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Dissertação apresentada à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação em Comunicação, da Área de Concentração Mídia e Cultura, da Universidade de Marília, como requisito para obtenção do título de Mestre em Comunicação, sob a orientação da Profª Drª Lúcia Cor
Universidade de Marília
CLARA BENEDITA BONOME ZEMINIAN
TRANSCODIFICAÇÃO INTERTEXTUAL: DA GATA
BORRALHEIRA À CINDERELA MIDIÁTICA
MARÍLIA
2008
CLARA BENEDITA BONOME ZEMINIAN
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TRANSCODIFICAÇÃO INTERTEXTUAL: DA GATA
BORRALHEIRA À CINDERELA MIDIÁTICA
MARÍLIA
2008
CLARA BENEDITA BONOME ZEMINIAN
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TRANSCODIFICAÇÃO INTERTEXTUAL: DA GATA
BORRALHEIRA À CINDERELA MIDIÁTICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Área
de Concentração: Mídia e Cultura, Linha de Pesquisa: Ficção na Mídia, da
Universidade de Marília - UNIMAR, para a obtenção do título de Mestre em
Comunicação.
Data de defesa: 15/12/2008
Banca Examinadora:
Profª Drª Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira
Universidade de Marília
Profª Drª Nelyse Aparecida Melro Salzedas
UNESP
Profª Drª Andreia Cristina Fregate Baraldi Labegalini
Universidade de Marília
MARÍLIA
2008
4
A meu esposo,Reinaldo, (in memoriam),
que onde quer que esteja, deve estar muito
feliz por ver mais uma etapa concluída.
Nunca me esquecerei de você.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, por estar sempre a meu lado, dando força e ânimo, nas horas mais difíceis.
À minha orientadora, Profª Drª Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira, pelo
carinho, apoio e orientação durante todo o trabalho.
À Profª Drª Nelyse Aparecida Melro Salzedas, pela amizade e incentivo nesta
jornada.
À Profª Drª Andreia Cristina Fregate Baraldi Labegalini, membro da Banca
Examinadora de Qualificação, por sua fundamental contribuição.
À Profª Drª Rosângela Marçolla, minha ex-orientadora, pela paciência e valiosa
colaboração nesta caminhada.
A todos os meus professores do curso de mestrado, que mesmo indiretamente,
contribuíram para o enriquecimento desta dissertação.
À minha filha Luciana, meu bem mais precioso, pela dedicação, incentivo e
compreensão demonstrados em todos os momentos.
A meu pai (in memoriam) e à minha mãe, que sempre me incentivaram e pela
transmissão de valores inestimáveis.
A André Luís de Oliveira, por sua presteza e dedicação.
A Raphael Reis Ribeiro, pelo bom humor e dedicação durante esta jornada.
6
À minha amiga Rosely, companheira no Mestrado, com quem dividi alegrias e
tristezas durante todo este percurso.
A todos os meus familiares, que sempre me apoiaram durante a realização deste
trabalho.
À Secretaria de Estado de São Paulo, por fornecer o Projeto Bolsa Mestrado, junto à
Coordenadoria De Estudos e Normas Pedagógicas e Diretoria de Ensino de
Botucatu, garantindo o sucesso financeiro necessário à realização desta dissertação
de mestrado. Agradecimento especial à secretária Renata, sempre amiga e
atenciosa.
Aos alunos, colegas, funcionários e diretores das escolas E.E. “Dr. Manuel José
Chaves” e Instituto Municipal de Ensino Superior De São Manuel “Prof. Dr. Aldo
Castaldi”, pela amizade, compreensão e colaboração em todas as horas.
À secretária da Pós-Graduação, Rosângela Braga, pelos serviços prestados e
palavras de encorajamento.
7
“Os livros que têm resistido ao tempo são os que possuem uma
essência de verdade, capaz de satisfazer a inquietação
humana, por mais que os séculos passem.”
Cecília Meireles
8
ZEMINIAN, Clara B. Bonome. Transcodificação intertextual: da Gata Borralheira à
Cinderela midiática. 2008. 112 páginas. Dissertação (Mestrado em Comunicação)
Universidade de Marília (UNIMAR).
RESUMO
O presente estudo tem como proposta abordar a transcodificação do conto de fadas
A Gata Borralheira, escrito pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm e três narrativas
audiovisuais: Maid to order (Cinderela às avessas), Only you (Só você) e Ever After
(Para sempre Cinderela). Estudamos as inter-relações existentes entre as duas
linguagens e examinamos os aspectos significativos relevantes como produtores de
sentido no conto de fadas acima citado e em suas atualizações no cinema. A teoria
utilizada foi a da intertextualidade, de Julia Kristeva, desenvolvida a partir do
dialogismo de Mikail Bakhtin.
Palavras-chave: Transcodificação. Intertextualidade. Conto de fadas. Narrativas
audiovisuais. Cinema.
9
ZEMINIAN, Clara B. Bonome. Intertextual Transcoding: from Gata Borralheira to the
mídia Cinderella. 2008. 112 pages. Dissertation (Masters in Comunication) –
University of Marília (UNIMAR).
ABSTRACT
This study has as its proposal to approach the transcoding of the fairytale Cinderella,
written by Jacob and Wilhelm Grimm and three audiovisual narratives: Maid to Order,
Only You and Ever After. It was studied the interrelations that exists between the two
languages and it was also examined the meaningful aspects as makers of meaning
(or sense) in the Cinderella fairytale and its adaptations in the cinema. The used
theory was the intertextuality, of Julia Kristeve, developed from the dialoguism from
Mikail Bakhtin.
Key-words: Transcoding. Intertextuality. Fairytales. Audiovisual narratives. Cinema.
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fig. 1,2,3,4,5 e 6 – Montagem mostrando a deformação nos pés de uma
senhora chinesa, provocada pelo enfaixamento 38
Fig. 7 – Capa do videocassete (Ever After) 51
Fig. 8 – Capa do videocassete (Maid to order) 56
Fig. 9 – Capa do videocassete (Only you) 59
Fig. 10 – O sapato de Danielle 70
Fig. 11 – O quadro de Danielle 71
Fig.12 – Danielle conhece Henry, como Nicole 71
Fig. 13 – Os pés de Danielle ao entrar na carruagem 72
Fig. 14 – Danielle conversa com Leonardo antes de ir ao baile 72
Fig. 15 – A carruagem leva Cinderela ao baile 73
Fig. 16 – As asas na roupa de Danielle 74
Fig. 17 – Danielle chega ao baile 74
Fig. 18 – Danielle perde o sapato 75
Fig. 19 – O sapato perdido de Danielle 75
Fig. 20 – O príncipe experimenta o sapato em Danielle 76
Fig. 21 – Henry e Danielle olham-se apaixonados 77
Fig. 22 – Henry e Danielle beijam-se 77
Fig. 23 – O castelo 78
Fig. 24 – Foto de casamento 79
Fig. 25 – A vela cria um clima de mistério 80
Fig. 26 – A lua como símbolo 80
Fig. 27 – Uma consulta à cigana 81
Fig. 28 – Aula de Faith 81
Fig. 29 – Quadro na parede da sala de aula 82
Fig. 30 – Faith vestida de noiva 82
Fig. 31 – Faith e Kate em Veneza 83
Fig. 32 – Sapato perdido por Faith 84
Fig. 33 – Peter experimenta sapato em Faith 84
Fig. 34 – Peter e Faith dançam ao luar 85
Fig. 35 – Faith descendo da carruagem 85
Fig. 36 – Peter revela sua verdadeira identidade 86
Fig. 37 – Faith entrando no quarto 87
Fig. 38 – Caminho para Positano 87
Fig. 39 – Faith descalça no hotel em Positano 88
Fig. 40 – Peter e Faith antes do encontro com “Damon 88
Fig. 41 – Faith desce as escadas para o encontro 89
Fig. 42 – Faith janta com o falso Damon 89
Fig. 43 – Peter conversa com um velho 90
Fig. 44 – Faith e “Damon” numa festa, em um iate 90
Fig. 45 – Peter e “Damon” brigam 91
Fig. 46 – Faith desmascara o falso Damon 91
Fig. 47 – O plano de Peter falhou 92
Fig. 48 – Faith, Damon e Peter no aeroporto 92
Fig. 49 – Peter sozinho no avião 93
Fig. 50 – O final feliz de Peter e Faith 93
Fig. 51 – O avião leva os dois apaixonados 94
11
Fig. 52 – Apresentação de Maid to order 95
Fig. 53 – Novamente o conto de fadas 95
Fig. 54 – Estrela atende pedido do pai de Jessie 96
Fig. 55 – Jessie descalça 96
Fig. 56 – O sapato perdido de Jessie 97
Fig. 57 – As botas encontradas no lixo 97
Fig. 58 – Anúncio de uma agência de empregos 98
Fig. 59 – Jessie desolada por ter de refazer o serviço 98
Fig. 60 – Jessie e Nick 99
Fig. 61 – Jessie, vestida como criada 100
Fig. 62 – A criada volta a ser princesa 100
Fig. 63 – O carro da fada 101
Fig. 64 – Nick e Jessie 101
Fig. 65 – O final feliz de Nick e Jessie 102
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 13
CAPÍTULO I :
BAKHTIN E KRISTEVA: A TEORIA DA INTERTEXTUALIDADE
1.
Intertextualidade: Pressupostos teóricos.......................................................
16
2.
Seqüências importantes dos textos analisados.............................................
26
CAPÍTULO II:
CINDERELA: POR QUE UM CONTO DE FADAS QUE ATRAVESSA
OS SÉCULOS?
2.1 A origem dos contos de fadas........................................................................ 33
2.2 Os Irmãos Grimm: um pouco de história........................................................ 39
2.3 Símbolos presentes em “Cinderela”: o conto.................................................. 40
CAPÍTULO III:
AS NARRATIVAS AUDIOVISUAIS
3.1 Das narrativas literárias às narrativas audiovisuais........................................ 46
3.2 A evolução dos modos de ver da literatura a partir do cinema....................... 47
3.3 Elementos para a composição de um bom personagem................................ 50
3.4 Literatura e Cinema: dois modos de contar uma história................................ 64
13
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................104
REFERÊNCIAS.....................................................................................................109
INTRODUÇÃO
O hábito de contar histórias surgiu a partir do instante em que o homem sentiu
necessidade de buscar explicações para os fatos que aconteciam. Em tempos
distantes, os homens não sabiam escrever, assim mantinham as suas experiências
na tradição oral, alternando memória e imaginação em suas histórias.
Desse modo, enquanto não houve registro escrito, as histórias eram
passadas oralmente e, por isso iam sendo acrescidas de pormenores e
apresentavam variações, dependendo da cultura do público ouvinte. Então, com o
passar do tempo, a essência das histórias de tradição oral foi sendo alterada.
O pesquisador Joseph M. Luyten (apud MARÇOLLA, 20_ _?, p.27) afirma que
“os contos populares variam na sua expressão de acordo com a época e o
público a que são destinados. [...] O que as crianças e nós lemos hoje em dia é uma
versão adaptada para os nossos conceitos de moral e cultura”.
Assim, os contos de fadas, como literatura infantil, surgiram na Europa,
durante a Idade Moderna. São originários das histórias que o povo conta e que
foram transmitidas oralmente, através do tempo. (MARÇOLLA, 20_ _?).
Atualmente muitos textos midiáticos originam-se de fontes literárias e, dessa
forma, o presente estudo pretende dar uma pequena contribuição para desvendar as
relações existentes entre diferentes linguagens. Para tanto, estudaremos a
intertextualidade que se realiza entre o conto de fadas Cinderela ou A Gata
Borralheira, dos irmãos Grimm e três filmes contemporâneos: Maid to order
(Cinderela às avessas), Only you (Só você) e Ever After (Para sempre Cinderela). A
pesquisa busca detectar, no conto de fadas e suas releituras fílmicas, os aspectos
significativos relevantes que produzem os diversos sentidos da(s) história(s).
14
Considerando esses aspectos significativos, temos em diversos elementos
que compõem as histórias, a repetição e recorrência de aspectos que configuram o
sentido das narrativas audiovisuais apresentadas neste trabalho.
Dentre os diversos elementos simbólicos presentes na história original,
chamaremos particular atenção para o sapato de Cinderela, que se estabelece como
o gancho que fará mudar de condição na história.
Esse estudo pretende contemplar como o cinema apropriou-se do conto de
fadas Cinderela, em relação ao objeto sapato e também mostrar as relações
intertextuais entre o conto e as atualizações midiáticas propostas.
No texto de origem, Cinderela, a personagem principal, ao usar o sapato,
encontra a felicidade ao lado de seu príncipe encantado e como prêmio ascende
socialmente. Desde o início da narrativa, ela está sujeita a humilhações. Suas
roupas são recolhidas pela madrasta e, assim, é obrigada a usar trapos, dormir no
borralho e fazer serviços pesados na casa. Então o sapato aparece como elemento
de transformação, que início ao desenlace da trama. Dentre várias mulheres, o
sapato é destinado a apenas uma e a escolha é feita desde o princípio da narrativa,
pois só serve no pé de Cinderela.
O corpus analisado resgatará esse objeto midiático, representando o encontro
com a felicidade, com o homem sonhado, imaginado, um sonho da maioria das
mulheres.
Podemos supor que o cinema um tratamento contemporâneo ao objeto
sapato que, no texto matriz é tradicional, mas nas variantes intertextuais pode ser
uma sandália branca ou um sapato vermelho, como em Only you (1994), um
sofisticado sapato preto, em Maid to order(1987) ou ainda um tamanco de cristal, em
Ever After(1998). Dessa forma, as variantes intertextuais fílmicas parodiam,
parafraseiam ou estilizam o antigo conto, criando novas relações ao apresentar o
encontro com a felicidade. O sapato representa a procura, a busca de caminhos
para atingir tal felicidade.
Para tal análise precisaremos de um suporte teórico, que será a teoria da
Intertextualidade, de Julia Kristeva. Essa teoria deriva dos estudos do formalista
russo Mikail Bakhtin, sobre o dialogismo da linguagem. Enquanto os estruturalistas,
15
como Saussure, estudavam o sistema abstrato da língua (langue), Bakhtin
privilegiava o sistema concreto, embasado no dialogismo.. Esse teórico foi o pioneiro
a apresentar um conceito de texto, como sendo toda produção cultural com base na
linguagem. Para ele, não se pode conceber o processo de leitura desligado da
noção de intertexto, uma vez que o dialogismo permeia a linguagem, sentido ao
discurso e advém de uma variedade de outros textos.
Assim, Kristeva foi quem evidenciou o termo “intertextualidade”. Ela definia
“todo texto como mosaico de citações” e dizia que o “texto” passa a ser
compreendido como ocorrência situada na história e na sociedade. Então, o autor
vive na história e a sociedade escreve-se no texto.
Sendo assim, este trabalho fará, num primeiro momento a exposição da teoria
da Intertextualidade, relacionando seqüências importantes dos textos analisados,
para estabelecer os elementos intertextuais entre o conto de fadas “A gata
borralheira” e os três filmes já citados.
Depois disso, traçaremos um breve histórico dos contos de fadas e do
trabalho dos irmãos Grimm e também analisaremos símbolos importantes presentes
no conto, para podermos fazer uma ligação com os filmes analisados.
Finalmente, falaremos do código fílmico e estudaremos a inter-relação das
narrativas audiovisuais Ever After, Maid to order e Only you, para mostrarmos como
foi feita a transcodificação dos símbolos presentes no conto original.
Para falar do digo fílmico, apresentaremos os elementos necessários para
a composição de um bom personagem, segundo Syd Field. Para efeito deste
trabalho, a personagem escolhida em todos os textos em análise será “Cinderela”.
Desse modo, estudaremos a intertextualidade entre os dois códigos: literário e
fílmico e a transcodificação de um digo para o outro, levando em conta alguns
símbolos.
Pretendemos, então, estudar a história de Cinderela por dois meios, a
literatura e o cinema, levando em conta as particularidades de cada um deles. São
linguagens diferentes, mas que procuram expressar idéias, sentimentos e
pensamentos, formando um sistema simbólico de relações humanas.
16
CAPÍTULO I
BAKHTIN E KRISTEVA : TEORIA DA INTERTEXTUALIDADE
1.
Intertextualidade: Pressupostos teóricos
Bakhtin é um dos maiores estudiosos da língua do século XX. Em seus
estudos, deu ênfase ao caráter heterogêneo da parole
1
, em contraposição a outros
estudiosos que privilegiavam a langue, como Saussure e os estruturalistas. A parole
é o sistema concreto da língua e a langue, o abstrato. A concepção que Bakhtin dá à
língua não é como um sistema abstrato, mas a também como um diálogo
cumulativo entre o “eu” e o “outro”, entre muitos “eus” e muitos “outros”.
No centro de sua obra está a linguagem e ao estudá-la propõe duas direções
principais: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. Para Bakhtin, essas
duas orientações representam um obstáculo a uma assimilação totalizante da
linguagem, pois o subjetivismo idealista a reduz à enunciação monológica isolada e
o objetivismo abstrato, a um sistema abstrato de formas. O teórico russo diz que a
compreensão ampla da natureza da linguagem não se localiza entre essas duas
orientações e, sim, além. Para ultrapassar essas posições contrárias, apresenta a
interação verbal, que é uma recusa tanto da tese quanto da antítese e constitui uma
síntese dialética.
A interação da linguagem é a base da teoria bakhtiniana; compreende-se a
linguagem partindo de sua natureza social e histórica. Em Marxismo e filosofia da
1 Saussure (1977) efetua, em sua teorização, uma separação entre langue(língua) e parole(discurso). Para ele, a
língua é um sistema de valores que se opõem uns aos outros e que está depositado como produto social na
mente de cada falante de uma comunidade, possui homogeneidade e por isto é o objeto da lingüística
propriamente dita. Diferente da parole(discurso) que é um ato individual e está sujeito a fatores externos,
muitos desses não lingüísticos e, portanto, não passíveis de análise. (Curso de lingüística Geral)
17
linguagem”, ele afirma o seguinte: “as palavras são tecidas a partir de uma multidão
de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios” (BAKHTIN, 2006, p.42).
Não podemos considerar a enunciação apenas pelas condições
psicofisiológicas do falante, mas também pela sua natureza social e é necessário
entender que ela sempre acontece numa interação. Bakhtin observa que a
verdadeira substância da língua constitui-se pelo fenômeno social da interação
verbal, que se realiza através da enunciação ou das enunciações. Dessa maneira,
essa interação é a realidade fundamental da língua.
Analisando a enunciação como um produto da interação entre indivíduos
socialmente organizados, a palavra terá a direção de um interlocutor real e variará
em função desse, em relação ao grupo social a que ele pertence, aos laços sociais,
etc. O interlocutor não poderá ser abstrato, senão não teremos linguagem.
O diálogo é uma das formas mais importantes de interação social e não é
aquela comunicação face a face, porém toda comunicação verbal. De acordo com
Bakhtin (2006, p.128), a língua vive e evolui historicamente na comunicação social
concreta. A partir disso, a Língüística não consegue dar conta da língua integrada à
vida humana, como um objeto de muitas facetas. Para explicar o caráter dialógico da
língua, Bakhtin acrescenta o contexto e propõe uma disciplina, a metalingüística ou
translingüística, para poder explicar o enunciado.
Essa abordagem proposta por Bakhtin vai além dos limites da lingüística e
estuda a própria enunciação, que tem sua estrutura determinada totalmente pelas
relações sociais. Embora a enunciação seja produto da interação de dois indivíduos
socialmente organizados, ela não pode avançar as fronteiras de uma classe e de
uma época bem definidas.
Podemos então dizer que a palavra procede de alguém e se dirige para outro
alguém. Ela é produto da interação entre locutor e interlocutor. Conforme Bakhtin
(2006, p.117), a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se
ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu
interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.
18
Partindo dessa concepção de linguagem, o dialogismo serve de base para
estudos posteriores como o discurso interior, o monólogo, a comunicação diária, os
vários gêneros do discurso, a literatura e outras manifestações culturais.
O princípio dialógico caracteriza as idéias de Bakhtin sobre o homem e a vida.
Seu sistema teórico é fundado no dialogismo. O “eu” que ele concebe é dinâmico e
está em interação com outros “eus” e personagens. A alteridade marca o ser
humano, pois o outro é indispensável para sua constituição. De acordo com Bakhtin,
a vida é dialógica por natureza e essa dialogia põe em confronto as entoações e os
sistemas de valores que posicionam as mais diversas visões de mundo dentro de
um campo de visão.
O teórico propõe duas noções de dialogismo: o diálogo entre interlocutores e
o diálogo entre discursos. O primeiro é o princípio básico da linguagem, é nessa
relação entre sujeitos, isto é, na interpretação e produção de textos que se constrói o
sentido do texto, a significação das palavras e os próprios sujeitos. Então podemos
dizer que a subjetividade é posterior à intersubjetividade. Como diz Bakhtin, “o ser,
refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” (2006, p.47).
Portanto o dialogismo aparece como o princípio constitutivo da linguagem e
como condição do sentido do discurso, que não é individual; constrói-se, pelo
menos, entre dois interlocutores que são seres sociais, vivem em sociedade. O mais
importante, contudo, é que um discurso mantém um diálogo com outros discursos,
apresenta-se como um produto híbrido, em que vozes em concorrência e
sentidos em conflito.
Em suma, o dialogismo é a constante interação entre os variados discursos
que representam uma sociedade, uma comunidade, uma cultura. Assim a linguagem
é essencialmente dialógica e complexa, pois nela se imprimem, historicamente e
pelo uso, as relações dialógicas dos discursos. A palavra é sempre marcada pela
palavra do outro, ou seja, quando um enunciador constrói seu discurso, leva em
conta o discurso de outrem, que está sempre presente no seu.
Essa breve apresentação do dialogismo de Mikhail Bakhtin tem por objetivo
embasar o estudo que será feito neste trabalho, pois ao analisarmos o conto de
19
fadas A gata borralheira
2
, dos Irmãos Grimm e as narrativas audiovisuais Ever After
3
,
Only you
4
e Maid to order
5
percebemos nitidamente que esses textos mantém um
diálogo, abrindo espaço para o estudo da intertextualidade, que se origina dos
estudos desse teórico sobre os romances modernos. Bakhtin os classifica como
dialógicos e assim, diante de uma variedade de significados, um texto se aproxima
facilmente de outro. Essa aproximação não acontece entre textos diferentes, mas
também entre épocas distintas, colocando a linguagem como uma área permanente
de trocas e os textos reelaboram outros textos, mesmo entre códigos distintos.
Para esta análise trabalharemos o código literário transpondo-se para o
código fílmico. Dessa forma observamos que a palavra é migratória e também
elemento de ligação entre textos e dá sustentação ao recurso da intertextualidade.
Esse recurso parte do dialogismo de Bakhtin que concebe a palavra literária
não com um sentido fixo, mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de
diversas escrituras, do destinatário ou da personagem, do contexto cultural atual ou
anterior. (KRISTEVA, 2005, p. 66)
Em Introdução à Semanálise, Kristeva (2005) destaca que três elementos
que dialogam no espaço textual: o sujeito da escritura, o destinatário e os textos
exteriores. Ela considera que todo texto se constrói como “mosaico de citações”. A
intertextualidade insere-se numa teoria totalizante do texto, englobando suas
relações com o sujeito, o inconsciente e a ideologia, numa perspectiva semiótica,
que leva ao entendimento de que a especificidade do literário, sendo um discurso
entre outros, pode ser pensada no diálogo interdiscursivo. Isso faz que a prática
comparativista seja o uso sistemático de estratégias de aproximação e de confronto
de textos e discursos.
2 GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos e Lendas dos Irmãos Grimm. Trad. Íside M. Bonini. São Paulo: Edigraf S.A.,
vol.II.
3 EVER AFTER (Para sempre Cinderela). Dir. Andy Tennant. EUA. 20th Century Fox. 1998.
4 ONLY YOU (Só você). Dir. Norman Jewison. EUA. TriSTAR. 1994.
5 MAID TO ORDER (Cinderela às avessas). Dir. Amy Jones. EUA. Warner. 1987.
20
Para Kristeva existem dois eixos: horizontal e vertical. No eixo horizontal, tem-
se a palavra no texto que pertence, ao mesmo tempo, ao sujeito da escritura e ao
destinatário; e no vertical o par texto-contexto. Assim, a palavra (o texto) é um
cruzamento de palavras (textos) onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto).
Todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Então de que forma um
texto A pode se relacionar com um texto B e quando um ponto de convergência
entre ambos poderá ser, com efeito, apresentado como uma evidência de
intertextualidade?
Para decifrar essa incógnita, devemos, primeiramente, examinar os conceitos
de paródia, paráfrase e estilização, estabelecendo as diferenças entre eles.
Para tanto é necessária uma breve história do termo paródia. Ela
despertava interesse desde Aristóteles (1966), que em sua Poética a usava para
analisar as epopéias e as apresentações do teatro antigo. Para o filósofo grego, a
poesia era a representação em versos das ações humanas, onde se opunham dois
tipos de ações que se diferenciavam por seu nível de dignidade moral e/ou social:
alto e baixo e dois modos de representação, narrativo e dramático.
Na tragédia, ocorrem as ações altas no modo dramático e as ações baixas,
na comédia. o modo narrativo não foi desenvolvido por Aristóteles, porém Gérard
Genette, em Palimpsestes (1982, p.17) identifica-o com a paródia, que deve ter
surgido entre os culos VII e IV a.C., por meio de Hegemon de Thasos, escritor
grego, que usou o estilo épico para representar os homens não como superiores ao
que são na vida diária, mas como inferiores.
Como diz Sant’Anna (1985, p.11),
Teria ocorrido, então, uma inversão. A epopéia, gênero que na
Antigüidade servia para apresentar os heróis nacionais no mesmo
nível dos deuses, sofria agora uma degradação. Essa observação de
Aristóteles revela um enfoque marcadamente ético e mostra que os
gêneros literários eram tão estratificados quanto as classes sociais. A
tragédia e a epopéia eram gêneros reservados a descrições mais
nobres, enquanto a comédia era o espaço da representação popular.
A paródia, na epopéia, acontecia por intermédio de uma transformação
estilística, que a transportaria de um registro mais nobre para um mais familiar, até
mesmo vulgar, ocorrência essa que chegou até o século XVI.
21
Genette (1982, p.19) identificou, na Antigüidade clássica, três tipos de paródia
e Aristóteles teria trabalhado com o segundo tipo, a “anti-epopéia”, que ele chamou
de “Dilíada” ( vem de deilos = frouxo). Nesse tipo, as personagens seriam inferiores
aos deuses em contraposição às epopéias tradicionais, em que o sujeito
representado tinha que ser superior para servir de modelo para os ouvintes.
Já Tynianov e Bakhtin , dois formalistas russos, colocam a paródia dentro de
uma certa sinonímia e a definem paralelamente ao conceito de estilização. Tanto um
estudioso quanto o outro têm pensamentos que coincidem. Tynianov coloca a
estilização próxima da paródia. A diferença é que na paródia o texto original e o
parodiado são discordantes. na estilização isso não ocorre, havendo, pois,
concordância entre os dois textos. Enfim, entre elas uma pequena distância e se
aparecer uma forte motivação cômica na estilização, ela converte-se em paródia.
Segundo Bakhtin (apud SANT’ANNA, 1985, p.14),
tanto na paródia quanto na estilização, o autor emprega a fala de um
outro. Na paródia, a intenção é que essa oponha-se diretamente à fala
original, fazendo-a servir a fins opostos, não podendo haver a fusão
dessas duas falas, fato que ocorre na estilização. Então, a
criatividade aparece na paródia, pois ao parodiar o estilo de outro,
pode-se seguir direções diferentes, o que não ocorre na estilização,
que segue uma só direção, já proposta pelo autor original.
Observamos então que esses autores estabelecem os conceitos de paródia e
estilização, especificamente, para o texto literário. Para o presente trabalho
precisamos alargar tais conceitos, já que queremos contrapor o literário ao fílmico.
Para tanto podemos também contrapor a paródia à paráfrase. O termo
paráfrase não possui uma história porque significa continuidade, repetição. A história
interessa-se pela ruptura, pelo corte e pelo acréscimo, porém podemos tomar uma
definição de paráfrase que foge à repetição. De acordo com Beckson (apud
SANT’ANNA, 1985, p.17) “é a reafirmação, em palavras diferentes, do mesmo
sentido de uma obra escrita.”
Ao falarmos desses dois conceitos, estamos diante de dois eixos: o eixo
parafrásico e o eixo parodístico. Assim percebemos que a paródia representa o novo
e o diferente enquanto que a paráfrase representa o semelhante.
22
Para continuarmos o nosso trabalho, a necessidade de que conceituemos
o termo apropriação, que é recente no campo da crítica literária. Segundo Sant’anna
(1985), embora seja um conceito relativamente novo, podemos correlacioná-lo à
paráfrase, à estilização e à paródia. A origem da apropriação está no Dadaísmo e
chegou à literatura pelas artes plásticas. Nos anos 60, com o surgimento da pop art,
objetos comuns eram manipulados e transformados em arte, retratando a sociedade
industrial da época e apresentando uma crítica da ideologia. Assim, o objeto era
retirado de seu uso comum e colocado em uma situação diferente, sendo re-
apresentado em sua estranheza.
Podemos até dividir a apropriação em dois graus: apropriação de grau e
apropriação de grau. A primeira dá-se quando o objeto entra em cena e a outra,
quando o objeto representa-se, traduzido para um outro código. Tanto uma como a
outra apresentam uma simbologia que reúne significados e conceitos.
Essa técnica ficou conhecida como arte conceitual, pois a idéia é que importa,
a forma vem em segundo plano. O artista está provocando uma ruptura ao intervir
no cotidiano chamando a atenção para alguma coisa.
Aqueles que vêem a apropriação como uma paródia ao exagero
máximo, vão dizer que ela se opõe à paráfrase e diverge da
estilização. É um gesto devorador, onde o devorador se alimenta da
fome alheia. Ou seja, ela parte de um material produzido por outro,
extornando-lhe o significado.(
SANT’ ANNA, 1985, p.46
).
Podemos situar na paráfrase e na paródia um pró-estilo e um contra-estilo,
que a primeira reafirma o texto de origem, enquanto a segunda inverte-o, tentando
inovar. na apropriação, o autor apenas faz um agrupamento, uma articulação do
texto alheio. O artista que se apropria do texto de outrem sugere uma nova leitura.
De acordo com as considerações de Sant’anna (1985), podemos exemplificar
citando Maurício de Sousa, que se apropriou da Mona Lisa de da Vinci e colocou em
seu lugar a personagem Mônica, com uma aparência sossegada, tranqüila. Ele
inverteu um signo cultural, visto que a Mônica não é uma menina boazinha e sim
explosiva e dominadora.
Quando a sociedade se industrializou, a reprodução de um original tornou-se
fácil através de diversos meios como: fotos, disco, cinema, xerox, etc. A obra de arte
deixou de ser única e insubstituível. Essa facilidade de reprodução das coisas
23
alterou a relação com a obra de arte. Nota-se, então, uma relação entre a
apropriação e a sociedade de consumo. Conforme Sant’ Anna (1985, p.47), nesta
sociedade, os objetos assumiram o lugar dos sujeitos. O sujeito não é mais o
mesmo. Indivíduos e objetos são descartáveis.
Ao trazer o conceito de apropriação para este trabalho, notamos a sua não
pertinência diante do texto de origem A Gata Borralheira e dos três filmes
analisados, uma vez que o apropriador recorta textos de outrem e os coloca num
contexto diferente, fazendo uma releitura do passado e uma leitura do presente. Isso
não é o que se observa nos textos citados. Se voltarmos à questão do desvio
tolerável (estilização), do desvio mínimo (paráfrase) e do desvio total (paródia),
notamos semelhanças e diferenças entre os textos analisados.
Sant’Anna (1985) reformula as teorias de Tyanianov e Bakhtin sobre o
conceito de estilização e avança propondo três modelos para redefinir esses termos.
Esses autores tinham desenvolvido a oposição entre paródia e estilização, utilizando
basicamente para estudos na área do romance, privilegiando autores como
Dostoiévski e Gogol.
No primeiro modelo, o autor aborda o efeito pró-estilo da paráfrase e o efeito
contra-estilo da paródia. Segundo ele (1985, p.36) “quando a estilização se na
mesma direção do texto anterior, transforma-se numa paráfrase; se ela ocorre em
sentido contrário, constitui-se numa paródia”. Assim a estilização é uma técnica
geral e a paródia e a paráfrase seriam efeitos particulares, ou seja, a estilização é o
artifício utilizado pelo autor e a paródia e a paráfrase é o resultado.
No segundo modelo, Sant’Anna aborda a noção de desvio, considerando que
os jogos estabelecidos nas relações intra e extratextuais são desvios maiores ou
menores em relação a um texto original. Nessa concepção, a estilização seria um
desvio tolerável, que ocorreria o máximo de inovação sem ser subvertido, pervertido
ou invertido seu sentido. A paráfrase trabalharia com o desvio mínimo e a paródia
com o desvio total.
O autor (1985, p.41) complementa, dizendo que:
a paródia deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou
sentido. a paráfrase reafirma o s ingredientes do texto primeiro
conformando seu sentido. Enquanto a estilização reforma,
esmaecendo, apagando a forma, mas sem modificação essencial da
estrutura.
24
Nessa perspectiva, a paráfrase e a estilização fazem parte de um mesmo
conjunto em oposição à paródia.
No terceiro e último modelo, encadeiam-se os quatro elementos citados:
paráfrase e estilização no conjunto das similaridades e paródia e apropriação no
conjunto das diferenças.
Paráfrase e estilização no primeiro conjunto mantém uma gradação, que a
paráfrase é o desvio mínimo e a estilização, o desvio tolerável. No segundo conjunto
temos paródia e apropriação também numa relação de parentesco, uma vez que,
como diz Sant’Anna (1985, p.48) “a paródia é a inversão do significado, que tem o
seu exemplo máximo na apropriação.”
Por exemplo, no filme Maid to order uma inversão do conto original A gata
borralheira, pois a personagem principal é uma moça rica que mora em uma mansão
com seu pai, mas que não valoriza o que tem. Só quer gastar dinheiro e ter uma vida
sem objetivos. Ela faz o caminho inverso da gata borralheira.
Ora, o que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação
daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler
o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma
tomada de consciência crítica.(
SANT’ ANNA, 1985, p. 31
).
No filme Ever After, Danielle é a boa moça que ajuda a todos e obedece à
madrasta que a faz sofrer. Ela é a própria gata borralheira, mostrando apenas
mais determinação em suas atitudes. A história da boa moça à procura da felicidade
é reafirmada, o desvio é mínimo.
Portanto, constatamos que paródia e paráfrase tocam-se num efeito de
intertextualidade e a estilização é o ponto de contato entre elas.
Para exemplificarmos podemos citar o filme Only you que se localiza entre os
outros dois já citados, traduzindo-se como uma estilização. Faith é a gata borralheira
moderna, desde pequena sonha em ser feliz ao lado do homem idealizado. As
inovações admitidas no filme não subvertem, pervertem ou invertem o sentido do
original dos Irmãos Grimm, é um desvio tolerável.
A leitura para perceber as relações intertextuais necessita de uma certa
especialização. A intertextualidade é uma atualização que permite ao receptor
encontrar, num texto novo, os ecos de um passado intertextual submerso, mas não
25
escondido. A tarefa do leitor é reconstruir a obra levando em conta, além das
relações dialógicas existentes, sua estrutura e sua riqueza semântica. É também de
suma importância estar atento ao contexto em que a obra se inscreve e os
conhecimentos anteriores do receptor
6
.
Quando pensamos sobre a questão das vozes, vemos que a paródia
contradiz o texto original e coloca as coisas fora de seu lugar, propondo a
originalidade através da criatividade, da deformação do texto de origem. No filme
Maid to order, inaugura-se um novo paradigma, pois a paródia não é um espelho, ela
excede os pormenores de tal forma que destrói o texto original e assim busca a
diferença. Ao contar a história da borralheira às avessas, essa narrativa audiovisual
mostra as fragilidades da moça rica que, ao se ver pobre, canaliza suas forças para
o bem e se percebe não mais como o centro das atenções e sim como mediadora
dos sonhos de outras pessoas e dessa forma consegue realizar seus próprios
anseios.
a paráfrase é um discurso sem autoria, porque revela a voz de um outro,
está mostrando o que alguém falou. O texto parafraseado e o texto original estão
do mesmo lado, é o mesmo jogo, reafirmado em uma nova época.
Em Ever After, reafirma-se a situação da moça oprimida, subjugada pela
madrasta, que procura, através do príncipe, o caminho para a felicidade. Danielle
tenta, durante toda a sua trajetória, livrar-se da dominação da condessa, mas não
consegue. Só no final, como no texto dos Irmãos Grimm, ela consegue sua
libertação e a madrasta e uma de suas filhas são castigadas e tratadas com “o
mesmo respeito” que dispensaram à nossa borralheira.
A estilização renova o texto original sem alterar sua estrutura. Isso vemos em
Only you, em que Faith, nossa cinderela moderna, procura incansavelmente seu
príncipe, seu final feliz. Ela não é a moça simples e resignada do conto da fadas
original; é batalhadora, atual, uma mulher que toma a iniciativa e persegue o seu
sonho. Entretanto, o romantismo que norteia o texto de origem permanece na
trajetória de Faith e pode ser observado em diversas cenas: na perseguição de Faith
ao suposto príncipe, situação em que ela perde o sapato; no passeio de nossa
heroína e Peter, um comerciante de sapatos, depois que ele se revela o homem dos
6 Como este trabalho trata da produção de textos e não da recepção, a esse respeito seria interessante
consultar teóricos que falem da estética da recepção, como Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss.
26
sonhos dela. Até mesmo os lugares escolhidos para a filmagem confirmam esse
clima romântico: Veneza, Roma e Positano.
Por isso podemos afirmar que a estilização produz um desvio tolerável,
enquanto a paráfrase, um desvio mínimo e finalmente a paródia surge como um
desvio total.
Apesar das diferenças entre esses recursos, podemos notar que os efeitos
da estilização podem se dar tanto na paráfrase quanto na paródia, já que ela reveste
o texto de origem de uma outra roupagem, atualizando-o. Assim dizemos que a
estilização é um texto ambíguo, à proporção que carrega um pouco de dois textos;
recorre ao texto-base, mas busca inovação e originalidade no seu próprio texto.
No filme Only you, encontram-se marcas não-verbais remanescentes do texto
dos Irmãos Grimm, que a atmosfera que os envolve é reformulada, de acordo
com a época, a sociedade em questão e a proposta do cineasta. Destacamos ,
dessa forma, o sapato, o relógio, a escada e a fonte. Esses signos não precisam de
palavras e são eficientes no processo de comunicação. Todavia, a percepção dos
efeitos da estilização como paródia ou paráfrase dependerá do repertório do leitor,
do espectador, que irá perceber ou não tais efeitos no texto.
2.
Seqüências importantes dos textos analisados
Neste momento, torna-se importante apresentar as seqüências narrativas
analisadas para podermos perceber as relações intertextuais entre elas.
Em “A Gata Borralheira”, dos Irmãos Grimm, podemos destacar os seguintes
acontecimentos que são importantes para o estudo da intertextualidade:
a)
Moça boa e piedosa perde a mãe muito cedo e passa a viver só com o pai;
b)
O pai casa-se com uma mulher ambiciosa e que tem duas filhas
igualmente más;
c)
A moça passa a sofrer nas mãos da madrasta e suas filhas, todos os seus
pertences são confiscados e ela se torna a criada da casa;
d)
As irmãs malvadas são ambiciosas e sempre pedem presentes caros,
enquanto a Gata Borralheira é simples e se satisfaz com pouco;
e)
Uma pomba branca é a conselheira da pobre menina, que vive só e triste;
27
f)
Quando o príncipe do reino anuncia três noites de baile para escolher uma
esposa, a madrasta a oportunidade de casar uma das filhas e ascender
socialmente;
g)
A Gata Borralheira nos bailes um meio de encontrar o homem desejado e
alcançar a felicidade;
h)
A menina vai aos bailes e quem a ajuda é a pomba e uma aveleira. Em cada
um dos dias ela está mais bonita e bem vestida;
i)
No último baile, ela perde um dos sapatinhos dourados e o príncipe manda
seus mensageiros percorrerem todo o reino em busca da amada
desconhecida;
j)
A madrasta tenta impedir a enteada de experimentar o sapato, mas seu
truque não certo. A Gata Borralheira é a escolhida, aquela que merece o
final feliz, a felicidade por tanto tempo almejada. A madrasta e as irmãs têm
os olhos furados pelas pombas como castigo por tanta crueldade praticada
contra a jovem.
Agora passaremos à seqüência de acontecimentos nos filmes.
Em Ever After, os fatos apresentam-se da seguinte forma:
a)
Danielle é uma menina bonita e órfã de mãe, que mora com o pai e alguns
criados;
b)
O pai casa-se e a madrasta tem duas filhas, uma boa e outra má como a
mãe. O pai morre e Danielle é tratada como criada e obrigada a servir a
madrasta e as irmãs;
c)
Um dia, ao tentar libertar Maurice(criado de sua casa), conhece o príncipe
Henry. Ela esconde a sua verdadeira identidade e diz ser a Condessa Nicole
de Lancret, nome de sua mãe;
d)
Henry encanta-se por ela e eles passam a se encontrar. O príncipe es
apaixonado e cheio de idéias para sua vida, mas Danielle sofre por esconder
a sua verdadeira identidade dele;
e)
No baile que o rei promove para encontrar uma esposa para Henry, Danielle
está maravilhosa, usando as roupas e o sapato de cristal da mãe. Não a
presença da fada madrinha, Danielle é ajudada pelos criados e por Leonardo
Da Vinci;
28
f)
Quando Danielle aparece no baile, o príncipe fica muito feliz, porém essa
felicidade dura pouco, que a madrasta desmascara a moça na frente de
todos;
g)
Henry não deixa que Danielle se explique e aceita se casar com a moça que
seu pai escolheu;
h)
A madrasta troca a enteada pelas coisas que estavam penhoradas a um
agiota. Henry desiste do casamento arranjado e vai procurar sua amada;
i)
A irmã boa diz onde ela está e assim os dois reconciliam-se e se casam. A
madrasta e sua filha má são castigadas passando a ser criadas no castelo;
j)
Essa história é contada pela tataraneta de Danielle aos Irmãos Grimm,
remetendo à história original.
No próximo filme, Only you, observamos a seguinte seqüência de
acontecimentos:
a)
Faith é uma professora bonita e sonhadora. Desde a infância sonha com o
homem ideal e através de uma tábua ouija
7
e de uma cigana acredita que
esse homem chama-se Damon Bradley;
b)
Embora esteja de casamento marcado com um médico, não consegue
esquecer a previsão que foi feita na infância;
c)
Ao experimentar o vestido de noiva, recebe um telefonema de um amigo do
noivo, pedindo desculpas por não poder estar no casamento. Ele diz que se
chama Damon Bradley e deixa Faith transtornada;
d)
Junto com a cunhada Kate, vai a Veneza para tentar encontrá-lo. Ao chegar
lá, descobre que Damon havia deixado o hotel e seguido para Roma.
Remexe o lixo do quarto do rapaz e consegue encontrar um endereço de um
loja de roupas, em Roma;
e)
em Roma, vai até a casa de moda e, através de uma funcionária, fica
sabendo que Damon estará, à noite, no restaurante Galeassi. As duas amigas
arrumam-se e vão até esse local. Faith entra por uma porta e Damon sai por
outra. Ela segue-o pelas ruas de Roma e nessa perseguição perde um dos
sapatos, que é encontrado por Peter, um vendedor de sapatos;
7 Tábua ouija ou tabuleiro ouija é qualquer superfície plana com letras, números ou outros símbolos em que se
coloca um indicador móvel, utilizada supostamente para comunicação com espíritos. (www.wikipedia.org.br)
29
f)
Faith perde Damon na multidão e, desiludida, senta-se numa fonte e
desabafa com Kate. Peter chega, ajoelha-se para calcar-lhe o sapato e ouve
a conversa. Apresenta-se como Damon e a moça desmaia,
g)
Ao recobrar a consciência, saem para um passeio pela cidade. No quarto de
Peter, envoltos em um clima romântico, ele confessa não ser Damon. Faith
fica furiosa e o deixa falando sozinho. Ela diz à cunhada que a sua busca
terminou e que vai voltar e se casar com o noivo;
h)
No dia seguinte, quando está de partida, Peter pede perdão e diz ter
encontrado o verdadeiro Damon, que está em Positano, um lugar romântico,
à beira mar. Faith, Peter, Kate e Giovani, o dono da casa de moda, seguem
para esse lugar;
i)
No hotel, Faith encontra “Damon” e marcam um jantar para aquela noite.
Peter a ajuda a se produzir para o encontro e fica muito triste ao vê-la sair.
Depois do jantar, todos seguem para um iate, onde está acontecendo uma
festa. A professora descobre toda a farsa montada por Peter e abandona a
embarcação com Kate;
j)
Muito decepcionada, resolve partir no dia seguinte. No aeroporto, ouve pelo
alto-falante chamarem o nome de Damon Bradley. Peter, que também está de
partida, ouve e os dois dirigem-se para o balcão e encontram o verdadeiro
Damon. Peter apresenta Damon a Faith, que assim percebe o absurdo da
situação. O rapaz despede-se e deixa Faith diante de um Damon atônito. Ela
segue Peter até o avião, declara-se a ele e os dois partem juntos para
Boston.
No último filme em estudo, Maid to order, os acontecimentos desenrolam-se da
seguinte maneira:
a)
Jessie é uma moça rica e fútil que leva uma vida sem objetivos. Vai a festas e
gasta muito dinheiro. É órfã de mãe e vive com o pai em uma mansão em Los
Angeles;
b)
Todas as noites vai a baladas, dança, bebe e gasta muito dinheiro. Não se
preocupa com os outros, não ajuda as pessoas, é egoísta e irresponsável;
c)
O pai, um filantropo, resolve parar de patrocinar seus caprichos e, numa
noite, Jessie envolve-se numa confusão e acaba na cadeia. O pai fica tão
decepcionado, que deseja nunca ter tido uma filha;
30
d)
Nesse momento, entra em cena a fada Stella, que atende o pedido do pai de
Jessie, transformando-a numa desconhecida, desempregada e sem um
tostão. A moça não tem outra saída a não ser procurar uma agência de
empregos;
e)
Na agência encontra um emprego como arrumadeira em uma mansão em
Malibu. Para quem não tem idéia de como se lava um prato, frita um ovo ou
liga um aspirador de pó, não poderia haver castigo pior;
f)
Na mansão, Jessie conhece os empregados: Nick, o motorista, Audrey, uma
espécie de governanta e Maria, que cuida da cozinha. Os patrões são dois
esnobes: o homem, um produtor musical e a mulher, uma dondoca fútil e
sovina. A moça revolta-se com Stella e diz que quer tudo o que é seu de volta.
A fada diz que Jessie tem que fazer por merecer;
g)
Com o passar dos dias, ela interessa-se por Nick e se envolve demais com os
outros empregados da casa. Aos poucos, ela vai se humanizando e voltando
a sua atenção para as pessoas que estão ao seu redor;
h)
Na festa que os patrões promovem, ela fica muito triste ao ver o pai e não ser
reconhecida por ele. Jessie mostra interesse pelos desejos de seus novos
amigos. Audrey foi cantora e até gravou um disco, Nick compõe canções e
há muito tempo tenta que o patrão as ouça;
i)
O cantor que se apresentaria na festa perde a consciência ao ser atingido por
um coco, que Stella faz cair em sua cabeça. Dessa forma, Audrey toma o seu
lugar e é acompanhada por Nick, no teclado. Ela interpreta uma canção de
Nick e os dois fazem muito sucesso, sendo contratados pelo dono de uma
gravadora, que está na festa;
j)
Jessie fica muito feliz e acompanha Stella até a porta. A fada diz que Jessie
mudou e, por isso, merece ter sua vida de volta. Nesse momento, os sapatos
brilham e o pai, que está saindo, pede que ela não chegue tarde em casa.
Stella despede-se da jovem e seu carro desaparece, envolto em uma bolha,
no céu. Jessie emociona-se e termina feliz, ao lado de Nick.
Comparando o conto A gata borralheira, dos Irmãos Grimm aos filmes Ever
After, Only you e Maid to order, chegamos a algumas observações quanto ao
recurso da intertextualidade:
31
O primeiro filme (Ever After) faz referência direta ao conto. A história passa-se
no século XVI, portanto a época é muito parecida e assim também o vestuário. Tanto
a heroína do conto quanto Danielle são bondosas e mostram preocupação com o
destino de outras pessoas. Satisfazem-se com pouco, o órfãs de mãe e os pais
casam-se para poder reconstruir suas vidas. As madrastas são más e causam
sofrimento às moças que são despojadas de seus pertences e passam à condição
de criadas em suas próprias casas. Para saírem de tal situação, elas vêem no
príncipe a salvação e o encontro da alma gêmea. No baile, perdem um dos sapatos,
o que irá desencadear uma busca em todo o reino. Quando calçam o sapato,
concretiza-se o sonho e a felicidade é alcançada. Entre o filme e o conto
pequenas diferenças, portanto o discurso se repete e o desvio é considerado
mínimo. Um dos pontos relevantes quanto às diferenças, ao desvio, é o fato de o
filme não apresentar o elemento mágico, o que não acontece no texto matriz.
No segundo filme (Only you), observamos uma referência temática ao conto
dos Irmãos Grimm: a moça que procura sua alma gêmea, o seu príncipe encantado
e, conseqüentemente, a felicidade. A época do filme é atual, Faith é uma Cinderela
moderna, ousada, decidida. Essa atualização no tempo o nos impede de detectar
a presença do conto no filme e levantar as relações intertextuais entre os dois
textos. Quando Faith corre pelas ruas de Roma atrás daquele que pensa ser o
homem de seus sonhos, perde um dos sapatos e quem o encontra é Peter, o seu
verdadeiro príncipe. Apesar do filme modernizar o conto, o romantismo é a tônica
dessa história do culo XX. O que acontece, então, é que o filme inova o conto e
pode ser classificado como um desvio tolerável. Faith pensa que conseguiu uma
ajuda do destino, por meio da tábua ouija e da cigana, mas a tábua foi manipulada
por Larry, seu irmão, e a cigana também. Ele a contratou para dizer o mesmo nome
apresentado pela tábua.
O terceiro filme em análise é Maid to order e nele a história da borralheira é
invertida, como se fosse colocada diante de um espelho: a moça rica e fútil que, por
suas atitudes, acaba perdendo casa, família e dinheiro. Uma fada acompanha a
trajetória de Jessie que quer reverter essa situação. No final, ela consegue e torna-
se uma pessoa melhor, preocupada com o sonho dos outros. Dessa forma, essa
narrativa fílmica apresenta-se como desvio total e um modo diferente de leitura do
conto, uma forma não convencional. A fada proporciona a transformação da
32
Jessie rica e fútil em uma criada inexperiente. A real transformação de Jessie é feita
por ela mesma, em sua mudança de atitude.
Depois dessas observações, percebemos que o cruzamento da narrativa
literária dos Irmãos Grimm com as narrativas audiovisuais apresentadas leva-nos a
entender que a intertextualidade é inerente à produção humana. O ser humano
recorre àquilo que já foi feito em seu processo de produção simbólica. Cada texto,
seja ele um filme, uma música, um conto, um romance, uma poesia apresentam uma
significação que não está completamente pronta, pois esses mesmos textos estão
sujeitos a diferentes olhares e recepções por parte de diferentes leitores. A
significação processa-se entre o texto e seu receptor, que é ativo, participa desse
jogo intertextual, tanto quanto o autor.
De acordo com Kristeva (2005, p.104), a linguagem poética é um diálogo de
dois discursos. Um texto estranho entra na rede da escritura: esta o absorve
segundo leis específicas que estão por se descobrir. Assim, no paragrama
8
de um
texto, funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor.
Esse aspecto duplo apontado na linguagem literária permite a Kristeva (2005)
buscar no contexto saussureano de “paragramática” uma compreensão semiótica
para o problema. De acordo com tal conceito, o texto literário deve ser abordado
segundo uma tripla compreensão de sua natureza, posto que ele é (a) a única
infinidade dodigo, (b) uma dobra que pressupõe escritura e leitura e (c) uma rede
de conexões.
Podemos então dizer que ler é uma via de mão dupla, implica na participação
ativa do receptor e toda seqüência organiza-se em relação a uma outra.
Para Kristeva (2005), a leitura é um processo que se realiza como ato de
colher, de tomar, de identificar traços. Como cada texto é originário de outro, cada
seqüência é duplamente orientada: para a lembrança de uma outra escrita e,
posteriormente, para a modificação dessa escritura.
A esse respeito, Aguiar e Silva (1999, p. 625), diz que o texto é sempre, sob
modalidades várias, um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica na qual
8 Saussure teria chegado ao termo paragrama para designar o fenômeno geral em que um nome simples
desdobra-se de um modo complexo nas sílabas de um mesmo verso. (CAMPOS, H. A arte no horizonte do
provável. SP: Perspectiva, 1976, p.108).
33
confluem, se entrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam
outros textos, outras vozes e outras consciências.
Por conseguinte entre o texto dos irmãos Grimm e os filmes analisados
confirma-se a intertextualidade temática que renova os mitos e as emoções
humanas, confirmando que tais textos se complementam e se inter-relacionam.
CAPÍTULO II
CINDERELA POR QUE UM CONTO DE FADAS QUE ATRAVESSA OS
SÉCULOS?
2.1. A origem dos contos de fadas
Neste capítulo estudaremos o texto A Gata Borralheira ou Cinderela, dos
irmãos Grimm. Primeiramente, traçaremos um pouco da história do conto de fadas,
dos autores desse conto e também levantaremos os símbolos presentes na história
que sejam relevantes para a compreensão da intertextualidade desses elementos
com os dos filmes analisados.
Segundo Cashdan (2000), os contos de fadas, como entretenimento, nos
salões e livrarias, era moda na Paris do século XVII. Até o século XVIII eram
dramatizados em salões parisienses para a elite mais culta; a partir do culo XIX
transformaram-se em literatura infantil. Tal transformação deveu-se a ambulantes
que viajavam por vários lugares vendendo pequenos volumes com histórias
folclóricas e contos de fadas simplificados para poder atrair o grande público.
O gosto por essas narrativas orais foi alvo de preconceito e era tido como
coisa de menina. Assim os contos sofreram ataques por vários anos. Um deles foi
34
ver a história de Cinderela como um roteiro opressor para a domesticação feminina.
Esse entendimento não é o nosso para a história e suas questões femininas.
Com esse histórico, os contos de fadas continuam sendo transmitidos e não
morrem. Por quê? Isso se deve ao fato de auxiliarem na educação das crianças,
ajudando-as a resolverem conflitos internos enfrentados durante o crescimento. Os
personagens principais são crianças comuns que criam uma identidade com o
público infantil.
Os contos de fadas são importantes documentos históricos que nos mostram
como era a vida em certos períodos da história. Antigamente, cada dia representava
uma batalha pela sobrevivência. Os obstáculos enfrentados pelo herói ou pela
heroína ensinavam às crianças que elas podiam ser bem sucedidas no mundo se
utilizassem seu potencial, seus recursos internos.
Desde o início até hoje, os contos de fadas sofreram muitas transformações e
assim adaptaram-se ao avanço tecnológico. Acredita-se que continuarão a mudar,
adaptando-se às evoluções do tempo moderno.
Os contos de fadas revelam um mundo misterioso das histórias de tradição
oral contadas por pessoas iletradas que moravam no campo ou vilas distantes.
Esses contos são mágicos, transportam o leitor ou o ouvinte para lugares onde tudo
pode acontecer.
A palavra fada tem origem no latim (fatum, fata) e faz referência a uma deusa
do destino. As fadas costumam fazer previsão do futuro nas histórias em que
aparecem.
Nos contos de fadas há um herói ou uma heroína que são levados a um lugar
diferente onde existe fantasia, magia. A maldade se faz representar sob a figura de
uma madrasta, uma bruxa ou outro personagem com má índole. Para que o herói ou
heroína cheguem à vitória, ocorrem obstáculos que são transpostos com a ajuda de
um elemento mágico.
Jolles (1976) diz que a maior parte das histórias para crianças nasceu na
Europa, entre os séculos V e XV. Sua difusão fez-se oralmente entre camponeses e
originaram diversas versões. Com o surgimento das cidades, as famílias foram se
35
deslocando do meio rural para o urbano e o hábito de contar histórias correu o risco
de desaparecer. Para que essas narrativas não se perdessem, coube aos escritores
o seu registro no papel.
Com a tipografia de Gutemberg, 1445, as histórias de tradição oral passaram
à forma escrita e puderam ser impressas em muitas cópias. Dessa maneira, as
idéias, nos livros, começaram a se expandir e surgiram outros estilos, como o
romance, por exemplo.
Na passagem da oralidade à literatura, as histórias, antes destinadas aos
adultos, tiveram seus conteúdos suavizados, tornando-se mais românticas e cheias
de fantasia.
Marçolla (20_ _?, p.36) afirma que:
A literatura infantil, propriamente dita, aparece justamente no século
XVII, em que ocorrem mudanças na sociedade, conseqüentes da
ascensão da família burguesa, da nova posição concedida à infância
na sociedade e da reorganização da escola.
A ruptura da tradição oral, na sociedade burguesa, dissolveu os grupos
que, indiscriminadamente, se reuniam, nas sociedades feudais e
patriarcais, para ouvir os contadores. Assim se estabelece o hábito de
ler, individualmente ou em grupos distintos, para adultos e para
crianças, começando então a levar em consideração a adequação dos
textos para crianças. Começa, desse modo, a especificação da
literatura infantil, não o seu nascimento. (
CARVALHO, apud
MARÇOLLA, 20_ _?, p.37
).
Com isso as histórias passaram a ter o papel de ensinar. As crianças
passaram a ser diferenciadas dos adultos e deviam receber uma educação
específica para prepará-las para a vida adulta. Até então, elas participavam das
mesmas atividades e diversões dos adultos.
De acordo com Philippe Ariès (1981), na sociedade medieval européia, a
infância era reduzida a seu período mais frágil, pois logo que a criança adquiria
alguma autonomia física era misturada aos adultos, devendo partilhar de seus
trabalhos e jogos. Cedo afastada da família, sua educação era garantida pelo que
Ariès chamou de aprendizagem, que se dava espontaneamente por meio do
36
convívio com os adultos. A família não tinha então a função afetiva que tem hoje,
estando tal função identificada com o grupo mais extenso da comunidade
9
.
A preocupação com a infância direciona uma reelaboração do material
reunido numa linguagem mais simplificada, com vistas à compreensão
por parte da criança. O material resultante passa a fazer parte de seu
mundo de aprendizagem, e recreação, fundamentando a criação da
literatura infantil.
(PASSERINI, apud MARÇOLA, 20_ _?, p.37).
Coelho (1987) afirma que o pioneiro dos contos de fadas e precursor da
literatura infantil foi Charles Perrault, que nos séculos XVII e XVIII, publicou muitas
fábulas. Suas histórias encantaram os adultos por poderem através delas voltar a
ser crianças, mergulhando num mundo de magia e encantamento.
Para a pesquisadora e escritora Bárbara Vasconcelos de Carvalho (apud
MARÇOLLA, 20_ _?, p.39),
o seiscentismo barroco, caprichoso e requintado deu à literatura
maravilhosa a riqueza de imaginação que tanto agrada às crianças. O
preciosismo e as preciosas de então, transitaram nos contos
maravilhosos, com a roupagem da fantasia, do jogo lúdico, das fadas e
das bruxas, através da incomparável pena de Perrault.
No século XIX, a literatura infantil assume mais uma vez posição de destaque
com o trabalho de coleta detalhada das histórias, realizado pelos irmãos Grimm
(Jacob e Wilhelm), filólogos e folcloristas alemães, que recolheram do povo a
tradição oral e passaram-na para a escrita. Acrescentando às histórias um toque de
romantismo e amenizando as situações vividas pelos personagens, conquistaram
definitivamente o público infantil.
Movidos por diferentes estímulos, foram Perrault e Grimm conduzidos
à mesma motivação ao mundo mítico dos contos maravilhosos das
fadas e dos gênios encantados. Perrault, buscando um novo gênero,
em pleno Classicismo-barroco; os irmãos Grimm, pesquisando as
9 Para maiores informações sobre o assunto, ler História social da infância, de Philippe Ariès.
37
tradições populares, as fontes folclóricas, no culto de seu povo e sua
terra, inspirados pelo Romantismo. Assim, mergulhando ambos num
reino de infâncias, atingiram o reino da infância. (
CARVALHO, apud
MARÇOLLA, 20_ _?, p.39).
O conto de fadas em estudo tem muitas versões. Marçolla (20_ _?) diz que,
provavelmente a versão mais antiga da história de Cinderela é originária da China,
por volta de 860 a. C. A Cinderela chinesa é Yeh – hesien.
Quando a mãe de Yeh - hesien morre, sendo seguida logo depois pelo pai, a
co-esposa deste começa a maltratá-la e a proteger a própria filha. Um peixinho
dourado mágico aparece num lago e fica amigo de Yeh-hsien. Quando a madrasta
malvada descobre essa fonte de consolo de sua odiada enteada, mata-o, come-o e
esconde os ossos “sob a colina de esterco”. Quando Yeh-hsien, sem saber de nada,
chama o peixe no dia seguinte como era seu hábito, um feiticeiro desce do céu e lhe
diz onde encontrar os ossos. “Pegue-os e esconda-os em seu quarto. Para ter o que
desejar, basta rezar e pedir a eles...” Yeh-hsien obedece e percebe que não está
mais sofrendo de fome, sede ou frio – os ossos do peixe passaram a cuidar dela. No
dia do festival local, a madrasta e a meia-irmã ordenam que fique em casa, mas ela
espera que partam e, então, com um manto de penas de martim-pescador e sapatos
de ouro, vai ter com elas no festival. Sua irmã a reconhece, Yeh-hsien percebe, foge
e perde um sapato de ouro.
Alguém o acha e o vende para um comandante local: era uma polegada
menor do que o sapato da mulher que, entre elas, tinha os pés mais pequeninos. Ele
ordenou que todas as mulheres de seu reino o experimentassem.
Mas o sapatinho não serviu em nenhuma delas. Era leve como penugem, e
não fazia ruído nem quando pisava sobre pedras. Yeh-hsien se apresenta, levando
consigo os ossos de peixe, e torna-se a “principal esposa” na família do rei. Sua
madrasta e irmã são apedrejadas até morrerem.
Na versão chinesa de Cinderela, percebe-se a importância dos pés pequenos
para a cultura da China antiga. Lá era costume exagerar na pequenez dos pés
femininos. As mulheres tinham essa parte do corpo enfaixada desde a infância num
processo que trazia muita dor às meninas chinesas. A partir dos sete anos, as mães
exigiam que as filhas envolvessem os pés numa ligadura especial, com cinco
38
centímetros de largura e três de comprimento, que obrigava os dedos menores a
encaracolarem-se para trás e para baixo, deixando livre apenas o dedo grande. À
proporção que a ligadura ia sendo apertada, a sola do aproximava-se cada vez
mais do calcanhar. Com o tempo, esse tratamento deformava o comprimindo-o e
atrofiando-o, quase como um pequeno casco. Assim, os pés cabiam em pequenos
sapatos, ricamente bordados, com apenas alguns centímetros, que eram feitos para
as senhoras da alta sociedade.
Esse costume chinês, que durou quase um milênio, desde o século X a o
início do século XX, originariamente, era aplicado às bailarinas da corte imperial,
para impedir o crescimento natural dos pés, conservando-os pequenos para que
coubessem em delicados calçados, conhecidos como “lótus chinês”. Depois, foi
absorvido pela classe alta como um rito de passagem para as chinesas de boas
famílias, tornando-se a marca da dinastia Sung (960 – 1275 d.e). No entanto, os pés
das jovens chinesas eram amarrados desde muito cedo e de maneira tão apertada,
que as impossibilitava de dançar e mesmo para caminhar era penoso.
O pequeno, semelhante a um casco, era considerado o máximo de beleza
erótica pelos homens chineses. Enquanto faziam amor, eles acariciavam os pés,
chegando a colocá-los totalmente na boca. O tornava-se, então, não o núcleo
do desejo erótico, mas também um símbolo de estatuto social elevado, que as
mulheres que tinham os pés enfaixados, não podiam executar trabalhos manuais.
Essa prática não era aplicada às camponesas, que tinham os pés achatados, ou
“pés de pato”, como as chamavam com sarcasmo.
Por isso, não é de se admirar que a história de Cinderela, cujas irmãs, muito
feias, não conseguiram enfiar os pés enormes no minúsculo sapatinho, seja de
origem chinesa.
39
Fig. 1,2,3,4,5 e 6 Montagem mostrando a deformação nos pés de uma senhora chinesa, provocada
pelo enfaixamento
2.
Os Irmãos Grimm: um pouco de história
Não podemos negar o prazer de todo ser humano, independentemente de
sexo, raça, credo, idade ou classe social, em ouvir histórias. Muitos afirmam se tratar
mesmo de algo constitutivo, estrutural da nossa psique, atávico à natureza humana.
Somos seres racionais, mas também seres narrativos. Gostamos de um relato,
precisamos de uma história. A seqüência temporal de eventos, com início, meio e
fim, com causa e conseqüência, é algo que permeia nossa compreensão do mundo
e, portanto, é a forma como o apreendemos, sejam ou não representações
artísticas.
40
O nascimento das histórias como conhecemos hoje, em bem elaborados
objetos editoriais, além de ricamente ilustradas e de alta qualidade gráfica, está no
costume ancestral de se reunir ao redor da fogueira. Ao analisar criticamente o
percurso histórico da literatura destinada aos pequenos e jovens leitores,
percebemos que dois autores se destacam: Perrault e Grimm e assuntos como
contos de fadas e tradição oral.
No início do século XIX, dois irmãos apaixonados por contos de fadas tiveram
a mesma idéia de Perrault e saíram pesquisando fábulas e adaptando-as à literatura
infantil. Foram os irmãos Grimm que revelaram ao mundo personagens como
Branca de Neve, Rapunzel, Cinderela e João e Maria.
Jacob e Wilhelm Grimm, os irmãos Grimm
10
, nasceram na localidade alemã de
Hanau. Jacob, o segundo de uma família de nove filhos, nasceu em 1785, e
Wilhelm, um ano depois. Com a morte do pai, em 1798, ambos foram morar na casa
de uma tia, na cidade de Kassel (Alemanha), onde terminaram os estudos
secundários e iniciaram o curso de Direito.
Por volta de 1806, tiveram acesso a uma coletânea de poesias populares, que
leram com grande interesse. Entusiasmados pela ingenuidade daqueles poemas,
que foram transmitidos oralmente de geração a geração, começaram a reunir e a
escrever os contos tradicionais narrados nos serões familiares, em uma época em
que isso era muito comum, porque não existia outra diversão. Em 1812, publicaram
uma primeira coletânea com 86 contos, seguida, dois anos depois, por uma outra,
que reunia mais setenta contos. Para reunir as histórias, os dois irmãos percorreram
a Alemanha conversando com muitas pessoas.
Dorothea, casada com um alfaiate em Kassel, encontrou os Grimm então
bibliotecários da cidade numa feira onde fora levar uma cesta de verduras. E
Wihlelm e Jacob, percebendo o quanto ela sabia das histórias populares, ouvidas na
cervejaria do pai, quando criança, passaram a convidá-la semanalmente, nos dias
de feira, à sua casa, recolhendo assim, os quase 220 contos de seu livro, cujas
edições, em 140 línguas, somam mais de trinta milhões de exemplares.
10 As informações, a respeito dos irmãos Grimm, foram pesquisadas em www.wikipedia.org.br.
41
Nessa época, os artistas e intelectuais europeus buscavam recuperar as
tradições dos diferentes povos, afastando-se dos cânones clássicos gregos e
latinos. Além disso, a descoberta de que a maioria das línguas da Europa derivava
de uma antiga língua comum, chamada indo-europeu, fez com que o interesse pelos
idiomas não-latinos, como o alemão e o polonês, aumentasse. No caso dos irmãos
Grimm, foi o interesse pela tradição oral que os levou a estudar com profundidade a
língua alemã e as suas origens.
Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos e folcloristas, são considerados,
o primeiro, como o criador da moderna filologia germânica, e o segundo, como o
fundador do folclore moderno. Jacob é responsável, também, por uma das primeiras
traduções para a língua alemã da Edda Poética. O legado deixado por eles é
importantíssimo para a preservação e o estudo da mitologia germânica. Ambos
faleceram em Berlim; Wilhelm em 1859 e Jacob em 1863.
3.
Símbolos presentes em “Cinderela”, o conto
Apesar de existirem várias versões do conto Cinderela, todas têm alguma
semelhança. Cinderela trata de questões fraternas, de modo que as crianças
identificam-se com esse conto, porque sempre crêem que seus irmãos recebem um
tratamento melhor que elas. Conforme Bruno Bettelheim (1989), Cinderela é uma
figura idealizada, representa o retrato da inocência.
Ela é uma moça virtuosa, que não sente rancor ou revolta da madrasta e das
irmãs. Mesmo sendo maltratada tem o coração bom e piedoso. Sempre é descrita
como uma mulher muito bonita.
Embora simples e conformada com sua situação humilde, precisou de um
vestido bonito e sapatos dourados para o encontro com o príncipe. Para que tal
encontro acontecesse, necessitou de uma força sobrenatural, do elemento mágico.
Seu romance com o homem sonhado acontece de forma bem rápida, pois o príncipe
42
apaixona-se por ela no momento em que a vê. Entre tantas mulheres, ele se
encanta somente por Cinderela.
A saída para o fim do sofrimento que passava com a madrasta e as irmãs
adotivas é o casamento. Sua história é simples, fala dos seus tormentos devido à
rivalidade fraterna, da bondade recompensada e da maldade castigada. A morte da
mãe é o problema que se instala no começo da narrativa e que a coloca em uma
vida de sofrimento e dor.
Podemos dizer que o conto Cinderela contempla três das quatro etapas
propostas por Cashdan (2000, p.48) para o caminho da auto descoberta:
1)
ENCONTRO: Cinderela confronta-se com a madrasta malévola,
2)
CONQUISTA: Nossa heroína mergulha numa luta ferrenha com a madrasta,
que leva, inevitavelmente, à destruição dessa última;
3)
CELEBRAÇÃO: Acontece um casamento de gala, que representa a vitória
sobre a madrasta e assim “todos viveram felizes para sempre”.
Portanto, nessa história símbolos importantes para o estudo da
intertextualidade que, agora, passaremos a analisar.
O primeiro símbolo que chama a nossa atenção é a aveleira. Cinderela
recebe um ramo dessa árvore de presente de seu pai e o enterra no túmulo de sua
mãe. Ao chorar, rega a planta que cresce e se transforma em uma linda árvore.
A aveleira e seu fruto, a avelã, tiveram relevante papel na simbólica
dos povos germânicos e nórdicos. Iduna, deusa da vida e da
fertilidade, para os germanos do norte, é libertada por Loki,
transformado em falcão, que a leva sob a forma de uma avelã. Num
conto da Islândia, uma duquesa estéril passeia num bosque de
aveleiras para consultar os deuses que a tornam fecunda. Em todos
os textos insulares, elas são consideradas árvores de caráter mágico.
Nessa qualidade, são freqüentemente utilizadas pelos druidas e pelos
poetas como suportes de encantação. (
CHEVALIER ;
GHEERBRANT
,
1996, p. 103
).
43
Podemos concluir que, no conto “Cinderela”, a aveleira é um símbolo de
fertilidade e um elemento mágico de encantamento. Essa árvore foi plantada na
campa da mãe da borralheira, força à moça para que suporte todos os
sofrimentos causados pela madrasta e suas filhas malvadas. É como se a mãe
estivesse presente, ao seu lado, em todos os momentos.
Outro símbolo importante presente no conto são as pombas, que auxiliam
Cinderela durante a sua caminhada rumo à felicidade.
Ao longo de toda a simbologia judaico-cristã, a pomba que, com o
Novo Testamento, acabará por representar o Espírito Santo é,
fundamentalmente, um símbolo de pureza, de simplicidade... O pombo
é tido, em geral, como um ingênuo, mas, mais poeticamente, é um
símbolo do amor... O simbolismo do amor se explicita melhor através
do casal de pombinhos.
(CHEVALIER ; GHEERBRANT, 1996, p.
728).
Na história, Cinderela pede à madrasta para ir ao baile, persiste no pedido,
embora negado. Tanto insiste que a madrasta lhe impõe tarefas impossíveis de
realizar, mas com a ajuda das pombinhas e da aveleira mágica, ela consegue
realizá-las, no entanto a permissão lhe é negada. Novamente, as pombas e a
aveleira auxiliam Cinderela, que consegue ir ao baile. No final, sai por decisão
própria e se esconde do príncipe, que está em seu encalço.
As pombas, no conto analisado, representam, então, a pureza, a delicadeza
da boa moça, que se mantém assim do começo ao fim da história, mas também são
responsáveis por fazerem justiça por tudo que Cinderela sofreu. No final, elas são
responsáveis pelo castigo infligido às irmãs de nossa heroína: a maldade é punida
exemplarmente e as duas irmãs têm seus olhos furados pelas pombas. A cegueira é
o que conseguem por terem sido tão falsas e perversas.
Desse modo, o conto Cinderela demonstra que, mesmo quando parece ser
dura e difícil, a vida torna-se bela no final. A Cinderela suja e vestida de trapos
revela-se lindíssima no desfecho. Suas irmãs, que sempre a trataram como uma
criada, são castigadas. A mensagem é otimista e mostra que, apesar das
adversidades que a protagonista tem de superar, a conclusão se justa e feliz.
44
Conforme Bruno Bettelheim (1989, p.276), Cinderela guia à criança através de suas
maiores decepções, desilusão edipiana, ansiedade de castração, opinião de si
própria devido às más opiniões que acredita que os outros têm de si, ao encontro de
sua autonomia, conseguindo uma personalidade própria.
O último elemento a se destacar na história de Cinderela é o sapato, que é
um dos símbolos vinculados ao complexo de poder, daí a expressão: “vou pisá-lo
com meus sapatos”; simboliza, portanto, um ponto de vista da afirmação do ego.
Pode simbolizar ainda, o órgão sexual feminino por revestir o pé, que é um
conhecido símbolo fálico. O calçado que usamos é a parte do nosso vestuário mais
próxima ao chão, o que pode nos levar a fazer uma associação entre sapato e a
nossa relação com a realidade.
Segundo Chevalier e Gheerbrant
, (
1996, p. 802),
o sapato de Cinderela, na sua primeira versão, que remonta a Elieno,
orador e narrador romano do século III, confirma a identificação do
sapato com a pessoa. Quando uma cortesã, Rodopis, tomava banho,
uma águia roubou-lhe a sandália e levou-a ao faraó. Este,
impressionado com a delicadeza do , fez com que procurassem a
jovem por todo lugar; ela foi encontrada e ele a desposou. Da mesma
forma, o sapato que Cinderela abandonou no palácio do príncipe
quando fugiu, à meia-noite, se identificava com a moça. Grande foi a
surpresa quando Cinderela tirou do bolso o sinal de reconhecimento, a
prova irrefutável, o outro sapatinho, que colocou no pé: a prova da
identidade da pessoa. O príncipe, apático desde o seu
desaparecimento, tendo-a enfim reencontrado, casa-se com ela por
sua beleza, apesar de sua pobreza e dos seus farrapos.
No conto, Cinderela espera que o príncipe a encontre. Ele tem seu sapatinho
e, em algum momento, ele a encontrará e se casará com ela. O símbolo do sapato
que calça os pés é um forte símbolo sexual, representa a passagem para a vida
adulta e para o encontro da felicidade com o homem amado.
Então, percebemos que os contos de fada têm um importante valor no que
concerne à investigação dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Sendo
superior a qualquer outro material, representam os arquétipos, ou seja, o campo
favorável para a criação de determinadas imagens, símbolos e idéias.
45
Dos mbolos presentes no texto dos Grimm, observamos que o sapato é o
elemento intertextual que merece destaque porque aparece também nos três filmes
analisados. Ever After é uma história intradiegética, refere-se a um tempo passado
e é contada aos irmãos Grimm pela rainha da França, que é a tataraneta de
Danielle. O sapato aparece no início da história quando a rainha começa a
narração para os Grimm. Ele é um elo de ligação entre o conto original e a história
de Danielle. Não é um sapato que surge por magia, mas pertenceu à mãe da moça,
é real, simboliza a continuidade, a felicidade que passa de mãe para filha. Ao subir
as escadas do palácio com esses sapatinhos, ela vai em busca de um amor que lhe
traga felicidade e realização, da mesma forma que um dia foram alcançadas por sua
mãe. Apesar das diferenças sociais que a separam do príncipe, ela acredita no
sonho e o persegue determinada.
No momento da fuga, perde um dos sapatinhos, que é encontrado por
Leonardo da Vinci. Então, novamente é por meio desse elemento de encantamento
que o príncipe a procura e o coloca em seu pé, pedindo-a em casamento.
O famoso pintor renascentista tem um grande destaque na história e o que o
aproxima de Danielle é o fato dos dois serem revolucionários e estarem adiante de
seu tempo.
Em Only you, o elemento “sapato” permeia toda a narrativa. No momento em
que Faith perde um dos sapatos vermelhos em Roma, o verdadeiro príncipe o
encontra e começa a trajetória da moça à procura de sua alma gêmea. Iludida por
falsas pistas, ela não percebe que o seu grande amor está ao seu lado e a
acompanha em todas as desilusões. Por coincidência, Peter é um vendedor de
sapatos, conhece todos os desejos femininos em relação a esse acessório. Passo a
passo, ela se encaminha para o final feliz e o “sapato” é o símbolo dessa busca.
No filme, não madrasta ou fada, e muito menos magia. Faith, ao acreditar
que tudo é obra do destino, faz suas próprias escolhas e escreve a sua história.
Maid to order, ao inverter o conto original, humaniza a personagem Jessie. A
moça fútil, sem objetivos e perdulária transforma-se em uma mulher sensível e
preocupada com a felicidade e necessidades daqueles que a acompanharam nessa
fase de mudanças.
46
Quando o pai de Jessie, cansado das loucuras da filha, manifesta o desejo
de nunca ter tido uma filha, entra em cena “a fada” e o conto de fadas se repete. Na
cena, que pode ser vista na Figura 56, o pai de Jessie segura o sapato perdido por
ela, ao tentar entrar na mansão. Ele não se lembra da filha e assim a história
acontece. No final, não é o príncipe que calça os sapatos nos pés de Jessie, que por
sua mudança, recebe o amor e a felicidade nos braços de Nick.
Portanto, concluímos, de acordo com Kristeva(2005), que toda seqüência está
duplamente orientada até o ato da reminiscência (evocação de uma outra escritura)
e até o ato da intimação (a transformação da escritura). Dessa forma, o livro remete
a outros livros e, mediante os modos de intimação, dá a esses livros uma nova
maneira de ler, elaborando, assim, sua própria significação.
CAPÍTULO III
AS NARRATIVAS AUDIOVISUAIS
47
1.
Das narrativas literárias às narrativas audiovisuais
Neste capítulo pretendemos falar do código fílmico e mostrar como os três
filmes analisados se relacionam. O foco da análise será mostrar a construção da
simbologia do sapato, ao ser transcodificado do conto A gata borralheira, dos Irmãos
Grimm, para os filmes Ever After, Only you e Maid to order.
Para tanto precisamos, primeiramente, mostrar as mudanças ocorridas nas
narrativas literárias desde o surgimento da câmera cinematográfica, pois estamos
contrapondo literatura e cinema. Depois pretendemos fazer uma análise, nos três
filmes estudados, dos quatro elementos necessários para a composição de um bom
personagem, segundo Syd Field. Esses elementos serão explicados mais adiante.
Finalmente relacionaremos as três produções cinematográficas, observando os
elementos intertextuais.
A variedade das obras literárias presentes no cinema fazem-nos pensar sobre
a analogia que existe entre as duas linguagens.
Antes mesmo da existência da escrita havia os contadores de histórias que
viviam nas zonas rurais ou em lugarejos e que, oralmente, difundiram seus contos
que mais tarde foram adaptados e colocados em livros. Essas narrativas orais
apresentavam um processo narrativo que se solidificou na escrita, fazendo com que
elas não se perdessem.
No século XVI, Perrault retirou dessas histórias o conteúdo violento e
acrescentou a magia, fazendo a mediação dessas narrativas, que eram contadas
por camponeses, para os salões da aristocracia.
Mais de um século depois, os Irmãos Grimm, a partir de uma seleção dessas
histórias, criaram uma coletânea de contos, dentre os quais se destaca Cinderela.
No lugar da fada da versão de Perrault, aparecem a árvore( aveleira) e pombos, que
facilitam sua ida aos bailes. Ae, mesmo morta, pode ser vista como fada, que se
corporifica nesses elementos da natureza.
Essa narrativa também está presente no cinema, que conta suas histórias
através da projeção de fotogramas que criam a ilusão ótica do movimento. A
narrativa fílmica é um texto construído por imagens, sons e discursos verbais
necessários para a compreensão do espectador. Ao adaptarmos um roteiro de um
conto literário, surge outro texto, com características próprias, apesar de possuir
48
similaridades com o texto de origem. Essas aproximações entre os dois códigos é o
que explicaremos na primeira parte deste capítulo.
2.
. A evolução dos modos de ver da literatura a partir do cinema
Toda narrativa assenta-se na representação da ação, que se organiza em um
enredo evoluindo com o passar do tempo, o que significa que uma rie de
enunciados em seqüência que está sujeita à percepção de um narrador.
Para que essa evolução de acontecimentos ocorra, há uma condição essencial:
o tempo. Assim, as formas narrativas, sejam elas literárias ou audiovisuais, estão
articuladas em seqüências de tempo, não importando de que maneira se essa
articulação. No interesse deste trabalho, é importante dizer que, no cinema, as
seqüências se fazem com imagens, enquanto que, na literatura, se realizam com
palavras.
Isso gera diferenças na forma de representar o tempo nas narrativas modernas
e contemporâneas, levando em conta que as primeiras localizam-se no início do
século XX e as outras, depois da segunda Guerra Mundial. A evolução dos recursos
técnicos por meio de imagens é que determina essas distinções e, paulatinamente,
marcou sua influência na narrativa literária. O cinema com suas imagens em
movimento mostrou a relatividade entre tempo e espaço, marcando assim a
inseparabilidade entre esses dois elementos e preenchendo o invisível com o visível,
isto é, o tempo é percebido através de uma série de imagens visíveis, sintetizando o
fluxo das coisas.
Segundo Pellegrini (2003, p.18), o tempo contém o antes que se prolonga no
durante e no depois, significando a passagem, a tensão do próprio movimento
representado em imagens dinâmicas, não mais capturado num instante pontual,
estático, como na fotografia.
Dessa forma não distinção entre o visível e o invisível e se percebe
claramente a permeabilidade entre os domínios temporal e espacial.
Além disso temos que considerar que a câmera fotográfica é um olho mecânico
que se move para todos os lados e está livre da imobilidade do ponto de vista
49
humano. Essa conquista do cinema marcou a narrativa literária moderna e adveio do
aprimoramento de técnicas cinematográficas que se devem às condições
econômico-sociais e culturais a partir do fim do século XIX.
O século XIX trouxe a passagem da mecanização à industrialização, alterando
a vida das pessoas e isso se refletiu na forma das narrativas realistas, mostrando os
efeitos destrutivos do tempo que fazia as coisas mudarem de valor e de significado.
Pellegrini (2003, p.20) afirma,
que o domínio do instante sobre o permanente, o sentimento de que
cada fato é efêmero e transitório, a idéia de que a realidade não é um
estado, mas um processo, e de que “não nos podemos banhar duas
vezes nas águas do mesmo rio”, transforma a realidade num
continuum que assume um caráter de incompletude e inexorabilidade.
O que temos então na narrativa literária realista é uma detalhada descrição de
fatos, lugares e pessoas, numa linguagem referencial que marca a fugacidade do
momento que passa e não mais tornará a se repetir. Para exemplificar, podemos
citar Machado de Assis, em sua fase realista, com suas descrições minuciosas,
tentando capturar e mostrar todos os instantes da história narrada. O tempo arrasta-
se de acordo com os ponteiros do relógio, quando essas narrativas se prendem a
minúcias.
A partir do século XX, a narrativa moderna abraça definitivamente o novo
conceito de tempo que não se baseia apenas no relógio e passa a entendê-lo como
duração, um tempo subjetivo que não se faz com medidas temporais objetivas. As
relações temporais alcançam um caráter espacial, pois é o tempo da imagem em
movimento que pode fazer a ação deslocar-se para todos os lados. Surge, nesse
momento, a simultaneidade e o espaço passa de estático a dinâmico.
Os recursos de montagem propiciaram a aproximação de lugares distantes e
diferentes e evidencia-se a relação literatura e cinema: a velocidade das imagens
em movimento atinge o caráter estático das palavras no papel.
Não podemos dizer que o cinema é o único responsável por essa
mudança no conceito de tempo e espaço; também o desenvolvimento
das artes plásticas, como, por exemplo, o sistema cubista de formas
múltiplas, que mostra o diálogo entre as diversas linguagens artísticas.
(
PELLEGRINI, 2003, p.23)
.
Porém a narrativa literária tem suas limitações e pode apresentar o conceito
de simultaneidade de modo seqüencial devido à linearidade do discurso. Por isso,
50
podemos afirmar que a literatura faz com palavras o que o cinema faz com imagens.
Em decorrência disso, o tempo tornou-se a principal personagem das narrativas
modernas e liga-se sem questionamentos à imagem em movimento.
Toda essa alteração trazida pelo cinema fez as narrativas literárias evoluírem e
as contemporâneas representarem a realidade de forma diversa, num universo
plural de mundos possíveis no tempo e no espaço. Os textos contemporâneos
lançam mão do espaço construído e desconstruído ao mesmo tempo e, assim
evoluem em relação às narrativas anteriores (realistas e modernas), que
organizavam o espaço ao redor de um sujeito que o percebia. Isso envolve uma
série de estratagemas que chegam até os espaços que geograficamente não estão
próximos.
Resumindo, com o correr do tempo,as narrativas literárias foram mudando por
terem incorporado as técnicas visuais. Essa mudança processou-se seguindo um
crescimento requintado das técnicas literárias para poder simplificar a linguagem,
livrá-la de tantos artifícios qualificadores para tentar igualar-se à representação da
imagem visual, que se constrói de forma mais objetiva.
Objetivando a linguagem, as narrativas literárias chegam à fragmentação, novo
aspecto que evidencia a visão moderna de mundo. Esse processo transforma
definitivamente as estruturas narrativas e até o modo de organizar a frase, chegando
a renunciar os vínculos lógicos, limitando-se a fragmentos de frases ou palavras que
parecem não ter ligação entre si.
A partir do século XVI, a noção de perspectiva orientava o campo de visão a
partir do olho humano. Com a invenção da câmera, mais propriamente a
cinematográfica, tudo mudou e o homem deixou de ser o centro focal. Com essa
evolução técnica, o subjetivismo pessoal cedeu terreno a um subjetivismo
pluripessoal, que observamos até hoje, fazendo surgir uma voz ou vozes envolvidas
de forma direta na narração. Essa evolução vai abranger até a noção de
personagem que, aos poucos, deixa de ser central, representativo de uma classe
social ou profissão, fazendo-nos lembrar os tipos de Gil Vicente. Passa então a ser
um ser comum, mais próximo da vida real e que está inserido num mundo caótico e
sem nexo. O que importa realmente são as sensações, as percepções de cada
minuto vivido.
A personagem vai se moldando às novas técnicas a partir das narrativas
modernas e, ao chegarmos às narrativas contemporâneas, é um sujeito urbano,
51
adaptado aos grandes centros e às mídias, um produto que mescla a realidade e os
meios de comunicação massivos.
Com a chegada dos computadores em rede, percebe-se que não mais
limites espaciais, podemos, em questão de segundos, estar conectados a quaisquer
lugares. Todo esse complexo processo alterou profundamente o universo literário e a
questão é pensarmos a direção que a literatura tomará a partir dessas
transformações. De que forma essas alterações tecnológicas influenciarão os
valores que há séculos vêm sendo propagados pela cultura verbal?
A presente análise a que se propõe este trabalho ajuda a responder também a
esse questionamento, pois mostra que as relações entre literatura e cinema
caracterizam-se por uma forte intertextualidade. Os filmes analisados mantêm um
diálogo, em maior ou menor grau, com um conto de fadas antigo e dessa forma
reafirmam antigos valores e crenças.
Na segunda parte deste capítulo analisaremos os elementos para a
composição de um bom personagem, de acordo com Syd Field. Essa análise será
feita levando em consideração os filmes estudados.
3.
Elementos para a composição de um bom personagem
Syd Field (2001, p.44) afirma que criar bons personagens é essencial para o
sucesso de seu roteiro; sem personagens, não ação; sem ação, não há conflito;
sem conflito, não há história; sem história, não há roteiro.
Como, então, o escritor deve agir para criar bons personagens?
O escritor tem que conhecer muito bem os seus personagens e para isso,
antes de qualquer coisa deve criar um contexto de personagem.
Segundo Field (2001, p.45), quatro elementos são necessários para a
composição de um bom personagem: necessidade dramática, ponto de vista,
mudança e atitude. Passaremos, agora, a abordar cada um dos filmes analisados
considerando esses elementos, mas, em primeiro lugar, faremos um breve
comentário de cada filme, incluindo sua ficha técnica.
52
Para Sempre Cinderela
Filha única de um nobre francês, uma jovem passa a ser tratada como criada por
sua madrasta após a morte do seu pai. Mas sua situação começa a
mudar quando ela conhece o príncipe do reino onde vive. Com Drew Barrymore,
Anjelica Huston e Dougray Scott.
Figura 7. capa do videocassete
Ficha Técnica
Título Original: Ever After
Gênero: Romance
Tempo de Duração: 120 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1998
Site Oficial: www.foxmovies.com/everafter
Estúdio: 20th Century Fox
Distribuição: 20th Century Fox Film Corporation
Direção: Andy Tennant
Roteiro: Susannah Grant, Andy Tennant e Rick Parks, baseado em história de
Charles Perrault
Produção: Mireille Soria e Tracey Trench
Música: George Fenton
Direção de Fotografia: Andrew Dunn
Desenho de Produção: Michael Howells
Direção de Arte: Stephen Dobric, Martyn John e Damien Lanfranchi
53
Figurino: Jenny Beavan
Edição: Roger Bondelli
Efeitos Especiais: Cinesite Ltda.
Elenco
Drew Barrymore (Danielle De Barbarac)
Anjelica Huston (Baronesa Rodmilla De Ghent)
Dougray Scott (Príncipe Henry)
Patrick Godfrey (Leonardo da Vinci)
Megan Dodds (Marguerite De Ghent)
Melanie Lyndskey (Jacqueline De Ghent)
Timothy West (Rei Francis)
Judy Parfitt (Rainha Marie)
Jeroen Krabbé (Auguste De Barbarac)
Lee Ingleby (Gustave)
Kate Lansbury (Paulette)
Anna Maguire (Jovem Danielle)
Ricki Cuttell (Jovem Auguste)
O filme Ever After é uma versão de Cinderela mais próxima do real, pois não
apresenta o elemento mágico. Com Drew Barrymore, Anjelica Houston e Dougray
Scott, a história tem ação, humor, drama, aventura e romance em uma competente
reconstituição de época, a França do século XVI. Jeanne Moureau introduz e narra a
história, começando por uma conversa com os Irmãos Grimm. Eles reconhecem a
existência de diversas versões, como a de Charles Perrault, com abóbora
transformada em carruagem e outros elementos fantásticos. Falam sobre os
sapatinhos do baile, que seriam de pele, vidro ou cristal.
O roteiro criativo e original narra o conto da Gata Borralheira como sendo
real; somente com o tempo teria se metamorfoseado em conto de fadas. Enfatiza a
leitura como instrumento de conscientização e mostra as dificuldades na busca da
alma gêmea.
O filme traz magníficas tomadas aéreas registrando com abrangência os
cenários naturais, a câmera em movimento mostra panorâmicas verticais e
54
horizontais e diversas cores que fazem lembrar, em alguns momentos, quadros
impressionistas
11
.
Vale destacar a fotografia, os cenários externos (propriedades rurais, castelos
da França e seus arredores), a trilha sonora de George Fenton, o coro de Magdalen
College, Oxford, as ruínas de Amboise, os diálogos e os momentos românticos.
Também merece ênfase o personagem Leonardo Da Vinci, que se apresenta como
um conselheiro tanto de Danielle (Cinderela), quanto do príncipe Henry. A obra
Utopia de Thomas More aparece como um dos livros lidos prediletos de Cinderela e
metáfora do filme.
Quando se faz um filme, novela ou minissérie que tem como ponto de partida
uma narrativa literária, o seu próprio contexto e temos que entender essas
produções como outras obras. A linguagem audiovisual é ágil e isso lhe é peculiar.
A interação entre as mídias tornou mais difícil recusar o direito do
cineasta à interpretação livre do romance ou peça de teatro, e admite-
se até que ele pode inverter determinados efeitos, propor outra forma
de entender certas passagens, alterar a hierarquia de valores e
redefinir o sentido da experiência das personagens. A fidelidade ao
original deixa de ser o critério maior de juízo crítico, valendo mais a
apreciação do filme como nova experiência que deve ter sua forma, e
os sentidos nela implicados, julgados em seu próprio direito. (
XAVIER,
2003, p.61).
O filme Ever After atualiza um conto de fadas de tradição oral muito antigo e
que teve várias versões. Entre as narrativas literárias e a narrativa audiovisual
um grande distanciamento no tempo, por isso o filme deve manter um diálogo com
todas essas histórias e também adaptar-se ao tempo em que está inserido. O texto
escrito deve ser tomado como ponto de partida, mas não de chegada.
Ao fazer um filme baseado em uma narrativa literária, deve-se levar em conta
que uma maneira de fazer as coisas que é própria da linguagem cinematográfica
e que o universo do texto é outro, embora seja análogo ao modo de fazer do cinema.
11 Na pintura impressionista, as cores e tonalidades não são obtidas pela mistura de tintas na paleta do pintor.
São puras e dissociadas nos quadros em pequenas pinceladas. Ao admirar a pintura, o espectador combina as
várias cores, obtendo o resultado final. Então, a mistura passa a ser óptica e não técnica. É a mesma sensação
que temos ao observarmos os cenários naturais do filme Ever After. (www.wikipedia.org.br).
55
Podemos dizer que palavra e imagem têm um eixo comum de
operações que é a narrativa e portanto podemos falar de tempo,
espaço, tipos de ação e personagens para nos referirmos tanto ao
texto literário quanto ao filme. Uma única história pode ser contada de
vários modos; ou seja, uma única fábula pode ser construída por meio
de inúmeras tramas, com formas distintas de dispor os dados, de
organizar o tempo. (XAVIER, 2003, p.65).
Sendo assim não podemos atribuir valor maior à narrativa literária ou à
narrativa audiovisual e sim entender que são obras distintas, com características
próprias.
Ever After apresenta o conto de fadas sem a magia presente no texto original,
com personagens fortes e reais. “O bom personagem é o coração, a alma e o
sistema nervoso do seu roteiro.” (FIELD, 2001, p.44).
A necessidade dramática define-se como uma motivação, aquilo que o
personagem quer vencer, ganhar, conseguir ou alcançar durante o transcorrer da
narrativa.
Em Ever After, Danielle é uma jovem que quer ser amada, ser aceita pela
madrasta e as irmãs e também encontrar a sua alma gêmea. A determinação da
necessidade dramática do personagem assegura a manutenção de seus elementos
no lugar certo. Devemos então levantar os obstáculos que impedem o alcance desse
primeiro elemento da composição do personagem.
No filme, Danielle, após a morte do pai, confronta-se constantemente com a
madrasta e se mostra inteligente, amorosa, decidida, amante dos livros, amiga e
defensora de seus criados; de natureza trabalhadora, ao invés de realizar suas
tarefas somente por imposição da Baronesa; é consciente das injustiças sociais,
procura combatê-las dentro de suas possibilidades, mostrando entusiasmo e
convicção.. Consegue ultrapassar os obstáculos com coragem e dignidade.
O segundo elemento de análise na composição de um bom personagem, o
ponto de vista, nada mais é do que o modo como o personagem vê o mundo, como
ele o enfrenta. “Todo bom personagem dramatiza um ponto de vista forte, bem
definido.” (FIELD, 2001, p.48).
56
Danielle tem um ponto de vista bem definido, ela vê o mundo com os olhos do
bem, vive dentro da realidade, sabe que não deve sonhar com o príncipe, pois não
está à altura dele. O ponto de vista faz a personagem agir e não simplesmente
reagir.
Ao longo da narrativa, outro elemento importante na trajetória do personagem
é a mudança. Danielle, em Ever After também passa por mudanças. Ela passa de
uma postura resignada para outra mais aguerrida, sabe o que quer e vai lutar por
sua felicidade. Isso ocorre quando se percebe apaixonada por Henry e sabe que ele
é sua alma gêmea, sua oportunidade de ser feliz.
Com relação à atitude de nossa heroína, pudemos observar que sua
necessidade dramática foi decisiva para esse último elemento. Danielle, no
transcorrer da narrativa, tem uma atitude positiva, não se desvia de seu caminho e
só se fortalece.
Nesse conto de fadas audiovisual não fada, nem magia, luta, força e
determinação de uma jovem, que por sua bondade, é ajudada por todos que a
cercam. No final, ela e o príncipe se casam e o rosto de Danielle é retratado por Da
Vinci. O retrato ficou em uma parede da universidade até a revolução e a tataraneta
de Danielle (Jeanne Moreau) termina de contar a história aos Irmãos Grimm,
falando que essa narrativa foi transformada em um simples conto de fadas. Se
Cinderela e seu príncipe viveram felizes para sempre, ela não sabe, mas que o
importante é que viveram.
Como vimos, a necessidade dramática, o ponto de vista, a mudança e a
atitude são elementos importantes para a criação e trajetória dos personagens.
Ao fazer essa análise, constatamos que a transposição do texto escrito para o
fílmico envolve a contribuição de particularidades da linguagem cinematográfica. “O
cinema transforma vidas de papel em algo cada vez mais concreto e verossímil.”
(MOREIRA, 2005, p.17). Essa linguagem joga com imagens e isso ajuda a
concretização do texto escrito. Nele, as imagens criam-se na cabeça do leitor, de
acordo com a recepção de cada um. No cinema um diretor, um roteirista que nos
apresentam imagens prontas que vão cena a cena contando a história com a ajuda
57
das ações dos personagens. “O cinema conta com a tecnologia, trazendo recursos
audiovisuais para remodelar a estrutura narrativa.” (MARÇOLLA, 2005, p.137).
Cinderela às avessas
Figura 8. Capa do videocassete
Menina, orfã de mãe, mora em Beverly Hills e é muito mimada pelo pai, que
faz estranho pedido aos céus e muda a história da família.
Ficha Técnica
Título Original: Maid to Order
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 93 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1987
Estúdio: Warner Bross
Direção : Amy Jones
Direção de fotografia: Shelly Johnson
Música: Georges Delerue
Produção: Herb Jaffe e Mort Engelberg
Elenco
Ally Sheedy (Jessie Montgomery)
Beverly D´Angelo (Stella)
58
Dick Shawn (Stan Starkey)
Michael Ontkean (Nick Mcguire)
Valerie Perrine (Georgette Starkey)
No segundo filme analisado Maid to Order (Cinderela às avessas), Jessie é a
personagem que merece a nossa atenção quanto aos quatro elementos que ajudam
na composição de um bom personagem.
Jessie é uma garota mimada, filha de um milionário filantropo, que vive
arrumando confusão e gastando dinheiro para provocar o pai. Ela é órfã de mãe e
mora em Beverly Hills. Uma noite acaba presa. Seu pai, inconformado com as
atitudes da filha, faz um estranho pedido aos céus e muda a história da família.
Jessie passa a noite na cadeia, mas durante a madrugada é visitada por Stella, sua
fada madrinha, que a transforma numa garota pobre que terá que lutar por sua
sobrevivência, trabalhando na mansão de um casal de alpinistas sociais. A moça
convive com outros empregados e realiza tarefas que jamais fizera em sua vida. Seu
serviço é limpar a casa, de princesa torna-se A gata borralheira.
Na mansão, ela conhece Nick, o motorista da família, e se interessa por ele.
Então, o famoso conto de fadas é contado às avessas. Jessie era milionária, tinha
tudo, mas não tinha um amor, um objetivo. Perde o pai, todos os bens materiais e
sua trajetória é a de encontrar um bem maior, é essa a sua necessidade dramática,
dar valor às coisas que perdeu.
Observamos, então, que Jessie têm uma necessidade dramática que vai
definir sua trajetória, vai ajudar a contar sua história. No transcorrer dessa narrativa
audiovisual, ela enfrenta muitos obstáculos que vão determinar o seu ponto de vista.
Jessie é colocada no outro lado do mundo que conhecia, o mundo dos
serviçais. Faz serviços com os quais não estava habituada por um salário semanal
muito inferior àquilo que gastava em uma noitada, na sua vida anterior. No começo,
não desempenha bem suas funções e por isso é descontada, diminuindo a quantia
ganha. Quem a ajuda a se adaptar é Audrey, a governanta da casa, uma cantora dos
velhos tempos, que também sonha com a oportunidade do estrelato. O ponto de
vista de Jessie, no princípio, é de revolta com o que a fada fez com a sua vida, mas
59
com o passar do tempo vai se humanizando e se torna uma pessoa mais positiva,
preocupada em ajudar os outros.
Então para que essa personagem continue seu percurso narrativo, há a
necessidade da mudança. Jessie, ao se encontrar numa posição desfavorável,
muda o seu modo de ver as coisas, passa de uma menina egoísta a uma mulher
preocupada com as necessidades daqueles que a rodeiam. Ela cresce aos olhos da
fada, que, pouco a pouco, percebe que o desejo do pai de Jessie o foi em vão,
ajudou a filha a crescer. Com a mudança vivida por Jessie vem uma nova atitude.
Ela tem, assim, uma atitude mais positiva, deixa a revolta de lado e concentra-se em
fazer o bem para os outros, como vemos no final do filme, na festa que é dada na
mansão para promover um cantor de rock. Stella faz esse músico desmaiar e
Cinderela tem uma idéia: fazer a governanta cantar uma canção de Nick,
acompanhada por ele, no teclado. Na platéia estão empresários e pessoas ligadas à
música. A apresentação é um grande sucesso e os dois são contratados. Jessie vai
até a porta e encontra Stella, a fada, que está muito feliz com o desempenho da
moça. Diz que ela passou no teste e receberá tudo o que perdeu. Os sapatinhos
brilham em seus pés e a fada se despede, transformando-se em uma estrela. O pai,
que está saindo da casa, acha estranha sua roupa, sorri e pede que ela não chegue
muito tarde em casa. Pai e filha se abraçam e ele parte com seu motorista.
Jessie fica parada, com olhar de pura felicidade, e aparece Nick, exultante por
ter realizado seu sonho. Os dois terminam juntos, abraçados, como num verdadeiro
conto de fadas e na tela aparece “viveram felizes para sempre”.
Nesse filme destacam-se mais os cenários internos, com lindas e comoventes
cenas. referências nítidas ao conto de fadas original de Cinderela: a magia, a
fada, os sapatinhos e o príncipe.
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Only You
Desde os 11 anos uma mulher recebe de ciganas e videntes o nome
de Damon Bradley como sendo o do homem de sua vida. Às vésperas de se casar,
ela recebe um telefonema de um homem com esse nome e decide largar tudo para
encontrá-lo. Dirigido por Norman Jewison (Hurricane - O Furacão) e com Marisa
Tomei, Robert Downey Jr., Bonnie Hunt e Joaquim de Almeida no elenco.
Figura 9. Capa do videocassete
Ficha Técnica:
Título Original: Only You
Gênero: Comédia Romântica
Tempo de Duração: 108 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1994
Estúdio: TriStar Pictures / Fried/Woods Films / Yorktown Productions
Distribuição: Columbia TriStar Films Distributors International
Direção: Norman Jewison
Roteiro: Diane Drake
Produção: Robert N. Fried, Norman Jewison, Charles Mulvehill e Cary Woods
Música: Rachel Portman
Fotografia: Sven Nykvist
Desenho de Produção: Luciana Arrighi
Direção de Arte: Maria Teresa Barbasso, Gary Kosko e Stefano Maria Ortolani
Figurino: Milena Canonero
61
Edição: Stephen E. Rivkin
Elenco:
Marisa Tomei (Faith Corvatch)
Robert Downey Jr. (Peter Wright)
Bonnie Hunt (Kate Corvatch)
Joaquim de Almeida (Giovanni)
Fisher Stevens (Larry Corvatch)
Billy Zane (Damon Bradley falso)
Adam LeFevre (Damon Bradley)
John Benjamin Hickey (Dwayne)
Siobhan Fallon (Leslie)
Antonia Rey (Fortune Teller)
Phyllis Newman (mãe de Faith)
Denise DuMaurier (mãe de Dwayne)
O terceiro e último filme analisado é Only You (Só Você), de 1994, sob a
direção de Norman Jewison. Analisaremos o seguinte personagem: Faith, uma
professora, personagem da atriz Marisa Tomei.
Faith acredita que sua alma gêmea é um homem chamado Damon Bradley.
Esse nome apareceu em sua infância através de uma tábua Ouija e também foi
predito por uma cigana. O tempo passa e quando ela está prestes a se casar com
um médico, atende ao telefonema de um amigo de seu noivo, desculpando-se por
não poder comparecer à cerimônia, pois está partindo, naquele instante para
Veneza. O nome desse amigo é Damon Bradley, o que faz com que ela não pense
duas vezes e decida ir atrás dele. A cunhada Kate acompanha Faith nessa aventura
amorosa.
62
O filme tem um roteiro inteligente, uma trilha sonora perfeita e uma fotografia
sensacional, mostrando Roma, Veneza e Positano. É uma história leve sobre a
busca da alma gêmea e do amor incondicional.
Logo no início fica clara a necessidade dramática de Faith: encontrar o seu
grande amor, a pessoa que vai completá-la por toda a vida. Para tanto ultrapassará
alguns obstáculos. Está a poucos dias de seu casamento e mesmo assim quando
está provando o seu vestido de noiva, recebe um telefonema que mudará sua vida.
Sai, vestida de noiva e vai ao aeroporto tomar um avião para Veneza. Kate, sua
cunhada, acha tudo uma loucura, mas resolve acompanhar Faith para tentar trazê-la
à vida real.
Nossa heroína tem um ponto de vista definido, o mundo de uma forma
romântica e fantasiosa, pois se deixa guiar por uma adivinhação de infância feita por
uma cigana, que sem ela saber, foi paga por seu irmão como uma simples
brincadeira.
Essa predição faz a moça passar por uma mudança, deixa de ser equilibrada
e vai mundo afora atrás daquele que ela acredita ser seu príncipe encantado. Troca
o futuro seguro ao lado de seu noivo por uma aventura da qual ela nem desconfia o
final. Sua atitude é positiva, Faith acredita no sonho e vai fazer de tudo para realizá-
lo.
Ao chegar a Veneza, é informada no hotel que Damon partiu para Roma. A
professora não pensa duas vezes e parte para lá. Ela e a cunhada hospedam-se em
uma pensão e conseguem uma informação de que Bradley estará , à noite, em um
restaurante da cidade. Com a ajuda de Kate, escolhe seu traje, que é vermelho,
inclusive os sapatos. As duas vão até o lugar e um garçom diz que o suposto
homem procurado está em uma das mesas e indica o local. Faith dirige-se até ele,
mas ocorre um desencontro, pois o sujeito usa uma outra porta e sai do lugar. Ela
corre atrás dele pelas ruas de Roma e perde um dos sapatos. Nesse momento
surge Peter, que encontra o calçado e segue a moça.
Na cena seguinte, ela está numa praça, sentada no contorno de uma fonte
conversando com a cunhada. Peter encanta-se pela dona do sapato vermelho, ouve
a conversa e resolve passar-se por Damon Bradley.
63
Depois de tão importante revelação, eles saem para um passeio romântico
pela cidade. Vão até o local onde ele está hospedado, porém Peter sente-se
incomodado pela mentira e revela para a moça que ele não é Damon e sim um
vendedor de sapatos chamado Peter Wright. O encantamento rompe-se e ela vai
embora furiosa, deixando-o desconsolado.
De volta à pensão, Faith é consolada por Kate. Em sua trajetória, Cinderela
(Faith) encontra muitos obstáculos. Após desencantar-se com Peter, resolve voltar
para casa e esquecer o seu sonho, mas o nosso herói convence-a de que o
verdadeiro Damon está hospedado em um hotel em Positano. Totalmente cega pela
vontade de que a predição se realize, deixa-se levar e segue Peter até o local
indicado. Além de Veneza, Positano é o cenário natural mais bonito e encantador
dessa narrativa.
Através do cartão de crédito, Larry, o marido de Kate vai a Positano decidido a
recuperar a esposa e salvar a relação dos dois.
A essa altura, percebemos que Faith está apaixonada por Peter, devido à
postura do rapaz, seu romantismo, mas ela não quer admitir o fato, pois ele não tem
o nome do homem de seu destino, tanto tempo revelado. No hotel, ela cai na
outra farsa criada por Peter e marca um jantar com o rapaz que diz ser Bradley. Para
esse encontro, ela é ajudada por nosso herói, que a presenteia com uma sandália
para combinar com seu traje. Ele a ajuda a escolher os outros acessórios e ela parte
para mais uma decepção.
Ao terminar o jantar, todos vão a uma festa em um iate e lá, Peter e o falso
Damon são desmascarados. Faith fica furiosa, agride os dois e vai para o hotel. O
rapaz, que sempre tinha tido uma atitude positiva e acreditava poder conquistar o
amor da professora, sente-se derrotado. Kate, que era mais cética quanto à
aventura da amiga, dá-se conta da paixão dos dois e tenta abrir os olhos da
cunhada.
Faith está magoada e decide partir, deixando Kate e o irmão no hotel. Sente
um profundo arrependimento por tudo que fez e então segue para o aeroporto. Lá
encontra Peter, que também está para embarcar. Eles ouvem pelo alto-falante um
chamado para Damon Bradley comparecer a um determinado guichê. Atendem ao
64
chamado, Peter apresenta Faith a um Damon atônito, que não entende o que está
acontecendo. A moça fica sem palavras e Peter embarca, desiludido e magoado. No
avião, ele está sentado pensando em tudo que aconteceu, quando ela chega,
arrependida e se declara totalmente apaixonada. A última cena retrata o avião
decolando, concluindo-se que o casal viveu feliz para sempre.
Retornando ao conto A Gata borralheira, podemos dizer que a necessidade
dramática da personagem principal (Cinderela) é semelhante às das protagonistas
dos filmes: quer abandonar a vida de humilhações, encontrar um amor e ser feliz. No
caminho desse sonho, temos a madrasta, o pai e as irmãs, que são seus obstáculos.
Ao contrário de Danielle, ao se confrontar com a madrasta, mostra-se obediente e
resignada. Chora suas mágoas no túmulo da mãe e é fiel ao que prometeu no leito
de morte: ser boa e piedosa.
Seu ponto de vista é muito parecido ao de Danielle, pois ela também o
mundo com bons olhos, mas sonha com o príncipe; ele virá e a libertará da vida de
maltratos e desgostos.
Sua mudança verifica-se no momento em que ela quer ir ao baile e a
madrasta não permissão, apesar de ela cumprir, com a ajuda das pombinhas,
uma tarefa praticamente impossível. A partir daí, a moça deixa de ser obediente e
vai em busca de seu sonho: vai ao baile e para isso conta com o elemento mágico.
Dessa forma, notamos que a atitude passiva do início desaparece e
Cinderela, mesmo fazendo tudo às escondidas, não acata mais as determinações da
madrasta e marca a sua presença nos bailes oferecidos pelo rei.
Ao analisarmos os elementos para a composição de personagens nos três
filmes propostos e no conto, notamos que tanto a narrativa literária de Cinderela
como suas transcodificações e atualizações mostram que no imaginário feminino
ainda a procura pela alma gêmea. “E é justamente por essa razão que podemos
compreender e afirmar que as narrativas ficcionais literárias e audiovisuais são
uma edição da narrativa em estado bruto que é a trajetória humana. (MOREIRA,
2005, p. 20).
Talvez por isso haja uma carência de boas narrativas inéditas e as
existentes sejam constantemente remodeladas e atualizadas. As mídias exploram os
65
conteúdos existentes, adaptando-os à televisão ou ao cinema. Atualmente os
remakes multiplicam-se mostrando uma atualização e adaptação às novas
tecnologias. Tanto o cinema quanto a TV desfilam suas múltiplas possibilidades e
recursos.
A análise feita permitiu-nos relacionar um conto de fadas tradicional e suas
atualizações audiovisuais, mostrando que cada gênero tem suas peculiaridades,
mas ambos contam histórias e alimentam o imaginário dos espectadores.
4.
Literatura e Cinema: Dois modos de contar uma história
Na terceira parte deste capítulo, faremos um recorte para tentarmos
aprofundar nossa análise. O nosso propósito é mostrar como os filmes trabalharam
a questão do elemento gico que se apresenta no conto literário dos Irmãos
Grimm, para assim solidificarmos as relações intertextuais entre os dois códigos: o
literário e o fílmico.
Entre literatura e cinema existem diferenças essenciais. Os dois meios
trabalham com elementos diferentes. Enquanto a literatura tem a seu dispor a
linguagem verbal com toda a sua riqueza de metáforas e figuras, o cinema trabalha
com não menos que cinco apetrechos de expressão diferentes: as imagens, a
linguagem verbal oral, a linguagem não-verbal, a música e a língua escrita que
aparece na tela. Esses elementos podem ser controlados de diversas formas.
Tanto a literatura quanto o cinema são criações do imaginário, constroem a
cultura e alimentam a fantasia dos leitores e espectadores. Conforme Silva ( 2003, p.
7), “o ser humano é movido pelos imaginários que engendra. O homem existe no
imaginário.”
Qualquer que seja a obra artística, deve ser julgada, analisada dentro dos
valores do seu próprio campo. Os dois meios analisados neste trabalho (conto
literário e filme) diferenciam-se pelas linguagens, épocas em que foram criados e
modos de funcionamento.
66
Narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se, e na maioria dos casos,
contrastam-se; as características intrínsecas do texto literário não encontram a
mesma expressão na narrativa cinematográfica.
Apesar das diferenças, as duas narrativas possuem estreitos laços. O livro
contém palavras que acionarão os sentidos e que na mente do leitor traduzem-se
em imagens, sentimentos, sensações, enfim; o filme traz imagens em movimento
que serão decodificadas por meio de palavras pelo espectador. A narratividade é o
parentesco entre as duas narrativas, portanto o cinema também conta histórias,
apropriando-se da modalidade narrativa tentando legitimar-se.
A experiência da leitura do livro é, na maioria das vezes, solitária. O leitor
constrói significados durante a leitura graças a experiências anteriores. no
cinema, o espectador, por meio de imagens, manifesta reações imediatas, que são
compartilhadas por outros se eles estiverem em uma sala de projeção.
Para o presente trabalho não nos interessam especificamente as diferenças e
semelhanças entre narrativa literária e narrativa fílmica e sim como se estabelece o
diálogo entre as duas, isto é, como os filmes analisados conectam-se ao texto dos
Irmãos Grimm, A Gata Borralheira.
Qual a interpretação feita pelo cineasta do conto, em que grau ele se
aproxima ou se afasta desse texto?
A analogia entre palavra e imagem sugere equivalências estilísticas
que estarão apoiadas na observação de um gradiente de ritmos,
distâncias, tonalidades, que estão associadas a emoções e
experiências, bem como a um uso figurativo da linguagem que permite
dizer que palavra e imagem procuram explorar as mesmas relações
de semelhança (as metáforas) e as mesmas cadeias de associação e
casualidade (as metonímias). (
XAVIER, 2003, p.63
).
Não podemos esquecer de considerar que na transposição do código literário
para o digo fílmico uma rie de questões práticas e teóricas. O livro e o filme
nele baseado são “dois extremos de um processo que comporta alterações de
sentido em função do fator tempo, a par de tudo o mais que, em princípio, distingue
67
as imagens, as trilhas sonoras e as encenações da palavra escrita e do silêncio da
leitura” (XAVIER, 2003, p.61).
Primeiramente podemos apontar duas formas para se conceber um filme:
partir de uma idéia original ou de uma fonte existente. Aqui, o que nos interessa é
a segunda forma, produções que, em sua maioria, foram adaptadas, recriadas. Essa
recriação será entendida, como tratamos anteriormente, a partir do dialogismo e
da intertextualidade.
Então, retomando a relação literatura e cinema, é importante lançar uma
questão: como o cinema recria os clássicos da literatura?
Para começar a responder a essa questão, vale ressaltar a importância do
cinema no processo de ensino da literatura. Na década de 1990, com a invenção e
popularização do deo, a prática de mostrar a literatura no cinema tornou-se um
apoio didático muito forte aos professores, pois funcionou como um incentivo à
leitura dos textos escritos. Com a invenção do DVD, essa tarefa ficou ainda mais
fácil e as escolasm melhorado seu acervo cultural no que diz respeito à literatura.
Assim, o cinema passou a ser um aliado importante, mas não podemos deixar de
lado as diferenças entre os dois meios ao ensinarmos literatura.
Ao estudarmos essa relação intertextual entre cinema e literatura, precisamos
definir muito bem os dois campos e refletir sobre as variantes culturais, sociais,
econômicas e políticas desse processo de transposição de um código para outro.
No estudo do conto dos Irmãos Grimm, A Gata Borralheira, a idéia central que
serviu de tema para os três filmes analisados é a procura da alma gêmea e
conseqüentemente a procura da felicidade.
Além do tema, devemos enfocar também a preocupação com os
personagens, de que forma estavam descritos no texto de origem e como eles foram
corporificados pelos atores nos filmes. Em Ever After, Danielle(Cinderela) é uma
moça diferente da borralheira dos Irmãos Grimm, é mais real, ingênua no princípio,
mas aos poucos vai ganhando força e garra. Ao conhecer o príncipe e se apaixonar,
transforma-se em uma pessoa mais forte e disposta a lutar por seu amor. A
borralheira original é resignada e sofre calada pelas maldades praticadas por sua
68
madrasta e filhas. Devemos lembrar que esse conto é do século XIX e o filme Ever
After é do século XX, retratando o século XVI.
nos outros dois filmes analisados. Only you e Maid to order, a produção é
do século XX, retratando o mesmo século. Faith e Jessie são mulheres modernas e
decididas, vivem em uma época de valorização feminina e não querem ter suas
vidas dirigidas por outras pessoas, lutam por seus sonhos e querem conquistar a
felicidade.
Se analisarmos o príncipe do texto original, veremos que ele aparece nos
bailes e quando experimenta o sapato perdido nas duas filhas da madrasta e na
borralheira. Sua atuação é mais incisiva nos filmes, visto que em Ever After, Danielle
conhece Henry no início da história, em que ele é uma figura apagada, mas que
ganha força ao se apaixonar pela moça. Em Only you, Peter aparece no momento
em que Faith está em Roma à procura de Damon Bradley e, a partir daí é decisivo
para o desenrolar da história. Jessie, em Maid to order, conhece Nick quando ela
fica pobre e consegue emprego de arrumadeira na mansão dos Starkey’s. Ele é
personagem importante no processo de humanização da moça.
Tanto na narrativa literária quanto na narrativa audiovisual a questão do foco
narrativo é relevante. De que ponto de vista são mostrados os acontecimentos e
personagens? No conto, a história de Cinderela é contada em pessoa por um
narrador que não participa dos acontecimentos, mas está ciente de todos os fatos.
No primeiro filme analisado, Ever After, a narrativa é feita pela tataraneta de Danielle
de Barbarac aos irmãos Grimm. A voz da rainha da França inicia a história que,
posteriormente, passa a uma sucessão de cenas em continuidade. No final voltamos
a ouvir a voz da rainha encerrando a narração. No filme Only you, a história segue
um esquema narrativo clássico, feito de uma sucessão de cenas dispostas em
continuidade, sem interferências. O mesmo ocorre em Maid to order, no entanto, no
início, aparece na tela “Once upon the time” (Era uma vez) e no final, também vemos
“and they lived happily ever after” ( E eles viveram felizes para sempre), numa
referência direta aos contos de fadas.
outros elementos de estilo e estrutura que o cinema narrativo usa para
criar efeitos de linguagem da obra original: a montagem, a fotografia, o som, que são
aspectos que podem construir significados próprios. Algumas técnicas estilísticas do
69
cinema podem também ser muito importantes nesse processo de comparação entre
literatura e cinema. Dentre elas podemos citar o tamanho da tela, a imagem em
perspectiva, a velocidade do filme, a distância entre a câmera e o objeto filmado, o
ângulo e o movimento da câmera, a utilização das cores e do branco e preto num
filme, o vestuário, a cenografia e a iluminação. O importante é analisar o sentido
desses artifícios na apreensão do texto original.
Nos três filmes analisados percebemos a tentativa de reconstrução do clima
romântico do conto original, as dificuldades na busca da alma gêmea e a
reafirmação de alguns valores que permanecem nos tempos atuais como a bondade
e a solidariedade.
A análise dessas categorias narratológicas é um importante caminho para
conectar literatura e cinema e pode indicar significados intertextuais do processo de
transcodificação. Entretanto devemos lançar o nosso olhar para os modos de
apresentação de uma história, pois todos os outros elementos citados derivam
destes modos de envolvimento. Para o presente estudo o que nos interessa são dois
modos: contar uma história (tell) e mostrar uma história (show), segundo Xavier,
(2003, p. 73).
Contar uma história é um modo que se processa na imaginação, na
proporção em que a narrativa vai além das palavras e do papel, e se completa,
enquanto história, na cabeça do leitor. Dessa forma, a história contada possui
sempre a mediação de um narrador que, através das palavras, envia ao leitor as
narrativas e imagens que se tornarão perceptíveis em sua imaginação.
O segundo modo de apresentação (show) transfere o envolvimento da
imaginação para o plano da percepção direta, também chamado de modo
performático, que trabalha as potencialidades do visual e do auditivo não somente
construindo uma narrativa, mas também criando associações emotivas e respostas
afetivas da platéia. Além do cinema, teatro e televisão vivenciam de forma intensa o
modo performático.
A afirmação de que a literatura conta (tell) e o cinema mostra (show) é
muito pouco, pois a câmera tem prerrogativas de um narrador que faz
escolhas ao dar conta de algo: define o ângulo, a distância e as
70
modalidades do olhar que, em seguida, estarão sujeitas a uma outra
escolha vinda da montagem que definirá a ordem final das tomadas de
cena e, portanto, a natureza da trama construída por um filme
.
(XAVIER, 2003, p.74).
Por isso, os três filmes, ao contar a história da Cinderela, recriam o conto,
ressignificando esse texto em um novo meio, um novo contexto, um novo código de
representação e também uma nova atitude discursiva. Esse processo de
transcodificação é marcado pelo dialogismo que parte de Bakhtin e chega a a
teoria da intertextualidade de Julia Kristeva, mostrando como o filme incorpora e
digere a fonte original, para, em seguida, produzir algo estético e culturalmente
novo.
Destacamos nesse processo o elemento intertextual “sapato” e queremos
mostrar seu percurso na história original e nos três filmes. Para que isso aconteça,
vamos analisar esse elemento no conto dos Irmãos Grimm e em cenas recortadas
dos filmes.
No conto, quando Cinderela é despojada de seus lindos trajes pela madrasta,
recebe roupas velhas e tamancos de madeira para calçar. As duas filhas são
ambiciosas e muito vaidosas. Quando o pai de Cinderela vai à feira, elas pedem de
presente vestidos e jóias e a humilde borralheira apenas um ramo verde de árvore.
O rei oferece uma festa de três dias para que o príncipe escolha uma moça
para esposa. No primeiro dia, a gata borralheira tem seus trapos transformados em
um lindíssimo vestido de baile e os seus tamancos em luxuosos sapatos bordados a
ouro e prata. Quem realiza esse feito é a aveleira, árvore mágica que Cinderela
plantou no túmulo de sua mãe. No segundo baile, o vestido é ainda mais lindo e os
sapatos parecem de ouro puro. Finalmente, no terceiro dia seu vestido é de sonho,
de tule com aplicações de suntuoso brocado e uns sapatos bordados a ouro e
também uma capa de veludo bordado.
Como vemos, a transformação da Gata borralheira em Cinderela acontece
através do elemento mágico, próprio dos contos de fadas. Seu vestido e sapatos
tornam-se a cada baile mais lindos e luxuosos.
71
Ao lermos essa narrativa literária, reafirmamos a diferença básica e mais
visível entre literatura e cinema: a primeira utiliza a apreensão conceitual e cria
imagens mentais enquanto o segundo trabalha a percepção direta através de
imagens visuais. O interessante é descobrir como conceitos verbais são transpostos
para o cinema e expressos por meios visuais e quais efeitos que são decorrentes
dessa mudança de linguagem.
Para entendermos esse processo, recortamos algumas cenas dos filmes que
julgamos indispensáveis para o entendimento da relação entre os dois códigos.
Figura 10. O sapato de Danielle
Em Ever After, logo no início, algo nos chama a atenção, quando a
metalinguagem se faz presente através da figura dos irmãos Grimm, autores da obra
original intitulada A Gata Borralheira. A rainha da França solicita a presença dos
escritores em seu castelo e diz que alguns fatos que foram distorcidos pela
história dos dois, apresentando a sua versão como real. Diante do olhar atônito dos
dois, a rainha tira de uma caixa os sapatos de cristal de sua tataravó, Danielle de
Barbarac. Daí em diante acompanhamos a saga da suposta Cinderela.
72
Figura 11. O quadro de Danielle
Esse é o quadro pintado por Leonardo da Vinci, retratando Danielle e a
pintura renascentista. A câmera um close-up na pintura e aproxima-se cada vez
mais, o que nos propicia um mergulho no passado para conhecer o que realmente
aconteceu.
Figura 12. Danielle conhece Henry, como Nicole
73
A figura acima retrata o encontro de Danielle com o príncipe Henry, que
acredita que ela seja da nobreza. A moça vestiu-se com roupas que pertenciam a
sua mãe para tentar comprar a liberdade de seu criado Maurice. Nos pés usa os
sapatos simples de uma criada, mas seu amigo Gustave tranqüilizou-a dizendo que
o comprimento do vestido não deixaria os sapatos à mostra, o que denunciaria a
verdadeira condição social da moça.
Figura 13. Os pés de Danielle ao entrar na carruagem
Essa imagem mostra Danielle saindo de casa para ir ao baile. Ela veste as
roupas e calça os sapatos que foram de sua mãe. Os criados e o pintor Leonardo da
Vinci são seus ajudantes e incentivadores. Nessa cena, a câmera mostra seus s
com os sapatinhos de cristal.
74
Figura 14. Danielle conversa com Leonardo antes de ir ao baile
Nessa cena, Danielle está em dúvida, não sabe se deve ou não ir à festa. A
moça reconhece que entre ela e o príncipe um enorme abismo social e assim diz
a Leonardo: “Um pássaro pode amar um peixe, mas onde irão viver?” Ele responde
que, então, precisará fazer “asas” para ela. O pintor é o grande incentivador e
conselheiro do casal, torce por eles e quer que enxerguem que o verdadeiro amor
ultrapassa barreiras, obstáculos e torna-se ainda mais fortalecido.
Figura 15. A carruagem leva Cinderela ao baile
75
Os empregados estão acompanhando a saída de Danielle, enquanto
Leonardo da Vinci conversa com Gustave, um jovem amigo da moça, que também
quer ser pintor. De repente, as duas criadas chamam a atenção dos dois, dizendo:
“Olhem, é tradição.” Essa fala remete ao conto original.
Figura 16. As asas na roupa de Danielle
Quando Danielle chega ao baile, em seu traje esplêndido, vemos as asas em
suas costas. Leonardo cumpriu a promessa e não quer que nada atrapalhe a
felicidade do casal.
76
Figura 17. Danielle chega ao baile
Nessa cena Danielle aparece resplandecente, maravilhosa, chegando à festa.
Sobe a escadaria e entra. Leonardo da Vinci fez asas para seu vestido e ela brilha
temerosa. Na frente de todos, a madrasta desmascara nossa heroína e arranca uma
de suas asas, deixando a moça aos prantos.
Figura 18. Danielle perde o sapato
77
Danielle é humilhada e o príncipe não ouve suas explicações. Ela foge e na
fuga perde um dos sapatos. Leonardo da Vinci chama-a, mas ela não ra, foge
magoada e apavorada.
Figura 19. O sapato perdido de Danielle
Depois de uma conversa com o príncipe tentando abrir seus olhos para que
perdoe Danielle, Leonardo deixa o sapato sobre o muro do castelo, que simboliza o
obstáculo, uma barreira entre Henry e Danielle. A câmera fecha a imagem no
sapato no momento em que começa a chover. O som que escutamos é dos pingos
no cristal.
78
Figura 20. O príncipe experimenta o sapato em Danielle
Danielle consegue livrar-se do agiota a quem foi entregue pela madrasta e na
saída encontra Henry, que se declara apaixonado, pedindo perdão à moça. Ajoelha-
se. Pede-a em casamento e calça o sapato em seu pé. Depois os dois abraçam-se
felizes e muito apaixonados.
Figura 21. Henry e Danielle olham-se emocionados
Figura 22. Henry e Danielle beijam-se
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Nessas duas cenas, concretiza-se o final feliz de Henry e Danielle. Na figura
22, vê-se ao fundo o rosto da moça, pintado por Da Vinci. Assim a rainha termina de
contar a história aos Irmãos Grimm.
Figura 23. O castelo
A última imagem registra a carruagem com os Irmãos Grimm deixando o
castelo, na França.
Observando essas imagens, constatamos que a base da trama parte
basicamente dos mesmos princípios da história de Cinderela que costumávamos
ouvir quando crianças. Ever After é uma espécie de conto de fadas moderno, que
tem em Danielle uma Cinderela ousada e corajosa.
Dessa forma entendemos que livro e filme estão distanciados no tempo (A
Gata Borralheira, c. XIX e Ever After, séc. XX) e que escritor e cineasta não têm
exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, portanto é de se esperar que a
narrativa fílmica dialogue não com o texto de origem, mas também com o seu
próprio contexto, até mesmo atualizando a pauta do livro, embora reafirme valores
nele expressos.
80
A idéia de intertextualidade que o filme Ever After apresenta é de um texto
sobre outro, é a transformação e a assimilação de um texto centralizador, que no
nosso caso, remete ao conto A Gata Borralheira, dos Irmãos Grimm. Para que essa
idéia fique clara, a necessidade da chamada competência intertextual por parte
dos leitores/espectadores. Trata-se, então, de uma intertextualidade baseada em
experiências anteriores às quais o leitor teve acesso. Não podemos ler nenhum texto
de forma ingênua, a leitura deve ser alicerçada em conhecimentos prévios para que
percebamos, como diz Kristeva(2005) que todo texto se constrói como um mosaico
de citações.
A partir de Kristeva, “texto” passa a ser entendido como o evento situado na
história e na sociedade, que não apenas reflete uma situação, mas é essa própria
situação, apagando linhas divisórias entre as disciplinas e constituindo um
cruzamento entre diferentes superfícies textuais e distintas áreas do saber científico
e da esfera artística.
No decorrer do próximo filme analisado, Only you, notamos a presença do
conto original. Faith é a mulher do século XX, que traz na sua essência a Cinderela
que quer ser feliz encontrando a sua alma gêmea. Esse filme proporciona muitas
inferências porque é uma narrativa altamente intertextual. Também descobrimos a
inserção da realidade do culo XX, que é diferente daquela do conto, ambientado
no século XIX.
Figura 24. Foto de casamento
81
O filme começa e na tela aparecem fotos antigas de casamento, remetendo
ao sonho de felicidade que todos procuram nessa instituição.
Figura 25. A vela cria um clima de mistério
Figura 26. A lua como símbolo
A noção de destino amarra toda esta narrativa audiovisual, tanto que em
português, ao falar do filme coloca-se “um amor escrito nas estrelas”. Várias
referências ao destino são feitas no transcorrer da narrativa. Faith, ao acreditar, no
encontro com sua alma gêmea, mostra que crê no destino, ou melhor, tem a certeza
de que esse encontro está destinado para ela. Quando ela e o irmão Larry estão
82
tentando adivinhar o futuro através de uma tábua ouija, um nome forma-se (Damon
Bradley). A menina fica muito perturbada e credita tal fato ao destino. Nesse
momento, a atmosfera que envolve a cena reflete o seu estado de espírito por meio
de uma música misteriosa, a lua e uma vela com a chama trêmula. A cena é escura,
o que ajuda a criar mais mistério.
Figura 27. Uma consulta à cigana
Para certificar-se de que o nome que a tábua mostrou é mesmo de sua alma
gêmea, Faith consulta uma cigana, em um parque. O que a menina não sabe é que
seu irmão pagou para que a mulher dissesse que no caminho dela apareceria um
homem, Damon Bradley, ou seja, o elemento que parecia mágico, como no conto de
fadas, afinal não é. Ela fica surpresa e mais confiante ainda no destino. A cigana diz
a ela que “cada um faz seu próprio destino.”
83
Figura 28. Aula de Faith
Quatorze anos se passam e nossa heroína é uma mulher. Essa cena
mostra-a como professora, a aula começa com a palavra “destino” escrita na lousa.
Depois de dizer a origem em latim, ela menciona que ele é responsável pela junção
das duas metades que foram separadas, pois, segundo Platão, querendo ficar como
deuses, fomos punidos por um raio que nos dividiu ao meio. Sendo assim, estamos
sempre à procura da outra metade.
Figura 29. Quadro na parede da sala de aula
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A aula termina e a câmera focaliza, na parede, um quadro que retrata um
casal apaixonado. Eles estão nas nuvens, sob uma lua e uma estrela, simbolizando,
talvez, um encontro que acontece pelas mãos do destino.
Figura 30. Faith vestida de noiva
Quando Faith está em casa experimentando o vestido de noiva que foi da
mãe de seu noivo, o telefone toca. Para sua surpresa, é um amigo do noivo,
chamado Damon Bradley. Ele desculpa-se por não poder ir ao casamento, pois está
indo a Veneza. A moça fica enlouquecida e sai par ir ao aeroporto, dizendo à
cunhada que não é coincidência e sim o destino.
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Figura 31. Faith e Kate em Veneza
Faith e Kate chegam a Veneza ao som de “O sole mio”, canção italiana do
século XIX. Para chegarem ao hotel viajam de gôndola; a atmosfera é romântica e
Faith está ansiosa para encontrar Damon.
Figura 32. Sapato perdido por Faith
Ao correr pelas ruas de Roma, Faith perde um dos sapatos. Peter, que está
caminhando, recolhe-o e a segue. Ela encontra Kate e sentam numa fonte. Ela
perdeu a pista de Damon e está disposta a soluções desesperadas. Peter aproxima-
se e pergunta se o sapato perdido é dela. Nesse momento, refere-se à Faith como
“Cinderela”.
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Figura 33. Peter experimenta sapato em Faith
Peter experimenta o sapato em Faith e diz a ela que ele é nosso auto-retrato,
através dele conhecemos as pessoas. O sapato serve no da professora, mas ela
ainda não tem conhecimento de que o rapaz é o seu verdadeiro príncipe. Ele
aproveita o fato de Faith dizer o nome de sua alma gêmea e apresenta-se como
sendo Damon Bradley. Ela fica pasma e quase desfalece. Nessa hora ouve-se um
tilintar e entram em cena a lua e o relógio em uma torre.
Figura 34. Peter e Faith dançam ao luar
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Sob a lua romântica de Roma, os dois apaixonados saem para um passeio.
Peter compra flores de uma cigana, que lhes uma bênção. Os dois dançam na
rua.
Figura 35. Faith descendo da carruagem
Andam de carruagem, estão se conhecendo melhor, Faith está encantada. Ao
descerem, a câmera focaliza os sapatos vermelhos nos pés dela. A cor vermelha simboliza o
vínculo afetivo, profundidade nas relações, efervescência, dinamismo, calor, força e
agressão. Ela pertence à eternidade dos afetos. Proporciona vitalidade, aumenta a pressão
sangüínea sendo excelente para dar mais ânimo e crédito a si mesmo. É a cor que traz em
si o poder feminino da sedução.
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Figura 36. Peter revela sua verdadeira identidade
Eles estão no quarto de hotel e Faith diz que o encontro deles é obra do
destino. O rapaz sente-se culpado e revela sua verdadeira identidade. Quebra-se o
encanto e ela sai furiosa de lá.
Figura 37. Faith entrando no quarto
Outra cena interessante é essa, que tem o seu início com um close up nos
pés de Faith entrando no quarto. Todo o sentido da história está vinculado tanto ao
sapato quanto ao destino.
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Figura 38. Caminho para Positano
Essa cena mostra o caminho para Positano, onde Faith i encontrar-se com
o verdadeiro Damon Bradley. Aqui temos a reafirmação do romantismo que perpassa
toda essa narrativa.
Figura 39. Faith descalça no hotel em Positano
Uma das tomadas mais curiosas dessa recriação do antigo conto de fadas
está na chegada de Faith ao hotel, em Positano. Ela está descalça, pois ainda não
encontrou seu príncipe encantado.
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Figura 40. Peter e Faith antes do encontro com “Damon”
No momento em que Faith está no quarto aprontando-se para o encontro com
Damon, Peter vai até ela e lhe sapatos brancos, dizendo que é uma bela cor para o
encontro que a moça planeja. A cor branca representa limpeza, pureza, perfeição, paz,
inocência, dignidade, clareza, consciência e novos começos. O branco pode ser definido
como a ausência de todas as cores ou a presença de todas as cores do espectro da luz e
pode representar tanto inocência quanto o último objetivo da purificação. É um convite ao
altruísmo, a dar sem receber nada em troca.
Peter ajuda Faith a se produzir como se fosse sua fada madrinha. No final,
dançam e ele declara seu amor e diz: “Vá, a abóbora te espera”, numa referência
direta à história original.
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Figura 41. Faith desce as escadas para o encontro
Faith desce as escadas para ir ao restaurante encontrar Damon. Nessa
seqüência, a câmera focaliza os pés e ouvem-se as batidas de um relógio.
Figura 42. Faith janta com o falso Damon
Faith está realizada, pensando que o rapaz à sua frente é Damon Bradley. O
encontro parece perfeito: o homem sonhado, uma noite de lua cheia, um clima
romântico.
Figura 43. Peter conversa com um velho
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Enquanto Faith janta com “Damon”, Peter conversa com um velho em frente
ao restaurante. Ele pergunta ao senhor se ele acredita em destino. O velho
responde que todos acreditam em destino, tudo está escrito nas estrelas.
Figura 44. Faith e “Damon” numa festa, em um iate
O romantismo começa a desaparecer, quando o rapaz torna-se ousado e
tenta acariciar os seios de Faith. Ela sente-se extremamente desconfortável e
empurra Damon. Peter assiste a tudo e resolve intervir.
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Figura 45. Peter e “Damon” brigam
Peter, enfurecido, agride Damon” e os dois discutem. Assim, Faith acaba
ouvindo e percebendo a trama armada por Peter. “Damon”, na verdade é Harry,
amigo de Peter.
Figura 46. Faith desmascara o falso Damon
Faith fica furiosa ao perceber o engano, não pode crer que foi ludibriada mais
uma vez.
Figura 47. O plano de Peter falhou
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Peter sabe que será muito difícil obter o perdão de Faith. Ela, descontrolada,
dá-lhe uma surra na frente de todos. Faith e Kate abandonam a embarcação,
deixando os rapazes solitários e desiludidos.
Figura 48. Faith, Damon e Peter no aeroporto
No aeroporto, Faith e Peter estão na fila de embarque, cada um deles vai
para um destino diferente. De repente, ouvem pelo alto-falante, um chamado para
Damon Bradley. Correm até o guichê e encontram o verdadeiro Damon. Peter
apresenta Faith e diz que ela, desde a infância, acredita que o homem de sua vida
chama-se Damon Bradley. Diz que está apaixonado por ela, mas, infelizmente não
tem o nome correto. Deseja felicidades a ambos e vai embora. Quando Peter afasta-
se, a moça se dá conta do absurdo da situação e corre até o avião de Peter.
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Figura 49. Peter sozinho no avião
Figura 50. O final feliz de Peter e Faith
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Figura 51. O avião leva os dois apaixonados
Nessas três últimas cenas, temos Peter sozinho e deprimido no avião, pois
pensa que perdeu Faith para sempre. Em seguida, ela entra e ele percebe amor nos
olhos dela, então os dois se beijam e por fim o avião parte a caminho da felicidade.
Vimos assim que Only you tem como temática a história de Cinderela com
referências diretas a esse conto, atualizando-o. Um telefonema, às vésperas do
casamento, tira Faith de sua vida pacata, rumo a uma grande aventura para
conquistar a sua alma gêmea. A trama é tecida conjugando sapato e destino, como
mostram várias cenas. Se, nessa versão, perde-se a ação da varinha de condão da
fada madrinha a auxiliar na modificação da mulher, notamos que a fada continua a
existir, que tanto Kate (cunhada) quanto Peter (príncipe) dão conta desse papel e
até mesmo a cigana(fada falsa). O clima de magia fica por conta do romantismo que
recheia a história.
Maid to order apresenta a narrativa de Cinderela como uma paródia,
invertendo o significado do texto original. Jessie não está no borralho e sim
freqüentando a alta sociedade de Los Angeles. A narrativa fílmica conta a história às
avessas. Como diz a fada Stella a Jessie: “Algumas princesas merecem ser
criadas”. Assim as cenas escolhidas ilustram a recriação do conto tendo como
elemento simbólico o sapato, que se destaca desde o início de Maid to order.
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Figura 52. Apresentação de Maid to order
Na figura 52, aparece o “sapato” como detalhe significativo essencial à
história que será contada.
Figura 53. Novamente o conto de fadas
Remetendo diretamente aos contos de fadas, vemos na tela “Once upon a
time...” (Era uma vez...) e, dessa forma, a história inicia-se.
Figura 54. Estrela atende pedido do pai de Jessie
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Depois de aprontar muito e esbanjar o dinheiro do pai, Jessie é presa e
recebe a visita da fada, uma figura atual, que tem a um vício: Stella fuma. Nossa
princesa é informada que perdeu tudo, não tem mais família, nem dinheiro e está por
sua própria conta. Isso ocorreu porque o pai da moça fez um pedido ao céu:
“Gostaria de nunca ter tido uma filha”. Dessa forma, esse pedido é que altera toda a
história.
Figura 55. Jessie descalça
Essa cena traz Jessie desesperada e humilhada, a câmera focaliza seus pés
descalços para simbolizar suas perdas.
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Figura 56. O sapato perdido de Jessie
Na antiga mansão de Jessie, seu pai está pensativo em uma das salas,
quando Jimmy, o cachorrinho de estimação dela, traz um sapatinho que foi perdido
pela moça ao tentar entrar na casa.
Figura 57. As botas encontradas no lixo
Novamente em cena o “sapato”. Jessie encontra um par de botas brancas no
lixo, calça-as e parte para uma nova experiência em sua vida.
100
Figura 58. Anúncio de uma agência de empregos
Jessie senta-se na calçada desanimada, antes nunca havia passado por
tantas dificuldades. De repente olha e do outro lado da calçada um anúncio:
“Celebrity Employment agency”( Agência de empregos Celebridade). Como
nasceu rica e não deu valor às coisas, o único emprego que encontra é de
arrumadeira, em uma mansão em Malibu.
Figura 59. Jessie desolada por ter de refazer o serviço
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Na mansão dos Starkey’s, Jessie conhece o lado daqueles que lutam,
trabalham para conseguir sobreviver. O patrão é um agente musical, vaidoso e
oportunista, Sua esposa é uma “perua”, quese preocupa com mesquinharias. No
começo, Jessie não consegue realizar bem suas tarefas e sofre desconto em seu
pagamento. Com o tempo e a convivência com os outros empregados da casa, vai
aprendendo e tornando-se humilde. Depois de limpar a sala do piano, Jessie está
satisfeita pelo serviço bem feito, então a patroa volta de um passeio a cavalo e o
chão fica todo sujo novamente.
Figura 60. Jessie e Nick
Nick é motorista da mansão, é o príncipe de Jessie. Na figura 60, vemos o
casal em um encontro em que os dois mostram-se muito apaixonados.
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Figura 61. Jessie, vestida como criada
É noite de festa na mansão. Jessie está com os outros empregados na
sacada de um dos quartos observando o movimento dos convidados. Todos têm um
desejo. Audrey, a governanta, quer conseguir os estudos da filha Janine; Maria, a
cozinheira, gostaria que a cozinha estivesse limpa depois da festa e Nick quer que
ouçam suas músicas. Nessa cena, Jessie está assistindo a apresentação de Audrey
e Nick, que pela interferência da fada Stella, conseguem realizar seus sonhos.
Figura 62. A criada volta a ser princesa
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Todos os desejos foram satisfeitos e assim Stella aparece e leva Jessie até a
porta para despedir-se, pois sua missão está terminada. Nesse momento, o pai de
Jessie está no carro para sair e diz à filha para não chegar tarde. A moça fica
radiante ao perceber que o encanto se desfez, olha para Stella, que aponta para
seus pés e os sapatos brilham.
Figura 63. O carro da fada
Na figura 63, Stella despede-se em grande estilo, seu carro, envolto em uma
bolha sobe ao céu. Lá em cima, uma estrela brilha.
Figura 64. Nick e Jessie
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Figura 65. O final feliz de Nick e Jessie
As duas imagens acima são o final feliz de Nick e Jessie. Na tela, os dizeres
“They lived happily ever after” ( Eles viveram felizes para sempre), que reafirmam o
conto de fadas.
Nesses três filmes temos a modernização do conto de fadas A Gata
Borralheira. O cinema apresenta a imagem em movimento, com cores, sons, objetos
e personagens que aparecem em situações e espaços diversos. Já a literatura usa a
palavra escrita que deve dar conta de todos os recursos e efeitos mencionados
acima.
No livro, nosso imaginário trabalha mais do que no filme. O leitor imagina
como são os personagens, os ambientes em que eles aparecem, a disposição dos
objetos citados. No filme, as cenas estão prontas e os espectadores recebem-nas
sem muito esforço.
Devemos também lembrar que o cinema mistura rias linguagens como
teatro, dança, música, pintura, fotografia e acaba criando uma linguagem própria que
está sempre mudando.
Muitos elementos que não estão presentes no livro são usados pela
linguagem cinematográfica: os enquadramentos, a música, a cor, os movimentos de
câmera, a fotografia. O ponto de contato entre cinema e literatura é a narratividade e
105
por isso notamos as relações intertextuais, mesmo que cada meio tenha sua forma
própria de contar histórias.
O elemento mágico presente no conto matriz é apresentado de diferentes
modos nos filmes. Em Ever After, a conduta de Danielle é que a leva a merecer o
final feliz com Henry. São suas atitudes que a conduzem por toda a história. Em sua
trajetória, ela é ajudada por pessoas as quais conquistou com sua bondade e
solidariedade. O vestido e os sapatos que usa foram de sua mãe. Os criados antigos
de sua casa e Leonardo da Vinci completam a cena para que Danielle chegue
deslumbrante ao baile.
Em Maid to order, a presença de Stella, que desempenha seu papel de
fada de acordo com as atitudes de Jessie, isto é, o auxílio que a moça recebe da
fada-madrinha está em consonância com a sua transformação ao longo da história.
O pedido que seu pai faz a uma estrela no céu (“Gostaria de nunca ter tido uma
filha”) é que introduz a fada na narrativa. No final, como prêmio por sua
transformação, Jessie recebe sua vida de volta, que, então, ela é uma nova
mulher.
Em Only you, Faith apóia-se em alguns elementos que julga mágicos para
construir sua trajetória em busca do amor e da felicidade: uma tábua ouija e uma
cigana. No entanto, tanto a tábua quanto a cigana foram manipulados por seu irmão
Larry, que empurra, propositalmente, a tábua e forma o nome “Damon Bradley”.
Depois paga uma cigana para dizer o mesmo nome para Faith. Portanto, a moça
credita ao destino o que acontece com ela e na realidade é ela mesma que está
construindo sua própria história. Quando Faith se conta disso, enxerga o
verdadeiro príncipe e temos o final feliz.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No mundo que vivemos, as mídias têm papel importante nesse
processo de criação, manutenção e desenvolvimento do simbólico e,
conseqüentemente da própria vida social. Elas fazem a mediação
social contemporânea, servindo de veículo para formar as
consciências e os respectivos comportamentos.
(LOPES, 2004)
Muitos textos midiáticos originam-se da pintura e da literatura, daí a
intertextualidade. Assim posto, a leitura da comunicação midiática não é tão
horizontal e torna-se necessária a pesquisa e o diálogo com as várias áreas do
conhecimento e com as várias linguagens. Um bom exemplo é o que a mídia fez
com o conto de fadas Cinderela, também conhecido como A Gata Borralheira. A
realização dessa produção funda-se em relações intertextuais, no confronto de uma
determinada época com a cultura contemporânea.
Esta pesquisa procurou mostrar esse diálogo entre duas linguagens: a do
texto narrativo e a do fílmico. Mesmo pertencendo a sistemas diferentes,
observamos que os dois textos concorrem para pontos comuns. Tanto narrativa
literária quanto fílmica contam uma história, sendo que o filme o faz através de uma
seqüência de ações ocorridas a determinados personagens num determinado tempo
e espaço. A narrativa literária é composta por palavras e sua estrutura também
envolve enredo, personagens, ações, espaço e tempo, que remetem o leitor a um
mundo imaginário que obedece ao contexto histórico, social e cultural vivido por ele.
Todos esses movimentos reunidos dão movimento ao texto.
A análise feita usou como suporte teórico a teoria da intertextualidade, de
Julia Kristeva, que advém dos estudos do formalista russo Mikail Bakhtin sobre o
dialogismo da linguagem. Para ele não se pode conceber o processo de leitura
desligado da noção de intertexto, uma vez que o dialogismo permeia toda a
linguagem e sentido ao discurso. A palavra é sempre marcada pela palavra do
107
outro, ou seja, quando um enunciador constrói seu discurso, leva em conta o
discurso de outrem, que está sempre presente no seu. Assim, a palavra literária é
um diálogo de diversas escrituras.
Bakhtin vê o dialogismo sob dois pontos de vista:
a)
Interação verbal ( enunciador – enunciatário, é o diálogo entre sujeitos);
b)
Intertextualidade (diálogo entre textos).
Para o nosso trabalho, consideramos o segundo ponto de vista, uma vez que
o estudo feito contemplou a transcodificação do código literário para o código fílmico.
Para Kristeva, no espaço textual, dialogam três elementos: o sujeito da
escritura, o destinatário e os textos exteriores, ou seja, a palavra é espacializada em
três dimensões (sujeito destinatário contexto). Todo texto é absorção e
transformação de um outro texto.
O conto de fadas aqui analisado, Cinderela, teve origem nas histórias de
tradição oral e apresenta muitas versões. Este estudo mostrou a intertextualidade
existente entre esse conto, escrito pelos irmãos Grimm e as narrativas fílmicas Ever
After, Only you e Maid to order.
Como afirma Graham Allen (apud TAKAZAKI, 2004, p.88), “a intertextualidade
surge para nos lembrar da verdade chocante de que o que dissermos e pensarmos
sempre já foi dito e pensado.”
Identificar esses diálogos entre os textos e compreender como se
estabelecem essas relações é fundamental para a (re)construção dos sentidos do
texto.
Assim, apesar de conto e filme apresentarem recursos diferentes, ao
analisarmos os símbolos presentes no conto dos irmãos Grimm, destacamos o
elemento intertextual sapato, pois aparece tanto na narrativa literária quanto nas
narrativas audiovisuais analisadas.
Em Ever After, ele se apresenta como um elo de ligação entre o conto e a
história de Danielle. Em Only you, simboliza a busca de Faith por sua alma gêmea.
Finalmente, em Maid to order, é o símbolo da conquista de novos rumos.
108
Os filmes analisados contam a história de Cinderela recriando o conto,
utilizando nova linguagem, porém reafirmam um saber introjetado em nossa cultura:
toda jovem quer um príncipe que a torne princesa. Os textos fílmicos apresentam
novos personagens, mas não alteram a temática do amor que vence todas as
barreiras.
No conto Cinderela, a heroína não tem nome e essa condição anônima
reforça seu perfil de subalterna e humilhada, uma vez que o nome próprio confere
individualidade ao personagem. Ela passa por muita dor e sofrimento, quando seu
pai casa-se pela segunda vez. A madrasta e suas filhas impõem a Cinderela uma
vida miserável repleta de suplícios, além de ela ter que enfrentar a perda de sua
mãe tão querida.
Então, entram em cena elementos mágicos para ajudá-la a alcançar a
liberdade e a felicidade. No baile, apaixona-se pelo príncipe, perde um dos sapatos,
que mais tarde, será seu passaporte para o final feliz.
O cinema, ao recontar essa história, apresenta-nos três novas Cinderelas:
Danielle, Faith e Jessie. Cada uma delas tem uma maneira peculiar de dialogar com
a Cinderela original.
Danielle é muito parecida com a Cinderela dos irmãos Grimm. É boa, piedosa
e conformada com sua vida de sofrimento. reage quando conhece o príncipe
Henry e se apaixona por ele. Por intermédio de amigos, chega ao baile e à felicidade
tão sonhada. O sapato que usa é de cristal e pertenceu à sua mãe. Ele proporciona
a Danielle o reconhecimento , a identificação.
Faith é uma professora que, apesar de viver no século XX, é sonhadora e
acredita no destino e no encontro com a sua alma gêmea. Para viver esse amor,
enfrenta os obstáculos de uma forma muito ousada. Acredita em forças
sobrenaturais e deixa-se guiar pela ilusão. Para ela, seu destino foi traçado desde a
infância por uma tábua ouija e uma cigana; o que a moça não sabe é que seu irmão
Larry manipulou a tábua e pagou a cigana para dar-lhe o nome de seu príncipe. Por
isso credita ao destino tudo o que lhe acontece e, quando o verdadeiro príncipe
aparece, ela não o reconhece. Ao se dissiparem todos os enganos, a professora
109
encontra a verdadeira felicidade. Mais uma vez o sapato marca toda a trajetória da
personagem.
Finalmente temos Jessie, que é a Cinderela às avessas, pois de princesa
passa a empregada e consegue sua vida de volta, quando passa por uma
transformação: aprende a ser solidária, a se importar com aqueles que a rodeiam.
Ao ser despojada de sua riqueza, revolta-se e tenta entrar em sua antiga mansão.
Os empregados não a reconhecem e chamam a polícia. Na fuga, perde o sapato.
Com a mudança e conseqüente humanização da personagem, recebe sua vida de
volta e encontra o príncipe encantado. Nessa hora, os sapatos voltam a brilhar em
seus pés.
Conclui-se, desse modo, que Ever After mantém com o conto original uma
intertextualidade sob a forma de paráfrase, que reafirma a história de origem e as
mudanças que o filme apresenta são mínimas.
Only you, ao recontar a história, conserva a temática, o elemento
intertextual sapato e o romantismo. As transformações ocorridas no filme
apresentam-se como um desvio tolerável, apresentando-se como uma estilização.
Por último, temos Maid to order, que conta a história da borralheira às
avessas, um modo diferente, não convencional da leitura do conto. Dessa forma,
caracteriza-se a paródia.
Cruzando o conto e as narrativas audiovisuais, percebemos que a
intertextualidade é inerente à produção humana, pois o ser humano recorre àquilo
que já foi feito em seu processo de produção simbólica.
Dessa forma, ao contrapor literatura e cinema, detectamos as diferenças
existentes entre os dois meios e constatamos que a narratividade é o elo de ligação
entre conto e filme.
Os três filmes analisados, ao contar a história de Cinderela, recriam o conto,
ressignificando esse texto em um novo meio, um novo contexto, um novo código de
representação, uma nova atitude discursiva. Assim, o filme incorpora e digere a fonte
original e, em seguida, produz algo estético e culturalmente novo.
110
Esperamos que esse trabalho contribua para abrir caminho para outros
estudos que ampliarão conhecimentos e possa tornar os leitores mais dinâmicos
para o mundo atual e suas exigências.
A análise dos diversos elementos que sustentaram a relação intertextual
serviu para mostrar que os contos de fadas são histórias antigas que continuam
encantando e ensinando crianças e adultos geração após geração.
111
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