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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
TRAJETÓRIA POLÍTICO-IDEOLÓGICA DA ESQUERDA URUGUAIA: 1964-2004
José Pedro Cabrera Cabral
São Leopoldo (RS), junho de 2006
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JOSÉ PEDRO CABRERA CABRAL
TRAJETÓRIA POLÍTICO-IDEOLÓGICA DA ESQUERDA URUGUAIA: 1964-2004
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Vale
dos Sinos – Unisinos, como pré-requisito para a
obtenção do título de Doutor em História, sob a
orientação do professor Doutor Werner Altmann.
São Leopoldo (RS), junho de 2006
C117t Cabral, José Pedro Cabrera
Trajetória político-ideológica da esquerda uruguaia :
1964-2004 / José Pedro Cabrera Cabral; orientação
Werner Altmann. – São Leopoldo : [s.n.], 2006.
409 f.
Tese (doutorado) – Universidade do Vale dos Sinos,
2006
1. Uruguai – Trajetória política-ideológica.
2. Uruguai – Aspectos políticos – História. 3. Esquerda
eleitoral – Uruguai. 4. Esquerda progressista - Uruguai.
5. História - Uruguai. I. Altmann, Werner. II. Título
CDD – 989.5
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RESUMO
O presente estudo tem por objetivo geral a análise da trajetória político-ideológica da
esquerda uruguaia no período de 1964 a 2004. Com o mesmo, pretende-se interpretar
o desenvolvimento das organizações políticas que compõem a esquerda no país, desde
a perspectiva de suas concepções ideológicas e de suas estruturas programáticas,
vista a atual e complexa evolução destas que, a partir de uma série de processos nos
últimos quarenta anos, levou a esquerda uruguaia ao Governo nacional, em 2005. A
partir do objetivo, surgiram algumas perguntas essenciais: por um lado, como se
efetivou o processo de transição de uma esquerda tradicional para a esquerda
progressista? Por outro lado, quais foram as mudanças e suas significações no campo
político-ideológico dentro das organizações da esquerda uruguaia? Conjuntamente com
estas duas perguntas, abriu-se uma ampla gama de temáticas delas desdobradas e
que perfazem a essência do estudo. Como a esquerda tradicional, que essencialmente
caracterizou-se por uma crítica radical e por um significativo desprezo às instituições
democrático-liberais, chegou a se constituir na primeira força política eleitoral uruguaia
e conquistar o Governo, em 2004? Por outro lado, como se posicionou a esquerda em
relação aos novos paradigmas apresentados pelo neoliberalismo e pela globalização?
Para a realização do estudo, optou-se por selecionar as fontes documentais inerentes
às organizações políticas que compõem a esquerda uruguaia. Desta forma, priorizou-se
as declarações programáticas e estatutárias, as resoluções de congressos e as
manifestações oficiais das organizações. Também foram analisadas as manifestações
dos diversos dirigentes, na imprensa especializada, tomando, assim, declarações,
artigos e entrevistas realizados em semanários que veicularam as propostas e
discussões em questão. Tomamos como base de análise as perspectivas da história
política e da história das idéias latino-americanas. Esta corrente historiográfica
influenciou inúmeros intelectuais no Rio de la Plata, com a proposta de trabalhar a
história das idéias como uma necessidade efetiva para a construção da identidade
latino-americana. Os resultados obtidos evidenciaram uma série de processos político-
ideológicos na esquerda uruguaia que a levaram, gradativamente, à incorporação dos
paradigmas globalizantes, como também a um abandono das concepções e bandeiras
da esquerda tradicional. Desta forma, as críticas à democracia liberal transformaram-se
em valor substancial para poder chegar ao Governo nacional, em 2005.
Palavras-chave: Trajetória político-ideológica, esquerda eleitoral, esquerda progressista.
4
RESUMEN
El presente estudio tiene como objetivo general el analisis de la trayectoria política
ideológica de la izquierda uruguaya en le período de 1964 a 2004. Con el mismo, se
pretende interpretar el desarrollo de las organizaciones políticas que componen la
izquierda en el país, desde la perspectiva de sus concepciones ideológicas y de sus
estructuras programáticas en virtud de la actual y compleja evolución de las mismas
que, a partir de una serie de procesos ocurridos en los últimos cuarenta años, llevó a la
izquierda uruguaya al gobierno nacional en 2005. Partiendo del objetivo surgieron
algunos interrogantes esenciales: por un lado, ¿cómo se efectivó el proceso de
transición de una izquierda tradicional para la izquierda progresista? Por otro lado,
¿cuáles fueron los cambios y sus significaciones en le campo político ideológico dentro
de las organizaciones de la izquierda uruguaya? Conjuntamente con estas dos
preguntas, se abrió una amplia gama a ellas relacionadas y que constituyen la esencia
del estudio. ¿Cómo la izquierda tradicional, que esencialmente se caracterizó por una
crítica radical y por un significativo desprecio de las instituciones democráticas liberales,
llegó a constituirse en la primer fuerza política electoral uruguaya y conquistó el
gobierno en 2004? Por otro lado, ¿Cómo se posicionó la izquierda en relación a los
nuevos paradigmas oriundos del neoliberalismo y la globalización? Para la realización
del estudio, se optó por la selección de fuentes documentales de las organizaciones
políticas que componen la izquierda uruguaya. De esta forma, se priorisaron las
declaraciones de principios, programáticas y estatutárias, así como las resoluciones de
congresos y las manifestaciones oficiales de las respectivas organizaciones. Tambien
fueron analisadas las manifestaciones de diversos dirigentes, en la prensa
especializada. Tomamos como base de analisis las perspectivas de la Historia Política y
de la Historia de la Ideas en América Latina. Esta corriente historiográfica influenció
imnúmeros intelectuales en el Río de la Plata, con la propuesta de trabajar la historia de
las ideas como una necesidad efectiva para la construcción de las identidades
latinoamericanas. Los resultados obtenidos evidenciaron una serie de procesos político
ideológicos en la izquierda uruguaya que la fueron llevando, paulatinamente, a la
incorporación de los paradigmas globalizadores, com tambien a abandonar las
concepciones y consignas de la izquierda tradicional. De esta forma, las críticas a la
democracia liberal se transformarón en valor substancial de esa iquierda para poder
llegar al gobierno nacional en 2005.
Palabras Llave: Trayectoria político ideológica, izquierda electoral, izquierda progresista.
5
LISTA DE QUADROS
Quadro 1. Composição dos setores Batllistas dentro do Partido Colorado 1950-
1970.......................................................................................................................
42
Quadro 2. Composição dos setores dentro do Partido Nacional 1950-1970......... 43
Quadro 3. Composição da Frente Ampla segundo suas origens ideológicas
setoriais nas eleições nacionais de 2004...............................................................
334
Quadro 4. Composição do Encontro Progressista segundo as suas origens
ideológicas setoriais nas eleições nacionais de 2004............................................
335
6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Salários mensais das correspondentes categorias 1968-1973.............. 114
Tabela 2. Evolução da Dívida Externa Uruguaia: 1966-1990................................. 158
Tabela 3. Distribuição ideológica do eleitorado segundo posicionamento de
setores pelos quais votou – Eleições Nacionais – 1942-1994. Percentuais do
total de votos válidos..............................................................................................
213
Tabela 4. Incidência da Pobreza Extrema no Uruguai – 1999-2003...................... 267
Tabela 5. Pesquisa de opinião pública: percentuais de confiabilidade segundo
manifestações de confiança da população 1997- 2003.......................................... 285
Tabela 6. Distribuição eleitoral por blocos setoriais em eleições nacionais 1971-
1999, percentuais...................................................................................................
291
Tabela 7. Número absoluto de habilitados para votar por anos de eleições
nacionais e percentual de votos válidos da Frente Ampla, totais nacionais 1971-
2004........................................................................................................................
308
Tabela 8. Eleições Nacionais: percentuais sobre votos válidos em todo o país,
1971-2004 - Partido Nacional e Partido Colorado..................................................
309
Tabela 9. Votos da Frente Ampla – Distribuição por setores (percentuais).
Eleições nacionais, primárias e internas 1997- 2004. Votos dos cinco principais
setores. ..................................................................................................................
312
7
LISTA DE SIGLAS
Alalc – Associação Latino-Americana de Livre Comércio.
Alas – Congresso Latino-Americano de Sociologia.
Ascep – Associação Social e Cultura do Ensino Público.
Aebu – Associação de Empregados bancários do Uruguai
ASU – Ação Sindical uruguaia.
AP – Aliança Progressista.
ALU – Agrupação Libertária Uruguaia.
AU – Assembléia Uruguai.
Cats – Comitês de Apoio aos Tuapamaros.
Cepal – Comissão Econômica das Nações Unidas para América Latina.
Cgtu – Confederação Geral do Trabalho do Uruguai.
CF – Corrente Frenteamplista.
CI – Corrente de Esquerda.
Cies – Conselho Inter-Americano Econômico e Social.
CIP – Comissão Integrada de Programas (órgão do Encontro Progressista)
Claeh – Centro Latino-Americano de Economia Humana.
Claes – Cento Latino-Americano de Economia Social.
CNT – Convenção Nacional de Trabalhadores.
Confa – Confluência Frenteamplista.
Conicyt – Conselho Nacional de Investigações Científicas e Tecnológicas.
CP – Corrente Popular.
CSU – Central Sindical do Uruguai.
CTU – Central dos Trabalhadores do Uruguai.
DSN – Doutrina da Segurança Nacional.
EP – Encontro Progressista.
Foru – Federação Regional Operária Uruguaia.
FA – Frente Ampla.
FAU – Federação Anarquista do Uruguai.
8
Feeu – Federação de Estudantes Universitários.
FG – Frente Grande.
Fidel – Frente Esquerda de Libertação.
FMI – Findo Monetário Internacional.
FNI – Fundo Nacional de Investigadores.
GAU – Grupos de Ação Unificadora.
IDI – Esquerda Democrática independente.
JUP – Juventude Unida de Pé.
LL – Luta Libertária.
MAC – Movimento de Apoio Campesino.
MIR – Movimento de Esquerda Revolucionário.
MLN – Movimento de Libertação Nacional.
MNR – Movimento Nacional de Rocha.
MPP – Movimento de Participação Popular.
MRO – Movimento Revolucionário Oriental.
MS – Movimento Socialista.
MTP – Movimento Todos pela Pátria.
NE – Novo Espaço.
NM – Novas Maiorias.
OEA – Organização dos Estados Americanos.
Olas – Organização Latino-Americana de Solidariedade.
ONG – Organizações Não Governamentais.
OPR – Organização Popular Revolucionária.
PBI – Produto Bruto Interno.
PC – Partido Comunista.
PCR – Partido Comunista Revolucionário.
PDC – Partido Democrata Cristão.
PGP – Partido pelo Governo do Povo.
PIT – Plenário Inter-Sindical de Trabalhadores.
POR – Partido Operário Revolucionário.
PS – Partido Socialista.
9
PST – Partido Socialista dos Trabalhadores.
PT – Partido dos Trabalhadores.
PVP – Partido pela Vitória do Povo.
ROE – Resistência Operária Estudantil.
Serpaj- Serviço de Paz e Justiça.
UGT – União Geral de Trabalhadores.
USU – União Sindical Uruguaia.
Utaa – União dos Trabalhadores Açucareiros de Artigas.
Urss – União de Repúblicas Socialistas Soviéticas.
VA – Vertente Artiguista.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................
11
CAPÍTULO I: O URUGUAI SESENTISTA: A ESQUERDA E O MLN –
TUPAMAROS - 1962 – 1973..................................................................................
32
1. O URUGUAI NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: os antecedentes...... 32
2. O PENSAMENTO SESENTISTA: AS ORGANIZAÇÕES POPULARES E OS
INTELECTUAIS......................................................................................................
52
3. AS MUDANÇAS NA ESQUERDA CLÁSSICA E O CONTEXTO DA OLAS...... 66
4. AS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS: TUPAMAROS E FAU................ 77
5. AS DISCUSSÕES SOBRE A TEORIA DO FOCO............................................ 98
6. AS DISCUSSÕES SOBRE A “GUERRA JUSTA” E O TIPO DE
DEMOCRACIA EXISTENTE NO PERÍODO...........................................................
112
7. A ESQUERDA LEGAL (1971) ATÉ O GOLPE CÍVIL-MILITAR (1973)............. 126
CAPÍTULO II: OS PROCESSOS DE TRANSIÇÃO DA ESQUERDA
URUGUAIA: ENTRE A DITADURA E A RECUPERAÇÃO DEMOCRÁTICA
1973 – 1994............................................................................................................
142
1. DA RESISTÊNCIA A CONSOLIDAÇÃO DO GOLPE CIVIL-MILITAR............. 142
2. A RECUPER
A
ÇÃO DEMOCR
Á
TICA: A CAMINHO DA DEMOCRACIA
TUTELADA.............................................................................................................
160
3. A REORGANIZAÇÃO DA ESQUERDA CLÁSSICA: OS PARTIDOS
SOCIALISTA E COMUNISTA................................................................................. 183
4. O MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO NACIONAL – TUPAMAROS A PARTIR
DE 1985..................................................................................................................
193
5. A FEDERAÇÃO ANARQUISTA URUGUAIA – FAU – APÓS 1985.................... 206
6. AS BASES DA TRANSIÇÃO: SOCIALISMO E DEMOCRACIA NA
ESQUERDA URUGUAIA (1984-1993)...................................................................
211
11
CAPÍTULO III: A ESQUERDA PROGRESSISTA 1994-2004................................
245
1. GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E AS NOVAS TEM
Á
TICAS DA
ESQUERDA PROGRESSISTA..............................................................................
245
2. DA CRISE DA INSTITUCIONALID
A
DE POL
Í
TICA E DO SISTEMA DE
PARTIDOS ATÉ OS EFEITOS DA REFORMA CONSTITUCIONAL DE 1999......
283
3. A ESQUERDA PROGRESSISTA (1994-2004).................................................. 306
4. O MLN – TUPAMAROS E O MPP NO PERÍODO PROGRESSISTA................ 336
CONCLUSÕES.......................................................................................................
355
REFERÊNCIAS......................................................................................................
376
12
INTRODUÇÃO
As políticas neoliberais introduzidas no Cone Sul a partir do final da década de
1970, com apoio e ampla disseminação das mesmas pelas ditaduras civil-militares de
turno, contribuíram com o desenvolvimento do capital especulativo e do crescimento do
mercado, em detrimento do desenvolvimento social, trazendo um amplo processo de
exclusão social e um aumento substancial das desigualdades econômicas e sociais. O
discurso globalizador pregou os amplos “benefícios” da globalização para os povos do
Terceiro Mundo, onde as oportunidades se “ofereceriam para todos”.
O cenário político no Cone Sul está atravessando um processo de mudanças
desde o final do século XX. Uma das características que o novo cenário apresenta é o
surgimento da “esquerda” como governo e como aglutinador de grandes contingentes
eleitorais. A promessa de um modelo alternativo aos governos representantes dos
setores classicamente dominantes, e nas últimas décadas também aliados do
neoliberalismo e do modelo globalizador, constituiu-se numa esperança de construção
de um modelo diferenciado para a região.
Essa promessa “alternativa” apresentava como base as tradições de uma
esquerda que se caracterizou historicamente, com maior força na década de 1960,
como a representante dos setores menos favorecidos da população e, portanto,
associada com propostas e programas de intenso conteúdo popular. Sem dúvida, esta
esquerda não é mais a mesma: nem na sua forma, nem na sua essência. O
característico elemento diferenciador desta nova esquerda, em relação à tradicional, é o
abandono da luta pela construção do socialismo e, com ele, de todo o referencial
marxista.
No caso particular do Uruguai, esse processo de mudanças de paradigmas teve
seu início na década de 1980 e, posteriormente, na década de 1990, consolidou-se de
forma irreversível. Passou-se de uma esquerda (dos anos 1960-70) que reivindicava as
clássicas bandeiras da esquerda tradicional, moldadas nas concepções anarquistas e
marxistas desde o fim do século XIX, para um período de transição que teve seu marco
no pós-ditadura (1984-1994) e no qual consolidou-se a reconstrução democrática no
13
país. Nesse processo de transição aconteceram várias discussões que foram levando a
esquerda eleitoral uruguaia, de forma gradativa, para a absorção dos paradigmas
social-democratas e a defesa da democracia liberal.
Conjuntamente com esse processo, houve também uma apropriação, por parte
da esquerda eleitoral, do discurso dominante e, como conseqüência, uma necessidade
de adaptação ao novo “cenário” que se apresentava conduzido pela mão do
neoliberalismo e do processo de globalização. Estes dois últimos vistos como
irreversíveis e apresentando uma peculiar particularidade: por um lado, o neoliberalismo
era condenado e, supostamente, deveria ser enfrentado; por outro lado, a globalização
era algo desassociado do neoliberalismo, e não podia ser combatido, mas sim se devia
pensar na adaptação às mudanças e em como “administrar” essa situação.
Na década de 1990, a esquerda uruguaia passou por uma fase de consolidação
dessas políticas social-democratas, a que se denominou de progressismo. A partir da
segunda metade da década de 1990, a esquerda uruguaia se autodenominou esquerda
“progressista”. Esse progressismo foi o que ganhou as eleições nacionais de 2004,
levando, pela primeira vez no país, a esquerda ao Governo da República. Essa nova
força política conquistou a vitória eleitoral a partir de um complexo, mas substancial,
processo de modificações na sua estrutura político-ideológica.
A necessidade de se aprofundar o estudo dessas mudanças político-ideológicas
da esquerda uruguaia condiz com a atualidade de um processo de “renovação” pelo
qual vários governos latino-americanos vêm transitando. Desta maneira, objetiva-se
contribuir, a partir desta análise, com uma visão crítica das transformações que a
esquerda latino-americana, e a uruguaia em particular, vem realizando e que ofereça
alguns elementos para o início de um debate crítico dessa realidade.
O presente estudo tem por objetivo geral a análise da trajetória político-
ideológica da esquerda uruguaia no período de 1964 a 2004. Com o mesmo, pretende-
se interpretar o desenvolvimento das organizações políticas que compõem a esquerda
no país, desde a perspectiva de suas concepções ideológicas e de suas estruturas
programáticas, vista a atual e complexa evolução destas que, a partir de uma série de
processos nos últimos quarenta anos, levou a esquerda uruguaia ao Governo nacional
em 2005.
14
Como objetivos específicos, o estudo propõe as seguintes questões:
a) Caracterizar os diferentes períodos da esquerda uruguaia a partir de suas
propostas programáticas;
b) Identificar e analisar as correntes de pensamento político-ideológicas na
esquerda uruguaia em relação a suas estruturas organizacionais;
c) Analisar o progresso do crescimento eleitoral da coalizão Frente Ampla, desde
sua fundação em 1971 até sua vitória eleitoral em 2004;
d) Identificar as propostas da esquerda nos diversos períodos de mudanças
político-ideológicas no país, a partir do novo paradigma globalizador;
e) Confrontar os paradigmas da esquerda tradicional com os paradigmas da
esquerda progressista.
Obviamente, estes objetivos específicos desdobram-se em perguntas de
pesquisa, no sentido de dar conta do objetivo geral. Para tal, partiu-se dos
pressupostos de que:
a) a caracterização dos diversos períodos, a partir das propostas programáticas das
organizações que integram a esquerda uruguaia, possibilitou a realização de
uma análise em contextos históricos que marcaram os processos de mudanças
da esquerda no país. Desta forma, chegou-se a uma categorização que
demarcou três períodos diferenciados: 1) o período sesentista, ou da esquerda
tradicional (1964 a 1984); 2) o período da esquerda em transição (1984-1994); e
3) o período da esquerda progressista (1994-2004);
b) as diversas correntes do pensamento político-ideológico mudaram, nos períodos
anteriormente identificados, em relação a suas estruturas internas
organizacionais e em relação com suas políticas de alianças com outras
organizações, fundamentalmente da esquerda nucleada na Frente Ampla;
c) o crescimento eleitoral da Frente Ampla possibilitou-se a partir de um processo
de “virada ao centro” no espectro político nacional, em virtude de uma
“atualização ideológica” que teve seu início no período progressista, em 1996;
15
d) as mudanças acontecidas no seio da Frente Ampla refletiram a presença de um
processo de “absorção” dos novos paradigmas globalizadores surgidos no início
da década de 1980;
e) partiu-se do pressuposto de que os paradigmas da esquerda tradicional
confrontaram-se, na sua essência e na sua forma, com os paradigmas da nova
esquerda autodenominada progressista, modificando, assim, todo o discurso
político-ideológico e a sua proposta programática a partir de um giro à direita,
como elemento diferenciador e irreconciliável com a esquerda tradicional.
Estes pressupostos que nortearam as temáticas da pesquisa trouxeram, de forma
permanente, algumas perguntas essenciais: por um lado, como se efetivou o processo
de transição de uma esquerda tradicional para a esquerda progressista? Por outro lado,
quais foram as mudanças e suas significações no campo político-ideológico dentro das
organizações da esquerda uruguaia? Conjuntamente com estas duas perguntas, abriu-
se uma ampla gama de temáticas delas desdobradas e que perfazem a essência do
estudo.
Como a esquerda tradicional, que essencialmente caracterizou-se por uma
crítica radical e por um significativo desprezo às instituições democrático-liberais,
chegou a se constituir-se na primeira força política eleitoral uruguaia e conquistar o
Governo em 2004, justamente a partir da defesa das instituições democrático-liberais?
Por outro lado, como se posicionou a esquerda em relação aos novos paradigmas
apresentados pelo neoliberalismo e pela globalização?
As análises já realizadas por outros autores abordaram aspectos pontuais como,
por exemplo, a elaborada por Garcé e Jaffé (2004), que se situou no desenvolvimento
eleitoral da Frente Ampla desde uma perspectiva do crescimento em termos
quantitativos dos votantes; ou como a análise de Moreira (2004), que se examinou a
ruptura com o bipartidarismo secular a partir da irrupção da coalizão como novo ator de
significado substancial no cenário do sistema político nacional. Deve-se assinalar
também a análise de Gatto (2004), a qual tomou como ponto de extrema significância,
para explicar as transformações dentro do espectro ideológico da esquerda,
principalmente a partir da década de 1980, a derrubada do sistema soviético ou do
16
socialismo “real”, visto, assim, como fator determinante das mudanças na esquerda
uruguaia.
Consideramos que para a contribuição a uma análise de maior amplitude e que
tenha como norteador a trajetória político-ideológica da esquerda nesses últimos 40
anos, devemos observar, em primeiro lugar, as variáveis e fenômenos próprios da
esquerda nacional e da América Latina (como espaço regional); em segundo lugar, as
questões inerentes à política internacional e às mudanças provocadas pela implosão do
mundo “socialista”, assim como também a ascensão da social-democracia no mundo,
principalmente a partir do final da década de 1970.
Em terceiro lugar, os diversos processos de crise econômica, política e institucional
desencadeados pelos novos paradigmas do neoliberalismo e da globalização. Estes
processos devem ser vistos como elementos fundantes de uma nova ordem mundial e
direcionadores de políticas ideologicamente definidas para a América Latina,
estabelecendo um novo sistema de dominação, que foi assimilado pela esquerda
uruguaia no contexto de suas estruturas políticas, programáticas e discursivas, as quais
provocaram mudanças no já complexo cenário interno da esquerda uruguaia.
E em quarto e último lugar, as batalhas ideológicas e programáticas acontecidas no
interior dessa esquerda uruguaia – principalmente no seio da Frente Ampla –, onde o
confronto aconteceu trazendo inúmeros fracionamentos e dissidências em quase todos
os setores que compõem a coalizão, contribuindo para a formação de novos espaços
políticos (dentro e fora da coalizão) que se constituiriam em fatores preponderantes
para a ascensão desta ao primeiro lugar na contenda eleitoral de 2004 e sua posterior
conquista do Governo nacional, em 2005.
Para a realização do estudo, optou-se por selecionar as fontes documentais
inerentes às organizações políticas que compõem a esquerda uruguaia. Desta forma,
priorizou-se as declarações programáticas e estatutárias, as resoluções de congressos
e as manifestações oficiais das organizações, tanto as realizadas pelos
correspondentes Comitês Centrais como as realizadas pelos seus dirigentes. Também
foram analisadas as manifestações dos diversos dirigentes na imprensa especializada,
17
tomando, assim, declarações, artigos e entrevistas realizados em semanários que
veicularam as propostas e discussões em questão.
Complementarmente, trabalhou-se com um vasto material bibliográfico que
apresentou amplas e variadas concepções político-ideológicas do processo de
atualização da esquerda nacional, onde se observaram algumas particularidades
levantadas por outros autores, com as quais surgiu, no decorrer do trabalho, uma série
de discrepâncias expostas no corpo do texto. Estas análises fundamentavam-se em
posições partidárias e/ou setoriais elaboradas por intelectuais da esquerda; na
oportunidade, principalmente de situações de crise como as que marcaram
fracionamentos e dissidências.
A proposta metodológica teve por base investigar as mudanças político-
ideológicas que se realizaram no interior das organizações da esquerda uruguaia,
visando, como elementos-chave, às diferentes percepções ideológicas das mesmas,
representadas e manifestadas nas suas propostas programáticas e nas suas
estratégias políticas. Obviamente, cientes das limitações que o estudo da história
recente nos impõem, mas, por sua vez, nos apresenta o desafio e a necessidade de
analisar as mudanças no cenário político e ideológico que marcam a nossa atual
realidade.
Tomamos como base de análise as perspectivas da história política e da história
das idéias latino-americanas, inauguradas no Uruguai a partir da década de 1940 pela
influência do filósofo mexicano Leopoldo Zea
1
e no Uruguai por Arturo Ardao. Esta
corrente historiográfica influenciou inúmeros intelectuais no Rio de la Plata, com a
proposta de trabalhar a história das idéias como uma necessidade efetiva para a
construção da identidade latino-americana. A característica fundamental desta
1
A corrente historiográfica em referência partiu de duas obras do mexicano Leopoldo Zea, El Positivismo
en México, de 1943, e Apogeo y decadencia del positivismo en México, de 1944. Estas obras de Zea
marcaram o caráter fundante de uma corrente historiográfica que influenciou toda América Latina. No
Uruguai, o notório representante desta corrente foi Arturo Ardao, o qual retratou no seu livro La
Inteligencia Latinoamericana, de 1996, a influência do pensamento de Zea. Esta corrente historiográfica,
no Uruguai, teve a característica de ultrapassar as anteriores versões revisionistas e atender para a
necessidade de uma profunda análise do pensamento filosófico e político da América Latina. Esta
corrente influenciou, sobremaneira, a historiografia das décadas de 1960, possibilitando, conjuntamente
com correntes oriundas do pensamento marxista, a articulação de ambas as correntes historiográficas
que foram significativamente importantes na formação do pensamento sesentista uruguaio.
18
historiografia foi a de fazer surgir importantes expoentes da filosofia acadêmica latino-
americana, assim como a de situar as idéias filosóficas num marco histórico.
Esta corrente historiográfica teve como elemento central a virtude de instaurar
uma disciplina de forma institucionalizada, a partir da criação, no México, do Comitê de
História das Idéias na América, presidido por Leopoldo Zea, que originalmente forneceu
cobertura e aportes convergentes relativos aos diversos processos históricos e
filosóficos nacionais. Mesmo que a condição filosófica do sujeito e do objeto da
investigação tenha sido tratada por parte dos filósofos e historiadores de uma forma
certamente não coincidente, as contribuições foram fundamentais para o
desenvolvimento de uma interpretação autóctone de América Latina.
Na década de 1970 registraram-se indicações que apontavam para as limitações
não internacionais resultantes do ajuste da disciplina às investigações das idéias
filosóficas. Foi postulada a necessidade de uma ampliação metodológica, por parte do
argentino Arturo Andrés Roig
2
, que implicava em superar os limites nacionais do fazer
historiográfico. Também foi postulada a ampliação da noção de sujeito do pensamento
filosófico (no sentido de ultrapassar os limites da filosofia universitária e das elites
intelectuais), uma compreensão das estruturas que enquadravam as idéias e uma
extensão de fontes documentais que excediam o estritamente filosófico em direção ao
conteúdo ideológico de qualquer tipo de discurso.
Como salientou Acosta (1999), essas mudanças se direcionaram
convergentemente, e não estritamente de forma coincidente, introduzindo inovações na
prática da História das Idéias na América. Assim, desenvolveu-se a História das
Ideologias, no final da década de 1970, na qual o “centro de gravitação historiográfico
deslocou-se do nível das idéias filosóficas para a região jurídica-política do ideológico”
3
.
Assim, essas inovações se articularam com as correntes historiográficas do marxismo
(geralmente não ortodoxo) e constituíram as principais linhas de análise, da época,
sobre o tema.
2
Dentre suas obras, pode-se assinalar como de fundamental importância para esse marco
historiográfico: Los krausistas argentinos (1969), Filosofia, Universidad y Filósofos en América Latina
(1981) e El pensamiento social de Juan Montalvo (1984).
3
ACOSTA, Yamandú. Consideraciones sobre la historiografia de história de las ideas en América Latina.
In: Cuadernos del CLAEH. Montevideo: n
o
. 83-84, 1999, p. 262.
19
Dessa corrente historiográfica, tomamos como base para nosso estudo dois
elementos, a saber: em primeiro lugar, a história das idéias como elemento de análise
das concepções ideológicas da esquerda uruguaia, no referido período, como parte da
história das idéias da América Latina; e, por outro lado, uma das características desta
corrente: a análise dos diversos processos ideológicos a partir de fontes documentais.
Neste sentido, a obra de José Pedro Barrán constituiu-se num norteador para o
desenvolvimento de uma pesquisa historiográfica a partir de documentos. O particular
estilo de Barrán, fundamentalmente o esboçado em Batlle, los Estancieros y el Império
Britanico (1979) e em História Política e História Economica (2002), foi referência para a
análise das fontes documentais.
A histórica articulação da corrente historiográfica da história das idéias na
América Latina com o marxismo nos permite associar, de forma dialética, o arcabouço
metodológico deste estudo. Portanto, partiu-se do pressuposto que indicou um forte
confronto ideológico na trajetória da esquerda uruguaia, principalmente entre o período
da esquerda tradicional (1964-1984) e o período progressista (1994-2004), quando a
partir de um processo de atualização ideológica (iniciado entre 1984 e 1994) que
funcionou como antítese do processo de mudanças que alterou todo seu arcabouço
ideológico e como sintese, a posterior formação da esquerda progressista.
As mudanças ideológicas na esquerda uruguaia apresentaram-se de forma
gradativa, mas nem por isso deixaram de ser radicais. Da reivindicação de um processo
de construção ao socialismo e crítica acirrada à democracia liberal, culminou-se
invertendo essas categorias, ou seja, reivindicou-se (no progressismo) a democracia
liberal e se abandonou a construção do socialismo. Isto, para a esquerda em geral e
para a uruguaia em particular, representa o confronto dos contrários. Por esse motivo,
considerou-se necessário conceituar o que para este trabalho se entende por ideologia.
A ideologia é uma forma específica do imaginário social: é a maneira necessária
pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o surgir social, econômico e
político, de tal forma que esse surgir, por ser forma imediata de um determinado
processo histórico, é o disfarce ou a dissimulação do real. Uma das características
fundamentais da ideologia consiste em mostrar as idéias de forma independente da
20
realidade histórico-social, de modo que estas idéias expliquem aquela realidade, sendo
que, na verdade, é esta realidade que torna compreensíveis as idéias.
Essencialmente, a ideologia é uma estrutura de representações, normas e
símbolos que nos leva a conhecer e interpretar a realidade, determinando, assim, a
nossa visão de mundo e nosso agir. Estes conjuntos de idéias ou representações
encobrem o modo real de como as relações sociais são produzidas, ocultando, desta
forma, a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política.
A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito
precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a
diferença entre o pensar, o dizer e o ser, e engendrar uma lógica de identificação que
unifique pensamento, linguagem e realidade para, através desta lógica, obter a
identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada,
isto é, a imagem da classe dominante
4
.
Com base na obra de Marx (A Ideologia Alemã, 1999), podemos observar que, a
partir do momento em que os homens tomam consciência do aparecer social, surge a
ideologia, desde a divisão social do trabalho separando trabalhadores manuais e
intelectuais (ou trabalhadores e pensadores). Assim, o que torna possível a ideologia é
a luta de classes, a dominação de uma classe sobre as outras. A ideologia consiste na
transformação das idéias da classe dominante para a sociedade como um todo, de tal
forma que a classe que domina no plano material também domina no plano das idéias.
Para entrar neste terreno, torna-se indispensável considerar o claro conceito de
ideologia definido por Marilena Chauí: “A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e
coerente de representações (idéias e valores) e de normas e regras (de conduta) que
indicam e prescrevem, aos membros da sociedade, o que devem pensar e como devem
pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem fazer e como
devem fazer”
5
.
Essa estrutura de representações e de normas, à qual Chauí faz referência, é o
campo da ideologia, no qual os sujeitos sociais e políticos explicam a origem e
desenvolvimento da sociedade e do poder político. Segundo Chauí, estas explicações
4
CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: O Discurso Competente e Outras Falas. São Paulo: 2ª.
ed., Moderna, 1981, p. 3.
5
CHAUI, Marilena. O Que é Ideologia. São Paulo: 25ª. ed., Brasiliense, 1987, p. 113.
21
vão desde as formas “corretas” ou “verdadeiras” de conhecimento e de ação: justificam,
através de idéias gerais, o Homem, a Pátria, o Progresso, a Família, a Ciência, o
Estado, entre outras, e também explicam as formas reais da desigualdade, dos
conflitos, da exploração e da dominação como sendo “naturais”, transformando-as em
idéias universais e inevitáveis. Desta forma, a ideologia atua para fazer com que os
homens creiam que existem determinadas “forças”, a natureza, Deus, o Estado, entre
outras, aos quais é legítimo e inevitável se submeter.
A função específica do discurso ideológico é a de realizar a lógica do poder,
fazendo com que as diferenças surjam como diversidades “naturais” das condições de
vida de cada sujeito e, por sua vez, a aceitação de uma multiplicidade de instituições
que unificam, em forma harmoniosa, o discurso da universalidade para ocultar as
divisões, as diferenças e as contradições. Esta aparente universalidade do discurso tem
por objetivo o ocultamento dos conflitos e a dissimulação (ou pelo menos a
minimização) da dominação. Desta forma, o discurso ideológico atua através de uma
construção imaginária (representações sociais) que permite aos sujeitos sociais e
políticos um determinado campo de ação, orientado sempre por um constructo de
representações coerentes para a explicação do real, dirigido por uma estrutura também
coerente de normas e regras que orientam a prática. A ideologia é uma das formas da
práxis social: aquela que, partindo da experiência imediata dos dados da vida social,
elabora, de forma abstrata, um sistema de idéias ou representações sobre a realidade.
Assim, a ideologia é dotada de força para manter-se e reproduzir-se, e esta força
é oriunda da própria vida social e política da sociedade. A experiência imediata da vida
social alimenta a força da ideologia. A produção e a distribuição destas idéias estão sob
o controle da classe dominante que, através das instituições (escola, família, igrejas,
meios de comunicação, entre outras), assegura a execução destas idéias e garante o
sistema de dominação. O pensamento de Chauí tem Marx como base teórica, o que,
sem dúvida, sendo o constructo de partida do pensamento da práxis, foi enriquecido
com a contribuição de outros teóricos ao longo do processo de formação do
pensamento marxista. Este processo, em permanente evolução, encontra-se revigorado
a partir da contribuição de vários teóricos, como Antonio Gramsci e Karel Kosik, a partir
22
dos quais, conjuntamente com Marx, em especial na sua obra A Ideologia Alemã,
tomamos as principais contribuições para a elaboração de nosso conceito de ideologia.
Segundo Marx, “indivíduos determinados que, como produtores, atuam também
de forma determinada, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas”.
Desta forma, a produção de idéias e da consciência está diretamente interligada com a
atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida
real. No livro A Ideologia Alemã”, Marx aborda as representações a partir da
“consciência”. Para ele, as idéias, os pensamentos e as representações são o conteúdo
da consciência, que é determinada pela base material. Assim, para Marx, a estrutura
social e o Estado se reproduzem de forma constante a partir do processo de vida de
indivíduos determinados, mas não como aparece na imaginação, e sim como eles são
realmente, de como atuam e se reproduzem materialmente. Portanto, tal como se
desenvolvem suas atividades, sob determinadas situações, pressupostos e condições
materiais que independem de sua vontade
6
.
Para este filósofo, representações como a moral, a religião e qualquer outra
ideologia, assim como as formas de consciência que correspondem a elas, perdem toda
aparência de autonomia. Elas não possuem história; são os homens que, através de
seu desenvolvimento, de sua produção material e de seus intercâmbios materiais,
transformam conjuntamente, na sua vida material, a realidade, o pensar e os produtos
de seu pensar. “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência”
7
.
As idéias de classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto
é, a classe que é a força material dominante de nossa sociedade é, ao mesmo
tempo, sua força espiritual dominante. Daí que as idéias daqueles aos quais
faltam os meios de produção material estão submetidas às classes dominantes.
As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, colocadas como idéias gerais, comuns e universais de
todos os membros da sociedade
8
.
Para Marx, os indivíduos que constituem a classe dominante possuem
consciência e, por isso, são os produtores de idéias dominantes que determinam a
produção e a distribuição de idéias que vão caracterizar e marcar toda uma época
6
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São
Paulo: 11ª. ed., Hucitec, 1999, p. 36.
7
Idem, p. 37.
8
Idem, p. 72.
23
histórica. “Se, na concepção do decurso da história, separamos as idéias da classe
dominante da própria classe dominante e se as concebemos como autônomas, se nos
limitarmos a dizer que em uma época estas ou aquelas idéias dominaram, sem nos
preocuparmos com as condições de produção e com os produtores destas idéias, se,
portanto, ignorarmos os indivíduos e as circunstâncias mundiais que são a base destas
idéias, então podemos afirmar, por exemplo, que, na época em que a aristocracia
dominou, os conceitos de honra, fidelidade, etc. dominaram, ao passo que na época da
dominação da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade, etc.”
9
O filósofo alemão afirma ainda, que por esse motivo, cada nova classe
dominante, para alcançar os fins a que se propõe, apresenta seus interesses como
sendo os interesses comuns de toda a sociedade e sustenta estes interesses através
de suas idéias dominantes, como as idéias racionais e unicamente válidas
universalmente. Em resumo, poderíamos dizer que, segundo o pensamento de Marx, o
mundo das idéias expressa e reproduz as idéias dominantes, determinadas a partir das
condições materiais de sua época histórica. Mas, a partir de Marx, uma das maiores
contribuições ao pensamento marxista foi a de Antonio Gramsci, principalmente na
abordagem pedagógica, histórica e cultural. Na sua obra, Gramsci aborda o campo das
ideologias, fundamentalmente quando trata o tema do senso comum e do bom senso. A
ótica tratada por Gramsci contribui significativamente com a teoria marxista sobre o
campo das idéias.
Gramsci (1978) enfatiza a solidez das crenças das massas, detendo-se
particularmente no caso da religião como um elemento capaz de produzir normas de
conduta e de conformismo. A ideologia é tratada pelo autor como um elemento-chave
para a interpretação e ação da teoria marxista, definindo, assim, o conceito de ideologia
como “ciência das idéias” e como “análise sobre a origem das idéias”. Gramsci faz uma
análise na qual classifica as ideologias em dois grandes grupos: primeiro, o das
ideologias “orgânicas”, historicamente orgânicas, que são necessárias a uma
determinada estrutura; e o segundo grupo, de ideologias “arbitrárias” racionalistas,
“desejadas”
10
.
9
Idem, p. 73.
10
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: 3ª. ed., Civilização Brasileira,
1978, p. 62-63.
24
Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma
validade que é a “psicológica”: elas “organizam” as massas humanas, formam o terreno
sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição e lutam.
Na medida em que são “arbitrárias”, elas não criam senão “movimentos” individuais,
polêmicos; mas nem mesmo estas são completamente inúteis, já que funcionam como
o erro que se contrapõe à verdade e a afirma. Assim, as forças materiais são o
conteúdo, e as ideologias são a forma. Gramsci esclarece que esta distinção é
meramente didática, sendo que as forças não seriam historicamente concebíveis sem
forma, e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais.
Outro dos teóricos, considerado um dos grandes pensadores da teoria marxista e
que abordam a temática das ideologias, é Karel Kosik que, a partir de seu livro
“Dialética do Concreto” (2002), contribui para uma análise da dialética e das relações
sociais. Kosik aborda a atitude imediata do homem em face da realidade como um
indivíduo histórico que age objetiva e praticamente em seus relacionamentos, tanto com
a natureza como com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins
e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. No trato prático-
utilitário das coisas “
11
em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins,
instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas”, os indivíduos criam suas
próprias representações das coisas e elaboram todo um sistema correlativo de noções
que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.
Segundo Kosik, “a experiência real e as formas fenomênicas da realidade” se
reproduzem imediatamente na mente daqueles que realizam uma “determinada práxis
histórica”, como conjunto de representações ou categorias do “pensamento comum”,
“[...] que apenas por “hábito bárbaro” são considerados conceitos – são diferentes e
muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da
coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essencial e o seu conceito
correspondente”
12
. Kosik afirma que a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela
correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de
familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das
11
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: 7ª. ed., Paz e Terra, 2002, p. 13.
12
Idem, p. 14.
25
coisas e da realidade. Esta práxis é historicamente determinada e unilateral; é a práxis
fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade
em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se erguem. Nesta práxis
se forma tanto o determinado ambiente material do indivíduo histórico quanto a
atmosfera espiritual em que a aparência superficial da realidade é fixada, como o
mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade, em que o homem se
move naturalmente e com que tem de se haver na vida cotidiana.
O conceito de ideologia, dentro do pensamento marxista, passa por uma
variedade de transformações que, ao longo do tempo, fornece definições cada vez mais
apuradas. Para Marx, ideologia é um conceito depreciativo, crítico, que implica ilusão,
que se refere a uma deformação da realidade, que se viabiliza através da ideologia
dominante: as idéias da classe dominante são as ideologias dominantes na sociedade.
Na obra de Lênin, o conceito de ideologia cobra um outro sentido: a ideologia como
concepção da realidade social e política, vinculada aos interesses de determinadas
classes sociais. Para Lênin, o conceito depreciativo, crítico, negativo que tem em Marx,
toma outro sentido. Para ele, existe uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária.
A partir de Lênin, ideologia passa a designar qualquer doutrina, a respeito da realidade
social, que se vincule com uma posição de classe.
Outra contribuição de fundamental importância para o entendimento do conceito
de ideologia é a abordagem realizada por Louis Althusser em “Aparelhos Ideológicos de
Estado”. Para Althusser, a ideologia é um sistema de idéias, de representações, que
domina o espírito de um homem ou de um grupo social. Para ele, a ideologia não tem
história; mas esboça uma tese sobre a necessidade de elaborar uma teoria da ideologia
em geral, sem entrar na teoria das ideologias particulares. Afirma que uma teoria das
ideologias repousa, em última análise, na história das formações sociais, nos modos de
produção e nas lutas de classes que se desenvolvem nela. Desta forma, Althusser
afirma que a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com
suas condições reais de existência. Para sustentar esta afirmativa, ele levanta duas
teses, uma negativa e outra positiva. A primeira trata do objeto que é “representado”
sob a forma de ideologia imaginária; a segunda trata a materialidade da ideologia.
26
Na sua primeira tese, Althusser analisa o conceito de “concepções de mundo”,
entendido este como a ideologia religiosa, moral, jurídica, entre outras. Contrapõe estas
concepções de mundo dizendo que elas são, em grande parte, imaginárias, ou seja,
não correspondem à realidade.
Portanto, admitindo que elas não correspondem à realidade e que, então, elas
constituem uma ilusão, admitimos que elas se referem à realidade e que basta
“interpretá-las” para encontrar, sob a sua representação imaginária do mundo, a
realidade mesma desse mundo (ideologia = ilusão/alusão)
13
.
Althusser salienta que o que é refletido na representação imaginária do mundo, o
que se encontra na ideologia, são as condições de existência dos homens, de seu
mundo real. Não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os
homens se representam na ideologia; o que é nelas representado é, antes de mais
nada, a sua relação com as suas condições reais de existência. É esta relação que está
no centro de toda representação ideológica e, portanto, imaginária do mundo real.
A segunda afirmação realizada por Althusser baseia-se na tese de que a
ideologia tem uma existência material. Ele considera que a existência de idéias e
crenças no indivíduo é material, pois suas idéias são seus atos materiais inseridos em
práticas materiais e regulados por rituais materiais, definidos e condicionados por um
aparelho ideológico material, de onde provém as idéias de dito sujeito
14
. Assim,
Althusser elabora uma tese que pretende avançar na teoria do Estado e considera
indispensável, para tal objetivo, não somente ter em conta a distinção entre poder de
Estado e aparelho de Estado, mas também a realidade do aparelho repressivo do
Estado, que não pode ser confundido com o que ele designou com o conceito de
“Aparelhos Ideológicos do Estado”. O autor salienta, ainda, a importância de não
confundir este conceito de Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) com o Aparelho
Repressivo do Estado (ARE).
A definição deste conceito de Aparelho Ideológico do Estado, de Althusser, é a
de um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a
forma de instituições destinadas e especializadas. Ele define uma relação de
13 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: 6ª
.
ed., Graal,
1992,
p.
86
.
14
Idem, p. 92.
27
instituições, tais como: religiosas, escola, família, jurídicas, políticas, sindicais, da
informação, da cultura, entre outras. Estes aparelhos funcionam principalmente através
da ideologia, secundariamente através da repressão (uma repressão atenuada,
dissimulada, não envolvendo violência física), no campo da repressão simbólica. O
autor afirma que nenhuma classe pode, de forma duradoura, deter o poder do Estado
sem exercer, ao mesmo tempo, sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos do
Estado
15
. Para Althusser, todos os Aparelhos Ideológicos do Estado, quaisquer que
sejam, concorrem para o mesmo fim: a reprodução das relações de produção, isto é,
das relações de exploração capitalista. Cada um destes Aparelhos contribui, a sua
maneira e segundo sua especialidade, para um fim único. Portanto, eles desempenham
um papel dominante. Althusser salienta, como principal Aparelho Ideológico do Estado,
a Escola. A Escola como reprodutor fundamental das idéias dominantes:
É pela aprendizagem de alguns saberes contidos na inculcação maciça da
ideologia da classe dominante que, em grande parte, são reproduzidas as relações
de produção de uma formação social capitalista, ou seja, as relações entre
exploradores e explorados, e entre explorados e exploradores. Os mecanismos que
produzem esse resultado vital para o regime capitalista são naturalmente encobertos
e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente aceita, que é uma das
formas essenciais da ideologia burguesa dominante. Em resumo, para Althusser, as
ideologias se realizam nas instituições, através de seus rituais e práticas, e dentro
dos Aparelhos Ideológicos do Estado. A reprodução das relações de produção das
classes dominante é seu objetivo primário. As ideologias não nascem dos Aparelhos
Ideológicos do Estado, e sim das classes sociais em luta, de suas condições de
existência e de suas práticas. Conjuntamente com Gramsci, Althusser define a
Escola e a Igreja como as instituições, por excelência, reprodutoras das idéias
dominantes.
No momento em que se propõe investigar a trajetória da esquerda uruguaia nos
períodos mencionados, a partir de suas estruturas políticas-ideológicas, entende-se
por ideologia o arcabouço da teoria marxista a respeito, como conceito- guia de cada
organização participante dessa trajetória política. Assim, tanto nas diversas
15
Idem, p. 71.
28
categorias elaboradas para o estudo – no que se refere a recortes temporais, que
deram lugar a periodizações – como na construção programática de cada
organização da esquerda uruguaia, tomamos como pressuposto, com base nos
referenciais do marxismo, a existência de ideologias presentes nesses constructos.
O objetivo do estudo a este respeito (dos processos ideológicos) referencia-se nas
ideologias existentes em cada plataforma programática e sua respectiva evolução
nos períodos determinados.
A estruturação deste estudo é de três capítulos, sendo que no primeiro capítulo
são abordadas as principais características do contexto político, social e econômico do
período sesentista
16
. Parte-se da formação do sistema político baseado no
bipartidarismo que, até o surgimento da Frente Ampla, em 1971, dominou o cenário
político nacional. Parte-se de Batlle
17
, do batllismo e do neobatllismo como
fundamentos da política das classes dominantes tradicionais e sua significação num
contexto de profundos conflitos sociais e econômicos no marco da democracia liberal
que caracterizou o país desde a formação do Estado nacional. Por outra parte, a
trajetória do movimento operário, estudantil e de setores da sociedade organizada no
âmbito da esquerda nacional – desde a participação da Igreja Católica até os grupos de
ação direta – que protagonizaram os acontecimentos políticos que o país viveu até a
ditadura civil-militar, em 1973.
Neste contexto prioriza-se a análise da evolução da esquerda uruguaia e o
surgimento do Movimento de Libertação Nacional – MLN, que emerge quebrando o
ritmo “democrático” da sociedade uruguaia da década de 1960. Sua significação como
movimento armado, sua composição ideológica e os debates travados no seio das
organizações populares – fundamentalmente o protagonizado pela Federação
16
“Sesentismo” ou pensamento “sesentista” faz referência a uma corrente de pensamento que
predominou, de forma hegemônica, na esquerda uruguaia durante as décadas de 1960 e 1970 e foi até o
ano de 1994. Ela foi fortemente influenciada pela Revolução Cubana e pelas discussões surgidas em
decorrência desta. Aderiram a essa corrente de pensamento a grande maioria dos intelectuais
identificados com a esquerda do país. Nos âmbitos políticos, sociais e nas mais diversas manifestações
culturais solidificou-se a idéia da Revolução Socialista no Uruguai, independentemente das formas e
métodos que fossem utilizados para chegar a este objetivo. Idéia essa alicerçada por um amplo espectro
ideológico que permitiu a participação – de diversas formas – de todos os atores políticos da época.
17
José Batlle y Ordóñez (1856-1929) foi presidente da República por duas vezes (1903-1906 e 1911-
1915). O batllismo entende-se como a corrente política dentro do Partido Colorado, por ele fundado. O
neobatllismo foi uma renovação dessa corrente, que governou o país entre 1946 e 1958.
29
Anarquista do Uruguai – FAU – sobre a Teoria do Foco e sua versão uruguaia,
desenvolvida pelos Tupamaros. Ao mesmo tempo, a esquerda eleitoral conseguia
concretizar sua tão desejada unificação numa força de coalizão: a Frente Ampla. As
discussões sobre o “método” para se chegar ao socialismo foram o tema prioritário
neste período sesentista.
O primeiro capítulo trata, portanto, do surgimento do MLN (1964), seu
desenvolvimento organizacional e as correntes ideológicas que nele predominaram até
a sua derrota militar, em 1973, no sentido da compreensão dos processos ideológicos.
Discute-se o conceito de democracia existente no período e, nele, o tema da “guerra
justa”, como forma de análise dos processos ideológicos que marcaram o pensamento
sesentista e o contexto da esquerda “legal”, sua evolução, as coincidências e
discrepâncias com os tupamaros e o desfecho, caracterizado pela instauração da
ditadura cívico-militar, em 1973.
O segundo capítulo objetiva analisar a trajetória de diferentes setores da
esquerda, os quais, a partir do golpe cívico-militar de 1973, resistiram ao mesmo,
elaborando práticas e discursos dentro dos pressupostos da esquerda sesentista ou da
esquerda clássica. Esse enfrentamento, que teve seus antecedentes durante a
democracia “autoritária” de Jorge Pacheco Areco, em 1968, e que se aprofundou
durante os cinco anos subseqüentes, demonstrou o grau de combatividade do
movimento popular uruguaio e uma concepção particular do estado democrático.
A resistência ao Golpe de Estado e a posterior derrota do movimento popular
na Greve Geral (1973), com o resultado da ascensão do governo cívico-militar,
marcou, nas organizações políticas, uma referência ideológica com base,
fundamentalmente, no marxismo – nas suas mais variadas possibilidades –, como
ferramenta de interpretação da realidade e como ideologia do movimento popular
organizado. A defesa da democracia durante o período ditatorial foi uma constante
ferramenta de luta de todo o movimento popular, não pela defesa do Estado
democrático liberal em si, mas pelo repúdio à Ditadura e a seu regime autoritário e
pela defesa de uma democracia socialista.
O processo de “recuperação democrática”, que teve seu início em 1980,
propiciou dois elementos de singular importância: por um lado, um lento caminho para a
30
recuperação do estado de direito, com uma saída tutelada pelos militares, em um
contexto de negociações ou, como se chamou na época, concertación. E por outro
lado, nesse processo de concertación, o início de uma transição da esquerda, que teve
como pano de fundo o desmantelamento do socialismo “real”, o triunfo da social-
democracia na Europa, a implementação do modelo neoliberal e os efeitos concretos
da globalização.
No início da década de 1990, com a democracia “restaurada” (fora da tutela
militar), os debates dentro da esquerda frentista e não-frentista
18
tomaram um caráter
derrotista, em virtude das mudanças no campo socialista e a falta de respostas da
maioria das organizações de esquerda para o novo cenário. No ímpeto da globalização,
definiu-se um cenário no qual “novos atores” surgiram, com novas propostas e velhas
discussões, entre elas a transição que a esquerda devia realizar para adequar-se aos
novos tempos. As implicações foram a defesa da democracia liberal, como opção sine
qua non para as mudanças sociais que a sociedade uruguaia necessitava, e o
abandono gradativo do pensamento sesentista e das bandeiras tradicionais da
esquerda.
A Frente Ampla, como coalizão da esquerda uruguaia, criou uma política de
alianças com o objetivo de ganhar as eleições nacionais, em um contexto de uma
profunda crise que marcou definitivamente sua história, modificando um discurso
antiimperialista e antioligárquico (fundacional sesentista) e tomando novas
dimensões para se adequar ao novo cenário político. As discussões na sua
organização interna provocaram divisões e desconfortos que só seriam superados –
em parte – após a conquista eleitoral de 2004. A virada político-ideológica de suas
forças majoritárias, os partidos comunista e socialista, e o surgimento de novos
atores políticos aliados foram fundamentais para sua consolidação.
O papel do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, a partir de 1985, e
também o da Federação Anarquista Uruguaia – FAU (de forma totalmente diferente)
foram elementos que caracterizaram as mudanças da esquerda radical uruguaia: o
primeiro ingressando na Frente Ampla e iniciando um processo de inserção no meio
18
Entenda-se, aqui, por esquerda frentista os setores vinculados à Frente Ampla, ou seja, a esquerda
eleitoral; e por não frentista, os setores da esquerda que não participaram da contenda eleitoral, tais
como a FAU, o MRO e o PRT.
31
político “formal”; e o segundo mantendo suas antigas concepções e colocando-se uma
vez mais à margem da política eleitoral. O primeiro, com duas grandes linhas internas: a
de um trabalho político voltado à luta pela formação de uma grande frente nacional,
procurando a defesa das reivindicações da população uruguaia; e a segunda linha
criando um novo espaço de participação eleitoral dentro da coalizão. Enquanto a FAU
optou por intensificar um trabalho de ações concretas de solidariedade nos bairros, no
meio sindical e divulgando sua concepção de socialismo.
A partir dessas premissas, pretende-se colocar em discussão as mudanças
ideológicas acontecidas na esquerda, fundamentalmente frentista, no período de 1973
até 1994. A delimitação temporal corresponde a três períodos que foram classificados
da seguinte forma:
1) de 1973 a 1984, o período ditatorial;
2) de 1985 a 1990, o período da democracia “primaveral” ou tutelada;
3) de 1990 a 1994, o período de consolidação da democracia liberal no país.
Nesses três períodos observou-se uma mudança gradativa que foi
transformando o cenário político nacional, quando os atores da “esquerda” caminharam
para uma aparente “transição irreversível”.
O terceiro capítulo tem por objetivo a análise do processo de globalização, o
discurso dele oriundo (globalizador) e o neoliberalismo no Uruguai. Estes como os
detentores de um novo paradigma ao qual a esquerda uruguaia se incorporou e, a partir
destes, se “adaptou” às novas contingências que o novo “cenário” apresentou. A falta
de resistência ao modelo globalizador ocasionou uma grande virada na esquerda
nacional a partir do surgimento do progressismo (1994-2004), que levou a completar
um processo de “atualização ideológica” dentro da esquerda eleitoral no país.
Este discurso globalizador incorporou novos conceitos na vida cotidiana e política
da sociedade e nas suas instituições, que iniciaram um processo de consolidação a
partir da queda do socialismo “real”, fundamentando-se na inviabilidade do socialismo
para justificar a “única” alternativa possível: a democracia liberal. Conjuntamente com
esta, as novas problemáticas e os novos paradigmas assumiram um caráter totalizador,
no qual o processo de globalização e seus “pertinentes” conceitos viabilizariam a
32
reorganização da sociedade sobre um modelo social, político e econômico de cunho
neoliberal.
Por outro lado, analisa-se a crise dos partidos políticos e o desgaste do
bipartidarismo secular que, como resultado de um profundo processo de deteriorização
das instituições burguesas, mas também de falta de propostas da esquerda tradicional
(em processo de atualização), incorporaram os paradigmas globalizadores e
abandonaram as clássicas bandeiras da esquerda. Isto aconteceu num cenário de
extrema crise econômica, produto das políticas neoliberais que o país vem
desenvolvendo desde sua reabertura democrática, em 1984, com as já conhecidas
conseqüências para a população, principalmente no que tange às temáticas sociais.
Analisa-se também o surgimento da esquerda progressista e, nela, o aumento
substancial do potencial eleitoral que levou ao Governo nacional, pela primeira vez na
história do país, uma coalizão de esquerda, em 2004. As diversas contingências que
permitiram a essa esquerda “atualizada” ideologicamente implementar um novo
discurso e uma nova plataforma programática, a qual tem como característica primária,
o abandono do projeto socialista e, conjuntamente com ele, de todas as reivindicações
que historicamente a esquerda representou.
Paralelamente, observou-se o papel desempenhado pelas chamadas esquerdas
radicais (dentro da esquerda eleitoral) que, lentamente, iniciaram um processo de
adequação à nova ordem política do país e readequaram seus discursos em prol de
uma proposta eleitoral. Estas forças concentraram-se em volta do Movimento de
Participação Popular – MPP, que teve no MLN – Tupamaros seu principal organizador
político. Essa esquerda radical, historicamente minoritária, transformou-se na primeira
força política dentro da esquerda eleitoral, a partir de 2004, e contribuiu
substancialmente para o triunfo da coalizão nas eleições nacionais.
Ao final, desenvolveram-se as conclusões do trabalho, a partir das propostas de
investigação. Muitas perguntas ficaram em aberto. Obviamente, a história recente nos
impõe limitações para analisarmos um determinado processo político-ideológico, mas,
por outro lado, traz à superfície do debate político algumas reflexões indispensáveis
para indagarmos sobre os caminhos e dilemas da esquerda contemporânea, mesmo
que a partir de certas conclusões não muito alentadoras, pelo menos por enquanto.
33
CAPÍTULO I
O URUGUAI SESENTISTA: A ESQUERDA E O MLN – TUPAMAROS
1962 – 1973
1. O URUGUAI NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: os antecedentes
Durante a primeira metade do século XX, pelo menos até 1955, a inserção do
capitalismo uruguaio no mercado mundial havia sido menos desfavorável do que para
outras regiões da América Latina. Possibilitou certo desenvolvimento econômico e, com
“impulsos e freios”, políticas de proteção e fomento da produção na indústria e na
agricultura.
No âmbito social, a classe dirigente no poder promoveu políticas de “conciliação”,
através de um Estado que, junto com sua função específica de reprodução da “ordem”
capitalista, era capaz de cumprir uma tarefa de distribuição e redistribuição social dos
recursos. Esse esquema era sustentado, fundamentalmente, no excedente gerado pela
exportação agropecuária. Parte desse excedente era transferido ao Estado e à
proteção da indústria.
No âmbito político, quando na maioria dos países da região – de forte predomínio
oligárquico – alternavam-se regimes militares, no Uruguai uma sociedade com maior
grau de integração política sobrevivia a partir de um núcleo dirigente herdeiro das
tradições da burguesia liberal e democrática, laica e civilista de princípios do século. O
Estado podia desenvolver políticas sociais de “compromisso”, pautadas por um tênue
espírito nacionalista e de relativa confiança quanto à viabilidade do país.
34
Até a década de 1950, os setores hegemônicos das classes dominantes haviam
impulsionado uma política de desenvolvimento econômico, particularmente do setor
industrial
19
, dentro dos marcos de uma economia dependente, na órbita econômica,
militar e ideológica, dos Estados Unidos. Na metade da década, entretanto, os limites
desse desenvolvimento foram alcançados.
Por que a burguesia industrial uruguaia e, de modo geral, o grupo político
dirigente, de acordo com sua tradição e a mentalidade predominante entre seus líderes,
não se dispuseram, nessa época, a assumir políticas de caráter antiimperialista, nem
nacionalista. Diferente do que havia acontecido em outros países da América Latina,
predominava na classe dirigente uruguaia uma certa identificação com os objetivos
históricos das grandes potências atlânticas, como os EUA e a Inglaterra.
Tal ocorreu, em grande medida, porque, como salienta Cores (1997), o “Uruguai
não viveu, pelo menos desde 1852, nem a perda territorial – como México, Colômbia,
Cuba –, nem as invasões – como Haiti, Nicarágua, Santo Domingo”
20
, como também
não vivenciou com intensidade a expansão da espoliação de grandes empresas, como
a United Fruit na América Central, as petroleiras na Venezuela ou a mineira na região
andina, que mostraram a presença direta da expansão imperialista norte-americana.
Na época da Segunda Guerra Mundial surgiram, na América Latina, alguns
líderes – como Juan Domingo Perón, a partir de setores nacionalistas e militares na
Argentina; Lázaro Cárdenas, no México; ou Getúlio Vargas, no Brasil – que buscaram
contrapor-se à influência norte-americana com gestos, insinuações diplomáticas ou
econômicas na direção das potências centrais da Europa, particularmente a Alemanha.
No Uruguai, por sua vez, a participação ao lado dos aliados era inquestionável.
Terminada a guerra, grande parte da elite empresarial e política uruguaia
apostou manter-se agarrada à “locomotiva do progresso” da economia dos EUA, tendo,
inclusive, se levantado vozes criticando o Plano Marshal e a pouca atenção que
merecia o fortalecimento da economia uruguaia. A economia de uma nação
19
A industrialização constituiu um fator dinamizador de vários setores econômicos, impulsionando o
desenvolvimento da indústria, ampliando o setor de serviços e também exigindo novas vias de
comercialização e uma adequada estrutura financeira e bancária. Isto configurou uma expansão geral na
criação de novos empregos e renda. Os setores da indústria privilegiados pelas políticas de
desenvolvimento da época estavam relacionados primariamente com a industrialização da carne, couro,
lã, indústria têxtil e secundariamente, com a indústria moveleira, borracha e bebidas.
20
CORES, Hugo. El 68 Uruguayo. Montevideo: Banda Oriental, 1997, p. 17.
35
democrática, que nunca havia se aproximado dos regimes totalitários e com tantas
afinidades com os EUA. A elite uruguaia convocou ao “pan-americanismo econômico” e
a uma visão “hemisférica” dos problemas mundiais.
Concordamos com a análise realizada por Gerónimo de Sierra
21
, na qual enfatiza
que Batlle
22
, na realidade, representava uma tentativa de superar a crise hegemônica
do conjunto da classe dominante, permitindo, dessa maneira, atender às necessidades
de acumulação tanto do mais avançado da burguesia agrária como dos emergentes
setores vinculados ao comércio e à indústria, ligados ao mercado interno
23
.
Nas condições rígidas impostas pelo caráter dependente do país, o chamado
modelo batllista caracterizava-se por haver maximizado o espaço de acumulação da
burguesia local, tanto pecuarista exportadora como comercial e industrial, que produzia
para o mercado interno. Como elemento original, podemos assinalar uma acentuada
intervenção estatal, o que estimulou o desenvolvimento simultâneo tanto das
exportações primárias como da indústria de bens finais para o consumo interno dos
setores urbanos. É esse duplo aspecto que proporcionou a base de sustentação social
ao modelo batllista, consolidando o “pacto de não agressão” que existiu entre as
burguesias agrárias e os governos batllistas nas primeiras décadas do século XX e que
possibilitou a política do “compromisso”
24
.
21
SIERRA, Gerónimo de. Consolidación y Crisis del Capitalismo Democrático en Uruguay.In: América
Latina: Historia de Medio Siglo. 1. América del Sur. México: Siglo XXI. 8ª ed., 1991, p. 431-437.
22
Desde que foi eleito pela primeira vez, em 1903, até sua morte, em 1929, José Batlle y Ordóñez
dominou a vida política do Uruguai. Duas vezes presidente (1903-1906 e 1911-1915), sua autoridade
originou-se, em grande parte, porque soube conciliar as aspirações da burguesia modernizadora com as
aspirações das classes populares. Filho de um presidente e neto de um comerciante, Batlle foi jornalista
e fundador do jornal El Dia, em 1886. Trabalhou, desde 1890, pela normalização das instituições e pela
independência econômica do país. Seu programa básico de 1903 – liberdade eleitoral e eleições
honestas – reivindica garantias essenciais democráticas e sugere um regime de participação ampliada,
de acordo com as tendências de modernização da época.
23
Essas tarefas se vêem amplamente beneficiadas pelas condições do mercado mundial de carnes e lã,
e pela importante renda diferencial que a produção local obteve graças às privilegiadas condições
naturais para este tipo de produção. Resulta significativo salientar que desde 1903, quando Batlle
assumiu a presidência pela primeira vez, produz-se uma ruptura com o anterior ciclo de crises políticas
que ameaçavam, de forma permanente, a própria existência do Estado e, com ele, as possibilidades de
um desenvolvimento de acumulação capitalista local. Em especial, a partir da vitória de Batlle sobre a
guerra civil de Aparício Saravia, acelera-se o processo de consolidação da produção ampliada nos
moldes de produção capitalista no país. Não somente as condições de produção ampliada de capital,
senão também as condições de reprodução das classes sociais em seus aspectos políticos e ideológicos,
sem as quais não se reproduz o capital.
24
A matriz política do Uruguai neo-batllista foi marcada, na sua essência, pela co-participação dos
partidos tradicionais na direção do Estado. Essa é uma característica relevante da história nacional ligada
36
O papel intervencionista e organizador do Estado no plano econômico
manifestou-se na criação e no desenvolvimento de infra-estrutura física, administrativa
e financeira necessária para uma expansão rápida da acumulação capitalista; infra-
estrutura que, em grande parte, pertence ao Estado. A isso se deve incrementar o
modelo de gestão das finanças públicas, a participação em várias atividades
efetivamente produtivas e uma legislação econômica e trabalhista que impulsionaram a
organização e o desenvolvimento do mercado interno. A ampla legislação social do
primeiro período batllista deve ser vista não só com suas conotações “populistas”, mas
também em sua fase de organização stricto sensu do mercado de trabalho, como o
próprio Batlle repetia para os setores empresariais descontentes.
Pouco a pouco foi se afirmando o modelo de dominação burguesa sobre as
outras classes da sociedade, no qual predominavam os aspectos característicos de
hegemonia pacífica sobre os aspectos repressivos da dominação. Tal modelo
correspondeu a um período no qual era uma necessidade de toda a burguesia – pelo
menos seus setores mais avançados na via capitalista – terminar com a crise e
consolidar uma forma legal e pacífica de dominação. Assim, com base nas
possibilidades sociais objetivas abertas pela relativa complexidade já alcançada pela
estrutura social dominante – principalmente urbana –, foi-se afirmando o modelo de
“democracia representativa”, na qual os partidos são o canal privilegiado de
representação das classes sociais.
ao secular bipartidarismo. Em cada etapa da política nacional é possível detectar-se um setor “de ponta”,
que toma a iniciativa: geralmente, o Partido Colorado e, dentro dele, alternativamente, o batllismo e seus
adversários. Assim, o desenvolvimento do capitalismo, como a evolução do Estado, cumpriu-se com base
numa equação política que pressupunha o “compromisso” entre as duas coletividades tradicionais, um
jogo de negociações e acordos no interior de cada partido e entendimentos transversais entre as frações
de ambos.
37
No que diz respeito ao plano ideológico, o batllismo
25
foi consolidando um projeto
hegemônico nacional-burguês muito bem recepcionado, na época, pelas classes
dirigentes. Esse projeto, liderado naturalmente pela fração batllista, mas consentido
pelos setores dominantes das outras tendências do Partido Colorado, conseguiu
reorganizar o conjunto do bloco dominante em nível político. Por outra parte, deve-se
assinalar a importância desse processo quanto à desorganização ideológica e política
dos setores populares, fundamentalmente na crescente classe operária e nos demais
setores assalariados. A forte ênfase igualitarista do batllismo, junto com a imagem do
Estado situado por cima das classes, provocou uma extrema distância entre os
aspectos econômicos e políticos da luta de classes. Nesse período foi muito difícil para
as organizações operárias conseguirem articular as importantes lutas reivindicatórias
em nível econômico com o aspecto de dominação política de classes, o que implicaria
na abertura política do governo.
O batllismo estruturou as bases do moderno Estado nacional, consolidando o
sistema político, e, para além de seus momentos de instabilidade e crises, implementou
um estado de bem-estar que, paulatinamente, se transformou em patrimônio da maioria
da população do país.
Posteriormente, a Constituição de 1917 definiu a estruturação do sistema político
nacional e forneceu as premissas legais para levar a maioria dos projetos de José
25
As idéias que influenciaram o pensamento de Batlle foram, fundamentalmente, as de Karl Krause
(1781-1832), Immanuel Kant (1724-1804) e Enrique Ahrens (1808-1874). Os princípios sustentados por
Ahrens permeiam uma linha de pensamento que tem seu início em Kant, desenvolvendo-se com quem
sempre se considerou seu discípulo, Krause. A filosofia de Kant, Krause e as posições de Ahrens
serviram de base à reforma do sistema liberal realizada por Batlle no Uruguai. Krause desenvolveu uma
visão integral da humanidade, na qual o homem devia atender, de forma racional e harmônica, sua
vinculação a todas as instituições existentes na sociedade humana: a família, o trato social, o Estado, a
Igreja, a sociedade científica, etc. A idéia de Krause com respeito ao direito e ao Estado leva a que este
deve harmonizar o elemento pessoal e o elemento social nas relações humanas. Ahrens afirmava que o
Estado tem a missão de manter todo o desenvolvimento social no caminho da justiça e de assegurar a
todos os integrantes da sociedade os meios necessários a sua proteção. Desses autores provêm às
bases filosóficas do batllismo. Do pensamento que surgiu na Universidade Livre de Bruxelas nutriram-se
Prudéncio Vázquez y Vega e José Batlle y Ordoñez. A partir dessas idéias, estruturou-se o pensamento
liberal uruguaio que levou a consolidar um modelo de particularidades únicas no cenário da América
Latina. Esse ideário incorporou-se à concepção clássica de democracia liberal, na qual seus defensores
acreditavam que ela era o único tipo de democracia possível. A palavra “liberal”, aplicada a sistemas de
governo, costuma implicar uma preocupação com a proteção das liberdades individuais através da
limitação do poder do governo.
38
Batlle y Ordónez à sua institucionalização definitiva. A morte de Batlle, em 1929,
coincidindo com a crise mundial, levou o país a uma nova fase, na qual, de certa forma,
ocorreu uma transição para o chamado neo-batllismo, que perdurou por mais de 40
anos, tendo sido interrompido pela ditadura civil-militar, em 1973. Mas as bases
políticas e sociais do antigo líder colorado, entretanto, continuaram incólumes,
vigorando no sistema político e no Estado nacional uruguaio.
O neo-batllismo
26
marcou o modelo de desenvolvimento uruguaio e deve ser
interpretado a partir do panorama que surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial.
Num estudo realizado por Nahum, (et al)
27
1991, foram identificados três aspectos
relevantes que marcaram o país nos âmbitos políticos, sociais e econômicos, e que se
refletiram no modelo de desenvolvimento adotado: a) a decadência do Império
Britânico; b) o processo de descolonização; e c) o imaginário coletivo de
excepcionalidade do país, os quais comentaremos a seguir.
a) A decadência definitiva do Império Britânico refletiu-se na impossibilidade de
manter suas empresas no país, fundamentalmente as de água potável e transportes
ferroviários
28
. A definitiva retirada dos ingleses foi acompanhada pela ascensão dos
Estados Unidos como potência hegemônica mundial do ocidente capitalista e, neste
contexto, “[...] o alinhamento pró-aliado do Uruguai não demorou em transformar-se em
autêntico alinhamento pró-Estados Unidos”
29
. Assim, o Uruguai se fez partícipe do novo
26
O conceito de neo-batllismo, num sentido amplo, é utilizado para denominar a série de características
econômicas, sociais, políticas e ideológicas que identificam o período da história nacional uruguaia entre
1946 e 1958. Num sentido mais restrito, a denominação faz referência ao papel desempenhado pelo
Estado, particularmente pelo setor do Partido Colorado liderado por Luis Batlle Berres (1897-1964) –
exerceu a Presidência da República entre 1947 e 1951, e a Presidência do Conselho Nacional de
Governo (executivo colegiado) entre 1955 e 1956 –, para a implementação de um projeto nacional que,
apoiado na tradição reformista do batllismo, fosse capaz de atingir as metas do progresso econômico e
social, com base no desenvolvimento industrial e no marco de uma efetiva democracia política.
27
NAHUM, Benjamin; COCCHI, Angel; FREGA, Ana; TROCHON, Yvette. História Uruguaya – 1930-
1958: Crisis Política y Recuperación Económica. Montevideo: Banda Oriental, 1991, p. 96-102.
28
Nacionalizaram-se, nesta etapa, os transportes ferroviários (1947-48) e os serviços de água corrente
(1948), dando origem a novas empresas estatais como a Administración Municipal de Transportes
Andet, a Administración de Ferrocarriles del Estado – AFE e a Obras Sanitárias del Estado – OSE. Mas a
essas expressões do nacionalismo econômico impulsionado pelos setores batllistas somava-se o
interesse britânico de desprender-se de empresas que, como as mencionadas, não resultavam rentáveis.
A Inglaterra aproveitou, com sua habitual habilidade, o momento derivado da acumulação de saldos
favoráveis ao Uruguai (obtidos pelas vendas de carnes e lã realizadas durante a Segunda Guerra) para
“convencer” o governo a trocar as libras bloqueadas em Londres (17 milhões) pela compra das empresas
britânicas. NAHUM, Benjamin: et al. op. cit., 1991, p. 140-141.
29
NAHUM, Benjamin; et al., op. cit., 1991, p. 104.
39
sentido que se deu ao movimento de solidariedade hemisférica no marco da “guerra
fria” e da divisão do mundo em dois blocos de poder hegemônico liderados pelos
Estados Unidos e pela União Soviética.
Em março de 1945, o Uruguai subscreveu a “Acta de Chapultepec”, que
autorizou o uso de sanções para prevenir possíveis ataques externos aos países do
continente e deu caráter permanente aos organismos criados durante a Guerra: a Junta
de Defesa Interamericana e o Comitê Consultivo Econômico e Financeiro. Em dois de
setembro de 1947 firmou-se, no Rio de Janeiro, o Tratado Interamericano de
Assistência Recíproca – Tiar, que complementou o anterior documento e estabeleceu
diferentes procedimentos; o segundo trata de um agressor americano ou extra-
americano. Essas medidas foram claramente inspiradas nas necessidades da política
externa dos Estados Unidos e foram se fazendo mais rígidas na medida em que a
Guerra Fria se intensificou, principalmente a partir do Bloqueio de Berlim (1948-1949) e
a Guerra de Coréia (1950-1953).
b) O processo de descolonização e a emergência do “terceiro mundo”, com seu
subdesenvolvimento, atraso e marginalização, e, inclusive, os movimentos favoráveis
em unir os países não-alinhados, não encontraram, no Uruguai, a repercussão que
atingiram em outros lugares da América Latina. Segundo a análise realizada por Nahum
(et al) 1991, o Uruguai teve uma situação econômica favorável no período, derivada dos
benefícios da produção agropecuária e do comércio exterior durante e logo após a
Segunda Guerra Mundial e também no período posterior à Guerra da Coréia.
Na visão de D’Elía (1982), o processo de acumulação de uma importante massa
de reservas – ouro e divisas –, durante o conflito bélico, permitiu ao país abastecer-se
de bens de capital, matérias-primas e combustíveis, com os quais se assegurou a
expansão da indústria. Essa situação favorável complementou-se com o incremento da
demanda externa da produção primária nacional e o aumento dos preços, dando lugar
a uma relação de intercâmbio favorável
30
. Deve ser considerado também que, desde o
ponto de vista interno, o grau de evolução atingido pelo país garantiu a existência de
firmes bases para iniciar o processo de acumulação. Deve-se acrescentar a isso, ainda,
a evolução política favorável no mesmo sentido.
30
D’ELIA, Germán. El Uruguay Neo-Batllista: 1946-1958. Montevideo: Banda Oriental, 1982, p. 29.
40
No Uruguai, a intervenção do fator político no processo de industrialização teve
um papel fundamental e adquiriu uma particular importância com o retorno do batllismo
ao poder, especialmente a partir do ano de 1947, com a ascensão de Luis Batlle Berres
à Presidência, o qual tinha uma concepção definidamente favorável ao
desenvolvimento industrial do país
31
. Nessa circunstância produziu-se uma ajustada
integração do poder político e das forças sociais que reivindicavam a industrialização,
de tal forma, segundo D’elía, “[...] que é difícil identificar em que medida o poder político
foi o intérprete e promotor desse projeto de industrialização que se expressaria numa
verdadeira ideologia do desenvolvimento”
32
. Essa integração objetivou-se nas
resoluções políticas adotadas e, substancialmente, na função que se designou ao
Estado no processo.
O Estado assumiu um papel fundamental com uma política de estímulo à
empresa privada, oferecendo garantias de maiores preços e benefícios dentro de um
marco de absoluta liberdade para orientar as atividades que mais satisfizessem seus
interesses. Estabeleceu-se um “agudo” protecionismo, reservando o mercado interno
para a indústria que se impulsionava, e se promoveu uma política re-distributiva, que
ampliou o mercado ao elevar os níveis de consumo da população.
A industrialização constituiu um fator dinamizador de outros setores
econômicos, impulsionando o desenvolvimento de cultivos agrários, ampliando
o setor de serviços, exigindo novos canais de comercialização e uma adequada
rede financeira e bancária, o que configurou uma expansão geral com a criação
de novos empregos e ingressos, o que, em síntese, traduziu-se no incremento
da demanda
33
.
É importante assinalar o peso que teve a política econômica exercida até os
primeiros anos da década de cinqüenta, assim como suas limitações quanto a gerar um
crescimento industrial auto-sustentável sem transformar as estruturas produtivas do
meio rural. Foi essa conjuntura de prosperidade que possibilitou a transferência de
31
Entre os anos de 1945 e 1955, aconteceu o processo de aceleração da produção industrial uruguaia.
Essa se incrementou em 8,5% anual, enquanto que a produção agrícola estava na ordem de 3,9%.
(NAHUM, Benjamin: et al. op. cit., 1991, p. 129).
32
Idem.
33
D’ELIA, Germán. op. cit., 1982, p. 32.
41
renda originada no setor agro-exportador aos outros grupos sociais
34
. Para Luis Batlle,
a ação re-distributiva da renda pelo Estado não se limitava a razões de solidariedade ou
igualdade social. O Estado devia “adiantar” as demandas como forma de evitar as lutas
sociais; devia representar o papel de “árbitro” na sociedade. Essa política também
contribuía para elevar o poder aquisitivo da população e, conseqüentemente, aumentar
o mercado interno
35
.
c) Nessa particular conjuntura propiciou-se a representação coletiva da
excepcionalidade do país, exemplificada na entusiástica frase: “Como el Uruguay no
hay”. Estabelecia-se forte contraste com o restante da América Latina e, de forma muito
especial, com a Argentina governada pelo general Juan Domingo Perón, o qual havia
se convertido, de certa forma, numa espécie de “contra-modelo” para grande parte das
elites políticas da época. Enquanto que no Uruguai o grau de desenvolvimento
econômico e o processo de integração social atingidos se integraram com a plena
vigência dos valores democráticos e a exaltação das instituições, sem ter havido a
necessidade de imposição de qualquer tipo de autoritarismo
36
.
Até 1958, o país havia sido conduzido por uma elite no poder, integrada
basicamente pela burguesia industrial e com aliados importantes em outras frações
burguesas, que havia conseguido, através do controle do Estado, um importante
“consenso”, estabilidade social e integração nacional. As contradições desse grupo
dirigente com as altas classes rurais foram de caráter secundário e foram se resolvendo
enquanto ambas se opunham a qualquer alteração profunda da ordem social existente.
Pode-se salientar que, até 1958, a rotação dos partidos políticos no poder foi um
fato que demonstrou a importância que as instituições políticas e os valores sociais
34
Observa-se que posteriormente, em 1970, 82% das exportações corresponderam a produtos
provenientes da agropecuária: carnes, lãs e couros. Um século antes, esses mesmos produtos
representavam 95% do total das exportações. Couriel (1988) afirma que nem o florescimento econômico
das três primeiras décadas do século XX, que colocaram o Uruguai em situação privilegiada no contexto
latino-americano, nem o processo de industrialização, com elevado dinamismo entre 1945 e 1955,
modificaram a situação do Uruguai na divisão internacional do trabalho. O país continuou sendo
exportador de produtos primários provenientes da pecuária. (COURIEL, Alberto. El Uruguay
Empobrecido: deuda externa y modelo neoliberal. Montevideo: Banda Oriental, 1988, p. 34).
35
As principais medidas adotadas para estes fins foram o controle dos preços dos artigos de primeira
necessidade, a manutenção do salário real – através da criação dos Conselhos de Salários –, o aumento
dos empregos públicos (a fim de conter o desemprego gerado fundamentalmente no meio rural
agropecuário) e o desenvolvimento da legislação trabalhista e social.
36
NAHUM, Benjamin; et al. op. cit., 1991, p. 99.
42
definidos em torno da democracia liberal e seu “estado de direito” tinham sobre a
sociedade uruguaia. Existiu uma tendência permanente em fugir dos extremos e uma
marcada preferência pelas saídas moderadas. Revelou-se, assim, a necessidade de
encontrar soluções para as dificuldades econômico-sociais, não no terreno da estrutura
econômico-produtivo, senão que se buscavam a partir da rotação dos membros do
sistema político no poder.
Neste ano de 1958, com o triunfo do Partido Nacional, concretizou-se pela
primeira vez – após 93 anos de governo colorado – a possibilidade de rotação dos
partidos no poder. O período neo-batllista (1947-1958) encerrava-se, depois de ter sido
fator de grandes esperanças e expectativas de desenvolvimento econômico e social,
mas acompanhado de um desprestígio significativo. A forte liderança de Luis Batlle
Berres não conseguiu contrapor-se, dentro do Partido Colorado, a um acelerado e
desgastante processo de fragmentação. O batllismo teve que governar um país onde
começavam a se manifestar os primeiros sinais de uma crise econômico-social sem
precedentes.
Desse modo, na gestão do Partido Nacional, a política econômica e social
caracterizou-se pela implantação das primeiras bases de um modelo econômico liberal
e da gradativa desarticulação do batllismo. A Lei da Reforma Cambiária e Monetária,
aprovada em 1959, o antiindustrialismo e o abandono das práticas protecionistas, assim
como a promoção da produção agropecuária e a retração do intervencionismo do
Estado na esfera econômica, foram características marcantes do novo governo.
Nesse período surgiram várias frações e subdivisões no interior dos partidos
tradicionais, os quais, posteriormente, iriam redefinir o cenário político partidário na
década de 1970. As lideranças exercidas por Oscar Gestido e Luis Batlle Berres no
Partido Colorado deram lugar à formação de uma fração chamada Unión Colorada y
Batllista, que se apresentou nas eleições de 1962 reunindo os setores mais
conservadores deste partido. Também surgiu, nesse contexto, a lista “99”, Por el
Gobierno del Pueblo, com ex-integrantes do Partido Colorado tradicional (Zelmar
Michelini, Hugo Batalla, Aquiles Lanza) que, na década de 1970, se integraram à Frente
Ampla. (ver quadro 1).
43
Quadro 1. Composição dos setores Batllistas dentro do Partido Colorado 1950-1970
Frações Linha Ideológica Características
Neo-batllismo
Centro
Manteve a linha reformista do
batllismo clássico, liberal e
laico.
Unión Colorada y Batllista
Centro-direita
Representante das oligarquias
latifundiárias, da classe
industrial e dos setores mais
conservadores do Partido
Colorado.
Lista 99
Centro-esquerda
Dissidentes do P. Colorado
participaram da fundação da
Frente Ampla em 1971. O
setor reformista do batllismo
mais à esquerda do Partido
Colorado.
Fonte: elaboração do autor.
Por outro lado, consolidou-se também o herrero-ruralismo do Partido Nacional
em torno das figuras de Martín Echegoyen e Benito Nardone. Produziram-se, ainda,
outros desprendimentos do Partido Nacional, como o caso da lista “41” de Enrique Erro,
figura política de envergadura e de origem herrerista (do Partido Blanco), o qual, em
frontal oposição a Nardone, decidiu abandonar a coletividade nacionalista para
ingressar na Frente Ampla, quando de sua fundação em 1971. Uma situação similar foi
a do deputado Ariel Collazo, organizador do Movimento Revolucionário Oriental
37
MRO e iniciador de um processo de aproximação com a esquerda. (ver quadro 2).
37
O MRO foi um dos grupos – minoritários – que impulsionaram a luta armada no Uruguai. Participou na
fundação do movimento El Coordinador, que, posteriormente, deu origem ao MLN.
44
Quadro 2. Composição dos setores dentro do Partido Nacional 1950-1970
Frações Linha Ideológica Características
Herrerismo
Direita
Representantes do
nacionalismo conservador,
ligados a Igreja Católica
inimigos mortais do Batllismo.
Herrero-ruralismo
Direita
Representante do latifúndio e
das oligarquias é o setor mais
conservador do Partido
Nacional.
Agrupação Erro – Lista 41
Centro-esquerda
Dissidentes do P. Nacional
participaram da fundação da
Frente Ampla em 1971. Foi
um setor de esquerda dentro
do Partido Nacional.
Agrupação Collazo Centro-esquerda Dissidentes do P. Nacional
participaram da fundação da
Frente Ampla em 1971. Deste
setor do Partido Nacional
surgiu o (MRO).
Fonte: elaboração do autor
Durante o período que sucedeu aos acontecimentos dos anos de 1960, com o
surgimento do MLN, a burguesia dominante contou com o apoio da alta burocracia civil
e dos altos comandos militares e, durante um longo período, com a maioria dos
profissionais liberais e da intelectualidade, do médio e pequeno comércio e de grande
parte dos funcionários públicos estatais, dos docentes e dos empregados municipais.
Paralelamente, as frações burguesas dominantes procuraram captar o respaldo
eleitoral, “regulamentar” as relações de trabalho e dissolver a resistência dos
trabalhadores, em especial da classe operária industrial, mediante um sistema de
“compromissos”.
45
Jorge Lanzaro (1980) chegou a sustentar a existência de uma “aliança entre a
burguesia industrial e a classe operária”, baseado numa legislação trabalhista que
amparava e institucionalizava algumas demandas sociais. Lanzaro examinou em que
medida essas conquistas eram, por sua vez, mecanismos apropriados para melhorar as
condições de reprodução do capital: “O capital, em sua forma mercantil privada, não
assegura nunca a reprodução integral da força de trabalho e o Estado tem de assumir a
seu cargo a parte que não é assumida pelo capital”
38
.
No período do protecionismo industrial, a ação das organizações sindicais e os
interesses políticos e ideológicos da burguesia, expressos na concepção
“intervencionista” e “direcionista” dos representantes políticos do bloco no poder, deram
lugar ao desenvolvimento de uma extensa legislação social e de proteção aos
trabalhadores e a um novo crescimento da área estatal da economia. Os setores
industriais, partidários do rol protetor do Estado, que poderiam englobar-se no discutido
conceito de “burguesia nacional”, não foram capazes de desenvolver um projeto
alternativo à subordinação econômica imposta, cada vez com mais rigor, pelos
organismos internacionais e o capital transnacional.
Por sua vez, o sindicalismo teve um desenvolvimento prematuro – suas origens
remontam ao surgimento do Estado nacional – e foi aumentando na medida em que
cresceu a industrialização e a imigração operária procedente da Europa. Através de
associações e “sociedades de resistência”, o movimento operário impulsionou a
obtenção de conquistas para os trabalhadores e contribuiu no desenvolvimento de uma
estrutura social e cultural que resultou no desgaste do Estado liberal oligárquico,
expressão política da aliança entre o capital inglês e a burguesia agro-exportadora.
A organização sindical chegou a contar com três centrais de trabalhadores: a
Federação Operária Regional Uruguaia – Foru, de orientação anarquista, criada em
1905; a União Sindical Uruguaia – USU, de 1923, que albergou anarco-sindicalistas e
comunistas, os quais se separaram posteriormente, dando lugar à formação, em 1929,
da Confederação Geral do Trabalho do Uruguai – CGTU, que representou a tendência
majoritária do Partido Comunista. A CGTU chegou a agrupar aproximadamente 7.000
38
LANZARO, Jorge. Desarrollo del capitalismo y formas de reproducción de la fuerza de trabajo en
el Uruguay, 1930-1968. México: Universidad Autónoma Metropolitana, Iztapalapa, 1980, p. 47.
46
trabalhadores, o mesmo número que a Foru possuía no início do século. Para se ter
uma idéia do que esse número significava, basta relacionar estes 7.000 trabalhadores
com o montante total de pessoas ocupadas em Montevidéu, segundo o Censo de 1926:
53.431 pessoas. Posteriormente, o Censo Industrial de 1930 indicava que a cifra havia
passado para 78.671 trabalhadores, dos quais 67.904 eram operários. Em 1936,
constatava-se um novo crescimento: 75.747 operários e 9.844 empregados na
indústria
39
.
Diferentemente do ocorrido em outros países latino-americanos, no Uruguai o
anarquismo e o anarco-sindicalismo não foram concepções totalmente isoladas da
sociedade. As próprias características do país e da época possibilitaram o
desenvolvimento dessas correntes e também abriram portas para que sua influência
“colorisse” alguns aspectos da vida cultural e até da legislação civil, principalmente nas
primeiras décadas dos governos batllistas (1905-1930). Como afirma Cores, “O impulso
modernizador e as mudanças sociais e políticas desenvolvidas nas primeiras décadas
do século XX são impensáveis sem a existência destas organizações, minoritárias, mas
muito ativas”
40
.
Seu campo de atuação não se restringia somente às reivindicações imediatas,
senão que também às questões éticas e culturais, com as quais enfrentavam o
autoritarismo da sociedade oligárquica e patriarcal e o clericalismo conservador.
Respondiam a uma concepção ideológica sustentada em valores de solidariedade, de
dignidade do trabalhador e da mulher, de liberdade e de justiça social. A idéia de
sindicato como instrumento “finalista” da luta pela emancipação dos trabalhadores
incorporava os anarco-sindicalistas, não só à independência orgânica com relação ao
Estado e aos partidos do sistema, “[...] senão que também os desafios de ir criando
uma contracultura, uma ética, uma educação em torno dos valores morais que,
segundo sua concepção, substituiriam a sociedade autoritária e egoísta vigente”
41
.
39
NAHUM, Benjamin; et al. op. cit., 1991, p. 42-86.
40
CORES, Hugo. 1997. op. cit., p. 21.
41
Idem.
47
A concepção antiestatista tinha como característica a independência frente aos
partidos, na medida em que, para os anarco-sindicalistas, a própria organização
sindical, através da ação direta, era o verdadeiro instrumento para a libertação dos
trabalhadores e para a construção de uma nova sociedade. Até a década de 1960, os
sindicatos de “ação direta” não participavam dos Conselhos de Salários
42
,
estabelecidos por lei, nem no desenvolvimento da legislação trabalhista: o Estado era
tão desprezado quanto o capital.
O desenvolvimento industrial e a modernização do estado capitalista abriram
outros campos para a ação reivindicatória da classe operária em rápido crescimento,
pelo que o anarco-sindicalismo tendeu a perder força a partir de 1920, época em que
surgiram novos núcleos sindicais impulsionados por outras correntes. A partir desses
anos, a diversidade de tendências no movimento sindical levou à existência de mais de
uma Central Operária, segundo as concepções predominantes em cada sindicato ou
federação. O antagonismo entre marxistas e anarquistas, e depois entre comunistas,
anarquistas e socialistas, deu origem a divisões profundas e duradouras.
Na década de 1940, novas tentativas foram feitas para a unificação do
movimento operário. A CGTU dissolveu-se e, no seu lugar, foi nomeado um Comitê
Pró-Unidade e Organização dos Trabalhadores. Assim, em inícios de 1940, convocou-
se uma Conferência Nacional de Sindicatos que estudaria os passos a seguir para a
formação de uma central única. O resultado foi a criação da União Geral de
Trabalhadores – UGT, em março de 1942. Em relação aos avanços da legislação
trabalhista, pode-se assinalar o reconhecimento dos acidentes de trabalho e das
doenças ocupacionais – e suas respectivas indenizações –, em 1941; a criação dos
Conselhos de Salários, em 1943; o estabelecimento da indenização por demissão, em
1944; as férias anuais pagas, em 1945; e o estatuto do trabalhador rural, em 1946, que
fixou pautas de remuneração, condições de trabalho e amparo ao trabalhador do
campo.
42
Os Conselhos de Salários foram criados pelo governo em novembro de 1943. Em linhas gerais, o
projeto aprovado estabelecia: a) a fixação de um salário mínimo, que devia assegurar ao trabalhador a
satisfação de suas necessidades físicas, intelectuais e morais; b) a integração tripartite dos Conselhos
por ramo da indústria e do comércio, com três representantes do Poder Executivo, dois da patronal e dois
dos trabalhadores (eleitos pela maioria simples do setor correspondente). NAHUM, Benjamin; et al. op.
cit., 1991, p. 157.
48
Diferentemente do ocorrido em outros países da América Latina, no Uruguai os
sindicatos conseguiram manter sua independência perante o Estado e os partidos da
burguesia também no período de industrialização rápida que se iniciou a partir de 1930.
Para se ter uma idéia mais aproximada, Cores afirmou: “Os estabelecimentos na
indústria manufatureira passam de 6.570, em 1930, para 21.102, em 1955, e os
assalariados de 54.158 para 161.879 [...]”
43
.
Ademais, segundo constatou Nahum (et al.) 1991, o Censo Industrial realizado
em 1936 havia revelado a existência de aproximadamente 80.000 operários; em 1956,
passavam dos 150.000. A expansão industrial gerou uma demanda de operários
nesses anos, atingindo a ocupação de 24% da população ativa do país no referido
setor
44
. A formação do proletariado propriamente fabril apresentava características
distintivas perante o tradicional agrupamento dos trabalhadores de ofício. A fábrica
facilitava a organização por nuclear um número maior de trabalhadores, por ser, ela
mesma, uma “organização”. Além disso, deve-se considerar que nesse período a
formação de sindicatos se estendeu ao setor público: funcionários do Frigorífico
Nacional, em 1940; bancários, em 1942; energia elétrica, em 1944; combustíveis e
cimento, em 1951, englobando setores das classes médias até então não organizados.
Desse modo, em 1960, o herrerismo pronunciou-se a favor da regulamentação
sindical. O tema esteve no centro do debate nacional, mas um projeto de lei em tal
sentido não foi aprovado no parlamento. Os setores de esquerda e o batllismo se
opuseram ao mesmo, enquanto que em setores nacionalistas não herreristas
apareceram posições matizadas. Wilson Ferreira Aldunate afirmava que não votaria
nenhum projeto de regulamentação sindical que, direta ou indiretamente, permitisse
qualquer ingerência nos sindicatos, por mais mínimo que fosse, por parte do poder
público. “Acredito que não se pode falar em democracia num país onde não existam
sindicatos absolutamente livres”
45
.
Outros países da América Latina conheceram períodos de rápido aumento da
mão-de-obra empregada na indústria. Enquanto o peronismo (na Argentina), o
varguismo (no Brasil), o cardenismo (no México), o Apra (no Peru) e a Ação
43
CORES, Hugo. 1997. op. cit., p. 26.
44
NAHUM, Benjamin; et al. op. cit., 1991, p. 156.
45
NAHUM, Benjamin; et al. op. cit., 1991 (b), p. 15.
49
Democrática (na Venezuela) deslocavam as correntes de esquerda classistas e
subordinavam a organização sindical aos novos Estados populistas, no Uruguai a
esquerda, ainda que debilitada pela divisão, conseguiu manter sua influência no
movimento operário, inclusive no período de crescimento industrial.
A política internacional do país esteve atrelada à influência norte-americana. Em
1960, foi assinado o Tratado de Montevideo, que deu lugar à Associação Latino-
Americana de Livre Comércio – Alalc, com o objetivo de eliminar as barreiras que
obstaculizavam o comércio entre os países membros. Em agosto de 1961, realizou-se,
em Punta del Este, a Reunião do Conselho Inter-Americano Econômico e Social – Cies,
que organizou a Aliança para o Progresso
46
. Esse organismo, impulsionado pelo
presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy, tentava nuclear os países latino-
americanos sob a égide dos EUA, neutralizando, assim, a crescente influência exercida
pela Revolução Cubana no continente
47
.
Em janeiro de 1962, a VIII Reunião de Consulta de Chanceleres, também
realizada em Punta del Este, decidiu a expulsão de Cuba da Organização dos Estados
Americanos (OEA). Apesar da existência de pressões para que o governo uruguaio
rompesse relações com Cuba, tal fato não chegou a acontecer. Dentro do Conselho
Nacional de Governo, Benito Nardone, Faustino Harrison e César Batlle Pacheco eram
partidários da ruptura, mas a moção neste sentido, apresentada pelo último, não foi
aprovada. Ledo Arroyo Torres, Héctor Grauert – colorados batllistas – e Martín
Echegoyen e Eduardo Haedo, pelo Partido Nacional, sustentavam que uma decisão
46
As duas idéias centrais da Conferência foram: 1) a disponibilidade de crédito barato era essencial para
o crescimento e 2) para que o esforço não fosse em vão, impôs-se, a todos os que desejassem receber
um desses créditos, a obrigação de possuir, previamente, um plano de desenvolvimento. A soma de
capital a ser investido era de 20 bilhões de dólares, 50% a ser fornecido pelos EUA e a metade restante
pelos organismos multilaterais e fontes privadas. Imediatamente após a Conferência, formou-se no
Uruguai uma equipe que se chamou Comisión de Inversiones y Desarrollo Económico – Cide, liderada
por Enrique Iglesias. Depois de trabalhar durante quase quatro anos, a Cide deu a conhecer seus
resultados através de uma imponente obra, em doze volumes, intitulada Plan Nacional de Desarrollo
Económico y Social: 1965-1974. Nesse trabalho apresentava-se toda a informação sobre a economia
uruguaia e se enunciavam os investimentos, os impostos, o sistema monetário, a política comercial que
se deveria colocar em marcha para transformar o Uruguai num país dinâmico.
47
Em 1959, o Uruguai havia recebido a visita de Fidel Castro e em 1961, a de Ernesto “Che” Guevara.
Após um discurso pronunciado por este último no Paraninfo da Universidade (salão de atos), produziram-
se distúrbios nas ruas da capital, com o trágico saldo da morte do professor Arbelio Ramírez, militante
sindical – primeira morte nas ruas de Montevidéu deste período – o que interrompeu uma tradição de paz
social.
50
desse tipo implicaria uma atitude intervencionista por parte do governo nacional em
relação a Cuba, tendo votado contra a moção apresentada.
No começo da década de 1960 havia iniciado o predomínio do capital financeiro
no contexto das novas condições geradas a partir das mudanças produzidas no campo
internacional. Isso coincidiu com a política exterior norte-americana, empenhada em
frear o impacto que a Revolução Cubana gerava na América Latina.
Com a estruturação do poder liderado pelo setor financeiro, concentrado
primeiramente dentro dos partidos tradicionais e, depois, dentro do aparelho de Estado,
cresceu a influência dos setores de direita e de extrema direita, ligados ao aumento da
presença norte-americana nas forças armadas e na polícia, especialmente nos serviços
de inteligência. No campo internacional, esses anos coincidiram com a intensificação da
ação norte-americana na América Latina.
Entre 1963 e 1967, ocorreram no mundo acontecimentos de grande
transcendência. Os Estados Unidos, depois do assassinato de John Fitzgerald
Kennedy, iniciaram os bombardeios sobre o Vietnã do Norte, seguidos pela
intensificação da ajuda militar ao regime de Saigón. A chamada “crise dos mísseis”
48
em Cuba, em 1962, havia constituído uma das instâncias mais rigorosas no
enfrentamento que a URSS e os EUA mantinham no marco da Guerra Fria. Uma
segunda Conferência dos “Países não Alinhados”, convocada no Egito, em 1964 (a
primeira tinha acontecido na Iugoslávia, em 1961), demonstrava a vontade de alguns
países de não comprometer sua política exterior aos ditados de nenhuma das
superpotências.
No âmbito da política latino-americana, alguns fatos relevantes marcaram a
região. A invasão das tropas norte-americanas (20.000 marines) à República
Dominicana, em 1965, demonstrou que o tradicional intervencionismo do “guardião do
Norte” não havia desaparecido. O presidente Lyndon Johnson tentou justificar a invasão
utilizando-se do argumento da “infiltração comunista”. Em 1964, ocorreriam os Golpes
48
O primeiro-ministro soviético Nikita Kruschov havia ordenado a instalação de bases de mísseis em
Cuba, buscando pressionar o governo dos EUA, que havia construído um cordão de estações lança-
foguetes rodeando o território da URSS e, ao mesmo tempo, afirmar seu apoio ao governo revolucionário
da ilha do Caribe. O protesto dos EUA gerou a convocação do Conselho de Segurança da ONU. O
conflito solucionou-se por um acordo que implicou na retirada dos mísseis soviéticos em troca de um
compromisso norte-americano de não invadir Cuba.
51
de Estado na Bolívia e no Brasil, e, em 1966, os militares tomaram o poder na
Argentina, derrubando o presidente civil Arturo Illia e colocaram em seu lugar o general
Juan Carlos Onganía
49
.
O tema central para o futuro latino-americano era o relativo à Revolução Cubana.
A declaração do governo revolucionário como marxista-leninista, em 1961, provocou a
ruptura de relações entre o regime castrista e o governo dos Estados Unidos. Em 1964,
as pressões para que o Uruguai rompesse relações com o governo de Fidel Castro
deram resultados positivos. Em setembro desse ano, o Conselho Nacional de Governo
resolveu, por seis votos em nove, pela ruptura das relações diplomáticas, consulares e
comerciais.
Esse foi o momento em que a intensificação da Guerra do Vietnã abriu uma
profunda ferida na sociedade norte-americana. É o fracasso das propostas de Johnson
de “grande sociedade”, é o ano do nascimento dos grandes movimentos culturais de
oposição ao tradicional american way of life e do nascimento das campanhas contra a
discriminação racial, da violência urbana, dos Panteras Negras, do Poder Negro e dos
assassinatos políticos de Martin Luther King e Robert Kennedy. O período em que o
número de soldados americanos transferidos ao cenário da guerra atingia seus índices
mais altos.
Para a América Latina foi um período de incremento da presença militar-policial
norte-americana, preocupada pelo crescimento das ações guerrilheiras e a
eventualidade de enfrentar um novo estouro revolucionário, simultâneo à confrontação
que se desenvolvia no Sudeste asiático. O aumento da presença norte-americana no
Uruguai, tanto nas forças armadas quanto na polícia e na sociedade civil (sindicatos,
comunidades, etc.), está documentado em numerosas fontes, como, por exemplo:
Veneroni (Gobiernos Militares en América Latina – 1990), Wilson Fernández (Los
Autoritarismos Latinoamericanos – 1992), Alain Rouquié (O Estado Militar na América
Latina – 1984) e Corlazzoli (Los Regimenes Militares en América Latina – 1987).
A título de exemplo, podemos citar um episódio desse período: em 22 de agosto
de 1966, a imprensa se referiu ao pedido de informações, formulado pelo Partido
49
NAHUM, Benjamin; FREGA, Ana; MARONNA, Mônica; TROCHON, Yvette. Historia Uruguaya: El Fin
del Uruguay Liberal – 1959-1973. Montevideo: Banda Oriental, Tomo 8, 1991 (b), p. 34-39.
52
Democrata Cristão – PDC ao Conselho Diretivo da Universidade da República, sobre o
financiamento da chamada “Encuesta 503”, que consistia em 94 perguntas que seriam
realizadas a 450 universitários, organizada pela “Special Operation Research Office”,
vinculada ao governo dos EUA. A mesma continha uma espécie de interrogatório
exaustivo, com características de tom policial e não científico. A pesquisa – assinala-se
– tem analogias com o projeto “Camelot” (estudos realizados por sociólogos da
American University of Washington). Segundo Rouquié, “os objetivos do projeto
Camelot (1964) foram definidos como os de um estudo que possibilitasse a previsão de
mudanças sociais. Isso incluía procedimentos programados para avaliar o potencial
capaz de gerar guerras internas”
50
. O programa se desenvolvia a partir de uma carta-
questionário enviada a intelectuais de distintos países. A carta acrescentava que: “O
exército norte-americano tem numa missão importante: [...] a construção nacional dos
países subdesenvolvidos, assim como uma grande responsabilidade em dar assistência
aos governos amigos no tratamento dos problemas de insurreição nativa”
51
.
Enquanto a Revolução Cubana avançava na sua consolidação, as políticas
norte-americanas vivenciadas no Uruguai tornavam-se mais extensivas e sua atuação
mais presente. No terreno sindical, observa-se um estímulo à formação de sindicatos
patronais e de associações de classe orientadas pelas estruturas imperialistas,
objetivando a desarticulação do movimento sindical e o enfraquecimento de
organizações populares. No âmbito político, os partidos tradicionais – liberais e
conservadores – incrementaram, em seus discursos, uma linha de defesa aberta dos
interesses imperialistas e o governo iniciava um novo período de repressão aos setores
populares, desta vez contando com a participação direta do imperialismo norte-
americano – via escola de Panamá – e instrumentando uma série de medidas para a
desarticulação do que se vinha gestando: a organização da esquerda uruguaia em
torno de um programa político comum.
50
ROUQUIÉ, Alain. El Estado Militar en América Latina. México: S. XXI edições, 1965, p.163.
51
Idem.
53
2. O PENSAMENTO SESENTISTA: AS ORGANIZAÇÕES POPULARES E
OS INTELECTUAIS
A atividade das organizações sindicais teve um ponto alto na convocação do
Congreso del Pueblo, no qual uma série heterogênea de aspirações programáticas
encontrou o caminho da discussão conjunta, permitindo sedimentar as bases do que
seria já não somente uma plataforma imediata, senão um programa nacional de signo
popular, democrático e antiimperialista. Nos dias 16 e 17 de agosto de 1965, 1.376
delegados, representantes de 707 organizações sindicais, cooperativas, profissionais,
estudantes, camponeses e aposentados, reuniram-se para elaborar uma proposta
programática comum sobre um conjunto de grandes problemas nacionais. Héctor
Rodríguez assinalou no Semanário Marcha, em 27 de agosto de 1965: “O programa
aprovado configura uma estratégia para todo um período de tempo, determina objetivos
e alinha forças para obtê-los mediante ação conjunta [...] O consenso sobre a
necessidade de um acordo de uma ação conjunta incorpora por si um elemento tático e
abre o caminho para a elaboração de uma tática comum”. Nesse contexto, a CNT
programou uma jornada de luta para o dia 07 de outubro, à qual o governo respondeu
estabelecendo Medidas Prontas de Segurança. Houve mais de 500 detidos e o
fechamento de locais sindicais e meios de imprensa.
De outra parte, as expectativas abertas pelo plano de luta da CNT de 1965, as
greves bancárias e o Congreso del Pueblo vão se deter pelas divergências surgidas no
âmbito sindical em torno da proposta do Partido Comunista de impulsionar uma reforma
da Constituição que condensasse as demandas e reivindicações populares, tal como
vinham se expressando através da luta sindical e no próprio Congresso do Povo. Nesse
sentido, o Congreso del Pueblo cumpriu um papel importante. A prática solidária, o
aprofundamento das lutas, o avanço na coesão orgânica e a definição de objetivos de
caráter nacional, através de um programa discutido e aprovado em comum, assim como
a busca de pontos de coincidência com outros setores populares, aposentados,
cooperativas e o movimento estudantil, permitiram balancear a tensão desagregadora e
corporativista que ameaçava sempre o movimento e criar uma força de grande peso no
plano nacional.
54
Por detrás do plano de luta da CNT, das greves e do Congreso del Pueblo, de
forma não muito perceptível para a vista desatenta de quem se detém só no
acontecimento e nos primeiros planos, “irrigando a esfera capilar do campo popular”,
milhares de trabalhadores liam, discutiam, participavam em debates, assembléias e
manifestações. Construíam, assim, nas tarefas cotidianas das organizações, os
suportes da força que enfrentaria o autoritarismo desatado pelas classes dominantes
52
.
Essas foram as bases para as grandes lutas do ano de 1968. A rebelião estudantil, a
radicalização da intelectualidade e o surgimento da luta armada são impensáveis sem
esse processo de acumulação, de tomada de consciência e capacidade de iniciativa
política, da qual o movimento sindical, basicamente a CNT, foi protagonista decisivo.
Num período caracterizado pela busca de coincidências políticas, de ampliação
da sindicalização e de crescentes enfrentamentos com o governo, o ano de 1964
marcou o início de uma etapa. Na América Latina, intensificava-se o cerco contra Cuba,
não só no plano militar e econômico, senão através de campanhas políticas de forte
tonalidade macarthista, procurando reverter as simpatias surgidas diante das primeiras
realizações do governo revolucionário.
No âmbito da política nacional, as eleições de 1966 não se colocavam como
eleições “normais” – para a escolha de governantes, simplesmente –; elas estavam
marcadas pela proposta da Reforma Constitucional que eliminava do cenário político o
sistema de “colegiado”. O colegiado aparecia como inoperante, demasiado deliberativo
e incapaz de impulsionar enérgica e rapidamente medidas efetivas para a superação da
crise em que o país se encontrava. Nessa eleição estava em jogo uma nova forma de
governo e a população votou a favor da nova forma de administração através de um
executivo unipessoal com amplos poderes.
O golpe militar no Brasil havia sacudido o continente e alguns militares uruguaios
se sentiram convocados para uma missão similar. Atento ao conjunto dessas
realidades, no movimento sindical uruguaio os acontecimentos se desenvolveram até
culminar com a convocação de uma convenção nacional de trabalhadores. Em abril de
1964 havia chegado a Montevidéu, rodeada da solidariedade dos sindicatos mais
52
CORES, Hugo. 1997. op. cit., p. 38.
55
combativos, dos estudantes e de amplos setores da opinião pública, uma nova marcha
cañera.
Depois de participar da comemoração unitária do 1º de Maio, os cañeros
53
da
União de Trabalhadores Açucareiros de Artigas – UTAA instalaram seu acampamento
num terreno baldio na rua Cuñapirú, num bairro de Montevidéu onde ficam as
Faculdades de Medicina e Química. O acampamento se converteu num centro de
solidariedade no qual, diariamente, chegavam delegações dos grêmios. No dia 14 de
maio, a polícia atacou o acampamento cañero com gases, balas e paus.
A partir desse acontecimento, várias organizações sindicais buscaram o acordo
com a Central de Trabalhadores do Uruguai – CTU, na qual gravitavam
fundamentalmente os militantes do Partido Comunista, para a convocação de uma
Convenção Nacional de Trabalhadores. Nesse momento se adotava, pela primeira vez,
a decisão de decretar greve geral por tempo indeterminado, em caso de Golpe de
Estado. Posteriormente, ela foi confirmada nos Congressos I e II da CNT, e se
colocaram em prática, a partir de 27 de junho de 1973, enfrentando o golpe de José
Maria Bordaberry e dos comandos militares.
Junto com os sindicatos orientados por militantes comunistas, sindicalistas de
outras orientações, que participavam nos grêmios têxtil, gráfico, da borracha e da cana
de açúcar, contribuíram para incorporar, no processo de unificação, alguns dos traços
mais positivos da CNT, o que lhes permitiu converter-se, em pouco tempo, na central
operária mais ampla e gravitante da história do país. Esses grêmios, muitos dos quais
provinham da tradição autônoma, contribuíram com seu espírito combativo, sua
permanente presença solidária e o prestígio de sua trajetória. Contribuíram também
para fortalecer um estilo de trabalho sindical contrário ao burocratismo e à utilização
político-partidária do fazer sindical.
Afirmava-se uma tradição que tinha como base o funcionamento democrático
dos sindicatos e a participação da maior quantidade possível de trabalhadores na
discussão e adoção de decisões por parte do grêmio. Na discussão dos estatutos da
CNT, centravam-se três características que foram acordadas por todos os grêmios
integrantes: em primeiro lugar, para prevenir desvios burocráticos, a Convenção não
53
Trabalhadores rurais que cortam cana de açúcar.
56
teria dirigentes assalariados; em segundo lugar, para evitar a utilização por parte de
partidos políticos das representações sindicais, estabeleceu-se a incompatibilidade
entre os cargos de direção sindical e a candidatura para cargos políticos; e em terceiro
lugar, em tempos de agudas confrontações, para marcar sua independência de todo o
centro hegemônico em nível mundial, a nova organização de trabalhadores não se
filiaria a nenhuma central internacional.
A nascente CNT incorporou a suas filas amplos contingentes de trabalhadores
do setor público. Isso se transformou num dos acontecimentos significativos do período,
visto que a sindicalização dos trabalhadores estatais transtornou o sistema clientelístico
das empresas do Estado, que prevalecia desde o início do século XX. Ao mesmo tempo
incorporou, na agenda dos sindicatos estatais, os problemas estruturais e de gestão da
área nacionalizada e da economia, reunindo elementos essenciais para o debate sobre
as reformas necessárias, visando a colocá-las numa estratégia de desenvolvimento
econômico de caráter nacional e popular. A isso há que se acrescentar o processo de
extensão do sindicalismo às áreas rurais, o que deu origem a importantes lutas e
mobilizações.
Em 1968 polarizou-se, em Montevidéu, um extenso e vigoroso movimento de
massas, de ideologia predominantemente radical, integrado fundamentalmente por
setores estudantis, com a característica de não responder – em conjunto – a uma
organização política determinada, mesmo que filiados a partidos e organizações de
esquerda, e, inclusive, aos partidos tradicionais. Na oportunidade e posteriormente, e
de forma muito vaga, classificou-se esse fenômeno como uma resposta popular à
política oficial e/ou como fruto da radicalização das classes médias. Essas
características não dão conta de esclarecer sua principal particularidade: a de haver
colocado em cena novos atores e novas formas de ação política.
O alto grau de politização esquerdista no meio estudantil não era novidade, mas
a reivindicação desse movimento adquiriu aspectos desconhecidos até então. O
movimento de 1968 não foi uma simples seqüência de tendências intelectuais do
pensamento e da cultura sesentista. Tal influência é inegável, mas “[...] o olhar
57
evolucionista oculta a evidência de um salto na rotina política estudantil”
54
. Na sua
maioria, os estudantes pertenciam às classes médias, mas sua trajetória e sua ação
demonstraram que sua mobilização expressava um descontentamento mais amplo. A
crise do modelo liberal levou à perspectiva de uma profunda desintegração das
relações sociais e ao descrédito do sistema de partidos, ou seja, a uma instância de
análise extrema que questionava a democracia liberal uruguaia.
O movimento estudantil era norteado por tendências anarquistas, trotskistas e
independentes, distantes tanto dos partidos tradicionais como dos partidos de esquerda
de maior representação. Isso marcou uma substancial diferença com o movimento
sindical no qual o Partido Comunista havia conseguido atingir uma importante
hegemonia. Dessa forma, a Universidade era um laboratório de novas experiências
políticas. No transcurso da mobilização de 1968, identificou-se uma tendência estudantil
– que, por falta de outro nome, ficou conhecida como tendencia – que representava a
“linha dura” dentro do movimento. Privilegiava as manifestações de massas e o
enfrentamento violento com a polícia; como forma de “criar consciência”, criticava
profundamente as correntes reformistas dentro da esquerda e o coletivismo burocrático
da Europa Ocidental; não possuía definição ideológica precisa, mas se identificava a
favor do socialismo. Essa “tendência” proporcionou, posteriormente, inúmeros militantes
às organizações revolucionárias, tais como Tupamaros e OPR33, e uma quantidade
substancial de torturados, presos políticos, mortos, exilados e desaparecidos à
repressão estatal.
Paralelamente, existiu um outro fenômeno interessante: a ação da Igreja
Católica. Essa que, diferentemente do protestantismo (com ligação direta à revolução
comercial e industrial), havia ficado ligada às sociedades agrárias e reagido ao
processo de secularização das sociedades industriais, com dogmas e proibições. Após
a morte de Pio XII, em 1958, os papas João XXIII (1958-1963) e Paulo VI (1963-1978)
iniciaram uma reforma que implicou numa mudança na atuação da Igreja. Para isso,
centraram as discussões nas reformas internas, na responsabilidade social da Igreja,
principalmente no Terceiro Mundo, presente em diversas encíclicas, e num novo debate
54
VARELA, Gonzalo. De La República Liberal al Estado Militar: Uruguay 1968-1973. Montevideo.
1988, p. 55.
58
aberto com o comunismo
55
. O Concílio Vaticano II (1962-65) provocou a divisão entre
tradicionalistas e progressistas. A partir desse contexto, abriu-se no Uruguai um
processo que foi conhecido como a “Inesperada Primavera” da Igreja. Nesse período,
editaram-se várias publicações católicas, como Víspera e Cuadernos para el Diálogo,
dirigidas por figuras de renome nacional no âmbito do catolicismo, tais como Julio
Barreiro, Eduardo Payssé González e César Methol Ferre, entre outros.
A Inesperada Primavera teve seu início em 1961, quando se conheceu a
encíclica Mater e Magistra. Nessa encíclica, João XXIII colocava na ordem do dia o que
ele chamou de o maior problema da época moderna: “As relações entre as
comunidades políticas economicamente desenvolvidas e as comunidades políticas em
vias de desenvolvimento econômico. As primeiras conseguintemente com alto nível de
vida; as segundas, em condições de pobreza e miséria”
56
. Essa encíclica foi seguida
por outras, cada vez mais explicativas no relacionamento com os problemas sociais que
afligiam o mundo contemporâneo. As deliberações do Concílio Vaticano II provocaram
um forte impacto na hierarquia eclesiástica latino-americana. A ação da igreja latino-
americana encontrou seu ponto de impacto nas decisões adotadas pelo sacerdote
colombiano Camilo Torres que, em carta dirigida às autoridades eclesiásticas, em 1966,
solicitou ser relevado de suas obrigações sacerdotais para se incorporar à guerrilha,
passando a integrar o Exército de Libertação Nacional, na Colômbia.
No Uruguai, esse processo veio acompanhado de elaborações próprias da
Teologia da Libertação e com pronunciamentos oficiais, como a Carta Pastoral de
Adviento, de dezembro de 1967, assinada pela maioria da cúria uruguaia.
Pronunciamentos muito claros do arcebispo co-adjunto de Montevidéu, monsenhor
Carlos Partelli, e do padre Haroldo Ponce de Leon, entre outros, marcaram as diretrizes
de uma Igreja Católica, ou pelo menos uma parte considerável de sua hierarquia,
comprometida com a luta popular, atenta aos acontecimentos operário-estudantis, que
emitia opiniões sobre os grandes problemas sociais e se fazia presente em momentos
de intensa comoção popular. Nunca, como nesse período, a Igreja teve tanta
ressonância no cenário político nacional, mesmo que persistissem correntes
55
BENZ, Wolfgang; GRAML, Hermann. El Siglo XXI. Barcelona. Siglo XXI, 1978, p. 345.
56
CORES, Hugo. op. cit., 1997, p. 70.
59
tradicionalistas e vinculadas a setores conservadores. Nesses anos, a maioria dos
bispos manteve concepções políticas mais avançadas, voltadas para o social. Isso
possibilitou o compromisso que vários sacerdotes e seminaristas adotaram com a luta
popular, inclusive alguns se incorporando a organizações guerrilheiras.
Em julho de 1968, sob a vigência das Medidas Prontas de Segurança, o
presbítero Juan Carlos Zaffaroni manifestava:
Pegar a cruz de Cristo pode ser muito bem a mesma coisa que pegar a
metralhadora para lutar. Camilo (Torres) morto nas montanhas da Colômbia é
uma nova imagem de Cristo crucificado. O cristão que não compreenda esta
nova forma de amor ao próximo que guarde pelo menos respeitoso silêncio
perante o imenso sacrifício de amor que estão realizando tantos homens
honestos no mundo
57
.
Posteriormente, no início dos anos de 1970, durante o momento de formação da
coalizão de esquerda Frente Ampla, o representante partidário do pensamento
progressista dos setores católicos, o Partido Democrata Cristão – PDC, reafirmava as
seguintes posições no seu Programa de Princípios: “Os princípios da organização
econômica pela qual o PDC luta supõe numa ruptura frontal com o capitalismo; as
grandes desigualdades – concentração da propriedade dos capitalistas em detrimento
das massas –; a condução autocrática oligárquica da economia, a sociedade
inteiramente classista e inteiramente dependente [...]”
58
. O PDC definiu-se como
instrumento de vanguarda de uma grande obra política dotada de uma estratégia
revolucionária de caráter global, que conjugava as diversas aspirações e objetivos das
diversas forças sociais revolucionárias.
As alusões à necessidade de “mudanças revolucionárias” são particularmente
fortes desde o PDC. Como exemplo, a declaração da organização no seu Encontro de
San José, em 20 de abril de 1971, inspirada nas normas derivadas do Concílio Vaticano
II e do Episcopado Latino-Americano de Medellín, reivindicava os postulados e
objetivos revolucionários perseguidos pelo PDC. Durante todo o ano de 1971 é na
corrente cristã que se desenvolveram idéias e propostas radicais que trouxeram uma
contribuição significativa para o pensamento sesentista.
57
CORES, Hugo. op. cit., 1997, p. 72.
58
PDC. Programa de Princípios. Montevideo: Mimeo, 1970, p. 3-8.
60
O desenvolvimento econômico prematuro e a reforma escolar de fins do século
XIX são vistos por alguns autores (Varela, Gatto, Rama, Arzúa) como elementos que
podem explicar o desenvolvimento do meio intelectual uruguaio. Obviamente, deve-se
acrescentar um outro fator relevante: a importação de capital intelectual que o processo
migratório trouxe, principalmente da Espanha, França e Itália. Mas o que realmente
marcou essa intelectualidade nacional foram as transformações do século XX, quando
a redistribuição de um grande excedente econômico em condições de abertura social e
política permitiu o acesso amplo, mesmo que socialmente diferenciado da população, à
educação e à cultura.
Como afirma Varela (1988), a homogeneidade da sociedade urbana concentrada
na capital incidiria nas características da difusão cultural e nas suas repercussões
políticas. Nos anos sessenta, o movimento cultural chegaria a ser um fenômeno,
sobretudo em Montevidéu, que reunia os docentes, a universidade como instituição
autônoma, o movimento estudantil, as diferentes expressões da criação artística,
literária e científica, os sindicatos e os partidos de esquerda. Já não era a classe
dominante, como no século XIX, senão as camadas médias as que se especializavam
na produção e na difusão da cultura
59
.
A intelectualidade uruguaia viveu uma etapa de florescimento cultural com a
chamada geração do 45, que presenciaria a separação entre os intelectuais e os
partidos tradicionais. Anteriormente, muitos intelectuais haviam se identificado com os
partidos majoritários, especialmente com o batllismo. O motivo do afastamento decorreu
do Golpe de Estado de 1933, que dividiu a classe política tradicional, aproximando seu
grupos liberais à esquerda. Isso tinha correspondência, no nível internacional, com a
formação do bloco antifascista da Segunda Guerra. Mas a evolução dos
acontecimentos nacionais e internacionais frustrou as expectativas progressistas
colocadas nessas alianças. Imediatamente, diminuiu o interesse da intelectualidade
pela política, mas o efeito de maior impacto foi o seu distanciamento dos governantes
60
.
59
VARELA, Gonzalo. op. cit., 1988, p. 40-41.
60
Anos mais tarde, Carlos Real de Azúa observou que os responsáveis pela gestão do período (1967)
tinham aprofundado uma marginalização do intelectual que sempre havia sido uma tradição da política
uruguaia. Mas em tal sentido, e principalmente nas suas expressões mais típicas do homem de ciência, o
professor e o escritor, a exclusão do intelectual de todos os cargos e funções que reclamam
especificamente sua presença e sua assistência tem acontecido com um método e um rigor extremos.
61
A postura crítica até o cepticismo, a virada da esquerda e a substituição do
cosmopolitismo pelo latino-americanismo e o nacionalismo são outras características
que se podem apontar no período. A intelectualidade uruguaia, num contexto de
liberdade e de estabilidade política, formando um contingente que não encontrava
possibilidade de aplicar-se a uma dinâmica social criativa, impressionada pela
fragilidade que o estudo histórico mostrava das bases sobre as quais repousavam a
independência nacional, pensou em termos latino-americanos e sonhou com uma outra
forma possível, a nação latino-americana. Nesse contexto, a Universidade da República
teria um papel muito importante. Tradicionalmente mais aberta que as outras
instituições similares do continente, seria mais sensível às correntes de renovação.
Desde 1908, a lei havia permitido aos estudantes ter um representante na
direção da instituição, o que se reafirmou na Reforma Universitária de 1917, marcando,
dessa maneira, diferenças substanciais com outras universidades latino-americanas.
Como conseqüência de seu papel de formadora de elites sociais e políticas, a
universidade teve, desde o passado, um papel de consciência da coletividade, junto
com a vigília pela defesa de sua autonomia. Não se fazia oposição entre a reforma
interna da universidade e a idéia da universidade a serviço das mudanças sociais. A
universidade mediria idealmente sua organização, suas metas e funcionamento em
relação com um conceito de progresso, supondo que aqueles que ascendiam à
educação superior deveriam compartilhar um compromisso social.
Como instituição pública, a universidade possuía financiamento oficial, mas podia
decidir com autonomia sua política cultural. Impossibilitada, como toda elite intelectual,
de participar numa empresa prática de renovação nacional e dominada pelo
pensamento crítico, estimulou os estudos sobre o passado e o presente, coincidindo
com o meio intelectual extra-universitário em aplicar o saber universalista ao
conhecimento da situação nacional. Essas duas esferas culturais nunca haviam estado
tão perto uma da outra e agora forjavam uma opção opositora à qual a universidade
assegurava prestígio. Ademais, a Confederação Nacional de Trabalhadores
acrescentava uma influência que potenciava o ativismo dos estudantes
61
.
AZÚA, Carlos Real de. Partidos, Política y Poder en el Uruguay: 1971 – Coyuntura y Prognóstico.
Montevideo: Facultad de Ciencias Humanas. Universidad de la República, 1988, p. 102.
61
VARELA, Gonzalo. op. cit., 1988, p. 45.
62
Outra corrente de pensamento que influenciou o meio intelectual uruguaio do
período pós-Segunda Guerra Mundial foi o Terceirismo. A natureza do Terceirismo, ou
da Terceira Posição, data de 1947 e nasce como resposta internacional e nacional à
doutrina Truman nos inícios da Guerra Fria. Foi uma posição específica adotada em
matéria internacional: não estar politicamente nem com os EUA, nem com a URSS. O
Terceirismo não foi somente um pronunciamento em matéria internacional uma
ideologia em crescimento; era, sobretudo, uma atitude principista, a reivindicação de um
setor social que, mais que se comprometer com a realidade, a rejeitava em seu
conjunto. Com o passar do tempo, o Terceirismo no Uruguai funcionou como um divisor
de águas dentro da esquerda: diferenciava seus adeptos do comunismo e suas
orientações pró-soviéticas, mantendo as características mais distintivas da esquerda
democrática, entre outras o antiimperialismo e o socialismo.
Os anarquistas, por sua vez, representados fortemente na Federação de
Estudantes Universitários – Feuu, davam importância ao Terceirismo, visto que este,
separando o que no início era exclusivamente um pronunciamento de independência no
âmbito internacional, ia progressivamente adotando posturas genericamente socialistas.
Essa característica distinguia o Terceirismo uruguaio de seu similar argentino, o qual,
seguindo Perón, se afastava de qualquer pronunciamento que fosse além da justiça
social para os trabalhadores, por mais que tal definição não supôs, até a Revolução
Cubana, nenhum enfraquecimento do claro repúdio terceirista ao socialismo “real”. O
Terceirismo também se distinguia pela defesa da democracia como sistema de convívio
político, com o que rejeitava qualquer manifestação a favor do “partido único”.
No início de 1960, uma parte dos intelectuais manifestava simpatias pelo Partido
Socialista; outra, menor, pelo Partido Comunista, enquanto que um conjunto
possivelmente majoritário dentro da esquerda se mantinha independente dos partidos.
Também se identificavam, com a cultura da esquerda – muito mais crítica quanto mais
avançava a década –, os dirigentes sindicais, os membros da sociedade civil
organizada emergente, assim como também uma grande massa proveniente de setores
estudantis. Esse espectro compunha o chamado pensamento sesentista, que adquiriu
um dimensionamento particular a partir do triunfo da Revolução Cubana.
63
O triunfo de Fidel Castro e seus companheiros foi um divisor de águas no
pensamento político do continente. A revolução era possível e se encontrava logo ali,
na América Latina. A figura do intelectual passou por uma grande re-configuração a
partir da consideração do papel do intelectual na sociedade. Ele não seria mais o
possuidor de uma certa competência em nível cognitivo e o excluído do meio político.
Pelo contrário, passava, a partir das discussões promovidas em decorrência da
Revolução Cubana, a assumir o conceito gramsciano de “intelectual orgânico”.
Segundo Gramsci, todos os homens são intelectuais, ainda que não a todos
corresponda desempenhar a função de intelectual na sociedade
62
.
Antonio Gramsci foi um ponto de referência obrigatório para os estudos sobre a
questão estatal, tanto na Europa Ocidental como na América Latina. Desde certo ponto
de vista, o autor italiano apareceu como o verdadeiro fundador da ciência política
marxista, finalmente liberada do “dogmatismo” e do “economicismo”, e, portanto, da
construção “instrumentalista” do Estado que havia caracterizado o pensamento
leninista. O aporte gramsciano à ciência política marxista, no essencial, é que Gramsci
havia demonstrado, contra toda uma tradição, que a classe dominante se impõe como
tal não só através da coerção, ou seja, da violência física, senão também mediante a
“hegemonia”, por meio de uma direção intelectual e moral do “consenso ativo” dos
governados.
A inovação que o pensamento sesentista trouxe foi a de adequar – a partir do
conceito de Gramsci – a figura do intelectual militante. Aqui, surge a dupla interpretação
entre o intelectual independente, descomprometido, e o intelectual militante a serviço de
uma ideologia e de uma causa que os sessentas introduziram, onde se vivenciou um
dos momentos de ápice sobre a discussão do lugar que os intelectuais ocupavam na
sociedade. Sartre havia insistido em que todos somos responsáveis não só por nossas
palavras, como também dos silêncios. O intelectual era um privilegiado por seu acesso
62
Os que desempenham a função intelectual, segundo Gramsci, se dividem em: intelectuais tradicionais
(professores, escritores, religiosos, administradores, etc.); intelectuais orgânicos, aqueles que atuam em
função dos interesses de classe ou de extratos determinados. Entre estes últimos, os que estão a serviço
dos interesses proletários são os intelectuais orgânicos revolucionários. Gramsci considerava que não
existe atividade humana da qual possa se excluir toda intervenção intelectual, “[...] não se pode separar o
homo faber do homo sapiens”. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade
intelectual qualquer, participa de uma concepção de mundo, isto é, para promover novas maneiras de
pensar. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 7
a
. ed., 1989, p. 7-8.
64
diferenciado ao capital cultural; sua obrigação seria compartilhar com o povo sua
experiência, permitindo às massas a total consciência de sua situação.
Na opinião de Gatto, foi nesse processo de re-definição do papel do intelectual
que a Revolução Cubana, como articuladora do campo, adquiriu inédita relevância em
todo o continente. “Desde a ilha, convertida em foco de irradiação das novas políticas
culturais, o progressismo passou a ser a tônica dominante, varrendo qualquer resquício
do intelectual politicamente independente ou sem definição”
63
. O debate sobre os novos
sujeitos revolucionários abriu um espaço no qual a intelectualidade latino-americana,
crente na iminência da revolução mundial, passava a adquirir um papel relevante,
substituindo ou acompanhando as classes que a teoria havia assinalado antes como
sujeitos necessários dos processos revolucionários.
A opinião de Gatto sobre a marca definitiva do processo cubano nos intelectuais
latino-americanos torna-se relativamente questionável se lembrarmos as influências que
outros anteriores processos revolucionários imprimiram no mundo das idéias no
continente. A Revolução Cubana foi culminação e superação, ao mesmo tempo, de
uma série de insurreições e revoluções que marcaram toda a etapa do pós-Segunda
Guerra Mundial na América Latina. Citaremos três, pela sua importância, começando
pelo “Bogotazo” de 1948, quando Fidel Castro realizou suas primeiras observações,
ficando marcado tanto pela ação das massas como pela personalidade do líder
colombiano assassinado, Jorge Eliécer Gaitán, portador de concepções de um
liberalismo radical, com características do populismo do momento e uma forma de
difuso socialismo.
Em segundo lugar, deve-se mencionar a Revolução Guatemalteca (1944-54), na
qual outro líder do futuro Movimento 26 de Julho cubano, “Che” Guevara, fez sua
aprendizagem. Na análise de Cueva (1988), na oportunidade Guevara chegou às
seguintes conclusões: a) a esquerda só poderia triunfar com a condição de organizar e
armar as massas, para garantir e aprofundar com elas o processo revolucionário; e b)
nos países dependentes, a parte difícil da luta não é a que se trava contra a classe
dominante local, senão a que se deve desenvolver contra o imperialismo
64
.
63
GATTO, Heber. El Cielo por Asalto: (El Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros y la
Izquierda Uruguaya – 1963-1972). Montevideo: Taurus, 2004, p. 80.
64
CUEVA, Agustín. Ideologia y Sociedad en América Latina. Montevideo: Banda Oriental, 1988, p. 16.
65
A terceira experiência é a da Revolução Boliviana de 1952. Uma experiência que
implicou o contrário à vivida na Guatemala: de nada servem as massas combatendo
nas ruas, nem os operários combatendo o exército das classes dominantes, se não
existe uma organização de vanguarda política que cumpra realmente seu papel.
De outra parte, outro ponto a ser considerado para a análise do pensamento
sesentista é aquele que o marxismo proporcionou para toda a esquerda uruguaia: um
instrumental teórico fértil de invulgar importância. Esse não somente se constituiu como
um elemento de análise precisa da sociedade capitalista e sua dinâmica e do
proletariado como agente revolucionário direto, ou indireto, senão também como uma
filosofia da história, de uma sociologia, de uma epistemologia, de uma concepção geral
da natureza e da vida, e de uma metodologia específica. Nunca anteriormente se
conheceu no Uruguai uma concepção com tanta vocação de universalidade, como
ciência do conhecimento e da transformação social, não podendo ser ignorada por
nenhum movimento de esquerda.
A influência que o pensamento marxista imprimiu no sesentismo abrangeu
aqueles que, como os anarquistas, sempre o negaram, mas, mesmo assim, utilizaram
para suas análises parte de seu instrumental teórico. Assim foi que, em 1959, Daniel
Guérin proclamava a idéia de um socialismo libertário, o que logo chamaria de
“marxismo libertário”. Obviamente que a partir do clima gestado pela Revolução
Cubana, que em 1961 se declarou marxista-leninista, essa posição se tornou
hegemônica no pensamento da esquerda latino-americana, chegando inclusive a influir
em expressões filosóficas e religiosas notoriamente alheias, como ocorreu com o
pensamento católico cristão e com certas expressões do liberalismo, inclusive de
organizações supranacionais, como foi o caso da Cepal.
A Revolução Cubana foi o ponto de confluência de muitas vertentes: de uma
tradição jacobina e antiimperialista muito autóctone e um marxismo-leninismo
assimilado e modelado à nossa medida; de tudo isso e uma disposição revolucionária
das massas de acordo com a nossa posição de fragilidade, num momento em que pela
primeira vez a história universal buscou totalizar-se não já através da ação e do
pensamento das metrópoles de sempre, senão pela constituição de uma nova unidade
que, mesmo de maneira difusa e primária, começava a denominar-se Terceiro Mundo.
66
Obviamente a Revolução Cubana mostrou a viabilidade do marxismo latino-americano,
constituiu não só uma culminação, senão que também formou uma crítica prática
daquele, ao mostrar novos caminhos e perspectivas para a revolução.
Tal como Gatto, igualmente outros autores identificam a Revolução Cubana
como condicionante e único motivador do pensamento sesentista. Não há dúvidas de
que a revolução foi um dos elementos-chave para a evolução desse pensamento, mas
além dela existem também outros antecedentes históricos que devem ser considerados.
No que concerne à característica autenticamente nacional do pensamento sesentista,
deve-se considerar também a tradição liberal – radical e anticlerical, um histórico do
movimento sindical com um forte legado anarquista e o contexto político latino-
americano, num momento em que fervilhava a elaboração de um pensamento marxista
próprio do continente. A intelectualidade uruguaia no sesentismo foi influenciada pelo
pensamento marxista
65
, que se expressou profundamente não só na política, senão
também na literatura, nas artes plásticas, na música neofolclórica ou na canção de
protesto, nas ciências sociais e na própria teologia.
65
É necessário observar que enquanto o sesentismo se refere à cultura política geral adotada pela
esquerda durante este período (1960-1973), o marxismo crítico constituiu uma variante do marxismo,
uma diferenciação conceitual e interpretativa dentro dele. Portanto, ambas as categorias não são
estritamente coincidentes. Houve aspectos do marxismo crítico, como seu repúdio à identificação ciência-
marxismo, que não foram adotados pelo discurso sesentista.
67
3. AS MUDANÇAS NA ESQUERDA CLÁSSICA E O CONTEXTO DA
OLAS
O Partido Comunista teve uma influência muito importante na história do
movimento operário uruguaio. Em suas origens e durante a década de 1920, canalizou
o prestígio e as esperanças revolucionárias nascidas na classe trabalhadora depois da
Revolução Bolchevique de 1917. Depois de 1955, o Partido Comunista adquiriu uma
maior influência e penetração no movimento sindical e popular, tendo seus militantes,
junto com os sindicatos autônomos, contribuído para o fortalecimento da CNT. Na
década de 1960 e até os inícios de 1990, suas orientações tenderam a prevalecer na
direção do movimento sindical e adquiriram um peso significativo na universidade, no
movimento estudantil e em amplos setores da cultura popular. O partido foi também
artífice decisivo no surgimento e desenvolvimento da Frente Ampla.
Pelo conjunto de sua origem e trajetória, o Partido Comunista deve ser analisado
atentamente como protagonista de uma prática política densa, com organicidade,
coerência e implantação na classe trabalhadora. Bem ou mal resolvidas, o PC
apresentou aos trabalhadores uma série de propostas que eram alheias ao pensamento
e à prática das correntes anarquistas e sindicalistas dos anos 1920, 1930 e 1940
(propostas que o Partido Socialista também defendeu nesses anos, influenciado pelas
concepções reformistas dos partidos social-democratas europeus
66
): a necessidade de
um partido da classe operária para a Revolução Socialista, as preocupações
programáticas, as alianças e o papel político “nacional” – e não só sindical ou setorial –
da luta dos trabalhadores. Isso ao mesmo tempo em que seus militantes participavam
das organizações e da luta reivindicatória cotidiana dos trabalhadores.
Juntamente com as correntes anarquistas e socialistas, o PC promoveu, na
classe trabalhadora, os valores do internacionalismo proletário, entre outras o conteúdo
66
A partir da metade dos anos de 1950, os partidos de esquerda haviam sofrido importantes mudanças.
Dentro do socialismo abandonou-se paulatinamente a linha que, na liderança de Emilio Frugoni, havia
primado até o momento. O pró-ocidentalismo, que o socialismo uruguaio havia desenvolvido durante o
século XX, foi substituído por posições antiimperialistas e nacionalistas, rejeitando as posturas de face
reformista e uma política de radicalização marxista. Obedecendo às mudanças, surgiram no período
novas lideranças, como a de Vivian Trias (professor, ensaísta e deputado, em 1958), que ocupou um
papel preponderante, assumindo a secretaria geral do PS.
68
classista do 1º de maio, campanhas por Sacco e Vanzetti, a defesa da Revolução
Bolchevique e a solidariedade com o povo espanhol na luta antifascista. Como tradição,
o PC continha, pela sua origem e desde os primeiros anos de sua trajetória, um
componente revolucionário. A forma pela qual aquele revolucionarismo passou a
posições que nos anos 1960 definem-se como reformistas, se relaciona não só com a
evolução social e econômica do Uruguai, senão que também pelo processo cumprido
na União Soviética, principalmente a partir da entronização de Stalin no poder, ao final
dos anos 1920.
O stalinismo, como ocorreu em todas partes, marcou profundamente o PC
uruguaio, gerando mudanças inexplicáveis e práticas sectárias que o isolaram e
debilitaram sua influência em alguns setores mais combativos do proletariado. No XVI
Congresso, de 1955, o PC fez uma autocrítica: foram destituídos alguns de seus
principais dirigentes (Eugenio Gómez e Eduardo Gómez Chiribao), assumindo a direção
o núcleo que passou a orientá-lo nos 35 anos seguintes. O processo de
desestalinização foi lento. Ainda em novembro de 1957, Stalin foi citado como fonte de
autoridade teórica marxista. Nos anos 1956-1959, a ênfase foi posta nas possibilidades
que, para a transição ao socialismo, abririam la emulación pacífica entre os dois
sistemas (o capitalista e o socialista), pelo qual “a manutenção da paz se torna
prioridade essencial”
67
.
No XVII Congresso, de 15 a 17 de agosto de 1958, estabeleceram-se definições
sobre o tópico que logo se tornou motivo de debate em nível latino-americano: o
referido à “burguesia nacional”. Nesse Congresso afirmou-se que:
A contradição principal da estrutura econômico-social do Uruguai é a
contradição entre as forças produtivas que pugnam por desenvolver-se e as
relações de produção, baseadas na dependência do imperialismo e o
monopólio da terra que freiam esse desenvolvimento. Ela expressa-se também
na contradição entre o imperialismo, os latifundiários e os grandes capitalistas
antinacionais, e todo o povo uruguaio, os operários, agricultores e
agropecuaristas pequenos e médios, os intelectuais e os estudantes, os
empregados do Estado e privados, os aposentados, os artesãos e pequenos
comerciantes, e a burguesia nacional, constituída, no fundamental, pela
burguesia média
68
.
67
ESTUDOS. Teoria y Práctica de uma Política de Paz. In: Revista Estúdios, nº 7, 1957, p. 53.
68
ESTUDIOS. Estatuto del Partido Comunista. Montevideo: nº 12, 1958, p. 99.
69
A derrota, nesse mesmo ano, da fração industrialista e protecionista da
burguesia, liderada por Luís Batlle, e os acontecimentos latino-americanos precipitados
pelo triunfo da Revolução Cubana no ano seguinte, levaram o PC a posições mais
afinadas e “esquerdistas” nesse ponto. O XVII Congresso deu aprovação a outro
documento, o Estatuto del Partido Comunista, que revelou um aspecto de sua
concepção teórica, bastante perturbador das relações dos comunistas com as demais
forças políticas populares e de esquerda. No Artigo nº 1, estabelece que: “O Partido
Comunista é o Partido político da classe operária, sua vanguarda, sua forma superior
de organização, que define seus interesses e os de toda a nação”
69
.
Oito anos depois, em agosto de 1966, por ocasião do XIX Congresso, num
informe sobre a reforma dos estatutos, reafirmava-se essa concepção: “Seu artigo 1º,
que define o caráter e os objetivos do Partido, recolhe de forma concentrada os
princípios leninistas que fundamentam o Partido de novo tipo, partido da classe
operária, sua vanguarda política e sua forma superior de organização”
70
. O conceito do
PC como vanguarda leva também a uma relação de conflito e cheia de obstáculos para
o processo de discussão e elaboração teórica e política: as opiniões só terão vigência e
legitimidade se provierem do seio da própria organização de vanguarda, quer dizer, do
PC.
No transcurso dos anos 1960, ao tempo em que sua influência aumentava, a
solidariedade, a proximidade e as posições do Partido Comunista de Cuba
influenciavam fortemente no velho Partido, renovando algumas de sua propostas e
radicalizando seu discurso. O PC continuaria afirmando sua posição com relação aos
métodos e às vias da Revolução Uruguaia. Em março de 1964, a revista “Estúdios”
manifesta: “Não se tem dúvida de que à violência desatada pela reação, o povo deve
responder com todas as armas, inclusive com as várias formas de violência popular”
71
.
Nos meses de julho e agosto desse ano, já com pressões militares da extrema direita
sobre o Governo, que impõem como ministro de Defesa o general Hugo Moratório, o
PC examina, com detalhes, a pertinência da luta armada, manifestando que a eleição
69
ESTUDIOS. nº 12, op. cit., 1958, p. 99.
70
CORES, Hugo. 1997. op. cit., p. 44.
71
ESTUDIOS. 1958. op. cit., p. 44.
70
dos métodos de luta continuou estando subordinada à situação política e, em particular,
ao estado de ânimo das massas.
A concepção da revolução latino-americana do Partido Comunista foi expressa
por Rodney Arismendi desta forma: “[...] é necessário conceber a revolução latino-
americana como um processo histórico único, com duas fases interligadas: uma fase
obrigatoriamente democrática e antiimperialista pelos seus objetivos essenciais, e outra
socialista. E é aqui onde se mostra uma vez mais na sua riqueza e na sua plenitude
dialética o pensamento de Marx e Lenin”
72
. No item sobre as discussões da Teoria do
Foco reaparecerá esta temática.
Na década de 1960, o PC uruguaio desenvolveu uma resposta teórica própria,
bastante elaborada, sobre a luta armada e uma linha de ação política que o diferenciou
da maioria dos partidos comunistas da América Latina. Diferentemente dos partidos
comunistas da Bolívia (que negaram seu apoio à guerrilha de Che) ou da Venezuela, tal
fratura em volta desse tema teve ressonância continental (criticado por Fidel na
Conferência da Olas), ou do Brasil (no qual a alternativa guerrilheira provocou uma crise
interna e a cisão de Marighella e outros integrantes do Comitê Central), o PC uruguaio
conseguiu manter uma grande ambigüidade em torno do tema, através de um “par
dialético” que condenava por igual a mudança de direção da esquerda guerrilheira e a
mudança de direção da direita, confiante na via pacífica ao socialismo.
Com essas definições do PC abriu-se um ângulo novo, que ingressa nos tópicos
conhecidos de uma linha insurrecional: legitimação da violência popular, necessidade
de preparação prévia, busca dos meios políticos e técnicos. Ao mesmo tempo, no
campo da ação política de massas, intensificava-se a controvérsia interna com outros
setores, tanto no movimento operário como no estudantil. Visto em perspectiva, chama
a atenção certo bloqueio para o diálogo com outras organizações com as quais o PC
mantinha, a partir dessas definições, coincidências estratégicas importantes.
Sectarismo de uns e outros? Falta de credibilidade ante o que aparecia como
contraditório: linha sindical “reformista” e perspectiva insurrecional?
Por sua vez, durante a década de 1960, o Partido Socialista – PS viveu um
complexo processo de debates internos e definições teóricas. Também aqui se
72
ARISMENDI, Rodney. A Revolução Latino-Americana. Lisboa: Avante, 1977, p.59.
71
registrou a influência da Revolução Cubana e a nova situação latino-americana.
Inicialmente, conviviam dentro do PS distintas inflexões: a tradicional (originalmente
vinculada às concepções social-democratas de origem européia), liderada pelo Dr.
Emilio Frugoni, que tendia a debilitar-se perante a nova situação latino-americana e
mundial; a majoritária, do professor Vivian Trias, encabeçando um processo de
renovação teórica, nesse momento com forte influência maoísta; e outras minoritárias,
lideradas por Luján Molins (secretário geral das Juventudes Socialistas, em 1964) e
Julio Louis, que darão lugar, posteriormente, ao nascimento do Movimento de
Unificação Socialista Proletário – Musp.
Ao mesmo tempo, Raúl Sendic
73
, como militante socialista com forte respaldo do
partido e de sua imprensa, desenvolveu uma militância intensa. Foi assessor legal,
primeiro de trabalhadores arrozeiros e açucareiros, e, logo depois, organizador e líder
da luta dos trabalhadores da União de Trabalhadores Açucareiros de Artigas – UTAA.
Em junho de 1962, Raúl Sendic foi processado e encarcerado por algumas semanas na
Penitenciária de Miguelete, junto com outros 36 militantes da UTAA, depois de um forte
enfrentamento com burocratas da Central Sindical Uruguaia – CSU (organização
“sindical” patronal). Nesse episódio foi ferida mortalmente, por um disparo, uma senhora
alheia ao incidente. Pretendeu-se incriminar os trabalhadores da UTAA, mas a posterior
análise técnica demonstrou que a responsabilidade foi dos pistoleiros da CSU.
73
Raul Sendic (1925-1989) foi um lutador social e uma das figuras mais relevantes da política uruguaia
da segunda metade do século XX. Nasceu na cidade de Flores, interior do país. Filho de trabalhadores
rurais, conviveu desde cedo com a realidade do campo. Aos 18 anos passou a morar em Montevidéu,
onde começou seus estudos de direito, iniciou sua militância no Partido Socialista e integrou o Executivo
da União Internacional de Juventudes Socialistas. Em 1951, como estagiário do curso de direito, retorna
ao interior para assessorar diversos sindicatos rurais. No período de 1959 a 1961, contribuiu para a
fundação de diversos sindicatos rurais. O sindicalismo promovido por Sendic no interior do país teve uma
diferente abordagem: o novo sindicalismo caracterizou-se por ser combativo e profundamente
participativo. Em 1963, num contexto no qual a luta social não podia ser restrita exclusivamente ao meio
sindical, Sendic, conjuntamente com outros militantes da esquerda tradicional e com trabalhadores rurais,
funda o Movimento de Libertação Nacional – MLN Tupamaros. Em 1963 passou à clandestinidade. Seis
anos depois foi detido em Montevidéu e enviado à prisão de Punta Carretas, de onde conseguiu se
evadir junto com um centena de outros presos políticos. Um ano depois, num enfrentamento com as
Forças Armadas, foi gravemente ferido e permaneceu preso pelos seguintes 14 anos, nas condições
mais inumanas que se possam imaginar. Liberado no amparo da lei de anistia, em 1985, volta à
legalidade com um enfoque novo dentro do contexto da esquerda uruguaia: chamou a atenção sobre os
graves problemas do país, especialmente sobre a dívida externa e o problema da terra. Fundou, em
1985, o Movimento pela Terra, escrevendo grande quantidade de artigos em que luta pela postergada
reforma agrária e por uma nova estratégia de luta para a esquerda nacional. Incansável lutador social,
militou junto aos trabalhadores rurais até sua morte, em 1989, em Paris.
72
Em 1962, o XIX Congresso Extraordinário (29 e 30 de junho) definiu o projeto de
“união nacional e popular”. É com esses delineamentos que o PS participou da
experiência da União Popular, liderada por Enrique Erro, com maus resultados nas
eleições desse mesmo ano. No XXXIV Congresso Ordinário, de 28 a 30 de junho de
1963, retomou e ampliou as formulações de 1962, definindo uma estratégia de
revolução nacional e popular, entendido como um processo único, sem etapas, ao
socialismo. No XXXV Congresso Ordinário, em setembro de 1965, aprofundou-se essa
orientação. Remetendo-se a este Congresso, o semanário El Sol apontou no seu
editorial:
Acreditamos, como diz Fidel, que neste continente, em todos ou em quase todos
os povos, a luta assumirá as formas mais violentas. E quando se sabe isso, o único
correto é se preparar para quando essa luta chegar. O Partido Socialista Uruguaio,
através do exame feito da realidade nacional e internacional, tem consciência lúcida de
que a batalha contra o imperialismo e a oligarquia nacional deverá liberar-se
necessariamente em todos os terrenos, e inevitavelmente neste país semicolonial onde
a oligarquia recorre à violência [...] será impossível ascender ao poder, expropriar o
latifúndio, a banca e os monopólios imperialistas numa luta violenta e sem quartel. A
obrigação das forças revolucionárias é preparar-se para todo tipo de luta
74
.
No XXI Congresso Extraordinário do PS (1965) discutiu-se fundamentalmente a
problemática eleitoral colocada para esse ano. Na resolução principal afirma-se que na
luta eleitoral a oligarquia tem em suas mãos todos os elementos de manipulação da
opinião pública, pelo qual dificilmente a esquerda possa ganhar a batalha nesse terreno
e, mesmo que a ganhe, as classes dominantes não renunciariam pacificamente a seus
privilégios, do que resulta fundamental a tarefa de preparação e organização
revolucionária do Partido. Posteriormente, no XXII Congresso Extraordinário, de junho
de 1966, o secretário geral do Partido, José Díaz, manifestou que neste Congresso se
afirmou a disposição à luta revolucionária e que a disposição de concorrer com estes
critérios socialistas, marxistas e revolucionários às eleições não implicava de nenhuma
maneira a possibilidade de debilitar a essência que tinha o Partido como organização
revolucionária, que é organizar-se e preparar-se para qualquer tipo de luta.
74
Semanário “El Sol”. Montevideo: 21 de janeiro de 1966.
73
No XXXVI Congresso Ordinário, em novembro de 1967, reafirmava-se uma vez
mais a opção revolucionária, desta vez no marco político latino-americano criado pela
Tricontinental e a Olas: os pontos 6 e 7 da resolução final do congresso socialista
expressam:
[...] 6 – A realidade nacional tem confirmado a linha geral do Partido, avaliada,
além, pelas resoluções da Olas, verdadeiro suporte ideológico ao Socialismo
Uruguaio. Já é linha do vasto movimento revolucionário latino-americano a
concepção de nossa revolução como processo único, nacional libertador, que
devem em Socialista, concepção que surge de uma correta aplicação do
Socialismo científico e da Realidade Nacional e Latino-Americana.
7 – Dita concepção determina os objetivos estratégicos afirmados nos últimos
Congressos partidários e destacados vigorosamente pela referida Conferência
da Olas: a conquista do poder mediante a luta armada, forma de luta
fundamental e única via para cumprir o dito objetivo; e a unidade revolucionária
das classes populares, imbuídas da ideologia do proletariado, entendendo, por
tais classes, a classe obreira, as classes médias empobrecidas da cidade e do
campo e os assalariados rurais
75
.
Nesse período – anos de 1967-68 – ocorre um fenômeno particular na esquerda
uruguaia e que caracterizará a ação do PS. A Tricontinental e a Conferência da Olas
atuaram como elementos de união dos setores mais combativos da esquerda uruguaia,
permitindo uma proximidade do PS com a Juventude Socialista e posições e formas de
ação conjunta com a Federação Anarquista do Uruguai – FAU, o Movimento de
Esquerda Revolucionário – MIR e o Movimento Revolucionário Oriental – MRO
76
.
O processo de confluência dos socialistas com os setores mais radicalizados da
esquerda continuou no transcurso do ano de 1967, modelou-se no apoio às posições
defendidas pelo Partido Comunista Cubano, na Conferência da Olas, e materializou-se
logo num acordo político para impulsionar, no Uruguai, a linha revolucionária aprovada
naquela conferência. Fundamentando a validade da linha adotada pela Olas, o Dr. José
Pedro Cardozo, depois de analisar os fatos que tiveram lugar no país, expressa em
Izquierda” (um semanário que substituiu “El Sol”, fechado em 12 de dezembro de
1967), no dia 09 de fevereiro de 1968: “[...] os movimentos que levam as bandeiras das
75
Semanário “El Sol”. Montevideo: 1º de dezembro de 1967.
76
No dia 20 de janeiro de 1967 realizou-se, no salão do Semanário “Marcha”, na rua Rincón (pleno
centro de Montevidéu), um ato do chamado Coordinador Juvenil Unitário Antiimperialista, no qual fazem
uso da palavra, além do jornalista Carlos Maria Gutiérrez, representantes das diversas organizações
citadas. Na semana seguinte, em editorial, o Semanário “Marcha” saúda a realização do ato e diz que
suas organizações estão levando adiante um combate honroso e de profunda significação continental.
74
transformações sociais de fundo – de signo socialista – ver-se-ão obrigados a enfrentar
a força e a violência da única maneira que é possível enfrentá-la, quer dizer, exercendo
o legítimo direito à insurreição”
77
.
No decorrer do ano de 1968, o Partido Socialista impulsionou uma linha de ação
de massas expressamente inspirada no marxismo e nas idéias de Lênin. Desde sua
implantação em alguns grêmios, polemizou de forma sistemática com o Partido
Comunista sobre a tática sindical. Essa polêmica se substancia em torno da condução
geral do movimento, também em torno da marcha dos distintos conflitos e, mais em
geral, em torno do papel a ser cumprido pelo movimento sindical numa estratégia que
sempre se definiu como revolucionária e socialista.
A Primeira Conferência da Organización Latinoamericana de Solidaridad – Olas
teve lugar em Havana, Cuba, de 31 de julho a 10 de agosto de 1967. As sessões
iniciaram nos salões do hotel Habana Libre, atrás de um grande retrato de Simon
Bolívar. Essa presença tutelar do Libertador falava da vocação dos participantes de dar
à reunião e às resoluções que emanaram da mesma um sentido latino-americano.
A decisão de realizá-la foi tomada pelas 27 delegações latino-americanas
assistentes à Primeira Conferência de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e
América Latina, ou Tricontinental, também em Havana, em janeiro de 1966, tendo-se
designado um comitê organizador de nove membros (Brasil, Colômbia, Cuba,
Guatemala, Guiana, México, Peru, Uruguai e Venezuela). A secretaria geral
correspondeu à cubana Haydée Santamaría. Os objetivos eram unir, coordenar e
impulsionar a luta contra o imperialismo norte-americano por parte de todos os povos
explorados da América Latina.
Desde a Tricontinental vinha-se lidando com duas posturas sobre a estratégia de
libertação latino-americana entre as esquerdas: a linha tradicional dos partidos
comunistas pró-soviéticos, que apontavam preferentemente a criação de “frentes” com
as “burguesias nacionais” de cada país para ganhar o poder pela via eleitoral, e a outra,
inspirada diretamente na Revolução Cubana, que pregava a luta armada imediata como
único caminho. Em novembro de 1964, na Conferência dos Partidos Comunistas da
América Latina, em Havana, havia se conveniado dar apoio a esta última via para os
77
IZQUIERDA. Editorial. Montevideo: 09 de fevereiro de 1968, p. 2.
75
movimentos de libertação da Venezuela, Colômbia, Guatemala, Honduras, Haiti e
Paraguai, mas que a direção de todos esses movimentos corresponderia aos partidos
comunistas.
Cuba somou-se a tal decisão, mas a separação do Partido Comunista
venezuelano da Frente de Liberación Nacional de Venezuela, abandonando os
guerrilheiros que Cuba apoiava diretamente, provocou a ruptura de Havana com este
partido (1967) e, virtualmente, de seus compromissos de 1964, no que diz respeito a
deixar a condução dos movimentos de libertação nacional em mãos dos partidos
comunistas pró-soviéticos. Isso reafirmou aos cubanos sua postura de luta armada
como única via da revolução e os reencontrou com o setor das esquerdas latino-
americanas que mantinham igual postura, ficando o setor “eleitoreiro” em minoria. Tal
correlação se refletiu na Olas.
Apesar dessa situação, a unificação da estratégia de libertação latino-americana,
do ponto de vista de Cuba, não podia realizar-se sem a participação dos partidos
comunistas oficiais, e a Olas quis ser uma nova tentativa para conciliar as posições
antagônicas, reunindo todas as forças de esquerda de cada país em movimentos de
libertação nacional únicos, pertencendo a direção, desta vez, às vanguardas
combatentes.
Em cada país haviam se constituído, desde 1966, “Comitês Nacionais”, nos
quais estavam representadas as duas posições. O Comitê Organizador elaborou quatro
teses, que circularam de forma não pública, para a discussão pelas delegações; numa
dessas teses, estabelecia-se que, em condições que prevalecem em grande número de
países latino-americanos (de repressão do movimento popular, de ineficácia do
reformismo, crescimento da miséria), “[...] a luta armada frente ao imperialismo e seus
agentes nacionais é a única via para a libertação nacional”; que a grande massa rural,
especialmente os camponeses despossuídos e os operários agrícolas constituíam
numa força revolucionária fundamental nesse tipo de enfrentamentos e que “[...] a
vanguarda combativa deve reclamar e assegurar para si a independência do
movimento revolucionário, em relação a todos os demais movimentos”. A unidade da
luta tinha que se realizar sob o signo da direção combatente, “[...] pois compartilhar a
direção ou deixá-la em mãos dos não combatentes conduz à liquidação da luta
76
armada”. Em outro ponto se concluía: “O caminho para a libertação da América Latina é
a luta armada. Sendo possível se pensar o emprego de todas as formas de luta,
estrategicamente só a luta armada pode conduzir à tomada do poder”. O
desenvolvimento, pois, da luta insurrecional na América Latina converteu-se na tarefa
principal dos revolucionários latino-americanos. A discussão desses pontos, apesar dos
esforços unitaristas dos cubanos, aprofundou a divisão preexistente nas delegações
78
.
Três dias após o início da Conferência, a unidade pretendida já era impossível.
Em algumas delegações, como a chilena, as posições, ficando em paridade,
neutralizaram-se mutuamente nas votações; em outras, como a uruguaia, na qual a
representação da posição pró-soviética era maioria, substituiu-se a discussão pelo
consenso, pelo sistema das maiorias, enquanto que no resto das delegações prevalecia
a linha cubana. No conjunto da conferência, esta última tendência resultou dominante.
A Primeira Conferência da Olas emitiu uma declaração geral, 28 resoluções
públicas, e algumas não-públicas, e os estatutos da organização. Observa-se que o
grande objetivo era propiciar a unidade dos movimentos de libertação do continente e
definir uma estratégia comum e coordenada para todos. Assim, esse propósito alentado
por Cuba tropeçou com o enfrentamento de posições entre os partidos comunistas pró-
soviéticos e as forças revolucionárias que sustentavam a luta armada imediata como
único caminho válido para a libertação, que era a mesma tese de Cuba. Esta última
tendência prevaleceu no conjunto da Conferência e se refletiu tanto no projeto de
declaração da presidência como nos estatutos e resoluções públicas e não-públicas
que foram aprovados na última sessão plenária.
A Declaración General, elaborada pela presidência, diz na sua parte expositiva
que para a libertação ibero-americana requer-se uma estratégia comum, fundamentada
numa clara e nítida expressão de solidariedade, cujo caráter é a própria luta, cuja
extensão é o continente e sua forma a guerrilha e os exércitos de libertação. E, em
seus pontos principais, que “os princípios do marxismo-leninismo orientam o movimento
revolucionário na América Latina”, que a luta revolucionária armada constitui a linha
fundamental da revolução no continente e que “todas as demais formas de luta devem
78
CASAL, Juan Manuel. América Latina en el Siglo XX: crónica política nacional. Montevideo:
Proyección, 1987, p. 47-51.
77
servir e não atrasar” a esta; que naqueles países nos quais esta tarefa não está
vislumbrada no imediato, “de todas as formas deverão considerá-la como uma
perspectiva inevitável”
79
.
No dia 10 de agosto de 1967, Fidel Castro encerrou a Conferência no Teatro
Chaplín, de Havana, com um discurso que acompanhava o que fora a posição
majoritária: “Na Olas se tem refletido uma luta ideológica latente [...] Essa bizantina
discussão a respeito dos meios da luta e dos caminhos, se pacíficos ou não pacíficos,
se armados ou não armados. A essência dessa discussão chamamos bizantina, porque
é a discussão entre dois surdos-mudos, porque é o que diferencia os que querem
impulsionar a Revolução e os que não a querem impulsionar, os que querem freá-la e
os que querem impulsioná-la [...]”
80
.
79
Idem.
80
Idem.
78
4. AS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS: TUPAMAROS E FAU
As ações das organizações revolucionárias são inseparáveis do desenvolvimento
das lutas operárias e estudantis do ano de 1968 e seguintes. A mobilização popular
maciça teve momentos de ascensão, de extensão e radicalização, e também períodos
de decaídas, de desconfiança em suas próprias forças, desconcerto, no qual prevalecia
o temor à perda do próprio emprego, a repressão, a cadeia. Medo compreensível numa
sociedade na qual predominaram, por décadas, as formas pacíficas da dominação de
classe.
Como salienta Cores (1997), as indecisões de alguns círculos dirigentes
alimentaram, uma e outra vez, a ilusão de que os conflitos sociais iriam se solucionando
de uma forma quase espontânea, voltando-se aos compromissos e embates do Uruguai
tradicional. Nesses momentos de refluxo do movimento sindical, e quando a omissão e
a cumplicidade eram predominantes no parlamento, os grupos de ação direta foram
capazes de alentar esperanças e gerar, no seu entorno, uma ampla área de simpatias.
O acionar do Movimiento de Liberación NacionalTupamaros (MLN) teve, no
transcurso do período, estendida repercussão em distintos setores populares,
particularmente na juventude estudantil, em alguns setores da classe operária, num
amplo setor da intelectualidade e, também, da Igreja Católica, já preparada pelas
mudanças doutrinárias que vinham acontecendo desde princípios de 1960. Essa
repercussão sob a forma de simpatias não foi expressa organicamente até depois da
fundação e dos primeiros atos de massas da Frente Ampla, com a criação do
Movimiento Independiente 26 de Marzo, em 1971.
Tal como se verá, a estratégia impulsionada pelos grupos revolucionários de
ação direta fracassou. As raízes teóricas desse desenlace encontram-se bastante
explicitadas na documentação produzida por essas organizações naqueles anos. O
foquismo (baseado na obra de Regis Debray), a aversão à política (de raiz anarquista)
e o praticismo impediram o desenvolvimento de um pensamento político global capaz
de abranger a realidade das relações de forças da sociedade e do Estado, em sua
totalidade complexa e transformadora. Nesse sentido, não se discutia claramente uma
política de alianças ou de acumulação de forças entre os setores revolucionários. Mais
79
ainda, as organizações mostraram escassa disposição para unificar posições entre si:
incapacidade para desenvolver uma proposta alternativa que se incorporasse a outros
setores sociais, ou seja, construir uma verdadeira hegemonia. Tais carências foram
determinantes nesse fracasso.
Segundo Cores, tudo parecia indicar que não se mediu adequadamente o efeito
que a intensificação das lutas produzia nos setores populares que não participavam
delas, esse “partido do medo”, “perfeitamente explicável num país com fortes tradições
de dominação pacífica, que logo constituiria a base social do pachequismo e que teria
uma composição social muito heterogênea que não excluía setores populares, como o
demonstrará, depois, a eleição de 1971”
81
.
Clara Aldrighi (2001) propôs uma categorização para o estudo do MLN,
composta de quatro períodos para a análise do movimento: 1) a fase do coordinador,
como embrião primário da organização que se caracteriza pela realização de contatos,
discussões e ações conjuntas entre grupos e pessoas que ocupavam posições
destacadas na esquerda. Representa a fase da maturação política e do início da prática
conspirativa; 2) inicia-se em dezembro de 1966, momento das mortes de Carlos Flores
e Mario Robaina, quando o movimento enfrenta sua primeira prova para superar um
forte ataque repressivo, etapa esta em que se realizam ações de propaganda armada e
operações demonstrativas para despertar a simpatia e adesão da população; 3) tem,
como ponto de partida, o mês de outubro de 1969, com a tomada da cidade de
“Pando”, caracterizada por um avanço das ações militares, quando começa a adotar
características próprias de guerra civil; e 4) que se inicia em 1972, com o ataque ao
Esquadrão da Morte, a ofensiva do Estado e a quase desarticulação do movimento.
Esta etapa culminaria em 1974, com a última tentativa de ingresso de grupos operativos
desde o exterior (a partir da Argentina, tendo este plano sido desarticulado pela
repressão).
Para se realizar uma análise do movimento especificamente, concordaríamos
com a categorização elaborada pela autora, mas os objetivos deste trabalho visam,
fundamentalmente, ao contexto no qual os tupamaros atuaram, seu desenvolvimento
ideológico e as suas correlações com a esquerda legal do país. Para tal, somos
81
CORES, Hugo. 1997. op. cit., p. 51.
80
favoráveis a uma categorização diferente. Observam-se três momentos, ou períodos,
da organização, fundamentalmente a partir do contexto macro da esquerda nacional: 1)
desde o surgimento do coordinador, em 1962, até a sua derrota político-militar, em
1973, com a entrada em cena da ditadura civil-militar; 2) o contexto que viveu a
esquerda e o movimento – nas suas diversas realidades – durante a ditadura, desde
1973 até a pós-ditadura imediata, período conhecido como de reabertura democrática,
em 1984; e 3) a partir da reabertura democrática até as eleições de 2004, período
caracterizado por grandes mudanças no cenário mundial, regional e nacional, tanto na
esquerda uruguaia como no MLN em particular. Neste capítulo, abordaremos a primeira
fase, de 1962 até 1973, sendo as outras fases tratadas nos capítulos seguintes.
O nascimento do MLN pode ser explicado seguramente por motivos endógenos
e exógenos, alguns de caráter sócio-econômico específico do país e outros mais
conectados com a Guerra Fria e a onda de luta armada nascida com o triunfo da
Revolução Cubana. Influíram outros fatores, mas a Revolução Cubana exerceu um
peso fundamental na aparição do MLN, mais que as causas puramente locais. Um tema
de polêmica inicial refere-se ao surgimento do movimento como “socialista” desde seus
primórdios, ou um grupo de autodefesa que, posteriormente, evolucionou para esta
corrente ideológica. Variadas são as contradições nesse sentido, mas tomamos por
possível a versão de seu início como grupo de autodefesa, vistas as características que
o coordinador possuía e as manifestações de seus principais líderes.
José Mujica referiu-se ao nascimento do MLN como uma reunião de militantes e
pequenos grupos de esquerda que se preparavam para a autodefesa diante de
pretensos ataques fascistas e golpistas. Mujica afirmou que, no seu início, os
Tupamaros “não tinham uma intenção ofensiva determinada pela tomada do poder,
senão que se tratava de uma atitude defensiva”
82
; posteriormente, Fernandes Huidobro
confirma esta versão, relatando, na sua obra Historia de los Tupamaros, as origens do
movimento revolucionário liderado por Raúl Sendic, estreitamente vinculado à
experiência da Revolução Cubana e às lutas dos trabalhadores açucareiros de Artigas,
agrupados na UTAA. Segundo esse trabalho, os anos de 1962 e 1963 são importantes
na conformação do núcleo inicial, constituído a partir de militantes procedentes de
82
LESSA, Afonso. La Revolución Imposible. Montevideo: Fin de Siglo, 2003, p. 73.
81
distintos grupos e/ou partidos de esquerda. Huidobro afirma que uma das
características apontadas pelos críticos em relação ao surgimento do MLN é a de que o
mesmo nasce rompendo com a esquerda e se foi transformando numa expressão
política dessa ruptura. “Formamos parte da esquerda uruguaia e compartilhávamos
seus acertos e seus erros. O que corresponde afirmar é que rompemos com certos
vícios arraigados em alguma parte dessa esquerda [...] a esquerda tradicional rompeu
conosco, tomou a iniciativa”
83
.
Na realidade, as relações entre o resto da esquerda e a nascente organização
foram mais complexas, ambíguas e mutantes, de ambas as partes. Mas o intuito deste
trabalho é outro: procura-se examinar o processo que incorporou o plano de ação
popular, a luta armada, ao complexo curso das contradições acontecidas no país ante o
acirramento autoritário e conservador.
Em 1962 se forma o embrião organizacional que deu lugar ao surgimento do
MLN. De distintos grupos e partidos de esquerda – não comunista –, os integrantes da
nascente organização conhecida como El Coordinador somaram a participação de
socialistas, anarquistas, integrantes do MIR e do MRO. Como objetivo básico, a
organização apresentou a necessidade de cumprir funções de defesa do movimento
popular contra a repressão policial e os grupos fascistas, muito ativos no Uruguai desde
o início de 1960. Também figurava nos seus objetivos um trabalho que visava a
impulsionar e oferecer apoio a setores combativos na luta de massas, mediante
enfrentamentos radicais, iniciando, assim, a transitar o caminho da luta armada com
objetivos revolucionários, mas sem se propor a desenvolvê-la no imediato.
O Coordinador captou, desde seu primeiro momento, os grupos mais
radicalizados da esquerda, políticos, sindicais, estudantis, já organizados em funções
de autodefesa. Esses grupos possuíam algumas características particulares: pouco
hierarquizados, flexíveis no organizativo e nas suas formas de mobilização. Foi
importante a participação de militantes que saíram do MIR e do MRO e que,
posteriormente, fundaram o Movimento de Apoio Campesino – MAC. A presença de
anarquistas no Coordenador provinha de integrantes da Federação Anarquista do
Uruguai – FAU e da Agrupação Libertária Uruguaia – ALU (dissidente da FAU em
83
HUIDOBRO, Eleutério Fernández. Historia de los Tupamaros. Montevideo: TAE, Vol. I, 1989, p. 45.
82
1964). Esses grupos anarquistas, conjuntamente com outros de menor expressão (uma
agrupação de independentes e a agrupação Voluntad), formaram o Movimento de Ação
Revolucionária – MAR que, em 1965, protagonizou vários atentados com explosivos. A
esses grupos somou-se um contingente de trabalhadores rurais, aglutinados por Raúl
Sendic na sua experiência de sindicalização e luta entre os trabalhadores da cana de
açúcar e os arrozeiros, de Treinta y Tres, Paysandú e Bella Unión
84
.
No ano de 1963, o Coordinador realizou várias ações audazes: o roubo de armas
do Tiro Suizo e da alfândega de Bella Unión,
85
libertação de presos detidos num posto
policial em “Uruguaiana”, uma operação de expropriação e distribuição de mantimentos
comestíveis numa favela de Montevidéu, apoio à segunda marcha cañera de 1964,
atentados contra empresas multinacionais e residências de conselheiros do governo
por motivo da ruptura das relações com Cuba, roubo de explosivos em Pan de Azucar,
em 1964, e de uma loja de armas, em 1965
86
.
Paulatinamente, os grupos que integravam o Coordinador iam adquirindo uma
gradual autonomia perante suas organizações de origem, a ponto de que logo deixaram
de controlar as ações por eles realizadas. O caso de Raúl Sendic e de outros militantes
do Partido Socialista serve como exemplo: o PS não contava com uma estrutura
clandestina armada; assim, os militantes que integravam o Coordinador mantiveram
uma dupla militância até o ano de 1966, quando rompem com o partido e passam
“oficialmente” a integrar o nascente MLN. Sem dúvida, esse tipo de autonomia gerava
inúmeros problemas para os partidos. Em 1964 ocorreu um amplo debate no
Coordinador a respeito da possibilidade – proposta por Sendic – de transformar a
estrutura armada em instrumento de um “cartel” de partidos e grupos, que conservariam
suas autonomias e características específicas. Essa proposta foi descartada no
Plenário de Parque del Plata, em maio de 1965.
84
ALDRIGHI, Clara. La Izquierda Armada: ideología, ética e identidad en le MLN – Tupamaros.
Montevideo: Trilce, 2001, p. 73.
85
No ano de 1963 o Coordinador, iniciou uma série de operações menores que serviram como exercício
do futuro MLN. O Tiro Suizo era um clube de tiro do qual foram roubados vários fuzis praticamente sem
utilidade, mas que politicamente repercutiu no cenário nacional visto que levou a clandestinidade a vários
militantes da incipiente organização. As ações de Bella Unión e de Azucar foram mais eficazes em
termos gerais, mas com pouco significado político. A alfândega de Bella Unión está localizada na
fronteira norte com o Brasil e o roubo de explosivos de Pan de Azucar – cidade localizada a 120 km da
capital – foi de pouca significação enquanto a quantidade de explosivos adquiridos.
86
ALDRIGHI, Clara. op. cit., p. 73.
83
Nesse encontro do Parque del Plata deu-se por finalizada a experiência do
Coordinador. Segundo Aldrighi, com aproximadamente dois terços de seus integrantes
(essencialmente os provenientes do PS, o MAC e o MIR, junto a vários trabalhadores
de UTAA), constituiu-se o MLN como formação política autônoma. Os anarquistas da
FAU – representados por Gerardo Gatti – não aderiram à proposta de criar uma nova
organização revolucionária, visto que já integravam uma, da qual aceitavam seu
programa e estratégias. Posteriormente, a FAU criava sua própria organização armada,
a OPR33.
No Plenário aprovou-se o primeiro estatuto e se efetivou a eleição de uma
direção, o Comitê Executivo, integrado por Sendic, Tabaré Rivero Cedrés, Eleutério
Fernandes Huidobro e um integrante do MIR. A partir desse momento, a organização
passou a estruturar-se em células, dirigidas por um responsável militar e outro político.
Fechou-se à admissão de grupos e os militantes passaram a ser recrutados
individualmente. Criaram-se direções intermediárias: coordenações militar e política.
Pouco tempo depois, em janeiro de 1966, realizou-se a primeira Convenção no
balneário El Pinar, da qual os militantes do MIR retiraram-se ao ficar em minoria sua
proposta: a do desenvolvimento do MLN como braço armado de um partido marxista-
leninista (de orientação maoísta) e com o método de luta de guerrilha rural
87
.
O MLN, como nova organização, propôs-se ser um movimento revolucionário
que vislumbrava objetivos políticos segundo as necessidades do país. Surgiu como
movimento ilegal, subversivo da legalidade burguesa, mas também da tradição legalista
da esquerda uruguaia. Independente em relação aos interesses de qualquer centro
externo – do Estado ou revolucionário –, caracterizou-se pela liberdade de movimentos
e de decisão, e pela sua inovadora metodologia: a ação, como máxima para o
desenvolvimento da revolução, “a ação nos unifica, as palavras nos distanciam”.
As duas fontes ideológicas que o MLN utilizou para sua fundamentação
estratégica foram a revolucionária socialista e a revolucionária liberal. Tanto a tradição
uruguaia como sua característica de movimento, situou-o entre essas tendências,
contraditórias em variados aspectos. Como ponto em comum, observa-se que ambas
as teorias haviam promovido mudanças políticas ao longo dos últimos dois séculos,
87
ALDRIGHI, Clara. op. cit., 2001, p. 74.
84
através da violência, para combater o que se entendia como opressão. A teoria
revolucionária socialista, desde a Revolução Francesa de 1789, para eliminar a
opressão política; a teoria revolucionária liberal para ir contra a opressão econômico-
social.
A teoria revolucionária socialista propõe a modificação do Estado e do sistema
sócio-econômico em favor das maiorias, já que tais interesses não se vêem garantidos
pelo Estado capitalista, que só garante a proteção dos interesses da minoria
beneficiada pelo capitalismo, e não os gerais dos cidadãos. Para essa teoria, a
opressão do capitalismo é exercida em qualquer sistema político, inclusive no
democrático liberal, que constitui uma das formas adotadas pelo capitalismo para
manter a desigualdade
88
. A opressão social e econômica, fruto de uma distribuição
desigual da riqueza, só pode ser corrigida com a mudança do sistema e a instauração
do socialismo.
A partir dessa perspectiva, o MLN considerava que mesmo que existisse
“democracia representativa, regime ‘legal’ e governo eleito, o ocultar da exploração, da
violência e da ditadura de classes detrás de formas legais constitucionais é uma tática
que a oligarquia tem utilizado há quase um século no país”
89
. Diferente das teorias
gradualistas social-democratas, a teoria revolucionária socialista considera que o
socialismo pode ser atingido unicamente através da revolução violenta, já que os
grupos dominantes, políticos e econômicos que controlam o Estado utilizam todos os
recursos, inclusive a força, para manter seus privilégios.
Na concepção ideológica do MLN, a teoria revolucionária socialista se conjugava,
em alguns aspectos, com a revolucionária liberal. O ciclo de revoluções liberais
européias do século XIX, realizadas para derrubar não só tiranias ou monarquias
absolutas, mas também regimes constitucionais conservadores, foi promovido por
minorias que atuavam “em nome do povo”. Tratou-se de revoluções que pretenderam, e
geralmente conseguiram, mediante o recurso da violência, a implantação e
aprofundamento dos direitos políticos e das liberdades civis. Não só reivindicavam o
respeito das normas constitucionais existentes, no caso de serem desconhecidas por
88
Idem, 2001, p. 72-81.
89
MLN. Documento 5. 1970. op. cit., p. 4.
85
um governo arbitrário, injusto ou opressor, mas também aspiravam à modificação da
ordem jurídica constitucional. Tratava-se, portanto, de revoluções vinculadas ao
estatísmo democrático
90
.
Para Paul Gilbert (1997), a teoria revolucionária liberal se fundamenta na
necessidade de restabelecer os direitos universais negados. “A revolução liberal parte
da acusação de que o Estado renuncia à autoridade política, ou seja, seu direito à
obediência por parte dos cidadãos, negando-lhes tanto os direitos fundamentais como
parte do poder político”
91
. A imprensa de esquerda, especialmente o Semanário
Marcha, considerou o MLN como herdeiro da tradição revolucionária liberal da história
uruguaia. Um dos textos mais significativos para a compreensão dessa visão é o
editorial de Carlos Quijano, intitulado La Tierra Purpúrea, publicado no Semanário
Marcha, por motivo da tomada de Pando e da morte de três tupamaros, em 17 de
outubro de 1969.
A luta do MLN era uma nova expressão do combativo compromisso político dos
uruguaios contra o autoritarismo, na busca secular de uma conciliação entre liberdade e
justiça. As reflexões de Quijano no editorial centravam-se no permanente potencial da
violência política que havia expressado a sociedade uruguaia ao longo de sua história.
O panorama que esboçava Quijano na Tierra Purpúrea abria-se com as guerras de
independência e concluía no presente: Todo o século XIX foi, nesta terra oriental, um
século de revoluções, pronunciamentos, ditaduras, guerras e intervenções estrangeiras.
Na busca de consenso, e também como forma de impulsionar a mobilização
ativa do povo, o MLN apelava para a história nacional como fonte de legitimidade. As
revoluções e guerras civis da história uruguaia fundamentavam a inspiração liberal
revolucionária, como exemplo de direito à rebeldia contra a opressão. Realizaram-se
alguns comparativos com fatos da história nacional, como o caso do levante de 1935, o
qual, com efeito, revelava algumas semelhanças com o discurso e a política do MLN,
tais como: a) o levante foi impulsionado por um conjunto de pessoas de heterogêneas
origens políticas, na sua maioria liberais; b) sua bandeira foi de luta contra a opressão
política; c) seus objetivos, o restabelecimento do Estado de direito, da democracia
90
HOBSBAWN, Eric. Las Revoluciones Burguesas. Madrid: Guadarrama, 1974, p. 76.
91
GILBERT, Paul. Il Dilema del Terrorismo. Studio di Filosofia Política Applicata. Milano: Fertrinelli,
1997, p. 126.
86
liberal e das liberdades civis; e d) o método, uma conspiração que terminou em
insurreição armada e foi promovida por um reduzido número de ativistas
92
. Assim, as
guerras civis do século XIX não eram percebidas como momentos apenas deixados
para trás, mas vinculados, para muitos tupamaros, ao presente, através de vividas
tradições familiares. Simbolizavam a legitimidade do recurso das armas para defender
as razões das minorias políticas contra o poder central do Estado, mas também o culto
à rebeldia antiautoritária de inflexões libertárias.
Outro ponto importante sobre as referências à história nacional estava no
discurso artiguista. O MLN declarava encarnar a continuidade de suas idéias. O
discurso artiguista permitia reforçar o sentimento de nação numa perspectiva latino-
americana e encontrar um fio de continuidade entre a ação do MLN e aquela “revolução
inconclusa”. No ideário de Artigas, o MLN encontrava conteúdos democráticos radicais
e de autogoverno, liberdades civis e propósitos de justiça social contemplados no seu
avançado projeto agrário. Os valores que se associavam a sua figura, dignidade,
valentia, humanismo, capacidade militar e liderança popular, ocuparam um lugar central
na ideologia tupamara.
A partir da maior intensificação da política repressiva na década de 1960, o
Estado era visto pelo MLN e também pelo conjunto da esquerda como um “simples
comitê de assuntos da burguesia”, segundo a visão marxista. Uma minoria de 600
famílias controlava a maior parte dos recursos econômicos do país: terra, indústria,
finanças e comércio exterior. Essa minoria estava representada no Governo pelos
partidos tradicionais que, majoritariamente, possuíam uma estreita ligação com o
imperialismo. Ao considerar o Estado como instrumento de domínio da oligarquia, a luta
92
Conscientes de sua condição de minoria, ao iniciar, em janeiro de 1935, o que definiam como uma
guerra civil, os insurretos não pretenderam derrotar com suas únicas forças o regime de Gabriel Terra
(presidente da República de 1931-1936, colorado, frontal inimigo do batllismo e opositor do sistema
colegiado de governo), senão que queriam constituir um fator detonante que despertasse a consciência
de sua opressão na cidadania e promover a insurgência, que seria conduzida pelas cúpulas das frações
antiterristas dos partidos tradicionais. Os combatentes da revolução de 1935 também se definiam como
guerrilheiros. Na sua marcha para Paso Morlán, ocuparam uma delegacia de polícia, desarmaram
policiais e expropriaram veículos para apoiar o combate. Enfrentaram, em inferioridade de armamento,
forças numerosas e bem armadas. Derrotada a revolução, pouco tempo depois, Basílio Muñoz, no
Manifesto de Rio de Janeiro (julho-agosto de 1935), reivindicava, junto à luta pela liberdade política, a
luta antiimperialista para conseguir a independência econômica latino-americana. A experiência
conspirativa e revolucionária lhes incentivou a propor a criação de uma Frente Antifascista e
Antiimperialista, a “Frente Popular”. GONZÁLEZ, Adolfo Aguirre. La Revolución de 1935. Montevideo:
Librosur, 1985, p. 86-94.
87
revolucionária tomava a forma de ataque ao Estado e devia, em conseqüência, adotar
formas político-militares, disputando necessariamente o poder no mesmo território que
o adversário. Atacar o Estado significava atacar os indivíduos que cumpriam funções de
poder em si mesmo, não só a quem combatia na sua defesa.
Para amplos setores da população, o Estado deixou de representar os interesses
gerais do corpo social. Sua capacidade de mediação dos interesses conflitantes e a
resolução por vias institucionais dos conflitos viram-se diminuídas ou simplesmente
paralisadas. As demandas pacíficas dos trabalhadores e estudantes viam-se
desatendidas, enquanto que as respostas violentas do Estado às mobilizações faziam-
se cada vez mais intensas. Reiteradas violações dos direitos humanos e torturas de
detidos desmentiam fortemente os valores de liberdade, tolerância e humanismo que o
Estado uruguaio, através de suas instituições, declarava defender. Nesse contexto, nos
últimos anos da década de 1960, intensificou-se a polarização entre Estado e a
esquerda uruguaia, em todas suas correntes e tendências.
Em dezembro de 1967 difundiu-se o primeiro documento público firmado como
MLN. Nesse documento evidenciam-se algumas das características que marcaram o
projeto do MLN e que assinalava, entre outras: “A única via para a libertação nacional e
a revolução socialista será a luta armada [...] A luta armada em nosso país é não só
possível, senão que imprescindível: única forma de se fazer a revolução”
93
. Citando
Regis Debray, o mencionado documento diz: “No Uruguai também o acento principal
deve colocar-se na guerra de guerrilhas [...] O trabalho insurrecional é hoje o trabalho
político número um [...] O decisivo para o futuro é a abertura de focos militares, e não
políticos. Se vai de um foco militar para o movimento político”
94
.
Assim, desde o seu primeiro documento, o MLN definia-se pela guerra de
guerrilhas como estratégia prioritária deixando o trabalho político em segundo plano. As
concepções de Debray, influenciaram prematuramente a incipiente organização e foi
implantando de forma gradativa uma concepção militarista que levou ao MLN a um
rotundo fracasso em 1972. Desde 1967, foi notória a maior influência de Debray no
MLN que a da própria Revolução Cubana e da experiência dela extraída.
93
MLN. Documento nº 1. Montevideo: mimeo, dezembro de 1967, p. 3.
94
Idem.
88
Em maio de 1968, o MLN emitiu um comunicado que reafirmou os níveis e
limites nos quais se propunha desenvolver seu acionar revolucionário. Esse
comunicado ficou conhecido como Documento nº 3 e se caracterizou como explicitação
política e teórica de qual era a concepção estratégica foquista, tal como a desenvolvia o
MLN. Na sua essência, o documento afirma:
Nossa estratégia implica a instalação da luta armada sistemática; apenas
estamos preparados para fazê-la realidade e existem condições para isso. [...]
Tal estratégia consiste esquematicamente no seguinte: um grupo armado para
manter a luta prolongada, quer dizer, preparado como para não ser destruído
de imediato ao iniciar as ações. Ante o fato consumado, o resto da esquerda se
vê ante estas alternativas: ou somar-se à luta armada ou permanecer
indiferente à mesma, ou servir de “soldado tranqüilo” da contra-revolução. [...]
Não devemos nos organizar gremial ou politicamente em forma pública, mesmo
que fazer política ou gremialismo hoje seja lícito e não sancionável penalmente.
No futuro não vai ser assim, e de não levá-lo em consideração estaremos
facilitando o trabalho de nossos inimigos
95
.
No regulamento da organização estabelecia-se, no seu artigo 1º., que “o MLN
aspira ser a vanguarda organizada das classes exploradas em sua luta contra o regime;
é a união voluntária e combativa de quem é consciente de seu dever histórico”. Na
continuidade, afirma: “Portanto, o MLN trata de guiar o povo uruguaio pelo verdadeiro
caminho de sua libertação definitiva, que se concretizará na formação de uma
sociedade socialista”
96
.
O objetivo oficial do MLN era claro: a revolução mediante a luta armada como
único instrumento possível. Fica explicitado o desprezo às alternativas de caráter
eleitoral. Em janeiro de 1968, como resultado da Segunda Convenção Nacional, o MLN
procurou realizar alguns ajustes e fez a autocrítica de alguns aspectos de sua linha
militar. O Documento nº 2 recolheu esses lineamentos, analisando o que denominava
de el problema de la acción. Estabelecia a existência de duas deformações
fundamentais, tanto na base como nos organismos de direção: uma delas foi definida
como “militarismo” e consistia em colocar algumas questões técnico-militares por cima
de tudo, de forma desmesurada, esquecendo, por completo, o objetivo especificamente
político da luta – a preocupação de preservação desmesurada do aparelho, como se
95
MLN. Documento nº 3. Montevideo: mimeo, maio de 1968, p. 2-5.
96
MLN. Regulamento do MLN – Exemplar sem data. In: LESSA, Alfonso. 2003, op. cit., p. 99.
89
fosse um fim em si mesmo. A outra deformação assinalada se definia como
izquierdismo e consistia em acreditar que tudo radica em espetaculares ações
gloriosas; em reagir com tremendismo frente a acontecimentos políticos.
Em dezembro de 1970, o MLN trouxe ao conhecimento público um documento
de adesão a Frente Ampla, no qual manifesta sua descrença no processo eleitoral que
se avizinhava e a crença na total inviabilidade de se chegar a um governo
revolucionário através do pleito eleitoral. Apesar disso, os tupamaros manifestaram seu
apoio à frente em formação, criticando, porém, o motivo pelo qual a esquerda se
unificava: “[...] o MLN entende como positivo que se forme uma união de forças
populares tão importantes, mas lamenta que essa união tenha acontecido precisamente
por motivo das eleições, e não anteriormente”. Realizaram uma crítica no sentido da
desunião tradicional da esquerda, a perda de espaço e seu conseqüente
enfraquecimento para enfrentar com efetividade o autoritarismo dominante da época.
“Hoje, muitas forças da esquerda e progressistas parecem haver superado estas
diferenças, ou algumas delas, e se tem unido a esta frente que, mesmo que não
constitua uma integração total das forças populares
97
, é já uma das preocupações da
reação”
98
.
O documento finaliza com um apelo ao patriotismo e reivindicando a história
nacional, onde se pode identificar a concepção nacionalista artiguista do MLN. “Os
problemas do país serão solucionados quando a terra estiver a serviço da sociedade e
não de um pequeno grupo de privilegiados; quando as riquezas que produza estiverem
a serviço do povo, quando esteja a serviço dos mais infelizes, como o quis Artigas há
150 anos. [...] Quando sejam rompidos os laços indignos que nos unem à exploração
estrangeira e desenvolvamos uma política exterior patriótica e verdadeiramente
independente”
99
. Acreditavam que a Frente poderia constituir uma corrente popular
capaz de mobilizar importantes setores trabalhadores e estudantis por um programa
97
Na formação da Frente Ampla não participaram a FAU, o MRO e o PRT. Com diferentes argumentos,
essas organizações ficaram excluídas do processo de formação da Frente pelo entendimento de que o
processo eleitoral não conduzia à revolução. Essa discussão foi também presente internamente no MLN,
onde predominou a adesão à Frente como posição oficial.
98
MLN. MLN – Tupamaros y Frente Amplio. Montevideo: Ed. MLN: Propaganda Central. 1989, p. 10-
11.
99
Idem.
90
nacional e popular. Concluíram o documento reafirmando a validade da luta armada: “A
luta armada e clandestina dos Tupamaros não se detêm”.
Ainda que contradizendo formulações anteriores, o movimento considerou
necessário participar de outras formas de ação, e de fato as levou a cabo, mas sempre
atreladas e ao serviço da luta armada. Assim ocorreu nas organizações sociais, na
mobilização popular e se constatou, desde 1971, com a fundação da Frente Ampla. O
Movimiento 26 de Marzo foi o braço legal para sua participação. Apesar de os
Tupamaros não haverem apresentado um candidato próprio nas eleições de 1971, a
fração “Pátria Grande”, na Frente Ampla, liderada pelo ex-dirigente branco Enrique Erro
– o frenteamplista mais identificado com o MLN –, foi a terceira mais votada da Frente
Ampla. Chegou ao Senado da República com 70.944 votos
100
.
Como vanguarda revolucionária, o MLN colocava-se à frente de dois desafios
históricos estipulados por sua estratégia de curto e médio prazo: 1) como a organização
e seu método passariam a ganhar as grandes massas. 2) Como a organização e seu
método passariam a uma etapa superior de guerra, a uma etapa na qual se destruísse
o aparelho armado que sustentava a oligarquia. Consideravam, ainda, os
desempregados que habitavam as favelas que formavam um colar ao redor de
Montevidéu – e ainda formam – como o setor “potencialmente mais revolucionário” e
propunham a formação de uma “Frente de Libertação Nacional”, com conteúdo comum
antiimperialista e antioligárquico.
Como salienta Lessa (2003), a história imediata encarregou-se de demonstrar
dois fenômenos: 1) a importância que efetivamente alcançaram os aspectos levantados
pelos Tupamaros para seu próprio desenvolvimento; e 2) o mais completo fracasso
nesses dois objetivos. Não chegaram ao triunfo político que implicava ganhar as
grandes massas, nem obtiveram o êxito militar que perseguiam. Seguramente, uma vez
mais, a sobrevalorização do obtido até esse momento e, principalmente, um erro de
análise da realidade constituíram esse fracasso.
Os documentos posteriores não fizeram mais que reafirmar a linha estratégica da
luta armada, ainda que com algumas variantes determinadas, em sua maioria, pela
conjuntura – em alguns casos com conteúdos de autocrítica. Ante a iminência da
100
LESSA, Alfonso. 2003. op. cit., p.116.
91
derrota militar (a partir de 1972) e fundamentalmente depois, quando se produziu a
diáspora e o exílio, começou-se a perceber importantes modificações no pensamento
tupamaro. O fracasso militar do MLN pareceu uma prova concreta de que a guerrilha
exclusivamente urbana não poderia triunfar. E muito menos em países de tradição
democrática e com índices importantes de inserção social. Tanto Guevara como Debray
tinham advertido para a inviabilidade da luta armada no Uruguai. De fato, os únicos
grupos armados triunfantes na América Latina do século XX foram rurais e tiveram
como cenários países com regimes ditatoriais, exclusão política e marcada exclusão
social, casos de Cuba e da Nicarágua.
Em março de 1972, o MLN celebrou uma convenção das colunas
101
do interior e de
Montevidéu. Depois de um longo enfrentamento ideológico entre as duas linhas, decidiu
proceder à substituição da equipe dirigente por uma nova. A decisão por coesão
ideológica e a diversidade da origem dos militantes que se reuniram para fundar o MLN
constituíam uma contradição latente, mas que parecia superada. Debray afirma que
sem subestimar o êxito do movimento na superação de sua disparidade, num primeiro
momento, e a harmonização de seus componentes, torna-se obrigatório reconhecer
que a solução encontrada empiricamente a esse problema foi a tal ponto “prática”, ou
seja, desprovida de base ideológica clara, que em grande parte voltou-se “teórica”.
A unificação já havia se dado na primeira Convenção, em janeiro de 1966.
Posteriormente, em março de 1968, a II Convenção aprovou formalmente o princípio de
centralismo democrático como norma de organização, assim como os estatutos, com
muita ênfase sobre o exercício do centralismo e a disciplina, necessários para qualquer
organização com as características relativas ao exercício de uma democracia interna
efetiva, como forma de garantir um bom estado de discussão coletiva e de circulação
das idéias no seu interior. Essas posições não puderam evitar a aparição, inevitável e
101
O MLN estava estruturado internamente a partir de células (grupos de quatro a seis integrantes) que,
por sua vez, estruturavam-se em colunas (grupos integrados por quatro a seis células). As colunas
tinham funções específicas dentro da organização. Elas dividiam-se em colunas: políticas, de logística,
de ação direta, de intra-estrutura, entre outras. No total, estima-se que o número de colunas foi de
aproximadamente 30, no seu momento de maior desenvolvimento (1971-1972). A convenção das
colunas implicava uma instância de decisão democrática dentro da organização; estavam representadas
pelos coordenadores de cada coluna.
92
positiva em si, de orientações e tendências diferentes. Isso alimentaria, posteriormente,
uma incipiente fissura.
Essa fissura não ocorria entre duas tendências, e sim entre dois estilos de
trabalho: a primeira, popular, mais democrática, com o cuidado de reforçar seus
vínculos com as massas. A outra, mais vanguardista, mais jovem também e de origem
universitária, centralizadora ao extremo, tendia a dar prioridade às operações de
comando e às concepções militares, e subestimava o trabalho político de organização
nas frentes de massas e em seu próprio seio. Não se tratava, entretanto, de grupos
claramente delimitados, nem de frações constituídas. Enquanto a velha direção esteve
nos postos de comando, a primeira orientação triunfou sempre, sem discussões, pois a
figura de Sendic como líder inato colocava fora de discussões – de forma natural – o
exercício do poder. Como Max Weber diria, a submissão natural ante uma verdadeira
autoridade “carismática”.
Outra situação que deve ser considerada é a de que nessa época quase toda a
direção histórica (os velhos dirigentes) se encontrava encarcerada no presídio de Punta
Carretas. Isso fez com que fosse assumida a tendência militarista, conhecida pelo nome
de “samurai”. A falta de preparação e de experiência, o desconhecimento do
funcionamento da organização e uma marcada incapacidade de análise política
tomaram conta então do MLN
102
. Sua homogeneidade interna é recente e faz com que
apareça, nesse momento, a “micro-fração”, facilitada pela ausência de uma direção
firme e prestigiada
103
.
Nesse contexto, a tarefa do momento era manter na ativa a organização – e os
novos responsáveis a cumpriram a contento. Procurando, antes de tudo, a eficiência
militar, realizaram uma impressionante série de operações cujo impacto bastou para
desmentir, na opinião pública, a idéia – incansavelmente propagada pela imprensa
oficial – de que depois dos episódios que levaram à detenção dos dirigentes históricos
o MLN estava desmantelado. As lideranças históricas, por sua vez, não eram
informadas pela nova direção, tanto que após a fuga do presídio de Punta Carretas,
102
Parafraseando Debray: “A realidade parece confirmar pela negativa a relação estabelecida entre a
flexibilidade da linha política e a solidez do instrumento militar – que não era tão sólido como parecia, por
falta de uma verdadeira consolidação ideológica”. DEBRAY, Régis. Las Pruebas del Fuego: la crítica
de las armas II. México: Siglo XXI. 1974, p. 125.
103
DEBRAY, Régis. op. cit., 1974, p. 148-162.
93
conhecida com o nome de El Abuso, em setembro de 1972, os dirigentes evadidos não
reconheceram a organização que eles criaram. Como conseqüência dessa situação, os
dirigentes históricos negaram-se a assumir novamente a direção do Comitê Executivo.
“O militarismo gera perdas das qualidades militares e da atitude para sustentar
um encontro frontal com o inimigo tanto mais pernicioso, porque tampouco se revela
senão no último momento, em período de crise. Uma militarização excessiva produz um
instrumento militar embotado e debilitado”
104
. Dessa forma Debray definiu a situação
dos tupamaros em 1972. Certamente, a organização tinha mudado de forma
significativa: existia um centralismo insuficientemente democrático, no qual as bases já
não participavam na tomada de decisões e onde os órgãos dirigentes deixavam de
submeter-se ao controle do conjunto dos militantes; surgiu um autoritarismo vertical,
violentando as normas e estatutos da organização. Essas diferenças levaram a uma
série de discussões entre as tendências enfrentadas, o que contribuiu para aprofundar
a brecha entre ambas.
Em março de 1972, as críticas que se faziam ao Comitê Executivo eram de haver
dirigido a organização numa linha “esquerdista”, como forma de representar o desvio
ideológico em favor do militarismo. A esse qualificativo se acrescentavam algumas
características “direitistas”, uma sorte de combinações de contrários presentes nos
“esquerdismos”. Aquele extremo desvio esquerdista (colocar-se tão à frente das
massas que se deixa de lado a realidade das mesmas) era a tradução política de um
desvio ideológico de direita: as tendências nacionalistas haviam deslocado no interior
do Movimento as posições do marxismo-leninismo. Por isso, o MLN caracterizou aquela
etapa como “pequeno burguesa”.
Em 14 de abril de 1972 produziu-se uma seqüência de ações violentas por parte
do MLN, através de múltiplos ataques contra integrantes de um grupo para-militar ligado
aos órgãos da repressão. As Forças Armadas responderam, no mesmo dia, com uma
série de procedimentos que abalaram as estruturas do MLN. A partir desse momento, a
organização pareceu perder capacidade de resposta e, num prazo de cinco meses, foi
praticamente desmantelada.
104
DEBRAY, Régis. op. cit., 1974, p. 164.
94
Essa derrota em tão breve lapso de tempo de uma organização que parecia
estar, em abril de 1972, na plenitude de seu poderio causou uma explicável surpresa.
Essa força era somente aparente. No início de 1972, o MLN atravessou a maior crise
interna de sua história. Como afirmou Bonino (1988), a crise foi resultante do confronto
entre duas direções “paralelas”: a direção “histórica” havia formado o MLN, enquanto
que a “nova” direção havia sido formada pelo MLN
105
.
Criada com uma dupla função político-militar, a organização em si mesma se
especializou como aparelho militar, deixando a função política nas mãos do Comitê
Executivo, que avaliava, pensava e agia por ela. No período de 1972, esse aparelho
militar foi adaptando os indivíduos a suas próprias necessidades estruturais; assim,
acabou formando soldados no lugar de políticos. As ações de 14 de abril e seus
resultados podem se explicar a partir dessa concepção “militarista” da “nova” direção.
Segundo as críticas realizadas por Cores (1997), apesar dos erros – claramente
explicitados na sua própria documentação – parece que seu acionar foi visto, pelo
menos durante os primeiros anos, com simpatia por setores decepcionados com a
situação de crescente deterioração econômica e social e com a falta de respostas por
parte do sistema político. Sua emergência alentou esperanças, avivou emoções e
revelou faces da realidade do país, até esse momento desconhecidas
106
.
Por outro lado, as críticas ao modelo organizacional desenvolvido pelo MLN,
focaram-se quase que com exclusividade – pelo menos dentro da esquerda combativa
– na Federação Anarquista Uruguaia – Fau. Esta possuía um aparelho armado (a
OPR33), que vinha desenvolvendo atividades similares com as do MLN desde a
década de 1960 – fundamentalmente após a sua saída do Coordinador –, a partir de
uma diferenciada concepção do que era uma organização armada. Essa concepção
possuía fortes bases na própria história das organizações anarquistas, não somente no
país, senão que também no Rio de la Plata. Torna-se necessário determos um
momento na origem dessa concepção.
A FAU se desenvolveu sob a influência de variados aspectos, especialmente o
da história libertária do Rio de la Plata e da Espanha. Das lutas operárias de origem
105
BONINO, Costa Luis. Crisis de los Partidos Tradicionales y Movimiento Revolucionário en el
Uruguay. Montevideo: Banda Oriental, 1988, p. 78.
106
CORES, Hugo. 1997. op. cit., p, 55.
95
anarco-sindicalista de finais do século XIX, do anarquismo expropriador e do
reivindicador. Sua influência teórica doutrinária estava pautada por Bakunin e
Malatesta. A história do anarquismo no Rio de la Plata remonta a 1860, com notória
influência das correntes migratórias que chegaram neste ano particularmente da Itália,
França e Espanha. Essa particularidade foi marcante para a definição de seu caráter
internacionalista – com o qual nascem e se mantêm no tempo as correntes socialistas e
anarquistas.
Um aspecto político-ideológico que estava presente em vários enfoques dos
militantes espanhóis que atuaram na região foi o referente à “Aliança Bakuniniana”.
Entre 1868 e 1869 foi fundada, na Espanha, a “Aliança da Democracia Socialista”. Seus
postulados estabeleceram dois níveis de luta: um político (de atuação secreta) e outro
sindical, com finalidade revolucionária, expressa posteriormente na Internacional de
Chaux-Aux-Fonds. O programa da Aliança estabelecia, entre outros objetivos: a
abolição definitiva e completa das classes e a igualdade econômica e social dos
indivíduos de ambos os sexos. A Aliança, constituída por membros da Associação
Internacional de Trabalhadores, teria por objetivo a propaganda e o desenvolvimento
dos princípios de seu programa e a utilização de todos os meios para alcançar a
emancipação.
Os níveis de luta adotados pela Aliança se misturaram entre si e cumpriram um
papel fundamental na história do movimento operário argentino e uruguaio. Acrescenta-
se a concepção malatestiana da atividade especificamente política, a qual chamou
inicialmente de partido. Um Malatesta que, pela importância da imigração italiana e pela
influência direta de suas propostas e tarefas organizativas sindicais, especialmente dos
sindicatos de resistência, teve particular influência na história sindical uruguaia.
Também existia, como assinala Mechoso (2003), uma militância que acreditava no
sindicato como suficiente para a transformação social – era a concepção propriamente
anarco-sindicalista
107
.
Em agosto de 1905 foi criada a Federação Obreira Regional Uruguaia – Foru,
com orientação ideológica predominantemente anarquista. Uma série de reivindicações
107
MECHOSO, Juan Carlos. Acción Directa Anarquista: Una Historia de FAU. Montevideo: Recortes
de FAU, 2003, p. 12.
96
transformou-se em motivo de luta desde sua fundação: oito horas de trabalho,
supressão do trabalho noturno (para os padeiros), abolição do trabalho por jornadas
abusivas, responsabilidade nos acidentes de trabalho, descanso semanal, higiene do
local de trabalho, proibição do trabalho de menores, entre outras. Essas reivindicações
movimentaram sobremodo o cenário sindical nas primeiras duas décadas do século XX.
Uma outra característica que marcou o movimento anarquista nucleado na Foru foi a
sua posição internacionalista. Também promoveu e participou de atividades em favor
da construção de uma instância de coordenação da ação operária revolucionária na
procura de um socialismo livre.
De outra parte, a Revolução Russa de 1917 provocou um impacto extremamente
significativo na Federação Operária Regional Uruguaia, com o despertar de profundas
simpatias e a percepção da possível derrota do mundo capitalista como o grande
momento do proletariado. Mas, rapidamente, os anarquistas observaram que aquela
orientação e seus métodos não levavam ao “paraíso sonhado”. Como conseqüência,
originaram-se divisões e, finalmente, se constituiu outro agrupamento sindical, em 1923,
a União Sindical Uruguaia – USU. Esse novo agrupamento estabeleceu, na sua Carta
Fundamental, uma orientação de cunho anarco-sindicalista; não aceitando a proposta
comunista de vincular-se organicamente com a Internacional Comunista. De qualquer
forma, essa divisão acarretou uma fragilização do movimento operário.
Diminuído o potencial da Foru e da USU, o anarquismo irrompeu com outra de
suas expressões: a de grupos de ação direta armada. Iniciaram-se, em 1927, uma série
de ações geralmente ligadas a represálias por questões sindicais e expropriações. A
participação de anarquistas argentinos, como Miguel Arcángel Rosigna, foi permanente
no período até os anos de 1932. Um dos fatos que marcaram profundamente a
memória do movimento anarquista foi a execução, por um grupo anarquista, de Luis
Pardeiro, delegado de polícia e conhecido torturador uruguaio que foi ajusticiado em
1932. Essa tendência dentro do movimento anarquista – a da utilização da violência –
tomou outros rumos no período do Uruguai sesentista, quando a utilização desta prática
97
ficou circunscrita a uma instância orgânica, a OPR33, tendo-se abandonado as práticas
do passado, principalmente os atentados individuais com bombas
108
.
Na metade da década de 1950 parece ter havido um certo ressurgimento das
idéias anarquistas, particularmente no âmbito cultural. Surgiram publicações novas,
como Construir, e se ampliaram outras que vinham sendo editadas desde 1938, caso
de Voluntad. Formaram-se também núcleos militantes em alguns centros estudantis.
Assim, como culminação de um longo processo de relacionamentos e intercâmbios
entre distintos grupos de afinidade, em maio de 1956 realizou-se o “Pleno Nacional
Anarquista” e em outubro do mesmo ano o Congreso Constituyente de la Federación
Anarquista Uruguaya.
Em ambas as instâncias, os libertários uruguaios levantaram múltiplos acordos,
de certa forma bastante inovadores em relação ao pensamento anarquista ortodoxo
predominante na Europa e nos EUA, que continuavam sendo a referência doutrinária
fundamental. Esses acordos revelavam a existência de distintas inflexões e projetos
dentro de uma visão bastante geral da luta com o chamado estatal-capitalismo. Nesse
sentido, tinha vigência o caráter federativo da organização.
Na Declaração de Princípios da FAU (1956)
109
pode-se observar claramente a
sua linha de pensamento sobre a problemática que o país atravessava. A solução dos
graves problemas sociais que afetavam a sociedade só seria possível mediante uma
profunda transformação de caráter individual e social, ou seja, no plano ético e no
econômico-social. Essas transformações teriam como objetivo a socialização dos meios
de produção e distribuição, a organização e administração com base nos princípios de
108
Arma predileta do anarquismo tradicional e dos nihilistas russos, a sua inutilidade e, ainda, a sua
contra-produção foram indiscutidas quando o marxismo chegou a dominar incontestavelmente na
teorização de quase todas as tendências revolucionárias. Em nome de um “estruturalismo” sumário,
rejeitava-se qualquer operação que não tocasse as bases mesmas do regime, visto que o eliminado
sempre tinha substituto e o fato encolerizava a repressão. (AZÚA, Carlos Real de. op. cit., 1988, p. 102).
109
Na Declaração de Princípios, a FAU fazia as seguintes considerações: a) que a experiência confirma
as críticas realizadas pelo anarquismo à organização societária atual, com base no capitalismo de
Estado; b) que por seus próprios vícios como sistema de convivência social contrário ao desenvolvimento
livre e integral da personalidade humana, e frente às reivindicações populares de liberdade, justiça e
bem-estar, o capitalismo já desembocou em crise, em maior ou menor grau, em todos os países; c) que
essa crise tem sido admitida por muitos representantes da burguesia, que procura saída e estabilização
de seus privilégios na hipertrofia do Estado, eixo de uma nova economia dirigida por monopolizadores do
poder e receptor natural de todas as tendências coercitivas contrárias às aspirações libertárias e
justiceiras do homem; e d) que a experiência, além de tudo, nos diz do fracasso nas tentativas de superar
os males do capitalismo pela via do poder. FAU. Declaração de Princípios 1956. In: Revista Lucha
Libertária. Montevideo: FAU, 2000, p. 12-24.
98
ação direta e federativa, e a vigência integral da liberdade, o que possibilitaria um
desenvolvimento pleno da personalidade humana. A utilização do conceito de
transformação implica em revolução social, e esta só pode ser cumprida no conjunto
das massas trabalhadoras. O internacionalismo é mencionado como uma concepção
revolucionária que deveria criar os elementos da nova sociedade, prescindindo de
fronteiras políticas e tendendo a formar agrupações regionais sobre a base dos vínculos
econômicos, lingüísticos e culturais
110
.
Como todas as organizações de esquerda, a FAU foi atravessada pelos debates
surgidos em toda a América Latina a partir do triunfo da Revolução Cubana e das
primeiras realizações do governo encabeçado por Fidel Castro, Ernesto “Che” Guevara
e Camilo Cienfuegos. Gerardo Gatti publicou, num documento editado por motivo do
décimo aniversário da FAU e intitulado Izquierda, Reformismo y Acción Directa, um
manifesto no qual toma partido pela Revolução Cubana e também pela “heróica
Revolução Chinesa”. O discurso é claramente antiimperialista e terceiro-mundista.
Critica desde posições de esquerda até o reformismo impulsionado pela URSS, modelo
que rechaça; pronuncia-se contra o eleitoralismo e o parlamentarismo e resgata a ação
direta do povo como concepção da ação revolucionária, cujo objetivo é o socialismo e a
liberdade.
Desde uma posição de defesa da luta armada, nos termos em que nesses
tempos era debatida na América Latina, Gatti expressava que a FAU:
Está organizada como partido” e acrescenta: “Concebemos a ação da FAU
como um fator de dinamização e orientação da ação popular. Atuando dentro
das massas, como parte delas. [...] Atuando como um elemento de propulsão e
orientação popular, não como colosso do poder, não como uma minoria
disposta a se pendurar nas costas do povo e através dos mecanismos do poder
estatal. Na perspectiva das lutas de transformação, a FAU não reclama nem
deseja para si nenhum privilégio de exclusividade
111
.
A FAU foi impulsora e animadora de uma linha combativa de esquerda,
conhecida pelo nome de “Tendência”. Esta terminou consolidando-se numa expressão
política pública da FAU, a Resistencia Obrera Estudiantil – ROE, que teve, nesses
anos, uma influência substancial no movimento operário e estudantil. A Resistência,
110
Idem.
111
GATTI, Gerardo. Izquierda Reformismo y Acción Directa. Montevideo: FAU, mimeo, 1968, p. 2.
99
composta por trabalhadores e estudantes, convocava, fundamentalmente, várias
correntes da esquerda combativa. A ROE desenvolveu um papel importante no
transcurso de vários conflitos da época, nucleando e organizando os setores mais
combativos do movimento sindical e estudantil, e protagonizou a radicalização de vários
confrontos com setores patronais e do governo. Entre seus principais dirigentes
encontravam-se os líderes sindicais Leon Duarte e Gerardo Gatti, ambos desaparecidos
na Argentina anos mais tarde, numa ação “globalizada” da repressão dos governos rio-
platenses.
100
5. AS DISCUSSÕES SOBRE A TEORIA DO FOCO
Ou os tupamaros se repõem e seguem avançando e o modelo guerrilheiro da
América Latina tem um futuro, ou bem não se repõem e se dá volta à página na
história política da América Latina contemporânea
112
.
Pode-se atribuir a paternidade da Teoria do Foco a Karl Kautsky, guia intelectual
da II Internacional e assessor de Lênin entre 1900 e 1914; tendo os argumentos do
“foco guerrilheiro” sido enunciados pela primeira vez em Viena, em 1901, no projeto do
Programa do Partido Social-Democrata Austríaco. As implicações desses postulados
teóricos foram desenvolvidas numa teoria da organização revolucionária – teoria
inexistente em Marx e Engels – pelo melhor discípulo e intérprete russo de Kautsky,
Vladimir Ilich Lênin, em 1902. Debray argumenta que não há uma só frase do Que
Fazer, de Lênin, que não possa traduzir-se diretamente em linguagem foquista: “[...]
pode-se substituir organização de revolucionários profissionais, por vanguarda político-
militar, sem destruir a coerência interna da argumentação leninista, visto que a
argumentação foquista e a de Lênin de 1902 possuem a mesma lógica e partem dos
mesmos pressupostos
113
.
O foco, tal como o descrevia Debray recolhendo as experiências guerrilheiras do
momento, constituía mais que um fato militar: possibilitava as bases imprescindíveis
para qualquer guerrilha com intenções de sobreviver e se desenvolver. Constituía, por
cima de outras considerações, uma contribuição de medular importância para a teoria
revolucionária – visto que se a revolução deixava de construir a culminação de um
longo processo preparatório, necessitava-se de outro elemento que a promovesse. Um
novo mediador que substituísse a lenta maturação do modo de produção em que a
revolução se geria. Essa substituição era o foco; mais que uma diferente estratégia ou
um aporte tático, um produtor de revoluções
114
.
112
DEBRAY, Régis. Las Pruebas del Fuego. México: Siglo XXI, 1974, p. 117.
113
DEBRAY, Régis. La Critica de las Armas II. México: Siglo XXI, 1975, p. 147-148.
114
Para o “Che”, a virtude do foco radicava em haver ganhado para si a massa da população. Por isso –
acrescenta –, é necessário acudir à guerra de guerrilhas quando se tem junto a si um núcleo majoritário e
101
O foco, dizia Debray em “O Castrismo: a longa marcha da América Latina”
(1964), não tende a tomar o poder; é um incentivador, conta com a colocação das
massas em condições de derrotar por si mesmas o poder estabelecido. Também não é
blanquismo, se adiantava, já que procurava unir as massas previamente à conquista do
poder, fazendo disso a condição sine qua non desse objetivo. Primeiro, com poucos
combatentes, na selva e em lugares inaccessíveis; logo, tomando as terras baixas; por
último, conquistando as cidades, começando pelas menores e próximas
115
. O modelo
foquista dos anos sessenta apresentava o processo revolucionário como sendo
constituído por duas linhas de atividade desenvolvendo-se paralelamente, nas cidades
e nas montanhas, encontrando-se ambas mais adiante, na insurreição generalizada.
“Toda vanguarda revolucionária que se respeita se considera como um
mandatário em suspenso, um destacamento do povo nos postos avançados da luta
social que só atua por delegação”
116
. Assim explicava Debray a vanguarda
revolucionária. Da mesma forma que a guerra popular não nasce espontaneamente,
sem a ação consciente e prolongada de um partido, as guerrilhas rurais e urbanas
conduzidas por organizações político-militares não se terão considerado a si mesmas
como formas não desenvolvidas da guerra popular. “Uma vanguarda não se atira à luta
armada sem fazer a aposta, sem ter a vontade de desencadear, a médio ou a longo
prazo, uma guerra popular”
117
.
A Federação Anarquista Uruguaia – FAU foi quem realizou a crítica mais
contundente à Teoria do Foco e, portanto, quem questionou, desde uma posição de
esquerda combativa, o acionar do MLN. No documento da FAU intitulado “Copei”
118
, de
1972, são levantados os questionamentos que aprofundaram as diferenças ideológicas
dessas duas organizações e marcaram o momento-chave quando se questionou, de
forma profunda, a Teoria do Foco na sua versão uruguaia, protagonizada pelo MLN.
para se defender das opressões de um núcleo infinitamente menor de armas. O guerrilheiro contaria,
então, com o apoio da população do lugar. Esta seria uma condição sine qua non.
115
DEBRAY, Régis. El castrismo: la larga marcha de América Latina. In: Cuadernos de Marcha. N
o
. 3,
Montevideo: 1967, p. 53-54.
116
DEBRAY, Régis. op. cit., 1975, p. 90.
117
Idem.
118
“Copei” foi um nome fantasia com o qual a FAU intitulou o documento que analisava a teoria do foco.
O nome do documento foi copiado de um documento da Democracia Cristã Venezuelana, que circulava
em 1972 na imprensa internacional, como forma de disfarçar o teor do documento e da organização que
o emitia.
102
O “Copei”, num primeiro momento, inicia uma análise sobre os acontecimentos
naquele contexto, 1968-1972, quando a ofensiva da repressão desferiu duros golpes no
MLN. Num segundo momento, analisa as influências da Revolução Cubana,
considerando que o triunfo da Revolução teve, na América Latina, um efeito
estimulante, contribuindo para fazer avançar o processo de luta em todo o continente.
Afirmou a viabilidade da luta armada, evidenciou a existência de condições para iniciá-
la e considerou, ainda, que em certas condições precisas e concretas poder-se-ia obter
a vitória num tempo relativamente curto. Referenciava-se, assim, no Uruguai, a uma
concepção de luta armada que se apresentou com base na experiência cubana. Essa
concepção era conhecida como “Teoria do Foco” ou “foquismo”, sistematizada no seu
momento por Regis Debray, especialmente em sua obra Revolución en la Revolución,
que pretendeu ser uma conceituação da experiência cubana.
A Teoria do Foco sistematizou alguns critérios estratégico-táticos bastante
importantes, sobretudo os ensinamentos que, segundo seus seguidores, se poderia
tirar da guerra de guerrilhas em Cuba. Esses critérios estratégicos se apresentariam
como generalizáveis, como aplicáveis na maioria dos países latino-americanos. A
influência da Teoria do Foco foi muito grande, motivando, a propósito de sua
formulação por Debray, polêmicas intensas. No Uruguai também se polemizou a
respeito, também se exerceu fortemente a influência dessas concepções, que foram as
que basicamente guiaram as práticas do MLN.
Ao longo de seus anos de atuação, e mesmo desde seu começo, o MLN
introduziu variáveis, corrigiu e adaptou os conceitos foquistas. A FAU manifestou, no
“Copei”, a esse respeito: “Nossa organização discrepou com o foquismo desde seu
surgimento como concepção. Entendemos que os fracassos que hoje experimenta o
MLN, e com ele a Revolução Uruguaia, mostram que as debilidades do foquismo não
foram superadas, oportunamente, pelo MLN. Que seus esforços apontaram a uma
adaptação do foquismo, e não a romper com ele”
119
. Dessa forma, a FAU critica a
Teoria do Foco e realiza uma avaliação particular sobre as influências da Revolução
Cubana. Rejeita o foco fundamentalmente por dois motivos: 1) sua característica como
119
FAU. Copei. Montevideo: Documentos de FAU, mimeo, 1971, p. 7.
103
vanguarda distante das massas; e 2) a inaplicabilidade de receitas prontas (funcionou
em Cuba, deveria funcionar em toda a América Latina)
120
.
Em relação à essência do foquismo, que teve sua origem a partir da Revolução
Cubana com base nos textos produzidos por Guevara e, posteriormente, por Debray, os
militantes uruguaios (MLN e FAU, fundamentalmente) assinalavam algumas
características próprias do processo cubano que não poderiam ser reproduzidas no
Uruguai. A instalação de um foco guerrilheiro na serra, como no caso cubano, com
apoio da população camponesa, era impensável no Uruguai. Não existiam serras nem
selva no país, e também não existia uma população originariamente camponesa, e sim
uma classe de trabalhadores rurais assalariados, diretamente vinculados ao latifúndio e
aos partidos políticos tradicionais, com uma severa ligação clientelística com o
latifundiário de turno.
É necessário observar que um dos pontos-chave da Revolução Cubana foi a
ampla participação de setores camponeses em todo o processo revolucionário. Desde o
momento em que Fidel Castro e seus companheiros desembarcaram do Granma até a
entrada triunfal em Havana, o apoio e a direta participação camponesa na guerrilha foi
um fator determinante. A constituição do Exército Revolucionário foi essencialmente
camponesa.
Conforme Mao Jr. (2001), “o movimento 26 de julho conseguiu criar, entre os
camponeses da Sierra Maestra, uma rede clandestina, cujo objetivo principal era apoiar
os expedicionários quando eles desembarcassem”
121
. Essa forma de organização e
estruturação do exército revolucionário foi possível pelas históricas particularidades de
Cuba, o que contou com antecedentes de selvagem exploração latifundiária que
remontam ao processo de colonização.
Outro ponto de discussão em torno do foquismo cubano foi a presença de uma
ditadura como a de Fulgêncio Batista. Apesar de o Uruguai viver um período de
crescente autoritarismo (especificamente desde 1968), o país “oficialmente” se
120
A linha estratégico-tática do MLN não foi um traslado mecânico da linha foquista original. Essas
adaptações constituem o original, o próprio, o específico da experiência de guerrilha urbana (as unidades
táticas de combate) que o MLN protagonizou no Uruguai. Mesmo assim, apesar do esforço criador
aplicado à adequação do foquismo às condições locais, esse esforço não chegou a alterar os
pressupostos básicos foquistas que conduziram a prática do MLN.
121
MAO Jr., Rodrigues José. O Campesinato e a Revolução Cubana: da Sierra Maestra ao triunfo da
revolução (1956-1959). In: História Unisinos. São Leopoldo: Unisinos, vol. 5, n 3, 2001, p. 141.
104
caracterizava dentro das estruturas legais de uma democracia liberal. Os desmandos e
atropelos do presidente Jorge Pacheco Areco não podiam ser comparados com a
realidade cubana. Além do que devia se considerar que a metade da população do país
encontrava-se localizada na capital, Montevidéu, o que implicava que organizações
com propostas armadas tivessem seu foco de atuação no epicentro do país.
Dessa forma, além de necessariamente a luta ter que tomar as características
nitidamente urbanas, ela deveria conviver no centro político do país com as outras
organizações políticas e movimentos sociais, e não seria possível seu isolamento no
interior (pelo menos no início). Isso contradizia o princípio da Teoria do Foco e da
experiência cubana e confrontava, fundamentalmente, ao MLN com a advertência de
Guevara: “é fundamental precisar que nunca pode surgir por si mesma uma guerrilha
suburbana”
122
. Ditame este que Tupamaros ignorou.
A FAU expôs brevemente as características mais significativas do foquismo:
1. A necessidade de iniciar a luta armada rapidamente sempre que existissem
certas condições econômico-sociais que a façam viável. Partia-se da base de que
essas condições estavam dadas na quase totalidade dos países latino-americanos,
como conseqüência de seu subdesenvolvimento e atraso.
2. As condições políticas e ideológicas (chamadas “condições subjetivas”)
desenvolver-se-iam como conseqüência da atividade do foco armado. Por isso,
considerava-se como algo secundário, e seguramente não prioritário, a existência, ou
não, dos partidos políticos revolucionários. As simpatias suscitadas pela atividade
militar do foco deveriam ser enquadradas em organizações cuja função seria, quase
exclusivamente, contribuir ao esforço e à vitória militar. O desenvolvimento da luta
medir-se-ia em termos de crescimento da capacidade operativa; o êxito, em termos de
êxito militar; e a vitória, era a vitória militar na guerra. A expectativa e a confiança nessa
vitória, que surgia da ação armada, era o ganho e o requisito essencial no plano
ideológico.
3. A guerra era concebida em termos de guerra de guerrilhas, centrada no meio
rural, ao amparo de condições geográficas adequadas (montanhas e selva) que faziam
possível o ocultamento dos guerrilheiros e viável a tática de “golpear e desaparecer”,
122
GUEVARA, Ernesto “Che”. La Guerra de Guerrillas. Buenos Aires: Editorial 21, 2003, p. 34.
105
movimentando-se sempre, característica da guerrilha rural. Na sua formulação clássica,
o foquismo negava a viabilidade da guerrilha urbana. Por definição, “sempre em
presença do inimigo”, sempre ao alcance deste, o guerrilheiro urbano – dizia-se –
estava condenado a um rápido aniquilamento. A atividade armada urbana cumpriria
apenas uma função complementar da guerrilha rural, que seria quem protagonizaria o
enfrentamento e quem, através de muitas pequenas vitórias parciais, conquistaria a
vitória final, reduzindo à impotência o exército contrário.
4. A atividade militar do foco inauguraria um processo em que cada ação, cada
operação do foco, motivaria réplica generalizada como resposta da repressão. Na
medida em que a guerrilha fosse operando com maior intensidade, a repressão ir-se-ia
endurecendo, ir-se-ia generalizando. Na medida em que a repressão fosse afetando um
setor cada vez mais amplo da população, maiores seriam as simpatias que teria o foco
e maiores, portanto, suas possibilidades de desenvolvimento. Nessa dialética
ascendente de ação-repressão seriam geradas condições político-sociais cada vez
mais favoráveis à ação militar, até culminar numa situação ideal em que importantes
setores da população teriam a guerrilha como sua vanguarda armada, o que imporia a
queda do governo despótico, sustentado somente por uma minoria privilegiada e pelo
aparelho repressivo, vencido em seus esforços por suprimir militarmente a guerrilha
123
.
Desse modo, o triunfo do foquismo emanaria dos êxitos armados, contexto de
uma crescente opressão política. Esses gerariam a perspectiva de vitória capaz de
atrair as massas. A atividade da guerrilha, a resposta repressiva que inevitavelmente
produziria, fecharia para as massas todas as portas, todas as vias que não fossem a via
da luta armada, levando, necessariamente, o povo para a revolução. Assim, se
percorreria um curto caminho, simples e direto, a “politização das massas”, sem
nucleamento por trás da vanguarda armada guerrilheira. A partir dessa postura,
subestimava-se, obviamente, a importância de toda a atividade de massas (sindical, de
propaganda, política pública) não direcionada de forma direta a favorecer o esforço
bélico. Partia-se do pressuposto de que toda organização, toda atividade pública, seria
varrida rapidamente pela repressão, uma vez iniciada a dinâmica ação-repressão
acionada pelo foco guerrilheiro.
123
FAU. Copei. op. cit., 1971, p. 2-8.
106
O exame da realidade histórica mostrou, por sua vez, que o tempo e a intensa
experiência realizada nesses anos pelos movimentos revolucionários latino-americanos
deixaram em evidência alguns problemas do foquismo:
1. A simplicidade de sua concepção sobre as condições necessárias para iniciar
e, sobretudo, para levar adiante a luta armada. Este tema vasto e de importância
definitiva obviamente merece uma consideração particular. Envolve a análise das
relações entre as condições de nível econômico e da luta de classes e dos níveis
político e ideológico (condições subjetivas da mesma e a consideração do papel que
cabe à atividade armada na relação com eles). Implica a desvinculação com as
correntes reformistas e leva, necessariamente, a elucidar pontos de vista teóricos e a
crítica das raízes sociais e ideológicas da própria concepção foquista.
2. O desenvolvimento das condições políticas, e muito menos das condições
ideológicas, não se deriva da atitude da guerrilha nos termos mecânicos previstos pelo
foquismo. A atividade do foco armado não se tem evidenciado como um substituto
adequado, nem sequer como um substituto possível e viável da atividade de partido.
Esta insuficiência aparece na medida em que a luta se prolonga. As respostas políticas,
tanto das classes dominantes como das dominadas, não se ajustam às previsões
demasiado esquemáticas e lineares do foquismo. Torna-se evidente que sobre esta
concepção passou uma perspectiva demasiado simplista da estrutura e funcionamento
dos níveis político e ideológico, cuja importância se subestimou. Por outro lado, se
sobreestimou, notoriamente, a possibilidade de forçar, pelas armas, a mudança das
condições políticas e de mentalidade e as crenças das pessoas. O atraso no avanço
das chamadas condições subjetivas seguiu pesando, produzindo freqüentemente o
isolamento do foco e criando, assim, as condições de seu aniquilamento.
3. Rejeitar a possibilidade de uma guerrilha urbana e a exclusividade reclamada
para uma guerrilha rural. Existiu, na época, uma ampla prática de luta armada urbana.
É visível que esta última foi adquirindo na América Latina, e em nível mundial, um maior
desenvolvimento.
4. A mecânica acumulativa e ascendente da ação-repressão, que conduziria a
uma polarização favorável de forças, generalizando e isolando a repressão e
desenvolvendo e afirmando o foco, não acontece habitualmente. A repressão aprendeu
107
a manter sua seletividade; as classes dominantes podem e sabem adotar
contramedidas que travem e revertam estas dinâmicas. Em sua estratégia, a atividade
contra-revolucionária do reformismo
124
e o manejo dos velhos mitos ideológicos do
liberalismo burguês (as eleições, a legalidade, etc.) cumpriram um papel de uma
importância que o foquismo não previu
125
.
A crítica as posições reformistas foram agudas, considerava-se que o sistema
capitalista não seria destruído seguindo as regras que ele mesmo ditava para assegurar
sua continuidade. Essa continuidade era a que contribuía para manter a quem se atinha
só a fazer o que a legalidade burguesa permitia, ou seja, só o que a legalidade
manipulada pela burguesia permite que se faça. A FAU pontuava que: “[...] da luta
reformista só pode surgir um reformismo cada vez maior, um retrocesso cada vez maior
em relação à insurreição que propõe para um “momento oportuno”, indefinível”
126
. Por
isso, os setores reformistas não podiam nem queriam fazer nenhum lineamento
estratégico-militar.
A revolução será possível quando existirem condições”, dizem os partidos
comunistas e, com eles, todos os reformistas acrescentam “chegará o dia da
revolução”. “Mas os que antes desse dia violentem as leis, pegando as armas,
serão fatalmente vencidos”, afirmam. E, a partir disso, condenam sempre como
“aventureiros”, “aproveitadores” a quem não se resigna a transitar pela via
eleitoral, esperando esse hipotético dia em que a revolução desça
milagrosamente do céu idealista [...]
127
.
Enquanto a metodologia da luta armada, a FAU considerava que não estava em
discussão o tema em torno da adoção da guerrilha urbana ou a rural como formas
exclusivas ou excludentes. “Não radica nisso o centro da análise que se pode realizar
124
Em outro documento, a FAU observa as seguintes manifestações sobre o reformismo: o reformismo
coloca a insurreição no céu dos ideais inatingíveis. Nesse desencontro, nessa incoerência entre sua
prática política contra-revolucionária e seu verbalismo sobre a insurreição final, procuram fundamentar
sua eterna afirmação de que “faltam condições” cada vez que se tenta fazer avançar o processo de luta
política, aplicando meios não incluídos no seu limitado receituário. Este limita-se basicamente a duas
coisas: a) no nível econômico da luta de classes, ação reivindicativa salarial, desenvolvida com o maior
respeito pela “legalidade” burguesa e, portanto, pacífica; b) no nível político, parlamentarismo,
eleitoralismo, como forma de capitalizar politicamente os resultados da luta econômica. Confinando sua
prática a todos os níveis dentro do entorno cada vez mais estreito da legalidade burguesa, o reformismo
cria as condições para sua integração cada vez maior no sistema. FAU. Cartas de FAU. Montevideo:
mimeo, 1971, p. 9.
125
FAU. Copei. op. cit., 1971, p. 6-11.
126
Idem.
127
Idem, p. 8.
108
sobre a experiência da luta armada passada ou atual. O tema central é a análise da
concepção foquista que, em sua formulação primária e ortodoxa, sustentou a guerrilha
rural como forma prioritária e exclusiva, mas que logo se adaptou às formas de
guerrilha urbana”. Era essa concepção foquista em todas suas variantes que estava em
crise, e não a luta armada, que mantinha sua vigência. “A luta armada como a
concebemos (a FAU), como aspecto fundamental da prática política de um partido
clandestino que atua, também, com base numa estratégia global, no nível de massas”.
[...] É esta concepção correta da luta, o que resulta reafirmada pela experiência”
128
.
Na análise da FAU, o desenvolvimento da luta mudou consideravelmente,
naquelas décadas, a forma de como se considerava na América Latina. Significou a
superação, seguramente definitiva, de um amplo período no qual aquela luta concebia-
se segundo duas pautas: a) em nível econômico da luta de classes: atividade de
massas, sindical, de conteúdo reivindicatório, fundamentalmente salarial, processada
pelos métodos tradicionais (greves e atos), praticados dentro da legalidade burguesa;
b) em nível político da luta de classes: atividade de partidos legais com seus métodos
tradicionais (locais públicos, propaganda, difusão ideológica), apontada decisivamente
para obter resultados eleitorais.
Para o reformismo, a via para chegar ao poder (identificado falsamente pelo
governo) era o voto. A obtenção de representações parlamentares cada vez mais
numerosas significava etapas em direção a esse objetivo. A violência, nos níveis
econômicos, tanto como políticos da luta de classes – segundo os discursos reformistas
–, era negativa, visto que implicava em colocar obstáculos à via eleitoral. Concebia-se
esta como a única via possível para chegar ao “poder” e, sendo este o problema central
da prática política, tudo devia contribuir para manter aberta esta via. Dito de outro
modo: sendo a obtenção do poder o politicamente decisivo, chegando-se ao poder pela
via eleitoral e sendo as eleições algo “legal”, dizia-se estar dentro da lei para poder
votar e, assim, chegar ao poder.
Vale a pena observar com atenção as críticas realizadas pela FAU ao
reformismo da época, visto que no transcorrer dos anos – após de 1990 –, as posições
reformistas “atualizadas” iram retomar a tônica essencial de seu discurso: a
128
Idem.
109
necessidade de estar inserido na legalidade burguesa para poder aceder ao governo
via eleições. A partir dessa máxima da social-democracia, poderemos observar que os
postulados da “esquerda reformista” do período sesentista atingiu seu objetivo,
confirmando a previsão da crítica realizada pela FAU 40 anos antes, e descartando
toda e qualquer “possibilidade” de luta armada foquista ou não, como método para a
construção do socialismo.
“Uma organização é realmente revolucionária se propõe o problema do poder, e
o problema do poder só se resolve com uma adequada linha de prática da violência, ou
seja, com uma adequada linha militar. Somente haverá socialismo com revolução, ou
seja, com a destruição violenta do Estado burguês. Só haverá destruição violenta do
Estado, do poder burguês, com uma prática político-militar adequada”
129
. Esses foram
fundamentos feitos naqueles anos pelas organizações armadas do continente. A prática
da guerrilha urbana no Uruguai, por parte do MLN, pressupõe, desde o princípio, a
introdução de variantes no esquema foquista ortodoxo. A mais óbvia: o caráter urbano
da guerrilha que, em seu momento, muitos negaram como viável.
A influência da concepção foquista pode imputar para si a maioria dos fracassos
experimentados nos anos posteriores à Revolução Cubana. Não foi a luta armada o
que fracassou; o que fracassaram claramente foram as expectativas em curto prazo
que o foquismo possuía. No meio dessas frações é inegável, mesmo assim, que a
prática ampla da luta armada contribuiu decisivamente para modificar as pautas e
características da ação política na América Latina. A prática armada modificou
radicalmente a maneira de perceber e encarar os problemas da revolução. Colocou
sobre a mesa, como realidade e urgência, os temas relacionados com as formas
concretas de obter, com a violência, a destruição do poder burguês.
O debate sobre a necessidade de se desenvolver um partido e sua clássica
contradição com a Teoria do Foco não era um elemento novo no MLN. Esse foi um dos
assuntos centrais nas polêmicas entre os anarquistas da FAU e os tupamaros. Em
agosto de 1971, o MLN havia emitido um documento intitulado Partido o Foco: un falso
dilema, no qual se afirmava que não era possível contrapor-se uma coisa que se referia
à organização, com outra que se referia ao método de luta ou de ação. A questão,
129
FAU. Copei. op. cit., 1972, p. 4.
110
obviamente, não estava relacionada somente com o MLN, senão que atravessava toda
a esquerda latino-americana e constituía um dos assuntos nevrálgicos de debate entre
os partidos comunistas (especialmente os pró-soviéticos) e as guerrilhas guevaristas.
Fundamentalmente, a guerrilha rediscutiu dois problemas políticos: 1) o das
características que, em condições de guerrilha urbana, revestem a vinculação da
guerrilha com as massas e a política a desenvolver em relação a isto. Em outros
termos, o problema das modalidades concretas segundo as quais, atuando a guerrilha
em meio urbano, capitaliza-se politicamente a simpatia popular que pode promover sua
ação; e 2) o problema de como se processava, através da prática guerrilheira urbana, a
destruição militar do aparelho repressivo, requisito prévio para a destruição do poder
burguês.
A formulação dessas duas questões conduz claramente a pensarmos numa
indagação para cuja prévia resposta dependerá o tipo de solução. A pergunta é: para
que se fazia a guerrilha e quais eram seus objetivos e seu programa? Existiram
guerrilhas cujo objetivo foi apenas a conquista da independência nacional. Colocando-a
em termos de classe, essa independência significa substituir a dominação política direta
da burguesia metropolitana imperialista, exercida através do Aparelho de Estado
burguês local, “nacional”. Não queremos diminuir a importância desses processos de
luta pela independência política, nem negar a possibilidade de ação revolucionária que
podem habilitar em certos contextos. Simplesmente, pretende-se descarnar, desde uma
perspectiva classista, a essência de um assunto em torno do qual se faz cada vez mais
confusão.
Guerras pela independência foram as que protagonizaram, por exemplo, o Irgun
Zval Leumi, dirigido pelo fascista judeu Menahen Beguin, em Israel; o Eoka, dirigido
pelo coronel fascista greco-cipriota Grivas, em Chipre. Todas guerras de guerrilhas pela
independência nacional, anticoloniais, contra a dominação inglesa. Não guerras de
libertação de sentido socialista e antiburguês. A guerrilha, nos três casos citados, quase
exclusivamente urbana, protagonizou guerras relativamente breves. A Inglaterra resistiu
até um certo ponto. Quando o balanço de custos econômicos e, fundamentalmente,
políticos foi claramente deficitário, ela se retirou. Das três revoluções anticoloniais
citadas, as respectivas guerrilhas urbanas tiveram como objetivo essencial gerar
111
condições políticas que ambientaram soluções de comprometimento entre as classes
dominantes de seus países e as do imperialismo.
Na opinião de Debray (1975), as lutas revolucionárias na América Latina não
foram elementos do que a tradição comunista chamou de “a questão nacional e
colonial”; não tinham que aceitar, na íntegra, a jurisdição teórica oferecida.
Diferenciavam-se significativamente das lutas desenvolvidas na Ásia e na África. Os
movimentos revolucionários latino-americanos, objetivamente considerados, não foram
movimentos de libertação nacional. Seu objetivo não foi a independência política de um
território, nem a constituição de um Estado nacional soberano. O sentimento patriótico,
o antiimperialismo, a reivindicação de uma verdadeira independência nacional
forneceram, às lutas populares da América Latina, características peculiares que não se
encontraram nas lutas operárias e democráticas da Europa
130
.
Segundo a FAU: “No Uruguai, onde a independência formal já foi conseguida, a
função da guerrilha urbana é a de contribuir para derrubar o poder das classes
dominantes locais aliadas ao imperialismo. Sua tarefa político-militar é, portanto, muito
mais complexa e essencialmente diferente. Daí que não seja possível recolher,
simplesmente como ‘modelo’, a experiência daquelas guerrilhas urbanas
anticoloniais”
131
. Os objetivos da revolução condicionavam toda a política
revolucionária, sem excluir seus aspectos militares. Portanto, como elemento prévio a
toda consideração, dever-se-ia definir os objetivos em termos gerais e o caráter do
processo revolucionário no qual se inscrevia a prática político-militar.
Se a guerra não é anticolonial, senão social – e assim será no Uruguai –,
haverá tantos “patriotismos” como classes sociais que estejam em condições de
gerar tendências ideológicas. Haverá um “nacionalismo” burguês que será a
cobertura ideológica da real dependência do império. E haverá um nacionalismo
operário e popular que será a projeção, no nível da questão nacional, da teoria
socialista e dos conteúdos ideológicos fundados por ela. A guerrilha urbana não
terá aqui, nunca, o apoio de “toda a nação”, por mais que se proclame
nacionalista. Só terá o apoio daquelas classes que estejam interessadas no
socialismo. Não é possível uma luta nacional, antiimperialista, à margem da luta
de classes
132
.
130
DEBRAY, Régis. La Crítica de las Armas. México: Siglo XXI. 1975, p. 48-49.
131
FAU. Copei. op. cit., 1971, p. 11.
132
Idem.
112
Nas condições concretas de formação social nacional não se pode estabelecer
que um processo de insurreição vitorioso bastar-se-ia por si para implantar o poder
popular somente no Uruguai. Devia-se partir da base de que a destruição do poder
burguês no Uruguai seria somente o início de uma nova etapa de luta contra a
intervenção estrangeira. Seria absurdo conceber o “socialismo num só país” no
Uruguai. “A partir da destruição do poder burguês no Uruguai é que a luta se
internacionaliza para fora e volta-se nacional para dentro, no sentido de que a
intervenção estrangeira é particularmente inevitável, dada a situação geopolítica”
133
. A
intervenção política das burguesias dos países vizinhos ou diretamente do imperialismo
necessariamente convertia a revolução social numa revolução em defesa da
independência nacional.
No transcurso do ano de 1971, a Organización Popular Revolucionária 33
Orientales – OPR33 – braço armado da FAU – expressou uma variante de ação
baseada numa concepção diferente do foquismo. Tentava-se vincular o
desenvolvimento operativo clandestino com o cotidiano do movimento de massas e, em
particular, com o movimento sindical. Dentro dessa concepção, que tinha inflexões
anarco-sindicalistas, a OPR33 realizou uma série de atividades de apoio a conflitos
sindicais, em particular no período de 1971 e 1972. A proposta de ação da OPR33
significou uma tentativa de incorporar um componente revolucionário organizado, um
aparelho de ação direta, ao acionar os setores mais dinâmicos, em particular os do
movimento operário, intervindo em suas lutas específicas. Através da frase acción
directa a todos los niveles, procurava-se articular essas formas de ação com as práticas
que se desenvolviam na frente de massas.
No marco de uma concepção estratégica na qual o aparelho armado cumpria um
papel imprescindível no processo revolucionário, a OPR33 desenvolveu uma linha de
ação que se propunha fazer as massas participarem de uma maneira mais protagônica
nesse campo. Seu pensamento tendia a uma concepção de tipo insurrecional, como
forma de desenlace do processo revolucionário. Definiam três requisitos imprescindíveis
para o êxito da insurreição armada: 1) a participação de setores importantes das
massas, através de ações de diferente nível; 2) a existência prévia de um aparelho
133
Idem.
113
armado clandestino, com experiência militar já adquirida; 3) a existência de um trabalho
político prévio sobre os elementos do aparelho repressivo. Esses três requisitos
pressupunham a existência de um minucioso trabalho político prévio, do qual só pode
se fazer cargo o partido como organização capaz de desenvolver, promover e
harmonizar, a partir de um centro de direção comum, essas diversas atividades.
Em relação aos esforços desenvolvidos no transcurso de 1971 e 1972, a OPR33
não conseguiu reverter a situação desencadeada a partir de 1972, nem influir, de
maneira decisiva, no movimento de massas. Os reveses sofridos no ano de 1972
golpearam-na significativamente. Não obstante, seus integrantes mantiveram
continuidade orgânica, realizando esforços de reorganização posteriores.
114
6. AS DISCUSSÕES SOBRE A “GUERRA JUSTA” E O TIPO DE DEMOCRACIA
EXISTENTE NO PERÍODO
A guerra, na sua forma particular de guerrilha, tinha por objetivo a tomada do
poder pelo MLN ou pela organização ou partido que eles criassem direta ou
indiretamente. Para os Tupamaros, esse objetivo revolucionário tinha uma longa
tradição na história uruguaia, sustentando-se pela legitimidade do direito de rebelião
ante as circunstâncias de crescente violência política pelas quais atravessava o país
desde a metade da década de 1960. Com o primeiro antecedente, em fevereiro de
1963, uma longa sucessão de decretos que implantavam as Medidas Prontas de
Segurança
134
viriam a pautar a violência política governamental contra os movimentos
populares. Somente no ano de 1965, as Medidas Prontas de Segurança foram
decretadas em três oportunidades: abril, outubro e dezembro.
Em nove de outubro de 1967, o Governo do general Oscar Gestido decretou
Medidas Prontas de Segurança. No dia seguinte, 268 sindicalistas foram presos. A cifra
aumentou para 442 nos dias posteriores
135
. Cores (1977) salienta que nem nas
considerações que precederam ao decreto de medidas de segurança de outubro de
1967, adotadas por Gestido, nem nas de Jorge Pacheco Areco, em 13 de junho de
1968, fez-se referência à guerrilha. Em nenhum dos discursos presidenciais dos anos
de 1967 e 1968, o sujeito a reprimir era a insurgência armada. O “inimigo interno”
estava situado no movimento de massas. Em 15 de outubro de 1968, o Dr. Carlos
Quijano escreveu no editorial do Semanário Marcha
136
: “Nunca as Medidas Prontas de
Segurança têm colocado em maior perigo a estrutura constitucional do país e a
liberdade dos cidadãos [...]. Se esta situação continuar, levará à ditadura e a violência
gerará mais violência
.
134
As Medidas Prontas de Segurança têm sua origem na Constituição de 1830 e estão atualmente no
inciso 17, do artigo 168 da Constituição de 1966, sobre as faculdades do Poder Executivo. Podem ser
tomadas em “casos graves e imprevistos de ataque externo ou comoção interna” e autorizam a detenção
e translado de pessoas dentro do país, sempre que estas não optarem por saírem do território. Isto com
obrigatoriedade de prestar contas à Assembléia Geral Legislativa no prazo de 24 horas.
135
CORES, Hugo. op. cit.,1977, p. 112.
136
QUIJANO, Carlos. Editorial. Semanário Marcha. Montevideo: 15 de outubro de 1968, p. 4.
115
No início de 1970, os tupamaros escreviam: “A ditadura, aprofundando-se,
aplicando uma repressão e uma violência cada vez mais dura, tem tratado sempre de
se vestir com roupas muito queridas por nossa idiossincrasia: parlamento, eleições,
Constituição, liberdades, garantias, etc. Este disfarce agora resulta ridículo. [...] Isso
ocorre agora e para que tenha acontecido foi necessário que a crise obrigasse as
classes dominantes a desvestir sua ditadura [...]”
137
.
O reconhecido historiador uruguaio Carlos Real de Azúa elaborou um ensaio que
se transformou num clássico da historiografia uruguaia a respeito da história recente do
país: Partidos, política y poder en el Uruguay (1971 - coyuntura y prognóstico). Nesse
estudo, realiza uma análise da sociedade uruguaia no marco deste particular contexto
histórico, no qual expressa: “Cada declaração de ‘medidas prontas de segurança’ foi
não somente seguida, senão que às vezes precedida de extensas caçadas a dirigentes
sindicais, operários, estudantes”
138
. Dessa forma, em todo o país vigorava o “Estado de
Direito” que, apesar das garantias formais da democracia representativa, levou a um
abuso repressivo nunca visto no Uruguai. Conforme Real de Azúa:
O pacote de princípios que integravam a inviolabilidade de residência, o
habeas corpus’, a garantia do devido processo penal, a liberdade de imprensa,
de reunião, de associação política e sindical, o direito de greve, a
independência da justiça, o respeito às decisões do parlamento, o prestígio do
compromisso como última solução dos conflitos, a autonomia do ensino, a
restrição do foro militar, a limitação da função policial, o pressuposto de
tratamento humanitário em situações de privação de liberdade, entre outras, foi
violentado, menoscabado ou atentado, global ou pormenorizadamente, uma e
outra vez, desde 1967
139
140
.
Eleutério Fernández Huidobro – dirigente histórico do MLN –, 21 anos depois das
Medidas Prontas de Segurança de 1965, escreveu na Historia de los Tupamaros:
“Militantes de esquerda (não os dirigentes), parecemo-nos mais com delinqüentes sob
137
MLN. Actas Tupamaras: una experiencia de guerrilla urbana. Rosario: Cucaña, 2003, p. 46.
138
AZÚA, Carlos Real de, op. cit., p, 24.
139
AZÚA, Carlos Real de. op. cit., p. 33-34.
140
Os debates na Assembléia Geral de 10 de agosto de 1970 expuseram as posições do setor liberal
democrático do Partido Nacional, e a Assembléia terminou votando a suspensão, por 20 dias, de quatro
artigos da Constituição: o artigo 11, que preserva a inviolabilidade do lar, exigindo autorização do
morador (à noite) e, durante o dia, ordem expressa do juiz competente; o artigo 16, quanto à obrigação
do juiz de tomar depoimento dentro de determinado prazo; o artigo 17, recurso de Habeas Corpus; e o
artigo 28, sobre a inviolabilidade da correspondência de particulares. CORES, Hugo. Uruguay Hacia la
Dictadura 1968-1973. Montevideo: Banda Oriental, 1999, p. 60.
116
liberdade condicional do que com cidadãos. Perseguidos, vigiados, assinalados
publicamente, encarcerados sob qualquer pretexto, tem-se preparado o ambiente para
que a qualquer momento possamos ser encarcerados com o consenso e, talvez, com a
aprovação da maioria dos cidadãos”
141
.
Durante o Governo de Pacheco, o artigo da Constituição que concede ao Poder
Executivo a atribuição de ditar medidas de segurança foi amplamente utilizado. Assim,
o Uruguai vivia um moderado estado de sítio, o qual Pacheco aprofundou, levando o
país a um completo estado de sítio, quebrando os velhos paradigmas da democracia
liberal uruguaia. Obviamente, isso fez com que se levantassem fortes resistências numa
sociedade pouco acostumada às imposições autoritárias e o resultado foi a instalação
de um estado policial, sustentado na modernização dos aparelhos repressivos,
especialmente nos serviços de inteligência e na polícia militarizada.
Como exemplo desse processo de modernização das forças repressivas,
apresentamos dados comparativos – a título de ilustração – de categorias salariais,
levantados pelo senador Zelmar Michelini:
Tabela 1. Salários mensais das correspondentes categorias 1968-1973.
ANO Professor do ensino
fundamental
Sargento do Exército Sargento da Polícia
1968 $18.350 $ 13.013 $ 13.000
1970 $ 24.500 $ 26.080 $ 24.815
1971 $ 34.692 $ 39.348 $ 37.830
1972 $ 51.935 $ 74.102 $ 62.973
1973 $ 61.938 $ 103.800 $ 109.745
Fonte: Comissão de Orçamento do Senado pela Procuradoria Geral da Nação. (MICHELINI, Zelmar.
Artículos Periodísticos y Ensayos. Montevideo: Cámara de Senadores, 1991, p. 245).
Na análise de Varela (1988), a atitude dos políticos dos partidos tradicionais
estava guiada, em primeiro lugar, por um reflexo de prudência. Tinham sido formadas
na lembrança de 1933, quando, a partir de um desacordo entre o poder executivo e o
141
HUIDOBRO, Fernández Eleutério. Historia de los Tupamaros (Los Origenes). Montevideo: Banda
Oriental. vol. 1, 1986, p. 106.
117
legislativo, a situação culminou num Golpe de Estado. Sabiam, por experiência, de que
lado se alinhariam as forças “vivas” em caso de ruptura. Cansados do sindicalismo e da
inflação, os empresários viam com bons olhos o regime golpista. Além dos métodos, a
maioria das frações tradicionais não tinham um desacordo substancial com o plano
econômico aplicado, nem com a proposta de ordem
142
.
Por outro lado, Paul Gilbert (1997) classifica a guerra em quatro possíveis casos,
levando-se em consideração, por motivos de simplicidade, só os que envolvem duas
forças contrapostas: 1) conflitos civis nos quais uma das frações está representada pelo
Estado, e outra na qual nenhuma das partes tem o status político; 2) conflitos civis nos
quais ambas as partes reconhecem a mesma ou as mesmas comunidades políticas, e
outras nas quais a identificação da comunidade política representa o objeto da disputa;
3) conflitos civis nos quais as fronteiras são objetos de disputa, frente a outros nos
quais este problema é inexistente; 4) conflitos nos quais se utiliza somente a guerra
convencional, e outros nos quais um ou ambos os contingentes recorrem à guerra
irregular
143
.
De acordo com essa classificação, a guerra civil no Uruguai tomou a forma de
um conflito bélico entre o Estado e a guerrilha, dentro da mesma comunidade política, a
nação, e com o emprego da guerra irregular por parte do Estado. Esse fato obviamente
não teve uma clara determinação jurídica, porque depende de cada Estado reconhecer,
ou não, aos insurretos a sua qualidade de combatentes. No geral, são os seus
interesses políticos que determinam essa decisão. Para os militares convocados para a
luta anti-subversiva desde 1971, a natureza do conflito não deixava nenhum tipo de
dúvidas: segundo o coronel Nestor Bolentini, a subversão não era passível de ser
classificada como delito, mesmo que empregasse o delito. “As Forças Armadas não
estão formadas nem estruturadas para combater o delito; estão instruídas e
estruturadas para defender a soberania e a independência nacional”. Na manifestação
de Bolentini observa-se a definição clara do reconhecimento do Estado de Guerra: “As
Forças Armadas não empregam as armas para reprimir o delito; para isto está a polícia.
142
VARELA, Gonzalo. op. cit., 1988, p. 52.
143
GILBERT, Paul. Il Dilema Del Terrorismo. Studio di Filosofia Política Applicata. Milano: Feltrinelli,
1997, p. 70.
118
Quando o Poder Político recorre às Forças Armadas, no meu conceito, está
reconhecendo tacitamente o Estado de Guerra”
144
.
O MLN, por sua vez, escrevia em 1970: “Conseguimos instalar a luta armada no
Uruguai; hoje já o reconhecem as classes dominantes. Estamos em guerra, dizem seus
representantes no Governo, na imprensa e no parlamento. É uma confissão que
durante muito tempo não quiseram admitir”
145
. Por outro lado, o MLN, no seu
documento nº. 5, fez referência à necessidade de preparar uma “ofensiva” militar que
consistiria “naquilo que nos conduz a mais e melhores níveis de luta armada, a uma
maior generalização da guerra [...]”. Dessa forma, manifestava a necessidade de uma
maior hostilidade para a destruição direta das forças vivas do inimigo: “[...] portanto, há
um aumento da polarização, há uma radicalização maior do processo e há um uso
pleno das armas e pessoas disponíveis”
146
. A luta do MLN adquiriu um caráter bélico
desde outubro de 1969, com a ocupação da cidade de Pando
147
. Não é possível definir
como ações próprias de uma guerra as que o movimento realizou durante o período em
que foi se consolidando como organização (1963-1968), pois suas ações estavam
restritas à propaganda armada e a ações de acúmulo de infra-estrutura.
Segundo Aldrighi (2001), para poder se determinar o caráter bélico da atividade
de uma organização que se confronta militarmente com o Estado devem coexistir
alguns elementos determinantes, existentes no MLN: “deve tratar-se de uma
organização política, suas motivações e objetivos devem ser públicos, seus
procedimentos militares devem estar subordinados a finalidades políticas e os
interesses que representa devem ser de natureza pública [...]”
148
. O conflito que no
Uruguai confrontou o Estado com o MLN até 1972 constituiu, segundo ambas as partes,
uma forma incipiente de guerra civil. Uma guerra de guerrilhas que, na visão dos
Tupamaros, pressupunha dois campos confrontados: um constituído pelos partidos
tradicionais, membros do Estado e representantes dos proprietários dos grandes meios
144
ALDRIGHI, Clara. La Izquierda Armada: Ideologia, ética e identidad en el MLN – Tupamaros.
Montevideo: Trilce, 2001, p. 144.
145
MLN. Actas Tupamaras: una experiencia de guerrilla urbana. Rosario: Cucaña, 2003, p. 47.
146
MLN. Documento nº. 5. Montevideo: mimeo, 1970, p. 4.
147
A cidade de Pando está situada ao norte do país a uma distância de 30 km da capital.
148
ALDRIGHI, Clara, 2001, op. cit., p. 145.
119
de produção, dependentes do poder imperialista (oligarquia); e outro, a organização
armada que em nome dos legítimos interesses do povo surgiu para derrubá-lo.
A ambigüidade do discurso do Estado e as formas equívocas em que foi
compreendido e difundido o fenômeno da guerrilha, circulando entre a
criminalidade e o reconhecimento de seu caráter bélico, revelam a
complexidade do problema que, nos planos político, jurídico e moral, a
insurgência armada colocava o Estado uruguaio
149
.
Quando o Estado considerou as atividades da guerrilha tupamara como atos de
“delinqüência”, a justiça igualava ações como a tomada de um quartel, no caso o
Centro de Instrução da Marinha, com o assalto a um banco, ou seja, a expropriação de
armas do Estado com a expropriação de dinheiro de civis, adjudicando a mesma
categoria delitiva para ambos os casos. Para descaracterizar toda a natureza política do
MLN, em 1969 o Ministério do Interior proibiu o uso, nos meios de comunicação, de
expressões tais como “terrorista”, “subversivo”, “delinqüente político”, “delinqüente
ideológico”, impondo sua substituição por outros qualificativos, como “delinqüente”,
“réu”, “marginal”. Posteriormente, até 1973, tudo dentro de um arcabouço legal – a
chamada legislação de emergência –, levou a que se processasse os tupamaros por
“Atentado à Constituição”, ou seja, uma forma especial de delitos, com fins políticos,
que proporcionou a eles um status especial e uma nova contradição no discurso
governamental.
Real de Azúa não concordou com a classificação de guerrilha urbana atribuída
ao movimento tupamaro. Para ele, essa expressão não seria totalmente adequada,
visto que as ações de enfrentamento aberto com a força pública não foram habituais e,
inclusive, que as ações do movimento foram realizadas por unidades que se
descompõem e recompõem para cada operativo, o que na guerrilha, pelo menos na sua
tradição tática euro-ocidental, não é o costume. Caracteriza o autor: “Nem ‘guerrilha’
então, nem ‘guerra aberta’, nem sequer ‘luta armada’, senão que ‘luta com armas’, a
149
Idem.
120
ação concreta do movimento tupamaro não carece de feitos que a caracterizem
energicamente”
150
.
O Estado considerou que o MLN desenvolveu uma forma de guerra; o
reconhecimento do caráter bélico de suas ações manifestou-se especialmente nas
disposições posteriores ao 14 de abril de 1972, com a Declaração do Estado de Guerra
Interno e a aprovação da Lei de Segurança de Estado. O emprego, desde 1971, das
Forças Armadas na luta anti-subversiva foi determinado pela convicção de que a
atividade da guerrilha não constituía um simples problema de ordem pública, senão que
afetava a segurança nacional
151
. A Declaração de Estado de Guerra Interno, de abril de
1972, operou de forma transitória, oportunizando a transferência de uma parte da
repressão penal para a justiça castrense. Aníbal Corti (2004) afirma que a Lei de
Segurança de Estado e da Ordem Interna (Lei 14.068, de 10 de julho de 1972) veio a
consagrar formalmente e tornar definitivo esse translado de jurisdição. O que a lei fazia
era incorporar parte do Código Penal Ordinário ao Código Penal Militar, de forma que
os delitos contra a Constituição e a ordem política interna do Estado (que passavam a
denominar-se “delitos de lesa Nación”) convertiam-se em matéria permanente e
exclusiva da justiça militar
152
.
Tanto os militares como os tupamaros aceitaram que estava se realizando uma
guerra civil, sendo que ela era concebida desde perspectivas diferentes que se
enfrentavam de forma irreconciliável. Ambos consideravam estar combatendo uma
“guerra justa”: para o oficialismo, de natureza defensiva contra agressão (tupamara);
para a guerrilha, uma luta contra um Estado opressor, instrumento de dominação da
oligarquia e do imperialismo norte-americano. A esse respeito, o historiador uruguaio
Heber Gatto (2004) abre uma polêmica sobre o caráter “legítimo ou ilegítimo” desta
“guerra justa”. Para tal, utiliza-se de conceituações elaboradas por Norberto Bobbio,
nas quais afirma que “aprofundar-se na busca das causas de justificação de uma
conduta normalmente ilícita, como é a insurgência armada contra um Estado constituído
150
AZÚA, Carlos Real de. Partidos, política y poder en el Uruguay (1971 – coyuntura y prognóstico).
Montevideo: Universidad de la República – Facultad de Humanidades y Ciencias, 1988, p. 24.
151
ALDRIGHI, Clara. op. cit., p. 145.
152
CORTI, Aníbal. La Brutalización de la Política en la Crisis de la Democracia Uruguaya. In: El Presente
de la Dictadura: estudios y reflexiones a 30 años del golpe de Estado en Uruguay. Marchesi, Aldo;
Markarian, Vania; Rico, Álvaro; Yaffé, Jaime (Orgs.). Montevideo: Trilce, 2004, p. 56.
121
e dotado dos atributos do poder democrático liberal,”
153
seria um pressuposto básico
para a análise deste processo; portanto, a legitimidade ou não dessa “guerra justa”.
Gatto expõe que para uma maior precisão do conceito de “guerra justa” parece
adequado passar a aceitar como legítimo o Governo meramente consentido, como era
o caso dos absolutismos dos séculos XVIII e XIX, para requerer “governos instaurados
com base em mecanismos, condições e garantias da moderna democracia liberal”.
Dessa forma, em lugar de legitimar o governo mediante a aceitação passiva dos
cidadãos, surge uma alternativa: “ao Governo elege-se o – e muda-se o – consultando
ao soberano, e sua função primordial descansa na tutela dos direitos de seus
integrantes”. Assumindo essa situação, pode-se postular que o atual direito de
resistência à opressão não resulta da aplicação válida quando se utiliza contra regimes
democráticos liberais
154
.
A isso o autor acrescenta dois elementos, a saber: primeiro, que se defina um
critério “razoável” de democracia liberal que permita precisar esse conceito; segundo,
para que esse exercício de validação peça seu caráter abstrato, requer-se que o critério
enunciado se forme com a realidade do caso em análise, tomando em conta seus
“antecedentes institucionais, grau de cultura política, nível de autoritarismo socialmente
existente e, sobretudo, as instituições e representações sobre o ponto da maioria de
seus habitantes”. A partir desses pressupostos, o autor abre uma pergunta visando a
responder o grau de legitimação dessa “guerra justa”
155
: sentem os cidadãos do Estado
em questão estar submetidos a uma ditadura?
Pautados pelo autor e por estes dois elementos-chave – o conceito de
democracia liberal em questão e, a partir deste, qual eram os elementos da realidade
institucional, cultural, política e o nível de autoritarismo existente – elaboramos a
proposta – desafio – de confrontar os argumentos apresentados por Gatto às fontes
referentes a este particular momento histórico do Uruguai, contemplando os diversos
atores, diretos e indiretos, dessa “guerra justa”.
153
GATTO, Heber. El Cielo por Asalto: (El Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros y la
Izquierda Uruguaya – 1963-1972). Montevideo: Taurus, 2004, p. 340.
154
GATTO, Heber. Op. Cit. P. 344.
155
Idem.
122
Para a conceituação de “democracia liberal”, Gatto aferra-se a uma definição
“mínima” de condições para a existência de um Estado “democrático”, utilizando-se dos
argumentos de Norberto Bobbio, que ele chamou de um “significado preponderante”
para se definir democracia: “É aquela segundo a qual se entende por democracia um
conjunto de regras – as chamadas regras do jogo – que permitem a mais ampla e mais
segura participação da maioria dos cidadãos, em forma direta ou em forma indireta, nas
decisões políticas, ou seja, nas decisões que interessam para toda a coletividade”
156
.
Para Bobbio (1986), essas regras “mínimas” ou “regras do jogo” são as
seguintes:
a) todos os cidadãos que tenham atingido a maioria de idade, sem distinção de
raças, de religião, de condições econômicas, de sexo, etc., devem gozar dos
direitos políticos, ou seja, do direito de expressar no voto sua própria opinião
e/ou de eleger a quem o expresse por ele; b) o voto de todos os cidadãos deve
ter o mesmo peso (ou seja, deve contar por um); c) todos os cidadãos que
gozam dos direitos políticos devem ser livres de votar segundo sua própria
opinião, formada o mais livremente possível, ou seja, num livre cenário entre
grupos políticos organizados, que concorrem entre si para acumular as
solicitações e transformá-las em deliberações coletivas; d) devem ser livres
também no sentido de que devem ser postos em condições de ter alternativas
reais, ou seja, escolher entre diversas soluções; e) tanto para as deliberações
coletivas como para as eleições dos representantes vale o princípio da maioria
numérica, se bem que é possível se estabelecer diversas formas de maiorias
(relativa, absoluta, qualificada), em determinadas circunstâncias, previamente
estabelecidas; f) nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos
da minoria, particularmente o direito a converter-se, em paridade de condições,
em maioria
157
.
Gatto salienta que o próprio Bobbio havia assinalado que o exposto postula um
conceito mínimo de democracia, mas que a observância de todas as regras, sem
exceções, resulta essencial para a integridade da nação. Ele reconhece que a
conceituação elaborada por Bobbio representa uma noção restrita de democracia, ou
seja, um conjunto de normas processuais políticas mínimas que poderiam compartilhar
diversas concepções sobre o que deve ser a democracia em sentido amplo
158
. “Neste
156
Idem.
157
BOBBIO, Norberto. ¿Qué Socialismo? Barcelona: Plaza y Jánes, 1986, p. 122-123. Citado também
por Gatto, op. cit., p. 345.
158
Nesse sentido, Gatto pergunta: “Qual seria o espaço ou a área conceitual em que coincidiram várias
concepções razoáveis sobre a democracia, mas que, por sua vez, mantiveram distintas visões sobre o
bem social e individual?” E responde: “Acredito que as regras de Bobbio, mesmo que não tenha sido
essa a metodologia que ele utilizou para precisá-las, resumem de maneira aproximada esse mínimo
123
sentido, e unicamente a efeito de avaliar quando o direito de resistência à opressão
exerce-se legitimamente, acredito que tais regras resultam suficientes”
159
.
Dessa forma, alude-se a regras “mínimas” para a representação democrática, que
estão unicamente vinculadas a garantir direitos políticos. Para uma conceituação mais
“razoável” de condições “mínimas” à manutenção da democracia, entendemos que
esses direitos aludidos (políticos) não bastam para se considerar a plena existência do
jogo democrático. É imprescindível acrescentar os direitos civis. Pelas limitações
próprias deste trabalho, deixaremos fora da discussão os direitos sociais, aqueles que
visam a garantir a participação na riqueza. Eles incluem o direito à educação, à saúde,
ao trabalho, ao salário justo, à aposentadoria. Os mesmos que, de forma precária, eram
atendidos naquele contexto.
Os direitos civis são os direitos fundamentais à vida: a liberdade, a igualdade perante
a lei. Eles se desdobram na garantia da liberdade de pensamento, de associação, de
religião, de ser respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser
preso – a não ser pela autoridade competente e de acordo com a lei –, de não ser
condenado sem processo legal regular
160
. Em suma, os direitos civis são os que
fornecem a base “mínima” para que o jogo democrático seja possível no marco de uma
justiça independente, eficiente e acessível a todos.
A ideologia hegemônica tratou de apresentar um mundo dividido em dois lados
161
: o
dos verdadeiros democratas, que seriam aqueles que defendem a democracia
“desinteressadamente”; e o dos inimigos da democracia, que seriam aqueles que
comum denominador. Por razoáveis entendemos aqui aquelas concepções que admitem que sobre a
democracia e sua definição podem se manter diversas posições, mas que coincidem em que todas elas
podem conviver e manifestar-se num mesmo estado ou comunidade” (GATTO, Heber. op. cit., p. 346).
159
GATTO, Heber. op. cit., p. 345.
160
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 5. ed, 2004, p. 9.
161
Para Gatto, a divisão é muito clara: os democratas liberais, por um lado, e os não democratas, por
outro. Nesta última categoria, ele unifica fascismo e comunismo. Nas suas palavras: “Para as concepções
políticas não liberais, das quais o fascismo e o comunismo constituíram, no século XX, os exemplos mais
notórios, mas não únicos, o sistema político não revela a realidade profunda (a essência) da vida coletiva.
Se para o fascismo o importante é a implantação do estado radical mediante a purificação do sangue;
para o segundo o definitivo é o mecanismo de exploração ou modo de produção, ou a combinação de
ambos, numa formação social concreta. Qualquer agregado humano que misture raças e contemple a
divisão em classes sociais é, por tal razão, injusto e justifica a revolução. A sociedade realmente pura, ou
sem classes sociais, constitui bem social fundamental per se, com independência da valoração que sobre
elas efetuem os cidadãos.” (GATTO, Heber. op, cit., p. 347).
124
pretendiam instrumentalizá-la, condicioná-la a fins que não correspondiam ao
entendimento de seu próprio conceito, ou seja, a sua essência. Assim, talvez, o
problema principal que enfrentou a democracia uruguaia – extensivo à América Latina –
foi o de sua redução ao momento estritamente eleitoral; momento que, por sua vez,
tende a se reduzir, em muitos casos, à eleição de pessoas.
Voltando às “regras do jogo democrático”, o qual se entende que não acontecia, na
sua totalidade, no Uruguai na década de 1960, e muito menos no início dos anos 1970,
visto que na própria análise de Bobbio, et al. (2002) para avaliar ditas regras deve-se
levar em consideração a possível diferença entre a enunciação do conteúdo e o modo
como são aplicadas as regras. Afirma Bobbio: “Certamente nenhum regime histórico
jamais observou inteiramente o ditado de todas as regras; e por isso é lícito falar de
regimes mais ou menos democráticos”
162
. Não é possível estabelecer quantas regras
devem ser observadas para que um regime possa dizer-se democrático. Dessa forma,
podemos identificar que, no caso uruguaio, as categorias estabelecidas por Bobbio –
democracia formal e democracia substancial – não se aplicavam ao contexto daqueles
anos. O autor advertia que pode ocorrer historicamente uma democracia formal
163
que
não consiga manter as principais promessas contidas num programa de democracia
substancial e, vice-versa, uma democracia substancial que se sustente e se desenvolva
através do exercício não democrático do poder. “Desta ausência de um elemento
conotativo comum temos a prova na esterilidade do debate sobre a maior ou menor
democraticidade dos regimes”
164
. Cada um dos regimes é democrático segundo o
significado de democracia escolhido pelo adversário.
O que resulta relevante para fins deste estudo é que os próprios conceitos e
definições surgidos da democracia liberal mostram-se desajustados para explicar qual
162
BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília:
UNB, 12. ed., 2002, p. 327.
163
Segundo Bobbio, o valor adotado para distinguir não apenas formalmente, mas também no seu
conteúdo, um regime democrático de um regime não democrático é a igualdade; não a igualdade jurídica
introduzida nas Constituições liberais, mesmo quando estas não eram formalmente democráticas, mas a
igualdade social e econômica (ao menos em parte). Assim foi introduzida a distinção entre democracia
formal, que diz respeito precisamente à forma de governo, e democracia substancial, que diz respeito ao
conteúdo desta forma. (BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da
política. São Paulo: Paz e Terra, 8. ed., 2000, p. 157).
164
BOBBIO, Norberto. (2000). op. cit., p. 157-158.
125
foi o modelo “democrático” que viveu o Uruguai sesentista. E o que resulta ainda mais
significativo é a ruptura – por parte do próprio governo – com o modelo de democracia
liberal do batllismo, que formou uma “cultura democrática” particularmente uruguaia.
Essa cultura democrática tem seus antecedentes no início do século XX, com o primeiro
mandato governamental de José Batlle y Ordoñez (1903-1907).
A Desse modo, dando continuidade a seu processo de reajuste conservador, iniciado
em 1968, e diante do aumento da resistência popular, o setor hegemônico no poder se
propôs a resolver, a seu favor, a crise do sistema político, legitimando
institucionalmente um governo surgido de “eleições livres”, ou seja, um governo da
“expressão da vontade geral” e, ao mesmo tempo, bater fortemente nas organizações
populares. No transcurso desse ano, o governo atuou de forma mais agressiva do que
nos anos anteriores. As eleições foram realizadas com presos políticos sem processo
judicial, jornais fechados por decreto e violência policial e para-policial. Houve um
significativo incremento nas ações clandestinas de direita, através da Juventud Unida
de Pie – JUP. Aconteceram vários atentados políticos: assassinato de
165
Manuel Ramos
Filippini (31 de julho), desaparecimento de Abel Ayala (18 de julho) e Héctor
Castagnetto (17 de agosto), ataques contra advogados defensores de presos políticos,
atentados contra dirigentes políticos e sindicais.
A partir de 1972, as Forças Conjuntas desarticularam os Tupamaros e outros
grupos menores, como Faro e OPR 33
166
. Uma sucessão de detenções foi debilitando
as organizações populares, obrigando-as a substituir continuamente suas direções e
dificultando, cada vez mais, as relações e a coerência entre seus militantes que
estavam presos e os que estavam nas ruas. A luta anti-subversiva foi basicamente uma
operação policial e política. As características que teve o enfrentamento foram as de
que a repressão assumisse poucas vezes a forma de ações bélicas, diferente de outros
países latino-americanos em que a luta ocorreu em campo aberto. As formas
predominantes nas quais se desenvolveu a luta anti-subversiva foram a detenção e a
165
Os três foram militantes estudantis vinculados à Tendência Combativa.
166
Faro: Fuerzas Armadas Revolucionarias Orientales. OPR33: Organización Popular Revolucionaria 33
Orientales. Ambas as organizações armadas de menor magnitude que operaram no Uruguai no período.
126
tortura do inimigo. Seu objetivo foi o desmantelamento organizativo, o isolamento e a
desmoralização da dissidência armada.
“As Forças Armadas ao Povo Oriental” é o nome de um livro publicado em
Montevidéu, em 1976, que apresenta a versão “oficial” dos acontecimentos políticos e
sociais ocorridos no período sesentista até a instauração do governo militar, em 1973.
Nessa obra, as Forças Armadas relatam, de forma detalhada, os pormenores da luta
anti-subversiva e realizam várias apreciações e conceituações em referência à
organização inimiga e ao Uruguai pacífico e democrático. Os autores afirmam
enfaticamente, na apresentação do livro, a profunda convicção democrática do país,
sua tradição pacífica e a crença nos valores humanos em que se baseiam suas
instituições. Obviamente, desconhecem a história política uruguaia e a formação do
Estado nacional, onde aconteceram uma seqüência de guerras civis que tiveram seus
inícios no processo de independência e se desenvolveram até 1904, com o fim das
guerras entre os partidos tradicionais.
Por sua vez, as Forças Armadas afirmam seu “indeclinável interesse de evolução
pacífica, de acordo com o ritmo da época que vive o mundo”. E acrescentam sua
veemente rejeição “a uma revolução fundada no ódio e a violência, como os grupos
terroristas, minoritários e de inspiração estrangeirizante, pretenderam impor”
167
. Nessas
manifestações encontra-se identificada a visão, a leitura do “mundo”, dessa instituição.
Nesses anos (1968-1972), o mundo não era nada pacífico. Basta lembrar o contexto de
violência permanente. Em relação aos grupos “terroristas minoritários”, encontra-se
uma clara contradição com as manifestações (a seguir) que contradizem o anteposto e,
para atender seus interesses políticos, exageram desmesuradamente:
Os teóricos revolucionários de todo o mundo se perguntam ainda hoje (1976)
como a sedição uruguaia foi facilmente derrotada em 1972, quando, por essa
época, já constituía um duplo poder, com um aparelho militar de vários milhares
de combatentes, uma organização clandestina de mais de dez mil militantes e
uma direção político-estratégica que havia causado admiração pela sua audácia
e precisão nas atividades terroristas
168
.
167
FUERZAS ARMADAS. Las Fuerzas Armadas al Pueblo Oriental. Montevideo: Imprenta Oficial,
1976, p. 4.
168
FUERZAS ARMADAS. 1976, op. cit., p. 2.
127
Na verdade, não existe um registro certo sobre o número de membros que
chegou a ter o MLN. A maior parte das estimativas – tanto tupamaras como militares e
policiais – oscilam entre quatro e cinco mil participantes, incluindo simpatizantes com
certo grau de compromisso e integrantes dos Comitês de Apoio aos Tupamaros
CATs. O número efetivo de combatentes foi de 50, no início (1965), e aproximadamente
de 400, no seu período de auge (1971)
169
. Se o número de combatentes
correspondesse às manifestações expressas pelas Forças Armadas (acima) naquele
contexto, possivelmente tivessem chegado à tomada do poder. Isso é hoje reconhecido
tanto pelas Forças Armadas como pelos vários atores políticos da época.
O discurso militar foi fortemente marcado por uma concepção biologicista, a
partir da qual o inimigo era um “câncer” a ser extirpado cirurgicamente da sociedade.
Em suas próprias palavras: “Todo ser vivo – e a Nação é um ser vivo – deve, se quiser
subsistir, defender-se contra tudo aquilo que possa danificá-lo [...]. Perante a agressão
subversiva, que constitui uma enfermidade da nação uruguaia, deve concluir-se que o
primeiro papel da defesa é, e será sempre, o de proteger as bases fundamentais da
sociedade [...]. O corpo social é como os seres humanos: é tarefa preveni-los e atacá-
los quando se manifestam”
170
. A partir da irrupção das Forças Armadas na luta anti-
subversiva (1972), acelera-se o processo de militarização do país que, como vimos,
teve seu início no ano de 1968, desembocando no golpe civil-militar de 1973, momento
em que se fecha, irreversivelmente, o período sesentista.
169
LESSA, Alfonso. La Revolución Imposible: Los Tupamaros y el fracaso de la via armada en el
Uruguay del siglo XX. Montevideo: Fin de Siglo, 2003, p. 25-26.
170
Idem, p. 12-13.
128
7. A ESQUERDA LEGAL (1971) ATÉ O GOLPE CÍVIL-MILITAR (1973)
A tomada de consciência do processo de concentração do poder político e
econômico num setor restrito da sociedade e os interesses que uniam este grupo com a
condição de subordinação aos Estados Unidos levaram os setores populares à
visualização da oligarquia como inimigo de um projeto de país com caráter nacional e
popular. No discurso político, caracterizou-se o regime como oligárquico: conseqüência
da análise de classe e da subordinação internacional do país que se expressava,
nitidamente, nos dois partidos tradicionais – o Partido Blanco e o Partido Colorado
que, até o surgimento da Frente Ampla, possuíam a hegemonia do discurso político
uruguaio.
Segundo Varela (1988), a dicotomia dominante era a que opunha oligarquia –
povo. Mas, em nível de consciência política, isso era falso: segundo o autor, 81% do
povo votante se alinhou, em 1971, a posições que, de uma maneira ou de outra,
negavam tal ponto de vista. Ou seja: permaneciam ligados a setores tradicionais,
dividindo votos entre o bipartidarismo e alguns setores social-democratas ligados a
esses partidos representantes das oligarquias. Varela reconhece que os partidos
tradicionais têm servido, secularmente, aos interesses das oligarquias, mas acrescenta
que seu sistema de frações permite que, ao mesmo tempo, sejam o núcleo de uma
organização política da sociedade civil na qual os atores gozam de uma certa
autonomia que impede o monopólio da condução de massas por uma única classe
171
.
O surgimento da Frente Ampla – FA, faz-se sobre a base dessa polarização: de
um lado, a oligarquia; do outro, o povo. Como recorda Hugo Cores (1999): “Nada do
que protagonizou a esquerda uruguaia posteriormente pode ser entendido se não se
assume que a circunstância fundacional da Frente Ampla esteve presidida por esta
visão polarizada da realidade do país”
172
. Dessa maneira, tomou impulso a iniciativa de
criação de uma nova alternativa política que, baseando-se num programa comum,
171
VARELA, Gonzalo. De La República Liberal Al Estado Militar: Uruguay 1968-1973. Montevideo.
1988, p. 123.
172
CORES, Hugo. Uruguay Hacia la Dictadura 1968-1973. Montevideo: Banda Oriental, 1999, p. 9.
129
abrisse um espaço de ação unitária
173
capaz de disputar a hegemonia eleitoral ao
bipartidarismo tradicional. Entre finais de 1970 e início de 1971, surge a Frente Ampla,
formada por alguns setores dos partidos tradicionais, pela esquerda e por alguns
setores independentes.
A Frente Ampla constituiu-se em cinco de fevereiro de 1971. Ante a convocatória
da Frente del Pueblo, assinaram a ata fundacional as seguintes organizações políticas:
Movimiento por el Gobierno del Pueblo (lista 99, vinculada aos setores progressistas do
Partido Colorado); Partido Democrata Cristiano; Movimiento Blanco Popular y
Progresista (vinculado ao Partido Nacional); Frente Izquierda de Liberación; Partido
Comunista; Partido Socialista; Movimiento Socialista; Movimiento Herrerista (lista 58,
também vinculada ao Partido Nacional); Grupos de Acción Unificadora; Partido Obrero
Revolucionário (Trotskista); Movimiento Revolucionário Oriental e Comité Ejecutivo
Provisório de los Ciudadanos, o qual, em sete de outubro de 1970, havia emitido uma
Declaração
174
expressando que era indispensável a realização de um acordo sem
exclusões entre todas as forças políticas opostas à conduta antipopular e antinacional
do governo, com vistas a estabelecer um programa destinado a superar a crise
estrutural da República, restituir-lhe seu destino de nação independente e reintegrar o
povo na plenitude do exercício de suas liberdades
175
.
Na Declaração Constitutiva, as organizações fundadoras manifestaram que a
unidade política das correntes progressistas, que culminou com a formação da FA, “[...]
se gerou na luta do povo contra a filosofia fascistizante da força. Esta união, por sua
essência e pela sua origem, por ter o povo como protagonista, tem permitido agrupar
173
A partir da década de 1930, com o Golpe de Estado de Gabriel Terra, produziu-se uma importante
mudança qualitativa na constituição de frentes populares unificadoras, em oposição aos governos
fundamentalmente ditatoriais. Na resistência do golpe de 1933 e a partir da atitude assumida pelo Dr.
Carlos Quijano – fundador da Agrupação Nacionalista Democrática Social, em 1928 –, torna-se possível
identificar as origens do FA.
174
A Declaração, acompanhada de uma extensa lista de assinaturas de políticos e intelectuais, estava
dirigida ao povo uruguaio e direcionada ao contexto eleitoral que se aproximava. Na sua essência, a
manifestação resumia-se em três pontos: 1) a convocação para realização de um acordo sem exclusões;
2) ressaltava a necessidade de articulação do mencionado acordo para visar a sua eficiência; 3) que o
mencionado acordo era pré-requisito para a instância eleitoral que se avizinhava. Dessa forma,
exortavam a cidadania a aderir ao acordo como ato afirmativo de uma vontade unitária e como uma
necessidade de se restabelecer a participação democrática no país. FRENTE AMPLIO. Declaração de 7
de outubro de 1970. In: BAYLEY, Miguel Aguire. El Frente Amplio: historia y documentos.
Montevideo: Banda Oriental, 1985, p. 83-84.
175
FRENTE AMPLIO. Declaración Constitutiva y Bases Programáticas. Montevideo: mimeo, 1971, p.
3.
130
fraternalmente representantes de todos os setores da sociedade uruguaia”
176
. A FA foi
concebida como uma frente política unitária, constituída por forças políticas e cidadãos
independentes. Essa frente política unitária não constituiu uma fusão, e sim uma
coalizão e conjunção de forças. Essa situação particular e a necessidade de atuar
coordenadamente em todos os campos de ação política, sob a base de atribuir ao povo
organizado democraticamente o papel de protagonista no processo histórico,
determinou a necessidade de estruturar a FA numa organização com núcleos de base.
Daí nasceram os Comitês de Base da FA, uma de suas maiores particularidades no
cenário político nacional.
Tanto na Declaración del Comité Ejecutivo Provisório de los Ciudadanos como
na Declaração de Princípios e Bases Programáticas da FA é recorrente o tema da
“unificação sem exclusões”. Isso se deve ao fato de que existiu uma proposta frentista
que partiu do Partido Socialista, em 1962, na qual se colocava a necessidade de formar
uma união popular com exclusão do Partido Comunista. Nesse mesmo ano (1962)
nasceu a Frente Izquierda de Liberación – FIdeL, reunindo o conjunto de forças aliadas
com o Partido Comunista, sob a influência da Revolução Cubana. Nessa mesma época
também surgiu a Unión Popular, que nucleou os aliados do Partido Socialista. Quer
dizer que, nesse momento, os socialistas e os comunistas não foram sós às eleições,
senão que em ambas as agrupações eleitorais houve presença, pela primeira vez, de
desprendimentos dos partidos tradicionais: Enrique Erro que se incorpora à Unión
Popular e Ariel Collazo, à FIdeL. Quando foram criadas essas frentes eleitorais,
produziu-se a polêmica na esquerda a respeito de se a unidade devia se fazer com ou
sem exclusões. O Partido Comunista e outros setores da esquerda levantaram a
necessidade de se unir eleitoralmente numa única frente, sem exclusões, o que acabou
acontecendo em 1971
177
.
176
Idem.
177
HUIDOBRO, Eleutério Fernandez. (Entrevista) In: HARNECKER, Marta. Frente Amplio: Los
Desafíos de una Izquierda Legal. Montevideo: La República, vol. 1, 1991, p. 25-26.
131
Em 7 de outubro de 1970 realiza-se uma convocação que teve enorme êxito.
Durante quase três meses, 16 mil pessoas participaram, em todo o país, de
mesas redondas pró-frente ampla, isto quer dizer, a favor de uma frente política
sem exclusões. Em seu começo, o PDC havia propiciado uma frente que
excluía o Partido Comunista. A Frente se fundou em 05 de fevereiro de 1971;
em 15 de março se aprovaram seus documentos básicos e em 26 desse
mesmo mês se realizou o primeiro ato de massas frenteamplista
178
.
Como antecedentes da Declaração Constitutiva da FA, encontramos a
constituição da Convenção Nacional de Trabalhadores – CNT, como central sindical
única
179
(1964-66), seu estreito vínculo com o Congreso del Pueblo
180
, que se realizou
em 1965, e os manifestos comuns que surgiram dos mesmos e foram inscritos como
plataforma de lançamento da Frente Ampla. O programa da FA centrava-se em alguns
postulados vertebrais, como o fortalecimento do Estado e o planejamento, a reforma
agrária, a nacionalização do sistema bancário e do comércio exterior, o controle do
capital estrangeiro, a defesa do trabalho nacional e a independência internacional.
Esses elementos eram comuns às plataformas da esquerda em geral, às reivindicações
do Congreso del Pueblo e da CNT.
Num documento da FA com o nome de 30 Primeras Medidas de Gobierno
181
, de
25 de agosto de 1971, deram-se a conhecer as medidas emergenciais que a FA
tomaria se chegasse a assumir o governo. Essas medidas foram propostas a partir das
“Bases Programáticas”, aprovadas em 17 de fevereiro de 1971, com a intenção de
reconstruir o país, salvá-lo da profunda crise que atravessava e abrir novos horizontes à
vida nacional. Os objetivos dessas medidas tinham como base fornecer melhores
condições para atingir a plenitude da realização humana dos uruguaios, elevando seu
nível de vida e sua formação cultural, para poder obter uma completa participação na
178
RODRÍGUEZ, Hector. (Entrevista) In: HARNECKER, Marta. vol. 1, op.cit., p. 63.
179
A Convención Nacional de Trabajadores – CNT formou-se a partir de uma convocação da Central de
Trabajadores de Uruguay – CTU – feita a todos os sindicatos – filiados ou não – para discutir o
diagnóstico sobre a crise estrutural do país e uma proposta programática para solucioná-la. Tanto o
diagnóstico como o programa proposto reuniu todos os sindicatos do país numa convenção nacional de
sindicatos, de caráter consultivo. Aprovado, tanto o diagnóstico como o programa, apresentou-se um
projeto de regulamento para dotá-lo de caráter permanente, como órgão coordenador da convenção
(1964). No ano seguinte convocou-se o Congreso del Pueblo. A CNT teve, dessa forma, sua origem.
180
O Congreso del Pueblo foi realizado na cidade de Montevidéu, em 1965. Teve a participação de todos
os setores da sociedade organizada, representados por delegações da capital e do interior do país. Dele
surgiram manifestações que postularam as reivindicações que se materializaram, posteriormente, na
fundação da Confederação Nacional de Trabalhadores – CNT e, a partir desta, na Declaração
Programática e na Declaração de Princípios da FA.
181
FRENTE AMPLIO. 30 Primeras Medidas de Gobierno. Montevideo: mimeo, 1971, p. 2.
132
sociedade e em seu governo. A FA se propunha a potencializar ao máximo a
capacidade de trabalho e criatividade do povo, para superar o estancamento econômico
em que se encontrava o país e a recuperação deste sobre as bases de justiça social e
liberdade. O eixo fundamental para realizar esses propósitos era visto como a contínua
participação popular no processo de transformações econômicas, políticas e sociais
necessárias naquele momento histórico.
Nesse documento, e a partir das “Bases Programáticas”, assinalaram-se quatro
medidas fundamentais a adotar – caso o acesso ao governo ocorresse – como base do
processo de transformação: 1) Reforma Agrária; 2) Nacionalização do sistema bancário
privado; 3) Nacionalização dos principais elementos do comércio exterior; e 4) Enérgica
ação industrial do Estado, incluindo a nacionalização da indústria frigorífica. Essas
medidas se entendiam como essenciais para iniciar o processo de mudanças sociais e
econômicas, visto que elas enfrentavam os grandes grupos econômico-financeiros
nacionais e internacionais responsáveis pela crise estrutural do país. A proposta
atacaria os problemas mais urgentes. Seus objetivos imediatos eram:
a) restabelecer o estado de direito;
b) defender a soberania nacional e obter a independência econômica;
c) iniciar o processo de transformações estruturais para atingir a uma maior
capacidade produtiva;
d) redistribuir a renda em favor dos grupos sociais mais afetados pela crise;
e) tornar efetivo o direito ao trabalho, obtendo a máxima ocupação da população;
f) elevar o bem-estar social, resolvendo os problemas de saúde, moradia e
educação;
g) pacificar o país; e
h) sanear a administração pública e dar participação, nela, aos setores
populares
182
.
O trabalho realizado pelos Comitês de Base foi, desde seu início, um dos
aspectos mais interessantes da experiência frenteamplista. Essa experiência se
encontra entre os antecedentes da criação da FA, da confluência política que esta força
representou como fato sem precedentes na história do país. Eles não eram um mero
182
Idem, p. 3-4.
133
instrumento de acumulação de votos, e sim uma instância de participação popular
efetiva, o marco de uma nova etapa política que se abriu no país. Uma política que
exigiu a atividade e a participação permanente de todos os frenteamplistas. Líber
Seregni declarou, a respeito dos Comitês de Base e da participação popular, para o
Semanário Marcha, em 15 de novembro de 1971: “Tem-se um indicador de qual é o
sentido de nossa nova política; do que significa a política de participação, em
contraposição à política de delegação. Nós defendemos que só há uma política popular
com participação popular permanente e que há uma verdadeira delegação só quando
ela é vitalizada, controlada, referendada, pela participação. Neste caminho, seguiremos
inflexíveis”
183
.
Por outro lado, os setores mais combativos da esquerda, centrados no MLN e na
FAU, e a partir desta última, na Resistência Operária Estudantil, assumiram políticas
diferenciadas a respeito da formação da Frente Ampla. Para o MLN, como já
mencionado anteriormente, todas as atividades políticas deviam estar atreladas à luta
armada. Isso fez com que assumisse uma atitude de apoio à FA e, por sua vez, de
diferenciação, destacando, fundamentalmente o apoio para que se organizasse uma
união de forças populares, mas criticando que esta tenha sido criada a propósito das
eleições. A FAU, por sua vez, inicia, com bastante antecipação – já em 1970 –, um
discurso destinado a alertar contra o que, a seu juízo, constituía o desvio eleitoral do
movimento popular. A tradição anarquista implicou na não participação desse
movimento na constituição da FA. Dessa forma, a FAU expressou a concepção da
“aversão à política” de importantes setores de trabalhadores e estudantis. Combinou
com isso um discurso demasiado abstrato e estrategista sobre o significado das
eleições num Estado capitalista.
Para o Governo, convocar as eleições em novembro de 1971 era a forma de
procurar uma instância de legitimação, a confirmação do caráter “democrático” do
governo pachequista, a mando do qual se havia realizado todo o processo repressivo
que teve seu marco inicial em 1968. “Era mesmo assim, abrir uma expectativa de
mudanças e uma tentativa de canalizar a seu favor as tradições democráticas”
184
. Juan
183
SEREGNI, Líber. (Entrevista). Semanário Marcha. Montevideo: 15 de novembro de 1971, p. 16.
184
CORES, Hugo. Uruguay Hacia la Dictadura 1968-1973. Montevideo: Banda Oriental, 1999, p. 63.
134
Maria Bordaberry foi o herdeiro e prosseguidor do governo de Jorge Pacheco Areco.
Como respaldo, contou com amplos setores do latifúndio, banqueiros, grandes
industriais e comerciantes, assim como o alto escalão administrativo e as elites militares
e policiais (fundamentalmente do Exército), já depuradas por Pacheco. As eleições de
1971 ofereceram a este bloco hegemônico o respaldo legal para retomar, desde a
“legalidade” de autoridades “surgidas das urnas”, os lineamentos essenciais à gestão
iniciada por Pacheco
185
.
O governo de Juan Maria Bordaberry (1972-1976) se propôs, no campo
econômico, a estimular a produção agropecuária e outras atividades nas quais o país
fosse competitivo. No âmbito político, mesmo que se proclama respeitoso das
instituições, suas preferências não permitiam maiores esperanças que as já vivenciadas
com Pacheco. Essa nova etapa apresentava desequilíbrios maiores que os de
Pacheco. O poder executivo permaneceria sob controle de uma força sem apoio do
parlamento. A experiência pachequista parecia não ser renovável. Não se definindo por
ser uma ditadura declarada, não podia prescindir do poder legislativo. A luta contra a
subversão era a única tarefa que o governo podia encarar com apoio maciço do
parlamento, permitindo-lhe obter a tolerância do grupo de oposição mais forte – o
ferrerismo, representado por Wilson Ferreira Aldunate, do Partido Blanco – e, através
deste, também isolar a esquerda que se organizava em torno da Frente Ampla.
A maioria da esquerda participava no sentido de conservação do sistema
democrático no qual havia nascido e se desenvolvido. Toda plataforma de governo para
as eleições de 1971 devia conter uma posição de neutralização de conflitos. A
esquerda legal não participava da perspectiva militar dos tupamaros, mas mantinha
boas relações com eles. Seja pela ideologia exposta, como pela coincidência nos
objetivos de mudanças sociais, a esquerda legal e o MLN – Tupamaros conservavam
um campo de referências políticas e culturais comuns. Na visão da esquerda
frenteamplista, os tupamaros não eram nem aventureiros nem delinqüentes; eram, sim,
revolucionários sinceros, mas equivocados, movidos pelas injustiças econômicas e
sociais. O apoio do MLN à FA foi uma constante desde seu nascimento e a participação
de Tupamaros na coalizão – através do Movimento 26 de Março – teve uma
185
CORES, Hugo. op. cit., 1999, p. 129.
135
importância fundamental para a FA, visto que integrou importantes setores juvenis
vinculados à esquerda nacional.
A participação do Movimento 26 de Março aglutinou uma militância entusiasta e
criativa, particularmente juvenil. Essa característica não foi marginal, senão que
recebeu o reconhecimento de setores dirigentes da FA. Como exemplo, pode-se citar a
carta enviada ao Movimento 26 de Março pelo presidente da coalizão, Líber Seregni:
Necessitamos de vocês, companheiros do 26 de Março, para que essa
transformação aconteça. A fecunda participação de vocês nos comitês de
bases, o aumento imponente da militância do 26, que os tem possibilitado
integrar a mesa executiva da FA, os faz indispensáveis no delineamento de
nossa estratégia política e na promoção de uma mudança profunda da vida
uruguaia
186
.
A Frente Ampla foi a condensação orgânica dos eventos políticos e sociais do
período pachequista, da resistência operária e popular a seus abusos, das mobilizações
estudantis, das denúncias parlamentares e jornalísticas. De certa forma, a Frente
Ampla, em sua opção política e eleitoral, marcou uma identificação efetiva com toda a
desconformidade do cenário político uruguaio e a esperança de mudanças de setores
populares cada vez mais amplos e mobilizados que se opunham à política reacionária
das classes dominantes representadas no pachequismo. Desde a perspectiva do
movimento operário e da esquerda em geral, significou a concepção de uma aliança
ampla que atraiu a participação de novos setores populares provenientes das classes
dominadas. Abriu uma instância de participação em torno de um programa progressista
para amplos setores populares, provocando desprendimentos importantes dos partidos
tradicionais e emergiu como resposta popular ao processo de decomposição do
sistema político tradicional e, fundamentalmente, ao bipartidarismo.
Nas eleições posteriores, os partidos tradicionais sistematicamente perderam
votos, individualmente e em conjunto. Em 1971, quando surgiu a FA, o Partido
Colorado e o Partido Nacional, em conjunto, obtiveram mais de 80% dos votos,
enquanto que até 1966 acostumavam obter perto de 90%. Nas eleições de 1984, que
iniciaram a reabertura democrática, a perda chegou a 76% e nas eleições de 1999 a
186
MOVIMIENTO 26 DE MARZO. Carta del Compañero Liber Seregni. Montevideo: mimeo, 1971, p. 2.
136
perda foi de 55%. Dessa forma, a FA se constituiu numa força hegemônica de oposição
ao bipartidarismo e conseguiu um crescimento eleitoral de 21% em 1984 e 40% em
1999
187
. Esses resultados atribuem-se, em grande medida, ao conteúdo de suas bases
programáticas, nas quais a FA definiu-se como uma força nacional e popular
188
,
antioligárquica e antiimperialista, dedicada ao desenvolvimento de um processo de
democratização “real” da sociedade uruguaia.
A Declaração Constitutiva da FA fez um chamamento às forças políticas e aos
cidadãos que compartilhavam as concepções nacional progressista e democrática
avançada, contidas na Plataforma de Princípios, para que se incorporassem à frente
unitária, na qual cada membro manteria sua identidade, mas deveria acatar o Programa
elaborado em comum. Como resultado, temos que os números definitivos
reconheceram 304.275 votos, em todo o país, em favor da FA, o que representou
18,28% dos votos válidos. Cinco senadores, 18 deputados e 51 vereadores nas
distintas Juntas Departamentais (estaduais) colocaram de manifesto a amplitude do
movimento unitário, consolidado em menos de dez meses de atividade, desde sua
fundação até as eleições de 1971
189
.
Em nove de fevereiro de 1972 foi aprovado por unanimidade, no Plenário
Nacional da FA, um documento intitulado Compromiso Político. Nele se manifestava
que as organizações que formavam a FA ratificavam o compromisso de cumprir e
respeitar os acordos estabelecidos na Declaração de Princípios e nas Bases
Programáticas, no Regulamento Geral da Organização e nas 30 Medidas de Governo,
e de lutar por fazer reais os postulados do programa nacional e os programas regionais
aprovados. Expressavam seu firme propósito de manter a unidade e continuidade da
FA, independentemente de quaisquer que fossem as alternativas políticas. Isso
implicava, tanto no governo como na oposição, a necessidade de combinar e coordenar
uma ação política permanente em todos os campos, o que compreendeu mobilizações
187
LANZANO, Jorge. op. cit., p. 31-45.
188
Um significativo percentual de votos da FA na cidade de Montevidéu correspondeu a bairros de
origem popular. Como mostra o trabalho de Bayley, analisando as zonas eleitorais da cidade de
Montevidéu nas eleições de 1971: Zona “Cerro”, 39,7% dos votos; Zona “Paso Molino, La Teja e Victoria”,
36,6%; “Belveder, Pantanoso e Nuevo Paris”, 34,2% dos votos; “La Paloma, La Boyada, Casabó e Carlos
Maria Ramírez”, 34% dos votos. BAYLEY, Miguel Aguire. El Frente Amplio: historia y documentos.
Montevideo: Banda Oriental, 1985, p. 34-35.
189
BAYLEY, Miguel Aguirre. op. cit., p. 32.
137
de massas, atividades de governo e das bancadas parlamentares e municipais para se
atingir os objetivos propostos. Dessa forma, ratificava-se o compromisso político da FA
e de todos os setores que a integravam, mesmo após a derrota eleitoral de 1971, o que
a caracterizaria como uma força política que transcendia o mero interesse das
eleições
190
.
Em 12 de julho de 1972 surgiu outro documento, chamado Definiciones Políticas,
no qual a FA traça seus objetivos para esse contexto e analisa a situação interna, sua
estratégia, e reafirma novamente o compromisso político. Os objetivos enunciados no
documento mostram a clareza da organização quanto ao contexto político que o país
atravessava:
a) Atingir a integração da FA e o apoio à sua linha política de todos os
setores da população, afetados pelo atual regime, e de quantos estejam de
acordo em propiciar soluções nacionais e populares para nosso país.
1. Assalariados em geral: operários e empregados públicos e privados.
2. Pequenos e médios produtores, industriais e comerciantes.
3. Outros setores sociais, tais como profissionais, educadores, estudantes,
aposentados, donas de casa, etc.
4. População marginalizada, urbana e rural.
Em resumo, isso significa integrar à ação de massas todos os setores sociais
cujos interesses e objetivos sejam opostos aos da oligarquia, ou lesionados
pela sua política.
b) Enfrentar o governo na sua ação regressiva no político, econômico e
ideológico com a ação da FA por pontos de seu programa, através de
plataformas de luta de caráter imediato que combatam a ação regressiva e
incrementem os níveis de consciência política necessários para aproximar a
realização do Programa da FA.
c) Combater o regime, caracterizado em sua etapa atual pela intensificação
da ação antipopular e a estrangeirização econômica e política
191
.
Em relação à situação interna da FA, o documento expressava que, em 29 de
abril de 1972, a coalizão manifestou uma linha coerente com seus princípios
programáticos, concretizada na bandeira: Pacificación para los cambios y cambios para
la Paz. O conceito de “pacificação” exposto não era estático, senão dinâmico –
concebendo-se a pacificação como um processo de luta pela paz. “Lutar pela paz
significa lutar pelas mudanças que a assegurem”. Lutar pela soberania nacional; pelos
direitos dos orientais sobre a riqueza do país; lutar pelos direitos humanos vulneráveis;
190
FRENTE AMPLIO. Compromiso Político. Montevideo: mimeo, 1972, p. 2-4.
191
FRENTE AMPLIO. Definiciones Políticas. Montevideo: mimeo, 1972, p. 1-6.
138
pela normalidade institucional e política; lutar por uma justa distribuição da riqueza e da
renda, pelo aumento da produção, pela defesa da moeda nacional. “A paz é um objetivo
em si mesmo, que se obtém através de uma luta permanente durante o processo, tanto
desde a oposição como desde o governo”
192
.
Como métodos para a ação que a FA definia – no documento –, identificava que
o caminho traçado era o das mobilizações de massas, integrando os diversos setores
sociais cujos interesses e objetivos fossem análogos, e elevar sua consciência e sua
capacidade de ação política até atingir os níveis necessários que permitiriam o acesso
ao poder. A FA reafirmava sua decisão, expressa na Declaração Constitutiva, de
esgotar as vias democráticas, a fim de que o povo, mediante sua luta e sua
mobilização, realizasse as grandes transformações pelas quais o país clamava. Como
instrumentos para atingir esses fins, identificava-se a necessidade de empregar todos
os meios eficazes que permitissem unificar as ações de todos os setores do movimento
de massas que perseguissem objetivos coerentes com os da FA. Foram identificados
três grandes grupos estratégicos para atuação:
a) em nível político, a necessidade de coordenar os esforços de todos os grupos
políticos de oposição que enfrentavam o governo;
b) em nível local-regional, os Comitês de Base deviam trabalhar em profundidade
e extensão para consolidar e ampliar a ação de massas; e
c) em nível setorial, os Comitês de Base deviam colaborar para que a dimensão
sindical do movimento de massas se desenvolvesse coerentemente com os
objetivos da FA.
Encerrando o documento Definiciones Políticas, e a título de ratificação do
“compromisso”, pode-se ler:
192
Idem.
139
Os militantes, grupos e partidos políticos integrantes da Frente Ampla estão
obrigados, de acordo ao disposto em seus Documentos Constitutivos e no
Acordo Político, a seguir estes lineamentos de ação política em seus diferentes
níveis de atuação e a não sustentar outras linhas nem o emprego de outros
métodos de luta que os estabelecidos no presente documento, que ratifica e
desenvolve, para a atual conjuntura, os aprovados naqueles documentos, até
que o Plenário Nacional não adote outra resolução
193
.
O documento continha, ainda, um parágrafo onde se assinalava que se deveria
contemplar a necessidade de coordenar ações comuns com organizações, movimentos
e instituições que contemplassem, entre seus objetivos e se ajustassem em seus
métodos, ao estabelecido neste documento. “Em cada caso se resolverá a forma em
que se fará efetiva a dita coordenação”. Este parágrafo abria espaço para a
coordenação de ações com outras organizações. Possivelmente, a influência do
Movimiento 26 de Marzo
194
tivesse marcado a necessidade de se abrir esse espaço.
Por outro lado, durante todo o ano de 1972, o governo de Juan Maria Bordaberry
contou com o apoio dos setores majoritários do Partido Colorado: os ligados a Pacheco
e a “lista 15”, de Jorge Batlle e Julio Maria Sanguinetti, e de setores minoritários do
Partido Nacional – os liderados por Washinton Beltrán, Alberto Heber e Mário
Aguerrondo. Com esses apoios, Bordaberry compôs as medidas repressivas com que
iria governar, preparando a irrupção do golpe militar que aconteceu em 1973. Em
princípios de 1972, o Poder Executivo preparou um Projeto de Lei para o ano que
iniciava. Nele se refletiram as principais preocupações do governo de Bordaberry: o
aumento do efetivo militar, que passava de 37.000 homens, em 1968, para 50.000, em
início de 1973. As Forças Armadas passaram de 18.000 a 28.000 efetivos e a polícia de
19.000 para 22.000 no mesmo período. As Forças Armadas receberam recursos que
implicaram multiplicar por 12 o orçamento militar da época de Pacheco
195
.
Bordaberry foi o herdeiro e deu fielmente continuidade à política de Pacheco.
Seus apoios de classe – banqueiros, latifundiários, grandes industriais e comerciantes,
setores ligados ao comércio exterior, assim como a elite da administração pública, os
altos comandos militares e policiais – foram os mesmos que apoiaram e se
beneficiaram da política econômica implementada no governo de Pacheco. As eleições
193
Idem.
194
O Movimiento 26 de Marzo foi o setor político “legal” do MLN – Tupamaros dentro da FA.
195
QUIJANO, Carlos. Semanário Marcha. Editorial. Montevideo: 22 de setembro de 1972, p. 4.
140
de 1971 forneceram a esse bloco hegemônico o sustento da legalidade para retomar,
desde a “legitimidade” de autoridades “surgidas das urnas”, as linhas essenciais para a
gestão das elites antipopulares da burguesia uruguaia. A política econômica fundo-
monetarista aplicada implicou um ajuste de contas com os setores populares, que viram
suas rendas reduzidas após as eleições, e que entrou paulatinamente em deterioração
durante o ano de 1972. Através do mecanismo inflacionário, o governo conseguiu fazer
retroceder a evolução da distribuição de renda do país em favor da classe capitalista.
No início de 1973, os fatos se precipitaram. Os enfrentamentos de outubro e
novembro de 1972 permitiram vislumbrar a presença aberta, no cenário político, dos
comandos militares
196
. Em janeiro, os comandos militares tomaram a iniciativa, a partir
de definições políticas de importância que estavam em discussão. Em primeiro lugar,
uma nova proposta no plano da legislação repressiva: a chamada de “estado perigoso”
e a regulamentação sindical, sobre a qual se insistia desde os setores pachequistas do
governo. Desde janeiro, a iniciativa militar disseminou-se em várias direções: sobre o
Executivo, onde instalaram a presença de um Ministro da Defesa manipulável pelos
militares – Walter Ravena –, e sobre o próprio Bordaberry e os grupos políticos que lhe
davam apoio. Também sobre a oposição democrática e o Parlamento, os movimentos
populares, a CNT e a FA.
A campanha de denúncias de “corrupção”, estendida logo de forma genérica ao
Parlamento e aos políticos, permitiu aos comandos militares debilitar os grupos políticos
oficialistas – com o presidente incluído –, mas, fundamentalmente, apontou para
recompor uma imagem pública deteriorada pela ação repressiva e, assim, ganhar certa
“popularidade”, o que lhe permitisse dar novos passos em direção ao controle total do
Aparelho de Estado. Desobedecido e impugnado pelos comandos militares, que
rechaçaram a indicação do general Vitor Francese ao cargo de Ministro da Defesa, no
dia oito de fevereiro Bordaberry tentou convocar o povo em defesa da legalidade,
apesar de ser o chefe de um governo que violentou todas as liberdades e direitos
196
Certas circunstâncias externas também contribuíram neste assunto: especialmente a influência dos
golpes de Estado produzidos na Bolívia, Brasil e Argentina, em 1964 e 1966. Os vínculos com militares
argentinos e brasileiros se intensificaram, fundamentalmente na luta contra a “subversão marxista”. A
participação na repressão desde 1968, a condução da luta contra-insurgente a partir de 1971 e a
ampliação da jurisdição militar desde 1972 foram elementos decisivos para determinar a tendência das
Forças Armadas por sua completa ocupação dos espaços políticos e do Golpe de Estado.
141
democráticos e afundou o país num clima de autoritarismo extremo. O chamado ao
povo fracassou. Bordaberry, então, em poucas horas, acatou as exigências dos
militares, efetivando-se, assim, o acordo de Boiso Lanza
197
.
A precariedade do sistema político, a debilidade do apoio popular aos partidos
tradicionais e, em particular, àqueles que haviam “triunfado” nas eleições de 1971, ficou
em evidência. Os episódios de fevereiro marcaram um corte no processo de
deterioração do sistema de dominação tradicional no Uruguai
198
. Dessa forma, chegou-
se ao final de uma época e abriu-se o início de outra, que implicou em 10 anos de
ditadura. Nesse contexto, os partidos tradicionais não estiveram dispostos a enfrentar o
avanço militar e a criação do Cosena. Na esquerda, por sua parte, surgiram diferenças
de apreciação importantes sobre o significado do pronunciamento militar de nove de
fevereiro. Alguns setores da esquerda “interpretaram” como um fator positivo as
supostas manifestações militares em torno de um projeto de cunho “populista”.
Na Mensagem nº. 3, de 1º. de julho de 1973, sob o título, Del Frente Amplio al
Pueblo Oriental, realizaram-se as primeiras manifestações oficiais da FA a respeito do
Golpe de Estado civil-militar de 27 de junho. O documento afirma que ante a dissolução
de todos os órgãos representativos da cidadania e da exclusão de todos os setores
políticos culminava um processo histórico que se iniciou em 1968. Acusa Bordaberry de
latifundiário e porta-voz das classes dominantes, admirador da ditadura brasileira, que
teve a audácia de atribuir-se a representação da maioria do país, sendo que chegou ao
governo por 22% dos votos da cidadania. A responsabilidade pelo golpe foi atribuída –
nesse documento – a Bordaberry, como representante da oligarquia e das classes
conservadoras nacionais, permitindo, desta forma, a caracterização de ditadura civil-
militar.
Desse modo, a polarização da contradição oligarquia-povo chegou a seu ápice.
“Nem as classes dominantes, nem o império que as apóia podem já continuar
enganando ao povo. O único argumento que resta é agora a força. [...] dentro deste
197
Este acordo produz uma nova reforma constitucional “de fato” que implantou, por decreto, a presença
do alto comando militar no Poder Executivo, através do Cosena (Conselho de Segurança Nacional), cujo
primeiro secretário geral era o homem forte da situação, o general Gregório Alvarez.
198
CORES, Hugo. 1999. op. cit., p. 179.
142
panorama, as Forças Armadas atuam neste momento, apesar de seus
pronunciamentos em contrário
199
, como braço armado dos grupos econômicos e
políticos”
200
. Outros setores do movimento popular fizeram uma valorização da
conjuntura, baseada na idéia de que “a oligarquia está debilitada” e “há forças que
fazem todo o possível para deter o processo desencadeado pelos comunicados 4 e 7”;
essas declarações são da Convenção Nacional de Trabalhadores – CNT, de abril de
1973. Nos primeiros dias do mês de março, o Conselho Central da Associação de
Empregados Bancários do Uruguai – Aebu, uma organização sindical de trajetória no
cenário das lutas sindicais do país, já havia publicado no jornal Ahora um documento no
qual expressa: “[...] os comunicados 4 e 7, emitidos pelas Forças Armadas, expressam
um sentido que qualificamos de positivo, desde o momento que questionam a política
desenvolvida pela oligarquia em nosso país. [...] É inocultável e coincidente com as
posições da classe trabalhadora a definição inédita, por parte das Forças Armadas, de
que não serão o braço armado de grupos econômicos e políticos [...]”
201
. Essas
declarações de parte do movimento sindical não expressavam as opiniões de todo o
movimento, mas foram reflexo do que os setores dirigentes da CNT – ligados ao Partido
Comunista – interpretaram dos comunicados militares.
Para a FA, o papel protagonizado pelas Forças Armadas no Golpe de Estado era
muito claro: elas constituíam o centro de poder dos mesmos interesses antinacionais
contra os quais lutava a FA. O documento Del Frente Amplio al Pueblo Oriental
convocava todas as forças políticas autenticamente populares a se unirem no
enfrentamento à ditadura. Negou toda e qualquer legitimidade da situação, manifestou
seu repúdio à dissolução do Parlamento e exigia a destituição de Bordaberry. E
acrescentava, fechando a mensagem: “As medidas políticas, econômicas e sociais de
199
O Comunicado nº. 4, elaborado pelos Comandos Militares Conjuntos do Exército e da Força Aérea, de
nove de fevereiro de 1973, assinado pelo Comandante en Jefe de la Fuerza Aérea, brigadeiro José Pérez
Caldas, e pelo Comandante del Ejército en Operaciones, general Hugo Chiappe Posse, caracterizou o
início de uma etapa que marcaria definitivamente o começo do golpe civil-militar. Nesse comunicado – e
também no comunicado nº. 7, emitido no dia seguinte –, os militares levantaram uma série de medidas a
serem tomadas, de tom claramente populista, o que implicou que grande parte da esquerda as
interpretasse como uma tendência “peruanista” (em relação ao regime de Velasco Alvarado, 1968, no
Peru) dentro das Forças Armadas, o que não era real. Nesses comunicados manifestou-se que as Forças
Armadas não seriam o braço armado de setores políticos nem de grupos econômicos.
200
FRENTE AMPLIO. Mensaje nº. 3: Del Frente Amplio al Pueblo Oriental. Montevideo: mimeo, 1973,
p. 2.
201
AEBU. Ahora: In: CORES. 1999. op. cit., p. 183.
143
fundo deverão ser adotadas pelos verdadeiros representantes de todos os setores
nacionais e populares”
202
.
Numa entrevista do general Líber Seregni, em 1973, o jornalista Omar Prego
perguntou ao líder frenteamplista se seu movimento insistia no pedido de renúncia do
presidente Bordaberry. Na oportunidade, Seregni respondeu: “O governo que ganhou
as últimas eleições representa, in totum, os interesses de uma classe social privilegiada
e desempenha uma gestão que, por favorecer exclusivamente esses interesses, segue
o rumo contrário ao do bem-estar dos trabalhadores”
203
. Seregni apontou a
necessidade da renúncia do presidente, mas não por que a pessoa do mesmo seja
exclusivamente o problema, e sim uma de suas partes. Era evidente que a renúncia de
Bordaberry e sua substituição institucional não resolveriam, de forma substancial, a
situação do país, visto que o elenco governamental na íntegra representava o avanço
do modelo autoritário.
202
FRENTE AMPLIO. Mensaje nº. 3. op. cit., p. 3-4.
203
PREGO, Omar. Reportaje a un Golpe de Estado. Montevideo: La República, 1988, p. 9.
144
CAPÍTULO II
OS PROCESSOS DE TRANSIÇÃO DA ESQUERDA URUGUAIA:
ENTRE A DITADURA E A RECUPERAÇÃO DEMOCRÁTICA 1973 – 1994
1. DA RESISTÊNCIA A CONSOLIDAÇÃO DO GOLPE CIVIL-MILITAR
Um conjunto de episódios políticos ocorridos na América Latina, nos anos de 1961 a
1964, marcaram com muita força a consciência dos trabalhadores uruguaios. Por sua
vez, no país, desde 1955, acentuava-se a crise sócio-econômica e a dinâmica da luta
social e política. No contexto internacional, particularmente após a Revolução Cubana,
logo depois do Golpe de Estado no Brasil, em 1964, e do fracasso de uma declaração
de greve geral realizada pelos sindicatos brasileiros, o movimento operário uruguaio
começou a estudar que medidas de resistência poderiam ser tomadas no caso de uma
tentativa golpista.
Aqui há alguns detalhes a serem considerados: o Golpe Militar no Brasil (que contou
com o apoio dos EUA) derrubou o governo de João Goulart. Por sua parte, como
solução à crise, o movimento sindical uruguaio sustentava a necessidade de um
programa de reformas e de mudanças no país. A possibilidade de que ocorresse um
golpe militar que destruísse a ação dos sindicatos, bloqueando todo seu programa, e
que, além disso, substituísse o regime democrático, passou a ser uma possibilidade
certa. Isso gerou, no movimento sindical uruguaio, uma profunda preocupação.
Nesse período (1964) iniciava-se um intenso debate: que medidas eficazes de
resistência poderiam ser tomadas caso se produzisse um Golpe de Estado? Houve
diversidade de análises da realidade e diferentes propostas. Pouco a pouco, afirmou-se
no pensamento dos trabalhadores a idéia de enfrentar qualquer tentativa de Golpe de
Estado com uma greve geral e a ocupação dos lugares de trabalho. Obviamente que
não se esperava que essa medida fosse um elemento de contenção absolutamente
seguro contra o embate de força militar. A greve e a ocupação funcionariam como fator
145
central numa luta global, na qual, para definir favoravelmente o confronto, requerer-se-
iam formas complementares de ação.
O acontecido nos anos posteriores, com a consolidação das ditaduras militares
na região – ao Brasil, somou-se a Argentina quando, em 28 de junho de 1966, o
general Juan Carlos Onganía derrotou o presidente constitucional Arturo Illia – e o
aprofundamento, no Uruguai, da escalada fundo-monetarista e autoritária, reafirmou a
decisão da Confederação Nacional de Trabalhadores – CNT. No estatuto elaborado
pela CNT estabelecia-se expressamente que a declaração de greve geral devia ser
remetida aos sindicatos antecipadamente (15 dias), para sua aprovação nas
respectivas assembléias. Além disso, a título excepcional, estipulou-se que, “em caso
de ataques graves às liberdades públicas”
204
, as autoridades da convenção estavam
liberadas para declarar medidas de luta e, inclusive, a greve geral. Esta norma
estatutária foi referendada pelos sindicatos.
O aprofundamento da crise sócio-econômica, onde estavam em jogo fatores
externos e internos no que se refere à economia internacional e à própria estrutura
subdesenvolvida do Uruguai, teve como conseqüência inevitável o aumento das
tensões sociais refletidas, particularmente, na atividade sindical. A reiteração de greves
e a freqüência das medidas de luta consideradas especialmente graves, tais como
mobilizações massivas, enfrentamentos com as forças policiais, ocupações de fábricas,
entre outras, teve como conseqüência direta a viabilidade da unificação do movimento
operário. Em curto prazo, o efeito visível foi a transformação da convivência social:
acrescentou-lhe um clima de permanente enfrentamento social que não era freqüente
no país.
Dessa forma, o movimento sindical se viu imerso numa realidade complexa e
mutante, em que o social, o econômico, o político, o sindical e, inclusive, o ideológico
estavam intimamente relacionados entre si. Os anos que vão de 1967 a 1971 foram
para o movimento sindical, já unificado (ver capítulo I), de enfrentamento com o governo
de Jorge Pacheco Areco. Esse governo foi marcado por um projeto autoritário e
conservador, no qual a aplicação de Medidas de Segurança constituiu-se no preâmbulo
204
CNT. Documentos Sindicales. Montevideo: Centro Uruguay Independiente, 1885, p. 17.
146
para o congelamento salarial, dando-se acesso à interpretação fundo-monetarista da
inflação
205
que vinculava este fenômeno ao excesso de demanda provocado pela
expansão do crédito, o déficit fiscal e, principalmente, pelos salários.
Esses foram os chamados “anos duros”, no quais os enfrentamentos foram cada
vez mais violentos, marcados pela morte de estudantes e trabalhadores. Por um lado, a
corrente sindical de orientação comunista traçava uma estratégia que podia
caracterizar-se, genericamente, como de luta prolongada na busca permanente de
contatos com outras forças sociais e políticas para a elaboração de um plano nacional
perante a crise
206
. Por sua vez, a estratégia impulsionada pela tendência combativa
priorizou um enfrentamento mais enérgico com as patronais e o governo, e reclamou, à
CNT, medidas mais concretas e globais para enfrentar o pachequismo.
A fundação da Frente Ampla, em fevereiro de 1971, repercutiu
extraordinariamente, no seio do movimento sindical. Nesse ano aconteceram as
eleições gerais e a vida social, política e econômica do país pareceu girar em torno do
assunto; mesmo assim, a luta sindical não se deteve. No início de 1972, após o triunfo
do Partido Colorado nas eleições nacionais e a assunção à Presidência da República
de Juan Maria Bordaberry, José D´Elia – presidente da CNT – fixou sua posição a
respeito da orientação política do novo governo: “Os lineamentos da orientação do
governo instalado, nos seus aspectos fundamentais – econômicos, políticos e sociais –
não permitem apreciar diferenças marcantes com o anterior governo de Jorge Pacheco
Areco”
207
.
No dia sete de fevereiro de 1973, uma declaração do Secretariado Executivo da
CNT
208
reafirmava o combate pelas reivindicações econômicas e sociais, pelas
liberdades sindicais e democráticas, unidas a um programa para mudanças estruturais
205
MELGAR, Alicia; CANCELA, Walter. Economia: La Hora del Balance 1958 – 1983. Montevideo:
CLAEH, 1984, p. 11.
206
Para compreender a estratégia que se desenvolvia nesses anos, por parte da corrente sindical
comunista deve-se lembrar que com a ilegalização – em 12 de dezembro de 1967 – de vários grupos
políticos de esquerda, por decreto do presidente Jorge Pacheco Areco, o Partido Comunista passou a ser
a única força legal da esquerda. Isso a condicionou em grande parte, por ser a força hegemônica dentro
do movimento popular. Isso explicou, também em parte, sua atitude “de diálogo”, procurando,
principalmente, uma saída “política” para a situação.
207
CHAGAS, Jorge; TONARELLI, Mario. El Sindicalismo Uruguayo Bajo la Dictadura: 1973 – 1984.
Montevideo: Mundo Nuevo, 1989, p. 29.
208
FASANO, Mertens Federico. Despues de la Derrota: un eslabón débil llamado Uruguay.
Montevideo: Nueva Imagen, 1980, p. 152.
147
que “terminassem com a exploração, a corrupção e as negociatas de banqueiros,
latifundiários, exploradores e imperialistas estrangeiros”, reafirmando a disposição
assumida anteriormente de ocupar fábricas e lugares de trabalho, organizando, desde
os mesmos, as mobilizações para impulsionar a resistência e se opor a todo propósito
antidemocrático.
Posteriormente, em 26 de março de 1973, a CNT rejeitava publicamente o
projeto de Consolidação da Paz (Lei do Estado Perigoso) que o Poder Executivo
encaminhou à Assembléia Geral. Dois dias mais tarde, Juan Maria Bordaberry
pronunciou um discurso contra a CNT. Acusou a Central e seus dirigentes de serem
movidos por diretivas político-ideológicas, e não por motivações sindicais
209
. Como
resposta da CNT, no dia seguinte, ocuparam-se as fábricas, organizaram-se atos e
reuniões informativas nos bairros de Montevidéu e paralisações em todas as empresas
públicas. No final do dia, realizou-se um grande ato de massas, no qual se analisou a
plataforma de reivindicações e se exigiu a renúncia do presidente Bordaberry.
Mais adiante, realizou-se uma paralisação geral em 21 de junho de 1973. Seis dias
mais tarde, ocorreu o Golpe de Estado. A CNT, diante dos decretos ditatoriais, colocou
em prática as resoluções adotadas desde tempos atrás: declarou a Greve Geral e tanto
em Montevidéu como no interior do país foram ocupados os lugares de trabalho. No dia
28 de junho, o Governo propôs uma negociação para a crise. Para tal, o coronel Nestor
Bolentini, militar, advogado e ministro do Interior, assumiu a representação
governamental, solicitando uma reunião aos dirigentes da CNT. Após a primeira
entrevista, a central sindical divulgou uma plataforma mínima que considerava essencial
para a recuperação do país. Essa tinha por conteúdo cinco pontos básicos:
1) Plena vigência das garantias para a atividade sindical, política e de liberdade de
expressão;
2) Restabelecimento de todas as garantias e direitos constitucionais;
3) Medidas imediatas de saneamento econômico [...] especialmente: nacionalização
do sistema bancário e do comércio exterior e da indústria frigorífica
210
;
209
CHAGAS, Jorge; TONARELLI, Mario, op, cit., p. 31.
210
No início do ano, o governo coloca em marcha um plano para “modernizar” a indústria frigorífica.
Nessa linha, em 12 de fevereiro, por decreto, ficou sob intervenção governamental o frigorífico “El
Frigonal”; e os interventores reduziram a capacidade de produção. Essas medidas custaram a perda de
148
4) Recuperação do poder aquisitivo dos salários e aposentadorias; contenção de
preços, subsidiando os artigos de consumo popular;
5) Erradicação dos bandos fascistas que atuavam impunemente [...]
211
.
Em 30 de junho, a resposta do Governo foi anunciada pelo rádio: o decreto de
dissolução da CNT – declarada como associação ilícita –, ordenaram-se o fechamento
de seus locais e as prisões de seus dirigentes. A luta entrou numa nova fase: as
fábricas eram desocupadas pelo Exército e imediatamente recuperadas pelos
trabalhadores. O Boletim nº1 da CNT informava: “A Greve Geral e as ocupações
tomaram um volume contundente. Milhares de lugares de trabalho estão ocupados;
pessoal que nunca havia ocupado seu lugar de trabalho, pessoal que não estava
organizado, está em Greve Geral. As ocupações seguem com total firmeza”
212
. Toda a
comunidade, de uma forma ou de outra, se via envolvida na luta entre o governo
golpista e a classe trabalhadora.
O Governo realizou mais uma investida repressiva contra os trabalhadores no dia
quatro de julho. Por decreto, autorizou as administrações estaduais e os organismos
públicos a demitir, sem indenização, os empregados em greve e os que
desenvolvessem “outras formas de trabalho irregular”, disposição que se fez extensiva
à indústria privada. Isso teve um impacto assombroso: os trabalhadores que estavam
em licença médica ou se encontravam presos na data também foram atingidos por essa
norma
213
. A greve começou a declinar entre sete e nove de julho. Lentamente ocorreu o
reinício do trabalho no transporte coletivo, serviços públicos, administração central,
correios, porto, entre outros. As Forças Armadas concentraram suas ações nos centros
de abastecimento de combustíveis e no funcionamento do transporte coletivo, como
elementos-chave para quebrar a greve.
O aparelho repressivo desenvolveu, rapidamente, a maior e mais violenta
operação de “guerra interna” contra os setores populares que a história contemporânea
uruguaia registrou. Ginásios esportivos fechados transformaram-se em lugares de
1.000 postos de trabalho. Além disso, nos frigoríficos Comargem, Cruz del Sur, e Sudamericano,
produziram-se demissões massivas.
211
CHAGAS, Jorge; TONARELLI, Mario. op, cit., p. 54.
212
CNT. Boletín nº1. A los Trabajadores en Lucha. Montevideo: mimeo, junho de 1973, p. 2.
213
ALVAREZ, Mantero Ricardo. Historia del Movimiento Sindical Uruguayo. Montevideo: Fundación
de Cultura Universitaria, 2003, p. 129.
149
detenção e torturas, o Exército ocupou os órgãos administrativos públicos, as plantas
industriais e os setores de serviços do Estado, as principais fábricas privadas do país –
onde se concentrava, em maior número e grau de importância, a resistência. Os lugares
de trabalho foram ocupados pelas Forças Armadas e a Greve Geral chegou a uma
situação de esgotamento definitivo.
Paralelamente, na medida em que se prolongava a greve e as deficiências
tomaram visibilidade, as instâncias de discussão na CNT começaram a tornar-se
extremamente difíceis. O eixo de tensão foram as relações da Frente Ampla com a CNT
durante a greve. Na central sindical apresentaram-se duas posições contrapostas: os
comunistas, que foram partidários de que a greve fosse conduzida exclusivamente
pelos sindicatos, e, por outra parte, a Tendencia e a Corriente, que reclamavam um
papel mais ativo da Frente Ampla no transcurso do conflito. Nesse contexto, a maioria
das lideranças sindicais da CNT foi detida pela repressão, fato que contribuiu para o
enfraquecimento da Central Sindical.
Ao mesmo tempo, dentro do movimento estudantil, que havia sido solidário com
a greve, aconteceram discussões que levaram a duas posições: uma que sustentava a
necessidade de contribuir e dar o máximo de combatividade solidária para a greve
quando as Forças Armadas começaram a quebrá-la a partir da movimentação do
transporte coletivo; e outra que defendia que o movimento estudantil devia abster-se de
atuar, visto que se os trabalhadores não conseguiam sustentar a greve, não era
possível dar suporte a eles. Esta última posição ficou numa situação muito difícil, dado
que o movimento sindical recorreu, naquele momento, aos estudantes para solicitar a
sua presença e participação solidária.
A CNT e a Frente Ampla convocaram uma grande manifestação que se realizou
às 17 horas do dia nove de julho, na principal avenida de Montevidéu – de nome, 18 de
julho –, na qual participaram milhares de pessoas. Esse ato de massas foi o último
protagonizado durante a Greve Geral. A manifestação foi fortemente reprimida: como
saldo, houve aproximadamente 40 feridos e mais de 400 detidos pelas forças
repressoras. Na noite do dia nove, seguiram-se as detenções de dirigentes sindicais e
das principais lideranças da Frente Ampla. Entre os detidos encontravam-se Líber
Seregni e Carlos Zufriategui, ambos generais do Exército e dirigentes frentistas.
150
Em 10 de julho, as últimas tentativas de resistência por parte de sindicatos
vinculados à Tendência elaboraram uma proposta intitulada Bases de Salida de la
Huelga General, na qual se expressava que não era possível conceder à Ditadura “uma
trégua para recompor suas forças e lançar-se novamente conta o povo”
214
e faziam uma
proposta que exigia garantias mínimas para a finalização da greve. Essas garantias
incluíam: livre funcionamento dos sindicatos, anulação do decreto que declarava ilícita a
CNT e perseguia seus dirigentes, liberdade para os presos políticos, restabelecimento
das liberdades e reconhecimento dos direitos constitucionais.
As tentativas de negociações para a finalização da greve fracassaram.
Clandestinamente reunida, a mesa representativa da CNT tinha que resolver: o que
fazer com a Greve Geral? Nessa reunião, em 11 de julho, chegou-se à decisão, por
votação, de suspender a greve. Em comunicado da CNT, anunciou-se o término da
Greve Geral. Reconhecia-se o espírito de sacrifício, a dignidade da classe operária e
acusava-se Bordaberry de haver instalado uma ditadura fascista. O comunicado da
CNT, intitulado Mensaje de la CNT a los Trabajadores Uruguayos,
215
ressaltou a
valorização positiva dos Comunicados 4 e 7 (ver capítulo I) e lamentou que as Forças
Armadas, ao participar do golpe, tenham-se alinhado em posições opostas a eles.
Por outra parte, os sindicatos onde dominavam a Tendencia combativa e a
Corriente (as federações dos trabalhadores da saúde, da bebida e da borracha)
elaboraram outro documento, no qual foram sumamente críticos a respeito da
orientação tático-estratégica da corrente comunista – predominante na direção da CNT
– e quanto ao balanço da Greve Geral. Considerava-se a experiência da Greve Geral
como a ação política mais importante desenvolvida no Uruguai pelo conjunto do
proletariado, dos setores assalariados, os estudantes e vastos setores sociais.
O documento assinalava como principais insuficiências da Central Sindical: a
prática de um sindicalismo conciliador, um sistemático “enfraquecimento” dos métodos
adotados, uma condenação constante, por parte de setores do movimento sindical, de
toda expressão de radicalização dos métodos de luta. Também ressaltavam, na crítica,
a insuficiência de quadros intermediários legitimados pelas bases e a prática de um
214
CHAGAS, Jorge; TONARELLI, Mario. op. cit., p. 75-76.
215
CNT. Mensaje a los Trabajadores Uruguayos. Montevideo: mimeo, 11 de julho de 1973. (Arquivo
da CNT).
151
sindicalismo de tipo reivindicativo desvinculado de aspectos programáticos, onde se
podia encontrar a explicação das graves carências que muitos sindicatos
vivenciaram
216
. Além do documento, a Tendencia apontava para a reflexão e a
autocrítica da condução geral da greve. Independentemente dos variados enfoques, a
greve terminou. Uma batalha foi finalizada, mas começariam outras, sob outras formas.
Derrotada a primeira resistência ao Golpe de Estado, o país submergiu num novo
“tempo político”, extremamente complexo e que se estendeu até junho de 1976, quando
ocorreu a derrota de José Maria Bordaberry, o último presidente constitucional e que
teve o papel de transmissor civil do governo para a consolidação da ditadura militar. O
processo golpista que se iniciou em 1973 contou com a participação civil de vários
setores conservadores e com o apoio das oligarquias nacionais, representadas pelo
presidente Bordaberry. O processo culminou em 1976, quando o poder militar
descartou o apoio e colaboração permanentes desses setores – o que caracterizou o
processo ditatorial como civil-militar – e assumiu o poder militar na sua totalidade
217
.
Durante 1974, a Ditadura confirmou suas definições através de importantes
mudanças constitucionais e hierárquicas, além de um aumento substancial da
repressão e um controle autoritário sobre a sociedade civil. Com a finalidade de
assegurar o poder de tutela e tornar mais efetivo seu controle sobre as instituições do
país, os militares integraram, maciçamente, a administração do Estado de duas formas:
por um lado, substituíram o pessoal político que, nos organismos existentes, exercia
cargos de direção e, por outro lado, criaram instâncias civil-militares e novos
organismos que dispunham de amplíssimas atribuições. Como exemplo, podemos citar
a estruturação do Conselho de Segurança Nacional – Cosena que, sob a direção
exclusivamente militar, foi o efetivo órgão de poder do governo.
No transcurso do ano de 1975 produziu-se uma crise entre os militares e o
presidente Bordaberry, pelo motivo de que este último destituiu Eduardo Peile,
216
ROE. Boletin de la Resistencia Obrera Estudiantil. Montevideo: mimeo, julho de 1973, p. 2.
217
O processo golpista, que teve seu início em 1973, contou com a participação de vastos setores civis
que deram certa “legitimidade” ao avanço militar. Nesse momento, o papel protagonizado pelo presidente
Bordaberry foi fundamental para o argumento de que se possuía um presidente constitucional eleito pelo
voto democrático. Por esse motivo, chama-se de ditadura civil-militar o início do processo autoritário.
Posteriormente, a partir de 1976, os militares desprezaram toda participação civil no Governo e
assumiram todas as posições estratégicas da administração nacional, possibilitando a designação (a
partir de 1976) de Ditadura Militar.
152
presidente do Instituto Nacional da Carne, de seu cargo: os militares apoiavam Peile e
fizeram um chamado de atenção a Bordaberry para que reavaliasse a sua postura.
Finalmente, Bordaberry retrocedeu na sua decisão, restituindo Peile ao cargo e
desculpando-se com os militares por seu “atrevimento”. Paralelamente a esses embates
“internos”, entre finais de 1975 e inícios de 1976, o governo ditatorial incrementou uma
forte repressão, focada, no seu início, sobre o Partido Comunista, mas que se voltou
contra todos os setores populares. Nesta escalada repressiva aconteceram as
“desaparições forçadas” de vários dirigentes sindicais. Note-se que a luta armada no
país tinha sido desarticulada, na sua totalidade, em 1972, ou seja, a repressão
seqüestrou e sumiu com militantes de esquerda de diversas filiações, fora do período
da “luta anti-subversiva” oficial.
Em março de 1976, Isabel Perón foi derrotada na Argentina pelo Golpe de
Estado liderado pelo general Jorge Videla, iniciando-se a chamada Guerra Súcia.
Começou, a partir dessa, a coordenação repressiva entre Argentina, Chile, Paraguai,
Brasil e Uruguai. O Plano Condor desenvolveu, desde finais de 1975, suas ações
repressivas num autêntico exemplo de globalização do autoritarismo e da repressão,
sem precedentes no âmbito da América Latina. Nesse contexto de repressão inter e
transpaíses do Cone Sul foram seqüestrados e desapareceram os principais dirigentes
sindicais uruguaios na República Argentina, como os casos de Leon Duarte, operário e
dirigente do Sindicato da Borracha e da Tendência Combativa, e Gerardo Gatti,
dirigente sindical do setor gráfico e um dos principais líderes da Tendência Combativa.
Entrementes, no mês de março de 1976, o general Alfredo Stroessner, ditador-
presidente do Paraguai, visitou Montevidéu. Foi recebido, numa sessão solene, pelo
Conselho de Estado, que lhe outorgou uma condecoração. Pouco tempo depois – um
mês – outra prestigiosa figura visitou o Uruguai: foi a vez do general Augusto Pinochet
que, da mesma forma que seu contemporâneo paraguaio, foi condecorado em sessão
solene e, na oportunidade, a imprensa uruguaia dedicou várias páginas de suas
edições para explicar ao povo uruguaio como o ilustre visitante libertou o povo do Chile
das garras do comunismo internacional, derrubando o perigoso inimigo da
“democracia”, Salvador Allende.
153
Por outro lado, durante o período de 1973 a 1976, a CNT constituiu uma
estrutura clandestina com um aceitável grau de eficiência. Inúmeras ações de
resistência foram desenvolvidas através da coordenação da central sindical.
Paralelamente, outras organizações vinculadas à Tendencia Combativa – como a
Resistencia Obrera Estudiantil (ROE) – radicalizaram ações de resistência e
propuseram, no seio do movimento sindical, uma série de estratégias que visavam à
desestabilização do governo ditatorial. Essa postura foi de peso significativo e esteve
vinculada ao sindicato da borracha, onde se cogitou a necessidade de formar uma
estrutura organizacional que permitisse realizar ações clandestinas no marco de um
grande movimento nacional.
Por sua vez, a corrente sindical liderada pelo Partido Comunista – força
hegemônica na Central Sindical – sustentava a estratégia de enfrentamento frontal com
o regime ditatorial. Obviamente, isso pressupunha um nível de conscientização e de
compromisso por parte da militância, e a bandeira levantada nessa época resume
cabalmente sua orientação, “nenhum dia de trégua à ditadura”. Por sua parte, a
corrente sindical socialista sustentava que diante de uma situação objetiva – o
desgaste provocado pela Greve Geral – devia-se iniciar um processo de acumulação de
forças. Isso significava uma parcialização dos conflitos, ou seja, uma estratégia que
visava a um enfrentamento exclusivamente nos locais de trabalho, como forma de
conscientizar as classes trabalhadoras da necessidade de organizar-se novamente e de
confiar nas suas entidades de classe.
Enquanto isso, em 1976, Aparício Méndez assumiu a presidência da República.
Suas primeiras declarações foram surpreendentes: manifestou que sua designação
“não era um ato popular, nem poderia sê-lo nas circunstâncias da época, e era pouco
provável que o povo o elegesse, de ter essa possibilidade, por carecer das condições
necessárias para ser um candidato presidencial”
218
. Apesar da notável sinceridade do
presidente, o comandante geral das Forças Armadas, Julio César Vadora, declarou que
nunca teria término o governo civil-militar e anunciou uma “abertura democrática” no
218
LERIN, François; TORRES, Cristina. Historia Política de la Dictadura Uruguaya 1973-1980.
Montevideo: Nuevo Mundo, 1987, p. 79.
154
prazo de cinco anos, com eleições nacionais, com um candidato único – à escolha das
Forças Armadas – para o ano de 1981.
Nos primeiros meses de governo, o presidente Aparício Méndez, num estilo
soberbo e autoritário, declarou à imprensa que “o Partido Democrata dos Estados
Unidos, era o melhor aliado da sedição”,
219
pelo motivo da resolução do Congresso dos
Estados Unidos de suspender a ajuda militar ao Uruguai. A publicação dessa
manifestação provocou um enorme escândalo nacional que culminou com um formal
pedido de desculpas aos Estados Unidos por parte do regime ditatorial, a censura do
jornal que publicou a notícia e a demissão do jornalista. A isso se soma a censura que o
próprio Cosena impôs ao presidente o que a partir desse “incidente”, não realizou mais
manifestações públicas, as quais ficaram a cargo do Cosena.
No início de 1978, os altos comandos militares atravessaram um processo de
crise interna. O general Gregório Alvarez realizou uma investigação que denunciou
irregularidades na cúpula das Forças Armadas. Essas irregularidades incluíam: uso
indevido dos recursos públicos, irregularidades no orçamento do Ministério do Interior,
tráfico de influências e outros tipos de clientelismos. Sobre essa base, Alvarez
apresentou um dossiê ao Comando Geral das Forças Armadas e exigiu mudanças nas
cúpulas militares, como condição para não divulgar tais informações. Advertiu ainda
que, caso não se cumprissem essas mudanças, as divisões militares sob seu comando
do interior do país avançariam sobre a capital. Como resultado das pressões de
Alvarez, sua designação para assumir a Chefia Geral das Forças Armadas aconteceu
ainda naquele mesmo ano. A nomeação de Alvarez deu início a uma nova linha política
que procurou oferecer uma base política ao regime e uma resposta às pressões
internacionais que se intensificaram.
Em fevereiro de 1979, o general Luis Queirolo tornou-se o novo Comandante em
Chefe do Exército; Gregório Alvarez passou à reserva. O governo ditatorial anunciou
um novo calendário eleitoral, uma nova Constituição, que seria submetida a plebiscito
para 1980, eleições com candidato único em 1981 e, em 1986, eleições com dois
candidatos. Por sua parte, o diretório do proscrito Partido Nacional emitiu uma
declaração crítica sobre a proposta militar de “democratização” do país. Como resposta
219
CHAGAS, Jorge; TONARELLI, Mario. op. cit. P. 151.
155
às críticas, os dirigentes blancos Alberto Lacalle, Mario Heber e Carlos Julio Pereira
receberam anonimamente, nas suas residências, um “presente”: garrafas de vinho
envenenado. Esse atentado custou a vida da esposa de Heber e nunca se apuraram os
fatos.
O ano de 1980 foi um ano chave. Foi o ano do plebiscito constitucional. No mês de
fevereiro, uma nota circular da Câmara da Indústria reafirmava seu apoio ao regime
militar, ainda que, alguns meses mais tarde, essa mesma instituição tenha criticado a
orientação econômica adotada pelo governo. Iniciou-se uma nova crise militar
ultradireitista no interior das Forças Armadas. A polêmica estava em torno do plebiscito:
os setores mais radicais eram contra a realização do mesmo e os setores militares
conservadores viam no plebiscito a institucionalização do regime. A crise culminou
rapidamente com um acordo sobre cinco pontos básicos:
1) eleições para a presidência em 1981, com candidato único;
2) manutenção da Justiça Militar para os delitos políticos;
3) manutenção do Cosena como organismo de decisão para problemas de
segurança interna;
4) manutenção da ilegalidade da esquerda;
5) fortes restrições às organizações sindicais.
Desse modo, a consolidação da Ditadura pode ser visualizada a partir de dois
momentos particulares. O primeiro, que se iniciou em 1973 e foi até 1976, com a
transição feita por Juan Maria Bordaberry, e o segundo período, de 1976 até 1980,
marcado pelo plebiscito que pretendeu reformar a Constituição. A partir do plebiscito, a
Ditadura iniciou um acentuado declive que culminou em 1984, com o início do processo
de “redemocratização” tutelada.
Deve-se recordar que a ditadura uruguaia teve como base a Doutrina da Segurança
Nacional no marco ideológico da Guerra Fria. Neste, a ameaça comunista era um dos
principais argumentos do autoritarismo que pretendeu justificar, em nome do combate
a “barbárie comunista” todas a atrocidades por ela perpetradas. Em conjunto com os
países do Cone Sul, desenvolveu-se o Plano Condor com alcance repressivo
156
internacional, uma verdadeira amostra de integração repressiva que ultrapassou
fronteiras em nome de uma guerra contra a invasão comunista. Assim, a doutrina da
segurança nacional foi um elemento comum as ditaduras latino-americanas.
Dois fatores geradores estão na origem das ditaduras latino-americanas
baseadas na Doutrina da Segurança Nacional – (DSN). Em primeiro lugar, a pressão
exercida pelo capital internacional e pelas elites dominantes locais para impor um novo
modelo de acumulação capitalista. Em segundo lugar, a resposta à radicalização das
contradições de classe e do avanço de projetos reformistas ou revolucionários,
principalmente a partir do exemplo da Revolução Cubana. Este, visto como a
possibilidade real de se implementar a revolução socialista na América Latina.
A existência de antagonismos sociais que justificassem interesses de classe por
detrás dos setores políticos dirigentes se percebia como uma séria ameaça aos
sacrossantos interesses da “nação”; portanto, o seu combate e repressão eram
justificados nesses paradigmas. Todo aquele que discordasse dessa perspectiva era
considerado “inimigo”, e essa simples categoria justificava o combate e a exclusão do
corpo social. O perigo sempre era identificado com as “ideologias externas ou
estranhas”, provenientes do exterior e representativas da ameaça comunista.
A ideologia do regime autoritário sustentou-se em dois pilares básicos: a
doutrina de segurança nacional e a visão neoliberal do sistema econômico. Originada
nos Estados Unidos, a primeira toma particularidades próprias nos diversos países
da área latino-americana, de acordo com o contexto ideológico e político e com o
desenvolvimento dos acontecimentos peculiares de cada um. Mas, no essencial, tal
doutrina argumentava que, na instabilidade política de muitas das nações do terceiro
mundo, os fatores determinantes eram de ordem externa e se conectavam com a
infiltração ideológica e política do bloco soviético.
As lutas políticas dos países de menor desenvolvimento expressavam-se em
âmbitos específicos do enfrentamento global entre Leste e Oeste. Como conseqüência
dessa forma de análise, postulava-se que a concretização de condições de estabilidade
política requeria a derrota das forças dissolventes, promovidas desde o exterior, e o
controle pleno e posterior tutela do poder político. Este haveria de ser exercido durante
157
o tempo necessário para que adquirissem solidez as forças “democráticas” que, assim,
teriam condições de “sustentá-lo livre de perigos”.
A visão neoliberal do sistema econômico postulava as excelências da chamada
“economia social de mercado”.
220
Argumentava-se que minimizando a intervenção do
Estado a livre operação dos mecanismos do mercado assegurava, a cada um dos
agentes que nele participavam, o ótimo aproveitamento de seus recursos e suas
potencialidades, e um máximo de bem-estar à sociedade como um todo. Insistia-se
ainda que liberando os entraves do comércio de bens e os movimentos de capitais, as
relações econômicas internacionais aumentariam o dinamismo de cada uma das
economias nas quais participam, tendendo não somente a elevar, mas também a
equiparar seus níveis de vida
221
.
As bases conceituais dessas duas argumentações não são coincidentes. Quer
dizer, a forma como a primeira concebe as relações sociais e políticas não se encontra
coerentemente articulada à visão peculiar das relações econômicas da segunda.
Mesmo assim, a experiência de diversos países latino-americanos mostra que, ao
traduzir-se em transformações concretas nos âmbitos do político e do econômico,
ambas as ideologias caminham juntas. Ou melhor, os atores que implementam essas
mudanças procuraram consolidá-las na base dessas ideologias.
Quando a condução econômica passa às mãos de uma tecnoburocracia de novo
tipo, ela tenta legitimar-se através de uma propaganda intensa que enfatiza o caráter
estritamente científico dos princípios orientadores de sua ação. No caso uruguaio,
desde o ângulo da tecnoburocracia, o regime de força apareceu como uma reviravolta
na história política do país, incômodo e marcado pela ignorância em muitos aspectos,
mas conveniente para colocar freios às demandas de distintos grupos de interesse –
em particular das classes médias e dos trabalhadores – e para redirecionar o
220
O Uruguai da Ditadura foi o país dos bancos. O processo crescente de estrangeirização, que se havia
iniciado no final da década de 1960, incrementou-se e aperfeiçoou-se. A partir do Golpe de Estado de
1973, junto ao estabelecimento do regime autoritário entraram dois agentes significativos em cena: a
progressiva e absoluta liberdade de ingresso e saída de capitais, junto com a permanente e rigorosa
redução do salário real dos trabalhadores. Fundamentalmente, a partir de 1978, com a liberalização do
mercado de capitais, os ganhos gigantescos do sistema financeiro estrangeirizado correram paralelos
com o crescimento da dívida externa, enquanto se abriram as portas da economia nacional para todo tipo
de produtos importados, concorrentes e homicidas da indústria nacional.
221
COURIEL, Alberto. Concertación para una salida Anti-Imperialista. Montevideo: Indice, 1984, p. 75.
158
funcionamento do sistema econômico, através de sua liberalização e o aumento de sua
abertura externa
222
.
Desde a perspectiva dos detentores do poder real, as promessas de redinamizar
a economia com base na entrada massiva de empresas e capitais externos, e com isso
ir gerando espaços para a consolidação de empresas nacionais, e de criar, num futuro
próximo, amplas oportunidades de emprego produtivo, aparecem como “álibi” de suas
próprias idéias. Foi a promessa de dotar o país de uma base econômica e social
renovada e sólida, resistente às idéias “externas” da ameaça esquerdista.
O regime militar que se instaurou em 1973 explicitou que se propunha fazer a
transformação do sistema político e começou a tarefa com a demolição do sistema pré-
existente. Sua destruição teve profundas conseqüências sobre as conexões ente o
sistema sócio-econômico e o aparelho de Estado. Ele trouxe consigo o fechamento das
organizações representativas das classes trabalhadoras e conseguiu coordenar,
mediante o jogo político, os interesses dos diversos segmentos das classes
proprietárias. Configurou-se, então, uma nova tendência nas relações entre as ditas
classes e o Estado, o que Couriel (1984) chamou de “privatização da coisa pública”.
Eliminada a mediação política entre os interesses privados e o Estado, sua
representação passou a realizar-se sob a forma de grupos de pressão, setoriais ou de
empresas ou conglomerados específicos, e a força que os sustentou passou a
depender preponderantemente da magnitude dos capitais representados, símbolo de
sua importância real ou virtual para o funcionamento da economia. Ao mesmo tempo –
livre da necessidade de articular interesses e dos mecanismos de controle próprios do
jogo político –, a condução econômica se exerceu com um alto grau de autonomia, com
respeito a cada grupo de pressão específico.
A tecnoburocracia dominante adquiriu uma “particular” capacidade de decidir por
si mesma – de forma privada – que tipo de interesses se deviam privilegiar e quais os
que deviam ser postergados. Com o passar do tempo, o que se foi construindo como
característica de tais decisões não era a adesão aos dogmas do neoliberalismo, senão
a abertura da economia do país, sua articulação crescente com o sistema capitalista
mundial. Junto às mudanças no contexto internacional, essas pressões se traduziram
222
Idem, p. 77.
159
no abandono da ortodoxia e no acentuado pragmatismo com que operou a condução
econômica.
As políticas econômicas propunham modificar a estrutura econômica e social e
mudar a forma de inserção da economia uruguaia no mercado internacional. Houve
tentativas de responder à grave crise da balança de pagamentos, resultante dos
incrementos no preço do petróleo a partir de 1973. Note-se que o Uruguai tinha, na
época, um alto consumo de petróleo, o que provocou, a partir do choque de preços do
ano de 1973, que a importação do mesmo passasse a representar perto de 40% de
suas exportações.
Para o pensamento dominante, a rentabilidade do capital era baixa por causa da
participação elevada dos salários e benefícios sociais na renda nacional, da
insuficiência do mercado local para possibilitar uma reprodução e ampliação do capital,
da baixa produtividade por escassa capacidade tecnológica, inadequada organização
empresarial e, finalmente, pela ineficiência do Estado e de suas empresas de serviços
básicos, industriais, bancárias, entre outros. Todos esses aspectos foram abordados
pelas estratégias aplicadas durante a Ditadura.
O salário real diminuiu entre 50% e 35% nos anos de 1970 e 1980. A maior parte
dos salários e aposentadorias como renda bruta, que historicamente situou-se no eixo
de 45-50%, diminuiu em dez pontos no período
223
. A política de redução de custos da
mão-de-obra e de incremento à rentabilidade do capital realizou-se mediante uma
combinação de coerção e políticas fiscais. O objetivo que teve a concentração de renda
foi a de incidir no incremento da poupança e do investimento. Foi reduzida a
intervenção do Estado na administração dos preços, mas, na verdade, a influência
estatal se fez sentir ao regular os salários e a cotização da moeda.
A abertura da economia foi impulsionada pela via da exportação de manufaturas
e produções primárias não tradicionais, mediante diferentes mecanismos de subsídios e
estímulos, entre os quais, a queda dos salários proporcionou um papel preponderante.
O país necessitava aumentar suas exportações para equilibrar sua balança de
pagamentos, o que não se podia atingir com uma estanque produção pecuária, senão a
223
RAMA, Germán. La Democracia en Uruguay. Buenos Aires: Grupo Editorial Latinoamericano. 1987,
p. 180.
160
partir do parque industrial existente e/ou de outros usos da terra. Essa política foi
particularmente ativa no período de 1974 a 1979 e acarretou mudanças nas atitudes
empresariais, comportamentos competitivos e procura de mercados no exterior.
Ao longo do período 1974 e 1978, a condução econômica outorgou um decisivo
apoio aos interesses da indústria manufatureira de exportação, beneficiando-a com
altos subsídios, via tributação e crédito. Deu curso a uma abertura financeira mediante
a qual se canalizaram capitais argentinos na especulação imobiliária, favorecendo
temporariamente as empresas construtoras e as manufaturas provedoras de materiais.
Em outro claro desvio de seu discurso ortodoxo, conservou a elevada proteção à
indústria substitutiva de importações, alentando a expansão da agroindústria e do setor
metal-mecânico, com participação do capital estrangeiro. Igualmente heterodoxas são
as políticas que incidiram sobre o setor agropecuário, no qual os preços relativos se
mantiveram sob controle, com a finalidade de baratear os insumos da indústria
exportadora
224
.
O regime autoritário sustentou que a crise da economia uruguaia foi reflexo
inevitável da crise que acontecia na economia mundial. Sem dúvida que ambas
estavam relacionadas: o mecanismo de transmissão e a intensidade com que uma
impacta na outra não podem ser dissociados das políticas implementadas pela
condução econômica. Por outra parte, a natureza da crise revelou-se no vertiginoso
aumento da dívida externa. Em última instância, a remuneração da dívida expressou a
transferência, em direção ao país, de parte dos custos da crise mundial; o volume da
dívida expressou o alto nível de desnacionalização da economia uruguaia.
224
COURIEL, Alberto. op. cit., 1984, p. 78-80.
161
Tabela 2. Evolução da Dívida Externa Uruguaia: 1966-1990.
(expresso em bilhões de dólares)
ANO 1966 1973 1978 1980 1982 1986 1988 1990
Pública
311.4 537.5 909.7 1187.4 2705.1 3828.7 4239.2 4472.0
Privada
166.3 180.4 329.8 973.6 1550.2 1410.0 2091.3 2911.0
Total 477.7 717.9 1239.5 2161.0 4255.3 5238.7 6330.5 7383.0
Fonte: Dados da Direção Geral de Estatística e Censos da República Oriental do Uruguai. In: Semanário
Mate Amargo. Montevideo: ano 6, n. 164, janeiro de 1993, p. 7.
O peso do setor estatal na economia e o gasto improdutivo da mesma se
acentuaram pela aposentadoria maciça de funcionários públicos (substituídos ou
incrementados por motivos estritamente políticos) e pela duplicação dos efetivos das
forças de segurança (mais de 5% do PEA). Isso foi acompanhado por um incremento
importante do déficit dos serviços de aposentadoria e de proteção social. Os
investimentos foram escassos, geralmente não produtivos, e não atenderam uma
estratégia de incentivo à dotação científico-tecnológica com vistas a modificar o perfil da
produção primária e industrial.
Germán Rama (1987) distingue três etapas nesse processo:
a) A primeira, que abrange o período de 1974 a 1978, caracterizou-se pelo estímulo
à indústria de exportação e à produção de bens primários não tradicionais;
b) A segunda, de 1979 a 1982, acompanhou uma progressiva substituição de uma
política produtiva por uma financeira, de uma mudança na ênfase exportadora
por uma importadora, da substituição de um objetivo de restabelecer o equilíbrio
externo por outro de monetizar a economia;
c) A terceira, de 1983 e 1984, caracterizou-se pela derrubada da política
monetarista no quadro da recessão mais grave do país nos últimos 50 anos. O
endividamento externo (que chegou a ser equivalente a cinco anos de
exportações), unido ao interno, paralisou uma economia já afetada pela abertura
indiscriminada e o deslocamento das atividades do setor produtivo ao financeiro.
162
Paralelamente, produziu-se a transnacionalização do sistema bancário, e o
déficit do setor público atingiu, em 1982, 18% do PIB
225
.
‘Deve-se acrescentar, à categorização feita por Rama, que esses enfoques
econômicos adotaram uma linha monetarista de estabilização no marco de uma
concepção neoliberal da economia. Qual era o objetivo perseguido com o novo
esquema de política econômica? Em longo prazo, buscava-se a liberalização do
mercado interno, de tal forma que este se regesse exclusivamente pela oferta e a
demanda. Para isso, era necessário eliminar os entraves da intervenção estatal em
variados aspectos da atividade econômica que tradicionalmente era objeto de
regulação. De forma paralela, o novo esquema propunha a abertura da economia ao
exterior, através da eliminação das barreiras ao livre intercâmbio de produtos e de
capitais.
Este foi o cenário que o país atravessou no final do período ditatorial iniciado em
1980, que, como complemento a grave situação econômica se incluiu uma incipiente
mas constante demanda social, representada num amplo conjunto de manifestações de
variada ordem, que demonstravam o estado de ânimo da população e as crescentes
reivindicações por liberdade e democracia. Inúmeros foram os atos de repúdio à
ditadura, principalmente a partir dos anos de 1980, onde se começou a sentir o
esgotamento do regime militar de forma evidente. As mobilizações internas e externas
pelo retorno à democracia criaram, gradativamente um aumento substancial das
instâncias “paralelas” de discussão dos assuntos inerentes à sociedade uruguaia, numa
perspectiva que apontou para o início de um efetivo exercício democrático da
população.
225
RAMA, Germán. op. cit., 1987, p. 182.
163
2. A RECUPERAÇÃO DEMOCRÁTICA: A CAMINHO DA DEMOCRACIA TUTELADA
O processo de transição da ditadura à democracia compreendeu um período
entre o plebiscito de 1980, convocado pelo regime militar para ratificar seu projeto de
reforma da Constituição, e as eleições nacionais de novembro de 1984, que deram
término ao período ditatorial. Como elemento intermediário, pode-se assinalar as
eleições das autoridades dos partidos tradicionais, efetivadas em novembro de 1982.
O processo de reabertura foi carente de algumas características que vale a pena
ressaltar, como salientou Rama:
a) O processo não decorreu de variáveis externas. Não houve, como no caso da
Argentina, um exército derrotado numa “aventura militar internacional”, nem foi
de significação relevante o efeito de pressões diplomáticas dos Estados Unidos e
dos países europeus para conseguir o retorno à democracia;
b) Nem a mobilização social, nem a orientação do comportamento político tiveram
influências de organizações uruguaias no exterior. Com independência das
atividades realizadas por estas, a interferência na ação social foi reduzida e sua
maior efetividade foi obtida quando apoiaram as orientações das lideranças que
atuavam no país
226
.
A primeira manifestação contra o regime, por parte da sociedade como um todo,
produziu-se no plebiscito de 1980, num contexto em que os indicadores manifestavam
um considerável crescimento da produção, uma importante diminuição do desemprego,
uma melhoria nos níveis de ingresso dos assalariados e um maior acesso à moradia e
bens de consumo duradouros. A segunda manifestação foram as eleições de 1982, que
ocorreram no momento em que o modelo econômico monetarista caía definitivamente.
E a terceira manifestação foram as eleições nacionais de 1984, que se realizaram no
momento de maior significação da crise econômica, com uma aguda queda da
produção e da renda, e níveis de desemprego sem precedentes no país.
A população, que foi se incrementando simultaneamente à oposição ao sistema
ditatorial, foi progressiva entre as três datas assinaladas, sendo que na última (1984)
226
RAMA, Germán. op. cit., 1987, p. 200.
164
corresponderia relacionar a deterioração econômica com o apoio maciço da população
à causa antimilitarista. Isso permite presumir que o impulso democrático respondeu a
importância do sistema político na identidade da sociedade e a mobilização desta para
recuperar o Estado como sua expressão nacional.
César Aguiar (1984) elaborou três hipóteses sobre as razões da abertura
democrática:
a) As Forças Armadas eram permeáveis à cultura democrática precedente, pelo
que a posição oficial não aceitou um discurso autoritário e continuísta;
b) O processo autoritário não foi capaz de dar soluções aos problemas estruturais
do país e teve cada vez mais dificuldades para conduzir o Estado e a sociedade;
c) As Forças Armadas perderam a capacidade de atender as demandas de
distribuição, na medida em que sua política econômica foi revelando seu
fracasso
227
.
Nesse sentido, a primeira hipótese resulta importante para compreender a
primeira etapa da abertura. Quando as Forças Armadas elaboraram um projeto de
constituição e realizaram o plebiscito para sua ratificação eleitoral, não existia
praticamente pressão da sociedade que obrigasse o Estado a iniciar um processo de
consultas eleitorais. Nesse caso, pode-se concordar com a postura dominante de que
se tratou de uma abertura “outorgada”, cuja dinâmica posterior a transformou numa
“abertura forçada”, devido às mobilizações da sociedade e dos grupos políticos
228
.
Por outra parte, como assinala Rama, pouco se sabe sobre como se processaram
as decisões nas Forças Armadas em 1980, mas se pode pressupor que, no contexto do
plebiscito, ocorreram certas confluências de orientações:
227
AGUIAR, César. Hipótesis preliminares para una discusión de las perspectivas de
democratización en el Uruguay actual. Buenos Aires: Seminario de la CEPAL: Los escenarios políticos
y sociales del desarrollo latinoamericano. Anales...,Noviembre de 1984, p. 74-76.
228
RIAL, Juan. Partidos Políticos, Democracia y Autoritarismo. Montevideo: Banda Oriental, Tomo I,
1984, p. 32.
165
a) Um setor militar era favorável à institucionalização democrática de partidos,
“como havia demonstrado no conflito com Bordaberry, a constituição podia
haver legitimado a intervenção militar e sua aprovação lhes permitiria uma re-
inserção na sociedade, na qual percebiam rejeição e crescente marginalização
para as Forças Armadas”;
b) Outro setor provavelmente procurava um profissionalismo que reconstruísse
hierarquias e a unidade da instituição, afetadas pela ‘feudalização’ de regiões
militares e dos comandos, pela exclusão de oficiais não considerados de
confiança;
c) Um terceiro era contrário à democracia – como ficou demonstrado com a
exclusão de dois dos quatorze generais, depois da derrota eleitoral, como
etapa prévia ao acordo com os partidos tradicionais –, que possivelmente
considerou que o projeto constitucional criaria uma democracia sob tutela
militar’
229
.
O que resultava difícil do acordo interno e do isolamento do poder militar em
relação à sociedade influiu em que o projeto constitucional fosse uma proposta de
pseudodemocracia sob tutela militar e que não se houvesse realizado concessão
alguma aos partidos tradicionais para obter apoio quanto à mobilização eleitoral e
adesão à proposta. O projeto constitucional tinha disposições que violentavam as
tradições políticas nacionais e eram inaceitáveis para os partidos: a exclusão da Frente
Ampla, a primeira presidência em mãos de um candidato a definir entre os partidos
Colorado e Nacional, um tribunal constitucional designado pelos militares e capaz de
intervir entre os poderes legislativo e executivo, a substituição do sistema de
representação proporcional pelo princípio de maiorias, assegurando a maioria absoluta
nas Câmaras ao partido que obtivesse a Presidência da República.
O Governo promoveu a Constituição como uma opção que oscilava entre a
continuidade do regime militar ou a pseudodemocracia proposta. O regime permitiu a
alguns dos políticos excluídos dos partidos tradicionais dirigir-se a concentrações
públicas em locais fechados, mas que, pela ordem repressiva, só podiam formular-se
objeções teóricas e jurídicas ao projeto, e não críticas ao regime militar. Também foram
229
RAMA, Gérman. op. cit., 1987, p. 204.
166
permitidos dois debates televisivos com as mesmas restrições. A ausência de
organizações políticas e sindicais autorizadas, e sob uma experiência prolongada de
forte repressão, não permitiu atribuir às escassas manifestações democráticas a
enorme capacidade de resposta demonstrada pela sociedade.
Parte da população que votou a favor da proposta militar (42%) não o fez como
adesão ao regime, senão supondo que era o único caminho viável para sua finalização.
A votação contra a proposta (quase 58%) revestiu características de resistência. Era a
manifestação da maioria da sociedade que buscava recuperar sua identidade
democrática. Sem dúvida, em Montevidéu, as condições de maior modernidade social e
interação poderiam explicar que na quase totalidade das zonas eleitorais houvesse
vencido o No (contrário à proposta), enquanto que o isolamento e o maior controle
social em oito estados do interior do país – na sua maioria de menor desenvolvimento –
dariam conta de um voto majoritário pelo Si (favorável à proposta).
O regime havia plebiscitado a si mesmo e foi imprevisivelmente derrotado por
uma sociedade mantida em silêncio, mas que não havia renegado suas orientações
democráticas. Depois de vários meses em que aparentemente o regime parecia duvidar
entre o sentido do resultado do plebiscito e estabelecer uma saída, o processo de
democratização acelerou-se. O plebiscito constitucional havia demonstrado aos
militares que não era viável nenhuma legitimação nem abertura democrática sem um
acordo com os partidos. A sociedade havia demonstrado sua força, mas o poder militar
havia superado rapidamente sua crise interna e visualizava a possibilidade de um
retorno à repressão para recompor sua dominação.
Os principais líderes frenteamplistas estavam presos ou no exílio. Também se
encontrava no exílio Wilson Ferreira Aldunate e se encontravam proscritos antigos
dirigentes do batllismo. A organização política na base era assumida pelo novo
movimento universitário e pelos sindicatos em nível de empresa, que a lei de
associações profissionais de 1981 permitiu reorganizar. Isso implicava uma conquista
cotidiana de liberdade e um avanço nas negociações dos partidos tradicionais, num
contexto que fazia acreditar que se chegaria a eleições nacionais com a exclusão da
Frente Ampla.
167
Em 28 de novembro de 1982 realizaram-se as eleições de autoridades dos
partidos tradicionais e da Unión Cívica, sob o controle do Tribunal Eleitoral. Elegiam-se
convenções dos três partidos de 500 membros e convenções estaduais de número de
integrantes variável segundo os eleitores estaduais. De acordo com a Lei Fundamental
Nº 2 ou Orgânica dos Partidos Políticos, tais convenções elegeriam um diretório de 15
membros, estabeleceriam os programas dos partidos e designariam os candidatos
respectivos à presidência e vice-presidência na oportunidade das eleições nacionais.
Para a eleição se habilitaram locais e mesas habituais de uma eleição nacional.
O voto não era obrigatório e era a primeira vez na história cívica que se sufragava
nacionalmente por autoridades partidárias, pelo que uma participação de 60,5% em
relação ao corpo eleitoral foi um indicador da alta politização nacional. Esses dados
podem ser comparados com a última eleição nacional realizada na qual o voto não foi
obrigatório – 1966 –, na qual participaram 74,3% dos habilitados.
Deve-se considerar que os votantes da esquerda – representados na excluída
Frente Ampla – distribuíram-se em três compartimentos: os que não votaram; os que o
fizeram em branco (85.373), seguindo a iniciativa apoiada pelo general Líber Seregni
desde a prisão; e os que votaram pelas frações dos partidos tradicionais de maior
oposição ao regime. Os 9% dos votantes do Partido Colorado e os 21% do Partido
Nacional nas eleições internas de 1982 declaravam sua intenção de votar para a Frente
Ampla em 1984
230
.
Formalmente, as eleições foram três de caráter partidárias e foram simultâneas,
mas também tiveram significados em outras dimensões. O alto percentual de
participação eleitoral conferiu uma enorme legitimidade às autoridades políticas; por
sua parte, o regime, pela segunda vez, foi plebiscitado e derrotado novamente. As
frações partidárias afins ao processo militar tiveram uma fraca votação: a lista colorada,
de Jorge Pacheco Areco, recolheu 28,7% dos votos colorados e, no Partido Nacional,
os grupos vinculados ao regime atingiram 21% dos votos do partido. O regime
retrocedeu seriamente em relação ao plebiscito e as frações conservadoras, que
230
RAMA, Gérman. op. cit., 1987, p. 210.
168
representaram um número muito significativo nas eleições de 1971, tendo obtido em
torno de 20% dos sufrágios dos partidos tradicionais
231
.
O Partido Nacional reuniu 53% dos votos válidos das eleições partidárias; dentro das
listas que “respondiam” a Wilson Ferreira Aldunate, ainda exilado, mesmo assim,
asseguraram 70% das representações. Como essa era a fração tradicional mais oposta
ao regime militar, os resultados implicavam um caráter de desafio e pré-anunciavam a
tendência do confronto final nas eleições nacionais. Mas o fato de que o Partido
Nacional pela primeira vez na sua história obtivesse mais de 50% dos sufrágios em
Montevidéu era um claro índice do apoio recebido da Frente Ampla.
Por sua vez, no Partido Colorado a votação havia provocado uma tríplice renovação.
A primeira foi a consolidação da liderança de Julio Maria Sanguinetti, que demonstrava
capacidade de gestão política dentro do partido e um projeto de abertura para a retirada
do regime militar. A segunda foi a emergência do setor renovador do batllismo, liderado
por Enrique Tarigo. A terceira foi o surgimento de um setor juvenil que se caracterizou
por uma tentativa de transformação das estruturas conservadoras do partido através de
uma tendência social-democrata.
A Frente Ampla, que havia sofrido o impacto da repressão, manifestou-se com
força suficiente para demonstrar que era inviável uma abertura democrática com sua
exclusão. Os votantes em branco (votos nulos) foram 7% em nível nacional e mais de
14% em Montevidéu; segundo estimativas, outros 8% tinham votado estrategicamente
nos partidos autorizados, em especial nas listas que correspondiam a Ferreira Aldunate.
Resultou claro que seu peso eleitoral poderia ser o definidor das seguintes eleições
nacionais, segundo a opção a qual apoiasse. Mas o aspecto de maior relevância era
que sua influência no meio sindical e estudantil, e sua capacidade de mobilização na
capital marcavam a ilegitimidade de um governo constituído sobre a base de sua
exclusão
232
.
Como salienta Rama, os partidos tradicionais ressurgiam com uma alta
legitimidade. A maioria da sociedade considerava o passado como um “paraíso
perdido”, regido e orientado por esses partidos; “a luta de suas frações democráticas,
231
Idem.
232
Idem.
169
agora amplamente majoritárias, fazia esquecer fraquezas e incapacidades ante a crise
do país”; a opção por eles era a contra-proposta ao regime militar. “Finalmente o fato de
que na contenda eleitoral não estavam em jogo recursos econômicos de poder, fazia
com que a concorrência fosse um fenômeno exclusivamente político-ideológico”
233
.
No dia 13 de maio de 1983 deu-se início a uma série de reuniões entre as Forças
Armadas e os dirigentes dos três partidos políticos, para harmonizar a transição à
democracia. Essas reuniões tiveram um caráter desajustado frente a tentativa de
estabelecer acordos entre uma parte com legitimidade e apoio nacional, e outra com os
instrumentos da força. Os delegados militares, em virtude da divisão interna das Forças
Armadas e do peso da presidência militar nas orientações, voltaram a propor os
conceitos de “democracia intervida” militarmente, que figuraram na proposta
constitucional do plebiscito.
Os delegados políticos, ante a situação de mobilização social em aumento contra
o regime e marcados por uma competência na qual o apoio eleitoral dependia de uma
maior oposição à Ditadura, exigiam a virtual rendição do regime, em especial os
delegados do Partido Nacional que terminaram por se retirar dos encontros. Enquanto
as reuniões empatavam na mesa de negociações, a mobilização social em favor de
reivindicações democráticas imediatas, e contra a situação da economia e do mercado
de trabalho, começava a desdobrar a capacidade dos delegados políticos nas
negociações com os militares.
A mobilização política, a ampliação permanente dos espaços de liberdade, a
ação coletiva da sociedade, com o objetivo comum que era a realização das eleições
nacionais e que esperava que da democracia surgissem as soluções aos problemas
dos diferentes grupos sociais, levou à definição de um único adversário: o regime
militar. Um decreto de dois de agosto de 1983 e um novo Ato Institucional restringiram
ainda mais a liberdade de imprensa e ampliaram a capacidade de proscrever dirigentes
políticos como reação à vinculação dos partidos tradicionais com a excluída Frente
Ampla e com o movimento social, numa instância de coordenação que se chamou a
Intersetorial.
233
RAMA, Gérman. op. cit., 1987, p. 213.
170
As manifestações de protesto culminaram com um ato político de massas, em 27
de novembro de 1983, no qual estiveram presentes, junto aos dirigentes dos partidos
tradicionais, os da Frente Ampla e de diversas organizações sociais. A crise econômica
e o isolamento governamental haviam provocado a adesão das organizações
empresariais à causa democrática. Posteriormente, em janeiro de 1984, o já constituído
Plenário Intersindical de Trabajadores – PIT – convocou uma paralisação de atividades
que foi apoiada por amplos setores da população. Em 1º de maio do mesmo ano, o PIT
reuniu uma manifestação de vários milhares de pessoas que erguem, além das
reivindicações sindicais, a de liberdade para os presos políticos e a demanda de
eliminar os grupos que iniciavam um terrorismo antidemocrático.
Perante uma situação que se tornava insustentável para os dirigentes políticos e
para os militares, produziu-se um acordo que “excluía os partidários da ‘linha dura’ de
todos os partidos e que pressupunha um entendimento entre os ‘macios’”
234
, sobre as
garantias que as Forças Armadas exigiam para se retirar do poder. O estágio da
mobilização social indicava a inviabilidade de uma solução que não incluísse a Frente
Ampla, que era justamente o setor social mais mobilizado. A partir da libertação de
Líber Seregni, em 19 de março de 1984, produziu-se uma mudança de orientação,
proposta pelo próprio Seregni, postulando uma estratégia de acordo, ao invés do
confronto, o que foi imposto ao frentismo, pelo seu alto prestígio pessoal
235
.
O Partido Colorado se viu favorecido pela postura do frentismo e continuou na
mesa de negociação em torno de um acordo que visava a dar garantias para as Forças
Armadas. Por sua parte, o Partido Nacional, inversamente, tornou muito difícil um
entendimento, porque as Forças Armadas vetaram a candidatura de Wilson Ferreira
234
RIAL, Juan. op. cit., 1984, p. 124.
235
Até a saída de Seregni da prisão, a condução, de fato, do movimento popular esteve nas mãos de
organizações sociais (PIT, Associação de Estudantes, Federação de Cooperativas Populares e Serviço
de Paz e Justiça) e seu amplo entorno, onde inegavelmente predominava a adesão frenteamplista. A
reaparição pública de Seregni significou para a Frente Ampla a culminação do processo de
recomposição. Nesse momento, surge uma nova estratégia por parte da coalizão que se impôs sem
discussões. No mesmo dia de sua libertação, Seregni improvisou um discurso desde a sacada de sua
residência, onde manifestou à população assistente que o ritmo das negociações requeria respostas
imediatas e sensatas. O objetivo desse discurso era o de recuperar a democracia e afirmá-la – as
ferramentas deviam ser o diálogo e a concertación. Isso pareceu um abandono do que havia dado
melhores resultados ao amplo movimento da sociedade uruguaia: as mobilizações. De fato, essa foi a
linha adotada pela Frente Ampla: a recuperação democrática se faria a partir do diálogo, da concertación,
e sem mobilizações.
171
Aldunate – que desde o exílio manteve uma batalha personalizada contra o regime
militar – e o Partido Nacional apostou sua intransigência democrática a uma possível
crise militar, e decidiu manter sua estratégia de obter adesão eleitoral de uma massa
mobilizada e antimilitarista.
Nas Forças Armadas, as gestões políticas foram assumidas diretamente pelos
comandantes das três armas, deslocando-se, assim, o general-presidente e seu grupo
de apoio. A instituição abandonou os projetos políticos para privilegiar seus interesses
como corporação para assegurar um retiro ordenado e acordado que impedisse a
repetição do que vinha nesse momento acontecendo na Argentina: o julgamento dos
militares pelo governo democrático. No chamado Acuerdo del Club Naval, elaborado
pelos comandantes militares e os delegados do Partido Colorado, da Frente Ampla e da
Unión Cívica, acordou-se a realização de eleições em novembro de 1984, sem
exclusões
236
de partidos, mas com exclusão de candidatos à Presidência da
República
237
.
Foram acordadas “liberdades” parciais para a realização da campanha eleitoral e
as garantias habituais do processo eleitoral. Também se fixaram mecanismos de
proteção à instituição militar, visando a impedir seu julgamento, dando continuidade às
elites militares em seus cargos até a data regulamentar de seu retiro, durante o período
de um ano a contar da instalação do governo democrático, em março de 1985. Na
lógica do acordo estavam implícitas as garantias de que não seriam processados os
responsáveis militares do Golpe de Estado, das violações aos direitos humanos e dos
abusos na gestão administrativa e financeira do Estado.
O discurso predominante que visava a um “acordo para uma saída democrática”
teve como base a instância da concertación. Essa tinha como elementos-chave duas
particularidades: a) o reconhecimento da necessidade de se conseguir um acordo
político entre os partidos, assim como entre estes e as organizações sociais. (Esse
acordo era percebido como requisito para o trânsito à democracia; e b) a necessidade
de que a concertación deveria atingir um acordo social. A base argumentativa se dava a
236
O Ato Institucional nº 18, de julho de 1984, reabilitou os partidos Democrata Cristão e Socialista; a
partir desses rótulos partidários, poderiam apresentar-se os distintos partidos da coalizão Frente Amplio.
237
Estavam excluídos Wilson Ferreira Aldunate, Líber Seregni e Jorge Batlle. A exclusão também atingia
a cargos representativos (políticos de esquerda, parte dos quais ainda se encontravam exilados ou na
prisão do regime militar).
172
partir da experiência das democracias européias, nas quais era usual que os interesses
dos trabalhadores e empresários se compatibilizassem à margem de seus sistemas
políticos. Tratando-se de sistemas estáveis, esse tipo de concertación cumpria o papel
de reforçar as condições de eficácia e consenso com que os mesmos operavam.
No caso uruguaio, a questão que era discutida no meio político e acadêmico era
a de como transitar para a democracia a partir de uma crise econômica de enormes
proporções. A transição reabria e ampliava as possibilidades de expressão e de
incidência política dos atores sociais, de tal maneira que a defesa dos interesses
econômicos contrapostos se configurava como um elemento real e permanente de
conflitos políticos capazes de entravar o processo de democratização.
Em geral, reconhecia-se que em circunstâncias de crises profundas como as
vivenciadas na época, a realização das possibilidades de avanço e mudanças sociais
passava necessariamente pela instância da política, de tal forma que a concertación
social se configurou como um ingrediente da concertación política, no sentido de que a
primeira iria ajustar-se e reformular-se no meio do mesmo jogo, concretizando-se
através de decisões do Estado. Essa constatação induziu a proposição de que a
política econômica, globalmente considerada, constitui-se em tema crucial, desde a
perspectiva da concertación.
No interior dos partidos, por sua vez, houve uma tendência à consolidação de
maiorias e lideranças que aumentaram sua eficácia, desde a perspectiva de um virtual
papel da concertación. Mesmo assim, em todos pesaram as demandas dos setores
populares que os apoiaram, no que se refere a problemas pontuais, como o emprego,
salários e bem-estar social. Além dos tumultos da complexa conjuntura política,
delinearam-se alguns objetivos para a política econômica global – que foram
considerados como aceitáveis por todos –, para poder dar curso a concertación.
238
Por suas implicações sobre a administração, esse tema constituiu um dos
principais características da concertación. Para iniciar um processo de reativação
econômica identificava-se como condição necessária a renegociação da dívida externa.
O país não estava em condições de pagar os serviços da dívida e simultaneamente
reativar-se. Por conseguinte, a disponibilidade de divisas era o fator limitante para o
238
COURIEL, Alberto. op. cit., 1984, p. 86-87.
173
início de qualquer processo de crescimento econômico. Mas a renegociação da dívida
externa apresentava grandes dificuldades. Essas se originaram na atitude inflexível dos
governos dos países credores, os bancos privados internacionais e o FMI, que atuaram
em conjunto, enfrentando os países endividados que não possuíam fórmulas de
atuação conjunta.
No essencial, a renegociação da dívida externa é um problema político. Como
conseqüência, é um problema de relação de forças. A única possibilidade de mudanças
na correlação de forças consistia na unidade dos países endividados. Visto que para
um país pequeno como o Uruguai as dificuldades de renegociação eram enormes, a
saída era visualizada na busca de mecanismos de renegociação junto aos grandes
países da região, especialmente Argentina e Brasil. O surgimento de regimes
democráticos nestes últimos trouxe expectativas favoráveis nesse sentido.
Os primeiros passos para o início da recuperação democrática no Uruguai
aconteceram no contexto de um prolongado e dificultoso processo, que teve seu marco
inicial em 1978, na oportunidade em que o regime militar decidiu iniciar uma busca de
legitimidade para tal gestão. O plebiscito ocorreu em 1980, momento no qual a proposta
militar foi derrotada nas urnas. O resultado negativo do plebiscito implicou a falta de
respaldo popular frente a Ditadura. A partir do plebiscito, iniciou-se um dificultoso
caminho que conduziu ao esgotamento do regime militar, concluindo nas “tuteladas”
eleições de novembro de 1984.
Assim, a partir do plebiscito, começaram a surgir manifestações públicas de
oposição ao regime, desde as incipientes associações sindicais até o ressurgimento
dos Sindicatos, que concluíram na formação do Plenário Intersindical de Trabajadores
PIT. Também se consolidou, nesse período, a Asociación Social y Cultural de la
Enseñanza Pública – Ascep –, a qual representou os estudantes universitários e de
outros níveis do ensino (educação profissional e ensino médio), canalizando o
descontentamento estudantil gerado pelo sistema autoritário.
No transcurso do ano de 1983, a participação ativa e mobilizada dos sindicatos e
das organizações estudantis foi aumentando e marcando importantes passos na luta
pela recuperação democrática. A mobilização social durante o ano colocou num notório
segundo plano o papel dos partidos políticos. Essa participação maciça foi marcada por
174
fatos de relevância como, por exemplo, a convocação e realização do ato de massas
em 1º de maio, convocado pelo PIT, depois de 10 anos de proibições e, em 25 de
agosto, no contexto de uma jornada de jejum convocada pelo Servicio de Paz y Justicia
– Serpaj – em defesa dos Direitos Humanos.
Essas mobilizações marcaram características próprias na luta pela democracia,
da qual os partidos políticos – habilitados – tiveram que coordenar esforços no que se
chamou de Intersectorial – uma instância na qual participaram o PIT, a federação de
viviendas (uma federação que nucleia as cooperativas de casas populares em sistema
de ajuda mútua), Ascep, entre outros. As ações dos partidos políticos tradicionais
tomaram forma a partir de finais de 1983, através da Intersectorial, com sua
participação, mas não de liderança, nas mobilizações a favor do fim do regime
autoritário e o restabelecimento da democracia.
A reestruturação da Frente Ampla iniciou-se em 1983, no contexto da
iintersectorial e de uma intensa mobilização popular que reivindicava o surgimento
público da coalizão de esquerda. Em 1984, começaram a surgir no interior da coalizão
um conjunto de debates que questionava a sua proposta programática fundacional e
que argumentava em favor de um “novo momento político”, marcado fundamentalmente
pela “florescente” democracia a qual se devia preservar a tudo custo. Estes debates
imprimiram na Frente Ampla uma nova dinâmica que visava, principalmente a
adequação ao sistema de partidos, ou seja, a adaptação da coalizão de esquerda para
a contenda eleitoral e, obviamente para chegar ao governo.
A análise do debate interno da Frente Ampla necessita de duas leituras. Uma
corresponde a suas expressões públicas. Outra, à luta ideológica e política que esse
debate público oculta, suprime importância ou simplesmente omite. Igualmente
importante pode resultar a interrogação sobre o porquê de tal ocultamento. Uma das
hipóteses possíveis é que a esquerda viveu, desde 1985, o desafio de converter-se
numa esquerda integrada e funcional ao sistema ou, pelo contrário, realizar-se como
forma política com capacidade de transformar a sociedade capitalista. Obviamente,
para analisar essa temática, parte-se da hipótese no contexto de 1985 – sem poder
considerar o trajeto até o governo nacional em 2004.
175
Uma segunda hipótese é que tal como se propiciou o debate – encarado como
divergências táticas, quando na realidade se tratava de uma verdadeira mudança
estratégica –, foi impossível atingir uma clara formulação de alternativa política
transformadora. E a maior responsabilidade de que isso fosse assim correspondeu às
organizações que exerceram a hegemonia na FA. Essa hipótese tem sua origem na
ausência de uma síntese compreensiva do processo de reestruturação capitalista, nas
exigências de dominação e em toda a luta de classes. Essa elaboração deficitária
permitiria manter a iniciativa para as correntes de centro-esquerda que procuram
mudanças funcionais do sistema. Dessa forma, a condução hegemônica foi lentamente
abandonando os postulados transformadores em nome do “realismo político”.
A isso se agregam outros fatores. Em primeiro lugar, a iniciativa dos setores
denominados de correntes de centro-esquerda na busca de alianças policlassistas com
os partidos políticos burgueses. Isso se verificou nas tentativas de concertación
econômica e social durante os anos de 1985 e 1986. Em segundo lugar, as limitações e
deficiências encontradas pela esquerda durante a Ditadura. Em terceiro lugar, as ações
ideológicas dos centros mundiais do capitalismo, em especial os europeus, que
procuraram reduzir as opções políticas a duas alternativas possíveis: autoritarismo
militar ou democracia representativa, cooptando para esta alternativa as lideranças dos
partidos e os intelectuais dos mesmos.
Antes de introduzir-se na análise do debate, torna-se necessário precisar
aqueles aspectos nos quais a FA manteve uma atitude opositora coerente com sua
plataforma de princípios:
1. Sua discrepância com a política econômica governamental;
2. A defesa genérica das demandas das classes populares;
3. A defesa dos direitos humanos. Isso implica o processo judicial de militares
acusados de violentá-los durante a Ditadura questionando um dos pré-requisitos
que a direção política dos partidos tradicionais considerava indispensável para o
exercício da dominação. Nesse ponto registrou-se a única ação ofensiva
realizada desde 1985 até 1988: sua decisiva participação, junto ao PIT-CNT e os
sindicatos, no apoio militante à Comisión Nacional Pro Referendum na
176
arrecadação de assinaturas para impor a realização do plebiscito sobre a Ley de
Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado.
Além destes fatos, a linha política apresentou carências significativas em todos
os níveis de sua ação, o que modificou seu perfil opositor, causando uma geral
insatisfação em grande parte de sua militância.
Em 1985 e 1986, a direção da FA empenhou-se em realizar alianças com forças
da burguesia, através de suas representações políticas, tendo a concertación como
elemento de viabilidade. Participou em negociações que foram dirigidas pelo Partido
Colorado, as quais tiveram algumas particularidades:
a) Foram iniciativas do Partido Colorado;
b) Excluíam toda discussão sobre a política econômica;
c) Efetuaram-se no marco de culpas partidárias, gerando incertezas na massa
militante;
d) Aconteceram de forma simultânea a um discurso e a uma prática governamental
anti-sindical.
Deste modo, o período foi caracterizado por uma política ambígua, visto que, ao
mesmo tempo, se realizavam preparativos para uma democratização dos organismos
de direção da FA, incorporando representantes dos delegados dos comitês de base e
das coordenadorias do Plenário Nacional, o que finalmente se concretizou em forma
“mediatizada”, enquanto as negociações terminaram em fracassos, devido à
irredutibilidade do governo em modificar a política econômica. Nessas atitudes
começavam-se a evidenciar as primeiras manifestações do que logo viria a ser um
ponto-chave do debate político-ideológico: na linha negociadora primava a preocupação
por aparecer como um partido “construtivo”, em vez de manter uma ação política
testemunhal e contestatória.
Com esse qualificativo pejorativo buscava-se diluir a atitude de oposição frontal,
procurando converter a FA numa esquerda coadjuvante em resolver as contradições da
sociedade capitalista em crise. Por sua parte, a direita ganhou tempo para seus
objetivos e para manter as condições de “governabilidade”, entendida como uma nova
modalidade de exercer a dominação de classe. Isso não deve ser confundido com a
177
análise ingênua de que o objetivo do governo era obter as maiorias parlamentares das
quais carecia.
O ciclo de negociações a procura de um acordo social policlassista se fechou em
dezembro de 1986, com a votação da lei de caducidade aprovada pelo Partido
Colorado, com o apoio dos parlamentares do Partido Nacional, à exceção dos
legisladores do Movimiento Nacional de Rocha. Em outro plano, a ausência de uma
visão sobre o processo político real e sobre as diversas modalidades da dominação de
classe e da dependência exterior teve duas expressões significativas:
1. O apoio à política exterior do governo uruguaio, sem incluir nenhuma atitude
crítica. Isso implicou uma gravidade que não foi avaliada na sua profundidade,
tendo em conta que significou abalar a política exterior em relação à dívida
externa, com respeito à qual o governo aplicou pontualmente a política do
FMI. Ainda a atitude condescendente com a política imperialista no sentido de
recuperar o domínio total do Canal do Panamá ou o intervencionismo na
Nicarágua e El Salvador. Em suas projeções, essas atitudes implicaram na
renúncia em construir uma nova concepção independente nas relações
internacionais.
2. A ausência de uma autonomia nas relações com o empresariado industrial e
rural, que são as classes que exercem o poder econômico e, por tal,
beneficiários diretos da exploração que exercem sobre a população
trabalhadora. Conformaram-se, com a falsa crença de que estavam
“ganhando espaços”, sem se perguntar se eram espaços conquistados ou
cedidos. Isso foi especialmente notório no agro, com o relacionamento
indiscriminado para os “produtores”; sem, uma concomitante ação privilegiada
para os assalariados rurais
239
.
Desapareciam, então, da análise, questões tais como a das forças sociais que
representavam a aliança de esquerda; ou as implicações político-ideológicas que se
derivavam da reestruturação capitalista e a magnitude selvagem que adquiria a luta de
classe; ou a necessária articulação entre a frente política e o movimento sindical, o
239
ESTELLANO, Washinton; LATORRE, Raúl; ELIZALDE, Esteban. ¿Qué Frente Amplio Necesitamos:
un análisis crítico a la luz de la situación actual de América Latina. Montevideo: Tae, 1989, p. 66-69.
178
estudantil e o movimento social cooperativo, de bairros. A temática foi abordada pelo
presidente da FA em ato realizado em abril de 1988, mas sem grandes conseqüências.
O problema possuía especial importância na medida em que se pretendesse
representar e conduzir o conjunto das classes populares.
Após esta introdução, pode-se começar a considerar e analisar as características
gerais do debate, das propostas e das concepções da corrente “integracionista
240
,
formada pelas direções majoritárias dos partidos Por el Gobierno del Pueblo (PGP) e
Democrata Cristiano (PDC). Esse debate no interior da FA, do qual se procurará dar
conta em seus aspectos gerais e em seu sentido estrito, não terminou após o PGP e o
PDC abandonarem as filas da coalizão. A discussão se realizou em torno das propostas
e atitudes desses dois partidos, porque nesse momento o debate ideológico adotou as
formas mais claras e agudas, abrindo assim, um precedente que deixou grandes
experiências políticas e teóricas que marcaram o futuro da FA.
O centro da luta ideológica verificou-se ao redor da busca – por parte da corrente
integracionista – em impor concepções políticas que podem ser qualificadas como
social-democratas; quer dizer, o movimento preconizou reformas sociais por vias
exclusivamente parlamentárias, dentro do sistema político das classes dominantes e
sem transcender o modo de produção capitalista
241
. Assim, entre os aspectos a serem
abordados, salientamos: as críticas que se faziam à FA; as propostas alternativas que
se pregavam; e a tática desenvolvida pela corrente integracionista.
O centro das críticas e da ofensiva ideológica e política da corrente
integracionista – autodenominada “nova esquerda” – teve seu ponto de partida no
pressuposto geral de que a sociedade uruguaia do momento era diferente da que deu
origem à FA. Sobre tal afirmação se fazia necessária uma reformulação da mesma.
240
Denominou-se assim a esta corrente no sentido de que seu objetivo era integrar-se ao sistema político
e às regras do jogo estabelecidas pelo modo de dominação das classes dirigentes.
241
A social-democracia tem sua origem no Partido Social-Democrata, fundado em 1875, e seu programa,
inspirado por Karl Kautsky num marxismo ortodoxo. Foi revisado por Eduardo Bernstein, que lhe tirou
todos os fundamentos revolucionários e anticapitalistas. A nova orientação prestou seu apoio às forças
conservadoras interessadas em promover a I Guerra Mundial, de 1914, e se absteve ante a repressão
sobre o setor revolucionário, liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 1919. Depois da II
Guerra Mundial, os partidos social-democratas europeus impulsionaram reformas para recuperar o
sistema capitalista em aliança com outros partidos burgueses. Através da organização denominada
Internacional Social-Democrata ou II Internacional, influíram e colaboraram ideológica e economicamente
com os partidos reformistas na Europa, América Latina e outras áreas do mundo.
179
Essa reformulação, desde o ponto de vista programático e organizativo, foi formalizada
por tal corrente e, em grande medida, aceita pelo conjunto dos agrupamentos políticos
que compunham a FA.
Sem dúvida, o pressuposto de que a sociedade uruguaia havia mudado era
verdadeiro como enunciado geral, na medida em que não era a mesma que em 1971.
Mas dada a generalidade da afirmação, esta podia conduzir a qualquer conclusão
política. Para essa corrente, a mudança da sociedade significava:
1) A perda da vigência do paradigma marxista, com todas as conseqüências que
se derivam para o conteúdo da luta de classes e a dependência do imperialismo.
2) Desqualificação da confrontação de classes na ação política.
3) Críticas ao interior da FA, que conduziram a objetar: a) A burocratização da
aliança de esquerda, entendendo por burocratização a existência de uma
organização comum e central da FA. b) Insistência em categorizar a FA como
uma coalizão, o que conduzia a reduzir o âmbito das decisões às delegações
dos partidos que a integravam. c) Críticas à comissão central da FA encarregada
da política exterior, por entender que, numa coalizão, esta seria supérflua, já que
cada partido tem sua própria política exterior. d) Passagem da promoção dos
comitês de base a seu questionamento. e) Reivindicação de que os partidos
frentistas tivessem liberdade de ação e de aliança com frações partidárias não
frentistas. f) Objeções a discussões de temas e pontos programáticos que
transcendessem as questões eleitorais ou, dito de outra forma, desaparecimento
da questão do poder na estratégia desta corrente.
Desse modo, a proposta do PGP pode ser sintetizada nos seguintes pontos
essenciais:
1. A necessidade de reformulação da FA para atualizá-lo às novas condições
sociais e políticas.
2. Essa reformulação implicara em substituir o programa por uma dúzia de
pontos ou plataforma imediata e variável de medidas de governo.
3. Impulso de uma reforma constitucional em que se oferecia liberdades
eleitorais aos membros da FA, para costurar alianças com outros grupos não
180
frentistas, eventualmente dos partidos tradicionais. A isso se denominou
liberdade de ação.
4. Conversão da FA numa aliança eleitoral de dirigentes partidários. Para esse
fim se propôs converter os comitês de base em núcleos de pessoas cujo
objetivo seria transmitir as diretrizes que viriam da coalizão. Eliminar-se-ia,
assim, toda a ingerência dos mesmos na condução da aliança, como
estabeleceu a organização.
Essa é uma breve síntese da reformulação da FA feita pública pelo PGP no final
de 1988. A pesar das críticas que se faziam à esquerda que denominavam “tradicional”,
no existia um projeto alternativo para a sociedade e muito menos algum esboço do que
se entendia por “socialismo democrático”.
Por sua vez, a intervenção do Partido Democrata Cristão – PDC – no debate
teórico e político da FA não teve uma formulação expressa que possuísse as
características explicitadas pelo PGP. Mesmo assim, nos fatos, desde tempos tão
prematuros como os anos iniciais da Ditadura, a tendência majoritária, orientada então,
pelo arquiteto Juan Pablo Terra, decidiu-se pela separação do PDC da coalizão
frentista. Essa postura, na realidade, era coerente com a orientação da democracia
cristã internacional que, em função de sua própria razão de ser, havia sempre sido
refratária a uma aliança com partidos marxistas.
A recomposição democrática que foi-se formando em todo um processo de lutas
e mobilizações de massas estimulou as correntes mais profundamente militantes dos
partidos e sindicatos, operando também, nas filas da democracia cristã. Tal processo
influenciou os planos dos dirigentes do PDC, dividindo sua direção quanto à
oportunidade de separar-se da aliança da FA. A tendência mais à direita, conduzida
pelo arquiteto Terra foi, então, removida da direção, o que não impediu a
desmobilização que predominou no final da década de 1980 – entre outros processos
que acabaram afastando militantes e fechou o caminho para tendências progressistas.
Como afirmam Estellano et al., a nova direção do PDC manteve, então, uma
linha dual: por um lado, preconizava nos seus documentos um “socialismo
autogestionário” que, na prática, não se aplicava. E pelo outro, buscava reconstruir a
unidade do Partido, ampliando-o em direção à direita, com dirigentes como José Sosa
181
Díaz – finalmente associado ao Partido Nacional – ou com a União Cívica, cujo
dirigente Juan Vicente Chiarino integrava o gabinete do presidente Julio Maria
Sanguinetti como ministro de Defesa. Mesmo assim, a tendência de Terra sempre se
manteve no PDC como minoria, apesar de que seu dirigente se afastasse da militância,
opondo-se, inclusive, à luta contra a lei de Caducidade
242
.
De fato, o PDC tinha orientado seus recursos e preocupações políticas para
bloquear, dentro da FA, toda atividade que se insinuasse como uma mobilização ou
luta, independente dos partidos tradicionais. A concepção “autogestionária”, de um
“socialismo de base” enunciado nos documentos, não corresponde à reticência –
quando não claro abandono – de sua militância dos comitês de base da FA, nem às
críticas e objeções que pudessem ser realizadas a seu funcionamento. Nos planos da
literatura política, o PDC não desenvolveu um corpo doutrinário explícito e coerente
sobre suas concepções. Enquanto o PGP manteve uma polêmica aberta desde a
imprensa e em documentos internos, os democrata-cristãos driblaram o confronto
público e optaram por elaborar sua estratégia teórica-política de forma oculta desde os
âmbitos acadêmicos.
A partir da cobertura institucional do Centro Latino-Americano de Economia
Humana – CLAEH, tornou-se pública –, no Congresso Latino-Americano de Sociologia
– ALAS –, realizado em Montevidéu, em dezembro de 1988, uma comunicação de
Nelson Argones e Pablo Mieres, intitulada La polemica en el Frente Amplio: pugna por
contenidos organizacionales o institucionales, na qual se fundamentava de maneira
global uma posição teórica e política sobre o tema que estamos tratando. Não foi essa
a primeira elaboração dessa natureza, mas sim a que expressou com clareza as
posições e os debates desse período. Outro aspecto relevante para a análise dessa
comunicação foi que ela sintetizava as posições do PDC e, pelo momento em que foi
apresentada, o fim do processo de ruptura.
Um ponto central da polêmica, segundo Argones e Mieres, estava nas
concepções de mudança social. A esse propósito, assinalavam: “[...] a diferença remete
à teoria da mudança social, à determinação e qualificação dos diversos agentes
políticos e sua vinculação com os interesses de classe e à discussão em torno da
242
ESTELLANO, Washinton; et al. op. cit., 1989, p. 73.
182
autonomia do nível político ou sua determinação mais ou menos estreita pela estrutura
econômica”
243
. O centro da discussão era se a mudança social estaria determinada
pela luta de classes antagônicas numa co-relação direta ou indireta, com suas
mediações com a luta política, ou, pelo contrário, o político tem uma autonomia tal que
se pode passar de forma independente, por cima dos interesses econômicos em
disputa.
A maior dificuldade para correlacionar e confrontar a conceituação proposta por
Argones e Mieres, aos problemas da política cotidiana é que eles partem de um marco
referencial que não alude a uma realidade concreta, a um país determinado, a um
momento histórico concreto numa formação econômico-social específica. Partiram de
abstrações, aludindo relacioná-las com dados empíricos, com base na realidade
uruguaia de que se pretendeu dar conta. Indiretamente, podemos inferir o caráter
programático das diferenças quando assinalam: “[...] na discussão programática tem
ficado em evidência diferenças significativas que finalmente se tem resolvido em favor
das posições daqueles que tem reivindicado as diferenças”. Mais adiante, afirmam: “A
atitude para governar e a viabilidade das propostas são as demandas dos
representantes da concepção alternativa; no entanto, a negação das diferenças e a
reivindicação dos acordos já obtidos é a proposta dos setores que representam a
concepção clássica”
244
.
Naquilo que denominaram discussão estratégica, os sociólogos Argones e
Mieres assinalam que a proposta dos dissidentes implicava a necessidade de construir
espaços de acordos muito amplos que conjugassem todas as forças que se
qualificavam como progressistas na grande aliança majoritária em favor de um projeto
de mudanças. Em nenhum momento se mencionou quais seriam essas “forças
progressistas” fora da FA e, levando em consideração a negativa do PDC ao ingresso
do MLN e de outros grupos de esquerda, subentende-se que se trata de setores
dirigentes dos partidos tradicionais, que por própria definição política e programática
243
ARGONES, Nelson; MIERES, Pablo. La Polemica en el Frente Amplio: pugna por contenidos
organizacionales o institucionales. In: Anales del Congreso Latinoamericano de Sociología.
Montevideo: Cuadernos de CLAEH, 1988, p. 123.
244
Idem, p. 125-126.
183
não propunham mudanças substanciais nem transformações sociais profundas, além
de administrar a crise do sistema capitalista.
Obviamente que está dentro dos objetivos de uma frente política propiciar
alianças por objetivos pontuais perante inimigos comuns: o imperialismo, a grande
burguesia nacional, o latifúndio improdutivo, a defesa dos direitos humanos e
democráticos, entre outros. Mas nada disso foi proposto. Até a campanha pelo
plebiscito contra a lei de Caducidade não mereceu todo o entusiasmo militante dos
dirigentes democrata-cristãos: desde Juan Pablo Terra, que se opôs, até a opinião do
Secretário de Relações Internacionais do PDC em sua manifestação de que “a divisão
entre uns e outros pode ser tentadora, mas congela, obstrui e fatalmente isola a
esquerda do resto do espectro político”
245
.
Na verdade, toda a campanha pelas assinaturas e o voto no plebiscito, levada
adiante pela Comissão Nacional Pró-Referendum, foi um bom exemplo de como a FA e
a classe trabalhadora organizada nos sindicatos do PIT-CNT conseguiram ampliar as
alianças com outros setores políticos e sociais sem se converter em caudatários dos
partidos burgueses. Dita campanha foi articulada tendo como eixo central as
organizações políticas e sindicais do povo trabalhador. Isso permitiu duplicar em
assinaturas os votos que a FA teve nas eleições de 1984 e poder realizar um trabalho
de massas sem precedentes.
Todos esses temas substantivos para qualquer “projeto de mudanças” das
estruturas econômico-sociais não mereceram sequer proposta para processá-las pelos
canais do sistema político, como seria propor projetos de lei no Parlamento. Seria
impensável esperar uma proposta de mobilização que, pelo caráter profundo daqueles
objetivos populares e antiimperialistas, teriam que acontecer através de grandes
mobilizações sociais. Como ficou claro na discussão, desde que denominaram a
confrontação “institucional”, toda ação política era sempre concebida dentro das regras
do jogo impostas pela “governabilidade”, oposta a qualquer concepção que visse os
comitês de base como “germens de poder popular”.
245
DOYENART, Juan Carlos. La República. (Jornal). Montevideo: 13 de abril de 1989, p. 11.
184
Outro dos pontos críticos levantado por Argones e Mieres foi sobre a concepção
das frentes populares, na qual, tentando criar enorme confusão, fundamentaram que
uma das particularidades da versão clássica no interior da FA era aquela que procurava
identificá-la como uma variante de uma Frente Popular oriunda da tradição comunista
do Cominter. Afirmou-se que a conjuntura política na qual surgiu a FA, em 1971, foi
propícia para que importantes setores da esquerda clássica procurassem assimilar
simbolicamente a FA com uma frente popular.
Aqui há dois problemas ou interpretações sobre o surgimento da FA: se este foi
produto do avanço das lutas e a tomada de consciência operária e popular que se
plasmou em níveis organizativos superiores (CNT, Congreso del Pueblo, FA) ou, pelo
contrário, o surgimento da FA como medida defensiva frente aos desmandos
autoritários e repressivos do pachequismo, que recriavam a presença da ameaça
fascista. Obviamente, a primeira concepção inclui a segunda. Mas a interpretação do
PDC, que pretendeu que a FA era percebida como uma coalizão de amplo alcance
dentro do sistema político uruguaio, fica precisamente nisso: em concebê-la como uma
coalizão dentro do sistema político, ou seja, dentro das regras do jogo das classes
dominantes.
Outro tema que entrou em cena na discussão com a democracia cristã foi a
alternativa estratégica em volta da qual giravam as possibilidades de ação dos setores
da esquerda política uruguaia. O tema referia-se à atitude estratégica por assumir em
relação aos temas e problemas de caráter nacional, em particular a respeito da
definição das políticas públicas e ao processo de resolução de conflitos. As
possibilidades apresentadas pela social- democracia eram: ou uma atitude de
marginalização política, ou uma atitude de compromisso.
A primeira implicava a marginalização do âmbito resolutivo. Isso implicaria a
subtração de um aporte específico, evitando, dessa maneira, os custos que derivam da
participação e o envolvimento na tomada de decisões. A preferência por essa atitude de
marginalização política podia se dever a diferentes fatores: em primeiro lugar, podia-se
fundar na valoração negativa dos custos, derivada da participação em negociações; em
segundo lugar, as motivações podiam se dever aos riscos de assumir compromissos
sobre temas de importância. Em terceiro lugar, a atitude favorável à marginalização
185
podia ter como álibi o objetivo de permanecer “neutro” e, portanto, habilitado para
exercer a crítica
246
.
No outro extremo da alternativa se observava a atitude de compromisso. Isso
pode se traduzir como a valoração da participação na discussão e tomada de decisões
próprias nas tarefas do sistema político, assumindo as negociações que surgiriam como
efeito de tal atitude e aceitando as responsabilidades e os custos que derivariam de tal
situação. Nesse caso, o envolvimento político seria elevado e os fundamentos poderiam
ser localizados na aceitação do exercício de uma cota de poder, uma valoração positiva
das conquistas que pudessem ser obtidas numa negociação.
A estas alternativas somava-se uma terceira que podemos interpretar como
fundante nessa proposta da social-democracia e que tratava das opções entre atitudes
“contestatórias” e atitudes de “formulação de propostas”. Definiam-se as atitudes
contestatórias como aquelas que, ante os diferentes temas em questão, priorizavam a
crítica e, fundamentalmente, a denúncia, “de modo que a atitude geralmente neste caso
era a desqualificação que o sistema político assume ou inclusive das demais propostas
que os outros atores apresentavam”
247
.
Pelo contrário, situada no outro extremo, colocava-se o predomínio da proposta.
Isso era a prioridade de elaborações e respostas próprias e específicas ante os
diferentes problemas que eram objeto de discussão no marco do sistema. Nesse caso,
à margem da crítica que as propostas dos demais atores merecessem, a atitude
predominante se estenderia à formulação de alternativas concretas de resposta aos
problemas em discussão.
Desde o primeiro momento, o debate adotou forma imposta pelo PGP e pelo
PDC, na exigência de uma reformulação da Frente Ampla. Na prática política se deram
prioridades a marcar diferenças com a maioria e a gerar situações conflitantes no seu
interior. Repassando as manifestações públicas dos dirigentes do PGP e do PDC e
seus artigos na imprensa, observa-se que a maioria do tempo foi destinado à polêmica
interna – e não à crítica ao governo –, desde 1986 até sua saída definitiva, em 1989.
Dessa maneira, a prática teve como epicentro desestimular toda proposta de
246
MIERES, Pablo. Democratización en Uruguay: disyuntivas para la izquierda. In: Cuadernos del
CLAEH. año 11. n 39. 1986, p. 59-60.
247
Idem, p. 60.
186
mobilização surgida desde a FA. Posteriormente à sua saída da coalizão, o PGP e o
PDC constituíram uma nova instância política chamada Nuevo Espacio.
187
188
3. A REORGANIZAÇÃO DA ESQUERDA CLÁSSICA: OS PARTIDOS SOCIALISTA E
COMUNISTA
No documento do Partido Socialista, datado em agosto de 1980, com o título de
Caracteres para una Alternativa de Democracia sobre Nuevas Bases, manifestava que
o partido possuía uma definida estratégia sobre as fases históricas do processo
nacional em direção ao socialismo. O partido entendia que o “caminho ao socialismo
avançaria de forma ininterrupta num processo único, através de distintas fases e
etapas”, distinguindo uma fase nacional e popular, em que uma “frente das classes
populares” hegemonizada pela classe operária deveria resgatar os principais elementos
da economia em mãos do imperialismo e dos monopólios capitalistas, criando, assim,
as bases em nível político para um novo Estado, abrindo caminho para o socialismo
248
.
No discurso implícito no documento, encontram-se as concepções etapistas
oriundas do pensamento sesentista, onde o povo e as organizações políticas iriam
ganhando aproximação a um espaço de poder político. Na sua estratégia, definiram
claramente o socialismo como condição essencial para a realização de transformações
dos fundamentos econômicos, políticos e ideológicos. No momento ao qual o
documento se refere, 1980 (com a Frente Ampla e todos os partidos políticos ainda
proscritos pela Ditadura), fez-se permanente referência à necessidade de uma frente
hegemonizada pelas classes populares, num discurso antiimperialista, antioligárquico e
recorrente à luta de classe como categoria fundamental.
O futuro político uruguaio – afirmava o PS – jamais poderá desentender-se da
evolução da luta democrática nos países limítrofes (Argentina e Brasil). E advertia: “[...]
qualquer atitude passiva, na espera de algum tipo de milagre geopolítico, resultaria
funesta para os interesses democráticos de todo o continente”. Tornava-se claro para o
PS que os países latino-americanos possuíam um tronco comum, do qual se
desprendiam histórias próprias com caracteres diferenciados que davam forma a cada
248
PARTIDO SOCIALISTA. Caracteres para una Alternativa de Democracia sobre Nuevas Bases.
Montevideo: Propaganda del Partido Socialista, mimeo, 1980, p 1.
189
uma de suas particularidades. A defesa da democracia – ou a conquista dela – fazia-se
também objetivo comum para Brasil, Argentina e Uruguai
249
.
De acordo com o PS, os anos de Ditadura não teriam sido em vão: tanto o
regresso à democracia liberal como o pretendido salto a uma “utopia radical”
careceriam, em última instância, de todo sustento sócio-político real e logo seriam
substituídos por estratégias “realistas”, erigidas sobre a base da hegemonia de uma ou
outra classe social. Contemplavam-se alguns pressupostos sobre os quais os fatos
políticos seriam contundentes:
a) que o Uruguai necessitava recriar um convívio democrático;
b) que esse convívio democrático não poderia ser a cópia do modelo anterior,
senão que deveria edificar-se sobre novas bases, que possuíssem a capacidade de
ampliá-la, aprofundá-la e consolidá-la.
Dessa forma, a proposta socialista de democracia sobre novas bases foi
caracterizada essencialmente como postura política que rejeitava a Ditadura e também
como forma de rejeitar o regresso ao passado. “Se bem que no passado se
desfrutassem liberdades democráticas de profundo valor popular, geradas na luta do
povo [...] é inquestionável que as mesmas estavam inscritas numa estrutura econômica
e política de dominação oligárquico-imperialista que as mediatizava”
250
. Portanto, a
democracia sobre novas bases se apresentava como uma perspectiva nacional e
patriótica, com base nas tradições democráticas do país, mas que se diferenciava
substancialmente da democracia liberal de antanho.
Sustentamos que ao acrescentar à categoria democracia o qualificativo sobre
novas bases lhe dá um significado político inquestionável. Porque se trata de
dar-lhe um conteúdo novo, diferente e progressista, a uma democracia que
antes não era especificamente tal, que era incompleta, e o essencial do novo
está no papel que o povo e os trabalhadores devem assumir em todas as
instâncias da vida política e social, como expressão de seus desejos e como
garantia de imposição de soluções nacionais e populares. Por isso, não
queremos que se confunda nosso projeto com o de alguns que não se propõem
mais que restabelecer algumas das velhas regras do jogo
251
.
249
Idem, p. 2-3.
250
Idem, p. 4.
251
Idem, p. 4-6.
190
Um projeto político sobre novas bases requeria a necessidade da edificação de
uma nova institucionalidade, formada através de debates e acordos e que acabasse
numa Assembléia Constituinte eleita por voto popular. Esta nova institucionalidade
deveria contemplar definições e garantias em relação às liberdades democráticas, o
pluralismo político, a autonomia de partidos e sindicatos com respeito ao Estado.
Explicitamente, considerava a necessidade de participação das organizações populares
na adoção de resoluções que atingissem os diversos níveis da comunidade. O grande
objetivo proposto era o de promover uma vasta rede de organizações, onde se
unificasse tanto o controle popular sobre as resoluções dos poderes do Estado, sua
incidência no processo de tomada de decisões, como a participação ativa do povo.
No plano econômico, a democracia sobre novas bases indicava a necessidade
de delimitar com maior precisão as áreas estatais, mistas e privadas da economia,
elaborando regras de jogo precisas que fomentassem um desenvolvimento harmônico
entre elas, assim como o grau de participação do capital estrangeiro em cada uma
delas. Assinalavam a necessidade de nacionalização dos elementos básicos da
atividade financeira e do comércio exterior, para que fosse o Estado quem dirigisse
esses setores. “Nem a soberania nacional nem o bem-estar concreto e em constante
aumento e benefício das maiorias populares poderá ser realidade sem um adequado
planejamento econômico, no qual se conjugue a participação do poder político, as
organizações sindicais e os técnicos”
252
.
Posteriormente, num documento do Partido Socialista, publicado em 1984,
intitulado: Democracia sobre Nuevas Bases: hacia una democracia socialista,
reafirmaram-se as posturas do documento anterior e suas propostas de iniciar o
processo de redemocratização do país a partir de uma ação que objetivava a tomada
de medidas e estratégias para se avançar num processo democrático sobre as novas
bases propostas. Supunha-se essas medidas como indispensáveis para a construção
de um Estado nacional e popular, que atendesse os pressupostos tradicionais da
esquerda: a reforma agrária, a nacionalização do sistema bancário e do comércio
252
Idem, p. 9.
191
exterior, a dívida externa, o desenvolvimento efetivo e a re-inserção internacional do
país
253
.
A aposta do Partido Socialista na concertación sócio-econômica constituía um
objetivo prioritário, de modo que se propunha impulsionar um plano de concertación
que tivesse como objetivos tanto a reativação econômica, como o início de um processo
nacional de desenvolvimento que isolasse tanto o capital transnacional e seus sócios,
no econômico, e a ditadura militar, no político. A possibilidade de acordo com os
setores burgueses não foi avaliada em termos de suas contradições de classe
imediatas. “Os setores das classes proprietárias aos quais os interesses estão
contrapostos com a política econômica vigente deverão optar entre um acordo com o
movimento popular ou uma renegociação de sua aliança com o imperialismo”
254
. Assim,
a concertación era vista como uma etapa a ser transitada em beneficio da viabilidade
democrática, sendo entendida de tal forma que, se não se realizasse, correr-se-ia o
risco de voltar-se a uma situação autoritária.
Até 1984, pode-se observar no discurso do Partido Socialista a vigência do
pensamento sesentista, ou seja, o discurso das tradicionais bandeiras da esquerda: o
sentimento antiimperialista, antioligárquico, a defesa da reforma agrária, o tema da
dívida externa, a nacionalização do sistema bancário e do comércio exterior. A partir
desse momento, em especial de 1985, o discurso do partido refletiu-se nas declarações
e elaborações de seus dirigentes, quando, acompanhando o contexto da concertación
apoiado pelo PS –, se avançou em direção ao processo que levou a esquerda à sua
transição.
O Partido Comunista por sua vez, realizou seu XVII Congresso em 1985, quando
aprovou, como parte de sua Declaração Programática, uma análise econômico-social
do país que foi intitulada Por la Revolución Agrária Antiimperialista, primer paso para el
establecimiento del régimen socialista en el Uruguay. No documento afirmava-se que,
como causa da apropriação dos meios de produção por parte dos monopólios
estrangeiros, e de uma minoria nacional privilegiada, não era possível desenvolver uma
253
PARTIDO SOCIALISTA. Democracia sobre Nuevas Bases: hacia una democracia socialista.
Montevideo: Propaganda del Partido Socialista, mimeo, 1984, p. 1-2.
254
Idem, p. 9.
192
economia independente e avançada a partir das características geográficas e da
enorme riqueza de recursos naturais que o país possuía.
O documento apostava: “Este regime caracteriza-se pela dominação de classe
dos grandes terratenientes e grandes capitalistas e pela dependência do imperialismo,
particularmente norte-americano”
255
. Destacava, ainda, que nas décadas de 1960 e
1970, o capitalismo efetivou um avanço importante no país, mas este foi dependente do
imperialismo com base no monopólio da propriedade privada e da terra que, segundo o
documento, facilitava a manutenção de diversas estruturas feudais, limitando o
mercado interno e freando o desenvolvimento das forças produtivas. Observa-se, nesse
ponto, uma certa semelhança com a análise realizada por Caio Prado Junior com
referência ao caso de Brasil.
256
Uma parte do processo de desenvolvimento do capitalismo que os comunistas
observaram como positiva foi o papel do Estado na centralização e administração de
empresas nacionais que monopolizavam a produção e distribuição de produtos e
serviços, tais como energia elétrica, portos, produção de álcool e refinarias de petróleo,
meios de comunicação, bancos, indústrias frigoríficas, pesca, entre outros. Afirmavam
que o processo de desenvolvimento capitalista foi deformado, o que se refletia na
distribuição social da população, sendo o latifúndio de gado extensivo a fonte quase
única de exportação nacional. Mais de duas terças partes da população eram urbanas e
quase 10% eram proletárias, concentrando-se particularmente em Montevidéu
257
.
A proposta contida na Declaração Programática centrava-se na necessidade de
uma mudança radical na estrutura econômica e política do país. Essa mudança era a
“Revolução Agrária” antiimperialista e a mesma era vista como o passo inicial para o
estabelecimento do socialismo no Uruguai, como primeira fase da sociedade comunista.
Para atingir tais objetivos, via-se a necessidade de implantar um governo popular,
democrático e de libertação nacional. A estratégia política era a mesma que a do
255
PARTIDO COMUNISTA DEL URUGUAY. Declaración Programática. Montevideo: Problemas, 1985,
p. 1.
256
Veja-se, PRADO, Junior, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo:Brasiliense, 1966.
257
Idem, p. 2.
193
período sesentista.
258
Sobre as novas bases econômicas, o governo democrático de
libertação nacional poderia impulsionar um grande desenvolvimento.
As condições para a formação de um governo popular que realizaria as
mencionadas reformas se oportunizaria através da constituição de uma grande coalizão
de forças populares que se nucleariam numa Frente Democrática de Libertação
Nacional. A classe operária seria a principal força dessa frente. “O proletariado aspira,
por conseguinte, à realização mais radical e completa da revolução agrária
antiimperialista”
259
, afirmava o Partido Comunista. Obviamente, consideravam que a
única garantia de triunfo dos objetivos populares expressava-se no papel dirigente de
sua vanguarda organizada, o Partido Comunista.
Posteriormente, no XXI Congresso do Partido Comunista, em 1988, emitiu-se
uma Declaração Geral que alterou substancialmente o discurso elaborado em 1985.
Abandonando e redimensionando seus postulados programáticos, o partido manifestou
que ante a necessidade de se construir um novo país tornava-se imperiosa a tarefa de
consolidar um projeto nacional, popular e democrático que “defenda a soberania
nacional e que enfrente os objetivos das classes dominantes”
260
. Para tal, a antiga
proposta da Frente Democrática de Libertação Nacional e, conjuntamente com ela, a
“revolução agrária” deixaram de fazer parte dos novos discursos e no seu lugar todos
os esforços foram canalizados para a Frente Ampla.
No documento de 1988, o Partido reconhecia que após os longos anos de
ditadura militar, os setores populares e a esquerda “aprenderam” a valorizar e a projetar
a consciência democrática de forma “profunda” e firme
261
. Segundo as manifestações
do Partido: “A linha definida, nas etapas finais da Ditadura e enriquecida nos seus
conteúdos e na sua profundidade na Conferência Nacional de 1985, tinha como base
258
Seriam destruídos os tratados e convênios econômicos, políticos e militares de sujeição do Uruguai ao
imperialismo e seriam nacionalizadas as empresas, bancos, capitais, terras, plantações e outras
pertencentes aos monopólios estrangeiros, particularmente norte-americanos. Realizar-se-ia uma reforma
agrária radical, expropriando as terras dos latifundiários e integrando-as aos trabalhadores sem-terra ou
com pouca terra e a todos os que desejassem trabalhá-las, tudo sob controle do Estado.
259
PARTIDO COMUNISTA DEL URUGUAY. Declaración Programática. Montevideo: Problemas, 1985,
p. 6.
260
PARTIDO COMUNISTA DEL URUGUAY. Declaración General. XXI Congreso. Montevideo: mimeo,
1988, p. 1.
261
Idem, p. 2.
194
duas tarefas inseparáveis de conteúdo tático e estratégico: consolidar a democracia e
avançar na perspectiva de um governo popular
262
.
Nesse documento (1988) iniciou-se o abandono das posições sesentistas no
interior do Partido Comunista. Aparentemente, tanto o contexto propiciado pelos
acontecimentos na União Soviética como suas repercussões no Uruguai e os avanços
da social-democracia na Europa levaram o Partido a uma mudança nos seus discursos
e práticas. Segundo suas manifestações: “Neste novo momento político apresenta-se a
possibilidade de uma verdadeira alternativa de governo popular que representa a
Frente Ampla, e que dispute aos partidos tradicionais a possibilidade de triunfo em nível
nacional”
263
. Todos os esforços políticos focaram-se na campanha eleitoral da Frente
Ampla.
Em 1990, o Partido Comunista elaborou um documento intitulado Avanzar en
Democracia, onde se focou, fundamentalmente, a concepção de democracia proposta e
da política de alianças
264
. O documento assinalava: “Um governo da Frente Ampla e
seus aliados é, em si mesmo, expressão de um momento avançado da democracia e
ferramenta fundamental no processo de seu aprofundamento”
265
. O Partido somava-se
ao clima de triunfo prematuro que se apoderou da esquerda no início dos anos 90,
registrando-se, nos seus discursos, a conquista iminente do governo nacional por parte
da Frente Ampla, algo que aconteceu 14 anos depois.
Como forma de apresentar sua política de alianças e seu novo “aliado”, no
Encontro Progressista os comunistas argumentavam: “A unidade da esquerda foi o
resultado consciente da ação de gerações de lutadores sociais agrupados no
movimento operário, nas forças políticas de esquerda e nos próprios partidos
262
Idem.
263
Idem, p. 4.
264
A orientação para as camadas médias, considerada em termos abrangentes, assumida no pós-
Segunda Guerra por diversos partidos social-democratas, não seria resultado de uma nova postura
estratégica, e sim um reflexo da transformação da estrutura de classes na Europa Ocidental. “A
proporção da população engajada na agricultura declinou ao longo do século XX, mais rapidamente
durante a década de 1950 do que era em qualquer década anterior”. Assim, a nova classe média quase
substituiu numericamente a velha classe média. Ao decidir competir por votos de “aliados naturais”, quer
estes pertencessem à antiga ou à nova classe média, a esquerda passou a apelar para a grande maioria
da população. Essa explicação de Przeworski (1991) parece aplicar-se à política de alianças de ambos
partidos de esquerda majoritários dentro da Frente Ampla: o partido comunista e o socialista.
PRZEWORSKI, Adan. Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.
41.
265
PARTIDO COMUNISTA DEL URUGUAY. Avanzar en Democracia. Montevideo: mimeo, 1990, p. 1.
195
tradicionais. Esse processo forma parte do caminho em busca de objetivos de justiça
social e progresso desejados pelas grandes massas, no marco de enormes
mobilizações populares que se cristalizaram em momentos fundamentais da aplicação
de uma política de acumulação de forças”
266
.
Em maio de 1992 realizou-se o Congresso Extraordinário do Partido Comunista.
O evento aconteceu num contexto de profunda crise, não só para o partido, mas
também para amplos setores da esquerda nacional. O Partido elaborou uma análise
autocrítica de sua situação e do contexto político nacional e internacional. Um dos
pontos de destaque foi a manifesta necessidade de uma “rigorosa análise”, proposta
para ser realizada a partir do Congresso, sobre as causas do fracasso na construção do
socialismo
267
. A proposta visava aprofundar o estudo das bases nacionais, regionais e
continentais, para poder definir o caráter da Revolução Nacional, suas estratégias e
objetivos.
O Partido Comunista do Uruguai toma como base, para interpretar a realidade
material e social, o materialismo dialético e histórico, submetendo a um
processo de reformulação das teses que, pelas transformações econômicas,
sociais e culturais acontecidas na sociedade uruguaia, latino-americana e
mundial, necessitam de mudanças, pelo avanço das ciências sociais e o
aprofundamento da concepção filosófica elaborada no fundamental por Marx e
Engels. Como partido da classe operária, baseia-se no marxismo-leninismo,
instrumento de análise e transformação da realidade. Enquanto ferramenta
científica, está sujeito sempre a mudanças que a vida demonstre que sejam
necessárias de realizar
268
.
O Partido definiu que a sua organização deveria basear-se no centralismo
democrático, como garantia de sua capacidade de ação e de exercício da democracia.
Centravam seus esforços – segundo o documento – em concretizar os objetivos
fundamentais de uma democracia “avançada”, para a qual fazia-se necessária a
ampliação das alianças sociais e políticas com a Frente Ampla, como principal força da
266
Idem, p. 4.
267
PARTIDO COMUNISTA DEL URUGUAY. Resolución General. Congreso Extraordinário.
Montevideo: mimeo, 1992, p. 2.
268
Idem, p. 3.
196
esquerda nacional. Isso não era identificado pelo Partido como um “desvio” do processo
e, sim, como uma etapa necessária no seu desenvolvimento histórico
269
.
Nas Resoluções do Congresso foram identificadas algumas ações prioritárias
para o Partido:
1) Realizar um profundo estudo das conseqüências da dívida externa, que
implicavam um fator limitador na capacidade produtiva, procurando a elaboração
de um modelo alternativo;
2) Contribuir, consolidar e desenvolver as bases populares do governo
frenteamplista na prefeitura municipal de Montevidéu;
3) Aprofundar a solidariedade com a Cuba socialista, símbolo para toda a América
Latina de luta contra a prepotência do imperialismo;
4) Introduzir, nas elaborações e na militância, a problemática da destruição do meio
ambiente pela irracional exploração da natureza
270
.
No que se refere à atuação do Partido dentro da Frente Ampla, as resoluções do
Congresso definiam como eixo central o processo de “acumulação de forças”, visando
ao embate eleitoral. “Este caminho de acumulação política não exclui de forma alguma
a possibilidade de realizar alianças e a busca contínua de acordos pontuais com
aquelas forças políticas com as quais seja possível realizá-las. Acordos e alianças que
ajudem a Frente Ampla a crescer e ganhar credibilidade ante o povo”
271
. Essa foi uma
estratégia prioritária, visto que novamente acreditou-se num triunfo imediato nas
eleições nacionais de 1996.
Nas Resoluções do XXIII Congresso do Partido, realizado em 1993, observa-se
uma análise mais detalhada e melhor elaborada que as anteriores aqui expostas.
Apesar disso, os pontos centrais tiveram como base o processo de acumulação de
269
Como recorda Przeworski, embora alguns partidos “suspendessem” a luta de classes e entrassem em
governos de coalizão antes do término da I Guerra Mundial, mesmo na Grã-Bretanha a decisão de formar
o primeiro governo trabalhista, em 1924, foi objeto de acirrada polêmica, precisando ser justificado como
se tratando de uma oportunidade de adquirir a experiência necessária para a posterior etapa socialista.
Aparentemente, os setores “tradicionais” no interior do Partido Comunista uruguaio não gostavam
contrariando toda sua tradição desde a formação da Frente Ampla, em 1971 – da exclusividade dos
esforços políticos para o triunfo da Frente e polemizaram, a este respeito, com os setores “renovadores”
do partido. PRZEWORSKI, Adam. op. cit., p. 23.
270
Idem, p. 5-6.
271
PARTIDO COMUNISTA DEL URUGUAY. Resolución sobre el Movimiento Social y el Frente
Amplio. Montevideo: mimeo, 1992, p. 2.
197
forças (eleitorais), com foco na aliança com o Encontro Progressista. Também foi
mencionada a crise pela qual o Partido atravessava, que teve como causas aparentes,
além da problemática da transição da esquerda, a dispersão de militantes do partido e a
perda da hegemonia na direção da central sindical e do movimento estudantil.
Posteriormente, em 1994, provocou-se uma fratura dentro do Partido, que aprofundou
ainda mais a crise. Nessa divisão surgiram duas vertentes: a primeira, tradicionalista,
vinculada às idéias tradicionais do comunismo, e a segunda, “renovadora”, que
impulsionou a criação da Confederação Frenteamplista, uma nova linha dos comunistas
“renovadores” que negavam as velhas estruturas partidárias.
As discussões no Congresso centraram-se na reestruturação do partido, numa
rápida estratégia para recuperar sua posição no movimento sindical e estudantil, e a
aposta no triunfo das futuras eleições nacionais de 1996. Sua estratégia prioritária
continuou sendo a “acumulação de forças”, mas com o foco, neste caso, nos setores
ligados ao Encontro Progressista. “Vemos como necessidade impostergável combater
para ganhar os setores médios intelectualizados para o governo do Encontro
Progressista e para a revolução”
272
.
Esses setores médios intelectualizados eram vistos como protagonistas centrais
na difusão e reprodução ideológica da sociedade e operantes como uma das
mediações principais da hegemonia dominante. A perda da hegemonia na direção do
movimento operário foi vista como uma repercussão negativa no meio intelectual;
portanto, na universidade. Para o processo de acumulação de forças, os setores
ligados à universidade que manifestavam descontentamento com as propostas dos
partidos tradicionais – mas que faziam parte deles – eram o “público-alvo” para um
trabalho que visava a captá-los para os “aliados” do Encontro Progressista. Na prática,
os esforços do Partido concentraram-se nesse sentido.
As regras do jogo democrático liberal demonstravam-se implacáveis. Se um
partido político pretendesse governar sozinho, livre da influência moderadora de
alianças e de compromissos, deveria obter determinada quantidade de votos –
aproximadamente 50%. As instituições eleitorais precederam o surgimento de partidos
272
PARTIDO COMUNISTA DEL URUGUAY. Resolución del XXIII Congreso. Montevideo: mimeo, 1993,
p. 12.
198
que buscam usá-las como veículo para o socialismo, e tais instituições encerram uma
regra fundamental que impossibilita a vitória de uma minoria isolada: um partido
representante de uma classe que possui menos membros que outras classes
associadas não pode vencer batalhas eleitorais. Como desafio para a esquerda
eleitoral, restou somente a questão de ser ou não possível recrutar uma maioria
favorável ao “progressismo”, procurando apoio eleitoral fora da esquerda.
199
200
4. O MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO NACIONAL – TUPAMAROS A PARTIR DE 1985
Após a restituição das primeiras experiências democráticas, em 1985, no mês de
março o novo Parlamento aprovou uma lei de anistia, pela qual saíram em liberdade
todos os presos políticos. Os integrantes do antigo Movimento de Libertação Nacional
Tupamaros foram convocados pelos velhos dirigentes para discutir a pertinência ou não
de reorganizar o MLN. Realizaram-se três plenárias consultivas que reuniram
aproximadamente 500 militantes. Essas plenárias facultaram a velhos dirigentes
constituir-se numa direção provisória, para convocar todos os militantes no sentido de
discutir os novos lineamentos políticos e definir numa nova Convenção. Em dezembro
de 1985 reuniu-se a III Convenção Nacional do MLN.
Na Convenção estabeleceram-se acordos básicos, mas ficou evidenciada a
necessidade de se iniciar um longo processo de discussões e de práticas sociais para
se chegar a um conjunto de definições que sistematizaram as diversas experiências
vividas pelos militantes na prisão, nos diferentes exílios e no próprio Uruguai. A
Convenção ratificou algumas definições estabelecidas num encontro clandestino
realizado em 1968, ao qual se denominou Simpósio. Essas definições se referem à
utilização do materialismo dialético como ferramenta científica para o conhecimento e
transformação da sociedade.
A organização funcionava sobre as bases do centralismo democrático. Isso
significava organismos de decisões coletivas, responsabilidades individuais,
subordinação das minorias às decisões das maiorias, distintos níveis de organismos
com responsabilidades de direção e, como elemento essencial, total democracia e
participação nas instâncias de tomada de decisões fundamentais e também de
funcionamento hierarquizado nas instâncias de execução de tarefas. Ratificou-se a
concepção de continentalidade da luta, entendendo que a libertação nacional de cada
país dependente seria impossível sem uma ação de conjunto por parte dos países
dependentes. Entre outras resoluções, aprovou-se um novo regulamento para o
funcionamento do MLN.
201
A partir de 1986 iniciou-se um processo de conversações com distintas pessoas
e organismos políticos que visavam construir acordos para um trabalho político em
conjunto. Nessas conversações participaram integrantes do MLN e de outras frações
políticas independentes e progressistas. Como recorda Julio Marenales, “Estas
conversações se estenderam por um espaço de mais de dois anos”
273
. Como resultado,
em 1987 foram produzidos acordos que permitiram a formação de um organismo
político, que se denominou Movimento de Participação Popular – MPP
274
e que se
definiu como um movimento de luta pela libertação nacional e o socialismo. Isso quer
dizer que esse movimento não seria somente de caráter eleitoral, mas de luta política
em todos os âmbitos possíveis, também incluído o eleitoral. O MPP apresentou-se nas
eleições de 1989 elegendo dois deputados.
“O MLN integra o MPP, assim como também a coalizão de esquerda Frente
Ampla, porque considera que os instrumentos políticos devem ser diversos para poder
realizar a ação política em diferentes âmbitos”
275
. O MLN continua sendo uma
organização política relativamente fechada, desde o momento em que não se definiu
como uma organização de massas, senão como uma organização de quadros e
militantes. O aspirante a ingressar nela deve ser apresentado por membros do MLN,
após cumprir um processo no qual é avaliado em diversos itens e, posteriormente, com
uma avaliação favorável, integra-se como membro pleno.
Desde 1985, a concepção do MLN, da luta pela transformação profunda da
sociedade, visualizava-se não pelos meios utilizados, mas porque essa transformação,
que deverá ser revolucionária, abrangerá todos os aspectos da estrutura social e será
um longo processo. Essa transformação se iria operando na medida em que o
desenvolvimento social construísse um novo tecido social, elaborando uma nova escala
273
MARENALES, Julio. História do MLN – T: documentos de formación nº 2. Montevideo: Propaganda
del MLN, 2001, p. 5.
274
O Movimento de Participação Popular – MPP constituiu-se oficialmente como agrupação política
integrante da Frente Ampla, em seis de abril de 1989. Foi formado por militantes da esquerda
independente, pelo Partido pela Vitória do Povo – PVP, pelo Partido Comunista Revolucionário – PCR e
pelo Movimento Revolucionário Oriental – MRO. Foi, durante a década de 1990, uma instância política
combativa dentro da Frente Ampla, posicionando-se com os pressupostos defendidos pela Tendência
Combativa do sesentismo. Representou, na época, uma alternativa crítica aos setores burocráticos da
Frente Ampla e do processo de transição da esquerda uruguaia. Todo o trabalho de massas do MLN, a
partir de 1989, foi canalizado dentro do MPP. Teve um destaque de fundamental importância dentro da
esquerda nacional, fundamentalmente no período de 1990 a 2004 (ver capítulo III).
275
MARENALES, Julio. op. cit., p. 7.
202
de valores, tudo isso orientado em direção a uma nova estrutura que tenha como centro
as necessidades humanas de toda ordem e onde não exista a injustiça e a exploração
do homem pelo homem. Em suma, o MLN, após 1985, continua reivindicando a luta
pela libertação nacional e o socialismo como sua principal bandeira de luta.
Na III Convenção Nacional do MLN – Tupamaros, realizada em Montevidéu, em
dezembro de 1985, manifestou-se que: “[...] nem as batalhas eleitorais, nem as brigas
políticas ou por outros motivos, sejam causa suficiente para dividir esse grande frente
antiditatorial do povo, ante a possibilidade do retorno fascista que ameaça no
horizonte”. Essa frente antiditatorial – segundo Tupamaros – era a Frente Grande, que
objetivava “[...] ser o reflexo no social e no político da luta contra o capital financeiro e
pela democracia”
276
. Nessa mesma III Convenção resolveu-se a incorporação à Frente
Ampla e facultar a sua direção para pedir o ingresso. Posteriormente, a IV Convenção
(1987) reafirmou essas resoluções.
Por sua vez, o Partido Comunista fazia propostas também nesse sentido, ao
mesmo tempo em que liderava as acusações de “divisionistas” contra o MLN: “[...]
temos de construir um grande bloco do povo, quer dizer, se foi possível fazê-lo quando
do referendum, como não podemos pensar em construí-lo como grande alternativa para
a República em volta deste fato histórico que é a Frente Ampla, cada vez mais forte,
unida e mais consciente de seu destino histórico?”. Ao mesmo tempo, de forma
contraditória, manifestava: “A formação de um grande bloco popular é, hoje, um projeto
da FA e, portanto, é o fracasso de quem quis manipular, acreditando que a FA podia-
se dividir”
277
.
No ato realizado pelos Tupamaros em dezembro de 1987, fez uso da palavra
Eleutério Fernandez Huidobro, que no seu discurso citou uma manifestação do Partido
Socialista, realizada na oportunidade de seu 39
o
Congresso Ordinário, a qual se
intitulou: El Bloque del Poder Alternativo Popular y Democrático e que essencialmente
expressava: “Trata-se de articular as maiorias sociais num bloco popular alternativo que
tenha como objetivo estratégico a consolidação e aprofundamento da democracia”
278
.
276
TUPAMAROS. Resoluciones de la III Convención Nacional. Montevideo: MLN, mimeo, 1985, p. 8.
277
ARISMENDI, Rodney. Declarações. In: Semanário Asamblea. Montevideo, 25 de abril de 1985, p. 2.
278
HUIDOBRO, Eleutério Fernández. In: ¿Por qué un Frente Grande? Montevideo: Tupamaros, 1988,
p. 14. Discurso pronunciado no Ato do MLN – Tupamaros em Montevidéu, em 19 de dezembro de 1987.
203
Huidobro, dessa forma, argumentava que a necessidade da formação desse grande
bloco era uma realidade vista por toda a esquerda frentista, só que a partir de duas
concepções diferenciadas: por um lado, um bloco de centro-esquerda (dentro da Frente
Ampla e com exclusões); e por outro lado, a Frente Grande que se apresentava como
uma opção de unidade sem exclusões.
Em março de 1986, o MLN divulgou um documento intitulado: El Militante
Tupamaro en el Frente Amplio
279
, com diretrizes e orientações práticas para seus
quadros que atuavam nos Comitês de Base da Frente Ampla. Nesse documento,
assinalava como pontos norteadores para a militância:
a) apoio, fomento e fortalecimento dos Comitês de Base;
b) democracia interna e participação das bases nas decisões;
c) priorizar a militância no interior do país;
d) que a FA fosse um instrumento de luta permanente, e não somente eleitoral;
e) luta contra todo sectarismo interno e externo; e
f) ligar a prática intersocial com a FA nas lutas nos bairros, sindicatos, setores
estudantis, entre outros. Esse documento serve como referência para identificar a linha
política do MLN com relação a sua militância na FA, o que não oferecia,
aparentemente, nenhum sinal de divisionismo.
Na solicitação oficial de ingresso à FA
280
, o MLN fez menção dos esforços
realizados entre os anos de 1980 e 1984 por parte dos militantes do MLN, como os do
Movimento 26 de Março, para a reorganização da FA através de uma intensa militância
clandestina e que, uma vez reorganizado, integraram-se intensamente a seus Comitês
de Bases. Em 24 de abril de 1984 – recorda o documento –, os militantes do MLN e do
26 de março conversaram com o general Líber Seregni (ver capítulo I), onde foi
manifestada a intenção de integrar-se formalmente à FA, quando assim o permitisse a
situação política (o MLN não era legal neste momento). Os motivos expostos
fundamentaram-se na necessidade de fortalecer a aliança de forças antiimperialistas e
279
TUPAMAROS. El Militante Tupamaro en el Frente Amplio. In: MLN – Tupamaros y Frente Amplio.
Montevideo: Propaganda Central MLN, 1989, p. 23.
280
TUPAMAROS. Solicitud del MLN de Ingreso al Frente Amplio. In: MLN – Tupamaros y Frente
Amplio. Montevideo: Propaganda Central MLN, 1989, p. 29-34.
204
antioligárquicas no país, apontando seus esforços e sua militância para trabalhar em
conjunto com a FA.
As manifestações do MLN a respeito do ingresso à FA estavam intimamente
relacionadas com o processo de unificação que o MLN vivenciava na época. O
movimento 26 de março não fazia sentido como elemento isolado no novo contexto; ele
representou a ala política do MLN nos anos de 1970, mas, em 1985, eles haviam se
unificado na III Convenção Nacional do MLN, em dezembro de 1985. As estratégias de
ambos os movimentos – agora unificados – confluíam com as da FA. “Esta
organização, hoje formal e publicamente unificada com o nome de MLN (T), reivindica
os direitos e deveres surgidos daquela integração do 26 de Março, em 1971, assim
como das solicitações de ingresso cursadas em nome do 26 de Março”
281
.
Em dezembro de 1987 desatou-se uma série de acusações contra o MLN, que
teve como início artigos de imprensa publicados pelo jornal El Dia (vinculado ao Partido
Colorado), segundo as quais o MLN retiraria sua solicitação de ingresso à FA e
apresentaria a proposta da formação de uma Frente Grande em oposição à Frente
Ampla. Segundo a imprensa colorada, essa frente seria composta pelo MLN, setores do
Partido Nacional e “ativistas” da FA. A essas manifestações (da direita
ultraconservadora) se fizeram porta-vozes alguns setores da FA e seus órgãos de
comunicação.
As fundamentações das acusações passavam por:
a) que o MLN não fez uma autocrítica de seu passado, entendida esta como a
exigência de que o MLN renegasse um passado político que incluiu a luta armada e,
por conseqüência, que renunciasse a ele como possibilidade futura;
b) que a proposta de Frente Grande era uma proposta de dividir os setores populares.
Na sua essência, eram os argumentos centrais. O MLN, em resposta a essa situação,
elaborou uma réplica pública na sua defesa.
Na resposta do MLN se esgrimia que, para alguns setores políticos, o MLN
deveria renunciar a sua estratégia – como condição para poder existir – “que tem como
objetivo final a tomada do poder” e, além disso, não seria permitido manifestar-se para
realizar críticas ou propostas políticas que expressassem seu pensamento. Como era
281
TUPAMAROS. Solicitud del MLN de Ingreso al Frente Amplio. op. cit., p. 34.
205
de público conhecimento, o MLN não possuía uma autocrítica acabada, mas se sabia
que o processo havia avançado e que, por isto, nenhum integrante do MLN, em
instância alguma, tinha ousado colocar como elemento autocrítico o desenvolvimento
da violência revolucionária.
Nossos erros os localizamos no plano de como foi esse desenvolvimento em si
mesmo, e em sua relação com as demais formas de organização e luta popular.
Mesmo assim, não tem havido nenhum companheiro que, desde março de
1985 até a presente data (dezembro de 1987), frente a centenas de perguntas
da imprensa no mesmo sentido, tenha descartado totalmente que o povo
uruguaio (não somente Tupamaros) pudesse se ver obrigado ao emprego da
violência se as circunstâncias o levarem a isso
282
E acrescentava que, para os que apostam nas mudanças em paz, aos avanços
da democracia como única e excludente fórmula de levar adiante “as tarefas da
libertação nacional e o socialismo”, incomoda que existam pessoas que, em função de
uma realidade que marcou a história da luta de classes de todo o mundo e
particularmente da América Latina, “mantenham posições que por realistas possam
colocar em volta dessa temática de idéias um número importante das forças
revolucionárias e progressistas de nosso povo”
283
. Obviamente que essas
manifestações tiveram o efeito esperado: tornaram mais aguda ainda a polêmica e os
debates oriundos desta.
Em relação à Frente Grande, reafirmavam que a mesma se interpretava como
expressão, em nível político, do desenvolvimento que se deveria dar como um todo nas
forças sociais, onde transcendessem os marcos de unidade, desde a época de
enfrentamento com a Ditadura em diante, os marcos exclusivamente fenteamplistas, e,
por outros, como expressão de uma vontade de mudanças majoritariamente
manifestada pelo povo no seu apoio eleitoral e militante a programas de transformações
que não tinham – no momento – uma expressão comum. “Nunca dizemos que a Frente
Grande deve substituir a Frente Ampla: pelo contrário, temos dito sempre que também
é tarefa da Frente Ampla lograr aquele nível de unidade”
284
.
No ato realizado pelo MLN – Tupamaros, no estádio Franzini, na cidade de
Montevidéu, em 19 de dezembro de 1987, foi lançada a proposta de constituição de
282
Idem. p. 76-7.
283
Idem.
284
Idem.
206
uma “Frente Grande”, com o objetivo de lograr um efetivo acúmulo de forças
progressistas para encontrar saídas para o problema da terra, a banca, a dívida externa
e o salário, como elementos básicos para atender as demandas nacionais imediatas. A
proposta foi efetivada por Raúl Sendic. Na sua oratória, na oportunidade, enfatizou,
particularmente, o tema da dívida externa e o processo de estrangeirização do país.
Denunciava-se um processo de estrangeirização do país que estava ocorrendo
através da entrega da nação nas mãos do capital estrangeiro. Esse processo havia
iniciado no governo militar, quando 2% da terra eram de propriedade de capitais
estrangeiros – no início da Ditadura (1973) – e de 8% no final do período militar (1984).
Da mesma forma, no período militar, 46% do sistema bancário estavam em mãos do
capital estrangeiro e no final do período este atingia 83%. A essa situação se somava a
atuação do governo democrático (pós-ditadura imediata), que viabilizou duas grandes
medidas antinacionais: a aprovação de “Zonas Francas” para a instalação de empresas
internacionais e a promoção de “venda” de terras através das embaixadas no
exterior
285
.
O tema da terra era uma das grandes preocupações de Raúl Sendic –
juntamente com o da dívida externa: ele identificava que este poderia ser um tema
aglutinador dos setores populares da sociedade uruguaia, da mesma forma que o foi o
Referendum. Sendic foi um dos primeiros dirigentes políticos a denunciar o
desaparecimento dos temas latifúndio e reforma agrária nos discursos e plataformas
políticas das organizações de esquerda do país. Num artigo publicado em 1997
286
,
Sendic afirmava que na medida em que decrescia a população rural (de 318.000, em
1970, para 264.000, em 1980), decrescia, também, o número de votos nos setores
rurais e, por conseqüência, a repercussão de seus problemas na maioria dos políticos.
Isso era atribuído a um “silêncio” por parte dos partidos políticos e as causas desse
silêncio eram, basicamente, duas: o fato de que não houvesse uma quantidade de
gente significativa reclamando pela terra e uma espécie de desmonetización das
plataformas políticas.
285
Idem.
286
SENDIC, Raúl. La Tierra: un tema tabú que vuelve. Montevideo: Tupamaros, mimeo, 1997, p. 2.
207
Na proposta de Sendic, a posição à respeito da dívida externa era a rejeição ao
pagamento da mesma. Essa postura foi elaborada pelos Tupamaros em 1985 e
provocou inúmeras polêmicas no seio da esquerda. Foi, basicamente, a proposta que
caracterizou o MLN no período de 1985 a 1987 e, por sua vez, funcionou como uma
convocação a todas as forças progressistas para procurar uma unificação em torno de
objetivos concretos e urgentes para a situação do país. Nesses setores se incluía a
Frente Ampla, ao qual os Tupamaros solicitou ingresso
287
em 11 de abril de 1986, o que
se concretizou apenas em 20 de maio de 1989.
Enquanto isso, as propostas do Partido Socialista em relação ao tema da dívida
externa oscilavam em volta de seu refinanciamento. Em 1984, o partido manifestava,
num documento intitulado: Democracia sobre Nuevas Bases: hacia uma democracia
socialista, que esse tema seria um dos grandes desafios do futuro governo democrático
e da concertación nacional. Observavam a necessidade de re-financiamento da dívida
em termos de uma negociação em condições distintas às que o FMI estava acostumado
a fazer. Como condições necessárias para essa negociação, observavam: “Não é
possível aceitar nenhuma clausula que, por um lado, signifique a aplicação de políticas
recessivas com respeito ao salário dos trabalhadores, às cargas tributárias e ao gasto
público de caráter re-ativador da economia”
288
. Foi efetiva a aposta do PS ao
refinanciamento da dívida, acreditando que o que o país conseguisse em matéria de re-
financiamento condicionaria o desenvolvimento da política econômica.
No Encontro sobre a Dívida Externa da América Latina e o Caribe, realizado em
Havana, de 30 de julho a 3 de agosto de 1985, com a presença de quase 1.800
pessoas representantes dos cinco continentes, Fidel Castro levantou a polêmica sobre
o pagamento da dívida, a qual qualificou de impagável. Essa afirmação de Castro não
era nova, visto que desde o ano de 1979, como exemplo, quando, na Assembléia Geral
da ONU, falando em nome da Sexta Conferência de Chefes de Estado dos Países não
Alinhados, insistia sobre a impossibilidade de pagamento da mesma. A dívida, para os
287
Tupamaros foi acusado de “divisionista” no seio da esquerda frentista em 1985, por motivo de sua
proposta da necessidade de se formar a Frente Grande. Particularmente, o Partido Comunista, na figura
de seu secretário geral, Rodney Arismendi, dirigiu uma série de acusações neste sentido. A proposta da
Frente Grande foi interpretada por vários setores da Frente Ampla como uma estratégia de dividir a
esquerda. Esse embate retardou, por três anos, o ingresso do MLN na Frente Ampla.
288
PARTIDO SOCIALISTA. Democracia sobre Nuevas Bases: hacia una democracia socialista.
Montevideo: Propaganda del partido Socialista,. Mimeo, 1984, p. 11.
208
países de América Latina, era uma manifestação dos fenômenos econômicos e
monetários mais profundos e significativos que caracterizavam a situação de
dependência em relação ao imperialismo.
Jorge Belgrano, em matéria a propósito do evento, publicada na revista Estudios
(órgão do Partido Comunista uruguaio), argumentava que as proporções da sangria a
que estão submetidas as nações latino-americanas nunca foram tão enormes. “Cada
vez a dominação é maior e somos mais explorados. Naturalmente, ante os povos
empobrecidos se propiciam novos empréstimos para ‘ajudar-nos’ com dinheiro ‘novo’,
como dizem alguns economistas nossos que só sabem pensar dentro dos esquemas da
dependência”
289
. A saída para o tema da dívida não era um problema econômico, e sim
político; era um problema de enfrentamento com o imperialismo e, para tal, a
perspectiva era a de um enfrentamento com uma grande força unida, que
objetivamente fosse capaz de abranger a todo o mundo socialista e a todo o chamado
Terceiro Mundo.
Essa unidade para combater a dívida externa implicava a necessidade de se
estabelecer uma nova ordem. Uma Nova Ordem Internacional na qual desaparecesse a
dependência, a dívida, o comércio desigual; na qual se criassem bases reais para o
desenvolvimento das nações que agrupam milhões de seres humanos; que diminuísse
a distância entre ricos e pobres, sobre a base de uma maior justiça; que abrisse passo
à produção, à saúde, à cultura; que permitisse afiançar solidamente a democracia e a
paz mundial. Além dos impactos do tema da dívida discutidos no Encontro, a
concepção de Nova Ordem Internacional foi o centro fundamental dos problemas
discutidos a partir de 1985, de forma mais significativa, após o Encontro de Havana e
das declarações de Fidel Castro ao jornal mexicano Excelsior.
Werner Altmann (1992)
290
, realizando uma avaliação histórica da década de
1980 na América Latina, apontou que na mesma perspectiva de análise do presidente
cubano, o professor mexicano Fausto Burgueño, diretor do Instituto de Investigações
Econômicas da Universidade Nacional Autônoma do México – Unam, observou, em
1987, que o México tinha pagado, somente em conceito de juros da dívida externa, a
289
BELGRANO, Jorge. El Encuentro de la Habana. In: Estudios. Montevideo: n 94, 1985, p. 21.
290
ALTMANN, Werner. A América Latina na Década de 80: Uma Avaliação Histórica. In: Estudos
Leopoldenses. São Leopoldo: Unisinos, Vol. 28, n 129/130, setembro de 1992, p. 67.
209
quantia de US$ 102,5 bilhões entre 1970 e 1987, enquanto que o montante total da
dívida, no mesmo período, era de US$ 109 bilhões. O desafio lançado era o de rejeitar
a dívida externa e unificar esforços para o enfrentamento ao imperialismo norte-
americano em nível de América Latina, como única possibilidade de acabar com a
sangria desatada contra os povos do continente.
Sendic mantinha sua posição de não pagamento da dívida externa, a qual
coincidia com a de Fidel Castro. Quase toda a esquerda inserida na FA no momento
(na década de 1980), discordava da posição dos Tupamaros, aos quais qualificavam de
ultra-esquerdistas e de serem extremistas à respeito do não pagamento da dívida. O
único integrante da FA que assumia uma postura marcada pelo não pagamento da
dívida e de uma saída – para este tema – na necessidade de se estabelecer uma
grande frente antiimperialista era o Partido Comunista uruguaio. Ambas organizações
foram amplamente criticadas dentro da esfera da esquerda frentista.
No seu discurso, Sendic fez menção de que a Frente Ampla tinha elaborado sua
versão da Frente Grande, ou seja “uma aliança com setores políticos com os quais
pudesse ter uma coincidência programática”. Mas, advertia Sendic, “terão muitas
dificuldades para levá-la adiante”
291
, porque, segundo ele, o acordo era com setores do
Partido Nacional que se havia fragmentado por ocasião do voto pelo referendum, por
motivo da lei de impunidade. As estratégias do Partido Nacional nessa oportunidade
seriam de ter um caudal de votos tanto na esquerda como na direita. Por esse motivo a
possibilidade de uma aproximação à FA.
Na concepção de Sendic necessitava-se uma iniciativa das bases para que essa
Frente Grande fosse possível. Uma expressão de unidade que mobilizasse
cooperativas, sindicatos, trabalhadores rurais e todos os setores progressistas da
sociedade, sob o pressuposto de uma frente sem exclusões. Nesse sentido, marcaram-
se, de forma permanente, a necessidade de unidade, sim, mas entre setores que
objetivassem uma “saída pela esquerda” como forma de construção de uma sociedade
socialista. No discurso de Sendic ressaltava-se a necessidade de concretizar essa
frente de forma urgente, pela grave crise que o país atravessava.
291
SENDIC, Raúl. In: ¿Por qué un Frente Grande? Montevideo: Tupamaros, 1988, p. 28. Discurso
pronunciado no Ato do MLN – Tupamaros em Montevidéu, em 19 de dezembro de 1987.
210
Posteriormente, em entrevista concedida a Jorge Barreiro, no Semanário
Marcha, Raúl Sendic afirmava: “Não nos consideramos vanguarda de nada, senão um
dos elementos que contribuirão para levar adiante a luta do povo uruguaio. Nesse
sentido, apresentamos idéias para resolver o problema da dívida externa, do sistema
financeiro, dos salários, assim como o problema agrário. Tratamos de manter a tocha
acesa, visto que, antigamente, a reforma agrária pelo menos figurava nas plataformas e
na agitação dos partidos de esquerda como ponto essencial e hoje tem sido bastante
esquecida. Portanto, hoje somos um movimento com vontade de somar numa grande
corrente popular, ampla, e, dentro dela, procuramos ser um pólo ideológico para que a
frente não se dilua, e tenha propostas cada vez mais audazes”
292
.
De igual forma que nos temas da dívida externa e da terra, a temática referente
ao pleito eleitoral e às alianças era assunto muito claro na opinião de Raúl Sendic. Na
mencionada entrevista, Barreiro perguntou se o MLN estava apostando em saídas
políticas que incluíssem alianças com outros partidos, porque descartavam apresentar-
se a eleições como organização. Sendic respondeu que o MLN iria participar do
processo eleitoral, mas, talvez, “[...] os nossos homens mais notórios não participem
como candidatos. Pensamos em apoiar candidatos que nos pareçam respeitáveis, fiéis,
coerentes, avançados ideologicamente, e não necessariamente temos que ser nós.
Somos conscientes de que ao povo não somente se deve mostrar um programa, senão
que também uma estrutura com opção de poder; por isso, queremos superar as
mesquinharias, os partidarismos, para procurar uma grande frente que ofereça a
possibilidade para o povo de chegar ao poder através dele”
293
.
A proposta de Sendic a respeito da Frente Grande pode ser sintetizada a partir
de um grande projeto de integração nacional dos setores populares dedicados – em
princípio – a três pontos-chave: os problemas oriundos do sistema financeiro (incluída a
dívida externa e o sistema bancário), a temática da terra e da reforma agrária e o
salário como uma necessidade imediata de sobrevivência da população trabalhadora.
Esses eram os temas que Sendic identificava como potenciais de aglutinação dos
setores populares e, ao redor dos quais, visualizava a construção da Frente Grande.
292
SENDIC, Raúl (entrevista) a BARREIRO, Jorge. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo, n. 29, 1988,
p. 9.
293
Idem, p. 14.
211
Numa entrevista
294
realizada em outubro de 1988, respondeu à pergunta sobre quais
outros temas, além do Referendum, poderiam cumprir um papel aglutinador na
sociedade uruguaia e assinalou que, na medida em que fosse compreendida, a dívida
externa e, também, o problema da terra teriam esse potencial.
No início da década de 1990, o semanário Mate Amargo (de filiação
tupamara) afirmou que se tornava imprescindível, para qualquer mudança na política
econômica uruguaia, uma revisão do tema da dívida externa, da mesma forma que foi
indicado pela Plenária Executiva da Frente Ampla em 26 de dezembro de 1992.
Entendia-se que para que essas mudanças acontecessem, no mínimo, devia-se
repensar a renegociação da dívida externa, de tal forma que conduzisse a uma
supressão, “[...] pelo menos de forma parcial”
295
, por um prazo não inferior a três anos,
com o “compromisso” da aplicação desses valores no âmbito produtivo do país.
Posteriormente, em 1994, a Frente Ampla definiu sua política de alianças. Tal
política expressou-se através do Encuentro Progresista, que levou Rodolfo Nin Novoa a
ser candidato à Vice-Presidência da República, No seu Programa Político, previa o
cumprimento dos compromissos contraídos pelo Estado a respeito do pagamento da
dívida externa e à integração do Mercosul, nos termos expressos no Tratado de
Assunção
296
. No processo de discussão dessa política de alianças argumentou-se (no
interior da Frente Ampla) que se estava frente à concretização das idéias propostas por
Sendic de formar a Frente Grande.
No editorial do semanário Mate Amargo, de 27 de julho de 1994, lia-se: “Nem
esta Frente, nem este Encontro são a Frente de Sendic”. Assim, os Tupamaros e o
Movimento de Participação Popular negavam a possibilidade de se visualizar essa
política de alianças com as propostas de Sendic. “A Frente Ampla, hoje, contém
organizações que, cada vez com mais intensidade, tentam diluí-la numa organização
294
SENDIC, Raul. (entrevista) a SARTHOU, Helios. La República. Montevideo, 01 de outubro de 1988,
p. 14.
295
MATE AMARGO. Montevideo: ano 6, n. 164, janeiro de 1993, p. 7.
296
Entendeu-se o Mercosul como uma fase para o liberalismo absoluto. Através da diminuição de taxas e
tributações, em pouco tempo se destruiu o aparelho produtivo nacional, se desindustrializou o país,
aumentando o desemprego e a marginalização social a uma velocidade vertiginosa.
212
mais relapsa no programático; procuram reduzir o peso de sua estrutura de base e a
afastam dia a dia dos setores que lhe deram origem.”
297
Por outro lado, no mesmo semanário e na mesma edição, um artigo assinado
pelo social-democrata Enrique Rubio, ressaltava a importância dessa política de
alianças e afirmava que o Encontro Progressista significava uma nova etapa, não
quanto ao programático e no pensamento político da Frente Ampla, mas sim enquanto
possibilidade de articulação de um espaço de mudanças, “[...] uma espécie de Frente
Grande, que espero conquiste as pessoas para converter-se na primeira força política
do país”
298
.
Já para o deputado frentista Marcos Abelenda
299
, destacava-se uma série de
pontos que deveriam encontrar-se no acordo programático do Encontro Progressista e
que não foram incluídos, como a defesa da segurança social, a luta contra as
privatizações, a liberdade sindical, as tentativas neoliberais de flexibilização dos direitos
trabalhistas, entre outras. Nesse sentido, também o tema da nacionalização do sistema
financeiro e da dívida externa, no contexto do Encontro Progressista, deixava uma nova
preocupação sobre o futuro da coalizão, porque as diferenças políticas expressadas no
acordo poderiam cobrar vida no futuro próximo.
Em resumo, o MLN identificava claramente uma substancial diferença entre a
proposta de Sendic da Frente Grande com a proposta do Encontro Progressista – pelo
menos até 1994 – colocando uma série de temáticas em discussão que de alguma
forma, só eram levantadas pelo MLN (caso a reforma agrária). Posteriormente, se
observará um giro muito particular por parte do MLN a respeito da proposta do Encontro
Progressista (ver capítulo III) na qual, como resultado de uma “transição” da esquerda
uruguaia que levou a um complexo e prolongado processo de “atualização ideológica”,
as definições programáticas do encuentrismo foram assumidas pelo MLN.
297
MATE AMARGO. El Frente de Sendic. Editorial, Montevideo: ano 7, n. 202, julho de 1994, p. 4.
298
RUBIO, Enrique. No Hemos Podido Convencer a la Minoria. In: MATE AMARGO. Montevideo: ano 7,
n. 202, julho de 1994, p. 10.
299
ABELENDA, Marcos. Se retrocede en posiciones que el Frente há definido con claridad. In: MATE
AMARGO. Montevideo: ano 7, n. 202, julho de 1994, p. 11.
213
5. A FEDERAÇÃO ANARQUISTA URUGUAIA – FAU – APÓS 1985
A reorganização da FAU tem seu início em princípios da década de 1980, em
Buenos Aires. Um considerável contingente de militantes e simpatizantes que
emigraram, fugindo da Ditadura no período de 1973 a 1976, se estabeleceu na capital
Argentina, fazendo desta uma nova base operativa para a luta e resistência à Ditadura.
A partir de 1976, esses militantes envolveram-se ativamente nos acontecimentos
políticos que levaram a enfrentar a Ditadura Militar na Argentina. A tradicional
solidariedade anarquista manifestou-se, continuamente, durante todo o processo das
lutas populares na Argentina. As atividades dos anarquistas uruguaios foram,
principalmente, as de ações voltadas a dar suporte aos militantes clandestinos e presos
dos regimes militares. Por outra parte, a prédica e difusão do ideário anarquista foram
uma prática efetiva dentro das possibilidades que o contexto permitia.
No Uruguai, a partir do ano de 1982, iniciou-se uma série de ações voltadas ao
atendimento solidário de necessidades pontuais da população. Esse foi o caso do
Refeitório Popular do Cerro
300
e da Policlínica do Cerro, como uma experiência de
organização popular bem sucedida. As atividades desenvolvidas nesses centros
continuam até hoje, sendo uma das expressões características tanto dos anarquistas
como de um bairro popular e solidário. Essas atividades visavam atender as
necessidades mínimas de alimentação de crianças carentes oriundas de lares onde o
desemprego era a característica comum dos participantes. Igualmente, a policlínica
atendia a população do bairro e região dentro de uma nova perspectiva de saúde
pública: a mesma entendida como uma ação solidária e comunitária, organizada a partir
da autogestão.
300
Cerro: bairro popular na periferia de Montevidéu, caracterizado como um bairro de classes
trabalhadoras, tradicionalmente ligado a operários do Sindicato da Carne e jornalistas, entre outros. O
Cerro foi um dos importantes centros de resistência durante a Greve Geral, e posteriormente a ela. Um
exemplo histórico de organização popular das classes trabalhadoras que teve seus antecedentes nas
primeiras lutas operárias de Montevidéu, no início do século XX.
214
A partir do final de 1983 e início de 1984, as atividades da FAU tomaram o rumo
da propaganda política, através de manifestos e de uma intensa participação nos
sindicatos que começavam a se reorganizar no país. Sua presença naquela época
centrou-se, principalmente, no sindicato da carne, da borracha, de padeiros e no
sindicato gráfico. A FAU iniciou um processo de autocrítica que se acentuou,
posteriormente, em 1985, com a recuperação da liberdade de seus principais dirigentes
que estavam presos pela Ditadura. Esse processo de autocrítica foi contínuo durante a
década de 1980 e concluiu no início de 1990, quando a FAU ratificou sua posição como
organização libertária e de luta pelo socialismo.
Desde 1984, a FAU intensificou sua participação em sindicatos e em centros
culturais, promovendo intensos debates e mobilizações em torno da defesa dos direitos
humanos e no pedido de justiça para com os responsáveis pelas atrocidades da
ditadura militar. Ressurgiram, nesse momento, publicações anarquistas, tais como:
Lucha Libertária, Recortes de FAU e Cartas de FAU, que viabilizaram a divulgação da
organização e de seu constructo ideológico. A luta pela Anistia Geral e Irrestrita junto
aos familiares de detidos-desaparecidos pela ditadura militar foi um ícone da
organização e sua presença marcou este movimento em particular. Igualmente
significativa foi a participação de outros setores da esquerda independente, como
Tupamaros, o movimento 26 de Março e o Partido pela Vitória do Povo.
A visão do anarquismo propugnada pela FAU constituía-se em torno de uma
crítica às relações de dominação em todas as esferas do fazer social, crítica esta que
se definia como permanente, segundo as necessidades da sociedade e do seu
respectivo momento histórico. Num documento da FAU, de 1986, reivindicava-se a
vinculação histórica da FAU com o movimento operário internacional, assim como com
a trajetória do anarquismo nas lutas revolucionárias do século XIX na Europa, sua
presença protagonista na formação do movimento sindical no Rio de la Plata, no
processo revolucionário da Espanha e sua participação na resistência nazi-fascista nos
países da Europa Ocidental
301
.
301
FAU. Cartas de FAU. Montevideo: mimeo, 1986, p. 1-3.
215
Em março de 1993, a FAU realizou, em Montevidéu, seu X Congresso, onde
analisou a construção de uma nova ordem mundial, constituída a partir da derrubada da
União Soviética e do final da Guerra Fria. Igualava as hegemonias em disputa, URSS e
EUA, como sinônimos de autoritarismo, sistemas de privilégios e dominação. Na análise
da situação internacional, resultante do X Congresso, a FAU reformulou sua
Declaración de Princípios, na qual percebia a nova ordem econômica mundial como
tripolar (EUA, Japão e Europa); não obstante, identificava os EUA como a única
potência com “vontade e capacidade” para o exercício de sua força em escala global
302
.
A análise econômica estava voltada, fundamentalmente, para aspectos que
identificavam o imperialismo norte-americano com um novo processo incipiente de
globalização da economia mundial.
Na avaliação da FAU, a experiência “socialista” que acabava de desmantelar-se
deixava dois pontos teóricos para a reflexão, que tinham sua origem desde as primeiras
fases da Revolução de 1917: por um lado, a controvérsia entre a centralização e a
descentralização e pelo outro, a polêmica entre o fortalecimento do Estado e a
desarticulação do mesmo em favor de um poder revolucionário exercido pelas
organizações populares. Argumentava-se que o predomínio das correntes autoritárias,
estatistas e centralizadoras foi a principal causa para o desmantelamento da URSS. No
plano especificamente político, a concentração do poder estatal favoreceu uma forma
historicamente original de dominação. A burocracia, como classe dominante, constituiu-
se a partir da administração dos assuntos do Estado e, muito particularmente, do
excedente econômico, da manutenção da ordem interna, da defesa do território
nacional e da coesão ideológica e sua respectiva reprodução.
O sistema soviético que acabava de sucumbir confirmava para a FAU as críticas
realizadas pelo pensamento anarquista, no sentido de que a edificação de uma
sociedade “autenticamente socialista e libertária”, só seria possível, entre outras
condições, o caminho da socialização econômica – que não pode confundir-se com a
mera estatização dos meios de produção –, senão através de orientações que
representassem a mais completa socialização do poder de decisão política. As
302
FAU. Federación Anarquista Uruguaya: Declaración de Princípios. Montevideo: mimeo, Aprovada
no X Congresso em março de 1993, p. 7.
216
sociedades que formavam a URSS e seu bloco de mobilidade social eram vistas como
conseqüência de uma carreira técnico-administrativa no setor estatal, que levou os
Partidos Comunistas a constituir-se na base do sistema como estruturas fortemente
hierarquizadas, autoritárias e excludentes. Portanto, a relação estado-partido era o
contexto de formação da classe dominante e o âmbito privativo do exercício do poder
político.
Na perspectiva das mudanças ideológicas que vinham acontecendo no início da
década de 1990, a FAU observava
303
que, por um lado, a justificativa do imperialismo
para suas intervenções nos países latino-americanos mudou do anticomunismo para a
luta contra o narcotráfico. Por outro lado, marcava a quase inexistência de movimentos
políticos civis de signo nacionalista com algum tipo de tendência antiimperialista. Ou
seja, os populismos eram uma distante referência histórica. Observavam uma forte
tendência ao desaparecimento de alguns Partidos Comunistas no continente. A crise
das doutrinas marxista-leninistas era notória, mantendo algum tipo de significado em
lugares como Cuba, Peru e Colômbia. A disseminação das perspectivas social-
democratas liberais era clara.
Na avaliação da FAU sobre a conjuntura dos inícios de 1990, afirmavam: “Não
surgem novos e relevantes movimentos armados. A única novidade constituiu o
episódio de La Tablada
304
, em Buenos Aires”. Os movimentos armados existentes na
época encontravam-se em crescentes dificuldades. Como conseqüência das mudanças
internacionais e dos problemas que colocava a nova conjuntura mundial, alguns
movimentos de luta armada adotaram políticas inéditas. O caso do sandinismo foi o
mais notório: “participou das eleições que significaram, ao mesmo tempo, reeditar o
303
FAU. Cartas de FAU. Montevideo: mimeo, 1991, p. 3.
304
La Tablada foi uma tentativa de evitar um golpe militar na Argentina. O nome La Tablada é de um
quartel do Exército argentino localizado na província de Buenos Aires, que seria a sede de uma nova
ocupação por parte de rebeldes militares golpistas em janeiro de 1989. Com antecedentes que
provinham de 1987, um setor militar, liderado pelo comandante Mohamed Alí Seineldín, autodenominado
Caras Pintadas, pretendia derrubar o governo constitucional de Raúl Alfonsin, colocando no seu lugar o
vice-presidente Victor Martínez. Este, por sua vez, concorreria às eleições nacionais com o candidato
justicialista Carlos Menem que, se previa, ganharia as eleições, colocando Seineldín no Comando Geral
do Exército. No dia 23 de janeiro de 1989, um grupo de militantes vinculados ao Movimiento Todos por la
Pátria – MTP ocupou o quartel militar. O confronto teve como saldo 43 mortos: 11 militares e policiais e
32 militantes de esquerda. Se bem os militantes do MTP não conseguiram atingir seu plano, é inegável
que detiveram o golpe de estado de Seineldín.
217
funcionamento das estruturas da democracia burguesa”
305
. Também salientavam o
caso salvadorenho, onde o movimento Farabundo Martí de Libertação Nacional, após
12 anos de enfrentamento armado, que deixou um saldo de mais de 80 mil mortos, no
marco de negociações foi concretizando o abandono da luta armada, entregando
grande parte de suas armas.
Os anarquistas reafirmavam, na sua Declaração de Princípios, de 1993, o ideário
anarquista como crítica ao capitalismo e ao Estado como poder separado e por sobre a
sociedade, como crítica à burguesia e à burocracia, como crítica à dominação, ao
privilégio e às injustiças em todas suas formas, como uma crítica radical ao
autoritarismo que se representa, necessariamente, na atitude das lutas sociais das
classes oprimidas.
Nossa crítica e nosso projeto não se esgotam no levantamento, no protesto e
na rebelião, senão que amadurecem num modelo de sociedade libertária
inconfundivelmente socialista, numa estratégia de ruptura revolucionária e num
estilo militante combativo e de agitação permanente em direção às
transformações sociais em grande escala. Este projeto canaliza-se através da
organização revolucionária
306
.
O projeto da FAU apresentava, como base de suas concepções, as tradições
libertárias de liberdade e igualdade, em confronto ao conceito de liberdade do
liberalismo, no qual a liberdade é uma mera declaração formal ou algo que se aplica
especificamente nas esferas do privilégio e é concebida como uma propriedade natural
dos seres racionais. Para os anarquistas, a liberdade é uma condição imprescindível
para o desenvolvimento de todas as faculdades humanas. Nesse sentido, não é
possível reduzir a liberdade somente às liberdades políticas formais, senão que é
entendida como o conjunto de condições e relações sociais que brindam a possibilidade
de um trabalho criador, o exercício consciente e responsável da vontade humana. Por
outra parte, a concepção de igualdade da FAU não significava a adesão a uma
concepção igualitarista com conteúdos totalitários. Na proposta anarquista, a liberdade
torna-se real e cobra sentido se apoiada na mais completa igualdade de possibilidades
em todos os terrenos do fazer social.
305
FAU. Federación Anarquista Uruguaya: Declaración de Princípios. op. cit., 1993, p. 13.
306
Idem, p. 19.
218
6. AS BASES DA TRANSIÇÃO: SOCIALISMO E DEMOCRACIA NA ESQUERDA
URUGUAIA (1984-1993)
A transição da Ditadura ao pós-ditadura marcou fortemente a esquerda na sua
concepção de democracia. A experiência vivida entre 1973 e 1984 acabou dando suma
importância e valorizando a democracia “formal”. Se, em 1971, a defesa da democracia
formal era uma concepção pragmática do contexto imposto pelo avanço do
autoritarismo, em 1984 pode-se dizer que o conceito de democracia começou a se
impor como componente ideológico da esquerda. Sem dúvida, esse sentimento
“democrático” era produto de um contexto regional e internacional – o auge do governo
de Alfonsin na Argentina e a reabertura democrática brasileira –, conjuntamente com o
avanço do neoliberalismo – particularmente a experiência chilena. A terceira onda
democrática desencadeada primeiramente nos anos 1970, no sul da Europa Ocidental
e que atingiu a América Latina nos anos 1980, contribuiu com a revalorização da
democracia.
A partir de 1985, os setores de centro-esquerda apresentavam uma nova
alternativa que se centrou no conceito da democracia e de sua valorização. Na saída do
período autoritário foi comum e unânime o discurso favorável à democracia, a qual se
valorizava positivamente. Mesmo assim, tal unanimidade deve ser analisada, visto que
é possível designar, nesse conceito, diferentes interpretações. Na análise de esquerda,
nas décadas de 1960 e 1970 a palavra democracia era empregada dentro da esquerda
em conjunção ou adjetivada por termos desqualificantes e necessários de serem
superados: democracia burguesa, democracia formal, entre outras. Hoje, ela se
emprega fundamentalmente associada a termos pertencentes ao desejável para as
esquerdas: democracia participativa, autogestionária, avançada, social. Isso não
necessariamente implica que a esquerda tenha realizado uma crítica de sua visão
sobre a democracia.
Uma avaliação sistemática do discurso político interno da esquerda e de sua
ação material poderia mostrar qual é o novo conceito existente hoje. O ponto-chave da
questão formulada nos setores da esquerda política uruguaia se encontrou na opção
entre uma concepção que entendia e aceitava a democracia como um valor substancial
219
(passível de ser aprofundado, melhorado e complementado), que formava parte do
projeto desejável para o futuro, e outra que concebia a democracia como um valor
instrumental de caráter estratégico, ou inclusive tático, que devia ser defendida numa
determinada conjuntura, mas que não formava parte do projeto a ser instituído na
sociedade, visto que sua própria essência vinculava-se a formações sociais que
deveriam ser substituídas
307
.
Dessa forma, pretendeu-se demonstrar que a estabilidade democrática que o
país desejava, dependeria – no que tange à esquerda – da concepção predominante;
assim, a dita estabilidade poderia ser percebida como um “obstáculo” para o processo
de transformação ou, sem ser percebida como um “obstáculo”, poderia ser levada em
consideração como um elemento de menor importância. A lógica da ação política, no
entanto, observa a democracia como valor substancial ou como valor instrumental, o
que implicou em mudanças na formulação ideológica da “nova esquerda”, que possuía
as características e pressupostos da social-democracia.
Depois de 1985, o sistema partidário uruguaio revelou um novo fenômeno
substancial: o final do bipartidarismo secular que caracterizou o modelo democrático no
país. O surgimento da Frente Ampla implicou a consolidação de um terceiro espaço,
que nasceu em 1971. O bipartidarismo continuou determinando a lógica política nos
âmbitos governamental e parlamentar, na medida em que ambos partidos, somados,
eram maioria. Após 1985, iniciou-se um lento e gradativo processo de crescimento da
esquerda eleitoral que apresentou, como característica marcante, o fato de ser uma
“verdadeira” oposição ao sistema de “compromisso” (entre blancos e colorados). Esse
fenômeno deu início a um novo sistema partidário ideologicamente diferenciado. O
mesmo se expressa, hoje, na existência de dois blocos: o bloco “tradicionalista” – do
centro à direita – e o bloco “progressista” – do centro à esquerda. (ver tabela 3).
307
MIERES, Pablo. Democratización en Uruguay: disyuntivas para la izquierda. In: Cuadernos del
CLAEH. Montevideo: Año 11, n. 39, 1986, p. 57.
220
Tabela 3. Distribuição ideológica do eleitorado segundo posicionamento de setores pelos
quais votou – Eleições Nacionais – 1942-1994. Percentuais do total de votos válidos.
Ano da
eleição
Direita e
centro-direita
Centro Esquerda e
cento-esquerda
1942 56.6 9.7 33.6
1950 49.5 27.2 23.9
1958 64.9 6.4 27.7
1971 51.1 3.6 44.7
1984 44.5 6.1 46
1989 51 2.4 41.8
1994 39.1 16.7 40.5
Fonte: ERRANDONEA, Alfredo. El Sistema Político Uruguayo. Montevideo: La República, 1994, p. 50.
Na tabela 3, pode-se observar que a denominação feita por Errandonea (1994)
identificou os setores tradicionais como direita e centro-direita, e os setores
progressistas como esquerda e centro-esquerda. A coluna intermédia que situou os
setores chamados de “centro” teve uma importante significação no ano de 1950, isto se
deve ao final do período neo-batllista onde vários setores do partido colorado
colocaram-se ao centro do cenário político do país. Os setores identificados no “centro”
se dividiram gradativamente entre ambos os blocos, tradicionalista e progressista a
partir de 1994.
Na composição do bloco tradicionalista não existiu nenhuma fração ou
movimento de “esquerda”, como também não existiu nenhuma fração de “direita” no
chamado bloco progressista. A polarização ideológica se evidenciava de forma clara.
Mas isso não foi sempre dessa forma, como salienta Moreira (2004)
308
: até os anos
1990, os partidos tradicionais tinham suas frações de centro-esquerda, especialmente o
Partido Nacional. Antes da formação da Frente Ampla, mesmo existindo partidos
ideológicos de esquerda, os partidos tradicionais possuíam uma dinâmica interna que
308
MOREIRA, Constanza. Final de Juego: del bipartidismo tradicional al triunfo de la izquierda en
Uruguay. Montevideo: Trilce, 2004. p. 21.
221
os fracionava no eixo “conservador-progressista”. As alianças entre o batllismo e o
nacionalismo independente, formadas para enfrentar a ditadura de Gabriel Terra
(1935), ofereceram um exemplo dessa dinâmica.
A temática sobre democracia e socialismo tomou como base de discussão, no
final de 1986, um trabalho publicado pelo Centro Latino-Americano de Economia
Humana, de autoria de José Nun, intitulado Democracia y Socialismo: ¿etapas o
niveles? No referido trabalho, Nun realizou uma análise sobre a viabilidade do
socialismo no Uruguai como perspectiva para a esquerda contemporânea. Nele,
discutia os conceitos de democracia “governada” e democracia “governante”. No
primeiro caso, a participação popular possui um papel reservado decididamente
secundário e basicamente defensivo. De forma diferente no segundo caso, onde se
procura maximizar a participação direta dos setores populares na formulação de
políticas e na tomada de decisões.
Para Nun, o objetivo do socialismo era instaurar uma democracia “governante”;
isso seria justamente o que significa a socialização dos meios de produção e a tomada
de decisões. Mas isso exigiria pelo menos uma observação importante. Uma
democracia socialista deveria incluir necessariamente formas representativas. Trata-se
de democratizar os sistemas de autoridade em todas as áreas da vida, respeitando
suas características próprias, o que seria um requisito indispensável para uma
representação autêntica e responsável, ou seja, a política não poderia esgotar-se no
lugar por excelência da representação, que é o âmbito estatal. Nun se perguntava se
seria possível (no contexto uruguaio de 1986) estabelecer uma democracia “governada”
enquanto se luta por um projeto de democracia “governante” ?
309
Nesse momento, Nun faz uma crítica à esquerda, particularmente a sul-
americana, que, segundo o autor, possuía a tendência a manter separadas ambas
temáticas. Ou seja, por um lado, as críticas ao leninismo permitiram avançar numa
compreensão maior e menos dogmática da proposta socialista; e, por outro lado, um
realismo igualmente flexível conduziu a uma revalorização do governo representativo,
quer dizer, a democracia “governada”. Na visão do autor, as duas temáticas não eram
abordadas teoricamente entre si pela esquerda. Isso pode ser contestado a partir de
309
NUN, José. Democracia y Socialismo: ¿etapas o niveles?. Montevideo: CLAEH, 1986, p. 18.
222
que a conexão de ambos – ou sua falta –, segundo Nun, foram historicamente
antagônicas e também porque há outros fatores que o autor desconsidera.
Em primeiro lugar, as críticas ao leninismo (as quais o autor se refere) têm como
base a crise do sistema soviético, que foi tomado como exemplo “único” de socialismo
“real”. A discussão da crise soviética foi muito restrita e até superficial – pelo menos no
Uruguai – durante o período em questão (1986-1990), possivelmente por se tratar de
uma situação que deixou sem resposta a quase toda a esquerda mundial. Em segundo
lugar, a revalorização das democracias representativas deveu-se a dois elementos que
não podem ser deixados de lado: o primeiro refere-se aos particulares contextos em
que se retomam os processos democráticos após as ditaduras na América Latina; e o
segundo, essa revalorização está diretamente relacionada com a situação da social-
democracia na Europa
310
.
Entre 1974-75, caíram as três ditaduras da Europa. Militares do Movimento das
Forças Armadas deram início à revolução portuguesa, em abril de 1974, e tomaram o
poder de Marcelo Caetano; a ditadura grega renunciou depois de provocar a invasão
turca de Chipre, em julho de 1974; e a morte de Francisco Franco, em novembro de
1975, deu início à transição democrática na Espanha. Em cada um desses casos, os
comunistas haviam sido a única oposição constante e esperavam sua recompensa com
os votos da população. Os três partidos comunistas adotaram estratégias de
constitucionalismo e de “amplas alianças”, apoiados por manifestações
extraparlamentares, mas opondo-se a toda e qualquer tentação insurrecional ou
“bolchevique”. Essa postura aplicou-se ao Partido Comunista Português, solidamente
leal a Moscou, sob o comando do stalinista Álvaro Cunhal, assim como ao Partido
Comunista Espanhol, de Santiago Carrillo, que, pelo contrário, assumiu uma postura
310
Para o movimento comunista internacional, a invasão soviética à Tchecoslováquia, em 1968, foi um
rompimento definitivo. Com ela, morreu o comunismo reformista na Europa Oriental. A partir da
Primavera de Praga, os governos do pacto de Varsóvia não se desviaram mais dos axiomas centrais de
lealdade a Moscou, a saber: coesão do bloco soviético, estruturas burocráticas da economia dirigida e
monopólio político do comunismo. Na Europa Ocidental, por outro lado, a invasão soviética levou os
comunistas a uma crítica anti-soviética sem precedentes. ELEY, Geoff. Forjando a Democracia: a
história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005, p. 468.
223
claramente anti-soviética. Os comunistas tratavam de estabelecer para si credenciais
democráticas e se posicionar para governar
311
.
Foi nesse contexto, a partir de 1975, que teve início o eurocomunismo. Segundo
Eley, o nome foi inventado pelos liberais como um sinal de alerta para denunciar um
comunismo aparentemente reformado, como nada mais do que uma cortina de fumaça
para a progressiva sovietização da Europa. A partir dele, assumiu-se o compromisso
comum da esquerda com um caminho inequivocamente ocidental para o socialismo.
“Santiago Carrillo, em busca da liderança de transição democrática na Espanha, deu ao
termo um caráter mais ambicioso, ‘o caminho’ ‘eurocomunista’ para o poder”
312
. A
referência continuou a ser a Primavera de Praga. Mantinham-se as críticas à invasão
soviética à Tchecoslováquia, advogando o direito de cada país ao seu “caminho”
nacional próprio e defendendo os direitos humanos na União Soviética.
O eurocomunismo rejeitou o modelo leninista de quadros partidários. Se uma
disciplina rígida foi necessária para o Partido Comunista Espanhol durante os anos da
ditadura franquista, isso mudou abruptamente com a legalização e as eleições. Sob o
eurocomunismo, atraiu-se um apoio mais abrangente e socialmente mais diversificado,
incluindo novos estratos profissionais, burocratas, pessoas com formação universitária
e as mulheres. Isso resultou num tipo de partido diferente do anterior, afastando-se do
partido leninista de militantes, com suas exigências de tempo, exclusiva lealdade, para
um grande partido eleitoral, com sua estrutura mais leve de alianças e identificações
menos exigentes, baseado em populações socialmente variadas. Os apelos do
eurocomunismo pela democratização do partido significaram não só o
desmantelamento do centralismo, mas também a abertura do partido a correntes e
questões diversificadas
313
.
Finalmente, o eurocomunismo abriu um espaço maior na esquerda para a
democracia radical, sugerindo uma ‘terceira via’ entre a social-democracia da Europa
Ocidental e os comunistas oficiais do Leste. [...] Os eurocomunistas deram prioridade a
questões que jamais poderiam ser incluídas na perspectiva da luta de classes baseada
311
ELEY, Geoff. Forjando a Democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2005, p. 469.
312
Idem.
313
Idem, p. 477.
224
na classe operária industrial. Tudo se poderia incluir nelas, desde os grandes eixos de
identidades de gênero, etnicidade, religião e raças até problemas relativos à juventude,
sexualidade, ecologia, relações internacionais e uma política cultural voltada para a
elevação espiritual e o entretenimento
314
.
Um dos elementos que se pode observar, como na afirmativa de Garcia (2005), é
de que a partir da década de 1970, na Europa, ao lado dos partidos de esquerda,
partidos social-democratas ou partidos comunistas, havia experiências européias que
eram conduzidas por partidos conservadores, mas sob pressão de uma plataforma
social-democrata. De alguma maneira, “o processo de internacionalização da economia
e de globalização foram os que inviabilizaram o pacto keynesiano-fordista que existiu
em vários países e colocaram a social-democracia ante o dilema de radicalizar o
processo ou tentar encontrar soluções mais moderadas que se aproximavam, em
grande medida, daquelas propostas que os liberais haviam historicamente
desenvolvido
315
”.
Garcia pergunta se é possível uma experiência de esquerda na periferia do
capitalismo, como é o caso do Brasil e outros países da região. Na opinião do autor,
essa experiência está condenada de antemão a ser inviabilizada e um governo de
esquerda que se constitui vai terminar como o governo de Salvador Allende ou como
terminaram outros governos de esquerda na América Latina. “Ou ele vai
necessariamente trair seu ideário?”
316
. Garcia não arrisca uma resposta para o assunto,
mas afirma que há intelectuais latino-americanos que defendem a inviabilidade de um
projeto de esquerda efetivo, radical, na periferia do capitalismo. O que parece uma
constante dentro do pensamento da esquerda uruguaia no seu processo de transição.
Na opinião de Nun, a experiência dos países capitalistas avançados sugere que
a consolidação da democracia “governada” requer que interatuem pelo menos três
condições fundamentais:
a) um capitalismo em expansão que sirva de suporte a um Welfare state de tipo
Keynesiano;
314
Idem, p. 478.
315
GARCIA, Marco Aurélio. Pensar a Terceira Geração da Esquerda. In: História e Perspectivas da
Esquerda. Chapecó: Argos, 2005, p. 62.
316
Idem, p. 63.
225
b) grandes partidos de massas, capazes tanto de desativar a pressão de suas
bases como de acrescentar suas demandas de modo que sejam negociáveis;
c) aparelhos estatais muito densos e experimentados que possam operar como
mediação (e válvula de segurança) entre a participação e o poder, de tal forma que a
mesma acabe por converter-se mais num mecanismo ritualista de controle social do
que numa expressão eficaz da vontade do povo
317
.
Em entrevista realizada por Susana Mayo com o historiador Ernesto Laclau
(1990)
318
, por ocasião de uma rápida passagem por Montevidéu, a jornalista perguntou
a Laclau sua opinião a respeito da social-democracia. Na manifestação de Laclau, o
modelo social-democrata, igualmente que o modelo comunista – naquele período –,
encontrava-se em crise. O autor apontou para várias áreas de convergência de ambos
os modelos, como o caso da centralidade política e social da classe operária. Quer
dizer que ambos estiveram diretamente ligados a uma perspectiva classista.
Como diferenciação, Laclau apontou que um dos modelos identificava-se com
uma ruptura revolucionária e o outro, com uma linha reformista, mas o classismo, em
ambos, encontrava-se presente. Um outro ponto de convergência foi que ambos
acreditaram na intervenção burocrática do Estado como modelo fundamental de
desenvolvimento. Ou seja, em nenhum dos casos aconteceu um planejamento
democrático: “[...] acredito que tanto o comunismo como a social-democracia clássica
estão esgotados”
319
.
Na opinião de Laclau, o classismo, o discurso socialista clássico, pressupunha
que a sociedade seria cada vez mais homogênea e iria estar fundada em torno da
centralidade crescente do proletariado. E o que ocorreu foi algo diferente. Houve uma
fragmentação, cada vez mais generalizada, dos agentes de mudança social. Assim
sendo, não seria possível viabilizar uma perspectiva socialista em termos de um agente
privilegiado da mudança histórica. Apesar de suas críticas, o autor afirmou que muitos
317
NUN, José. op. cit., 1986, p. 19.
318
LACLAU, Ernesto. La Crisis del Estado Nacional. In: Cuadernos de Marcha. Entrevista concedida a
MAYO, Susana, Montevideo: n. 58, agosto de 1990, p. 25-31.
319
Idem, p. 26.
226
elementos do ideário socialista, no seu sentido clássico, continuam permanecendo
vigentes e podem ser reformulados
320
.
Para Laclau, as duas observações importantes a fazer a respeito do ideário
clássico do socialismo eram: a primeira, mostrar o caráter mais necessário das ligações
entre os distintos componentes deste ideal. Ou seja, certas coisas que se poderiam
manter e outras que não. A segunda, que se deve relacionar cada vez mais a
perspectiva socialista à perspectiva do que ele chamou de um “planejamento
democrático”. Essa concepção acabou reforçando a noção de socialismo com o
imaginário de uma sociedade reconciliada, na qual todo conflito tenha sido eliminado.
Hebert Gatto publicou, em Cuadernos de Marcha (1989), um trabalho intitulado
Democracia y Revolución
321
, em que iniciou uma intensa polêmica que teve como base
as relações entre classes e os sujeitos sociais, assim como a contínua problemática
colocada entre socialismo e democracia. Essa polêmica dirigiu-se, em particular, ao
socialista Manuel Laguarda que, por sua vez, debateu com Gatto nas subseqüentes
edições da mencionada revista. Segundo Gatto, a reforma, diferente da revolução,
consistia na transformação radical do capitalismo através de mudanças gradativas de
natureza não violenta.
Na afirmação de Gatto observa-se que entre a revolução e a reforma, como
estratégia de mudança, existia uma diferença específica: “O ato de força onde um
partido ou uma aliança deles impõe ao resto dos setores sociais sua visão estratégica.
Será o exercício direto da violência de classe, no acesso ou no exercício do governo, o
que distingue e constitui a diferença específica entre o socialismo revolucionário e o
socialismo reformista”
322
. Gatto tomou como base as definições dos clássicos do
Marxismo. Aparentemente, para ele, os mesmos devem ser interpretados num só bloco,
de forma dogmática, como se não existissem diferentes interpretações do Marxismo,
leituras críticas e reflexivas sobre o mesmo.
320
Idem, p. 27.
321
GATTO, Hebert. Democracia y Revolución. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 43, maio de
1989, p.32-49.
322
Idem, p. 45.
227
Por sua vez, Manuel Laguarda
323
manifestou, em referência ao artigo de Gatto,
que o mesmo baseou-se em definições marxistas ortodoxas, revelando, dessa maneira,
“seu dogmatismo latente e sua fixação – nada renovadora – a uma época em que cada
interlocutor defendia suas posições procurando uma citação adequada”. Observe-se
que para a maioria da esquerda uruguaia se entendia por revolução uma transformação
socialista profunda das estruturas econômicas e dos sistemas normativos e dos valores
dominantes. Uma transformação que, no marco da época (1985-1990), era desejável
de ser realizada no contexto da legalidade existente, ou seja, no respeito das liberdades
e num confronto pluralista. Por sua vez, como reformismo, essa mesma esquerda
entendia a renúncia a essa transformação socialista, a idéia de que a mesma surgiria
espontaneamente como resultado “normal” do desenvolvimento capitalista e inclusive a
substituição do ideário socialista por um capitalismo democrático.
Dessa forma, atualizaram-se velhas discussões em volta de temas que atuaram
como divisores da esquerda tradicional. No período sesentista (observe-se o capítulo I),
os debates entre reformistas e revolucionários conduziram as discussões políticas que
dividiram ideologicamente a esquerda uruguaia, fundamentalmente a partir do tema do
partido como aglutinador da luta popular. Após a queda do bloco soviético, a temática
se aprofundou, com um giro marcante em favor da democracia liberal como “única”
opção viável. O abandono das antigas estruturas político-ideológicas está presente na
declaração realizada pelo Partido Socialista em 1987, na qual definiu-se que o Partido
Socialista não se caracterizava como marxista-leninista, e sim que “seu marco
referencial é o socialismo científico, ciência fundada por Marx e Engels e desenvolvida
no século XX por Lenin e outros pensadores”
324
. O Partido Socialista uruguaio fez
questão de esclarecer que a leitura crítica e reflexiva dos teóricos marxistas, incluindo o
próprio Lênin, não implicava a adesão ao marxismo-leninismo.
O marxismo-leninismo, que no pensamento sesentista caracterizou – em maior
ou menor medida – toda a esquerda uruguaia como norteadora do pensamento
socialista, foi descartado – também em maior ou menor medida –, a partir da década de
1980, pela esquerda nacional. O argumento chave encontrou-se a partir da queda do
323
LAGUARDA, Manuel. Socialismo o Reformismo desde lo alto. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo:
n. 44, junho de 1989, p. 60.
324
PARTIDO SOCALISTA. Nuestro Socialismo. Montevideo: mimeo, 1987, p. 1.
228
sistema soviético, ao qual atribuiu-se a interpretação abusiva e autoritária do marxismo-
leninismo elaborada pelo Partido Comunista Soviético e por Stalin. As principais críticas
estavam em volta de temas como: a concepção de partido como vanguarda
representante das classes operárias e depositário do saber; a negação do pluralismo; a
concentração de poder no Estado; os movimentos sociais como correias de
transmissão do partido; a hierarquização da URSS como modelo paradigmático de
socialismo; a ditadura do partido único; e a concepção monolítica e autoritária do
partido.
Na década de 1980, a crise mundial da esquerda foi caracterizada pela perda da
credibilidade do modelo marxista-leninista e pelo abandono do foquismo. Ante essa
crise, os tipos de respostas apresentadas foram três: primeiramente, a negação da crise
ante o temor da perda de dogmas que podiam desestabilizar a alguns setores da
esquerda; em segundo lugar, a posição de ruptura, que implicou uma saída pela direita
e a renúncia à identidade da esquerda tradicional; e a terceira, a atitude renovadora que
implicou o questionamento dos velhos paradigmas e a busca de um modelo de
socialismo, com base na democracia, no pluralismo, na autogestão e na crítica
socialista às experiências do “socialismo real”. A maioria da esquerda “eleitoral”
uruguaia – com maior ou menor nível de críticas ou ressalvas – aderiu a essa terceira
posição, ou seja, ao modelo renovador.
Para a posição renovadora, liderada nos anos 1980 pelo Partido Socialista, a
visão de ruptura considerava-se um obstáculo para a renovação. O fato dela não
aportar nada substancial ao debate era uma das críticas, mas por que era vista como
um freio ao processo de renovação do conjunto da esquerda, legitimando posturas
fundamentalistas que negavam a necessidade de reflexão intelectual em relação aos
problemas mundiais e do país, em particular. Superar a ruptura exigia impulsionar o
processo de renovação. A dicotomia proposta pelos pólos em disputa implicou
direcionar as discussões em volta de duas grandes alternativas: a democracia liberal,
sem luta de classes, ou a ditadura do partido único.
229
Os setores da social-democracia impulsionaram um modelo de socialismo a
partir da democracia liberal
325
, sem luta de classes. Nessa perspectiva, admitiu-se a
existência das classes, mas não a luta entre elas, o que implicou descartá-las como
efetivos atores sociais. Isso levou a uma concepção nominalista das classes, na forma
interpretada por Max Weber e Schumpeter (as classes como um ônibus que renova
permanentemente seus passageiros), para a qual as classes não possuíam uma
natureza ou vontade própria, nnum papel a desempenhar na história e, portanto, não
existiria luta entre elas. A democracia liberal foi o ponto de partida para uma discussão
na qual se excluiria a lutas de classes e se substituiria a mesma por um conceito de
“parceria”, em que não haverá mais antagonismos e sim uma permanente mesa de
negociações entre as classes, como forma de viabilizar uma saída democrática, ou
seja, a única alternativa existente frente à posição de ruptura.
O cerne das discussões girava em torno de como se poderia garantir a plena
vigência de uma democracia na qual os direitos e liberdades fossem ampliados numa
extensão inimaginável nos marcos do capitalismo, atingindo as esferas da vida
econômica e social e, ao mesmo tempo, defendendo as conquistas populares das
forças e interesses que iriam se opor a um projeto desta natureza. Cabe assinalar que o
conceito de democracia para o Partido Socialista implicava a capacidade de gerar e
debater opções através de regras do jogo institucionais aceitas pelas maiorias.
Nesse sentido, Nun (1988)
326
observou que numa democracia socialista o
público deveria estar dividido em duas instâncias: as instâncias de democracia
representativa, que expressariam o conjunto da sociedade, e as múltiplas instituições
de democracia direta, que se deveriam formar. E quanto ao privado, por um lado,
325
O ideal democrático liberal, no seu estado puro, implica, em primeiro lugar, a autonomia da sociedade
civil ao respeito da sociedade política: as atividades econômicas, culturais, religiosas, políticas, científicas
têm na sociedade civil seu espaço de desenvolvimento livre, sem interferência do Estado. O Estado
limita-se a fixar as “regras do jogo”, ou seja, normas gerais comuns a todos, garantindo os direitos dos
cidadãos e a propriedade privada. Garantia da autonomia da sociedade civil e a sujeição do governo a
uma ordem constitucional que estabelece os limites de seu poder de modo restritivo. Também o ideário
da democracia liberal implica a representatividade da sociedade política e dos poderes públicos; isto
significa que a legitimidade do governo e das autoridades se constitui na sociedade civil e se manifesta
através da expressão da vontade soberana do povo, atras do voto. A idéia central desse ideário é que
a sociedade política seja representativa da sociedade civil que lhe está subordinada e dependa desta na
sua evolução. RAZETO, Luis. Democratización Economica y Democratización Política. Montevideo:
CLAEH, 1986, p. 13.
326
NUN, José. La Izquierda y la Cultura de la Postmodernidad. In: La Izquierda Democrática en
América Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 1988, p. 137.
230
resgatar o caráter de co-proprietário dos patrimônios coletivos que todos têm no
conjunto da economia social e, por outro lado, a esfera íntima com todos os direitos e
liberdades da pessoa humana.
Em relação à experiência soviética, Laguarda afirma que a ausência de fórmulas
de participação democrática, “[...] numa sociedade que estatizou os meios de produção,
não permite afirmar a realização do socialismo”
327
. A concepção de poder, em nível da
cúpula da burocracia estatal, permitiu que esta utilizasse seu poder sobre o aparelho do
estado para canalizar, a serviço de seus interesses, o destino dos excedentes
econômicos, expropriando, desta maneira, os trabalhadores e afogando, ao mesmo
tempo, toda forma de expressão popular que ameaçasse converter-se num
questionamento de sua situação de privilégio.
As transformações sociais apontadas pelo Partido Socialista, no final da década
de 1980, direcionavam-se a um modelo diferenciado da democracia liberal e da
deformação burocrática e autoritária do socialismo “real”. Em resumo: defendiam um
socialismo plural em que tivessem espaço todas as iniciativas da vida cultural, social e
ideológica da população, assim como todos os partidos e correntes que agiam dentro
dos marcos institucionais. Proclamavam um socialismo autogestionário, entendendo a
auto-gestão como a capacidade crescente das pessoas de gerenciar seus próprios
assuntos em todos os âmbitos da sociedade. Na concepção dos socialistas uruguaios,
o respeito às regras formais da democracia era um elemento substancial. “Referimo-nos
ao conjunto de regras que estabelecem quem estão autorizados a tomar as decisões
coletivas e com que procedimentos”
328
. Segundo a manifestação de Laguarda, os
socialistas visavam as transformações possíveis para a sociedade uruguaia a partir de
um acordo democrático, no qual as regras só pudessem ser modificadas se as maiorias
assim o desejassem.
O problema é que numa sociedade capitalista, o destino dos excedentes
econômicos gerados pelo trabalho dos homens não é objeto de uma decisão
democrática. O mercado e suas leis pertencem, na visão da ideologia burguesa, à
“natureza” das coisas. Os cidadãos só podem decidir nos âmbitos da sociedade
327
LAGUARDA, Manuel. op, cit., 1989, p. 29.
328
LAGUARDA, Manuel. Socialismo o Reformismo desde lo alto. (segunda parte), In: Cuadernos de
Marcha. Montevideo: n. 45, julho de 1989, p. 27-28.
231
política, enquanto nas esferas da sociedade civil a exploração é princípio inamovível.
Por outro lado, numa democracia socialista todas as questões que competem ao
conjunto da vida social devem ser passíveis do debate igualitário.
Essa realidade seria válida para a sociedade em seu conjunto, assim como para
os problemas que atingiam o trabalhador na sua realidade imediata. Assim sendo, seria
necessária a aproximação das esferas da sociedade civil e da sociedade política; vale
dizer, socializar o Estado e politizar a sociedade
329
. Socializar o Estado supõe que o
poder não deveria estar unicamente concentrado na cúpula do mesmo, senão que
deveria surgir e exercer-se desde o seio mesmo da sociedade. Politizar a sociedade
supõe a necessidade de expandir a possibilidade de intervenção e controle das
maiorias nos mais diversos âmbitos da vida coletiva. Isso significaria criar e garantir
novas esferas de participação e decisão na vida econômica e social.
Segundo Laguarda, a estrutura organizativa do aparelho do Estado não era uma
questão neutra. A dominação política, com um sentido de hegemonia de classe, estaria
inscrita na estrutura material do Estado. Dessa forma, o “sentido de uma sociedade”, o
sentido da vida, “[...] não está dado nunca por um sistema de regras. É propriedade das
práticas sociais através das quais essas regras se interpretam, se negociam e se
aplicam”
330
. Finalmente, o sentido estaria dado por uma hegemonia de classe,
enquanto direção política e ético-cultural.
Desse modo, é inaceitável o conceito de público e privado do paradigma liberal
burguês – sem luta de classes – não pode ser aceito por um modelo socialista e
democrático. A impossibilidade devia-se a que a divisão liberal do público e do privado
é radicalmente atomista e uma esfera pública onde toda diferença social se acumula na
figura do cidadão. Dessa forma, a adesão dos socialistas às regras formais da
democracia representativa não “esqueceu” que a democracia liberal, com base nos
postulados anteriores, não pode ser o modelo para um socialismo democrático.
329
O debate predominante na época tinha por pressuposto que, em nossas sociedades, afirmar a
sociedade civil implicava afirmar a fusão e o papel do Estado. Para tal, seria necessário avançar na sua
democratização, descentralização e modernização em todos os âmbitos de seu desenvolvimento. Da
mesma forma, não se poderia pensar a substituição do mercado, senão introduzir no seu funcionamento
o bem público, o controle social e a regulação pública, gerando os mecanismos que desde a sociedade,
mas também do próprio Estado, estabelecem condições de equidade “básicas” entre produtores e
consumidores, assim como entre empresários e trabalhadores.
330
Idem, p. 28.
232
As bases teóricas para essas discussões podem ser encontradas num artigo
publicado por Norberto Bobbio (1990), onde ressaltou a catástrofe do comunismo
histórico, ou seja, do comunismo como movimento mundial, nascido da Revolução
Soviética. Na opinião de Bobbio, o processo de decomposição acelerava-se de forma
continuada, o que indicava o fim dos regimes comunistas num curto prazo. Mas o que
Bobbio realmente pontuou nesse artigo foi o fracasso não só dos regimes comunistas,
senão também o da revolução inspirada na ideologia comunista, “a ideologia que
propôs a transformação radical de uma sociedade considerada injusta e opressiva
numa sociedade muito diferente, livre e justa”
331
.
Um dos efeitos marcantes do final da Guerra Fria sobre a esquerda latino-
americana foi a sensação generalizada de derrota, derivada da conexão real ou
imaginária da esquerda com o modelo de socialismo “real” existente. Para a esquerda,
a queda do socialismo na União Soviética e na Europa Oriental representou o fim de
uma utopia motivadora e real, com quase um século de antiguidade. De fato, a idéia
mesma de uma alternativa totalizante do status quo foi questionada profundamente.
Tornou-se quase impossível o que a esquerda pensara fora dos parâmetros existentes
da realidade latino-americana. A idéia de revolução, crucial para o pensamento radical
na América Latina durante décadas, mudou de significado.
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe foram entrevistados por Cuadernos de Marcha,
em julho de 1990. A publicação da entrevista leva o título de El Fracaso de las Utopias
Políticas, onde os reconhecidos intelectuais teorizaram sobre as perspectivas da
esquerda e da democracia. O pensamento de ambos contribuiu para o debate e a
polêmica existente na época no Uruguai sobre socialismo e democracia. Várias das
análises realizadas pelos autores serão encontradas posteriormente
(fundamentalmente a partir de 1992) em não poucos discursos de ativistas políticos
uruguaios; e muitos de seus conceitos incorporaram-se ao discurso da esquerda em
transição.
Mouffe interpretou o contexto da queda do socialismo “real”, a partir da União
Soviética, como um triunfo da democracia pluralista sobre o socialismo “real”. Assinalou
331
BOBBIO, Norberto. La Utopia Subvertida. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 51, janeiro de
1990, p. 9.
233
a necessidade de uma reflexão a respeito das características da democracia pluralista.
“Parece-me necessário evitar que o reconhecimento da vitória da democracia pluralista
nos faça cair numa ‘glorificação’ da democracia capitalista”
332
. Na afirmação do autor, a
democracia pluralista não deveria ser entendida “necessariamente” como democracia
capitalista. Mouffe fez referência ao fato de que a equação de ambas as concepções de
democracia foi aceita na Europa do Leste e isso levou a pensar que, junto com a
abertura democrática, se aceitasse também o capitalismo.
A lição que se deve tirar da Europa do Leste é a importância da democracia
pluralista, mas, ao mesmo tempo, isto não impede que observemos o enorme
potencial de radicalização que tem a democracia realmente existente, nem que
abandonemos a idéia de uma alternativa total à sociedade capitalista
333
.
Mouffe preconizou a esquerda identificada com os aspectos simbólicos da
democracia pluralista, exemplificando que a afirmação de que todos os homens são
livres e iguais, tnum potencial para o desenvolvimento das tendências democráticas
para além do ideal que se havia conseguido. Estendê-la ao campo da economia, ao
campo das relações de gênero, entre as etnias, e assim por diante. O autor enfatizou
que os ideais da esquerda e do socialismo podem ser realizados dentro de um marco
de democracia pluralista. Dessa forma, Mouffe ofereceu subsídios para o posterior
discurso que vigorou no Partido Socialista a partir de 1992.
Laclau, por sua vez, acrescentou às manifestações de Mouffe que as
transformações ocorridas no ideário socialista, principalmente a partir da década de
1970, se devem a que suas formulações clássicas estavam ligadas à noção de agente
privilegiado de mudanças
334
. Para Laclau, toda a teoria marxista é uma teoria de
simplificação crescente da estrutura de classes no capitalismo. “[...] de modo que,
finalmente, a transformação socialista seria uma empresa de um agente totalmente
332
MOUFFE, Chantal; LACLAU, Ernesto. El Fracaso de las Utopias Políticas. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 57, julho de 1990, p. 10.
333
Idem.
334
Observa-se um certo descontentamento pelo que foram não só a universalidade das propostas da
esquerda no período sesentista a nível mundial e especificamente, na América Latina, mas também, pelo
altísimo grau de hegemonia que tiveram no conjunto da sociedade. Isso, obscurece propostas menos
globais e que em boa medida se contradizem com aquela.
234
homogêneo e unificado: o proletariado”
335
. Entretanto, argumentou Laclau, as
sociedades contemporâneas estariam demonstrando, pelo contrário, uma crescente
fragmentação e pluralidade de agentes sociais.
Na opinião do autor, as distintas demandas do ideário socialista, que foram
apresentadas originalmente como constituindo um todo homogêneo, agora se
apresentam como um agregado pragmático de distintas demandas procedentes de
diversos pontos da estrutura social. “De modo que qualquer ‘reconversão’ do socialismo
tem de ir na direção de uma democracia radical e plural, no sentido de que as
reivindicações e antagonismos dos quais o socialismo surge sejam o resultado de
unificações e recomposições hegemônicas, e não simplesmente o resultado do destino
de um agente social privilegiado”
336
.
Mouffe conceituou as diferenças – para ela – entre democracia pluralista e
capitalismo e entre democracia e perspectiva liberal. Mouffe enfatizou a importância de
estabelecer que entre liberalismo econômico e democracia pluralista não há uma
relação necessária. Estabeleceu a diferença entre liberalismo político – quer dizer, a
defesa dos direitos do homem, do estado de direito e a idéia de pluralismo – e
liberalismo econômico, ou seja, com o capitalismo. “Esse liberalismo político tampouco
está ligado necessariamente ao individualismo, nem ao universalismo, nem ao
racionalismo”
337
. A autora considerou importante reformular o projeto de liberalismo
político, o que ela denominou de democracia pluralista, de uma forma não individualista,
não universalista, ao contrário do racionalismo e também sem laços com o liberalismo
econômico.
Nas palavras de Mouffe: “Parece-me possível para a esquerda defender o
liberalismo político e, ao mesmo tempo, lutar contra o capitalismo e o liberalismo
econômico”
338
. Isso seria possível, segundo a autora, a partir de um novo conceito de
cidadania. Essa concepção de cidadania teria por base dois elementos essenciais: a
necessidade de reativar a concepção de cidadania como participação, ao contrário da
335
MOUFFE, Chantal; LACLAU, Ernesto. op. cit., p. 10.
336
Idem.
337
Idem, p. 12.
338
Idem.
235
concepção liberal
339
de cidadania como estatuto legal, e a necessidade de estabelecer
o contato com a concepção de republicanismo cívico, no qual se tnuma concepção de
cidadania como um ator. Para Mouffe, ser cidadão é atuar
340
.
Castañeda (1994) realizou uma análise sob o contexto da esquerda latino-
americana, onde observou que a reversibilidade ou a derrota de experiências históricas
prévias e decisivas para a esquerda, poderia ser atribuída a uma transição militar
(Chile, 1973; Brasil, 1964), à duplicidade norte-americana (Guatemala, 1954; Granada,
1983) ou aos erros e ingenuidades da esquerda
341
. Mas o fato que marcou
profundamente a esquerda na América Latina foi a grande perda da Frente Sandinista
nas eleições de 1990, representando um grande retrocesso político, se bem que tenha
sido sob coação, fraude e chantagem. O resultado eleitoral demonstrou que o processo
revolucionário já não era exclusivamente reversível pela força, senão que podia se
reverter por meios pacíficos, com o consentimento e apoio da população
342
.
Tanto na argumentação de Bobbio como na de Castañeda (salvando as
diferenças) apontou-se para os impactos que a destruição do modelo da União
Soviética e da Europa do Leste representou para a esquerda, particularmente na
América Latina. A ruptura do paradigma soviético foi rapidamente estendida ao modelo
cubano. Cuba incorporou-se a esse paradigma, ainda que originalmente, sua revolução
tivesse consumado uma ruptura com o tipo de socialismo soviético. Todo partido,
movimento, governo ou intelectual progressista latino-americano, acrescentou
339
Aqui, vale a pena observar a opinião de Razeto (1986), quando afirmava que o projeto liberal começou
a colocar de manifesto, de forma precoce, suas contradições, seu utopismo, a não correspondência de
seus pressupostos teóricos com os dados da realidade social. O fato de ser um modelo político pensado
para organizar homens livres que, na realidade capitalista, constituem só uma minoria social. RAZETO,
Luis. Op. cit., p. 13.
340
O que aparentemente Mouffe esqueceu é de que na atual conjuntura – uruguaia e da América Latina –
a exclusão e marginalização tem penetrado tão profundamente na estrutura social, que tem colocado
grandes contingentes humanos em zonas cada vez mais afastadas de qualquer estatuto de cidadania
política, social ou cultural.
341
CASTAÑEDA, Jorge. La Utopia Desarmada: intrigas, dilemas y promesas de la izquierda en
América Latina. Bogotá: TM Editores, 1994, p. 286.
342
De forma particular, no Uruguai, formou-se na militância de esquerda um clima de desânimo e
desmobilização que tinha como base os fatos acontecidos no campo “socialista”, a derrota da lei de
impunidade a favor dos militares e a derrota sandinista, o que aumentou uma acelerada ruptura do tecido
social, operada pelas medidas neoliberais e com a política de desmobilização predominante na Frente
Ampla.
236
Castañeda, retirou ou ratificou aqueles aspectos da União Soviética e, mais tarde, de
Cuba que exigiam mudanças
343
.
Portanto, a destruição do modelo básico significou o desaparecimento do marco
de referência da esquerda para uma concepção de uma alternativa na América Latina.
Até as grandes conquistas da Revolução Cubana em educação, saúde e erradicação
da pobreza absoluta chegaram a ser consideradas inviáveis: onerosas demais,
estatistas demais, dependentes de subsídios do exterior para ser sustentáveis ou
aplicáveis em outros países. O modelo cubano, elogiado, criticado, mas também
admirado pela esquerda sesentista, passou a ser abandonado por quase toda a
esquerda eleitoral latino-americana a partir da década de 1990. O paradigma soviético
levou junto a única experiência na América Latina para a condenação, o opróbrio e o
abandono do que até há pouco tempo representou e caracterizou as mais significativas
bandeiras da esquerda.
Por outro lado, a esquerda moderada, social-democrata, havia abdicado de
muitas de suas convicções em prol de políticas econômicas conservadoras que, a partir
da década de 1980, foram colocadas em prática em vários países latino-americanos. A
crise da dívida externa e suas inesgotáveis negociações haviam limitado
dramaticamente o estado de bem-estar. As políticas de livre mercado e de livre
comércio, de incentivo ao investimento estrangeiro e a supremacia do setor privado
foram consideradas uma receita infalível para o êxito econômico na América Latina.
Para seus adeptos, isso se verificava pelo fato de que em países como Estados Unidos
e Inglaterra essas políticas haviam tido êxito e também eram a causa dos avanços
econômicos no sudeste asiático.
343
CASTAÑEDA, Jorge. op. cit., p. 290.
237
Como salientou Castañeda, na América Latina a esquerda se identificava com as
políticas econômicas falidas e descartadas do mundo socialista, enquanto que a direita
apoiava as mudanças que sofriam os antigos países socialistas. A esquerda
encontrava-se numa situação insustentável. Ou aferrava-se a suas convicções e
defendia o indefensível: uma economia dirigida pelo Estado, fechada e subsidiada, num
mundo onde uma idéia deste tipo parecia obsoleta, ou apoiava a trajetória contrária,
manifestamente moderna, competitiva e de livre mercado. Nesse caso, terminaria por
imitar a direita ou seria absorvida por ela, perdendo sua razão de ser
344
.
A partir do final da Guerra Fria, a esquerda experimentou outra mudança cheia
de conseqüências imediatas e capitais: a eliminação, nos assuntos internacionais, de
um contra-peso que havia resultado útil, no passado, a muitos países, principalmente
àqueles governados por regimes de centro-esquerda. Num mundo com uma só
potência era muito difícil ser não alinhado. Para a esquerda acabava a necessidade de
demonstrar que era – ou não – pró-soviética. Também não necessitava provar que, se
ascendesse ao poder, não transformaria o país num satélite soviético. Dessa forma,
tampouco necessitava se declarar inimigo dos Estados Unidos. A esquerda latino-
americana passou a re-significar o antiimperialismo norte-americano e isto se refletiu
nos processos de transição durante toda a década de 1990.
Posteriormente, em 1992, Ricardo Urioste escreveu uma crítica ao pensamento
antiimperialista uruguaio, em que postulava que o uso “abusivo” e “indiscriminado”
deste recurso por parte da esquerda e do movimento sindical deixou, como
conseqüência, um hábito sincretista um pouco “bestial” para refletir ou julgar
acontecimentos domésticos, “um olhar maniqueísta como resultado da tradução do
sentimento antiimperialista”, para nos livrar dos entraves que nos impediam o
crescimento
345
. Deixando de lado a maior parte da história uruguaia, Urioste criticou
severamente a esquerda e minimizou a temática imperialista, deslocando-a para o lado
do mercado, afirmando que “nossos inimigos não são os yanquis, como prescrevia o
antiimperialismo nacional, senão que os verdadeiros inimigos seriam nossos estimados
primos ricos europeus, contra quem a derrota comercial que foi sofrida nos provoca
344
Idem, p. 292.
345
URIOSTE, Ricardo. ¿Qué Hacer com el Antimperialismo? In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n.
68, fevereiro de 1992, p. 23.
238
mais danos em pouco tempo do que a soma histórica de remessas do conjunto das
empresas transnacionais americanas instaladas no país”
346
.
E concluiu seu pensamento com a seguinte reflexão:
Nestes anos de mudanças abruptas, talvez, também, deveríamos pensar no
que fazer com nosso velho anti-yanquismo. Se continuamos usando-o, para nos
mantermos no cobertor ideológico que nos preservou da dúvida e da incerteza
no passado, corremos o risco de ficar fixados a esse passado. A pouca
memória condena repetir erros, mas seu excesso nos acorrenta a fantasmas
347
.
De 12 a 16 de junho de 1991 realizou-se, no México, o Segundo Encontro dos
Movimentos e Partidos Políticos do Fórum de São Paulo. Contou com a participação de
140 delegados de 68 organizações políticas do Continente e numerosos observadores
internacionais. Um dos representantes da esquerda uruguaia no encontro foi o
deputado Hugo Cores, que concedeu posteriormente uma entrevista para o semanário
Mate Amargo
348
.
Na oportunidade, Cores manifestou a importância e a necessidade das
esquerdas latino-americanas estarem debatendo suas realidades, anseios e
expectativas. Os eixos centrais dos debates focaram-se na democracia, nos modelos
socialistas, na resistência ao modelo neoliberal e a problemática da transição ao
socialismo. Segundo Cores, existia naquele momento uma esquerda que estava
relacionada com movimentos de massas importantes, não somente identificada no
plano eleitoral. Essa “esquerda”, que independentemente de haver chegado ao governo
nacional ou municipal, estava vinculada a movimentos camponeses, aos ecologistas, a
organizações comunitárias, ao movimento sindical, entre outras. “Em resumo, uma
esquerda com forte inserção com tudo o que vive e se movimenta na América
Latina”
349
. Cores advertia que essa não era uma esquerda de intelectuais, senão que
era uma esquerda de militantes inseridos na realidade, que debatiam sobre a mesma.
O Fórum teve a característica de congregar movimentos e partidos que não se
definiam como socialistas, necessariamente. Cores manifestou que o Fórum não
346
Idem, p. 24.
347
Idem.
348
CORES, Hugo. Existe una Izquierda Inserida en la Realidad. In: Semanário Mate Amargo.
Montevideo: Entrevista realizada por ZACCHINO, Sérgio Márquez, ano 5, n. 123, junho de 1991, p. 7.
349
Idem.
239
pretendeu constituir-se numa “Continental” de esquerda. Nem numa continental, nem
numa “Internacional”, porque não propôs gerar acordos referidos ao fazer político e,
sim, se propôs uma reflexão em conjunto. Por outra parte, houve, sim, um
reconhecimento de uma identidade de esquerda. Foi contundente a rejeição unânime
ao processo de devastação dos povos latino-americanos provocado pelo modelo
neoliberal.
No mesmo período (1991), Edgardo Carvalho publicou um artigo em Cuadernos
de Marcha
350
, no qual realizou uma análise do contexto político uruguaio e visualizava a
possibilidade da esquerda ganhar as eleições nacionais em 1994. Na oportunidade, o
autor afirmava que a esquerda agrupada no Nuevo Espacio viveu um processo de
maturação e de modernização de conceitos, o que lhe possibilitaria assumir, “sem
traumas”, as responsabilidades e desafios de governo. O autor fez referência ao Novo
Espaço como representante majoritário dentro da Frente Ampla. Observe-se que, em
1991, as definições que postulavam o Novo Espaço como liderança na Frente Ampla
fundamentaram-se nas discussões que se iniciaram no final da década de 1980.
Carvalho afirmava que, como condição essencial para um triunfo eleitoral, a
esquerda deveria demonstrar, para a opinião pública, uma proposta de governo
comprometida “irreversivelmente” com o sistema democrático representativo, ou seja,
com a institucionalidade uruguaia. Apresentava a esquerda como uma força política que
propunha mudanças e reformas na realidade econômica e social do país, mas uma
esquerda que não tinha a intenção de substituir o sistema. O autor acrescentou que não
visualizava a possibilidade de uma aceitação majoritária para propostas que, mesmo
que de formas não explícitas, supusessem a construção do socialismo.
Segundo Carvalho, a sociedade uruguaia estava fortemente necessitada de
mudanças importantes e significativas, mas, basicamente, não estava em desacordo
com o sistema econômico e social para o qual, segundo o autor, não se podia oferecer
alternativas concretas. Achava de fundamental importância que a população
percebesse a esquerda como uma força capaz de realizar reformas, garantindo, ao
mesmo tempo, a institucionalidade, a paz social e o convívio pacífico dos uruguaios.
350
CARVALHO, Edgardo. Izquierda y Gobierno. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo, n. 62, agosto de
1991, p. 50-52.
240
Dessa forma, excluía do cenário frenteamplista os debates e enfrentamentos que
vinham acontecendo, observando que os mesmos poderiam ser eleitoralmente
prejudiciais. Ainda recomendava que os discursos integradores deveriam ser os que
predominassem na linguagem frentista.
Carvalho fez questão de ressaltar que as possibilidades da esquerda frentista
ganhar as eleições nacionais em 1994 eram extremamente alentadoras. Além disso,
salientou que a esquerda uruguaia durante décadas apostrofou o sistema vigente e o
confrontou ao “socialismo real”, e, no momento (1991), a esquerda assistia à catástrofe
do modelo que era considerado como alternativo. Dessa forma, reafirmava que o
objetivo da esquerda não seria a transformação do sistema, senão uma intervenção no
sentido de gerenciá-lo melhor, induzindo maiores conteúdos “possíveis” de equidade e
solidariedade, numa perspectiva de impulsionar o país pelo caminho do crescimento.
Na mesma edição do Semanário Marcha, Laguarda manifestava que elaborar um
projeto alternativo de país, criar uma grande aliança para realizar mudanças, obter o
compromisso das maiorias em relação a estas propostas; enfim, forjar um bloco popular
alternativo, era a grande tarefa a ser realizada pela esquerda nacional e ela não poderia
ser postergada para 1994. Para poder atingir tais expectativas, a esquerda deveria
“superar todo resto de messianismo e maniqueísmo”
351
. Nessa mesma direção
concentravam-se as propostas frentistas: criar uma metodologia de aproximação entre
as forças progressistas, com base no reconhecimento do outro. No XL Congresso do
Partido Socialista, realizado nesse mesmo ano, definiu-se que “Devemos ser capazes
de criar as bases de um projeto que incorpore a maioria do país. Isso requer
inteligência e atitude na formação de um espaço progressista alternativo”
352
.
Esse espaço progressista deveria ser fundado com base num grande diálogo
para as mudanças com todos os setores que padeciam as políticas neoliberais. Alguns
dos temas propostos para esse diálogo eram:
1) as políticas sociais (saúde, educação, segurança social), o que implicava também
uma reforma tributária;
2) soluções em matéria de alimentação, trabalho e moradia;
351
LAGUARDA, Manuel. La Izquierda va a Gobernar este País. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo:
n. 62, agosto de 1991, p. 57-58.
352
Idem, p. 58.
241
3) a reforma do Estado;
4) a reforma da educação;
5) o relançamento do país produtivo, a reconversão industrial e o Mercosul;
6) a questão militar e uma nova lei orgânica das Forças Armadas;
7) a reforma constitucional;
8) o sistema financeiro e o problema da dívida externa. “A esquerda deve superar o
enfoque simplificador de que os problemas se solucionam mediante o acesso ao
governo e o afastamento dos grupos que representam o grande capital e o
imperialismo. Deve-se produzir e expandir a economia, demonstrando capacidade de
condução técnica”
353
.
Observa-se uma readequação no discurso do Partido Socialista a partir de 1991.
As manifestações de Laguarda apontavam para a necessidade da coalizão
frenteamplista ampliar suas bases eleitorais. Essa estratégia eleitoral teve como base
as alianças com setores políticos dos partidos tradicionais que se afastavam – no
discurso – do modelo neoliberal. Foi o exemplo concreto do Nuevo Espacio. Nesse
contexto, o Partido Socialista assumiu a liderança a respeito da “renovação da
esquerda
354
”, atribuindo a este processo uma importância singular para conseguir as
transformações que o país exigia.
Afirmou Laguarda que a renovação, para o Partido Socialista, significava superar
“construtivamente” os modelos da cultura da esquerda tradicional, ou seja, o
centralismo como princípio de organização do Estado e da sociedade, e a concentração
de poder no Estado, convertendo-o no referencial único para todas as esferas. A
renovação proposta pelo Partido Socialista visava, como elemento fundamental, a uma
coalizão de governo, que a mesma se expressasse numa direção política “unitária”,
com mecanismos de arbitragem enérgicos. Na mesma direção, propôs a simplificação
do mapa político interno da Frente Ampla, querendo “superar” a fragmentação de tantos
grupos que entravavam o processo de renovação.
353
Idem, p. 57.
354
Aparentemente, toda proposta de um socialismo “renovado” apostava para discutir o aprofundamento
da democracia política. Não para negar a democracia representativa “formal” do estado de direito, senão
que para ampliá-la. O tema da relação entre liberalismo político e democracia social, entendida como
recuperação, e não como negação, resultou central para um discurso que superasse a cultura política
tradicional da esquerda.
242
É nessa direção que vemos de fundamental importância, para a coesão da
Frente Ampla que será governo (o autor fala de 1995), a postura do Partido
Socialista, comprometido com a renovação da esquerda, levantando as
bandeiras de um projeto socialista nacional, democrático, pluralista e
autogestionário, recolhendo as mensagens da sociedade sem manipulações.
355
A definição do conceito de “renovação socialista” não é tarefa fácil. Trata-se de
um conceito vago e impreciso que denota mais um desejo do que uma realidade, uma
espécie de projeto em curso. Uma idéia que procura dar conta de fenômenos muito
diferentes e que em não poucas oportunidades, é utilizada num sentido ideológico, na
concepção mais estritamente marxiana. Apesar disso, na década de 1990, essa
imprecisão significou um processo em desenvolvimento.
Num estudo realizado por Osvaldo Puccio Huidobro (1994), intitulado La
Vigencia del Socialismo: elementos para una respuesta desde la experiencia Chilena, o
autor analisou o processo de renovação socialista no Chile e, a partir deste, os desafios
que o mesmo enfrentava, não só para aquele país, como também para vários países
latino-americanos. O primeiro desafio provinha do confronto crítico com o próprio
passado, tanto nas visões e concepções ideológicas, como na práxis política. O
segundo consiste em ter a capacidade de refletir e interpretar, de forma adequada, as
condições sociais do momento. E o terceiro é o de propor um corpo de idéias,
propostas e visões prospectivas que renovem o socialismo como um agente ativo e
efetivo de melhoria e de mudanças das circunstâncias das pessoas e da sociedade
356
.
O primeiro desafio, dar conta do próprio passado, segundo o autor, estava
substantivamente resolvido e se converteu cada vez mais num problema de
historiadores, sem maior incidência nas visões práticas da política. Assim, o elemento
central da superação das próprias percepções foi, entre outros de menor importância, a
ampliação, desde o final dos anos 1970 e a partir de um novo continente, da
emergência das distintas experiências autoritárias do universo ideológico e cultural da
esquerda.
355
Idem, p. 58.
356
HUIDOBRO, Osvaldo Puccio. La Vigencia del Socialismo: elementos para una respuesta desde la
experiencia Chilena. Montevideo: FESUR, 1994, p. 27.
243
A participação no debate em torno da universalidade e validade do marxismo
como chave interpretativa da realidade, o conhecimento e diálogo com outros
pensamentos progressistas, e inclusive socialistas, que viam no marxismo um
antecedente distante ou bem não reconheciam nenhum tributo a ele, assim como o
processo de crítica dos socialismos reais desde diversas perspectivas, principalmente a
realizada na Europa, que encaminhou contribuição consistente para afirmar a
centralidade dos valores democráticos
357
.
A validade das instituições da democracia tradicional e representativa, às quais
se reconheceu progressivamente uma função mais essencial que “formal”, levaram à
constituição de maiorias, ao fomento do pluralismo e à pluralidade como fatores de
construção democrática, fatores que passaram a se constituir em momentos centrais
da própria concepção e discurso político começando em conseqüência, a determinar a
própria ação. Neste sentido Huidobro concluiu enfaticamente: “Basta destacar o papel
protagonizado nesta nova compreensão pelas próprias experiências autoritárias em
cada país do continente”
358
.
Outro grande desafio da renovação socialista estava ligado à validade de seu
próprio projeto, à capacidade de refletir a realidade na qual pretendia desenvolver e
realizar suas propostas, as que deveriam ser respostas aos problemas colocados por
essa mesma realidade que se desejava refletir. Ainda segundo Huidobro, surgiu ali um
primeiro problema para um mundo cultural que havia aprendido a ler a realidade com
uma lente que outorgava a essa realidade uma lógica pré-determinada.
O problema, identificado por Huidobro, não se colocava apenas pelo fato de que
já não era mais possível usar a lente e que as soluções que adquiriram a partir dos
fatos progressivamente caráter universal e atemporal, desmontaram-se, “ao menos
como carentes de conteúdo de verdade, senão pela profunda mudança que está
357
Vale a pena destacar que a nova sociedade que se institucionalizou na Europa Ocidental, na esteira
da Revolução Industrial, foi a personificação do universalismo. Pela primeira vez na história, a classe
economicamente dominante posava como representante do futuro de toda a sociedade: essa foi a
revolução que a burguesia introduziu na esfera ideológica. As normas legais burguesas instituíram o
status universal de indivíduos que eram iguais em suas relações com as coisas – independentemente de
serem elas meios de produção ou de consumo – e iguais na relação que mantinham entre si – também
independentemente de constarem contratualmente como vendedores ou compradores de força de
trabalho. Ao mesmo tempo, a ideologia burguesa postulou uma harmonia básica de interesses dos
indivíduos-cidadãos.
358
HUIDOBRO, Osvaldo Puccio. op. cit., p. 28.
244
sofrendo de forma dinâmica e permanente a realidade que se quer refletir”
359
.
Mudanças essas, para o autor, que transformaram em obsoletas as chaves
interpretativas que se possuía culturalmente.
Por outra parte, Esteban Valenti, dirigente do Partido Comunista Uruguaio e
importante protagonista na direção da Frente Ampla, manifestou, em entrevista
concedida a Cuadernos de Marcha que na sua visão, em 1991, no Uruguai, existiam
três esquerdas. Segundo Valenti, uma esquerda que não conseguia assimilar as
mudanças que se produziram no mundo, que estava aferrada a certas visões de mundo
que estariam “superadas”. Por outro lado, uma segunda esquerda que no processo de
revisão crítica optou pela fratura, ou seja, pela saída da Frente Ampla (referindo-se ao
PGP e ao PDC, que saíram da Frente Ampla em 1989 e, posteriormente, formaram o
Novo Espaço). E uma terceira esquerda passou por uma revisão crítica de sua atuação
e foi a que desenvolveu o processo de renovação da esquerda dentro da Frente
Ampla
360
.
Essas três esquerdas, segundo Valenti, seriam: a primeira, os setores da
esquerda tradicional que mantinham uma crítica de claro fundo marxista e que
postulavam programas e estratégias combativas, na sua maioria fora da Frente Ampla;
a segunda, uma esquerda de centro ligada a alguns setores progressistas dos partidos
tradicionais e, fundamentalmente, à democracia cristã; e a terceira esquerda, a
chamada (no sesentismo) de esquerda “reformista”, que na sua maioria era
representada pelo Partido Comunista e pelo Partido Socialista. Deve observar-se que o
Uruguai apresentou uma particularidade única nesse sentido: nenhum partido político
na história do país, até 1994, se autodenominou de social-democrata, mesmo que sua
estrutura ideológica e programática assim o fosse.
Temas como a questão social e os novos desafios da esquerda foram re-
significados pelas novas tendências “socialistas” a partir da década de 1990. Bobbio
(1992) referiu que o verdadeiro problema social era o que se originou nas relações
entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mais do que nas relações internas em
cada país. Dessa forma, segundo Bobbio, mudou substancialmente o sujeito histórico,
359
Idem, p. 29-30.
360
VALENTI, Esteban. Hay como Mínimo Tres Izquierdas. In: Cuadernos de Marcha. (entrevista).
Montevideo: n. 62, agosto de 1991, p. 57-58.
245
“que deveria ser re-conduzido”, mais que a classe operária, por um conjunto
heterogêneo de indivíduos e grupos, como o dos “condenados da terra”
361
. Assim
sendo, a tarefa dos socialistas tornava-se mais complexa, afirmou o autor.
Os novos desafios da esquerda centravam-se, para Bobbio, no paradigma da
“esquerda dos direitos”. Esse paradigma foi colocado como o fio condutor que poderia
dar respostas a um conjunto de problemas – velhos e novos
362
–, através de uma
síntese unitária com base nos direitos “humanos”. Bobbio afirmou que os direitos
vigentes, como o direito à liberdade, ao trabalho, à segurança social, entre outros, não
bastavam para uma nova conjuntura e se deve incorporar outros, como o direito à
humanidade, atual e das gerações futuras, a viver num ambiente não contaminado.
Entre esses direitos, o autor assinalou o direito à procriação auto-regulada, o
direito à privacidade perante a possibilidade que tem o Estado de saber tudo o que
fazemos, o direito à conservação do patrimônio genético, ameaçado pelo avanço
técnico da biologia
363
. Esses temas deveriam converter-se em prioridades da esquerda,
como novas fronteiras para os partidos socialistas. Pode-se observar que as questões
apontadas por Bobbio são substitutivas, ou seja, substituem as questões clássicas da
esquerda; não foram apresentadas como somatórias ou em forma de atualização das
velhas problemáticas. Será que, para Bobbio, as velhas problemáticas já tenham sido
superadas?
Sem dúvida, Norberto Bobbio tem sido, durante um longo tempo, um dos
defensores mais firmes da necessidade de reconhecer o valor das instituições liberais e
de protegê-las. Bobbio expôs a tese de que os objetivos socialistas poderiam ser
atingidos no marco da democracia liberal, a qual, por outra parte, seria o “único” marco
aceitável para que se realizem. Na sua opinião, longe de apresentar uma contradição
terminológica, o liberalismo e a democracia estariam necessariamente ligados e,
portanto, o socialismo democrático não pode ser senão liberal.
361
BOBBIO, Norberto. Nuevas Fronteras de la Izquierda. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 75,
setembro de 1992, p. 10.
362
De Acordo com o pensamento de Bobbio, tratou-se de estabelecer as novas fronteiras da esquerda,
ou seja, “a esquerda dos direitos”. Assim, realizou-se uma revisão das idéias força do socialismo:
liberdade, democracia pluralista, autogoverno e descentralização, controle e domínio das tecnologias,
solidariedade, supremacia da lei e resolução dos conflitos através da negociação, e não mais do
confronto.
363
Idem, p. 11.
246
Textualmente, Bobbio afirmou: “O Estado liberal não só é a premissa histórica do
Estado democrático, senão também sua premissa jurídica. O Estado liberal e o
democrático são duplamente interdependentes: enquanto o liberalismo proporciona as
liberdades necessárias para o exercício adequado do poder democrático, a democracia
garante a existência e a persistência das liberdades fundamentais”
364
. Bobbio pertence
a uma tradição do pensamento liberal italiano e, dentro desta, pode-se destacar a
influência de Carlo Rosselli, que escreveu um livro intitulado Socialismo Liberal
365
.
Neste livro Rosselli argumentou que o socialismo deveria atingir seus objetivos
aplicando meios próprios do liberalismo, dentro do marco institucional da democracia
liberal.
O objetivo desse pensamento socialista liberal era combinar o socialismo com os
princípios da democracia liberal: o constitucionalismo, o parlamentarismo e o sistema
de concorrência entre partidos. Bobbio adotou o mesmo enfoque que Rosselli ao
argumentar que um projeto desse tipo demandaria um novo contrato social que
articulasse a justiça social com os direitos civis. Desde seu ponto de vista, a esquerda
democrática deveria aproveitar o debate do início da década de 1990 para contribuir de
forma realmente importante na construção de um novo contrato social.
Bobbio afirmou que a chave desse debate estava em ver se “partindo da mesma
e incontestável concepção individualista da sociedade, e utilizando as mesmas
estruturas institucionais, seremos capazes de fazer uma contra-proposta à teoria do
contrato social que os neoliberais querem colocar em funcionamento”
366
. Essa proposta
deveria incluir, entre suas condições, o princípio de justiça distributiva e que, por isso,
fosse compatível com a teoria e a prática da tradição socialista. A partir destas
afirmações poderíamos elaborar a seguinte indagação: pode um contrato social
articular as exigências de justiça social com os direitos civis e políticos individuais e
resolver os problemas que afetam as complexas sociedades atuais?
Com o objetivo de responder a essa pergunta e de avaliar a viabilidade das
propostas de Bobbio, necessita-se examinar seu diagnóstico da situação, da
democracia e das dificuldades que a assolam nas sociedades atuais. Bobbio insistiu em
364
BOBBIO, Norberto. El Futuro de la Democracia. Barcelona: Plaza y Janés, 1985, p. 25.
365
ROSSELLI, Carlo. Socialismo Liberal. Madrid: Pablo Iglesias, 1951.
366
BOBBIO, Norberto. op. cit., 1985, p. 49.
247
que se deveria adotar o que ele chama de uma “definição mínima de democracia”,
concebida como uma forma de governo que se caracteriza por um conjunto de normas
(primárias) que estabelecem quem tem a autoridade de tomar as decisões coletivas e
que procedimentos devem aplicar-se (ver capítulo I)
367
. Conjuntamente com essas
normas, existem outras referidas às condições necessárias para que o exercício da
liberdade de eleição seja “real”. Entre essas, o princípio pluralista: os votantes devem
ter capacidade para escolher entre diferentes alternativas e, através das eleições
periódicas, deve-se garantir o direito de que as minorias possam converter-se
“eventualmente” em maiorias.
A esse respeito, Mouffe (1992) afirmou que Bobbio escolheu uma definição
jurídica institucional ou relativa ao procedimento da democracia, no lugar de uma
definição substancial e ética centrada no ideal de igualdade, apresentada como o
objetivo que deveria animar um governo democrático
368
. Desde a perspectiva de
Bobbio, a questão fundamental numa democracia não é “quem governa”, senão “como
se governa”, e o melhor modo de entender a democracia seria contrapô-la à autocracia,
que é uma forma de governo imposta desde cima. Bobbio defende a democracia
representativa como a “única” adequada para nossas atuais sociedades.
Compatibilizar a democracia com o liberalismo é uma das preocupações centrais
de Bobbio. Assim, ele declarou que a democracia pode ser entendida como o
desenvolvimento natural do liberalismo, sempre que não se pense no aspecto ideal e
igualitário da democracia, senão no seu caráter de fórmula política que equivale à
soberania popular. Assim, o vínculo crucial situa-se, na opinião de Bobbio, na
articulação entre os dois conjuntos de normas que formam parte do jogo democrático,
ou seja, o liberalismo e as regras do jogo democrático com base nos direitos. Para
Bobbio, só um Estado liberal pode garantir os direitos necessários para um sistema
democrático.
367
Essa regras estariam desenhadas com o objetivo de facilitar e garantir a “máxima” participação
“possível” da maioria dos cidadãos nas decisões que afetam toda a sociedade. A função de algumas
dessas normas é determinar o que se entende por vontade geral. São elas as que estabelecem quem
tem direito a votar, as que garantem que o voto de todos os cidadãos tenha o mesmo peso e as que
especificam que tipo de decisões coletivas devem ser levadas à prática.
368
MOUFFE, Chantal. ¿Hacia un Socialismo Liberal? In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 70, abril
de 1992, p. 4-5.
248
A respeito das condições da democracia (em 1990) e de seu futuro, o autor
propôs distinguir dois aspectos fundamentais: os avanços possíveis e as dificuldades
que as sociedades democráticas enfrentam. Bobbio se deteve em analisar o que ele
chamou de “os paradoxos da democracia”, os quais se relacionavam com uma
dificuldade central: o fato de que se exigia uma democracia cada vez mais plenamente
desenvolvida, em condições cada vez menos propícias, dado o crescimento das
grandes organizações estatais, o desenvolvimento da tecnocracia e da burocracia, e o
predomínio do conformismo atribuível à hegemonia da cultura de massas.
Expressando-o, concisamente, estes quatro inimigos da democracia – querendo
dizer com democracia o método ótimo de adotar decisões coletivas – são: a
grande escala da vida moderna; a crescente burocratização do aparelho estatal;
o tecnicismo cada vez maior das decisões que se devem tomar; e a tendência
da sociedade civil a converter-se numa sociedade de massas.
369
Referindo-se ao que considerou promessas não realizadas da democracia,
Bobbio assinalou os seguintes problemas: a sobrevivência de um poder invisível, a
sobrevivência das oligarquias, o desaparecimento do indivíduo como protagonista da
vida política, o renovado vigor dos interesses particulares, a limitação do espaço
concedido à participação democrática e o não haver podido criar uma cidadania
educada
370
. Salvo no caso do poder invisível, no qual vê uma tendência que contradiz
os pressupostos básicos da democracia, Bobbio considerou que os problemas
deveriam se interpretar como conseqüências necessárias da adaptação de princípios
abstratos à realidade.
Bobbio distancia-se de uma possível solução através da democracia direta,
estimou que esta alternativa, além de ser “impraticável”, só contribuiria para piorar a
situação. A pergunta que se pode fazer é se é possível fazer alguma coisa para
promover o processo democratizador nas modernas sociedades avançadas? No final
das contas, Bobbio parece abrigar um otimismo moderado a respeito, mas sempre
insistindo em que se deve ser realista e abandonar toda esperança de chegar a uma
“verdadeira democracia”, a uma sociedade perfeitamente reconciliada, a um consenso
369
BOBBIO, Norberto. ¿Qué Socialismo? Barcelona: Plaza y Janés, 1986, p. 9.
370
MOUFFE, Chantal. 1992, op. cit., p. 7.
249
total, visto que a democracia moderna deverá ser compatível com o pluralismo e, por
isso, com algum tipo de dissidência.
Para Bobbio, uma vez descartada a “ilusória” democracia direta, deve-se iniciar
um processo de ampliação da democracia. Para tal, o método seria o de propagar a
democracia representativa, com o objetivo de que, cada vez mais, ocupe todas as
áreas da vida social. “O problema básico não é tentar que surja um novo tipo de
democracia, senão fomentar um processo pelo qual as formas democráticas
tradicionais, como a democracia representativa, se vão infiltrando em novos espaços,
espaços ocupados até [agora] por organizações hierárquicas ou burocráticas”
371
. Ou
seja: o processo deveria avançar desde a democratização do Estado até a
democratização da sociedade e, para isso, enfrentar o poder autocrático em todas suas
formas.
Desse modo, democratizar a sociedade requer, na opinião de Bobbio, alterar
todas as instituições não dirigidas democraticamente, desde a família até a escola,
desde os grandes negócios até a administração pública. Utilizando suas próprias
palavras: “[hoje em dia] se se quer contar com um indicador dos avanços democráticos,
este não pode ser o número de pessoas com direito a voto, senão o número de
contextos alheios a política onde se exerce o direito de votar”
372
. Uma forma de
expressar essa idéia seria a de dizer que o critério para medir o grau de
democratização num dado país não deveria se basear em saber “quem vota”, senão em
“onde” pode-se votar.
De acordo com Bobbio, o socialismo liberal pode oferecer uma solução aos
problemas que padece a democracia, ao proporcionar um novo contrato social. O
objetivo seria combinar direitos sociais, políticos e civis, e assentá-los sobre cimentos
marcadamente individualistas, apelando ao princípio de que o indivíduo é a fonte
originária do poder. Bobbio ressalta o papel do individualismo e argumenta que, sem o
individualismo, não pode existir o liberalismo
373
. A compatibilidade entre liberalismo e
democracia radica, para ele, no fato de que ambos partem do mesmo ponto: o
371
BOBBIO, Norberto. El Futuro de la Democracia. op. cit., p. 55.
372
Idem, p. 56.
373
BOBBIO, Norberto. Liberalismo y Democracia. op. cit., p. 9.
250
indivíduo. E, por conseqüência, tem como base uma concepção individualista da
sociedade
374
.
Desde o ponto de vista de Mouffe, a interpretação de Bobbio é adequada no que
se refere à importância do individualismo no nascimento da concepção moderna de
sociedade, mas acredita que [na atualidade] essa concepção individualista não tem-se
convertido num obstáculo para a expansão dos ideais democráticos
375
. Muitos dos
problemas das democracias modernas, assinalados por Bobbio, poderiam ser
atribuídos aos efeitos do individualismo. Na opinião de Mouffe, muitos partidários do
coletivismo têm argumentado que é justamente na concepção individualista do sujeito
como um ser com direitos próprios que existe prévia e independentemente de sua
inserção na sociedade, onde se deve procurar a origem de nossos problemas.
Os coletivistas, segundo Mouffe, distantes de considerar que a solução passa
por um novo contrato social, pensam que a própria idéia do contrato social, “com suas
implicações atomizadoras”, necessita ser deixada de lado. Para tal, argumentam a favor
de uma revitalização da tradição cívica republicana que tnuma concepção mais ampla
da cidadania e vê na política o âmbito onde se pode reconhecer a si mesmos como
membros ativos de uma comunidade política organizada em torno da idéia do bem
comum compartilhado
376
.
Na opinião de Mouffe, se se quer dar soluções aos problemas que enfrentam as
democracias liberais – da época – e criar uma articulação efetiva entre os objetivos
socialistas e os princípios da democracia liberal, será necessário superar o marco
referencial do individualismo. “Não estou postulando um regresso à concepção
organicista e holística da sociedade, claramente pré-moderna e inadequada para a
374
A idéia moderna do contrato social representa, desde a ótica de Bobbio, uma revolução copernicana
na relação entre o indivíduo e a sociedade, porque assinala o fim de uma concepção holística e
organicista da sociedade e o nascimento do individualismo. Ao situar o indivíduo concreto – com seus
interesses, necessidades e direitos – na origem da sociedade, a concepção individualista não só fez
possível a existência do Estado liberal, como também a concepção moderna da democracia, princípio
fundamental de que a fonte do poder é cada indivíduo tomado independentemente, numa situação em
que todos os indivíduos têm a mesma importância.
375
MOUFFE, Chantal. 1992, op. cit., p. 7.
376
Idem, p. 8.
251
democracia moderna”
377
, para afirmar logo após, que a concepção individualista que se
fez predominante na teoria liberal não é a única alternativa a essa perspectiva
378
.
Jowitt (1991) realizou uma particular reflexão sobre a democracia liberal. Para o
autor, a democracia liberal e capitalista tem provocado uma quantidade de
heterogêneos opositores. Por sobre todas as diferenças maciças e reais que separam
as diversas oposições, destaca-se uma crítica comum. A democracia liberal e capitalista
tem sido também desprezada pela sua ênfase pouco comum no individualismo, o
materialismo, o avanço tecnológico e a racionalidade. “A igreja católica marca uma
preferência pela família sobre o indivíduo como unidade básica da sociedade, e os
nazistas, uma preferência pela raça; ambas diferenciam-se radicalmente como
alternativas, mas compartilham uma negativa comum: o capitalismo liberal é acusado
de desvalorizar a dimensão coletiva da existência humana”
379
.
O que resultou realmente significativo dessa etapa de transição da esquerda
uruguaia foi que se constituiu um novo “compromisso” que possibilitou as condições
que tornaram viável a coexistência estável entre capitalismo e democracia. Essa
coexistência repousou num “compromisso” de classe, gerado a partir de escolhas
estratégicas independentes de capitalistas e trabalhadores, que decidiram acreditar nos
supostos benefícios futuros. A idéia de compromisso de classe, resultante das escolhas
fundadas em interesses individuais, completou a análise da trajetória da social-
democracia européia, proporcionando um fundamento inteligível para opções políticas
que, independentemente das afirmações de adesão ao socialismo, implicaram em
acomodação à sociedade de mercado.
Analisando as hipóteses de Przeworski (1991), pode-se observar que seus
pressupostos podem ser conformados no período de transição da esquerda uruguaia.
Tais hipóteses afirmavam que: a) no processo de competição eleitoral, os partidos
socialistas foram forçados a solapar a organização dos trabalhadores como classe, e b)
compromissos entre trabalhadores e capitalistas a respeito de questões econômicas
377
Idem.
378
A questão, para Mouffe, seria conceber o indivíduo não como um ser isolado, que existe prévia e
independentemente da sociedade, senão como um ser constituído por um conjunto de posições
individuais, inserido numa multiplicidade de relações sociais, membro de muitas comunidades e
participante numa pluralidade de formas coletivas de identificação.
379
JOWITT, Ken. Después del Leninismo: El Nuevo Desorden Mundial. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 60, junho de 1991, p. 6.
252
seriam possíveis sob o capitalismo e, por sua vez, preferidos pelos trabalhadores a
estratégias mais radicais
380
.
Essas duas hipóteses explicariam porque, em muitos países capitalistas
democráticos, os trabalhadores foram e continuam sendo organizados por partidos
eleitorais orientados para diversas classes e economicamente reformistas – partidos
social-democratas –, quer adotassem ou não essa denominação. Tais hipóteses
revelaram, ao mesmo tempo, que as reformas não foram irreversíveis e cumulativas,
proporcionando, portanto, a base para uma crítica da social-democracia.
Assim, quando a democracia representativa, característica da sociedade
burguesa, deixou de ser meramente uma tática e foi adotada como princípio básico da
futura sociedade socialista, o dilema acentuou-se ainda mais. Partidos social-
democratas reconheceram na democracia política um valor que transcendeu diferentes
formas de organização da produção. Jean Jaurès
381
afirmou que “O triunfo do
socialismo não será um rompimento com a Revolução Francesa, e sim a efetivação
daquela revolução em novas condições econômicas”. Por sua vez, Eduard Bernstein
382
via no socialismo simplesmente “a democracia levada à sua conclusão lógica”. A
democracia representativa, para estes autores, tornou-se simultaneamente o meio e o
objetivo, o veículo para o socialismo e a forma política da futura sociedade socialista. E
isso foi compartilhado pela maioria da esquerda uruguaia.
Em resumo, ocorreu uma revalorização da democracia formal, política, que
também poderíamos considerar como uma democracia “minimalista”, com base no
sufrágio universal, a necessidade de pluripartidarismo, a vigência de um estado de
direito, a existência de liberdades básicas e a garantia do respeito aos direitos
humanos. Essa foi a democracia que emergiu a partir de 1984, no Uruguai, em prejuízo
das necessidades de democracia econômica e social que atendesse problemas de
igualdade e justiça social. Este foi o contexto ideológico sobre o qual se fundaram as
bases para o processo de recuperação democrática do país, o que acarretou, ou
380
PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991,
p. 16.
381
JAURÈS, Jean. L’ Esprit de socialisme. Paris: Denoel, 1971, p. 71.
382
BERNSTEIN, Eduard. Evolutionary Socialism. New York: Schocken, 1961.
253
contribuiu, para uma valorização “redimensionada” da democracia pela esquerda
eleitoral no período de transição.
254
CAPÍTULO III
A ESQUERDA PROGRESSISTA 1994-2004
1. GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E AS NOVAS TEMÁTICAS DA ESQUERDA
PROGRESSISTA
O “Consenso de Brasília”, declaração realizada em julho de 1997 pela Cumbre
Regional para el Desarrollo Político y los Princípios Democráticos, da Unesco, afirmou
que sem ignorar a globalização, mas sem submeter-se a ela, “nossos povos têm a
tarefa de governar a globalização”, e acrescentou que “se estamos frente a problemas
globais, necessitamos de soluções globais”
383
. Estes intentos em favor de regulação
pretendiam fundar-se na aparente diferenciação entre neoliberalismo e globalização.
O senador uruguaio Alberto Couriel realizou uma distinção, com muita clareza,
na sua intervenção na Conferência Interparlamentar da Namíbia, em abril de 1998, na
sua argumentação contra o neoliberalismo como ideologia da globalização
384
. Segundo
ele, no imaginário social, a globalização foi vista como algo inexorável. Algo que caiu do
céu e tudo indicava que seria muito pouco o que se poderia fazer em oposição. Pois
isto foi efetivamente assim? Não seria possível uma alternativa? Estaríamos
condenados a ser objetos do avanço estrondoso das forças do mercado globalizado?
Bem, essas eram as perguntas que a esquerda uruguaia, no final da década de 1990,
se fazia.
O primeiro passo para tentar compreender o que esta esquerda interpretava
como globalização é analisar como foi conceituada. Segundo Enrique Rubio (1999),
quando se falava de globalização ou mundialização parecia se fazer referência a uma
espécie de integração mundial dos processos. “Se aspiramos a formular uma idéia de
383
UNESCO. Gobernar la Globalización. La Política de la Inclusión: el cambio de responsabilidad
compartida. Informe sobre os Princípios Democráticos e a Governabilidade. México: 1997, p. 232.
384
COURIEL, Alberto. Gobernar la Globalización. Comunicação apresentada na 99 Conferência
Interparlamentar, Namíbia, 1998, In: RUBIO, Enrique. El Futuro de la Izquierda. Montevideo: Marcha,
1999, p. 30.
255
globalização relativamente exigente, devemos admitir que os conceitos de
interdependência e de integração constituem requisitos da globalização, e os mesmos
não se sobrepõem com a mesma”
385
. Só que a idéia da globalização aponta para algo
mais definido. A globalização predomina quando a lógica capitalista impõe-se como
dominante para todos os atores de maior gravitação.
Para Santos (2002), a globalização dá a idéia falsa de que é um processo linear,
monolítico, inequívoco e irreversível. Essa idéia de globalização, apesar de falsa, tende
hoje a ser prevalecente e toma maior vigor no momento em que extravasa o discurso
científico para o discurso político e deste para a linguagem comum, ou seja, quando se
transforma de um conceito científico para a estrutura ideológica da vida cotidiana.
Santos afirma que, de forma aparente e sem complexidade, a idéia de globalização
“obscurece mais do que esclarece o que se passa no mundo”
386
. Assim, a idéia de
globalização, longe de ser inocente, deve ser considerada como dispositivo ideológico e
político dotado de intencionalidades específicas.
Por outra parte, na concepção de Couriel (1996), na ideologia da globalização
predominou o financeiro frente às questões produtivas; a propriedade privada perante a
propriedade social; o mercado frente a qualquer tipo de regulação estatal; o individual
sobre o coletivo e o ajuste perante o crescimento e a equidade
387
. Essa ideologia faz
parte do pensamento conservador que, no século XVIII, foi contra os direitos civis dos
cidadãos, ao defender a liberdade somente para uma parte da população; no século
XIX, foi contra os direitos políticos dos cidadãos, ao atacar a universalização do voto; e
no século XX, contra os direitos sociais, ao atacar o Estado de bem-estar.
A globalização transformou em profundidade a economia mundial, a atividade
política e a trama ideológica internacional. Na economia, o capital financeiro exerce a
supremacia. Na política, a globalização colocou em questionamento o Estado nacional.
No terreno das ideologias, o liberalismo converteu-se, durante as últimas duas décadas,
numa influente corrente do pensamento e da ação. Na realidade, a primazia do capital
financeiro não é o único aspecto relevante da globalização econômica. Importa
385
RUBIO, Enrique. La Izquierda del Futuro. Montevideo: Marcha, 1999, p. 31.
386
SANTOS, Boaventura de Souza. A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: 2ª ed., Cortez,
2002, p. 45.
387
COURIEL, Alberto. Globalización e Izquierda en América Latina. Montevideo: Banda Oriental, 1996,
p. 27.
256
ressaltar, igualmente, o desenvolvimento do comércio internacional e os investimentos
estrangeiros, a maior aceleração dos intercâmbios comerciais e dos investimentos de
capital nos processos de integração regional.
Surge aqui uma interrogação pertinente: as integrações regionais permitiriam
enfrentar a globalização? Resultaria desgastante esta pergunta sem pensar na
evolução dos níveis extrafinanceiros de interdependência econômica no mundo atual.
Uma administração adequada da regionalização poderia permitir enfrentar a
globalização
388
. O desenvolvimento dos Estados e dos processos de integração
regional podem permitir colocar sobre bases realistas o objetivo de enfrentar a
globalização, na medida em que potencializam atores públicos capazes de se opor ou
contrabalançar aos macro-atores privados. Na perspectiva de Rubio (1999), a crise do
Estado nacional deveria ser avaliada no marco de propostas de re-elaboração do
Estado e da política, com a visão em direção à geração de plataformas para enfrentar
os desafios da globalização
389
.
Por outro lado, os Estados encontraram-se tensionados perante demandas muito
contraditórias. Em primeiro lugar, a crescente globalização econômica introduziu um
grande desafio externo. Em segundo lugar, as grandes empresas e outros atores
pressionaram em direção das privatizações e da desregulação. Em terceiro lugar, as
transformações sociais e econômicas traduziram-se em reivindicações dos setores que
resultaram afetados pelas mudanças. Assim, a economia transnacional foi minando a
uma instituição praticamente universal: o Estado nacional.
Esse enfraquecimento dos Estados nacionais foi provocando uma transformação
profunda nas relações de poder. De acordo com Artola (1996), no mundo atual
assistimos ao enfrentamento de duas lógicas: por um lado, a lógica da geo-economia
globalizada e desregulada, cujo predomínio supõe a crise do Estado nacional e que
também inclui o enfrentamento a novas formas de fortalecimento das instâncias
políticas e estatais. Por outro lado, a lógica de geopolítica multipolar, com base no
388
A integração regional, o multilateralismo e, a partir destes, as coordenações mundiais de esforços
constituem caminhos alternativos possivelmente viáveis. Resulta claro que repensar a economia e a
política, desde a perspectiva do regional, implicará a necessidade de questionar o neoliberalismo e a
outras vertentes liberais e conservadoras, como correntes influentes na globalização.
389
RUBIO, Enrique. op. cit., p. 46.
257
fortalecimento dos Estados principais e de suas áreas regionais de projeção econômica
e política
390
.
Assim, a lógica da geopolítica multipolar desenvolveu-se em processos de
integração regional, como o europeu. Esses processos de integração podem partir de
acordos de liberalização comercial, como na América do Norte ou o Mercosul. Essa
geopolítica também se concretizou em articulações regionais não institucionalizadas,
como no Leste Asiático, e também em meras zonas de influência dos Estados
“principais”. Apesar dessa diversidade, a linha principal pareceria consistir numa
estruturação do mundo em blocos regionais.
Por sua vez, a lógica da economia globalizada e desregulada não só acentuou a
crise do Estado-nação clássica, senão que aprofundou a vulnerabilidade internacional.
Os neoliberais argüiram que os Estados nacionais constituíam obstáculos para o
desenvolvimento da globalização. Mas as permanentes crises das bolsas de valores
ofereceram bons exemplos sobre os riscos que implicam tais enfoques. Os diversos
mecanismos de coordenação multilateral das políticas macroeconômicas e setoriais
implementadas pelos países mais importantes demonstraram ser parcialmente
incapazes para enfrentar os problemas de uma economia globalizada e liberalizada.
À transformação e diferenciação dos Estados nacionais, a lógica da geopolítica
multipolar não deverá confundir-se com uma visão catastrófica sobre o futuro dos
Estados. Na realidade, muitos deles ainda são imensos poderios e, inclusive, mais
fortes que nunca em determinados aspectos, em particular no acesso a recursos
econômicos, na disponibilidade de burocracia sofisticada e no domínio de tecnologias
da informação. Assim, alguns teóricos norte-americanos como Brzezinski (1997), como
exemplo, manifestaram possuir uma clara consciência a respeito da questão. De acordo
com ele, o poderio dos Estados seria muito importante e o predomínio norte-americano
não se discutiria
391
. Segundo o autor, o status norte-americano de primeiro poder
mundial não seria disputado por mais de uma geração, porque nenhum Estado pode
390
ARTOLA, Juan. Reconstrucción Hegemónica, Globalización y Gobernabilidad en el Sistema
Internacional Contemporáneo. Universidad Centroamericana. Mestrado em Relações Internacionais,
Manágua, setembro de 1996, p. 23.
391
BRZEZINSKI, Zbigniew. A Geostrategy for Eurasia. In: Foreign Affairs. Colorado, EUA, setembro de
1997, p. 51.
258
comparar-se com os EUA nas quatro dimensões do poder: militar, econômico,
tecnológico e cultural, que conferem gravitação política global.
De forma simultânea, os Estados nacionais foram despojados de muitos de seus
atributos, mas também foram se transformando e diferenciando no econômico e no
político. Mas o avanço da geopolítica multipolar não deu origem a instâncias de
coordenação capazes de enfrentar os problemas que traz a lógica da geo-economia
globalizada. É verdade que se instrumentaram diversos acordos interestatais, regionais
ou mundiais, mas os resultados não têm sido relevantes. As limitações dos acordos nos
devem lembrar que as decisões produtivas, comerciais, financeiras e tecnológicas
concentram-se num punhado de países, e que nos mesmos se encontram a maior parte
das empresas multinacionais que assumem posições dominantes em seus respectivos
mercados globais.
Aqui poderíamos nos perguntar: como se posicionou a esquerda ante a
globalização e a regionalização? No geral, sempre se tem sustentado que a luta da
esquerda supera os marcos nacionais. Mas essa tese clássica adquire maior
importância justamente no contexto da globalização. Amin (1989) elaborou a tese da
desconexión, que propunha o isolamento dos países periféricos ao processo
globalizador. É difícil de se compartilhar essa tese, visto que se a globalização traz
problemas, o isolamento também constitui um de não menor magnitude. Dessa forma,
como poderia a esquerda latino-americana preparar-se para enfrentar o processo? No
plano internacional, e para enfrentar a nova hegemonia, pareceria necessário
impulsionar uma coordenação horizontal dos Estados, fundada numa integração
mundial em rede federativa e lutar contra uma globalização que opera sobre as bases
de dominação.
Na opinião de Rubio (1999), na perspectiva da esquerda os eixos de tensão e as
fronteiras de exclusão originadas em problemas mundiais, como os ecológicos, os
ligados com o emprego e os relacionados com a paz, operariam no futuro como
referenciais centrais. “Seria conveniente propiciar uma verdadeira política interior
mundial para enfrentar, desde a esquerda, os problemas mundiais que se dão com
maior intensidade no Sul, mas que também se registram no Norte”
392
. A questão dos
392
RUBIO, Enrique. op. cit., p. 76.
259
blocos regionais foi examinada com interesse desde a esquerda, na medida em que se
apresentava como uma alternativa consistente à mundialização neoliberal. Assim, o
Estado com projeção regional poderia constituir uma das instâncias privilegiadas no
político, junto com as instâncias locais, nacionais e mundiais.
Um futuro programa da esquerda latino-americana deveria fixar três amplas
metas, segundo Castañeda (1994). A primeira, o estabelecimento, na América Latina,
de um Estado de bem-estar autêntico, que estendesse a cobertura da proteção social à
maioria da população. A segunda, financiar esse objetivo através de uma profunda
reforma fiscal que possibilitasse um alívio significativo da dívida externa. A terceira,
fundar as bases para a viabilidade, em longo prazo, das duas primeiras metas, através
de uma estratégia nacional de crescimento industrial orientada à exportação e
ambientalmente sustentável
393
.
Essa proposta foi semelhante às colocadas pela Comissão Econômica das
Nações Unidas para a América Latina – Cepal. Num extenso documento publicado em
1992, a Cepal propôs uma série de objetivos não muito diferentes aos expostos por
Castañeda:
a) reforma fiscal;
b) reformas nas despesas com a finalidade de garantir níveis de investimentos
sociais e públicos;
c) reformas nas empresas do Estado;
d) reforma política dirigida à redução da dívida externa e a liberar recursos com fins
sociais.
394
.
Assim, esses objetivos ou grandes metas não constituiriam um modelo completo
de política econômica, e sim o perfil geral de um novo modelo.
Já para o economista brasileiro Celso Furtado (1997), a governabilidade e o
desenvolvimento teriam como condição sine qua non três objetivos estratégicos que
deveriam ser perseguidos simultaneamente:
a) conseguir uma inserção internacional dinâmica;
393
CASTAÑEDA, Jorge. La Utopia Desarmada: intrigas, dilemas y promesas de la izquierda en
América Latina. Bogotá: TM Editores, 1994, p. 537.
394
CEPAL. Equidad y Transformación Productiva: un enfoque integrado. Santiago de Chile: Cepal,
1992, p. 88.
260
b) combater a tragédia moderna da pós-industrialização, ou seja, a falta de emprego,
criando postos de trabalho adequadamente remunerados para aqueles que necessitam
se incorporar à sociedade;
c) atacar outro problema universal, que seria a má distribuição de renda
395
.
Assim, as diferentes análises apostavam, na época, para o desenvolvimento
como sinônimo de crescimento econômico.
De forma resumida, poder-se-ia sintetizar as premissas do programa para a
esquerda em dois grandes focos que norteariam as políticas econômicas:
1) a imperiosa necessidade de uma reforma fiscal profunda e;
2) a persistência na tentativa de um processo de industrialização dirigido à
exportação.
Esta última seria a base para o futuro crescimento econômico. Sua orientação
não estaria marcada somente pelo mercado, senão que deveria adequar-se a uma
estratégia nacional na qual o Estado, empresas e trabalhadores, guiados por uma
política industrial de longo prazo, decidissem os nichos de mercado que melhor se
adequassem a suas características.
A esquerda sempre compartilhou a idéia de que o Estado devia assumir um
papel fundamental no impulso da industrialização. Também foi uma característica do
pensamento da esquerda não deixar esse impulso nas mãos do mercado. Mas a nova
ruptura não estava em outorgar um papel central ao setor privado e não aceitar que o
mercado devia ter uma função dominante no processo. Portanto, a condição para que a
esquerda formulasse um modelo viável e diferente ao do livre mercado era adotar o
próprio mercado. Para a esquerda, tratava-se de uma mudança abismal: aprovar um
modelo de industrialização que acentuasse o papel do setor privado e convocasse uma
aliança entre o empresariado e o Estado.
Na América Latina, a partir da crise da dívida, quebrou-se espetacularmente o
modelo de industrialização substitutiva de importações. Mas no geral, em todo o mundo
se derrubou, ou pelo menos passou por sérias dificuldades, o modelo com base nas
políticas anticíclicas de corte keynesiano e na prioridade do mercado interno, desde o
395
FURTADO, Celso. La deuda Social y la Degradación del Estado. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 131, setembro de 1997, p. 9-14.
261
momento em que os mercados de capitais começaram a impor, a cada um dos
Governos nacionais, a necessidade de controlar o déficit, a inflação e a dívida, para
evitar que esses desequilíbrios provocassem movimentos de capital capazes de
desestabilizar radicalmente a economia de um dia para outro.
Uma das características importantes foi que a quebra do modelo econômico de
pós-guerra supôs, por um lado, a aparição de novas regras de jogo na economia
mundial – regras que não dependiam da vontade dos Governos e, nesse sentido,
deviam ser aceitas independentemente dos graves inconvenientes que pudessem ter
em cada país – e que essa quebra levou, por outra parte, a um aspecto ideológico que
se tornou o principal marco de pensamento econômico em quase todas as nossas
sociedades. A quebra do modelo tradicional significou uma grande incerteza para todos
os atores. Nem os atores econômicos, trabalhadores e sindicatos, consumidores,
investidores e empresários, nem os atores políticos, quando se movia no terreno
econômico, podiam seguir ajustando-se às estratégias tradicionais.
A questão central foi que a partir da nova situação criada por essa ortodoxia
financeira, imposta a todos os governos, produziu-se a ascensão de uma visão de
mundo que foi consideravelmente além do que impuseram as regras do jogo. Essa
visão de mundo vem pressupor que o crescimento e a prosperidade global, em cada
sociedade e para todos os países, seriam maiores quanto menores a regulação e a
intervenção pública nos mercados; e, conseqüentemente, quanto mais atuam os
mercados, livres de toda interferência, no momento de designar recursos e regular o
intercâmbio de bens e serviços. Obviamente, isso é a ideologia neoliberal.
Segundo Perry Anderson (1996), o neoliberalismo nasceu na Europa e na
América do Norte, após a Segunda Guerra Mundial, como uma invenção teórica e
política contra o Estado intervencionista e de bem-estar
396
. O neoliberalismo é, hoje, um
conjunto de medidas econômicas e programas políticos que começaram a ser
propostos como saída para a crise econômica da década de 1970 e que se
posicionaram contra a intervenção do Estado na economia e a favor de se criar
condições para a total mobilidade do capital.
396
ANDERSON, Perry. El despliegue del Neoliberalismo y sus lecciones para la izquierda. In: Revista
Koyeu. Caracas: n. 75, outubro-dezembro de 1996, p. 35.
262
Entre as medidas econômicas propostas para favorecer a livre circulação do
capital, encontram-se: a abertura incontrolada dos mercados; a desregulamentação ou
eliminação de todas as regras para o capital estrangeiro; a privatização das empresas
estatais das instituições que prestavam serviços sociais: educação, saúde, fundos de
pensão, habitação, entre outras, com a conseqüente redução do papel do Estado e das
despesas sociais; a luta prioritária contra a inflação; e a flexibilidade nas relações de
trabalho
397
.
Seu principal objetivo é a estabilidade financeira ou monetária e, para tal, é
necessário que se contenham os gastos sociais. O neoliberalismo requer Estados que
assegurem a estabilidade econômica e política, que criem condições jurídicas para as
operações do capital transnacional e que forneçam a infra-estrutura física e humana
necessárias para a acumulação de capital. “A globalização envolve novas formas de
articulação econômica e política entre o centro e a periferia. Envolve a penetração dos
estados periféricos por parte das elites transnacionais [...]
398
.
Importa assinalar que o modelo econômico neoliberal não triunfou em nenhum
país do mundo. Portanto, não encontramos, especialmente no mundo
desenvolvido e depois dos experimentos de Margaret Thacher no Reino Unido
e de Ronald Reagan nos Estados Unidos, experiências de êxito com base nesta
ideologia. Pelo contrário, se analisamos os êxitos no século XX dos principais
países desenvolvidos, encontraremos uma forte presença e intervenção dos
Estados nacionais na conformação de seus respectivos modelos econômicos e
sociais
399
.
Na América Latina, tal ideologia gerou tendências de destruição e,
especialmente, de exclusão. Na sua concepção mais dogmática, se traduz a idéia de
que o mercado resolve tudo e o Estado deve minimizar-se ou desaparecer; portanto,
não seriam necessários nem os políticos, nem os partidos políticos e, como
conseqüência, se coloca em questionamento a própria democracia. Segundo Lechner
(1996), para o neoliberalismo o objetivo explícito seria o de despolitizar a economia e o
implícito seria a despolitização da vida social. O mercado e a iniciativa privada não
397
HARNECKER, Marta. Tornar Possível o Impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São
Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 193.
398
ROBINSON, William. Un estudio de caso sobre el proceso de globalización en el Tercer Mundo. In:
Pensamiento Propio. Manágua: janeiro-abril de 1997, p. 202.
399
COURIEL, Alberto. La Izquierda y el Uruguay del Futuro. Montevideo: Banda Oriental, 2004, p. 43.
263
desrespeitam somente a política econômica, senão que apontam para uma
reorganização integral da sociedade
400
.
A Confederação Nacional de Trabalhadores – PIT-CNT manifestou, no ato
realizado em Montevidéu em 1º. de maio de 1999, que o modelo neoliberal levou a uma
grande fragmentação social, que excluiu os frutos de crescimento econômico da maioria
da população, que tem destruído o aparelho produtivo do país, em especial na
agropecuária e na indústria, que transformou as políticas sociais de saúde, educação e
habitação em mercadorias a que ascendem os que têm dinheiro para pagá-las, que
fechou as instâncias de participação cidadã no país, de tal forma que “[...] subordinou
todas suas políticas ao supremo objetivo do equilibro macroeconômico,
comprometendo seriamente os destinos da maioria da população”
401
.
Posteriormente, em 2000, a Central Sindical proclamava que “todos temos
presente as conseqüências que para os povos, especialmente os do Terceiro Mundo,
trouxe a globalização neoliberal”. Para nossa América Latina, e em particular para
nossa região, parece clara a alternativa de unificar esforços, desenvolvendo uma
integração real entre os povos, de modo que alcance todos os planos, e não só o
econômico e o comercial. “O PIT-CNT sempre denunciou o caráter antipopular do
projeto de integração elaborado pelo governo dos países da região; lutamos desde
todos os âmbitos, não só desde o discurso por um outro Mercosul, e assim por outro
projeto de integração
402
.
As declarações do sindicalismo contra as políticas neoliberais foram claras e
contundentes. “Rejeitamos, totalmente, mais uma vez, as privatizações novamente
impulsionadas pelos acordos blancos-colorados. Deve ficar claro que os serviços
essenciais de um país não são uma mercadoria, senão necessidades das pessoas e
que, portanto, sua prestação deve ser totalmente alheia a qualquer interesse de lucro.
Os ganhos que geram as Empresas Públicas devem continuar sendo usados para o
400
LECHNER, Norbert. Estado y Sociedad en una perspectiva democratica. In: Estudios Sociales.
Revista Universitária. Santa Fé: n. 2, 1996, p. 42.
401
PIT-CNT. Proclamación del 1º. de mayo de 1999. Montevideo: mimeo, p. 6.
402
PIT-CNT. Proclamación del 1º. de mayo de 2000. Montevideo: mimeo, p. 4.
264
Orçamento Nacional, para solucionar problemas sociais, e não para engordar os bolsos
das empresas transnacionais”
403
.
Assim, o movimento sindical concebia as privatizações, a abertura comercial
indiscriminada, a desregulação do mercado de trabalho, a distribuição regressiva da
renda, com o objetivo de formar um modelo “exportador” como políticas neoliberais,
com conseqüências sociais dramáticas em termos de fome e desemprego, geradas
como parte dos custos sociais dos ajustes estruturais. “Que avanço teve a participação
da América Latina nos fluxos do comércio internacional? No ano de 1990, toda a
América Latina significava 5,8% das exportações mundiais; no ano de 2000, a América
Latina significou 6% das exportações mundiais”
404
.
Um dos mais importantes intelectuais do Partido Socialista Uruguaio afirmava,
em 1998, que as alternativas ao projeto neoliberal não poderiam constituir-se na volta
ao passado sesentista, senão que deveria assumir, como ponto de partida, o conjunto
de mudanças tecnológicas, colocando-as numa perspectiva emancipatória
405
. Um dos
grandes temas de discussão do período progressista foi o do desenvolvimento nacional
a partir do desenvolvimento tecnológico. A presença do novo paradigma “tecnológico”
tornou-se uma constante no discurso da esquerda progressista uruguaia, de modo que
incorporou o discurso globalizador, que é totalmente antagônico por essência, a
qualquer prática emancipatória.
Como afirmou Chesnais (2000), somente uma enorme amnésia histórica,
conjuntamente com apelos para se submeter à inevitabilidade das mudanças e para se
resignar à tirania dos mercados, “[...] poderia dar crédito à idéia de que um regime
marcado por uma dinâmica de fraca acumulação industrial, de empregos cada vez mais
raros e precários e de regressão social e política possa ser considerado ‘irreversível’ e
revestido de uma legitimidade histórica qualquer”
406
.
A década de 1990 incorporou novas temáticas no cenário político e social no
mundo. A esquerda deparou-se com um novo arcabouço de paradigmas que vieram a
403
PIT-CNT. Proclamación del 1º. de mayo de 2001. Montevideo: mimeo, p. 15.
404
PIT-CNT. Proclamación del 1º. de mayo de 2003. Montevideo: mimeo, p. 4.
405
LAGUARDA, Manuel. Exposição em Asamblea Uruguay. In: Ciclo de Debates: Uruguay en
Asamblea. Montevideo: Banda Oriental, 1998, p. 37.
406
CHESNAIS, François. Um programa de ruptura com o neoliberalismo. In: A Crise dos Paradigmas
em Ciências Sociais e os Desafios para o Século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 102.
265
atuar como “substitutivos” dos velhos paradigmas da esquerda tradicional. Substitutivos,
porque acabaram substituindo algumas das tradicionais reivindicações da esquerda, no
contexto da “renovação ideológica”. No caso uruguaio, temas tradicionais como a
reforma agrária, o imperialismo e a nacionalização do sistema bancário e do comércio
exterior foram substituídos por novas preocupações temáticas oriundas do discurso
globalizador.
Novas temáticas e, porém, novos conceitos foram incorporados à esquerda,
como no caso do conceito de “sociedade civil”, que veio como substituto do conceito de
sociedade capitalista. “O efeito desse novo conceito seria o de fazer desaparecer o
conceito de capitalismo, ao desagregar a sociedade em fragmentos, sem nenhum
poder superior, nenhuma unidade totalizadora, nenhuma coesão sistêmica, ou seja,
sem um sistema capitalista expansionista e dotado da capacidade de intervir em todos
os âmbitos da vida social”
407
. Dessa forma, substituiu-se também na esquerda uruguaia
o conceito de “classes” pelo de sociedade civil, em nome da “renovação ideológica”.
Logicamente que esse conceito (como tantos outros) não é novo, mas sim o é, e
de forma completamente inovadora, a visão e a readaptação que se fizeram dele. No
caso da sociedade civil, ela está presente na obra de Adam Ferguson Ensaio sobre a
História da Sociedade Civil (1767) e, fundamentalmente, em três essenciais
representantes do pensamento moderno: Hegel, Marx e Rousseau. Nos debates sobre
sociedade civil no século XX, os dois protagonistas de maior significação, e
completamente antagônicos, foram Antonio Gramsci e Norberto Bobbio.
Gramsci (2001)
408
avançou no sentido de uma atualização do pensamento
marxista sobre o conceito de sociedade civil. Enquanto em Marx o momento da
sociedade civil coincide com a base material (contra-posta à superestrutura onde estão
as ideologias e as instituições), para Gramsci o momento da sociedade civil é
superestrutural. Assim, Gramsci concebeu dois grandes planos superestruturais: por um
lado, o que se chamaria sociedade civil, isso como um conjunto de organismos do
âmbito privado; e pelo outro, o da sociedade política ou Estado, a qual exerce a função
da hegemonia que o grupo dominante expressou no Estado.
407
WOOD, Meiksins Ellen. Democracia Contra Capitalismo: a renovação do materialismo histórico.
São Paulo: Boitempo, 2003, p. 210.
408
Ver: GRAMSCI, Antonio. Cadernos de Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol. 3.
266
Mas, a re-significação do conceito de sociedade civil, nos debates do final do
século XX, correspondem a Norberto Bobbio que, a partir de 1986, principalmente no
seu livro Estado, Governo e Sociedade: Para uma teoria geral da política, retoma o
tema e oferece, assim, uma base “teórica” para a “atualização da esquerda” e, nesta, a
re-significação do conceito de sociedade civil. Para isso, Bobbio afirma que no atual
discurso político a expressão “sociedade civil” se emprega como termo dicotômico entre
sociedade e Estado. Segundo o autor, “Por sociedade civil entende-se a esfera das
relações sociais não reguladas pelo Estado, entendido restritivamente e quase sempre
também polemicamente como o conjunto de aparatos que num sistema social
organizado exercem o poder coativo”
409
.
Como observou Santos (2002), o dualismo Estado – sociedade civil nos últimos
200 anos quase sempre tentou ocultar sua matriz, ou seja, a idéia de que tanto o
Estado como a sociedade civil, mesmo que reciprocamente autônomos, são parte
integrante um do outro e não podem ser concebidos como entidades separadas. Santos
mostrou como esse dualismo foi a “espinha dorsal” da teoria política liberal e que, da
mesma forma, também foi adotado pelo pensamento marxista, claro que a partir de uma
concepção diferente
410
.
Ellen Meiksins Wood (2003) avançou sobre a visão de Bobbio, na direção de
uma explicação plausível para essa substituição de determinados conceitos. No caso
da “sociedade civil”, ela explica que esse abrigo conceitual, que tudo cobre, desde as
mais variadas instâncias da vida cotidiana, como os lares, as associações voluntárias,
comunitárias, cooperativas até o sistema econômico do capitalismo, confundiu e
disfarçou determinados elementos conceituais, cumprindo uma função ideológica
específica. Na Europa Oriental, ele inclui tudo: desde a defesa dos direitos políticos e
das liberdades culturais até a reestruturação do capitalismo das economias pós-
comunistas.
Nas palavras de Wood: “Sociedade civil pode ser entendida como um código ou
máscara para o capitalismo, e o mercado pode-se juntar a outros bens menos
409
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade: Para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz
e Terra, 8ª ed., 2000, p. 33. (primeira edição 1986).
410
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da
experiência. São Paulo: Cortez, 4ª ed., 2002, p. 173.
267
ambíguos, como as liberdades políticas e intelectuais, como um objetivo desejável
acima de qualquer dúvida”
411
. Dessa forma, a autora alertou para uma redução
aparente – por intermédio destes novos conceitos – da lógica totalizadora e do
exercício do poder coercitivo do capitalismo, que minimizaram todo o sistema social do
capitalismo a um conjunto de instituições e relações fragmentadas em aparentes
condições de igualdade.
No Uruguai, em 1996, Eduardo Gudynas e Alain Santandreu publicaram um
artigo sobre sociedade civil: Potencialidades y Limites. Nele, os autores criticaram as
manifestações do Partido Colorado que afirmavam que o Estado deveria transferir
progressivamente recursos financeiros e responsabilidades aos cidadãos, concebendo
isso como um processo “conveniente”, além de “inexorável”, vinculado ao
desenvolvimento de novas formas de exercer a liberdade numa sociedade democrática.
Essa perspectiva aludia a uma dicotomia entre sociedade civil versus sociedade
política, onde se envolviam diversas expressões cidadãs, desde comissões de bairro a
organizações empresariais. Os autores afirmaram que, em muitos casos, a sociedade
civil terminava “superposta” ou incluída a conceitos como sociedade, povo, movimentos
sociais, entre outros
412
. Aparentemente, parecia haver consenso em que a sociedade
civil manifestava-se na esfera pública e que se distinguia claramente do Estado.
Um outro ponto de polêmica que trouxe o conceito de sociedade civil (no novo
contexto) foi o de ser confundida com as organizações não governamentais (ONGs). O
que resulta evidente é que a primeira representa muito mais do que a segunda. Assim,
pode-se chegar a afirmar que algumas ONGs representam apenas alguns setores da
sociedade civil. A própria composição dessas organizações comportou uma ampla
gama de atores: desde donas de casa até empresários, desde marginais até
fazendeiros.
O que resultava evidente era que por mais que se insistisse em apresentar a
sociedade civil como uma unidade, ela não era isso. Ela se apresentava como diversos
conjuntos de distinta natureza. O problema residia em que se argumentava que as
práticas oriundas da sociedade civil eram originais, abordavam rápidas respostas a
411
Idem.
412
GUDYNAS, Eduardo; SANTANDREU, Alain. Sociedad Civil: Potencialidades y Limites. In: Cuadernos
de Marcha. Montevideo: n 114, abril de 1996, p. 17.
268
problemas concretos de forma efetiva e com amplo poder de convocação. Assim,
evitava-se observar as limitações que indicavam, na maioria das vezes, que as práticas
eram reativas e denunciativas
413
.
Nas discussões sobre a temática, acontecidas no Uruguai a partir de 1996, pode-
se observar também que desde a sociedade civil nem sempre se propiciou um encontro
com a sociedade política, nem um diálogo para a efetiva solução dos conflitos. Assim,
alguns conflitos tornaram-se endêmicos, em que, desde um e outro lado, se faziam
acusações mútuas. Na opinião de Gudynas e Santandreu, o saldo desse tipo de
situações, fosse aquelas onde os problemas não se resolviam ou nas que
questionavam a política, não produziu benefícios para ninguém e, alertaram os autores,
“[...] são perigosas para a democracia”
414
.
Nesse sentido, o argentino Javier Franze (1994) sustentou que a sociedade civil
tendia a adotar uma atitude dupla: por um lado, com uma crítica que reivindicava o re-
fazer da gestão política; e pelo outro lado, práticas e decisões que colocavam a política
ainda “mais longe”, tirando do Estado para dar ao mercado
415
. Aqui, evidenciou-se outra
fase do conceito, na qual a sociedade civil ficou presa na ilusão de que o mercado
ofereceria participação e controle, quando, na realidade, erosionou ainda mais a vida
social.
Tomaremos três temas que se incorporaram às plataformas programáticas da
esquerda uruguaia: a sociedade do conhecimento, como novo paradigma oriundo da
revolução tecnológica; a concepção de inovação, ciência e tecnologia, a partir de um
novo enfoque propiciado pelo anterior; e o ambientalismo, como discurso generalizado
dentro do espectro político nacional, utilizado por todos os atores políticos. Essas três
temáticas trouxeram vastas discussões e inúmeras matérias jornalísticas no âmbito
nacional, mas também foram alvo de várias teorizações por parte de alguns intelectuais
da esquerda.
413
Denunciavam-se problemas e se reagia ante o que se considerava injusto, mas, na maioria dos casos,
terminava-se transferindo a responsabilidade pelas soluções ao Estado. Dessa forma, foi observado em
muitos casos como nos movimentos de bairros onde se exigiam instâncias de co-participação para a
identificação de problemas e seu respectivo manejo, esperou-se que o governo nacional, estadual ou
municipal os solucionasse. Existiram poucos exemplos de ação direta, independente e auto-gestionada.
414
Idem, p. 18.
415
FRANZÉ, Javier. La Sociedad Civil Frente a la Crisis de la Política. Buenos Aires: Nueva Sociedad,
1994, p. 102.
269
A sociedade do conhecimento tem sua base fundacional na revolução
tecnológica que se constituiu como um novo paradigma sobre os pressupostos do
domínio da informação – que a microeletrônica possibilita – e no vínculo imediato entre
a ciência e sua expressão como técnica. Num fluxo dominado pela inovação
incessante, a atividade científica converteu-se numa das primeiras formas produtivas.
Portanto, os novos produtos da atividade científica se constituiriam como verdadeiros
tesouros em matéria de informação estratégica.
A informação e o conhecimento sempre foram elementos cruciais no crescimento
da economia e a evolução da tecnologia determinou, em grande parte, a capacidade
produtiva da sociedade e os padrões de vida, bem como formas sociais de organização
econômica. Mas, como afirmou Castells (2000), “[...] estamos testemunhando um ponto
de descontinuidade história. A emergência de um novo paradigma tecnológico
organizado em torno de novas tecnologias da informação, mais flexíveis e poderosas,
possibilita que a própria informação se torne produto do processo produtivo”
416
.
O processo de domínio técnico tem seu foco na informação. Os fluxos de
informação são acumulados, tratados e transmitidos, principalmente através da nova
base técnica que a microeletrônica oferece. Enrique Rubio (1999) analisou esses
processos visando à interpretação da sociedade do conhecimento e os novos desafios
que se apresentavam para a esquerda. A pergunta-chave para essa interpretação era:
qual é o significado real de um paradigma centrado no domínio da informação? Como
resposta, identificamos três elementos de destaque.
Em primeiro lugar, significa que uma boa parte dos aspectos informacionais
constitutivos das relações do homem com a natureza e do homem com o homem
podem ser substituídos, no processo de produção, pela administração computacional e
que tal característica – como a energia em paradigmas anteriores – passa a ser o eixo
da revolução técnica contemporânea. Em segundo lugar, implica que o domínio da
informação constitui-se num fator relevante em todas as áreas; de fato, a
microeletrônica e a informática permitem processar informações, as telecomunicações
transmitem informação, a automação se funda na programação de instruções e
416
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: a era da informação, economia, sociedade e cultura.
Vol.1, 4º ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 87.
270
mensagens, e a biotecnologia dispõe de decodificação dos códigos biológicos para
operar sua reprogramação. Em terceiro lugar, assinala que a revolução técnica funda-
se num fator com novas propriedades. Efetivamente, as propriedades da informação,
como valor de uso, resultam muito particulares, visto que, em princípio, a mesma não
se esgota no seu consumo, é relativamente intangível, armazenável e não perecível, e
pode incorporar-se com facilidade a outros bens
417
.
Entre as características do novo paradigma, em relação com os processos de
produção e possibilitadas pelo domínio da informação, cabe destacar o
desenvolvimento da “integração” e da “flexibilidade” em todos os terrenos. Na planta de
produção, esse aspecto se manifesta num novo modelo integrado do processo
produtivo, na inteligência distribuída, na introdução de bens e serviços intensivos em
informação. No vínculo com provedores e consumidores, a “integração” e a
“flexibilização” se aprofundam na adaptação à demanda produtiva ou final.
Com a mudança de paradigma, aprofundou-se a divisão do trabalho
418
e, com
ela, a sua “integração”. Essa integração pode manifestar-se como automação e também
como um aparente enfraquecimento da divisão entre trabalho manual e intelectual, ao
reduzir-se a incidência do primeiro e tornar-se mais diretamente produtivo o segundo.
Todos esses processos transformaram as estruturas empresariais e os sistemas de
produção, conseqüentemente modificando as relações de trabalho e adaptando-as as
novas necessidades da globalização, como “novo” detentor dos processos de
acumulação de capital.
O aumento da flexibilidade, qualidade e produtividade no sistema produtivo,
como elementos da nova ordem capitalista de produção, sendo o discurso
predominante que caracteriza e lidera a ideologia da pós-modernidade no âmbito
mercadológico, são as faces claras de políticas ditadas pelas lideranças do capitalismo
globalizado, principalmente o FMI e o Banco Mundial. Essa situação de mercado que
417
RUBIO, Enrique. La Izquierda del Futuro. Montevideo: Marcha, 1999, p. 106-107.
418
Como apontou Chesnais (1996): “Nesse contexto é que deve ser situada a implementação, pelos
grupos industriais (tanto os do setor manufatureiro quanto os das grandes atividades de serviços), das
oportunidades proporcionadas pelas novas tecnologias informacionais aplicadas à produção industrial e
às atividades de gestão e finanças. Beneficiando-se, simultaneamente, do novo quadro neoliberal e da
programação por microcomputadores, os grupos puderam reorganizar as modalidades de sua
internacionalização e também modificar profundamente suas relações com a classe operária,
particularmente no setor industrial”. CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo:
Xamã, 1996, p. 34.
271
encontramos hoje no Uruguai é comum aos países da América Latina como um todo,
com alguns ajustes regionais, mas igual no processo de reestruturação político-
econômica.
Por outra parte, em forma conjunta, as novas tecnologias e as novas formas de
organização do trabalho permitiram o aumento substancial da produtividade que, como
resultado imediato, incrementaram o aumento da crescente dispensa de mão-de-obra.
Assim, o aumento da produtividade não tem levado a um aumento do emprego capaz
de absorver uma boa parte da mão-de-obra que se excluiu do sistema produtivo. Dessa
maneira, o sistema cria mecanismos de exclusão social, que ou tornarão exclusão
estrutural
419
.
Na análise de Maar (2003), o conceito de “modo de produção” entrou em desuso
quando as políticas social-democratas conservadoras avançaram, “[...] vinculando a
mudança de sentido em prol do bem-comum a concepções continuístas da prática
política, ao ocultarem a determinação social – o ‘modo’ – subjacente às suas
reformas”
420
. Assim, generalizaram-se perspectivas de valorização capitalista do
trabalho, impedindo a autodeterminação apreendida no contexto de um trabalhador
coletivo pelo prisma da crítica ao capital
421
.
419
Observa-se que, como resultado de uma lógica de acumulação capitalista, de mundialização dos
mercados, de mudanças nas formas de concorrência e cooperação interempresarial, encontramos alguns
dos elementos marcantes das transformações estruturais que embasam a globalização econômica. Um
mercado de trabalho extremamente heterogêneo, onde qualidade e produtividade são fatores de
competitividade, o desemprego estrutural e as variantes de um mercado mutante e excludente fazem
parte da composição deste mundo do trabalho.
420
MAAR, Wolfgang Leo. Por Uma Nova Cultura Política. In: Margem Esquerda: ensaios marxistas.
São Paulo: Boitempo, n. 1, 2003, p. 56.
421
Dessa forma, o bem-comum é socialmente determinado e não é uma meta independente do processo
pelo qual se instaura. Maar afirma que “modo” deve ser apreendido nos termos de modo de produção,
“[...] que impõe uma determinação social ao processo de reprodução material dos homens em sociedade,
de maneira que se alienam, ou não, da sua autodeterminação”. Assim, concluiu Maar, a democracia
participativa constitui-se como um elemento essencial deste novo modo de política. Idem, p 57.
272
Intensificam-se as transformações no processo produtivo, através do avanço
tecnológico, da constituição das formas de acumulação flexível e dos modelos
alternativos do taylorismo/fordismo, onde se destaca, de forma especial, o toyotismo
422
.
Essas transformações decorrentes da concorrência intercapitalista visam a controlar o
movimento dos trabalhadores e, por conseguinte, a luta de classes
423
. Basicamente, a
forma de produção flexibilizada procura a adesão dos trabalhadores, que devem
aceitar, na íntegra, os projetos do capital.
Segundo Antunes (2000), o toyotismo substitui o padrão fordista dominante, em
várias partes do capitalismo globalizado. Os direitos do trabalho são
desregulamentados, são flexibilizados de modo a dotar o capital do instrumental
necessário para poder adequar-se a uma nova fase de produção. “Direitos e conquistas
históricas dos trabalhadores são substituídos e eliminados do mundo da produção”.
Diminui-se o despotismo taylorista através da participação dentro do universo da
422
O Taylorismo é um sistema de organização do trabalho, especificamente industrial, que tem como
base a separação das funções de planejamento e execução, na fragmentação e na especialização das
tarefas, no controle de tempos e movimentos e na remuneração por desempenho. Consiste numa
estratégia patronal de gestão e organização do processo de trabalho, e, conjuntamente com o fordismo,
estruturaram a organização científica do trabalho. Esta concepção conjugou a utilização intensiva da
maquinaria, o controle e a disciplina na fábrica, visando à eliminação da autonomia dos produtores
diretos e do tempo ocioso, como forma de assegurar aumentos na produtividade do trabalho. Estes
princípios de racionalização produtivista foram desenvolvidos pelo engenheiro norte-americano F. W.
Taylor (1856-1915); posteriormente, Henry Ford (1863-1947) os aperfeiçoou. Desde a década de 1930
até a década de 1970, este foi o modelo organizacional do trabalho predominante. A partir de 1973, a
crise estrutural do capitalismo, gerada pela crise do padrão de acumulação taylorista/fordista, fez com
que o capital mergulhasse num processo de reestruturação. Nesse momento, instaura-se uma corrida,
entre os países considerados superpotências, pela acumulação de capital e a competitividade passa a
ser o elemento mais importante. Para conseguir competir, então, nos grandes mercados, a Toyota
japonesa precisaria modificar e simplificar o sistema da empresa americana Ford. Na procura de
soluções para esse encaminhamento, iniciaram um processo de desenvolvimento de mudanças na
produção. Introduziram técnicas em que fosse possível alterar as máquinas rapidamente durante a
produção, para ampliar a oferta e a variedade de produtos, pois, para eles, era onde se concentrava a
maior fonte de lucro. Obtiveram excelentes resultados com essa idéia e ela passou a ser a essência do
modelo japonês de produção. Nesse contexto, assistimos a uma nova fase de exploração da mão-de-
obra, a chamada acumulação flexível – a partir do modelo de produção criado pelos japoneses, toyotismo
– e, junto com ela, a degradação das condições de trabalho, dos direitos trabalhistas e,
conseqüentemente, dos trabalhadores.
423
É importante observar o comentário a este respeito realizado por Carreras (1994), como exemplo do
que a intelectualidade uruguaia opinava sobre o tema: “A dinâmica pela qual o Estado assumiu a função
de assegurar o mercado de trabalho dissolveu as classes sociais no capitalismo, de maneira que nos
encontramos ante o fenômeno de um capitalismo sem classes, mas com todos os problemas da
desigualdade social”. CARRERAS, Sandra. La Izquierda Hacia el Siglo XXI: de la desesperación de la
duda a la incertidumbre como programa. In: La Vigência de las Propuestas Socialistas: aportes a la
discusión. Montevideo: Fesur, 1994, p. 45.
273
empresa, através do envolvimento manipulado dos trabalhadores pelo novo modelo do
capital
424
.
No caso dos Estados Unidos, analisado por Emir Sader (2003), pode-se observar
que a grande elevação da superexploração dos trabalhadores, combinada com uma
importante renovação tecnológica na qual a informática teve um papel essencial, foram
os impulsores do novo ciclo de acumulação e expansão do capital. Como observou
Sader: “Durante os cinco mandatos seguidos, completando duas décadas – dois
governos Reagan, governo Bush pai, dois governos Clinton –, os trabalhadores
perderam direitos, em grande medida pela generalização da chamada ‘flexibilização
laboral’, eufemismo que camufla a superexploração, acelerando a rotatividade de mão-
de-obra num país que já contava com pouca proteção social para a força de
trabalho”
425
.
Existe uma tendência à desclassização da injustiça social, que se manifesta
claramente na distribuição do desemprego. Por um lado, existe uma grande corrente de
desempregados que se encontram temporariamente nessa situação por períodos mais
ou menos longos. Por outro, o percentual de quem tem perdido definitivamente seu
trabalho, ou daqueles que nunca puderam ascender a ele, aumenta constantemente.
Assim, também aumentam as “zonas cinzas” entre o desemprego registrado e o não
registrado, e entre a ocupação e a subocupação.
424
ANTUNES, Ricardo. Adeus Ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do
Mundo do Trabalho. São Paulo: 7ª ed., Cortez, 2000, p. 24.
425
Sader apontava para outro fenômeno que se caracterizava como um fato fragilizante: a intensificação
do ingresso crescente de força de trabalho imigrante, que, no geral, era contratada de forma ilegal,
tornando-se, portanto, mais vulnerável à superexploração, por não se poder sindicalizar e por conviver
permanentemente com o risco da extradição. SADER, Emir. A Vingança da História. São Paulo:
Boitempo, 2003, p. 73.
274
Tudo isso significa que, na situação de desemprego, coincidem os temporais, os
permanentes e as formas mistas. Entre eles já não existem características biográficas
nem contextos de classe comuns. A agudização das desigualdades sociais coincide
com a individualização. Desse modo, os problemas sistemáticos são atribuídos ao
fracasso pessoal e, assim, despolitizados. Registra-se uma nova imediatez do indivíduo
e da sociedade, no sentido de que as crises sociais aparecem como individuais
426
e que
seu caráter social não é apreciado, ou só aparece em forma muito mediatizada. Essa
também é uma conseqüência da nova ordem mundial do capitalismo.
Conforme os dados apresentados por Sader, a América Latina passou a viver a
pior crise de desemprego, iniciada em 1995, ano da crise mexicana: “Chegando a cerca
de 10%, para um total de 18 milhões de pessoas. Na Argentina, o desemprego passou
de 7,5%, em 1990, para 21,5%, no começo de 2002. Quarenta e cinco por cento da
população – 45 milhões de pessoas – não tinham emprego decente em 1990,
porcentagem que subiu para 50,5%, isto é, para 53 milhões de habitantes. De cada dez
empregos criados nesse período, sete estão no setor informal, no qual apenas dois de
cada dez empregados têm acesso a benefícios sociais”
427
.
No caso particular do Uruguai, a situação da pobreza no país, em 1995, foi
analisada por Walter Cancela, num estudo em que, a partir de indicadores
convencionais, tais como linha de pobreza, necessidades básicas não satisfeitas e das
informações oriundas da atualização do censo de 1985, observando questões como o
número de integrantes por núcleo familiar, condições de abastecimento de água,
saneamento básico, alfabetização e educação, entre outras, evidenciaram que em
Montevidéu havia 22,3% de famílias com suas necessidades básicas não satisfeitas.
Essa situação, no interior do país, aumentava para 27,6%
428
.
426
O trabalho por conta própria, ao que a retórica neoliberal quer nos apresentar com o grandioso título
de micro-empreendimento, não é senão uma estratégia individual a qual apelam os desempregados,
provenientes de diversas classes, como estratégia de sobrevivência, ficando obrigados a assumir
pessoalmente todos os riscos e tendo que suportar a responsabilidade por um possível fracasso. A
conseqüência inevitável é aqui, também, a concorrência selvagem e a dissolução dos antigos laços de
solidariedade que haviam caracterizado a cultura operária de outros tempos. A respeito deste tema, veja-
se WEBER, Gaby; CAMPORA, David. Reflexiones conjuntas sobre la actual crisis civilizatória.
Montevideo: Trilce, 1992.
427
SADER, Emir. op, cit., p. 121.
428
CANCELA, Walter. La Situación de Pobreza en Uruguay. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n.
106, julho de 1995, p. 45.
275
O aumento das desigualdades e da pobreza que se registrou nas décadas de
1980 e 1990 ficou, em grande parte, como conseqüência da reestruturação das
economias nacionais na seqüência dos programas de ajuste estrutural, como começou
a ser admitido pelas próprias instituições internacionais que os impuseram. Conforme
Hespanha (2002), desde 1997 o discurso do Banco Mundial tem vindo a se tornar cada
vez mais “crítico” dos resultados de aplicação das políticas de ajuste estrutural,
designadamente do crescimento das desigualdades e da pobreza.
“No entanto, esse discurso não coloca em causa os fundamentos da agenda
econômica neoliberal, pouco contribuiu até agora para uma revisão séria da
situação”
429
. Da mesma forma, o FMI, embora instituído no argumento de que a
globalização abre vastas oportunidades para o desenvolvimento dos países pobres e
não representa uma ameaça, reconhece que “essas oportunidades não vão sem riscos,
que os riscos emergentes dos movimentos de capital voláteis, que os riscos da
degradação social, econômica e ambiental associados ao agravamento da pobreza e
das desigualdades”
430
.
A gravidade da situação conduziu a que o combate contra a pobreza faça parte
da agenda dessas instituições, mais numa perspectiva em que a pobreza foi
considerada um subproduto das políticas de reajuste e estas, um mal necessário. No
caso uruguaio, todas as instituições políticas partidárias incorporaram a suas
plataformas programáticas a questão do combate à pobreza como urgente. O problema
é que, no período de 1999 a 2003, a quantidade de pessoas em situação de pobreza
extrema aumentou substancialmente.
429
HESPANHA, Pedro. Mal-estar e Risco Social num Mundo Globalizado: Novos problemas e novos
desafios para a Teoria Social. In: A Globalização e as Ciências Sociais. SANTOS, de Sousa,
Boaventura (Org.) São Paulo: Cortez, 2002, p. 173.
430
Idem.
276
Tabela 4. Incidência da Pobreza Extrema no Uruguai – 1999-2003
(expresso em percentual)
Ano Montevidéu
(urbano)
Interior do país
(urbano)
Total
(urbano)
1999 1.1 1.3 2.4
2000 1.3 1.7 3
2001 1.1 1.5 2.6
2002 2.1 1.8 3.9
2003 3.3 2.2 5.5
Fonte: REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Instituto Nacional de Estadística. Estimaciones de
Pobreza por el Método del Ingreso. Imprenta Oficial, 2004, p. 13.
A Vertiente Artiguista, em 1998, no seu documento “Aportes Programáticos”,
desenvolveu um “Plano de Justiça Social e Qualidade de Vida”, onde definiu prioridades
para o combate à pobreza. Estas consistiam em:
a) Criar um Fundo Nacional para a infância;
b) Conseguir avanços significativos na implementação de uma Convenção
Internacional dos Direitos da Criança;
c) Expansão dos centros de ensino pré-escolar;
d) Instrumentar programas de alimentação;
e) Ampliar campanhas de medicina preventiva;
f) Desenvolver programas nacionais de atenção à Terceira Idade
431
.
De outra parte, no Plan de Emergencia 2000, realizado pelo Encontro
Progressista – Frente Ampla, afirmou-se: “Temos que deter o deterioramento do capital
humano [...] O Estado e toda a Sociedade, estamos moral e eticamente interpelados
ante a constatação de que há compatriotas com fome, que cresce a indigência entre
crianças e que se estende, de forma alarmante, a violência dos Direitos Humanos”
432
. O
plano emergencial envolvia medidas e estratégias de ação no âmbito econômico-
431
VERTIENTE ARTIGUISTA. Aportes Programáticos de la Vertiente Artiguista: el desarrollo
productivo y la modernización solidária. Montevideo: Vertiente Artiguista, 1998, p. 10.
432
ENCUENTRO PROGRESISTA-FRENTE AMPLIO. Plan de Emergencia 2000. p. 13.
277
financeiro do país, fundamentalmente nas áreas de exportações e de tributação fiscal, o
que lhe conferiu pouca “eficiência” no combate à fome.
Em 2002, o documento Marco da Nueva Mayoría expressava: “Contamos com
mais de um século de esforços e sacrifícios para avançar em direção a uma sociedade
na qual se superem as barreiras da pobreza e da exclusão social. [...] Porque, hoje,
compreendemos melhor que nunca a nossa sociedade, em toda a complexidade de sua
realidade e seus problemas, assim como a maioria dos uruguaios compreende e recebe
com expectativa nossa mensagem de esperança, progresso, solidariedade e paz”
433
.
Por sua vez, o Partido Socialista, em 2004, assumiu um discurso pouco
convencional dentro do contexto encuentrista-frenteamplista da época, definindo que
uma proposta socialista deveria priorizar os temas da infância e da pobreza como uma
questão ética, com base na igualdade e a liberdade. “Deve ser prioridade da ação
socialista atingir o acesso igualitário para resolver o tema da pobreza, e as políticas de
redistribuição de renda que busquem reduzir as desigualdades devem integrar a
proposta socialista”
434
.
Nesse sentido, Maar (2003) afirmou que a questão da fome é ética e política, e
não uma questão meramente técnica. O problema da fome coloca na ordem do dia uma
necessidade plenamente possível, real, e não ideal. “É a ética aqui e agora. A própria
realidade social gera seu referencial normativo”
435
. Conforme Maar, a ética não é
orientada por uma idealização de igualdade abstrata; ela se instala concretamente, a
partir da possível necessidade de suprimir a desigualdade, tecnicamente injustificável.
Assim, o ponto de partida é real, a fome realmente existente, e não a igualdade
abstrata. “A fome é a expressão da negatividade no processo de reprodução social
vigente. Aqui se encontra a vida, o maior de nossos ‘valores’, mas a vida sujeitada,
aviltada. Não é a vida bela, mas a vida avassalada pela dominação secular”
436
. Dessa
forma, o tratamento da questão da fome pelas políticas reformistas da social-
democracia uruguaia são meramente paliativas, visto que, por um lado, distinguem o
433
NUEVAS MAYORÍAS. Documento Marco. 2002, p. 3.
434
PARTIDO SOCIALISTA. Perspectivas acerca de la Democracia sobre Nuevas Bases, el gobierno
progresista y el socialismo en el Uruguay. Montevideo: Partido Socialista, mimeo, 2004, p. 8.
435
MAAR, Wolfgang Leo. op. cit., p. 60.
436
Idem, p. 61.
278
social e, do outro, não refletem sobre os modos de produção. Seus objetivos focam-se
em acabar com a existência de famintos, não de acabar com a fome.
Independentemente dos discursos, a esquerda eleitoral uruguaia careceu de
uma estratégia que possibilitasse a implementação de políticas públicas para o
combate à fome. A incorporação de novos paradigmas parece haver obscurecido a
visão crítica de uma esquerda que, tradicionalmente, sustentou posturas e propostas
claras para as problemáticas sociais mais urgentes. Esses novos paradigmas
contribuíram para a “substituição” de conceitos e problemas a eles atrelados em nome
da atualização ideológica.
Assim, a defesa dos vários “benefícios” apontados pela sociedade do
conhecimento sob o paradigma da “sociedade tecnológica” adquiriu status de verdade
indiscutível em si, sendo que os avanços tecnológicos pouco interferiram na base social
das desigualdades crônicas que, de fato, permanecem intocadas. Como conseqüência,
pode-se observar que mesmo o impacto potencialmente benéfico dos próprios fatores
tecnológicos foi anulado pelas determinações da ordem social dominante.
Por outro lado, tornou-se moda falar sobre a ascensão da “sociedade
tecnológica”, concebida como um tipo totalmente novo de “sociedade humana”, na qual
fatores como a ciência e a tecnologia ditam as formas dominantes de pensamento e
moldam cada vez mais quase todos os aspectos de nossa vida cotidiana. Como afirmou
Mészáros (2004): “Desta maneira, a imagem da tecnologia como o agente todo-
poderoso e independente que interfere com a ordem estabelecida e seus valores foi
pintada com alguma apreensão: como a tecnologia molda cada vez mais quase todos
os domínios de nossas vidas cotidianas, ela poderia transformar ou destruir os
fundamentos sociais de nossos valores humanos mais prezados”
437
.
Mészáros avançou nesse tema e afirmou que não pode haver um “tipo
totalmente novo de sociedade”, criado pelo mecanismo pretensamente incontrolável e
autopropulsionado das descobertas científicas e dos desenvolvimentos tecnológicos,
porque, na verdade, a ciência e a tecnologia estão sempre profundamente inseridas
nas estruturas e determinações sociais de sua época. Conseqüentemente, não são
nem mais “impessoais e não-ideológicas”, nem mais ameaçadoras do que qualquer
437
MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 262.
279
outra prática produtiva importante da sociedade em questão. “A idéia de que a ciência
segue um curso de desenvolvimento independente, de que as aplicações tecnológicas
nascem e se impõem sobre a sociedade com uma exigência férrea, é uma simplificação
demasiadamente grosseira com objetivos ideológicos”
438
.
A questão levantada por Mészáros apresenta-se de forma dupla. Por um lado,
consiste em perguntar que tipos de desenvolvimentos sociais – em sua interação
dialética com as práticas científicas e tecnológicas correspondentes – foram
responsáveis pela criação do atual relacionamento entre a sociedade, a ciência e a
tecnologia, que causa nas pessoas a mais profunda preocupação quanto as suas
conseqüências fundamentais para a própria sobrevivência da humanidade. E, por outro
lado, deve-se também perguntar como é possível reverter a tendência perigosamente
crescente da falta de controle e da forma de manter a totalidade das práticas sociais, ou
seja, não exclusivamente, mas inclusive a ciência e a tecnologia sob um controle social
plenamente adequado?
Para o autor, o dilema da ciência moderna é que seu desenvolvimento esteve
sempre ligado ao dinamismo contraditório do próprio capital. “Além disso, a
impossibilidade de separar a ciência e a tecnologia modernas deste perverso
dinamismo está destinada a permanecer conosco enquanto não for realizada uma
tentativa consciente e socialmente viável para produzir e manter a necessária
separação”
439
. Desse modo, por mais popular que seja a ficção do desenvolvimento
científico imanente, a ciência moderna não pode deixar de se orientar para a
implementação mais eficaz possível dos imperativos objetivos que definem a natureza e
os limites inerentes do capital, assim como seu modo necessário de funcionamento nas
mais variadas circunstâncias.
Na opinião de Dubiel (1994), as questões éticas não foram incorporadas às
discussões sobre a sociedade da tecnologia. Os partidários do desenvolvimento livre
comportaram-se de forma conservadora ante o progresso tecnológico. Defenderam o
desenvolvimento livre da tecnologia, separando-a dos princípios culturais e éticos.
Contra isso, lutaram os partidários da autolimitação, que defendiam uma restrição do
438
Idem.
439
Idem, p. 267.
280
desenvolvimento tecnológico. Os sistemas tecnológicos “não dispõem de regras de
detenção” internas; portanto, a presença de censores democráticos deve exigir a
introdução de pontos de vista éticos e ecológicos na sua racionalidade
440
.
Por outra parte, a temática referida à inovação, ciência e tecnologia oportunizou,
a partir da década de 1990, um crescimento de recursos, destinados à pesquisa e
desenvolvimento, substanciais, principalmente naquelas áreas do conhecimento
“técnicas”. A investigação científica e técnica adquiriu um valor estratégico, tanto para
governos como para o setor privado. As grandes empresas, em particular as
transnacionais, não só dedicaram uma boa parte de seus orçamentos à pesquisa,
senão que também realizaram empreendimentos conjuntos entre elas, com as
universidades e com outras instituições públicas e privadas.
O aumento do investimento privado foi estabilizando a ação do Estado no
desenvolvimento da pesquisa científica. A estabilidade refere-se àquelas áreas de
pouco interesse para o setor privado (principalmente as ciências humanas, entre outras)
e o grande foco dos investimentos situou-se nas áreas prioritárias para os setores
produtivos (áreas tecnológicas). De forma paralela aos investimentos, tomou
importância a idéia de que é imprescindível, para desenvolver um país, alentar o
potencial científico e tecnológico nacional.
Em tal perspectiva, a competitividade não seria só um problema das empresas,
senão principalmente uma questão das economias como tais. De acordo com essa
visão estratégica, as políticas públicas em Ciência e Tecnologia e Inovação deveriam
tomar novos impulsos. A hierarquia que foi outorgada aos investimentos em pesquisa e
desenvolvimento e seus impactos produtivos foram dando forma a novos enfoques
político-estratégicos.
Um desses enfoques insistiu na necessidade de se implementar um Sistema
Nacional de Inovação capaz de endogenizar o avanço técnico. Assim, para adquirir
capacidade tecnológica, todo país necessitaria contar com um sistema institucional que
promovesse a inovação técnica e que, para esses efeitos, coordenasse os centros de
pesquisa e desenvolvimento de todos os atores vinculados com esta questão. Nesta
440
DUBIEL, Helmut. ¿Qué es ser de izquierda, por favor? In: Cuadernos del CLAEH. Montevideo: ano
19, 1994, p. 85.
281
perspectiva, Rodrigo Arocena (1994) manifestou que a tarefa fundamental do Estado
era impulsionar a formação de um Sistema Nacional de Inovação, em matéria de
ciência, tecnologia e desenvolvimento
441
.
Por sua vez, Rubio (1999) afirmava que a coincidência crescente quanto à
necessidade de hierarquizar os investimentos em ciência e tecnologia e a construção
de condições para a inovação constituiu um avanço da “sociedade do conhecimento”
442
.
Resultou na época – e continua resultando – muito atrativa a idéia de desenvolver
processos de inovação tecnológica. Rubio alertou para as dificuldades em países
pobres, como o Uruguai: “É necessário colocar os esforços, de forma seletiva, nos
processos de acumulação própria de conhecimentos científicos, de desenvolvimento
tecnológico e de incorporação aos processos produtivos, harmonizando estes esforços
com a cooperação internacional”
443
.
Numa época em que a riqueza é atribuída essencialmente ao valor agregado dos
produtos, resultado das tecnologias de ponta e da pesquisa científica – e não mais dos
recursos naturais, como a terra ou o preço da mão-de-obra –, a emergente sociedade
do conhecimento dá uma importância nunca vista à educação permanente e à venda do
conhecimento, considerado a mercadoria mais valiosa. Essa revolução tecnológica e de
gerenciamento foi monopolizada por um projeto ideológico neoconservador que,
capitalizando o colapso do socialismo real, se apresenta como modelo único, sem
alternativas viáveis, ou como o fim da história.
Assim, a crescente concentração de conhecimento no Norte traz para o Sul –
estenda-se para países desenvolvidos e subdesenvolvidos – uma alarmante situação: a
despesa pública por habitante com pesquisa e desenvolvimento no mundo
desenvolvido era de US$ 171, em 1980, tendo aumentado para US$ 355, em 1990. No
mundo subdesenvolvido, a mesma despesa era de US$ 4, em 1980, e só aumentou
441
AROCENA, Rodrigo. Ciencia, tecnologia y nuevas estrategias para el desarrollo. Montevideo:
Trilce, 1994, p. 19.
442
Rubio, Enrique. op. cit., p. 130.
443
Idem.
282
para US$ 4,5, em 1990. Na América Latina, a cifra se reduziu de US$ 10, em 1980,
para US$ 6, em 1990
444
.
Em 1998, a Vertiente Artiguista enunciava que, como proposta de modernização
de caráter progressista e solidária, resultava a necessidade de desenvolver uma
“ofensiva enérgica” desde o Governo, para a atenção aos problemas do
desenvolvimento científico e tecnológico do país. “Devemos assumir como prioridade o
desenvolvimento ao máximo das possibilidades de pesquisa e a utilização social e
produtiva de seus frutos. Para isso, é prioritário alocar mais recursos, visto que o país
encontra-se abaixo da média Latino-Americana em gasto em ciência e tecnologia (0,5%
do PBI), e muito longe do nível dos países mais avançados, que superam os 2%”
445
.
A estratégia proposta tinha como base o aumento de recursos econômicos com
uma “adequada” racionalização dos mesmos e, para sua aplicação, a necessidade de
uma coordenação entre o Ministério de Ciência e Tecnologia, a Universidade e os
empreendimentos da “sociedade civil”. Não se definiu nenhuma política pública
concreta para o combate à pobreza, nem no documento da Vertente, nem nos
documentos da época do Encontro Progressista – Frente Ampla. Por sua vez, as
contradições no discurso eram prática cotidiana. A Vertente afirmava, no mesmo
documento: “As políticas econômicas não esgotam nem os instrumentos, nem as
medidas para possibilitar um desenvolvimento dinâmico, eqüitativo e sustentável”
446
.
Dessa forma, se via como imprescindível a articulação de políticas econômicas com
políticas sociais convergentes, que eram inexistentes nas suas propostas.
Também a partir de 1998, as discussões sobre ciência e tecnologia começaram
a sair das temáticas pontuais e voltaram-se, mesmo que lentamente, para a
necessidade de formular políticas públicas que atendessem o desenvolvimento
nacional, fundamentalmente a partir de um discurso de defesa do desenvolvimento
científico e tecnológico uruguaio. O fator que dificultou esse processo foi a fuga de
“talentos”, que ocorreu de forma ininterrupta durante toda a década de 1990.
444
LÓPEZ, Segrera Francisco. Alternativas para América Latina às Vésperas do Século XXI. In: A Crise
dos Paradigmas em Ciências Sociais e os Desafios para o Século XXI. Rio de janeiro: Contraponto,
2000, p. 253.
445
VERTIENTE ARTIGUISTA, op. cit., p. 18.
446
Idem.
283
Julio Varela, destacado colunista de Cuadernos de Marcha, em 1999 iniciou uma
série de publicações focando temas de ciência e tecnologia. Os artigos denunciavam a
fragilidade tecnológica nacional de forma geral e, particularmente, para abrir uma
polêmica sobre bioética. As discussões foram profícuas e a iniciativa de Varela gerou,
principalmente nos meios acadêmicos, a necessidade de observar os temas associados
à bioética como “indispensáveis” e “impostergáveis” para todas as políticas de
desenvolvimento tecnológico no país
447
.
Desde finais de 1999, desatou-se uma intensa polêmica a propósito da formação
do Fondo Nacional de Investigadores – FNI, um instrumento criado para fortalecer a
pesquisa científica no país. O FNI, sob a responsabilidade do Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Tecnológicas – Conicyt (o CNPq uruguaio), dependente do
Ministério da Educação, distribuiu, para o ano de 2000, um milhão de dólares, na forma
de bolsas de pesquisa, entre 153 investigadores
448
. Essas bolsas outorgaram-se como
adicional no salário dos pesquisadores
449
.
A criação do FNI representou, mesmo que de forma tardia, uma relevante
significação para o desenvolvimento científico do país, visto que, a partir dele, iniciou-se
oficialmente o incentivo à pesquisa
450
. Deve-se observar uma particularidade: as bolsas
de pesquisa oferecidas tinham a possibilidade de enquadramento em duas
modalidades: a) projetos de pesquisa “imediatos” ou de “curto prazo”, isso é, inferiores
em um prazo de 40 anos; e b) projetos a “longo prazo”, ou seja, investigações que se
propunham pesquisar por mais de 40 anos.
As discussões no FNI circularam em volta das áreas prioritárias (que acabaram
tendo as mesmas definições que no Brasil, ou seja, as áreas tecnológicas voltadas ao
mercado), à atualização e dinamização das políticas em ciência e tecnologia e o tema
da democratização destas políticas. Segundo Gudynas: “Parece revelar-se tensões
447
Sobre esses assuntos ver VARELA, Julio. La Fragilidad Tecnológica. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 148, março de 1999, p. 40-43. e Bioética, una asignatura pendiente. In: Cuadernos de
Marcha. Montevideo: n. 149, abril de 1999, p. 50-52.
448
GUDYNAS, Eduardo. Políticas Científicas y Democratización de la Ciência. In: Cuadernos de
Marcha. Montevideo: n. 158, janeiro de 2000, p. 29.
449
Diferente do sistema brasileiro, no Uruguai as bolsas de pesquisa não contemplam modalidades como
a Iniciação Científica, ou seja, o dinheiro é pago aos pesquisadores. Os alunos de graduação,
participantes como bolsistas nessa modalidade, o fazem sem qualquer remuneração.
450
Até esse momento, também os pesquisadores eram honorários. Os recursos financeiros destinados à
pesquisa cobriam somente os equipamentos e materiais de consumo.
284
dentro da comunidade científica nacional, onde confluem tanto as prioridades relativas
que se designam a algumas áreas de investigação sobre as outras”
451
.
No transcurso dos anos 2000 e 2001, intensificaram-se a variedade e a
quantidade de artigos publicados a esse respeito. Eles continuaram a referir-se a
temáticas específicas: Cláudio Martínez (2000), Encefalopatias Espongiformes; do
mesmo autor (2000), Biotecnologia: Los nuevos aticáncer e La fundación de la moderna
tecnologia de la información (2001); Enrique Lessa (2001), Sistemas sociales animales;
Atílio Deana (2001), El calentamiento global del medio ambiente. Todos esses trabalhos
foram publicados em Cuadernos de Marcha e tiveram uma ampla cobertura por outros
meios de comunicação.
A particular crise de conjuntura que atravessou o Uruguai no início da década de
2000 colocou novamente em discussão o tema a respeito de sobre que bases e com
que instrumentos devia realizar-se uma estratégia de desenvolvimento em médio e
longo prazos. As bases do modelo de desenvolvimento, até esse momento, eram a
indústria agro-exportadora, liderada pela carne e o reflorestamento; os serviços com o
turismo, como atividade principal; e um sistema financeiro sólido e estável, receptor de
um importante fluxo de capital internacional, que foram gradativamente colocados em
risco pelas dimensões da crise.
Ante a iminente necessidade de recuperar os níveis de exportações e de
crescimento econômico, as estratégias voltaram-se sobre aqueles setores que
ofereciam vantagens competitivas no mercado internacional, capazes de se
constituírem em novas bases para o desenvolvimento. Dessa forma, observou-se o
crescimento de um setor não tradicional, como o software, e as novas tecnologias,
vistas como uma imperiosa possibilidade de desenvolvimento. Assim, a partir da
experiência dos países mais desenvolvidos, parece claro que a transição em direção à
Sociedade da Informação e o Conhecimento requer um importante investimento em
infra-estrutura física e de recursos humanos, imprescindíveis para o desenvolvimento
de novas tecnologias. Esses aspectos não foram atendidos pelas políticas de inovação,
451
GUDYNAS, Eduardo. Políticas Científicas y Democratización de la Ciência. In: Cuadernos de
Marcha. Montevideo: n. 158, janeiro de 2000, p. 33.
285
ciência e tecnologia no Uruguai e a iniciativa ficou em mãos de setores exclusivamente
privados.
Conforme Illa (2002), os desafios desse tipo de desenvolvimento passam
também pela geração do que se denominou “infra-estrutura institucional”, para que o
Estado pudesse adequar-se a esta nova realidade. Nessa linha, o Estado enfrentaria a
necessidade de aumentar sua capacidade reguladora e fiscalizadora, para o que se
tornaria imprescindível a formulação de políticas públicas neste sentido. “Estas políticas
deveriam, por um lado, consertar os efeitos adversos das reformas estruturais, ou seja,
melhorar os marcos e entes reguladores no campo das privatizações, e pelo outro,
desenvolver políticas adotando princípios, legislação e instituições orientadas a um
acesso democrático das novas tecnologias”
452
.
Na concepção de Bértola (2004), o Uruguai teve um escasso desempenho de
desenvolvimento tecnológico, devido a um fraco crescimento científico e tecnológico e a
uma reduzida capacidade de inovação. “Isso determinou a capacidade do Uruguai de
superar sua forte dependência dos recursos naturais para apoiar sua inserção
internacional”
453
. O autor se pergunta por que para o país foi tão difícil reconhecer o que
outros países reconheceram com êxito: que nas mudanças tecnológicas e na inovação
reside a chave do “êxito”. Observe-se que, ainda em 2004, focava-se essa temática
como chave para o desenvolvimento e se reclamava aos parlamentares que
aprovassem uma legislação sobre ciência e tecnologia, como forma de contribuir e
orientar o desenvolvimento nacional.
Para Bértola, a necessidade de possuir um potente setor de investigação
científica seria relevante, mas o que se considera fundamental era a aposta em uma
complementaridade entre estes esforços e as diversas políticas orientadas à inovação
na produção e no consumo de bens, serviços e conhecimento nas mais variadas
esferas da atividade pública e privada. “Esta é a ênfase da inovação, que deve estar
orientada à incorporação do conhecimento científico e técnico para aumentar a
452
ILLA, Martín Rivero. La Crisis como Oportunidad de Transformación: desarrollo y nuevas tecnologias
en Uruguay. In: Informe de Coyuntura. Montevideo: Banda Oriental, v. 3, 2002, p. 95.
453
BÉRTOLA, Luis. Coyuntura, Innovación y Desarrollo. In: Informe de Coyuntura. Montevideo: v. 5,
2004, p. 63.
286
produtividade e competitividade da produção nacional”
454
. As propostas do Encontro
Progressista – Frente Ampla encontram-se direcionadas nesse sentido.
Desde outra perspectiva, Leon (2004) expressava que as relações que se
constroem entre crescimento econômico, maturação gradativa das forças produtivas
endógenas de uma sociedade e transformações de um país em mobilizador e receptor
de investimentos – isto é, entre desenvolvimento econômico – e redistribuição de renda
(redução das desigualdades e eliminação da pobreza), tanto através das políticas
sociais como também pela própria capacidade de uma economia para a criação de
empregos – de qualidade –, é absolutamente essencial para definir o tipo de
desenvolvimento adotado.
Leon afirmou que o Uruguai poderia ter êxito na sua inserção regional e
internacional se o conjunto de suas estratégias de desenvolvimento econômico,
políticas macroeconômicas e estratégias de desenvolvimento social conjugasse
sistematicamente, [...] durante a próxima década e meia (2004-2020), melhorias
crescentes e sustentáveis de acesso ao emprego de qualidade, melhorias na
qualificação dos recursos humanos (nas áreas de ciência e tecnologia), redução das
desigualdades e da pobreza, conjuntamente com aumento substancial da
produtividade
455
.
Assim, inovação, ciência e tecnologia, no discurso da esquerda progressista
uruguaia, implicaram numa nova estratégia de desenvolvimento. No momento em que a
“atualização ideológica” iniciada na década de 1990 abandonou os pressupostos da
esquerda tradicional, e junto com eles todas as propostas do pensamento sesentista,
incorporou um discurso “substitutivo”, no qual o conceito de desenvolvimento – agora
adjetivado – passou a ser a aparente solução para os problemas sociais; desta forma, o
responsável por esses problemas transformou-se na solução deles.
O problema centra-se em que existe um uso indiscriminado do conceito de
desenvolvimento sustentável, utilizado no “período progressista” por todos os atores
políticos, independentemente de partidos ou setores. Dessa forma, pode-se observar
que sua utilização remete a duas questões essenciais que ficam ocultas no próprio
454
Idem, p. 65.
455
LEON, de Eduardo. Apuntes para un balance de las políticas sociales en el Uruguay. Montevideo:
Fesur, 2004, p. 19.
287
conceito. Por um lado, uma tendência a ser associado com o meio ambiente, o que o
torna restrito e apolítico, e, por outro lado, não define o que realmente se pretende que
seja “sustentável”, nem de que forma isso será feito.
Da mesma forma, observa-se que, no início da década de 1990, os movimentos
ambientalistas tomaram lugares de destaque no cenário político mundial. Como afirmou
Castells (2002), nos anos de 1990 80% dos norte-americanos e mais de dois terços dos
europeus consideravam-se ambientalistas
456
. Assim, candidatos e partidos dificilmente
conseguiram se eleger sem incluir fortemente a problemática ambiental nas suas
plataformas programáticas. Tanto governos como instituições dedicaram-se a
multiplicar programas de todo tipo para a proteção do meio ambiente.
Grandes empresas, incluindo as responsáveis pela grande emissão de
poluentes, passaram a incluir no seu discurso a questão do ambientalismo,
fundamentalmente naqueles lugares que representavam promissores mercados. Em
todo o mundo, a temática ambiental tomou grande vigor e, com ela, o conceito de
desenvolvimento sustentável como sinônimo de um novo modelo de desenvolvimento
possível, no qual se compatibilizaria o crescimento econômico com a preservação
ambiental.
Autores que sustentaram posições desde a esquerda, como no caso de Marta
Harnecker (2000), assumiram o conceito de desenvolvimento sustentável como
sinônimo de um desenvolvimento integral. A autora esclareceu que se opor ao
desenvolvimento ilimitado não significa opor-se a todo desenvolvimento, mas sim
“conceber modelos de desenvolvimento autenticamente humanos ou o que vários
autores denominam de desenvolvimento sustentável ou sociedade ecologicamente
sustentável”
457
. A pergunta aqui seria: qual pode ser um modelo viável de
desenvolvimento dentro do capitalismo?
O que deveria resultar evidente é que a maioria de nossos problemas ambientais
mais elementares ainda persistem, uma vez que seu tratamento implicaria numa
transformação substancial nos meios de produção e de consumo, bem como da
456
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade: a era da informação, economia, sociedade e cultura.
Vol. 2, 3
a
. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 141.
457
HARNECKER, Marta. Tornar Possível o Impossível: a esquerda no limiar do século XXI. São
Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 256.
288
organização social. Toda a estrutura social promovida pela globalização e o
neoliberalismo está sustentada no liberalismo econômico que, justamente, foi a causa
da depredação ambiental em nome do crescimento econômico, ou seja, o processo de
acumulação capitalista.
Em 1996, o ambientalista Denis Goulet, em entrevista a Cuadernos de Marcha,
definia claramente seu conceito de desenvolvimento: “Considerei sempre que o
desenvolvimento econômico é o meio, e o fim é o desenvolvimento humano. O que
acontece é que o meio foi tomado como fim em si mesmo, e se procura o crescimento
econômico mais acelerado, independentemente de sua contribuição, ou não, à melhoria
humana”
458
.
Por outra parte, os movimentos ambientalistas apresentaram, no início da
década de 1990, uma falsa alternativa que teve como ponto de sustentação Francis
Fukuyama
459
, com seu conhecido livro “O fim da História”, que no período colocou uma
especial atenção no papel político do ambientalismo com uma ligação “futura” com o
socialismo. O filósofo considerou que serão viáveis as opções ambientalistas que
consigam um diálogo com o liberalismo e previa que as idéias do socialismo
ressurgiriam sobre formas distintas as anteriores, sendo uma delas o ambientalismo.
Essa mesma observação foi realizada por Gudynas (1994) e interpretada como
um aviso para dar as boas-vindas ou para alertar da emergência de um novo
ambientalismo, “muito mais político, que se relaciona com a tradição socialista”
460
.
Atentamente, Gudynas observou que no Uruguai os candidatos de todos os partidos
políticos, visando as eleições nacionais de novembro de 1994, tinham assumido
458
GOULET, Denis. El Dessarrollo: un médio y no un fin. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 114,
abril de 1996, p. 81.
459
As teses de Francis Fukuyama sobre o fim da história correspondem à idéia política de que a história
teria chegado a seu horizonte último, ou seja, à democracia liberal e à economia capitalista de mercado.
Ver: FUKUYAMA, Francis. O Fim da História e o Último Homem. Rio de Janeiro, Rocco, 1989. Vale a
pena aqui observar a crítica de Perry Anderson, onde assinala que o fim da história não é a cessação de
toda mudança ou conflito, e sim: “O esgotamento de quaisquer alternativas viáveis para a civilização da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O progresso para a liberdade
tem agora um único caminho”. Dessa forma, Anderson afirmou que, com a derrocada do socialismo, a
democracia liberal ocidental destacou-se como a forma final de governo, levando a seu término o
desenvolvimento histórico. ANDERSON, Perry. O Fim da História: de Hegel a Fukuyama. Rio de
Janeiro: Zahar, 1992, p. 12.
460
GUDYNAS, Eduardo. ¿El Fin del Socialismo, el Inicio del Ecologismo? In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 97, setembro de 1994, p. 16.
289
discursos ambientalistas e suas plataformas programáticas continham uma dimensão
“verde”. Apostou-se a atrair eleitores através das propostas ecológicas.
Em 1994, iniciou-se timidamente no Uruguai a publicação de uma série de
artigos a respeito do desenvolvimento sustentável. Eduardo Gudynas foi o precursor
dos artigos publicados em Cuadernos de Marcha
461
. A tônica desses artigos estava
focada nas discussões e relatórios de organismos internacionais, fundamentalmente em
questões conceituais sobre a problemática ambiental e sobre o desenvolvimento
sustentável como política de desenvolvimento ecologicamente correta. Essas matérias
desenvolveram-se durante todo o ano de 1994.
Em 1995, por iniciativa da Fundação Fiedrich Ebert – Fesur e do Centro Latino
Americano de Ecologia Social – Claes, constituiu-se o Foro de Desarrollo Sostenible del
Uruguay. Essa foi uma instância ampla de discussão sobre a temática ambiental, que
contou com a participação de ambientalistas, políticos, sindicalistas e empresários.
Esse foi o pontapé inicial de discussões na direção da formulação de propostas de
políticas ambientais no país. O evento tornou-se de caráter permanente e contou com a
participação de Cuadernos de Marcha, que criou uma seção de ecologia e
desenvolvimento sustentável
462
, dedicada a divulgar as discussões do Fórum.
O ambientalista Eduardo Gudynas (1995)
463
introduziu, nas discussões
ecológicas da época, a perspectiva regional. Até esse momento, as questões
ambientais focavam-se na realidade nacional. Desse modo, Gudynas a trasladou para o
Mercosul, como forma de se pensar o tema da integração, do desenvolvimento
econômico e dos problemas ecológicos, de forma regional. Ao seu encontro, Alfredo
Alzugart (1995) publicou, em Cuadernos de Marcha
464
, um artigo intitulado: Una
Ecologia Latinoamericana.
Em dezembro de 1995, o Fórum sobre desenvolvimento debateu o tema
Gobernabilidad y Políticas Ambientales. No evento foram discutidas algumas bases
para a construção de políticas ambientais. Além disso, criticou-se o Governo nacional
461
GUDYNAS, Eduardo. El Desarrollo Sustentable. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 91, janeiro
de 1994, p. 24-26.
462
O primeiro número dedicando uma seção a esta temática foi em agosto de 1995, n. 107, p. 41-53.
463
GUDYNAS, Eduardo. Integración economica, desintegración ecológica. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 101, janeiro de 1995, p. 51-54.
464
Veja-se: ALZAGART, Alfredo. Una Ecologia Latinoamericana. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo:
n. 106, julho de 1995, p. 74-75.
290
por haver criado um ministério específico sobre a questão ambiental, sem contar com
políticas a respeito. Essas temáticas foram discutidas ao longo de 1996 e 1997, sem
obter resultados concretos quanto à instrumentação de políticas ambientais.
Em 1998, a Vertente Artiguista apresentou uma proposta que visava à
implementação de uma política de sustentabilidade ambiental, como parte de uma
política de desenvolvimento para o país. Tal proposta implicava que a dimensão
ambiental numa política de desenvolvimento devia atender, como objetivos prioritários,
a qualidade de vida da população, protegendo sua saúde e também o meio ambiente,
e, assim, promover o desenvolvimento sustentável, no sentido de que os processos
produtivos não gerassem efeitos negativos, tanto na dimensão social como na
ecológica.
Essa política ambiental tinha como foco quatro grandes eixos temáticos. Em
primeiro lugar, a implementação de uma política ambiental agropecuária, que visaria à
integração da dimensão ambiental com as políticas do setor. Em segundo lugar,
políticas ambientais em recursos biológicos e naturais, que propunham, como objetivos
fundamentais, legislar sobre a propriedade dos recursos biológicos, com especial
ênfase na variedade vegetal, de importância para a agricultura e pecuária. Essa política
assinalava a importância de se impor controles sobre a introdução de espécies
manipuladas geneticamente.
Em terceiro lugar, a implementação de políticas ambientais no setor
manufatureiro, que visava a atender os diversos processos de industrialização, os quais
deveria priorizar, essencialmente, a geração de emprego e a proteção ao meio
ambiente. Em quarto lugar, a necessidade de implementar uma política de gestão
ambiental urbana, como grande articuladora do desenvolvimento produtivo, com a
proteção ambiental e a qualidade de vida dos cidadãos. Uma de suas principais
preocupações focava-se na gestão de resíduos
465
.
Posteriormente, em 1999, o Encontro Progressista – Frente Ampla elaborou um
plano de emergência para o ano de 2000. No documento não há nenhuma menção à
problemática ambiental ou a qualquer política pública neste sentido. A menção mais
465
VERTIENTE ARTIGUISTA. Aportes Programáticos de la Vertiente Artiguista: el desarrollo
productivo y la modernización solidaria. Montevideo: Vertiente Artiguista, mimeo, 1998, p. 18-20.
291
próxima à temática em questão expressou: “Reivindicamos a integralidade das políticas
sociais e suas indissolúveis relações com as políticas produtivas”
466
. Observando a
hipótese de Gudynas, pode-se pressupor que essa ausência de menção das políticas
ambientais deveu-se ao fato de que o ano de 2000 não era um ano eleitoral; portanto,
as mesmas ficaram fora do plano emergencial.
Finalizando o ano de 1999, o Foro de Desarrollo Sustentable del Uruguay
elaborou uma série de documentos que visavam à instrumentalização de políticas
nacionais de conservação da biodiversidade, conflitos ambientais, reforma do Estado,
economia e desenvolvimento sustentável. Essas iniciativas foram encaminhadas ao
Poder Legislativo que, através de uma comissão, vinha desde 1995 ocupando-se do
assunto. Os documentos produzidos pelo Foro foram o ensaio de uma discussão
concreta – e não de intenções – sobre a implementação efetiva de tais políticas
467
.
Houve várias menções à problemática ambiental em diversos documentos da
coalizão, mas as políticas propostas pela Vertente Artiguista não foram implementadas.
Esses documentos coincidiram com as respectivas campanhas eleitorais: 1994, 1999 e
2004. No documento El Uruguay Productivo, do EP-FA (2004), pode-se ler:
“revalorizaremos os recursos e serviços existentes, assim como aqueles que
necessariamente haverá que incorporar para melhorar a competitividade, vincular as
zonas produtivas com o comércio e o consumo, preservar o meio ambiente e melhorar
a qualidade de vida das pessoas”
468
.
Assim, os novos conceitos introduzidos na atualização ideológica: sociedade do
conhecimento, inovação, desenvolvimento tecnológico e a problemática ambiental,
entre outros, re-desenharam o discurso da esquerda progressista que assumiu,
fundamentalmente nos períodos de campanha eleitoral, discursos muito próximos aos
dos partidos tradicionais. Ainda que os conceitos sejam universais, ou seja, válidos para
toda a sociedade, eles se apropriaram do discurso dominante e, desta forma, foram
evoluindo na sua conotação ideológica e preparando o terreno para a “governabilidade”.
466
ENCUENTRO PROGRESISTA. Plan de Emergencia 2000. Montevideo: Plenario Nacional del
Encuentro Progresista, mimeo, 1999, p. 13.
467
FORO DE DESARROLLO SUSTENTABLE DEL URUGUAY. Informe. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 157, dezembro de 1999, p. 57.
468
ENCUENTRO PROGRESISTA. El Uruguay Productivo. Montevideo: Plenario Nacional del
Encuentro Progresista, mimeo, 2004, p. 4.
292
2. DA CRISE DA INSTITUCIONALIDADE POLÍTICA E DO SISTEMA DE PARTIDOS
ATÉ OS EFEITOS DA REFORMA CONSTITUCIONAL DE 1999
A década de 1990 marcou a crise do sistema político, entendido como as
instituições que possuem representatividade (partidos, Parlamento, líderes) e que
definiam as condições de governabilidade do país. Na América Latina, historicamente
predominaram os sistemas presidencialistas, com uma clara ascensão do Poder
Executivo sobre o resto dos poderes institucionais. Os governos latino-americanos
destacaram a figura do presidente e da tecnocracia com forte vínculo com os centros de
poder internacionais. É possível que a perda de poder do Parlamento seja um
fenômeno universal, mas em alguns países da região foi um fenômeno manifesto no
período.
O Parlamento foi criticado por sua lentidão e retórica. Mas, a partir dos anos
1990, foi fortemente criticado pela ideologia dominante, por causa de sua característica
“re-distributiva”. Suas funções de representação e sua direta ligação com diversos
setores regionais do país o levaram muitas vezes a colidir com as demandas da
ideologia dominante. Segundo Couriel (1996), sua autonomia se viu restringida por
continuar atuando com tecnologias artesanais, com carência de informações e,
portanto, subordinado ao Poder Executivo
469
(fundamentalmente em matéria de
informação). Para Couriel, isso afetou substancialmente sua capacidade de iniciativa,
“[...] que se transformou numa carência central e marcou seus graus de
subordinação”
470
.
Os partidos dominantes sentiram-se confortáveis governando desde o Executivo e
enfraquecendo o Parlamento. O Poder Executivo viu o Parlamento como um verdadeiro
freio para sua ação e utilizou-se dos meios de comunicação para disseminar essa
imagem. Pelo geral, não aconteceram debates relevantes nem grandes interpelações, o
469
A problemática econômica foi essencial no âmbito latino-americano, e seus principais instrumentos
estavam concentrados na competência do Poder Executivo. Com exceção da política orçamentária, que
necessita das maiorias parlamentares, o resto dos instrumentos – a política monetária, de crédito,
cambiária, tributária, de salários – estavam centrados na órbita do Executivo, o que também era um
indicador relevante da relação de forças entre ambos os poderes.
470
COURIEL, Alberto. Globalización, Democracia e Izquierda en América Latina. Montevidéu: Banda
Oriental, 1996, p. 42.
293
que limitou também a capacidade de controle. Na América Latina, não foi comum que o
Parlamento tivesse capacidade de controle sobre a execução orçamentária realizada
pelo Executivo. A possibilidade de se impor um regime parlamentar requereria, segundo
Couriel, certas condições:
a) Partidos estáveis e múltiplos, com capacidade de gerar coalizões que assegurem
as maiorias para a continuidade e coerência das políticas;
b) Que os antagonismos sociais tenham a possibilidade de ser negociáveis, o que
não é simples em alguns países da região;
c) A capacidade do corpo eleitoral para arbitrar perante crises sérias, o que marca o
nível de cultura política dos cidadãos
471
.
Couriel aponta, como outro fenômeno institucional que se constata na América
Latina, menos nos casos de México, Chile e Uruguai, a fragilidade estrutural dos
partidos políticos. Segundo Couriel, os mesmos aparecem com um alto grau de
fragmentação, com baixo grau de unidade e disciplina partidária, e, em alguns países,
funcionam como verdadeiras cooperativas eleitorais
472
. “Em geral, pode-se estabelecer
que os partidos políticos apresentam um baixo nível de democratização, com uma fraca
participação de suas bases na organização interna”
473
.
Como na clara descrição de Castells (2002), à crise da legitimidade do Estado-
Nação acrescentou-se a falta de credibilidade do sistema político, fundamentado na
concorrência aberta entre partidos. “Capturado na areia da mídia, reduzido a lideranças
personalizadas, dependente de sofisticados recursos de manipulação tecnológica,
induzido a práticas ilícitas para obtenção de fundos de campanha, conduzido pela
política do escândalo, o sistema partidário foi perdendo seu apelo à confiabilidade e,
para todos os efeitos, foi considerado um resquício burocrático destituído de fé
pública”
474
.
471
Idem, p. 43-44.
472
Pode se observar, de forma geral, que os partidos políticos ganham eleições, mas não governam. O
governo é exercido pelo presidente, com seu elenco tecnocrático, que pode ter vínculo, ou não, com o
partido triunfante. Assim, os partidos mostram carências de representatividade, na medida em que não
atendem adequadamente as demandas sociais, nem tem a suficiente capacidade para resolver os
conflitos existentes na sociedade. Observe-se, como exemplo, a última Presidência de Julio Maria
Sanguinetti (2000-2004).
473
COURIEL, Alberto. op. cit.,1996, p. 43.
474
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade: a era da informação, economia, sociedade e cultura.
Vol. 2. 3
a
. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 402.
294
No Uruguai, Gerardo Caetano (2004) realizou uma pesquisa de opinião com a
população montevideana para aferir o grau de confiabilidade manifesta em relação as
instituições representativas do sistema democrático nacional. Resultou de particular
significado os dados apresentados pelo autor, como uma clara amostra da opinião dos
uruguaios ao respeito. (ver tabela 5).
Tabela 5. Pesquisa de opinião pública: percentuais de confiabilidade segundo manifestações de
confiança da população montevideana 1997- 2003.
Confiança Manifesta
1997 1998 1999
2000
2001 2002 2003
Confiança na Presidência da
República
53 48 49 46 19 53
Confiança no Poder Legislativo 46 41 45 47 40 27
Confiança no Poder Judiciário 56 48 52 52 44 38
Confiança nos Partidos Políticos 45 35 36 38 30 18
Fonte CAETANO, Gerardo. Apuntes para um diagnóstico de las Istituciones Democraticas en el
Mercosur. In: La Segunda Generación de Reformas Parlamentarias: teorias, practicas y estrategias
de cambio. Montevideo: Claeh, 2004, p. 158-160.
A representatividade dificultou-se pela fragmentação social que geraram os
modelos econômicos excludentes predominantes. O desemprego, o subemprego, o
emprego precário geraram uma ampla heterogeneidade e volatilidade dos interesses
sociais, e isso afetou a própria representatividade dos partidos
475
. A fragmentação
social contribuiu com a crise dos partidos e com sua desativação política. A sociedade
civil mudou as formas de participação política e transformou-se em opinião pública.
Dessa maneira, surgiu a elaboração de pesquisas eleitorais, a construção de imagens e
de novas lideranças.
475
A representatividade se encontrou limitada também pelos mecanismos de privatização do
financiamento dos partidos e, de forma especial, pelas campanhas eleitorais, onde os meios de
comunicação passaram a cumprir um papel central na definição do pleito eleitoral. O patrimonialismo, o
clientelismo, o caudilhismo e certas formas de populismos continuaram estando presentes como antigos
males “naturais”, dos partidos e do sistema político.
295
Os partidos políticos possuem um papel central na democracia,
fundamentalmente no sistema democrático liberal; por isso, para o sistema tornou-se
indispensável a tarefa de revitalizá-los, tomando em consideração a presença e função
inevitáveis dos meios de comunicação de massa. Assim, a tarefa prioritária era
democratizá-los, tendo em conta a fragmentação social que ocorreu em vários países
da América Latina e, desta forma, vinculá-los à sociedade para readquirir funções de
representação.
A partir da crise de 1980, as estratégias e modos de atuação tradicionais dos
atores políticos foram deixando de funcionar; portanto, os atores políticos já não eram
confiáveis no sentido de que, se se aferravam a suas estratégias tradicionais, não
poderiam oferecer os resultados que anteriormente ofereciam; e se, pelo contrário, as
mudam, iriam oferecer um resultado diferente do que o cidadão esperava deles, ao
votar neles. Os partidos que seguem defendendo estratégias anteriores à crise se
autocondenariam ao fracasso, mas os que desenvolvessem novas estratégias
redesenhariam sua própria identidade e pagariam o preço de uma nova crise de
representação entre seus adeptos, além de previsíveis crises internas.
A partir da década de 1990, aprofundou-se o descrédito da atividade política, dos
partidos políticos e das próprias figuras políticas. Por um lado, influíram as ideologias
dominantes, que questionavam permanentemente as funções e o grau de participação
dos Estados nacionais. Essa ideologia pressupôs que o mercado estava em condições
de resolver os principais problemas da sociedade. Essa ideologia era profundamente
antiestadista e gerava descrença sobre as possibilidades de ação do Estado
476
, o que
afetou diretamente os partidos políticos.
Manuel Antonio Garretón (1993) colocou em discussão se a despolitização,
descrédito e anomia, geradas na década de 1990, se tratavam de uma nova
combinação de orientações da sociedade. Já não se procurava a mudança do
476
Os políticos e os partidos dedicaram-se a tomar o aparelho de Estado e, a partir deste, tentar resolver
os conflitos e os problemas substanciais da sociedade. Questionado o Estado, ficou questionada também
a própria ação dos partidos e a própria atividade política para resolver esses problemas econômico-
sociais. GARRETÓN, Manuel Antonio. La Democracia entre dos Épocas. Buenos Aires: FLACSO,
1993, p. 11.
296
sistema
477
, senão sua continuidade, tentando estender benefícios para toda a
população. Tratar-se-ia de eliminar a pobreza, avançar em direção à igualdade de
oportunidades e ter acesso aos serviços de melhor qualidade. Passou-se do tema da
propriedade e do poder para reivindicações sobre dignidade, qualidade dos direitos aos
que se acedem
478
.
Juntamente com a crise das instituições políticas surgiu, também, a crise do
Estado, que se projetou e influiu sobre os próprios sistemas políticos. A crise
apresentou-se em suas funções básicas de integração social, de agente do
desenvolvimento e de redistribuição de riquezas. Realizaram-se críticas às funções
econômicas do Estado, como produtor, como acumulador e como orientador do
processo econômico. A maioria das críticas foram formuladas pelos defensores do
modelo neoliberal, que partiam do pressuposto básico de que tudo o que fazia o setor
privado era virtuoso e vicioso tudo o que fazia o Estado.
É fácil constatar a politização do Estado, as políticas de clientela e insuficiente
remuneração que se encontram na base da exagerada burocratização, da
inaptidão e, em especial, de uma mentalidade inapropriada para a função de
servidores públicos. Comprova-se que na região (América Latina), os aparelhos
do Estado mostram um inadequado recrutamento de seus quadros diretores e
técnicos, que estão impregnados de uma mentalidade burocrática, sem
estímulos nem vocação para o trabalho que realizam
479
.
Assim surgiu, em alguns países, a crise de governabilidade por ineficácia,
impotência e imobilidade para resolver problemas que tivessem a ver com a ineficiência
dos sistemas políticos e com a própria crise do Estado. Em alguns casos, surgiram
características de obsolência no aparelho de Estado para enfrentar as novas realidades
da globalização. O Estado é reflexo da estrutura de poder, onde gravitam os fatores de
caráter internacional, militares, econômicos, comunicacionais, ideológicos e políticos.
Em muitos países latino-americanos pode-se observar o Estado a serviço da
477
Apresentou-se uma combinação de individualismo e identidades coletivas, de apelação ao Estado,
mas também de autonomia. Dessa forma, mudaram-se os repertórios organizativos de ação política e
mobilização tradicional, que eram de tipo unidimensionais, reivindicativos e agitativos.
478
GARRETÓN, Manuel Antonio. La Democracia entre dos Épocas. Buenos Aires: FLACSO, 1993, p.
14-17.
479
COURIEL, Alberto. op. cit., 1996, p. 46.
297
globalização
480
, como reflexo do maior poder internacional em relação às estruturas de
poder interno.
Na concepção de Couriel, no Uruguai, como também em vários países latino-
americanos, tornava-se imprescindível a transformação do Estado para resolver os
problemas econômicos e sociais e para consolidar o processo democrático. Assim, a
presença do Estado era vista como necessária e imprescindível para se atingir
equidade e igualdade pelas enormes diferenças no ponto de partida, “[...] para negociar
melhores condições com o mundo desenvolvido, aproveitando os elementos positivos
da globalização e atenuando os negativos”
481
.
No caso particular do Uruguai, os partidos políticos continuam sendo a referência
central da cultura democrática, mesmo que o envolvimento com a política dos uruguaios
tenha diminuído muito nas últimas décadas. Todos os partidos tiveram seu mérito nesse
sentido: os partidos tradicionais, porque demonstraram uma capacidade de
sobrevivência que os transformou nas únicas instituições do século XIX que ainda
possuem capacidade eleitoral competitiva. Por outro lado, no que respeita à esquerda,
de todos os partidos foi a única que tem demonstrado maior capacidade de reter seu
eleitorado e maior capacidade de reprodução, através da reprodução familiar, além de
haver conseguido aglutinar eleitores dissidentes dos partidos tradicionais,
principalmente na última década.
Além de méritos e defeitos de cada um, os partidos, enquanto instituições, não
podem ser analisados isoladamente. O que faz dos partidos políticos a instituição
central da democracia uruguaia é sua capacidade de funcionar como sistema. Como diz
Moreira (2004), “Pode haver partidos de diferente talante, organização e vocação
ideológica, mas é a relação entre eles o que assegura a ‘qualidade’ na política”
.
Assim, os partidos devem ser analisados como um sistema de competição e
cooperação política. Essa competência acontece não somente no poder – entendido
como acesso ao Governo –, senão que também pela representação. A competitividade
482
480
Geralmente são Estados fortes para cumprir com os princípios do modelo neoliberal, para o ajuste das
economias latino-americanas, para cumprir com as exigências relativas à dívida, para o ajuste estrutural
e para a coerção em períodos de governos autoritários. Por sua vez, são Estados extremamente fracos
para atender às demandas produtivas e sociais.
481
COURIEL, Alberto. op. cit., 1996, p. 49.
482
MOREIRA, Constanza. Final de Juego: del bipartidarismo tradicional al triunfo de la izquierda en
Uruguay. Montevideo: Trilce, 2004, p. 15.
298
pela representação – isto é, quem representa melhor à cidadania no seu conjunto –
articula-se com uma capacidade de intermediação de interesses diferenciada. Mesmo
que a vocação dos partidos de “representar a todos” seja compreensível pelas
características da competitividade eleitoral, que exige aglutinar votos de todos os
setores sociais.
O Uruguai possui, hoje, um sistema onde a maioria dos partidos políticos são
caracterizados como catch-all (pega tudo), mas isso de certa forma encobre as
representações especiais de interesses que circundam a lógica real do sistema. Isso foi
evidente no passado, quando o Partido Nacional representava o meio rural e o Partido
Colorado, o meio urbano; onde os interesses da burguesia comercial, latifundiária e
industrial encontravam maior abrigo, em um ou em outro. Ainda que atualmente essa
lógica tenha sido redimensionada – nos partidos tradicionais –, ela ainda assim
permanece na sua essência. Dessa forma, resultam evidentes os fortes laços que unem
os sindicatos com a esquerda, e o empresariado com os partidos tradicionais.
Na dimensão ideológica também os partidos se diferenciam. Após a aparição de
um partido de esquerda de “massas”, como a Frente Ampla, a política “ideológica” no
sentido estrito (ou seja, de esquerda e direita) irrompeu no cenário da democracia
uruguaia, e parece que chegou para ficar. Os partidos e frações são identificáveis, no
eixo esquerda-direita, para a maioria do conjunto dos eleitores. Por outra parte, o fato
de que blancos e colorados tenham governado juntos depois do primeiro período pós-
ditadura, colaborou para gerar dois grandes espaços ideológicos partidários: o bloco
“tradicional” e o bloco de “esquerda”, ambos disputando o centro, mas, por sua vez,
simétricos na sua localização em relação à direita-esquerda.
Tanto nas dimensões eleitoral, de intermediação de interesses e na ideológica,
os partidos uruguaios funcionam como um sistema. Mesmo estando no Governo e
outros na oposição, ou desenvolvendo mundos de valores em contradição, todos eles
compõem um sistema, e o movimento de uns não pode entender-se sem o movimento
dos outros. São diferentes, mas estão juntos; por isso a crise da política e a temática da
governabilidade afetam a todos. O critério numérico e o critério ideológico resultam os
mais relevantes para a determinação do funcionamento dos partidos como sistema; o
299
critério organizacional também é importante, mas é mais uma tipologia de partidos que
uma caracterização dos mesmos como sistema.
A discussão sobre o sistema de partidos no Uruguai é importante para entender
as bases da democracia no país, de forma geral. Mas possui uma importância
específica: a de compreender como surgiu a Frente Ampla e se transformou no principal
partido do sistema, levando os partidos tradicionais a sua condição de bloco minoritário.
Pensando-se que nos últimos 40 anos nenhum partido teve mais de 50% dos votos,
observaremos que a magnitude desse fenômeno fez evidente uma mudança radical,
não somente por ter chegado ao Governo, senão pelo que representou para o
bipartidarismo secular.
Na análise de Moreira (2004), a razão do avanço eleitoral da esquerda nas
últimas décadas deve-se a distintas variáveis. Uma delas foi o descontentamento dos
eleitores com o desempenho dos partidos tradicionais no Governo, especialmente na
década de 1990, quando os indicadores de crescimento econômico caíram (1994-
1997), logo se paralisou (1998-2000) e finalmente transformou-se em uma das piores
recensões econômicas da história do país no último século (2001-2004)
483
. Assim, esse
processo teve impactos sobre ambos os partidos, visto que funcionaram como coalizão
ao longo do período.
A essa situação deve-se acrescentar as preferências do eleitorado jovem,
educado e urbano, com a esquerda, o que fez dos novos eleitores adeptos à Frente
Ampla. Finalmente, a dinâmica bipolar instalada no país fez com que os partidos
tradicionais ficassem cada vez mais à direita do espectro político e, por sua vez, a
esquerda tornou-se um partido mais catch-all, e, conseqüentemente, conquistou novos
eleitores. O fato de que existissem quadros políticos da esquerda com grande
capacidade de diálogo com os partidos tradicionais (o exemplo foi Danilo Astori)
contribuiu para a manutenção da amplitude do espectro político. E, de forma contrária,
por mais que alguns líderes dos partidos tradicionais tentassem aproximar-se ou
identificar-se como os setores “progressistas”, essa conquista de centro resultou muito
difícil.
483
MOREIRA, Constanza. op. cit., p. 41.
300
Também se deve observar que todos os setores políticos uruguaios, a partir da
segunda metade da década de 1990, autodefiniam-se como “progressistas”. Aqui, de
igual forma, surgiu um conceito que pouco definiu a postura assumida. Como observou
Oscar Bottinelli (1998), “No Uruguai não há nenhuma força política que a si mesmo se
qualifique como não progressista”
484
. Dessa forma, o conceito “progressista” pouco diz
em relação a sua concepção ideológica em si, sendo que procura totalizar – pelo
menos quando usado dentro da esquerda – a idéia de uma concepção “renovada”,
“atualizada”, ampla e, fundamentalmente, não marxista.
Por outro lado, pode-se afirmar que houve um deslocamento do eleitorado dos
Partidos Nacional e Colorado em direção ao Encontro Progressista-Frente Ampla, que
foi concomitante com o deslocamento destes últimos para a direita. De fato, os Partidos
Nacional e Colorado foram perdendo paulatinamente seus setores de “esquerda” nas
últimas eleições. Em 1984, os votos da centro-esquerda somavam 12,7% do eleitorado
do Partido Colorado e 39,9% do eleitorado do Partido Nacional. Em 1989, esse
eleitorado representava 3,8% do Partido Colorado e 28,6% do Partido Nacional. Em
1994, esses percentuais eram 8,6% para os colorados e 10,3% para os blancos
485
. (ver
tabela 6).
Tabela 6. Distribuição eleitoral por blocos setoriais em eleições nacionais 1971-1999, percentuais.
Ano Partido Colorado +
Partido Nacional
Frente Ampla Frente Ampla +
Novo Espaço
1971 81.2 18.3 -
1984 76.3 21.2 -
1989 69.2 21.3 30.2
1994 63.6 30.6 35.8
1999 55.1 40.1 44.7
Fonte: LANZANO, Jorge. La Izquierda se acerca a los uruguayos y los uruguayos se acercan a l a
izquierda. In: La Izquierda Uruguaya: entre la oposición y el gobierno. Montevideo: Fin de Siglo, 2004,
p. 54.
484
BOTTINELLI, Oscar. Exposición de Oscar Bottinelli. In: Ciclo de Debates: Uruguay en Asamblea.
Montevideo: Banda Oriental, 1998, p. 73.
485
MOREIRA, Constanza. op. cit., p. 51-52.
301
Desta forma, desde 1989 a Frente Ampla começou a absorver os votos oriundos
dos partidos tradicionais através do Novo Espaço, que seria posteriormente uma das
instâncias de acumulação eleitoral do Encontro Progressista – Frente Ampla.
Um artigo de Pablo Mieres (1994) abordava a temática da necessidade de
canalizar votos da centro-direita por parte da coalizão de esquerda. Segundo Mieres, a
Frente Ampla, que ocupava a ala esquerda do espectro político, necessitava, para
crescer e converter-se numa alternativa de poder, expandir-se para a centro-esquerda.
O perfil renovador e moderado que desenvolveu o líder emergente, Tabaré Vázquez,
ajudou a coalizão de esquerda a projetar-se sobre o território da esquerda moderada.
“Novamente, o principal destinatário desta estratégia era o Novo Espaço e, em
particular, o Partido pelo Governo do Povo – PGP”
486
. Esse partido tinha suas bases no
batllismo e em outros setores moderados do Partido Colorado.
Formando parte do novo perfil moderado e “renovado” da esquerda frentista, em
28 de setembro de 1997 a Frente Ampla realizou, pela primeira vez nos seus 26 anos
de existência, eleições internas para eleger um novo Plenário Nacional e, por extensão,
uma nova mesa política e um novo Plenário Departamental (estadual). O debate
ideológico que se iniciou com um projeto de licitação do Hotel Casino Carrasco (hotel-
casino, empresa pública do Estado), por causa da negativa do Movimento de
Participação Popular – MPP em votá-lo, desatou uma profunda crise interna que levou
à renúncia de Tabaré Vázquez à presidência da coalizão, após sete meses de direção,
colocando em jogo a credibilidade e a capacidade da Frente Ampla para governar.
O MPP expressou em reiteradas oportunidades que não mudaria sua postura, ao
tempo em que acusou alguns setores da coalizão de “esquerda privatizadora”. O
espaçamento das diferenças ideológicas pareceu aprofundar-se e o mapa político que
emergia das internas colocou sérias dúvidas sobre o futuro da coalizão. O MPP
acusava setores da Frente Ampla (Vertiente Artiguista) de serem, conjuntamente com
Vázquez, promotores de políticas de privatização de empresas públicas administradas
pelo Estado. O que implicava uma séria contradição com os princípios fundacionais da
Frente Ampla.
486
MIERES, Pablo. La Polarización del Centro Izquierda. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 93,
abril de 1994, p. 51.
302
Jorge Zabalza, membro do MLN e dirigente do MPP, presidente da Câmara de
Vereadores de Montevidéu, foi quem realizou as acusações de privatização por parte
de setores frentistas. O vereador concedeu uma entrevista a Cuadernos de Marcha, na
qual se manifestou sobre o assunto. “Nós entendemos que se há setores dentro da
Frente Ampla que vão assumir que há que privatizar, utilizando-se de palavras como
arrendamento ou concessão de serviços, deve-se falar claro na mesa política”
487
.
Zabalza afirmou que se efetivamente existiam várias concepções de privatização, a
Frente Ampla devia definir-se, ou seja, identificar claramente os setores que estavam
dispostos a colocar recursos materiais e infra-estrutura do Estado à disposição de
empresas privadas para que invistam nelas e para que as mesmas obtenham
rentabilidade.
O vereador manifestou um claro repúdio por parte do MPP a qualquer tipo de
privatização. Reafirmou que toda e qualquer infra-estrutura do Estado deveria ser
usada com um fim social. E acrescentou: “Acredito que na esquerda, na medida em que
vá desenvolvendo uma acumulação de forças e, portanto, tem possibilidades eleitorais,
aparecem setores que apontam para as classes médias. [...] Existem companheiros que
acreditam ter de seu lado os setores menos favorecidos da sociedade e, a partir disso,
querem conquistar outros setores, adotando determinadas políticas em direção às
empresas privadas
·”488
.
Por outra parte, Enrique Rubio manifestou também em entrevista a Cuadernos
de Marcha que a discussão em torno das privatizações, caso do Hotel Casino Carrasco,
se deve a que a esquerda frentista estava passando por um processo de mudanças
ideológicas na vida política da coalizão. “É uma mudança ideológica-cultural que se dá
e se expressa no campo programático [...] e que vai acontecer em relação às diferenças
sobre o que tem de fazer um eventual governo de esquerda neste país”
489
. As alusões
de Rubio a redefinições programáticas foram as que nortearam a atualização ideológica
da esquerda frentista.
487
ZABALZA, Jorge. Las idéas no se cambian como si fueran camisetas. (entrevista) In: Cuadernos de
Marcha. Montevideo: n. 131, setembro de 1997, p. 50.
488
Idem, p. 51.
489
RUBIO, Enrique. El Frente nunca dijo que había un muro de Berlín entre el sector público y el privado.
(entrevista) In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 131, setembro de 1997, p. 48.
303
Rubio acrescentou que quanto às acusações de ser uma esquerda privatizadora,
a Frente Ampla tem uma política que se “opõe” aos esquemas neoliberais
privatizadores, no sentido em que querem reduzir a sua mínima extensão ao Estado.
“Mas nunca a Frente disse que existia um muro de Berlin entre o setor público e o
privado, e também não negou que em algumas áreas que se convertem em importantes
no setor privado, pela evolução tecnológica e as mudanças no mundo, o Estado deve
fazer investimentos”
490
. A Frente Ampla, segundo Rubio, tem uma postura quanto ao
tema privatizações que se tornou fronterizo, ou seja, existe uma fronteira a ser
atravessada em função da especificidade do que se pretenda privatizar. A flexibilidade
apresentada por Rubio mostra a nova linha programática da Frente Ampla.
Em relação à credibilidade e capacidade de governar da Frente Ampla,
questionadas a partir da crise do Hotel Carrasco, Rubio manifestou que a discussão
teve vários efeitos: colocou em jogo a credibilidade da coalizão, teve um efeito negativo
na medida em que bloqueou um projeto do governo municipal de Montevidéu e
demonstrou, ante a população, que a Frente Ampla não estava solidamente unificada e,
portanto, afetando assim sua credibilidade. Na opinião de Rubio, a crise enfraqueceu a
autoridade dos organismos de direção da Frente Ampla e também afetou o seu
presidente, Tabaré Vázquez. Assim, a forma de superar a crise focou-se nas resoluções
que sairiam das eleições internas da coalizão, principalmente das definições
programáticas que fossem adotadas.
A crise política e os resultados eleitorais de setembro de 1997 no interior da
Frente Ampla e as posteriores iniciativas de Tabaré Vázquez vinculadas com as
definições programáticas e com as regras democráticas do frentismo, tanto como seus
sinais de orientações para a hierarquização do Encontro Progressista, a comum
aceleração dos tempos políticos da época que se registraram no Uruguai como produto
da reforma constitucional de 1996, todas as circunstâncias mencionadas ofereceram
uma boa oportunidade para refletir sobre os desafios que a Frente Ampla tinha pela
frente. Os quatro fatores básicos de poder no interior da Frente Ampla foram,
historicamente: os votantes, os militantes, os partidos e organizações componentes e a
490
Idem, p. 49.
304
presidência. Para identificar os impactos da crise e das eleições internas de 1997,
convém repassar a evolução desses fatores de poder.
Desde 1994 a 1997, a gravitação dos votantes frentistas no país praticamente
duplicou em termos absolutos e relativos. Com independência das instâncias nacionais
e das grandes mobilizações coletivas por reivindicações que concitaram um grande
apoio popular, a participação direta dos votantes na vida interna da Frente Ampla não
encontrou, no passado, os canais adequados, nem foi considerada por muitos
dirigentes como fundamental. As eleições internas de 1997 constituíram a primeira
grande experiência de participação direta de uma boa parte dos votantes num
acontecimento democrático de definição interna.
Em termos políticos, o comportamento que predominou nos votantes orientou-se
a introduzir uma alteração que permitira encontrar uma saída para a crise do frentismo.
A nota dominante foi a intenção de salvar a Frente Ampla. A irrupção do votante não
indica somente o desejo de participar numa instância eleitoral, senão também a
vontade de ser ator político, exercendo seus direitos em momentos vividos como
críticos. A próxima instância prevista de participação de massas dos votantes
aconteceu em abril de 1999, nas eleições internas de todos os partidos políticos; na
oportunidade, as eleições da Frente Ampla ocorreram no âmbito do Encontro
Progressista.
A presença dos militantes no trabalho da Frente Ampla – comitês e outras
estruturas, da capital e do interior – conheceu diversos momentos. Não foi a mesma
dos diferentes períodos: (1971-1973), a frente da ditadura; (1973-1984), a frente da
abertura democrática e a ruptura política; (1984-1989), a frente dos governos
municipais e da possível ascensão ao Governo nacional (1989-1997). Essa participação
foi potente nas suas origens, período no qual predominou a militância independente,
suportou a ditadura, reapareceu na reabertura e logo declinou, emergindo em situação
de grande confrontação nacional: plebiscitos em 1989, 1992 e 1996, eleições nacionais
e plebiscitos em 1989 e 1994; e também se manifestou por distintas vias em situações
de crise e de definições internas: reforma estatutária em 1986, ruptura em 1988-1989,
Congresso de 1991, crise de direção e definição do Encontro Progressista em 1993-
1994, renúncia de Liber Seregni e eleição de Tabaré Vázquez, em 1996.
305
O período de maior participação da militância nas estruturas comuns coincidia
com o lapso no qual foram menores os direitos em matéria de representação na direção
e maior a militância independente (1971-1986); e o período de maior representação, de
1986 até 1993, que coincidia com a descrença paulatina dos militantes independentes
e, por conseqüência, com a crescente partidarização da militância nas estruturas
comuns. Os comitês de base continuam sendo o lugar por excelência da militância
frentista, relegados de representação – muitas vezes –, sempre que se abriram
períodos nos quais se realizaram grandes empreendimentos coletivos e apelando-se a
eles. Nas eleições nacionais de 1996, quase 700 circuitos eleitorais que funcionaram na
oportunidade e que permitiram a expressão de 144 mil votantes, apenas foram
viabilizadas pelo trabalho dos comitês de base.
Os partidos políticos e as organizações que compõem a coalizão sofreram
transformações fundamentais. Houve novas incorporações e rupturas; nasceram, no
interior da Frente Ampla, diferentes organizações, sendo que algumas se juntaram,
dividiram-se, desapareceram ou enfraqueceram-se; outras permaneceram e se
transformaram, por sua vez, em vários setores que conformaram a matriz originária.
Assim, entre outros, se incorporaram o Partido pela Vitória do Povo – PVP, o
Movimento de Libertação Nacional – MLN, o Movimento 26 de Março e a Corrente
Popular – CP. Por outro lado, desligaram-se o Partido pelo Governo do Povo – PGP e o
Partido Democrata Cristão – PDC. Nasceram a Vertente Artiguista –VA, Confluência
Frenteamplista – Confa, Esquerda Aberta – IA, e outras entidades.
Em termos gerais, o peso dos partidos foi decrescendo na Frente Ampla. Talvez
pela crise de participação militante que todos sofreram, nunca compensada pelo
crescimento eleitoral de alguns deles. Talvez a crise ideológica gerada na implosão do
“socialismo real”, pelo próprio desenvolvimento da identidade comum e pela expansão
dos votantes. Segundo análise de Rubio (1997), a evolução dos partidos políticos
dentro da Frente Ampla foi muito importante, “[...] são e seguiram sendo muito
relevantes na história da Frente Ampla. Muito se jogou no passado e se jogará no futuro
em favor de seu fortalecimento no interior da identidade comum”
491
. Obviamente, na
491
RUBIO, Enrique. El Frentismo del Futuro: de las internas al gobierno nacional. In: Cuadernos de
Marcha. Montevideo: n. 133, dezembro de 1997, p. 41.
306
análise de Rubio não se incorporou a presença de novas organizações, como o
Encontro Progressista e o Novo Espaço.
Por outro lado, a presidência sempre foi um dos fatores chaves no
desenvolvimento da Frente Ampla como força política. Tanto na sua expressão como
força diferenciada no país, como na manutenção de sua unidade; tanto na
potencialização dos aspectos externos como internos da identidade compartilhada. A
presidência do general Liber Seregni apoiou-se, fundamentalmente, em seu prestígio
pessoal, na sua visão estratégica, na sua capacidade de interlocução com a sociedade,
com o sistema político e na sua aptidão para a articulação na vida interna da Frente
Ampla.
A substituição de Liber Seregni por Tabaré Vázquez, em 1996, aconteceu no
meio de uma grande crise política. Os dez primeiros meses em que Vázquez exerceu a
presidência da coalizão demonstraram uma transformação importante nas
características da condução política: esta foi mais “carismática”, mais polarizadora e
potente no âmbito político, e menos articuladora que condutora no interior da Frente
Ampla. O que também deve ser considerado é que Tabaré Vázquez assumiu a
presidência da Frente Ampla e do Encontro Progressista, o que levou à situação que as
eleições internas seguintes, realizadas em abril de 1999, tivessem como organização
predominante, e portanto, também uma presidência predominante no Encontro
Progressista.
Uma das medidas encontradas por Vázquez para a crise política no interior da
Frente Ampla foi a da auto-exclusão. Essa pretendia dirimir as discussões internas,
fundamentalmente de origem ideológica, pela via da auto-exclusão. Danilo Astori, em
entrevista a Cuadernos de Marcha, explanou sobre a proposta de Tabaré Vázquez:
“Acredito que através de medidas disciplinárias não se resolvem os problemas. Em
primeiro lugar, acredito que a auto-exclusão é impraticável, colocada em termos éticos
e morais”
492
. Defendendo uma medida mais moderada, Astori preferia a reformulação
estatutária para dirimir problemas disciplinares dentro da coalizão. Os problemas
aludidos (disciplinares) obedeciam à ordem de discrepâncias ideológicas. De qualquer
492
ASTORI, Danilo. Defender a UTE y renovar el Frente. (entrevista) In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 137, março de 1998, p. 35.
307
forma, a auto-exclusão foi discutida como uma medida legítima e como parte da
atualização ideológica.
Em 22 de novembro de 1998, a Frente Ampla realizou um Congresso no qual
97% dos delegados das forças políticas votaram a postulação de Vázquez como
candidato da coalizão à Presidência da República. O Congresso teve a participação de
1.400 delegados que representaram 600 mil votantes, um percentual ínfimo de
representatividade. Um aspecto relevante do Congresso foi a tentativa de Danilo Astori
em candidatar-se para concorrer nas eleições. O que não aconteceu, visto que
Vázquez possuía a maioria no interior da coalizão, e Astori obteve o direito a se
apresentar como candidato, desta vez, sem perigo de enquadramentos disciplinares,
legitimado por 988 delegados no referido Congresso. Astori não se candidatou, mas o
episódio acentuou a crise interna originada em 1996
493
.
Em entrevista com o senador Danilo Astori, por Cuadernos de Marcha, tratou-se
da candidatura de Tabaré Vázquez como um novo fenômeno caudilhista. “Uma figura
com intuição e carisma pode fazer realidade o que a razão já não vê como possível. Por
isso que o condutor não admite adversários nem concorrentes?”, (em referência a
Vázquez). Astori, por sua vez, respondeu que isso precisamente seria o que se deveria
evitar, que crises ideológicas terminassem gerando espaços para lideranças de tipo
caudilhista ou populistas. “O grande desafio é como evitar essa situação. Nós temos
uma resposta que se chama renovação da esquerda”
494
. Para Astori, o problema
encontrava-se na necessidade de uma renovação ideológica, mas assinalava que não
estava de acordo com a condução da esquerda (na interna frentista), por isso, o nível
de compromisso com a coalizão o fazia argumentar na mesma direção que Vázquez.
Por outra parte, as eleições internas de 25 de abril de 1999 constituíram a
inauguração do novo regime eleitoral posto em vigência a partir do Plebiscito de
dezembro de 1996. A reforma constitucional de 1996 significou uma transformação
substancial nas regras eleitorais uruguaias que regeram o país desde a conformação
definitiva do regime democrático, em 1920. Quatro eram as bases do antigo regime
493
LARROSA, Pedro. Frente Amplio: entre militantes y votantes anônimos. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 145, novembro de 1998, p. 36.
494
ASTORI, Danilo. No estamos de acuerdo con la conducción de la izquierda. (entrevista). In:
Cuadernos de Marcha. Montevideo: n 146, dezembro de 1998, p. 39.
308
eleitoral: simultaneidade, proporcionalidade, acumulação e candidaturas múltiplas. De
acordo com as velhas regras do jogo, só existia uma instância a cada cinco anos na
qual se dirimiam todos os cargos em disputa, tanto em nível nacional como estadual,
nos planos legislativo e executivo.
Por sua vez, em dita instância se permitia todo tipo de acumulação eleitoral em
nível executivo e legislativo, tanto para a Câmara Alta como para a Câmara de
Representantes. Cada partido podia apresentar múltiplos candidatos à Presidência e à
Prefeitura; e, finalmente, os cargos legislativos se designavam em função de uma
estrita proporcionalidade. Nas quatro características anotadas, o regime uruguaio era
um caso original em matéria de legislação eleitoral comparada; portanto, consideradas
as quatro características em conjunto, resultava claro que o sistema eleitoral era
particularmente estranho.
Com efeito, de modo geral os regimes eleitorais prevêem instâncias diversas
para a eleição dos cargos de governo. Essa variedade inclui, como exemplo, as
renovações parciais dos parlamentos, a separação da eleição de cargos nacionais a de
governos locais ou estaduais, ou a separação das eleições internas ou primárias das
eleições nacionais. Também pelo geral, os regimes eleitorais possuem uma regra que
estabelece que cada partido só teria um candidato presidencial; a multiplicidade de
candidaturas presidenciais por partido era realmente uma extravagância muito
uruguaia.
A originalidade não termina nestes aspectos, também incluía os sistemas de
acumulação. Desde a acumulação mais simples, mesmo que pouco usual, da
acumulação de votos entre os múltiplos candidatos presidenciais por partido até o
tríplice voto simultâneo e as cooperativas eleitorais entre as listas a deputados
cruzadas dentro do partido em níveis incríveis. Todo tipo de acumulação aconteceu na
história eleitoral uruguaia. Finalmente em matéria de proporcionalidade, também o
regime eleitoral resultou original. O grau de proporcionalidade na constituição do
parlamento nacional chegou a níveis incomparáveis em relação ao resto dos sistemas
existentes.
A reforma de 1996 acabou com dois dos quatro pilares e limitou seriamente um
terceiro. Somente ficou intacta a proporcionalidade, que continua sendo igual que
309
antes; mas em matéria de multiplicidade de candidaturas e simultaneidade de eleições,
o sistema se modificou completamente, enquanto que as ilimitadas formas de
acumulação ficaram reduzidas significativamente, visto que só permaneceram entre as
listas ao Senado. Portanto, 1996 pode qualificar-se como uma revolução do sistema
eleitoral que, por outra parte, havia sido duramente questionado desde tempos
imemoriáveis pelas alternativas políticas da esquerda uruguaia. As eleições de abril,
vistas nesta perspectiva, apareceram como particularmente transcendentes, visto que
resultaram ser a primeira experiência com o novo sistema para os atores principais: os
partidos e os eleitores. Vejamos como foram as condutas e os efeitos do novo sistema
em cada um destes atores.
Desde o ponto de vista dos partidos, a nova regra foi um desafio significativo
para os dois partidos tradicionais que sempre fizeram uso da possibilidade das múltiplas
candidaturas presidenciais. Para esses dois partidos, as internas de abril
representaram, pela primeira vez desde sua constituição como partidos modernos, em
que deviam resolver sua pluralidade interna previamente à eleição nacional. Sem
dúvida, uma situação facilmente traumática por quanto definir um candidato único
significou que só uma das frações internas teria o apoio de um candidato presidencial,
enquanto que as frações restantes ficavam em situação desfavorável para a eleição
parlamentária, visto que não concorreriam com o candidato “favorito”.
Antes o sistema permitia a todas as frações concorrer com seu próprio líder
como candidato presidencial e se gerava, então, uma concorrência igualitária entre
varias lideranças de frações, dirimindo-se a condução do partido ao mesmo tempo em
que se designavam os cargos de governo. Depois de abril de 1999, houve uma “luta
entre pares” que marcou fortemente a realidade interna do partido, obrigando os líderes
das frações restantes a enquadrar-se à disposição do triunfador como candidato
subordinado daquele ou retirar-se, deixando a sua fração em situação de maior
fraqueza.
Com essa situação que apareceu como de alto risco para a unidade interna dos
partidos, que historicamente apareciam como plurais, conseguir-se-ia frear mediante a
aplicação da proibição para todo aquele que concorresse nas eleições internas de
poder apresentar-se logo por outro partido ou inclusive fundar um novo partido. De
310
modo que, fechada a apresentação de listas, se anulava toda possibilidade de excisão
política e cada dirigente nacional ou intermediário ficava impedido de romper o partido
em caso de derrota. Essa cláusula “contra o mal perdedor” permitiu dar continuidade a
partidos que em caso contrário, em função de suas tradições e de sua cultura política,
poderiam ter sofrido significativas rupturas.
Deve-se assinalar que, junto à cláusula mencionada, as disposições que
estabeleceram que o vice-presidente seria eleito pela Convenção Nacional de cada
partido e que os candidatos à Prefeitura seriam eleitos pelas Convenções Estaduais em
cada Estado foram outros componentes normativos que deram espaço para as
negociações que poderiam sanear as feridas geradas na contenda com resultados
possivelmente traumáticos. De igual modo, o fato de que a eleição do candidato
presidencial surgisse de uma contenda eleitoral aberta ao conjunto da cidadania,
simultânea para todos os partidos e com fiscalização do tribunal Eleitoral, outorgou ao
candidato único escolhido um grau de legitimidade muito elevado que fortaleceu a
continuidade da unidade partidária.
No caso dos partidos de esquerda, tradicionalmente defensores da candidatura
única por partido, essa norma representou alterações de menor significação na sua vida
interna. No caso do Novo Espaço, essa valoração se viu retificada, visto que se
apresentou como único candidato seu líder, Rafael Michelini. Paradoxalmente, essa
situação representou um problema, visto que a ausência de concorrência interna
representou perda do atrativo para votar em dito partido para um conjunto de eleitores
que, se não existissem situações de concorrência entre outras listas, naturalmente
votaria neste partido.
De todo modo, a própria evidencia da ausência de concorrência interna liberou
ao Novo Espaço da responsabilidade de demonstrar um nível de apoio eleitoral que, em
outras circunstâncias, poderia haver sido avaliado. Particularmente interessante
resultou a situação de outro partido de esquerda, o Encontro Progressista-Frente
Ampla. Nesse caso, a criação da instância de eleições internas em vez de propiciar,
como no caso dos partidos tradicionais, uma tendência obrigatória à redução de
opções, a nova regra gerou o surgimento de uma concorrência interna pela candidatura
presidencial única.
311
A valoração positiva e o apoio à norma de uma só candidatura por partido
continuou vigente na Frente Ampla, mas a nova normativa eleitoral colocou em
evidência um questionamento implícito, a forma de que tal candidatura se elege-se na
coalizão de esquerda. Ao passar de uma seleção do candidato presidencial entre
militantes no Congresso da Frente Ampla, a eleição a portas abertas, entre o conjunto
dos cidadãos, o consenso na eleição do candidato se viu substituído pela concorrência
interna
495
.
Essa foi, sem dúvida e mais além do resultado eleitoral, uma situação
radialmente nova para a Frente Ampla, acostumada a resolver seus problemas no
âmbito de seus organismos internos e de seus filiados militantes. O desafio de convocar
a cidadania frentista em geral foi uma novidade que mesmo naquela oportunidade,
ratificou a posição do entorno mais ativo, projetou-se para o futuro como um desafio
permanente com não poucas conseqüências na forma de fazer política e tomar
decisões por parte da coalizão.
Finalmente, desde o ponto de vista do eleitorado, também esta foi uma instância nova.
Pela primeira vez na história da democracia uruguaia, os cidadãos foram convocados
em forma aberta para dirimir assuntos que anteriormente se resolviam em cada partido
com seus próprios mecanismos. Foi, sem dúvidas, uma instância que aumentou o
poder de decisão do eleitorado; tratou-se de uma oportunidade de maior incidência
cidadã, porquanto teve pela frente a opção de decidir quem seria o candidato
presidencial de cada partido.
O cidadão, que antes tinha restringido seu voto a uma única instância aquela
que, ao mesmo tempo resolvia que candidato preferia de seu partido e quem seria o
presidente dos uruguaios, correndo o risco certo de contribuir, sem querer, a que
resultasse eleito um candidato não querido; depois da reforma, encontrou-se com uma
margem de decisão maior. A respeito, Mieres (1999) escreveu: “Em abril, os cidadãos
podem participar ou não na seleção do candidato presidencial de cada partido, já que o
voto é voluntário, mas com isso não abandonam seu poder de decisão, senão que, pelo
495
Nas eleições internas da Frente Ampla concorreram dois candidatos: Tabaré Vázquez e Danilo Astori.
Este último foi derrotado por Vázquez, que se elegeu o candidato à Presidência da República.
312
contrário, dará um primeiro passo em um processo em que sua opinião e poder de
decisão têm crescido substancialmente
496
.
Posteriormente, poderiam emitir novamente seu voto para eleger o presidente e
o Parlamento, e depois poderiam voltar a participar no segundo turno presidencial.
Além do fato de que muitos cidadãos reclamassem da proliferação de campanhas
eleitorais e se questionasse o fato da existência de múltiplas instâncias, o certo foi que
o poder de decisão do cidadão aumentou consideravelmente no país e isso foi tomado
como positivo para o fortalecimento da democracia. Obviamente, na medida em que os
eleitores tomaram consciência de dito poder, começaram a manifestar-se diferentes
alternativas não previstas. De fato, foi possível distinguir, na eleição de abril, um
conjunto de atitudes diferenciadas na conduta cidadã.
Por um lado, estavam os que permaneceram à margem do processo de decisão;
estes, de acordo com as pesquisas eleitorais, poderiam representar entre uma terceira
parte do eleitorado. Estavam os que se abstinham por falta de interesse nas questões
políticas em geral e os que assumiram esta conduta por não se sentirem integrantes de
nenhum dos partidos. Por sua vez, entre os que foram votar foi possível distinguir três
tipos de votantes. Em primeiro lugar, estavam os que se sentiam partes integrantes de
algum dos partidos que participaram na interna e, como tais, sentiram-se chamados a
decidir quem seria o candidato de seu partido.
Em segundo lugar, registraram-se os que, sem sentir-se parte de um partido em
particular, entenderam que deviam apresentar-se para apoiar aquele candidato que
contava com sua simpatia, na medida em que se estava selecionando aos que logo
concorreriam pela Presidência da República. De modo que se tratou de cidadãos que
careciam de adesão partidária, mas sentiam simpatia por algum dos candidatos. Em
terceiro lugar, deve-se incluir aqueles que votaram em abril como resultado de um
pensamento político que procurou maximizar a utilidade do voto. Esses votantes,
segundo Mieres, planejavam de que forma favorecer ou prejudicar determinados
candidatos com independência de suas próprias preferências
497
.
496
MIERES, Pablo. Posibilidades y Realidades en las Internas de Abril. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 149, abril de 1999, p. 45.
497
MIERES, Pablo, op. cit., p. 46.
313
Poucas semanas depois de realizadas as eleições internas, Hebert Gatto fazia
uma outra leitura do processo eleitoral pelo qual os partidos e cidadãos acabavam de
passar e que seria o moderno modelo adotado pelo país. O autor salientava que o
processo constituiu-se como uma instância de maior democracia e participação cidadã.
O problema estaria na obrigatoriedade do voto para as eleições internas, ou seja, maior
participação cidadã a partir da obrigação de votar. Salientou que as regras de igualdade
democrática entre os participantes (os partidos) requerem que as possibilidades de
publicidade sejam iguais para todos. Portanto, os meios de comunicação deveriam
somar-se a esse esforço comum, aceitando definitivamente que, sendo usuários de
espaços públicos, deveriam, como contrapartida, colaborar com a realização das
campanhas
498
.
Em relação aos eleitores, Gatto reabriu uma velha polêmica sobre a pergunta se
os uruguaios votam por candidatos, ou seja, por pessoas, ou se suas preferências são
subordinadas às opções partidárias. Escolhem partidos, e logo pessoas, ou estas
primam sobre aqueles? No anterior sistema constatou-se a existência, em ambas as
coletividades tradicionais, de uma importante massa de eleitores flutuantes, capazes de
transladar-se de uma a outra, segundo o perfil de seus candidatos. Esse fenômeno não
alcançava o voto da esquerda, mais ideologizado e, portanto, mais centrado nos
partidos que expressavam a doutrina política preferida pelo eleitor.
Se esse deslocamento não foi mais pronunciado deveu-se a que o duplo voto
simultâneo permitiu apoiar até o fim o candidato e, simultaneamente, a fração preferida,
diminuindo a tendência e a transferência interpartidária dos votantes. Entretanto essa
possibilidade foi cancelada pelo novo sistema, existindo a possibilidade de que o
número de eleitores frustrados nas suas opções, a partir do primeiro turno, poderia ser
muito maior. Portanto, a mudança de um partido para outro dependerá então de duas
condições: a primeira, a força da identificação partidária – quanto maior ela for, mais
difícil o abandono do partido –; a segunda, da aceitação ou não que possa suscitar o
candidato que resulte eleito na interna
499
.
498
GATTO, Hebert. Interrogantes sobre las Internas. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 150,
maio de 1999, p. 33.
499
Idem, p. 34.
314
Em resumo, o que o novo sistema eleitoral trouxe de significativo, além de novas
regras do jogo eleitoral, foi a instância até então desconhecida do segundo turno. Este
implicou a possibilidade da união do bipartidarismo tradicional, tanto para garantir a
eleição de um presidente representativo dos partidos tradicionais como também, e
fundamentalmente, um sistema de controle para dificultar o acesso da esquerda à
Presidência nacional. A principal ameaça do bipartidismo era o rápido e firme
crescimento da esquerda, principalmente em números, que despontou em 1994, como
o novo discurso da esquerda progressista, que captava votantes descontentes com os
partidos tradicionais.
Outro aspecto da conjuntura que deve ser assinalado foi o impacto da crise
econômica sobre o sistema político, o que revelou dimensões importantes. A descrença
generalizada no sistema de partidos, e nos políticos em particular, teve seu ápice no
período de 2000-2004, no governo de Jorge Batlle. A queda da imagem pública do
presidente Batlle não se concentrou na sua figura, senão que também se expandiu para
o conjunto do sistema, afetando o Governo como tal, o Parlamento, os partidos e a
política em geral.
No terreno do funcionamento institucional e do comportamento dos atores mais
relevantes até o momento da ruptura da coalizão de governo (de blancos e
colorados)
500
, não surgiram ações que colocassem em risco a ordem institucional. A
oposição permaneceu fiel a seu papel democrático, mantendo as mais diversas formas
de manifestações de descontentamento para com o Governo, dentro dos canais legais.
As organizações sociais, particularmente sindicatos e organizações estudantis, foram
as que atacaram com maior dureza o Governo, mas também sem transcender os limites
da institucionalidade vigente.
Enquanto isso, o objetivo estratégico do Encontro Progressista – Frente Ampla
de posicionar-se convenientemente para as eleições nacionais de 2004 levou-o a fazer
500
Em outubro de 2002 rompeu-se a coalizão de governo entre blancos e colorados, formada em
fevereiro de 2000 com base num acordo eleitoral entre ambos os partidos para a “governabilidade”, ou
seja, como necessidade dos partidos tradicionais de assegurar ganhar as eleições, vistas as novas
regras eleitorais. Através dessa coalizão, evitariam que o segundo turno possibilitasse à Frente Ampla o
triunfo das eleições nacionais. Após um casamento de 32 meses, por iniciativa do Partido Nacional a
coalizão terminou e como resultado o Partido Nacional retirou sua equipe de ministros do Governo
(Habitação, Desportos, Educação e Indústria e Trabalho), deixando o presidente Jorge Batlle numa
situação extremamente delicada. A presença de representantes blancos, com peso político próprio, era
um componente essencial do compromisso da coalizão. Para Batlle, inviabilizava-se a governabilidade.
315
um discurso “moderador” e, em muitos casos, “desmobilizador”, contrariando, assim, a
suas bases. Ao mesmo tempo, impulsionou uma estratégia direcionada a captar votos
de setores descontentes com os partidos tradicionais e, desta forma, ampliar seu
potencial eleitoral, aproveitando o mal-estar generalizado, produto da crise econômica e
de seu desgaste político. A esses objetivos estratégicos dedicou-se a coalizão de
esquerda, fundamentalmente entre os anos de 2002 até 2004.
316
3. A ESQUERDA PROGRESSISTA (1994-2004)
As grandes mudanças na esquerda uruguaia se completaram num processo que
se denominou de “atualização ideológica”, anunciado por Tabaré Vázquez ao encerrar,
em 1996, o Terceiro Congresso Ordinário da Frente Ampla Juan José Crottogini. O
processo registrou antecedentes desde 1994, mas a sua discussão formal no interior
frentista aconteceu em 1997, precisamente a partir de um documento no qual Vázquez
defendia a necessidade de uma atualização ideológica e expunha alguns de seus
norteadores, e foi concluído em 2001, no IV Congresso Extraordinário da Frente Ampla
“Tota Quinteros”.
Essa atualização teve continuidade, referida mais estritamente aos aspectos
programáticos, no centro da Comissão Integrada de Programas – CIP da Frente Ampla
e do Encontro Progressista, que ajustou o programa para as eleições de 2004. Mesmo
assim, a parte mais substanciosa dos debates e das mudanças que assentaram as
bases dessa importante renovação da esquerda aconteceu no período de transição.
Nesse período, a mesma se evidenciou na formulação do Encontro Progressista.
Durante esse lapso, o processo de renovação avançou de forma paralela dentro da
Frente Ampla até que terminou integrando-se no Encontro Progressista.
O programa e seus fundamentos ideológicos mais gerais continuaram
renovando-se e se desenvolvendo desde 1994 até 2004, onde se pode observar que
essa renovação apresentou dois momentos claramente diferenciados, divididos por
1999, um ano que foi um divisor de águas. Em primeiro lugar, desde o ponto de vista
político, 1999 representou o limite entre duas administrações de governo de coalizão
dos partidos tradicionais (o Partido Colorado e o Partido Nacional), dirigidos
alternativamente por uma fração do Partido Colorado, o Foro Batllista, primeiro, e pelo
batllismo conservador, depois. Em segundo lugar, desde o ponto de vista econômico, o
ano de 1999 foi um divisor de águas, visto que, por um lado, desde 1991 até 1999, o
país foi marcado pelo crescimento econômico e, pelo outro, 1999 a 2004, pela
estagnação e a crise.
317
No primeiro período, 1991 a 1999, o país viveu um crescimento significativo, mas
alguns indicadores sociais evoluíram, desde 1994, de forma preocupante, com uma
tendência ao aumento da pobreza
501
, o desemprego
502
e a precariedade do trabalho. O
crescimento conviveu com certos sinais de deterioração social. A expansão econômica
também soube conviver com o crescimento da esquerda, que foi captando a adesão de
setores marginais dos benefícios do crescimento, o que lhe permitiu obter a maioria
relativa nas eleições nacionais de 1999. A crise colocou em questão a sustentabilidade
do modelo de crescimento dos anos de 1990 e deixou em evidência alguns de seus
efeitos mais negativos.
Como se pode observar na tabela 7, o crescimento eleitoral da esquerda foi
gradativo e se intensificou a partir de 1994. Este fenômeno se compreende a partir de
duas situações particulares: por um lado, setores marginalizados economicamente e
excluídos do mercado de trabalho que foram historicamente clientes dos partidos
tradicionais, se incorporaram ao contingente eleitoral da Frente Ampla. Por outro lado, o
ano de 1994, coincidiu com a formação do Novo Espaço que captou votantes e
militantes descontentes com os partidos tradicionais incorporando-os eleitoralmente a
coalizão de esquerda.
501
Os indicadores de pobreza extrema são efetivamente alarmantes pelo seu gradativo crescimento.
Segundo estatística elaborada pelo Instituto Nacional de Estatística, os percentuais de pobreza extrema
no período 1999-2003 foram: em 1999, 1,2%; em 2000, 1,5%; em 2001, 1,3%; em 2002, 1,9%; e em
2003, 2,8%. Fonte: Instituto Nacional de Estadística. Estimaciones de Pobreza por el Método de
Ingresos. Montevideo, 2003, p. 3.
502
Os indicadores de desemprego foram: 1999, 11,3%; 2000, 13,6%; 2001, 15,3%; 2002, 17,0%; e 2003,
16,9%. Fonte: Idem, p. 5.
318
Tabela 7. Número absoluto de habilitados para votar por anos de eleições nacionais e percentual
de votos válidos da Frente Ampla, totais nacionais 1971-2004.
Eleições Nacionais Número total de
habilitados a votar
Percentual de votos
válidos da Frente Ampla
1971 1.878.132 18.28
1984 2.197.503 21.26
1989 2.319.022 21.23
1994 2.330.154 30,61
1999 2.402.160 40.10
2004 2.487.583 50.94
Fonte: BAYLEY, Miguel Aguirre. Frente Amplio, la admirable alarma de 1971: historia y documentos.
Montevideo: Cauce, 2005, p. 240. Estadisticas de la Corte Electoral. Instituto de Estadística y Censos.
2005, p. 12-19.
Desse modo, não somente o contexto doméstico foi favorável ao crescimento da
esquerda. No plano regional, algumas mudanças foram favoráveis para a aproximação
da esquerda com o Governo. A crise do menemismo na Argentina, o triunfo do Partido
dos Trabalhadores no Brasil e, finalmente, a orientação do governo de Nestor Carlos
Kirchner foram configurando um mapa totalmente diferente ao dos anos noventa. A
região voltou-se para a esquerda e a aposta na integração regional afastou-se da
concepção liberal original
503
. A política e a economia internacional também se
transformaram, com fortes impactos sobre a América Latina e suas relações com os
Estados Unidos. Por um lado, o avanço da globalização e seus efeitos negativos, e,
pelo outro, a ostentosa política imperialista assumida após os atentados de setembro
de 2001.
503
“O Mercosul e a Integração Sul-Americana: Mais do que a Economia – Encontro de Culturas”. Este foi
o nome do evento realizado em Fortaleza (Brasil), nos dias 13 e 14 de dezembro de 1996. Uma das
características do Encontro de Fortaleza foi a de discutir o Mercosul para além das questões econômicas,
e quem conduziu estes debates foram os intelectuais sul-americanos. O objetivo do Encontro de
Fortaleza foi utilizar a valiosa experiência de integração como catalisador para: 1) pensar a integração
regional desde o ponto de vista social e cultural, buscando incrementar o intercâmbio de experiências
políticas e intelectuais; 2) debater as experiências do Mercosul e sua utilização como um instrumento de
definição de um paradigma de cidadania e valores regionais; 3) estimular uma reflexão positiva sobre a
identidade regional, reflexão que pudesse conduzir a uma visão de nós mesmos mais centralizada em
nossa história e concepções de mundo. PEÑA, Félix; MATTA, Roberto Da. El Mercosul y la Integración
Sudamericana: Más allá de la Economía. In: Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 123, janeiro de
1997, p. 19-26.
319
Nesse contexto, a Frente Ampla aproximava-se do Governo com uma estratégia
que lhe resultou eficaz e que teve um componente ideológico e programático relevante,
que não foi independente nem do contexto externo, nem do interno, nem de seu novo
lugar no sistema político nacional. Desde que se constituiu na terceira parte do
eleitorado, em 1994, o Encontro Progressista – Frente Ampla seguiu experimentando
um contínuo processo de crescimento eleitoral e político: “ultrapassou os 30% em 1994
e registrou, ano após ano, um crescimento substancial nas manifestações de intenção
de voto, segundo as pesquisas de opinião pública”
504
. Obviamente que isso foi reflexo
do descontentamento com os partidos tradicionais e também de uma estratégia que
procurou canalizar esse descontentamento. Como exemplo desse descontentamento
dos eleitores com os partidos tradicionais pode-se observar na tabela 8, o percentual de
votos válidos em cada eleição nacional.
Tabela 8. Eleições Nacionais: percentuais sobre votos válidos em todo o país, 1971-2004 - Partido
Nacional e Partido Colorado.
Eleições Partido Nacional Partido Colorado
1971 40.19 40.97
1984 35.04 41.22
1989 38.88 30.29
1994 31.21 32.39
1999 22.31 32.78
2004 35.12 10.61
Fonte: Elaboração do autor a partir de informações em: MARIUS, Jorge Leonel; GIMENEZ, Wilfredo.
Primera Elección Uruguaya del Siglo XXI. Montevideo: Proa, 2005, p. 83-112.
A Frente Ampla, no quadro de sua transformação, apresentou uma estratégia
política que teve como base a combinação de dois elementos: por um lado, a oposição
forte aos partidos tradicionais no Governo; e por outro, a moderação ideológica e
programática. Dessa forma, a Frente Ampla, sem abandonar a esquerda, foi se
expandindo para o “centro”, ao tempo em que captava todo o benefício do
descontentamento da população com algumas das reformas estruturais e, desde 1999,
com a crise econômica e social. Nessa opção pela moderação fundamentou-se a
política de alianças, impulsionada, de forma decidida, por Vázquez e concretizada
primeiro no Encontro Progressista e, posteriormente, na Nova Maioria, abrindo, assim,
504
GARCÉ, Adolfo; YAFFÉ, Jaime. La Era Progresista. Montevideo: Fin de Siglo, 2004, p. 70.
320
círculos concêntricos e permitindo aumentar o contingente eleitoral da Frente Ampla,
conquistando o espaço político de centro esquerda e conservando seu eleitorado de
esquerda
505
.
Dois fatores poderiam explicar como a Frente Ampla conseguiu conquistar
eleitores do centro sem perder eleitores da esquerda. Em primeiro lugar, não surgiu,
nesse período, nenhum desafiante de importância na esquerda nacional que pudesse
disputar sua base eleitoral. Em segundo lugar, o espaço de centro- esquerda estava
disponível ao fracassar a primeira tentativa de constituir o Novo Espaço, que acabou se
dissolvendo em 1994
506
, precisamente no momento em que o Encontro Progressista fez
sua estréia eleitoral.
Além das disputas por lideranças e candidaturas, a partir de 1996 se produziu
um intenso debate personalizado nas figuras de Tabaré Vázquez e Danilo Astori. As
diferenças sobre a forma de exercer a oposição ao Governo, vinculadas ao conflito pela
liderança da Frente Ampla, contribuíram para uma estratégia de “vale tudo”, ou seja,
ampliar as bases eleitorais, contando com a conquista dos espaços de centro, foi a
política de ambos os candidatos, apesar de qualquer outra diferença substancial. O
posicionamento mais centrista de Danilo Astori, desde 1996, o transformou numa peça-
chave da estratégia do progresismo para as eleições nacionais desse ano. A renovação
ideológica e programática não foi afetada pela dissidência de Danilo Astori. Logo após
de haver rejeitado inicialmente ao Encontro Progressista e a implícita moderação do
programa frentista, voltou-se para a estratégia da renovação programática, até o ponto
de se converter no seu representante mais reconhecido.
Em 1997, James Petras, em entrevista concedida ao Semanário Mate Amargo,
identificou que a Frente Ampla, no contexto hegemônico do neoliberalismo, tinha no seu
interior setores, como o liderado por Danilo Astori, que estavam caminhando em direção
505
Aparentemente, provocou-se um deslocamento, tanto da direita como da esquerda, em direção ao
centro liberal, com a conseguinte revalorização da democracia liberal e dos direitos e garantias por ela
implicados. Nesta dimensão, reduziu-se a polarização ideológica e, conseqüentemente, as diferenças
ideológicas interpartidárias. Isso levaria a facilitar o processo de “migração” de setores dos partidos
tradicionais para a centro esquerda.
506
A partir do fracasso da primeira tentativa, nasceu o segundo Nuevo Espacio, mas já não como uma
coalizão de partidos, senão como o setor político que abrigou os dissidentes do Partido pelo Governo do
Povo – PGP, que adotam o nome abandonado pela aliança anterior, fundada em 1989. Posteriormente,
vários dirigentes dissidentes retornaram à Frente Ampla no marco da Nova Maioria, que concentrava ao
Encontro Progressista e ao Novo Espaço.
321
a uma assimilação da social-democracia com o neoliberalismo. “Neste contexto, a
Frente Ampla, no seu conjunto, modificou sua orientação para um programa de
modernização, competitividade, inserção no projeto globalizador do capitalismo
507
” e, a
partir disso, enfrenta o problema de como conciliar um discurso radical, que reflete o
passado, com uma política atual, que busca uma nova inserção.
Nesse sentido, junto ao papel de Tabaré Vázquez, com o apoio decidido do
Partido Socialista e da Vertiente Artiguista nessa aposta de moderação e a política de
alianças em busca de um governo de maiorias nacionais, o Movimento de Participação
Popular – MPP, hoje força majoritária, foi peça-chave para legitimar esta estratégia
dentro e fora da Frente Ampla, limitando muito as margens para o surgimento de uma
oposição interna forte dentro do frenteamplismo mais à esquerda, o mesmo que uma
alternativa política externa que pudesse concorrer com a Frente Ampla desde sua
esquerda, com possibilidades de disputar-lhe um espaço. O MPP, desde 1995, aderiu à
estratégia de Tabaré Vázquez, e José Mujica começou a surgir não só como um dos
referenciais públicos mais importantes da Frente Ampla, senão como um dos principais
promotores da atualização ideológica e a moderação programática, provocando uma
ruptura interna no MPP
508
. Assim, o MPP, e particularmente José Mujica, foram fatores
fundamentais para o êxito da estratégia de Tabaré Vázquez. (ver impacto eleitoral na
tabela 9).
507
PETRAS, James. (entrevista) In: Semanário Mate Amargo. Montevideo: n. 116, outubro de 1997, p.
11.
508
Os setores que não fizeram acordo com esta mudança resultaram minoritários e se afastaram do MPP
para formar a Corriente de Izquierda. O Partido pela Vitória do Povo – PVP já se havia afastado
anteriormente, tomando um caminho próprio. Em 1995, afastaram-se o Partido Socialista dos
Trabalhadores – PST e o Movimento Revolucionário Oriental – MRO. Desde esse momento, o MPP ficou
configurado como um espaço ampliado do MLN Tupamaros e de setores independentes.
322
Tabela 9. Votos da Frente Ampla – Distribuição por setores (percentuais). Eleições nacionais,
primárias e internas 1997- 2004. Votos dos cinco principais setores.
Eleições Assembéia
Uruguai
Vertente
Artiguista
Partido
Socialista
MPP Partido
Comunista
Internas 1997 13 14 34 16 16
Primárias 1999 17 15 29 13 9
Nacionais 1999 20 12 27 14 8
Internas 2002 10 8 27 29 11
Primárias 2004 9 8 18 33 6
Fonte: LANZANO, Jorge. La Izquierda se acerca a los uruguayos y los uruguayos se acercan a l a
izquierda. In: La Izquierda Uruguaya: entre la oposición y el gobierno. Montevideo: Fin de Siglo, 2004,
p. 70.
O apoio público dos dirigentes tupamaros à estratégia e ao programa
“progressista” foi muito importante no plano simbólico. Ninguém se atreveu a acusar
publicamente os ex-guerrilheiros de estar traindo ideais. Dessa forma, sem romper com
seu passado, o MLN realizou uma grande contribuição para legitimar, em particular
perante os militantes e votantes de esquerda, a aposta na moderação programática, via
ampliação da política de alianças. Qualquer explicação do porquê a Frente Ampla
conseguiu modificar tão profundamente seu programa e avançar em direção ao centro,
sem perder seu eleitorado de esquerda, deverá tomar em contra este fator.
Além dos já mencionados, outros dois fatores, a institucionalização e a
tradicionalização, contribuíram para o resultado dessa operação política. Ao longo dos
anos, a Frente Ampla foi se institucionalizando cada vez mais como partido, ganhando
estrutura e organicidade, e absorvendo os componentes originais da coalizão, que se
transformaram em frações de partido. Junto com essa institucionalização que o
fortaleceu como estrutura de partido propriamente dito, desenvolveu-se e consolidou-se
uma forte identidade partidária a partir da construção de uma nova tradição política,
jovem e dinâmica, que fez com que a Frente Ampla se constituísse na terceira tradição
política uruguaia.
As bases fundamentais da “atualização” foram definidas desde o período de
transição da esquerda uruguaia (1984-1994), abordado no capítulo anterior. Nesse
último período, a renovação foi proclamada e concretizada no marco de um debate
323
interno que, a partir de uma proposta de Tabaré Vázquez, processou-se entre 1997 e
2001, e, posteriormente, continuou nos documentos da Comissão Integrada de
Programas – CIP da Frente Ampla e do Encontro Progressista, passando pelo IV
Congresso Extraordinário da Frente Ampla “Héctor Rodríguez”, em 2003.
O dirigente frenteamplista Danilo Astori manifestou, em entrevista a Cuadernos
de Marcha (1998), que a Frente Ampla caso de chegar ao Governo nacional, trabalharia
com uma economia capitalista, “que vai continuar sendo capitalista”. Portanto, não
existia nenhuma pretensão de discutir o sistema, e aproveitou a oportunidade para dizer
que “A Frente Ampla nunca teve uma proposta socialista, e sim uma proposta de
democracia avançada”
509
. Essas declarações não encontraram réplica dos outros
setores frenteamplistas; refletindo o espírito de “renovação ideológica” existente na
esquerda frentista, o que, em outro momento, seria impensável de se manifestar.
Desde o ponto de vista da trajetória ideológica, a instância que resultou chave foi
o Congresso “Tota Quinteros” (2001), ponto culminante da atualização dentro da Frente
Ampla. Ele foi precedido de uma ampla discussão interna alimentada por uma grande
quantidade de documentos de distintas frações frentistas, comissões de trabalho e
órgãos de direção. O mencionado Congresso aprovou três documentos relevantes, com
denso conteúdo ideológico e programático, intitulados: Pautas para el Desarrollo
Ideológico y la Elaboración Programática; Grandes Líneas de Acción Política; e
Nuestras Señas de Identidad. Entre eles, o primeiro e o terceiro foram particularmente
importantes para o estudo da ideologia da esquerda na fase “progressista”.
Ademais, faz-se oportuno assinalar que o documento Nuestras Señas de
Identidad foi o primeiro que oficialmente colocou de forma explícita a existência de uma
ideologia propriamente frenteamplista e que se propôs assumir a necessidade de uma
atualização permanente. Esse foi, em si mesmo, um fato sintomático da acumulação do
processo de institucionalização e construção partidária do que originalmente foi uma
coalizão de partidos e frações. Durante um longo tempo, o senso comum frenteamplista
pressupunha que a ideologia era reduto de seus grupos componentes e que o acordo e
a identidade frentistas descansavam no programa.
509
ASTORI, Danilo. Defender a UTE y renovar el Frente. (Entrevista) In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 137, março de 1998, p. 38.
324
Uma vez aprovado no Congresso, a Frente Ampla declarou que: “A identidade
ideológica constituída em comum, mantendo o respeito pelas linhas ideológicas de
cada companheiro, partido ou movimento integrante da Frente Ampla, constitui uma
tarefa permanente e necessária. Trata-se de um processo unitário de pensamento e
ação em volta dos valores e princípios que, em 1971, motivaram a fundação da Frente
Ampla, que [hoje] reafirmamos e que dão marco às decisões de caráter programático e
às grandes linhas estratégicas de ação política para os períodos entre Congresso e
Congresso”
510
. Em definitivo, assumiu-se o que se vem discutindo neste texto.
Primeiramente, que é possível de se reconhecer uma ideologia frenteamplista – como
conjunto de concepções gerais sobre a economia, a sociedade, a política e as relações
internacionais –, mesmo quando esta não era assumida como tal. Em segundo lugar,
que esta ideologia frenteamplista é o fundamento da formulação da estratégia política e
do programa da esquerda.
A partir dos documentos antes mencionados, é possível reconstruir o estado de
quase todos os capítulos da ideologia da esquerda que vimos recorrendo, de forma
mais ou menos sistemática, para os dois períodos anteriores. Quanto aos referentes
ideológicos universais, estes são o único âmbito do ideológico que seguiu radicado nos
distintos componentes do conglomerado de esquerda, sem que seja possível identificar
explicitamente um propriamente frenteamplista, muito menos encuentrista. Nesse
sentido, as referências ao marxismo ficaram muito reduzidas a alguns grupos,
predominando, no conjunto, uma definição socialista frouxa, muito vinculada à crítica à
globalização e do neoliberalismo, como expressão contemporânea da crítica ao
capitalismo.
A versão do socialismo reconhecível na Frente Ampla se encontrava – no
período – muito próxima ao velho paradigma da social-democracia, ainda que numa
versão um pouco mais à esquerda que o modelo europeu ocidental. Seria uma versão
contemporânea da concepção etapista da revolução que predominava no período do
frentismo fundacional – no pensamento sesentista –, a Frente Ampla se propõe
desenvolver “um capitalismo levado a sério”, mantendo um horizonte, utópico e finalista,
de tipo socialista. Pode-se observar, uma vez mais, a presença do enfoque social-
510
FRENTE AMPLIO. Nuestras Señas de Identidad. Montevideo: mimeo, 2001, p. 2.
325
democrata da Cepal, também presente, de forma mais velada que agora, no período
fundacional da Frente Ampla.
Há, pelo menos, dois elementos a mais que colocam de forma adequada a
Frente Ampla nos moldes social-democratas, e eles são: a nova concepção de
mudança social e política e a revalorização da democracia política associada ao
socialismo como modelo de organização econômica e social. Por que então a esquerda
uruguaia renega a proclamar-se decididamente social-democrata, se de fato sua
ideologia a coloca nessa corrente do pensamento político? Basicamente, poderiam ser
apontadas duas razões para tal. Em primeiro lugar, a renúncia da social-democracia
européia à utopia socialista e sua aceitação, no marco do que se proclamou como uma
“terceira via”, do capitalismo, como a forma superior de organização da sociedade, no
qual seria possível se atingir o princípio fundamental da esquerda, a igualdade, sem
renunciar à liberdade. Em segundo lugar, pela virada da direita, que evidenciara, desde
os anos noventa, a alguns dos principais partidos social-democratas europeus, com
extremos como o do laborismo inglês durante o governo de Tony Blair
511
.
Quanto à concepção de mudanças, notoriamente a esquerda foi substituindo o
ideal da revolução por uma aproximação reformista e gradualista. Em todo caso, o
mesmo que aconteceu no referencial socialista, a revolução era entendida não como a
modalidade das transformações que se queriam realizar, senão como o resultado final
de um processo contínuo de reformas gradativas
512
. Afirmava Tabaré Vázquez, em
novembro de 1997: “O próximo governo progressista tem que ser compreendido como
dentro de uma etapa de mudanças e, portanto, deverá ser avaliado numa perspectiva
histórica. É necessário ter absolutamente claro que não se trata de aparar as arestas do
modelo liberal vigente, como também não se aspira a colocar em marcha um programa
de revolução social. Trata-se de avançar num modelo de desenvolvimento que permita
ir compatibilizando seus componentes fundamentais: crescimento, distribuição de
511
Um dos expoentes principais da “terceira via”, com o qual a esquerda uruguaia e, em geral, a latino-
americana, nucleada no Foro de São Paulo, não se reconheciam.
512
As mudanças definiam o perfil e os principais pontos de uma política para um período de governo. O
caráter da mudança que se impulsionou e suas principais bandeiras programáticas ficaram delimitadas.
Na definição de Enrique Rubio (1997), a proposta inseria o frentismo na história plural do progressismo.
Tomava distância, ao mesmo tempo, das posições liberais e revolucionárias. Propunha a construção de
acordos “sociais” e de “maiorias” fundadas na sociedade civil e na elaboração de alianças políticas e
parlamentares. RUBIO, Enrique. El Frentismo del Futuro: de las internas al gobierno nacional. In:
Cuadernos de Marcha. Montevideo: n. 133, dezembro de 1997, p. 37.
326
riqueza com justiça social, soberania nacional e regional, realização integral de
mulheres e homens, liberdade e a mais ampla participação política”
513
.
Dessa forma, Vázquez apresentou as bases de um modelo alternativo para o
país. Nesse sentido, Ricardo Antunes (2004) realizou uma análise sobre as propostas
de “caminhos alternativos” para a esquerda latino-americana. Assim, afirmou que o
mais forte partido de esquerda do Brasil e da América Latina, que se tornou referência
internacional, não foi capaz de consolidar um caminho alternativo. “O Partido dos
Trabalhadores – PT acabou por converter-se num partido da ordem. Exauriu-se como
partido de esquerda, capaz de transformar a ordem social, para se qualificar como
gestor dos interesses dominantes no país”
514
.
Para Antunes, ocorreu um processo de desertificação social no Brasil, resultado
das transformações acontecidas ao longo da década de 1990. Assim, o PT converteu-
se num partido que sonhava em humanizar o capitalismo, adotando políticas de
privatização dos fundos públicos. Transformou-se num partido “[...] que atende tanto
aos interesses do sindicalismo de negócios quanto, especialmente, àqueles presentes
no sistema financeiro nacional e, especialmente, internacional que efetivamente
dominam”
515
.
A revalorização da democracia, incorporada após a traumática experiência
autoritária e consolidada como um dos pontos centrais da renovação processada no
período de transição, sedimentou-se plenamente no período posterior (progressista).
Não existiram questionamentos à democracia “formal” per se, mas tampouco uma visão
complacente de seu estado atual. Nesse sentido, a crítica às falências da democracia
uruguaia contemporânea, sem colocar em questão a adesão à mesma como sistema,
tem sido um dos sinais de identidade da esquerda, no sistema político. “Queremos uma
democracia plena e plural. Perante as limitações substantivas da situação atual, somos
513
VÁZQUEZ, Tabaré. Pautas para el Desarrollo Ideológico y la Elaboración Programática.
Montevideo: mimeo, 2001, p. 4. (aprovado no Congresso da Frente Ampla “Tota Quinteros”, em 2001).
514
ANTUNES, Ricardo. Um Novo Desafio. In: Margem Esquerda: ensaios marxistas. São Paulo:
Boitempo, n. 4, 2004, p. 42.
515
Idem.
327
a favor de aprofundar e transformar [...]”
516
. Ali apareceram os reclamos de aprofundar e
ampliar a democracia através de mecanismos de participação
517
.
As concepções de igualdade e liberdade foram outro ponto fundamental da
ideologia da esquerda. O assinalar da pobreza e, mais genericamente, das
desigualdades socioeconômicas como déficit democrático evidenciou a continuidade de
privilégios da Igualdade como preferência valorativa da esquerda. Diferente do período
fundacional, pode-se dizer que a persistência da preferência pela Igualdade social
conviveu com a nova valorização da liberdade política, de tal forma que democracia e
justiça se associaram de uma nova forma: “A liberdade, a igualdade e a justiça social
são as grandes metas da Frente Ampla [...] reivindicamos a liberdade e a igualdade, a
solidariedade e a justiça como nossos principais valores”
518
.
Por sua vez, a relação Estado-Mercado seguiu dando uma importância central ao
Estado, mas se incorporou, ao mesmo tempo, uma visão do papel do mercado. A
posição pode ser qualificada como um novo estatismo moderado pela designação de
funções específicas das relações de mercado e pelo reconhecimento das ineficiências
do Estado, assim como pela necessidade de uma rearticulação eficiente entre Estado e
mercado. “Concebemos um Estado ativo, promotor do crescimento econômico, em
beneficio do desenvolvimento com justiça social e democracia plena que regule o
mercado. Um Estado com sensibilidade e responsabilidade social, re-distributivo que
garanta os serviços básicos para a vida da população, que desenvolva políticas sociais
e ambientais que melhorem a qualidade de vida dos uruguaios”
519
. Dessa forma, surgiu
a adesão ao postulado da reforma do Estado – numa versão crítica da linha
privatizadora – e, por outro lado, reclamou-se a re-definição do papel do Estado, com
predomínio de uma regulação ativa do mercado, já não de sua supressão.
516
FRENTE AMPLIO. Nuestras Señas de Identidad. op. cit., p. 7.
517
Esses mecanismos visariam prioritariamente à necessidade de se obter a completa subordinação das
Forças Armadas ao poder civil; da mesma forma, resolvendo de uma vez, entre outros assuntos
pendentes, a questão dos detidos desaparecidos. Os nocivos efeitos da concentração dos grandes meios
de comunicação e difusão televisiva sobre a liberdade de informação e de imprensa e, finalmente, a
denúncia do déficit social da democracia que, ao perpetuar-se, ameaçaria questionar sua
sustentabilidade e legitimidade.
518
FRENTE AMPLIO. Nuestras Señas de Identidad. op. cit., p. 11.
519
FRENTE AMPLIO. Pautas para el Desarrollo Ideológico y la Elaboración Programática.
Montevideo: mimeo, 2001, p. 18.
328
De igual forma, confirmou-se a re-significação do papel da Sociedade Civil e de
suas organizações e sua rearticulação com o Estado na elaboração e implementação
das políticas públicas, em particular das políticas sociais. Essa re-significação parte do
reconhecimento de que “Desenvolveu-se uma nova área de trabalho em nível da
sociedade que não pertence à órbita do Estado, nem a das empresas capitalistas,
senão ao conjunto de instituições e empreendimentos sociais com finalidades públicas
ou privadas e sem fins lucrativos”
520
. Dessa forma, a complementaridade do Estado
com esse “terceiro setor” se dava a partir do relacionamento do Estado com essa área,
assumida desde uma lógica “progressista”.
A orientação em direção ao conflito social e a luta de classes como motor do
desenvolvimento histórico, se bem que subsista como interpretação do
desenvolvimento histórico social, foi substituída, na política prática e na definição da
política de alianças, pela promoção do “acordo social” pelo crescimento econômico e o
desenvolvimento humano, a partir do pressuposto de que “A luta pelas mudanças
necessita que se processe uma política de acordos de todos os setores sociais
afetados pela política econômica e social impulsionada pelo bloco no poder, para
enfrentá-la com a maior força possível”
521
. De uma alta preferência pelo conflito, foi-se
transitando para a proclamação da necessidade de concertación e, inclusive, a
promover a idéia, tradicionalmente rejeitada, do “pacto social”.
Isso se vincula, por um lado, com o efeito das reformas liberais que foram
alterando radicalmente a fisionomia econômica e os equilíbrios entre os setores
econômicos e sociais, numa orientação que prejudicou notoriamente os setores
produtivos (tanto agropecuários como industriais), assim como a configuração do
mundo do trabalho e as relações trabalhistas num sentido notoriamente prejudicial para
os trabalhadores e suas organizações. Por outro lado, há uma relação com um dos
componentes da estratégia política do Encontro Progressista – Frente Ampla e a
magnitude de seu discurso em termos sociais, visto que, neste período, consolidou-se o
abandono do obrerismo e a propensão ao policlassismo, como um elemento que se
aprofundou durante o período de transição.
520
Idem, p. 21.
521
Idem, p. 24.
329
Em matéria de relações internacionais, a ideologia frentista apresentou dois
aspectos importantes neste período. Em primeiro lugar, o antiimperialismo fundacional
(ou sesentista) amornou-se notoriamente, tendendo a uma relação menos conflitante
com os Estados Unidos e com os organismos financeiros internacionais. Isso é o
resultado de vários fatores:
1) a desaparição da URSS gerou um profundo desequilíbrio na política internacional;
2) a alta fragilidade das economias pequenas e médias numa economia internacional
crescente e interconectada;
3) por último, a proximidade ao Governo, que foi colocando a esquerda na difícil
situação de manter o confronto com os poderes financeiros e militares do mundo
contemporâneo ou se adequar a um caminho de relações e negociações pelas quais
teria que transitar desde o Governo nacional.
A agitação antiimperialista e antinorte-americana que sacudiu a esquerda desde
que se produziu a virada agressiva e intervencionista da administração Bush agitou,
mas não reverteu este processo de maior impacto. Esta se viu facilitada pela maior
flexibilidade que os organismos financeiros exibiram após seu rotundo fracasso,
particularmente evidente no caso argentino. Em segundo lugar, e relacionado com o
anterior, a re-vigorização na aposta do Mercosul no novo contexto político regional
correspondeu-se com a reavaliação da integração regional entre os postulados que
integram as concepções gerais da esquerda em matéria de relacionamento
internacional. A visão de um Mercosul produtivo e comercial, por contraposição ao
primeiro Mercosul, dos anos 1990, financeiro e liberal, ao que a esquerda questionou
severamente, foi redimensionado como apoio às iniciativas desenvolvidas desde os
Governos do Brasil e Argentina e como alternativa à plataforma de liberalização
comercial continental promovida pela administração Bush.
A Central Sindical PIT-CNT, no ato do 1º. de maio de 2001, declarava: “As
perspectivas de construir as condições para o desenvolvimento produtivo e social do
país serão, no marco de uma política de inserção internacional, a favor de um Mercosul
transformado, de complementação produtiva e de avanços sociais, culturais e
democráticos de nossos povos, ou não serão”
522
. As referências antiimperialistas
522
PIT-CNT. Proclamación del 1º. de mayo de 2001. Montevideo: mimeo, p. 12.
330
estiveram sempre presentes nos discursos da Central Sindical, diferente do discurso
frentista que iniciou, no período de transição ideológica da esquerda, um processo de
re-enquadramento sobre o tema.
Estamos, na porta do século XXI, no meio de uma grande revolução científico-
tecnológica; mesmo assim, ela nos coloca frente a um grande desafio: ou
somos capazes de construir uma ordem social e política nova ao serviço da
humanidade ou nos convertemos em vítimas de um desenvolvimento produtivo
irracional e desumanizado. No final do último ano [1998] foram os ataques ao
Iraque, agora o ataque à Iugoslávia. Os chamados países desenvolvidos,
comandados pelos Estados Unidos, voltam a agredir o mundo. O poder dos
fortes é o que impera sob a razão. Milhões e milhões de dólares em
armamentos sobre a Iugoslávia, levantamos nossa voz e condenamos
energicamente o imperialismo norte-americano e seus aliados europeus
523
.
O sindicalismo uruguaio realizou severas críticas à proposta liberal do Mercosul e
propôs uma integração alternativa, onde o Mercosul fosse um elemento de integração
“real” entre os povos da região. Também foi uma constante a denúncia a todas as
manifestações do imperialismo. Aqui se pode observar uma particularidade
especificamente uruguaia: os partidos e organizações da esquerda (eleitoral) foram
historicamente uma maioria dentro do movimento sindical; apesar disso, os militantes
sindicais não aderiram aos discursos da Frente Ampla
524
que, como vimos, abandonou
paulatinamente o discurso antiimperialista a partir de 1994. A autonomia e
independência do movimento sindical em relação aos partidos políticos e ao Estado
mantiveram as características históricas do país.
Por outro lado, a evolução programática do frentismo durante o período que vai
desde a criação do Encontro Progressista, em 1994, até o IV Congresso Extraordinário
“Héctor Rodríguez”, realizado em dezembro de 2003, demanda a análise de duas
séries de documentos. Por um lado, identificar a evolução do programa da Frente
Ampla, seguindo a seqüência de seus congressos ordinários e extraordinários. Por
523
PIT-CNT. Proclamación del 1º. de mayo de 1999. Montevideo: mimeo, p.1.
524
Uma particularidade já identificada por Adam Przeworski (1997), que observou que um traço
característico da democracia capitalista consiste na individualização das relações de classe na esfera
política e ideológica. Assim, as pessoas que no sistema de produção classificam-se como capitalistas ou
assalariadas, aparecem na política como indivíduos ou cidadãos indistintos. “Desta forma, mesmo que
um partido político consiga formar uma classe no âmbito das instituições políticas, as organizações
econômicas e políticas jamais coincidem. Sindicatos e partidos diversos, freqüentemente representam
interesses diferentes e competem entre si”. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-Democracia.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 27.
331
outro, se deve revisar como foi mudando o programa do Encontro Progressista. Pode-
se sintetizar o ocorrido como um processo de convergência entre ambos os programas.
As linhas programáticas da Frente Ampla, a partir de 1998, não diferem das do
Encontro Progressista de 1994. Por sua vez, o programa do Encontro Progressista de
1999 recolheu, num altíssimo percentual, a elaboração realizada pela Frente Ampla até
seu II Congresso Extraordinário, de julho de 1994.
Entre 1984 e 1994, o programa da Frente Ampla foi abandonando algumas de
suas idéias fundacionais mais importantes, como a reforma agrária e a nacionalização
do sistema bancário e do comércio exterior. Mesmo assim, no II Congresso
Extraordinário, de 1994, fracassou a tentativa dos setores mais moderados por eliminar
as posturas históricas em matéria de sistema financeiro e de dívida externa. Esses
objetivos seriam atingidos entre 1996 e 1998. Além dessas mudanças programáticas,
plenamente coerente com a estratégia de avançar para um “governo de maiorias
nacionais” que se havia imposto claramente a partir do II Congresso Ordinário, de 1991,
o programa da Frente Ampla, durante a fase progressista, seguiu incorporando outros
novos elementos.
O III Congresso Ordinário, realizado de 20 a 22 de dezembro de 1996, marcou o
início oficial da liderança de Tabaré Vázquez dentro da Frente Ampla. Líber Seregni
havia renunciado à presidência da Frente Ampla em cinco de fevereiro de 1996, como
causa da polêmica em torno de que postura devia assumir a Frente Ampla ante a
reforma constitucional que promovia o presidente Julio Maria Sanguinetti. O III
Congresso Ordinário designou, por unanimidade, Tabaré Vázquez como presidente da
Frente Ampla.
Desde o ponto de vista programático, esse Congresso trouxe duas novidades
importantes. Em primeiro lugar, o programa do “modelo alternativo”, que se estruturava
em torno de três eixos que se conservaram durante longo tempo: i) país produtivo, ii)
políticas sociais, iii) democratização da sociedade e do Estado. Em segundo lugar,
nesse congresso desapareceu o histórico postulado da “nacionalização do sistema
bancário”. O tema financeiro passou a ser formulado nos seguintes termos: “A
reestrutura do sistema financeiro é um tema central, fundamentalmente para re-dirigir
seus recursos para as atividades produtivas e para o início do pagamento da dívida
332
social [...] É necessário estabelecer uma regulação nacional de poupança e de crédito
para que este sirva à produção do país”
525
.
Posteriormente, as linhas programáticas aprovadas no III Congresso
Extraordinário “Alfredo Zitarrosa”, realizado de 20 a 22 de dezembro de 1998,
mantiveram a estrutura dos três grandes eixos identificados no III Congresso, de 1996:
primeiro, um capítulo sobre problemas e políticas sociais (La busqueda de la justicia
social. Pobreza, desigualdad, marginación y exclusión); segundo, um capítulo sobre
políticas económicas (Transformaciones hacia un país productivo); terceiro, um capítulo
com problemas institucionais (La democratización de la sociedad y del Estado. Políticas
institucionales).
O Congresso aprovou as Grandes Linhas Programáticas e Estratégicas da
Frente Ampla. No essencial, elas se direcionavam a: investimentos do Estado em
empresas inovadoras produtivas e geradoras de emprego; implementação de um
sistema fiscal finalista e mais justo, com base na criação do Imposto de Renda das
Pessoas Físicas (com a conseqüente redistribuição de ingressos); melhorias salariais
através do desenvolvimento de um setor produtivo, em oposição ao país especulativo,
ao grande latifúndio improdutivo e à corrupção; apoio à pequena e média empresa;
democratização do crédito; renegociação da dívida externa e o fomento às cooperativas
agrárias.
Esse documento contém uma mudança de extraordinária importância: a Frente
Ampla modificou oficialmente sua posição histórica em torno da dívida externa: “[...] o
governo progressista, sem fugir às obrigações contraídas pelo Estado, buscará aliviar a
carga externa, sem aceitar imposições dos organismos internacionais de crédito,
renegociando prazos”
526
. Evidentemente, essa mudança deve explicar-se a partir das
dinâmicas ideológicas e políticas no interior da esquerda, mas também a partir de um
fato muito concreto: Luis Alberto Lacalle, em 1990, havia obtido uma importante
renegociação da dívida externa.
525
FRENTE AMPLIO. Resoluciones del III Congreso Ordinario del Frente Amplio “Prof. Juan José
Crottogini”. Montevideo: mimeo, 1996, p. 16-17.
526
FRENTE AMPLIO. Resoluciones del III Congreso Extraordinario “Alfredo Zitarrosa”. Montevideo:
mimeo, 1998, p. 35.
333
O Congresso também se pronunciou contra as reformas de políticas sociais mais
polêmicas da época, a da Segurança Social
527
e a reforma educativa
528
. No caso da
Segurança Social, aprovaram-se as bases de uma proposta alternativa àquela
impulsionada e implementada pelo Governo: “O novo sistema de segurança social terá
um caráter integral e deverá estar sustentado nos princípios de universalidade,
redistribuição, solidariedade intergerações, participação, eficiência, proteção e aporte
tripartita, fortalecendo o sistema básico e público”
529
. Quanto à reforma educativa
liderada por Germán Rama, o Congresso ratificou a declaração de desacordo à reforma
educativa aprovada pelo Governo em 21 de dezembro de 1997, criticando seriamente a
posição de Rama pela sua liderança e participação, sendo ele frenteamplista.
Por sua vez, nesse período, a Vertiente Artiguista
530
apresentava um documento
sob o título de Por un País Solidário, Moderno y Sustentable: aportes programáticos de
la Vertiente Artiguista (1998), no qual se explanava acerca da necessidade da
atualização ideológica, porque, segundo o documento, não se podia prometer aquilo
que não era possível ser cumprido, mas também não era possível ficar alheio aos
processos de mudanças que a “realidade” demandava. “Já não estamos na Frente
Ampla de 1971-1973, nem na do combate à ditadura de 1973-1984, nem a da
reabertura democrática 1984-1989, nem a da frente do primeiro governo municipal em
1990-1994; estamos na frente do segundo governo municipal de Montevidéu e da
ascensão ao governo nacional em 1994-1999”
531
.
527
A Reforma da Segurança Social pretendia modificar o sistema de previdência social. Este era formado
por um sistema misto: uma empresa do Estado, uma empresa sem fins lucrativos e várias iniciativas
privadas nas mãos de empresas internacionais. A reforma previa a prioridade do mercado como agente
“idôneo” para administrar as aposentadorias. Em resumo, a reforma pretendeu privatizar o sistema e,
assim, desligar o Estado desta tarefa e responsabilidade. A reforma não aconteceu e o sistema continua
sendo misto.
528
A Reforma da Educação, apresentada por Germán Rama, teve como grande ponto de discordância
toda a temática da educação superior pública, que ficou fora da proposta. Mesmo assim, o projeto de
Rama apresentou alguns avanços na área em relação à universalidade do ensino infantil (pré-escolar) e
à proposta de estender o horário e as atividades escolares nos bairros carentes.
529
FRENTE AMPLIO. Resoluciones del III Congreso Extraordinario “Alfredo Zitarrosa”. Montevideo:
mimeo, 1998, p. 22-26.
530
A Vertiente Artiguista foi formada em 1989 com militantes da esquerda independente e por dissidentes
da democracia cristã. Apresentaram-se às eleições nacionais a partir de 1994, com a lista 77, e seu
dirigente mais popular foi Mariano Arana. Após 1994, a Vertente deixou de ser uma aliança de subgrupos
e se transformou em um grupo unificado. Integrada à Frente Ampla desde sua formação, a Vertente teve
singular importância no processo de formação do Encontro Progressista e das Novas Maiorias.
531
VERTIENTE ARTIGUISTA. Por un País Solidário, Moderno y Sustentable: aportes programáticos
de la Vertiente Artiguista. Montevideo: Vertiente Artiguista, mimeo, 1998, p. 1.
334
A Vertente Artiguista definiu, no mencionado documento, pautas programáticas
para o desenvolvimento produtivo e a modernização solidária, que foram adotadas pela
coalizão e aprovadas formalmente na Plenária Nacional da Frente Ampla, em 19 de
abril de 2004. Apesar da demora na aprovação do documento, este constituiu, de fato,
o norteador de muitas premissas básicas da coalizão. Assim, como exemplo, as
propostas frentistas na área de política econômica apontavam para atingir três objetivos
estratégicos: a) o aumento do investimento produtivo; b) a geração de emprego; e c) a
distribuição mais eqüitativa do ingresso.
Em matéria de relações econômicas internacionais, a proposta do futuro governo
progressista impulsionaria, em particular, três elementos:
a) melhorar a situação do país no Mercosul, estimulando a especialização e a
complementação produtiva, tomando em conta as vantagens geopolíticas e o menor
desenvolvimento relativo em diversas áreas e setores;
b) estimular o investimento externo com finalidade produtiva; e
c) gerenciar o endividamento externo sobre a base de melhorar a situação do país e de
respeitar compromissos “legitimamente” adquiridos
532
.
Dentro dessa perspectiva, outros dois pontos eram de destaque: o papel do
Estado e a superação da exclusão social. Em relação ao papel do Estado, as
orientações apresentadas pressupunham atribuir um papel de protagonista ao Estado e
ao Governo, na orientação, condução e promoção da vida econômica do país, e na
articulação dos acordos sociais e políticos necessários. Assim, o Estado e o Governo
deveriam exercer suas responsabilidades no relacionamento internacional, na
segurança interna e externa e em áreas estratégias da economia e da sociedade.
Estado e Governo deveriam orientar e promover atividades de produção de bens e
serviços, assumir o papel de impulsionador das políticas sociais e articular o setor
público com o privado.
Por outro lado, para a superação da exclusão social, as medidas da
administração progressista deveriam ser desenvolvidas a partir de uma concepção
integral do desenvolvimento social, oposta e enfrentada com o economicismo clássico
dos governos neoliberais que o país teve no período da recuperação democrática.
532
Idem, p 5.
335
Desse modo, as políticas econômicas não esgotariam nem os instrumentos, nem as
medidas para propiciar um desenvolvimento dinâmico, eqüitativo e sustentável.
Apresentava-se, como tarefa imprescindível, a articulação das políticas econômicas
com políticas sociais convergentes. Os principais indicadores dos resultados
qualitativos e quantitativos de exclusão social indicavam e sustentavam a reivindicação
de políticas que se direcionassem a reverter a crescente dualização social.
Ainda em 1998, o Encontro Progressista caracterizava-se como uma aliança
política de caráter permanente que, através do sistema democrático representativo,
pretendia introduzir transformações “profundas” no país, visando à construção de uma
sociedade democrática, progressista e solidária, por meio de um desenvolvimento
socialmente “justo” e economicamente auto-sustentável. O Encontro Progressista
manifestava que suas linhas programáticas implicavam um projeto político radicalmente
oposto às políticas neoliberais.
O documento norteador, com data de 11 de outubro de 1998, intitulado
Actualización del Acuerdo Político del Encuentro Progresista, trazia os objetivos
imediatos da aliança política:
a) desenvolver uma estratégia eficaz para a resolução de problemas que padeciam os
setores populares, focados, essencialmente, no aprofundamento da pobreza, o
desemprego e a marginalização social;
b) transformar as estruturas produtivas, ampliando sua capacidade de investimento e
promovendo sua modernização tecnológica; e
c) promover a distribuição eqüitativa de renda e dinamizar o desenvolvimento social
533
.
O documento apresentava um ponto original referente a suas bases políticas. Em
1998, o Encontro Progressista estava integrado pela Frente Ampla, o Partido
Democrata Cristão, a Corrente 78 e o Batllismo Progressista. O fato original foi que, no
documento, o Encontro Progressista obrigava os participantes a cumprirem os
compromissos políticos e programáticos. “Este acordo obriga as forças políticas e
personalidades integrantes do Encontro Progressista, a unidade de ações e ao
533
ENCUENTRO PROGRESISTA. Actualización del Acuerdo Político del Encuentro Progresista.
Montevideo: Plenário Nacional, mimeo, 1998, p. 2.
336
acatamento dos compromissos políticos e programáticos, igual que o respeito estrito
aos mecanismos de resolução que se estabeleçam”
534
.
Dessa forma, o Encontro Progressista passava a conduzir a “aliança” e, com ela,
o seu sócio majoritário, a Frente Ampla. Até esse momento, todas as alianças políticas
centravam-se na direção da Frente Ampla como espaço amplo e representativo da
maioria da esquerda eleitoral do país. A condução mudava de rumos: a nova
organização assumia o controle da coalizão, mesmo não fazendo parte organicamente
dela. Tanto a política de alianças do Encontro Progressista como a da Frente Ampla
convergiram para esta estratégia, como um passo a mais no caminho da “renovação
ideológica”.
Na sua Carta Orgânica – também parte do documento – criava-se uma
“Agrupação de Governo”, integrada pelos dirigentes do alto escalão das forças políticas
componentes do Encontro Progressista. “A Agrupação de Governo” opera como âmbito
de “concertación” política das responsabilidades que assume o Encontro Progressista
em nível nacional e estadual”
535
. Dessa forma, consolidava-se o Encontro Progressista
através de uma elite dirigente orgânica, que se bem estava integrada por todos os
setores da aliança, era normatizada e dirigida pelo Encontro Progressista.
Em 1999, a Frente Ampla – Encontro Progressista apresentaram um plano de
emergência para o ano de 2000. Este contemplava as seguintes temáticas:
a) plano de reativação produtiva;
b) melhorias nas condições de crédito, voltado para estimular as exportações;
c) instrumentalização de um plano de habitação;
d) plano de obras públicas;
e) re-estruturação do sistema bancário oficial; e
f) uma chamada para captar projetos de investimento visando à exportação de produtos
manufaturados no país.
O Plano de Emergência contemplava ações de contingência ante a emergência
social. O mesmo identificava como público prioritário: 1) os desempregados; 2)
situações de pobreza infantil; e 3) pessoas em situação de indigência. Em sua
534
Idem, p. 3.
535
Idem, p. 6.
337
essência, as estratégias definidas focaram-se em: a) a formação de uma Junta Nacional
de Emprego (com objetivos e funcionamento muito similares ao Sistema Nacional de
Emprego – Sine, brasileiro, implementado por Fernando Henrique Cardoso, em 1999);
e b) a extensão de um imposto aplicado ao salário de funcionários públicos, para
também atingir o setor privado. A proposta visava financiar, assim, a Junta Nacional de
Emprego
536
.
Numa intervenção, Tabaré Vázquez manifestou no Plenário Nacional da Frente
Ampla, em 2000, que duas eram as prioridades da coalizão naquele momento. Por um
lado, o aprofundamento dos princípios e valores fundacionais da Frente Ampla e, pelo
outro, a consolidação das propostas programáticas. Segundo Vázquez: “Basta
perguntar-se se há lugar para a esquerda no mundo atual, e o que é ser de esquerda
no Uruguai de hoje?”
537
. Estas perguntas devem ser lidas a partir do contexto da
“atualização ideológica” que a coalizão vivenciava no período.
Posteriormente, no mesmo documento, Vázquez respondeu a sua própria
pergunta: “Ser de esquerda é compreender a inexorável mudança civilizatória e
integrar-se a mesma, contribuindo com nossos valores, nossos princípios e nossas
experiências”
538
. O processo de globalização e a revolução tecnológica pautaram o
processo “civilizador” a que Vázquez fez referência. O chamado a integrar-se a esse
“processo” foi a justificativa da atualização ideológica na esquerda frentista. A
readequação ideológica e programática aos novos tempos tornou-se uma máxima
inquestionável.
Concluindo sua argumentação, manifestou: “Não podemos incorrer no equívoco
de confundir atualização com desvalorização das idéias. Porque não é a mesma coisa
uma esquerda em constante processo de atualização ideológica e uma esquerda
ideologicamente empobrecida: a primeira é imprescindível; a segunda não é esquerda,
é uma via morta”
539
. Segundo Vázquez, essa atualização ocorria no interior da Frente
536
FRENTE AMPLIO. Plan de Emergencia 2000. Montevideo: Plenário Nacional del Frente Amplio,
mimeo, 2000, p. 9-11.
537
VÁZQUEZ, Tabaré. Intervenção del Presidente del Frente Amplio en el Plenário Nacional.
Montevideo: Plenário Nacional, 2000, p. 4.
538
Idem, p. 5.
539
Idem.
338
Ampla a partir de uma contínua revisão programática e se transformava numa revisão
necessária para uma força política que aspirava governar o país.
Dessa forma, Vázquez direcionava a “atualização ideológica” para a plena
defesa da democracia, como único caminho para a governabilidade do país. Segundo
as manifestações de Vázquez: “O aprofundamento e a extensão da democracia
configuram em si mesmas um objetivo fundamental para a esquerda. Por que a política
é democrática ou não é política, e a democracia se exerce sobre bases de cidadania ou
se converte numa farsa. A cidadania é objeto e sujeito da ação política. Nessa dupla
condição, devemos fortalecê-la renovando as bases democráticas da sociedade e
promovendo mecanismos que aproximem mais a política das pessoas”
540
.
Em 2000, as Novas Maiorias manifestavam: “O nosso compromisso é irrevogável
com a liberdade e a democracia, que resultará consolidada pela alternância no Governo
e o esforço por desenvolver em toda sua dimensão, visando atingir o pleno exercício da
cidadania. O compromisso com a estabilidade institucional, a paz social, o convívio
pacífico e o respeito dos direitos humanos”
541
. Assim, a renovação ideológica
proclamou de forma constante desde seus inícios em 1994, de forma constante a viva
voz a defesa inquestionável das instituições democráticas. O que significou o
afastamento gradual, mas definitivo, de toda e qualquer forma de luta que questionasse
a ordem institucional. Tabaré Vázquez, três anos depois afirmou: “O Encontro
Progressista e a Frente Ampla, tanto desde o Governo ou desde a oposição, somos
uma força política construtiva. Somos institucionalmente leais; leais ao povo, leais às
instituições democráticas. Dentro da Constituição e a lei, tudo; fora da Constituição e a
lei, nada”
542
.
Em setembro de 2001, realizou-se o IV Congresso Ordinário da Frente Ampla
“Tota Quinteros”, tendo se aprovado vários documentos. Deles, o mais interessante foi
Nuestras Señas de Identidad; naquele, a Frente Ampla propôs uma releitura de sua
tradição ideológica dirigida a emendar fortemente a fase progressista com os ideais e
valores fundacionais. O fato de que os frenteamplistas devessem discutir e aprovar um
540
VÁZQUEZ, Tabaré. Intervención del Presidente del Frente Amplio Dr. Tabaré Vázquez en el Plenario
Nacional. Montevideo: Plenario Nacional, mimeo, 2 de setembro de 2000, p. 9.
541
NUEVAS MAYORÍAS. Nueva Mayoría: documento marco. Montevideo: mimeo, 2000, p. 4.
542
VÁZQUEZ, Tabaré. Discurso pronunciado no ato do 32º. aniversário da fundação da Frente Ampla.
Montevideo: mimeo, 5 de fevereiro de 2003, p. 17.
339
documento sobre seus sinais de identidade implicou que, como resultado do longo
processo de transformações ideológicas e programáticas, a esquerda estava
convivendo problematicamente com sua própria história ideológica.
Desaparecido o socialismo como meta concreta, reduzido o antiimperialismo a
declarações e retórica, abandonadas bandeiras tão básicas da programática frentista
fundacional, como a reforma agrária e a nacionalização do sistema bancário, o que
significava concretamente ser frenteamplista no ano de 2001? Para costurar as idéias
do passado com as do presente, o documento argumentou quanto ao plano dos
valores, nos quais encontrou uma continuidade essencial: “Reivindicamos a liberdade e
a igualdade, a solidariedade e a justiça como nossos principais valores”
543
. Surgiu,
então, a nova chave dos discursos frentistas, os novos valores, associados à renovação
e a atualização ideológica, como pretensão de modernização.
Tabaré Vázquez manifestou em 2003:”O Uruguai democrático pressupõe um
sistema político vigoroso, transparente e eficiente, o que, por sua vez, pressupõe uma
ética e prática política diferente da atual. Ética e atitude, onde o principal não sejam os
acordos das elites por cargos, senão as ações concretas que melhorem o bem-estar da
população. ‘O Uruguai democrático’ implica num sistema judicial cuja organização e
funcionamento garantissem o Estado de Direito e a plena vigência dos direitos. Mas,
sobretudo, que as pessoas não somente sejam iguais perante a lei, senão que sejam
iguais perante a vida”
544
.
O Uruguai “democrático” passou a ser um dos fortes eixos da campanha eleitoral
para 2004. Assim, o apresentava Vázquez na campanha: “O Uruguai democrático é a
alternativa que nós acreditamos para nossa sociedade. Não ignoramos sua
complexidade, nem seus conflitos, mas não os dramatizamos, senão que apontamos a
geri-los para articular um futuro comum da sociedade uruguaia. Isto é o pleno
funcionamento de todas suas instituições, desde o Parlamento e seu verdadeiro papel,
a justiça e os organismos de controle”
545
.
543
FRENTE AMPLIO. Resoluciones del IV Congreso Ordinario “Tota Quinteros”. Montevideo: mimeo,
2001, p. 3.
544
VÁZQUEZ, Tabaré. Discurso pronunciado em Montevidéu, em 19 de dezembro de 2003, na abertura
do IV Congresso da Frente Ampla “Héctor Rodríguez”. Plenário Nacional, mimeo, 2003, p. 17.
545
VÁZQUEZ, Tabaré. Discurso pronunciado no Encontro com os Empresários. Montevidéu, 20 de julho
de 2004. mimeo, 2004, p. 5.
340
O IV Congresso Extraordinário da Frente Ampla “Héctor Rodríguez” foi realizado
em 2003. Há dois aspectos relevantes a assinalar. Por um lado, realizou-se uma nova
reformulação do programa. O Congresso elevou a uma nova hierarquia a temática da
inserção comercial do país e a necessidade de uma política de Ciência e Tecnologia
546
.
Esses temas haviam ganho um espaço crescente durante a crise econômica de 1999-
2003, pois colocaram de manifesto a alta dependência do Uruguai com relação aos
mercados argentino e brasileiro, e a importância estratégica de apoiar o
desenvolvimento econômico na capacidade de inovação. Por isso, a declaração final do
Congresso postulou em vez de três eixos, como vinha acontecendo, cinco.
Deve-se impulsionar o Uruguai inteligente, entendido como sociedade capaz de
acolher e converter em inovação social os desenvolvimentos científicos e
tecnológicos. Resulta necessário e urgente superar uma dramática situação na
qual a investigação científica e o desenvolvimento tecnológico se encontram no
país com reduzido ou nulo apoio do Estado, e boa parte de nossos melhores
recursos humanos integra a diáspora de uruguaios no mundo. Para o
desenvolvimento do Uruguai inteligente torna-se básica a defesa e re-alocação
de recursos a favor do sistema público de educação
547
.
A importância do IV Congresso Extraordinário não consistiu somente em haver
incorporado essas novidades, desde o ponto de vista do programa, em que não
prosperaram algumas iniciativas dirigidas para radicalizar certas propostas
programáticas. Não prosperou a proposta de Hugo Cores, apoiada por membros do
Partido Comunista, do Partido pela Vitória do Povo, pelo Movimento 26 de Março e pela
Corrente de Esquerda, de “revisar” a lei de ”caducidade”, nem uma moção de rejeitar
totalmente à Alca, nem uma proposta para deixar de pagar a dívida externa.
546
Rodrigo Arocena (1996) já havia elaborado uma série de propostas a este respeito, os quais foram
sistematizadas, após o Congresso, por uma comissão designada para tais fins, liderada por Enrique
Rubio. Arocena afirmou que “a expansão das atividades científica e tecnológica chegou a constituir, em
nosso tempo, o principal fator de crescimento econômico e um dos grandes impulsores dos processos de
inovação em geral”. Entre os elementos-chave identificados por Arocena para traçar um caminho de
desenvolvimento, destacavam-se dois: 1) a generalização de uma educação superior de qualidade,
suscetível de permanente renovação, que a diversificação permitisse chegar a maioria da população; 2) a
construção e permanente ampliação de uma capacidade endógena de investigação. Estes elementos se
encontraram, posteriormente, nas políticas de Ciência e Tecnologia impulsionadas pela Frente Ampla.
AROCENA, Rodrigo. Algunas Exigencias del Desarrollo Autosostenido. In: Cuadernos de Marcha.
Montevideo: n. 114, abril de 1996, p. 7-10.
547
FRENTE AMPLIO. Resoluciones del IV Congreso Extraordinario “Héctor Rodríguez”.
Montevideo: mimeo, 2003, p. 17.
341
Em termos gerais, o IV Congresso Extraordinário aprovou o que se poderiam
considerar como as principais propostas dentro dos seguintes eixos temáticos:
a) um conjunto de medidas que retomaram a necessidade de um apoio ativo à
produção em particular;
b) o incentivo à investigação científica e tecnológica, orientada desde uma visão
nacional e com recursos para sua viabilidade;
c) a revisão e desenvolvimento de políticas sociais integrais que visassem sanar
efetivamente as profundas desigualdades;
d) uma nova inserção internacional do Uruguai, na qual se aprofundassem as relações
com a região desde o Mercosul;
e) uma série de estratégias para procurar efetivar transformações do Estado, visando a
sua plena democratização.
Essas definições programáticas foram precedidas de um conjunto de medidas
que se definiram como de emergência nacional, e que tinham a ver como corretivos de
imediata aplicação para aplacar os efeitos da crise. Em definitivo, o que se foi perfilando
foi um modelo de país diferente, onde, segundo Portillo (2004), “é possível chamá-lo de
neodesenvolvimentista”
548
. Muitas das clássicas formulações do desenvolvimentismo
dos anos sessenta e setenta foram readequadas ao novo contexto da globalização.
Assim, na América Latina, esta visão de futuro imediato foi ganhando consensos
porque a experiência do desenvolvimento capitalista deixou, como seqüela pobreza e
crescente desigualdade social.
Um dos eixos programáticos da coalizão de esquerda, o “desenvolvimento
produtivo”, foi definido pela Central Sindical no seu ato de 1º. de maio de 2003. No
evento, o sindicalismo uruguaio definiu o que entendia por desenvolvimento produtivo.
“Nossa concepção para os desenvolvimentos produtivos, sociais e culturais do país, em
beneficio de sua gente, está fortemente vinculado ao conceito de cadeias produtivas. O
Uruguai não é um país integrado na sua estrutura sócio-econômica”
549
. Assim, a CNT
definia o foco nas cadeias produtivas, como forma de integrar e modificar a estrutura
produtiva vigente no país. Partiam do pressuposto de que estas modificações na
548
PORTILLO, Álvaro. Los Retos de la Izquierda Uruguaya en el Siglo XXI. Montevideo: mimeo, 2004,
p. 9.
549
PIT-CNT. Proclamación del 1º. de mayo de 2003. Montevideo: mimeo, p. 14.
342
produtividade nacional deviam atender não só os interesses dos trabalhadores, como
também os das grandes maiorias da população. A concepção de “País Produtivo” da
Central Sindical estava diretamente ligada a uma necessidade de justiça social.
Por outro lado, Tabaré Vázquez realizou uma reunião com empresários
uruguaios em 20 de julho de 2004. Na mesma, assumiu o compromisso do Encontro
Progressista – Frente Ampla – Novas Maiorias de implementar um projeto de
desenvolvimento produtivo e sustentável, que implicava, entre outras estratégias de
ação: gerar um ambiente propício para a atividade empresarial, que se beneficiasse ao
empresário, mas também se beneficiasse à sociedade. A idéia central que nortearia a
política de promoção e defesa da produção nacional seria conquistar patamares de
competitividade sobre bases de estabilidade macro-econômicas e melhorias
permanentes na produtividade.
Desse modo, no marco do objetivo geral de transformação em direção ao
Uruguai “produtivo”, a programação macro-econômica teria como objetivo específico
assegurar a consistência das políticas monetárias, cambiais e fiscais entre si, e com
relação aos objetivos de crescimento econômico, a melhoria na equidade da
distribuição de ingressos
550
. Dessa forma, Vázquez assumiu um compromisso de
governo com os empresários, contando com o triunfo nas eleições nacionais de 2004.
O discurso moderado de Vázquez perante os empresários manifestou
claramente a sua posição: “Vocês são empresários. Com a mesma ilusão, com a
mesma responsabilidade, com o mesmo esforço e até com a mesma sorte com que
outros compatriotas desenvolvem sua atividade de trabalho, vocês encaram a sua”
551
.
Assim, deixava claro que um possível governo de esquerda não podia se apresentar
como uma ameaça aos negócios empresariais. O setor privado nacional não deixou de
manifestar seu descontentamento pela estratégia do candidato de esquerda, que
escolheu expor suas linhas programáticas aos empresários argentinos antes que aos
uruguaios. Vázquez anunciou que um governo por ele presidido se comprometia a:
a) Um estrito cumprimento do estado de direito;
550
VÁZQUEZ, Tabaré. Uruguay Productivo. Encuentro con los Empresários. Intendencia Municipal de
Montevideo, Comisión de Propaganda del Encuentro Progresista, mimeo, 2004, p. 10.
551
VÁZQUEZ, Tabaré. Discurso pronunciado no Encontro com os Empresários. Montevidéu, 20 de julho
de 2004. mimeo, 2004, p. 3.
343
b) Estabilidade dos “equilíbrios fundamentais” no plano externo, monetário e fiscal,
para atrair investimentos estrangeiros, considerados necessários para a
estratégia de desenvolvimento produtivo;
c) Cumprir com as obrigações contraídas pelos governos anteriores;
d) Definir “regras do jogo” claras e imediatas para “todos” e não aumentar a pressão
fiscal, mas redistribuição, segundo critérios de equidade, racionalidade e
eficiência;
e) Garantias de transparência e eficiência na gestão do Estado;
f) Conseguir um funcionamento mais eficiente do “mercado”, através de regras
claras, estáveis, focadas em preservar os interesses dos consumidores e
respeitar “devidamente” os direitos da propriedade
552
.
Os empresários compartiram o conteúdo do discurso, mas não deixaram de
assinalar sua desconfiança pelo candidato de esquerda. A qualidade dos vínculos entre
Governo e empresários importava para o êxito das políticas a implementar durante a
futura administração. Acreditavam que não bastava que uma política fosse bem
desenhada, porque a mesma iria depender também do comportamento dos atores
econômicos que estavam relacionados com suas percepções, com o grau de
confiabilidade e com as expectativas que se formularam em relação ao
desenvolvimento futuro do país.
Mas, uma coisa era certa, a esquerda que poderia aceder ao governo nacional já
não representava ameaças para as oligarquias nacionais nem para os interesses
transnacionais. Pode-se observar no quadro 3, a composição da coalizão de esquerda
que se apresentou às eleições nacionais de 2004. Os setores que tradicionalmente
reivindicavam mudanças estruturais do país estavam cada vez menos representados na
esquerda progressista.
552
ZURBBRIGGEN, Cristina. Empresários y Políticos: un contexto institucional precário para la busqueda
de consensos. In: Informe de Coyuntura. Montevideo: v. 5, 2004, p. 132.
344
Quadro 3. Composição da Frente Ampla segundo suas origens ideológicas setoriais nas eleições
nacionais de 2004
Grupos Integrantes Origem Ideológica
Movimiento 20 de Mayo Partido Colorado
Movimiento Popular Frenteamplista Partido Nacional
Corriente Popular Partido Nacional
Asamblea Uruguay Centro-esquerda
Vertiente Artiguista Centro-esquerda
Liga Federal Frenteamplista Centro-esquerda
Confluencia Frenteamplista Centro-esquerda
Corriente de Unidad Frenteamplista Centro-esquerda
Corriente de Izquierda Esquerda reformista
Partido Socialista Esquerda reformista
Movimiento Socialista Esquerda reformista
Partido Comunista Esquerda reformista
Frente Izquierda de Liberación Esquerda reformista
Movimiento 26 de Março Esquerda revolucionaria
Partido por la Victoria del Pueblo Esquerda revolucionaria
Partido Obrero Revolucionario Esquerda revolucionaria
Movimiento de Participación Popular Esquerda revolucionaria
Fonte: Elaboração do autor a partir de informações em: FERNÁNDEZ, Nelson. Quién es quién en le
Gobierno de Izquierda. Montevideo: Fin de Siglo, 2004.
Além da estruturação da Frente Ampla em 2004, deve-se considerar como fator
importantíssimo que a mesma era dirigida pelo Encontro Progressista e possuía uma
configuração ainda mais complexa. (ver quadro 4).
345
Quadro 4. Composição do Encontro Progressista segundo as suas origens ideológicas setoriais
nas eleições nacionais de 2004
Grupos Integrantes Origem Ideológica
Frente Amplio -
Partido Democrata Cristiano Centro-esquerda
Baluarte Pregresista Partido Colorado
Claveles Rojos Partido Colorado
Alianza Progresista Partido Nacional +
Democracia Cristã
Agrupación Atabaque Agrupação Religiosa
Fonte: Elaboração do autor a partir de informações em: FERNÁNDEZ, Nelson. Quién es quién en le
Gobierno de Izquierda. Montevideo: Fin de Siglo, 2004.
Desse modo, chegou-se à campanha eleitoral de 2004. Nesta, a esquerda se
apresentou como uma alternativa de governo confiável, visto que agora era uma
“esquerda renovada”, ou seja, não apresentava para ninguém a possibilidade de
mudanças radicais ou de qualquer questionamento da ordem estabelecida. A coerência
interna e a previsibilidade passaram a ser duas fortes características da nova esquerda:
a primeira, referia-se fundamentalmente à capacidade de processar “eficazmente” as
dissidências, gerar acordos e manter os equilíbrios internos. A segunda, referia-se a
capacidade para criar um clima de previsibilidade, exibindo cautela e suficiente
ponderação para afastar qualquer temor a mudanças estruturais.
346
4. O MLN – TUPAMAROS E O MPP NO PERÍODO PROGRESSISTA
Em abril de 1993 teve início a V Convención Nacional del Movimiento de
Liberación Nacional – Tupamaros, na cidade de Montevidéu. Nesta, as temáticas a
serem discutidas abrangiam um amplo e variado repertório, dentre os quais não
constava o tema “socialismo”. Devido a sua amplitude e complexidade – principalmente
naquele contexto –, o tema foi abordado de forma paralela às discussões da
Convenção. O responsável pela elaboração de um documento base para a discussão
foi Eleuterio Fernández Huidobro. Com base nesse documento, intitulado Nuestro
Socialismo, o MLN adotou as seguintes definições no início de 1994, como fontes
norteadoras de seu pensamento:
a) O Cristianismo: enfatizando quatro postulados fundamentais: a igualdade, o
amor, a rebeldia e o Homem Novo;
b) O Artiguismo: como continuador do pensamento artiguista e como parte
integrante de uma corrente popular que visa à libertação nacional em todo o
continente;
c) O Movimento Socialista: “Dele, recolhemos principalmente os aportes de Marx,
sem desprezar os do pensamento anarquista"
553
.
Da mesma forma que nos seus documentos fundacionais (analisados no capítulo
I), há um claro conteúdo antiimperialista no discurso do MLN e uma profunda
consciência latino-americanista. A esse respeito, Huidobro afirmava: “Em nossos países
ficaram truncadas várias tarefas históricas pela libertação nacional, as quais se
acrescentam outras que podemos denominar de emergenciais”
554
. Assim, visto o
caráter do sistema mundial do capitalismo contemporâneo, o MLN considerava que a
luta pela libertação nacional e a construção do socialismo eram tarefas inseparáveis e
continentais.
553
HUIDOBRO, Fernández Eleutério. Nuesto Socialismo. Montevideo: Comite Central del MLN, mimeo,
1993, p. 1.
554
Idem.
347
O MLN incorporou a seu discurso as temáticas que, como vimos, se integraram à
esquerda progressista. Quando Huidobro mencionava as “tarefas emergenciais”, incluía
as questões que os novos paradigmas apresentavam, mas a partir de uma concepção
que contrariava o discurso progressista da época. Como exemplo, a questão ambiental
foi abordada em relação direta e inseparável dos principais problemas sociais. “A maior
parte da humanidade, e também a maior parte da natureza agredida, está no Terceiro
Mundo. Aqui, hoje, a ‘utopia’ é para amanhã mesmo: consiste, por exemplo, em comer
três vezes por dia”
555
.
A organização tupamara considerava prioritária a construção do socialismo e,
para tal, indispensável o enfrentamento com o imperialismo. Colocava como dilema
fundamental, para aquele contexto histórico, o Socialismo ou a Barbárie. Assim, o
descreveu Huidobro: “Barbárie no lugar do capitalismo, porque este chegou a tal grau
de ‘desenvolvimento’ que se não encontra como solução o socialismo, transformar-se-á
em sinônimo de barbárie, tal como hoje se pode ver em grandes regiões do planeta”
556
.
Em 21 de julho de 1996, o Comitê Central do MLN divulgou um documento
intitulado: Nuestro Trabajo en la Clase Obrera. Nele definiam, como estratégia prioritária
da organização, a inserção e atuação na classe operária. O trabalho proposto pretendia
não se limitar ao movimento sindical e, desta forma, se fazer extensivo a todas as
forças de trabalhadores – organizados no movimento sindical ou não – do país e da
região. Uma particularidade expressa em relação ao espaço regional referiu-se ao
caráter internacional (latino-americano) e, particularmente, a necessidade apontada
para a regionalização de uma organização operária, a qual propuseram chamar de
“Frente Sindical”.
No documento focou-se, com particular atenção, o problema das alianças, tema
que em 1996 constituiu, como já vimos, um lugar estratégico na esquerda progressista.
A política de alianças impulsionada pelo MLN possuía duas variantes. Por um lado, as
alianças possíveis com partidos ou organizações classistas, “com as quais podemos e
devemos ter, no sentido da luta de classe, uma política estratégica de alianças” e, por
outro lado, com os que, respondendo aos interesses de outras classes, propunham
555
Idem, p. 3.
556
Idem, p. 5.
348
alianças. Neste caso, advertia o MLN, “devemos ser cuidadosos quando, por razões
táticas, nos ofereçam a possibilidade de uma unidade de ação”
557
.
Dessa forma, o MLN concebia a política de alianças como uma estratégia
necessária, mas dentro de critérios nos quais se definiriam com quem e que tipo de
alianças eram possíveis. Suas definições estratégicas orientadas a uma política de
massas e, particularmente, ao movimento operário, inscreveram-se dentro de um marco
comum: o da luta antioligárquica e antiimperialista. Como observamos anteriormente, o
movimento sindical continuava levantando bandeiras nesse sentido, enquanto que a
esquerda frentista iniciava seu processo de “atualização ideológica”.
A política de alianças do MLN concretizou-se na sua participação no Movimento
de Participação Popular – MPP, como uma instância ampla de luta política.
Conjuntamente com outros setores da esquerda independente desde 1989, essa
conjunção de forças políticas foi o principal objetivo de trabalho do MLN. As alianças,
restringiram-se, então, no início do período progressista, a duas formas. Por um lado,
focou-se no movimento operário através de alianças com setores da esquerda
combativa, como os anarquistas, visando à formação de uma Frente Sindical Nacional.
Por outro lado, no âmbito político, na fundação e posterior consolidação do MPP, como
um setor frentista com propostas que pretendiam fazer frente aos setores
conservadores e reacionários, como também conglomerar, a sua volta, os setores
tradicionalmente combativos da esquerda uruguaia dentro da Frente Ampla.
Em 1996 aconteceu o Terceiro Congresso do MPP, onde, a partir de um
documento elaborado pelo MLN, intitulado Del MLN al Congreso del MPP, definiram-se
as linhas estratégicas e de ação do MPP. Esse documento serviu como base referencial
para o MPP, desde 1996. A contribuição do MLN ao elaborar o documento e colocá-lo
em discussão no congresso foi um ponto de maturidade política da organização
naquele momento, a definição concreta de sua plataforma programática e estratégica.
557
MLN. Nuestro Trabajo en la Case Obrera. Comite Central del MLN. Montevideo: mimeo, 1996, p. 4.
349
O documento identificava como inimigo principal o imperialismo, que “para poder
dominar necessita, por um lado, submeter os povos sobre seus respectivos Estados
centrais e, pelo outro, contar com aliados em cada um dos Estados submetidos”
558
.
Dessa forma, o MLN definiu como oligarquia os setores dominantes econômicos e
sociais que operavam no país como aliados do imperialismo. Essa definição das
oligarquias nacionais e sua relação com o imperialismo foram ponto de consenso no
MPP.
O MLN redimensionou sua visão sobre a burguesia nacional em relação a sua
concepção sesentista:
Não acreditamos na existência, estrategicamente operante, de uma burguesia
nacional no Uruguai e, portanto, em ‘etapas’ da revolução possível e desejável.
Mas sim, constatamos a presença ativa de burgueses e, às vezes, de setores
burgueses, que, por um lado, são atingidos em seus interesses concretos pelas
políticas imperiais e, por outro, desenvolvem atividades estreitamente
vinculadas à produção de bens reais, à criação de fontes de trabalho e
empreendimentos de valor estratégico para o povo
559
.
Por outro lado, o MLN declarava-se socialista. Manifestava ser a expressão dos
interesses da classe operária e das classes trabalhadoras de forma geral. No contexto
de sua participação no MPP, no entanto, o MLN afirmou: “O MLN não exige de ninguém
que para esta fase da revolução historicamente possível, seus aliados se definam
socialistas”. E acrescentou: “O que exige do MPP é o acordo com o seguinte
pressuposto: não haverá libertação nacional sem socialismo, mas tampouco haverá
socialismo sem libertação nacional”
560
. Ambos os aspectos estavam intimamente
ligados ao projeto do MPP.
O MPP era uma aliança aglutinadora de forças, fundamentalmente socialistas.
Apesar das diversas concepções existentes no seu interior, possibilitaram-se grandes
norteadores comuns, como os propostos pelo MLN no documento em questão. Ali
residiu o mérito do MLN: na sistematização de uma proposta clara de alianças que iam
à contra-corrente da esquerda progressista, mas que formalmente constituíam parte
558
MLN. Del MLN al Congreso del MPP. Montevideo: Comite Central del MLN, mimeo, 1996, p. 1.
559
Idem, p. 2.
560
Idem, p. 4.
350
dela e, posteriormente, a partir de 1999, apontaria na direção de transformar-se num
setor de extrema relevância eleitoral dentro da coalizão.
Com a função de aglutinar numa só organização as forças que convocava a
esquerda “combativa” uruguaia, entendeu que a Frente Ampla podia e devia cumprir um
grande papel que iria muito além do eleitoral. Considerava-se que nesta única força de
esquerda podiam e deviam estar integrados os setores chamados de reformistas,
desde que representassem setores sociais de origem popular. O MLN definiu seu
conceito de reformismo assinalando que se referia a correntes do pensamento, os
quais, questionando o sistema capitalista propusessem, como caminho para o
socialismo uma série de reformas e a acumulação de mudanças parciais.
Observe-se aqui, a re-significação do conceito de reformismo, se comparado
com o que o MLN conceituou no período sesentista (ver capítulo I). “Portanto, ditas
forças não são nem podem ser nosso inimigo. Pelo contrário, nossa tarefa é atraí-las
para o trabalho estratégico que a história demanda”
561
. O MLN considerava que se se
colocasse as forças reformistas do lado inimigo, se estaria colocando-as, de fato, no
caminho inimigo. Dessa forma, o MLN reconhecia que, neste caso, a sua ação seria
objetivamente contra-revolucionária.
Observe-se que em 2002 Mujica fará uma nova leitura do reformismo, no
contexto do progressismo, totalmente distante da anterior. Como exemplo, Mujica diz
sobre sua atuação parlamentar: “Acredito que o parlamento de por si é reformista e que
o caminho em que estamos de por si é reformista, e não posso entender a esses
pseudo-revolucionários que lutam por entrar no parlamento, e gritam em nome da
revolução, e criticam. Para mim, essas coisas estavam claras; nesta conjuntura se deve
fazer isso. Amanhã, talvez, seja outra coisa”
562
. Em 1996, o MLN iniciava, através do
MPP, sua participação na política parlamentar e o exercício destas práticas políticas iria
mudando algumas concepções de seus atores, como a opinião de Mujica sobre o tema
em 2002.
Tanto a concepção de socialismo do MLN, como a de libertação nacional eram
pluralistas. Nas palavras dos Tupamaros: “O pluralismo e a democracia, no campo
561
Idem, p. 7.
562
MAZZEO, Mario. Charlando con Pepe Mujica: con los pies en la tierra. Montevideo: Trilce, 2002, p.
106.
351
popular, devem ser questão de princípios”
563
. Esses princípios se vinculavam a uma
histórica tradição da esquerda uruguaia. O pluralismo tinha como base o pressuposto
de que todos os setores que integravam a Frente Ampla, incluindo os reformistas
(atuais e anteriores), conduzir-se-iam eticamente num compromisso de não manipular
as alianças para benefício individual. Este era um acordo que em outros momentos não
foi respeitado (ver antecedentes nos capítulos I e II), mas que no início da era
progressista se re-atualizava novamente.
Em termos concretos, poder-se-ia situar a política de alianças do MLN a partir de
duas grandes premissas estratégicas. Por um lado, as alianças concretizadas a partir
do MPP, ou seja, com um conjunto de organizações políticas que tinham como
denominador comum o socialismo e a libertação nacional. Por outro lado, uma
estratégia de alianças com a Frente Ampla, no sentido de acúmulo de forças, visando,
prioritariamente, à contenda eleitoral. O problema situou-se em que a esquerda
frentista, a partir de 1996, não tinha nos seus horizontes nem o socialismo, nem a
libertação nacional ou, pelo menos, aqueles conceitos não eram mais os mesmos que
os históricos da esquerda tradicional.
O novo período progressista da esquerda uruguaia, inaugurado em 1994, não se
reconhecia com o socialismo. Como vimos no capítulo II, a esquerda em transição
começou a abandonar seu referencial marxista e a incorporar discursos e práticas das
novas experiências da social-democracia européia. Não somente o socialismo
ausentou-se do discurso frenteamplista, senão que foi abandonado todo um arcabouço
teórico-político que no Uruguai teve seu auge no sesentismo. Ou seja, em 1996 a
Frente Ampla não era mais antiimperialista e nem sequer utilizava o conceito oligarquia.
A atualização “ideológica” havia começado.
Entre 1996 e 1999, o MLN concentrou todas as suas forças no MPP. A partir do
III Congresso do MPP, em 1996, concretizou-se a formação da Corriente de Izquierda
CI, como uma instância ainda mais ampliada dentro da Frente Ampla, com o objetivo de
acumular os setores mais radicalizados da esquerda uruguaia e também como forma de
voltar a abrigar setores que se haviam desentendido com o MPP, caso do PVP e do
PST. Em princípio, acordou-se que a CI fosse uma mesa federal, sem desenvolver
563
Idem, p. 10.
352
estruturas de base, confiando que a prática ia abrir espaços de confiança para
socializar o capital político de cada grupo
564
.
A CI tentou unificar as dissidências da esquerda radical dentro da Frente Ampla,
entretanto, por falta de uma proposta objetiva – o programa da CI era o mesmo do
MPP, salvo pequenas variantes –, entrou em declínio em 1998, quando o MLN se
retirou da CI. Os motivos para essa ação por parte do MLN encontraram-se, por um
lado, nos desacordos existentes no seio do MPP (que não foram superados com a
formação da CI) e, por outro lado, porque o MLN, principalmente através da figura de
José Mujica, voltou-se para o apoio incondicional a Tabaré Vázquez.
Essa decisão, tratada no âmbito do MPP no seu IV Congresso (dezembro de
1998 a fevereiro de 1999), foi um dos elementos que pautaram o afastamento de
alguns setores. Dessa forma, o IV Congresso do MPP orientou-se na direção das
“mudanças” que o período progressista e a maioria dos setores frentistas vinham
elaborando. A ruptura dentro do MPP foi inevitável a partir do momento em que o MLN
posicionou-se a favor da “atualização ideológica” e ofereceu seu apoio incondicional ao
projeto de Tabaré Vázquez.
O IV Congresso do MPP processou a ruptura de setores no interior da CI e,
assim, o MPP decidiu seguir o caminho do MLN, saindo da CI. O congresso começou
em dezembro de 1998 e finalizou em fevereiro de 1999. Nesse tempo, em vez de
aproximar as partes em conflito, serviu para desenvolver uma intensa polêmica entre
Jorge Zabalza e Helius Sarthou, por um lado, e o MLN, representado por José Mujica,
pelo outro. O eixo das discussões situou-se na adesão do MLN à proposta de
Vázquez
565
.
Os fundamentos do enfrentamento entre Sarthou – Zabalza, por um lado, e
Mujica, pelo outro, respondem ao que se chamou de uma postura “funcional” do MPP
em relação a coalizão perante às mudanças da Frente Ampla, que assumiu um viés
eleitoralista, a partir de um avanço personalista e no contexto de uma enorme crise
564
MAZZEO, Mario. MPP: Orígenes, Ideas y Protagonistas. Montevideo: Trilce, 2005, p. 62.
565
Um fato que marcou o processo de ruptura do MPP – CI foi o convite que Tabaré Vázquez realizou a
José Mujica e a Heleuterio Fernández Huidobro para participar de uma nova equipe de “assessores” de
Vázquez. Foi aceito o convite primeiramente pelos dirigentes do MLN e, posteriormente, comunicado ao
MPP. Por sua vez, Sarthou entendeu este fato como uma estratégia hegemônica do MLN e a ambição de
poder de Tabaré Vázquez. Sobre este fato, ver: MAZZEO, Mario. op, cit., p. 65.
353
ideológica e de participação. “Essa Frente Ampla aparecia como um partido tradicional
a mais, comprometido com o processo eleitoral, a democracia representativa e o
parlamentarismo”
566
. Essas críticas foram elaboradas em setembro de 1999;
imediatamente depois, em outubro, Mujica replicava: “[...] deve-se tentar chegar ao
Governo, para isso há que aumentar muito mais que antes a visão”
567
.
Zabalza identificava uma gradativa perda de independência política do MPP e
sua reivindicação ia contra o processo de institucionalização da Frente Ampla. Sua não
aceitação ao processo de atualização ideológica colocou frente a frente a dirigência
histórica do MLN com amplos setores do MPP. O discurso progressista não atraiu
Zabalza, como também não foi bem visto por algumas agrupações da CI. O
pensamento de Zabalza ia em outro sentido:
Não acredito que tenha que acontecer uma primeira etapa de libertação
nacional que postergue para um amanhã distante a questão da revolução,
porque se nessa primeira etapa se unem a esquerda e a burguesia prejudicada
pelo neoliberalismo, dessa aliança não vão sair bases para o futuro. Se
passarmos a responsabilidade para as gerações futuras, enquanto
contemplamos o mundo desde o pragmatismo, convocando o quietismo, é
ingênuo acreditar que a juventude de hoje poderá amanhã convocar
revoluções
568
.
Por outro lado, Mujica fundamentava que “esta é a etapa de um governo
frenteamplista; não é nenhuma revolução. Hoje, a prioridade é que a Frente Ampla
chegue ao Governo. Acredito que a acumulação de sofrimentos, de sacrifícios
econômicos, de insegurança, não acumula forças, senão frustrações”
569
. Na mesma
edição do Semanário Brecha, Zabalza afirmava que a Frente Ampla estava sendo
conduzida para um espaço de centro-esquerda, transformação esta que incluía o
afastamento das bases e o “combate às minorias críticas”
570
. Zabalza reivindicava
assim, o papel de confrontação ideológica da esquerda radical, dentro e fora da Frente
Ampla.
566
ZABALZA, Jorge. (entrevista) In: La República. Montevideo: 20 de setembro de 1999, p. 12.
567
MUJICA, José. (entrevista) In: Mate Amargo. Montevideo: separata, outubro de 1999, p. 8.
568
ZABALZA, Jorge. In: MAZZEO, Mario. op. cit., p. 67.
569
MUJICA, José. (entrevista) In: Semanário Brecha. Montevideo: 8 de outubro de 1999, p. 7.
570
ZABALZA, Jorge. (entrevista) In: Semanário Brecha. Montevideo: 8 de outubro de 1999, p. 14.
354
Três anos depois, em 2002, Mujica manifestou: “Penso que se impõe uma
discussão global sobre a questão do socialismo do século XXI. É evidente que uma
coisa é tratar de influir para capitalizar, portanto tratar de acumular tudo o que for
possível no centro, e outra coisa é passar-se ao centro, com alma, com idéias, com
tudo”
571
. Mas o que se visualizava nessa idéia era que as observações de Zabalza
eram corretas. A esquerda voltou-se para o centro e levou neste arrastão, em diferentes
formas, toda a esquerda frentista. Assim, em 2004, a prédica da democracia formal
tomou conta do discurso tupamaro. Mujica afirmou que “entre a democracia formal de
caráter burguês, mesmo com injustiças, mas com certas garantias asseguradas, e o
fascismo, não é possível de se estar numa linha intermediária, ‘que se deve defender à
morte’ à democracia liberal. Assim, só dessa forma poder-se-ia construir uma sociedade
melhor, a partir da conservação e a melhoria desses valores”
572
.
Por outro lado, Julio Marenales (2004) manifestou uma opinião que ia à contra-
corrente do que os outros dirigentes tupamaros declaravam em relação à proposta
política do MPP. “O trabalho político amplo não deve ser contraditório com o trabalho
metódico, organizado e sistemático. Se um conjunto heterogêneo não mantém uma
força organizada, com claridade de objetivos, a ideologia do sistema, que vem com
quem forma este conjunto heterogêneo, vai acabar como aconteceu com as forças
progressistas do mundo: fagocitadas pelo sistema”
573
.
Os caminhos se separaram definitivamente. A Corriente de Izquierda, após a
fratura com o MPP, teria um escasso caudal de votos nas eleições internas de 1997 e
nas eleições nacionais. Helius Sarthou manifestou:
Fomos perdendo grupos pequenos que estavam agrupados na medida em que
havia forças de importância. Se foi desfibrando um processo que culminaria
quando pensou em unificar-se como partido (o MPP), porque a concepção de
Zabalza e a do PST eram mais federacionistas. Mas não é surpresa que a
esquerda radical não tenha votos, porque as pessoas que estão apertadas pelo
sistema e sem lugar para a rebelião, foi desaparecendo nelas a idéia de utopia
possível. Ainda, a televisão é um aparelho ideal para gerar gente adaptada.
Não vai haver votos para a esquerda radical
574
.
571
MUJICA, José. Cuando la Izquierda Gobierne. MAZZEO, Mario (Org). Montevideo: Trilce, 2003, p.
18.
572
CAMPODÓNICO, Miguel Ángel. Mujica. Montevideo: Fin de Siglo, 2005, p. 219.
573
MARENALES, Julio. Un gran desafio para los luchadores por la liberación nacional. In: Semanário El
Fogón: Informativo. Montevideo: n. 7, julho de 2004, p. 18.
574
SARTOU, Helius. In: MAZZEO, Mario. op. cit., p. 68.
355
Assim, o MPP tomava um caminho de acumulação que o transformaria na
terceira força da Frente Ampla nas eleições de 1999 e na primeira força nas eleições de
2004. Nas eleições de 1999, o MPP teve 14% dos votos da Frente Ampla. Em 2004, o
MPP contou com 29% dos votos frentistas, o que representou 328 mil votos. Nesta
eleição foram eleitos seis senadores, 19 deputados, 52 vereadores e dois ministros
575
.
Dessa forma, consolidou-se o MPP como uma importante força política, após a
renovação “ideológica”, e como uma excelente estrutura “funcional” da Frente Ampla.
Entretanto, essa consolidação do MPP como primeira força política da Frente
Ampla foi um lento e sofrido processo que se iniciou em 1999. O mesmo teve como
figura central José Mujica, que foi eleito deputado nas eleições de 1994, o primeiro
guerrilheiro tupamaro que chegou ao parlamento. Um personagem muito particular,
totalmente atípico da cultura política parlamentar. Mujica, com um discurso claro e
simples, somado a uma postura de austeridade que lhe conferiu uma imagem
“autêntica” (de homem do povo), conquistou a simpatia de amplos setores da sociedade
uruguaia.
O discurso político de Mujica era original na sua forma. Carregado de influências
de sua etapa anterior ao MLN (na década de 1960, militava no Partido Nacional), foi
pautado pelo revisionismo histórico e pelo socialismo de Vivian Trias, que instigavam
mudanças, tanto de percepções como de discursos. Esse discurso chegou num
momento em que existia um vacio, criado na esquerda pela derrubada do socialismo
“real”, um ostensivo abandono do nacionalismo pelo Partido Nacional governante,
voltado ao neoliberalismo, assim como um divórcio definitivo entre o Partido Colorado e
o estatismo Batllista, além da situação criada pelo novo paradigma que se instalava na
esquerda uruguaia (o progressismo).
O papel de Mujica no MPP, principalmente no período de 1999 a 2001, foi
essencial para as decisões que se tomaram no V Congresso do MPP, em 2001. O
documento do V Congresso concluía: “Depois superada uma difícil situação interna, o
MPP mudou o eixo de seu fazer político, propondo uma abertura nas alianças e
mudando sua metodologia de trabalho”
576
. Assim, esse trabalho passou a se direcionar
575
MAZZEO, Mario. op. cit., p. 107.
576
MPP. Resoluciones del 5º. Congreso del MPP “Jorge ‘Pato’ Quartino”. Montevideo: Comisión
Nacional de Propaganda del MPP, 2002, p. 32.
356
para “fora” e, desta forma, constituiu-se no eixo principal de seu desenvolvimento, “[...] o
que permitiu interpretar corretamente a conjuntura, melhorar a relação com os aliados e
apresentar um discurso que nos projetou a setores muito amplos de nossa
sociedade”
577
.
José Mujica publicou um documento intitulado Acuerdos y Alianzas (1999), no
qual o autor referia-se às “alianças” como uma necessidade imperiosa para se atingir o
objetivo (o Governo nacional) porque “as forças que temos não são suficientes”. Mujica
manifestou que a política de alianças não era um patrimônio da esquerda, nem da
direita, e sim que as mesmas “são um patrimônio da luta política e da luta social”
578
.
Iniciou-se, em 1999, um discurso “justificador” por parte do MLN sobre as políticas de
alianças, tanto da organização como do MPP. Vistas as contradições entre o discurso
do MLN de 1996 e o elaborado em 1999, mais a necessidade de legitimar a nova linha
estratégia, levaram o MLN a um processo de “esvaziamento” de seus quadros
militantes. Gradativamente, dirigentes e militantes de base foram se afastando da
organização (do MLN), mas continuavam compondo o MPP, mesmo que constituindo a
Corrente de Esquerda que concentrava esse setor dissidente no período de 1999 –
2001.
Por outro lado, observou-se um crescimento significativo do MPP no período de
1996 a 1999, que aparentemente teve como elementos determinantes a figura de
Mujica e o descontentamento de outros setores da esquerda tradicional (como o caso
do Partido Socialista, que não encontrava um espaço “crítico” nas filas frentistas). Por
outra parte, Huidobro não compartilhava as opiniões que indicavam o crescimento
explosivo do MPP nos anos de 1996 a 1999 como conseqüência da projeção de Mujica,
sustentando a opinião de que a estratégia elaborada no documento de 1995 foi a que
permitiu, junto com o carisma de Mujica, captar a adesão de importantes setores da
população. “A explicação que se dá para o crescimento do MPP é que Mujica é muito
577
Idem.
578
MUJICA, José. Acuerdos y Alianzas. Montevideo: Documentos de Formación del MLN, n. 5, 1999, p.
3.
357
simpático. [...] A verdade é que aqui há um documento (do MLN ao Congresso do MPP,
elaborado pelo próprio Huidobro) e isso permitiu que Mujica fosse ouvido”
579
.
Foi no V Congresso que o MPP “ampliou” sua política de alianças,
harmonizando-se com a Frente Ampla e, fundamentalmente, com as políticas de
alianças do Encontro Progressista. A partir de 2001, quando se falava em alianças, foi
difícil identificar diferenças entre o MLN – MPP e a FA – EP, ou entre Mujica e Vázquez.
Assim, o V Congresso foi um divisor de águas: por um lado, a Corrente de Esquerda
passou a representar os setores da esquerda combativa dentro da Frente Ampla, que
reivindicavam alianças de classe, e, por outro lado, o MPP “renovado”, como elemento
integralmente encuentrista, ou seja, foi propulsor das grandes alianças políticas visando
ao Governo nacional
580
.
Nesse sentido, as resoluções do V Congresso do MPP afirmavam: “Ante a grave
situação nacional, o povo uruguaio vê o EP – FA como a única alternativa”. E
acrescentou: “Desta organização (EP-FA) depende que se frustrem, ou não, as
expectativas: só a claridade de seus objetivos e das estratégias permitiram avançar”
581
.
Dessa forma, o MPP convocava a sua militância a apoiar o projeto encuentrista,
justificando sua mudança: “Anteriormente, nós não apoiamos o acordo porque alguns
companheiros entendiam que a proposta era contraditória com os princípios
fundacionais da Frente Ampla, mas no momento atual, depois dos desprendimentos de
1999, participamos do acordo”
582
.
Nesse mesmo sentido, em 2004, Eleutério Fernández Huidobro posicionava-se a
respeito de como o MLN assumia uma nova política de alianças no MPP, sendo que,
em 1994 havia votado contra a criação do Encontro Progressista. Huidobro afirmou que
haviam cometido um grande erro. “Nesse momento tivemos discrepâncias internas que
579
TAGLIAFERRO, Gerardo. Fernández Huidobro: de las armas a las urnas. Montevideo: Fin de Siglo,
2004, p. 197-198.
580
Antonio Bonomi (2003) proferiu declarações em relação a uma nova crise de crescimento dentro do
MPP. Bonomi afirmou que era possível atender as críticas aos novos ingressos na organização e
considerava estas críticas como coerentes, pelo menos numa considerável parte, mas também se
considerava válido que o crescimento quantitativo de uma organização política de esquerda “podia
acontecer de uma forma vegetativa ou através do convencimento de pessoas com ideologias contrárias,
ou seja, da direita”. El MPP y su Cresimiento Político. In: Semanário El Fogón: Informativo.
Montevideo: n. 2, dezembro de 2003, p.14.
581
MPP. Resoluciones del 5º. Congreso del MPP “Jorge ‘Pato’ Quartino”. Montevideo: Comisión
Nacional de Propaganda del MPP, 2002, p. 35.
582
Idem, p. 36.
358
acabaram na dissidência do MPP em 1998, com a saída de Jorge Zabalza e de Helius
Sarthou”
583
. Assim, Huidobro repassava para os dissidentes a responsabilidade da não
adesão em 1994. O dirigente tupamaro concluiu: “Terminamos realizando nossa
primeira aliança “eleitoral” com o Encontro Progressista”
584
.
Um editorial do Semanário Mate Amargo, de 1999, fazia um chamado à reflexão
dentro da esquerda nacional, no sentido de se observar a necessidade de ampliar o
espaço político do Encontro Progressista. O editorial finalizava dizendo: “A amplitude
tem que ser incorporada pelos companheiros que compreenderam que há que passar
por uma etapa de construção do país produtivo; os companheiros que comprovam que
hoje, como ontem, há que continuar ampliando o espaço de unidade possível”
585
.
Assim, Mate Amargo proclamava a necessidade de um crescimento “amplo” da
esquerda frentista, onde não existia a possibilidade de discrepâncias.
Por outra parte, em 2000, o MLN – passado o período eleitoral – entendia que a
grande tarefa política e social era a de somar esforços para a elaboração de um grande
projeto nacional que questionasse o atropelo econômico e social que o Governo vinha
desenvolvendo. Para isso, convocaram-se as forças progressistas para uma grande
“mobilização que se transformou num grande plebiscito social”
586
. Assim, após as
eleições (e o triunfo do Partido Colorado) convocava-se para mobilizações de massas,
ou seja, uma metodologia ausente nos períodos pré-eleitorais da era progressista.
Durante o ano de 2001, continuou-se dando ênfase a um discurso mobilizador
como forma de combate à crise econômica e política. Reclamou-se, desde as filas do
MLN, à imperiosa necessidade de que os dirigentes políticos se colocassem
diretamente à frente da luta política, como forma de avançar contra o “costumbrismo”, a
imobilidade e a desmobilização
587
. Uma particularidade desse documento foi o fato de
que esse discurso mobilizador não invocou o MPP, nem a Frente Ampla, senão que foi
assinado pelo MLN, fato incomum depois de 1996.
583
HUIDOBRO, Eleutério Fernández. El Camino es Culebrero. In: Semanário El Fogón: Informativo.
Montevideo: n. 4, fevereiro de 2004, p. 14-15.
584
Idem.
585
MATE AMARGO. Editorial. Semanário Mate Amargo. Montevideo: 30 de setembro de 1999, p. 3.
586
MLN. La Dignidad de los Orientales. Montevideo: Comitê Central del MLN, mimeo, 7 de setembro de
2000, p. 1.
587
MLN. La Patria en Crisis. Comite Central del MLN, Montevideo: mimeo, 7 de setembro de 2001, p. 2.
359
No final de 2001 e início de 2002, o MPP incorporou a proposta de Tabaré
Vázquez, que visava à formação de uma estratégia com base numa grande
concertación, ao que Vázquez chamou de o “país produtivo”. Essa incorporação
aconteceu de fato, numa nova virada no discurso do MPP, que se refletiu fortemente
nas suas propostas programáticas. “Há um conjunto de empresários médios,
comerciantes, pecuaristas que tem contradições com setores monopólicos em relação a
sua posição ante o poder econômico, e estas contradições são muito importantes na
hora de definir estratégias políticas”
588
.
A partir dessa nova concertación, no final de 2001 o MPP convocou uma grande
mobilização nacional que culminou num ato massivo. Alguns setores, em nome da
concertación por “um país produtivo”, como o caso da Central Sindical – PIT – CNT e a
Federação Rural (representante histórica das oligarquias latifundiárias)
589
, juntaram
esforços para o desenvolvimento da proposta do Encontro Progressista liderada por
Vázquez. Essa característica típica do progressismo – inaugurada no período – repetiu-
se constantemente e marcou uma nova concepção dentro da esquerda eleitoral: os
antigos e históricos inimigos de classe são, hoje, os aliados para se chegar a um
governo progressista.
Em 2002, o vice-presidente da Federação Rural, Alfredo Fratti, manifestou-se no
Semanário Mate Amargo a respeito da convocação do Encontro Progressista, realizada
em 16 de abril de 2002, para uma mobilizão de massas em exigência de soluções
para a grave crise pela que o país atravessava. Na oportunidade, Fratti diz: “Nós
pensamos que deveria dar-se uma expressão de conjunto da sociedade para dar força
às reivindicações. O setor agropecuário por si só, sem aproximar-se dos demais
setores, tentando demonstrar qual é a origem do problema, não encontrava a saída e,
por isso, tentamos a convergência com outras forças”
590
.
588
MAZZEO, Mario. op. cit., p. 74.
589
Em 2001, via-se que a classe pecuarista, sem perder sua situação econômica privilegiada, não ficava
com a maior parte da plusvalia gerada no país. A fatia mais importante dessa plusvalia tinha passado a
setores da agroindústria, processadores de produtos que formavam um total de dez fábricas
exportadoras que comercializavam 30% da produção (principalmente frigorífica, entre outras). Isso
colocava essa “classe” numa situação na qual se necessitava uma mudança substancial de políticas para
o setor, e essas mudanças estavam contempladas na proposta de Vázquez.
590
FRATTI, Alfredo. (entrevista) In: Semanário Mate Amargo. Montevideo: n. 38, 25 de abril de 2002, p.
6.
360
Os objetivos das alianças
591
, impulsionadas a partir da atualização ideológica no
interior da Frente Ampla e do Encontro Progressista a partir de 1997, encontraram lugar
e apoio, em 2001, pelos setores que representavam a esquerda “combativa” dentro da
coalizão. Assim, o MPP abandonou toda reivindicação de classe e incorporou-se à
proposta encuentrista, criticando seriamente as dissidências dentro do MPP com a
respectiva perda de organizações classistas como o PVP e o PST.
Por outra parte, continuou-se observando, tanto nos discursos do MLN como
também nos do MPP, a presença das duas grandes bandeiras de ambas as
organizações: a libertação nacional e o socialismo. Em março de 2004, o MPP chegou
a um novo congresso. O VI Congresso do MPP “Hacia la Refundación Nacional
592
declarou que na atual etapa do programa de “transição” não seria possível sustentá-lo
nas bases de 1965, “porque aquelas não funcionam mais”
593
. Essa “transição”, à qual o
documento se referia, invocava implicitamente dois elementos: a) a transição a um
governo progressista ; b) a transição ao socialismo. A primeira, possível através das
eleições nacionais, e a segunda, com o objetivo em longo prazo, etapista e
desejável
594
.
Grandes mudanças ocorreram na época. O conceito de “imperialismo”, que a
esquerda progressista vinha abandonando gradativamente, continuava se re-
significando e sendo utilizado pelo MLN e pelo MPP, mas com outra dimensão.
591
Bonomi (2003) assim definiu o que o MPP entendia por alianças políticas: “As alianças políticas têm
como base o desenvolvimento de acordos programáticos, estratégicos ou somente táticos para o impulso
de uma linha política próxima com a linha de outro setor, com pontos em comum, de tal forma que o
trabalho comum permita o avanço conjunto com maior força. [...] A aliança política implica, em definitivo,
acordos de trabalho e, desta forma, estes acordos são necessariamente ativos”. BONOMI, Antonio. El
MPP y su Cresimiento Político. In: Semanário El Fogón: Informativo. Montevideo: n. 2, dezembro de
2003, p. 15.
592
A proposta de Refundación Nacional surgiu da crise que padeceu o país, na qual o sistema bancário
quebrou e a economia, no geral, se derrubou. Isso se interpretou como o fim do país, no qual
sobreviveram alguns elementos de estabilidade e confiança do modelo. A crise não implicava o fracasso
do modelo, e sim uma conseqüência própria dele. A proposta foi a título emergencial, com a perspectiva
de um governo frenteamplista como única possibilidade de superação.
593
MPP. VI Congreso Hacia la Refundación Nacional. Montevideo: Comisión Nacional de Propaganda
del MPP, 2004, p. 12.
594
O documento do MPP, apresentou duas alternativas “possíveis” como resposta às críticas feitas pelos
setores mais “radicais”: “Uma que implicava colocar-se à margem até a Frente Ampla fracassar e, após
isso, ver o que seria possível de ser realizado; e a outra, incentivar uma revolução proletária condenada
ao pior dos fracassos, caminhos estes que conduziriam, inevitavelmente, a desencadear as poucas
forças acumuladas numa luta contra o Governo atual (de Jorge Batlle) ou contra o futuro Governo do
Encontro Progressista. Idem, p. 6.
361
Segundo Huidobro (2004), os conteúdos mudaram porque as figuras e o cenário
“mudaram”. Diz Huidobro: “Não posso comparar o imperialismo do século XIX, da
rainha Vitória, com o imperialismo do século XX, nem com o atual”
595
. Dessa forma, o
MLN identificava uma mudança no “cenário”, que levou a outra concepção do que
significou o conceito de “imperialismo”. Essa revisão ou atualização se encaixa no
marco da renovação ideológica da esquerda uruguaia e, a partir desta, o imperialismo
apareceu no discurso do MLN, como no do MPP, como um referencial histórico,
retórico, como uma categoria pronta para ser arquivada. Outro viés do conceito remetia
ao imperialismo – e a manifestações contra ele – como algo externo, distante (que, por
exemplo, aconteceu no Oriente Médio) ou diretamente associado ao colonialismo. Ou
seja, seria muito difícil para alguns setores da esquerda uruguaia continuar utilizando o
conceito “imperialismo” como outrora, visto que ele se enfraqueceu quando se
abandonou o referencial marxista
596
.
Da mesma forma, o conceito de libertação nacional mudou significativamente no
progressismo. “Na década de 1960, significava a ruptura total e, se possível, violenta,
com os vínculos da dependência e de submissão ao imperialismo. Nos anos de 1980,
era o não pagamento da dívida externa, e hoje significa muita coisa que está no
programa da Frente Ampla”
597
. E Huidobro advertia: “que ninguém pense que significa
outra coisa”. Essas manifestações já vinham acontecendo, de forma mais ou menos
isolada, desde o ano de 1999, mas se tornaram mais evidentes entre 2000 e 2004,
como foi o caso de Mujica, que expressou: “Acredito que se deve arquivar essa idéia
que tínhamos de, ‘um dia vou fazer a revolução’, porque então não vou fazer nada: vou
viver uma etapa revolucionária que depois vai se assentar e vai terminar num
burocratismo enorme. Isso é provável que aconteça, considerando a experiência vivida.
[...] Não há nada mais importante que a Frente Ampla e o Encontro Progressista
cheguem ao Governo, não por eles, e sim pelo destino do povo uruguaio”
598
.
595
TAGLIAFERRO, Gerardo. Fernández Huidobro: de las armas a las urnas. Montevideo: Fin de Siglo,
2004, p. 198.
596
Idem.
597
Idem, p. 199.
598
MAZZEO, Mario. Charlando con Pepe Mujica: con los pies en la tierra. Montevideo: Trilce, 2002, p.
110.
362
O tema da nacionalização do sistema bancário foi outro ponto que a esquerda
progressista abandonou. Novamente, Mujica fazia revelações muito claras sobre as
concepções da nova esquerda progressista: “Eu fui educado numa esquerda que
sempre pleiteava a nacionalização do sistema bancário e resulta que hoje, estudando o
sistema bancário uruguaio, encontrei que 52% do movimento bancário no país estão
nas mãos do Estado. Além de que, possuímos um Banco de la República que absorve
40% de todo o movimento bancário. Então, eu digo à esquerda: parem, vamos ver
como se faz para que isso funcione”
599
.
A alternativa “possível” era muito clara para o MPP. O programa de “transição”
que se mencionava serviria para desenvolver “apoios” nacionais e internacionais que
permitiriam o aprofundamento, entendendo-se por “apoios” o financiamento, o mercado
interno, o comércio exportador e o apoio tecnológico. Esse projeto estratégico tinha
como base a agroindústria e o trabalho com matéria- prima nacional, ou seja, as bases
do projeto encuentrista do Uruguai Produtivo. Para efetivar essa refundación nacional
do país, devia-se, antes de mais nada, efetivar a obtenção do Governo nacional.
O objetivo do Uruguai produtivo era inquestionável. Bonomi (2002) afirmou que o
questionamento a luta por recuperar o aparelho produtivo a partir da mais ampla política
de alianças supunha um erro que, às vezes, se sustentava numa concepção que
buscava a possibilidade de encontrar um atalho em direção à construção do socialismo,
e que tinha como base importantes erros doutrinários ou estratégicos. Segundo
Bonomi, “A maioria das vezes, esta posição se apóia numa concepção do marxismo e
do socialismo que pressupõe um país dependente e subdesenvolvido, sem a
acumulação de riquezas necessária, e visa à possibilidade de uma alternativa socialista
imediata”
600
. Ou seja, as críticas ao programa do país produtivo, quando partiam da
esquerda, foram desconsideradas por trazerem como fundamento o “arcaico”
pensamento marxista como referencial.
O MPP espelhava-se no processo brasileiro. No documento, expressou-se uma
alusão à situação do Governo vigente no Brasil, com o qual a Frente Ampla se
identificava. Diz o documento: “Lula e o PT, e o movimento social que o apóia, tiveram
599
CAMPODÓNICO, Miguel Ángel. Mujica. Montevideo: Fin de Siglo, 2005, p. 247.
600
BONOMI, Eduardo. País Productivo y Distribuición de Ingreso. In: Semanário Mate Amargo.
Montevideo: n. 37, abril de 2002, p. 5.
363
grandes coincidências com um grande projeto estratégico (produtivo), ao ponto que o
PT se transformou na maior força política com melhores possibilidades de levar adiante
esse projeto produtivo”
601
. Dessa forma, o MPP concebia coincidências nos projetos
produtivos de Lula e Vázquez, da mesma forma que a experiência brasileira mostrava
os “benefícios” da transição política negociada.
O discurso do MLN, fundamentalmente nos anos de 2002 a 2004, vinha tomando
um caminho difuso ou híbrido. Por um lado, se criticava a democracia liberal, e pelo
outro, se exaltava suas qualidades. Da mesma forma aconteceu com o discurso
referente à política de alianças: no discurso, estas deveriam ser realizadas com
objetivos concretos que ultrapassassem os fins eleitorais, e na prática, as alianças eram
concretizadas exclusivamente com fins eleitorais. No período 2002 – 2004 surgiu outra
característica do discurso híbrido do MLN: a retórica Frentegrandista. Fazia-se uso da
proposta de Raul Sendic, da década de 1980 (ver capítulo II), e transformava-se a
mesma na proposta do Encontro Progressista. Segundo Huidobro, a linha atual (2004)
do MPP seria a continuidade da proposta frentegrandista de Sendic dos anos oitenta,
“que tinha sido abandonada porque se analisou, e se analisa hoje, por muita gente,
num esquema que não interpreta a realidade que estamos vivendo”
602
.
Em 2002 havia se iniciado, por parte do MLN, uma defesa do Encontro
Progressista que se comparava, e até se lhe atribuía sua origem, na proposta de
Sendic da Frente Grande. “Chama-nos poderosamente a atenção que vários
companheiros estão defendendo a proposta da Frente Grande que o MLN vem
apresentando desde 1985. Chama-nos a atenção porque, quando se fez a proposta
pública e quando se começou a trabalhar no MPP, (a Frente Ampla) estavam
decididamente contra. Era considerado um fator que dificultava a concretização do
MPP, além de realizarem profundas críticas à proposta”
603
.
Dessa forma, Mujica identificou coincidências entre a proposta da Frente Grande
e o Encontro Progressista: “A Frente Grande fracassou, mas semeou. De alguma
601
MPP. VI Congreso Hacia la Refundación Nacional. Montevideo: Comisión Nacional de Propaganda
del MPP, 2004, p. 15.
602
TAGLIAFERRO, Gerardo. Fernández Huidobro: de las armas a las urnas. Montevideo: Fin de Siglo,
2004, p. 198.
603
BONOMI, Eduardo. Frente Grande y Frente Social. In: Semanário Mate Amargo. Montevideo: n. 39,
maio de 2002, p. 7.
364
forma, é a mesma idéia que depois fez nascer o Encontro Progressista, mesmo que
tenha nascido um pouco diferente. Deu-se muito mais sentido eleitoral que político”
604
.
O que ficou de fora deste presumível comparativo foi que a proposta de Sendic tinha
reivindicações pontuais muito concretas, como, por exemplo, o tema da dívida externa e
o tema da terra, ambos desconectados do projeto do “Uruguai Produtivo” de Tabaré
Vázquez. Assim, abandonou-se a proposta de Sendic e se assumiu a proposta de
Vázquez, utilizando-se um discurso híbrido que tentava conciliar as propostas políticas
do MLN (de 1985 até 1999) com as novas propostas da esquerda progressista.
Para o MPP, a transição a acontecer no Uruguai era do modelo neoliberal para
um governo progressista. Essa se daria no marco de uma grande concertación com
todos os setores sociais. “Trata-se de estabelecer um pacote global, discuti-lo com as
forças sociais, sindicais e empresariais, assim como discuti-lo com o Governo atual e
com os diversos setores dos partidos tradicionais”
605
. A iminência do triunfo eleitoral nas
eleições nacionais de 2004 foi reconhecida por todos os setores políticos do país.
Assim, o EP – FA – NM e seus aliados prepararam as condições para assumir o
Governo. O trabalho do MPP foi conduzido nessa direção.
604
CAMPODÓNICO, Miguel Ángel. Mujica. Montevideo: Fin de Siglo, 2005, p. 200.
605
MPP. VI Congreso Hacia la Refundación Nacional. Montevideo: Comisión Nacional de Propaganda
del MPP, 2004, p. 37.
365
CONCLUSÕES
Na América Latina, desde as primeiras experiências democráticas no início do
século XX, pode-se contabilizar a presença e a luta da esquerda: pelo reconhecimento
dos direitos dos trabalhadores, pela extensão dos direitos políticos e sociais dentro dos
regimes da democracia liberal, lutando por transições e novas formas democráticas,
resistindo ao autoritarismo e às ditaduras de todo tipo. No Cone Sul, a história da
esquerda registrou, desde o final do século XIX, fundamentalmente na Argentina, uma
intensa influência como exemplo de organização no plano sindical, que foi o precursor
de inúmeras lutas pela superação da democracia liberal.
No caso da esquerda uruguaia, seus antecedentes remontam às primeiras
organizações sindicais no final do século XIX, onde a tônica ideológica era
fundamentalmente marcada pelas correntes de pensamento anarquistas. No transcurso
das primeiras décadas do século XX, com o surgimento de partidos políticos de corte
marxista, propagou-se essa doutrina entre as organizações existentes. Um elemento
comum que permeou toda a esquerda da época, desde as primeiras décadas do século
XX, foi que toda a esquerda nacional, independentemente de anarquistas ou marxistas,
definiu-se como socialista.
Desde as primeiras lutas operárias no início do século XX, principalmente no
primeiro Governo de José Batlle y Ordóñez (1903-1906), as definições pela luta em prol
da construção do socialismo foram unânimes dentro da esquerda uruguaia, e
ininterruptas durante a primeira metade do século. As divisões dentro do espectro
político da esquerda – fundamentalmente a partir da Revolução Russa – implicaram
numa conhecida variedade de controversas concepções desse processo que deveria
levar à construção do socialismo. Mas todas as forças políticas coincidiam para o fato
de que o projeto “finalista” era a construção do socialismo.
Mais adiante, a esquerda sesentista uruguaia teve como característica primária a
de convocar grandes setores da sociedade para a causa do socialismo. Por mais
diversas que fossem as concepções e as metodologias propostas, de alguma forma
visavam à construção do socialismo. O próprio surgimento da Frente Ampla, em 1971,
366
abrigava essa concepção, por mais que hoje seja negada. A coalizão nasceu com essa
bandeira. Os diversos projetos eleitorais ou revolucionários que proliferaram no
sesentismo, incluindo os chamados reformistas (da época), apresentavam referências e
categorias de análise oriundas do marxismo.
O desenvolvimento do marxismo no Uruguai teve, basicamente, dois pólos
desconexos entre si: por um lado, setores ortodoxos ligados freqüentemente às
doutrinas soviéticas da época, representados na sua essência pelo Partido Comunista e
outras correntes que, aliadas ou não ao sistema soviético, desenvolveram concepções
clássicas do marxismo ortodoxo. Por outro lado, existiu um conjunto de setores que
promulgou um pensamento marxista não ortodoxo, independente e adaptável à
realidade do país. Entre eles, encontra-se uma grande diversidade: desde o
anarquismo libertário, representado na FAU, até setores identificados como terceristas,
que pregavam a construção de um socialismo nacional, independente da União
Soviética e de seus clássicos dogmatismos.
A hegemonia do marxismo uruguaio, desde as primeiras décadas do século XX
até o final do período de transição (1990), foi exercida pelo Partido Comunista. Mesmo
assim, existiu uma tradição em todo esse período independentista, diretamente
relacionada com o pensamento libertário e tercerista, que possibilitou a difusão do
marxismo numa orientação independente do bloco soviético e que realizava severas
críticas ao mesmo. Essa tradição possibilitou o surgimento de várias correntes políticas
dentro da esquerda, que se autodenominaram de “independentes”.
Entre esses setores denominados de independentes, efetivaram-se dois grandes
grupos. O primeiro vinculado ao anarquismo libertário, que no início da segunda metade
do século XX deu origem à Federação Anarquista Uruguaia – FAU que, posteriormente,
influenciou a formação de outras organizações, como a Organização Popular
Revolucionária 33 Orientais (OPR 33), a Resistência Operária Estudantil (ROE) e o
Partido Pela Vitória do Povo (PVP). Destas organizações derivaram, no movimento
sindical e estudantil, a Tendencia Combativa e a Corriente Combativa, ambas
representantes dos setores mais radicais dentro do espectro político da época. O
Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros também foi formado dentro destas
correntes.
367
O segundo grupo de independentes foi identificado como tercerista e abrigou
setores que proclamavam um socialismo “nacional”, ou seja, adaptado à realidade do
país, e que tinha como principal característica a reivindicação de independência frente a
setores hegemônicos dentro da esquerda, fundamentalmente do Partido Comunista e
dos organismos internacionais. Estes setores desenvolveram um referencial marxista
não ortodoxo, defenderam o processo desencadeado pela Revolução Cubana e
influenciaram, posteriormente, correntes ligadas com a Igreja Católica a respeito da
Teologia da Libertação.
Esses setores, em conjunto, constituíram um enérgico confronto com as
correntes hegemônicas, principalmente no período sesentista, onde o processo
desenvolvido no Uruguai a partir da Revolução Cubana marcou um verdadeiro divisor
de águas: por um lado, os que apoiaram a revolução e viram na mesma a possibilidade
“real” de uma via revolucionária para a América Latina; e pelo outro, os que se definiram
a favor do processo cubano, mas com críticas e não visualizando a possibilidade de
expandi-lo para o resto do continente. Mesmo assim, ambos os setores apostavam na
construção do socialismo.
Esse divisor de águas que foi a Revolução Cubana reafirmou, na esquerda
uruguaia uma velha discussão que, naquele momento, deixou de ser somente abstrata
e que questionava firmemente as concepções reformistas. Os setores independentes
foram os que realizaram as críticas mais consistentes ao reformismo. O reformismo da
época era visto de forma tão desprezível como o próprio sistema capitalista e
considerado, por alguns setores situados mais à extrema esquerda, também como um
inimigo a ser combatido. Os independentistas, de forma geral, combateram o
reformismo, principalmente nos terrenos sindical e estudantil.
Essa tradição de setores “independentes” dentro da esquerda nacional
contribuiu, em 1971, para a formação da Frente Ampla. A formação da coalizão de
esquerda foi uma demanda de amplos setores da população e viabilizou sua
estruturação a partir da bandeira “unidade sem exclusões”, como uma manifestação de
integração num projeto que visava à formação de uma grande frente eleitoral que não
se esgotaria nas eleições, senão que teria um projeto de mudanças voltado à
construção do socialismo. Além de ter encontrado muitas contradições discursivas e
368
metodológicas, foram notórias as influências da Cepal e das diversas correntes social-
democratas da época no processo de formação da coalizão.
A Frente Ampla se constituiu como a grande possibilidade de conjunção da
esquerda nacional, sendo que somente alguns setores mais radicais, como a
Federação Anarquista, não aderiram. Os argumentos da FAU para sua não participação
na Frente Ampla tinham como base os princípios fundantes do anarquismo:
essencialmente, a discrepância em relação a participar em qualquer processo eleitoral
burguês e na crença de que o processo de construção do socialismo deveria acontecer
a partir da insurreição das classes oprimidas, e não de eleições ditadas dentro do jogo
democrático liberal.
Por sua vez, a crítica à democracia liberal e a suas instituições foi uma
característica do período sesentista tendo-se constituido numa categoria essencial para
a análise dos processos de mudanças dentro das estruturas ideológicas da esquerda
nos últimos 25 anos. De um ataque às instituições da democracia liberal, no período da
esquerda tradicional, passou-se, gradativamente, a exaltar as qualidades desta e a
considerá-la o único sistema político realmente viável. Assim, o período da esquerda
progressista exaltou a democracia liberal e suas instituições, abandonando o socialismo
até como um sistema utopicamente “desejável”.
Mas antes de acontecer o golpe de Estado civil-militar, na década de 1970, hoje
re-significado por alguns intelectuais (do progressismo) que tentam dar uma visão
factual do golpe, ou seja, um fato que aconteceu, como um período a mais da história
do país, e também como um ato de exclusiva responsabilidade militar ou, como no caso
dos setores ultraconservadores que colocam a “responsabilidade” pelo golpe no
movimento popular, o que tenta encobrir a realidade histórica dos acontecimentos, visto
que a participação civil foi de suma importância para o desencadear dos
acontecimentos. Não obstante, o processo autoritário não trouxe conseqüências de
ruptura dentro da esquerda, tanto que ela saiu do processo ditatorial reivindicando as
mesmas coisas que reivindicava antes da ditadura.
Torna-se importante lembrar que no processo de transição da ditadura para a
democracia, as lideranças representantes dos setores hegemônicos dentro da Frente
Ampla aceitaram e participaram – direta e indiretamente – do processo de concertación
369
que atuou como uma grande instância negociadora, com o poder militar, para a
retomada da democracia em 1984. A partir desse momento, e representada sua
liderança principalmente pela figura de Líber Seregni, a coalizão assumiu um discurso
”desmobilizante” que funcionou como um anestesiante ante as demandas populares de
saídas para a grave crise que o país atravessava. As bases reclamavam mobilizações
como medida de luta; a direção da coalizão fazia chamamentos ao bom senso e à boa
conduta cidadã.
A partir dá direção da Frente Ampla iniciou-se o processo de transição da
esquerda em 1984, não por que neste momento se houvesse retomado a discussão
sobre a viabilidade do socialismo ou não, como se argumentou na época, senão porque
a Frente Ampla decidiu aceitar plenamente as regras do jogo democrático liberal:
definiu-se como uma organização que visava à conquista do poder através das eleições
nacionais, abandonando também o seu projeto político fundacional que continha
pressupostos que no novo cenário seriam impossíveis de continuar defendendo, como
o caso das nacionalizações e da reforma agrária.
Nesse momento, o contexto internacional teve, obviamente uma significativa
influência. Por um lado, a esquerda latino-americana mudava sua configuração
sesentista: a revolução sandinista encerrou seu ciclo com uma derrota eleitoral; as
guerrilhas salvadorenha e guatemalteca se viram obrigadas a abandonar perspectivas
de triunfo para se incorporar a um processo de pacificação e institucionalização; Cuba
lutava na defensiva pela sua sobrevivência. Por outro lado, os sistemas bipartidários,
como o da Venezuela, e de partido único, como o do México, davam sinais de
esgotamento.
Além disso, nos países vizinhos a situação perfilava-se mais complexa ainda.
Por um lado, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores apresentava-se como uma
alternativa de esquerda classista, com fortes condições para, no futuro, triunfar no
terreno eleitoral. Enquanto isso, na Argentina, a esquerda se enfrentava com um
Governo autodefinido como populista, como o de Carlos Saul Menem, que
representava correntes da centro-esquerda, até que colocou em prática programas de
estabilização de corte neoliberal, contribuindo amplamente para a marginalização de
370
amplos setores sociais, debilitando o movimento sindical e privatizando grande
quantidade de empresas públicas – colocando-se, assim, a serviço do neoliberalismo.
O caso argentino teve sua origem comum no cenário interno da América Latina,
que foi influenciado pelo panorama internacional, no qual o FMI e os países credores
passaram a exercer forte pressão na direção de políticas neoliberais, fundamentadas
no enfraquecimento do Estado na economia, mediante privatizações, desregulações e
diminuição de seus custos, principalmente em políticas sociais. Foi nesse contexto que
as democracias liberais voltaram a dominar o cenário do continente.
O neoliberalismo no Uruguai fez sua estréia ainda durante o período ditatorial.
Uma vez iniciado o processo de recuperação democrática, teve continuidade o avanço
neoliberal – desde o primeiro Governo democrático de Julio Maria Sanginetti em diante
–, mas sem conseguir implementar as privatizações como uma política do Estado. Os
resultados desses governos neoliberais conduziram o país, como vimos no capítulo III,
à degradação do emprego, das condições de vida da população e a uma severa crise
econômica que atingiu a todos os setores da sociedade uruguaia. Paralelamente, o
descrédito generalizado da política e das instituições desencadeou uma crise política
sem precedentes.
Nesse contexto, no momento em que a esquerda frentista definiu-se de fato
como um partido eleitoral a mais dentro do cenário político nacional, visando a
confrontar-se com o bipartidarismo secular para disputar o Governo nacional, ela
necessitou readequar seu discurso ideológico e sua proposta programática. Para tal, o
período de transição foi o momento em que se desenharam as novas propostas
programáticas e se reconfigurou, ideologicamente, a coalizão. Nesse processo, o
socialismo como modelo “desejável” ainda permanecia no discurso de muitos setores
da esquerda, mais foi notória a sua decadência nas discussões.
No período de transição (1984-1994), conjuntamente com a consolidação do
regime democrático, a Frente Ampla consolidou sua nova essência liberal. Um
liberalismo “levado a sério”, ou seja, a negação absoluta de uma saída do sistema
vigente e de qualquer questionamento que implicasse num confronto com o capitalismo.
A nova esquerda que se começou a construir no período de transição era
definitivamente social-democrata e abortou toda alternativa política-programática que
371
pudesse conter a idéia de mudanças estruturais profundas. De fato, o socialismo como
modelo desejável o era cada vez menos.
Contudo, o fenômeno da transição da esquerda uruguaia não era um fato
isolado: ele se enquadrava dentro do cenário latino-americano e mundial. Os diversos
processos de recuperação democrática da América Latina, especialmente no âmbito do
Cone Sul, como os casos do Brasil, Argentina e Chile, após as experiências autoritárias
de suas respectivas ditaduras, levaram a uma revalorização da democracia em si,
obviamente que num contexto no qual a doutrina neoliberal se expandia pelo mundo.
Este justamente parece ser o cerne da questão: o desenvolvimento do neoliberalismo
como ideologia do paradigma globalizador.
Iniciada sua experiência-piloto no Chile de Pinochet, a doutrina neoliberal
espalhou-se pelo continente com as já sabidas conseqüências para os países
subdesenvolvidos. Além de seu conteúdo político-econômico, o neoliberalismo trouxe
um conjunto de novos micro-paradigmas, ou conceitos híbridos globalizantes, como
uma nova estrutura totalizadora. Ou seja, ofereceu-se um novo modelo totalizador (ou
um conjunto desses modelos), com a finalidade de consolidar uma renovação da
estrutura ideológica dominante. Substituíram-se assim, as velhas problemáticas, que a
modernidade não conseguiu superar, por outras “atualizadas”, novas e “modernas”
problemáticas que se instalaram a partir da doutrina globalizadora.
Assim sendo, o conceito de sociedade civil substituiu a luta de classes, e o
próprio conceito de classe. Desta forma, a idéia de sociedade civil que tudo permeia,
onde todos os setores e as classes sociais estariam representados em igualdade de
condições, em volta de uma grande mesa articuladora e negociadora na busca do “bem
comum”, funcionou como conceito totalizante, em virtude de que esta “falsa” unificação
– visto que não há reais indicadores que sustentem a inexistência de diferenças de
classe no mundo contemporâneo; muito pelo contrário: existem indicadores que
mostram o agravamento, como o caso do aumento substancial das desigualdades
sociais, sem entrar no mérito das relações de produção, nem nas relações de trabalho,
entre outras – viria a “harmonizar” os conflitos existentes. Assim, o conceito
“harmonizante” cumpre uma função totalizadora.
372
Desta forma, a sociedade civil surge como a solução, não só dos antagonismos
históricos entre as classes sociais, senão que cumpre a função de uma nova instância
política na qual o Estado se desloca para dar passo a essa sociedade civil que,
conjuntamente com o mercado, irão tomando conta das especificações administrativas
do Estado, reguladoras fundamentalmente no que se refere aos sistemas produtivos e,
assim, abrindo passo para a consolidação do Estado mínimo, ou seja, a mínima
presença do Estado nas suas funções sociais e produtivas. Desta forma, a sociedade
civil, além de eliminar o conflito entre as classes, abre passo para a “parceria” com o
mercado, quebrando definitivamente as antigas resistências da esquerda tradicional.
Desse modo eliminaram-se antagonismos e conflitos de toda ordem, visto que, a
exemplo do processo de concertación no Uruguai, o seu sistema de partidos políticos
conseguiu unificar-se para a transição da ditadura militar à democracia. Assim,
superando as barreiras ideológicas em nome do “bem comum”, ou da sociedade civil,
instaurou-se um modelo que, oportunisticamente – aproveitando-se da derrubada do
sistema soviético –, descartou, como obsoletos, todos os referenciais marxistas, sem
distinção e junto com eles, as críticas com fundamento classista e, obviamente, o
socialismo como utopia “desejável”. O novo discurso ideológico anulou as diferenças e
atuou como unificador do pensamento e do agir político.
Da mesma forma, o conceito de imperialismo também se redimensionou como
uma nova necessidade da atualização ideológica da esquerda: na medida em que o
mundo não era mais bipolar e a necessidade de “aliar-se” a um dos blocos
hegemônicos havia acabado. Por outro lado, a hegemonia dos Estados Unidos
conduzia também a nova ordem mundial, na qual liderava o discurso globalizador e as
diretrizes neoliberais. Pretendendo inserir-se no processo da globalização, como se
podiam estabelecer novas relações com o Império, e em que termos? Esta pergunta
modificou a visão do imperialismo e o restringiu a uma questão meramente retórica,
como parte de um discurso que pretendia salvaguardar velhas tradições. Na prática,
não havia mais inimigo a combater, e sim, “a partir de um novo cenário” e de uma “nova
realidade”, novas relações internacionais a serem construídas com as lideranças
mundiais.
373
Observou-se também que as referências ao imperialismo, em particular as que
se referiam aos Estados Unidos, deixaram de ser alvo de críticas a partir da década de
1990, quando se referiam ao Uruguai e no seu lugar, passou-se a mencionar as
“barbáries” do Império de forma externa, ou seja, quando não tinham nada a ver com a
nação uruguaia, quando os fatos aconteciam longe do Uruguai, principalmente no
Oriente Médio. A partir do novo conceito “civilizador” da democracia americana e da luta
contra o extremismo também passou a fazer parte do discurso globalizador; portanto, a
fronteira para a sua incorporação, por parte da esquerda “progressista”, é muito
pequena e movediça.
De todo modo, a presença do discurso antiimperialista, na esquerda eleitoral
uruguaia, se manteve na sua forma clássica até 1996. A partir de 1996, os setores que
mantinham posições críticas sobre o imperialismo estavam concentrados no MPP. Os
discursos de comunistas e dos socialistas (do partido), entretanto, davam mostras de
uma crítica menos dura naquele período. Já a nova esquerda progressista,
representada por Vázquez, era mais cuidadosa ao falar do Império e suas atrocidades.
Depois de 1996, e principalmente na proximidade das eleições nacionais de 2004, o
discurso antiimperialista pouco apareceu nos documentos e nas oratórias da esquerda
eleitoral como um todo. A necessidade de vencer as eleições unificou também este
discurso, dando-lhe a nova tonalidade do progressismo.
O processo de “descarte” dos referenciais marxistas, por parte da nova
esquerda, teve como base teórica as elaborações de inúmeros intelectuais que, na
maioria dos casos, realizaram teorizações na linha de Francis Fukuyama, decretando
não só o final da história, como também o final das utopias e o final das ideologias,
como o caso de Robert Kuttner (1997). Estas análises possuíam uma característica
comum: na sua grande maioria, partiram de uma concepção stalinista de socialismo e, a
partir desta, colocaram todo e qualquer tipo de socialismo “real”, ou “possível”, como se
fosse a mesma coisa. Assim, descartaram todo referencial ao marxismo, sem identificar
diferenças entre eles, como se o marxismo fosse, por si próprio, um conceito total e
único.
Dessa forma, colocava-se o marxismo como um conceito obsoleto, no sentido de
que se ele não funcionou no socialismo “real”, não existiria nenhuma possibilidade de
374
lhe reconhecer qualquer tipo de validade. Portanto, devia-se descartar “radicalmente”
qualquer vínculo ou possibilidade de repensar a proposta marxista, já que ela tinha sido
“ultrapassada” pelo modelo democrático em vigor. Conforme esta perspectiva de
análise, a alternativa possível – para a esquerda – era a de substituir os velhos e
ultrapassados referenciais por uma nova visão de mundo que, necessariamente,
deveria incorporar a democracia liberal como a única possibilidade de se viver numa
sociedade sem conflitos de classe. A negação da luta de classes é assim, uma
característica fundante do progressismo.
O novo paradigma globalizador apresentou as novas problemáticas, que a
sociedade deveria enfrentar, como desafios para “todos” e aos quais não se poderia
resistir, visto que a globalização era inquestionável e irreversível. Neste sentido, tomou
uma importância essencial o discurso da sociedade do conhecimento, como já vimos no
capítulo III, diretamente associada ao desenvolvimento científico e tecnológico que a
atual revolução tecnológica trouxe. Com ela, a apropriação do conhecimento e a
importância da ciência e da tecnologia fundaram-se como elementos “indispensáveis
para a integração, principalmente dos países subdesenvolvidos, ao processo
globalizador.
O modelo de desenvolvimento proposto pela nova esquerda progressista
apresentava como bases o desenvolvimento da ciência e tecnologia nacionais, como
necessidade essencial para a implementação de um efetivo crescimento econômico.
Apostava-se nas exportações com manufatura nacional e nas “parcerias” com o capital
internacional (fundamentalmente do Mercosul, mas não se excluíam os capitais
imperialistas) como forma de dinamizar o país e torná-lo “produtivo”. As problemáticas
relacionadas ao desenvolvimento social estavam vinculadas com o desenvolvimento do
país produtivo, o que seria, assim, a grande alternativa para sair da crise econômica
vigente. O modelo centrava-se numa proposta de crescimento econômico como
sinônimo de desenvolvimento social e “sustentável”.
Por outro lado, a partir da sociedade do conhecimento, ressurgiram temáticas
antigas, como o caso da problemática ambiental, onde se redescobriam estas questões
de maneira que tomaram uma dimensão nunca antes vista. A problemática ambiental
foi reinterpretada de tal forma que o grande dilema hoje é a preservação do planeta
375
para garantir a sobrevivência da espécie humana. O movimento ambientalista, surgido
a partir desse novo paradigma “ambiental”, defende principalmente a necessidade de
se preservar os recursos naturais, mas deixa para um segundo plano, no geral, o
questionamento das causas dessa depredação, ou seja, o modelo de desenvolvimento
econômico capitalista ficou relegado a um segundo plano.
Nesse contexto emergiu o conceito de desenvolvimento sustentável, que se
incorporou rapidamente aos discursos da esquerda, sem muitos questionamentos.
Assim, mais um discurso híbrido e globalizante tomou conta das plataformas
programáticas da esquerda, sem perguntar-se para quem seria sustentável esse
desenvolvimento e como esse processo se realizaria. Desta maneira, se afastaram
causas políticas e econômicas que provocaram essa depredação dos recursos naturais,
em nome do desenvolvimento do capital, por uma visão da problemática que abordou o
problema como uma responsabilidade de “todos”, ou seja, da sociedade civil e, por sua
vez, de uma sociedade de consumo sem identidade definida; portanto, sem
responsáveis ideológicos.
Não se pretende aqui desvalorizar a temática abordada pelas questões
ambientais, nem a validade dos diversos movimentos ambientalistas, obviamente que a
causa e os movimentos têm uma importância substancial; o problema identificado é que
enquanto se ofereceu uma interpretação apolítica da problemática ambiental por parte
do discurso globalizador, a esquerda de modo geral, e em particular a uruguaia, tomou
a questão da mesma forma que os partidos tradicionais oficialmente neoliberais, ou
seja, de fato se apropriou do discurso globalizante, sem propostas diferenciadas, tanto
na sua forma como no seu conteúdo, reproduzindo, assim, o discurso dominante.
A apropriação desses conceitos por parte da esquerda uruguaia foi gradativa e
tímida, como se observou no capítulo III, passou quase desapercebida na transição da
fase pré-progressista para a progressista, incorporou os novos conceitos na medida em
que se ressaltavam as significativas representações do discurso democrático liberal.
Enquanto isso, os indicadores de pobreza extrema aumentavam vertiginosamente, mas
essa não era uma problemática de interesse da globalização neoliberal, e sim sua
estrita conseqüência. Da mesma forma, outros indicadores de desenvolvimento social
iam mostrando uma degradação das condições de vida de cada vez mais amplos
376
setores da população, como nos indicadores de educação, saúde, moradia, entre
outros, como já foi referido no capítulo III.
Paralelamente, a esquerda uruguaia adotava medidas estratégicas condizentes
com as novas plataformas programáticas, oriundas do processo de “atualização
ideológica” iniciado no período progressista. Vale a pena lembrar que, desde 1986,
iniciaram-se as discussões entre setores representativos da democracia cristã (o PDC)
e setores social-democratas (PGP), que impulsionavam a necessidade de “atualizar” a
esquerda, culminando, em 1989, com a ruptura destas organizações com a Frente
Ampla. Essa atualização estava focada, essencialmente, no abandono do marxismo
como referencial da coalizão.
Posteriormente, a Frente Ampla criou instâncias institucionais – em princípio de
forma paralela à coalizão – para oferecer, dentro de sua nova linha programática,
opções eleitorais aos novos parceiros oriundos dos partidos tradicionais. Para isso, em
1989, criou-se a agrupação Nuevo Espacio e, em 1994, fundou-se o Encontro
Progressista o que, conjuntamente com a fórmula Nuevas Mayorías, obteve o triunfo
eleitoral nas eleições nacionais de 2004.
Essas novas instâncias institucionais, que foram se incorporando organicamente
à coalizão durante o processo de atualização ideológica, somaram, às discussões,
aportes ideológicos liberais, visto que os setores participantes destas novas instâncias
organizacionais provinham do liberalismo. Assim, para além do contexto marcado pelo
pós-ditadura e do período de transição, a esquerda uruguaia consolidou uma nova
versão da democracia liberal como proposta programática. A defesa das instituições
democráticas foi uma bandeira constante da coalizão, mas uma característica que, até
então, se mantinha no discurso frentista. Começou a desaparecer a adjetivação “liberal”
junto à palavra democracia.
Por sua vez, os setores da esquerda radical que participavam da Frente Ampla
representaram-se no Movimento de Participação Popular – MPP, que, desde 1989
(momento de sua fundação), vinha levantando bandeiras e reivindicações ao velho
estilo da esquerda sesentista. Esta parte da esquerda nacional foi a que representou os
setores historicamente mais combativos ao sistema capitalista. Foi fundada por
iniciativa do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros que, a partir de 1990,
377
dedicou todos os seus esforços e estrutura para o desenvolvimento do MPP. Este fato,
por si só, já mostra qual foi a linha de ação do MLN desde o início do período
progressista: assumiram a tão desprezada, em outros tempos, luta eleitoral.
Desde 1995, e a partir de um documento elaborado pelo MLN (Del MLN al
Congreso del MPP), foram se definindo as estratégias de ambas as organizações, as
quais, nesse período, pelo menos no programático se confundiam, visto o uníssono de
seus discursos apontando para o apoio e desenvolvimento de ações em busca da
vitória eleitoral da Frente Ampla e de um projeto político que ultrapassasse o objetivo
primário. Assim, elaboraram-se estratégias: por um lado, de um aprofundamento das
ações no âmbito sindical e interno da coalizão; e por outro lado, no sentido de uma
política de alianças que permitisse o acúmulo de forças suficientes para se obter
representações parlamentares e somar no processo eleitoral da coalizão.
O trabalho de base proposto pelo MPP se direcionou para a contenda eleitoral e,
como fator peculiar, centrou sua estratégia para a acumulação de votos na figura de
José Mujica. Como vimos no capítulo III, o carisma de Mujica, somado ao esvaziamento
de quadros militantes do MLN e de outras organizações nas quais seus militantes
criticaram a falta de políticas e estratégias próprias, aparentemente contribuiu para o
fortalecimento principalmente de quadros militantes – que posteriormente viriam a fazer
o trabalho de acumulação –, acarretando o crescimento extremamente substancial do
MPP. Lembremos que, em 2004, o MPP transformou-se na primeira força política
(eleitoral) dentro da Frente Ampla – Encontro Progressista.
O MLN – Tupamaros iniciou sua “atualização ideológica” sem prévio aviso. Sem
ser anunciada, mas, a partir de 1998, iniciou uma “readequação” discursiva que,
gradativamente, incorporou os novos paradigmas da esquerda progressista e voltou a
assumir bandeiras que tradicionalmente lhe foram alheias. O novo enfoque, a partir do
apoio a Tabaré Vázquez, refez sua estratégia de ação política e sua política de
alianças, o que, obviamente, também aconteceu no MPP. A sua ação política
encaminhou a defesa de superação da grave crise econômica que o país enfrentava, a
partir de um discurso “populista” e muito emotivo, mas com uma notória falta de
propostas políticas concretas, principalmente no âmbito da implementação de políticas
públicas.
378
Ao mesmo tempo, voltou-se a uma política de alianças no sentido da
acumulação de forças, com o mero objetivo da conquista do Governo nacional. Isto
levou a um gradativo, mas claro, abandono da proposta de 1996, na qual se havia
definido um projeto político para além do âmbito eleitoral. O MLN deu seu apoio à
proposta do projeto encuentrista do “país produtivo”, produto das novas políticas da
coalizão, o que levou, inevitavelmente, à readequação de suas definições anteriores e,
com estas, a contradizer frontalmente muitos de seus pressupostos de poucos anos
anteriores, como os de 1996.
Dessa forma, a afirmação feita no capítulo III, sobre a existência de um discurso
híbrido no MLN, partiu justamente dessa dualidade: por um lado, organizacionalmente o
MLN promulgava um projeto para além do eleitoral, com propostas que se
referenciavam nas bandeiras sesentistas; e por outro lado, voltava-se não só à
atividade parlamentar e eleitoral encuentrista, senão que defendia a democracia liberal
e suas instituições, e negava a construção do socialismo como uma utopia desejável. O
que não implica na crença de que não fosse possível mudar de caminho (para o MLN),
mas também não seria necessário para uma organização com uma história como a
deles, a formação de uma dúplice discursiva: por um lado, um discurso revolucionário;
pelo outro, uma prática burguesa “atualizada”.
Na contracorrente da esquerda radical frentista encontra-se, por sua vez, a
Federação Anarquista Uruguaia – FAU, que não fez (nem faz) parte da esquerda
progressista. A FAU foi a única organização (das abordadas neste estudo) que não
integrou, em nenhum momento, a coalizão de esquerda; tendo portanto, ficado afastada
da luta eleitoral e dos processos de atualização ideológica do frentismo. Desde sua
fundação, em 1956, quando se instituiu sua carta orgânica e sua declaração de
princípios, a federação anarquista vem mantendo em termos gerais, sua mesma linha
político-ideológica e programática.
No período sesentista, a FAU desenvolveu atividades no meio sindical e
estudantil, a partir da Resistência Operária Estudantil – ROE e de várias instâncias de
bairro. Sua concepção político-ideológica da ação direta, com base no anarco-
sindicalismo (como foi visto no capítulo I), deu origem a uma estrutura organizacional
armada que se constituiu na Organização Popular Revolucionária 33 Orientais – OPR
379
33, que atuou no Uruguai, sendo o segundo grupo da esquerda armada sesentista na
época. Foi parte integrante do Cordinador, instância que deu origem ao MLN, do qual
se desligou posteriormente (antes da formação oficial do MLN).
No período de transição da esquerda eleitoral, a FAU desenvolveu intensas
atividades reorganizativas a partir de sindicatos e centros comunitários, como também
junto às lutas pelos direitos humanos, fundamentalmente na busca de justiça com os
familiares de militantes detidos/desaparecidos durante o processo ditatorial. Durante o
período de transição (1984-1994), a organização incentivou a discussão interna e
externa do movimento anarquista, em virtude de uma significativa ampliação de suas
atividades e de seus quadros militantes, sempre no sentido antes assinalado. Iniciou-se
assim, um processo de “atualização na interna anarquista”.
A FAU chegou ao período da esquerda “progressista” (1994-2004) também num
processo de atualização, mas os resultados dessa “atualização” tiveram outras
características, diferenciadas em relação ao frenteamplismo: em primeiro lugar, não se
cogitou em abandonar nenhum referencial libertário-marxista; pelo contrário, se
manifestou sua vigência a cada passo dessa etapa, por considerar que os problemas
do capitalismo e da sociedade eram os mesmos e, na maioria dos casos, haviam se
agravado. Em segundo lugar, na sua concepção programática visualizavam-se
claramente as posturas de classe e o tradicional desprezo crítico diante das
metodologias e propostas “reformistas”, ou seja, para a FAU, os antigos reformistas do
sesentismo continuavam sendo os mesmos reformistas do progressismo.
Em terceiro lugar, a “atualização” trouxe novas temáticas para a mesa de
discussão dos anarquistas, os quais as “incorporaram” a suas estruturas programáticas,
sem descartar ou substituir nenhum dos seus tradicionais conceitos. Essas discussões
tiveram como novos componentes, além dos apresentados pelo discurso globalizador,
temáticas referentes à marginalização, prisão, poder, justiça, entre outros. Observou-se,
nessas últimas questões, uma influência de correntes pós-estruturalistas, como as
abordagens de Michel Foucault. Nos momentos em que se abordaram as novas
problemáticas, a presença de uma análise classista foi permanente.
Poder-se-ia afirmar que o processo de discussões dentro da FAU não teve ponto
de comparação com o processo de atualização ideológica da Frente Ampla. Não
380
somente pelos temas e abordagens dos mesmos, senão que o ponto-chave situou-se
no não abandono de seus antigos referenciais e à defesa dos pressupostos
norteadores da organização, incluindo os temas que espinhavam a esquerda
progressista, como a reforma agrária, as nacionalizações, a defesa da democracia
“direta”, um discurso fortemente antiimperialista e antioligárquico e a firme concepção
de que a luta de classes não é uma questão superada.
De forma diferenciada, o processo de atualização ideológica do progressismo,
por um lado, e a incorporação de novos atores de origem liberal, pelo outro, imprimiram,
à coalizão de esquerda, uma nova dimensão. Nessa nova fase se identificaram duas
grandes estratégias. Por um lado, a aceleração do processo de atualização ideológica
como objetivo de desvincular qualquer resquício da esquerda sesentista,
fundamentalmente do marxismo. E pelo outro, a formulação de uma política de
“alianças” muito particular no âmbito da esquerda uruguaia, como forma de conter,
otimizar e canalizar o substancial crescimento eleitoral da coalizão – de cara nova –
visando ao Governo nacional.
O processo de atualização ideológica desenvolveu-se no período progressista
como condição indispensável para a esquerda poder ascender ao Governo nacional. Se
não se renovava e, simultaneamente abandonava todo referencial a seu passado
revolucionário, não teria condições de convocar o contingente eleitoral que necessitava
para chegar ao Governo nacional. Isto foi visualizado pelas lideranças da coalizão, que
impulsionaram a atualização ideológica e fizeram dela a grande jogada estratégica. No
período progressista, a Frente Ampla começou a perder sua imagem de forma gradativa
e, também de forma gradativa, foi substituída pela imagem do Encontro Progressista,
tendo os aspectos simbólicos formado parte também da nova estratégia política.
Por sua vez, os históricos setores hegemônicos da esquerda tradicional, o
Partido Socialista e o Partido Comunista, processaram rapidamente a atualização
ideológica. O Partido Socialista abandonou sua proposta de uma alternativa “sobre
novas bases”, formulada na década de 1980 como concepção etapista para a
construção do socialismo, incorporando, além do discurso encuentrista, a própria figura
de Vázquez como seu principal expoente. O Partido Comunista, por sua vez, fez o
mesmo com sua proposta de “revolução agrária”, da década de 1980, e da constituição
381
de uma Frente Popular de Libertação Nacional, assumindo, no período progressista, a
reivindicação do pleito eleitoral como única alternativa possível para o país, o que se
deveria inexoravelmente concretizar a partir da conquista do Governo nacional pela
Frente Ampla. Ambos dedicaram-se a esta tarefa durante todo o período progressista.
A estratégia de acumulação, que funcionou de forma concomitante à atualização
ideológica, foi alicerçada na política de alianças. Na verdade, nas políticas de alianças,
no plural, visto que cada setor relevante dentro da coalizão possuía uma política de
alianças própria. No início do período progressista, como vimos no capítulo III,
observavam-se tônicas diferenciadas em relação às alianças propostas pelas
organizações componentes da coalizão, como o caso do MLN e do MPP, que
marcaram uma visão diferenciada do resto do espectro frentista, fundamentalmente
pela presença de conceitos e bandeiras ainda pertencentes ao sesentismo.
Porém, essas diferenças iniciais em relação às políticas de alianças de alguns
setores da coalizão duraram pouco e a partir de 1998, todas as políticas de alianças
começaram a confluir e a se unificar no discurso progressista. Deve-se observar que,
em 1997, Tabaré Vázquez havia manifestado publicamente o grande giro ideológico
que o processo de atualização imprimiu na coalizão. Desta forma, a política de alianças
do Encontro Progressista condensou e direcionou a estratégia de toda a esquerda
eleitoral uruguaia.
O movimento sindical cruzou pela atualização ideológica de forma crítica: por um
lado, as reivindicações por ele realizadas eram marcadas pelas demandas que a grave
crise econômica imprimia às classes trabalhadoras, o que levou à manutenção de um
discurso sesentista por parte do movimento, na contracorrente da proposta
progressista. Isto originou uma tensa relação entre a coalizão de esquerda – que
iminentemente iria ser governo – e o movimento operário, principalmente nos setores
ligados aos sindicatos mais combativos. Por outro lado, a proposta progressista uma
vez apresentada como a “única” alternativa ao bipartidarismo representou, para vários
setores, a possibilidade de mudanças estruturais no cenário político nacional.
Desse modo, o movimento sindical, sem abandonar suas reivindicações
classistas, foi aderindo gradativamente à proposta progressista, até por que ela
simbolicamente representava a Frente Ampla, na qual vários setores sindicais se
382
identificavam pela sua trajetória histórica. Desta forma, a histórica distância entre
sindicatos e partidos políticos encurtou-se no período eleitoral, visto que as opções dos
partidos tradicionais estavam seriamente comprometidas com o neoliberalismo e
desacreditadas por suas práticas de governo (1984-2004), levando a consolidar a
proposta da esquerda como a única alternativa “real” e que se visualizava como
possível de imediato.
O programa progressista para o período inicial de governo, e que se expressava
no acordo entre diversas forças que compunham a FA-EP-NM, apresentou enormes
diferenças com os programas da esquerda tradicional, isto é, aqueles que, nas suas
expressões mais moderadas, constituíam um caminho e o início de uma etapa de
conscientização em direção a uma definitiva transformação sócio-econômica que
suprimiria a sociedade classista.
Já não se pensava a reforma agrária, a nacionalização do sistema bancário, a
expropriação das grandes empresas, no nacionalismo econômico e as distâncias com a
democracia liberal. E, como ponto essencial, a ausência do que foi uma constante
imutável de um programa de inspiração proletária: o forte desprezo ao reformismo
social-democrata, que agora se incorporava como um “ator” a mais no novo “cenário” e
como o único coerente com os novos tempos.
Tudo isso está desaparecido ou apenas sobrevive, mas como sentimento, do
que como idéia operativa em pequenas minorias da esquerda. Assim, tratou-se de
omitir aquilo que antes compunha o perfil distintivo da esquerda. Tanto mais
significativa que sua ausência foi a total inversão de objetivos políticos e sócio-
econômicos que os novos tempos trouxeram. Hoje, sem escândalo, proclama-se como
meta o que antes se rejeitava como reformismo social-democrata.
Assim, a polêmica entre revisionistas e reformistas alicerçou a história da
esquerda e, no Uruguai, desde as primeiras manifestações do anarquismo libertário,
teve uma marcada presença que se condensou na recorrente dicotomia ente “reforma
ou revolução”. Resulta indiscutível – mesmo que não se diga – que o programa hoje
adotado, quando superou as propostas populistas (do batllismo), tomou uma nítida
orientação social-democrata, mesmo que já não se tratassem de programas fortes da
social-democracia nacionalizadora.
383
O modelo dos programas social-democratas atuais reivindica a justiça impositiva,
o re-posicionamento do Estado no investimento produtivo, a luta contra a
marginalidade, a redistribuição, até que seja possível. Todos e cada um destes
objetivos, sob o pressuposto inquestionável da manutenção do capitalismo, poderiam
ser atribuídos, sem dúvidas, a Tony Blair ou a Felipe Gonzalez. De fato, constituem um
caminho para sua renovação, mesmo que às custas do abandono de uma importante
experiência passada.
Segundo diversos dirigentes da esquerda uruguaia, incluindo o presidente da
Frente Ampla, Tabaré Vázquez, durante e depois da reforma constitucional, as opções
político-ideológicas do país no final do século XX reduziram-se a duas: a progressista,
protagonizada pela Frente Ampla, e a neoliberal, representada pelas restantes forças
políticas. De acordo com esta matriz bipolar, o tradicional bipartidarismo uruguaio,
acossado pela emergência da Frente Ampla, teria-se reconstituído, sendo prova disso a
estabilidade da coalizão governante e a introdução do balotaje (segundo turno eleitoral),
como modo de facilitar, mesmo persistindo um pluralismo nominal, a emergência do
novo partido blanquicolorado no segundo turno eleitoral.
Tratou-se, em suma, do retorno à tradicional configuração dual do espectro
político partidário, com duas grandes coalizões concentrando a maioria dos partidos,
mas com a particularidade, em relação ao passado, de uma “melhor” delimitação entre
uma direita neoliberal, representada pela coalizão colorada-nacionalista, e a esquerda,
da coalizão frentista. Uma esquerda que não manteria seus valores tradicionais, vista a
unificação política e ideológica processada sob bandeiras neoliberais. Desta forma, a
esquerda progressista apresentava-se como a mantenedora do sistema de partidos, só
que, desta vez, introduzindo uma nova estrutura ideológica no cenário político nacional,
um novo bipartidarismo.
Vale destacar que o panorama político-ideológico do país sofreu, após a ditadura
militar, mais especificamente desde a derrubada do mundo soviético, uma
transformação transcendente. Alteração que se bem não foi específica do Uruguai, já
que corresponde a uma verdadeira mutação civilizatória, no país platino adquiriu
características particulares, relacionadas com o subdesenvolvimento regional e seus
sistemas de submissão e com as singularidades históricas e idiossincráticas do país.
384
Analisando o fenômeno do deslocamento do espectro político ideológico do
Ocidente contemporâneo em direção a um espaço de domínio liberal ou democrático-
liberal, poder-se-ia concluir que dois fatos confluem para uma explicação possível: por
um lado, o enfraquecimento do pensamento marxista, iniciado na Europa desde a
década de 1970 (entenda-se, neste caso, o marxismo como prática e teoria política
operante, e não como pensamento acadêmico); e pelo outro, a queda do socialismo
burocrático, chamado de socialismo “real”, que tem sido utilizado como lápide sepulcral
para enterrar definitivamente toda referência à teoria marxista.
Nesse sentido, aceitou-se que o enfraquecimento da concepção marxista,
primeiro, e a queda do socialismo burocrático, depois, não possuíam a significação
atribuída por Francis Fukuyama, no seu livro ”El fin de la história” (1992), de entronizar
a definitiva vitória da democracia liberal. Não há dúvidas de que há proposto
modificações substanciais nas pautas básicas do pensamento político, instaurando um
processo de renovação político-ideológica que não teve nem o destaque, nem a análise
que sua importância representou e que ainda não concluiu.
No Uruguai, o começo desse fenômeno (no que se refere ao declive do
marxismo como ideologia partidária) coincidiu exatamente com o fim da ditadura civil-
militar, pelo que seu efeito se fez sentir, de forma gradativa e progressiva, com o
restabelecimento da democracia (1984). Por isso, situamos o período de transição da
esquerda uruguaia entre 1984 e 1994, quando, fundamentalmente a partir dos debates
dentro da esquerda frentista, produziram-se as cisões do PDC e do PGP,
respectivamente, iniciando-se, ali, a nova configuração da esquerda nacional.
Uma interpretação possível para esse processo seria a de uma gradativa
“direitização” do espectro político dentro da esquerda frentista. Este processo, como já
vimos no capítulo III, foi o que configurou a esquerda progressista. Por um lado, a
renovação ou atualização ideológica levou a uma perda das características históricas
da esquerda tradicional uruguaia. Por outro lado, a necessidade de se chegar ao
Governo nacional imprimiu a captação de eleitores de centro (o que quer dizer,
conforme a estrutura política partidária uruguaia, de direita) para a conquista do pleito
eleitoral, aproveitando-se do contundente desgaste do bipartidarismo operante no país.
385
Pode-se observar que no período progressista produziu-se um deslocamento
convergente de ambos os partidos tradicionais em direção ao centro, levando à
conseqüente valorização da democracia liberal e dos direitos e garantias a ela
vinculadas. Com esta dimensão, foi-se reduzindo a polarização do complexo ideológico
e, conseqüentemente, as diferenças ideológicas interpartidárias na centro-esquerda.
Isto levou à formação, por parte de setores que se identificavam com a centro-
esquerda, de novas alternativas político-partidárias ou agrupações que tivessem a
característica de poder abrigar os cidadãos oriundos dos partidos tradicionais. Isto foi
realizado por setores da Frente Ampla, como a Vertente Artiguista e o Novo Espaço.
O caso do Encontro Progressista diferencia-se dos dois anteriores, em virtude de
que ele nasceu como o grande “articulador” de toda a Frente Ampla: a nova cara de
uma coalizão onde não havia lugar para referências marxistas. Ou seja: o Encontro
Progressista funcionou, e funciona, como o grande representante do progressismo.
Desta forma, permitiu-se a absorção dos setores ligados aos partidos tradicionais que,
historicamente, afastavam-se de qualquer aproximação com a esquerda sesentista.
Tanto esta situação foi marcante no processo de atualização ideológica que,
gradativamente, hoje pode-se observar nos discursos da Frente Ampla, agora
“renovada”, que o conceito “esquerda” está tendendo a desaparecer, e seu
representante mais atualizado é simplesmente o “progressismo”.
A representação ideológica do progressismo apresentou-se como a única
possibilidade de uma esquerda sem propostas e que se decidiu a chegar ao poder pela
contenda eleitoral dentro do jogo democrático burguês. Esta nova função ideológica
assumiu o papel de oferecer um “novo” horizonte para as massas, levando à ilusão de
que, dentro do sistema democrático, um governo progressista poderá realizar as
transformações necessárias, já não para uma mudança de sistema, mas sim para
superar as velhas problemáticas sociais e econômicas do país. Uma função ideológica
que pretende demonstrar como é possível uma alternativa ao neoliberalismo dentro do
capitalismo, uma verdadeira ficção política.
Esse progressismo representa a “nova” esquerda uruguaia, que da esquerda de
outrora pouca coisa lhe resta. As concepções social-democratas, somadas a um novo
“cenário” liberal, propiciaram, nesse espaço de amplitude e renovação da esquerda, o
386
crescimento eleitoral para se atingir a histórica vitória nas eleições nacionais de 2004.
Novos desafios se apresentam para o progressismo o qual, aparentemente, deixará em
breve de se autodenominar “esquerda”. A proposta progressista apresenta-se – dentro
da tônica democrático-liberal – como a mais ampla e com certas preocupações em
relação às classes subalternas. É muito difícil tentar identificar as possibilidades de
desenvolvimento de seus programas, pelas óbvias dificuldades que a história recente
nos coloca como limitadores, mas esta é, hoje, uma realidade da esquerda latino-
americana que poderá, e deverá, ser reescrita futuramente.
387
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