que oscilava entre decretar para si a derrocada absoluta, por estar só, ou
reerguer-se da queda sofrida.
A princípio, ela havia imposto a si mesma um estado de incomunicabilidade durante
dez dias, ao cobrir com um pano o aparelho da secretária eletrônica e desconectar o telefone.
Uma estratégia que, antes de querer poupá-la de chamadas inoportunas, pretendia poupá-la da
frustração por constatar a sua inatividade devido à falta de chamadas:
Faz dias que decretei uma espécie de morte a mim mesma, dez dias sem atender
telefone – cobri com um pano, como quem cobre um defunto, o aparelho da
secretária eletrônica. Desliguei o som. Tudo para não ver piscar a luz que indicava
os recados. Dez dias sem ouvir o telefone tocar. Dez dias na mais funesta
constatação de que não me procurariam. (p. 76-77).
Como seu artifício não pudesse perdurar para sempre, os aparelhos são reconectados
após o período determinado. Para sua surpresa, o telefone toca e ela reconhece a voz
masculina que procurava esquecer. A secretária eletrônica intermediava a tentativa de contato,
indiferente aos apelos do homem que exigia o pronto atendimento da receptora humana. Até
que ele desiste e a máquina sinaliza o encerramento da ligação. Ela não cederia à investida de
Charles, que voltaria à baila outras vezes, sempre agoniado pela interceptação implacável da
secretária-robô. Ela havia se transformado num terminal de informação ou, antes, num
terminal isolado de outros terminais
170
:
E Charles ligou de novo. Do meio da sua arrogância contrariada, ele insistiu.
_ ... Não posso atender no momento... (a máquina dura respondeu.)
_ É isso que você quer? Pois é isso que você vai ter. Tudo isso é uma perda de
tempo. Atende esse telefone! Alô!
_ ... Deixe seu recado...
_ Alô! Alô!
170
Expressões utilizadas por NAZARIO, Luiz, 2005, p. 58-59.
222
- ... após o sinal...
_ Você é uma idiota... é uma puta de uma idiota!
_ ... ou mande seu fax...
_ eu quero falar com você, porra, atende!
_ ...
_ ! (bateu o telefone).
_ bip-bip-bip-bip... (p. 78).
O meio de comunicação, paradoxalmente, passa a ser o meio de incomunicação. A
máquina tornou-se uma espécie de prótese do corpo da mulher, cuja função passa a ser a de
alertá-la sobre as chamadas recebidas e, ao mesmo tempo, “protegê-la” das inoportunas.
Houve outras tentativas, mas Charles se depararia sempre com a solicitude impiedosa de um
receptor mecânico - uma identidade temporária que a personagem havia assumido, para
desvincular-se dos fios da memória: “Tempo esgotado. A vida é cruel. Charles falou com a
máquina eletrônica em que eu me transformara. (pois que eu também posso ser cruel. Corro
por fora, um corpo, dois corpos... Ninguém nunca deu nada por mim.)” (p. 77).
Satisfeita por saber-se “procurada”, embora farta daquele jogo de vaidades afetadas,
ela decide desconectar-se do mundo uma vez mais. Desta vez, seu propósito consistia em
realizar um balanço final do que vinha sendo sua vida cuja meta principal teria sido conquistar
para si o homem amado. Por fim, ela conclui que seria capaz de recuperar-se do dolo sofrido
ao longo de uma disputa acirrada entre os amantes, cada um movido pela vã obstinação de
impor-se ao outro. Como numa corrida de cavalos, ela se compara ao menos cotado nas
apostas do páreo, mas que a despeito das expectativas desfavoráveis, como um azarão, ela
supera o favorito com folga e vence a prova. O grande prêmio constaria da reabilitação de si
mesma numa situação adversa, cujo desfecho, afinal, teria sido decidido por ela, mesmo sob
indisfarçável desapontamento. “Eu podia muito bem me recuperar e dizer: _ Eu nem gostei
tanto assim de você; foi mais quando você me deixou que eu senti a perda.” (p. 79).
Apesar do falso desprendimento afetivo, a declaração soava como uma reação – tardia,
mas convincente. Ela se propunha a desfazer de vez a projeção de felicidade no outro, para
assumir a sua individualidade enquanto ser humano pleno e, portanto, imperfeito.
Exclusivamente a ela caberia responder pelos riscos de comandar o próprio destino, a despeito
das deficiências afetivas de que era portadora. Seria ela o início, o meio e o fim de si mesma,
provida do elemento essencial que lhe garantiria a sobrevida, o alimento fundamental de sua
vida: o sangue. Embora considerado um fardo a ser carregado, ela reconhecia nele a marca
indelével da mulher. Fortificada a sua subjetividade feminina, com todos os seus recalques
particulares, ela poderia, por fim, lançar-se a novas incursões no território imprevisível das
relações humanas:
223
O que nasceu e morreu fui eu – eu sozinha, eu sem ninguém. É desta ‘eu’, é deste
sangue que preciso me lembrar sempre, que preciso nunca me esquecer de
recuperar, de levar comigo como única coisa possuída, como único fardo a carregar.
Sobre esta ‘eu’ preciso nunca me iludir de que tem companhia, de que está
acompanhada porque não está, simplesmente nunca esteve.[...] (p. 80).
Somente após reconhecer o isolamento fundamental da existência, ela estaria apta a
restabelecer contato com o mundo exterior, sem receio de expor-se à rejeição. Em tempos em
que o enclausuramento voluntário ou circunstancial passa a obliterar o estreitamento
interpessoal em favor de contatos eletrônicos, a identidade pode dissolver-se na rede virtual
de relacionamentos. Resguardadas as imprescindíveis e irreversíveis benesses proporcionadas
pelo avanço tecnológico, não se pode perder de vista os desvios que apontam para uma
diversidade de orientações singulares que permitam a cada pessoa dizer: Esta, sou eu! - com
todas as deformações e sutilezas ali implicadas.
224
4.5 AS HIPÓTESES DE UM DESTINO
Enquanto criadoras literárias, Valdés e Felinto guardam um estilo bastante peculiar, e
de pronto reconhecível, no manejo das proposições transculturais em seus três níveis de
realização – o lingüístico, o da composição literária e o da cosmovisão. O detalhe reside na
perspectiva feminista que ambas adotam para fazer refletir na sua narrativa o mundo latino-
americano pós-colonial, ou antes, realidades possíveis centradas na mulher latino-americana e
caribenha, com toda sua idiossincrasia finissecular.
As proposições da narrativa transcultural lançadas por Rama, e aplicadas ao corpus em
foco, demonstram sua viabilidade extensiva às gerações mais recentes, salvaguardados os
inevitáveis reajustes. Felinto e Valdés abordam a temática da viagem, do deslocamento
geopolítico, não apenas como um meio de consolidar sua maturidade perante a sociedade, mas
também como um meio de promover o movimento da narrativa em si (VIANNA, 1999, p.
51). Em linhas gerais, as autoras incorporam uma retórica “marginal”, sem dispensar vestígios
escatológicos em algumas passagens (vide Felinto, em O lago encantado de Grongonzo, obra
a partir de agora identificada como O lago...), além da verve “pornográfica” de Valdés, o que
contraria a pudica noção da necessidade de “palavras perfumadas” (RABELL, 1994, p. 147)
para retratar uma realidade pautada em excrescências morais ou para descrever, por exemplo,
o ato sexual. A propósito, em O lago... percebem-se ecos de uma linguagem hiper-realista
171
para relatar com minúcias a imundície nas partes íntimas de homens e mulheres que
perambulam pelas ruas de Brasília, como se fossem captadas por uma lente de aumento.
Em Valdés, o erótico e o doméstico (não necessariamente familiar) constituem
suportes para introduzir o aspecto político nas narrativas. A liberdade sexual feminina não se
atrela necessariamente à união regular, pois casamento e escravidão se equivaleriam, ou seja,
ela desenvolve a antítese da retórica masculina da descoberta e da possessão através do
matrimônio. As metáforas utilizadas em La hija del embajador (obra a partir de agora
identificada como La hija...), diferentemente do linguajar explícito utilizado em La nada
cotidiana (obra a partir de agora identificada como La nada...) para referir-se ao ato sexual,
longe de endossarem vertentes moralizadoras, pretendem, ao contrário, provocá-las. Enquanto
171
Hiper-realismo ou foto-realismo é um termo mais aplicado às artes pictóricas e à escultura, mas que pode ser
extensivo à literatura. Menos do que um recuo à tradição realista do século XIX, o chamado “novo realismo”
se detém na cena contemporânea, e se beneficia da vida moderna em todas as suas dimensões. Pretende-se
atingir uma imagem em sua clareza objetiva, com base no diálogo com a fotografia. O mundo cotidiano é
retratado em seus aspectos banais, com detalhes captados pela observação precisa (vide r.m.e.). Por sua vez,
neste estágio de representação, a realidade o signo se torna mero simulacro, isto é, uma simulação pura, sem
qualquer relação com a realidade. Com a hiper-realidade, o signo se torna mais real que a realidade. (STAM,
2005, p. 220). Nesta narrativa, privilegiamos a intenção do detalhismo fotográfico da autora, como forma de
“revelar” o que normalmente não se vê.
225
paródia de “romance rosa”, seus termos apenas dissimulam adequação para nomear, com
outras palavras, o que sequer deveria ser mencionado, segundo as normativas de decoro
aplicadas a este tipo de texto. Por sua vez, o erotismo (Eros) encontra, nesta narrativa, a sua
contrapartida, Tanatos, incorporado nas sucessivas mortes de entes queridos que acompanham
a protagonista desde a infância. “Maldições” femininas que devem ser igualmente exorcizadas
mediante o redimensionamento dos “poderes” especiais atribuídos à mulher: nela convergem-
se as potências sagradas e profanas da fada e da feiticeira, da mãe e da madrasta, da virgem e
da prostituta. Estigmas pulverizados com a ruptura de estereótipos que impõem ou papéis de
santa intocável ou de “desfrutável”, que permeiam o imaginário universal a respeito das
mulheres, fomentado talvez por uma bem-intencionada ideologia romântica, porém retrógrada
e discriminatória.
Neste aspecto, a linguagem procura jogar luz sobre o território obscuro do interdito, do
“proibido a ser mencionado”, sobretudo por vozes de mulheres, que se rebelam contra a
censura e a autocensura, disseminadas pelo autoritarismo e pelas políticas sexistas. Deste
modo, ambas rompem com a normativa social da linguagem e da representação literária, ao
privilegiarem o componente feminino associado ao princípio transgressor e anti-social através
da pulsão erótica direcionada ao prazer. Um prazer transgressor que se concretiza,
literariamente, na negação das autoras de desempenharem o papel de meras receptoras
(passivas) e de reprodutoras de textos “aceitáveis” ou recomendáveis pela moral
conservadora. Neste sentido, elas não se resignam a se manter sob a “aura sagrada” da
tradição, e, ao que parece, tampouco se sentem constrangidas no reduto da marginalidade para
onde a cultura canônica costuma remetê-las.
Houve um tempo em que a linguagem poética demandava delicadeza e erudição, e
mais rigorosa e inclemente se fazia quando se tratava de produções de autoria feminina: de
uma mulher, esperava-se candura e comedimento. Evidentemente, já há algum tempo, que os
excessos moralistas de outrora são dispensáveis, mas ainda percebem-se algumas seqüelas de
purismos patológicos. Entretanto, em As mulheres de Tijucopapo (obra a partir de agora
identificada como As mulheres...), de Felinto, Rísia não hesita em adotar uma terminologia
agressiva para extravasar sua fúria
172
, na medida exata de sua indignação contra as injustiças
sociais e do desamparo. O mesmo ocorre em O lago..., com a mencionada incursão pela
172
O estilo raivoso (a “raiva feminina”) é considerado, por algumas críticas literárias, um traço inerente à
escritura feminina, para manifestar sua proposta “destruidora”, e que pode manifestar-se de forma explícita ou
diluído em frases apaixonadas, complexas ou de estilo elegante. Este argumento parte do pressuposto que as
feministas sempre estariam enfurecidas. Contudo, segundo Mijail Bajtin, a raiva não seria a única atitude
revolucionária que está ao nosso alcance, pois o poder do riso pode ser igualmente subversivo (Cf. MOI,
1988, p. 52).
226
escatologia, e em Obsceno Abandono – amor e perda (obra a partir de agora identificada
como Obsceno...), cuja protagonista se revolta contra o abandono do homem amado.
Tal despojamento também ocorre em La nada... e em La hija..., de Valdés, para tratar
da sensualidade, da temporalidade e do cotidiano, sem dispensar o tom sarcástico e irônico. A
propósito, ambas as autoras não dispensam o humor (às vezes um tanto invertido) para
descrever situações esdrúxulas, como, por exemplo, o episódio das estátuas nuas no quarto
proibido, descobertas por Yocandra quando criança, em La nada....Seja como for, as autoras
demonstram possuir um estilo peculiar, facilmente reconhecível, para veicular a sabedoria
feminina – desde tenra idade - que costuma enveredar-se por caminhos ziguezagueantes para
alcançar seus propósitos.
Com respeito à estruturação ou à composição literária, Valdés e Felinto valeram-se do
monólogo interior, em maior ou menor grau, e da pluralidade dos planos temporais, por meio
de flash-backs, premonições, sonhos ou outros recursos estilísticos. Com eles, avançavam ou
retraíam a ação diegética, numa recorrente assimilação das técnicas cinematográficas. As
dimensões temporais entrecruzam-se, sobretudo em La nada..., de Valdés, e em As mulheres...
e O lago..., de Felinto, em que o passado das personagens é mostrado mediante o resgate de
lembranças de infância, a fim de reorganizá-lo, entendê-lo e transformá-lo, para, a partir do
presente, imprimir uma reação contrária às prerrogativas autoritárias do poder que se querem
imutáveis e que incidem diretamente no futuro.
Entretanto, mais do que revelar uma memória auto-referente
173
, meramente
autobiográfica, as recordações também expõem o histórico de um grupo social no qual as
protagonistas se inserem. Yocandra, em La nada..., institui um eu que denuncia pela própria
voz o isolamento e a imobilidade impostos por fatores externos, que afetam toda a
coletividade, ao passo que o eu de Rísia, em As mulheres..., resgata sua história de retirante
(que se desloca por imposição externa), como um destino recorrente do povo nordestino.
Talvez a personagem anônima de Obsceno... seja, curiosamente, a que mais guarde
semelhanças com Felinto; afinal, a autora pernambucana, apesar das rusgas com a capital
paulista, fez dela a sua moradia. O mesmo ocorrendo com Valdés, que vive em Paris.
Não obstante, a volta ao passado lhes permite estabelecer com o leitor uma relação de
confiabilidade, em que ele acompanha a trajetória das personagens através do depoimento das
173
Em La hija... existe o que se poderia chamar de antimemória, pois a personagem Daniela quer precisamente
esquecer de seu passado, embora o reafirme toda vez que quer negá-lo (porque seu passado está, de fato,
nela). Será através da lembrança que, no final, ela pondera sobre os recentes acontecimentos, como resultado
de uma história que não só recuperou como repetiu, e que está em suas mãos modificar.
227
mesmas sobre si mesmas, num determinado contexto. Assim, o emprego da primeira pessoa
do singular nas narrativas confere aos “depoimentos” um teor de verossimilhança regido por
experiências subjetivas, autocentradas. Se, por um lado, confirmam provocativamente a
crítica (de intenção quase sempre desabonadora) acerca da “vocação” autobiográfica da
literatura produzida por mulheres, por outro, legitimam tal vocação “egocêntrica” ao delegar a
esse eu a “autoridade” (no sentido de autoria) de narradora-personagem que assume para si o
ônus de um discurso auto-referente, isto é, “revelador” de si mesmo.
Com relação ao espaço, há uma discrepância nítida entre as obras. Em La nada...existe
uma resignação imposta aos habitantes de uma ilha que se quis um paraíso e, no entanto,
tornou-se uma ilha-prisão. Yocandra transita neste contexto claustrofóbico, onde seu
cotidiano vigiado e de privações deixa-lhe poucas alternativas de expressividade. Ela
privilegia a moradia, o lugar onde pode manifestar-se mais livremente, sobretudo no seu
“refúgio hexagonal”, onde desfruta de uma posição privilegiada de observadora (ativa): o
panorama que se descortina à sua frente é uma criação sua, uma paisagem da qual ela é a
pintora verbal, com uma visão multifacetada de mundo, que lá fora se move. Em La hija...,
longe da realidade fechada cubana, Daniela deixa-se envolver por Paris, cidade cosmopolita
por onde estrangeiros de todas as partes do mundo transitam livremente, imiscuídos com os
habitantes locais.
As obras de Felinto estão delimitadas por um triângulo espacial, formado por Recife
(ou cercanias, como Grongonzo e Tijucopapo), São Paulo e Brasília, um circuito por onde se
movem as protagonistas, num movimento migratório, ora centrífugo ora centrípeto.
Predominam os ambientes externos, tanto na área urbana como na rural, embora esta
“liberdade” de locomoção não implique necessariamente em liberdade de escolha. Ambos os
países, Brasil e Cuba ainda imputam à população medidas sistematicamente calcadas em
motivações de sobrevivência, por conta das condições degradantes de vida, da violência, da
ignorância, ou ainda, por conta da censura. Um panorama que contraria a idéia de
modernidade e de democracia que as nações latino-americanas têm cultivado, apesar dos
receios que esta nova ordem mundial possa suscitar.
Aliás, o temor transcultural à “erosão modernizadora” transplantada para a literatura,
parece apaziguar-se de certa maneira, mesmo nas obras de Felinto - explicitamente contrária à
modernização indiscriminada. Ambas as autoras endossam técnicas consideradas
“vanguardistas”, que fogem ao padrão da linearidade. A fragmentação narrativa de que
lançam mão reflete este estado de ânimo [fragmentado], sem, contudo, pretender uma
composição forjada por malabarismos discursivos: neste aspecto, dispensa-se a inclusão do
228
leitor na categoria de cúmplice (macho) ou fêmea
174
, segundo uma classificação de Julio
Cortázar com relação aos leitores da sua obra Rayuela. Desprovidas dessa motivação sexista,
as autoras tão-somente levam a bom termo a justaposição de fragmentos dispersos (exceto em
Obsceno..., de Felinto, de estrutura mais linear), que o leitor, gradualmente, será capaz de
reorganizar para sua compreensão. Ironicamente, um recurso a princípio refutado pelos neo-
regionalistas de outrora, mas logo revisto e incorporado nas letras latino-americanas para
servir ao seu afã parricida de autores avessos a tradicionalismos inócuos.
Todavia, essa fragmentação é mais convincente como demonstração de um sintoma
característico da pós-modernidade do que de intenções inovadoras. Mesmo porque já não
haveria nenhuma novidade que a justificasse como tal. A inovação incide sobre a abordagem
de cunho “desconstrutivista” de temáticas tradicionalmente associadas à escritura feminina,
como, por exemplo, as “novelas rosas” (em La hija...). Dispensa-se o sentimentalismo piegas,
embora se preserve o caráter sentimental, sempre associado ao erotismo, que procura desfazer
uma relação com a figura masculina meramente de submissão e de queixa, ao reivindicar para
si o seu lugar na sociedade. Paralelamente, enquanto textos de uma geração enquadrada na
pós-modernidade, o que se pretende não é romper com uma tradição para fundar outra,
tampouco a repetição de procedimentos de outrora, mas a linguagem plural, a diversidade das
formas, a mudança contínua.
Recorrente também nas duas autoras é a presença do sangue, que sugere uma espécie
de auto-sacrifício da mulher para estabelecer-se a si como sujeito e afirmar continuamente a
sua potência literária. Um sangue que demarca a sua especificidade não só de gênero, como
também de sujeito submetido à exploração e ao abuso, seja por mecanismos androcêntricos de
poder, seja pela investida cultural eurocêntrica, desde a época colonial. Assim, essa literatura
pode expressar-se como um processo iniciático de libertação, de restauração de um caótico
mundo latino-americano, no centro do qual as protagonistas femininas se fazem carne (real) e
espírito (ficção), ao mesclar o reflexivo e o emotivo, o silêncio e a loquacidade, a proibição e
a transgressão. Neste aspecto, o sangue feminino converte-se num “sangue literário” pronto
para macular a virgindade asséptica de uma página em branco. Por sua vez, o sangue vertido
no aborto sofrido por Daniela, em La hija..., dá margem a duas possibilidades contraditórias.
A primeira pressupõe que, com o aborto, não houve miscigenação possível para apaziguar o
setor primitivo ou bárbaro ao qual Daniela, como cubana, terceiro-mundista, pertencia; ou
174
São categorias propostas por Julio Cortázar: o primeiro, capaz de ler as seqüências de Rayuela (Jogo da
amarelinha) em ordem não-linear, e a segunda, relegada a uma leitura consecutiva por sua inabilidade de
“saltar” com o texto; ou seja, uma nomenclatura que sustenta o estereótipo de um princípio masculino “ativo”
e uma condição feminina associada à passividade (RODENAS, 1994, p. 63).
229
seja, ela não estaria suficientemente à altura para fundar uma família em que as diferenças
étnicas fossem reconhecidas e superadas. A segunda compensaria a primeira, ao despertar a
personagem de uma ilusória veneração que culminou na sua entrega incondicional ao
civilizado e aventureiro europeu. Com isso, verteu-se mais “sangue latino” ou, mais
exatamente, sangue de mulher latino-americana, cuja conseqüência foi mais um infanticídio
brutal e desnecessário.
No plano das ideologias, ambas ratificam a resistência à dominação paternalista e
androcêntrica, independentemente de estarem sob um regime ditatorial ou democrático
175
. As
autoras assumem sem pudor as conquistas obtidas por elas, segundo a sua realidade, apesar de
todas as pressões contrárias ainda fortemente imbricadas na estrutura social brasileira e
cubana. Entretanto, o discurso de Valdés admite um caráter denunciativo das contradições,
incoerências e perversidades de um regime que, ironicamente, serviu de modelo de resistência
contra o imperialismo estrangeiro (mais especificamente contra os Estados Unidos) para
vários países latino-americanos, às custas de uma ditadura quase cinqüentenária. Além disso,
evoca a condição de ostracismo dos cidadãos cubanos, submetidos a um confinamento
diariamente controlado por forças aliadas internas, em prol da manutenção do poder
autoritário de Castro. Ela contesta esse socialismo despótico, embora não proponha o
capitalismo como substitutivo. Antes, seu ataque direciona-se à falta das liberdades
democráticas instituídas por um regime que, entre outras, cerceia a liberdade de expressão.
Em contrapartida, Felinto endossa a retórica esquerdista, antiburguesa e avessa à
relação assimétrica e hierárquica entre a periferia e os grandes centros urbanos brasileiros –
mais exatamente São Paulo e Brasília -, que se converteram nos destinos preferenciais dos
retirantes do Nordeste e onde, em geral, encontraram hostilidade e frustração. Não obstante,
ao considerar o desfecho das tramas, nota-se, nas obras de Felinto, uma gradual reformulação
de conceitos: passa-se do radicalismo extremo ao moderado, motivado pela dúvida da
protagonista com relação às suas convicções, para, por último, admitir concessões, ainda que
se preserve um irredutível lastro crítico acerca da modernização desumanizadora. Afinal, a
protagonista Anônima, de Obsceno..., permite-se um convívio, não de todo pacífico, mas
deliberadamente condescendente, com a modernidade real e virtual de São Paulo, com a qual
interage. Apesar de desaparecida na multidão, de ser apenas mais um ponto anônimo admitido
no convívio diário com milhares de outros desconhecidos na metrópole paulista.
175
Observe-se que a democracia no Brasil foi restabelecida em 1985, e a delimitação temporal da tese situa-se
nas décadas de 1980 e de 1990 (tempo diegético, entenda-se). Ou seja, à época da publicação de As mulheres
de Tijucopapo (1984), ainda persistia a ditadura direitista, com o general João Figueiredo na presidência,
cujas seqüelas ainda perduraram por algum período pós-democratização.
230
A partir dessa perspectiva, seria possível condensar o processo evolutivo das três
personagens em um único, cuja etapa inicial se fixa em Rísia, em Tijucopapo, com sua índole
revolucionária, passa por Deisi, em Grongonzo, dividida entre ceder, resistir ou “negociar”, e
a Anônima, que, sem dispensar a postura crítica contra a desumanização das relações, afinal
conquistou seu espaço na grande metrópole paulista. De um ponto de vista burguês, ela
venceu; de um ponto de vista antiburguês, ela desapareceu.
Isoladamente, porém, em As mulheres... existe uma dimensão heróica, épica, em que
Rísia, aliada às mulheres guerreiras e revolucionárias, revolta-se contra qualquer espécie de
opressão, individual ou coletiva. Além disso, ela assume uma missão apaziguadora ao fazer
de Lampião o instrumento da sua luta maior, quando lhe dita a carta para que ele a escreva,
usando portanto as palavras em vez das armas. Em O lago encantado..., Deisi também retorna
às origens, mas após um longo período de ostracismo voluntário, demonstra certa disposição
em restabelecer vínculos com Brasília (na figura dos amigos), sem, contudo, admitir a
interferência de outras mulheres. Uma postura que endossa as palavras de Woolf, ao afirmar
que “mulheres são duras com mulheres”, que “as mulheres não gostam das mulheres”
(WOOLF, 1985, p. 145), o que dificulta a sua incursão em movimentos solidários em prol da
causa feminina.
Por outro ângulo, cada uma das cinco protagonistas – as de Valdés e as de Felinto –
constituiria um universo particular à parte, concebido na sua plenitude, resguardadas em cada
uma a sua especificidade. Tal premissa reitera a multiplicidade de perspectivas possíveis
segundo as expectativas de cada personagem com relação ao contexto e ao grau de
envolvimento na promoção de uma mudança pessoal, consciente.
O corpus abordado constitui um mosaico que não se esgota em si, mas apresenta
algumas entre outras tantas possibilidades de perspectivas retratadas por mulheres latino-
americanas que buscam consolidar sua emancipação e autonomia. Mulheres que se
fundamentam em valores centrados no feminino (“feminino-cêntricos”) – sem, contudo,
desprezar a aliança masculina -, e que repudiam a disponibilidade ou “disponibilité” (termo
introduzido por PRATT, 1999, p. 281), conduta estreitamente associada à parte mais submissa
numa relação. Com isto, estabelece-se um compromisso com o não-conformismo aos modelos
impostos, cuja força motriz reside na conquista da liberdade de escolha – social e sexual –
para “contra-atacar” as constantes investidas desestabilizadoras. Felinto, por exemplo, busca
na figura mítica das amazonas o vigor aguerrido e imponência para catalisar a disposição
revolucionária das mulheres provenientes de sociedades “primitivas”. Neste caso, o estágio
231
supostamente “selvagem” da emancipação feminina latino-americana, pressupõe, por sua vez,
uma reação contra ideologias impositivas, sejam elas de ordem social, política ou cultural.
Salvaguardadas as discrepâncias ideológicas entre as autoras, preserva-se porém o que
mais as aproxima, que seria a busca de uma redenção mítica que, na prática, se converteria na
abolição dessa espécie de fardo cósmico lançado sobre os ombros femininos desde priscas
eras. A solidão, o contar consigo mesma para construir o próprio caminho seria o início de um
processo de expiação, de mergulho em si mesma, para só então soerguer-se do limbo, da
lama, e recuperar-se para enfrentar os desafios diários de um novo e globalizado milênio.
Invariavelmente árduo, este processo pode, se não romper, ao menos limar os ásperos grilhões
que nos atam a todos a uma curiosa e inevitável cadeia humana.
232
5. CONCLUSÃO
Marginal dos marginais, a mulher, the nigger of the world [a escrava do mundo],
(como professava John Lennon em uma canção intitulada woman is the nigger of the world,
de 1972), reluta contra as intempéries da vida, em qualquer parte do planeta. Enquanto latino-
americanas, as mulheres ainda têm muito a conquistar para superar preconceitos de todas as
ordens, não só por parte dos homens, como também das próprias mulheres, tão afeitas às
comodidades de um patriarcado ao mesmo tempo protetor e anulador.
Assim, o outro, o estranho não se restringe apenas àquele que vem de fora, o
estrangeiro, o que fala outra língua: o outro é o que não me vê, é o que oprime, é o que
explora, é o que abandona. O outro é o que nos quer anular. Contra este ser estranho, é
preciso lutar, relutar, investir com todas as forças para superar a sua arrogância, a sua falta de
escrúpulos, a sua empáfia. E a literatura pode ser uma ferramenta eficaz no combate a estas
diferenças tão corrosivas que infectam o tecido social, que geram intolerâncias das mais
diversas ordens, promovem discordâncias, incentivam preconceitos, incitam à guerra.
Nos tempos atuais, a despeito de vivermos numa espécie de ilusória trégua milagrosa,
em que a dominação parece dominada, nos deparamos com exemplos diários que reforçam a
mitologia androcêntrica – visível sobretudo pela ostensiva violência imiscuída na sociedade -
e com indícios reveladores de um persistente colonialismo cultural que ainda permeia o
imaginário coletivo do continente. O latino-americano – mesmo aquele pertencente à camada
letrada – ainda se enxerga com o olhar que o europeu lhe descreveu, e, por isso, parece
convencido a ocupar uma eterna posição subalterna por fazer parte de uma população que ele
julga ser inferior à européia, tal como lhe foi condicionado a pensar.
A despeito da chegada da modernidade à América Latina – ainda que assimétrica –, a
Europa permanece como centro cultural e econômico privilegiado, mesmo porque a
modernidade teve suas bases fincadas na Europa. Afinal, a grande maioria dos movimentos
contestatórios - artísticos, sociais ou políticos – nasceu em solo europeu e ramificou-se mundo
afora. Se na era da conquista luso-hispânica a civilização européia impôs-se pelo poder bélico,
e na fase das lutas pela independência das colônias impôs-se pelo poder econômico anglo-
francês, na contemporaneidade ela reitera sua hegemonia por vias culturais. Panorama
semelhante descortina-se na relação entre a mulher e o homem, pelo caráter
predominantemente androcêntrico das estruturas sociais, apesar dos irrefutáveis avanços
promovidos pelos movimentos feministas.
233
Nestes termos, a manutenção da subalternidade latino-americana se equipara à da
mulher, no sentido de que ambas, de um modo geral, constituem as partes sobre as quais os
poderes patriarcais e metropolitanos se fazem mais ostensivos. De um lado, pela milenar
secundarização do papel da mulher, agravado na circunscrição latino-americana, desde o
advento da conquista. A habitante autóctone, na figura da índia, sucumbiu - à força ou por
consentimento - às investidas sexuais dos conquistadores e colonizadores, para quem a índia
(e os índios em geral) se igualava a animais passíveis de serem domesticados, civilizados.
Durante o regime escravocrata, as negras serviam aos senhores, casados ou não, convencidos
das suas prerrogativas de patrão, que lhes conferiam a posse e o usufruto pleno de seus
escravos e escravas. No longo transcurso do processo de colonização e de independência do
continente, cuja economia era majoritariamente agrária, a família constituía-se como um clã,
com a esposa, eventuais (e disfarçadas) concubinas, filhos, parentes, padrinhos, afilhados,
amigos e outros agregados submetidos à proteção venerada e temida do patriarca. Temida,
devido ao método despótico com que controlava a vida da mulher e dos filhos, como se
fossem parte de suas propriedades; venerada, por encarnar, no coração e na mente dos
subordinados, todas as virtudes e qualidades desejáveis em um homem respeitável
176
. Dentre
tais virtudes figurava a retórica, a arte do bem-falar, visto que persuadir, convencer e dissuadir
representavam as chaves mestras da política, do comando, do governo, do controle. À mulher
restava a discrição e o silêncio.
Aos primeiros sinais de modernização industrial e com o maior volume de capital
estrangeiro rompeu-se o isolamento mantenedor do domínio absoluto do patriarca. A nova
realidade obrigou-o a ampliar seus negócios em direção aos emergentes centros urbanos, onde
deveria necessariamente relacionar-se com os investidores estrangeiros, sob pena de ver
sucumbir seu patrimônio diante da irrefreável onda progressista. De certa maneira, os aportes
econômicos prefiguraram uma “revolução” – ainda que tímida – nos costumes de uma
sociedade provinciana, de característica rural, ao reduzirem o império do patriarcado local, em
razão do estreitamento do contato com a cultura metropolitana européia. Em contrapartida,
asseverou-se o império do patriarcado estrangeiro, não só pelo acirramento da dependência
em relação aos credores europeus, como também pela desdenhosa vocação “protecionista” da
Europa que evoca sua missão civilizatória contra a barbárie do novo e despreparado
continente americano. Com povos predominantemente carentes de instrução e impedidos de
aceder a salários mais justos para a conquista e preservação de sua autonomia e de seu bem-
176
Vide r.m.e..
234
estar social, a América Latina, tal como a mulher, ainda amarga a desconfortável condição de
subdesenvolvimento, de contraparte marginal com relação ao centro, soberano e manipulador,
conforme as premissas androcêntricas e metropolitanas.
Seriam necessárias algumas providências de ordem política e intelectual capazes de
subverter esta condição histórica de marginalização, sem jamais prescindir de inspiração
crítica e autocrítica. Crítica, para reconhecer os mecanismos mediante os quais as instâncias
de poder fomentam e justificam a ordem estabelecida entre dominados e dominadores;
autocrítica, a fim de rever os procedimentos (ou a falta deles) com os quais os dominados
contribuem para sua própria dominação. Paralelamente, recomenda-se cautela nas abordagens
de modo a evitar condenações precipitadas de conservadorismo, assim como evitar propostas
revolucionárias falseadas e inócuas. O processo de desconstrução da dinâmica da dominação
(masculina ou metropolitana) partiria, a priori, do âmbito doméstico, através da atuação da
mulher, para, a seguir, estender-se ao domínio público. Ou seja, a transformação social
demandaria uma motivação pessoal para levar a efeito uma mobilização de maior amplitude,
em que o núcleo familiar constitui o local privilegiado de onde e para onde o poder
transgressor se move. Uma vez que o indivíduo é um ser social que se constitui através de
relações intersubjetivas com os demais membros da sociedade, deve partir deste sujeito o
desejo, ainda que utópico, de romper com as amarras de uma estrutura sociopolítica opressora
e exploradora.
Localizar o núcleo familiar como local de ações revolucionárias significa reformular a
sua configuração convencional a partir de uma perspectiva doméstica, interna, e não externa,
“a partir de” um olhar forâneo, como admitiu Mignolo. Haveria um mosaico de possibilidades
e não uma única, como receita pré-definida, para promover mudanças efetivas no círculo
social. A mulher “moderna”, via de regra metropolitana, há muito não se confina em casa para
cuidar exclusivamente dos filhos e do marido, como lhe havia sido impingido como
prerrogativa feminina que ela deveria assumir. Não obstante, como se sabe, a modernidade
não constitui um estágio alcançado homogênea e plenamente em todos os rincões do planeta,
e tampouco o seria na América Latina e no Caribe, cuja realidade está imersa numa profunda
disparidade socioeconômica, em especial nas zonas afastadas dos grandes centros urbanos. Na
verdade, grande parte das mulheres latino-americanas, mesmo as metropolitanas, ainda vive
sob o jugo patriarcal, imiscuído de forma explícita ou subliminar nas relações interpessoais,
nos segmentos públicos e privados. A modernidade não trouxe consigo a ruptura automática
com os setores mais conservadores – para não dizer retrógrados - da sociedade; em certa
235
medida, apenas alterou a escala de valores, que continua a favorecer amplamente os preceitos
masculinos.
Complexo, contraditório e situado numa zona periférica do planeta, o Brasil dispõe de
uma diversidade cultural e econômica, em cuja abrangência existe uma São Paulo que rivaliza
com outras metrópoles estrangeiras, enquanto há lugares ainda submersos numa estrutura
socioeconômica arcaica e sub-humana. O Nordeste brasileiro constitui o espaço geopolítico
de onde provém o maior movimento migratório, devido aos baixos índices de
desenvolvimento econômico e social da sua população. Os locais situados no entorno da
capital pernambucana – Tijucopapo e Grongonzo – conformam um mundo pequeno, estreito e
periférico que contrasta com a amplitude social e cultural da metrópole, razão pela qual as
personagens de Felinto buscam a capital paulista motivadas pelo desejo de “ganhar o mundo”.
Independente dos resultados alcançados coincidirem ou não com as expectativas iniciais, o
simples fato de correr o risco denota disposição para reagir contra as forças alienantes que
alimentam a submissão. O movimento das personagens descreve parodicamente a “revolução
feminista” localizada na periferia de um país latino-americano: uma espécie de feminismo de
raiz, que nasce e cresce longe das teorias acadêmicas, como reação instintiva contra a
opressão masculina e a hegemonia metropolitana.
Em Cuba, o regime político ditado por Fidel Castro recrudesce a situação opressiva da
mulher, submetida não apenas a uma dominação masculina, como também a um ostensivo
controle estatal. O paternalismo “protetor” mantém incomunicável o clã ou a família nacional
para “protegê-la” das influências corruptoras do império do norte; e para tanto, estabelece a
instituição do temor ao Pai, ao Eu supremo que castiga exemplarmente os filhos e filhas
rebeldes que, antes de tudo, lhe devem reverência e obediência. A Palavra, neste contexto,
mais do que nunca fornece a contrapartida imprescindível para enfrentar o autoritarismo que
censura e pune as opiniões contrárias às suas determinações. Paralelamente, ao salientar as
dificuldades diárias de uma mulher comum e consciente que vive sob um regime ditatorial,
Valdés expõe o lado cruel de uma revolução pautada na intolerância, na violência com relação
aos oponentes, sejam eles externos ou internos. A mulher cubana retratada por Valdés
acumula fardos sobre os ombros, que dificultam de forma mais contundente as tentativas de
orientar-se segundo as próprias conveniências.
Nestes termos, a individualidade e a mobilidade femininas constituem um avanço
sobre as contenção pudica que só faz ressaltar o despotismo da fidelidade cega ao Pai. Por
conta disso, a sexualidade empreende um papel decisivo enquanto expressão de liberdade e de
manifestação da individualidade e até mesmo enquanto representação do caráter sensual ou
236
mesmo lascivo da identidade latino-americana e caribenha. A propósito, diferentemente do
que se poderia considerar como um aspecto dissoluto da narrativa feminina latino-americana
contemporânea, a manifestação explícita da sexualidade constitui mais um ato contestatório
do que um ato de obscenidade gratuita. A literatura feminina já não se atém a princípios
moralizantes; ao contrário, pretende confrontá-los e desestabilizá-los, de modo a reiterar para
a mulher o direito ao prazer sem culpa e sem falsos pudores. Neste sentido, o processo
transcultural por que passaram todas as personagens acionou uma dinâmica interna e
transgressora capaz de promover transformações com desdobramentos coletivos, sociais,
ampliados pela capacidade criativa da mulher via literatura.
Através dessas narrativas, descortina-se um universo feminino que guarda uma
especificidade latino-americana veiculada pelo jogo estético e ideológico em seu discurso. O
papel “reprodutor” atribuído à mulher extrapola os limites do círculo biológico, para
manifestar-se no intelectual e simbólico, por meio do qual ela (re)produz um universo
ficcional, não necessariamente idealizado, mas pautado na realidade latino-americana. Tal
como a masculina, a população feminina latino-americana consolida-se como mestiça
precisamente pelo aspecto inter-racial e transcultural, no qual a mulher, em escala
progressiva, teve um papel determinante. Afinal, coube às índias, às negras, às euro-
americanas ou criollas, entre outras, a dinamização do processo populacional do continente,
por conta dos filhos que, não raro, foram obrigadas a parir, sem qualquer escolha.
Se antes a mulher estava excluída da elite intelectual, onde se traçavam os planos da
literatura nacional, mantida confinada à esfera doméstica, a mulher contemporânea ressalta
que esta “domesticidade” nem sempre implica apoliticidade e passividade. Felinto e Valdés
comprovam ser desnecessária uma “virilização” da literatura para compensar a posição
marginal tanto da mulher quanto do continente latino-americano ou para tratar de questões
nacionais. Do seu “refúgio hexagonal” em Havana, da sua “casinha branca” no interior
nordestino ou do seu apartamento numa avenida paulista, a mulher pode promover
transformações “letais” na estrutura social, sejam elas de cunho liberal ou revolucionário.
Embora reconheçam que ainda prevaleça o domínio das instituições masculinas (ou
masculinizadas) e o continente latino-americano ainda se ressinta de um colonialismo
cultural, Felinto e Valdés defendem que o mundo periférico – feminino e continental - não
pode mais ser objeto divertido ou miserável de um olhar de quem se crê superior. Não com o
intuito de transformar o marginal num novo centro, mas de desfazer as certezas absolutas dos
sistemas tiranizantes, autocentrados nos domínios masculino, neocolonial ou ditatorial.
237
Para tanto, não dispensaram lançar mão da mitologia, do pré-lógico, sem receio de
desviar a atenção para “nuvens vãs”, mesmo porque dessas nuvens partem as chuvas
fertilizantes, assim como as trovoadas devastadoras, segundo uma metáfora de Durand (1980,
p. 293). Assim, as autoras reabilitam alguns mitos femininos (como o das Amazonas, por
exemplo), e reelaboram mitos antifemininos (como o são a maioria dos bíblicos), assim como
as fábulas que endossam o domínio masculino (como o do príncipe encantado nos contos de
fadas). Pois o imaginário e o mito são elementos inalienáveis à condição humana, cuja
consciência jamais se livrará dessa “honra poética” que consiste em opor-se ao nada do tempo
e da morte. Assim sendo, o universo ficcional criado pelas autoras expressa cada uma a sua
realidade enquanto mulher latino-americana, tão próxima à realidade cultural desta América
Latina-mulher.
Neste universo, há interrogações sem respostas conclusivas, sem histórias fechadas: ou
volta-se ao início, num movimento circular, ou resvala-se num final reticente. Uma ficção que
não pretende representar mimeticamente o mundo, mas apropriar-se de uma realidade para, ao
mesmo tempo, transgredi-la, redimensioná-la. Daí a porosidade das fronteiras entre a
invenção e a realidade, que permeia as narrativas de Felinto e de Valdés. Afinal, não se trata
mais de antigos relatos de viagem nos quais os observadores estrangeiros descreviam, do alto
de sua soberba, as impressões “empíricas” sobre uma exótica terra de selvagens. Trata-se de
mulheres que, procedentes de territórios periféricos, captam com olhar crítico a realidade que
as circunda e a transcrevem com olhar literário, auto-reflexivo, sem prescindir do político e do
histórico. Elas procuram escapar à homogeneização e ratificar as diferenças existentes na
cultura latino-americana, que, pela sua característica híbrida, multicultural, não poderia
reduzir-se a uma única identidade, igualmente homogênea. Ao contrário, as obras propõem
uma certa anarquia identitária, que não significa não-identidade, mas identidades baseadas na
diversidade, múltiplas e provisórias.
Por conta disso, Felinto e Valdés não constituem, nem poderiam constituir, uma voz
uníssona no cenário literário latino-americano nesta chamada pós-modernidade. Polêmicas,
elas são, ao mesmo tempo, alvo de ríspidas e de elogiosas críticas, e costumam despertar a
indignação e a solidariedade entre seus pares e o público-leitor. Não são uma unanimidade.
Sua índole “marginal” as afasta da esfera academicista, porquanto não coadunam com os
rigores de normas conservadoras da língua e da arte literária, mais condizentes com a “alta
literatura”, canonizada. Seu mérito consiste em pôr em xeque as artimanhas utilizadas pelos
poderes constituídos interessados em se preservarem como tal, em detrimento da emancipação
das partes consideradas hierarquicamente “inferiores”, como as mulheres, em relação aos
238
homens; como os interioranos, sobretudo os nordestinos, desdenhados ou hostilizados na
cidade grande; como os latino-americanos, sob o olhar do europeu; como os regimes
ditatoriais, que expurgam qualquer possibilidade de reação contra tudo isso – a não ser que se
manifeste clandestinamente ou no exílio.
Enquanto representantes de uma nova e multifacetada geração de escritoras latino-
americanas, as autoras problematizam questões sociais relacionadas ao gênero, ao extrato
sociopolítico, à cultura e à época em que estão inseridas. A partir de diferentes perspectivas,
ambas criticam o caráter cada vez mais impessoal e desagregador das relações humanas nos
grandes centros urbanos, sejam eles europeus ou latino-americanos. Com a globalização,
universalizaram-se também o ethos burguês, o impacto desumanizante do ritmo acelerado de
vida, o consumo desenfreado e tantas outras implicações decorrentes do processo de
modernização das sociedades, cujos efeitos traumáticos redundam na individualização
exacerbada. Sem recorrer a discursos nostálgicos, elas dialogam com velhas utopias, em cujas
diretrizes propõem mudanças - a despeito do acirramento do caráter quimérico de que estão
imbuídas -; ao mesmo tempo em que expõem os desejos e as angústias que a nova ordem
mundial suscita.
Felinto e Valdés ratificam a tese feminista defendida por Woolf, no sentido de
buscarem e de consolidarem seu espaço na sociedade, através da (auto)conscientização e do
uso da palavra. No contexto pós-moderno em que se acredita na “morte do social” (STAM,
2005, p. 220), com base na premissa de que a sociedade já não conta com “porta-vozes” que a
representem e articulem suas reivindicações, as autoras alçam sua voz contra a inércia e a
resignação. Humanizadas, as mulheres de Felinto e de Valdés são desveladas em seus
temores, seus desejos, suas fraquezas, suas carências, sua falta de noção de grupo e em seu
contraditório potencial transformador, com ênfase na esfera privada, onde se repetem
diuturnamente os princípios mais conservadores da hegemonia masculina. Enquanto latino-
americanas, elas pretendem ab-rogar a posição servil ou a que foram relegadas, sob pena de se
acomodarem aos discriminadores postulados históricos e culturais que se fizeram crer naturais
e intocáveis. Para tanto, será necessário entrar em confronto com o regime, com as estruturas
do poder, com as hegemonias do momento, sem abdicar de aliados que forneçam subsídios
para, solidários, levarem adiante os propósitos reformadores. Sem radicalismos anacrônicos e
quase sempre desastrosos.
Há que se buscar um caminho intermediário, que pulverize a visão maniqueísta de
“inocentes” e “culpados”, revestida de uma simplicidade reducionista e equivocada,
agrupando os bons colonizados de um lado e os maus colonizadores de outro, ou as mulheres
239
bondosas e os homens malvados de outro. O espaço de mediação resultante desse trânsito
constante, migratório, cada vez mais abrangente por conta dos cada vez mais facilitados e
acessíveis meios de locomoção e de comunicação, confere uma interface entremundos nem
sempre de circulação facilmente digerível, mas certamente de imprescindível valor para
promover uma transformação nos modos de pensamento e de ação de todas as partes
envolvidas.
A literatura latino-americana renova-se em paralelo à modernização do continente, e
longe de assentar-se confortavelmente sobre os incontestes e inovadores louros de um passado
recente, se reabastece da própria incongruência de seu tempo para com ela revisá-la e
transformá-la. Apesar das ainda resistentes posturas contra a inclusão de literaturas
hierarquicamente consideradas como de menor valor artístico, não se pode negar seu avanço
enquanto manifestação literária e libertária, que, além do estético, recupera aspectos
elucidativos de uma determinada circunstância histórica, sem pretensão documental. A
literatura desenvolvida pela nova geração de escritoras latino-americanas chega ao novo
século provando que tem fôlego suficiente para levar a cabo um projeto de reelaboração
identitária da América Latina, agora mais amadurecida, apesar das disparidades e
contradições rastreadas em sua dimensão cultural. Um continente em que a alta tecnologia nos
vários setores de produção e de consumo divide espaço com condições precárias de higiene e
de habitação. Pujança e miséria, desperdício e escassez, generosidades e mesquinharias, tudo
entrecruzado para formar este universo híbrido que faz da América Latina um continente
ímpar na sua especificidade cultural, religiosa, lingüística e política.
Independente de prerrogativas neoliberais ou neopopulistas, a representação política
latino-americana não comporta as mesmas práticas de autoritarismos e de asseveradas
disputas entre direitistas e esquerdistas de outrora: as fronteiras entre as correntes têm se
dissipado a favor de uma mediadora conciliação entre as partes. Visões díspares podem
estabelecer um diálogo que aposte num futuro integrador de uma “nova cultura” em constante
expansão, remodelando o perfil do latino-americano, sujeito mestiço, complexo e único nas
suas aportações multiculturais. A memória promove o resgate de uma identidade
bombardeada por apelos pós-modernistas de massificação, em que o ser latino-americano -
mulher ou homem, urbano e rural -, ainda em débito consigo mesmo, deve fazer valer sua
especificidade para não ceder às comodidades de uma globalização descaracterizadora e
talvez irreversível. Afinal, ser mulher e latino-americana é mais do que uma questão de
escolha; é uma questão de superação.
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