literatura cristã seriam o evangelho de Marcos e uma hipotética coletânea de ditos de
Jesus denominada Q
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Por conseguinte, não seria implausível imaginar que esses dois documentos mais
antigos da literatura cristã remontassem, nos termos de Theissen, aos carismáticos
itinerantes, aqueles missionários ambulantes que deixaram para trás o pouco que
possuiam e que se engajaram, de corpo e alma, com maior ou menor sucesso, na utopia
do Reino de Deus de Jesus.
Propor que aqueles dois documentos remontam a esses indivíduos não acarreta
afirmar que foram eles os responsáveis pela escrita de Marcos e de Q. Antes, consiste
em introduzir na história das comunidades cristãs primitivas indivíduos que até então
não faziam parte do movimento: letrados que se encarregaram de verter por escrito as
tradições de e sobre Jesus que eles ouviam daqueles itinerantes
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Essa situação inédita para o movimento do Reino de Deus redundaria, no futuro,
em alterações programáticas decorrentes das expectativas diferentes que cada grupo
possuía sobre o porvir do povo de Israel e dos embates internos que se sucederam. No
entanto, não é esse o escopo desta pesquisa.
Enfim, aqui se postula o quadro seguinte: os indivíduos, homens e mulheres, que
ouviram e viram o Jesus histórico tornando-se crentes de uma utopia, o Reino de Deus,
entenderam que a morte de seu líder fora o sinal para a disseminação de sua proposta
“por todo o mundo”. Por conseguinte, adotaram um estilo de vida itinerante, que, ao fim
e ao cabo, era semelhante ao estilo de vida do próprio Jesus. Iletrados, como pessoas
comuns de sua época, não transportavam os ditos e feitos de Jesus em anotações ou
livros. Carregavam as lembranças “daqueles dias” na memória. Mas havia o risco de se
perder, aos poucos, os detalhes das histórias. Talvez, quando de volta a localidades
antes visitadas, as histórias já estivessem sendo contadas de formas diferentes. Daí, eles
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“Q” é o nome dado a um hipotético documento ou manuscrito cristão que teria sido utilizado, por vias
independentes, pelos autores dos evangelhos de Mateus e Lucas e que é a abreviação da palavra “Quelle”,
que significa “fonte” em alemão. Até o presente momento, sua presumida existência é, segundo os
principais historiadores da pesquisa acadêmica sobre o cristianismo primitivo, a melhor solução para o
Problema Sinótico. Para outras informações, ver, de nossa autoria, nossa monografia: “O Evangelho Q:
controvérsias em torno de sua existência e gênero literário” e nosso artigo “Evangelho Q: um ‘turning
point’ na história do cristianismo primitivo”, disponível no site da Revista Eletrônica Gaîa.
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Um leitor cristão sentir-se-ia tentado a contra-argumentar veementemente essa última consideração
apontando que, desde o ministério público de Jesus, sujeitos da alta classe da Judéia e, portanto, letrados,
faziam parte do grupo de crentes do movimento do Reino de Deus. Citaria, por exemplo, José de
Arimateia, como um deles. No entanto, Crossan (1995:202) demonstra, muito convincentemente, que
Arimateia é um personagem fictício, fruto da imaginação literária de Marcos, que desempenha um papel
importante na economia de sua narrativa.