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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
APLICADA
CHARLES ROCHA TEIXEIRA
Tradução e ideologia: uma análise da
adaptação de Le silence de la mer e Ce jour-là
para a televisão.
Fortaleza-Ceará
2009
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1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CHARLES ROCHA TEIXEIRA
Tradução e ideologia: uma análise da adaptação de
Le silence de la mer e Ce jour-là para a televisão.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Lingüística Aplicada
do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Lingüística Aplicada. Área
de concentração: Estudos da Linguagem.
Linha de pesquisa: Tradução, Lexicologia
e Processamento da Linguagem.
Orientadora: Profª. Dra. Soraya Ferreira
Alves.
Fortaleza – Ceará
2009
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
APLICADA
Título do trabalho: Tradução e ideologia: uma análise da adaptação de Le silence de la
mer e Ce jour-là para a televisão.
Autor: Charles Rocha Teixeira
Defesa: 26/08/2009 Conceito obtido:___________________
Banca Examinadora
Soraya Ferreira Alves, Profa. Dra
______________________________________________________________________
Meize Regina de Lucena Lucas, Profa. Dra
_________________________________________________________________
Vera Lúcia Santiago Araújo, Profa. Dra
3
À meus pais, Hélio e Terezinha, a quem devo a vida com amor.
4
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Soraya Ferreira Alves, pela paciência e incentivo na orientação desse
trabalho.
À Renata Mascarenhas, pela força, amizade e por suas valiosas contribuições a esta
dissertação.
À Profa. Dra. Vera Lúcia Santiago Araújo, pelo exemplo de dedicação à pesquisa
científica e por sua palavras de incentivo e carinho.
À Profa. Dra. Claudiana Nogueira de Alencar, pelas preciosas sugestões e considerações
por ocasião do Exame de Qualificação.
Ao professores do Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada, pelos valiosos
ensinamentos e exemplos de profissionalismo.
À Profa. Maria Ester Monteiro, pelo carinho, amizade e ensinamentos no período do
curso de Letras.
À Airton Costa Jr., pelo companheirismo e paciência nas horas mais difíceis.
À Profa. Marisa Aderaldo, pelas alegrias e experiências compartilhadas na vida e na
Universidade.
À Profa. Dra. Laura Tey Iwakami, pelo exemplo de dedicação e serenidade.
Aos amigos do Mestrado, pelas discussões e troca de conhecimento tão importantes
para nossa formação e pelas alegrias compartilhadas durante esta caminhada.
À CAPES, pelo apoio financeiro que tornou possível a realização da presente pesquisa.
À Nilson Cardoso, pela presteza em ajudar nos momentos finais do trabalho.
Aos bolsistas do labratório de tradução, João Dantas, Walquíria Sales e Élida Gama,
pela ajuda indispensável.
Aos meus avós, Edmar e Suzana, que em vida sempre me incentivaram ao caminho do
conhecimento, da disciplina e da responsabilidade.
À Rosana Fernandes, que sempre incentivou minha volta à Universidade.
À Joãozinho e sua família, pelos momentos inesquecíveis no Sítio Caridade, refúgio
decisivo na concretização de minhas análises.
À Graça e ao Camping Lua Azul, pela importância de encontrar tranqüilidade nos
momentos de reflexão.
Por fim, à todos os amigos e familiares que torceram pelo sucesso de meu trabalho.
5
RESUMO
O silêncio do mar é um filme concebido para a televisão com o objetivo de fazer parte
das comemorações dos sessenta anos do final da II Guerra Mundial. O telefime foi
adaptado dos contos O silêncio do mar e Naquele dia do livro de Vercors, escrito na
clandestinidade nos anos de ocupação nazista em território francês. As estratégias
usadas pela equipe de produção no processo tradutório possibilitam a construção de
pontos de vista ideológicos na construção significativa da adaptação. Analisamos o
papel da iluminação na construção do personagem alemão, Werner von Ebrennac, e
como o uso de tal técnica cinematográfica ajuda na desconstrução da representação
imagética do referido personagem, resignificando-o e construindo identificações com os
telespectadores. A música é outro elemento analisado e de suma importância na
construção da narrativa fílmica. Auxilia o desenvolvimento das cenas, promove o
diálogo entre os personagens e introduz aspectos históricos que são relevantes para a
adaptação pois interage com a imagem na construção de uma representação da
realidade baseada nos contextos sóciais, históricos, culturais e ideológicos. O papel da
mulher também é analisado no nosso trabalho e entendemos que ele foi requalificado
como forma de enaltecer a valiosa contribuição e força feminina durante os anos em
questão. Entendemos que a adaptação requalificou os papéis e as relações sociais dos
personagens na época da guerra, reforçando uma identidade nacional francesa e
possibilitando ao telespectador o resgate de uma memória guardada a tempos.
Pretendemos contribuir para com outras análises críticas de adaptações fílmicas e faz
uma ponte entre disciplinas como História, Sociologia, Comunicação Social,
Lingüística e Estudos da Linguagem, bem como Cinema e Televisão.
Palavra-chave: adaptação, ideologia, cultura, televisão.
6
ABSTRACT
Le silence de la mer is a TV movie made in celebration of the Second World War 60
Th
Anniversary. The movie was adapted from the short-stories Le silence de la mer and Ce
jour-là by Vercors, who wrote clandestinely during the Nazi occupation in France. The
strategies applied by the production team during the translation process allow the
construction of ideological points-of-view. The role of illumination of the German
character Werner von Ebrennac is analyzed, in order to verify how the use of such
cinematographic technique corroborates in the deconstruction of the imagistic
representation of such character and in the construction of identifications with the
spectator. Music is another analyzed element due to its importance for the filmic
narrative construction. Music helps the development of scenes, enables the dialogue
between characters and also inserts historical aspects relevant to the adaptation, once it
interacts with image in the construction of the representation of reality based in social,
historical, cultural and ideological contexts. Women’s role is also analyzed in this work
and understood as a way to valorize their contribution during the years under war. This
research has its grounds in authors like Thomson, Kellner and Geertz and their concepts
about culture as well as Venuti, Arrojo and Jakobson concerning the translation studies,
in order to discuss the social, cultural and ideological aspects present in the
intersemiotic translation process. Eco, Baudrillard and Bourdieu contributed for the
discussions regarding mass communication media, mainly TV, and their power to form
discourses, ideologies and identities. This analysis concluded that the adaptation studied
changed the roles and social relationships during the war time, reinforcing a national
identity and enabling the audience to rescue memory. This research aims at contributing
with other critical analyzes in a multidisciplinary approach.
Keywords: adaptation, ideology, culture, television
7
RESUME
Le silence de la mer est un film conçu pour la télévision avec l'objectif de faire partie
des commémorations des soixante années de la fin de la Deuxième Guerre mondiale.
Le téléfilm a été adapté des histoires Le silence de la mer et Le jour-là du livre de
Vercors, écrit clandestinement pendant les années d'occupation naziste sur territoire
français. Les stratégies utilisées par l'équipe de production dans le processus traductoire
rendent possible la construction de points de vue idéologiques dans la construction
significative de l'adaptation. Nous analysons le rôle de l'illumination dans la
construction du personnage allemand, Werner von Ebrennac, et comme l'utilisation de
telle technique cinématographique aide dans la déconstruction de la représentation de
l’image du personnage, lui donnant nouveau significat et construisant des
identifications avec les spectateurs. La musique est autre élément analysé et de plus
grande importance dans la construction du récit cinématographique. Il assiste le
développement des scènes, il promeut le dialogue entre les personnages et introduit des
aspects historiques qui sont importants pour l'adaptation donc il nous interagit avec
l'image dans la construction d'une représentation de la réalité basée sur les contextes
sociaux, historiques, culturels et idéologiques. Le rôle de la femme aussi est analysé
dans notre travail et comprenons qu'il a été requalifié sur l’intention de vanter la
précieuse contribution et la force féminine pendant les années concernées. Les concepts
de culture et idéologie développés par Thompson, Kellner et Geertz sont envisagés dans
notre recherche en mise en rapport avec les études de Venuti, Arrojo et Jakobson pour
faire face à des analyses plus solides dans le domaine de la traduction intersemiotique
comme processus socioculturel et idéologique. Nous nos appuyons aussi aux idées de
Eco, Baudrillard, Bourdieu et d`autres pour discuter la télévision et les médias comme
importants moyens de diffusion des discours, idéologies et identités. Nous comprenons
que l'adaptation a requalifié les rôles et les relations sociales des personnages à l'époque
de la guerre, en renforçant une identité nationale française et en rendant possible au
spectateur le sauvetage d'une mémoire gardée à des temps. Nous prétendons contribuer
envers autres analyses critiques d'adaptations filmiques et fait un pont entre des
disciplines tells comme Histoire, Sociologie, Communication Sociale, Linguistique et
Études de la Langue, ainsi que Cinéma et Télévision.
Mot-clé : adaptation, idéologie, culture, télévision.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................10
1 - TRADUÇÃO E CULTURA .........................................................................................16
1.1 - ADAPTAÇÃO: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICO COMO PROCESSO SÓCIO-
CULTURAL. ......................................................................................................................16
1.2 - FENÔMENOS CULTURAIS EM CONTEXTOS SOCIALMENTE
ESTRUTURADOS. ............................................................................................................19
1.3 – IDEOLOGIA E CULTURA NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA......33
1.4- A FORMAÇÃO DE IDENTIDADES .........................................................................43
2 – PONTO DE VISTA E IDEOLOGIA NA TELEVISÃO. .............................................54
2.1 – A TELEVISÃO ..........................................................................................................54
2.2 – PONTO DE VISTA IDEOLÓGICO NO TELEFILME.............................................67
2.2.1 A IMAGEM CONSTRUTURA DE PONTOS DE VISTA E
IDENTIFICAÇÃO. .............................................................................................................70
2.2.2 - ESTRATÉGIAS TÉCNICAS CINEMATOGRÁFICAS NA CONSTRUÇÃO
DE PONTOS DE VISTA. ...................................................................................................75
3. A ADAPTAÇÃO DE O SILÊNCIO DO MAR E NAQUELE DIA PARA A
TELEVISÃO - UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DO PONTO DE VISTA
IDEOLÓGICO. ..................................................................................................................85
3.1. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS. ................................................................85
3.1.1. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS. ...........................................................................85
3.1.1.1. O LIVRO DE CONTOS O SILÊNCIO DO MAR. ................................................85
3.1.1.2 – O SILÊNCIO DO MAR. .......................................................................................86
3.1.1.3 –NAQUELE DIA. ...................................................................................................87
3.1.1.4 – O TELEFILME O SILÊNCIO DO MAR. ............................................................88
3.1.2. ANÁLISE DE DADOS ............................................................................................90
3.2. LIVRO E FILME: UMA REFLEXÃO SOBRE O PONTO DE
VISTA IDEOLÓGICO........................................................................................................ 91
3.2.1- A OBRA ESCRITA E AS CONTROVÉRSIAS EM SUA RECEPÇÃO. ...............91
3.2.2 – O TELEFILME “O SILÊNCIO DO MAR” ...........................................................97
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................125
9
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................128
10
INTRODUÇÃO
Vercors, pseudônimo de Jean Bruller, é um dos escritores franceses do período
pós-guerra conhecido pela sua atuação na Resistência francesa e por seu célebre livro de
contos O silêncio do mar. Nenhum outro livro ganhou tanto destaque quanto este,
tornando-se símbolo da luta pela liberdade do povo francês. Escrito e publicado na
clandestinidade em 1942, O silêncio do mar evidencia as relações humanas numa época
em que a França via-se subjugada face ao poderio alemão.
O silêncio do mar
1
e Naquele dia
2
são contos adaptados para a tela e para a
televisão em 1949 e 2004 respectivamente. Com o título único de “O silêncio do mar”,
na transmutação para a televisão a narrativa de ambos os contos sofre uma fusão
desenvolvida pela roteirista Anne Giafferi e seu diretor Pierre Boutron. O primeiro
conto começa com a chegada de um oficial alemão à casa de um senhor de idade
avançada e de sua sobrinha. O oficial se instala na casa à revelia de seus ocupantes e
passa a tentar manter diálogos, obtendo somente longos monólogos a respeito de si e de
suas boas intenções para com o país invadido. Contudo, a indiferença é crescente e seus
anfitriões não dão atenção alguma ao oficial, havendo assim, até as últimas linhas do
conto, um silêncio tenaz. Silêncio este que denota as oposições entre os personagens,
silêncio que faz emergir os sentimentos mais profundos e coloca em cheque o
relacionamento conflituoso dos protagonistas. Esse mesmo silêncio revela sons e
inquietudes, sendo mesmo barulhento e desconfortável. no segundo conto
desenvolve-se uma narrativa em torno do último dia de convivência de um menino com
seu pai, suas impressões sobre o lugar onde moram e sua vida em família. O menino é o
narrador, mas não conhece os fatos que levam seu pai a deixá-lo na casa de uma
vizinha. O interessante, e que me motivou a fazer esse trabalho de pesquisa, é perceber
que na tradução para o filme os dois contos se fundem dando origem a uma única
narração fílmica e assim fornecendo uma visão da vida dos franceses no período da II
Guerra Mundial. Percebo que o autor dos contos nos fornece elementos descritivos de
um tempo histórico extremamente difícil para a humanidade e que pôde, através de sua
obra, relatar suas experiências, como intelectual, na resistência francesa. Tais
1
“Le silence de la mer” – Todas as traduções foram feitas pelo autor.
2
“Ce jour-là”
11
comportamentos, individuais e coletivos, sempre foram objetos de minhas observações
e questionamentos pessoais. Senti-me inquieto ao ler os contos, ainda na graduação em
Letras, pois a dramatização engendrada num ambiente que privilegia o silêncio, como
forma de resistência e comunicação, é preponderante no desenvolvimento da narrativa e
traz em si uma grande carga dramática. Percebi, ainda, que existem oposições
estabelecidas entre os personagens e me intrigou como a narrativa fílmica rememora os
tempos de guerra privilegiando a história de amor entre pessoas dispostas em lados
opostos.
Entendemos aqui que quando uma obra literária é adaptada para as telas,
parafraseando Jakobson (1995), diz-se que foi traduzida, pois a tradução engloba outras
modalidades que não somente a tradução interlingual. O teórico se refere à tradução
intersemiótica, que consiste na “interpretação de signos verbais por meio de sistemas de
signos não-verbais” (JAKOBSON, 1995, p.65). Assim, consideramos que adaptação e
tradução são termos sinônimos. Na tradução de um conto para um filme, portanto, a
obra sofre modificações, uma vez que as traduções formam novos objetos que se
desvinculam do original dando total liberdade ao autor cinematográfico. Percebemos
que nessa transição, a construção do ponto de vista no telefilme passa longe das idéias
de equivalência e fidelidade, revelando que o contexto social, econômico e político
devem ser contemplados, aliando-se à vivência do tradutor, suas intenções, valores e
crenças.
Quando vemos um filme adaptado de um romance nos indagamos logo sobre o
percurso que o diretor levou para fazer seu filme, quais estratégias foram utilizadas no
processo de tradução da obra cinematográfica. Entende-se aqui como tradução o
processo pelo qual o romance passa quando é adaptado, traduzido ou reescrito, como foi
citado acima.
Atualmente, cada vez mais traduções de romances para o cinema são sinônimas
de leitura literária por imagens, sons e palavras. Lefevere (1992, p.4) comenta: “leitores
não-profissionais cada vez menos lêem literatura escrita por seus escritores, mas sim re-
12
escritas por seus re-escritores”
3
. Muitos de nossos clássicos literários foram vistos
através da tela de cinema ou da televisão e da tradução feita pelo diretor e sua equipe.
As adaptações fílmicas produzidas são comumente avaliadas, por espectadores e
críticos, como sendo melhores ou piores que seus correlativos textos literários. Tais
considerações não levam em conta em suas análises que filmes/telefilmes são produtos
elaborados em meios semióticos distintos aos textos literários adaptados. Tomo assim
a postura de não fazer nenhuma consideração valorativa ao produto adaptado, antes sim,
analisarei as estratégias cinematográficas desse processo.
Nesse caso, a imagem produzida no cinema/televisão, produtora de
significados e representações, revela uma intencionalidade calcada em interesses
particulares ou de grupos. Tais representações se dão a partir da construção de pontos
de vista, próprios do desenvolvimento da narrativa fílmica em consonância com o
sujeito espectador que assim fabrica paixões e sentimentos, numa contínua
identificação com os personagens, suas ações e discursos.
Logo, o ponto de vista em um filme/telefilme é condição principal para o
desenvolvimento de um discurso. O cinema é um discurso e é ideológico, como
afirma Xavier (2005), capaz de criar representações para além da imaginação dos
espectadores, pois estes são induzidos a repensar, a recriar e a reelaborar significados
que por sua vez são permeados por interesses diversos. Essa direcionalidade criada
no discurso ideológico de filmes e telefilmes, a que se refere Xavier, pretende a
modificação ou manutenção do status-quo vigente, e assim denota a intencionalidade
ideológica nas escolhas feitas pelo diretor do filme e sua equipe e o meio para o qual
adaptam. Tais escolhas, no caso específico da adaptação fílmica, atualiza e/ou
desloca o tempo, espaço e identificações, e assim opera sobre um ponto de vista
ideológico. Sobre essa questão os mesmos autores compreendem o ponto de vista
sob três categorias: visual, narrativo e ideológico.
Acreditamos que a presente pesquisa é de extrema relevância pois nos insere no
mundo do cinema, da televisão e de suas técnicas, além de colocar em pauta uma
discussão sobre os instrumentos ideológicos utilizados no fazer das mídias e como as
3
“The non-professional reader increasingly does not read literature as written by its writers, but as
rewritten by its rewrites”.
13
mesmas atuam em relação ao mundo globalizado criando novas identificações. Com
base nos teóricos acima citados e em tantos outros, e mais alguns trabalhos realizados
na área, levarei adiante a pesquisa com o intuito de mostrar como a adaptação se faz no
meio cinematográfico/televisivo e como o tradutor e/ou o diretor e sua equipe
desenvolvem seu trabalho no cinema/televisão. Levantamos assim questões referentes
às estratégias de tradução, à concepção e construção da imagem, mais especificamente
no que diz respeito à construção do ponto de vista ideológico no filme.
Pretendemos com essa pesquisa descobrir quais as estratégias utilizadas na
construção do ponto de vista da adaptação de O silêncio do mar para a televisão, tendo
assim algumas questões a serem investigadas:
1 - Quais estratégias são utilizadas no filme para a construção dos personagens
principais?
2 - Como tais estratégias corroboram para a construção do ponto de vista idelógico no
filme?
3 – Estratégias cinematográficas utilizadas corroboram para consolidar o ponto de vista
de uma memória nacional francesa ou para o apagamento da história recente?
4 - O discurso facilitado no filme favorece uma maior aceitabilidade de identidades
globalizadas?
Compreendemos que a referida pesquisa e seus questionamentos podem
contribuir para investigações futuras no campo da tradução intersemiótica, logo da
adaptação fílmica, bem como tentar discutir temas sempre em pauta atualmente, como
identidades, modernidade tardia ou pós-modernidade, globalização, ideologia e o uso
das mídias no mundo globalizado e digitalizado.
O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro capítulo compreende as
discussões sobre a adaptação como processo sócio-cultural e suas implicações no
produto adaptado. Para isto, o capítulo está subdividido em quatro partes. A primeira
parte discute a adaptação como processo sócio cultural intersemiótico, a segunda parte
reflete sobre os conceitos de cultura e ideologia nos dias de hoje, a terceira parte
elabora os conceitos trabalhados indicando como agem sobre os meios de comunicação
de massa, e a quarta parte enseja questões ligadas à formação de identidades no mundo
14
globalizado. Para a confeção do primeiro capítulo foram lidos e trabalhados teóricos
como Jakobson (1995), Diniz (1998), Venuti (1998), Arrojo (1999) para questões
voltada específicamente de tradução. Nas questões levantadas sobre cultura e ideologia,
analisamos Geertz (1989), Mathews (2002), Thompsom (1990), Kellner (2002),
Bauman (1998). Para elucidarmos questões advindas das discussões sobre a cultura e a
ideologia nos meios de comunicação de massa e a incurssões sobre a formação de
identidades recorremos a Fairclough (1992,), Thompson (1990), Kellner (2001), Hall
(1992), Bhabha (1998) e Bauman (2005).
O segundo capítulo de nossa pesquisa refere-se ao ponto de vista e a ideologia
na televisão. Discutimos o papel da telvisão no mundo globalizado e as implicações dos
discursos ideológicos promovidos por um meio de comunicação de massa tão poderoso.
Para entedermos um pouco mais sobre este meio e aprofundar questões relativas à
importância do seu jogo discursivo junto aos telespectadores, nos baseamos nas
concepções de Eco (2004), Bourdieu (1997), Wolton (1996), Machado (2005), Bucci
(2004), Duarte (2006), Charaudeau (2001), Baudrillard (2005). Também fazemos uma
incursão sobre o uso das técnicas cinematográficas auxiliando na formação de pontos de
vista ideológicos, sobre a imagem como construtora de pontos de vista e identificação e,
assim, trabalhamos com as teorias de Xavier (2005), Aumont (2007), Deleuze (2007),
Stam & Shohat (2006), Andrew (1989), Vanoye & Goliot-Lété (2006), Baudry (1983),
Branigan (2005), e Silva (2008).
No terceiro capítulo, parte final de nosso trabalho, analisamos a construção de
pontos de vista idelógico criados na adaptação do telefilme O silêncio do mar ,
descrevendo os contos adaptados para a linguagem televisiva e a obra adaptada. Após
breve relato sobre as obras em questão, iniciamos as análises própriamente ditas
referentes ao produto. Nossas incursões versam sobre a importância de questões no
campo das identificações, na construção de pontos de vista e como os telesepectadores
são chamados a interagir com a obra televisiva, seus personagens e discursos
ideológicos.
A presente análise não pretende esgotar por completo as questões relativas ao
processo tradutório, mas revelar ao leitor a importância de levarmos em consideração os
contextos socialmente estruturados e a construção de pontos de vista ideológicos no
15
processo que envolve a adaptação fílmica. É mister enfatizar que para obtermos uma
análise crítica de uma adaptação é preciso haver um envolvimento multi-disciplinar que
promova o diálogo livre e crítico em diferentes domínios conceituais.
16
1 – TRADUÇÃO E CULTURA
1.1- ADAPTAÇÃO: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICO COMO PROCESSO
SÓCIO-CULTURAL.
muito se discute o processo tradutório em nosso meio como sendo fonte de
escolhas e infidelidades ao texto dito original. Nosso caminho nos mostrou, mediante
análises feitas, que longe de qualquer noção de fidelidade a um texto, as traduções são
fonte de críticas e comparações infelizes, pois, tais análises, não consideram aspectos
culturais e ideológicos eminentes desse processo tão rico e dinâmico. Quando falamos
em tradução e seu processo, se faz condição sine qua non o entendimento de que a
cultura de chegada e o percurso do tradutor são de extrema importância nas análises a
serem desenvolvidas. Também se faz eminente considerar que o produto, a tradução em
si, sempre estará em acordo com as relações sociais vigentes e assim será sempre
produtor de significações e resignificações em consonância com práticas sociais
estabelecidas nessas relações. Cabe salientar que quando falamos em tradução de um
meio sígnico verbal para outro meio não-verbal tomamos como nosso, o termo
Tradução Intersemiótica, termo cunhado por Jakobson (1995). Logo, nos reportamos ao
produto e ao processo tradutório desenvolvidos em ambientes verbais e não-verbais,
mais especificamente a tudo que se refere ao universo cinematográfico e televisivo.
Jakobson foi o primeiro a identificar e conceituar diferentes formas de tradução,
conceituando a tradução intersemiótica, em que signos verbais de uma língua podem ser
traduzidos em signos não-verbais (JAKOBSON, 1995, p.65). Nesse trabalho
entendemos a tradução como o processo pelo qual um romance passa quando é
adaptado, traduzido ou reescrito. Lefevere (1992, p.4) contribuiu em muito quando da
sua análise da tradução como reescritura, subvertendo o original em favor da cultura de
chegada e percebendo essa mesma reescritura enquanto fenômeno de cultura (produto) e
processo. Nesse sentido, reforça a idéia de que o texto traduzido deva estar de acordo
com a cultura alvo, não cabendo ao teórico avaliar uma tradução, tarefa que julga ser do
leitor. Como resultado disso, podemos entender que a adaptação de um texto literário
para o cinema é uma tradução, uma tradução intersemiótica. Consideramos ainda que o
texto literário traduzido para o cinema e/ou televisão recebe, em seu processo tradutório
intersemiótico, a denominação de adaptação, termo largamente utilizado nas análises
empreendidas no nosso programa de mestrado e que utilizarei como sinônimo do termo
17
tradução intersemiótica. Nesse sentido, considero que todas as traduções feitas do
sistema literário para o sistema cinematográfico/televisivo são adaptações realizadas
pelas equipes de produção dos filmes em questão.
As adaptações nunca evocam somente os sistemas existentes no meio
cinematográfico para o sucesso de suas empreitadas, sistemas ligados às estratégias e ao
know-how no cinema. Esses mesmos sistemas estão ligados fortemente às culturas e
ideologias existentes, contribuindo efetivamente nas decisões a serem tomadas no
momento em que as estratégias são discutidas. Diniz
(1998, p.323)
salienta o seguinte:
...não apenas os códigos usados nas diversas formas de arte são os
responsáveis pela tradução. Existem outros aspectos que se mostram
decisivos na produção de um filme. Segundo estudiosos da tradução,
esses elementos representam aspectos culturais, pois a cultura, um tipo
de interpretante, se apresenta como o elemento a ser transportado de um
texto para outro. Isso indica que a tradução nunca é apenas
intersemiótica, mesmo quando realizada entre sistemas de signos
diferentes. Ela é também cultural. (DINIZ, 1998, p.323)
Assim, as adaptações carregam em si a bagagem evolutiva de seus adaptadores,
suas culturas e ideologias, em relação às escolhas na produção de um filme/telefilme,
bem como o público/telespectador e suas inferências, calcadas em suas culturas e
ideologias próprias. As adaptações fílmicas produzidas são comumente avaliadas, por
espectadores e críticos, como sendo melhores ou piores que seus correlativos textos
literários. Tais considerações deixam de levar em conta em suas análises que
filmes/telefilmes são produtos elaborados em meios semióticos distintos aos textos
literários adaptados e que a cultura, tanto na produção quanto na recepção, é fator de
suma importância, senão determinante. Tendo em mente que toda produção
cinematográfica é planejada para um determinado público, em um determinado
momento histórico-social, percebemos a manipulação das mais variadas técnicas do
meio para a obtenção do tão almejado sucesso de crítica e de bilheteria. Digamos que o
fracasso de uma adaptação não está relacionado ao mau desempenho da adaptação, mas
a uma dissonância relativa às escolhas feitas durante a produção do filme, dissonâncias
intimamente ligadas à cultura e à ideologia que envolvem o público consumidor.
Venuti (1998) nos mostra que as traduções são produtoras e reveladoras de
novas identidades culturais. Afirma que as traduções de textos estrangeiros são capazes
de estabelecer novos parâmetros sociais e culturais colocando em questão os sistemas
geopolíticos vigentes. Suas afirmações denotam a capacidade e força das traduções em
18
nosso meio, sendo possível estabelecer novas ordens sociais, em que não são possíveis
calcular suas dimensões sociais, políticas e econômicas, para desespero dos grandes
grupos no poder. Ao falar de textos traduzidos capazes de formar novas identidades
culturais e reforçar identidades anteriores, Venuti (1998, p.129) ressalta que:
A tradução com freqüência é vista com suspeita porque,
inevitavelmente, domestica textos estrangeiros, inscrevendo neles
valores lingüísticos e culturais inteligíveis para comunidades
domésticas específicas. Esse processo de inscrição opera em cada um
dos estágios: na produção, circulação e recepção da tradução. Tem
origem na própria escolha do texto estrangeiro a ser traduzido,
sempre uma exclusão de outros texto e literaturas estrangeiras, que
responde a interesses domésticos particulares.
Devo salientar que sua tese referente ao texto estrangeiro traduzido nos é salutar,
pois inscreve a tradução em um processo de escolhas que refletem no objeto traduzido.
Para nosso trabalho adoto a idéia de que as escolhas sobretudo referentes ao texto a ser
traduzido, domesticado ou estrangeirizado, coaduna-se com nossa proposta de mostrar
que mesmo em se tratando de um texto de mesma língua, na sua adaptação para outras
mídias no caso o telefilme as atualizações são feitas/produzidas para uma melhor
adequação ao sistema sócio-cultural e aos interesses comerciais vigentes. No entanto,
Venuti (1998) considera uma violação do texto fonte a sua domesticação ou
estrangeirização, pois considera, no caso da domesticação, que tais métodos criam
cânones domésticos para literaturas estrangeiras criando esteriótipos que excluem
debates e conflitos não contemplados pela agenda doméstica e formam identidades
culturais cada vez mais arraigadas. Logo, considera a domesticação um dos grandes
escândalos da tradução, pois pode realçar ou distorcer identidades criando estigma ou
respeito a grupos étnicos, religiosos, raciais e nacionais. No outro tipo de tradução, a
estrangeirizadora, as modificações do texto fonte são declaradas e assim demonstram
visívelmente as intenções e interferências do tradutor, pois coloca em evidência as
diferenças de sentido determinadas por contextos sociais externos.
Nossa pesquisa difere das propostas de tradução de Venuti, pelo fato de
tratarmos de um produto traduzido/adaptado de uma mesma língua e cultura, mas
acentuamos as indagações feitas sobre o produto da tradução que sempre se adequa aos
contextos sócio-históricos vigentes, com suas intenções e interferências.
É importante ressaltar que em todos os níveis da tradução, o tradutor/adaptador é
responsável por suas escolhas, porém não está sozinho, pois as escolhas feitas se
19
produzem, intencionalmente ou não, em co-autoria com os pressupostos sócio-culturais,
interesses econômicos e comerciais. Ainda em Venuti (1998, p.131), a idéia de que a
tradução é capaz de produzir efeitos escandalosos, como novas identidades culturais, se
estende também à incerteza na formação dessas mesmas identidades, pois “se os efeitos
de uma tradução revelam-se conservadores ou transgressores vai depender
fundamentalmente das estratégias discursivas desenvolvidas pelo tradutor, mas também
de vários fatores envolvidos na sua recepção...”. Logo, uma adaptação fílmica
dependerá em muito dos efeitos causais de sua produção, recepção e, do momento certo
de sua difusão ou divulgação.
1.2 FENÔMENOS CULTURAIS EM CONTEXTOS SOCIALMENTE
ESTRUTURADOS.
Falamos muito da importância da cultura na adaptação, suas implicações na
produção de significados e das identidades formadas no processo tradutório. Acredito
ser importante discorrer um pouco sobre o conceito de cultura que empreendo em nosso
trabalho.
O conceito de Cultura formulado por tantos e diversos teóricos está longe de se
tornar uma unanimidade. Sua apreensão e teorização são complicadas devido aos
inúmeros conceitos divergentes e, acima de tudo, a uma discordância em relação à
aplicabilidade de tais teorias. Para começar, devo salientar, que longe de querer
aprofundar as discussões empreitadas através dos anos, farei um breve relato sobre os
conceitos empreendidos e as concepções atuais de cultura.
Falar de cultura é sempre um ponto emblemático a ser abordado, pois nos insere
no mundo dos significados simbólicos e no mundo cotidiano dos homens e das
sociedades. Quando somos perguntados pelo que seria cultura ou a cultura em si,
sempre lembramos daquilo que lemos nos livros ou vimos na televisão sobre a cultura
de um povo, seus modos de vida e de como tais povos se relacionam face suas
adversidades. Fazemos uma ponte histórica de uma determinada sociedade desde seus
primórdios até os dias atuais, na tentativa de conhecer melhor suas tradições e hábitos
mais peculiares no afã de nos identificarmos com as sociedades e homens em questão.
Ainda lembramos o que sempre é dito e divulgado a respeito da cultura americana e seu
20
american way of life, da cultura japonesa e suas rigorosas tradições, da cultura russa e
sua obstinação, da cultura árabe e sua religiosidade, da cultura francesa, sua culinária,
sua finesse e suas delicadezas e, assim por diante, seguimos fazendo mapeamentos dos
diversos povos espalhados no globo. Também fazemos uma relação àqueles que
dispõem de um legado de estudo e refinamentos ante àqueles sem acesso à informação e
à escola, como se os desprovidos de estudos estivessem à margem da cultura. Muitas
são as visões determinadas em diversos contextos particulares no seio das sociedades e
seus homens ditos cultos. Ao nos aprofundarmos em relação a essas questões, podemos
dizer que todas as visões relacionadas acima estão de acordo com o que nos é ensinado
e, sobretudo, com as concepções mais comuns e menos elaboradas da palavra cultura e
suas implicações. Todas essas concepções de cultura eram disseminadas pelos
estudiosos, antropólogos e etnógrafos, no início de suas pesquisas e indagações sobre o
homem e suas formas de organização em sociedades.
O estudo mais aprofundado do conceito de cultura começa com os etnógrafos e
antropólogos, como foi dito acima, que vêem a necessidade de entender melhor as
sociedades primitivas e suas relações com o mundo. Suas manifestações primitivas
eram passíveis de mudança para um mundo “civilizado” e seus homens primitivos eram
passíveis de se transformar em homens “civilizados”, logo cultos. Nesses estudos, como
explica Mathews (2002, p.16-17), nos fins do século XIX, podemos perceber a
ineficiência e simplicidade das abordagens voltadas para uma significação de cultura
que colocava todos os membros de uma sociedade em um mesmo patamar e se
analisava uma cultura em oposição a outras culturas. Tais considerações foram revistas
pelos antropólogos, descartando a possibilidade de haver uma única forma de significar
um povo e que seu “modo de vida” não deve ser visto de forma isolada e simplista.
Geertz (1989) foi um dos primeiros a entender a cultura como um ornamento essencial
para a existência humana e assim, elevando todos os seres humanos ao nível de seres
cultos, entende a cultura como sendo inerente à natureza humana. Nesse sentido,
descarta boa parte das concepções anteriormente desenvolvidas por seus partícipes ao
entender que não existe raça humana sem cultura nem cultura sem raça humana.
No desenvolvimento de sua teoria, Geertz (1989, p.4) entende a cultura como
sendo “uma teia de significados em busca de significação contínua” que está sempre em
consonância com as mudanças às quais estamos sempre dispostos na convivência
humana em sociedade. O conceito de cultura desenvolvido por ele é essencialmente
21
semiótico, colocando que, para entender as diversas manifestações da cultura se faz
necessário compreender as formas simbólicas que permeiam as relações humanas nas
suas mais variadas manifestações. Ao assumir a cultura como sendo uma teia de
significados, sua análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca
de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura do significado.”, evidenciando,
assim, um fator essencial na concepção de cultura e suas análises que devem manter-se
longe de qualquer concepção aristotélica de verdade absoluta. Continuando sua
abordagem, Geertz (1989, p.10) releva a importância de conceber a cultura como:
[...] sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu
chamaria de símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a
cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos
casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as
instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do
qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é,
descritos com densidade.
Como sistemas de signos interpretáveis que formam um contexto, sobre o qual devemos
nos debruçar para a descoberta do significado, segundo o autor, pretende-se uma
descoberta das relações sistemáticas entre fenômenos diversos, onde residem os
próprios significados. Esses sistemas, segundo o autor quando de suas análises, devem
levar em consideração variáveis de fatores biológicos, psicológicos, sociológicos e
culturais como forma de integrar diferentes teorias nas análises e, dessa forma, obter-se
um melhor resultado analítico.
Duas idéias, em consonância com a integração pretendida entre teorias, são
propostas por Geertz (1989, p.32-33) para se ter uma imagem mais exata do homem e
sua relação com a cultura. A primeira delas dá conta de que a cultura...
[...] é melhor vista não como complexos de padrões concretos
de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -,
como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos
de controle planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros
de computação chamam “programas”) para governar o
comportamento. A segunda idéia é que o homem é precisamente o
animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de
controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para
ordenar seu comportamento.
Aqui, abre-se um componente essencial na sua concepção: existe um mecanismo de
controle sobre o pensamento humano. Nesse sentido, a existência humana e as vidas
individuais são permeadas por sistemas simbólicos predeterminados nas quais o
pensamento humano é basicamente tanto social como público. O que seria inato no
22
comportamento humano seria a capacidade de reagir a estímulos e emoções em face de
um todo simbólico dado. Muitos dos símbolos são fornecidos de forma que assim
possamos utilizá-los como são desde o nascimento até a morte. Os símbolos circulam e
continuarão a circular independente da existência do indivíduo. Alguns indivíduos os
processarão, os alterarão e os modificarão no curso de suas existências e outros não o
farão, por simples comodidade ou falta de discernimento crítico. Geertz (1989, p.33)
argumenta que o comportamento humano é dirigido pelos padrões culturais e que...
[...] Não dirigido por padrões culturais sistemas organizados
de mbolos significantes o comportamento do homem seria
virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de
explosões emocionais, e sua experiência não teria qualquer forma. A
cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um
ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela
– a principal base de sua especificidade.
Na sua concepção, todos os humanos são governados pelos sistemas simbólicos
significantes e assim obedecem a um todo dado e modulado para a manutenção da
ordem em detrimento do caos absoluto. Os mecanismos simbólicos significam o
conceito de homem e o define como sendo um ser humano regido pelos padrões
impostos aos mesmos, longe de qualquer resignificação simbólica. Para concluir, o
pensamento de Geertz redefine a cultura e o conceito de homem até então, fazendo uma
requalificação importante das concepções aristotélicas e iluministas de cultura e homem
e nos levando para uma concepção antropológica contemporânea de tais concepções.
Geertz (1989, p. 37-38) concluiu que:
[...] o conceito de cultura tem seu impacto no conceito de
homem. Quando vista como um conjunto de mecanismos simbólicos
para controle do comportamento, fontes de informação extra-somáticas,
a cultura fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente
capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, um por um.
Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos
individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados
criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem,
objetivo e direção às nossas vidas. Os padrões culturais envolvidos não
são gerais, mas específicos... O homem não pode ser definido nem
apenas por suas habilidades inatas, como fazia o iluminismo, nem
apenas por seu comportamento real, como o faz grande parte da ciência
social contemporânea, mas sim pelo elo entre eles, pela forma em que o
primeiro é transformado no segundo, suas potencialidades genéricas
focalizadas em suas atuações específicas. É na carreira do homem, em
seu curso característico, que podemos discernir, embora difusamente,
sua natureza, e apesar de a cultura ser apenas um elemento na
determinação desse curso, ela não é o menos importante. Assim como a
cultura nos modelou como espécie única e sem dúvida ainda nos está
modulando – assim também ela nos modela como indivíduos separados.
23
É isso o que temos realmente em comum nem um ser subcultural
imutável, nem um consenso de cruzamento cultural estabelecido.
Geertz reelabora os conceitos de cultura e de homem sob circunstâncias moduladas por
padrões culturais e sistemas sígnicos gerais. Contudo, não previu que as relações sociais
também regem a vida humana e os padrões culturais em uma via de mão dupla. Logo,
não previu que os homens em suas relações sociais constantes, na vida em sociedade e
em contato com ideologias dominantes produzem significações e resignificações em um
continuum por vezes impredizíveis. Os sistemas simbólicos significantes são permeados
e validados em consonância com as relações de poder estabelecidas num complexo jogo
de interesses sociais, econômicos e mercadológicos e pelos mesmos se permeiam e se
auto-validam.
Numa concepção mais crítica de cultura e de seus sistemas simbólicos e suas
formas, Thompson insere, nos estudos de Geertz, o que acredita faltar às suas análises: o
aspecto social e o efeito das estruturas sociais nas formas simbólicas. Reelabora o olhar
sobre o conceito de homem e o torna sujeito capaz de transformar e requalificar as
formas simbólicas.
Thompson (1990, p.165-166) coloca que a concepção de cultura formulada até
nossos dias é decorrente de um longo período histórico e que nem sempre foi e é
passível de consenso. Em seu livro Ideologia e cultura moderna faz um longo apanhado
das conceituações feitas ao longo dos anos e apresenta a sua própria. Para o autor, o
conceito de cultura se refere a “uma variedade de fenômenos e a um conjunto de
interesses...” e que a cultura deve ser pensada sob o viés dos fenômenos culturais e suas
implicações. Elabora então o que vem a chamar de concepção estrutural de cultura, em
que...
[...] os fenômenos culturais podem ser entendidos como formas
simbólicas em contextos estruturados; e a análise cultural pode
ser pensada como o estudo da constituição significativa e da
contextualização social das formas simbólicas.
Dessa maneira, formula sua tese de forma mais ampla, incluindo como premissa
o entendimento dos significados simbólicos e suas implicações sócio-históricas em
contextos sociais estruturados. Coloca ainda que quando fala em contextos sociais
estruturados está longe do que seria uma concepção estruturalista do termo, mas se
refere às relações de poder estabelecidas em um determinado momento e ao fato de o
caráter simbólico dos fenômenos culturais estarem sempre inseridos nesses contextos.
24
Para chegar a essa concepção estrutural de cultura, Thompson reelaborou o
conceito simbólico de cultura de Geertz, que, como vimos anteriormente, consiste em
analisar a cultura sob suas circunstâncias simbólicas. Acredita que Geertz deu pouca
importância às relações sociais estruturadas quando elaborou sua teoria e que sem levar
em consideração tais relações estruturadas seu conceito perde força e se revela
insuficiente para dar cabo a uma concepção mais ampla de cultura. Nesse sentido,
acredita que somente ao se deparar com os contextos sociais, as ações advindas das
relações sociais e suas implicações, pode-se chegar a uma análise mais profunda das
formas simbólicas estabelecidas nessa relação. Elabora uma alternativa para os estudos
dos fenômenos culturais que consiste em delinear uma análise cultural como sendo...
[...] o estudo das formas simbólicas isto é, ações, objetos e
expressões significativas de vários tipos em relação a contextos e
processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro
dos quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são
produzidas, transmitidas e recebidas. Os fenômenos culturais, deste
ponto de vista, devem ser entendidos como formas simbólicas em
contextos estruturados; e a análise cultural... deve ser vista como o
estudo da constituição significativa e da contextualização social das
formas simbólicas. (THOMPSON, 1990, p.181)
Esses fenômenos são percebidos na rotina da vida humana, no desenvolvimento
das relações sociais e dos contextos sociais aos quais os sujeitos estão inseridos. De
forma mais simples, vivemos de acordo com formas simbólicas e contextos sociais que
se definem a partir de relações históricas e sociais específicas. Assim, para uma análise
mais profícua dos fenômenos culturais, devem-se considerar, de forma definitiva, os
contextos, os processos socialmente estruturados e a interpretação das formas
simbólicas.
Podemos inferir que a tradução, tendo a cultura como interpretante, é processada
segundo contextos sócio-históricos e é produto de formas simbólicas intimamente
ligadas a contextos sociais estruturados. Entendo que a adaptação é o objeto do processo
tradutório intersemiótico e que as escolhas feitas para a confecção desse mesmo objeto
obedece aos ditames das formas simbólicas e que as escolhas feitas pelo diretor e sua
equipe, produzem significados que poderiam ser considerados intencionais. Porém, não
podemos afirmar que o efeito intencional na confecção do objeto (a adaptação) se
concretiza. Thompson (1999, p.184) coloca que:
[...]a constituição de objetos enquanto formas simbólicas isto é, sua
constituição como “fenômenos significativos” pressupõe que elas
25
sejam produzidas, construídas ou empregadas por um sujeito capaz de
agir intencionalmente, ou, pelo menos, que elas sejam percebidas como
produzidas por um sujeito. Dizer que um objeto foi produzido por, ou
que foi percebido como produzido por, um sujeito capaz de agir
intencionalmente não é dizer, entretanto, que o sujeito produziu esse
objeto intencionalmente ou que esse objeto é o que o sujeito pretendia
produzir; ao invés disso, é dizer, simplesmente, que esse objeto foi
produzido por, ou que foi percebido como produzido por, um sujeito
sobre quem nós poderíamos dizer, em certas ocasiões, que “fez isso
intencionalmente”.
Ainda a esse respeito, o referido autor coloca que o significado produzido pelo
“sujeito-produtor não é necessariamente o que ele tencionou ou quis dizer ao produzir a
forma simbólica”, pois essa relação se dá de forma complexa e de variadas formas na
interação social cotidiana. Como podemos perceber, falando da adaptação fílmica, as
relações sociais e a interação social dos sujeitos implicados nesse processo é que
determina as formas simbólicas, que por sua vez referendam a cultura e suas mais
variadas manifestações. Nesse sentido, a análise de uma adaptação passa, mormente,
pelo entendimento do funcionamento das formas simbólicas e de como se processa na
cadeia social tal funcionamento. Antes de tudo, é preciso compreender que o processo
de produção, comercialização e recepção estão inseridos em um fenômeno complexo.
Nesse contexto, podemos dizer que a adaptação/tradução é produtora de
significados e transformações que perpassam o julgamento positivo ou negativo de
críticos de tradução, pois nos remete à idéia de uma tradução que permite transmissões
culturais. Arrojo (1993, p.77) dialogando com Felman, Simon e Derrida expõe:
A tradução – ou o processo exemplar da transformação do
“mesmo” em “outro” – não é exatamente um “conhecimento” nem
tampouco uma “percepção” e, sim, “o desempenho da mudança
histórica que testemunha no próprio processo de realizá-la”(ibidem). Ao
reviver o passado através de um ato criador e não, meramente,
recuperador, a tradução torna possível a “sobrevivência” que chamamos
de “história”, além de realizá-la e construí-la. Finalmente, como conclui
Sherry Simon, a partir da desconstrução, a tradução se torna “objeto de
um tipo de reformulação conceitual, localizada no centro do debate
conteporâneo acerca de processos de transmissão cultural e de suas
relações com a linguagem”. Mais do que uma técnica de simples
“transferência lingüística”, a tradução passa a ser reconhecia como “um
processo que gera novas formas textuais, que cria novas formas de
conhecimento e introduz novos paradigmas culturais”. (pp.96-97).
26
“Novas” e “novos”, aqui, obviamente, entre aspas, ou sous rature”,
como recomendaria Derrida.
4
Percebe-se, nesses questionamentos, a possibilidade de entendermos a tradução como
ato advindo de um processo complexo de resignificações e transformações que
ultrapassam a idéia de que se deve copiar o original ou o texto fonte. A autora defende
uma ruptura com os ideais logocêntricos da tradução, nos quais a tradução é mera
transferência de significados de uma língua para outra, em favor de uma nova forma de
enxergar o tradutor como agente ativo do processo tradutório e incapaz de se auto-
excluir de sua cultura, suas ideologias e crenças. É nesse sentido que entendo a
adaptação como um processo de escolhas dentro de uma complexa teia de significados
que se produzem, se reproduzem e se transformam em consonância com formas
simbólicas estabelecidas nos fenômenos culturais e ideológicos.
Compreendendo a adaptação como um processo complexo de contextualização
das formas simbólicas ligados a fenômenos culturais, podemos dizer ainda que a(s)
ideologia(s) inserida nesse processo passam pelos mesmos contextos, contextos
estruturados socialmente.
Partindo das concepções de cultura anteriormente citadas, podemos perceber
que, até agora, a cultura é definida pelas composições de formas simbólicas e que tais
formas são permeadas pelo estado e suas estruturas sociais vigentes. O Estado e as
relações de poder estabelecidas estruturalmente organiza o pensamento humano, as
ações humanas e a difusão da cultura em suas mais variadas manifestações. Logo, o
Estado passa a exercer grande importância no desenvolvimento cultural sendo seu
principal difusor. Porém, podemos questionar o papel do mercado no nosso mundo
globalizado e suas influências sobre o Estado, e se existe uma interferência do mercado,
nas relações de poder, nas relações sociais e na política estatal, podemos inferir que as
formas simbólicas sofrem, também, influência mercadológica e, assim, a cultura e suas
concepções são orientadas, manipuladas e difundidas não tão somente pelo Estado, mas
por uma relação dialógica entre mercado e Estado.
As discussões e questionamentos sobre cultura sempre serão palco de grandes
controvérsias e discordâncias no que diz respeito às suas concepções. Para Gordon
4
As referências de textos feitos pela autora não se encontram no corpo de seu trabalho, indicando o
diálogo feito anteriormente com os demais teóricos.
27
Mathews, as teorizações sobre cultura e suas implicações são demasiadas e
complicadas. A cultura é um problema no mundo globalizado, onde as contradições, as
interferências dos Estados nacionais e do mercado global, os conflitos de identidade e a
busca por novas identidades nacionais se fazem permanentes nos dias de hoje. Em suas
análises, Mathews ( 2002, p.15) questiona a visão de antropólogos que vêem a cultura
como “o modo de vida de um povo”, podendo assim falar em cultura americana, cultura
japonesa, cultura francesa e assim por diante. Acredita que a cultura, hoje, é passível de
escolhas feitas pelos indivíduos de várias nacionalidades, não creditando a uma cultura
específica o todo de um povo ou uma sociedade. Os povos de um país não são únicos
em suas culturas únicas, mas a mistura e disseminação de culturas outras fazem a
diversidade cultural de um povo. Para o referido autor, no início de seus
questionamentos, dever-se-ia aliar a idéia de cultura como “o modo de vida de um
povo” a uma idéia mais contemporânea de cultura como “as informações e identidades
disponíveis no supermecado cultural global”. A essas idéias, acrescenta a teoria da
formação cultural do indivíduo, na qual põem em evidência a manipulação exercida
pelo mercado e o Estado, e vice-versa. Mathews coloca que não de trata de opor Estado
e mercado numa disputa por quem modula mais ou menos os indivíduos em sua busca
de sua identificação cultural, daí a insuficiência de tais idéias, mas de perceber como
ambos passam a exercer domínio sobre os indivíduos nessa busca por identificação.
Acaba por lembrar que as controvérsias se evidenciaram quando da intensificação de
conceitos como identidade étnica e de mercado. Mathews ( 2002, p. 32 ) vislumbra que,
nos dias de hoje,
[...] não é a identidade étnica, mas a identidade tal como
oferecida através do mercado que é, decisivamente, a força maior que
corrói a identidade nacional no mundo de hoje. A identidade étnica
pode se opor ao Estado existente, mas é fundamentalmente da mesma
ordem conceitual que o Estado; da mesma forma que a identidade
oferecida pelo Estado, a identidade étnica é freqüentemente baseada na
idéia de um determinado povo pertencendo a um determinado lugar.
Identidade de mercado, por outro lado, está baseada em não pertencer a
nenhum lugar determinado, mas sim, ao mercado tanto em suas formas
materiais como culturais; na identidade baseada em mercado o lar de
um indivíduo é o mundo inteiro.
O referido autor ainda defende a existência de duas formas de supermercado:
material e cultural. Ambos, como o Estado, modulam as pessoas no mundo global,
através dos meios de comunicação de massa. Quando fala em supermercado material, se
refere aos produtos materiais vendidos nos quatro cantos do mundo, enquanto o
28
supermercado cultural espalha no mundo uma enorme e variada gama de informações e
identidades potenciais. Mathews ( 2002, p. 33 ) esclarece que essa modulação exercida
pelo supermercado material e cultural é “tão poderosa e bizarra como a manipulação
pelo Estado... essa manipulação pode ser mais suave em seus meios que a manipulação
pelo Estado.” Lembra que os meios de comunicação de massa conseguem atingir um
grau de coerção e de sedução tão grande e que, por vezes, pode ser mais poderoso que
as leis. Para ele, “a moldagem do Estado está sendo corroída em toda parte pela
moldagem do mercado.” Lembra-nos, para exemplificar, do que tem ocorrido no mundo
inteiro, sobretudo nas grandes nações como Japão e Estados Unidos. Várias e diferentes
são as investidas nos Estados nacionais para promover determinados produtos que
disseminem a idéia de liberdade e individualidade, como no caso dos Estados Unidos.
No caso do Japão, existem tantos apelos por formas culturais ocidentais que alguns
críticos conservadores julgam que o país perdeu sua identidade. Contudo, muitos
japoneses não se importam com tais colocações. O mesmo podemos dizer da França
quando muitos de seus cidadãos deixam de consumir em restaurantes eminentemente
franceses para consumir nas grandes lanchonetes MacDonalds e são vorazes
consumidores de eletro/eletrônicos japoneses e suas promessas de durabilidade e
exatidão. Tais exemplificações dão conta de um conflito existente entre mercado e
Estado na moldagem dos cidadãos, em todas as sociedades no mundo.
O mundo de hoje pode ser percebido como um grande e complexo emaranhado
de formas culturais as quais não se permite falar exclusivamente de uma cultura única
para todos os cidadãos. Nesse mundo interconectado, no qual as informações chegam
em tempo real e os produtos são amplamente vendidos rapidamente, temos acesso às
mais variadas formas e modos e estilos de vida. Nesse complexo processo pela busca de
identificação dos cidadãos, identidades se formam e são moldadas pelos Estados e pelo
mercado com irrestrito apoio dos meios de comunicação de massa. Posteriormente
falaremos mais aprofundadamente sobre os processos de identificação e a construção de
identidades no mundo globalizado.
Continuando nossa investida na complexa teia de significados que é a cultura,
outro teórico empreende suas análises se direcionando para a cultura da mídia e sua
importância na expansão de significados. Douglas Kellner (2002, p.26) faz um breve
panorama do que tem acontecido no mundo desde o fim da segunda guerra mundial
passando pela queda de muro de Berlin e o fim do comunismo e da União Soviética.
29
Apesar de nos acharmos num mundo mais homogêneo, longe de ideais e ideologias
conflitantes com o mundo capitalista, nos vemos num mundo em constantes guerras
étnicas, religiosas e nacionalistas. O mundo capitalista ficou livre de seus opositores
ideológicos e disseminou a idéia de um novo momento mundial sem a guerra fria, onde
enfim reinaria livre e em paz. Não foi o que aconteceu e estamos vivendo em um
enorme caldeirão efervescente de conflitos, inclusive e, principalmente, no interior do
próprio mundo capitalista representado por seu símbolo maior, os Estados Unidos.
Como diz o autor “nos Estados Unidos, também se intensificaram as guerras culturais,
em que os assaltos direitistas ao ‘politicamente correto’ funcionaram como arma de
ataque às forças e idéias progressistas.” (KELLNER, 2002, p.26). Mas foi com o
surgimento das novas tecnologias que se intensificaram novas formas de controle social
e se modificaram os padrões da vida cotidiana, reestruturando, de forma intensa, o
trabalho e o lazer.
Kellner enfatiza que com o surgimento das novas tecnologias da mídia e da
informação novas formas de controle social e manipulação dos indivíduos foram
adotadas e com isso podem servir a interesses que nem sempre são perceptíveis. Nesse
sentido, Kellner e Mathews estão de acordo em evidenciar o poder de manipulação do
Estado e do mercado, em denunciar as artimanhas utilizadas pelos meios de
comunicação de massa em conformidade com as estruturas de poder na monitoração dos
indivíduos. Kellner ( 2002, p. 26) nos faz ver os efeitos das novas tecnologias da mídia
e suas implicações positivas e negativas:
As novas tecnologias da mídia e da informação, porém, são
ambíguas e podem ter efeitos divergentes. Por um lado, proporcionam
maior diversidade de escolha, maior possibilidade de autonomia cultural
e maiores aberturas para as intervenções de outras culturas e idéias. No
entanto, também propiciam novas formas de vigilância e controle, em
que os olhos e sistemas eletrônicos instalados em locais de trabalho
funcionam como encarnação contemporânea do Grande Irmão. As
novas tecnologias da mídia também propiciam poderosas formas de
controle social por meio de técnicas de doutrinação e manipulação mais
eficientes, sutis e ocultas. Na verdade, sua simples existência cria
possibilidade de minar energias políticas e de manter as pessoas bem
guardadas dentro dos confins de seus centros de entretenimento
doméstico, distantes do tumulto das multidões e dos locais de ação
política de massa.
Como Mathews, o autor nos leva por um caminho em que devemos ser capazes
de analisar o poder da mídia e suas artimanhas que por vezes podem mascarar outras
intenções que não as que estão à superfície das aparências. O Estado e o mercado são
30
poderosos manipuladores que se utilizam das tecnologias da informação e da mídia.
Outro ponto abordado, mais uma vez, está de acordo com as idéias de Mathews: a
cultura como mercadoria. Kellner ( 2002, p. 27 ) diz:
A mídia veicula uma forma comercial de cultura, produzida por
lucro e divulgada à maneira de mercadoria. A comercialização e a
transformação da cultura em mercadoria trazem muitas conseqüências
importantes. Em primeiro lugar, a produção com vistas ao lucro
significa que os executivos da indústria cultural tentam produzir coisas
que sejam populares, que vendam, ou que como ocorre com o rádio e
a televisão atraiam a audiência das massas. Em muitos casos, isso
significa produzir o mínimo denominador comum que não ofenda as
massas e atraia um máximo de compradores. Mais precisamente, a
necessidade de vender significa que as produções da indústria cultural
devem ser eco da vivência social, atrair o grande público e, portanto,
oferecer produtos atraentes que talvez choquem, transgridam
convenções e contenham crítica social ou expressem idéias correntes
possivelmente originadas por movimentos sociais progressistas.
A cultura da mídia, como vimos anteriormente, sendo produto da indústria
cultural não pode ser vista somente pelo lado negativo, pois também promove interesses
e ideologias divergentes entre os grandes conglomerados, e reside a grande
importância de seu papel num mundo globalizado, o de promover discussões de mais
variados temas. Kellner ( 2002, p.27 ) coloca ainda que:
[...] enquanto a cultura da mídia em grande parte promove os
interesses das classes que possuem e controlam os grandes
conglomerados dos meios de comunicação, seus produtos também
participam dos conflitos sociais entre grupos concorrentes e veiculam
posições conflitantes, promovendo às vezes forças de resistência e
progresso. Conseqüentemente, a cultura veiculada pela mídia não pode
ser simplesmente rejeitada como um instrumento banal da ideologia
dominante, mas deve ser interpretada e contextualizada de modos
diferentes dentro da matriz dos discursos e das forças sociais
concorrentes que a constituem [...]
É interessante perceber como funcionam as relações de poder em consonância com os
meios de comunicação de massa, especificamente como funciona a indústria cultural
através da mídia e seus conglomerados no mundo inteiro. Ainda aqui podemos aliar a
importância dos fenômenos simbólicos socialmente estruturados na produção de filmes
e telefilmes pelo mundo afora. A cultura, disseminada e como instrumento de
manipulação num processo complexo em que se imbricam Estado e mercado, ou como
diz Mathews, supermercado cultural e material, dita os comportamentos dos indivíduos
e opera junto às escolhas feitas pelos sujeitos. Tais escolhas nem sempre são tão livres
como apregoadas largamente, posto que no supermercado cultural global somos
influenciados por todos os lados.
31
Em contraponto ao que Kellner anuncia sobre a moldagem dos indivíduos no
complexo mundo das formas culturais, Thompson (1990, p.143) sugere que os
indivíduos podem ou não ser manipulados no processo de socialização, e aponta que:
É provável que imagens estereotipadas e padrões repetitivos dos
produtos culturais contribuam, até certo ponto, para a socialização dos
indivíduos e para a formação de sua identidade. Mas é também provável
que os indivíduos nunca são totalmente moldados por esses e por outros
processos de socialização, e que eles são capazes de manter ao menos
certa distância, tanto intelectual como emocionalmente, das formas
simbólicas que são construídas deles, para eles e ao seu redor.
Acerca do que foi analisado nas linhas acima, em todas as concepções de cultura
e seus autores, podemos afirmar que as idéias expostas se entrecruzam e nos auxiliam
no entendimento do conceito de cultura e aprofundam nossas análises sobre o
funcionamento dos fenômenos culturais. Os fenômenos culturais são concebidos como
estruturados socialmente e como produtos da ação humana que agem em conformidade
com os ditames do mercado e do Estado. Podemos ainda acrescentar que essas ações
não são unilaterais ou bilaterais, mas se concretizam numa relação dialética contínua.
Sem os indivíduos, sem o Estado e sem o mercado não poderíamos falar em fenômenos
culturais. A cultura se faz numa teia complexa em que, numa imbricada relação de
poder, persiste e consolida-se um jogo contínuo de trocas entre os partícipes envolvidos.
Zigmunt Bauman (1998, p. 168) nos propõe uma nova metáfora: a cultura como
consumidor cooperativo. Procurou, dessa forma, uma metáfora que “captasse
precisamente a inquietação, adaptabilidade, subdeterminação endêmica e
imprevisibilidade das atividades culturais”. Nesse sentido, provoca as concepções
deterministas de cultura que sinalizam para uma forma estruturada e estabelecedora da
ordem. Quando usa o termo cooperativa pressupõe a idéia de algo construído por vários
em detrimento de alguns e na idéia de uma cultura o monocentricamente
administrada, nem uma verdadeira anarquia. Para isso, Bauman ( 1998, p. 170 ) precisa
que “numa cooperativa de consumidores, exatamente como na cultura, não é fácil
distinguir em seus padrões emergentes de interação o “autor” do “agente”. Espera-se
que cada membro seja tanto autor como agente”. Como havíamos comentado acima, a
cultura não se estabelece numa mão de via única, mas numa relação contínua e
complexa entre seus partícipes. Ainda nessa perspectiva, o referido autor acrescenta que
a ação humana é a reprodução de outros atos e que nunca uma ação pode ser igual a
outra, posto que não existe cópia fiel de um ato.
32
A condição de autor e a condição de agente são dois aspectos
da ação (aspectos presentes, embora com diferente intensidade, em toda
ação humana) -, não características de categorias humanas distintas. As
ações atingem raramente, se alguma vez, esse radical e puro caráter
repetitivo que a tecnologia moderna alcançou em alguns de seus
artefatos produzidos em massa. Nenhum ato humano é uma imitação
completa e exata, cópia fiel, reprodução precisa de um modelo ou papel
redigido de antemão. (Nos termos de Derrida, todo ato é uma interação,
e não uma reiteração.) Em todo ato, os modelos são mais uma vez
reproduzidos, em formas não totalmente idênticas. Todo ato é, até certo
ponto, uma permutação original, uma versão única do modelo. Os
modelos não existem de nenhum outro modo, a não ser no processo de
contínua e inescapável transformação. (BAUMAN, 1998, p.170)
A idéia de sermos autores e agentes ao mesmo tempo, em que atos humanos são
recriações de outros atos, nos insere numa perspectiva humana renovadora das nossas
próprias ações e, assim, somos seres humanos produzindo e consumindo
constantemente ações renováveis em todos os aspectos. Esse é outro aspecto da
metáfora utilizada por Bauman (1998, p.171-172), em que é a partir do consumo intenso
de produtos culturais por parte de agentes e autores que a cultura adquire sentido pleno.
Quanto mais se consome cultura mais signos se constituem em significados gerando
mais signos e novamente mais significados numa incessante e contínua resignificação,
onde alguns signos desaparecem e outros novos são criados. E assim afirma:
É útil pensar na cultura, tal como no mercado, como um campo
de esportes, um local de jogo de oferta e procura. O local é percorrido
por signos em busca de significados e por significados que buscam
signos. Se, para seu funcionamento normal, o mercado requer um
determinado excesso de oferta sobre a procura existente e, se somente
no momento da compra o potencial de mercadoria dos bens de mercado
é satisfeito, na cultura pode-se observar um contínuo excesso de signos,
que somente na atividade de seu uso e consumo têm uma probabilidade
de satisfazer o seu potencial significativo, ou seja, de transformar-se em
símbolos culturais. (BAUMAN, 1998, p.172)
Notemos que a metáfora utilizada pelo autor corrobora com as idéias de
Mathews e sua teoria de supermercado cultural global. Ambos atrelam a cultura ao
mercado e ao consumo de produtos culturais no complexo processo de concepção de
cultura. Porém, divergem um pouco no que tange ao papel dos indivíduos nas escolhas
feitas ao consumir produtos culturais. Para Bauman (1998, p. 175), as escolhas são
livres ante ao enorme apelo de consumo e variedade de signos disponíveis. Os
indivíduos consomem o que lhes aprouver numa ampla liberdade de escolha. para
Mathews (2002, p. 44), as escolhas aparentam ser livres para os indivíduos, que acham
que escolhem o que querem, mas tais escolhas são feitas de acordo com sua classe,
33
gênero, etnia, crença religiosa e cidadania e, ainda, de acordo com as exigências de sua
formação pessoal.
É certo que não percebemos as sutilezas imbricadas no ato de consumir e nos
achamos livres em escolher “aquele” filme no cinema ou a programação de televisão
mais condizente com os nossos gostos e anseios do momento. Se atrelarmos essas
escolhas ao universo individual, ao cotidiano de cada um, perceberemos que fazemos
escolhas que refletem a estrutura social a qual estamos relacionados. Essa idéia de
liberdade de escolha do indivíduo será analisada com mais cuidado quando falarmos da
questão da formação de identidades, ponto que devemos elaborar mais adiante.
1.3 IDEOLOGIA E CULTURA NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE
MASSA.
As relações complexas estabelecidas entre mercado, Estado, fenômenos
culturais, formas simbólicas, consumo, escolhas dos indivíduos, liberdade de escolha,
relações de poder e identidades nos encaminham para o universo da ideologia, universo
ainda mais intrigante que controverso. Nossa reflexão parte para uma área do
conhecimento humano em que vários teóricos, cientistas políticos, ideólogos e políticos
apaixonados e fervorosos debatem sem cessar os embates travados, pelas sociedades e
seus indivíduos, no complicado jogo das lutas de poder e das idéias. Digo de antemão
que não devo fazer uma exaustiva e histórica análise do termo ideologia, mas um breve
relato de alguns estudiosos sobre o tema. Conceitos e avaliações do termo que precedem
Platão, Aristóteles e pensadores da economia política e das ciências sociais como Marx,
Engels, Weber e tantos outros, fazem parte intrínseca das formulações desenvolvidas no
decorrer do culos. Devo salientar que sem a contribuição histórica de todos, uma
concepção contemporânea de ideologia seria ineficaz e vazia.
Na vida cotidiana dos indivíduos, na nossa vida, e nas nossas relações
interpessoais estamos proferindo e trocando idéias, falando o que pensamos sobre
determinado assunto, agindo diante das circunstâncias como achamos mais adequado
ante nossas crenças e valores individuais. Nas conversas de bares, no convívio familiar
e de amizade, nas relações de trabalho, nas salas de aula das escolas e nos corredores
das universidades, bem como em suas salas, nos posicionamos como indivíduos,
sujeitos que sempre têm algo a dizer, a ouvir e a questionar. Na eterna busca por
34
felicidade e justiça somos pessoas que indagamos sobre o que é certo ou errado, num
maniqueísmo consolidado. Em todos os momentos de nossa vida e em nossas relações
sociais, acreditamos fazer o que pensamos ser o melhor, o mais acertado. O que, por
vezes, não percebemos é que nosso comportamento, nossos atos e pensamentos são
influenciados por idéias outras que não exclusivamente nossas, nossas. Nesse
sentido, quero enfatizar que nos discursos cotidianos, nas falas nossas e dos outros,
residem a cultura assumida e as ideologias. Poder-se-ia dizer ainda, como vimos acima,
que ao assumir uma cultura como nossa estamos fazendo escolhas e que tais escolhas
são manipuladas pelas pressões sociais exercidas pelo convívio social, pelo Estado e
pelo mercado. Poder-se-ia dizer mais, que nossas escolhas concordam com nossa forma
de pensar o mundo e as ideologias vigentes. Logo, estamos sempre elaborando e
reelaborando nosso próprio mundo, à luz de conceitos formulados e reformulados
continuamente numa relação ideológica e cultural.
A reflexão acerca da ideologia teve seu início no século XVIII na França, e, com
o passar dos tempos foi sendo refinada, lapidada e reformulada. O conceito de ideologia
foi usado por muitos como sendo um atributo de dominação de forças políticas e de
grupos interessados em difundir seus pensamentos e ideais julgados como melhores
para todos. A ideologia, vista sob um ponto de vista negativo, serve aos interesses de
poucos numa relação de dominação.
Thompson (1990, p.14-15) faz um breve histórico das principais teorias e
acepções de ideologia que julga ambíguas devido à multiplicidade de significados
empreendidos ao longo dos tempos e ao fato de haver uma confusão nos usos do termo,
pois nunca se sabe se está sendo usado prescritivamente ou descritivamente. Segundo o
autor, é difícil saber se o termo está sendo usado para descrever um estado de coisas ou
para avaliar um estado de coisas. Na tentativa de descaracterizar, como diz o autor, a
herança ambígua do conceito de ideologia, duas respostas foram elaboradas. Uma delas
tenta neutralizar o aspecto negativo do conceito através de um conjunto de conceitos
descritivos, numa tentativa de domar o conceito. A outra resposta abandona o conceito
por considerá-lo muito ambíguo, muito controvertido e contestado, e demasiadamente
marcado. É a partir daí que o autor desenvolve o que chama de concepção crítica da
ideologia. Ao elaborar sua concepção descarta a segunda resposta por considerar que o
conceito desenvolvido até nossos dias é “útil e importante no vocabulário intelectual da
35
análise social e política” e mantém a conotação negativa do conceito da primeira
resposta, mas liga a análise da ideologia à questão crítica.
Nesse sentido, o referido autor centraliza suas análises nos problemas que se
referem às inter-relações entre poder e sentido. Argumenta que...
[...]
o conceito de ideologia pode ser usado para se referir às maneiras
como o sentido (significado) serve, em certas circunstâncias
particulares, para estabelecer e sustentar relações de poder que são
sistematicamente assimétricas que eu chamei de “relações de
dominação”. Ideologia, falando de uma maneira mais ampla, é sentido a
serviço do poder. Conseqüentemente, o estudo da ideologia exige que
investiguemos as maneiras como o sentido é construído e usado pelas
formas simbólicas de vários tipos, desde as falas lingüísticas cotidianas
até as imagens e aos textos complexos. ’(THOMPSON, 1990, p.16)
Nas suas afirmações, Thompson (1990, p.16) deixa claro que os contextos
sociais, onde as formas simbólicas se realizam, devem ser analisados para que
descubramos se o sentido é “mobilizado pelas formas simbólicas em contextos
específicos, para estabelecer e sustentar relações de dominação”. E mais, se o sentido,
utilizado e construído pelas formas simbólicas, “serve ou não para manter relações de
poder assimétricas.” Seus questionamentos levam ao estudo das formas simbólicas em
contextos socialmente estruturados e a análise da ideologia se amplia e se volta para o
entendimento da ação e interação, das formas de poder e de dominação, das formas
simbólicas e seus papéis na vida social. Nesse sentido, o autor enfatiza que sua análise
se realiza no entrecruzamento das formas simbólicas com as relações de poder e que é a
partir dessa relação que os fenômenos simbólicos podem ser caracterizados como
ideológicos ou não. A esse respeito, o autor enfatiza que é somente analisando os
contextos sócio-históricos em situações específicas que poderemos afirmar se os
fenômenos simbólicos são ideológicos ou não, se as formas simbólicas e as estratégias
particulares de construção simbólica servem ao estabelecimento, manutenção ou
subversão das estruturas de poder. Por estratégias particulares de construção simbólica
entende como sendo os instrumentos com os quais as formas simbólicas podem ser
produzidas. E complementa:
Mas, se as formas simbólicas assim produzidas servem para
sustentar relações de dominação ou para subvertê-las, se servem para
promover indivíduos e grupos poderosos ou para miná-los, é uma
questão que pode ser resolvida examinando como essas formas
simbólicas operam em circunstâncias sócio-históricas particulares,
como elas são usadas e entendidas pelas pessoas que as produzem e
36
recebem nos contextos socialmente estruturados da vida cotidiana.
(THOMPSON, 1990, p.89)
Thompson (1990, p.91) observa que a ideologia serve para sustentar relações de
poder assimétricas e que as formas simbólicas nela constituídas, por meio das
estratégias de construção simbólica, apontam para sua relevância na manutenção das
relações de dominação em contextos sociais específicos. Destaca que essas formas
simbólicas podem ser contraditas, desafiadas ou destruídas, e que a própria existência da
ideologia pode ser sua contradição. Significa dizer que nas relações sociais
estabelecidas, as pessoas podem não aceitar passivamente a ideologia imposta e suas
manifestações simbólicas, mas ao contrário podem desafiá-las, criticá-las e até mesmo
ridicularizá-las em manifestações engajadas ou individualmente, de forma implícita ou
explícita, o que o autor caracteriza como formas simbólicas contestatórias ou, mais
especificamente, como formas incipientes da crítica da ideologia.”
No intuito de elucidar questões relacionadas à cultura da mídia e suas
manifestações mais amplas, Kellner busca aprofundar suas análises no entendimento
dos conflitos sociais, gerados nas lutas dos grupos sociais contra a opressão. Suas
incursões no terreno fértil dos estudos culturais buscam base em teorias marxistas de
classe, conceitos feministas de sexo, multiculturalistas de raça, etnia, preferência sexual,
nacionalidade etc., julgando serem componentes essenciais na elaboração de uma
concepção crítica de cultura da mídia. Ao empreender tal caminho, corrobora com
Thompson no que tange ao aspecto ideológico e político das formas simbólicas nos
produtos culturais. Kellner (2001, p. 76) coloca que:
As formas dessa cultura são intensamente políticas e
ideológicas, e , por isso, quem deseje sabe como ela incorpora posições
políticas e exerce efeitos políticos deve aprender a ler cultura da mídia
politicamente. [...] Portanto, ler politicamente a cultura da mídia
significa situá-la em sua conjuntura histórica e analisar o modo como
seus códigos genéricos, a posição dos observadores, suas imagens
dominantes, seus discursos e seus elementos estéticos-formais
incorporam certas posições políticas e ideológicas e produzem efeitos
políticos.
Ler politicamente a cultura também significa ver como as
produções culturais da mídia reproduzem as lutas sociais existentes em
suas imagens, seus espetáculos e sua narrativa.
Nesse sentido, o citado autor coloca em evidência os aspectos ideológicos e políticos
nas produções culturais e enseja a análise, sob esses aspectos, dos textos, imagens,
discursos e figuras com vistas a entender o funcionamento dos fenômenos culturais.
37
Logo, a cultura da mídia, em seus processos complexos de significação, ajuda a
estabelecer a hegemonia de certos grupos e projetos políticos dominantes ou
antagônicos. Como Thompson, Kellner (2001, p.81-83) amplia o conceito de ideologia
englobando a análise das imagens, dos discursos, de posições teóricas, conceitos e
formas simbólicas propiciando campo fértil para uma análise crítica da cultura da mídia
por meio dos estudos culturais críticos. Nesse processo analítico crítico, o referido autor
expõe as oposições sexistas, de classe e de raça na construção de divisões entre homens
e mulheres, entre negros e brancos e entre classes, alta e baixa, construções essas que
passam a ditar formas simbólicas cristalizadas, naturalizando discursos específicos de
opressão. Ao fazer tais oposições, o autor evidencia que a ideologia classifica e
hierarquiza as oposições a serviço das forças e das elites do poder num jogo de
representações constituindo visões do mundo do indivíduo.
Os filmes e telefilmes, produzidos pela indústria cinematográfica e televisiva,
vistos e aclamados pelos espectadores/telespectadores, carregam, em suas imagens,
músicas e textos, a representação das mais variadas formas de dominação presentes no
cotidiano das relações sociais. Numa guerra de sentidos e representações a serviço das
relações de dominação, muitos dos produtos da indústria cultural da mídia reforçam o
estabelecimento das estruturas de poder com seu aparato político e ideológico. Alguns
outros criticam e contestam tais estruturas colocando em xeque tais relações. As
representações nem sempre são claras aos indivíduos, pois, na maioria das vezes,
as formas simbólicas cristalizadas no dia-a-dia das pessoas impossibilitam uma visão
crítica dos papéis ali representados. Digamos que nos textos e imagens estão inseridas
intenções ideológicas sexistas, racistas e de classe que passam despercebidas ao olhar
dos indivíduos, sendo necessário um trabalho reflexivo contínuo sobre os papéis sociais
que desempenhamos nos processos de identificação.
A ideologia se vale das formas simbólicas naturalizadas e cristalizadas, no
passado e no presente, para manter e sustentar relações de poder assimétricas. A
exemplo, as pessoas gargalham ao assistir programas de humor na televisão que
ridicularizam o rico em detrimento do pobre, a esposa burra e as colocações do marido
sábio, o gordo em oposição ao magro e etc., mas quase nunca refletem sobre o impacto
desses textos e imagens em suas vidas e aceitam as representações veiculadas pela
televisão como verdadeiras, como no caso da “loira burra” e tantas outras.
38
Kellner (2001, p. 84) observa que tais representações se fazem valer por conta da
ação de uma abstração produzida por operações ideológicas como sexismo, classismo e
racismo. E vai mais além:
[...] são ideologias que legitimam a superioridade dos homens
sobre as mulheres ou do capitalismo sobre outros sistemas sociais de tal
forma que tentam justificar os privilégios das classes ou dos estratos
dominantes tais ideologias capitalistas patriarcais e racistas abstraem
as injustiças, as iniqüidades e o sofrimento causado pelo sistema
capitalista racista e patriarcal como flagrantes injustiças que
representam o poder e a riqueza numa sociedade supostamente
igualitária e os sofrimentos dos grupos e dos indivíduos dominados.
O autor ainda elabora que além das abstrações produzidas no processo de legitimação, a
delimitação de fronteiras entre sistemas, grupos, valores e etc., que se legitimam como
superiores ou inferiores, são fundamentais na legitimação, dominação e mistificação
como características intrínsecas da ideologia a serviço das forças dominantes. Para o
referido autor, o estudo cultural crítico e multicultural deve considerar tais
características numa análise cuidadosa e crítica das abstrações e das fronteiras criadas
para a manutenção do status quo e das forças dominantes. Para ele, a cultura da mídia
dominante conserva tais fronteiras e abstrações como instrumento de dominação e
cabem aos estudos culturais críticos e multiculturais desvendar e criticar esses
instrumentos em nome de um mundo mais humano e igualitário.
Em sintonia com os questionamentos feitos anteriormente por Thompson e
Kellner, Norman Fairclough (1992, p.117) elabora sua concepção de ideologia com base
nas práticas discursivas, nos quais residem as construções ideológicas. Sua análise parte
do pressuposto de que “as ideologias são significações/construções da realidade (o
mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) construídas em várias
dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a
produção, reprodução ou a transformação das relações de poder.” Logo, é nas práticas
discursivas que as ideologias se constituem a serviço das relações de dominação, que
quanto mais naturalizadas e próximas do senso comum, mais eficazes se tornam.
Contudo, o referido autor, considera que essas formas estáveis e estabelecidas de
ideologia não são o centro de suas referências ou considerações, pois, sua referência, a
transformação, aponta a luta ideológica como dimensão da prática discursiva.
39
As práticas discursivas estabelecem representações e significações com as quais
as pessoas, por vezes, não conseguem se identificar e ter consciência de suas próprias
práticas. Fairclough (apud Resende, 2006, p.70) defende a idéia de que a representação
sígnica dos discursos está intimamente ligada à representação do mundo e assim
disposta em leituras e concepções diferentes desse mesmo mundo. Tal representação se
dá sob diferentes pespectivas, constituindo-se em discurso pois “diferentes discursos são
diferentes perspectivas de mundo, associadas a diferentes relações que as pessoas
estabelecem com o mundo e que dependem de suas posições no mundo e das relações
que estabelecem com outras pessoas.” Dessa feita, os discursos representam e projetam
uma realidade própria a cada particularidade, e essa representação se na troca e no
espelhamento de discursos, quer dizer, um discurso existe também em contraponto a um
outro discurso oponente ou complementar.
Cabe ainda ressaltar que um discurso não se representa por si só, mas sim numa
relação dialética das práticas e das lutas sociais gerando identificações. Logo as
identificações estão ligadas ao modo como práticas discursivas são distribuídas,
consumidas e interpretadas, variando de acordo com a natureza dos processos de
produção. Fairclough (2001, p.109) coloca ainda que esses processos são socialmente
restritos pelos recursos disponíveis dos membros, incluindo as estruturas sociais,
normas e convenções, ordens de discurso e convenções para a distribuição, a produção e
o consumo de textos. Os processos seriam ainda restritos pela natureza específica da
prática social da qual fazem parte.
É mister lembrar que no mundo atual, sobretudo depois da Segunda Guerra
Mundial, a cultura, as ideologias e os discursos se realizaram, foram difundidos e se
estabeleceram, em grande parte, com o auxílio determinante dos meios de comunicação
de massa. Porém, tiveram caráter diverso, ora esperado ora inesperado, previsível e
imprevisível. Através dos anos podemos assistir à evolução rápida e o aperfeiçoamento
das técnicas de produção de tais meios. Como exemplo, vemos a consolidação da
televisão institucionalizada como meio de transmissão e difusão eficaz de
comportamentos, informação e idéias, discursos e formas simbólicas. Os meios de
comunicação de massa, em especial a televisão, veiculam e propiciam uma gama
enorme e variada de modelos, padrões e interações sociais que, em alguns casos, se
consolidam e se transformam nas relações sócio-históricas. Estado e mercado,
imbricados nas estruturas de poder, na indústria da cultura e nas formações ideológicas,
40
estabelecem suas relações de dominação e se utilizam dos meios de comunicação de
massa para efetuar seus propósitos.
Thompson (1990, p.342) evidencia a importância dos meios de comunicação de
massa na análise da ideologia nas sociedades modernas, mas esclarece que não é o
único local em que as ideologias operam. Como vimos anteriormente, a ideologia serve
para estabelecer e sustentar relações de dominação e que devemos analisar a ideologia
relacionada às maneiras como o sentido presente nas formas simbólicas estabelece e
mantém relações de dominação. Nesse sentido, o autor inscreve que é extremamente
salutar entender como tais formas simbólicas são transmitidas pelos meios de
comunicação de massa e seus meios técnicos e que a análise da ideologia deve,
portanto, considerar tal transmissão, sem desconsiderar os contextos sociais. Logo
esclarece que, “a análise da ideologia deve se preocupar tanto com as formas simbólicas
que são produzidas e difundidas pelas instituições da mídia, como com os contextos de
ação e interação dentro dos quais essas formas simbólicas midiadas são produzidas e
recebidas.” Assim, salienta que nas relações individuais cotidianas, nas conversas de
bar, na vida entre amigos, nos discursos nas universidades, na interação familiar, nas
brincadeiras e piadas e etc., também estão presentes formas simbólicas caracterizadas
em fenômenos ideológicos e que, para uma análise mais ampla da ideologia a serviço
das relações de dominação, tais contextos específicos devem ser considerados.
É interessante perceber que com o aumento das tecnologias da comunicação de
massa e, assim, sua difusão e maior acesso por parte dos indivíduos, o raio de operação
da ideologia aumentou de maneira espantosa. No caso particular da televisão, nos
lugares mais longíncuos e desprovidos das condições básicas da vida moderna, como
saúde, saneamento, transporte, educação etc., sempre um aparelho de televisão
ligado, dando acesso a informações do mundo inteiro. A maioria das pessoas isoladas
pelas precárias condições de vida humana não estão a mercê das comunicações de
massa, ou pelo menos da televisão.
Os meios eletrônicos permitem “às formas simbólicas circularem numa escala
sem precedentes, alcançarem vastas audiências, invadirem o espaço de uma maneira
mais ou menos simultânea.”, relata Thompson (1990, p.344). O autor lembra que com o
aumento significativo da circulação dos meios de comunicação de massa eletrônicos,
como a televisão, foram modificadas as maneiras de acesso à produção e recepção das
41
formas simbólicas. Lembra que, ao aumentar a circulação das formas simbólicas, as
instituições de difusão da sociedade moderna, compostas por grandes conglomerados e
grandes instituições da mídia, podem restringir e determinar as formas simbólicas
quanto ao acesso à produção e difusão, contrastando com sua recepção cada vez mais
irrestrita com o passar dos anos. Thompson ( 1990, p.344) então acentua que:
[...] comparadas a outras formas de comunicação de massa, como livros,
jornais e revistas, essas mensagens transmitidas pela mídia eletrônica,
como a televisão, estão, em princípio, disponíveis, e são tipicamente
recebidas por uma audiência cada vez maior e mais abrangente. Até
certo ponto, isso se deve ao fato de que o aparelho de televisão é, em
geral, um componente doméstico que ocupa uma posição central na
casa, e que é um ponto central ao redor do qual muita interação social se
dá. Isso se deve, também, devido ao fato de que as habilidades exigidas
para decodificar as mensagens recebidas pela televisão são, muitas
vezes, menos sofisticadas e implicam menos treino especializado do que
as exigências para decodificar as mensagens transmitidas por outros
meios, tal como o material impresso. Esse caráter duplo da
comunicação de massa eletronicamente mediada o acesso restrito à
produção e difusão das formas simbólicas e o acesso relativamente
irrestrito à recepção das mesmas configura as maneiras como, e a
extensão em que, as formas simbólicas eletronicamente mediadas se
tornam o local para a operação da ideologia nas sociedades modernas.
O autor enfatiza também que a análise da ideologia nos meios de comunicação de massa
não deve ser restrita somente à análise das características das mensagens da mídia e das
organizações institucionais da dia, mas relacioná-las aos contextos e processos
específicos na recepção, e em quais contextos sócio-históricos específicos se dá a
apropriação pelos indivíduos. Apenas dessa maneira, sob tais circunstâncias, poder-se-á
afirmar que produtos da mídia possuem caráter ideológico e servem para estabelecer e
sustentar relações de poder.
Thompson (1990, p.345) critica a posição de teóricos como Horkheimer, Adorno
e Habermas afirmando que suas concepções são limitadas, pois inscrevem suas análises
da ideologia apenas na esfera dos produtos da mídia, conferindo-lhe papel central.
Segundo o autor, muitos desses teóricos conferiram demasiada importância às feições
ou funções das instituições da mídia e às características das mensagens da mídia ao
interpretarem o caráter ideológico da comunicação de massa. Alerta, então, para o fato
de que: não garantias de um efeito predeterminado na apropriação e recepção dos
indivíduos de uma determinada mensagem veiculada pelas instituições da mídia e
analisada sob o ponto de vista das organizações das instituições e das características das
mensagens. E esclarece:
42
Não se pode pressupor que os indivíduos que receberam as
mensagens da mídia, pelo simples fato de recebê-las, serão impelidos a
agir de uma maneira imitativa e conformista e, com isso, a tornar-se
prisioneiros de uma ordem social que suas ações e as mensagens que,
supostamente, os impeliram prestam-se a reproduzir.
(THOMPSON,
1990, p. 345)
Ao elaborar tais questionamentos, lembrei-me de um fato ocorrido nas semanas
em que estive concentrado, escrevendo e analisando as questões até aqui abordadas. Na
verdade, “caiu como uma luva” para exemplificar o que foi dito pelo autor sobre a
incerteza na apropriação das mensagens da mídia pelos indivíduos. Ao acompanhar um
telejornal brasileiro do horário nobre, oito horas da noite, fiquei intrigado com uma
notícia e como foi manifestada pelos seus apresentadores. A notícia dava conta de um
pronunciamento do Presidente Lula em uma fábrica, onde tentava explicar, aos seus
interlocutores, o que seria a atual crise financeira mundial. Na tentativa de fazer um
paralelo entre a crise e o corpo humano, comparou-a a uma “dor de barriga” e, mais
adiante, a uma “diarréia” . A notícia foi antecipada pelo âncora do telejornal que dizia
se tratar de uma comparação “um tanto extravagante” por parte do Presidente do Brasil.
Logo após a veiculação das imagens do pronunciamento presidencial, viu-se a imagem
do âncora em total desacordo com o ocorrido. Seus gestos faciais, franzindo a testa,
arqueando as sobrancelhas e com um sorriso desdenhoso, denunciaram sua completa
desaprovação ao palavreado do Presidente.
Quero enfatizar com esse exemplo veiculado pela televisão, que poderíamos nos
identificar com o âncora e a emissora de televisão, com o que foi apresentado no
telejornal, e, assim, a mensagem mediada pela instituição da mídia atingiria seu
propósito. Porém, na semana seguinte, um dos mecanismos usados pelas instituições da
mídia, a pesquisa de opinião, denunciava o maior índice de popularidade presidencial
dos últimos vinte anos: 84% das pessoas atestam seu governo como ótimo. Esse é um
exemplo superficial da apropriação das mensagens da mídia e de seu intento ideológico.
Entretanto, o episódio contribui também para uma reflexão sobre as advertências
propostas por Thompson.
Ainda sobre esse ponto, o autor enfatiza que o exame do caráter ideológico dos
produtos da dia deve passar, sempre, pela análise do conteúdo e da estrutura das
mensagens da mídia em relação aos referenciais da interação e as circunstâncias que
compõem as relações sociais. E mais, reitera que os produtos da mídia, bem como todas
43
as formas simbólicas, não possuem caráter ideológico em si, pois se caracterizam
como ideológicos somente quando servem para estabelecer e sustentar relações de
dominação em circunstâncias sócio-históricas específicas.
Kellner (2001, p.81) em clara sintonia com as concepções de Thompson,
lembra-nos que a cultura da mídia e os discursos políticos auxiliam a fixar e manter a
hegemonia de determinados grupos e projetos políticos, produzindo representações...
[...] que tentam induzir anuência a certas posições políticas,
levando os membros da sociedade a ver em certas ideologias “o modo
como as coisas são” (ou seja, governo demais é ruim, redução da
regulação governamental e mercado livre são coisas boas, a proteção do
país exige intensa militarização e uma política externa agressiva, etc.).
Os textos culturais populares naturalizam essas posições e, assim,
ajudam a mobilizar o consentimento às posições políticas hegemônicas.
[...] os textos da cultura da mídia reproduzem ideologias políticas
existentes nas lutas políticas atuais, como quando filmes ou a música
popular expressam posições conservadoras ou liberais, enquanto outros
expressam posições radicais.
Essas colocações nos remetem à importância da análise de imagens, mitos, mbolos,
sistemas de crenças e narrativas para uma elaborada crítica da ideologia. Acrescentaria
que essas análises, no intuito de fazer uma crítica da ideologia, não devem deixar de
levar em consideração o que é proposto por Thompson: a inclusão dos contextos sócio-
históricos específicos.
1.4- A FORMAÇÃO DE IDENTIDADES.
Pudemos perceber, até aqui, a importância do caráter cultural e ideológico em
traduções no complexo processo do fazer tradutório - incluindo produção, circulação e
recepção - e suas manifestações. Como processo extremamente imbricado numa teia de
significações e representações, o ato tradutório, exercido pelo tradutor, implica a
absorção de culturas e ideologias que se transformam dialeticamente em uma contínua
rede de significados e representações gerando identificações. Nesse complexo, contínuo
e dialético processo gerador de identificações podemos atentar para uma prática cultural
carregada de formas simbólicas e discursos que, de certa forma, servem às relações de
dominação no estabelecimento e manutenção de estruturas de poder assimétricas.
Atualmente, vivemos no mundo globalizado onde as informações, as
mercadorias, as culturas e identidades, mediadas pelos meios de comunicação de massa,
44
são expostas de forma tão rápida e com tantas intenções, de formas tão variadas e
difusas, que alguns e tantos indivíduos podem se sentir angustiados e perdidos em busca
de si mesmos e de identificações. Podemos dizer que não nos constituímos de uma
noção única de “eu”, mas de uma pluralidade de “eus” influenciados por culturas,
ideologias e identificações com os outros.
É nesse sentido que Mathews (2002, p.47), seguindo Giddens, define identidade
como “o perene sentido que o eu tem de quem é, na medida em que está condicionado
devido as suas contínuas interações com outras pessoas. Identidade é como o eu se
concebe e se rotula.” Destaca a existência de identidades pessoais e coletivas que se
produzem em circunstâncias específicas na busca por identificações. As identidades
pessoais se definem no sentido que as pessoas têm de si mesmas, como indivíduos
únicos, enquanto, as identidades coletivas, no que as pessoas sentem quem são e no que
têm em comum com as outras. O autor completa que em muitas sociedades a ênfase ao
“seja você mesmo”, ao achar-se a si mesmo”, incita a uma busca por uma verdadeira
identidade. Tal incitação pode parecer no mínimo irresponsável, dados os papéis sociais
e identidades coletivas que as pessoas mantêm ou são obrigadas a manter no mundo
moderno e globalizado.
Podemos afirmar que a discussão acerca das identidades na atual conjuntura
mundial globalizante passa essencialmente pelo entendimento do sujeito pós-moderno.
Stuart Hall (1992, p. 10-13) esclarece que o sujeito, aqui, não é mais concebido como
um sujeito centrado, único, dotado das capacidades da razão, de consciência e de ação,
voltado para um núcleo interior que brota desde nascimento até a morte do indivíduo.
Outra concepção, lembrada pelo autor, sinala para a interação do sujeito, centrado e
estável, com outros sujeitos, em que o núcleo interior do sujeito não é autônomo e auto-
suficiente e a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. Essas são,
respectivamente, as concepções iluminista e sociológica clássica de identidade. Para o
autor, não podemos mais pensar que o indivíduo constrói identidades estáveis e fixas,
pois esse mesmo sujeito está se tornando fragmentado, posto que não é composto por
uma única identidade, mas por várias. Hall ( 1992, p.13) coloca que:
“A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados e interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam
(Hall, 1987). É definida historicamente e não biologicamente. [...] A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
45
fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,
com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos
temporariamente.”
O autor ressalta também o papel fundamental da globalização como processo de
mudanças na modernidade tardia, ou pós-modernidade. A velocidade das mudanças, a
sensação de que o mundo encurtou as distâncias espaço-temporais e as diferenças
ocasionadas no seio das sociedades e instituições caracterizam a modernidade tardia e
produzem uma variedade de diferentes identidades. A mobilidade das informações e dos
conceitos, das práticas sociais e políticas nos confrontam a todo instante com as mais
diferentes manifestações de nós mesmos em relação aos outros e, mais, com a nossa
vida cotidiana. Não obstante, nos inserimos no mundo em meio a manifestações
culturais, políticas, mercadológicas e simbólicas que regulam e são reguladas pelas
nossas práticas sociais. Nesse sentido, as identidades se representam e se constroem
num processo contínuo de identificações ao qual, como sujeitos interpelados, estamos
sempre convivendo com diferentes identidades, construindo novas identificações e nos
identificando na diferença. É assim, no processo complexo e imbricado das
identificações e na velocidade das modificações das práticas sociais na esfera
globalizada que construímos identificações levando em conta as diferenças nas suas
mais distintas manifestações.
As identificações se alinham às representações feitas na nossa maneira de ver o
mundo e nas relações constituídas nas práticas sociais produzindo novas formas de
construir e estabelecer identidades culturais. O processo de globalização no mundo
afetou e afeta as identidades culturais locais no sentido de romper com a idéia de nação
como uma identidade cultural unificada. Assim as identidades nacionais, antes vistas
como únicas nos seus discursos representativos, passam a ser consideradas como plurais
e deslocadas. Contudo, Hall (1992, p.65) adverte que:
As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas
de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e
contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim,
quando vamos discutir se as identidades nacionais estão sendo
deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas
nacionais contribuem para “costurar” as diferenças numa única
identidade.
46
Nesse contexto, reflete sobre as possíveis implicações e conseqüências da
globalização sobre as identidades culturais gerando modificações nas formas como as
identidades nacionais são representadas no mundo globalizado. Hall (1992, p.69)
elabora três possíveis conseqüências:
As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do
crescimento da homogeneização cultural e do “pós-moderno
global”.
As identidades nacionais e outras identidades locais ou
particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à
globalização.
As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades
– híbridas – estão tomando seu lugar
Como podemos perceber, as identidades culturais se confrontam a todo instante
com diversas possibilidades e manifestações produzidas por uma complexa teia de
significações e representações que derivam da mais ampla movimentação, leia-se
deslocamento cultural. Deparamos-nos com identidades culturais diferentes, deslocadas
de seu habitat natural, e produzimos novas representações culturais e identidades numa
relação de reconhecimento e pertencimento ao que podemos considerar nossas novas
identidades híbridas. Entretanto, nessa relação uma contradição, exposta por Hall
(1992, p.87), pois ao mesmo tempo em que as identidades se tornam mais políticas,
mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas e trans-históricas, não se deixam de
levar em consideração “velhas” representações tradicionais, ou seja, a tradição de um
povo, suas manifestações e representações históricas vivenciadas e, por vezes, criadas
ao longo das gerações. Na verdade, deparamo-nos com uma pluralidade de possíveis
identidades que se fazem na representação das diferenças, das mais diferentes e
deslocadas identidades culturais e de suas representações tradicionais, nacionais e
locais.
As tradições mantidas e reforçadas pelas culturas nacionais e locais no mundo
globalizado reforçam a idéia de uma identidade nacional unificada na qual os indivíduos
podem se sentir mais confortáveis e seguros em suas próprias representações. O passado
de um povo, sua construção e representação histórica, ressaltam e reforçam
comportamentos tradicionais que giram em torno de novas representações e de novas
identidades. Contudo, identidades híbridas se formam e se constroem, também, à luz de
novas representações culturais advindas de todas as partes do mundo, num vai-e-vem de
significados e representações, num contínuo e dialético processo de identificações onde
47
passado e presente co-existem e se fazem representar. É nesse sentido que Homi Bhabha
(1998, p.27) explica:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o
novo” que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele
cria uma idéia de novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa
arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente
estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um “entre-lugar”
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-
presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.
Deparamo-nos, então, com a existência de um “entre-lugar” onde as identidades
se configuram e se representam em novas formas de “se ver a si mesmo” e de viver.
Essa idéia recoloca e requalifica as identidades culturais em novas possibilidades
representativas do eu e suas manifestações. O movimento de globalização, no mundo
inteiro, torna evidente uma oscilação entre Tradição e Tradução. Nessa oscilação,
percebe-se a existência de movimentos ortodoxos e fundamentalistas que reafirmam
raízes culturais, sendo fonte de contra-identificações em culturas nacionais pós-
coloniais, e que buscam, nas tradições, elementos significativos numa tentativa de
romper ou defender uma unidade identitária. Ao passo que as identidades traduzidas
representam a formação de identidades que ultrapassam as fronteiras naturais, carregam
em si seus vínculos nacionais e suas tradições, mas são obrigadas a lidar com culturas
outras, a negociar sua existência com novas formas identitárias, fazendo uma nova
representação e uma nova identidade. A esse respeito Hall (1992, p.89) observa que:
Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das
linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A
diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido,
porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e
culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias
“casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas
culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição
de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de
absolutismo étnico. Elas são irrevogavelmente traduzidas.
Ainda a esse respeito, o autor evidencia que com o surgimento de novas formas de
poder estabelecidas com a globalização, os Estados-nação são reorientados para uma
nova forma de representação marcada por sistemas transnacionais e que tais sistemas
são subordinados às operações sistêmicas globais mais amplas. Em seu livro “Da
diáspora: identidades e mediações culturais”, Hall (2003, p.35-36) clarifica essas
relações sistêmicas da seguinte forma:
48
O surgimento das formações supra-nacionais, tais como a União
Européia, é testemunha de uma erosão progressiva da soberania
nacional. A posição indubitavelmente hegemônica dos Estados Unidos
nesse sistema está relacionada não a seu status de Estado-nação, mas a
seu papel e ambições globais neo-imperiais.
Portanto, é importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura
como uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para
a nação. Como outros processos globalizantes, a globalização cultural é
desterritorializante em seus efeitos.[...] As culturas, é claro, têm seu
“local”. Porém, não é tão mais fácil dizer de onde elas se originam.
Nesse contexto globalizado que se pensar em identidades misturadas e
entrelaçadas numa teia significativa na qual as identificações podem se representar na
diferença das múltiplas e plurais culturas do mundo. As culturas híbridas, subvertendo
e recriando culturas tradicionais, aliando presente e passado numa perspectiva de um
futuro imprevisível, “constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente
novos produzidos na era da modernidade tardia.” (HALL, 1992, p. 89)
Homi Bhabha (1998, p. 301) explica que as identidades formadas no contexto
das diferenças, assim como as culturas híbridas, se realizam em um entre-meio”, onde
passado e presente se fundem na perspectiva de um futuro intersticial “que emerge no
entre-meio entre as exigências do passado e as necessidades do presente.” Significa
dizer que as culturas híbridas e suas representações são ponderadas temporal e
espacialmente e que as relações entre presente, passado e um possível futuro, num jogo
de identificações complexo, geram novas formas representativas, novas identidades.
Dessa forma, podemos inferir que as manifestações culturais produzidas pelas
grandes empresas midiáticas ajudam nesse movimento global mundial
desterritorializando identidades, transformando-as ou traduzindo-as nas mais diferentes
formas identitárias. Aliado a esse deslocamento de identidades, as grandes empresas da
mídia também colocam, ao dispor das populações, manifestações culturais nacionais, o
passado histórico das nações, evidenciando a tentativa de unificar todos em uma
representação identitária. Porém, tais manifestações não são garantia de uma resposta
favorável ou negativa a qualquer tipo de manipulação ou estabelecimento de uma
identidade única, indivisível e fixa, pois as identificações com outras culturas e/ou
manifestações culturais ocorrem com tamanha velocidade e freqüência que ultrapassam
facilmente as fronteiras nacionais naturais. A tecnologização da informação, da mídia,
49
auxilia e é decisiva nessa expansão, criando janelas virtuais que desafiam tempo e
espaço a todo o momento. A esse respeito Hall (1992, p.96) arremata afirmando que:
O ressurgimento do nacionalismo e de outras formas de
particularismo no final do século XX, ao lado da globalização e a ela
intimamente ligado, constitui, obviamente, uma reversão notável, uma
virada bastante inesperada dos acontecimentos. Nada nas perspectivas
iluministas modernizantes ou nas ideologias do Ocidente nem o
liberalismo nem, na verdade, o marxismo, que, apesar de toda sua
oposição ao liberalismo, também viu o capitalismo como agente
involuntário da “modernidade” previa um tal resultado.
As afirmações do citado autor podem ser comprovadas ao vermos, no cinema ou
na televisão, narrativas históricas nacionais que dão conta do passado heróico de um
determinado povo ou nação. Cada vez mais a indústria do cinema e a indústria da
televisão investem em produtos que ressaltam narrativas e discursos nacionalizantes,
mostrando antigas conquistas coloniais e seus heróis nacionais como parte integrante de
uma identidade nacional a qual todos não devem esquecer, e mais ainda, devem imitar.
Em várias produções da indústria de Hollywood, documentários da BBC inglesa ou de
telefilmes do Canal Plus francês, entre outros conglomerados mediáticos no mundo, são
celebradas as audiências e bilheterias espetaculares, milionárias, quando refazem ou
adaptam filmes e cânones literários que denotam os feitos das nações em épocas
passadas. Nesse retorno ao passado, numa necessidade de identificação com o presente,
as identidades nacionais produzem e representam novas manifestações nacionais, novas
identidades culturais, que buscam no pertencimento nacional novas identificações.
Denota-se um movimento que reforça o nacionalismo em detrimento de novas
identificações, de representações globalizantes desterritorializadas.
Tal movimento, complexo e ambíguo, vai ao encontro da concepção de Bauman
(2005, p. 35-37) que revela a busca dos indivíduos, nessa época líquido-moderna, por
segurança em suas vidas cotidianas, pois estar em posição de “nem-um-nem-outro” gera
desconforto e, em muitas das vezes, ansiedade. Em contraponto, “uma posição fixa
dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva atraente.” Os
indivíduos se encontram em meio a um dilema existencial no qual adequar-se às mais
variadas possibilidades ou estar-se preso a uma perspectiva fixa não é garantia de
satisfação. Nesse sentido, o referido autor fala da crescente demanda por “comunidades
guarda-roupa”, nas quais os indivíduos se comportam como se estivessem em um teatro,
50
identificando-se com representações passageiras e deixando-as de lado conforme a
conveniência do dia-a-dia, pois as “comunidades guarda-roupa são reunidas enquanto
dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham seus
casacos nos cabides.” Contudo, essa facilidade em trocar, capturar e desfazer-se de
identidades diferentes e descartáveis, a multiplicidade de identidades e a facilidade de
rompimento e de desengajamento, geram, ainda, incertezas e riscos, que continuam os
mesmos, e são, apenas, distribuídos “juntos com a ansiedade que exalam, de modo
diferente.” (BAUMAN, 2005, p. 38).
Além de fazer analogias à metáfora das comunidades guarda-roupa para explicar
a multiplicidade das escolhas e a provisoriedade das mesmas, o autor sugere que, nesses
tempos quidos modernos, os indivíduos, assoberbados pelas responsabilidades e pelas
diversas representações as quais estão expostos, como num supermercado, buscam se
resguardar de algum tipo de exclusão. Homens e mulheres buscam na identificação o
engajamento, mesmo que provisório, na tentativa de escapar de qualquer tipo de
exclusão. O pavor de se sentirem excluídos da esfera da comunidade, mesmo que
formada por instantes, acompanha os indivíduos em suas escolhas. Nessa busca
desesperadora, homens e mulheres agarram qualquer identificação que lhes afaste o
terror do abandono. Bauman (2005, p. 53-54) esclarece tal comportamento tecendo as
seguintes considerações:
Não surpreende que para muitas pessoas a promessa
fundamentalista de “renascer” num novo lar cordial e seguro, do tipo
familiar, seja uma tentação à qual é difícil resistir. Poderiam ter
preferido outra coisa à terapia fundamentalista uma espécie de
segurança que não exija apagar sua identidade e abdicar de sua
liberdade de escolha –, mas essa segurança não está disponível. O
“patriotismo constitucional” não é uma opção realista, ao passo que
uma comunidade fundamentalista parece sedutoramente simples. É
assim que eles vão imergir prontamente nesse calor, mesmo com a
expectativa de depois terem de pagar por esse prazer. Afinal, não foram
criados numa sociedade de cartões de crédito que elimina a distância
entre a espera e o desejo?
As multidões espalhadas pelo mundo inteiro vivem essa mesma experiência
angustiante da identificação, do medo da exclusão e da procura por segurança em
identidades criadas nas circunstâncias globais, nas criações mercadológicas, nas
instituições supra-nacionais, nas representações dos conglomerados midiáticos e assim
por diante. No nosso mundo individualizado e competitivo, nesses tempos líquido-
modernos, estamos sempre à busca de algo que nos conforte e nos apraza, mesmo que
51
na rapidez da escolhas feitas atentemos para o fato de que estamos sempre insatisfeitos.
A dia em geral nos fornece material bruto vasto para nos conformarmos com a nossa
insatisfação, para inteligirmos menos face às circunstâncias dadas e para esquecermos
as mesmas circunstâncias tão rápido quanto às apreendemos. Ao que tudo indica, a
busca pela auto-identificação parece ser o ultimato dado as escolhas que temos que
fazer, porém sem nenhuma garantia de sucesso. Para ilustrar essa parte de nossos
questionamentos, que está longe de fornecer respostas conclusivas, posto que o debate
está em cada um de nós, Bauman (2005, p.105) enseja que:
Se você deseja que eu ate os muitos fios que começamos a
tecer, mas na maioria dos casos deixamos soltos, eu diria que a
ambivalência que a maioria de nós experimenta a maior parte do tempo
ao tentarmos responder à questão da nossa identidade é genuína. A
confusão que isso causa em nossas mentes também é genuína. Não
receita infalível para resolver os problemas a que essa confusão nos
conduz, e não há consertos rápidos nem formas livres de risco para lidar
com tudo isso. Também diria que, apesar de tudo, teremos de nos
confrontar vezes sem conta com a tarefa da “auto-identificação”, a qual
tem pouco chance de ser concluída com sucesso e de modo plenamente
satisfatório. É provável que fiquemos divididos entre o desejo de uma
identidade de nosso gosto e a escolha e o temos de que, uma vez
assumida essa identidade, possamos descobrir, como fez Peer Gynt, que
não existe uma “ponte, se você tiver de bater em retirada”.
A formação de identidades estabelecidas nas práticas sociais e nas relações
sociais responde ao afã das pessoas na busca de aceitação e não exclusão criadas nas
circunstâncias dadas mundialmente. Ao nos depararmos com a realidade
representacional do cotidiano, escolhemos nos identificar com o que nos parece mais
“justo” ou “correto” diante das nossas relações interpessoais. Logo, nossas escolhas
parecem ser as mais acertadas naquele determinado momento. Poder-se-ia dizer que
estamos a todo instante situados em um grande supermercado de valores, crenças e
identidades que podem ser adquiridos sem maiores constrangimentos, nos abastecendo e
nos carregando de culturas e identificações, recriando, assim, sistemas outros de
identificação. Se nos recriamos em novas identificações, postas nos supermercados
culturais globais, estabelecemos uma relação dialética e contínua com outras
identidades culturais que ultrapassam os limites fronteiriços e nos inserem em novos
mundos que passam a ser nossos também. Como vimos anteriormente, os grandes
conglomerados midiáticos são, em grande parte, responsáveis pela pulverização de
novas culturas e identidades distintas de forma pida e sistemática. Seja pela internet,
pelo cinema ou televisão, seja pela mídia impressa, abastecemo-nos das mais variadas
52
culturas e identidades, adquirindo-as ou descartando-as tão rapidamente que parece, até,
ser instintivo, mas essa é outra questão.
Como investigamos, nesse trabalho, questões ligadas ao processo tradutório,
mais especificamente ao processo de adaptação, é mister evidenciar que as produções de
adaptações recriam obras fonte, reescrevendo-as em consonância com o ambiente
semiótico escolhido, sejam eles filmes, telefilmes, jogos eletrônicos, pinturas etc. Nesse
ambiente semiótico distinto, a adaptação, processo tradutório intersemiótico, produz
novas representações culturais, novas identidades, e, assim, releituras estabelecidas
pelas e nas circunstâncias históricas e práticas sociais das comunidades, a depender das
especificidades postas nas esferas locais ou/e globais. Logo, podemos inferir que as
adaptações transformam e resignificam textos fonte produzindo novas identificações
prontas a serem consumidas pelos leitores, espectadores ou telespectadores que, por sua
vez, requalificam e reinscrevem novos significados. Venutti (2002) trabalha os
conceitos de domesticação e estrangeirização em suas análises de traduções de textos
estrangeiros como sendo parte de um processo escandaloso, logo negativo, em que as
traduções são vistas como suspeitas desde o momento da escolha do texto a ser
traduzido até sua produção, circulação e recepção. Para o autor, as traduções produzem
novas identidades culturais domésticas que diferem das da obra traduzida, produzindo
uma certa desconfiança. “A tradução com freqüência é vista como suspeita porque,
inevitavelmente, domestica textos estrangeiros, inscrevendo neles valores lingüísticos e
culturais inteligíveis para comunidades domésticas específicas.” (VENUTI, 2002, p.
129). Ao considerar a tradução como fonte de escândalos, estabelece um caráter sempre
negativo ao produto tradutório que, segundo o autor, produz “efeitos políticos e
culturais a depender dos diferentes contextos institucionais e posições sociais.” Venuti
(2002, p.131) coloca ainda que:
Ao mesmo tempo em que a tradução constrói uma
representação doméstica para um texto ou cultura estrangeiros, ela
também constrói um sujeito doméstico, uma posição de inteligibilidade
que também é uma posição ideológica, informada pelos códigos e
cânones, interesses e agendas de certos grupos domésticos. [...] A
escolha calculada de um texto estrangeiro e da estratégia tradutória pode
mudar ou consolidar cânones literários, paradigmas conceituais,
metodologias de pesquisa, técnicas clínicas e práticas comerciais na
cultura doméstica. Se os efeitos de uma tradução revelam-se
conservadores ou transgressores vai depender fundamentalmente das
estratégias discursivas desenvolvidas pelo tradutor, mas também de
vários fatores envolvidos na sua recepção [...]
53
O passado histórico reescrito para os dias de hoje insere elementos que ressaltam
aspectos do presente, como novas identidades e ideologias contemporâneas. Entendo
que não devo levar em conta se ou não aspectos negativos ou escandalosos na
adaptação ao utilizar-se de estratégias julgadas suspeitas pelo referido autor, mas que
tais estratégias fazem parte da recriação de um novo produto, que produz novas
identificações e novos parâmetros que ultrapassam qualquer natureza reducionista ou
negativista. Acredito que se considerarmos negativo ou escandaloso qualquer processo
tradutório ao estabelecer novas identidades culturais, estaremos qualificando-o
prematuramente, sem levar em conta que tal julgamento pressupõe uma ideologia que se
contrapõe àquela exposta no produto da adaptação, no nosso caso o telefilme. Como
vimos acima, a formação de identidades é parte de um processo ambíguo e complexo
que ultrapassa os limites do negativo e positivo. As adaptações são mais um elemento
nessa teia de representações e significados, cabendo aos analistas desvendarem os
caminhos pelos quais passaram os tradutores, ao invés de julgá-los. Pois, se hão de
haver fatores positivos ou negativos/escandalosos nas traduções, na formação de
identidades culturais, só o tempo, aliado às práticas sociais, será capaz de revelar.
54
2 – PONTO DE VISTA E IDEOLOGIA NA TELEVISÃO.
Nossas reflexões passam para um segundo estágio da pesquisa que visa entender
um pouco mais sobre o veículo utilizado para a produção, emissão e recepção do
produto telefilme, fruto de uma adaptação. Para tanto, vamos enveredar pelo mundo da
televisão, as estratégias utilizadas na produção de imagens, suas representações,
ideologias e os pontos de vista usados para promover as idéias e os ideais produzidos
nesse específico meio de comunicação de massa. Trataremos do mundo das
representações imagéticas que oferece ao meio televisivo, numa relação íntima com o
meio cinematográfico, uma infinidade de possibilidades artístico-culturais-ideológicas
no desenvolvimento e na comercialização de seus projetos.
2.1 – A TELEVISÃO
Nosso passeio pelo mundo televisivo nos leva a uma bifurcação conceitual sobre
a importância desse meio de comunicação de massa, sua influência no cotidiano das
pessoas e suas representações. Para muitos, a televisão é capaz de deturpar a “realidade”
a favor de seus interesses de poder. Manipuladora e sugestiva, a TV está sempre a
serviço de ideologias e culturas hegemônicas que desenvolvem projetos visando
homogeneizar culturas. Para tantos, essa idéia negativista mascara e descarta o papel
social da televisão e a ação/reação de consumidores ativos e conscientes de seus papéis
sociais, capazes de julgar, a favor ou contra, os produtos desse meio de comunicação de
massa. Contudo, ao positivarem em excesso os efeitos da TV, esquecem de conferir um
caráter crítico a suas análises. Como veremos por intermédio de autores como Eco
(1963), Thompson (1992), Wolton (1996), Bucci (2004), Machado (2005) e outros, faz-
se necessário o desenvolvimento de uma análise mais clara e crítica do papel
desempenhado pela televisão na centralidade da vida moderna. Nessas análises não deve
faltar, aos olhos do analista, uma percepção mais apurada dos fatos e, sobretudo, dos
contextos específicos nos quais se desenvolvem as mensagens instituídas pela mídia.
Em nenhum momento deve-se deixar de levar em conta o papel central que a mídia
eletrônica, no caso a TV, exerce nas vidas e no cotidiano dos indivíduos. Atualmente,
poucos são os excluídos do acesso à TV, de sua programação e de seus efeitos, gerando
uma massa de consumidores ávidos por informação, cultura e identificações. Nos
lugares mais isolados da esfera global, encontraremos sempre um aparelho de TV
ligado, levando seus indivíduos ao resto do mundo, mesmo onde não há rede de energia
55
elétrica, haverá um aparelho, a bateria, ligado. Podemos afirmar que tratamos de uma
mídia extremamente poderosa e com um alcance jamais experimentado por outras
mídias. Nesse sentido, é mister dar-lhe devida importância e acuidade nas análises,
como atesta Machado (2005, p.12):
Na minha opinião, a televisão é o que nós fizermos dela. Nem
ela, nem qualquer outro meio, estão predestinados a ser qualquer coisa
fixa. Ao decidir o que vamos ver ou fazer na televisão, ao eleger
experiências que vão merecer nossa atenção e o nosso esforço de
interpretação, ao discutir, apoiar ou rejeitar determinadas políticas de
comunicação, estamos, na verdade, contribuindo para a construção de
um conceito e uma prática de televisão. O que esse meio é ou deixa de
ser não é, portanto, uma questão indiferente às nossas atitudes com
relação a ele. Nesse sentido, muitos discursos sobre televisão às vezes
me parecem um tanto estacionários ou conformistas, pois negligenciam
o potencial transformador que está implícito nas posturas que nós
assumimos com relação a ela; e “nós”, aqui, abrange todos os
envolvidos no processo: produtores, consumidores, críticos, formadores,
etc.
As colocações feitas pelo citado autor nos insere num debate travado por
Umberto Eco (2004) em seu livro Apocalípticos e integrados, coletânea de ensaios
produzidos na década de sessenta, em que Eco evidencia posições divergentes em
relação ao meio televisivo e suas implicações no mundo. Como o próprio nome se
auto-define e se conceitua, os apocalípticos expressam uma concepção extremamente
negativa dos produtos televisivos e seus efeitos, e deixam de lado como tais produtos
são consumidos e produzidos. Contrariamente, os integrados mascaram os produtos
televisivos e seus efeitos ideológicos, deixando para trás qualquer concepção crítica,
como veremos mais adiante, daí a importância do papel dos apocalípticos em denunciar
a excessiva positividade ideológica dos integrados. Essa batalha teórica é bastante
reveladora e de extrema importância para a tomada de posição no âmbito dos meios de
comunicação de massa. A principal crítica aos apocalípticos denota a limitação de suas
proposições, Eco (2004, p.19) afirma:
O que, ao contrário, se censura ao apocalíptico é o fato de
jamais tentar, realmente, um estudo concreto dos produtos e das
maneiras pelas quais são eles, na verdade, consumidos. O apocalíptico
não reduz os consumidores àquele fetiche indiferenciado que é o
homem-massa, mas enquanto o acusa de reduzir todo produto
artístico, até o mais válido, a puro fetiche reduz, ele próprio, a fetiche
o produto de massa. E, ao invés de analisá-lo, caso por caso, para fazer
dele emergirem as características estruturais, nega-o em bloco. Quando
o analista trai então uma estranha propensão emotiva e manifesta um
irresoluto complexo de amor-ódio fazendo nascer a suspeita de que a
primeira e mais ilustre vítima do produto de massa seja, justamente, o
seu crítico virtuoso.
56
Eco faz uma crítica aos críticos que deixaram de lado uma visão política da
cultura de massa em detrimento de uma concepção estético-aristocrática da cultura de
massa. Aos analistas apocalípticos, o autor lembra que o homem não é mais o mesmo
homem de outrora, ou aquele homem que querem idealizar, detentor de discernimento,
potentor de uma cultura refinada em detrimento de um homem inserido numa cultura de
massa, pois acabamos por estarmos todos no mesmo mundo, distantes espacialmente e
temporalmente, mas no mesmo mundo mediado pelos meios de comunicação de massa.
Tais críticos, e o referido autor evidencia Mcdonald, elegem uma estética de produto
cultural posicionada em três níveis: Alto, médio e baixo
5
. Ao estabelecerem tal posição
estética dos produtos culturais, desfavorecem os produtos televisivos em relação aos
cânones literários e suas aristocráticas e contemplativas estéticas. Logo, o acesso aos
produtos estéticos de alta complexidade não deveriam estar sendo reescritos e
reelaborados para os meios de comunicação de massa ou, no mínimo, deveriam passar
por uma análise rigorosa de suas produções. Assim, Eco (2004, p.38) questiona esses
críticos e suas tomadas de posição nas quais...
[...] nasce a suspeita de que o crítico constantemente se inspire num
modelo humano que, mesmo sem ele o saber, é classista: o modelo de
um fidalgo renascentista, culto e meditativo a quem uma condição
econômica permite cultivar com amorosa atenção, suas experiências
interiores, preservando-as de fáceis comistões e garantido-lhes,
ciosamente, a absoluta originalidade. Mas o homem de uma civilização
de massa não é mais esse homem. Melhor ou pior, é outro, e outros
deverão ser os seus caminhos de formação e salvação.
O autor ressalta a importância de conceber algumas das problemáticas propostas
levando em consideração os aspectos industriais de uma cultura de massa, na qual os
elementos por ela produzidos obedecem às leis da oferta e procura, leis regidas
estabelecidas por grupos de poder econômico que ditam e obedecem a um complexo
jogo de mercado. Como o próprio Eco (2004, p.49) esclarece alertando para o fato de
que os produtos, sob o ponto de vista mercadológico, devem agradar ao cliente e não
serem objetos de problemas advindos de seu consumo, pois o “freguês” precisa desejar
o produto e ser persuadido ao consumo dos mesmos de forma a criar um recâmbio
progressivo, isto é, o consumidor sempre consumimais e mais o produto quanto mais
for induzido à compra do mesmo produto – o produto deve se requalificar e satisfazer as
necessidades das pessoas num processo contínuo. Logo, segundo o autor, “as
5
high, midle e lowbrow
57
características aculturais desses produtos, e a inevitável relação de persuasor para
persuadido”. Ao enfatizar essa relação paternalista entre produtor e consumidor, base de
qualquer atividade industrial, distingue apocalípticos e integrados e critica ambos em
suas especificidades. E, assim, Eco (2004, p.49) expõe os erros de ambos:
O erro dos apologistas é afirmar que a multiplicidade dos
produtos da indústria seja boa em si, segundo um ideal homeostase de
livre mercado, e não deva submeter-se a uma crítica e a novas
orientações.
O erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar que a cultura de
massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que
hoje se possa ministrar uma cultura subtraída ao condicionamento
industrial.
Diferentemente dos críticos que se posicionam a favor ou contra uma cultura de
massa influenciada pelas leis de mercado, pelos apelos construídos numa relação
industrial, o citado autor acredita que a questão não passa pelo maniqueísmo conceitual,
pois em ambas as concepções existem indagações válidas e consistentes. Porém, o
objeto de debate deve contemplar “o como” devemos agir em face de tais problemas na
busca de uma cultura de massa que contemple as necessidades e anseios das pessoas e
do mercado anseios e necessidades que nascem numa relação dialética, não
paternalista. Diante disso, Eco (2004, p. 50-51) destaca que o problema da cultura de
massa reside na manipulação exercida pelos grandes grupos econômicos interessados
somente nos lucros e não em possíveis perdas financeiras, e no interesse de “executores
especializados” em oferecer produtos que vendam sempre mais. Isso tudo acontece sem
a intervenção de homens de cultura na produção. Esses homens de cultura atuariam
como negociadores de uma ação política na cultura de massa intervindo na sua
produção, e, assim, formar-se-ia uma rede integrada crítica sobre a produção de
produtos culturais de massa. O que se pretende é uma maior fiscalização nos meios de
comunicação de massa e suas “obras” e, dessa forma, gerenciar criticamente os
produtos. Aos que são contrários a essa idéia, o autor prefere uma atitude crítica,
mesmo que individual, ao silêncio conformista e cúmplice, pois, para ele, a comunidade
dos homens de cultura ainda constitui um grupo de pressão. Eco (2004, p.54) reforça
sua análise:
A intervenção crítica pode, antes de mais nada, levar à correção
da convicção implícita de que a cultura de massa seja a produção cibo
cultural para as massas (entendidas como subcidadãos) , realizada por
uma elite de produtores. Pode repropor o tema de uma cultura de massa
como “uma cultura exercida por todos os cidadãos”. Embora isso não
signifique que cultura de massa seja cultura produzida pelas massas;
58
não forma de criação “coletiva” que não seja medida por
personalidades mais dotadas, feitas intérpretes de uma sensibilidade da
comunidade onde vivem. Logo, não se exclui a presença de um grupo
culto de produtores e de uma massa de fruidores; que a relação, de
paternalista, passa a dialética: uns interpretam as exigências as
instâncias dos outros.
Os questionamentos propostos por Eco vão ao encontro das análises feitas por
certos teóricos que analisam os meios de comunicação de massa, em específico a
televisão. Podemos começar identificando o papel da televisão nos dias de hoje ao
começarmos uma nova era, a digital. Muitos vêem nos discursos proferidos pelos canais
de emissão de programação perigos políticos que lhes são inerentes no que tange o uso
ordinário da televisão. Os programas de televisão, desde seus talkshows, telefilmes,
telenovelas, telejornalismo e etc., possuem a capacidade de produzir efeitos muito
próximos do real, reproduzindo esse real e se utilizando dele para fazer ver e fazer crer
no que se faz ver .
Bourdieu (1997, p.28) argumenta que o uso ordinário da TV pode desencadear
sentimentos fortes e que seu modo de relatar os acontecimentos, incidentes, acidentes e
variedades produzem efeitos, por vezes, negativos. Como exemplo, as mobilizações (ou
desmobilizações) sociais implicadas dessa construção social da realidade. Para
Bourdieu, a televisão deveria ser um instrumento de registro, mas torna-se um
instrumento de criação da realidade, intervindo na existência social e política. Nesse
sentido, construtora de um espaço real, a televisão se pretende dona de uma verdade que
reflete e espelha práticas sociais e práticas discursivas próprias de um discurso
aprisionado e não autônomo ligados sejam ao poder econômico, sejam ao poder político
em vigência. Significa dizer que o discurso televisivo está intimamente relacionado a
práticas sociais visando interesses comuns a grupos sociais em conformidade com as
estruturas sociais postas e impostas pelos mesmos. Bourdieu (1997, p.54) afirma a esse
respeito que a televisão...
[...] é um universo em que se tem a impressão de que os agentes sociais,
tendo as aparências da importância, da liberdade, da autonomia, e
mesmo por vezes uma aura extraordinária (basta ler os jornais de
televisão), são marionetes de uma necessidade que é preciso descrever,
de uma estrutura que é preciso tornar manifesta e trazer à luz.
Arlindo Machado (2005) nos faz questionar o efeito do discurso televiso de
forma a compreendermos que nem tudo que é produzido pela televisão é ruim ou bom.
Longe dessa discussão maniqueísta, referenda suas análises em questões técnicas, de
59
produção e de recepção. Para Machado, muito se tem que discutir e refletir sobre o
papel da televisão no mundo, e para isso nos faz lembrar nosso papel como sujeitos
sociais ativos e responsáveis pelos nossos atos e produtos. Como foi colocado
anteriormente, “a televisão é e será aquilo que nós fizermos dela. Nem ela, nem
qualquer outro meio, estão predestinados a ser qualquer coisa fixa.” (MACHADO,
2005, p.12). Posicionando-se a favor do sujeito criador e assim responsável por suas
ações, levanta um questionamento crucial na produção de discursos televisivos, a do
sujeito emancipador e socialmente transformador, sujeito interpelado, contrapondo-se à
definição de assujeitamento de Althusser, e assim responsabilizando todos que
participam do processo discursivo: produtores, consumidores, críticos, formadores e etc.
Aponta ainda que muitos dos discursos sobre televisão dão conta de uma visão
conformista e um tanto estacionária, negligenciando seu “potencial transformador que
está implícito nas posturas que nós assumimos com relação a ela.” (ibidem).
Dominique Wolton (1996), ao analisar a televisão como meio de comunicação
de massa com ampla penetração social, desenvolve uma linha de raciocínio que
corrobora com os postulados defendidos por Machado. Para ele a televisão padece de
uma interpretação conciliadora por parte de vários teóricos, por vezes, definindo
somente do ponto de vista da ideologia técnica e por vezes do ponto de vista da
ideologia política. Compreende que ambas possuem particularidades, onde o técnico
privilegia uma lógica voltada para o discurso modernista da sociedade, para a
velocidade das informações e para um certo deslumbramento da informação. Portanto, é
um tanto perigoso interpretar a sociedade e as relações sociais a partir do discurso
determinista da adaptação. O político, entretanto, estaria mais voltado para uma reflexão
da atuação da televisão como meio de comunicação de massa, revelando aí que o
determinismo técnico deve estar de acordo com uma orientação política de
desenvolvimento social vinculado a uma “utilidade social”. Nesse sentido, ambas estão
ligadas de forma paradoxal, pois, para Wolton (1996, p.87)
[...] A ideologia tecnicista impõe uma representação das
relações sociais, isto é, ela extrapola, a partir de um certo número de
serviços oferecidos, uma reorganização das relações sociais, ou seja, das
relações de poder. O mecanismo é idêntico, mas inverso, na ideologia
política: partimos de um projeto social que o faz senão “utilizar” as
possibilidades de um estoque de técnicas, mesmo que percebamos logo
que a colocação em uso desse projeto depende das possibilidades
técnicas!
60
Wolton (1996, p.125) também critica uma possível passividade do telespectador,
de um possível sujeito assujeitado, ao receber as mensagens televisivas, pois para ele o
grande público, como denomina aqueles que interagem com a televisão, recebe e
concebe as mensagens de formas diferentes, contrariando assim o caráter massificador e
estandardista da televisão, tão defendido por uma sociedade de massa onde tudo se
estandardiza (economia de massa , urbanização, saúde, educação, situações de trabalho).
Outra crítica feita, refere-se a um poder maior destinado à televisão, investindo-a assim
de um poder muito acima de sua capacidade e ignorando a capacidade de discernimento
dos sujeitos atendidos/atingidos pelas mensagens. Argumenta ainda que:
O problema e voltamos ao status do grande público numa
sociedade e ao papel que nela desempenha a televisão – continua a ser o
de descobrir até que ponto se deve fracionar esse grande público e a
partir de que ponto esse fracionamento pode se tornar um fator de
desigualdade social e cultural. (WOLTON, 1996, p.126)
A exemplo, as pesquisas de opinião pública sempre deixam a desejar quando
tratam de uma sondagem de comportamentos sociais, como índices eleitorais, opiniões
sobre personagens de telenovelas, ou como pensam os espectadores face à questões
como homossexualismo na tv, corrupção ou ainda personagens de telenovelas
“corruptos” aclamados. Nem sempre o “esperado” se confirma e, assim, despertam-se
várias conjecturas complexas em relação à televisão que vão para além de seu poder
massificador. Dessa forma, existe um poder de individualização do sujeito, que o leva a
uma maior participação e colaboração com o aparato televisivo. Ainda em Wolton,
encontra-se uma reflexão sobre o poder da individualização como “incontestavelmente,
um poder de emancipação, mas cujo ponto de “não-retorno” é o risco de segmentação”.
Nesse sentido, o autor classifica a televisão como sendo um meio democrático e ao
mesmo tempo segmentado, fracionado para atingir diferentes gostos individuais e
pequenas comunidades num mundo cada vez mais dividido, no que classifica de “massa
folhada social”.
Quando tratamos do aspecto de um super-poder em moldar as relações e práticas
sociais nas sociedades, poder atribuído à televisão por alguns críticos, é importante
destacar que esse mesmo poder, incontestavelmente válido, não pode ser considerado
como uma verdade única, poder inalienável e sem investidas da própria sociedade. A
televisão, como importante e poderoso meio de comunicação de massa, é, antes de tudo,
61
reflexo, releituras e recriação das nossas próprias necessidades de identificação e de
nossa cultura. Nesse caminho, Bucci (2004, p.24) atenta para o fato de que a televisão
não cria processos, pois “aquilo que o telespectador na tela emerge não apenas da
tela em si, mas também de algo que ele, telespectador, estava demandando antes.”
Apesar desse reconhecimento do poder do telespectador, o autor acredita que a tela de
tv inscreve uma realidade através do olhar do telespectador, sujeito interpelado pelo
olhar, fazendo com que a TV seja um lugar em si, lugar próprio, ou um não-lugar.
Nesse sentido, em um tempo - sem passado ou futuro - e em um espaço próprio, o que é
veiculado pela TV tem poder de verdade totalizante, numa acepção videológica ou
ideológica de si mesma. Bucci (2004, p. 34-35) afirma ainda:
Assim é o lugar da TV: um lugar ubíquo, que a tudo abrange.
Ao mesmo tempo, é um lugar que não está em lugar algum. No lugar
em si da TV, um filme de publicidade se iguala, como verdade, a uma
cena de guerra: o que permite à propaganda política interferir na guerra
e o que reduz a guerra a um instrumento visual a serviço do
proselitismo político.
De acordo com o citado autor, podemos inferir que os indivíduos são levados a crer que
a verdade está no que é apresentado na TV, nas suas inserções e assertivas emitidas
através de sua programação. As pessoas acreditam no que vêem, pois a TV tem o
poder de criar uma realidade de tal forma que o que não está visível não aconteceu. As
interferências do Estado e do mercado, do poder político e econômico, ditam e
camuflam o real pelo viés da tela ofuscante de nossos televisores. Logo, para o autor,
estamos interpelados a sermos marionetes dessa realidade virtual sem tempo e lugar.
Ora, tal concepção é válida no que concerne o poder da TV em transformar ficção em
realidade, em tentar manipular os indivíduos, homens, mulheres e crianças em suas teias
significativas, contudo, é duvidoso que esse mesmo poder ultrapasse o poder do
telespectador de se indignar, de criticar, de julgar e de não aceitar tal realidade. Como
vimos anteriormente, nem todos os indivíduos são tão manipuláveis assim, nem todos
estão convencidos de que o que é apresentado pela TV é verdade, apesar da TV ser um
lugar em si que apresenta imagens “verdade”. O poder de discernimento das pessoas é
maior do que possamos imaginar, pois a relação de identificação com o real passa pelo
reconhecimento crítico dos indivíduos ante ao imposto.
Ao questionarmos os efeitos imagéticos e a transformação da aparência do real
em ficção e vice-versa, produzidos pela televisão para satisfazer anseios coletivos -
inseridos anseios políticos e econômicos - podemos dizer que o real construído pelas
62
imagens nos remete a um mundo artificial/virtual, virtualidade bastante convincente nos
pedindo aceitação ou negação. A esse respeito, Elizabeth Duarte (2006, p.28-29)
conclui que é colocada ao dispor dos telespectadores uma gama variada de informações
que mesclam, em suas narrativas, realidade e artificialidade. Para a autora, “há hoje na
programação televisiva a evidente substituição de uma teologia da verdade e da mentira,
do real e da ficção, pela da realidade e da artificialidade.” Nesse jogo representacional
em que a TV está inserida, pode-se dizer que ainda construindo um mundo artificial,
esse mesmo mundo apodera-se de elementos reais para se fazerem crer. Duarte (2006)
ressalta que tudo isso gera uma grande confusão, própria do meio, e que se inserem
nessa confusão interesses econômicos e sofisticadas operações de marketing. A autora
conclui com uma advertência:
Embora muitos saibam que aquilo que é ouvido é uma
configuração de mundo feita pelas linguagens, na qual mesmo as cores
do mundo são reduzidas pelo cumprimento das ondas segundo escalas
incapazes de «dizer» os matizes mais sutis do que nos rodeia, temos que
admitir: o que vemos é bastante convincente.
Por isso é de se questionar: se a linguagem havia roubado o
acesso direto ao mundo natural, (ao real) -, hoje, perdida a natureza, a
televisão oferece uma segunda natureza, uma segunda pele siliconada,
vitaminada, construída no espaço de interação entre as diferentes
mídias? Talvez o mundo artificial em que vivemos seja o verdadeiro,
ainda que artificial. (DUARTE, 2006, p. 29)
As considerações da autora são extremamente importantes no que se refere ao jogo
discursivo da televisão no mundo que trata de transformar em “sua verdade” os fatos
reais na busca de identificação e, sobretudo, na busca de convencimento do
telespectador. Ao relativizar o artificial em real e vice-versa, evidencia o efeito
paradoxal do real e do artificial sobre as pessoas, efeitos existentes nos discursos
televisivos e seus atributos na sociedade de massa, na vida cotidiana das pessoas e suas
manifestações. Porém, não abre espaço, em suas análises, para o processo pelo qual
passa o telespectador ao captar esse mundo artificial que, apesar de convincente,
continua sendo uma representação do real e, portanto, uma (re)criação do real. O
telespectador, como pudemos atestar anteriormente, não é um agente passivo diante das
informações e imagens veiculadas pela TV. Logo, esse mundo artificial passa pelo crivo
ativo dos indivíduos que podem julgá-lo próprio ou inapropriado, estando de acordo ou
não com suas convicções, crenças e práticas sociais. Será que essa virtualidade
“verdade” fará parte integrante da vida cotidiana dos telespectadores? Será que todos os
telespectadores acreditam e reproduzem essa “verdade” como sendo suas “verdades”?
63
Essas são questões complexas e não uma resposta que atinja globalmente a todos os
indivíduos, mesmo em se tratando de discursos proferidos e veiculados por um meio de
comunicação de massa poderoso como a televisão. Ao que tudo indica, os indivíduos
são capazes de diferenciar, ante suas experiências próprias, o real do artificial, mesmo
que sejam manipulados para um ponto ou outro. Muitas vezes, esse poder de decisão
não é levado em consideração por alguns analistas, atribuindo maior poder ao discurso
televisivo, mais do que ele pode ter.
Charaudeau (2001, p.16) em seu livro sobre o papel da televisão na guerra da
Bósnia, intitulado A televisão e a guerra. Deformação ou construção da realidade? O
conflito na Bósnia.
6
, reflete sobre as complexas teias significativas que envolvem o
telespectador e as posições contraditórias em que se encontram os mesmos. Essas
posições contraditórias do telespectador, segundo o autor, diz respeito ao papel dos
mesmos ora como espectador do mundo e suas adversidades, ora como telespectador da
televisão e seus discursos produtores de uma realidade. O telespectador se coloca ora
dentro dos dramas do mundo, ora à distância de seu espetáculo, dividindo alegrias e
tristezas e, ao mesmo tempo, julgando-as. A esse tipo de contradição, Charaudeau
(2001, p.17) esclarece:
A esse tipo de contradição, deve-se aliar aquela que se produz
entre um eu” indivíduo consumindo a informação através de sua
própria visão de mundo, suas próprias referências, seus próprios
julgamentos, e um “eu” comunitário acreditando dividir as mesmas
emoções e os mesmos pontos de vista que o resto do planeta. Assim,
cada um acredita tanto que sua visão das coisas é justa e suas emoções
legítimas, quanto, mais ainda, que as mesmas são partilhadas por outros,
diga-se por um grande Outro que a essa visão a força da evidência.
Daí os efeitos de julgamento coletivo e de rumor público que fazem
com que cada um pense que o que diz tem valor de verdade.”.
7
Nesse sentido, o autor considera ser viável uma análise do papel da televisão no
mundo da informação se levarmos em conta o relevante e indispensável poder de
julgamento dos indivíduos diante do mundo artificial ou virtual proposto e veiculado
pelos canais de televisão. Para o autor, se existe mesmo um poder de manipular por
6
“La télévision et la guerre. Déformation ou construction de la réalité? Le conflit en Bosnie.
7
“À ce type de contradiction, il faut ajouter celle qui se produit entre un moi individu consommant
l’information à travers sa propre vision du monde, ses propres références, ses propres jugements, et un
moi communautaire croyant partager les mêmes émotions et les mêmes point de vue que le reste de la
planète. Ainsi, chacun croit non seulement que sa vision des choses est juste et ses émotions légitimes,
mais en plus il pense que celles-ci sont partagées par d’autres, il faudrait dire par un grand Autre qui
donne à cette vision la force de l’evidence. De des effets de jugement collectif et de rumeur publique
qui font que chacun pense que ce qu’il dit vaut pour
ce qui est vrai.”
64
parte de televisão não devemos exagerá-lo, e aos que a analisam como um instrumento
de dominação ideológica esclarece que “O que é essencial para a televisão é, antes de
mais nada, não se deixar enganar por imaginários dominantes, do que passar uma
explicação histórica satisfatória.”(CHARAUDEAU, 2001, p. 155).
8
Logo, a informação
deve contemplar mais aos apelos da sociedade e às condições impostas pelo mercado do
que manifestar maior interesse pelos ditames ideológicos calcados na historicidade de
determinadas comunidades. É interessante perceber que ao determinar esse aspecto a-
histórico da televisão, o autor faz referência ao caráter ambíguo que possui a TV ao
procurar legitimar a informação. Charaudeau (2001, p.156) avalia finalmente que é
importante levar em consideração que nesse jogo espetacular do real desempenhado
pela TV, deve-se levar em consideração que é “ao termo de uma interação social entre o
que se passa nos diferentes campos e domínios da prática social nas quais os agentes
interagem – que se constrói a eventualização do mundo social.”
9
Apesar de parte dos críticos e analistas de televisão alertarem para a importância
da interação ativa e crítica dos telespectadores, parece que, ainda assim, as políticas
públicas e privadas voltadas para a imagem e, mais diretamente, para a televisão não são
levadas muito em consideração. Podemos conferir tal questionamento através do que se
tem produzido pelas TVs, abertas ou fechadas, blicas ou privadas, ao longo dos anos,
o que posso chamar de uma panacéia enlouquecida em busca de audiência.
Baudrillard (2005) publicou um livro de artigos, por ele escritos na cada de
noventa, em que coloca sua perspectiva do chamado mundo virtual. Essa virtualidade,
criada nas esferas da mídia em geral e, sobretudo, nas teias criadas pelos avanços
tecnológicos, leia-se teia por redes internacionais e supra-nacionais integradas de
comunicação, é o espaço atemporal e a-histórico ou um não-lugar, como vimos
anteriormente, disposto a todos os indivíduos nas sociedades de massa. A crítica
desenvolvida em seus artigos conta do que a televisão, em especial os telejornais,
cria como informação “verdade” em seu espaço virtual. Trata de assuntos que foram
divulgados importantes no panorama mundial e regional, no caso a França, e os
questiona criticamente, com um certo grau de ironia e severidade. A virtualidade, para
ele, nega o real, pois o real não existe mais, ou melhor, existe num real virtual. Segue
8
“...ce qui est essentiel pour la télévision est bien d’avantage de ne pas se tromper sur ces imaginaires
dominants que d’apporter une explication historique savante.” (CHARAUDEAU, 2001, p. 155)
9
“au terme d’une interaction entre ce qui se passe dans les différents champs et domaines de la pratique
sociale – dans lesquels les acteurs réagissent – que se construit l’événementialisation du monde social.”
65
suas indagações prevendo o que não é previsto pelos grandes conglomerados
multinacionais e supra-nacionais, pela televisão, o poder crítico das massas
arrebanhadas pela virtualidade de suas vidas. Esse poder crítico seria o grande desafio
colocado às pessoas que vivem em mundo criado, virtutalizado e midiatizado, desafio
sem garantias de “sucesso” ou de “fracasso”. Ao mesmo tempo, Baudrillard (2005, p.
141) põe todos em questão e desafia as culpas criadas nas ambíguas relações de poder
exercidas pela mídia, em especial pela TV. Para o autor, todos estão passando por uma
síndrome depressiva do poder, em especial a televisão, girando em torno de si mesma,
não achando mais sentido no mundo exterior, produzindo informações, tentando dar-
lhes sentido. Segue suas declarações:
[...] Por ter abusado do fato através das imagens, até se tornar suspeita
de produzi-lo por inteiro, está virtualmente desconectada do mundo e
involui no seu próprio universo como significante vazio de sentido,
buscando desesperadamente uma ética, na falta de credibilidade, e um
estatuto de moral, na falta de imaginação (uma vez mais, vale o mesmo
para a classe política).
É que a televisão começa a corromper-se. Questionada por
todos e incapaz de responder à interrogação fundamental que é, ao
mesmo tempo, a principal acusação: que está acontecendo com as
imagens e com o sentido destas, com o mito da informação e com a
televisão que se exibe, sem vergonha, por toda parte? E a sua
responsabilidade nisso tudo? (BAUDRILLARD, 2005, p.142)
Nesses questionamentos, o autor evidencia o fato de haver uma incapacidade dos que
fazem televisão em responder tais questões ou de fazer uma auto-avaliação de seus
procedimentos, como numa roda-viva, numa circularidade viciosa do médium pelo
médium. Daí a perda de credibilidade nas informações, dos fatos e das imagens
apresentadas pelo meio, perdendo ao mesmo tempo a idéia do que faz e a imaginação do
mundo real. Para Baudrillard (2005, p. 142), a conseqüência disso é a criação de uma
linguagem voltada para a própria televisão, ou para “um público não identificado do
qual só espera audiência”, o que acaba dando no mesmo.
Os apontamentos feitos até agora nos envolvem em questionamentos sobre o que
vem sendo discutido, pelos intelectuais, sobre o papel das televisões públicas e privadas
num mundo cada vez mais interconectado. Podemos inferir que tais questionamentos
não são propriamente a base das análises feitas pelas políticas públicas voltadas para os
meios de comunicação de massa, nem muito menos pelos agentes produtores e nem pela
grande indústria da mídia. Meu propósito é o de levantar algumas considerações sobre
este tema, pois nos insere no modo operante europeu da classe política nas
66
comunicações de massa e assim explica algumas das estratégias utilizadas na produção
do telefilme que constitue o corpus de nosso trabalho. O telefilme Le silence de la
mer” foi produzido em meio tais discussões e intenções políticas e econômicas
européias que ultrapassam as intenções do diretor e sua equipe, ou seja, intenções para
além de questões meramente estéticas e artísticas.
A Europa, enquanto organização supra-nacional, possui leis para o audiovisual
que visam a integração dos países da CEE em um único bloco econômico, político e
cultural. As políticas são voltadas para a criação de uma rede integrada de TVs
nacionais que destinem cotas para a difusão de uma programação que atenda aos
anseios políticos, econômicos e culturais de todas as nações em conjunto,
transformando-as em um bloco coeso culturalmente. A televisão européia, hoje, destina
parte de seus investimentos para esse intento: reforçar uma política de cultura de massa
antinacionalista em nome de uma integração européia. Essa idéia proliferou e ganhou
sustentação em meio à classe política do pós-guerra e foi gradativamente sendo
implantada nos países da Comunidade Econômica Européia. Wolton (1996, p.275)
esclarece:
O nacionalismo é, provavelmente, a mancha negra da Europa.
Ele, com efeito, não se impôs como necessidade categórica senão
depois de duas guerras mundiais que, em menos de meio século,
levaram à loucura o nacionalismo e mataram mais de cinqüenta milhões
de europeus. Foi para legitimar o nacionalismo, com o ódio e a recusa
do outro que ele é capaz de engendrar, que os pais da Europa
inventaram esse princípio de cooperação com a CECA (Comunidade
Européia do Carvão e do Aço), a partir de 1951, e depois o mercado
comum em 1957. A absoluta necessidade de superar o nacionalismo foi,
portanto, provavelmente, o único imperativo que conseguiu afinal dar
nascimento à “Europa” do pós-guerra. Sem dúvida, as necessidades de
reconstrução econômica, e depois a luta com a URSS e o comunismo
também agiram nos anos de 1945 a 1965 fazendo avançar os valores da
democracia ocidental, mas esses argumentos estavam em segundo lugar
para R. Schuman, C. Adeanuer e Ch. De Gaulle, cuja obsessão era fazer
cessar o ódio franco-alemão e, mais amplamente, superar o ódio
nacionalista.
Apesar desse esforço político em efetivar ideais de uma Europa única, bloco
maciço de cultura, economia e políticas, o projeto de uma televisão européia caminha
sob duas contradições: a primeira de fazer uma TV como meio de comunicação que
contemple a integração dos povos europeus e, por outro, fazê-la como meio de refletir
as diferentes culturas. Para o autor, isso é praticamente impossível, pois ou se faz uma
coisa ou outra, ao que diz: “Ou a televisão é mais um fator de integração social e
67
cultural, como quase sempre foi em todos os países do mundo, ou ela é um fator de
expressão das diferenças” (WOLTON, 1996, p.280). Essa idéia complementar é
idealista para o referido autor, pois ao tentar unir duas idéias antagônicas as separa
ainda mais. Como promover uma integração européia a despeito das identidades
culturais nacionais envolvidas? E vai mais além ao lembrar que não é em quarenta anos,
nem com a influência das mídias que resolver-se-ão as contradições e antagonismos
enraizados pela história cultural e social da Europa, pelo menos, dos últimos dois
séculos.
Essa passagem nos é particularmente curiosa e esclarecedora, nos remetendo ao
nosso propósito de análise do corpus, o telefilme “Le silence de la mer”. É preciso
entender como se comportam as instituições políticas européias que possuem projetos
voltados para a cultura e em especial para a televisão. Nossos apontamentos mostram
que um conflito generalizado quanto ao papel da televisão no mundo e em particular
na Europa. Os tecnocratas da televisão e a indústria da mídia, bem como a classe
política e seus interesses político-econômicos, demonstram certo afastamento das
questões levantadas pelos teóricos e intelectuais. Nesse sentido, vivemos em um mundo
cada vez mais diferente, mais plural, mais diversificado, onde a palavra de ordem é a
diversidade cultural, mas, ao mesmo tempo, estamos envolvidos por discursos
midiáticos que tentam nos unir em uma massa indivisível, em uma única identidade. Eis
a grande contradição de todos os tempos, unir e separar. Wolton (1996, p.315) conclui:
Sim, a televisão perturba, excita, engana, fascina e cansa, mas ela é,
hoje, parte da nossa antropologia, e a dificuldade que temos em pensar
sobre ela ilustra bem a extraordinária ambivalência da imagem
cotidiana numa sociedade ocidental que ao mesmo tempo a deseja,
promove-a, mas não sabe o que fazer dela e dela desconfia.
2.2 – PONTO DE VISTA IDEOLÓGICO NO TELEFILME
É salutar enfatizar que ao falarmos em telefilmes estritamente produzidos por
técnicas próprias à televisão, estamos nos referindo a um produto que tem suas raízes
técnicas nascidas no cinema, e, portanto, suas produções industriais de massa nos
remetem ao mundo cinematográfico e sua linguagem. Obviamente, tais produções são
influenciadas por essas técnicas filmográficas, impondo-lhes recursos próprios do
discurso cinematográfico. Contudo, diferenciam-se quanto ao meio de difusão: filmes
são destinados, em princípio, às salas de projeção e telefilmes às telas de aparelhos de
68
televisão. Apesar de haver certa distinção quanto ao aparato destinado à difusão dos
produtos em questão, não incongruência ao vermos filmes ou telefilmes
10
nas salas
de cinema ou na televisão doméstica, pois ambos circulam livremente entre esses dois
veículos de transmissão, TV e sala de cinema.
Vale ressaltar que ao falarmos em discurso cinematográfico, levamos em
consideração que a produção de filmes para a televisão obedece às mesmas regras
discursivas, com uma possibilidade maior ainda de penetração social, pois adentra aos
lares de forma rápida, gratuita e, em breve, no Brasil todo, digitalizada. Tal penetração
induz a uma identificação muito próxima da “realidade”, provocando uma semelhança
ideal para aquele espectador.
Nesse caso, a imagem produzida no cinema/televisão, produtora de
significados e representações, revela uma intencionalidade calcada em interesses
particulares ou de grupos. Tais representações se dão a partir da construção de pontos
de vista, próprios do desenvolvimento da narrativa fílmica e, assim, fabricam as
paixões e os sentimentos na confecção da trama fílmica. Segundo Aumont (2006,
p.156) o ponto de vista pode designar:
1. Um local, real ou imaginário, a partir do qual uma cena é olhada;
2. “o modo particular como uma questão pode ser considerada”;
3. Enfim, uma opinião, um sentimento com respeito a um
fenômeno ou a um acontecimento.
É importante ressaltar que é a partir dos enquadramentos produzidos pela
câmera e do auxílio indispensável da montagem que as formas simbólicas
representativas se concretizam no filme/telefilme, construindo pontos de vista e
discursos. É através das imagens produzidas e representadas que os discursos se
estabelecem criando sentidos desenvolvidos numa relação dialética da qual todos
participam: autor, diretor, espectador. Logo, o ponto de vista em um filme é condição
principal para o desenvolvimento de um discurso. “O Cinema é um discurso e é
ideológico” (XAVIER, 2005, p.132), capaz de criar representações para além da
imaginação dos espectadores, pois estes são induzidos a repensar, a recriar e a
reelaborar significados que por sua vez são dirigidos por interesses diversos. Ainda
em Xavier (ibidem) :
10
Faço tal distinção, filmes e telefilmes, pelo fato de que algumas das produções fílmicas são destinadas
exclusivamente aos seus ambientes naturais, cinema e TV. Contudo, podemos apreciar ambos os produtos
em seus ambientes não naturais, como vemos comprovadamente a todo instante.
69
“Em minha opinião, sem uma apresentação clara do ‘porque’
não se pode começar o trabalho num filme”. É impossível criar sem
reconhecer os sentimentos e paixões em torno dos quais queremos
especular desculpe a expressão, sei que não é gentil, mas é
profissionalmente e por definição exata. Dirigimos as paixões dos
espectadores, mas usamos uma válvula de segurança, um pára-raios,
e este é o parti-pris.
Essa direcionalidade, a que se refere Xavier, pretende a modificação ou
manutenção do status-quo vigente, e assim denota a intencionalidade ideológica nas
escolhas feitas pelo diretor do filme, sua equipe e as intenções da indústria
cinematográfica e/ou televisiva as quais estão subordinados, seja por contrato ou por
financiamentos milionários. Para o autor, mesmo quando um filme melodrama deixa
de lado questões políticas latentes e questionamentos mais profundos relativos as
relações e convivência humanas, em produções consideradas como “simples
passatempo, sedativo e hipnótico”, está-se desenvolvendo um discurso em nome da
tranqüilidade, do “deixar as coisas como estão”. No mesmo sentido, Vanoye e
Goliot-Lété (2006, p. 56) corroboram com a idéia de que:
O filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa
no real e no imaginário, constrói um mundo possível que mantém
relações complexas com o mundo real: pode ser em parte seu reflexo
ou sua recusa.(ocultando aspectos importantes do mundo real,
idealizando, amplificando certos defeitos, propondo um
“contramundo” etc.). Reflexo ou recusa, o filme constitui um ponto
de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que lhe é
contemporâneo
Tais escolhas, no caso específico da adaptação fílmica, atualizam e/ou deslocam o
tempo, espaço e identificações, e assim opera sobre um ponto de vista ideológico.
Sobre essa questão os mesmos autores compreendem o ponto de vista sob três
categorias: visual, narrativo e ideológico.
Vanoye e Goliot-Lété (2006, p.51)
explicitam
que a categoria visual se insere na pergunta: De onde se aquilo que se vê? De
onde é tomada a imagem? Onde está situada a câmera? ; a categoria narrativa:
Quem conta a história? Do ponto de vista de quem é contada a história? Esse ponto
de vista é detectável ou não? ; e a categoria ideológica remete a perguntas como:
Qual é o ponto de vista, a opinião, o olhar do filme, do autor sobre os personagens, a
história contada? Como se manifesta? Através desses questionamentos podemos
detectar como o ponto de vista no filme/telefilme foi construído e assim
identificarmos os discursos propostos, visíveis ou não. Ao detectarmos o ponto de
70
vista ideológico construído e constituído na produção de um filme/telefilme,
podemos saber de que forma opera esse mesmo ponto de vista ideológico nas
relações de poder. Vale ressaltar que essa separação dos pontos de vista em visual,
narrativo e ideológico, serve ao um propósito metodológico e pedagógico. Isso posto,
entendo que em uma análise sobre o ponto de vista, essas categorias funcionam de
forma imbricada, pois uma auxilia a outra na construção de pontos de vista nos
telefilmes.
2.2.1 A IMAGEM CONSTRUTURA DE PONTOS DE VISTA E
IDENTIFICAÇÃO.
A imagem construída no âmbito cinematográfico e televisivo pode ser distinta
no que tange à projeção. Como vimos anteriormente, uma destina-se à tela de cinema
e a outra à tela de TV. Contudo, tal distinção não afeta substancialmente o produto
em si, pois mesmo em se tratando de meios diferentes de difusão, a imagem continua
sendo uma representação do real, construtora de ambientes verossímeis. Ao falarmos
em representação do real, indicamos a possibilidade de, através das imagens,
identificarmos-nos com o que estamos olhando e sentindo, tanto no cinema como em
nossas casas diante do aparelho de TV. Nesse processo de identificação, de criação
de emoções e de novos ambientes através dos produtos cinematográficos e
televisivos, seja cinema ou aparelho de TV doméstico, não se pode descartar o papel
ativo dos espectadores, participação individualizada e coletiva. Acredito que a
diferença básica reside no fato de que as imagens projetadas na sala de cinema,
escura e hermeticamente fechada, induzem a um sentimento de pertencimento e
identificação individual e coletiva, partilhada na individualidade das pessoas
espectadoras. Num sentido correlativo, a projeção das imagens de um telefilme na
sala de nossas casas induz aos mesmos sentimentos e identificações, porém com um
poder de socialização e interação bem maiores, tanto com o filme/telefilme quanto
com os outros telespectadores.
Aumont (2007) classifica o processo de identificação pelo qual passa o
espectador de cinema em primário e secundário. Para o autor, a identificação
primária é relativa ao olhar do espectador de cinema, pois é ele quem tudo e a
tudo participa, como se o filme fosse feito para o mesmo. Sujeito privilegiado assiste
71
ao filme identificando-se com os personagens e com as paisagens criadas e olhadas
sob um ponto de vista único e central, o seu próprio. E o autor esclarece que...
[...] por mais que o espectador saiba pois em um outro nível ele
sempre sabe que não é ele que assiste sem mediação a essa cena,
que uma câmera a gravou preliminarmente para ele, obrigando-o de
certa forma àquele lugar, que essa imagem plana e aquelas cores não
são reais, mas um simulacro de duas dimensões inscrito
quimicamente em uma película e projetado em uma tela, a
identificação primária faz com que ele se identifique com o sujeito
da visão, com o olho único da câmera que viu essa cena antes dele e
organizou sua representação para ele, daquela maneira e desse ponto
de vista privilegiado. (AUMONT, 2007, p.260)
A identificação secundária, segundo Aumont (2007, p.262-266) volta a atenção do
espectador para as narrativas, e compara-o aos leitores de romances que se
entrelaçam nas narrativas textuais. Para o autor, os indivíduos estão presos às
narrativas, não há como negar, e tudo gira em torno do desejo em participar das
narrativas propostas por livros e filmes. Considera que todos nós estamos sempre nos
identificando com as histórias contadas por outros, num processo de identificação
primordial em que toda e qualquer estória, ou narrativa, é um pouco a nossa própria
história. Nesse processo de identificação com a narrativa fílmica, certa carência
por parte dos espectadores, uma falta de algo que busca suprir no desenvolvimento
dos personagens e suas ações. Nisso consiste o poder das narrativas em prender o
espectador diante das telas de cinema e televisão, como se houvesse uma fórmula
condensadora e geral para todos os filmes. Aumont (2007, p.267) explica:
Não se trata de negar que um grande número de filmes
digamos, para simplificar, os mais rudimentares, os mais
estereotipados, por exemplo, hoje, as novelas de televisão – funciona
maciçamente de acordo com uma identificação bastante monolítica,
regulada por um fenômeno de reconhecimento, por uma tipologia
estereotipada dos personagens: o bom, o mau, o herói, o traidor, a
vítima etc. É possível dizer, nesse caso, que a identificação com o
personagem procede de uma identificação do (e com o) personagem
como tipo. A eficácia dessa forma de identificação não deixa dúvida,
sua perenidade e quase-universalidade são a prova disso: é porque o
efeito dessa estereotipagem é reativar de maneira totalmente
comprovada, em um vel ao mesmo tempo rudimentar e profundo,
os afetos saídos diretamente das identificações com os papéis da
situação edipiana: identificação com o personagem portador de
desejo contrariado, admiração pelo herói que representa o ideal do
eu, temor diante de uma figura paterna etc.
72
Nesse sentido, a imagem projetada identifica-se e é identificada no/pelo espectador,
criando sua própria razão de ser, sua própria identificação com o real. Ao assistirmos
um filme/telefilme ou uma telenovela, encontramos nossos próprios “eus”
representados nos personagens e narrativas num processo ambíguo, contínuo e
dialético das representações. Isso explica o porquê de sentirmos raiva, piedade,
alegria, enfim, de doarmos nossas emoções mais simples e complexas aos
personagens criados pela televisão em seus telefilmes e novelas através dos anos. As
narrativas passam a ter um caráter familiar em nossas vidas cotidianas, criando um
ambiente só nosso e de todos. Os tipos representativos criados pela imagem
participam das vidas das pessoas e podem servir de exemplos para as condutas e
práticas sociais. Obviamente, não podemos deixar de levar em consideração o poder
de decisão, de crítica e de julgamento dos espectadores face às representações
imagéticas. O cotidiano retratado nos filmes/telefilmes e, por vezes, mostrado em
suas modalidades mais perversas, encontra seu correspondente real nos sentimentos
individuais e coletivos dos espectadores.
Podemos, então, dizer que a semelhança com o real produzido pelas imagens
não acontece por mero acaso, sem nenhuma intencionalidade. A intencionalidade é
latente, porém se é captável ou não, se atinge seu objetivo ou não, é uma outra
questão. Ainda sobre este tema, é pertinente a observação feita por um dos maiores
filósofos de nossos tempos, Gilles Deleuze (2007), sobre o uso dos clichês na
imagem representativa nos filmes e na vida das pessoas. Para ele, o cotidiano das
pessoas é formado por clichês, pois estamos sempre nos esquivando de situações
desagradáveis, situações que contrariam a nossa própria percepção de mundo e que
estão longe de ser o que pretendíamos fazer ou ter em nossas vidas. Os seres
humanos socializados, indivíduos pensantes e ativos, estão sempre buscando
esquivar-se ou escamotear o real, a realidade do dia-a-dia. Comportamo-nos de
acordo com nossos gostos, nossas capacidades, nossa condição econômica, nossos
pares. Quantas vezes mudamos os canais de TV buscando por algo que nos agrade,
ou quantas vezes estamos diante dos horrores de nossa sociedade injusta e
sanguinolenta e ficamos a nos deleitar com o sofrimento alheio ao nosso, ou
mudamos imediatamente de emissora, numa tentativa de não participar e logo de não
ser participe de tal situação. Estamos sempre buscando nas imagens representativas a
nossa própria satisfação mórbida ou não. Porém, também possuímos um campo
73
protetor que nos faz esquivar de certas situações limites, um esquema que nos
protege dos horrores, como diz Deleuze (2007, p. 31):
[...] Temos esquemas para nos esquivarmos quando é desagradável
demais, para nos inspirar resignação quando é horrível, nos fazer
assimilar quando é belo demais. Notemos a este respeito que mesmo
as metáforas são esquivas sensório-motoras, e nos inspiram algo a
dizer quando se sabe o que fazer: são esquemas particulares, de
natureza afetiva. Ora, é isso um clichê. Um clichê é uma imagem
sensório-motora da coisa. Como diz Bergson, nós não percebemos a
coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos
apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que
temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos,
nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto,
comumente, percebemos apenas clichês.
No entanto, o citado autor revela que se os esquemas sensórios-motores quebrarem
ou forem bloqueados, resta-nos apenas um outro tipo de imagem, uma pura, inteira e
sem metáforas: uma imagem ótico-sonora. Nesse caso, as imagens fazem surgir a
coisa em si, sem rodeios, em sua literalidade, os excessos de horror e de beleza
injustificáveis, pois não busca mais justificativas no bem e no mal. Logo, as imagens
mostram a vida como ela é, interrogam sobre como são as coisas, não numa relação
de semelhança, mas numa relação com a realidade das coisas. Ainda sobre essa
questão, Deleuze (2007, p.32) enfatiza que:
Por um lado a imagem está sempre caindo na condição de
clichê: porque se insere em encadeamentos sensórios-motores,
porque ela própria organiza ou induz seus encadeamentos, porque
nunca percebemos tudo o que na imagem, porque ela é feita para
isto (para que não percebamos tudo, para que o clichê nos encubra a
imagem...). Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do
clichê, na qual todos os poderes têm interesse em nos encobrir as
imagens, não forçosamente em nos encobrir a mesma coisa, mas em
encobrir alguma coisa na imagem. Por outro lado, ao mesmo tempo,
a imagem está sempre tentando atravessar o clichê, sair do clichê.
Não se sabe até onde uma verdadeira imagem pode conduzir: a
importância de se tornar visionário ou vidente. Não basta uma
tomada de consciência ou um mudança nos corações [...] Às vezes é
preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se
na imagem, tudo o que foi dela subtraído para torná-la
“interessante”. Mas, às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos,
introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir
dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que
víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro.
Podemos, assim, perceber que as imagens propostas, criadas e representadas
em filmes/telefilmes corroboram com o que nhamos estabelecendo como imagem
74
representação. Ao mesmo tempo em que obedecem às condições criadas no cotidiano
das pessoas, desvelando as relações e as práticas sociais, nossos gostos, incertezas e
emoções, também camuflam e embotam essas mesmas condições, criando uma
atmosfera fictível e pontos de vista no universo fílmico. Se nossas vidas são
estabelecidas por clichês, também o é a representação imagética em
filmes/telefilmes. A criação de pontos de vista ideológicos nos remete ao nosso
próprio modo de ver as coisas, individual e coletivamente, e nos insere no mundo
criado e representado conforme nossas escolhas, conforme nossos gostos e
identificações inseridos em jogos discursivos e ideológicos.
Em uma análise mais voltada para os discursos e ideologias partícipes no jogo
realidade, ficção e verdade, sob uma perspectiva da imagem eurocêntrica, Robert
Stam e Ella Shohat (2006) percebem que a verdade instituída nas produções
cinematográficas obedecem às circunstâncias e aos contextos inscritos na vida social
e às suas implicações. Para os autores, a realidade ficcional estabelecida no discurso
cinematográfico possui caráter de verdade, e assim trabalha para sê-lo - um discurso
verdade - porque mantém vínculos com o cotidiano e com as auguras de um passado
histórico situado socialmente. Suas análises se baseiam na noção de representação
artística de Bakhtin na qual a consciência humana e a prática artística não têm
contato direto com o “real”, pois tal contato se mediado pelas circunstâncias
ideológicas estabelecidas ao nosso redor. Nesse sentido, Shohat & Stam (2006, p.
265) enfatizam, baseados em Bakhtin, que a arte representa discursos estabelecidos
historicamente e socialmente e suas representações são sociais. Logo, os autores
concluem que a questão não deve ser voltada para a “fidelidade a uma verdade ou
realidade preexistente, mas a orquestração de discursos ideológicos e perspectivas
coletivas.” E continuam:
[...] Se em um determinado nível um filme se constitui através de
uma prática mimética, e ele também é discurso, um ato de
interlocução contextualizada entre produtores e receptores
socialmente situados. Não basta dizer que a arte implica construção.
Temos que perguntar: construção para quem? E em conjunção com
quais ideologias e discursos? Dessa perspectiva, a arte é uma
representação não tanto em um sentido mimético, mas político, uma
delegação de vozes.(SHOHAT & STAM, 2006, p.265)
Esses apontamentos desenvolvidos até agora confirmam nossas ideias de que
as representações nas imagens e os pontos de vista produzidos em filmes/telefilmes,
75
para se confirmarem como representações e obterem reconhecimento por parte dos
espectadores, são produtos da própria estrutura nascida nas relações e práticas
sociais. Dessas mesmas relações e práticas sociais, localizadas culturalmente,
historicamente e ideologicamente, absorvem e tomam de empréstimo ou se
apropriam de suas características fundamentais para se confirmarem como imagens
verdade, e daí passarem a ser incorporadas, ajustadas, recriadas e identificadas pelos
espectadores, no jogo dialético e contínuo das identificações.
2.2.2 - ESTRATÉGIAS TÉCNICAS CINEMATOGRÁFICAS NA
CONSTRUÇÃO DE PONTOS DE VISTA.
Outra questão complementar ao que vimos até então, nos leva ao caminho das
técnicas desenvolvidas na confecção de filmes/telefilmes para a realização de seus
projetos. Mais que técnicas, podemos falar em estratégias técnicas discursivas e
ideológicas que constituem e constroem pontos de vista nos produtos
cinematográficos, como o uso da câmera, da montagem, do som e da música, do
close up, travellings, iluminação, dos planos de fundo, do enquadramento e etc.
Todos os tipos de recursos cinematográficos são utilizados com a finalidade de
construir uma imagem, um discurso, que busquem identificação e mais ainda,
aceitação pela maior parte possível de espectadores, pois nos acertos comerciais das
grandes indústrias cinematográficas não se pode desperdiçar enormes cifras do
precioso fio metal. Como vimos acima, as produções televisivas, e nesse rol, a
produção de telefilmes obedece ao mesmo esquema comercial, não se diferenciando
em muito da indústria de cinema.
Shohat & Stam (2006, p.302) evidenciam o uso da técnica na construção de
um modelo discursivo e ideológico eurocêntrico de dominação ao qual fazem
análises críticas envolvendo vários filmes e produções hollywoodianas “inocentes”.
Os exemplos por eles utilizados nos servem de base para nossa análise, pois nos
coloca no mundo das técnicas de cinema, dos estilos cinematográficos, das estruturas
narrativas e das convenções do gênero. Para os autores, o discurso cinematográfico
eurocêntrico pode estar não somente na construção dos personagens ou do enredo,
mas também no uso da iluminação, do enquadramento, da música e na estrutura da
mise-en-scène. Questões como a utilização do espaço e suas implicações nas relações
de poder, no equilíbrio de discursos e ideologias dominantes, sempre foram usadas,
76
desde a pintura medieval, como forma de representar a classe dominante e o status
social de nobres em desfavor dos camponeses. No cinema, as relações de poder são
desveladas quando do uso de primeiros planos e planos de fundo, por elementos
dentro e fora da tela, pelos silêncios e falas. Nesse sentido, os autores precisam que
para se fazer uma análise com maior acuidade e desvendar os discursos e ideologias
embutidos em um filme/telefilme devemos atentar para a posição dos personagens,
dos objetos e de pontos espaciais diante do enquadramento, para as falas e
expressões corporais, e para como tudo é registrado pela câmera e pelos olhares. Para
entender melhor, Shohat & Stam (2006, p.303) elaboram algumas perguntas
extremamente pertinentes:
[...] Para falar da “imagem” de um grupo social, precisamos
formular perguntas específicas sobre as imagens. Quanto espaço eles
ocupam dentro do quadro? Eles são vistos em close-up ou apenas em
tomadas de longe? Com que freqüência eles aparecem em
comparação com os personagens euro-americanos e por quanto
tempo? Eles são personagens ativos ou meramente decorativos? O
espectador é encorajado a se identificar com o olhar de um ou outro
tipo de personagem? Quais olhares são correspondidos e quais são
ignorados? Como os posicionamentos dos personagens comunicam
distância social ou diferença de status? Quem está na frente ou no
centro? Como a linguagem corporal, a postura e a expressão facial
comunicam hierarquias sociais, arrogância, servidão, ressentimento,
orgulho? Qual comunidade é sentimentalizada? segregação
estética através da qual um grupo é idealizado ou demonizado? A
temporalidade e a subjetivação transmitem hierarquias sutis? Que
homologias informam as representações artísticas e
étnicas/políticas?
Uma análise crítica deve estar atenta às contradições entre os
diferentes registros.
Tais indagações nos mostram o quanto rigorosa deve ser uma análise voltada para os
discursos e ideologias impregnados em um filme. Os enquadramentos não são
estratégias meramente estéticas, o posicionamento da câmera e seus closes, zooms e
travellings aliado à montagem inscrevem pontos de vista que ultrapassam os limites
da percepção visual dos espectadores, fazendo-lhes buscar, em seus registros
históricos íntimos, em suas culturas, ideologias e crenças, a tão esperada e pretendida
identificação. Devo enfatizar que todo o aparato técnico-cinematográfico se pretende
formador e manipulador de pontos de vistas, contudo devemos atentar para o
seguinte: para que haja uma construção de pontos de vista, a inclusão nesse aparato
técnico de contextos sócio-históricos é condição sine-qua-non para que o espectador,
através do aparato técnico, construa identificações.
77
Ismail Xavier (2003), em seu livro O olhar e a cena, trabalha as várias teorias
de cinema voltadas para o aparato cinematográfico como dispositivo capaz de
construir pontos de vista pelo viés imagético. A diegese inscrita nas imagens e sons
propostos em filmes estabelecem uma relação representacional ambígua entre filme e
espectador, na qual os elementos intrínsecos ao contexto sócio-histórico e o
processos técnicos cinematográficos lhe são condição primordial para sua própria
existência representacional e identificatória. O autor esclarece suas indagações ao
fazer um paralelo entre duas teorias contemporâneas ligadas ao cinema clássico
citando Eisenstein, Bazin, Jean-Louis Baudry e suas concepções. Ao procurar
entender seus antecessores e suas teorias, Xavier (2003, p.46-48), no cerne da
questão técnica para a construção de pontos de vista, distingue-os e os aproxima.
Para o autor, em Eisenstein a imagem cinematográfica é de natureza plástica, não
está inscrita como produção de um olhar, e a leitura de uma imagem cinematográfica
passa pelos aspectos simbólicos, e devem ser lidos a partir de seus valores. em
Bazin, a imagem é produto de um olhar, toda montagem é discurso e manipulação. O
referido autor coloca que em ambos, um trabalhando sob a condição de imagem-
signo e outro sob a condição de imagem-acontecimento, respectivamente, elaboram
suas teses sob a falsa dicotomia entre verdade e mentira, na qual um enaltece a
montagem como condição primordial na construção de discursos e o outro minimiza
seus efeitos. Xavier (2003, p.47) reforça as contradições dessas teorias clássicas:
Numa visão mais atual, prestamos atenção especial ao que
aproxima e não apenas ao que afasta o cinema-discurso de
Einsenstein e o realismo existencial de Bazin: em ambos,
novamente, a atribuição de um poder de verdade e de um poder de
mentira encarnados em determinados estilos. Para Einsenstein,
um estilo capaz de dizer o mundo social-histórico, colocando o
cinema como potência maior no plano do conhecimento. Para Bazin,
o cinema é uma espécie de “terceiro estado da criação” e existe um
estilo autêntico, exclusivo, na captação da vivência humana em sua
essencial abertura no tempo.
Para o autor, essas concepções teóricas auxiliam no entendimento de que o fazer
cinema está sempre vinculado a um não mistério das ações humanas, à veracidade
e/ou à mentira ficcionais, a um postulado de realidade. A técnica possui suas
inclinações próprias, seus efeitos ideológicos e a mesma empurra o cinema industrial
para seu ilusionismo e procura inserir o espectador nesse universo ficcional. Nesse
sentido, Xavier (2003, p.49) faz referências ao que Baudry instaura como sendo a
dificuldade primordial do cinema de vanguarda: vencer o que está disposto como real
78
pela técnica, pois existe um pecado original inscrito na técnica, que nasceu para
cumprir outro destino. Isto é, a teorização clássica feita sobre a técnica não deixa
alternativa, ao cinema dito “alternativo”, senão o de cumprir o que fora
estabelecido, o que fora presumível ser o papel da técnica: o papel de objetivar na
imagem estratégias de dominação da classe dominante. Tais questionamentos, feitos
pelo autor, denotam o poder da indústria cinematográfica em trazer para seu universo
o espectador e em tentar manipulá-lo. O cinema, para o autor, não deveria se prestar
a tais imposições da técnica, mas é isso que vemos sendo feito pela grande indústria
de cinema nos dias de hoje.
Dudley Andrew (1989), em seu livro As principais teorias do cinema, faz um
panorama das principais teorias de cinema e promove um diálogo entre os principais
teóricos de nossos tempos. No que tange a montagem, o autor dialoga com três
teóricos cujas contribuições a uma teoria do cinema são inquestionáveis: Einsenstein,
Bazin e Mitry. Na verdade, é sobre a ótica conceitual de Mitry que o referido autor
posiciona a montagem de Einsenstein e de Bazin, posições antagônicas, como sendo
um processo baseado exatamente na ênfase de uma situação real. Andrew (1989, p.
203) a esse respeito clarifica:
Mitry distancia-se de Bazin e se aproxima de Einsenstein
quando apóia o que chama de montagem reflexiva”. Aqui o
cineasta, ao contar a sua história e respeitar o seu mundo, consegue
construir outra linha de significado “ao lado” da narrativa. Pode
estabelecer interdependências simbólicas entre objetos na história;
pode jogar suas formas uma contra a outra; pode cortar o filme em
resposta à iluminação ou ao movimento das imagens. Todos esses
efeitos empurrarão o filme para a frente se tiverem uma base literal,
isto é, se respeitarem a história e o mundo perceptivo que a história
organiza.
Nesse âmbito, o autor evidencia a posição de Mitry a favor não tão somente de uma
montagem reguladora da objetivação do real, mas passível também de uma
subjetivação desse real natural criado pelos sujeitos. A naturalidade do real está na
recriação dessa própria naturalidade, isto é, a naturalidade é parte de uma rede
significativa criada pelos indivíduos. Aqui, o autor destaca a oposição conteudística
entre Bazin e Mitry, na qual Bazin exagera ao atribuir, ao neo-realismo, uma
proximidade maior com o sentido do mundo real. Mitry rebate afirmando que a
realidade possui o sentido que nós mesmos damos, pois “todas as versões de
79
realidade são tentativas humanas de dar significado humano às incipientes
percepções dos sentidos que encontramos.” (ANDREW, 1989, p. 204)
Outra questão de suma importância quanto ao trato técnico cinematográfico
na construção de pontos de vista é a utilização dos sons e da música na construção da
narrativa fílmica. Sabemos que o surgimento do cinema falado no início do século
passado elevou o status dos filmes e suas apresentações despertaram maiores
curiosidades e questionamentos sobre tão inovadora técnica. O som em um filme
traduzia a importância da fala dos personagens e dava maior credibilidade ao que era
revelado nas tramas fílmicas e suas narrativas, evidenciando um maior rigor nas suas
produções. A música, que era utilizada nas projeções públicas desde os irmãos
Lumière, ditava o ritmo que as narrativas tomavam, dando-lhes corpo e vida através
das mãos de pianistas e/ou orquestras, tornando os sons utilizados parte integrante e
de inquestionável importância na representação fílmica. O cinema sonoro passa a
fazer parte, para sempre, das produções cinematográficas. Com a evolução das
técnicas de sonorização dos filmes, podemos perceber também a evolução dos usos
desses elementos insubstituíveis e complementares nas narrativas e seus
desenvolvimentos. Contudo, o surgimento da sonorização gerou algumas
controvérsias sobre seu uso e sobretudo quanto ao seu destino. Para alguns teóricos,
o cinema falado e sonoro gerava uma representação realista da obra cinematográfica
e assim perdia seu caráter artístico e ilusório, voltando-se para questões estéticas que
impunham uma degenerescência do cinema, fazendo-lhe cópia do real a despeito dos
gestos e da imagem. Para outros, entre tantos Bazin, achavam e consideram que o
cinema deve sua importância de hoje à sonorização e que a verdadeira vocação da
linguagem do cinema surge a partir dos efeitos produzidos pelos sons, chegando,
alguns, a desmerecer o filmes mudos produzidos anteriormente. Assim, segundo
Aumont (2007, p. 47), alguns teóricos consideravam que o cinema obteve
importância e começou a partir do cinema falado, que “a partir de então, devia
abolir ao máximo tudo o que o separava de um reflexo perfeito do mundo real”. É
bem verdade que a sonorização dos filmes possibilitou uma maior identificação dos
espectadores como produto, contribuiu e contribui em muito para o desenvolvimento
das narrativas e auxilia a imagem em sua tentativa de se estabelecer como verdadeira
representação do real. Mas, como o próprio autor revela, se a imagem fílmica
80
possibilita a construção de um espaço semelhante ao real, o mesmo não acontece
com o som.
[...] Dessa forma, nenhuma definição de um “campo sonoro” poderia
calcar-se na do campo visual, nem que fosse apenas em virtude da
dificuldade de imaginar o que poderia ser um fora do campo sonoro
(ou seja, um som não perceptível, mas exigido pelos sons
percebidos: isso quase não tem sentido). (AUMONT, 2007, p. 48-
49)
O que podemos pretender é que a utilização do som e da música em filmes interage
com a imagem na construção de uma representação da realidade calcada nos
contextos sócio-históricos, ideológicos e culturais das sociedades. A música, em
particular, potencializa as representações e as emoções colocando os espectadores em
um nível emocional no qual as identificações com os personagens e com as
narrativas fílmicas se estabelecem criando significados.
A trilha sonora escolhida para um filme está condicionada, sobretudo no
cinema clássico, ao referencial diegético
11
pertencente à narrativa escolhida por seus
produtores. Não se trata apenas de um artifício meramente decorativo, podendo até
sê-lo, mas é parte integrante da diegese construída na narrativa fílmica.
Vanoye & Goliot-Lété (2006, p. 49-51) evidenciam a utilização dos sons
como parte integrante da diegese e, apoiados em Michel Chion (1985)
12
, colocam
três tipos de relações entre som e imagem para sua descrição e análise. O som in
seria a própria fonte do som visível na tela, som sincrônico entre palavra, ruído ou
música. O som fora de campo que não seria visível na imagem, seria o som
diegético. E o som off que estaria situado em uma fonte invisível, em um outro
tempo-espaço, a exemplo, o voice-over, uma conversa telefônica entre personagens e
etc. Tais caracterizações dão conta dos usos implicados nos sons de um filme e que
são capazes de formular questões sobre seus efeitos nas narrativas e nos
espectadores. Para tanto, os autores evidenciam que devemos dar a mesma
importância dispensada à imagem, ao som e à música de um filme. Os autores
sugerem que para uma análise mais profícua no que tange o som podemos falar em
ponto de escuta, e referendá-lo sob as mesmas circunstâncias do ponto de vista, ou
pelo menos indagando sobre a origem dos sons e suas implicações objetivas e
11
Diegese refere-se ao universo fictício do filme, parte integrante da história, do mundo e do contexto
sugerido pelo filme
12
Os autores basearam-se no livro de Chion, Le son au cinéma, Ed. de l’Etoile, 1985.
81
subjetivas. Vanoye & Goliot-Lété (2006, p.51) colocam a importância de
formularmos as seguintes questões:
De onde se ouve aquilo que se ouve? O ponto de escuta é
coerente com o ponto de vista (visual)? Existe dissociação
dos dois pontos?
Quem ouve? Quem escuta? O espectador e o(s) personagens
ouvem a mesma coisa?
Distinguir os sons objetivos e os sons subjetivos.
Detectar as dissociações entre pontos de vista e pontos de
escuta (por exemplo, entre um ponto de vista exterior,
objetivo, e ponto de escuta interior, subjetivo).
Inferindo sobre os usos da técnica cinematográfica e suas especificidades,
podemos entender o porquê da utilização de determinados procedimentos e
estratégias técnicas no fazer cinemático, na linguagem produzida pelos filmes e,
sobretudo nos discursos e ideologias nelas inseridos. Podemos perceber a variedade
de recursos estratégicos dispostos para a construção do produto filme e mais,
podemos perceber seus efeitos, efeitos ideológicos, nos quais nossa análise está mais
interessada. Encerro esta parte de nossas reflexões, mas não de modo definitivo,
com uma citação de Jean-Louis Baudry (1983, p. 386) que acho extremamente
pertinente diante do tema trabalhado:
A especificidade cinematográfica se refere, pois, a um
trabalho, isto é, a um processo de transformação. O que importa é
saber se o trabalho está à mostra, se o consumo do produto provoca
um efeito de conhecimento; ou se ele é dissimulado e, neste caso, o
consumo do produto será evidentemente acompanhado de uma mais-
valia ideológica. No plano prático, coloca-se a questão dos
procedimentos pelos quais o trabalho pode efetivamente tornar-se
legível em sua inscrição. Estes procedimentos devem
obrigatoriamente levar a técnica cinematográfica a intervir. Mas, por
outro lado, e em relação à primeira questão, pode-se perguntar se os
instrumentos (a base técnica) produzem efeitos ideológicos
específicos e se tais efeitos são determinados pela ideologia
dominante; nesse caso, a dissimulação da base técnica também
provocará um efeito ideológico determinado. Sua inscrição, sua
manifestação como tal, deveria, pelo contrário, produzir um efeito de
conhecimento, ao mesmo tempo atualização do processo do
trabalho, denúncia da ideologia e crítica do idealismo.
Outra questão relevante para a construção de pontos de vista nas produções
cinematográficas é relacionada ao plano-ponto-de-vista. Tal concepção instaura os
planos elaborados e concebidos para um filme como sendo condição de suma
importância na realização das cenas e no conjunto das narrativas fílmicas. É a partir
dos planos-pontos-de-vista (PPVs) que os pontos de vista se desenvolvem e criam
82
uma relação de semelhança com o cotidiano e idéias pessoais e, acima de tudo, dão a
noção de continuidade espacial e temporal, em muitos casos. Essa técnica é uma
subdivisão do contracampo do olhar, elaborada por Edward Branigan (2005, p.251),
em que divide os PPVs em seis elementos distribuídos em dois planos. Essa noção de
planos na construção de pontos de vista e na narrativa fílmica é extremamente salutar
no nosso caso, pois nos insere no mundo das identificações culturais e ideológicas
produzidas nos filmes através da construção de pontos de vista, passando por
questões técnicas de produção e realização. Branigan (2005, p.252) divide em dois
planos o PPV, plano A e plano B:
Plano A: Ponto/Olhar
Elemento 1: PONTO – estabelecimento de um ponto no espaço.
Elemento 2: OLHAR estabelecimento de um objeto (geralmente
fora-de-campo) pelo olhar a partir do ponto.
Entre os planos A e B
Elemento 3: TRANSIÇÃO continuidade temporal ou
simultaneidade.
Plano B: Ponto/Objeto
Elemento 4: A PARTIR DO PONTO a câmera se posiciona no
ponto, ou muito perto dele, no espaço definido pelo elemento 1.
Elemento 5: OBJETO – o objeto do elemento 2 é revelado.
Planos A e B
Elemento 6: PERSONAGEM o espaço/tempo dos elementos 1 a 5
são justificados, ou indicados, pela presença normal de um sujeito.
Todos esses elementos têm relações mútuas intrínsecas e necessitam uns dos outros
para a realização e produção de pontos de vista. Por exemplo, no plano A, os
elementos 1 e 2 determinam o posicionamento da câmera sobre um ponto e um
objeto, respectivamente, onde o objeto é olhado através do ponto estabelecido para
tanto. Podemos dizer que os elementos agem em consonância com o plano na
observância de um personagem, humano ou não, que olha através da câmera um
ponto ou objeto e é olhado pelo o objeto ao qual destina o olhar. O elemento 3 se
refere à transição entre os espaços e tempos destinados ao filme e está intimamente
ligado à continuidade temporal e à simultaneidade fílmicas.
Como podemos perceber, o autor trabalha o ponto de vista sob a perspectiva do
personagem e seu campo de visão, e inclui também outros pontos de vista advindos do
autor, narrador e espectador que participam do complexo jogo de pontos de vista criados
no e pelo filme. Em artigo intitulado O olhar embaciado de Miguilim: Mutum (2007,
dir. Sandra Kogut) e as estratégias cinematográficas de representação do narrador com
onisciência seletiva.”, Marcel Silva (2008, p.6) organiza sua análise interagindo com
83
Branigan no tange a concepção de pontos de vista e esclarece a relação existente entre
narrador onisciente da trama romanesca e obra adaptada para o cinema, e expõe os
diferentes tipos de pontos de vista existentes para a concepção de um filme.
De acordo com Edward Branigan (1984, p. 01), o ponto de
vista, enquanto categoria narratológica, deve ser entendido a partir de
sua manifestação dentro de outras quatro categorias, em que congrega
particularidades que devem ser nuançadas. Primeiramente, o ponto
de vista do autor, que se refere às opiniões particulares expressas por
um escritor de livro ou diretor de filme, bem como suas questões
ideológicas e político-partidárias. De maneira diversa, existe o ponto de
vista do narrador, que é também comumente conhecido como foco
narrativo ou focalização; nesse caso, está relacionado à voz narrativa,
isto é, a quem conta a história e por qual perspectiva. Algumas vezes, o
ponto de vista ideológico de autor e de narrador não são os mesmos,
podendo ser, inclusive, estruturalmente conflitante.
O referido autor, tendo como base teórica Branigan (1984), evidencia o papel do
personagem na construção de pontos de vista através do uso de planos-pontos-de-vista
(PPV) e suas interfaces com os outros criadores de pontos de vista. O que Silva (2008) e
Branigam (1984, 2005) postulam é a característica subjetiva ou a subjetivação da forma
como uma história ou um personagem é percebido e criado por autores, espectadores
narradores e personagens (estes intimamente ligados ao narrador). Nesse sentido, é a
partir do conceito de subjetividade que tratamos o ponto de vista em um filme e sua
apreensão que varia de acordo com as ideologias vigentes ou não. Silva (2008, p.6)
completa:
Na teoria de subjetividade proposta por Branigan, sujeito e objeto são
elementos integrantes da estrutura de representação, em que o sujeito é o
produtor da narração enquanto processo de percepção do objeto, e este, por
conseguinte, é o ponto de atração da atenção do sujeito; a separação entre
sujeito e objeto, como argúi Branigan, é puramente teórica, e é no espaço entre
ambos que se desenvolve o ponto de vista. Este seria, portanto, o conjunto de
estratégias estilísticas (posicionamento de câmera, som, montagem, fotografia,
construção de cena, etc.) criado para representar a subjetividade de um
personagem.
Referindo-se ao caráter subjetivo na construção de pontos de vista e às maneiras de criá-
los através dos componentes envolvidos da criação narrativa, seja autor, espectador,
personagem/narrador, podemos organizar nossa análise a partir de um ponto de vista
ideológico criado por circunstâncias da própria diegese fílmica e sua relação com o
mundo extra-diegético, aquele fora da ficção, da criação romanesca, da narratividade
dramática, ou seja, o mundo dito real.
84
É nesse caminho que nossas análises rumam, identificando como a história é
contada para um espectador contemporâneo, amalgamado ao um mundo globalizado
que tenta unificar as diversidades e apagar as contradições existentes e inerentes ao
convívio humano e às relações sociais. Quando tratamos do telefilme O silêncio do mar
concebido e adaptado a partir de dois contos, O silêncio do mar e Naquele dia, escritos
durante a ocupação nazista na França, percebemos que estamos analisando um produto
escolhido para representar um momento histórico vivido pela humanidade e sempre
presente na memória mundial. Para tanto, nossas análises enveredam para a construção
de um ponto de vista ideológico que não está em acordo com aquele proposto nos
contos, na narrativa folhetinesca da década de quarenta, e propõe um novo olhar sobre a
história, para um olhar dos fatos históricos nos dias de hoje. Os interesses
mercadológicos, ideológicos e políticos incrustados nas relações e nas práticas sociais
podem interferir na produção de formas simbólicas que por sua vez agem diretamente
na construção de pontos de vista e seus efeitos ideológicos. Nesse sentido, os pontos de
vista produzidos nos e por filmes/telefilmes podem acarretar em novos sentidos e novas
formas de perceber e produzir o mundo e seus aspectos históricos, que podem ou não
estabelecer relações de poder assimétricas.
Na análise de nosso corpus poderemos exemplificar melhor como tais
questionamentos, acerca do ponto de vista, são importantes, essenciais para
entendermos como a história se refaz na história contada pelo telefilme e como o ponto
de vista ideológico do telefilme se comporta, se está ou não está a serviço das relações
de poder assimétricas.
85
3. A ADAPTAÇÃO DE O SILÊNCIO DO MAR E NAQUELE DIA PARA A
TELEVISÃO - UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DO PONTO DE VISTA
IDEOLÓGICO.
3.1. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.
3.1.1. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS.
O corpus da pesquisa é composto pelos contos “O silêncio do mar” e “Naquele
dia” ambos pertencentes ao livro “O silencio do mar” (escrito em 1941 e publicado em
1942) de Vercors, e do filme homônimo produzido para a televisão em 2004 com o
mesmo título do livro e sob a direção de Pierre Boutron e adaptação de Anne Giafferi.
3.1.1.1. O LIVRO DE CONTOS O SILÊNCIO DO MAR.
O livro de contos intitulado O silêncio do mar traz em sua coletânea sete contos
que foram escritos durante a ocupação nazista na França e distribuídos à população
francesa como folhetins clandestinos. Escritos por Vercors, pseudônimo de Jean Bruller,
os contos foram reeditados em 1951, com poucas modificações, dando origem à versão
atual. No livro destacamos os contos O silêncio do mar e Naquele dia, adaptados para
a televisão em 2004 e veiculados na programação européia em 2005.
O livro de Vercors teve grande impacto nos anos subseqüentes ao período da
ocupação, em particular os contos em questão, pois tratam de um espaço no tempo
histórico do mundo que todos queriam esquecer e, sobretudo, apaziguar as memórias
dramáticas e traumáticas vividas. Nesse sentido, seus contos trazem a tona outra forma
de ver e perceber as pessoas envolvidas nas tramas e nas teias da história narrada,
tratando-as como vítimas de um poder autoritário e totalitário, isentando-as das
responsabilidades das suas ações e dando-lhes uma roupagem humanista, digna de
respeito e consideração.
86
3.1.1.2 – O SILÊNCIO DO MAR.
No conto O silêncio do mar, título que leva o nome do livro, temos a narração
onisciente do personagem mais velho da trama, um francês sexagenário que vive com
sua sobrinha em uma casa nos arredores de uma cidadezinha francesa próxima ao mar.
É a partir dos olhos desse senhor que passamos a ver todo o ambiente no qual a
narrativa se desenvolve, toda a trama e as características dos personagens envolvidos e
como os mesmos se relacionam na trama. A casa dessa família é requesicionada pelo
exercito alemão para a hospedagem de um capitão, Werner von Ebrennac, e este passa a
morar com seus anfitriões. Seus anfitriões, tio e sobrinha, vivem modestamente e
passam longas horas na sala menor da casa falando de coisas banais do cotidiano, onde
se passa a maior parte da narrativa. Encontramos sempre os três personagens na saleta e
a narrativa se desenvolve à noite, horário em que o capitão chega de seus afazeres. O
clima na casa não é o dos melhores, pois os moradores da casa não estão conformados
com a situação imposta pelas circunstâncias e nem com seu visitante “ilustre”. Contudo,
os ânimos são, pouco a pouco, abrandados pelas longas palavras proferidas pelo capitão,
em seus longos solilóquios.
Os outros personagens ouvem os discursos do capitão com certa distração atenta,
velho e sobrinha fazem de conta que não existe ninguém a falar e, assim, deixam que o
alemão fale sobre tudo um pouco. Em suas divagações, revela que está no exercito
alemão por uma contingência da vida, pois havia prometido ao seu pai, em seu leito de
morte, que seguiria a carreira militar, pois como se tratava de uma tradição de família,
não poderia se furtar de tal compromisso. A todos os instantes dos longos solilóquios, o
capitão deixa transparecer uma admiração incondicional para com o país invadido e
seus cidadãos, sempre tem uma palavra de contentamento por estar ali, na França que
tanto ama e respeita. Os outros personagens são levados pelas palavras amistosas e
corteses de seu algoz e percebemos, através do olhar do narrador, que aos poucos tio e
sobrinha são cooptados pelas lindas palavras e pela situação criada pelos
questionamentos humanistas feitos. O capitão, sempre que chega à casa, dirige-se aos
seus moradores com afeto e respeito, com polidez e refinamento, elogiando os grandes
feitos do povo francês, seus escritores e filósofos. Dessa forma, conquista a simpatia de
todos, uma simpatia velada, não revelada, descrita no silêncio interior dos personagens.
87
Aos poucos, somos inseridos nos pensamentos do narrador que, como tudo vê,
sente forte simpatia e respeito por seu hóspede e revela, nos mínimos detalhes, a
inquietação pela qual passa sua sobrinha. Tal inquietação é obra de um sentimento de
amor que cresce no silêncio da personagem, descrita como silenciosa e calma, com
aparente distância dos acontecimentos.
O sentimento de amor também é descrito, pouco a pouco, nas palavras do
narrador em relação ao capitão, que sente uma profunda admiração pela moça
enigmática e silenciosa. Ao descrever os sentimentos que envolvem o capitão e sua
sobrinha, o faz através dos olhares trocados pelos mesmos e vistos por ele, narrador. Ao
lermos o conto, percebemos claramente uma história de amor impossível, que cresce
com o passar dos dias e é vitimado pelas circunstâncias impostas pela historicidade e
pelas conveniências do tempo em que a ação se desenvolve. Nesses momentos, em que
os sentimentos afloram, o capitão passa por longas horas de inquietação e dúvida sobre
seu dever, como representante das forças nazistas. Seu destino está em questão.
O personagem nazista acredita estar a serviço de um propósito maior: unir
culturalmente e economicamente as duas maiores nações européias. Contudo, suas
intenções não condizem com as do III Reich. Descobertas as reais intenções de seus
compatriotas, sente-se enganado e ludibriado em seu íntimo, pois nada do que está por
vir condiz com suas expectativas. Ao final, revela a seus anfitriões suas incertezas e
resolve partir para o “inferno”, longe daqueles com quem compartilhou suas esperanças
de um mundo unido em uma só nação humanista. É com grande pesar que tio e sobrinha
despedem-se do capitão, que julga não haver mais esperanças para a humanidade.
Durante a despedida, cheia de carga dramática, a única palavra dita pela personagem da
sobrinha é “adeus”.
3.1.1.3 –NAQUELE DIA.
O conto Naquele dia traz em sua narrativa simples a história de um garoto que
misteriosamente perde sua mãe e é deixado pelo pai aos cuidados de uma vizinha. A
narrativa se segue em uma conversa entre pai e filho, na qual o personagem do pai tenta
explicar o que acontecera com sua esposa. O conto traz as impressões do garoto sobre o
fato ocorrido e é através de seu ponto de vista que a narrativa se constitui. Logo somos
levados pelo garoto e pelo narrador a desvendar o que aconteceria. Encaminhamo-nos
88
pelas veredas do campo francês até um rochedo com vista para uma pequena cidade e
suas casas e sua paisagem. O menino observara que sua mãe colocava sempre um vaso
de gerânio na janela quando seu pai saía de casa, e dessa vez não era diferente. Na volta
do passeio com seu pai, eles passam em frente de sua casa e o vaso de gerânio não está
mais ali, e assim seguem para a casa da vizinha que os recebe com certa benevolência e
espanto. O menino é entregue, chora muito e logo adormece. Seu pai havia partido sem
destino conhecido. Sua mãe também sumira. Ouve, nesse ínterim, uma conversa entre a
vizinha e outra mulher, ambas choravam penalizadas, não podia entender a causa de
tanta comoção. Os comentários davam conta de uma viagem de trem, na qual seu pai
encontraria sua mãe em uma cabine, não entende direito. Entretanto, ambos teriam sidos
descobertos, descobertos por quem? Não sabia. Jogava com um jogo de cubos ao ouvir
a conversa, que para ele não faz muito sentido. Continua jogando a procura de uma peça
em forma de olho. Chora sem parar e termina por encontrar o último cubo, um chapéu.
Nessa narrativa, o narrador se confunde com o garoto e vice-versa colocando em
evidência a confusão mental da criança e sua incapacidade de entender o que estava
acontecendo. É a partir do olhar da criança que entendemos o que poderia ter acontecido
com seus pais. Onde antes poderíamos entender a trama como mais uma sobre traição e
vingança, mais um caso passional entre marido e mulher, percebemos, aos poucos,
tratar-se da fuga de dois resistentes que, por infortúnio, são descobertos pelos nazistas.
3.1.1.4 – O TELEFILME O SILÊNCIO DO MAR.
O telefilme O silêncio do mar, adaptado dos contos O silêncio do mar e Naquele
dia, foi filmado em 2004 em uma produção fraco-belga e difundido em larga escala
pelas TV’s francófonas em 2005, por ocasião dos festejos de sessenta anos do final da
Segunda Guerra Mundial. O telefilme recebeu vários elogios por sua produção, sendo
premiado em 2004 no Festival da Ficção de St. Tropez com os títulos de melhor
telefilme unitário, melhor interpretação feminina e melhor música. Com a direção de
Pierre Boutron, grande nome da cinematografia e dramaturgia televisiva européia, e a
adaptação de Anne Giafferi, o telefilme traz em seu elenco os atores Thomas Jouannet
como o capitão alemão Werner von Ebrennac, o consagrado ator francês Michel
Galabru como Monsieur Larosière e a atriz Julie Delarme como Jane Larosière. Fruto da
união de dois contos, a adaptação possui a mesma temática humanista e paradoxal na
constituição e representação de seus personagens.
89
Os longos solilóquios são proferidos pelo capitão alemão enquanto seus
anfitriões ouvem com atenção dissimulada. Aos poucos, os personagens de avô e neta,
no telefilme o grau de parentesco é modificado, são impelidos a sentir certa admiração
pelo hóspede nazista. A condição imposta pela tradição familiar do jovem capitão é
vista, pelo mesmo, como uma obrigação, da qual não poderia furtar-se em cumpri-la.
Nesse sentido, todos os discursos proferidos pelo oficial alemão são de ordem
humanista e idealista, que não possuem bases sólidas na situação vivida por todos: a
guerra entre povos culturalmente diferentes. Toda a complexidade relativa às relações
humanas é posta nas palavras do personagem alemão e nas indagações do avô, M.
Larosière, sobre o caráter e o comportamento de seu hóspede.
Nesse ínterim, o conto Naquele dia é colocado como pano de fundo da narrativa
principal e evidencia as tentativas da Resistência francesa em aniquilar os inimigos e
seus projetos totalitários. Os personagens transitam na trama fílmica de um conto para o
outro. Os personagens de Jane e da família vizinha, mãe, pai e criança, são amigos
íntimos e seus caminhos sempre se cruzam na narrativa fílmica. Neste caso, os
personagens dos vizinhos de Jane, sobretudo a mulher, participam ativamente de
reuniões da Resistência francesa e a personagem feminina coloca sempre um vaso de
gerânio na janela para que o garotinho não entre em casa naqueles momentos. Na fusão
dos dois contos podemos perceber que os contos se entrelaçam e fazem fluir uma vida
no campo daqueles dias tão tristes. A vida cotidiana das pessoas parece o ser afetada
pelos acontecimentos, ainda que vivessem nos subterrâneos silenciosos das armadilhas
contra o exército alemão. Jane, personagem feminino principal, é professora de piano no
lugarejo mais próximo de sua casa e possui alguns alunos regulares, dentre eles destaco
a personagem de uma moça judia. Esse personagem é responsável pela inserção de
famílias judias na narrativa fílmica que logo desapareceram “inexplicavelmente” ou sem
maiores detalhes sobre a vida de tais pessoas e suas vidas.
O telefilme encerra sua narrativa com a partida do oficial alemão para os campos
de batalha russos, onde a temperatura chega aos quarenta e cinco graus abaixo de zero.
Jane despede-se de seu hóspede e as lágrimas demonstram o quanto era querido o
invasor, a vida volta ao seu estado anterior. Contudo, algo havia se modificado no
comportamento de Jane depois da partida. As últimas cenas dão conta de uma suposta
reunião clandestina à qual Jane participa e coloca um vaso de gerânio na janela, código
secreto utilizado pela vizinha e amiga desaparecida.
90
3.1.2. ANÁLISE DE DADOS
A pesquisa foi desenvolvida no intuito de analisar a adaptação de obras
literárias para o sistema televisivo levando em consideração aspectos culturais e
ideológicos partícipes no processo tradutório. Ela é, portanto, uma pesquisa de natureza
analítico-descritiva.
Na elaboração do projeto de pesquisa, que deu origem a essa análise dissertativa,
foi feita uma leitura apurada sobre o processo tradutório e suas implicações culturais e
ideológicas servindo de base teórica para a consolidação das idéias propostas para uma
análise da adaptação fílmica e seus percalços. Com o intuito de aprofundar o debate
sobre a ideologia e a cultura no discurso midiático, leituras mais detalhadas em
Charaudeau (2001), Kellner (2001), Bourdieu (1997) e outros filósofos da linguagem
foram lidos. Em relação à difusão da mídia televisiva nas sociedades foram feitas
algumas incursões nas considerações analíticas de Duarte (2006), Wolton (1996), Bucci
(2004), Machado (2000) e outros.
Foram observadas as técnicas cinematográficas utilizadas na tradução do filme,
analisando-se aspectos próprios à tradução. Por exemplo, que elementos típicos da
linguagem cinematográfica foram utilizados para traduzir essas características para a
televisão, fazendo-se assim uma análise mais apurada. Para isto foram lidas e
aprofundadas as leituras em teóricos como Xavier (2003), Andrew (1989), Aumont
(2006), Branigan (2005) e outros.
Quanto às análises feitas sobre o ponto de vista ideológico na narrativa fílmica
foram utilizados os conceitos de ideologia e cultura calcados nas idéias de Thompsom
(2007), Geertz (1989), Fairclough (1992), e outros especificados nas discussões feitas
anteriormente. Para o embasamento teórico sobre questões como identidade,
nacionalismo e memória, utilizo-me dos conceitos e discussões feitas pelos teóricos
Baudrillard (2005), Seligman-Silva (2006), Bauman (2005), e outros.
91
3.2. LIVRO E FILME: UMA REFLEXÃO SOBRE O PONTO DE VISTA
IDEOLÓGICO.
3.2.1- A OBRA ESCRITA E AS CONTROVÉRSIAS EM SUA RECEPÇÃO.
A obra escrita por Vercors no início dos anos quarenta teve grande repercussão
entre os intelectuais e leitores de sua época por conter em sua narrativa aspectos
ideológicos humanistas que não estavam de acordo com os postulados aspirados
naquele momento. A França era um país dominado militarmente pelo exército nazista, a
ocupação chegava a quase noventa por cento de seu território, seus cidadãos eram
tratados como seres inferiores aos arianos dominantes e seu governo provisório, o
governo de Vichy, odiado por suas convicções colaboracionistas. Nesse contexto
conflituoso, a obra de Vercors foi considerada como um apelo à colaboração ao governo
e aos invasores alemães. Entretanto, o folhetim de contos distribuídos na
clandestinidade das noites, nas edições de meia noite
13
, tinha o propósito de passar aos
seus leitores uma forma de resistência apregoada por alguns intelectuais que não se
sujeitavam aos ditames de seus algozes, mas também não acreditavam que os mesmos
eram, em sua totalidade, maus em essência, abrindo, assim, uma discussão sobre os
seres humanos obrigados a desempenhar papéis ditados por superiores, nem sempre
condizentes com aspirações individuais. O que dizer de um soldado que obedece a
ordens cegamente e que destrói seus “inimigos”, criados em circunstâncias políticas e
ideológicas que favorecem aos anseios e aos interesses de seu país? Nesse sentido,
diferentemente dos artistas e intelectuais conhecidamente colaboracionistas, como Drieu
la Rochelle, Brasillach, Giono e Cocteau que aderiram ao regime nazista, Jean Bruler
(Vercors) decide que é através da literatura e de sua arte silenciosa que deve resistir aos
invasores. Sua atitude acaba por divergir de seus colegas Jean de Lescure, Prévost, René
Char, André Malraux e Pierre Reverdy que haviam decidido participar ativamente da
resistência calando suas canetas e suas criações. Riffaud (1999, p.88-89) esclarece tais
aspectos históricos:
Encontramos de um lado escritores como Vercors, Mauriac, e
mais amplamente aqueles que publicarão nas Edições de Meia Noite.
Para estes, a luta era, primeiramente, espiritual e humanista; a
dignidade humana e a permanência da cultura francesa constituem sua
preocupação primeira.
13
Éditions de minuit
92
A outra tendência reagrupa escritores favoráveis à violência e à
luta armada: eles desejam criar uma literatura de combate. É o caso da
revista As cartas francesas, de orientação comunista, de Kessel, Aragon
ou Triolet, bem como Pierre Seghers com sua revista Poesia 40, 41
..
.
14
Podemos perceber que as formas escolhidas para agir contra as ações dos nazista eram
muitas e conflitantes, pois um grupo agia de forma silenciosa, utilizando-se da palavra
escrita, e o outro preferia a luta armada. A luta armada ou a Resistência armada na
França teve seu início no final do ano de 1941, de forma fraca e desordenada, e
intensificou-se no ano de 1943 até o final da Segunda Guerra Mundial em 1945 com a
chegada dos aliados e das tropas lideradas por Charles de Gaule.
O livro de contos de Vercors, então iniciante na arte de escrever, não obteve
grande êxito na época de sua distribuição, pois foi incompreendido e muito criticado por
construir personagens não condizentes com o momento vivido pela França e seus
cidadãos. Logo foi taxado de colaboracionista e seu conto O silêncio do mar
considerado como literatura a serviço do exército nazista. Contudo, nos anos seguintes
ao final da guerra, o próprio autor retrucou qualquer tentativa de ligá-lo ao movimento
colaboracionista e explicou que seu principal conto estaria de acordo com seus ideais
humanistas e que a construção dos personagens fictícios tinha inspiração em pessoas
que havia conhecido no período anterior à guerra e que contribuíam para uma visão
mais humana dos indivíduos independente de suas nacionalidades. Ainda assim foi
duramente criticado pelos intelectuais que atribuíam caráter inverossímil aos seus
personagens, a exemplo as declarações de Arthur Kœstler (1943) em Chegada e
Partida
15
de 1943 em que critica veementemente o fato de não entender o valor
alegórico do conto de Vercors posto que “desde 1942 os judeus eram assassinados e que
14
On trouve d’une part les écrivains comme Vercors, Mauriac, et plus néralment ceux qui publieront
aux Éditions de Minuit. Pour eux la lutte a d’abord été spirituelle et humaniste; la dignité humaine et la
permanence de la culture française constituent leur première préocupation.
L’autre tendence regroupe des écrivains favorables à la violence et à la lutte armée: ils souhaitent créer
une litterature de combat. C’est le cas de la revue Les lettres françaises, d’obédience communiste, de
Kessel, Aragon ou Triolet, de même que Pierre Seghers avec sa revue Poésie 40, 41...
Encontramos de um lado escritores como Vercors, Mauriac, e mais amplamente aqueles que publicarão
nas Edições de Meia Noite. Para estes, a luta era, primeiramente, espiritual e humanista; a dignidade
humana e a permanência da cultura francesa constituem sua preocupação primeira.
A outra tendência reagrupa escritores favoráveis à violência e à luta armada: eles desejam criar uma
literatura de combate. É o caso da revista As cartas francesas, de orientação comunista, de Kessel,
Aragon ou Triolet, bem como Pierre Seghers com sua revista Poesia 40, 41...
15
Arrival and Departure. Fragmento de um ensaio publicado em novembro de1943 na Tribuna. Título
original do ensaio “O catarro francês”. Chartlot, 1946, p.36-37, Arthur Kœstler. Fonte: Riffaud, texto 6, p.
114.
93
os campos de batalha do mundo inteiro estavam cobertos de cadáveres.”.
16
(apud
RIFFAUD, 1999, p. 90)
Jean-Paul Sartre (apud RIFFAUD, 1999, p. 80-82) coloca em evidência a época
em que o livro foi escrito, no ano de 1941, e deixa claro que o efeito causado nas
pessoas desse ano não era o mesmo que nas pessoas de 1943, pois o momento histórico
fora outro, a situação e as relações sociais haviam sido modificadas nos anos seguintes.
Lembra que no início do ano de 1941 os franceses ainda estavam em choque com a
invasão, a derrota e a submissão do governo francês. Esse povo dominado misturava-se
ao seu invasor nos afazeres cotidianos a pelo menos um ano e meio. Nesse ínterim, o
invasor era considerado mais uma vítima de um poder totalitário e de uma ideologia à
qual não podia se furtar em defender. É nesse contexto que o livro de Vercors é
concebido, editado e distribuído. Sartre (1948) em resposta a Kœstler (1943) num texto
recolhido de 1948 (apud RIFFAUD, 1999, p.115) coloca ainda que:
Quando o inimigo é separado de você por uma barreira de fogo,
você deve julgá-lo em bloco, como a encarnação do mau: toda guerra é
maniqueísta. Logo é compreensível que os jornais da Inglaterra não
percam tempo em distinguir o joio do trigo no exército alemão. Mas, ao
contrário, as populações vencidas e ocupadas, misturadas aos seus
vencedores reaprendem, por hábito, pelos efeitos de uma propaganda
hábil, a considerá-los como homens. Homens bons ou maus; bons e
maus respectivamente.
17
A reflexão atenta de Sartre nos mostra como agiam os indivíduos em 1941, período
anterior às atrocidades cometidas pelos alemães em território francês nos anos
seguintes. Pois é a partir de 1942 que as investidas contra os judeus e os resistentes
começam a mostrar a real face, devastadora e impiedosa, dos propósitos nazistas.
Podemos, assim, entender como se deu tal investida e como o autor analisa a obra de
Vercors:
Uma obra que lhes tivesse apresentado soldados alemães, em
41, como ogros, teria feito rir e, assim, perdido sua finalidade. Desde o
fim de 42, O silêncio do mar havia perdido sua eficácia: a guerra havia
recomeçado em nosso território: de um lado, propaganda clandestina,
sabotagens, descarrilamentos, atentados; de outro, contra-ataque,
deportações, encarceramentos, torturas, execuções de sequestrados.
16
“dès 1942 des juifs étaient assassinés et que les champs de bataille du monde entier étaient couverts de
cadavres.
16
“ (apud RIFFAUD, 1999, p. 90)
17
Quand l’ennemi est séparé de vous par une barrière de feu, vous devez le juger en bloc comme
l’incarnation du mal: toute guerre et un manichéisme. Il est donc compréhensible que les journaux
d’Angleterre ne perdissent pas leur temps à distinguer le bon grain de l’ivraie dans l’armée allemande.
Mais, inversement, les populations vaincues et occupées, mélangées à leurs vainquers, réapprennent, par
l’accoutumance, par les effets d’une propagande habile, à les considérer comme des hommes. Des
hommes bons ou mauvais; bons et mauvais à la fois.
94
Uma barreira de fogo invisível separava novamente os alemães dos
franceses; nós não queríamos mais saber se os alemães, que arrancavam
os olhos e as unhas de nossos amigos, eram cúmplices ou vítimas do
nazismo; frente a eles não era suficiente guardar um silêncio altivo, eles
não teriam tolerado todavia: a essa faceta da guerra, teríamos que estar
com ou contra eles; em meio a bombardeios e a massacres, a vilas
queimadas, a deportações, o livro de Vercors parecia um idílio: ele
havia perdido seu público. (RIFFAUD, 1999, p.115).
18
Sartre (1948) ainda evidencia a importância da obra para aquele leitor de 1941, mas
deixa claro que uma obra de circunstância deveria ser lida no momento em que fosse
escrita, no espaço e tempo a que se referia, pois correria o risco de acontecer o que
aconteceu com o conto de Vercors, ser rechaçado pelas populações e críticos do pós-
guerra. É importante notar que as considerações feitas por Sartre nos mostram certa
descrença para com as obras de circunstância e, sobretudo com os contos de Vercors.
Ao referir-se à obra O silêncio do mar credita ao tempo de sua circulação o sucesso e
infortúnio na recepção. Acreditando estar sendo coerente com suas proposições, não
imaginava que a obra acabaria por ser uma das mais lidas e estudadas nos dias de hoje, a
ponto de ter uma adaptação filmada em 1949 com direção de Jean-Pierre Melville, uma
adaptação para o teatro feita pelo próprio Vercors em 1979 e em 2004 outra adaptação
televisiva feita por Butron e Giafferi. Vale ainda ressaltar que após várias críticas
quanto ao conteúdo humanista da obra, o próprio autor viu-se na obrigação de
redimensionar suas posições no conto O silêncio do mar colocando em evidência o
ponto de vista do personagem do avô através de seus questionamentos mais íntimos
sobre a conduta de seu hóspede e suas idéias humanistas. Riffaud (1999, p.91) ressalta:
Vercors foi levado a corrigir seu texto. Logo após o debate
nascido durante a guerra, na sua versão definitiva de 1951, Vercors
acrescenta a reflexão do narrador sobre a submissão do oficial: « Eu
pensava: «Dessa forma ele se submete. Eis então tudo o que eles sabem
fazer. Eles todos se submetem. Mesmo este homem»(p.50). Na versão
que ele adaptou para o teatro em 1979, algumas respostas explicitam
18
Une œuvre qui leur eût présenté les soldats allemands en 41comme des ogres eût fait rire et manqué son
but. Dès la fin de 42, Le silence de la mer avait perdu son efficace: c’est que la guerre recommençait sur
notre territoire: d’un coté, propagande clandestine, sabotages, dérraillemants, attentats; de l’autre, couvre-
feu, déportations, emprisonnements, tortures, exécutions d’otages. Une invisible barrière de feu séparait à
nouveau les Allemands des Français; nous ne voulions plus savoir si les Allemands qui arrachaient les
yeux et les ongles à nous amis étaint des complices ou des victimes du nazisme; en face d’eux il ne
suffisait plus de garder un silence hautain, ils ne l’eussent pas toléd’ailleurs: à ce tournant de la guerre,
il fallait être avec eux ou contre eux; au millieu des bombardements et des massacres, des villages brûlés,
des deportations, le roman de Vercors semblait une idylle: il avait perdu son public. (RIFFAUD, 1999,
p.115)
95
certos pontos, e no final o tio saca uma arma na frente de sua sobrinha,
referência ao combate armado da Resistência.
19
Logo, podemos entender o quanto foram importantes os debates acerca de sua obra e o
impacto criado por seus personagens naquela época. Marcados pelo fim de uma guerra
traumatizante, intelectuais e críticos debateram os possíveis aspectos ideológicos e
culturais de uma obra tão controversa, e assim puderam fomentar uma reparação, uma
readequação da obra por parte do autor.
Essa breve explanação nos serve de base para as discussões vindouras de nossa
pesquisa, pois nos insere no mundo no qual o livro de contos foi escrito e, sobretudo nos
mostra como foi sua recepção naqueles tempos. Além disso, as colocações anteriores
nos mostram um pouco das discussões feitas pelos críticos e intelectuais que defendiam
posições culturais e ideológicas na época da guerra e posterior a ela. As posições
defendidas pelos autores são extremamente fortes e requalificam a obra de Vercors
posicionando-a num patamar ideológico e cultural que não condiz com aqueles
postulados pela grande maioria de seus pares. Tais indagações e postulados defendiam a
cultura francesa acima de toda e qualquer submissão estrangeira, enalteciam a liberdade
e autonomia de uma nação e de seu povo que submetido às atrocidades alemãs devia, no
mínimo, encontrar maneiras de libertar-se a qualquer custo. As promessas de liberdade
por meio da luta armada, disseminadas pela Resistência organizada a partir de 1942
produziam efeitos positivos na população, por conseguinte, nos intelectuais que viviam
na França durante a ocupação e naqueles que estavam no exílio. A obra de Vercors,
obviamente, não ditava regras para uma resistência clara e armada, não destacava os
anseios de liberdade de seu povo e nem mostrava o caminho da libertação, mas,
contrariava a todos ao defender um possível amor entre inimigos que, apesar de sê-los,
eram, acima de tudo, indivíduos marcados pelos ditames de uma política totalitária e
racista. É nesse sentido que os contos de Vercors são marcados pelo seu humanismo
ingênuo e pacifista. O silêncio, para o autor, era a forma mais eficaz, naquele momento,
de resistir a todo tipo de invasão e opressão causados por seus “inimigos”, seus
adversários do momento.
19
Vercors a été ameà amender son texte. À la suite du débat pendant la guerre, dans sa version
définitive de 1951, Vercors ajoute la réflexion du narrateur sur la soumission de l’officier: «je pensai: «
Ainsi il se soumet. Voilà donc tout ce qu’ils savent faire. Ils se soumettent tous. me cet homme-là»
(p.50). Dans la version qu’il adapte pour le théatre en 1979, des répliques permettent d’expliciter certains
points, et à la fin l’oncle sort une arme devant sa nièce, allusion au combat armé de la Résistance.
96
Podemos atentar para o fato de que Vercors postulou um mundo melhor sem
violência ou revides que utilizassem as mesmas armas de seus antagonistas. Contudo, as
armas ideológicas, como a propaganda ideológica, e de fogo utilizadas por seus
invasores eram muito mais poderosas que sua tênue e sublime intenção. Ainda restaria,
para a humanidade, escapatória em tempos tão adversos? Parece que para o autor, em
sua obra, a resposta é positiva apesar de que nos anos seguintes à rendição alemã, o
próprio autor tenha tomado a decisão de corrigir seu conto O silêncio do mar e inserir,
simbolicamente, a luta armada em sua adaptação para o teatro.
Percebemos, assim, que os aspectos ideológicos mudam conforme a obra passa
pelo tempo, pelo crivo de seus interlocutores temporais, deixando marcas diferentes e
formas simbólicas que adequam-se ao tempo e ao momento da obra. Nesse sentido,
podemos afirmar que a adaptação televisiva, produzida em 2004 e parte de nosso
corpus, produz efeitos díspares daqueles apreciados ou detestados e criticados, por
tantos, em épocas passadas. Como Sartre (1948) havia dito: Parece que as bananas são
mais saborosas ao serem colhidas: as obras do espírito, paralelamente, devem ser
consumidas no lugar e na hora”
20
(apud RIFFAUD, 1999, p.116).
Ressalto que as críticas mais ferrenhas ou que tiveram mais destaque são
destinadas ao conto O silêncio do mar, e que o conto Naquele dia não foi, por parte dos
críticos e intelectuais, vitimado pelo olhar minucioso daqueles que faziam parte do
mundo intelectualizado da época.
Estabelecendo uma relação entre obra escrita e sua recepção, a obra televisiva
adaptada e a época em que foi produzida e veiculada pelas emissoras de TV, poderemos
fazer uma análise mais eficaz de como se dá o processo de tradução intersemiótica e a
relação do produto adaptado com a cultura e ideologia vigentes. É nesse sentido que
nossas apreciações serão feitas, sempre com um olhar mais crítico e atento no processo
tradutório e seus efeitos através das técnicas cinematográficas que constrõem pontos de
vistas que estão ou não de acordo com as formas de poder assimétricas e se estabelecem
ou não relações de dominação.
20
“il parait que les bananes ont meilleur gôut quand on vient de les cueillir: les ouvrages de l’esprit,
pareillement, doivent se consommer sur place.” (apud RIFFAUD, 1999, p.116)
97
3.2.2 – O TELEFILME “O SILÊNCIO DO MAR”
Quando falamos em estratégias usadas na transmutação de romances para cinema,
televisão ou teatro referimo-nos a todas as formas e meios utilizados pela equipe que
desenvolveu tal tarefa. Assim, referimo-nos à montagem, câmera, luz, construção de
personagens, cenário, som, à tudo aquilo que corrobora em satisfazer a composição da
imagem e do som. Xavier (2003, p.19) afirma que:
[...] em cada modalidade de arte, os recursos são diferentes, mas
cineasta, diretor de teatro e romancista têm em comum esse exercício de
uma escolha que pode ser descrita, em parte, nos mesmos termos. No
que diz respeito à adaptação, nos deparamos com cotejos assentados
no que há de comum e que pode ser motivo de identidade ou de
diferença entre romance e filme.
Nossa pesquisa analisa as estratégias usadas pelo diretor e sua equipe para a
construção do ponto de vista em relação aos personagens: o capitão alemão, Werner
Von Ebrennac, Jeanne e Sr. Larosière. Para essa análise, levamos em consideração,
entre outros aspectos, a luz, a música, o posicionamento da câmera e seus PPVs,
elementos que colaboram inegavelmente com a montagem para a construção de pontos
de vista.
A construção do personagem do Capitão alemão se a partir de sua chegada na
casa de seus “anfitriões”. É mister enfatizar que, no conto de Vercors, tal personagem se
desenvolve de forma equilibrada, mostrando-se sempre amável, educado, fino, culto e
de conduta irreparável, ilibada. Em nenhum momento da narrativa tal personagem
personifica a imagem de um Capitão do exército alemão, imagem a qual estamos
“acostumados”, que seria justamente oposta à apresentada no conto e no telefilme. Sua
conduta nos é apresentada e representada como a de um Lorde ou a de um membro da
nobreza, um príncipe afinal, com todas as prerrogativas necessárias para o exercício de
tal posto. Nesse sentido, podemos concluir que o personagem possui grandes
questionamentos em relação ao seu papel social, ao desempenho de suas funções. Os
monólogos proferidos pelo utópico e idealista Werner vislumbram a união entre as
culturas que considera mais importantes no mundo ocidental, a francesa e a alemã.
Mostra-se, assim, um admirador inconteste do povo francês e de sua literatura. Como
podemos perceber em seu discurso no conto que fora adaptado na íntegra para uma das
cenas do telefilme:
98
[...] Balzac, Barrès, Baudelaire, Beaumarcheait, Boileau,
Buffon…Chateaubriand, Corneille, Descartes, Fénelon, Flaubert… La
Fontaine, France, Gautier, Hugo…surpreendente! (…) e ainda estou na
letra h!…nem Molière, nem Rabelais, nem Racine, nem Pascal, nem
Sthendhal, nem Voltaire, nem Montaigne, nem todos os outros!
[...] E na música, ah na música somos nós: Bach, Haendel, Beethoven,
Wagner, Mozart... que nome vem em primeiro? (VERCORS, 1994, p.
28).
21
No entanto, continua sendo um Capitão alemão, ligado a um exército que deve obedecer
aos ideais de Hitler que são completamente opostos aos seus. Caracteriza-se o
conflito interior do personagem no conto e no telefilme.
O conflito interior do Capitão Werner von Ebrennac é inicialmente analisado aqui
a partir da montagem e dos closes feitos em seu rosto e corpo, construindo passo a passo
seu caráter e sua personalidade. Sua chegada na casa é marcada por um close em suas
botas de capitão do exército alemão, subindo pelas suas costas largas e cabeça. Há de se
esperar que o personagem seja um oficial de grande patente, arrogante e pretensioso.
Contudo, quando é feita a imagem em close do rosto do personagem, vê-se a figura de
um homem aparentemente doce e de feições delicadas. Seu olhar terno não se assemelha
à imagem convencional de um oficial da Alemanha nazista. Dessa forma, fica evidente
a desconstrução do simbolismo imagético em torno da representação de um nazista.
Como foi evidenciado por Shohat & Stam (2006), e discutido no capítulo 2 de nossa
pesquisa, as técnicas cinematográficas desempenham papel fundamental para a
construção de personagens, em especial closes, primeiro planos e planos de fundo
podem revelar discursos e ideologias. A imagem feita corrobora para se chegar a esta
conclusão, como podemos perceber nas figuras a seguir:
21
[...]Balzac, Barrès, Baudelaire, Beaumarchait, Boileau, Buffon[...]Chateaubriand, Corneille, Descartes,
Fénelon, Flaubert[…]La Fontaine, France, Gautier, Hugo…Quel appel! [...] Et je n’en suis qu’à lettre H !
...Ni Molière, ni Rabelais, ni Racine, ni Pascal, ni Stendhal, ni Voltaire, ni Montaigne, ni tous les
autres![...]
[…] - Mais pour la musique, alors c’est chez nous: Bach, Haendel, Beethoven, Wagner, Mozart [...] quel
nom vient le premier? (VERCORS, 1994, p. 28)
99
Figura 1: A chegada do oficial na casa dos anfitriões
Além dessa questão imagética, evidencia-se, por atitudes e palavras, a mesma
desconstrução. Sempre que o personagem aproxima-se dos donos da casa, onde está
hospedado, não possui atitudes ríspidas ou grosseiras, mas esmera-se em gentilezas, não
se comportando como um intruso, um invasor que de fato é. Podemos elencar algumas
das atitudes inusitadas do personagem, como por exemplo: Como poderia um oficial
alemão aceitar dividir o espaço com seus inimigos sem tratá-los como servos? Por que
não os expulsara da casa? Por qual razão ofereceria carona à jovem francesa? Por que
era tão gentil, cumprimentando os donos da casa ao se recolher à noite? Todas as ações
do Capitão alemão denotam sua personalidade conflituosa e, mais, condizentes com
seus princípios humanistas.
Da mesma forma percebemos que as atitudes dos personagens do senhor
Larosière e de sua neta tendem a demonstrar, com o desenrolar do telefilme, um olhar
mais condescendente em relação ao Capitão alemão. A aversão demonstrada
inicialmente pelo silêncio, pela indiferença e pelas atitudes pouco receptivas. É
enfatizada pela montagem, que faz uso de enquadramentos e cortes abruptos indicando
a oposição dos personagens. Porém, aos poucos essa aversão vai se esvaindo para o
telespectador e para os personagens de Jeanne e seu avô, que se identificam com a
beleza do Capitão, com as formas angelicais de seu rosto e a pureza de espírito nas
ações demonstradas pelo mesmo.
No capítulo 2, pudemos atentar para o poder das imagens em criar identificações,
classificadas por Aumont (2007) em primária e secundária. A identificação primária é
relativa ao olhar do espectador que o que quer ver, como se o filme fosse feito para
ele mesmo e seu ponto de vista fosse único. Na identificação secundária, o espectador
encontra nas narrativas um pouco de sua própria história, em uma espécie de carência
b
a
100
vivida pelo mesmo. Deleuze (2007) vai mais além quando fala que as identificações dos
telespectadores está vinculada aos clichês que fazemos de nossas vidas, sempre nos
esquivando de situações desagradáveis. Assim, por meio dos closes e enquadramentos
podemos inferir que uma possível identificação dos telespectadores com os conflitos
vividos pelos personagens e uma possível simpatia pelo personagem do Capitão Werner
von Ebrennac. As imagens feitas através dos closes, cortes e enquadramentos propiciam
ao telespectador a criação de suas próprias imagens gerando identificações e pontos de
vista.
Figura 2: Oposição dos personagens – PPV do Capitão alemão.
Um dos recursos cinematográficos utilizados para construção de pontos de vista
está presente na ocupação dos espaços diegéticos. Os papéis sociais são claros e bem
definidos quando os personagens estão fora da casa. Em contrapartida, os conflitos
interiores dos personagens emergem quando todos estão no interior da residência, onde
se percebe uma certa hostilidade ao oficial alemão. Como vemos na figura acima,
Jeanne e seu avô são colocados sempre em oposição ao oficial alemão, o olhar de ambos
não é direcionado ao seu antagonista. Eles apenas ouvem o que é dito e agem
respondendo com silêncio e desaprovação.
Outro aspecto que expõe o conflito interior dos personagens é a iluminação.
Sempre que os mesmos se encontram no interior da casa, a iluminação é débil e
101
amarelada, de cor âmbar. Essa característica ajuda na produção de sombras, entendida
aqui como um elemento a mais na demonstração do conflito. Os papéis sociais não
estão claros nesse ambiente de penumbra, ressaltado pelas indagações do avô que
indicam certo conformismo ao ver o oficial - “Graças à Deus. Ele parece ser
razoavel”
22
. Nesses momentos existe uma tênue linha que separa a razão e a emoção,
podendo ser a qualquer momento transposta.
Assim sendo a iluminação, no telefilme de Pierre Boutron, traz em si a tentativa
de representação dos sentimentos conflituosos dos personagens principais e revela
como deveria ser o seu comportamento social durante a segunda guerra mundial. A casa
onde os personagens coabitam é sempre visualizada no seu interior com a utilização de
uma iluminação sombria, induzindo à compreensão do comportamento e dos conflitos
internos dos personagens, sobretudo do Capitão alemão e de Jeanne, professora de
piano.
Figura 3: O interior sempre escuro e conflituoso.
Como vimos no capítulo 2, os elementos técnicos cinematográficos ajudam-nos a
entender como estes atuam na construção de personagens no telefilme e como se a
relação entre eles num mundo tão adverso para a época. A representação do nazismo é
22
“A Dieu merci. Il a l’air convenable”. Palavras do avô logo após receber o oficial alemão em sua casa.
102
desconstruída nessa produção por meio das ações dos personagens - em específico o
oficial alemão -, possibilitando um reforço ao propósito maior do telefilme em 2004:
comemorar os sessenta anos do fim da guerra.
Ao inferir que a iluminação ajuda a narrativa fílmica destacando os conflitos,
incertezas e comportamentos dos personagens, cria-se um paralelo: como era o
comportamento social de um capitão alemão e de uma jovem francesa nos tempos da
grande guerra e como é aceito tal comportamento nos dias de hoje. Dessa forma, a
representação do real através de cnicas de cinema, no caso a iluminação, nos faz
rememorar e reconhecer o real tendo a imagem como verdadeira. Werner von Ebrennac,
personagem com problemas de consciência e de identidade, é revelado através do uso de
sombras em seu rosto, traduzindo-se assim sua angústia interior ao se ver como soldado
alemão e indicando uma possível segunda identidade. Vemos na figura abaixo a
representação simbólica de seus conflitos com as sombras produzidas em seu rosto.
Figura 4: As sombras representando os conflitos interiores de Ebrennac
Esse jogo claro/escuro no filme, em relação aos ambientes e à construção dos
personagens, não nos leva a crer que os papéis sociais são claros, bem como as
relações sociais se fazem sob circunstâncias bem delimitadas. Logo, alemães e franceses
não poderiam de forma alguma manter ligações mais estreitas ou íntimas, que no
papel de invasores, os alemães não eram bem vistos nem tão pouco aceitos socialmente
103
nos círculos sociais da época e aqueles que mantinham relações de amizade com os
inimigos eram vistos como traidores da pátria.
Vale ressaltar que o jogo claro/escuro utilizado no telefilme proporciona à
narrativa fílmica uma idéia de que as relações humanas se dão num limiar maniqueísta.
Nas cenas onde o filtro de câmera e a iluminação evidenciam o claro, percebe-se que
as ações e os atos dos personagens são bem marcados pelas suas convicções sociais,
culturais e históricas. Em nenhum momento tais convicções são postas em contraponto
nem tampouco contestadas, nem se reivindica outro comportamento senão o “esperado”.
O capitão alemão é portador de sua insígnia nazista e deve assim respeitá-la, mantendo-
se fiel ao seu comando e suas tradições. A personagem Jeanne deve comportar-se como
uma legítima francesa que se sente ofendida pela invasão, não de seu país como de
sua casa. Todos estão de acordo com o ambiente verossímil criado pelo telefilme, onde
tudo é transparente e “natural”.
Figura 5: Papéis sociais bem delimitados no ambiente claro.
No ambiente escuro ou com propositada iluminação débil, as ações e os conflitos
dos personagens são exacerbados por indagações e questões reflexivas em que os papéis
sociais não mais se identificam com a normalidade ou a naturalidade. O capitão alemão
não se reconhece eminentemente nazista nem carrasco de um povo, e sim como um
filantropo, um artista, enfim um sonhador, desconstruindo, assim, a identificação do
104
sujeito em detrimento de uma nova identificação do personagem. O personagem da
professora de piano francesa, Jeanne, também é desconstruído, pois no ambiente escuro
ela deixa transparecer seus sentimentos mais íntimos em relação ao Capitão. Como
vimos acima, existe uma tentativa de amainar os sentimentos dos telespectadores em
favor de uma história de amor, buscando identificações com os conflitos dos
personagens e suas ações. Os fatos históricos ficam em segundo plano, num espaço
extradiegético compartilhado por todos mas que não encontra forças para subverter a
ficção. A adaptação fílmica, no nosso caso o telefilme, tende a exercer um poder
imagético transformador, resignificando os personagens e levando o telespectador a
obter um ponto de vista favorável a uma história de amor entre inimigos. É certo que
esta é uma questão complexa e repleta de ambigüidades, ao que podemos apenas inferir
uma possibilidade. Duarte (2006) afirma que a televisão, na tentativa de convencer os
telespectadores, é capaz de transformar em “sua verdade” os fatos reais e ao trabalhar a
ficção tende à recriação do real em virtual. Ora, mesmo o telespectador sendo um agente
ativo e crítico em relação ao que na TV, não podemos deixar de levar em
consideração o poder da imagem e da própria TV em criar pontos de vista condizentes
aos seus anseios político-econômicos e, assim, criar novas identidades condizentes com
a cultura e as ideologias dominantes atualmente.
Figura 6: Exaltação da cultura francesa e alemã.
105
No figura acima vemos uma cena em que a cultura francesa, através da
literatura, e a cultura alemã, por meio da música, são enaltecidas pelo invasor. Ao
comparar as grandes obras literárias e as composições clássicas dos mestres da música
alemã, revela seus propósitos de união entre as culturas e suas verdadeiras intenções,
solitárias e humanistas, que não são condizentes com a ideologia nazista. Mais uma vez
as contradições e conflitos interiores do personagem são postos em evidência revelando
um lado do personagem que não se coaduna com a representação imagética de um
oficial alemão da época. Esses conflitos, postos nos discursos e nas imagens-discurso do
telefilme, podem enfatizar a natureza humanista e ideológica da produção em
desmistificar e desconstruir os ideais nazistas em nossos dias. O entre-meio criado pelas
cenas, como Bhabha (1998) revela, no qual presente e passado se fundem na direção de
um futuro intersticial, mostra-nos um personagem nazista ideal para nossos dias, para a
cultura e ideologias vigentes na era da globalização, das informações sem tempo e
espaço, da virtualidade. O plano-ponto-de-vista (PPV), concepção elaborada por
Branigan (2005) que adotamos a partir de agora, coloca o telespectador em posição
central para decidir o que deve pensar e sentir perante a cena. A identificação proposta
pela câmera e o ponto de vista criado por ela evidenciam o caráter amigável e sensível
do oficial alemão em oposição às formas simbólicas estabelecidas no passado, nos
tempos da guerra. Em todo o telefilme obtemos pontos de vista que nos direcionam para
uma identificação com novas formas simbólicas criadas para um não-lugar verossímil
no tempo e no espaço.
No ambiente verossímil, parafraseando Aumont (2007, p.141), os conflitos
interiores no filme são permeados pelos planos claro/escuro e o efeito de sombras que
funcionam como uma censura dos atos e das ações dos personagens. Jeanne e Werner
jamais poderiam ficar juntos num espaço onde pré-existe um julgamento de conduta
naquela sociedade em guerra. Assim, a imagem construída do personagem Werner Von
Ebrennac no telefilme busca uma identificação com a realidade da época, com o
momento, e se veste de uma nova roupagem buscando aceitação. A mesma se por
meio de eufemismos na caracterização e construção dos personagens, evidenciados no
uso de sombreamentos e de planos claro/escuro. A busca por identificação com a
realidade nos remete ao que Thompson (1990) indaga sobre os fenômenos culturais nas
sociedades e na necessidade de entendermos como os mesmos são afetados pelas
formas simbólicas cristalizadas e os contextos sociais. Quero salientar que o uso da
106
iluminação como estratégia cinematográfica na adaptação do telefilme ressalta formas
simbólicas naturalizadas no presente e no passado dos indivíduos, na história escrita e
contada. Essas formas simbólicas naturalizadas são a fonte na qual buscamos, de forma
crítica, nos identificar com o oficial alemão para em seguida desconstruí-lo.
23
Vale ressaltar, ainda, que a sombra não é utilizada somente como recurso que
evidencia o conflito interior do oficial alemão, mas também denota a negatividade da
invasão do exército alemão na França e a indefinição vivida pelo personagem alemão,
ora humanista, ora nazista. Esse aspecto é percebido em todas as vezes que o capitão
está entrando nos ambientes da casa, ocupados pelos outros personagens. Antes da
imagem do capitão se apresentar, ela sempre é precedida da projeção de sua sombra,
introduzindo uma visão negativa do invasor, cena imageticamente desconstruída nos
momentos em que a personificação do personagem. Vemos nas figuras abaixo
justamente algumas das cenas em que as sombras são vista.
a b
c d
Figura 7: As sombras do oficial ao entrar nos ambientes da casa
.
Ainda sobre a caracterização do personagem do oficial alemão, podemos citar a
elaboração minuciosa de sua personalidade “boa” por meio de suas ações e
pensamentos. Suas qualidades, seu caráter e sua bondade são a todos os instantes
23
Essas discussões estão presentes no primeiro capítulo de nosso trabalho .
107
ressaltados pelos PPVs que inserem o telespectador num ambiente verossímil que busca
a identificação com o personagem.
A cena que vamos mostrar na figura seguinte nos remete a um homem, que
mesmo fora da casa onde os papéis sociais são claros e sem questionamentos mais
íntimos, é capaz de ações bondosas e revelam sua personalidade desprovida de maldade.
Nessa figura temos a união dos contos “O silêncio do mar” e “Naquele dia” que passam
a fazer parte da narrativa fílmica ressaltando a luta armada e a representação das
relações sociais entre as famílias. Com o desenrolar do telefilme, é mostrado ao
telespectador como se faziam as reuniões clandestinas para a preparação dos ataques ao
exécito alemão e como famílias acima de qualquer suspeita participavam ativamente de
tais conspirações.
Figura 8: A face bondosa e humana de Werner von Ebrennac
.
Nessa imagem obtemos o PPV que põe o telespectador como testemunha da
bondade do oficial e, também, testemunha da visão da jovem Jeanne das ações do
oficial, construindo, assim, sua própria imagem do homem a quem começa admirar e
amar. Como exemplo das boas ações do Capitão alemão, vemos um Werner von
Ebrennac sempre respeitoso e delicado ao falar com seus “inimigos”, Jeanne e seu avô.
Ele oferece carona a Jeanne qando a caminhando pela estrada em direção à cidade e,
ao ver uma criança caída, ele resolve ajudá-la, pegando-a em seus braços e entregando-a
108
à mãe. São atos relevantes que nos levam, nós telespectadores, juntamente com os
personagens, a uma desconstrução da imagem de certos oficiais nazistas a qual fomos
habituados.
Os enlaces dos contos na adaptação fílmica nos mostram como as narrativas se
compõem para mais adiante descobrirmos que os vizinhos de Jeanne são colaboradores
da Resistência armada, e que os mesmos tentaram contra a vida do oficial alemão. Em
cenas seguintes a essa, podemos ver a referência ao conflito armado e às atrocidades
promovidas pelo exército nazista. O senhor Larosière, ao ler um jornal, destaca o
assassinato de alguns resistentes em represália à morte de oficiais alemães em território
francês. Lendo o folhetim, o avô se coloca contra os atos promovidos por Petain,
Presidente da França durante a ocupação, que entrega para execução cinco resistentes
franceses em troca da morte de dois soldados nazistas. O Sr. Larosière nega a sua neta
conhecer os resistentes mortos e sua possível participação ou colaboração para com a
Resistência. O jornal, de tendência nazista, enaltece os feitos do exército alemão e
repreende veementemente aqueles que participam ou participaram dos esforços de
libertar a França através da luta armada.
Figura 9: As notícias de Paris.
Como podemos ver na figura 9, o jornal coloca em destaque a produção
cinematográfica e teatral da época e em um pequeno espaço a notícia dos atentados que
109
ocorrem em toda a França. O entretenimento popular através das artes é destacado no
jornal, numa breve alusão a uma possível normalidade ou naturalidade da vida em
tempos de guerra. A inserção de fatos históricos na trama fílmica coloca-nos como
testemunhas dos fatos ocorridos nos anos da Segunda Guerra Mundial e nos remete ao
mundo das identificações, sobretudo nos insere na impossibilidade de um amor entre
inimigos. Revela ainda a intenção da produção em proporcionar ao telespectador o
poder de decisão sobre o destino dos personagens, criando uma espécie de não-lugar
onde ficção e realidade se entrelaçam. Quero enfatizar que, em se tratando de uma
produção realizada para a TV, temos que levar em consideração as estratégias por ela
utilizadas, como técnicas cinematográficas, para empreender seus discursos e
ideologias. O poder que a TV exerce sobre os telespectadores não pode ser descartado,
mas considerado, mesmo sabendo que os telespectadores possuem atitudes críticas e
sabem decidir sobre que escolhas podem fazer ante o que está sendo veiculado na
programação televisiva. Nesse sentido, como vimos nas discussões elaboradas no
capítulo 2, devemos entender que a televisão tenta transformar ficção em realidade e,
por muitas vezes, nós telespectatores somos impelidos a crer na verdade dita por ela.
Duarte (2006) chega mesmo a inquerir, como já citado anteriormente, se o mundo
artificial, do qual fazemos parte, não é o verdadeiro. Contrariamente à autora, Wolton
(1996) questiona os analistas que atribuem um super-poder à TV. Para ele, os
indivíduos recebem as mensagens de formas variadas e assim criam identificações
próprias.
Outro aspecto histórico requalificado na adaptação, quer dizer, inserido na trama
fílmica, é a presença de uma família judia e a necessidade de a mesma escapar das
atrocidades cometidas contra os judeus pelo III Reich. Jeanne é professora de piano de
uma garota judia que se obrigada a interromper suas aulas, pois deve partir da França
com rumo desconhecido. Ao descobrir, por meio de uma vizinha da família judia, que
sua aluna partiu para algum lugar, Jeanne é invadida por uma tristeza e apreensão
demonstradas na figura seguinte. Mesmo assim segue adiante, como todos naquela
época. Somos impelidos a, mais uma vez, sermos testemunhas dos acontecimentos
históricos, telespectadores cientes dos fatos vividos por tantas famílias judias e seus
amigos.
110
Figura 10: A partida da aluna judia.
Essa inserção na adaptação nos mostra que, passo a passo, a narrativa fílmica nos
coloca evidências históricas que constroem nossas identificações com a realidade pela
qual passaram aqueles que viveram naqueles tempos. Revivendo o tempo, as memórias,
a historicidade dos fatos, construímos novas identificações que se fazem mais
adequadas ao que pensamos e às novas identidades construídas através dos tempos, no
nosso caso, sessenta anos após o término da guerra com a rendição dos alemães.
A inclusão de elementos históricos na adaptação tem seu apoio, sobretudo, nas
cenas em que a luta armada da Resistência é destacada pela união entre os contos O
silêncio do mar e Naquele dia. Tal união a tônica sobre os feitos e as reuniões
clandestinas organizadas pela população insatisfeita com a invasão alemã. No conto
Naquele dia, como foi apresentado anteriormente, a família é desfeita sob o ponto de
vista da criança que o entende as razões pelas quais foi deixada na casa de uma
vizinha e por que seu pai parte posteriormente ao sumiço de sua mãe. Na adaptação,
essa mesma família se desfaz como no conto. As cenas são sempre mostradas, em sua
maioria, fora da casa da família, ambiente claro e onde as relações sociais são bem
definidas. As mesmas são montadas, ponto a ponto, contando a participação da mãe nos
planos conspiratórios da Resistência. Jeanne, vizinha da família, descobre aos poucos
111
tal participação mas se mantém afastada dessa realidade tão presente no cotidiano das
pessoas da época.
Figura 11: As reuniões clandestinas
.
Jeanne chega no momento em que a mãe do garotinho se despede de seu
companheiro resistente e é despistada do real motivo da visita de um homem estranho
ao seu convívio. O plano mostrado coloca mais uma vez o telespectador como
testemunha do que acontecera, das preparações de um possível atentado, da chegada de
Jeanne com o garoto, ambos desconhecedores do que acontece. Podemos destacar que o
PPV nessa cena indica a iniciação da personagem de Jeanne no mundo da resistência
armada e a perda de certa inocência compartilhada com a criança. Logo, o telespectador
é impelido a buscar na memória histórica os fatos ocorridos durante a ocupação, fatos
ligados aos atentados cometidos pela Resistência e, mais ainda, é a partir desse
momento que se identifica com uma identidade nacional na qual nem todos os franceses
da época estavam de braços cruzados ante o domínio de tão poderoso exército. A
adaptação fílmica extrai dos fatos históricos elementos na busca de identificações
nacionalistas e assim redimensiona os contos em sua trama.
Destaco aqui as incursões feitas por Hall (1992) sobre a construção de novas
identidades culturais formadas a partir de aspectos históricos como forma de reforçar
identidades nacionais e locais. O autor afirma que as identidades nacionais estão se
112
desintegrando no confronto com o crescimento da homogeinização cultural e do “pós-
moderno global” e que as mesmas estão em declínio. Contudo, novas identidades se
formam e tomam o lugar das antigas num processo complexo e ambíguo. Vimos no
capítulo 1, que o referido autor destaca a formação de identidades plurais e deslocadas
fruto de manifestações culturais, políticas, mercadológicas e simbólicas em consonância
com as relações sociais num processo imbricado e complexo. Nesse sentido, ensejo que
a adaptação do telefilme se insere nesse processo complexo de identificação, levando os
telespectadores a construir novas identificações, mais plurais e deslocadas.
A música, elemento cinematográfico marcante nesse filme, funciona com um
interessante recurso significativo. Ela está presente no universo diegético e
extradiegético, permitindo o melhor desenvolvimento da narrativa, bem como
facilitando e permeando a comunicação entre os personagens. Em conseqüência disso, a
música não deve ser vista somente como pano de fundo (extradiegético) de uma
fotografia que se presta unicamente a ornar ou acentuar emoções. Longe disso, aqui é
elemento primordial na passagem entre cenas, costurando os contos O silêncio do mar
e Naquele dia, e, acima de tudo, é parte do universo extradiegético dos telespectadores.
Mais uma vez os elementos históricos se fazem presentes na busca por identificações. A
música nessa cena tem uma melodia conhecidamente anglo-americana tocada,
sobretudo, nos anos da II guerra e do pós-
guerra.
Figura 12: A partitura de um “foxtrot”. Balada alegre da época da II Guerra Mundial.
113
Na figura 12 obtemos a cena na qual a professora de piano, Jeanne, passa à aluna
judia uma partitura de uma balada alegre e dançante, foxtrot, indicando assim a chegada
dos aliados que, futuramente, desembarcarão na França para libertá-la do julgo alemão.
A melodia, nesse caso, a tônica de liberdade à trama fílmica no intuito de propiciar
ao telespectador uma identificação com o que aconteceu no passado. Esse fato histórico
é compartilhado apenas por aqueles que estão fora do campo diegético do filme, os
telespectadores. A música tocada pelas mãos da jovem passa de uma cena a outra e
costura o caminho de Jeanne rumo à casa de um primo que ouve a mesma música no
rádio de sua oficina. Ainda nessa figura podemos ver a estatueta de Bach, músico e
ícone da música alemã, sobre o piano. Destaco aqui a oposição criada entre culturas e
povos com ideologias distintas na época, alemães, franceses e americanos.
A música também serve como elemento essencial ao desenvolvimento do
personagem da jovem Jeanne. Diferentemente do conto, ela é professora de piano e
ensina aos alunos a tocar prelúdios de Bach. Nas cenas em que se encontra com os
alunos para ministrar suas aulas, a música de Bach é sempre tocada, como La petite
Musette e Prélude Nº.1 e Prélude Nº.2, comprovando sua admiração por compositores
advindos do país invasor. Assim, elementos culturais são, propositadamente, colocados
ao dispor dos telespectadores para que através da música, tocada e ouvida no telefilme,
haja uma identificação com os personagens, suas ações e gestos. Em outros momentos,
a música tema do filme toca várias vezes no desenrolar das cenas, identificando, com o
uso das cordas (harpa, piano e violinos), o maior ou menor grau de clímax, antevendo o
que vai acontecer
Vale ressaltar que ambos, capitão e Jeanne são amantes da música. Ele é
compositor, que por imposição e tradição de família vem a ser capitão, e ela ministra
aulas de piano no vilarejo. Aqui notamos um elo importante entre os personagens, que
unidos para sempre pela música e pela arte, são definitivamente separados por seus
papéis sociais. A exemplo disso temos a cena na qual o silêncio que corrobora com a
distância entre esses personagens é quebrado pela música. Aflita para alertar Werner
sobre uma bomba posta no carro de seus amigos oficiais, Jeanne toca desesperadamente
um trecho de Printemps de Mozart, chamando a atenção do oficial, retardando sua saída
da casa e, assim, evitando sua morte.
114
Figura 13: O aviso de bomba através da música.
O diálogo entre os personagens antagônicos não existe, somente um grande
silêncio por parte de Jeanne que ouve as palavras de Werner. Podemos inferir que o
silêncio protagonizado pelos personagens franceses representa a própria França, seus
inteletuais e cidadãos no período inicial da invasão alemã. Sabemos que, por meio dos
discursos realizados pela história e pelos testemunhos, não houve ataques aos símbolos
nacionais franceses quando da invasão alemã e que vários intelectuais, artistas e
políticos mantiveram-se calados ante o domínio estrangeiro. O silêncio era a forma
encontrada para resistir aos nazistas nos dois primeiros anos da conquista do exército
alemão. Essa situação muda nos anos seguintes com os trabalhos e ataques da
Resistência francesa que eram preparados na surdina, silenciosamente. No telefilme, a
representação simbólica do silêncio engrandece a atitude do povo francês e insere, mais
uma vez, aspectos históricos representativos de tempos passados.
Voltando à música no telefilme, ela coloca-os em sintonia e serve de instrumento
para estabelecer o não-dito no amor dos dois. Podemos inferir que, ao ficar sem nada
dizer, Jeanne parece resistir às investidas do capitão. Silenciosamente aguarda, ouve
atentamente e se emociona. Nesse sentido, o oficial e a professora de piano são
colocados como vítimas das circunstâncias advindas da guerra. No ambiente verossímil
criado pelo telefilme adaptado, a música une os personagens principais e ao unir, mostra
115
um canal de comunicação que poderia levar os personagens a uma realização de seus
sentimentos mais íntimos.
Vanoye & Goliot-Lété (2006) explicam, como vimos no segundo capítulo, que a
música deve ser tratada com devida atenção, pois incita o espectador a criar pontos de
vista sobre a cena rodada e, mais, cria ambientes favoráveis a um melhor entendimento
da narrativa fílmica, seja de forma objetiva ou subjetiva. A equipe de televisão,
constitutiva da produção do telefilme, utiliza-se das técnicas cinematográficas para
propor a união entre pessoas que vivem um conflito emocional e ideológico para aquele
universo verossímil criado. A música subjetiva a relação social dos personagens e, ao
fazê-lo, traz para a trama o telespectador e suas inferências objetivas e subjetivas
criando pontos de vista e identificações, ou seja, o telespectador é aquele para quem o
telefilme se destina e é com ele que o ponto de vista se define, numa relação mútua,
contínua e complexa de construção de significados e identidades.
É interessante perceber também que as atitudes do oficial alemão são sempre
decorrentes de uma grande admiração pelo povo francês, altivo e culto, e pela cultura
francesa, rica e admirada durante séculos. Em um de seus discursos solitários sobre a
cultura francesa e, em particular, sobre os grandes escritores e pensadores franceses, o
Capitão alemão enaltece a cultura francesa considerando-a como sendo uma cultura sem
igual no mundo, sem precedentes e sem concorrentes. Ao fazer tal pronunciamento,
vistos na figura 6, coloca-se aos pés da literatura francesa, fazendo-lhe reverências. A
música entra nessa cena não como elemento cinematográfico, mas como uma referência
feita à cultura alemã, da qual o Capitão faz parte e, igualmente à cultura francesa,
reverencia. Suas palavras são destinadas a um público silencioso e atento, porém não
recebe nenhum sinal de concordância ou rejeição ao que é dito. Suas intenções são as
mais puras e nobres, unificar a literatura e a música, enfim, a cultura francesa e alemã,
se possível fosse. Ao enaltecer a música alemã e compará-la à literatura francesa,
colocando-as como as demonstrações artísticas mais proeminentes das duas culturas no
mundo, demonstra suas verdadeiras paixões, a música e a cultura francesa.
A representação do oficial alemão relaciona-se com o que discutimos
anteriormente, no capítulo 2, sobre as novas identidades culturais formadas e
resignificadas nos dias de hoje. Como observamos acima, Hall (1992) afirma que, com
a globalização, as identidades deixam de ser únicas e estáveis, pois estamos o tempo
116
inteiro expostos a novas formas identitárias, novas representações formadas e
transformadas pelos sistemas culturais dispostos à nossa volta. Nesse sentido, a
adaptação do telefilme em questão expõe o telespectador francófono a uma nova
representação do oficial alemão, mais próxima do aceitável e condizente com as
ideologias dominantes atualmente.
A importância da música nesse telefilme ressalta o quanto é determinante, em
vários casos, o uso de técnicas que auxiliem a narrativa fílmica, dando-lhe fluidez e
contribuindo para o processo de identificações. Sem música não haveria comunicação
entre os personagens Jeanne e Werner, não haveria elo que unisse os dois na
impossibilidade da concretização do amor. Destaco que a música tema no telefilme foi
composta, orquestrada e dirigida por Angélique e Jean-Claude Nachon, recebendo o
prêmio de melhor música no Festival da Ficção de Saint Tropez em 2004.
O telespectador constrói, passa a passo, suas identificações e é testemunha do que
acontece, ouvindo e se emocionando com a música. Para além disso, o telespectador
francófono caminha em direção ao respeito às diferenças culturais e é induzido a
respeitar, admirar e contemplar os feitos artísticos e culturais alemães. Podemos
acrescentar que na busca por identificação o telespectador encontra nas diferenças novas
identidades, ao que Hall (1992) considera como um processo ambíguo e complexo. É
interessante perceber como o telefilme adaptado enquadra-se às reflexões feitas pelo
referido teórico, quando o mesmo se refere ao surgimento de novas identidades culturais
construídas sob a influência das tradições, das representações históricas e suas
manifestações através dos anos.
Como vimos mais acima, os PPVs buscam criar uma identificação dos
telespectadores junto aos sentimentos, caráter e humanismo praticados pelo oficial
alemão e, assim, criar um ponto de vista favorável à ideologia humanista praticada nos
discursos proferidos pelo personagem. No desenrolar da trama fílmica, somos
confrontados com a desilusão do personagem ao tentar convencer seus amigos oficiais
de que a França, seu povo e cultura devem ser preservados e respeitados na sua
diferença, fato que ideologicamente fugiria aos intentos nazistas.
117
Figura 14: Fidelidade ao Reich e ao Führer!
Na figura 14, vemos a discussão entre os oficiais e a tristeza do personagem ao
descobrir que suas idéias não são aceitas e, muito menos, próprias à ideologia defendida
por seus pares. A câmera coloca em plano os oficiais e cria um PPV onde somos,
telespectadores, chamados a participar da decepção do personagem e, assim, impelidos
a nos solidarizar com tal sentimento. Essa identificação com o personagem cria um elo
entre telespectador e personagem no qual somos induzidos a desconstruir a imagem de
um oficial ríspido e grotesco. Nesse caminho, criamos uma relação de simpatia com o
personagem Werner e uma relação de aversão aos outros oficiais alemães. Essa mesma
aversão é incentivada na trama fílmica quando os personagens que não corroboram com
ideias humanistas são condenados a um fim trágico, a morte.
a b
118
c d
Figura 15: O atentado.
O atentado elaborado pela Resistência francesa surte efeito, como surtiram efeitos
vários outros produzidos nos anos de guerra. Os personagens de Jeanne e seu avô
observam atentamente o possível início do fim de uma era, a dominação alemã. A
imagem apresentada nos chama a atenção para uma metáfora imagética na qual o fogo é
capaz de queimar ideais tão nefastos como a ideologia nazista. Podemos acrescentar que
a morte dos ideais nazistas, simbolicamente queimados, representa o triunfo do discurso
humanista, um basta à tentativa de supressão de uma cultura em favor de outra. Nesse
sentido, a adaptação se adequa à ideologia local que prega a proibição de qualquer
manifestação nazista e de qualquer propaganda que induza à sua volta no mundo.
A adaptação de O Silêncio do mar para a televisão, na busca por identificações,
traz a tona outro elemento de suma importância para tal intento, o papel da mulher nas
relações sociais. Vercors foi duramente criticado pelos intelectuais no que se refere ao
lugar da mulher em suas narrativas. Nos contos em questão, o papel social feminino dos
personagens não representava a real mulher de 1941, negando-lhes voz e atitudes. O
universo feminino da época, segundo relatos, era outro. A mulher francesa participava
ativamente das decisões de sua comunidade, além de cumprir com a difícil tarefa
doméstica de buscar alimentos em tempos tão adversos. Riffaud (1999, p.91) nos
transmite a insatisfação feminina da época, pois “Algumas mulheres, igualmente, não
aceitam a figura desta sobrinha que tricota à beira da lareira, ao passo que as durezas
das condições e privações obriga frequentemente as mulheres, em primeiro lugar, a
procurar por comida e por madeira para o aquecimento das casas”
24
Percebemos no telefilme que a produção, com base no papel social desempenhado
pelas mulheres contemporâneas, reverencia as ações femininas e repara a figura da
24
“Certaines femmes également n’acceptent pas la figure de cette nièce qui tricote au coin du feu, tandis
que la dureté des conditions et des privations oblige souvent les femmes à s’occuper davantage de
rechercher de la nouriture et du bois de chauffage.”
119
mulher nos tempos da guerra. Em várias cenas podemos perceber que são as mulheres
que tomam a iniciativa na busca por trabalho e comida, são elas que estão em evidência
na trama fílmica.
Figura 16: Mulheres na busca por alimentos.
No figura 16 vemos mulheres na fila para comprar alimentos, escassos na época.
Em outros momentos, como nas figuras 5, 10, 11, 12 e 13, são as mulheres que estão
sempre em evidência, representadas em seus afazeres domésticos, nas aulas de piano e
na educação dos filhos. Tais personagens coadjuvantes são determinantes no processo
de identificação proposto no telefilme, pois eles são determinantes para uma melhor
visão dos papéis sociais desempenhados pelas mulheres naquela época.
A personagem da mãe do garotinho personagem sem expressão no conto
Naquele dia que ganha projeção pelo seu desaparecimento envolto por mistérios é
requalificada no telefilme tornando-se a expressão máxima de carinho para com seu
filho e marido, preocupada sempre com o destino de ambos. Além de ser a mulher
dedicada aos afazeres domésticos, representa também aquela que não se entrega
facilmente aos abusos cometidos pelo exército alemão, sendo, ela, peça fundamental
para a Resistência e seus projetos de ataque e atentados.
120
Figura 17: A mulher afetuosa e destemida.
Nesse figura 17 vemos uma família feliz, representação simbólica de união e
felicidade nas sociedades ocidentais e da família francesa da época. Porém, a cena
mostrada mascara as atitudes misteriosas e clandestinas de uma mulher, que por trás de
sua doçura feminina, esconde sua principal função no telefilme, organizar um atentado
contra os oficiais alemães que estão na casa vizinha. Como vimos acima, o papel social
da mulher na trama fílmica transcende o seu caráter doméstico e passivo ante os
acontecimentos e traz para o telespectador a posição de destaque em eventos decisivos
na história, a reação francesa contra seus invasores.
Destaco ainda o PPV feito pela câmera quando da prisão da família do garoto.
Observamos que a mulher continua em destaque, não apenas por ser a organizadora do
atentado, mas por simbolizar a mulher destemida dos anos 40.
Figura 18: A prisão dos pais do garoto. A mulher em destaque.
a
b
121
Jeanne também passa por esta transformação na adaptação, sendo a imagem da
mulher dedicada aos afazeres domésticos e aos afazeres profissionais, bem diferente
daquela que tricotava em silêncio num canto da sala. Personagem dinâmica e audaz,
destaca-se pela intensidade com que se movimenta nos espaços diegéticos. Longe da
representação feminina no conto, a personagem possui atitudes que estão mais de
acordo com a mulher atual, dona de seus pensamentos e atos, consciente do seu papel
social e de suas escolhas. Mesmo em condições adversas, não se deixa abater pela
infelicidade dos acontecimentos aos quais está exposta. Jeanne representa a mulher que
vai à luta, que procura resolver os problemas, que vive sem perder a suavidade,
criatividade e sensibilidade expressa por seu desempenho como professora de piano.
Nesse sentido, podemos atentar para um possível auto-reconhecimento por parte dos
telespectadores, sobretudo por parte das telespectadoras, identificando-se com o papel
social da mulher que, na sua maioria, é intrépida na hora de defender seus pares. Logo,
podemos atestar a iniciativa da adaptação em prestigiar e enaltecer o papel social da
mulher dos anos de guerra e ocupação. Dessa forma, busca, na identificação com o
personagem, salvaguardar o papel social das mulheres francesas e francófonas nos dias
de hoje.
O telefilme cria espaços importantes para a discussão do papel da mulher nas
sociedades ocidentais e, acima de tudo, possibilita um incentivo a mais, às mulheres
francesas, na compreensão de seus papéis e relações sociais atualmente. Acredito ainda
que, por ter sido adaptado e roteirizado por uma mulher, Anne Giafferi, o telefilme
possua tal abrangência e penetração no universo feminino. Como podemos ver na figura
19, Jeanne é a mulher que perpassa as cenas com uma mobilidade sem igual. Em sua
bicicleta, sai de casa em direção ao vilarejo para suas aulas de piano, vai às compras e
ainda observa o que acontece atentamente.
a b
122
c d
Figura 19: O vai-e-vem de Jeanne em sua bicicleta.
Nessas imagens, podemos ver que o plano criado insere o telespectador no mundo
observado por Jeanne. É ela quem leva o telespectador aos lugares propostos no
telefilme e é o seu ponto de vista que é colocado em destaque, como na figura 8 na qual
olha atentamente o capitão alemão ajudando o garotinho da família vizinha. Como
vimos anteriormente, os personagens femininos representam a mulher do século XXI
criando espaços que reflitam sobre suas ações e atitudes, suas relações e papéis sociais
contextualizados no passado e no presente.
Podemos dizer que o telefilme encontrou o lugar perfeito, o meio de comunicação
de massa perfeito, para disseminar seu ponto de vista ideológico, a televisão. Sabemos
que os televisores fazem parte do mobiliário de uma casa e sua programação faz parte
da vida cotidiana da maioria das pessoas nos países de cultura ocidental. Assim sendo,
obtemos o maior número de espectadores no interior das casas, onde vivem mulheres
ativas e produtivas, donas de casa e profissionais que ao chegarem em casa, por vezes
ou sempre, ligam seus aparelhos de TV em busca de entretenimento e espetáculo.
Porque não buscar identificação diretamente no seio familiar? As mulheres
contemporâneas são o exemplo claro de alta mobilidade e presteza nos seus afazeres
profissionais e domésticos. São, na grande maioria, as detentoras do poder de decisão
nas famílias. O telefilme insere o discurso feminino no ambiente familiar e assim
destaca as grandezas da mulher no mundo de ontem e de hoje, uma mulher que passa
longe do discurso feminista da década de 60, mas que está atenta aos direitos por ele
conquistados e dele não abre mão. Por esta razão, acredito que o telefilme, através de
seus personagens femininos, resgata o papel e as relações sociais exercidos pelas
mulheres da década de quarenta como uma maneira de ratificar sua participação e
intervenção nas decisões tomadas por elas na Resistência francesa. Na figura 20, Jeanne
comprova sua valentia e coragem ao aliar-se aos resistentes.
123
Figura 20: O vaso de gerânio na janela
.
Como havia sido feito, por sua amiga e vizinha, Jeanne coloca um vaso de gerânio
na janela, PPV de suas futuras ações contra o exército alemão. Aqui, o telespectador é
conclamado a antever o final da trama fílmica no qual uma professora de piano, sensível
e apaixonada por um oficial alemão, não se deixa abater pelas circunstâncias e vai à luta
para tentar libertar seu país e seu povo do julgo nazista. A cultura francesa não se
deixará abater pelas dificuldades nem por nenhum poder totalitário a ela imposto.
É importante reforçar que o telefilme em questão foi produzido para festejar as
comemorações do final da II Guerra Mundial e o fim do poder totalitário imposto por
Hitler e seu III Reich. No contexto atual europeu não espaço para idéias racistas,
busca-se o entendimento entre as raças e povos através da Comunidade Econômica
Européia, bloco formado para unir economicamente suas nações ocidentais. Nesse
relevo, o telefilme deve ser visto como o representante de uma ideia, uma ideologia que
visa a cooperação entre as nações, sem criar desafetos culturais sob pena de arruinar o
projeto de bloco orquestrado política e economicamente por seus gestores. Nesse
sentido, a análise da construção dos personagens e suas ações refletem os anseios
políticos e econômicos do momento e mais, reforça a ideologia dominante. As imagens
colhidas nos frames nos dão a noção de que o ponto de vista ideológico do telefilme é
respaldado pelas circunstâncias atuais e pelos indivíduos nelas socialmente partícipes.
Wolton (1996, p. 260) coloca o seguinte:
[...] a imagem, a despeito de sua “leitura” efetivamente mais
fácil, obriga igualmente a levar em conta o caráter nacional,
tanto para a produção quanto para a recepção. Não é pelo fato
de ser a imagem uma mensagem visível por todo mundo que ela
tem a significação que queremos lhe atribuir. Existe uma cultura
de contexto e, na sua ausência, a imagem perde uma boa parte
do seu poder comunicativo.
124
Quando falamos do papel da televisão num mundo globalizado, logo nos
propomos, ou eu me popunha, a enveredar por um caminho mais denunciador de
práticas discursivas massificadoras, em que o “grande mal” residia no fato de acreditar
que a linguagem televisiva era superdotada de um poder inabalável e dominador do
público espectador. Quando justamente vimos que os discursos, as identificações e as
representações na televisão se dão na dialeticidade dos processos de produção e que
através da programação de televisão, que espelha uma sociedade, significando-a e
representando-a, podemos inquerir sobre pontos de vista abordados em programas,
novelas, telefilmes e etc, e a quais discursos e ideologias estão vinculados.
Burke (2005) afirma que atualmente tanto livros como filmes tendem a buscar
nas memórias culturais de uma sociedade uma identtidade unificadora e diferenciada
das identificações propostas pelo discurso neoliberal da globalização. Burke afirma que
[...] um forte interesse popular pelas memórias históricas.
Esse interesse cada vez maior provavelmente é uma reação à
aceleração das mudanças sociais e culturais que ameaçam as
identidades, ao separar o que somos daquilo que fomos. Em
nível mais específico, o crescente interesse por memórias do
Holocausto e da Segunda Guerra Mundial ocorre em um tempo
em que esses acontecimentos traumáticos estão deixando de
fazer parte da memória viva.
(BURKE, 2005, p.88)
Os discursos nacionalistas também se fortificam, numa tentativa das sociedades se
diferenciarem uma das outras, em resposta direta ao discursos globalizantes. Nos últimos
trinta anos, a Europa deixou de lado discursos nacionalistas em detrimento de uma
comunidade européia unificada em interesses econômicos, políticos, e sociais comuns a
todas as nações.
Foi nesse caminho que trilhamos nossas análises, pois os papéis sociais
estabelecidos nas relações sociais da época se apóiam na história e na memória nacional
criada a partir dos fatos. Hoje, percebe-se uma busca por filmes que contam a história
de um povo e seus feitos gloriosos do passado como forma de ressaltar identidades
nacionais que com a globalização tendem a se desintegrar em detrimento de novas
identidades híbridas.
125
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O telefilme “O silêncio do mar” foi produzido na época dos festejos de 60 anos
do fim da guerra. Foi veiculado em conjunto por duas grandes redes de televisão
européias, a RTBF (Bélgica) e France 2 e distribuído, em forma de DVD, por um
grande conglomerado americano a Warner Bros, com filial na França. Quero enfatizar
que uma produção dessa natureza encontra respaldo em grandes empresas supra-
nacionais que possuem interesses mercadológicos e político-culturais estabelecidos e
determinados por fatores múltiplos. No nosso trabalho, exponho os questionamentos
sobre o papel da televisão e seus interesses, moldados pelos tecnocratas que a fazem.
Empreendo uma análise a respeito da influência que esse poderoso meio de
comunicação de massa exerce sobre as pessoas. Nesse contexto, acredito que o telefilme
em questão estabelece um canal de comunicação e identificação no qual os indivíduos
são impelidos a desmistificar a figura de um oficial alemão em favor do possível amor
entre os personagens Jeanne e Werner. Entendo que o telefilme trata de questões
polêmicas que contam com o respaldo do tempo e espaço atuais para se concretizar
significativamente. Quero dizer que após sessenta anos do fim da II Guerra Mundial, o
telespectator é tomado por sentimentos e identificações diferentes daqueles vividos no
tempo e espaço em que os contos de Vercors foram escritos, divulgados e criticados.
Logo, as ideologias dispostas no mundo globalizado, culturalmente diversificado e
ameaçado por crises distintas crises políticas, econômicas, sociais, culturais, de
identidade e etc. são favoráveis à massificação das sociedades. Nesse caminho,
tenciono dizer que o ponto de vista ideológico no telefilme corrobora idéias voltadas
para a identificação e reconhecimento por parte dos indivíduos com as ideologias do
passado. Contudo, tal reconhecimento e identificação encontram, nas ideologias do
presente, um não pertencimento ou um não-lugar pois foram requalificados através dos
tempos, ou melhor, foram transformados em novas formas simbólicas que não
condizem com aquelas do passado. Logo, entendemos que os indivíduos, como seres
críticos, são impelidos a redimensionar as formas simbólicas, adequando-as às suas
relações sociais, gostos e crenças, gerando novas identificações ou identidades híbridas.
A cultura e a ideologia devem ser consideradas como preponderantes na
adaptação em questão, redimensionando os personagens e as identidades culturais nela
imbricados. A adaptação produzida para/pela televisão francófona requalificou o tema
126
central dos contos em favor de uma nova construção e representação dos personagens
obedecendo ao distanciamento entre épocas. Ao representar o ano de 1942 em nossos
dias, o telefilme trouxe em si a recriação e a releitura da guerra, da Resistência francesa,
do papel social da mulher e proporciona ao telespectador uma nova dimensão nas
relações sociais de outrossim. Significa dizer que o telefilme de 2004 organizou sua
narrativa fílmica de modo a estabelecer com o telespectador uma identificação temporal
e espacial na qual os personagens e suas ações estavam em conformidade com a
atualidade. Nesse sentido, a adaptação atualizou elementos históricos e sistemas com a
intenção de aproximar o telespectador de suas próprias identificações e relações sociais.
Aliada à história de amor, a resistência de um povo se revela como sendo parte
importante da narrativa e se desenvolve através do silêncio protagonizado pelos
personagens franceses, fazendo com que se ressalte a idéia de uma identidade nacional
representada pela não colaboração aos ditames alemães durante a ocupação.
Podemos perceber que a adaptação de 2004 privilegiou a memória de uma
identidade nacional francesa reconstruindo os papéis sociais e assim favorecendo uma
nova leitura da época em questão. Essa mesma memória, ressaltada em seus
personagens de origem francesa, recuperou a história e ampliou/atualizou as relações
identitárias francesas. Vale lembrar que a Europa de hoje se define em um grande bloco
econômico e tenta a todo custo unificar suas nações em torno de suas aspirações
mercadológicas. Nesse processo de unificação, movimentos por novas identidades se
desenvolvem na busca de novas formas de poder.
Nesse sentido, o ponto de vista ideológico do telefilme traz à tona o reforço de
uma identidade nacional francesa, sua cultura e seu povo, que com seus feitos gloriosos
do passado não se deixaram abater por regimes totalitários e racistas.
Os personagens de Jeanne e do oficial alemão possuem diferentes papéis nesse
contexto. Jeanne representa a mulher ativa e destemida, sensível e apaixonada, mas com
uma determinação intrépida. Logo, faz valer o discurso voltado para a resistência de
uma cultura e ideologias francesas em que não espaço para discriminações raciais,
nem culturais. Werner von Ebrennac, capitão alemão, é visto como um humanista,
representação desconstruída da ideologia nazista.
127
Outro elemento essencial para a construção do ponto de vista ideológico foi a
música tocada no telefilme. Elemento que busca a comunicação entre os persoangens,
também proporciona uma aproximação dos elementos artísticos e culturais alemães.
Nesse sentido, a música funciona como um elo entre as culturas francesa e alemã,
amainando os ódios históricamente estabelecidos. O contexto social, econômico,
político, a novas formas simbólicas representadas em contextos socialmente
estruturados, a cultura e a ideologia são elementos decisivos para uma análise crítica de
uma adaptação fílmica.
128
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