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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Denise Salim Santos
Tradição e transgressão:
um estudo do vocabulário em O feitiço da ilha do Pavão
Rio de Janeiro
2008
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Denise Salim Santos
Tradição e transgressão:
um estudo do vocabulário em O feitiço da ilha do Pavão
Tese apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação do
Instituto de Letras da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Língua Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. André Crim Valente
Rio de Janeiro
2008
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B
R484 Santos, Denise Salim.
Tradição e transgressão: um estudo do vocabulário em O feitiço
da ilha do Pavão / Denise Salim Santos. – 2008.
180 f.
Orientador: André Crim Valente.
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Ribeiro, João Ubaldo, 1940- . O feitiço da ilha do Pavão –
Teses. 2. Linguagem e línguas – Estilo – Teses. 3. Língua portuguesa
– Lexicologia – Teses. 4. Análise do discurso literário – Teses I.
Valente, André Crim. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Letras. III. Título.
CDU 869.0(81)-95
Denise Salim Santos
Tradição e transgressão:
um estudo do vocabulário em O feitiço da ilha do Pavão
Tese apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor ao
Programa de Pós-Graduação do
Instituto de Letras da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Língua Portuguesa.
Aprovado em 28 de março de 2008
Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. André Crim Valente (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto
Faculdade de Letras da UFRJ
__________________________________________
Prof. Dr.Irineu Eduardo Jones Correa
Fundação Biblioteca Nacional
_________________________________________
Profª Drª Maria Teresa Gonçalves Pereira
Instituto de Letras da UERJ
_________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Santos de Azeredo
Instituto de Letras da UERJ
Rio de Janeiro
2008
À Flávia,
filha querida e companheira sabiamente silenciosa pelos
meandros labirínticos da vida.
Hora de agradecer...
A Deus, por me fortalecer nos momentos em que o desânimo me aconselhava a
desistir.
À minha família, pelo respeito ao meu esforço.
Ao professor André Crim Valente, meu orientador, por acreditar em minhas
idéias e ajudar-me a vencer os desafios desta tese.
Aos professores Maria Teresa Gonçalves Pereira e José Carlos de Azeredo, por
acolherem minhas lágrimas em momentos de fragilidade e pelas sugestões
sempre pertinentes.
À Banca Examinadora, por aceitar o convite para participar desta defesa
A João Ubaldo Ribeiro, por me reensinar a ler as palavras, os livros, o
mundo, a vida.
À Marília Clara, pela leitura atenta e cuidadosa desta tese.
Ao Paulo César e Oliveira, pelo abstract.
ÀMaria Inês Storino Nunes, pelo resumen.
Aos professores do Curso de Pós-Graduação, pelo valor dos ensinamentos
recebidos.
A todos os amigos que me emprestaram seus afeto, suas experiências, suas
palavras de estímulo para que eu chegasse até aqui.
A Ramon Quintela (In Memoriam) cuja ausência se fez presença todo tempo
pela saudade
E, por fim, um agradecimento especial
À amiga, Maria Lília, por ter estado a meu lado sempre, sofrendo comigo o
medo das caribdes antropófagas, vencendo os precipícios abissais,
mergulhando no tempo querendo que o mundo parasse, enfrentando as
escarpas da ilha para que eu, finalmente, fundeasse as águas plácidas da
calheta e chegasse tranqüila ao porto final desta tese.
Busca palavras límpidas e novas,
Resplandecentes como sóis radiosos
E sentirás como te surgem trovas
Belas de madrigais deliciosos.
Busca também palavras velhas, busca,
Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
E então verás que cada qual corusca,
Com dobrado fulgor extraordinário
Cruz e Sousa
Que seria de mim fora da minha terra? Que sabe alguém mais do
que eu? A minha língua, minhas palavras, estas coisas todas
posso esquecer? Não posso.
João Ubaldo Ribeiro
RESUMO
SANTOS, Denise Salim. Tradição e transgressão: um estudo do vocabulário em
O feitiço da ilha do Pavão. Rio de Janeiro, Março, 2008. Tese (Doutorado em
Língua Portuguesa) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Esta tese estuda o vocabulário do romance O feitiço da ilha do Pavão, de
João Ubaldo Ribeiro, privilegiando substantivos, adjetivos e verbos, em seu
emprego estilístico na construção dos discursos das diferentes vozes presentes na
narrativa. A seleção lexical é vista como recurso identificador da variação
lingüística na fala do narrador e de algumas personagens do romance. Faz parte
desse estudo o levantamento de palavras do uso culto da língua, enfocadas nessa
tese como representantes da tradição vocabular ao lado de neologismos, formas
arcaizantes, palavras obscenas e chulas que materializam a transgressão
vocabular. Tradição e transgressão combinam-se na elaboração de um texto em
que circulam diferentes usos lingüísticos demonstrando a variedade dentro da
unidade da língua portuguesa.
Palavras-chave: Língua Portuguesa. Léxico. Seleção vocabular. Estilo. Língua
literária
RESUMEN
Esta tesis estudia el vocabulario del romance O feitiço da ilha do Pavão (El
hechizo de la isla del Pavo Real) de João Ubaldo Ribeiro, privilegiando
sustantivos, adjetivos y verbos, en su empleo estilístico en la construcción de los
discursos de las diferentes voces presentes a la narrativa. La selección del léxico
es vista como un recurso identificador de la variante lingüística en el habla del
narrador y de algunos personajes más del romance. Forma parte de este estudio
el inventario de las palabras de uso culto de la lengua, planteadas en esa tesis
como representantes de la tradición al lado de neologismos, formas arcaizantes,
palabras obscenas e groseras que materializan la transgresión del vocabulario.
Tradición y transgresión se combinan en la elaboración de un texto en el cual
circulan diferentes usos lingüísticos enseñándonos la variedad dentro de la unidad
de la lengua portuguesa.
Palabras clave: Lengua Portuguesa. Léxico. Selección de vocablos. Estilo. Lengua
Literaria.
ABSTRACT
This thesis studies the vocabulary O feitiço da ilha do Pavão, João Ubaldo
Ribeiro´s and, in order to carry out this task, will focus its attention on nouns,
adjectives and adverbs, mainly on their stylistic use on the speech construction of
different voices acting in the narrative. The lexical choice is understood as a means
of identification of the linguistic variation in the narrator’s speech as well as in some
character’s speech. This study has also the objective of surveying words used in
formal language usage; these words are viewed in this thesis as representatives of
the popular tradition side by side with the neologisms, the archaic forms, and the
obscene and coarse words that materialize vocabulary transgression. Tradition and
transgression are combined in the construction of a text in which different linguistic
uses can be found, demonstrating the variety inside the unity of the Portuguese
language.
Key words: Portuguese Language. Lexicon. Vocabulary selection. Style.
Literary language
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................................................................
11
INTRODUÇÃO .............................................................................................................
20
1.UM CADINHO DE MISCIGENAÇÃO:O FETICHE DA ILHA ...................................
26
2.PERCEBENDO DIFERENÇAS: A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA ...............................
34
3.FUNDEANDO AS ÁGUAS PLÁCIDAS DA CALHETA: A LÍNGUA LITERÁRIA....
43
3.1 Do popular ao culto. Ou vice-versa ....................................................................
52
4.PARA TUDO HÁ UMA HISTÓRIA: A FORMAÇÃO DO LÉXICO PORTUGUÊS ..
58
4.1 Novas terras, novas gentes, novas palavras ....................................................
59
4.2 Uma ancoragem mais antes da chegada ao porto: léxico à vista ..................
64
5.TRADIÇÃO VOCABULAR E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS ...............................
75
5.1 Em trevas abissais com caribdes antropófagas: as palavras eruditas .........
79
5.2 Os meandros vocabulares do escritor ..............................................................
85
5.3 Os meandros vocabulares das eminências da ilha ..........................................
92
5.4 Entre a majestade e o bufão: o vocabulário de mani banto ............................
111
6. A TRANSGRESSÃO VOCABULAR E O JOGO DE SENTIDOS ...........................
123
6.1 De txutxurianas e solta-baixios: as formações neológicas .............................
123
6.2 Empalar ou ...$%!#*+ %: as palavras obscenas ................................................
135
6.3 Nem chus nem bus: os arcaísmos se apresentam ...........................................
147
6.4 O discurusso de Tantanhengá. Ou Balduíno da Anunciação.
Ou Galo Mau. Como se queira. ...........................................................................
152
7. CONCLUSÃO ..........................................................................................................
168
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................
171
ANEXO ....................................................................................................................
178
APRESENTAÇÃO
A busca incessante da palavra certa, da palavra justa em seus textos,
aproximou-nos da produção literária de João Ubaldo Ribeiro. Em seus livros há
sempre referência direta ou indireta a essa unidade de significado como elemento
fundamental da existência humana. É por ela que o homem expressa sentimentos,
angústias, vontades, desejos, idéias, a maneira de ver o mundo. No romance O feitiço
da ilha do Pavão (1997), esse apuro não é menor. Pela seleção vocabular ora
representante da tradição da língua ora transgressoramente elaborada, Ubaldo vai
construindo um texto onde a história do povo brasileiro é apresentada de forma
carnavalizada. Nesse mundo de ficção nada é ou não é sempre. Nem tudo é bom ou
mau, exclusivamente. E as palavras, sempre inquietas sob a pena do escritor,
ajustam-se ao seu dizer. Conheçamos um pouco mais desse trabalho com as
palavras.
Tantanhengá ou Tontonhengá no parecer de alguns
(FIP:1997, p.59), cujo nome
de batismo cristão é Balduíno da Anunciação, tem a alcunha popular Galo Mau. Muitas
denominações para um ser somente. Tais referências surgem como resultado de um
intenso processo de interação voluntária ou involuntária do homem com os grupos
sociais que o rodeiam e mostram como esse ser é percebido pelo outro.
“[...]índio tupinambá muito do péssimo no ver da
maioria, homem de alto valor no ver de Iô Pepeu,
rastejador mestre, doutor dos matos, amigo de todas
as ervas, conhecedor de todos os bichos, íntimo de
todas as árvores, velhaco como toda mascataria
levantina, matreiro como oitocentos curupiras,
mentiroso como um frade viajante, o mais entendido
em aguardente de cana de que se tem notícia, do
fabrico ao desfrute_ e a única coisa que lhe falta saber
é falar direito língua batizada, mas há quem afirme que
é fingimento
”.(FIP, p.31)
1
1
Usaremos, a partir de agora, a sigla FIP para nos referirmos ao título do romance em estudo O feitiço da ilha do
Pavão, de João Ubaldo Ribeiro, publicado pela Editora Nova Fronteira, em 1997 .
11
Para o amigo Iô Pepeu, ele é um “índio tupinambá”, “homem de alto valor”,
“rastejador mestre”, “doutor”, “amigo e conhecedor das plantas e dos bichos”. Para
alguns outros, um beberrão, que vive a desfrutar da aguardente de cana que fabrica, e
talvez por isso Tontonhengá. Já a sociedade civilizada da época vê nele
características menos honoráveis: “velhaco”, “matreiro”, “mentiroso”.
Quem nos passa tais informações é um narrador que, cumprindo seu papel de
intermediador entre narrativa e leitores, vai buscando palavras e expressões que
construam o universo ficcional do romance. Cada palavra tem seu peso, sua função
discursiva, sua força ideológica assim como é ela, a palavra, que marca a sua
importância no desempenho das relações do homem consigo mesmo e com o mundo.
A ilha do Pavão é uma ilha-país onde não deveria haver mais lugar para
desigualdades ou preconceitos de quaisquer espécies. A justiça social desempenharia
a função de sustentáculo da liberdade de cada habitante da Assinalada Vila de São
João Esmoler do Mar do Pavão e de outras tantas vilas que compõem esse mundo
imaginário, espaço no qual a ação narrativa acontece. Olivieri-Godet (2005) comenta a
incorporação do gênero utópico no romance ubaldiano, baseando-se na obra de
Thomas More, que inaugura a utopia literária moderna:
L’inscription de l’utopie dans le roman “O feitiço da ilha do
Pavão” prodruit des représentations du territoire brésilien
qui vont du mythe fondateur de < l’île fortunné> aux
spéculations prophétiques d’un Brésil <terre d’avenir>. Au
mythe dês terres fortunées, “ o feitiço da ilha do Pavão”
ajoute les utopies des cités parfaites por miex exposer les
tensions entre les images réelles et les projections
mythiques e utopiques du Brésil.
( 2005,119)
2
O conceito de utopia neste romance não é mais visto como algo que viveria
apenas no plano do inatingível, irrealizável. Pelo contrário, segundo cita a
pesquisadora, a utopia literária se aplica perfeitamente, pois projeta um ideal
construtivo da vida em sociedade.
2
O texto correspondente na tradução é “A inscrição da utopia no romance O feitiço da ilha do Pavão produz as
representações do território brasileiro que vão do mito fundador da “ilha da Fortuna” às especulações proféticas de
um Brasil < terra do amanhã > . Ao mito dessas terras afortunadas “o feitiço da ilha do Pavão” reúne as utopias das
cidades perfeitas por melhor expor as tensões entre as imagens reais as projeções míticas e utópicas do Brasil”
12
Logo no primeiro capítulo, o narrador dá a conhecer a ilha nas suas
características físicas e geográficas e, principalmente, a constituição das gentes que a
habitam:
“A Assinalada Vila de São João Esmoler do Mar do
Pavão não parece evidenciar qualquer singularidade
de monta. Observaria o visitante apressado que os
joaninos são iguais a toda gente, ocupados em
afazeres dos quais toda gente se ocupa. Talvez lhe
cause um pequeno espanto ver como homens,
mulheres e crianças, brancos e negros, bem-postos e
pobres, diferentemente de outras terras, abraçam o
uso de tomar banhos de mar, às vezes durante toda
manhã ou mesmo todo dia, entre grandes folguedos e
algazarras sem que constipem ou lhes advenha
algum mal da excessiva infusão em humores salsos.
Possivelmente estranhará ver negros calçando botas,
sentando-se à mesa com brancos, tuteando-os com
naturalidade e agindo em muitos casos como homens
do melhor estofo e posição financial, além de negras
trajadas como damas e de braços dados com moços
alvos como príncipes do norte.”
(FIP, p.17)
De fato, o texto deixa transparecer a tentativa do escritor em criar dois mundos
paralelos, baseando-se no contexto sócio-histórico de um Brasil colonial e no mito da
ilha da Fortuna, que se confunde com as imagens de paraíso terrestre, presente no
mito fundador do Brasil, haja vista a primeira carta de Pero Vaz de Caminha e as
crônicas enviadas a El-Rei de Portugal à época do descobrimento.
Tal estratégia de organização discursiva ora está claramente exposta, ora se
apresenta nas entrelinhas, embora o escritor costume afirmar em suas crônicas que
ele “não entrelinha”, “não sabe entrelinhar nada”. É uma ironia do escritor de crônicas
humoradas que divertem seus leitores assíduos e pouco convencidos dessa
incompetência “entrelinhal”, ao mesmo tempo que os instiga a repensar algum fato
sério maquiado pelo humor do texto.
A excelência do vocabulário empregado por João Ubaldo é reconhecida entre
seus pares. O poeta Haroldo de Campos, em depoimento cedido à revista Cadernos
de Literatura
(1999:37), ressalta que o escritor surpreende por seus temas inusitados,
13
por suas faixas vocabulares, por um tesouro vocabular que exibe em sua obra. Tal
repertório elogiado por Campos foi sendo cultivado, certamente, pelo íntimo contato
com os clássicos nacionais e universais. Ainda na crônica Memória de livros (1987),
João Ubaldo nos relata como foi a construção do seu universo leitor. A avó, durante
as férias escolares, lhe fornecia as leituras “proibidas”. Quando retornava à casa
paterna, já o esperavam as leituras compulsórias determinadas pelo pai, destinadas a
limpar os efeitos deletérios das revistas policiais.
(1987, p.151). Sobre seu convívio com
a leitura, diz ainda Ubaldo:
Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu
meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos
às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio
da loucura, As décadas de Tito Lívio. D. Quixote [...] adaptações da Divina
Comédia,a Ilíada, a Odisséia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre
Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens,
Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais de santo Inácio de Loyola e mais não
sei quantos clássicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente
lembrados em conversas inflamadas, dos quais não me esqueço e a maior parte dos
quais faz parte íntima de minha vida.
(1987, p 151-2)
O poder plástico da palavra é apresentado por Ionne Bordelois, ao tratar do
emprego das palavras no universo da função poética da linguagem:
A palavra poética é violenta contra a palavra estabelecida - mas se trata daquela
violência que aponta o Evangelho quando diz que só os violentos arrebatarão o
reino. Walter Benjamin fala das marteladas necessárias ao escritor que deve forjar
uma nova linguagem golpeando a contrapelo a crosta que cega a palavra
desgastada pelo uso, a máscara que afoga a palavra convencional, a rigidez que
asfixia a palavra burocrática. Todas essas travas são arrancadas por esse golpe de
luz que, como o vento que abre a anêmona, a poesia inflige aos sepulcros
branqueados das linguagens oficiais. E a palavra ressuscita chamando e
chamejando novamente, recordando sua e nossa origem
.
(2005, p.31)
A importância do domínio da palavra na construção da liberdade do homem é
um tema recorrente na obra ubaldiana. No romance sob nossa análise, encontramos
várias passagens que comprovam a presença da ideologia de que o homem só se
liberta, só se sente dono de seu destino quando se apropria da palavra e dela pode
dispor como valiosa arma no confronto com o poder opressor. Em outro romance do
14
escritor, Vila Real,
3
publicado em 1979, o povo brasileiro se faz representar pelo
nordestino, “o povo de Argemiro”. A opressão se apresenta com a chegada da
companhia de mineração estrangeira - a “Caravana Misteriosa” -, que expulsa o povo
de Argemiro das terras por ele cultivadas em Vila Real, identificando-se a temática do
romance com movimentos de fixação do homem à terra, numa alusão à passagem
bíblica de busca da terra prometida. Argemiro é o líder dos sem-terra de Vila Real na
luta desigual denunciada de imediato no excerto, pela palavra pouca:
Argemiro achou-se tonto mais uma vez e de novo
teve vergonha de si mesmo, por que não sabia como
chamar o homem de mentiroso e se via na falta de
palavras.Olhando para cima e respirando fundo, no
entanto, pôde falar como se tivesse decorado alguma
coisa remota ensinada, uma voz de flauta lhe
assoprando nos ouvidos, faces de amigos e parentes,
sorrisos do passado e, à medida que falava, sentia o
peito mais leve e o ar mais fácil de inspirar”.
(VR, p.34)
Em outras passagens da narrativa, depreende-se a angústia vivida pela falta
da palavra para externar os pensamentos que movem o líder daquela comunidade:
“E(Argemiro) sentiu acanhamento em procurar falar
mais, pois se bem que o homem fosse estrangeiro e
sua língua diversa, tinha vergonha de não saber a
língua dele e achava que ele podia corrigi-lo de
qualquer forma, sempre havia de ter mais
conhecimento”.
(VR, p. 36)
“Argemiro logo chegou a imaginar que poderia também
conversar com os homens da caravana Misteriosa,
mas achou que, se o padre, cujo conhecimento ia além
do de todos os homens, não pudera convencê-los,
muito menos faria ele, que não sabia muitas das
palavras de que iria necessitar, palavras que eram
névoas e caroços por dentro do que via.”
(VR, p. 29)
“Que não se entregariam à escravidão, a qual já
parecera a alguns um caminho em outros tempos, pois
que esta nem ao menos a comida garantia e a
promessa que fazia era de ainda mais desespero e
agonia, sem direito nem mesmo à palavra”.
(VR, p. 31)
3
A partir de agora usaremos a sigla VR para nos referirmos ao romance Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro,
publicado pela Editora Nova Fronteira, em 1979.
15
“As palavras eram mais que os trabalhos, ao mesmo
tempo menos. O trabalho vai com os cavalos e as
ondas de vento agoureiras e as gavinhas dos
chuchus[...]. As pregações, no entanto chamam
recordações. Estas pelo poder de cada palavra que se
diz, levantam vôo na consciência. “
(VR, p. 127)
“De lá vieram os que mataram Canudos e conhecem o
que é melhor para nós. Pois trazem as palavras que
fazem com que matem sem remorsos, bastando que se
lembrem delas, de como elas lhes foram ditas, as
palavras valendo tanto pelo que são como pela boca de
quem saem”
.
(VR
, p.150)
“_ Pela palavra _ soprava a voz da velha _ você negará a
palavra. Pela palavra, provará a palavra.”
(VR, p.145)
Além de fortemente ideológica, é de beleza ímpar a narração do momento em
que Argemiro toma consciência do seu domínio sobre a palavra, remetendo ao que
disse Ionne Bordelois, já citada nesta parte do trabalho:
“Argemiro então observou que o chão embaixo das
botas não eram mais um lamaçal, era um apicum.De
descoberta, esse apicum. E amarelo inteiramente,
esse apicum onde os pés não afundam [...]
Entretanto, o que mais doeu foi o Verbo. O qual
acometeu os ouvidos e as partes falantes por baixo
das bochechas, azedou a saliva, esboroou as peças
interiores dos ouvidos com marteladas de dentro para
fora. Igualmente a um arroto, subiu uma seta farpeada
pelos ocos da barriga, mas em lugar de atingir o goto
esvaiu-se como coisa gasosa por todo o meio da cara
então retiniu uma clarinada e acompanhantes
ribombos de zabumbas [...]. Mas lembro antes que
minhas palavras vieram para dentro de mim em forma
de bofetadas e sovelas e verrumas e tantas travoelas
e lancetas entre as curvaturas delicadas de meus
ouvidos mais íntimos,[...]
E aí Argemiro compreendeu todas as palavras, em
primeiro lugar pelo som que fazem, o qual traz cólicas
ou risos ao rostos ou sopros abaunilhados ou ódios
imorredouros ou pesadelos esquecidos antes de
deixarem de ser nuvens escuras que rodeiam as
cabeça das pessoas e volta e meia as envolvem como
cobertores [...]”
(VR, p. 146-7)
16
Em Sargento Getúlio
4
(1971), Getúlio Bezerra dos Santos conta suas proezas a
Amaro, seu companheiro de missão e a si mesmo como num longo monólogo. Amaro
tem raras oportunidades de falar e, quando o faz, é de maneira truncada, confusa a tal
ponto que provoca comentários de Getúlio que mais uma vez reforçam a importância
social da palavra em sua função comunicativa:
“Amaro corta tiririca e desmonta o motor do hudso e
assovia
a mesma música, às vezes canta. Não entendo
direito,
porque Amaro enrola a língua, não sei o que é: até o sol
(isso eu entendo: até o sol. Até o sol ipiaça invadiu a vidraça
e o retrato dela icoiou [...]Perguntei a ele. Até o sol ipiaça,
que vem a ser? Não sei, disse ele, aprendi assim. E o
retrato dela icoiou. Acho que as músicas devia de ser feitas
para entendimento, assim não.”
(SG, p.50)
“Amaro gosta de palavras. Fica repetindo uma porção
sozinho, feito maluco, acho que só para sentir o gosto
”.(SG,
p. 50)
“Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar charutos.
Amaro pode guiar meu carro, que eu deixo. Para ser
deputado não é preciso nada. Se eu fosse deputado, você
ia, não ia? Pra ficar toda lorde e aprendia a falar difícil, não
aprendia?”
(SG, p. 123)
Na ilha do Pavão, a palavra mostra sua força das mais diversas maneiras. Iô
Pepeu passará todo o romance tentando possuir Crescência, como possui qualquer
mulher da ilha, mas não consegue, pois a negra congolesa se nega a pronunciar as
“palavras mágicas”, afrodisíacas, melhor dizendo, aquelas que levariam o filho de
Capitão Cavalo ao gozo extremo no fim do ato sexual. Ela lhe cede o corpo, é verdade,
mas não a palavra, palavras malditas, cravadas em seu miolo tão indelevelmente,
desde aquela tremenda primeira ocasião em que a negra Sansona, umas das
preferidas de Capitão Cavalo e três vezes maior que Iô Pepeu, puxou-o para a esteira
e, com as feições assustadoramente transfiguradas e a voz parecendo lhe sair dos
peitos enormíssimos, tirou-lhe a roupa, apalpou-o todo, mordeu-lhe o pescoço, alisou-
lhe a bunda e abriu diante dele as coxas poderosas gritando
(FIP, p.33) as tais “palavras
4
Empregamos a sigla SG para referência ao romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, publicado pela
editora Nova Fronteira, em 1971.
17
malditas” que o escravizariam para sempre, pois teria de ordenar que as dissessem,
precisaria ouvi-las toda vez que o desejo tomasse conta de seus instintos. E por
Crescência conhecer tais palavras, mas ter também o poder de não dizê-las, Iô Pepeu
tornou-se servo da linda negra. Se as palavras libertam, aqui elas escravizam.
João Ubaldo Ribeiro demonstra ter plena consciência da necessidade de
preservação da palavra, pertença ela à modalidade escrita ou falada da língua, ou ao
nível formal, coloquial, informal ou chulo por meio do texto literário. O importante é que
ela exista como signo na intermediação do homem com o mundo. E o escritor precisa
fazê-la emergir na memória do leitor, como percebemos nesta passagem do romance
Viva o povo brasileiro
5
:
“Muitas coisas neste mundo não podem ser descritas,
como sabem os que vivem da pena, azafamados entre
vocabulários e livros alheios, na perseguição da palavra
acertada, da frase mais eloqüente, que lhes possam
render páginas extras e prosa à custa de alguma
maravilha ou portento que julguem do interesse dos
leitores, assim aumentando sua produção e o pouco que
lhes pagam. Recorrem a comparações, fazem metáforas,
fabricam adjetivos, mas tudo acaba por soar pálido e
murcho, aquela maravilha ou portento esmaecendo,
perdendo a vida e a grandeza, pela falta que o bom verbo
por mais bom não pode suprir, qual seja a de não se estar
presente ao indescritível”.
(VPB:1984, p.108)
Quem, lendo essa passagem de Viva o povo brasileiro (1984, p. 110) poderia
imaginar que a grande preocupação do escritor naquele momento era refletir sobre a
importância da palavra para descrever um...cheiro!
Como, porém descrever um cheiro? Um cheiro não, este
vapor fatal, este miasma fabricado nos infernos, esse
fartum de coisas putrescentes, de coisas rançosas, coisas
gangrenadas, coisas azedas e repulsivas, coisas
insuportáveis de imaginar, agora que o vento se encana
por onde a carcaça de última baleia congrega nuvens de
urubus e as caldeiras de fazer óleo baforam lufadas
5
A sigla VPB será usada em lugar do título do romance de João Ubaldo Ribeiro,Viva o povo brasileiro, publicado
em 1984, editora Nova Fronteira.
18
encardidas de uma fumaça impossivelmente
fedentinosa[...].
(VPB, p. 109)
Para Ubaldo, que sempre busca a palavra certa, é um grande desafio. Assim,
encontra-se uma lista de itens lexicais usados na tentativa de captar a expressão exata
para o fato, explorando a designação em nível de língua ou o uso metafórico do signo:
vapor fatal, miasma fabricado nos infernos; fartum de coisa putrescente, de coisa
rançosa, coisas gangrenadas, coisas azedas e repulsivas, coisas insuportáveis
de imaginar; fumaça impossivelmente fedentinosa.
Estarão presentes nas descrições da ilha a fauna e a flora, apresentadas por
meio das palavras da cultura popular ou por termos científicos, a depender de quem as
use e mais ainda, de quando e onde as use.
De palavra em palavra, Ubaldo constrói seu romance, deixando ao alcance do
pesquisador um vasto campo de trabalho em que a tradição e a transgressão vocabular
convivem harmoniosamente, pintando o quadro da identidade brasileira, pelas vozes
que representam as diferentes etnias, os variados grupos sociais que habitam a
Assinalada Vila de São João Esmoler da Ilha do Pavão, onde todos os dias “cumprindo
a missão que lhe foi dada desde a Criação, um grande bem-te-vi atitou energicamente,
na copa de um oitizeiro do largo da Calçada”. (FIP, p.18)
19
INTRODUÇÂO
Balduíno lhe dissera que de fato as palavras são de
grandíssima importância, havendo homens que obram
qualquer graça com elas a seu bel talante. Mas, por mais
importantes, no fundo não passam de vento mastigado e,
por conseguinte, não podem com a força das plantas e
das qualidades dos bichos,que são a própria Natureza e
ninguém vence a Natureza
.
(FIP.p 31)
A epígrafe com que damos seqüência a este trabalho coloca em enfrentamento
duas forças que envolvem o homem no seu estar no mundo: a palavra e a natureza.
Também reflete o pensamento de uma das personagens do romance O Feitiço da Ilha
do Pavão (1997) o jabarandaia Tantanhengá. Para ele, ambas são importantes, mas
apenas uma é verdadeira: a natureza com a força de suas plantas e bichos e seus
mistérios. A outra, a palavra, forja verdades ou mentiras “ao bel talante” de seu
enunciador.
O que pretendemos apresentar nesta pesquisa é um estudo do vocabulário
empregado por João Ubaldo Ribeiro em O Feitiço da ilha do Pavão, a partir do
levantamento de itens lexicais, em especial substantivos, adjetivos e verbos que
constroem o discurso das personagens presentes na narrativa, apoiando-nos nas
noções de variabilidade lingüística, de discursividade e, subliminarmente, no
compromisso do escritor com a busca da identidade nacional por meio do uso da
língua portuguesa.
Ainda que nos cause algum temor a ousadia de propor o estudo das palavras
na ficção de João Ubaldo Ribeiro, especificamente neste romance, é irresistível a
atração que sentimos em investigá-las. De pesquisa iniciada durante o curso de
mestrado em língua portuguesa, resultou na dissertação Os processos de formação de
palavras na crônica jornalística de João Ubaldo Ribeiro: a alquimia do riso
(2000), cujo
corpus e objetivos eram outros. Dedicamo-nos naquela oportunidade às crônicas
publicadas no jornal O Globo, observando estilística e discursivamente a relação entre
humor e processos de formação de palavras.
20
A escolha de um título a ser trabalhado, no conjunto de uma obra com 15
publicações, dentre as quais se destaca um dos mais valorizados pela crítica literária
nacional e internacional, Viva o Povo Brasileiro (1984), deve-se ao fato de O feitiço da
ilha do Pavão constituir-se num texto literário que estimula no leitor a reflexão sobre
questões de natureza política, histórica, antropológica, social e ideológica, mas
carregado de um humor capaz de desestabilizar o status quo. Há um tempo presente
vivenciado por todos os habitantes que nos permite observar a variação nos usos
lingüísticos dentro de uma mesma sincronia.
O desenvolvimento de uma pesquisa de natureza lexicológica é tarefa
desafiadora e ao mesmo tempo inebriante. Cada palavra, cada expressão
desempenha um papel importante como fonte de informação sobre o léxico da língua
portuguesa. A partir de uma seleção exemplar de que fazem parte termos comuns ou
exóticos, eruditos ou populares, arcaicos ou neológicos, o escritor materializa seu
discurso, deixando brilhar, à luz de seu talento, a riqueza do pluralismo vocabular que
enriquece a literatura de nossa língua. Além disso, há um universo de tradição
lingüística explorado pelo escritor, que também não abdica do traço transgressor. E,
com os fios da tradição e a ponta afiada da agulha da transgressão, borda um texto
rico em brasilidade, forrado de consciência lingüística, colorido como é a voz do povo
brasileiro.
Como um cientista em seu laboratório, o escritor faz seus experimentos
vocabulares: altera a plástica de alguns termos, de outros modifica as unidades
fonéticas; reanima algumas velhas palavras já adormecidas na memória e afastadas
do uso comum, confinadas nos verbetes dos dicionários, trazendo-as de volta, em
plenitude de significações e expressividade, instigando seus leitores a consultarem
dicionários, hábito que mantém até hoje, possivelmente pela influência do pai que,
quando perguntado sobre o significado de alguma palavra, dizia-lhe: “Não sabe? Vá
ao dicionário!”. Não raro em suas crônicas, reproduz tal prática procurando doutrinar
seus leitores assíduos a fazerem o mesmo. De fato, da crônica ao romance, muitas
vezes precisamos ter ao lado o dicionário para melhor entendimento do texto. Outras
unidades lexicais são criadas para atender à expressividade do dizer, mas que não
são tantas quanto parece.
21
O trabalho com a palavra ubaldiana leva o pesquisador a momentos
desconcertantes. Certos termos nos ludibriam de alguma forma: às vezes, julgamos
estar diante de um neologismo, criação expressiva do autor, mas que
verdadeiramente é um termo tão antigo quanto a nossa língua ou mais anterior ainda,
um arcaísmo ou uma forma arcaizante. Em outros momentos deparamos com
vocábulos que nos soam familiares, já dominados, impressão que não resiste à visita
ao dicionário. São neologismos formais ou semânticos criados para saciar a fome da
palavra certa, a busca da melhor palavra. Assim como em outros romances de João
Ubaldo Ribeiro, O feitiço da ilha do Pavão é uma verdadeira celebração à língua que
falam os brasileiros de ontem e de hoje, em qualquer espaço geográfico ou social.
Mas, de onde vêm tais palavras? Qual a motivação para serem empregadas?
Por que ora se mostram transparentes em suas significações e intenções de uso, ora
são carregadas de mistério? Palavras novas, antigas, vernáculas, emprestadas a
outras línguas. Palavras...
A história das palavras nos permite refletir sobre a história das sociedades em
geral, pois os movimentos da linguagem ocultam e ao mesmo tempo revelam o
desenvolvimento, o progresso, a evolução social, os medos, os desejos, os
preconceitos e conhecimentos do homem em uma determinada época, em um
momento historicamente desenhado. Assim, por meio das palavras, é possível
chegar-se a grandes sucessos ou violências institucionalizadas que marcam uma
sociedade quando, por exemplo, se cerceia a palavra, às vezes de forma camuflada,
mas permanente e dolorosa, para que sejam preservadas certas hierarquias. A falta
da palavra ou da palavra adequada é antes um problema para qualquer indivíduo,
não só de um escritor ou de nosso escritor.
Nem sempre a palavra isolada é suficiente para tornar plena uma determinada
mensagem, pensada por um emissor e endereçada a um ou mais interlocutores.
Implícita ou explicitamente, reconhecemos em cada uma delas a possibilidade de se
transformar, sob a pena cuidadosa do escritor, em símbolos valiosos na arte de
esconder, camuflar, transgredir, corromper, buscando revelar aos interlocutores as
trilhas de sentido por ele traçadas, por meio das quais o viés ideológico se apresenta
com maior ou menor visibilidade. O escritor explora as possibilidades semânticas da
22
palavra nos “três estratos do significado lingüístico: a designação, o significado e o
sentido, segundo Eugenio Coseriu (1980, p.99). A palavra em sua função designativa
estabelece a relação entre uma expressão lingüística e um “estado de coisas”. Já o
significado é o conteúdo de um signo ou de uma expressão numa determinada língua
e exclusivamente através dessa língua. O sentido, por sua vez, é o conteúdo do
próprio texto, o que um texto exprime pela designação e pelo significado. A
comunhão de texto e intenção, aqui exposta de maneira simples, porém não
reducionista, leva-nos ao universo discursivo. Citamos Maingueneau:
Compreender um enunciado não é somente referir-se a uma gramática, a um
dicionário, é mobilizar saberes muito diversos, fazer hipóteses, raciocinar,
construindo um contexto que não é um dado pré-estabelecido e estável. A própria
idéia de um enunciado que possua sentido fixo fora de contexto torna-se
insustentável. Certamente isso não quer dizer que as unidades lexicais de uma
seqüência verbal não signifiquem nada, nem que suas relações deixem de orientar
de maneira decisiva a interpretação. O que se quer dizer é que, fora de contexto, não
podemos falar realmente do sentido de um enunciado, mas, na melhor das
hipóteses, das coerções para que o sentido seja atribuído à seqüência verbal
proferida em uma situação particular, para que esta se torne um verdadeiro
enunciado, assumido em um lugar e em um momento específicos, por um sujeito
que se dirige, numa determinada perspectiva, a um ou a vários sujeitos.
(2002, p.20)
A seleção vocabular que sustenta uma estrutura de tal complexidade não deve
ser trabalho fácil, principalmente na construção do discurso literário. A este, por seu
caráter ficcional, é permitido subverter. Nas entrelinhas do dizer camufla-se o não-
dito, mas que será desmascarado pelo interlocutor arguto, que se solidariza com tal
artimanha, aceitando a trapaça lingüística urdida para jogar com efeitos de verdade,
tornando-se o discurso literário desestruturador, desestabilizador, desconstrutor
mesmo de uma ordem social estabelecida, sem sofrer sanções, uma vez que circula
no espaço da ficcionalidade “apenas”. Apenas? Assim devem pensar aqueles que
não valorizam ou não reconhecem no texto literário sua força de interferir de alguma
forma nas estruturas sociais pelo processo intenso de cumplicidade na interação
texto-leitor, esperando o produtor que o leitor use a mesma “espécie de filtro
ideológico” para perceber no discurso literário as marcas de um determinado
momento histórico, cultural e social que pretende intencional ou inintencionalmente
modificar. No caso de João Ubaldo, encontram-se arquivadas entrevistas e palestras
23
nas quais afirma não ter aspirado mudar coisa alguma na sociedade; talvez na
cabeça de algum leitor. Argumenta Bernd
(2004, p.21) que, como toda a arte, a
literatura é uma forma de conhecimento, podendo, pois, contribuir para que as
pessoas vejam o mundo através de uma forma sugerida pelos escritores. A literatura
pode, portanto, auxiliar na construção do conhecimento humano, abrindo portas.
Os falantes de uma determinada língua não desempenham apenas este ou
aquele papel social, mas vários, impostos pela necessidade de um mesmo indivíduo
participar de processos interacionais diversos, usando discursos também diversos,
adequados, porém, a cada situação, a cada contextualização. Isto obriga o falante a
desenvolver maneiras de dizer variadas, dependendo do lugar onde esteja. O mesmo
ocorre no espaço do texto literário, em que o leitor aceita as regras do jogo discursivo
e cambia de um nível lingüístico-discursivo para outro, acompanhando as
personagens, o narrador e com eles interagindo durante a leitura.
Para desenvolver as idéias aqui apresentadas, desdobramos o estudo do
vocabulário no romance O feitiço da ilha do Pavão em seis capítulos.
Sob o título “Um cadinho de miscigenação: o fetiche da ilha”, encaminhamos o
estudo pelo enfoque da formação do povo brasileiro, apoiando-nos em Freyre
(1987),
Ribeiro (1995) e Holanda (1995). Ali também são apresentadas as personagens,
posicionando-as socioculturalmente, buscando entrelaçar o real e o ficcional.
A exploração dos efeitos expressivos conseqüentes das escolhas vocabulares
realizadas pelo escritor também está presente de modo significativo nesta tese e para
nosso embasamento nos socorreremos de Martins
(2000), Lapa (1998) e Ullmann (1973)
Havendo na ilha diferentes estratos sociais, evidentemente a variação
lingüística se manifesta concretamente na fala das personagens. Para a
fundamentação teórica do segundo capítulo, intitulado “Percebendo diferenças: a
variação lingüística”, recorremos a Preti (2004;2003), Coseriu (2004), Carvalho (1979) e
Travaglia (2000).
Considerando que o estudo vocabular que realizamos tem como corpus uma
obra literária, no terceiro capítulo, “Fundeando as águas plácidas da calheta...A língua
literária”, propomos uma breve reflexão sobre a questão da existência ou não de uma
língua especial para a produção da escrita artística.
24
O quarto capítulo, “Para tudo há uma história: a formação do léxico da língua
portuguesa”, apresenta resumidamente as bases de formação do léxico português
desde sua origem na Península Ibérica até sua consolidação em terras brasileiras.
Servimo-nos dos estudos de Coutinho (1976). Incluímos neste capítulo a discussão
sobre léxico, vocabulário comum, popular e culto e para isso consultamos Pottier
(1978), Carvalho (1974), Genouvrier e Peytard [s/d]
No quinto capítulo, enfocamos especialmente a tradição vocabular encontrada
em passagens do texto em que são detectados termos mais freqüentes no uso culto
da língua. Inclui-se nessa parte da pesquisa um estudo sobre palavras eruditas. No
aporte teórico para este assunto estão presentes Guiraud (1978) e Bizzochi (1997).
A transgressão vocabular cuidará dos neologismos. Estão presentes estudos
de Pilla (2002), Barbosa (1996)
6
. Para os neologismos literários, buscamos Rifaterre
(1989) e novamente Barbosa (1996). Faz parte desta seção o levantamento das
palavras obscenas, chulas, que constroem o discurso injurioso e o discurso erótico
encontrados no romance, cuja fundamentação teórica parte de Preti (1983). Fechando
o capítulo, são apresentados os arcaísmos, segundo Coutinho (1976), Cressot ([s/d) e
Lapa (1998).
Servem-nos de corpora de exclusão os dicionários gerais Houaiss – versão
eletrônica (2001), Novo Aurélio XXI (1999), Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa (2004), Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2004).
A obra literária de João Ubaldo Ribeiro propõe-se a fazer uma revisão da
formação histórica e cultural do povo brasileiro, revigorar seu espírito em busca do
fortalecimento da identidade nacional. Cada página escrita tem aqui e ali palavras que
são marcas, pistas que nos levam ao tesouro vocabular do escritor, amealhado pelo
contato íntimo e apaixonado com a leitura e com a língua portuguesa. Cabe-nos
segui-las, observá-las, ouvir o que elas têm a dizer ou querem dizer e, a partir delas,
construir sentidos, construir idéias, reconstruir o mundo idealizado pelo escritor que
conta com a cumplicidade de seu leitor. Então, a elas sem pena!
6
Os estudos de Louis M.Guilbert, presentes em La criativité léxical (1974), vieram-nos por Valente (2007)
e Barbosa (1996).
25
1. UM CADINHO DE MISCIGENAÇÃO: O FETICHE DA ILHA
O feitiço da ilha do Pavão firma-se como um dos romances de João Ubaldo
Ribeiro em que a identidade nacional se faz muito presente. É um trabalho de
reavaliação da herança cultural e histórica da formação do povo sob um olhar
diferenciado captador da mobilidade dos grupos sociais sob a influência de um poder
que troca de mãos ao sabor da engenhosidade do escritor. A todo tempo a relação
dominado x dominador fica exposta.
Três etnias se alinham na formação da nacionalidade brasileira, e o confronto
elite x povo será constante em toda a narrativa. O índio, embora não mais escravizado,
não tem reconhecida sua cultura, seus hábitos seculares e sofre ainda com a
perseguição da Coroa e da Igreja, ambas defensoras da moral e dos bons costumes à
custa de benesses que os cargos públicos, as fortunas pessoais, e os títulos que
enobrecem as famílias da elite “assivissojoemapaense” lhes fornecem. O enfoque das
relações entre dominador e dominado contrasta em parte com a visão do antropólogo
Gilberto Freyre (1987) quando afirma em Casa-grande & senzala que a interação teria
propiciado a absorção de traços culturais de parte a parte entre os dois povos. Como
diz Zilá Bernd (2004, p.90), o estatuto de negros e índios sempre foi inferior ao do
colonizador branco. Sua cultura foi desconsiderada pelas elites entre as quais estavam
os jesuítas, cuja visão predominantemente etnocêntrica determinou, desde logo, uma
postura fóbica em relação aos autóctones. Esta visão antropológica não é esquecida
por Ubaldo que, pela voz de seus personagens, faz aflorar questões até hoje não tão
bem conhecidas, não bem “digeridas” pelos brasileiros.
Mas que personagens são esses a quem o autor dá vez e voz para construir ou
desconstruir ideologias ainda presentes em muitas formações discursivas que marcam
a intenção de separar, segregar, estigmatizar a miscigenada formação do povo
brasileiro?
Vamos às apresentações.
26
Representando a etnia autóctone que habitava a terra de Pindorama quando a
frota de Cabral chegou temos Tantanhengá ou Balduíno da Anunciação, índio
conhecedor do bom e do mau caráter da sociedade local e dos poderes da natureza,
na qual, como herdeiro direto, busca a solução para enfrentar as necessidades que
surjam, desde a utilização da cana para fabricar a “supupara de cobra coral” ou a
“cachaça do dia” até a tisana mágica para resolver as questões sexuais de Iô Pepeu.
Ou ainda a calda capaz de levar o gentio à vitória na batalha do Borra-Botas. É um
líder naturalmente aceito por sua comunidade, ardiloso, matreiro, muito respeitado
entre sua gente.
Os negros escravos ou libertos, diferentemente do grupo indígena, têm vários
representantes numa alusão aos papéis e funções que desempenharam nas relações
com o dominador, bem como às múltiplas nações de África, de onde vieram como
escravos. A negra Crescência, jovem e bonita congolense liberta, cujos encantos
enlouqueciam Iô Pepeu, prepara-se para ser a guardiã dos segredos da ilha. A negra
Sansona, também alforriada, apesar de entrada em anos, parecia bem menos velha do
que era, a cara lisa, a peitarrama pesada mas dura (FIP, p.207) trabalha no Sossego
Manso, cuidando de Capitão Cavalo e de Iô Pepeu. Foi Sansona quem ajudou a criar o
filho do Capitão, assim como quem o iniciou na vida sexual. Também aparecem as
“boas negras” Vitória, Naná, Das Dores, Pureza, Eulâmpia, “mulheres com quem
qualquer se gabaria de haver deitado e delas ter recebido chamego e dengo, mas fiéis
não eram”
(FIP, p. 28). Outro representante da etnia negra é o rei Afonso Jorge II, negro
congolense cuja autoridade fazia-o conhecido como o mani banto do quilombo da ilha,
para quem, enquanto o mundo for mundo haverá cativos, pois sempre existirão os que
nasceram para isso e os que nasceram para mandar, esta é a voz dos verdadeiros
filósofos e a voz da verdadeira vida.
(FIP, p.126).
A etnia branca está representada por figuras eminentes divididas em dois
grupos, também pelos papéis sociais que lhes são atribuídos na narrativa. De um lado,
representando a elite e o poder da Coroa, vêem-se o mestre-escola e farmacêutico
Joaquim Moniz Andrade, um homem das letras e o mestre-de-campo José Estevão
Borges Lustosa – o Lobo de São João - implacável na peleja e magnânimo na vitória
(FIP, p.59). Há, ainda, o intendente Felipe Mendes de Melo Furtado, casado com Dona
27
Felicidade Divina Salustiano Couto de Melo Furtado. A igreja alinha-se a este núcleo
nas figuras de monsenhor Gabriel Lustosa, irmão do mestre-de-campo, padre
Tertuliano Jesus da Mota, Padre Pascoal Amora, secretário do monsenhor Gabriel, o
seminarista João Manuel Taborda e o escrivão Terêncio Góes, que assessora as
autoridades eclesiais.
Do outro lado estão Dão Baltazar Nuno Feitosa, o Capitão Cavalo, aventureiro
português que chegou à ilha assim que a recebeu como dação do rei de Portugal a
pedido do próprio Capitão, depois de muitas proezas pelo mundo. A alcunha foi-lhe
dada pela sua resistência e força legendárias, pelas muitas ferezas que cometeu e pela
determinação invencível (FIP, p.145). Já Pedro Feitosa Cavalo, filho de Capitão Cavalo,
conhecido como Iô Pepeu, fazia praticamente nada, além de andar com as mulheres,
caçar, pescar e folgar (FIP, p.151), pois o pai o provia de recursos que lhe garantiam não
precisar trabalhar. Na furna da Degredada vive D`Ana Carocha, a Degredada, espécie
de curandeira da ilha, “que tanto serviço prestara aos que a buscavam e com ela
aprendiam ou se beneficiavam (FIP, p.289) com sua feitiçaria, suas adivinhações por
cristais, espelhos e cartas de tocar, de conluios com os demônios (FIP, p.189). E ainda
Hans Flussufer, que empreendera fuga de sua terra natal, Schweinfurt, na Alemanha,
durante oito anos, devido a severíssima perseguição religiosa, vindo dar à praia de
Beira Alta, onde foi recebido na aldeia índia com naturalidade e aprendeu rapidamente
a língua. (FIP, p.53)
A heterogeneidade não só étnica, mas também social e cultural é marcada nos
enunciados concretizadores dos atos de fala de cada uma dessas personagens, assim
como traços da cultura, a visão de mundo, o lugar de onde falam e, conseqüentemente,
a ideologia que permeia seus discursos.
A maneira como as personagens interagem na trama narrativa leva-nos a refletir
sobre alguns pontos já apresentados por Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala
(1987), Darcy Ribeiro em O povo brasileiro.A formação e o sentido do Brasil (1995) e
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil
(1995).
Na visão de Freyre,
[...]a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais
harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase
28
reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e
experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização da
cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado.
(1987, p.91)
Segundo Darcy Ribeiro (1995,p. 54-7),o conquistador teve do índio, por exemplo, o
auxílio na obra de desbravamento e de conquista dos sertões; o conhecimento de
sementes e produtos da natureza foi por ele transmitido aos europeus recém-
chegados. As mulheres índias, em cujos ventres engendraram uma vasta prole
mestiça, que viria ser, depois, o grosso da gente da terra: os brasileiros, serviram ao
colonizador para a geração e formação da família, fato de grande importância no
processo de povoamento da nova colônia. Do vocabulário se apropriou o colonizador
para nomear lugares, acidentes geográficos absorvendo da sabedoria milenar indígena
a maneira de como lidar com o que era da natureza circundante (1995, p.56-57). Fixa a
herança dos indígenas nos nomes de elementos naturais, mas não teve como forçá-los
definitivamente ao sedentarismo, pois dificilmente se acomodavam ao trabalho acurado
e metódico que exige a exploração dos canaviais. Sua tendência espontânea era para
as atividades menos sedentárias e que pudessem exercer sem regularidade forçada e
sem vigilância e fiscalização de estranhos, afirma Holanda (1995, p.48). O índio era tido
como um trabalhador ideal para transportar cargas ou pessoas por terras e por águas,
para cultivo de gêneros e preparo de alimento, para a caça e a pesca, não para o
trabalho sistemático na lavoura, por exemplo. Por seu preço menor, o índio foi-se
transformando em escravo dos pobres ou aproveitado em tarefas cansativas, mas que
não estavam diretamente ligadas à prática mercantil.
Ubaldo aponta esse aspecto do trabalho índio, o valor que lhe é atribuído
socialmente e deixa por conta de Balduíno as denúncias sobre a vida corrompida dos
homens da corte e a exploração do trabalho índio :
“_[...] Toda gente gosta índio! Assomente é Dão Filipe
que não gosta! Assomente Dão Filipe e as beata
beguina! Assomente Dão Filipe, as beguina e os
miserave! Quando índio tá na casa de mulher que eles
vai, ajudando no sereviço e fazendo covitage, eles não
recrama nem manda índio simbora. Quando índio vê o
que eles faz e elas faz, fica tudo muito amigo de índio,
pra índio espiar e não contar. Eles quer índio
29
trabaiando de graça, consertando rede, carregando
fruta, capinando mato, levando barrica de bosta, pra
depois nem comida querê dá índio, nem misgaia!”
(FIP,
p.41)
O processo de transculturação existiu bilateralmente. Se do lado do colonizador
muito foi absorvido da cultura indígena, esta também recebeu acréscimos dos
portugueses. Diz Darcy Ribeiro
:
O invasor, ao contrário, vinha com as mãos cheias e as naus abarrotadas de
machados, faca, facões, canivetes, tesouras, espelhos, também, miçangas
cristalizadas em cores opalinas. Quanto índio se desembestou enlouquecido contra
outros índios e até contra seu povo por amor dessas preciosidades! Não podendo
produzi-las, tiveram de encontrar e sofrer todos os modos de pagar seus preço, na
medida em que eles se tornaram indispensáveis. Elas eram, em essência, a
mercadoria que integrava o mundo índio com o mercado, com a potência prodigiosa de
tudo subverter.
(1995, p.48)
No romance, o escritor reconstrói essa face da história de nossa colonização na
ação de Balduíno trocando os artefatos por outras necessidades adquiridas no convívio
direto com a cultura européia e, mais importante, colocando o índio como conhecedor
de seus direitos, negando-se a voltar para o mato somente porque assim determinara o
administrador da ilha:
“_ Índio não volta pro mato!-gritou Balduíno, com as
veias do pescoço mais uma vez parecendo prestes a
estourar. _ Se mato é coisa boa, branco ia pro mato!
Branco só quer coisa boa! Por que branco não vai pro
mato?”(
FIP, p.41)
“_ Era! Índio era besta e descompreendido, não tinha
aprendido nada, índio era besta! Era! Agora não é mais!
Tem çúcar no mato? Tem fiambre no mato? Tem sabão
no mato? Tem jogo de carta no mato? Tem dinheiro no
mato? Tem vrido, panela de ferro e faca amolada no
mato? Tem aramofada no mato? No mato tem mutuca,
tem musquito, tem potó, tem cobra jararaca, tem coceira,
tem perreação, no mato tem é isso! Índio volta pro mato?
Nunca que nunca! índio quer voltar pro mato? Não, não,
30
não! Índio não volta pro mato, já falou. Índio volta pro
mato?
_Não, responderam os outros[...]”.
(FIP, p.41)
O papel da etnia africana extrapola os limites do eito e das senzalas desde o
início do século XVI até os meados do século XIX e chega às casas-grandes dos
engenhos. Diz Gilberto Freyre (1987, p.283): na ternura, na mímica excessiva, no
catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto
de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase
todos a marca da influência negra . O antropólogo reconhece no elemento negro uma
superioridade em relação ao indígena no que diz respeito à força de trabalho e mesmo
à capacidade técnica que traziam de uma evolução social mais avançada no setor que
nossos primeiros habitantes, principalmente os negros de origem banto e sudanesa,
degradados pela condição de escravos. O negro africano foi, na América Portuguesa, o
mais plástico colaborador do branco na obra de encorpamento do trabalho na lavoura.
A superioridade de certos grupos de negros africanos sobrepõe-se à grande maioria
dos colonos brancos, portugueses e filhos de portugueses quase sem instrução
nenhuma, analfabetos uns, semi-analfabetos na maior parte, diz Freyre (1984, p.209).
A discussão entre antropólogos sobre a questão da superioridade de certas
tribos africanas é recuperada no romance em estudo, na argumentação do mani banto
Afonso Jorge II, rei do quilombo existente na ilha, o qual afirma serem os congolenses
os representantes da melhor raça africana:
Negro do reino do Congo nunca foi para ser vendido,
nem como escravo, nem como coisa nenhuma. Negro
do reino do Congo vendia negros prisioneiros de
guerra aos brancos, revendia negros comprados de
mercadores. O reino do Congo tinha reis, fidalgos e
bispos como os portugueses e o seu povo não
compreendia como o podiam achar parecido com
aquelas raças muito justamente apelidadas de
infectas, raças porcas, estúpidas, atrasadas e
fedorentas, os teques, os mpumbu, os mbundu,
imaginem só[...] nenhum congolense vai se igualar a
esses bárbaros atrasados e comedores de gente como
os jagas.”
(FIP, p. 92)
31
Sérgio Buarque de Holanda em seu ensaio Raízes do Brasil (1995, p.52) faz
referência à fácil aclimatação dos conquistadores portugueses à nova terra, aceitando
o que lhes era oferecido pela natureza e por seus primeiros habitantes. Diz ainda que
aqui o domínio europeu foi mais brando e mole, menos obediente a regras e
dispositivos do que à lei da natureza. Também dos portugueses é reconhecida sua
plasticidade, sua capacidade de adaptação, tais quais os negros. Os portugueses
mantiveram contato íntimo com a população negra e índia e cediam com facilidade aos
costumes, à linguagem e às seitas das duas etnias. Os portugueses precisaram anular-
se ao longo do tempo para afinal vencerem. Como o grão de trigo dos Evangelhos, o
qual há de primeiramente morrer para depois crescer e dar bons frutos, segundo
Holanda (1995,p.133). A própria figura de Capitão Cavalo expressa tal visão
antropológica. Como chegou à ilha por escolha própria, nela implanta um modus
vivendi não esperado pela metrópole, seguindo a orientação de Frei João Menezes: rei
distante é rei nenhum, bispo distante é bispo que não se escuta e, portanto, longe
desses braços, que se fizesse o que mais acertado parecesse, pois nada substitui o
conhecimento de quem experimenta e convive.(FIP, p.146). Sua presença na ilha não
provocou lutas pela posse das terras: os negros de suas terras, que já antes eram
tratados de forma bem melhor do que no resto da ilha, foram declarados livres e
receberam permissão para irem embora se quisessem (FIP, p.149), implantando um novo
sistema econômico do qual os ex-escravos participavam como produtores
remunerados.
Mas não só ao estrangeiro português os nativos foram receptivos. A
personagem Hans Flussufer era um homem branco que falava arrevesadamente e vivia
entre os selvagens. Sua fácil adaptação ao novo lugar deveu-se à maneira como os
índios, principalmente as índias, o acolheram. Também ele afetou a cultura da ilha com
as novidades que ali implantou, por exemplo, pela necessidade de construir uma
moradia - em estilo francônico, com chaminés de cerâmica e varanda nos fundos - que
acomodasse confortavelmente as quatro índias que o encontraram e passaram a
considerá-lo como um troféu, um achado mágico que o mar lhes dera e que agora
32
partilhavam. Depois de algum tempo, nenhum índio morava mais à maneira antiga,
modificando a paisagem local.
Se Hans trouxe mudanças para a ilha, nela conviveu com as crenças e divindades
indígenas e negras, suas histórias para explicar a origem dos homens, dos bichos e das
plantas. Assim, no romance, reafirma-se a face acolhedora apontada anteriormente por
Holanda como característica do povo brasileiro.
33
2. PERCEBENDO DIFERENÇAS: A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA
As relações interacionais de um indivíduo com outro, ou outros, tendem a
propagar-se como ondas magnéticas, infinitamente, ao considerarmos os diferentes
grupos sociais de que ele participa, expandindo-se da célula familiar até comunidades
mais amplas como as comunidades nacionais. Como tal, é ele quem costura as relações
entre os diferentes grupos quando deles participa ativamente. Essa idéia tanto se aplica
aos contatos sociais em geral como especificamente às atividades lingüísticas que
estreitam tais contatos quando “se fala a mesma língua”. Diz Herculano de Carvalho (1979,
p.295)
que dentro, pois, de qualquer comunidade lingüística de maior ou menor extensão,
verifica-se sempre, forçosamente, a coincidência em maior ou menor grau das técnicas
lingüísticas dos sujeitos que as integram, o que não quer dizer que todos falem
igualmente. É possível observar em macro ou microcomunidades lingüísticas graus de
proximidade de seus integrantes. Esses fenômenos não são, no entanto, exclusivos da
linguagem. Eles são passíveis de observação no comportamento social, nos costumes,
adequando-se à diversidade própria de cada região, de cada situação, enfim, do contexto
onde o indivíduo se apresenta e ao qual, com dispêndio e esforço, se adapta e com ele
interage.
A linguagem é uma instituição humana e, desta maneira, resulta da vida em
sociedade como elemento essencial à comunicação. Ainda que suas funções básicas
estejam presentes em qualquer grupo – função social, função comunicativa, função de
suporte do pensamento, função expressiva, função estética –, difere de comunidade para
comunidade de tal forma que só funciona entre os membros de um determinado grupo
que dela se utiliza no convívio social.
Para Ferdinand de Saussure
(1973, p.17), a língua, como produto social da
faculdade da linguagem é um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo
corpo social para permitir o exercício dessa faculdade. O sistema de signos
convencionais que ela coloca à disposição dos falantes de uma comunidade dada é o
responsável por tornar possível a comunicação. Desde que nasce, o indivíduo é
envolvido por um universo sígnico com o qual interage por meio do jogo, instintivo
34
inicialmente, das analogias, das associações e das imitações. Essa experimentação
intensa com as inúmeras possibilidades comunicativas permite a formulação de
mensagens que geram a troca e o convívio social baseados na língua, meio de que o
falante dispõe para isso. Dino Preti (2004, p.28) cita Benveniste
7
: a língua é um elemento
de interação entre o indivíduo e a sociedade em que ele atua. É através dela que a
realidade se transforma em signos, pela associação de significantes sonoros a
significados arbitrários com os quais se processa a comunicação. Ao considerar a
interdependência entre sociedade e língua, tende-se a ver a linguagem como a forma
pela qual cada comunidade lingüística estrutura seu pensamento e como essas
estruturas articulam lingüisticamente sua realidade. Assim, admite-se a existência de
uma diversidade convencionada por vários fatores de natureza externa à língua.
É mais conhecida a tripartição dos níveis de fala que fazem da língua um
diassistema constituído de um nível diatópico ou regional; diastrático ou sociocultural; e
diafásico ou de modalidade expressiva. Tal distribuição é encontrada em Cunha (2001,
p.3),
Coseriu (2004, p.110), Bechara (1999, p.37) entre outros. Cada um desses níveis de
diferenciação no uso lingüístico corresponde a um conceito de unidade. Assim, à
relativa uniformidade no nível geográfico corresponde a uniformidade sintópica; à
diferença diastrática corresponde a relativa uniformidade sinstrática ou dialeto social; e
à diversidade diafásica corresponde a relativa uniformidade sinfásica.
Dino Preti, em Sociolingüística: os níveis de fala (2003, p.13-23), faz uma revisão
bibliográfica interessante, apresentando reflexões de vários estudiosos do assunto que
se preocupam em identificar as influências extralingüísticas que atuam sobre a língua e
conseqüentemente sobre a linguagem, gerando a habitual subvariedade de fala de
uma dada comunidade, muitas vezes restrita por operação das forças sociais a
representantes de um grupo étnico, religioso, econômico ou educacional específico
segundo McDavis apud Preti
( 2003, p.13). Vejamos algumas delas
8
.
Para Françoise Gadet, há 3 tipos de variação extralingüística assim
discriminadas: i) geográficas, onde se posicionam as variações regionais; ii)
sociológicas, que consideram as variáveis sexo, idade, profissão, escolaridade, classe
7
BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas:Pontes,1989. p.282
8
As idéias de Gadet, Bright, Bally, MacCohen, Lefebre e Gleason foram colhidas em PRETI:2003, p.15-21
35
social localizadas dentro de uma mesma região, que podem determinar traços
individualizados na linguagem; iii) contextuais, em que se localizam todos os fatores
potencialmente capazes de gerar diferenças na linguagem empregada pelo locutor por
motivos que lhe sejam externos: clientela, o espaço-tempo em que ocorre a atividade e
as relações que aproximam os interlocutores. A influência do contexto, em Gadet, vai
aproximar-se do que Bright apresenta como “dimensão da situação ou do contexto”.
A doutrina de Willian Bright contempla três dimensões para a pesquisa
sociolingüística quanto ao níveis de fala: i) a dimensão do emissor; ii) a dimensão do
receptor; iii) a dimensão da situação ou contexto (setting). Entende-se a primeira como
aquela que envolve a identidade social do emissor. Nela as diferenças dialetais
estariam ligadas à classe social à qual pertence o emissor. A segunda dimensão, que
diz respeito à identidade social do receptor ou ouvinte, seria relevante onde quer que
vocabulários especiais de respeito sejam usados em se falando com superiores (apud
PRETI,2003, p.16)
. Finalmente, a terceira que abarca todos os elementos relevantes
possíveis considerados no contexto da comunicação, exceto na identidade dos
interlocutores envolvidos no processo.
Não se deve perder de vista que qualquer teoria variacionista só existe em
função de existência de uma unidade ou uniformidade daquilo que se denomina língua
como herança do trabalho intenso para a manutenção da tradição lingüística de uma
comunidade bem como sua renovação através dos tempos e sob circunstâncias
sociais, culturais, de formas de produção que caracterizam essa mesma comunidade.
Ou seja, falar-se em variabilidade lingüística implica a existência de uma unidade
lingüística em circulação dentro de um grupo de falantes.
Charles Bally defende a idéia de existirem dois pontos básicos na questão da
variabilidade dos níveis de fala: i) os “estados”; ii) as formas habituais de atividade e
pensamento”. Estas envolvem atividades profissionais e outras atividades das mais
diferentes naturezas desde as esportivas às científicas e literárias. Aqueles, os
“estados”, abarcam as condições pré-existentes aos indivíduos como cultura, classe
social a que pertencem, orientação religiosa, ética e moral. Também o ócio aqui se
incluiria, pois, de algum forma, ele permite a aproximação de indivíduos, como o jogo
de cartas ou de damas na pracinha, ou “um bate-papo num boteco do Leblon”.
36
Percebe-se que o “meio”, na concepção de Bally, não faz referência aos limites
geográficos, mas antes é a superposição desses diversos meios que se encontram no
mesmo indivíduo.
Marcel MacCohen confirma que diferenças de origem, profissão, nível de vida e
religião aparecem reunidas como fatores que acarretam a diversidade no uso da
língua.
Gleason aponta o contexto social do enunciado específico, a posição social do
locutor, sua origem geográfica e sua idade como variáveis lingüísticas.
Claire Lefebvre apresenta outras dimensões para a variação lingüística: i)
dimensão geográfica associada às regiões; ii) dimensão histórica associada às
diferenças caracterizadas dos diversos estágios de evolução de uma língua; iii)
dimensão estilística, associada às situações nas quais a língua é utilizada. Para estas
dimensões, Lefebvre abre um leque de termos de referência, a saber: “níveis de
língua”, “registros”, “estilo”, “código”, “variedade padrão” ou “língua não-padrão”, “língua
formal” ou “língua familiar” etc.
Herculano de Carvalho também é referido na pesquisa de Preti, mas nos
reportamos ao seu livro Teoria da Linguagem. Natureza do fenômeno lingüístico e a
análise das línguas (1979, p.291-316) para registrar sua visão sobre o assunto. Carvalho
parte da consideração da existência de uma “unidade idiomática” na qual estão
contidos os idioletos individuais e intraindividuais (que chama de normas de estilo) e os
idiomas ligados por entidades idiomáticas homogêneas porque sistemáticas, sujeitas à
mesma norma, que podem chegar a outra unidade não tão homogênea e até bem
individualizada a que denomina língua, abarcando aí, “os modos de falar, todas as
técnicas lingüísticas – variedades interindividuais, geográficas, sociais e históricas por
vezes muito diferentes entre si, faladas por diversos indivíduos de uma comunidade
lingüística una
(1979, p.326), unicidade fruto da consciência dos falantes da língua para
além das diversidades do falar. Para Carvalho, tratando-se de variedade lingüística, há
dois fatores que contribuem significativamente: os fatores geográficos e os fatores
socioculturais. No primeiro – variedades geográficas, regionais ou locais- encontram-se
os dialetos e os falares fixados através de gerações sob a influência cultural, política e
econômica de cada região sobre seus falantes. Sob o segundo fator – o sociocultural --
37
agasalha-se a idéia de que, numa mesma região geográfica, encontram-se técnicas
lingüísticas diferenciadas, considerando-se que aqueles que ali nasceram e se criaram
não falam todos da mesma maneira (1979, p.299), pois espelham o ambiente mais íntimo
onde tiveram os primeiros contatos com a língua que usam em seus atos de fala, assim
como os traços culturais de seus núcleos primários. É certo que há contatos mais ou
menos estreitos com outras comunidades, mas não suficientemente fortes para apagar
de vez o produto da relação que há entre os integrantes de um mesmo grupo social.
Outro par de variação é o que nos fala do estilo coloquial e do estilo refletido
(reflectido). Cada uma dessas modalidades de uso da língua tem suas características
próprias.
Herculano de Carvalho comenta as variedades estilísticas, ressaltando o caráter
individual, pois um mesmo sujeito falante é capaz de usar técnicas lingüísticas
diferenciadas em função da adequação necessária para finalidades específicas, para
satisfação das necessidades cognitivas e manifestivas próprias de cada uma de suas
atividades lingüísticas (1979, p. 302).
Ainda citando Carvalho, vejam-se as características do estilo coloquial:
1)Os conteúdos cognoscitivos nele exteriorizado são relativamente pobres – visto
serem determinados pelas necessidades vitais imediatas do dia a dia na sua mais
simples expressão.
2)Essa exteriorização destina-se a um feito eminentemente prático e sobretudo
imediato. Nestes actos da linguagem quotidiana as finalidades realizadas são de facto,
antes de mais nada, de natureza apelativa e também expressiva ( mas geralmente não
estética) na sua forma mais elementar[...]
3)Constatamos que estes momentos de actividade se realizam com um mínimo de
consciência da escolha das formas lingüísticas usadas e com um mínimo de adesão
consciente ao sistema da língua.
(1979, p.304)
A seguir, as características do estilo reflectido:
1) Os conteúdos cognoscitivos aí manifestados são relativamente ricos e complexos,
pelo facto de serem determinados por uma atividade intelectual, emotiva e mesmo volitiva
dirigida por uma satisfação, não meras necessidades quotidianas e em grande parte
materiais, mas de exigências espirituais mais elevadas: o conhecer especulativo e
estético, a actuação social transcendendo o âmbito do indivíduo.
2) O efeito desta exteriorização pode não ser de natureza prática e sobretudo não tem que
ser imediato. [...]mesmo nesses atos em que predomina a volição e portanto a função
apelativa, o efeito nunca é imediato[...] (o estilo refletido) se destina a actuar no
38
comportamento social dos ouvintes, não ali e naquele instante mas, por assim dizer, a
longo prazo [...]
3) Finalmente esse actos verbais são realizados com um máximo de consciência das
formas lingüísticas usadas e com o máximo de adesão ao sistema da língua.[...]. Aqui o
sujeito falante preocupa-se em não errar, em não “atropelar a gramática”, em se exprimir
“com correção e elegância”.
(1979, p. 305-6)
Também são consideradas pelo lingüista português as variedades sincrônicas,
fenômenos de variação que se deixam observar no mesmo recorte temporal, e as
diacrônicas onde repousam a tradição, os planos temporais de uma língua histórica.
O estudo da variação lingüística enfocando o “contínuo da urbanização”, o
“contínuo da oralidade-letramento” e o “contínuo do monitoramento estilístico” é
apresentado por Stella Maris Bortoni-Ricardo (2004). A existência de domínios sociais
_ família, escola, igreja _ possibilita que as pessoas interajam, assumindo diferentes
papéis sociais construídos no processo da interação humana, com seu conjunto de
obrigações e direitos definidos por normas socioculturais. Nessas circunstâncias
também a linguagem é elemento fundamental para construir e reforçar os papéis
sociais peculiares a cada domínio. Diz a pesquisadora que as diferenças encontradas
são devidas à necessidade de monitoramento do uso da língua em função dos
eventos e do nível de formalidade onde é usada. Fatores históricos também
interferem:
No Brasil, os falares das cidades litorâneas, que foram sendo criadas ao longo dos
séculos XVI e XVII[...] sempre tiveram mais prestígio que os falares das
comunidades interioranas. Isto se explica porque as cidades brasileiras que estão
voltadas para a Europa receberam um contingente muito grande de portugueses nos
três primeiros séculos de colonização e desenvolveram falares próximos dos falares
lusitanos. Observemos também que, até 1960, a capital do Brasil se situava no
litoral.[...]. É natural que a cidade sede do governo tenha mais poder político e
prestígio, e esse prestígio acaba por se transferir ao dialeto da região.
(2004, p.34)
Stella Maris acrescenta a rede social do falante como mais um componente
que contribui para as variações, uma vez que a pluralidade de pessoas envolvidas na
interação acrescenta características outras ao repertório do falante. Assim, os
atributos (idade, sexo,status, nível de escolarização etc.) associados aos fatores
funcionais existentes na dinâmica das interações possibilitam a construção do
39
repertório sociolingüístico do falante, não esquecendo que os fatores estruturais da
própria língua (fonologia, morfologia, sintaxe) estão presentes nessas considerações.
Das três linhas de estudo propostas, interessa mais de perto aquela que trata
da monitoração do estilo, que trabalha com a existência de uma “linha” em que num
extremo se encontram os falares rurais mais isolados e na outra, os falares urbanos,
marcados pela ação significativa dos agentes padronizadores: imprensa, escola,
igreja, repartições públicas, produção literária com o predomínio do estilo monitorado
da língua tanto na escrita quanto na fala. Considera-se estilo monitorado aquele que
demanda do falante maior cuidado com o uso das formas da língua em função de
fatores como: dependência da situação de uso; interlocutor e sua relação com o
poder; desejo de causar boa impressão; grau de formalidade do assunto. Em linhas
gerais, a monitoração estilística consiste no esforço feito pelo falante ao aplicar sua
competência comunicativa na adequação da fala aos papéis sociais que assume.
Ressalte-se que esse cuidado existe na interação interpessoal e também na
intrapessoal, em que o mesmo falante alterna estilos monitorados e não-monitorados
quando a situação assim o exige.
Luis Carlos Travaglia, em Gramática e interação: uma proposta para o ensino
de gramática no 1º e 2º graus (2000, p.41-66), apresenta de maneira bastante didática
as dimensões das variedades da língua. Em linhas gerais sua distribuição é
semelhante às demais, apenas preferindo o termo dialeto para as variantes na
dimensão regional, geográfica ou local. Segundo ele, nos dialetos, as marcas
diferenciais são mais nítidas nos campos da fonética e do léxico, por estarem os
falantes “contidos” num espaço delimitado política, econômica, culturalmente e serem
fruto das influências que cada região sofreu em sua formação.
Na dimensão da variedade social, Travaglia (2000, p.45) acentua a influência da
classe social a que pertence o falante na produção de seus atos de fala. A classe
social aqui está diretamente ligada às atividades profissionais. Diz ele: é por isso que
se consideram como variedades dialetais de natureza social os jargões profissionais
ou de determinadas classes sociais bem definidas como grupos (linguagem dos
artistas, professores, médicos, mecânicos, estivadores, dos marginais), embora, a
seguir, ele complemente com “classe alta”, “favelados”, “gíria” etc.
40
O que existe nessa dimensão são superposições e matizes de usos que
estariam mais ligados a graus maiores ou menores de formalismo no uso da língua.
Destaca-se aqui o papel da língua como identificação grupal, ou seja, o grupo de
falantes ganha identidade pela linguagem que usa. Quanto aos dialetos da dimensão
da geração, interessam as observações que ressaltam variação histórica e não de
idade, o que liga essa dimensão à variação diacrônica. Para Travaglia (2000, p.48), as
variações históricas existem e são percebidas na língua escrita, por causa do registro
que as faz permanecer no tempo.
Para esta pesquisa, é relevante o estudo que o lingüista apresenta sobre as
variações de registro que se assentam em três tipos: graus de formalismo, de modo e
de sintonia. Travaglia propõe graus de formalismo, escalonados para mais ou para
menos, que levem em conta o cuidado com o uso dos fatos da língua, assim como a
variedade de recursos empregados na construção de enunciados. Quanto à variação
de modo, explicita a modalidade escrita e a modalidade oral. Cada um desses modos
de produção comporta um conjunto próprio de graus de formalismo.
Reproduz-se aqui o quadro de escalonamento dos graus de formalismo,
considerando as modalidades falada e escrita da língua, proposto pelo lingüista por
ser importante para outras etapas desenvolvidas nesta tese:
Língua falada Língua escrita
oratório hiperformal
formal (planejado) formal
coloquial semiformal
coloquial distenso informal
familiar (ou íntimo) pessoal
(Travaglia
:2000, p.54)
Na dimensão de registro ou sintonia, a variação irá ocorrer toda vez que o
falante se preocupar em ajustar sua fala às condições de seu ouvinte, levando em
conta o status, a tecnicidade, a cortesia e a norma. O status, de modo geral, está
relacionado à variante de grau de formalismo. A tecnicidade leva em conta o grau de
41
informação que o ouvinte tem sobre o assunto tratado pelo falante. A variação de
cortesia está ligada ao grau de polidez maior ou menor, de acordo com os
participantes da interlocução, oscilando entre um alto grau de formalismo até as
expressões desonrosas ou de baixo calão e as formas de atenuação como o
eufemismo. A variação na dimensão da norma se adapta à expectativa do
interlocutor, ou seja, o locutor “falará a língua da assistência”.
Do que foi visto, conclui-se que não é possível falar em variação lingüística
sem se considerarem as circunstâncias geográficas, sociais e culturais em que o
falante está imerso. Também não é possível abandonar alguns itens da interação
através da palavra: adequação ao ouvinte, ao assunto, enfim à situação de uso. A
necessidade de comunicação, de interação pela linguagem, impõe ao falante o
exercício de várias técnicas enunciativas para que, efetivamente, ele seja um
participante ativo dentro de seu grupo social e fora dele. No texto de Travaglia, em
diversas oportunidades o léxico foi apontado como marca significativa no
estabelecimento das diferentes variedades.
No universo ficcional de O feitiço da ilha do Pavão há um trabalho minucioso
do escritor quando procura manter a identidade de cada uma das personagens. A
variedade lingüística é um recurso que confere identidade a um grupo social. Num
trabalho elaborado quanto à fonética, à sintaxe e, principalmente ao léxico, melhor
dizendo ao vocabulário empregado, João Ubaldo Ribeiro nos oferece oportunidade
singular para observar as considerações feitas aqui com relação aos fenômenos de
variabilidade lingüística, tanto na perspectiva da interação intergrupal como na da
relação intrapessoal. Os grupos que povoam a ilha, ainda que isolados
geograficamente do restante do mundo, têm convívio intenso, mas estão longe de
serem homogêneos lingüisticamente. Mais ainda, as variantes de registro também
estão presentes e são elas muitas vezes que constroem o discurso do humor
presente no romance.
42
3. FUNDEANDO AS ÁGUAS PLÁCIDAS DA CALHETA... A LÍNGUA
LITERÁRIA
Por ser o corpus dessa tese um romance de ficção, pensamos ser adequado
falar um pouco sobre a questão da existência ou não de uma língua literária,
considerando-a como uma das possibilidades de variante diafásica.
As sementes de uma literatura caracteristicamente brasileira, levadas pelos
ventos nacionalistas do Romantismo, fecundaram no solo da inquietação modernista
e ali germinaram, dando-nos uma paisagem literária bastante variada, cujos frutos
saborosos apreciamos na literatura brasileira contemporânea.
Uma definição oficial, acadêmica, do que seja língua literária ainda é tema que
ocupa os estudiosos. Se persiste a polêmica, é porque ainda há espaço para alguma
reflexão sobre o assunto. Não seria o caso, por exemplo, de serem levadas em
consideração as condições de uso, ou melhor dizendo, as circunstâncias em que a
língua se realiza a partir de uma série de condicionantes necessariamente impostas
ao escritor, em face do projeto elaborado, pelo menos inicialmente, de uma obra que
se candidata ao status de obra literária? O fato de ser uma produção na modalidade
escrita não o sobrecarregaria de certos cuidados com técnicas e artifícios adequados
para trabalhar com variantes necessárias dessa mesma língua quando pretendesse,
principalmente, diminuir a distância entre a língua escrita e a língua falada num
trabalho de monitoração estilística? Ainda mais uma ponderação: este autor,
certamente, é alguém que convive com textos de qualidade reconhecida, conhece e
admira as produções clássicas da literatura, e até as tem como modelos, mantendo
contato permanente com o padrão culto (ou cultuado) da língua. A conseqüência
dessa relação tão íntima não seria a internalização cada vez mais forte desse padrão,
numa atitude de reverência à tradição da língua portuguesa que, fatalmente, iremos
encontrar refletida, em algum momento, nos seus escritos?
A investigação do assunto na obra do escritor João Ubaldo Ribeiro preenche
satisfatoriamente as indagações acima. Tanto em Viva o povo brasileiro (1984), quanto
43
em Vila Real (1979), ou mesmo no livro infanto-juvenil intitulado A vingança de Charles
Tiburone
(1990) ou em O feitiço da ilha do Pavão (1997), ao qual dedica-se especial
atenção nesta tese, e nos demais livros que já escreveu, as vozes das personagens
revelam o modo como o escritor observa intensamente a vida e, mais ainda, o
domínio que demonstra ter da linguagem usada, artesanalmente cuidada e colocada
em cada ato de fala dos seus personagens e do narrador a ponto de se permitir, além
da invenção de especular idéias, a revitalização de palavras. Com rara capacidade
inventiva conduz sua pena inquieta por espaços múltiplos e diversificados, do chão da
realidade ao magicismo do livre imaginário, avalia Domício Proença Filho
(2004, p.168).
Quando assistimos a entrevistas ou palestras de autores contemporâneos,
inclua-se aqui João Ubaldo Ribeiro, e a eles é perguntado algo sobre o fazer literário,
a linguagem que empregam, por que este ou aquele uso, as respostas mais
freqüentes costumam ser “não sei explicar” ou “quando vejo, já escrevi” ou ainda,
como respondeu João Ubaldo, na entrevista concedida à equipe da publicação
Cadernos de Literatura Brasileira (1999, p.47): Então vou escrevendo e, realmente, eu
não sei onde vou chegar, o que é que eu quero. Eu não tenho método a defender,
entendeu? Aparece um livro e eu escrevo. O que vai acontecer, eu não sei.
Assim, não deve causar estranheza identificar, na obra literária, mesmo as
mais aparentemente despojadas da preocupação de abordar temas sérios, como
ocorreu em A casa dos budas ditosos (1999), ou a preocupação de agradar a uma
elite cultural, o uso de uma língua de altíssima qualidade, torneios retóricos
tradicionais, vocabulário rebuscado. Ainda que exista o enraizamento da língua culta,
esse mesmo escritor é alguém que anda pelas ruas, ouve o que falam as pessoas
comuns, conversa informalmente com os amigos, com os comerciantes locais,
vizinhos. Todos se entendem, empregando outras possibilidades de realização da
mesma língua, que subsidiou a construção do padrão culto literário de que falamos
anteriormente, e que também são vistas, reconstituídas ainda que artificialmente, nas
falas de muitas personagens habitantes do mundo ficcional. Do romancista Ubaldo
Ribeiro é esta declaração feita no Caderno Literário
(1999, p.49) : presto muita atenção
na fala dos cariocas para quando escrever em carioquês para não errar a mão.
Carioca diz “Dá um cafezinho pra mim”. Na Bahia se diz “Me dê”. Aqui soa autoritário.
44
Os cariocas falam: “A Fulana, o Beltrano”. Isso é um tapa no ouvido do nordestino. No
Nordeste todo mundo fala direto ”Fulana, Beltrano”, sem usar o artigo. E,
esclarecedoramente, conclui: Quando vou para Itaparica, entro na língua de lá,
“como” todas as proparoxítonas. Falo padre Ciço, não padre Cícero - Cícero é só
para gente culta. A consciência lingüística do escritor, em toda a sua extensão, é
demonstrada nessa passagem. Quando há necessidade, recorre ao padrão culto da
língua. Quando a intenção é dar a cor local, usa a variante adequada, do que é
possível deduzir que, em obras clássicas, também pode ocorrer a penetração,
sorrateira ou não, da informalidade, do coloquial, da variante popular como já
acontecia nas obras clássicas da Antigüidade.
Essa constatação está longe de ser um “ovo de Colombo”. Nos estudos sobre
o latim vulgar, uma das fontes de pesquisa era, exatamente, a obra dos escritores
clássicos, como nos esclarece Silvio Elia (1979, p.29): Nos próprios autores literários
por vezes se encontram elementos que nos levam ao latim vulgar praticado ou em
conseqüência de certas personagens. E acrescenta que a natureza do gênero textual
praticado também motivaria a inserção do sermo vulgaris como ocorre em Cícero,
em Horácio, nas comédias de Plauto e na prosa de Petrônio, na narrativa intitulada
Satiricon. Nenhuma excentricidade, portanto, no fato de nem só do uso canônico da
língua portuguesa sustentar-se a literatura brasileira contemporânea. De tradições e
transgressões, segue ela a construir sua unidade sobre os alicerces seguros da
sólida estrutura que a tradição idiomática deixa ao dispor, autorizando as diversas
possibilidades de materialização dos discursos que se desviam em nome da
expressividade tão necessária à construção do universo da literatura.
Falar-se em modos e usos da língua para fins literários pode soar como
artificialismo porque resultam de um ato de escolha deliberada do autor na busca da
melhor maneira do dizer, do descrever, do narrar o que vê, o que sente ou imagina na
pretensão de criar um mundo real dentro da ficção. De fato, não deixa de ser um
artificialismo, mas um artificialismo expressivo, provocador de halos especiais de
criatividade em torno daquilo que seria natural.
Tais reflexões iniciais, a nosso ver, facilitam ao artista da palavra construir um
texto em que a língua como diassistema prova a sua constante revitalização, a partir
45
de cada uma das possibilidades de realização, condicionadas por uma série de
fatores que, em verdade, transformam a língua em discurso, entendendo-se discurso
como necessariamente um acontecimento protagonizado por um enunciador e um ou
mais destinatários numa situação que inclui o momento histórico e o contexto,
segundo Azeredo (2000, p.34-5).
No caso da obra literária, temos uma das possíveis ocorrências de um discurso
planejado, em que o enunciador tem a palavra e dela dispõe controlando o
desenvolvimento do seu texto segundo sua vontade, (2000, p.35), embora, tal como
ocorre na descrição do fazer literário, digam alguns escritores que as personagens de
seus romances, por exemplo, determinam os seus próprios destinos, afastando-se
muitas vezes do projeto inicial da obra.
Rajagopalan (2003, p.117) defende que a obra de ficção, para ser entendida,
não dispensará a noção de “fingimento”; ou seja, o autor de uma obra de ficção finge,
voluntariamente, quando está executando os atos de fala que compõem a obra.
Lembrando Searle, o lingüista complementa: a possibilidade de fingimento se deve à
existência de um conjunto de convenções que suspendem a operação normal das
regras que relacionam atos ilocucionários e o mundo, ou seja, o escritor finge que
relata um determinado ato real discursivo e o leitor entra no universo do fingimento.
Para que este contrato “fingidor” se concretize, a narrativa de histórias se transforma
num jogo de linguagem especial de que participam o escritor e o leitor.
Nas palavras de Silvio Elia
(1975, p.32), o movimento romântico no Brasil teve
grande repercussão: trouxe-nos a independência literária, criou valores permanentes
em nossa modesta, mas já ilustre galeria de homens de letras, permitiu uma
adequação mais sincera entre a língua escrita e a língua falada
(grifo nosso). Dali
partiram as sementes que fecundaram no solo modernista, fato literário do qual Lúcia
Miguel Pereira
9
faz a seguinte interpretação:
À história literária pertence já como escola, que ninguém mais escreve como em
1922; os seus imperativos formais estão arquivados, catalogados para uso dos
estudiosos. Mas a sua influência subsiste, as suas experiências se incorporaram a
outras, que as continuam. Foi assimilado porque encerrava de fato princípios
substanciais, porque constituiu revolução completa, e não simples revolta, muito
9
PEREIRA, L M .Tendências e repercussões literárias do Modernismo (in Cultura, Rio de Janeiro, MEC), Ano III,
nº5, 1952. p.180-1 apud Afrânio Coutinho. 1986, p.40
46
menos uma imposição acadêmica de preceitos literários.[…] .O seu espírito,
justamente por ser livre, portanto elástico, não se deteve na libertinagem, antes,
canalizou-se para a busca de padrões culturais mais consentâneos com o nosso
feitio.Oriundo de estéticas estrangeiras, logo se nacionalizou; navegador em seu
ímpeto inicial, depressa tornou-se afirmativo; dogmático em suas fórmulas
inaugurais, não tardou a adquirir a maleabilidade indispensável à ação; ávido de
novidades na sua origem, acercou-se da tradição mais vívida do nosso passado;
intelectualmente aristocrata em sua instalação, rapidamente se humanizou[...]
(1958, p.180-1)
Uma estética emancipadora se consolida na literatura a partir da Semana de
Arte Moderna de 22. A língua literária conserva-se, obedece à índole do português
brasileiro, mas afasta-se dos preceitos normativos “oficiais” e aproxima-se da
modalidade culta da língua padrão urbana. Dessa forma, à literatura impõe-se o duplo
papel de manter a tradição da língua e de sancionar as inovações já incorporadas à
linguagem cotidiana.
As breves anotações que fizemos sobre os dois movimentos literários mais
importantes para a compreensão de uma verdadeira literatura brasileira servem para
subsidiar algumas observações de ordem prática que desenvolveremos a seguir.
Selecionamos dois fragmentos de textos literários consagrados. O primeiro é
do poema Y-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, composto em 1851, peça literária
reconhecida como monumento representante do indianismo no movimento romântico
no Brasil. O segundo, buscado no romance Feitiço da ilha do Pavão, de João Ubaldo
Ribeiro.
1-Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
47
Tu, cobarde, meu filho não és.
(Y-JUCA-PIRAMA. Gonçalves Dias. Poesia completa.1959)
2- Cadê tendente? Cadê Dão Filipe de Meulo Furutado? Cadê condenado
pecador, tendente estrumo?. UÁ! UÁ! Índio mata, índio dá carne de branco
postadinha pra guará, pra raposa, pra tatu, pra aribu, pra siri e pra mecê
atecuri, na terra, no vento e na maré! Índio pega toda gente e mata a
dentada arrum-arrum, creque-creque, ramo-ramo, racha cabeça, bebe
sangue na coité, tuque-tuque ! Curuí-curuê, é com vossimececê.
(FIP, p.36)
Considerando que os dois discursos apontados pertencem a figuras da
mesma etnia e cada um a seu modo representa o índio na formação da identidade
brasileira, comparemos as formações discursivas.
Nos dois fragmentos está presente a imagem do índio que não se abate
diante do medo ou diante do poder opressor. No entanto, este traço comum se faz
representar por discursos bastante diversos, uma vez que as estéticas que os
orientam também são diferentes. A estética romântica de Gonçalves Dias vê o índio
como exótico e pitoresco, à moda européia presente no movimento romântico. É um
poema com características épicas: ritmo próprio, perfeita utilização dos vários
recursos de métrica, musicalidade e ritmo, além do herói idealizado. Quanto à
construção do discurso poético, encontramos uma língua exuberante, clássica,
bastante ligada à influência do português europeu. Um respeito ao cânone gramatical,
denotado pelo uso da 2ª pessoa do singular, no imperativo; pela inversão dos
elementos frasais, que soam artificiais considerando tratar-se da fala ameríndia em
discurso direto. À leitura do poema, dir-se-ia que, àquela altura da História, os índios
do Brasil já dominavam o mais escorreito português. Com relação ao léxico, de
elemento não lusitano, poucos são os termos que aparecem em todo o poema (taba,
maracás, enduape, cauim, muçurana, embira, manitôs Tupã, tapuias,
iverapeme). As demais palavras pertencem ao repertório do português culto da
época, o que permitiria uma leitura de valorização mítica dos primeiros habitantes do
Brasil.
Já no segundo fragmento, vêem-se manifestações lingüísticas que marcam
uma ampla atitude transgressora mais aceita na literatura contemporânea não em
48
relação ao caráter do selvagem brasileiro em si, mas na apresentação exagerada,
caricatural do que seria o falar indígena em processo de transculturação natural,
resultante do contato de dois estratos tão diferentes: a língua do branco europeu e a
língua do indígena brasileiro. É fácil observar que o romancista exacerba esse
“esforço” de aquisição e ao mesmo tempo de nivelamento com a língua do dominador
representante do poder instituído, usando recursos que, à época de Gonçalves Dias,
não seriam aceitos no exercício de uma língua literária, mas que, graças ao
movimento modernista, tornaram-se viáveis dentro da literatura. A luta para romper
com os padrões vigentes e abrir novos caminhos liberava outras possibilidades para a
produção literária nacional.
As estratégias de construção do discurso de Tantanhengá apelam para as
transgressões, para os desvios de um padrão de língua formal, mas com o aval da
própria história da língua; ou seja, os recursos empregados na construção dos
“estranhos vocábulos” já foram exaustivamente estudados pelas gramáticas históricas
e normativas da língua portuguesa quer na perspectiva sincrônica, quer na
perspectiva diacrônica. Ao dar voz à personagem, o discurso de Tantanhengá vem
crivado de fenômenos fonéticos recorrentes na fala comum, que chegam até o leitor
pelas alterações gráficas no significante das palavras, na tentativa de reproduzir
“fielmente” o modo de a personagem materializar a língua, como as ocorrências de
assimilação regressiva em Filipe por Felipe; epêntese em Meulo por Melo, ou em
Furutado por Furtado; aférese em tendente por intendente; síncope em pra por
para. Quanto à palavra aribu (a memória afirma já ter ouvido a palavra urubu ser
pronunciada como aparece no texto), nos dicionários consultados não aparece
nenhuma referência à pronúncia eleita pelo escritor. Fecha-se, então, o circuito de um
discurso eivado de humor, desconstrutor por excelência da autoridade instituída do
intendente Felipe de Melo Furtado (ele será comida de aribu e não de urubu) ao
mesmo tempo que a caricatura da fala da personagem indígena distancia-a de sua
língua primeira (urubu é vocábulo tupinambá) e a exclui do domínio completo da
língua do dominador.
49
No plano da morfologia, aparece o interrogativo cadê, construção do
português do Brasil. Segundo Fernandes
10
(2000, p.110), há outras variantes de uso
desse interrogativo resultantes da contração de toda uma frase
que é feito de ou da
locução prepositiva “que é de”: “quede” e “ quedê “.
Dos processos de formação de palavras, destacam-se a composição e a
derivação sufixal. Para este caso, temos o uso da forma diminutiva, do adjetivo
postadinha, com fins intensificadores. Quanto à composição, as onomatopéias que
ocorrem são relevantes para completar a cena de canibalismo ali sugerida. O escritor
sente necessidade de imitar objetivamente e jogar com a impressão que possam
causar no leitor a partir do efeito sonoro das formas arrum-arrum, creque-creque,
ramo-ramo, tuque-tuque, todas neológicas e ligadas semanticamente à sensação
auditiva das diferentes etapas do ato de comer ou beber, como se não fossem
suficientes as formas “matar a dentadas” ou “beber o sangue”.
No plano lexical, a legitimação da cultura indígena se confirma pela seleção
vocabular, principalmente em relação aos substantivos utilizados na nomeação dos
animais, todos de origem Tupi: guará (garça), siri, tatu; na nomeação de objetos
como coité .
11
Destoa nessa relação a palavra raposa, cujo correspondente em tupi
é gambá. O escritor, no entanto, preferiu o primeiro termo que, segundo o Dicionário
Houaiss
12
(2001), tem origem controversa, datação do século XIII e nomeia um animal
característico do Hemisfério Norte. Traço da cultura européia intencionalmente
apresentado? Deslize do escritor? Parece-nos que vai interessar ao plano da obra dar
pistas de que o índio, habitante da ilha do Pavão, já internalizou unidades do léxico
do dominador europeu.
No texto aparecem duas formas do mesmo pronome de tratamento: mecê e
vossimececê. A primeira é um brasileirismo informal oriundo da evolução do
pronome de tratamento vossa mercê, conforme registrado por Amadeu Amaral, em
seu Dialeto Caipira, do qual transcrevemos:
10
FERNANDES, J. A. Dicionário de formas e construções opcionais da língua portuguesa. Fortaleza:EUFC, 2000
11
Com relação aos vocábulos curuí-curuê e atecuri , que supusemos ser termo doTupi, não encontramos no
Vocabulário Tupi-Guarani Português de Francisco Silveira Bueno (1981) nenhuma referência quer fosse da forma
composta, quer das palavras isoladamente, o que nos faz pensar que o escritor criou , na verdade, uma camada
sonora que desse ritmo à fala que termina com vossimicecê, produzindo uma espécie de eco. Ou, quem sabe,
apenas uma brincadeira com as palavras para divertir o leitor. São hipóteses de leitura, apenas.
12
A partir de agora usaremos a sigla DH para referência ao Dicionário Houaiss.
50
MECÊ, pron. de tratamento da 3ª pess. II De vossa mercê,
que deu toda uma série de formas, nem sempre usadas,
indiferentemente, umas pelas outras: vossuncê, vansuncê,
vamicê, vancê, vacê, ocê ,mecê. [...].
(1976, p.153)
Amaral (1976, p.153) comenta que a forma mecê era mais usada pelos pretos
que por outra qualquer gente. No texto de Ubaldo, também o índio usa esta forma,
marcando mais a característica do uso da forma popular como marca de oralidade,
que a questão étnica. Nos dicionários que nos servem de corpora de exclusão, são
registradas ainda outras formações ao longo da evolução desse pronome de
tratamento: ”vossancê” (1665), “vossê” (1721), mas não há referência à forma “mecê”
empregada no texto.
Quanto ao plano da sintaxe, mantém-se no geral a tradição do português de
Portugal à exceção de uma construção frasal na ordem direta, curta, traços de
oralidade levados ao texto literário.
Voltando ao índio idealizado de Gonçalves Dias, observamos que ele é dono
do seu discurso, pela presença da primeira pessoa, denotando o apagamento do
pronome de primeira pessoa, uso indicado por algumas gramáticas normativas por já
trazer o verbo a marca desinencial de pessoa. Quanto à discursividade de
Tantanhangá, o sujeito se apresenta em 3ª pessoa, pelo emprego da palavra índio,
trazendo ao discurso não o individual, mas a coletividade indígena. Do índio, ainda
não fora reconhecida sua identidade. Como uma criança aprendendo a falar, não
reconhece ou emprega o sujeito pronominal de 1ª pessoa do singular em sua fala.
Para provocar uma reflexão, em O Guarani, de José de Alencar, o herói Peri,
quando lhe é dada voz, refere a si por seu nome. Embora o discurso permaneça em
3ª pessoa, ele se individualiza:
_ Assim, disse Álvaro sorrindo, tu só me amas porque pensas
em que Cecília me quer? Disse o moço.
_ Peri só ama o que a senhora ama porque só ama a senhora
neste mundo: porque ela deixou sua mãe, seus irmãos e a
terra onde nasceu.
_ Mas se Cecília não me quisesse como julgas?
_ Peri faria o mesmo que o dia e a noite: passaria sem te ver.
51
( ALENCAR,José. O Guarani.s/d. p.157 )
As formações discursivas obedecem ao mesmo padrão do uso culto da língua
tanto na fala de Peri quanto na de Álvaro, inclusive com o emprego impecável da
segunda pessoa do singular na interlocução das personagens.
3.1 Do popular ao culto. Ou vice-versa
Detendo-nos a partir de agora mais especificamente no romance
contemporâneo de ficção e dedicando especial atenção à obra do romancista João
Ubaldo Ribeiro, vemos ser possível responder a algumas indagações do início deste
capítulo.
Não só em relação ao índio e a seu modo de falar, sobre o qual fizemos
algumas considerações anteriormente, mas também em relação à participação negra
e branca na trama do romance, vai o escritor passando da variante mais popular,
permeada de marcas de oralidade, à mais rebuscada, culta, chegando muitas vezes à
erudição, ao sabor das suas (más ou boas) intenções discursivas, como confirma
Proença Filho
:
Senhor de um amplo e raro vocabulário, adquirido a partir de rica leitura que marca
sua formação, o escritor conhece, como poucos, o idioma de que nos valemos.
Navega com mão segura, nas águas de todos os registros: o formal, o ultraformal, o
informal e tira partido das variantes regionais e arranjos da língua. E funda sentido.
(2004, p.168)
Para que verifiquemos esse jogo de variações e intenções, faz-se necessário
selecionar alguns excertos do romance. O primeiro reproduz o diálogo entre as
personagens Capitão Cavalo, ou o “lendário capitão Baltazar Nuno Feitosa”
(FIP, p.16)
português, filho de pais muito ricos, conhecedor da filosofia natural do oriente,
benfeitor da ilha e Sansona, negra liberta que cuidava da casa de Capitão Cavalo , o
Sossego Manso:
A) “Capitão Cavalo[...] mandou chamar Sansona que,
apesar de já entrada em anos, parecia bem menos
52
velha do que era, cara lisa, peitarrama pesada mas
dura, a disposição de sempre[...].
_ Tou assim porque tava na casa de farinha[...]. mas
ioiô mandou dizer que tava com pressa e aí eu nem
lavei a mão.
_ Não tem importância, porque tu vais te sujar ainda
mais. Quero dar uma festa para toda a gente, festa
grande mesmo, três dias[...].
_ Nega nova, nhozinho? Ih...
_ Não é o que estás a pensar, eu devo um favor a ela,
um grandíssimo favor
.” (FIP, p.16)
No segundo fragmento, o ficcionista dá voz a D. Afonso Jorge II que, apesar
do nome pomposo europeu, é o mani banto, o chefe do quilombo existente na ilha.
Nesta passagem do romance, mani banto fala à negra Crescência:
B) _Não és cativa, és? - indagou finalmente
soltando a mão dela_ Não podes ser.
_ Nasci cativa na Casa dos Degraus, de Capitão
Cavalo, mas agora não tem mais cativos, pelo menos
como diz que tem em outras partes. Mas continuo da
casa.
[...]
_ Aqui neste reino há cativos, sempre haverá cativo.
Enquanto o mundo for mundo, haverá cativos, pois
sempre existirão os que nasceram para isso e os que
nasceram para mandar, esta é a voz verdadeira dos
grandes filósofos e voz verdadeira da vida. Mas dizer
que nasceste cativa quase se iguala a uma blasfêmia!
Não nasceste cativa, ninguém ignora que congolense
algum nasceu cativo.”
(FIP, p.126)
A jovem negra Crescência conversa, na Casa dos Degraus, com a velha
negra Clementina:
( C ) “_ Donde que se vai assim? Vai fazer compra no
olival, é?
_ Possa ser pra mecês, mas pra mim não tem nada
que me dê vontade naquele ladrão. Não senhora, eu
vou passear na vila.
_ Tu vai passear na vila nada, tu vai de novo na furna
da Degredada, tu não sabe no que tá se metendo,
esse saco, aí, é das mandingas dela, não é não?Eu
53
não quero nem saber de tuas feitiçarias, não vem nem
me contar.
_ E eu tou querendo contar nada? Ai, meu Deus,
xoí,xoí,xoí, que o tempo não espera por ninguém. Dai
licença, dai-me licença
.” (FIP, p.24)
Na representação discursiva da outra etnia importante na formação da
identidade brasileira, a negra, as falas de cada personagem trazem em sua
materialidade não só marcas lingüísticas especiais, mas também ideologias
manifestadas em cada discurso.
No plano formal da língua, as marcas de oralidade encontradas em (A) e
(C) são flagrantes nas vozes da negra Sansona, Crescência e Clementina, como se
enumeram a seguir:
uso de tava por estava, tou por estou, por está
as formas de tratamento afetivo de senhor; ioiô e nhozinho;
presença de frases nominais e na ordem direta;
interjeição Ih, seguida de reticências, indicando incompletude da fala;
presença dos advérbios dêiticos , aqui ;
a compactação da frase “deixa eu ir” na forma xoí;
ausência de concordância rigorosa ( verbo na 3ª pessoa e sujeito na
2ª pessoa)
dupla negativa em não é não?
No fragmento (B) destacamos a sutileza do escritor ao estabelecer o
distanciamento social das duas personagens, ambas de etnia negra congolense, pelo
emprego do verbo “ter” em lugar de”haver” na fala de Crescência, e do verbo “haver”
na fala do rei do quilombo. Este é um dos usos mais típicos do Modernismo Brasileiro.
Trata-se de um brasileirismo, empregado tanto na linguagem popular quanto na culta.
Apresentamos a seguir alguns traços do uso formal da língua no discurso de mani
banto:
54
ausência de marcas de oralidade;
seleção vocabular cuidada, uso de palavras ou expressões de
pouca freqüência no discurso informal ou coloquial
emprego da 2ª pessoa , estabelecendo o afastamento entre
o rei do quilombo e a interlocutora,
uso retórico das interrogações;
anteposição dos adjetivos aos substantivos;
emprego do verbo haver impessoal.
O hiperformalismo apresenta-se no memorial elaborado por Moniz Andrade, o
mestre-escola, pertencente à classe dominante da ilha:
Ai, América Portuguesa, sol do novo mundo, gema
celsa da Coroa, torrão de cabedal inexaurível, a que
ponto chegaste, nesta sesmaria deslembrada, em que
seus princípios e ordenação se envilecem, sua gente
se mesticiza e se deprava, sua autoridade não se
reconhece, seus camaristas e homens bons se
desprestigiam e seu elemento servil se há como Livre?
Ter-se-á ao menos lenitivo para tantas aflições, poder-
se-á ao menos esperar algum governo em tanto
desgoverno, algu’a mão segura a guiar os destinos da
Assinalada Vila de São João Esmoler do Mar do
Pavão?(
FIP, p.141)
Em texto altamente elaborado, o vocabulário de seleta erudição encorpa a
retórica do memorial. Ainda que mais pomposo que o discurso do rei do quilombo, fica
claro que será principalmente pela materialização de enunciados baseados em um
profundo saber lingüístico que o escritor buscará estabelecer as relações de poder
entre os habitantes da ilha. Explicitemos aqui mais alguns traços da variante culta
explorada por Ubaldo:
emprego da mesóclise: ter-se-á, poder-se-á
metáforas : sol do novo mundo, gema celsa da coroa, torrão de cabedal
inexaurível;
55
adjetivação abundante
jogo antitético a partir do emprego de prefixos como em governo /
desgoverno ou de termos com idéias em oposição servil / livre;
lenitivo / aflições.
Aqui lembraríamos que na fala do Capitão Cavalo (fragmento A), verifica-se o
emprego de uma construção típica do português lusitano quanto à perífrase verbal
auxiliar + preposição + infinitivo: estás a pensar.
Certamente, não foi apresentada aqui toda a pluralidade de usos ou modos
discursivos utilizadas por João Ubaldo Ribeiro neste romance, como por exemplo o
discurso religioso ou o discurso administrativo.
Explorar a língua portuguesa quer no plano do material lingüístico já de uso
comum, quer em sua virtualidade, mas sempre tendo a observação dos efeitos que
tais usos provocam na expressão por meio da palavra escrita, é a preocupação do
romancista. Registramos aqui a demonstração de que o uso literário da língua está
preso ao compromisso do escritor em conhecer profundamente a língua portuguesa,
seu instrumento de trabalho e, com versatilidade e talento, deixar gravado em sua
obra o respeito aos mais diversificados usos da língua do povo, incluindo-se aqui
também e principalmente o padrão culto da língua, sempre presente de maneira clara
no discurso do narrador ou de maneira sutil na fala popular pela qual se dá a
transgressão da variante culta, representando a fala brasileira na literatura. Um texto
literário de excelente qualidade: questão de peso e de medida.
Com um trecho narrativo lapidado pelo cinzel da poesia que nosso escritor tão
bem utiliza para criar seu texto quando assim se faz necessário, encerramos esse
capítulo no qual tratamos do discurso literário de João Ubaldo Ribeiro, transcrevendo
o início-fim do romance em análise:
“De noite, se os ventos invernais estão açulando as
ondas, as estrelas se extinguem, a lua deixa de existir
e o horizonte se encafua para sempre no ventre do
negrume, as escarpas da ilha do Pavão por vezes
assomam à proa das embarcações como uma
56
aparição formidável da qual não se conhece
navegante que não haja fugido, dela passando a
abrigar a mais acovardada das memórias. Logo que
deparadas essas falésias abrem redemoinhos por
seus entrefolhos a que nada é capaz de resistir. Mas,
antes, lá no alto, um pavão colossal acende a sua
cauda em cores indizíveis e acredita-se que é
imperioso sair dali enquanto ele chameja, porque
depois de ela se apagar e transformar-se num ponto
negro tão espesso que nem mesmo em torno se vê
coisa alguma, já não haverá como. Ninguém fala
nesse pavão ruante e, na verdade, não se fala na ilha
do Pavão. Jamais se escutou alguém dizer ter ouvido
falar na ilha do Pavão, muito menos dizer que a viu,
pois quem a viu não fala nela e quem ouve falar nela
não a menciona a ninguém. O forasteiro que perguntar
por ela receberá como resposta um sorriso e um
menear de cabeça reservado às perguntas
insensatas”.
(FIP, p. 323)
57
4. PARA TUDO HÁ UMA HISTÓRIA: A FORMAÇÃO DO LÉXICO
PORTUGUÊS
Muitos séculos foram necessários desde que os romanos se estabeleceram na
Península Ibérica para que o português fosse instituído como língua oficial do Condado
Portucalense, no século XII. Já nesse período a língua que se falava na região atendia
a diversas necessidades comunicativas da população, bem como apresentava fixação
pela modalidade escrita, com um sistema ortográfico organizado, na qual léxico e
sintaxe puderam enriquecer-se e estabilizar-se. Graças a esse conjunto de fatores,
pôde a língua portuguesa ser alçada à condição de língua nacional. Até alcançar esse
status, várias culturas marcaram seu acervo principalmente no estrato mais susceptível
a tal tipo de influência, o léxico, pois cada cultura, cada povo reflete nas palavras sua
maneira de enxergar o mundo.
Na convivência entre os povos dominados, habitantes da Lusitânia, e os
representantes da Roma dominadora, os falares locais misturam-se ao latim trazido
pelos soldados e funcionários da administração romana, tornando-se a base da língua
portuguesa. A longa permanência dos romanos na região, a adoção do latim como
língua oficial ensinada nas escolas, por exemplo, sustentam a romanização do
território. De toda essa interação, resultou um falar que se afastava tanto dos falares
locais quanto do próprio latim afetado pela distância de Roma e pela decadência do
Império Romano, embora a língua falada no território lusitano mantivesse traços e
marcas de ambos. Dessa mesclagem resultou mais tarde o romance lusitano falado na
região, que deu origem à língua portuguesa.
Outros atores fazem parte da história desta língua. Os bárbaros, do século V até
o século VII, ali estiveram, emprestando à língua muitos de seus elementos lexicais.
Cabe acrescentar que, apesar de a presença dos bárbaros na região ter durado alguns
séculos e ter contribuído para a derrocada de Roma como unidade política, isso não
58
determinou a extinção da influência latina na cultura dos povos europeus. Segundo
Bizzocchi,
As instituições políticas, os fundamentos jurídicos, os cânones literário e artístico da
Roma Antiga, bem como da língua latina, sobreviveram até a era moderna[...] Além de
representarem (o grego e o latim) as línguas clássicas, principalmente o latim, foram
durante muito tempo, consideradas as únicas línguas dignas da literatura, da poesia,
da ciência, da filosofia, da religião,etc.
(1997, p.14)
O usuário comum, hoje, certamente não tem noção de quanta história carrega
cada uma dessas unidades ao longo de todo esse tempo.
Também ali estiveram árabes com a pujança de seu desenvolvimento
econômico – indústria, comércio, agricultura --, artístico, cultural e também religioso,
do século VII até o século XIV, quando foram expulsos de Granada, deixando
definitivamente a Península Ibérica. Justifica-se dessa forma a presença de quase mil
termos de origem árabe no acervo lexical da língua portuguesa.
4.1 Novas terras, nova gente, novas palavras
Início do século XVI. Aporta na costa brasileira o conquistador português, que ali
encontra uma população nativa, falante de uma língua completamente estranha a ele.
Em Mattos e Silva lê-se:
O escrivão da frota de Cabral, na sua ´Carta`, não poderia supor o que depois se
cumpriu no correr do tempo. Explica Pero Vaz de Caminha ao rei por que ficaram em
terra dois degredados, além de dois grumetes que fugiram da frota que seguiria para as
Índias:
Mjlhor e mujto milhor enformaçom da terra deram dous homees destes degredados que
aaquy leixassem do que eles dariam seos leuassem por seer gente que njnguem
entende nem eles tam cedo aprenderiam a falar perao sabere tam bem dizer que mujto
mijlhor ho estoutros digam quando ca vossa alteza mandar.
(2004, p.14)
59
A comunicação entre o colonizador e a população ameríndia da nova terra era
fator importante para consolidar a dominação do povo autóctone. A necessidade fez
com que se desenvolvesse uma língua geral, o abanheém.
Para Francisco da Silveira Bueno (1983, p.11), o tupi gramaticalizado por José de
Anchieta na Arte de Gramática da língua mais falada na costa do Brasil (1556) serviu
para uniformizar o léxico racional dos vários dialetos falados pelas diferentes tribos que
habitavam o litoral brasileiro com a finalidade de facilitar a atuação missionária na
difusão da fé cristã. Depois de cerca de cem anos do descobrimento, não era mais o
tupi, ao sul, ou o tupinambá, ao norte, a língua veiculada por comerciantes e
funcionários da Coroa Portuguesa. A função de língua geral foi a resultante lingüística
do processo social de miscigenação que marcou o período de colonização da nova
terra. Em seus primórdios, ela foi praticada predominantemente por homens europeus
que para cá vinham desacompanhados de mulheres e que entravam, então, em
contacto com os indígenas significativamente mais numerosos e receptivos ao
estabelecimento de alianças matrimoniais com os que chegavam. Daí, a rápida
formação de populações mestiças nas quais os descendentes falavam a língua
praticada pelas mães – a língua tupi - e não a dos pais. São dois os fatores arrolados
como determinantes do enfraquecimento da cultura indígena nessas populações: a
escravização e o aumento significativo do povo mameluco. A língua dos nativos já não
servia mais, a essa altura, a uma sociedade indígena, mas a uma sociedade e a uma
cultura mameluca que se aproximava, agora, da influência portuguesa. Tais fatores
certamente provocaram modificações em vários aspectos da língua. Essa língua
generalizada que circulava na população da região de São Vicente e arredores entre a
segunda metade do século XVII e a metade inicial do século XVIII vai receber o nome
de língua geral ou abanheenga .
O mesmo processo lingüístico ocorre mais tardiamente na região da Amazônia,
praticamente nas mesmas condições em que ocorrera no sul, dando origem a outra
língua geral, o ie’engatu (nheengatu).
Destaque-se que o nheengatu, apesar das muitas transformações sofridas,
continua falado, especialmente na região da bacia do Rio Negro, como língua materna
60
da população cabocla, com o caráter de língua de comunicação entre índios e não-
índios ou entre índios de diferentes línguas.
Sintetizando, vê-se que a língua geral nos séculos XVII e XVIII, que teve sua
origem nas línguas indígenas faladas em S. Vicente (tupi) e na região da Amazônia
(tupinambá), era utilizada pelas comunidades mamelucas resultantes da miscigenação
entre mulheres indígenas e imigrantes europeus, e progressivamente “contaminada”
pelo convívio com as línguas africanas trazidas pelos escravos e outros povos
indígenas incorporados ao regime colonial na qualidade de escravos ou índios de
missões.
Gilberto Freyre (1987) chama a atenção para o fato de que a situação de
dependência do colonizador português em relação ao povo indígena na terra brasilis foi
tal que aquele se viu na contingência de adaptar-se à vida indígena e não só à língua.
A intensidade dos contatos, a vida social compartilhada,com índias servindo aos
portugueses e com eles constituindo as primeiras células da família brasileira como
mulheres parideiras de mestiços, e os índios acompanhando o colonizador em suas
investidas pelo sertão foram fatores que favoreceram um intenso processo de
transculturação no qual o colonizador incorpora traços culturais do colonizado e vice-
versa. Freyre afirma que muitos topônimos de origem indígena encontrados no sertão
brasileiro foram fruto de nomeação feita pelos próprios bandeirantes e entradistas, que
aproveitavam os nomes indígenas na tarefa de registrar os novos lugares, novos
acidentes geográficos que encontravam durante incursões interioranas em áreas não
habitadas pelos ameríndios. Sampaio apud Biderman
(2002, p.65)
13
lembra que as
bandeiras quase só falavam o tupi. E se por toda parte onde penetravam, estendiam os
domínios de Portugal, não lhe propagavam, todavia, a língua, a qual, só mais tarde se
introduziria com o progresso da administração, com o comércio e os melhoramentos.
As línguas indígenas legaram significativa herança lexical sob a forma de
topônimos, antropônimos, nomes de elementos da natureza - fauna e flora -, acidentes
geográficos, etc. Cerca de dez mil palavras já foram encontradas no léxico da língua
portuguesa em levantamentos feitos até 1983. Para Ismael de Lima Coutinho (1976,
13
SAMPAIO, T. O tupi na geografia nacional, 5. ed. Instituto Nacional do Livro. São Paulo: Editora
Nacional,,1987. p.71
61
p.324), a incorporação de muitos indigenismos à nossa língua foi tão perfeita que eles
se tornaram produtivos servindo para a formação de compostos e derivados [...].
Encontram-se também, embora mais raramente, sinais da influência tupi na nossa
fraseologia como em ‘estar na pindaíba’, ‘chorar pitanga’.
A não adaptação do indígena às tarefas do trabalho escravo na agricultura e à
falta de mão-de-obra que atendesse à demanda das atividades econômicas baseadas
na agricultura trazem para o território brasileiro o negro africano escravo e com ele sua
língua, sua cultura muito rica: dança, música, instrumentos, religião, alimentação,
indumentária etc. Mais uma vez a língua portuguesa será afetada pelas contribuições
que essa cultura lingüística lhe acrescenta.
Os negros escravizados tinham origens diferentes, pois eram capturados em
diversas regiões do continente africano como Sudão Ocidental e Guiné. Por isso, ao
chegarem às terras brasileiras foram forçados a “criar” ou adaptar-se a uma língua
comum que lhes facilitasse a comunicação com os próprios irmãos africanos
pertencentes a outras tribos e, por isso, usuários de línguas distintas e a aprender, pela
oralidade, a língua do colonizador, o português. Neste ponto faz-se o registro de que
muitos negros africanos já chegavam ao Brasil dominando um português deturpado,
fruto do contato mantido nas atividades comerciais entre África e Portugal. Eram
conhecidos como negros ladinos, modelo para outros negros, os boçais, que com eles
aprendiam esse arremedo de língua, falando-a mais deturpadamente ainda. Segundo
Emílio Bonvini e Margarida Petter apud Mattos e Silva
, (2004, p.96-97)
14
, estima-se entre
200 e 300 o número de línguas africanas que chegaram com o tráfico de escravos ao
Brasil e se repartiram em duas grandes áreas de proveniência: a área oeste-africana e
a área banto, sendo consensual entre os estudiosos o predomínio da língua deste
grupo por apresentar maior integração morfológica e estar presente em numerosos
campos lexicais.
Os escravos dividiram-se entre o trabalho no eito e as tarefas da casa-grande.
Coutinho
(1976, p.320) afirma que as mulheres, então, se revelaram excelentes auxiliares
nos serviços de casa, desempenhando com paciência e dedicação o papel de amas.
14
BONVINI,E e PETTER, M. Portugais du Brésil et langes africaines . In Langages (L´hiperlangue
brésilienne), 1998.p.68-9
62
Muitos filhos de escravos foram criados nas casas-grandes, junto com os filhos dos
senhores de engenho. Outros tantos eram filhos destes senhores com escravas
negras. Derivam do contato íntimo ou familiar entre a casa-grande e a senzala itens
lexicais carregados de afetividade como sinhô, sinhá, neném, babá, bambanho, etc.
Assim como a língua indígena, a herança lingüística africana está presente no léxico da
língua portuguesa na designação de elementos da culinária, dos nomes de
instrumentos musicais e dos orixás dos ritos religiosos, em peças de vestuário, nos
topônimos etc. Ainda deixaram uma pequena contribuição no campo da fraseologia,
como estar de calundu.
Como se vê, tanto a presença do negro quanto a do índio geraram uma situação
de bilingüismo em Pindorama. O aumento significativo da população mestiça em
relação ao colonizador português levava incômodo à Coroa, que se sentia ameaçada
pela possibilidade de a língua geral se tornar a continuadora do português europeu no
Brasil. E assim, na colônia, a língua portuguesa, pela força da metrópole, pelo prestígio
desta como representante de uma civilização mais adiantada que a dos índios e
negros, é elevada ao status de língua oficial do Brasil e a que seria ensinada nas
escolas.
O multilingüismo (de uma terra multicultural) que caracterizou o período entre o
século XVI e o século XVIII é abafado pelas leis pombalinas. De alguma forma busca-
se obliterar as vozes que durante dois séculos cumpriram a tarefa de amoldar a língua
portuguesa transplantada ao tom do vernáculo, sem o pulso institucional de escolas e
de leis em terras brasileiras, mesclando a língua culta com seus traços populares tão
característicos. Como diz Umberto Eco
(1986, p.377), há palavras que dão poder, outras
que deixam mais desamparados, e dessa espécie são as palavras vulgares dos
simples, a quem o senhor não concedeu o saber exprimir-se na língua universal da
sabedoria e do poder.
A exposição de alguns fatos relevantes que contam um pouco da história da
língua portuguesa falada no Brasil tem sua justificativa no fato de que o multilingüismo
que marcou o período basilar da formação do português do Brasil ainda hoje está
presente no léxico da língua não só nos dicionários, que cumprem sua função
63
memorialista, mas também no repertório do falante comum, ainda que este nem
sempre tenha a consciência disso.
A literatura por sua vez se incumbe de tirar a poeira de certos termos, trazendo-
os de volta para criar sua cena, marcar sua época, seu tempo e firmar, através de um
vocabulário seleto, o lugar de onde falam suas personagens, de onde vieram, a que
estrato social pertencem e qual a ideologia que permeia os discursos produzidos, uma
vez que é o discurso o lugar de confronto ideológico em que a significação das
palavras se apresenta em toda a sua complexidade.
4.2 Uma ancoragem mais antes da chegada ao porto: léxico à vista
Nomear seres e objetos que estão ao seu redor é a forma que o homem
encontra para registrar seu conhecimento do mundo, sua interação com ele, para
estruturá-lo a partir da percepção de diferenças e semelhanças presentes no mundo
real que o cerca, classificando-as, apropriando-se da realidade no momento mesmo em
que lhe atribui um representante sígnico que é a palavra.
Para Biderman (1998, p.11), léxico é o conjunto de palavras de uma língua gerado
por atos sucessivos de cognição da realidade e de categorização da experiência
cristalizada em signos lingüísticos: as palavras. Como patrimônio vocabular de uma
determinada língua natural, é o resultado da história dessa língua cujos elementos
herdados, assim como seus modelos categoriais possibilitam a geração de novas
unidades lexicais, novas palavras.
Ainda citando Biderman
(1998, p.13), a etapa mais primitiva do conhecimento da
realidade identifica-se com a organização do léxico básico de uma língua natural. Mas
a ampliação progressiva do conhecimento da realidade e a conseqüente apropriação
do mundo, como já foi dito, fez com que o homem desenvolvesse técnicas e
construísse o conhecimento científico. Justifica-se dessa forma a necessidade
constante de expansão do repertório lexical para cobrir e registrar o avanço científico e
técnico que se impôs às sociedades civilizadas, intensificada também pela velocidade
frenética das mudanças sociais, da comunicação, do contato com outras culturas e
64
pela influência inequívoca dos meios de comunicação de massa. A possibilidade de
enriquecimento constante confirma a idéia de léxico como um sistema aberto a novos
acréscimos, a outras adaptações, pois à medida que muda a realidade, surge a
necessidade de serem alteradas as representações que se fazem dela. Essas novas
representações fixam-se no nível lingüístico pelo léxico, que reflete e refrata o modo
como o grupo social vê e representa o mundo, servindo também, segundo Isquerdo
(2004, p.11), de mensageiro de valores pessoais e sociais que traduzem a visão de
mundo do homem enquanto ser social
15
. Essa idéia também está presente em Michel
Foucault (1999, p.222) em uma de suas reflexões sobre palavra, história natural e as
coisas:
De sorte que não teria sido possível falar, não teria havido lugar para o menor nome, se
no fundo das coisas, antes de toda representação, a natureza não tivesse sido
contínua. [...] As coisas e as palavras estão muito rigorosamente entrecruzadas: a
natureza só se dá através do crivo das denominações, ela que , sem tais nomes,
permaneceria muda e invisível, cintila ao longe por trás deles[...].
(1999, p.222)
Léxico, então, deve ser compreendido como a totalidade de palavras de uma
língua ou o saber interiorizado por parte dos falantes dessa língua. Estudá-lo é uma
forma de resgatar a cultura dos grupos sociais, traduzindo a maneira como as
sociedades percebem o mundo em que estão inseridas nas diferentes etapas de sua
história e de sua constituição.
A delimitação das noções de palavra como unidade constituinte do léxico
provoca entre lingüistas ampla discussão na tentativa de apresentar critérios e
estratégias eficientes.
Do ponto de vista da significação, Mattoso Câmara Jr. (1974, p.387-9) usa o termo
“palavra” para designar o vocábulo lexical, sendo este o que encerra um semantema,
em oposição ao vocábulo de significação apenas gramatical. Do ponto de vista formal
diz-nos o lingüista:
15
Este trecho inicia a apresentação do volume II da série de publicações sob o título As ciências do léxico:
lexicologia, lexicografia, terminologia, organizado por Aparecida Negri Isquerdo e Maria da Graça Kriger,
2004.p.11
65
Ao contrário do critério fonológico que rege a nossa escrita, procurando representar
aproximadamente os fonemas pelas letras e dividindo suas seqüências de acordo com
as sílabas, a apresentação do vocábulo na escrita se faz pelo critério formal. Deixa-se
entre eles, obrigatoriamente, um espaço em branco, porque mesmo quando sem pausa
entre si num único grupo de força cada um é considerado uma unidade mórfica de per
si .
(2000, p.69)
José Lemos Monteiro, em Morfologia portuguesa (2002, p.12), afirma que muito
comumente os termos vocábulo e palavra são usados indistintamente para designar
um conjunto ordenado de fonemas que expressam um significado, mas firma posição
com Mattoso Câmara quando considera palavra somente os vocábulos que remetem a
significados lexicais (os lexemas) e deixa o termo vocábulo para recobrir as outras
formas da língua que funcionam como “instrumentos gramaticais” (preposições e
conjunções, por exemplo) e cujos significados são de natureza gramatical e não lexical.
Herculano de Carvalho (1979, p.578-9), dentro de uma perspectiva morfológica,
distribui as palavras em duas classe básicas: a dos lexemas, na qual estarão presentes
os termos com significação objetiva e dos categoremas, cujos termos têm significação
gramatical. Carvalho define o léxico de uma língua como sendo a reunião das duas
grandes classes ou conjuntos de palavras: as palavras lexicais, como inventários
abertos e as palavras gramaticais como inventários fechados, deixando registrado que
as duas classes[...] coincidem, em traços largos, com respectivamente a dos lexemas e
categoremas.
Bernard Pottier (1978) acrescenta à discussão a noção de lexia e distingue os três
termos - lexia, vocábulo e palavra - a partir do plano do significado. As lexias resultam
da combinatória de dois signos mínimos: o signo lexical e o signo gramatical. As lexias
lexicais compreendem a classe das designações que Herculano de Carvalho explica
como “termos de significação objetiva”. Turazza
(2005, p.59-60) diz que esses termos são
responsáveis pela representação dos referentes antropo-sócio-culturais, geradores e
refletores da visão do mundo de um determinado grupo. Os vocábulos seriam as
inúmeras unidades lexicais de norma do discurso que condicionam a atualização das
lexias no comportamento lingüístico dos usuários, variável de indivíduo para indivíduo
No nível da fala, palavra corresponderia a cada atualização de uma lexia fixada pelo
uso, ou seja, devidamente lexicalizada. Para Pottier
(1978, p.268) lexia é a entidade
66
memorizada; o vocábulo é a lexia tal como esta se apresenta em dicionários; e a
palavra será, então, a lexia atualizada nos enunciados.
Genouvrier e Peytard ([s/d], p.279:280) distinguem léxico de vocabulário. Para eles,
o léxico é o conjunto de todas as palavras que num momento dado estão à disposição
do locutor; são as palavras que ele oportunamente emprega, compreende e que
constituem seu léxico individual. Vocabulário é o conjunto de palavras que efetivamente
são empregadas por um locutor num ato de fala determinado e corresponde à
atualização de uma certa quantidade de palavras pertencentes ao léxico individual do
locutor. O vocabulário é sempre parte do léxico individual que, por sua vez, também é
parte do léxico global, ponto extremo da cadeia, no qual se pode inventariar uma soma
considerável de palavras num período historicamente determinado ([s/d], 279-280)
Acatar a noção de vocabulário como conjunto de palavras que efetivamente são
empregadas pelo usuário num determinado ato de fala facilita entender que a seleção
deste ou daquele item lexical na construção de um enunciado pode ter a influência de
vários fatores diatópicos, diastráticos ou diafásicos (idade, sexo, raça, cultura,
profissão, posição social, comunidade em que vive etc) construindo a identidade desse
enunciador ou a preocupação do enunciador fazer-se entender, aproximar-se do
enunciatário.
Considerando uma mesma comunidade, é possível estabelecerem-se pelo
menos duas variedades de linguagem coexistentes, desempenhando cada uma delas
um papel específico: culta ou padrão e popular. Para a materialização enunciativa de
cada uma delas, percebe-se um tratamento vocabular diferenciado, como não poderia
deixar de ser. Numa atividade linguageira em que se faz necessário o uso culto, o
vocabulário empregado é mais variado, havendo um cuidado maior com a precisão dos
significados. A possibilidade de empregarem-se termos técnicos também está
presente. Quando a atividade enunciativa se presta a reproduzir o uso popular, o
vocabulário tende a menor variação, os termos empregados apresentam significados
menos precisos, sendo recorrentes as palavras omnibus como coisa, negócio ou uso
recorrente de gírias como troço, treco, bagulho, para nos mantermos no plano
semântico das palavras “que servem para tudo”. Em enunciados dessa natureza, o
palavrão, as palavras obscenas, as injúrias, os xingamentos terão trânsito mais livre.
67
É possível, no entanto, detectar elementos que se apresentam simultaneamente
no ato de fala culto e no ato de fala popular. Preti
(2003, p.31) faz referência à existência
de um dialeto social culto e de um dialeto social popular e propõe o estabelecimento de
um dialeto social comum em que estariam presentes todos os fatos lingüísticos que
ocorrem nos dois dialetos. Transpondo-se a idéia para o plano vocabular, vê-se que
esse dialeto comum apresentará unidades lexicais pertencentes às duas variedades de
uso da língua: a padrão e a popular.
O próprio falante percebe que há palavras que freqüentam os diferentes tipos de
enunciados e outras que só se materializam em condições discursivas especiais. As
mais presentes seriam entidades léxicas do vocabulário comum, usual, enquanto as
menos freqüentes se distribuiriam entre o uso padrão ou uso popular. Assim, o
vocabulário comum além de ser o conjunto interseção das palavras da língua, também
serve de parâmetro para distribuição dos termos em cultos e populares.
Genouvrier e Peytard procuram caracterizar esse vocabulário comum ou
“médio”, como o classificam, reproduzindo as idéias de Charles Bally e acrescentando
outras, citadas a seguir:
[...] o sentimento de freqüência maior ou menor no uso de determinadas palavras
reflete a existência de uma língua comum que reflete, num grupo lingüístico dado, as
formas constantes da vida humana e social; todas as formas de expressão utilizadas
para empregos mais limitados, ou próprios de grupos mais reduzidos ficam a ela
subordinados.
([s/d], p.286-7)
Destacam os lingüistas que essa língua comum que “tem horror ao preciosismo
da expressão”, tende a unificar os matizes sinonímicos e expressar cada coisa de uma
só maneira. As formas não sentidas como pertencentes ao vocabulário da língua social
ou dialeto social comum são consideradas por eles como desvios. O uso de certos
vocábulos mais raros, mais preciosos, que joga com matizes para construir efeitos de
sentidos especiais, por exemplo, ficaria no nível formal da língua padrão. Já o emprego
de um vocabulário familiar mais distenso, em que estão presentes bem ao extremo as
gírias, é viável, desde que não constituam obstáculos ou sofram interdição pelas
normas do grupo.
68
Num romance em que as personagens pertencem a estratos sociais
diferenciados, como é o caso da obra em estudo, detectam-se várias passagens que
servem de exemplo às três modalidades de seleção vocabular: a culta, a popular e a
comum. O escritor busca ou deixa-se apanhar pelas palavras que certamente estariam
“na boca” de pessoas do mundo real com o mesmo perfil social e psicológico das
personagens que desfilam diante do leitor durante a narrativa. Por exemplo: a
existência de personagens populares, de pouca ou nenhuma escolaridade, fruto de um
ambiente social menos favorável, cria a possibilidade de atos de fala desta natureza,
como se pode verificar na fala da negra velha Clementina, uma das moradoras da
Casa dos Degraus :
“_Se dessa vez não emprenhar, não emprenha mais
nunca _ disse Clementina _ desde ontem que eles
estão na safadagem. Se fosse Naná, já tava com pelo
menos dois no bucho, com tanta socação”.(
FIP, p.20)
_ Naná dá sorte. Tu veja como é as coisas. Naná
pelejou pra conseguir que ele quisesse ela, passou
mais de cinco mês se entupindo de banha de porco,
cabaú e farinha pra engordar e crescer a bunda , só
faltava esfregar o rabo nele toda vez que podia e da
primeira vez que ele pegou nela foi ela que puxou ele
no banho salgado, todo banho salgado ela metia a
mão por debaixo dele”.(
FIP, p.20)
Nesses excertos há um conjunto de elementos lexicais característicos do dialeto
social popular que apresentam correspondentes sinonímicos no dialeto social culto:
Dialeto social popular
/
vocabulário popular
Dialeto social culto
/
vocabulário culto
emprenhar engravidar
safadagem libertinagem, devassidão
bucho ventre
pelejou insistiu
69
se entupindo fartando-se
bunda nádegas
No Dicionário Houaiss, (versão eletrônica), o verbete “emprenhar” assim se
apresenta:
 verbo
transitivo direto, transitivo indireto e intransitivo
tornar(-se) prenhe (mulher ou fêmea); fazer conceber ou conceber; engravidar
Ex.: <emprenhou-a antes do casamento> <emprenhou de um desconhecido> <emprenhou
muito jovem> <custou muito a e.>
Semanticamente o verbo emprenhar equivale a engravidar. Observamos que
a datação do primeiro é do século XIII e o seu sinônimo apresenta o primeiro registro
em 1958, apenas, não havendo nenhum registro que determine o primeiro como termo
informal, como ocorre em vocábulos como safadagem, bucho, bunda, todos
dicionarizados. Algumas hipóteses podem ser apresentadas para o fato: i) o termo faz
parte do vocabulário comum; ii) a presença dos demais termos informais, que
chamaríamos de populares, acrescentariam esse traço discursivo - informal ou popular
- à palavra, deixando para o discurso social culto o emprego do termo engravidar; iii) o
texto narrativo apresenta elementos que o delimitam temporalmente como passado
num período que corresponderia a alguns séculos atrás. A personagem habita uma ilha
mais isolada que outras ilhas. A presença do colonizador é forte. Emprenhar, portanto,
pode ser um daqueles vocábulos, tal qual se argumenta quando se fala em dialeto
caipira, que se fixou no falar popular e ali se manteve, deslocado do vocabulário culto
para o vocabulário popular com emprego pejorativo: mulher que reproduz como as
fêmeas de animais. Além disso, o termo engravidar, segundo a datação apresentada
tem vida muito mais recente que emprenhar e não faria parte historicamente de
nenhum dos dialetos em questão àquela época e, por isso, não teria razão de ser a sua
presença no enunciado. Mais próximo daquela forma estaria o verbo gravidar, cuja
70
datação em DH registra século XVII (1624-1694). No Novo Dicionário, de Cândido de
Figueiredo (
6ª edição, [s/d]), encontramos engravidecer, remetendo ao verbo emprenhar
Com relação ao termo safadagem, embora se possa imaginar que esta palavra
seja um neologismo criado pelo escritor, resultante do cruzamento das formas
safadeza (dicionarizada sem a rubrica “informal”) + sacanagem (com a rubrica
“informal ou tabuísmo”) o que de fato ocorre é que o termo está registrado em DH com
a rubrica “uso informal” e apresenta etimologia safado+agem, num processo regular e
freqüente de formação de palavras como ocorre com libertino (adj.)+agem
libertinagem .
Quanto ao verbo entupir-se, registram-se expressões sinônimas, inclusive a que
oferecemos, como pertencente ao vocabulário culto, ambas sem qualquer rubrica. Não
se pode negar, porém, que o contexto em que foi empregado “entupir-se de banha de
porco” atribui-lhe um traço pejorativo, hiperbólico, caracteristicamente popular.
Ainda no Novo dicionário da língua portuguesa, de Cândido de Figueiredo,
(s/d),
encontramos o vocábulo pelejar concorrendo com pelear, de etimologia espanhola,
ambos abarcando o significado “lutar; combater; batalhar; insistir muito”
No entanto, assim como em DH, apenas nas formas pelear e seus derivados
está presente a rubrica regionalismo: Santa Catarina, Rio Grande do Sul. Desta forma,
“pelejar” pertenceria ao paradigma dos vocábulos comuns, uma vez que no contexto
em que aparece não seria pertinente classificá-lo como culto.
Registram-se no discurso duas expressões cristalizadas que também têm seu
correspondente culto: esfregar o rabo (encostar-se) e meter a mão por baixo
(tocar, acariciar).
A palavra socação, empregada para nomear metaforicamente os movimentos
do ato sexual praticado por Naná e Iô Pepeu, seria um neologismo formal se
considerássemos que a palavra não se encontra nos dicionários que nos servem de
corpora de exclusão. No entanto, está registrada no VOLP
(2004, p.728). A matriz
morfológica que sustenta a formação é uma das mais produtivas na língua: base
verbal +-ção (sufixo nominal de ação).
Pelos exemplos apresentados, vê-se a complexidade de se afirmar que uma
palavra pertence exclusivamente a um tipo de vocabulário. De fato, há um conjunto
71
delas que se separa naturalmente. Mas há outros, limítrofes, que deixam o pesquisador
de sobreaviso e dele exigem cuidado no sentido de não se precipitar em fechar
conclusões.
Ao contra-argumentar com Clementina, que afirmava não saber Fenício das
traições de Naná com Iô Pepeu, Crescência diz “ toda a gente sabe, Morotó sabe,
Roque sabe, Lazinho sabe, Deus e o mundo sabe, só Fenício é que não vai saber?”
(FIP, p. 21).
Clementina a repreende:
“_ Que é isso menina, ter Deus dessa conversa, já viu
falar em Deus no meio de uma porção de corno?
_ Porção de corno, não, corno não é eles, eles tão é
no proveito e ainda papando as mulheres. Corno é Iô
Pepeu, que pensa que as mulheres é só dele e inda dá
sustento a elas. Casa de chão de lajota e telhado
amouriscado não é todo mundo que tem, não. Papa
fina, sabão nem de sebo nem de peixe, de sabão de
coco fino, água de cheiro, bugiaria do pé à cabeça,
muito respeito e compra na conta... aquela que bem dá
o seu bem-bom, bem da boa ficará!”
(FIP, p.21)
Em DH, o vocábulo corno em primeira acepção é termo pertencente a uma
língua de especialidade, a zoologia.
CORNO
 substantivo masculino
1 Rubrica: anatomia zoológica.
cada um dos dois apêndices ósseos presentes na parte superior
da cabeça de muitos ungulados; nos bois, cabras e antílopes é
permanente, não ramificado e revestido por uma bainha rígida de
ceratina; nos veados é ramificado, trocado anualmente e
revestido por pele [sin.: aspa, binga, chavelho, chifre, galho,
guampa, guampo, haste]
[...]
adjetivo e substantivo masculino
Uso: informal ou tabuísmo.
16 que ou aquele que é traído pela mulher (diz-se esp. de marido,
companheiro ou namorado); cornaça, cornudo, guampudo
Na acepção 16, nota-se alteração de sentido em função do uso que se faz da
palavra. Melhor dizendo, há lugar para o emprego de cada uma delas, mas no
72
enunciado, apenas uma se atualiza. Neste caso, no entanto, o escritor transgride e
rejeita as 16 acepções dicionarizadas e propõe um novo sentido para a palavra: “corno
é quem se deixa explorar por aquele que pensa estar explorando”. Desloca-se do eixo
semântico da palavra a idéia de traição pela mulher em relação ao marido,
companheiro ou namorado, como cita o verbete, para que ele seja marcado pelo traço
“homem que é explorado pecuniariamente pelos companheiros das amantes, porque
“eles (os companheiros) estão no proveito”. Estar no proveito em lugar de
aproveitam, ou aproveitam-se também assinala a existência dos dois vocabulários: o
informal, no primeiro caso e o culto, no segundo.
Tarefa mais complexa é procurar correspondência no vocabulário popular para
certos itens lexicais que pertencem ao vocabulário culto. Talvez o peso da tradição e o
arranjo mais complexo dos enunciados de certa forma dificultem o trabalho de
substituição pelo falante, mas não o do escritor, que os emprega com maestria como
traço construtor de suas personagens.
“Sim, a peleja já se antevia na palidez das feições, na
gravidade dos semblantes e na aparência pejada exibida
por tudo o que se olhava ou tocava. Convocado pelo
intendente Felipe Mendes Furtado, o mestre-de-campo
Borges Lustosa, no salão nobre da Câmara, debruçado
sobre cartas e plantas, em fardamento de gala vastamente
amealhado e um chanfalho descomunal à cinta, no qual ele,
por ser pouco mais alto que um pé de bredo, volta e meia
dava uma topada, procedia o exame das estratégias e
urdiduras a serem empregadas na manhã seguinte,
vencidos os três dias de prazo para que os índios voltassem
para os matos. Com a milícia e a guarda arregimentadas e
acantonadas no campo da Fortaleza, dispunha o mestre-de-
campo de bem uns trezentos homens em armas, se bem
que a mor parte deles não portassem armas, além de
facões, espadas cegas e alabardas do tempo de Dom
Corno. Mas contava-se com dois falconetes já guarnecendo
o portal da Câmara, apropriadamente embuchados e em
plena condição de fogo, conquanto a pólvora do paiol da
guarda estivesse ensolvada. Mas os milicianos Domitilo e
Cosme, artilheiros recém-nomeados, orgulhosos de sua
posição e ansiando ver o que aconteceria ao darem um tiro
de canhão nos índios, aproveitaram a pólvora dos foguetes
de festa da paróquia, reforçando muito a carga, porque a
pólvora de foguetes de festa é certamente bem mais fraca
do que pólvora de tiro
.”(FIP, p.60-1)
73
Neste parágrafo, encontramos o narrador envolvido na tarefa de descrever
detalhadamente a cena na qual estão envolvidos o mestre-de-campo e o intendente da
ilha a fim de planejarem as estratégias de expulsão dos índios “para os matos”.
Diferentemente do que se observou na análise do vocabulário empregado nos
discursos de Crescência e Clementina, o grau de formalidade da situação exigirá uma
outra seleção vocabular. Os adjetivos pejadas (carregadas), ensolvadas (umedecidas)
são exemplo de um vocabulário culto, assim como substantivos urdidura (trama),
gravidade (seriedade). Mestre-de-campo, termo empregado para designar, no
período colonial, o posto militar correspondente a coronel, alabardas, chanfalho são
termos com baixa freqüência de uso, mas junto a facões, espadas, pólvora, paiol,
canhão, tiro, fardamento, milicianos, guarda, milícia, estratégias, plantas, cartas,
remetem ao campo léxico-semântico da atividade militar, assim como os adjetivos
arregimentados e acantonados, sendo que, somente o segundo recebe em DH a
rubrica de “termo militar”.
Retomando a palavra peleja (substantivo), observa-se que ela está presente
tanto no dialeto social popular de Clementina, como verbo pelejar, quanto no dialeto
social culto do mestre-de-campo, mas a situação de uso e o contexto em que aparece
determinam seu sentido, assim como o maior ou menor nível de formalidade a ela
atribuído. Pensamos que o fato de ela estar presente nos dois enunciados não a inclui
no vocabulário que Dino Preti e Genouvrier e Peytard chamam de “comum” ou “médio”.
Em cada ocorrência, a restrição de sentido imposta pelas condições do discurso inibe
tal inclusão. O leitor certamente perceberá no emprego popular a extensão de sentido
“insistir demasiadamente para alcançar um objetivo”, na fala de Clementina, e o
emprego culto no discurso do narrador, “luta, batalha”.
O que podemos concluir desse levantamento é que não existe um vocabulário
apenas que englobe todas as palavras indistintamente. Isto é da competência do léxico
geral. Há, de fato, alguns termos que estariam melhor reunidos sob a etiqueta de
vocabulário popular e outros que constituiriam um vocabulário culto. Não se questiona
a existência de um vocabulário comum que se fixa como referência para o
estabelecimento dos outros dois. Fica evidenciado também que a pertinência a um dos
74
tipos não exclui a possibilidade da presença de palavras em discursos de outra
natureza, pertencentes a outros dialetos sociais. Cabe ao talento, à perspicácia e à
competência vocabular do escritor explorar os três conjuntos e deles aproveitar a
melhor maneira de construir um texto literário de qualidade que dê prazer a seu leitor.
Neste caso se inclui João Ubaldo Ribeiro.
5. A TRADIÇÃO VOCABULAR E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
Os dicionários gerais apresentam-nos algumas acepções para a palavra
“tradição”. Dentre elas, convêm ao contexto desta pesquisa aquelas que remetem ao
conceito de herança cultural legada às gerações, transmitida de geração a geração,
ouu ainda, a que abrange ao espírito como resultado de experiências já vividas,
recordações, memória. Isto porque o processo de aprendizagem, as formas de
conservação, transformação e transmissão da cultura de um povo, de uma
comunidade, de um pequeno grupo realizam-se por meio de uma grande variedade de
práticas sociais organizadas em sistemas para fixar uma cultura não só de um
indivíduo para outro, mas também de uma geração para outra que a sucede. E nesse
conjunto insere-se o léxico de uma língua dada.
O fascínio da linguagem sobre o homem vem exatamente do poder da palavra
que permite nomear, transformar o universo real, além de tornar possível trocar
experiências, falar sobre o que já existiu ou poderá vir a existir e até mesmo sobre o
que não precisa nem existir para ser objeto da linguagem.
Em meio a tantos sistemas de transmissão, inclui-se, ou destaca-se, o papel
social da linguagem, de todas as linguagens que cercam o homem no seu dia-a-dia, na
sua relação com a realidade mediada pelos signos. Muitas dessas unidades servem
para configurar as relações homem-mundo num determinado tempo-espaço. Gravadas
pelo processo da escrita, as unidades sígnicas se fixam e podem ser estudadas
sincrônica ou diacronicamente.
Uma infinidade de palavras que um dia fizeram parte do vocabulário ativo de
uma comunidade desaparaceram porque outras surgiram para substituí-las ou porque
75
seus referentes deixaram de existir. Diversos vocábulos viram seus significados serem
alterados a ponto de se perderem os sentidos originais, mas muitos outros resistiram a
todas essas forças e permanecem na memória da língua e do usuário e circulam nos
textos, seja como elemento do vocabulário comum, popular ou culto.
Na organização sincrônica do discurso literário, há uma força inovadora ao lado
de outra, conservadora, um certo purismo que funciona como recurso preservador da
norma. O léxico se manifesta como força conservadora na organização desse gênero
discursivo quando são empregados intencionalmente termos não desgastados pela
linguagem comum.
Levemos em conta também a questão dos gêneros textuais. É fato que, como
ser social, o indivíduo desempenha em suas atividades interacionais diferentes papéis
que exigem dele empenho para adequar-se às variadas situações sociocomunicativas.
Sem muita dificuldade, notam-se tratamentos diferenciados, por exemplo, quanto ao
léxico, à fraseologia, aos fatos gramaticais, às propriedades funcionais, ao estilo e à
composição, dependendo do gênero de texto que seja necessário formular. Citamos
Azeredo:
Ao assumir a palavra para tomar parte em um evento comunicativo qualquer, também
assumimos papéis sociais. São eles que tornam legítimos os conteúdos e as formas de
nossas mensagens. Como a linguagem é uma criação social, suas formas existem
antes de mais nada para que os cidadãos desempenhem, por meio dela, aqueles
papéis, utilizando formas e meios de expressão e comunicação mais ou menos
prontos: os gêneros textuais.
[...]
Gêneros textuais são, portanto, as formas relativamente estáveis pelas quais a
comunicação verbal se materializa nos diferentes contextos sociocomunicativos.
(2007, p. 109)
Assim, o produtor de uma obra literária procura atender à expectativa de seu
possível leitor, que é a de estar diante de um texto “bem escrito”, produto do nível
cultural elevado do artista. Uma relação direta com a linguagem padrão, com um ideal
lingüístico consagrado pela própria comunidade, então, se estabelece.
Pelo seu caráter durativo ou extensivo no tempo, a escrita garante a
manutenção histórica. Abordando a questão da língua literária, Sonia Salomão (
1993,
p.87)
diz que a modalidade escrita é o campo de fixação da palavra culta. No discurso
76
literário, as possibilidades significativas e comunicativas não atuam como na língua
média, pois a língua literária é um sistema conotativo de acumulação diacrônica, o que
quer dizer que o vocábulo não só é conotado em si, mas possui um algo mais
semântico, um excesso de significância em si proveniente dos contextos artísticos
precedentes em que atuou.
Observa também a pesquisadora (1993, p.87) que se pode imaginar a atividade
lingüística do escritor como um jogo entre a própria linguagem individual, ou idioleto, a
língua e a língua literária, absorvida pelo contexto da época ou pelas leituras dos textos
do passado. Essa última consideração nos liga ao que já foi dito anteriormente com
relação à vasta e rica e experiência leitora do escritor em estudo, desde a infância.
Dedicamo-nos a procurar no romance de João Ubaldo Ribeiro unidades lexicais
que mostram resistência ao tempo, cuja presença no texto ajuda a evocar o perfil
sociocultural de algumas personagens pela linguagem que usam. A seleção vocabular,
de certa forma, consolida as condições socioculturais, as situações de fala, os
comportamentos e estados emocionais do narrador e das personagens dentro do
universo enfeitiçado da ilha pelo grau de competência lingüística e comunicativa que
demonstram, uma vez que esse grau tende a estar condicionado aos fatores
socioculturais dos usuários. Diz Urbano:
[...]um falante de nível sociocultural elevado presume-se tenha um correspondente grau
de competência lingüística, teoricamente identificado com a capacidade de uso da
língua padrão ou culta. Inversamente, um falante sem escolaridade e sem condições
socioculturais gerais favoráveis possuirá uma competência lingüística restrita a um
dialeto popular ou mesmo vulgar.
(2000 p.174)
O domínio de certo conjunto de unidades de um tipo de vocabulário permite
ao indivíduo falar, ouvir, ter senso crítico diante do que está sendo dito e ouvido. Isso é,
grosso modo, o que se reconhece como parte da competência lingüística desse falante,
a qual se deixa evidenciar pelo desempenho que a concretiza efetivamente nos atos de
fala. Segundo Urbano (2000, p.174) o desempenho não só está condicionado ao grau de
competência lingüística, mas também à situação concreta de comunicação. Em face de
uma situação concreta de uso, um falante de alto grau de competência lingüística pode
77
optar por um desempenho lingüístico, diz Urbano (2000, p.174), aparentemente
desajustado com a respectiva competência lingüística.
A respeito da dificuldade de se restringir a palavra a um determinado uso,
afirma Leite:
[...]não há possibilidade de se estabelecer uma linha demarcatória entre os dialetos
culto e popular, já que as pessoas, ao desempenharem seus papéis sociais, transitam
por diferentes comunidades lingüísticas, levando e trazendo usos próprios dos seus
grupos, que, naturalmente, terminam comuns a muitas comunidades.
(1999, p.90)
Incluir uma palavra no paradigma de termos cultos ou de termos populares é
ignorar os matizes semânticos que podem ser manipulados pela vontade do artista da
palavra, que transforma termos como um diminutivo ou um aumentativo em unidades
sígnicas transbordantes de afetividade, que assumem sentidos opostos em situações
enunciativas especiais. Em outras circunstâncias, a palavra “séria”, “formal”, “culta”
empregada num enunciado que destoa da sua tradição de uso pode construir sentidos
opostos, como ocorre quando se está diante de um texto irônico ou de humor.
Pela dificuldade de restringir a palavra a uma única circunstância de uso,
optamos por considerar como itens lexicais pertencentes à tradição da língua aqueles
presentes nos atos de fala das personagens sobre as quais o narrador apresenta
informações extralingüísticas que nos levam à presunção de um domínio da língua
próprio de um grupo sociocultural elevado. Pelo suposto nível de escolarização que
tenham, pelos papéis sociais que desempenhem na narrativa, encontramos uma série
de palavras de baixa freqüência nos textos orais ou escritos nos dias de hoje. Levamos
em conta também o discurso do narrador em terceira pessoa que deixa fluir o repertório
memorizado pelo autor, o seu tesouro vocabular, a sua competência culta, durante
suas intervenções na narração.
Decerto falamos com a vivência de um leitor médio, que tem contato freqüente
com a leitura e sinaliza a necessidade de consultar dicionários pela curiosidade
despertada pela palavra quanto a seu sentido, pelo exotismo do termo ou ainda pela
pouca ou nenhuma familiaridade com ele, embora na maioria das vezes o sentido
possa ser determinado pelas relações contextuais.
78
Não desconhecemos o risco de fazer uma proposta desse porte, uma vez que
controlar a circulação de um item lexical numa comunidade aproximada de
183.000.000 de habitantes, considerando apenas o território brasileiro, é trabalhar com
uma grande base de incerteza. Mesmo assim, pretendemos reunir algumas palavras
que, com alguma convicção, podemos considerar como termos cultos, mais adequados
a esse registro, retomando o critério de formas menos desgastadas pela linguagem.
Neste capítulo também nos interessaram os termos eruditos por preservarem até
hoje as marcas originais da tradição grega e latina na formação do nosso léxico.
5.1 Entre trevas abissais e caribdes antropófagas: as palavras eruditas
Buscamos no dicionário o significado da palavra “erudito”. Consultando DH,
encontramos :
erudito
adjetivo e substantivo masculino
que ou o que tem ou revela erudição
Ex.: <professor e.> <romance e.> <um e. não levantaria essa questão>
O verbete nos obriga a buscar as acepções de “erudição”:
erudição
substantivo feminino
1 instrução, conhecimento ou cultura variada, adquiridos esp. por meio da leitura
2 qualidade de erudito
O Dicionário Latino-Português, de Francisco Torrinha (1942). dá como
acepções para o verbo ērudĭō,īvī ( e+ rudis) instruir, ensinar, educar, adestrar,
aperfeiçoar. Para eruditus, a, um, ensinado,sábio, hábil, versado.
Somos instigados a verificar a etimologia de “erudito” a partir da base
presente na forma verbal ērudĭō(e+ rudis) e verificamos que significa, entre outras
acepções, grosseiro, tosco; rude, não polido, inculto. A essa base une-se o prefixo e-,
79
movimento de dentro para fora: donde podemos concluir que erudito é quem sai do
estado de ignorância, de não polidez ou deixa de ser inculto pelo ensinamento, pela
instrução.Ou ainda aquele que leva o ensino, a instrução a outros, tirando-os do
estado de ignorância.
Francisco Borba (2004, p.519) dá como significados para “erudito” aquele que
possui ou revela erudição; ilustrado; culto. Numa segunda acepção, propõe ser
erudito o que é clássico em oposição ao que é popular. Para “erudição”, dá como
significado grande conhecimento, instrução; qualidade do que é erudito.
Diante do que encontramos nos dicionários, pensamos uma definição para
palavra erudita: termo usado pelos eruditos, aqueles que ensinam, educam, instruem;
próprio daqueles que dominam o conhecimento técnico, científico, filosófico, literário
etc.
A idéia do que é erudito está vinculada ao grau de instrução do indivíduo, ao
seu nível de conhecimentos e saberes adquiridos pelo contato com a leitura, o que
nos aproxima da norma dominada pelo falante culto. Não há, no entanto, referência
especial à presença do elemento clássico grego ou latino na formação de uma
palavra que se tenha como um termo erudito em nosso vocabulário, como
encontramos em gramáticas ou livros didáticos de língua portuguesa. A palavra
“erudito”, herdada do latim, apresenta sentido menos transparente quando
transplantada para a linguagem técnica das gramáticas, por exemplo. Os compêndios
gramaticais, ao fazerem referência a palavras dessa natureza sob o ângulo
etimológico, trazem um pouco mais de luz ao assunto.
Cunha e Cintra (
2001, p.108), ao tratarem de composição, abrem um subtópico
para os compostos eruditos, afirmando que a nomenclatura científica, técnica e
literária é fundamentalmente constituída de palavras formadas pelo modelo de
composição greco-latina, que consistia em associar dois termos, o primeiro dos quais
servia de determinante do segundo, colocando em destaque muito mais o modelo
sintagmático de relação das bases que suas origens. Logo a seguir, apresentam os
radicais latinos e gregos que participam da formação, novamente destacando a
posição que ocupam no composto.
80
Bechara (1999, p.372) comenta a presença de um grande número de radicais
gregos encontrados no vocabulário português, muitos deles chegados pelo latim.
Mais adiante retoma o assunto falando em criações com elementos eruditos, donde
se infere que termo erudito é aquele constituído de elementos que apresentam bases
gregas e latinas.
Mattoso Câmara Jr. (1974, p.163) avança um pouco mais quando diz que termos
eruditos são vocábulos de proveniência latina introduzidos tardiamente na língua
portuguesa por via erudita, pontuando que essa introdução se deu pelos meios
sociais que sabiam latim. O lingüista apresenta dois critérios para justificar sua
afirmação: a) foram tirados do latim clássico; b) não apresentam mudanças fonéticas
em confronto com a forma originária. Câmara Jr. (1974:346) admite a existência de
palavras semi-eruditas, também introduzidas pelas classes cultas, mas que sofreram
alterações fonéticas outras que não as sistemáticas e fundamentais que constituem o
conjunto das leis fonéticas do romanço lusitânico e do protoportuguês.
Encontramos no texto de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, A formação da
língua portuguesa
16
, uma reflexão sobre a existência de termos eruditos no
português. Citamos:
Sabemos igualmente que, em épocas diversas, letrados nacionais, eruditos
humanistas, homens de ciência e poetas cultos, cientes das origens da língua
portuguesa – ou pelo menos das suas feições latinas, a enriqueceram e
enobreceram com numerosíssimos vocábulos latinos e greco-latinos, tirados
diretamente, sem alteração maior, dos autores clássicos ou do dicionário latino.
[...]
Palavras literárias, cultas, eruditas são apenas (grifo nosso) as que foram tiradas
diretamente de autores clássicos ou do dicionário latino, muitas vezes com acepção
imaterial, e que, apesar da sua construção complicada, não sofreram as alterações a
que estavam sujeitas, se entrassem cedo na boca do vulgo. Elas são muitas.
(1946, p.20-2)
Novamente o nível elevado de conhecimento dos usuários e o acesso que
tinham à leitura dos clássicos se tornam critérios para o emprego e fixação de termos
de origem grega e latina como palavras literárias, cultas, eruditas.
A questão da imaterialidade do significado desse grupo de palavras é
abordada por Stephen Ullmann
(1964, p.200-240). Tratando de palavras opacas e
16
VASCONCELOS, C M. Lições de filologia portuguesa.Lisboa, 1946, p20-2).O texto está reproduzido em
CARDOSO, Wilton e CUNHA Celso,. Estilística e gramática histórica. Português através de textos .Rio
de Janeiro:Tempo Brasileiro,1978.p.146-148.
81
transparentes, o semanticista lembra que na sua evolução, muitas palavras latinas
foram alteradas foneticamente, o que acarretou a perda da transparência vocabular
pelo apagamento dos elos etimológicos. Ressalta que os termos latinos e gregos
introduzidos no francês e no inglês são sentidos como palavras “ásperas”
precisamente porque não são motivadas, não têm raízes na língua e lhes faltam
“esses fios invisíveis” que ligam as palavras na mente humana. Bechara (1999, p.373)
também chama a atenção para esse fato, quando aborda os casos de esquecimento
etimológico em que o sentimento moderno não dá conta do significado de elemento
constitutivo da palavra, dizendo, por exemplo “ortografia” correta (ortos correta),
caligrafia bonita ( calos belo)
No primeiro capítulo de Les mots savant, Pierre Guiraud
(1978, p.14) afirma que
a Igreja, com seu latim eclesiástico é a mais antiga e mais importante intermediária
entre a língua comum e o latim, pela necessidade de transmitir mais diretamente aos
fiéis a palavra divina. Nesse domínio aparecem as primeiras palavras eruditas. Elas
estão presentes também nas obras literárias, basicamente na tradução de textos
clássicos latinos. Guiraud dá ênfase à idéia de que a escrita é o espaço de fixação
dos termos eruditos e os mais antigos provêm da Vulgata e dos escritores
eclesiásticos. Outras fontes são as obras científicas, cuja terminologia foi e ainda é
calcada em modelos gregos ou latinos, ainda que essas formações eruditas sejam
consideradas “menos nobres”. Ponderando que as palavras eruditas perdem um
pouco da motivação na relação significado / significante por sua tendência ao
abstrato, tornando-se opacas, lembra que o idioma vulgar é mais orientado para o
concreto e o sensível, por isso, mais transparente.
Trazemos à discussão, as idéias de Aldo Bizzocchi sobre termos eruditos,
semi-eruditos e vulgares. Em Léxico e ideologia na Europa Ocidental (1997)
posiciona o grego e o latim como pólos da tensão na qual se baseiam todos os
processos lexicogênicos das línguas da Europa Ocidental. Assim como Ullmann e
Bechara, Bizzocchi confirma que dificilmente os empréstimos alogenéticos terão o
mesmo significado que apresentavam na língua de origem, pois o contexto
sociocultural é outro, retomando a idéia de perda de motivação ou transparência de
sentido, com a conseqüente opacificação das palavras. Segundo o lexicólogo, a
82
palavra erudita emprestada ao grego ou ao latim penetrou nas línguas românicas por
meio da escrita. Afirma Bizzocchi
:
Tais empréstimos possuem sempre caráter erudito, e por isso entram nessa língua
por via escrita e não oral; em segundo lugar, devemos lembrar que o próprio
conhecimento que se tem das línguas clássicas se baseia em textos escritos nessas
línguas, não sabendo qual era a exata pronúncia das palavras gregas ou latinas.
(1997, p.61)
Ainda seguindo as idéias de Bizzocchi (1997, p.69), a influência das línguas
clássicas, em especial do grego e do latim (medieval e eclesiástico), é muito forte
principalmente na norma padrão, nos universos de discurso filosófico, científico,
jurídico, literário etc, permanecendo até hoje como fonte de elementos léxicos
(radicais, afixos e sufixos) onde se abastecem os discursos cultos das línguas
européias modernas. Em função dessas informações, propõe a tripartição do
vocabulário: i) vocábulos eruditos; ii) vocábulos semi-eruditos; iii) vocábulos vulgares.
Caracteriza as palavras eruditas como sendo as que resultam de empréstimos
tomados ao latim e ao grego ou da combinação sintagmática de elementos greco-
latinos. Semi-eruditos são os vocábulos que apresentam formação híbrida, produto da
combinação sintagmática de elementos eruditos e vulgares. Já os vocábulos
vulgares, correspondem basicamente aos termos vernáculos, seus compostos e
derivados, lembrando que serão semi-eruditos aqueles que, embora constituídos de
elementos vulgares, são calcados em vocábulos greco-latinos, isto é, são verdadeiras
“traduções” desses vocábulos.
Do ponto de vista lexicogênico, o pesquisador redistribui os três grupos
vocabulares em apenas dois: os grecolatinismos, que são vocábulos dos quais a
totalidade dos morfemas salvo as desinências, é greco-latina sem nenhum
metamorfismo
17
, e os vulgarismos, vocábulos em que pelo menos um dos morfemas
constituintes, à exceção das desinências, é vernáculo ou metamorfomizado.
17
Segundo Bizzocchi, (1997, p.61) metamorfismo é a mutação fonético-fonológica, resultante esta quer da
evolução histórica natural da língua, quer da alteração intencional do significante do vocábulo, quando de sua
introdução na língua, por analogia às palavras vernáculas da mesma.
83
Preocupa-se em esclarecer, no entanto, que em seu estudo tais classificações
dizem respeito exclusivamente ao aspecto formal, lexicogênico, dos vocábulos e não
ao seu aspecto pragmático. Logo não importa para o estudo se um termo erudito
aparece, por exemplo, no discurso banal; ou inversamente um termo vulgar aparece
num discurso formal ou num tecnoleto transformando-se em termo técnico. Para ele
os termos “culto” e “popular” servem para indicar os universos discursivos
preferenciais, mas não exclusivo, de uma palavra. Conclui o lexicólogo:
Assim, serão ditos cultos aqueles vocábulos pertencentes a normas especializadas,
como por exemplo, a norma técnico-científica, jurídica, religiosa, etc, qualquer que
seja seu estatuto lexicogênico (erudito, semi-erudito, vulgar), ao passo que serão
ditos populares aqueles vocábulos pertencentes ao discurso banal, qualquer que
seja seu estatuto lexicogênico.
(1997, p.71)
Se levamos em conta que a língua portuguesa tem como origem o latim, fica
difícil distinguir pela simples presença de um étimo latino a distinção entre o que seja
uma palavra culta, comum ou popular. Não se pode negar que muitas palavras do
latim clássico migraram para o latim vulgar e nele cumpriram seu processo evolutivo,
ficando hoje difícil para o falante comum perceber a natureza nobre de tais termos.
Outras palavras mantêm a etimologia grega ou latina, termos eruditos ou semi-
eruditos, e se transformam em “caribdes antropófagas” que “amedrontam” o leitor
pela perda da transparência de seus significados. Ainda, alguns termos
caracteristicamente populares são alçados ao paradigma de termos técnicos e
passam a pertencer também ao vocabulário do texto científico, também considerado
uma tratamento culto da linguagem.
As idéias que trouxemos à baila com o objetivo de definir o lugar onde a
tradição vocabular se apresenta no romance de João Ubaldo Ribeiro nos apontam os
meandros que devemos percorrer para chegar ao destino traçado. Um deles é buscar
no discurso das “figuras eminentes da ilha”, “patrimônio de homens insignes”, assim
apresentadas pelo narrador, palavras que se definem como cultas pelo nível
discursivo em que são empregadas na trama narrativa. O outro é detectar em que
medida esses termos cultos constroem sentidos especiais dentro do discurso do
narrador em terceira pessoa e de personagens como o mestre-escola Joaquim Moniz
84
Andrade, o mestre-de-campo José Estevão Borges Lustosa, Monsenhor Gabriel
Borges Lustosa, Capitão Cavalo e D.Afonso Jorge II, o mani banto rei do quilombo,
pelo nível sociocultural a que pertencem na comunidade na qual estão inseridos e
pelas relações de poder que mantêm com as demais personagens do universo
ficcional da ilha do Pavão. Antes, porém, sigamos o mapa para encontrar o “tesouro
vocabular” de João Ubaldo Ribeiro e analisar o que nele encontramos.
5.2 Os meandros vocabulares do escritor
No primeiro capítulo do livro, João Ubaldo empenha-se em apresentar ao
leitor, pela voz do narrador em terceira pessoa, a ilha em seus caracteres físicos,
seus habitantes, o espaço em que vivem, as histórias que a cercam de mistérios e
magias, enfim, a vida da Assinalada Vila de São João Esmoler do Mar do Pavão,
fundada num dia 23 de janeiro, onde vivem orgulhosos e felizes os joaninos ou os
assivissojoemapaenses, como se prefira menor ou maior formalidade de tratamento.
Partindo da visão geral do capítulo em análise, ainda que pareça óbvia a
informação, predominam quantitativamente os itens do vocabulário comum, cujo
emprego dá suporte ao leitor para construir o sentido daquelas palavras e expressões
que não lhes são freqüentes no uso ou mesmo em textos outros.
Certificamo-nos de que algumas palavras imprimem certa dificuldade à
compreensão do texto, quando solicitamos a um grupo de universitários do segundo
período do Curso de Letras de uma universidade pública que lessem o capítulo e
registrassem a presença de algum item lexical que não lhes fosse conhecido. O
resultado dessa pesquisa apontou o desconhecimento de 22 adjetivos, 30
substantivos, 12 formas verbais:
Adjetivos
85
nefana amanhada alcantilada cavilosas entanguidas ajaezadas
taciturna inauditos abissais abismal ruante salsos empaladora
pachorrento escancelada homiziado lancinantes arribados
amalgamado torpes prosélitos naufragoso
Substantivos
entrefolhos dissipação taludes goletas ursulina caleças
humores escol louçainha venefício escarneamento trasgos
ditames grongas grados* falésias guisas alcoviteira
mestre-escola gelosia caneiro curimã marouço repiquetes
apicuns gramuás estriges hostes alcunha menear*
(*) substantivo formado pelo processo de conversão
verbos
alvorotar-se encordoar surdir encafuar acossar açular
enxamear avultar espraiar lampedejar tutear-se abeirar-se
Incluídas no conjunto de palavras não dominadas pelos informantes estão
algumas formações neológicas
18
: i) assivissojoemapaenses, substantivo, por
processo de conversão a partir de adjetivo gentílico que, por sua vez é derivado de
base acrossêmica por sufixação; ii) corseado e reataviado, adjetivos como
exemplos de neologismos formais; iii) funileiro e joanino, neologismos semânticos
empregados no texto como adjetivo e substantivo, respectivamente, formados pelo
processo de conversão.
Diferentemente do que ocorrerá ao longo da narrativa, quando o narrador
recorrer ao discurso direto para ceder o turno da fala a algumas personagens, no
fragmento observado não são registradas palavras de baixo calão ou palavrões, à
exceção de “peidos”, hoje considerada termo popular de pouco prestígio social e que
nos dicionários recebe a rubrica de tabuísmo.
18
Foram estabelecidos como corpora de exclusão o Novo dicionário Houaiss ( 2001); Novo Aurélio Século XXI
(1999); Dicionário UNESP do português contemporâneo,2004; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa
(2004)
86
Nesse capítulo do romance, a tradição vocabular atravessa um discurso culto,
predominantemente formal, no qual são encontradas palavras construídas com o
sufixo –al. Segundo Rodrigues Lapa (1998, p.125), esse é um elemento de valor
poético ou intelectual: “universal”, “colossal”, “letal”, “abissal”, “abismal”, “infernal”,
“financial”, “monumental”, “descomunal”. Observa-se que nessa relação de adjetivos
estão presentes duas formas concorrentes: “abissal, de base grega, empregado em
sentido figurado e “abismal de base latina.
Com o sufixo –vel tem-seindizível”, “incontável”, “irredutível”, “infindável”,
“inesgotável” e “formidável”, palavra cujo significado no texto transgride o sentido
com que é usada hoje: que inspira grande medo, pavor; assustador, aterrador. “Um
diacronismo”, diz o DH, que se confirma semanticamente pela solidariedade das
palavras que aparecem no enunciado tais como “negrume”, “encafuar”, “haja fugido”,
“acovardada”:
“[...] A Lua deixa de existir e o horizonte se encafua
para sempre no ventre do negrume, as escarpas da
ilha do Pavão por vezes assomam à proa das
embarcações como uma aparição formidável da qual
não se conhece navegante que não haja fugido, dessa
passando a abrigar a mais acovardada das memórias.”
(FIP, p.9)
Outro caso que consideramos uma transgressão vocabular é o emprego do
adjetivo “famígero” que recupera no texto o sentido de origem. A primeira acepção em
DH atribui um aspecto melhorativo: o que leva ou traz novas, o que espalha notícias,
o que é conhecido e esperado. No mesmo verbete há a remissão a “famigerado”, que
hoje tem acrescentado a seus sentidos possíveis o traço pejorativo, menos
prestigioso, significando “tristemente afamado”, mal visto ou malfeitor:
“[...] a principal é de longe a Assinalada Vila de São
João Esmoler do Mar do Pavão que, havendo sido
pisada pela primeira vez por pé cristão num vinte e
três de janeiro. Recebeu esse nome em honra do
santo do dia, grande santo entre os mais santos[...]
voz mais elevada das hostes de Malta, senhor da
famígera cruz das oito pontas.”
(FIP, p.15)
87
Alguns termos presentes no texto preenchem as características de compostos
eruditos, tal como se apresenta a definição desse fato morfológico nos compêndios
didáticos, “antropófagas” e “coprolalia”, sendo esta um substantivo que pertence ao
universo terminológico da psicopatologia, cujo significado é tendência incontrolável a
usar palavras obscenas, uma das malfeitorias do demônio Apolion.
A luta contra o Mal tem como um de seus representantes na ilha o mestre-
escola e boticário Joaquim Moniz Andrade, aquele que “tem domínio da parenética
(FIP, p.17).
“Parenética é palavra erudita de origem grega e significa “ter eloqüência
religiosa, conhecimento dos discursos morais”.
Há uma série de palavras em circulação cuja etimologia aponta a presença de
empréstimos de variadas origens das quais o falante não se dá conta, assimilados
que foram ao idioma, não mais sentidos como elementos estrangeiros. Vejamos
algumas ocorrências:
francesismos
ruante surdir boticas bugres coragem miragem
taludes oeste frotas chaminé satânicos sensações franquear
frota divisa feitiço onça
espanholismos
forasteiro menear caudaloso feiticeiras forquilha penha
tabaco quiçá atordoar padecimento
italianismos
piloto sentinela cascata comparsa contraforte irredutível
helenismos
prosélitos demônio falange colossal igrejas caleça
meandros caribdes anarquia
88
germanismo
guisas
lusitanismo
capelistas
arabismos
alcouce amalgamado (amálgama) açúcar azeite
A etimologia de algumas palavras mostra o quanto elas viajaram para chegar
ao léxico da língua portuguesa. Este é o caso, por exemplo da palavra “botica,
considerado em DH como um termo diacrônico:
prov. fr. boutique < gr. apothêké, com a pronúnica bizantina apothíki; ver bodeg-;
f.hist. 1460 butica, 1499 botiqua, sXV botica
ou caleça, registrada em DH como um regionalismo brasileiro:
al. Kalesche (1636)'id.' (< checo kolesa, pl. de kolo 'roda'), pelo it. calèse (1691),
pelo a.-fr. calège (1646) e pelo fr. calèche (1656)
Outras pertenciam ao latim, mas nos chegaram por outras línguas. Por
exemplo, “caudaloso” é etimologicamente descrita em DH como
lat. capitalis,e 'que se refere à cabeça; que interessa à vida; capital; principal',
segundo JM, pelo esp. caudal 'id'; ver capit-; f.hist. c1584 caudaes
Tais termos reconstroem a formação do léxico português em território europeu,
mas cuida o escritor de marcar o enriquecimento vocabular que as línguas
89
conviventes no Brasil durante a colonização promoveram. A enumeração de signos
designativos de elementos da natureza, fauna e flora, é um traço estilístico no
romance de João Ubaldo Ribeiro principalmente na descrição dos ambientes que
servem de espaço narrativo, recurso que firma e exalta as raízes brasileiras
salpintadas com a cor local.
À exceção de alguns regionalismos como “entanguidos”, “engrolar”,
“cavilosas” e “apicuns”, os termos selecionados fazem parte do vocabulário comum e
circulam com certa freqüência entre os usuários da língua ou, pelo menos, não
causam tanto estranhamento ao leitor.Tal seleção constrói uma paisagem tipicamente
brasileira com a presença de termos da fauna e flora locais .
Tupinismos
Flora: sucupira maçaranduba jacarandá ipês jatobá carnaúba
piaçava apicum oitizeiro
Fauna: guará jandaia raposas jaburu preás tatu jararacas teiús
jandaia tucano cobra-cipó tamanduá sanhaço
Africanismos
Fauna: macaco ( or. controv.) marimbondo calango
São de origem tupi alguns topônimos encontrados no texto tais como
“Itacaranha”, “Itaparica”, “Pacu” e “Caçu”, assim como outros, africanos, empregados
para indicar a origem dos escravos que habitavam a ilha: “Congo”, “Guiné”, “Benim”,
“Oió”, “Daomé”. De origem africana também é a palavra “quilombo”.
Ainda registramos os brasileirismos “salpintados”, “entanguidas”, “sobrados”,
“cavilosa”, “engrolar”, “gato-do-mato”. Segundo o DH, “aldeia” é considerado um
brasileirismo quando designa habitação indígena, como especialização semântica:
aldeia
90
(1500) Regionalismo: Brasil.
povoação habitada apenas por índios; maloca, aldeamento
A exploração de campos léxico-semânticos auxilia significativamente a
construção de sentidos do texto. Ao referir-se aos entes maléficos, os príncipes do
Mal que surdem traiçoeiramente das trevas abissais para desencaminhar e levar à
danação as inocentes criaturas de Deus”(FIP, p.10), a seleção lexical reúne adjetivos e
substantivos que denotam comportamentos negativos, inferiores, criando uma
ambiência ideal para explorar o tema, não se satisfazendo o escritor com a nomeação
das entidades, apenas:
Príncipes do Mal
Oriax Agares Cassiel Manon Malquedama Nimorup
Apolion Asmodeu
substantivos adjetivos
pesadelos demônios miasmas
malfeitorias padecimentos
inveja despeito entrega do corpo
vícios dissipação ganância
coprolalia avareza intolerância
ódio mentira trevas diabos
estriges lobos peidos
torpes ardilosas sulfurosos letais
lancinantes maligno abissais
satânicos luciferinos
amaldiçoados
A presença de termos de especialidade é também observada. Pelo menos dois
campos do conhecimento humano são ativados no texto pela presença de itens
lexicais a eles pertencentes. Com relação aos termos de marinharia tem-se
“embarcação”, “navegante”, “velas”, “cascos”, “galeota”, “batelão”, “barco”,
“ancoradouro”, “atracadouro”, “proa”, “pôr a pique”, “vagalhão”, “piloto”, “maré”. Ao
descrever a geografia detalhada da ilha estão presentes “praias”, “ilha”, “ponta”,
“enseada”, “angra”, “baía”, “lagoa”, “laguna”, “arrecifes”, “cascatas”, “morrotes”. Ainda
91
que no texto em análise as palavras mantenham o traço “termo de especialidade”,
conforme registrado em DH, a maioria delas se estendeu ao uso comum perdendo a
característica de termo exclusivo.
A linguagem figurada confere ao texto expressividade pelo emprego de
palavras que hiperbolizam os sentidos pretendidos, como os adjetivos na forma
superlativa, “crudelíssimo” e “altíssimo”, ou explorando a camada sonora dos
significantes como é o caso dos adjetivos em –al, já assinalado, em –oso como
“caudaloso, “numeroso e –ento em “pachorrento.
Palavras como “nordestezinho, “chuvisquinho e “brisazinha dão o tom
coloquial ao último parágrafo do capítulo no qual o narrador descreve o amanhecer
na ilha. Nessa passagem os termos eruditos ou formais cedem lugar às palavras de
uso comum, talentosamente combinadas para pintar a rotina daquele lugar onde as
mulheres ralam milho e coco e formigam em meio a gamelas e panelas”(FIP, p.18) ou
“cumprindo a missão que lhe foi dada desde a Criação um grande bem-te-vi atitou
energicamente na copa de um oitizeiro no Largo da Calçada” (FIP, p.18)
Pelo levantamento feito até aqui, verifica-se que João Ubaldo Ribeiro transita
pelos diferentes vocabulários com sucesso na construção dos sentidos, mantendo a
coerência entre texto e intenção discursiva. A seguir, verificaremos o comportamento
vocabular quando é dada voz às personagens.
5.3. Os meandros vocabulares das eminências da ilha
O domínio da norma culta pelo mestre-escola da Assinalada Vila de São João
Esmoler do Mar do Pavão, Joaquim Moniz Andrade, cujo engenho gramatical criou o
adjetivo pátrio “assivissojoemapaense” para designar os nascidos na vila, enquadra-o
na elite cultural da vila. O reconhecimento do talento com as palavras faz com que
seja requisitado pelo intendente, toda vez que é necessário elaborar os textos oficiais,
as posturas da administração pública, que são firmados por uma das incontáveis
plumas de pato com que Dão Felipe Mendes Furtado ia às turras com a grafia e a
92
sintaxe, para depois, amaldiçoando o cálamo rebelde, desejar a morte súbita de todos
os palmípedes do universo e a conseqüente extinção da laia dos escrevedores e
gramáticos. (FIP, p.40). O narrador nos apresenta um desses textos oficiais:
Nessas duas páginas, em meticulosa caligrafia processual,
faziam-se primeiramente assisados considerandos, a saber,
entre outros: que era da natureza das diversas raças e
povos díspares opugnarem-se entre si, se submetidos a
excessiva convivência, como sobejamente ilustrava a
História,estando o índio para o branco, assim como o hitita
para o egípcio, ou este para o hebreu, ou os romanos para
os filhos de Dido; que os da raça vermelha, em todas as
partes do mundo, por mais que forcejassem a caridade e o
empenho catequético dos brancos, mostravam-se
invariavelmente infensos ao mais elementar ensinamento,
quer da cristandade, quer da urbanidade, embriagando-se
em público, trafegando sem roupa ou qualquer espécie de
cobertura, bebendo a fumaça do cânhamo-da-índia ou do
tabaco, soltando nos ares vapores ofensivos pelo vaso
traseiro, dando-se a algazarras a toda e qualquer hora,
refugando trabalho honesto e ignorando a autoridade; que
cabia à Intendência da Câmara o zelo da ordem pública, da
moralidade e dos bons costumes, múnus em cujo fiel e
indemovível exercício penhorariam honra e vida; que a
própria palavra “selvagem”, ordinária do mais patrício e
castiço latim e digna de pena de um Cícero ou de um Tito
Lívio, queria dizer ‘’próprio da selva”, construindo-se a partir
desse alicerce um perfeito silogismo, nos puros moldes do
insigne mestre de Estagira: selvagens são os habitantes da
selva; os índios são selvagens;ergo, o sítio próprio para os
índios é a selva, não havendo como refutar tão exata razão
sem que a lógica do universo se derribe. Tudo isso e mais
outros juízos e postulados levavam o intendente e a Câmara
a haver por bem injungir os ditos índios a deixar a vila para
dela não mais se aproximarem, a não ser portando salvo-
conduto, concedido ao alvedrio da Intendência. Três dias a
contar da data, o índio pilhado na sede da vila receberia por
ensinadela ser posto a ferros e escorraçado de volta ao
meio natural. Pela segunda vez cometendo a mesma
felonia, penaria todos os rigores da lei cabíveis a
desordeiros, vagabundos, salteadores e demais celerados
que sobejam em sua grei imunda.”
(FIP, p.40-1)
Os “lavores de erudição” de Moniz Andrade se concretizam quando ele traz
ao texto a perífrase “mestre de Estagira” para referir-se a Aristóteles, ou quando faz
93
alusão a Dido, personagem da Eneida, de Virgílio. O conhecimento histórico se afirma
ao serem lembradas as guerras infindáveis empreendidas por hititas e egípcios,
egípcios e hebreus, romanos e cartagineses em analogia à incompatibilidade que
existia permanentemente na ilha entre brancos e índios. É bem verdade que nos
embates entre índios e brancos, os “brancos” eram certas pessoas da elite e algumas
religiosas da vila apenas, como desabafa índio Balduíno: Toda gente gosta de índio!
Assomente é Dão Filipe que não gosta! Assomente Dão Filipe e as beata beguina!
Assomente Dão Filipe e as beatas beguina e os miserave! ( FIP, p.41)
Pelo emprego da conjunção ergo, pressupõe-se ter o mestre algum domínio
do latim, nobre e pura língua dos grandes oradores romanos lembrados no texto
pelos antropônimos “Cícero” e “Tito Livio”. O conhecimento da retórica grega
apresenta-se pela construção silogística em torno da palavra “selvagem” como
argumento lógico e inquestionável para justificar o retorno do índio ao seu lugar
natural.
A formalidade exigida por textos dessa natureza é cumprida à risca pelo
mestre-escola, principalmente quanto ao vocabulário empregado, mas não pelo
narrador, que simplifica a redação oficial ao empregar “considerandos” em lugar de
“considerando”. A conversão do verbo em substantivo reduz ironicamente a
formalidade do termo que deveria ser empregado diante de cada uma das reflexões,
observações, razões ou motivos que se enumeram em parágrafos, como introdução
ou prólogo a um documento (leis, decretos, sentenças, conclusões, propostas etc) de
acordo com a definição apresentada em DH, embora siga respeitando a sintaxe
subordinativa própria da “fôrma” peculiar desses textos.
Se brancos e índios estão em constante luta, motivos hão de existir e, para
marcar a integridade moral de uns e o destempero social de outros que geram o
conflito, serve-se o gramático ilhéu de expressões que desenham o comportamento
de cada grupo, segundo o lugar de onde a personagem produz o discurso:
Os selvagens Os brancos
opugnam-se ( entre si) forcejam a caridade e o
empenho catequético
embriagam-se zelam pela ordem pública, pela
moralidade e pelos bons costumes
94
são infensos aos ensinamentos
trafegam (sem roupa ou cobertura) ensinam urbanidade e cristandade
bebem (a fumaça do cânhamo-da-índia)
soltam vapores (ofensivos)
dão-se a algazarras
refugam (trabalho honesto)
ignoram (a autoridade)
O objetivo dos argumentos é embasar a justa ordem de expulsão dos índios. O
nível vocabular se mantém culto quer na referência às impropriedades do
comportamento dos “selvagens”, quer nas ações pedagógicas aplicadas pela
administração pública para recuperá-los. Mesmo que as atitudes dos selvagens
sejam perniciosas à sociedade local, as palavras e expressões que as referenciam
pertencem ao vocabulário polido. Assim, os índios não lutam entre si, mas opugnam-
se; não andam nus, trafegam sem roupa. Não peidam, mas soltam vapores; não são
preguiçosos ou perniciosos, mas refugam trabalho honesto.
Chama a atenção o emprego incomum do verbo beber em lugar de fumar.
Das acepções apontadas na entrada lexical “beber” em bebendo a fumaça do
cânhamo-da-índia, “sorver” é a que mais se compatibiliza semanticamente, uma vez
que a primeira acepção dicionarizada em DH é beber aspirando. No Novo Aurélio.
Século XXI (1999), encontramos o emprego literário do verbo “beber” com o mesmo
sentido daquele explorado por João Ubaldo na abonação Vai beber o pleno ar...,um
dos versos do poema de Manuel Bandeira Voz de fora
19
.
Os adjetivos empregados têm seu valor literário: ”assisados”, “infensos”,
“indemovíveis”, “insigne”, “patrício”, “castiço”, estando todos antepostos ao
substantivos, o que lhes acrescenta um traço afetivo conotado pela subjetividade na
escolha da organização dos termos do sintagma.
Sobre a anteposição de adjetivos, Júlio Casares (1950, p.124-5) fala da
necessidade de verificar se o conjunto adjetivo-substantivo não constitui um todo
significativo como ocorre em “pobre diabo” (indigente), pois se retirarmos o adjetivo, o
que resta é “diabo” que, desacompanhado do adjetivo não tem ligação semântica
19
O poema citado faz parte do livro Estrela da vida inteira, p. 22.
95
com “indigente”, sinônimo da expressão. Estilisticamente é produtivo o emprego do
adjetivo anteposto em combinações livres como “pobre mulher”, “pobre criança” etc,
em que a subtração do adjetivo provoca a perda do traço estilístico, mas “mulher” e
“criança” não perdem a sua significação de base.
As demais formas adjetivas, cujo emprego apenas qualifica o substantivo,
são pospostas, obedecendo à ordem mais freqüente de uso no cotidiano da língua,
mas ainda assim são selecionados de acordo com o padrão culto: “díspares”,
“ofensivos”, “imunda”, “catequéticos”.
Martins (2000, p.79) afirma que os substantivos abstratos têm a propriedade
de destacar o sentimento, a qualidade o estado com mais realce. No trecho em
análise estão presentes os nomes abstratos “ensinamento”, “cristandade”,
“urbanidade”, “moralidade”, todos referentes aos princípios éticos, morais e religiosos
que orientavam a manutenção da ordem pública da vila, em contraste com os nomes
concretos que circunscrevem o comportamento profano dos índios tais como
“algazarra”, “vapores”, “fumaça de cânhamo-da-índia”, “tabaco”. Na enumeração da
gama de malfeitores, o hiperônimo “celerados” se desenvolve em hipônimos que
constituem a grei imunda: “desordeiros”, ”vagabundos”,” salteadores”.
Além das palavras que apresentamos aqui como itens vocabulares freqüentes
no discurso culto, destacamos o substantivo “felonia” que, de todos aqueles já
referidos, foi o único a receber em DH a rubrica uso formal. A palavra “múnus”, cujo
significado é tarefa, dever obrigatório de um indivíduo; encargo, obrigação, pareceu-
nos uma escolha especial do escritor para valorizar ainda mais o empenho no
cumprimento do dever junto à sociedade sob a proteção da coroa portuguesa ali
representada por Dão Felipe de Melo Furtado. O Dicionário Aurélio apresenta como
abonação o emprego literário dessa palavra em D. Frei Bartolomeu, de Aquilino
Ferreira. O termo também está registrado no Dicionário de Usos, de Francisco Borba.
O texto redigido atendeu aos objetivos de quem o solicitou e de quem redigiu,
pois tem-se ali, se desfeita a estrutura do discurso indireto, uma postura municipal
dentro dos padrões formais, inclua-se o vocabulário culto, exigidos pelo contexto, e
permitiu ao mestre-escola exercitar sua competência gramatical e erudita. Sem
dúvida, porém, criou problemas, de maneira direta ou indireta, para outros
96
interessados no assunto no que diz respeito à leitura e intelegibilidade do texto. Em
alusão à natureza truncada dos textos presentes em leis, portarias, contratos que
enganam o cidadão pela dificuldade que tem de ler e entender o que ali está disposto,
o espírito crítico do escritor se revela pela voz do narrador no trecho a seguir:
“_ Tudo mentira! _ gritou Balbuíno, apesar de não
haver entendido quase nada do que Iô Pepeu, com
alguma dificuldade, lera em voz alta.”(
FIP, p.41)
Em outra parte do romance, agora em estudo o capítulo XVI, a habilidade
escritora de Moniz Andrade é requisitada novamente. Desta vez, para a elaboração
de um memorial que seria encaminhado a Capitão Cavalo na tentativa de persuadi-lo
a “transformar-se numa espécie de governador tirânico, cuja missão principal seria
sem dúvida alguma atender aos interesses deles e estender-lhes todo tipo de favor e
privilégio”
(FIP, p.154), segundo o ponto de vista do narrador. O memorial assim se
inicia :
Ai, América Portuguesa, sol do novo mundo, gema
celsa da Coroa, torrão de cabedal inexaurível, a que
ponto chegaste, nesta sesmaria deslembrada, em que
seus princípios e ordenação se envilecem, sua gente
se mesticiza e se deprava, sua autoridade não se
reconhece, seus camaristas e homens bons se
desprestigiam e seu elemento servil se há como Livre?
Ter-se-á ao menos lenitivo para tantas aflições, poder-
se-á ao menos esperar algum governo em tanto
desgoverno, algu’a mão segura a guiar os destinos da
Assinalada Vila de São João Esmoler do Mar do
Pavão?
(FIP, p.141)
Destacam-se nessa passagem as palavras que cumprem sua função poética –
“celsa”, “cabedal”, “inexaurível”, “deslembrado” (em lugar de esquecido), “envilecer”,
“deprava”, “mesticiza”, “camaristas”, “lenitivo”, “torrão”, “sesmaria”, “elemento servil”. É
um discurso pomposo que, pela materialização dos enunciados, denota o domínio não
só do padrão da língua, mas também acentua uma certa intimidade no uso da palavra
com fins estéticos.
97
O esforço empreendido na produção do texto é ironizado pelo narrador quando
este descreve o processo de elaboração do documento no mesmo nível de registro do
documento oficial, isto é, produz um enunciado marcado pelo excesso de formalidade
purista nas expressões em destaque:
Assim indagava, a folhas tantas, o memorial
arduamente penejado, em jornadas longuíssimas e
noites indormidas, pela mão doutíssima do mestre
José Joaquim Moniz de Andrade e submetido a duros
debates e emendas, entre os pares reunidos na
recém-formada Confederação das Vilas da Ilha do
Pavão, com sede provisória na Câmara
assivissojoemapaense, memorial esse a ser entregue
pela legação que se enviaria a Capitão Cavalo”.
(FIP:
p.141-2)
Ao longo do capítulo, o narrador persegue o objetivo de ridicularizar o excessivo
esmero lingüístico na formulação do documento, e para isso não poupa o emprego de
palavras e expressões no mais puro e culto estilo, donde se destacam os termos
eruditos “hegemonia” e “magna”:
“Acresciam-se a isso o natural ressentimento das vilas
menores em relação a São João e o medo de que sob a
cor da restauração da ordem, houvesse pretensões de
ampliar a hegemonia joanina já em vigor, por força de
sua riqueza e prosperidade.”
(FIP, p.142)
“A eloqüência e o poder de persuasão do intendente[...] é
que foram capazes, a duras penas, de mobilizar a
consciência conservadora dos ilhéus, para convergi-la
nos antigos ideais, agora desonestados”.
(FIP, p.142)
“Diversos assuntos de magna importância contribuíram
também para a demora da tomada das providências”.
(FIP, p.142)
[...] depois de dois dias de altercações e discursos
arrebatados chegou-se a uma solução conciliatória,
com a escolha do mestre-de-campo Borges Lustosa,
comandante das tropas que, em circunstâncias tão
adversas, impuseram acaçapante derrota às hordas de
98
selvagens capitaneados pelo ardiloso e carnífice chefe
índio Balduíno Galo Mau.”
(FIP, p.143)
“E atabulou-se em quarto lugar sobre o custeio da
expedição, das provisões aos jaezes das mulas e burros
bem como a presença de presentes protocolares”
(FIP,
p.143)
Quanto à origem, no conjunto de palavras destacadas nos fragmentos
anteriores encontram-se dois francesismos, “protocolar” e “horda”, e “eloqüência”, um
termo da retórica. O índio é cruel, sanguinário, mas o escritor prefere “carnífice”, menos
freqüente e mais sugestivo em relação à idéia de canibalismo associada aos selvagens.
Curiosa é a origem de “acaçapante”. O DH nos remete a “acaçapar”, cuja primeira
acepção é tornar(-se) semelhante a caçapo ('coelho'); fazer ficar ou ficar em posição
corporal semelhante à do caçapo, quando se esconde do caçador. Por extensão de
sentido chega-se a derrotar ou anular inteiramente; dominar, submeter, subjugar ou
diminuir moralmente, fazer perder o valor ou dignidade; humilhar, sentido em que a
palavra está empregada.
Muito produtiva na construção de sentidos de humor no texto é a passagem em
que, mais uma vez, a evocação dos escritores latinos, representantes clássicos da boa
literatura, servem como argumento de autoridade. Os antropônimos “Cícero”,
“Lucrécio”, “Tito Lívio” e “Sêneca” impõem-se aos confederados, que não dominam a
“língua original”, as fontes da mais pura erudição do mestre-escola. Pelo conhecimento
acadêmico, correção e propriedade de estilo que impetuosamente defendia, e mais
ainda pela ignorância dos demais, Moniz Andrade sobrepõe-se ao pares presentes à
reunião e tem seus torneios gramaticais e estilísticos aprovados, como nos mostra o
narrador:
“E, derradeiramente, ponderou-se à exaustão cada pequeno
trecho do memorial, quase sempre diante de objeções
impetuosas de seu autor, notadamente quanto à correção e
propriedade de estilo, por ele defendidas através de
citações de Cícero, Lucrécio, Tito Lívio, Sêneca e outros
representantes clássicos da boa prosa, sempre em língua
original, a qual, sendo ignorada por quase todos os outros,
99
assegurou a aprovação de praticamente todos os pontos
estilísticos sustentados por Moniz Andrade”
(FIP, p.143-4)
Tanto na postura municipal quanto no memorial o escritor busca, com o
emprego de certos substantivos abstratos, adjetivos em –oso, advérbios em –mente
criar um efeito de sentido hiperbólico que, pela caricatura, pelo exagero, critica a
intenção de se produzirem textos argumentativos dentro de excessivos rigores da
norma culta como forma de opressão, de intimidação. Também o emprego de nomes
adjetivos no grau superlativo denota um transbordamento emotivo com dimensões de
exagero que dão ao texto traços grotescos.
O discurso autoritário marcado por uma ideologia totalitária, antecipada pelo
narrador quando usou o adjetivo “tirânico” em passagem citada anteriormente, vem
disseminado nas propostas que seriam feitas a Capitão Cavalo, marcadamente pelo
emprego de palavras cuja força de significação aponta a implementação de um regime
político que poria em risco a liberdade do povo da ilha :
“I-Que o povo,em sua geral ignorância e desinteresse
pela coisa pública não podia ficar entregue a seus
próprios desígnios desorientados, merecendo, e
principalmente, necessitando de condução firme e
enérgica;
II- que tal ausência de comando gerava iniqüidade e
mazelas morais de todos os tipos, arriscando-se a ilha a
vir a ser objeto da ira divina pelo esquecimento da Sua
verdade e pela prática de atos de origem ilegítima e
mesmo diabólica;
III- que o afrouxamento do domínio do elemento servil
praticamente o abolia como tal, o que não só era contra a
lei e aos costumes da Coroa, como violava a própria
vocação da raça escravizada, contrariava a Natureza e
subvertia a ordem da sociedade;
IV- que os índios, por sua própria índole e criação
selvagens, não podiam ter presença tolerada nas vilas,
nas aldeias brancas, em que exerciam influência
deletéria sobre a educação do povo e praticavam
costumes inaceitáveis pelos civilizados;
100
V- que, diante de todo o exposto, somente um governo
forte e implacável, apoiado pelos cidadãos prestantes,
poderia remediar a situação e, para exercer esse poder
era convocado Dão Baltazar Nunes Feitosa, Capitão
Cavalo, que poderia ser para a Ilha do Pavão, o que os
grandes césares foram para Roma
..”(FIP, p.144)
Mais uma vez a seleção vocabular empresta coerência ao texto.Os adjetivos
“firme”, “enérgica”, “forte”, “implacável”, “exercer poder”, “césares” permitem inferir a
truculência das novas idéias de governo na ilha para garantir a ordem social. Tais
práticas se justificavam do ponto de vista do memorial, pois, afinal de contas, existiam
”iniqüidades” e “mazelas morais” na ilha. E quem as provocava? O “elemento servil”
liberto, que “viola”, “contraria” e “subverte”, verbo ameaçador para qualquer regime
instituído, e os índios, “selvagens” de índole, de influência “deletéria” para a educação
popular. Nessas circunstâncias o apoio das pessoas que prestam, ou “prestantes”, é
fundamental. No DH, esse termo tem como acepções que gosta de ajudar; prestativo,
prestador e que é notável por suas obras ou feitos; ilustre, insigne. Pelo contexto, a
vaidade e a prepotência das autoridades da vila nos encaminham para a segunda
acepção. Como recurso argumentativo, Deus e o diabo são chamados à discussão
pelos adjetivos “Divina” e “diabólica”.
Outra insigne figura da vila é o mestre-de-campo José Estevão Borges Lustosa,
a quem cabe, na ação narrativa, zelar pela manutenção da ordem militar da região. O
nível de competência lingüística que recobre a personagem é conseqüência da
diversidade de conhecimentos adquiridos em sua formação militar, como nos apresenta
o narrador:
Mas não, a intelecção militar não limita seus horizontes
às meras táticas de combate. O verdadeiro intelecto
militar apreende, como os grandes capitães da
antiguidade, toda sorte de conhecimento, das artes
políticas à grande filosofia.”
(FIP, p.169)
101
Assim, ficam justificados os arroubos retóricos praticados toda vez que a
personagem é instada a falar por força da posição que ocupa na hierarquia
administrativa da ilha. A prodigalidade do orador é marcada por adjetivos que
hiperbolizam o discurso proferido, devidamente registrado em ata, em papel
escrupulosamente rubricado por todos os presentes (FIP, p.61). como se vê a seguir:
“Como primeiro registro, ditou uma breve história da
ilha do Pavão e alinhavou algumas palavras em
anástrofes graciosamente torneadas, assíndetos
arrebatados, aliterações extasiantes e demais recursos
que a língua provê os que a defendem da mesma
forma intransigente com que guarnecem o torrão natal,
sobre o heroísmo de seus ancestrais, concluindo com
algumas estrofes de sua lavra.”
(FIP, p.61)
Nessa passagem, João Ubaldo cede à personagem os substantivos abstratos
“intelecção” e “intelecto” para ressaltar o engenho dos grandes militares da antigüidade
a quem Borges Lustosa indiretamente se compara, embora, mais adiante, todo esse
engenho seja acabrunhadoramente derrotado pela esperteza de Balduíno Galo Mau na
batalha do Borra-Botas.
O cuidado com a construção das expressões bimembres é denotado na escolha
dos adjetivos que acompanham as figuras de estilo: “torneadas”, “extasiantes” e
“arrebatados” podem sugerir ao leitor se tratar de adjetivos com significados específicos
em relação a cada um dos substantivos, mas que poderiam permutar sem que a troca
afetasse significativamente o valor denotativo da passagem, ou ainda, um só deles
serviria como qualificador único dos três substantivos. O emprego da sinonímia, no
entanto, serve para conotar o talento do orador Borges Lustosa na exploração dos
recursos expressivos da língua pátria, a impetuosidade de seu temperamento e ainda
um bom repertório vocabular. O domínio da língua culta e as relações de poder mais
uma vez caminham juntos sob o olhar crítico do narrador. O competente orador fala,
dita, expõe, mas não escreve. Falar é fácil, escrever é que são elas, diz o ditado
popular, e o narrador não deixa o descompasso entre fala e escrita passar em branco,
ridicularizando os excessos da personagem:
102
“Para encerrar os trabalhos, o mestre-de-campo
levantou-se e, com a ajuda de uma grande lousa em que
não escrevia nada, mas sublinhava o que falava com
círculos e traços enérgicos, expôs primeiramente o que
os mais sábios, estudiosos, cronistas e navegantes
concordavam ser a verdade sobre os selvagens”.
(
FIP, p. 62)
Também aos olhos do Lobo de São João, os índios não gozam de boa reputação
e a escolha de substantivos e adjetivos a referenciá-los denota isso. Entre outras
atitudes menos valorativas, os índios são “selvagens” que ostentam “espantosa
indolência”, têm “pouca indústria”, apropriam-se de “bens alheios” e sua natureza é
“traiçoeira, ardilosa, velhaca e mentirosa”. Nessa última série adjetiva também os
significados se tangenciam, mas a seqüência estabelece uma gradação enfática quanto
à não credibilidade nos índios.
Um recurso muito empregado por João Ubaldo é o uso de palavras pertencentes
a um campo léxico-semântico na maioria das vezes ligado a uma determinada
atividade. Assim, ao organizar a viagem de navio da comitiva que ia ao encontro do
irmão do mestre-de-campo, Monsenhor Gabriel Fortunato Borges Lustosa, ou ao tratar
das viagens feitas no passado por Capitão Cavalo, cuida o escritor em apresentar
vocábulos que, nos dicionários, recebem a rubrica “termo de marinha”. Quando
abordamos o vocabulário do escritor (4.2) apresentamos outros termos também do
campo semântico de “navegação”, cujo paradigma agora se amplia:
termo significado
vaso de guerra navio
ensecar encalhar
proejar
navegar em certa direção; aproar
afocinhar
mergulhar (a embarcação) a proa mais que a popa; embicar
batel
a maior das embarcações miúdas que serviam aos navios antigos, ger.
naus e galeões
nau
designação dada desde o século XVII a navio de grande porte
103
piloto
aquele que pilota navio mercante, como oficial de náutica ou como
prático de porto, subordinado ao comandante
tripulação
conjunto de pessoas que guarnece um navio
frota
conjunto de navios de guerra ou de navios cujo fim específico se
designa (frota mercante, frota pesqueira etc.)
fundear
lançar, deitar (ferro ou âncora); aferrar, ancorar
deitar ferro
ancorar; lançar âncora
comboio
conjunto de navios mercantes que navegam reunidos com escolta de
vasos de guerra
mareação
governo de uma embarcação
arribar
alcançar (embarcação) a riba, margem, praia, porto ou costa; aportar
embarcação
qualquer estrutura flutuante destinada ao transporte de pessoal e/ou
carga
brigue
navio de dois mastros com velas redondas e cestos de gávea e
também uma vela latina no mastro de ré
Em outra passagem da narrativa, Borges Lustosa tenta sensibilizar o
representante eclesiástico a interferir na desorganização da Vila de São João. A
intenção discursiva é convencer um interlocutor que, além de dominar o padrão culto,
ainda tem qualidades oratórias inerentes à sua formação e necessárias à função que
exerce. Por isso, a seleção vocabular imprimirá sentidos hiperbólicos não só pelo
emprego de recursos já apontados, mas também pela escolha de palavras como
”anarquia”, “olocracia” e “dulocracia”. Dada a opacidade dessas palavras eruditas de
origem grega, o escritor preocupa-se em facilitar a compreensão do leitor, definindo-as
por meio de metalinguagem. “Gentalha”, um italianismo, exacerba o sentido pejorativo
atribuído ao elemento servil, assim como “barbaria”. Outras palavras denotam o cuidado
com o vocabulário: “ombreiam-se”, “inata”, além dos termos jurídicos “ordenações”
(corpos de leis que vigoravam em Portugal e no Brasil, no período colonial e imperial ) e
“editos”(qualquer preceito legal):
“Ouviu, então[...], a espantosa descrição do estado a
que chegara a ilha do Pavão, praticamente uma
olocracia independente, às vésperas da anarquia,
onde não tinham vigência, ou mesmo desconheciam,
os editos e ordenações da Coroa, nem as regras da
Igreja, onde, o elemento servil já praticamente não
104
existia, onde,se se dissera olocracia, governo do vulgo
e da gentalha, melhor se dissera dulocracia, governo
dos escravos, pois que se ombreiam com seus
senhores comprando propriedades, comerciando,
vestindo-se como brancos, tanto negras quanto
negros;onde os selvagens a nada obedeciam e
exerciam sua barbaria nas vilas ou onde quer que lhes
apetecesse, tal comprovando a batalha da Sedição
Silvícola, vencida em condições adversíssimas e
graças à bravura inata dos assivissojoemapaenses”
.
(FIP, p.189)
Como última instância de poder, o mestre-de-campo recorre à Santa Madre
Igreja para ajudar na expulsão dos índios e restabelecer a ordem social e moral da vila.
O escritor põe em cena Monsenhor Gabriel Fortunato Borges Lustosa, homem da mais
estreita confiança e convivência junto ao bispo da Bahia (FIP, p.169), isso porque
“[...] os seis padres de que dispunham já de muito se
haviam se afeito aos costumes da terra e todos eles,
reconheça-se a verdade por todos já sabida, mantinham
raparigas e se entregavam a práticas muito pouco
probas. O mesmo podia ser dito de frades e freiras em
geral, não havia ponto em que não se envergonhasse a
Assinalada Vila de São João.”
(FIP, p.170)
Os motivos do pedido de ajuda justificavam que se instalasse na vila a Mesa de
Visitação e a seleção vocabular prima pela justeza dos termos específicos para
circunscrever a visita oficial. Uma das acepções da palavra “visitação” no DH é
informação recolhida sobre as respectivas igrejas e comunidades pelo visitador de um
bispado, a qual ele transmite ao prelado ou outro superior hierárquico e se enquadra
perfeitamente no contexto, pois esse é o objetivo, ou melhor, um dos objetivos da
presença da Igreja ali. A partir desse eixo semântico, outras palavras se reúnem para
construir o ambiente de terror em que se transforma a vila: “devassa”, (termo jurídico;
apuração minuciosa de ato criminoso mediante pesquisa e inquirição de testemunhas),
“visitador” (que ou aquele que é encarregado de fazer visitas de inspeção (a repartição,
instituição religiosa, escola etc.), “herege” (que ou quem professa uma heresia; que ou
105
quem professa doutrina contrária ao que foi estabelecido pela Igreja como dogma; diz-
se de ou cristão católico que, de forma tenaz, nega ou põe em dúvida verdades da fé
católica), “depor” (termo jurídico) declarar ou testemunhar em âmbito jurídico),
“denunciar” (atribuir a responsabilidade de (ação criminal ou demeritória) [a alguém ou a
si mesmo]), “excomunhão” (termo religioso: penalidade da Igreja católica que consiste
em excluir alguém da totalidade ou de parte dos bens espirituais comuns aos fiéis),
“expropriação”, um francesismo de base latina, (termo jurídico: ato de privar o
proprietário daquilo que lhe pertence);“Igreja” (Santa Madre, Santa Madre Igreja)
pecado”, “pastoral”, “diocese”; “bispado”. Das palavras relacionadas, registramos as
de etimologia grega, adaptadas ao latim: “herege” e “diocese”
Outras palavras enriquecem o conjunto de termos ligados à prática religiosa:
”edículas”, nichos”, “oratórios”, “capelas”, “imagens”, “bentinhos”, “medalhas”, “preces”,
“celícolas” marcando a oportuna religiosidade dos habitantes da vila.
Os santos são evocados como intercessores junto à Divina Providência para que
os pecados transformados em pavores excruciantes sejam perdoados ou esquecidos.
Ubaldo seleciona aqueles que, à exceção de São Judas Tadeu, São Pedro e São João
de Jerusalém, são esquecidos ou ignorantemente desprestigiados, mas revelam, ao
serem despertados do imerecido olvido, invulgar desempenho na solução das causas
em que sua intervenção lhes é suplicada (FIP, p.246): São Leandro, Santa Matilde, Santo
Anascário, São Remberto, Santo Elói, Santa Brígida, Santa Godeliva, Santa Batilda,
São Julião Hospitaleiro, São Nicéforo, Santo Edmundo, São Jacinto, Santa Agatonice.
A excêntrica lista dá o tom de humor crítico à narrativa.
Se em levantamentos anteriores encontramos a referência à língua latina pela
citação dos clássicos, aqui ela se apresenta concreta nos enunciados construídos em
“língua original” toda vez que Monsenhor Gabriel Fortunato se exalta diante das
informações prestadas por seu irmão sobre as irregularidades da vila, deixando patente
sua erudição e marcando inequivocamente o lugar de onde fala:
“_ O tempora, o mores! _ disse Monsenhor,
levantando-se da cadeira de braços onde terminara
por derrear-se, sob o peso da exposição de tanta
106
impudência. Sim, faz-se urgente, mais que urgente,
faz-se premente que essa providência seja tomada! O
mal está sendo feito, mas será cortado pela raiz.
Oderunt peccare maré mali formidine pœnæ. O castigo
corrigirá essas faltas terrificantes. Só me admira que
Vossas Mercês somente agora tenham achado por
bem recorrer à autoridade da Igreja. Havíeis que tê-lo
feito antes, quando tanta nequícia ainda não fora
cometida, tardaste muito, tardaste quase ao ponto da
cumplicidade
.” (FIP, p.189-0)
“_ Não serão o poder e a fortuna desse que chamam
pela alcunha desairosa de capitão Cavalo que o
isentarão do nosso escrutínio.Dominus index est, et
não apud illum gloriæ personæ. O Senhor Bom Deus
não faz distinções entre seus filhos, a não ser quanto
ao pecado
.” (FIP, p.190)
Mas nem só de “latins de padres, como dirá o rei quilombola, é marcado o
vocabulário do Monsenhor. Para construir a imagem inatacável dos representantes
religiosos, foram empregados termos pertinentes ao uso culto da língua, ditos ou
pensados por ele diretamente, tais como “impudência”, “terrificantes”, “desairosa”,
“nequícia”, “escrutínio” (desse conjunto, somente “desairosa” não tem etimologia latina)
ou intermediado pela voz narradora, tais como “austeridade”,”gradas”, “inatacabilidade”,
“provação”, ”ilícitos”, “ímpios”, “imputáveis”, “pronunciações, “denúncias formais”,
“contribuição pecuniária”, “expiação dos pecados”, com se vê no excerto a seguir:
“Já conheciam a postura pública imprescindível aos
visitadores _ austeridade, inatacabilidade acima de
qualquer provação. Nenhuma intimidade com quem quer
que fosse, mesmo com pessoas gradas que constituíram
a comitiva do Santa Cruz e as muitas outras que viviam
na ilha. Os Visitadores representavam a diocese, a
diocese não, a própria igreja e peso maior e edificante
cai bem a bem poucas espáduas. Obtivessem de seu
irmão a relação de cidadãos que seriam chamados a
responder aos tradicionais quarenta quesitos, sobre os
atos ilícitos e ímpios cometidos pelos outros.Conforme
observassem a conduta do povo, acrescentassem mais
quesitos que pudessem ampliar o leque dos atos
imputáveis e assim favorecer a que mais gente fosse
107
denunciada. Cuidassem que não deixasse de haver um
bom número de pronunciações, denúncias formais a
serem julgadas pela diocese, mas nunca de gente que
adiantasse sua contribuição pecuniária para expiação
dos pecados”.
(FIP, p.203)
Ao fim do trecho, de forma polida, ou politicamente correta, o narrador
apresenta, por meio de metalinguagem muito bem construída quanto à seleção lexical,
um dos grandes males que comprometem o comportamento das pessoas públicas da
ilha, a corrupção, jogando com os sentidos dos sintagmas “contribuição pecuniária” e
“expiação dos pecados”. Para o monsenhor, o dinheiro (pecúnia) redime (expia) o
pecado humano.
As ilicitudes, porém, não estão só nas ações do populacho. Dentre os atos
irregulares e ímpios acontecidos na vila, foram denunciadas à Mesa Visitadora certas
práticas sexuais impingidas pelo comandante Borges Lustosa aos milicianos Cosme e
Domitilo. As formalidades exigidas pela sindicância, faz o Visitador empregar um
vocabulário técnico para descrever objetivamente aquilo que desejava fosse confirmado
ou não pelo miliciano Domitilo:
“Contou que, por denúncia partida não sabia onde, o
Visitador lhe perguntara se era fato que seu vaso traseiro
era assiduamente usado como se fora vaso dianteiro de
mulher”
(FIP, p. 254)
Prosseguindo o interrogatório, trocando o interesse público pelo privado,
deixando de lado o papel oficial que cumpria, monsenhor parece desviar-se dos
objetivos primeiros, expondo a face escusa do comportamento do religioso pela
substituição de “usar vaso traseiro como se fora vaso dianteiro” pelo forma verbal
“enrabar”, ao pedir detalhes sobre o fato:
”[...]ordenou que a história fosse repetida, sempre com
exigência de pormenores, chegando mesmo a indagar se
o mestre-de-campo os enrabava metido em seu uniforme
de campanha”. (
FIP, p.255)
108
Mudou o ponto de vista, mudou o vocabulário. Em DH, a forma verbal “enrabar”
não é considerada palavra chula ou tabuísmo. Já no NA
20
aparece essa rubrica. Além
do verbo, a exigência de pormenores e a repetição da história prenunciam que, além de
mestre Borges Lustosa, alguém mais apreciava aquela prática sexual.
Capitão Cavalo é outra figura importante, senão a mais importante da ilha, que
se distancia, porém, das demais pela ideologia que rege seus atos e conduz seus
pensamentos em relação à vida local. Dão Baltazar Nuno Feitosa começou a promover
as mudanças que tanto incomodavam aos representantes da Corte depois que a
esposa, Dona Joana Maria, em seu leito de morte, fez com que ele enxergasse as
injustiças que aconteciam por lá.
As viagens que empreendeu como aventureiro, pirata e contrabandista quando
mais moço, além de fortuna, lhe deram oportunidade de aprender muitas coisas não só
da filosofia natural, como da sabedoria política, cuja lição principal foi que rei distante é
rei nenhum e bispo distante é bispo que não se escuta (FIP, p.146). O domínio de
conhecimentos e experiências vários justifica o uso do padrão culto da língua nas
situações em que tal comportamento lingüístico é exigido.
Mais uma vez o escritor não se satisfaz em fazer referência generalizante às
viagens de Capitão Cavalo pela costa oriental da África. O emprego de topônimos
evoca aquelas terras, pormenorizando os lugares por onde passou e de onde veio a
alcunha que passou a usar como nome próprio, pelas muitas ferezas que cometeu e
pela determinação invencível.
(FIP, p.145)
“O que se diz é que, filho de pai muito rico, tornou-se
aventureiro, pirata e contrabandista, metendo-se em
guerras, corsos e conquistas a conta própria, pela
costa ocidental da África, mas desfraldando sempre o
gonfalão lusitano onde quer que estivesse e que praça
ocupasse. E assim fez frota e fortuna pela Zambézia
acima e abaixo, por Sena e Quelimane, na feira de
Dambare, em Zumbo, na mina Jumbo e nas ilhas
20
A abreviatura NA corresponde à referência ao dicionário Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua
português ,publicado pela Editora Nova Fronteira,em 1999 .
109
Querimbas, às vezes navegando pelas lonjuras do
Timor”.
(FIP, p.145)
João Ubaldo faz da figura de Capitão Cavalo uma personagem perfeitamente
adaptada à vida da ilha e ao seu povo, embora tivesse ela suas raízes na metrópole
portuguesa. Para ele, fora da ilha só havia miséria e iniqüidade e, em nome do livre
arbítrio a que cada ser humano tem direito, se nega a ser autoridade pública,
instrumento de despotismo, diferentemente de outras personagens “insignes” da ilha.
Segundo Bernd (2001, p.115-6) João Ubaldo desenha um projeto ideal de sociedade em
que o senhor branco alforria seus escravos que por sua vez vivem em harmonia com os
índios, concretizando no mundo ficcional a proposta de aceitação do múltiplo sem
qualquer pretensão à hierarquização das culturas nem ao apagamento ou assimilação
de uma pela outra.
No romance, suas ações refletem ponderação, tal qual a linguagem que usa nas
situações comunicativas. O vocabulário que marca suas falas é percebido como culto,
preciso, equilibrado como suas atitudes, sem palavras que tragam maior embargo à
compreensão de quem o ouve. Em seu discurso não há exageros hiperbólicos,
verborragia, anteposições de adjetivos como os recursos de realce que marcam o
discurso de Moniz Andrade ou de Borges Lustosa, mas nem por isso deixa de ser um
uso culto da língua, como se percebe, quando Capitão Cavalo responde à legação que
lhe entregara o memorial:
_ “Como dizia _ prosseguiu o capitão, agradeço-vos
pelas palavras generosas, mas temo que minha
resposta não vos agrade. Por graciosa dação real, me
foi concedida esta sesmaria, mas disso não me
aproveito para contestar direitos dos que aqui
estavam. Ocupei somente terras sem cultivo, nunca
quis ser dono supremo da ilha do Pavão, que para
mim deve ser de todos os que nela vivem e labutam.
Já por aí bem vedes que minha ambição está longe de
ser desmesurada. Quanto aos índios, não sei por que
não terão o direito de entrar e viver nas vilas, pois que
se encontravam aqui antes de qualquer um de nós e a
terra também é deles, antes mais deles do que nossa.
Se têm seus costumes, também temos os nossos e, se
queremos os nossos respeitados, respeitemos os dos
outros. Quanto aos negros, se estão quase todos
110
livres, é porque compreendi que muito melhor que
escravos é ter comigo homens livres e leais, que me
sirvam porque queiram e que possam ganhar a vida
honestamente. E agora se isso se torna geral em toda
a ilha, a única culpa que me cabe foi ter começado.[...]
Quanto às vossas leis do Reino, que as façais cumprir
como puderdes, mas não com minha ajuda, pois há
muito que aprendi não haver tanta sabedoria nessas
leis, que são as mesmas desse quilombo despótico
que se intitula aliado da Coroa. Vejo essa ilha livre,
com todos misturados e podendo levar as vidas que
desejarem, sem as intrigas, as misérias, as guerras os
morticínios, as perseguições e as maldades que tanto
já testemunhei pelo mundo afora”.
(FIP, p.156-7)
São exemplos de escolha lexical “morticínio” em lugar de ”mortandade”, “labutar”
e “trabalhar”, todos dicionarizados. Em relação ao segundo par de palavras, as
acepções de “labutar” acrescentam ao traço semântico “trabalhar” a idéia de esforço,
perseverança. A substituição de uma pela outra naquele contexto traria um certo
esvaziamento expressivo ao texto. “Dação”, segundo DH, é um diacronismo e em NA
além de diacronismo, tem a rubrica de termo jurídico com a acepção entrega de uma
coisa em pagamento de outra que se devia; “despótico”, de origem grega, empresta
pejoratividade ao enunciado. De fato, o adjetivo foi empregado para desqualificar a
figura de D. Afonso Jorge II, o mani banto, rei do quilombo da ilha do Pavão, pelas
razões que veremos a seguir.
5.4 Entre a majestade e o bufão : uma batalha vocabular
Na ilha do Pavão existe um quilombo. Quilombo diferente, governado por um rei
despótico que assassinou o irmão para poder herdar o trono de seu pai Afonso Jorge
Nzomba. Negro congolense, pembeiro, traficante de escravos, Afonso Jorge Nzomba
saiu da Vila de São João Esmoler e foi estabelecer-se com sua gente num pedaço de
mata, fundando o quilombo do Mani Banto, se auto-proclamando D. Afonso Jorge I, por
não suportar mais ver as mudanças dos costumes da ilha, inclusive a existência de
escravos libertos.
111
O filho, D Afonso Jorge II, é personagem que surpreende no romance. Vem de
uma estirpe que enriqueceu com o tráfico negreiro. Junto com a coroa, seus
antepassados congolenses deixaram de herança o preconceito em relação a seus
irmãos de raça, por considerar a origem congolesa, da qual era originário, superior às
demais. Dos portugueses, incorporou a maneira de viver, a religião, a língua.
Essa personagem tão bizarra vai encontrar no narrador em terceira pessoa o
seu antagonista. João Ubaldo empresta a essa voz um discurso irônico, satírico, para
criticar os defeitos não do negro ou do branco, mas da Humanidade, com suas
intolerâncias, preconceitos e excessos.
Presentes no universo ficcional do romance, os topônimos Mbonza Congo,
N´Dungo, Luanda, verdadeiramente cidades da República Democrática do Congo, dão
um toque de exotismo e realidade ao texto. O escritor faz questão de especificar as
tribos e nações de africanos que para cá vieram como escravos, em perfeita sintonia
com os estudos históricos e antropológicos que discutem a formação do povo brasileiro,
enriquecendo a literatura em seu aspecto documental:
“[...]os outros negros são descendentes dos que
pertenciam aos primeiros [congoleses] por herança de
conquista ou foram por eles comprados como
escravos, negros uolofes, mandingas, minas, jagas,
todos negros [...].”
(FIP, p.92)
“O reino do Congo tinha reis, fidalgos e bispos como
os portugueses e seu povo não compreendia como
podiam achar parecido com aquelas raças muito
justamente apelidadas de infectas, raças porcas,
estúpidas, atrasadas e fedorentas, os teques, os
mpumbu, os mbundu, imaginem só. “
(FIP, p.92)
Seguindo os moldes da corte portuguesa, o reino tem sua corte trazida ao texto
pelos títulos nobiliárquicos: “barões”, “viscondes”, “condes”, “marqueses”. Os símbolos
do poder real também lá estão: “cetro”, “sala do trono”, “carruagem”, “cocheiro”, “sota-
cocheiro”, “escudeiro”, “áulicos”, “aves”(saudação), “sólio”, “brasão”, “real mordomo”,
“reposteiro”, “manto”, “reino”, “súditos” ,”arautos”.
112
O estigma do preconceito se concretiza com a adjetivação impregnada de
sentido pejorativo na caracterização física e moral dos negros pertencentes a outras
tribos, aos quais é negado, inclusive, o direito de serem negros, livres, gente:
[...] todos negros ordinários, todos feios, horrorosos,
diferentes, nascidos para a servidão e agora cheios de
liberdades nas outras localidades da ilha do Pavão,
como se por acaso fossem negros do Congo e como
estes fossem gente e tivessem direito
”(FIP, p.92)
“Nenhum congolense vai se igualar a esses bárbaros
atrasados e comedores de gente como os jagas.
(FIP,
p.92)
Estilisticamente, a primeira passagem ganha em expressividade pela escolha
que o escritor faz empregando “servidão”, substantivo abstrato, em lugar de “servir”. Já
o emprego de “liberdades” joga com o sentido de liberdade propriamente dito e a
maneira petulante, abusada de agir dos negros alforriados, marcada pela flexão de
plural. A presença da expressão “cheio de”, porém, bloqueia o primeiro sentido e
constrói a expressão popular “cheios de liberdades”. O emprego da perífrase
“comedores de gente” em lugar de “antropófagos”, um termo erudito, parece-nos uma
escolha entre o erudito, que enobrece, e o popular, que inferioriza mais ainda a tribo
não congolense.
As palavras de origem africana como o nome das tribos, a moeda de Luanda,
“nzimbu”, os topônimos, os antropônimos são o que resta da cultura africana no
quilombo de mani banto, onde a língua oficial é a portuguesa. A dos outros negros é “a
língua deles” ou eles falam “na língua de negro”, empanando--lhes fortemente a
identidade.
A religião dos brancos portugueses vem ao texto pela presença de vocábulos e
sintagmas como “missa”, “procissão”, “padre”, “santidade”, “acólitos”, “Santa Cruz”,
“Cristo Redentor”, “ pecado”, “expiação”, “Deus”, “cristão”, “bispo”, “imagens de santos”,
“altar-mor”, “nave de igreja”, “Irmandade de São Lourenço”, “andor”, “baldaquim”, “pé-
de-altar”, “leis de Deus”, “benzendo-se”, “rezando”, “rezar missa”, “cristandade”, “Todo-
poderoso”, “Providência”, “potestade”, “vésperas”.
113
A prepotência e o autoritarismo alimentam a vaidade do mani banto, rei banto
na fala do Congo, que só admite que se dirijam a ele como “majestade”, “Vossa
Excelência”, “Sua Excelência” e usa o plural majestático ao se dirigir a quem quer que
seja. Ullmann (1973, p.171) diz que em algumas sociedades uma das funções
importantes dos pronomes de tratamento é a de servir de símbolos de classe,
expressando diferenças de situação social, idéia muito pertinente neste caso. Outros
itens lexicais acentuam a vaidade real ao longo da narrativa ao qualificarem-no como
“excelso”, “glorioso”, “poderoso”, “importante”,”clemente”, “belo”, “defensor da justiça e
da cristandade”. O narrador exagera essa vaidade quando, ao descrever a sala do
trono, compara-a à nave de uma igreja, colocando em lugar do altar-mor o trono de
mani banto:
“A sala do trono[...] era ampla como a nave de uma
igreja, na verdade, lembrava mesmo uma igreja, com
exceção da presença, no estrado onde ficaria o altar-
mor [...], de um sólio de jacarandá [...].” (
FIP, p. 123)
Os substantivos abstratos ¨coragem”, “nobreza”, “caráter”, “formosura”,
“sensatez”, também afinam a descrição da personagem que, sem qualquer princípio
de modéstia, se compara aos imperadores romanos, lamentando apenas que eles
tiveram mais sorte de haverem sido senhores de reinos infinitamente mais vastos e
ricos
(FIP, p.116). Como compensação, o escritor presenteia o rei do quilombo com
“árdegas hacanéias” e mais os ginetes de alguns nobres da corte para compor seu
monumental triunfo.
Efetivamente “árdegas” e “hacanéias” são duas palavras que impressionam,
tanto pela camada sonora de cada uma como pela origem que têm. A primeira vem do
latim, e seu uso é pouco freqüente. A segunda, também de baixa freqüência, chegou-
nos pelo francês, embora sua origem seja inglesa. No entanto, seus significados são
semanticamente incompatíveis: “árdega” significa fogosa, irritável, irascível.
“hacanéia” é por definição cavalgadura de porte médio, mansa e de trote elegante,
usada como montaria especial de mulheres ou atrelada a charretes. A imponência
superficial dos significantes ilude. Um presente de grego do narrador para o vaidoso rei.
114
Triunfo é uma palavra relativamente comum quando empregada com a
acepção vitória, mas Ubaldo vai buscar na rubrica histórica a justificativa para seu
emprego - entrada solene em Roma de general vitorioso - , pois mani banto se julgava
comparável aos maiores imperadores: eis que também somos um grande soberano,
defensor da cristandade e da justiça. (FIP, p.115)
Na descrição da carruagem real, os ornamentos são cuidadosamente nomeados
ora com termos da linguagem comum, ora com termos de menor freqüência de uso,
como é o caso de “atavios”, ”broquéis”, “louçainha”, palavras pouco desgastadas pelo
uso, em contraste com “fitas”, “contas”, “vidrilhos”, de emprego comum:
“Atrás dos ginetes, em todo o seu esplendor e
ornamentada com todos os atavios imagináveis, fitas,
contas, broquéis lavrados, louçainhas, vidrilhos e o
que mais representasse glória[..].”
(FIP, p.116)
Uma profusão de cores trazida pelos adjetivos pinta com tons fortes a cena da
chegada triunfal do rei quilombola e justifica o emprego do adjetivo “fulguroso” que
contrasta com o substantivo “penumbra”, produzindo efeitos de luz e sombra. O
emprego da forma concorrente “fulgurante” talvez não fosse tão produtiva
expressivamente quanto a que foi empregada pelo escritor:
“Depois de aberta, a porta só mostrava penumbra lá
dentro, por trás de janelas encortinadas. Mas aos
poucos a abertura foi se iluminando, nos reflexos de
todas as cores vindo do traje fulgoroso de Afonso
Jorge II, o mani banto, chapéu bicorne emplumado e
brasonado, túnica perolada e escarlate com tantos
alamares dourados, calças rubras como sangue e
pespontadas de azul, botas de salto alto luzindo como
espelhos, colares, medalhas, pulseiras e brincos”
(FIP,
p.100)
A sala do trono também é objeto de descrição detalhada, reforçando a
suntuosidade que cerca a majestade. Termos como “sólio” (um latinismo), “baldaquim”
(dossel; 'cobertura com hastes, ornamentada e móvel, para proteção',um termo de
arquitetura), cuja freqüência de uso é bem menor que os termos da língua comum
115
“trono” (um helenismo) e “cobertura”, respectivamente, ajudam a construir o ambiente
de ostentação, da mesma forma que o adjetivo “monumental” e a locução adjetiva “de
ouro”:
“A sala do trono, onde Hans, Crescência e a
Degredada esperavam a chegada de D. Afonso, era
ampla como a nave de uma igreja e, na verdade,
lembrava mesmo uma igreja, com exceção da
presença, no estrado onde ficaria o altar-mor, sob um
baldaquim vermelho com franjas douradas, de um
monumental sólio de jacarandá esculpido e debruado
a veludo, com almofadas púrpuras de bordas e fio de
outro cobrindo-lhe o assento, o encosto e os braços.
Encharoladas nas paredes laterais grandes imagens
de santos e estátuas de heróis do reino do Congo.”
(FIP, p.123)
O séqüito real também tem seus requintes, mas a presença sutil de um adjetivo
de sentido depreciativo usado pelo escritor estabelece a distância social entre a realeza
e seus cavaleiros, em contraste com o modalizador “vistosamente”:
“[...] logo um grupo de cavaleiros vistosamente
trajados à moda antiga, com camisas rocadas
[surradas] e calções justos, meias, botinas, esporas,
trotou terreno abaixo
.” (FIP, p.120)
No quilombo, o emprego de formas latinas também é símbolo de grandeza e
poder. Por isso o rei quilombola exigiu que a carruagem real trouxesse no frontispício
palavras de vitória. Viessem lá os seus latins de padre e arranjassem umas palavras
para pintar na testa da carruagem (FIP, p.117). O escritor não se faz de rogado, e pinta
com tinta escarlate na testa da carruagem a expressão latina, muito oportuna para a
ocasião, Vae victis – Ai dos vencidos - numa alusão ao rei dos gauleses, Breno, que
atacou Roma em 390 a.C, assim como mani banto, naquela ocasião, subjugava o filho
de Capitão Cavalo e seus acompanhantes.
Vários empréstimos enriquecem o texto e evocam a influência da cultura
francesa nos costumes do quilombo, deixando transparecer um certo bom gosto e
116
elegância tão próprios dos franceses tais como “libré”, “peruca”, estes ligados à maneira
de vestir; ”falbalás”, “festão” ligados a vestimenta e decoração , “broquéis” e “brasão”,
termos de heráldica; “carruagem” e “liteira”, meios de transporte; “quartaus”, animais de
pouca estatura (a sonoridade da palavra pode sugerir sentido diverso para quem não
conhece o significado); “escarlate”, “arauto”.
A palavra “escarpins”, de origem francesa, faz referência a um tipo de sapato
de sola fina, Os manuais de estilística apontam o emprego de termos estrangeiros
como uma estratégia para dar à fala ou ao texto um toque de exotismo, quando
contribui para dar autenticidade à referência a outras terras e outras gentes, segundo
Martins (1989, p.81). O trecho a seguir apresenta alguns dos francesismos apontados:
“De fato, alguns minutos depois, um reposteiro
mulato, vestido de libré branca, afastou e apresilhou
os falbalás da cortina que ocultava a encoberta de
onde emergiria D. Afonso Jorge e, do lado direito,
irrompeu um arauto também mulato, de peruca
branca e chapéu armado, que deu três vezes no piso
com a ponta de um bastão emplumado e anunciou o
ingresso de Sua Majestade, que envergava trajes
distintos dos que usara no triunfo _ manto purpurado
com festões de guirlandas, cetro, bragas
acolchoadas, meias brancas e escarpins de veludo
azul e salto alto _ e andava com o peito enfunado,
em passadas largas e cadenciadas. Parou junto ao
arauto, retribuiu as saudações com um aceno ríspido
e tornou a caminhar, desta feita para postar-se ao
trono, no qual, no entanto, não se sentou.”
(FIP,
p.125)
Saber se há ou não preocupação do escritor com as eleições que faz quanto aos
artifícios estilísticos que emprega é um questionamento freqüente entre os estudiosos
do estilo. Com relação a essa dúvida diz Ullmann (1973:159-160) que sin duda, esta es
una limitación inherente al objeto de la estilística, y no es menester exagerar su
gravedad, porque, después de todo, el valor artístico de las invenciones estilísticas no
depende em absoluto de que el autor se apiercibiera perfectamente de la elección que
117
estava haciendo
21
. Assim fica a dúvida se o adjetivo “purpurado” foi empregado
simplesmente como mais um atributo de cor ou se houve a intenção de acrescentar ao
rei do quilombo mais poder, uma vez que a palavra da qual deriva o adjetivo tem como
definição no DH tecido vermelho, tingido com essa substância [Era muito valorizado na
Antiguidade e na Idade Média, dava status e era símbolo do poder real e eclesiástico.]
Mas, no momento em que o rei do quilombo se encontra com a comitiva
enviada por Capitão Cavalo a fim de negociar a libertação do filho, Iô Pepeu, a fala da
régia figura se faz ouvir em discurso direto, com toda pompa e circunstância, já antes
anunciada pela voz do narrador que, com um discurso do mesmo quilate descrevera a
chegada do rei à sala do trono:
_Que maus sucessos assolam o grande Capitão
Cavalo? Perguntou, sem dirigir-se a alguém em
particular _Que se passa com o grande Capitão
Cavalo, terá perdido seus afamados haveres e sua
opulentíssima fazenda? Ou a vida rude que leva o
conduziu a esquecer as regras do bom trato e do
respeito, pois que não vejo nenhum entre vós a
trazer-nos uma prenda? Ou lhe sucedeu tanto uma
coisa quanto outra? E por que nos remete tão
extravagante enviatura? Um homem branco, que já
nos disseram que fala arrevesadamente e vive entre
selvagens, uma mulher branca que segundo todos
se aplica em bruxarias e feitiços e, em sítio cristão,
devia ser queimada na fogueira e, se vivesse aqui,
expiaria suas malfeitorias indo tostada na grelha
velha de São Lourenço, destinada aos condenados
às penas infernais, e uma mulher que não
conhecemos embora felizmente não tivesse ousado
mandar uma de má raça, como se vê desde já que
essa não é, pelos seus traços nobres de congolense.
Custa-nos perceber em que intentos isso se assenta,
intriga-nos a maquinação que o engendrou, mas já
vos demandamos
.” (FIP, p. 125)
21
O trecho correspondente na tradução é “sem dúvida esta é uma limitação inerente ao objeto da estilística,
e não é mister exagerar sua gravidade , porque, depois de tudo, o valor artístico das invenções estilísticas
não depende em absoluto de que o autor se aperceba da eleição que estava fazendo”. ULLMANN, S.
Lenguaje y estilo. Madri: Aguillar, 1973. p.159-160.
118
Eis um discurso produzido de acordo com uso da língua portuguesa em seu
padrão culto, no qual se registra um vocabulário cuidado, marcado por alguns termos
de emprego especial como “enviatura”, termo da diplomacia; “sucesso”, em sua
primeira acepção (acontecimento); “assolam” (afligem); “opulentíssima” intensificado
pelo sufixo superlativo; “prenda” (presente); “expiaria” (pagaria a culpa); );”intentos”
(objetivos), “maquinação” (conspiração).
Dominar diferentes maneiras de dizer é uma característica do falante culto.Tal
qual Moniz Andrade, D. Afonso Jorge II demonstra sensibilidade literária quando, tendo
seu devaneio invadido pelo narrador, este descreve a congolense de “traços nobres”,
hiperbolizando as qualidades de Crescência que tanto o impressionaram, pelo emprego
de modalizadores e intensificadores:
“ Sim, airosa _ e de repente deu um passo à frente,
juntou as mãos e fechou os olhos num devaneio
inesperado _, com ancas de redondeza tão sedutora,
seios tão graciosamente torneados, pele tão
veludínea, lábios tão mimosamente carnudos, dentes
alvos, tornozelos maravilhosamente esculturados,
grandes olhos negros e brilhantes, a inexistência de
qualquer defeito. Sim. Acreditava que sabia, decerto
que sabia por que Capitão Cavalo, cuja astúcia
nunca pusera em dúvida, fizera compor aquela
delegação com a presença dessa extraordinária
mulher.”
(FIP, p.129)
DA CAL (1981, p.105-6) diz que há um certo tipo de palavras que expressam
vozes delicadamente líricas, mais do que vocábulos, trata-se de conceitos ou
sensações, que se manifestam por várias categorias gramaticais, entre as quais
predominam principalmente o adjectivo e o advérbio. De forma recorrente na língua,
os derivados em –udo atribuem pejoratividade aos substantivos. A habilidade do
escritor, ajustada à necessidade estética do trecho narrativo, atenua a idéia de
volume exagerado contida no adjetivo “carnudo” com o emprego do modalizador
“mimosamente” e do substantivo “lábio”, sem que a palavra perca o apelo sensual
que traz ao texto. Assim como “lábios”, há outros termos de uso literário já
consagrado, sendo esse o caso de “seios”, devaneio”, “airosa”, “veludínea”, “alvos”.
119
Durante o levantamento que realizamos em torno do vocabulário afeito à
personagem D. Afonso Jorge II, foram encontradas unidades lexicais que exigiram o
recurso ao dicionário
22
. Na dúvida de ser uma questão de desconhecimento apenas
nosso, submetemos uma relação de palavras, a maioria delas imaginadas por nós
como de baixa freqüência de uso e algumas outras de uso regular, a um grupo de
professores. Foram convidados a participar da pesquisa 12 informantes, todos pós-
graduados (3 mestres em Língua Portuguesa,1 mestre em Comunicação; 5
doutores em Língua Portuguesa e 3 doutores em Literatura Brasileira).
Intencionalmente, os itens não foram contextualizados, pois nosso objetivo era
verificar se tais termos faziam parte do vocabulário ativo dos informantes, uma vez
que todos são leitores contumazes. Foi-lhes proposto apontar se conheciam ou não
as palavras. Eis o resultado obtido:
Tabela 1: Palavras com 100% de desconhecimento
palavra Significado dicionarizado
Amolente-se Que se enterneça, enfraqueça
retrizes penas grandes que formam uma cauda
enviatura ato de mandar alguém em missão especial
tarampantão onomatopéia; som do tambor
hacanéias cavalo manso, de porte médio
carguejar carregar fardos; guiar animais de carga
seresma mulher muito feia; bruxa
canhembora mesmo que quilombola ( origem tupi)
buraçanga cacete com que se bate a roupa
Tabela 2 :palavras desconhecidas com percentual entre 99% e 80%
palavra significado
tutear tratar por tu
22
O recurso ao dicionário ocorreu durante todo o trabalho , porém nesta parte a incidência de palavras de
significado desconhecido foi maior. Daí a escolha do material léxico para elaboração do inquérito, cujo exemplar
se encontra anexado (p179-180)
120
chavo moeda de pouco valor
ensancha sobra de tecido
falbalá babado ;tira de pano franzida
cotica listra estreita e diagonal do escudo
encharolado posto em charola ou padiola
baldaquim dossel; cobertura de tecido
casula vestimenta religiosa; paramento eclesiástico
fachuda que tem bela figura
telhudo tonto; maníaco
louçainha traje de gala; o que enfeita, adorna
arroteador animal usado para limpar terreno para plantação
nefária nefanda;execrável; abominável
pembeiro traficante de escravos do interior para a costa
arraçado
resultado do cruzamento de duas raças; que não
apresenta qualidades morais devido à natureza de um
dos pais
Tabela 3: Palavras desconhecidas com percentual entre 79% e 60%
palavra significado
presuntivo presumível; provável
tarouco idiota; demente
empalar espetar pelo ânus uma estaca
camarista camareiro sem intimidade com o soberano
ajoujado amarrado com cordas como animais
ferulada pancada com férula, palmatória
A palavra “pembeiro” não é dicionarizada. O significado foi-nos apresentado
por meio de metalinguagem explicitada pelo próprio escritor na narrativa.
“Buraçanga” e “canhembora” são tupinismos; ”enviatura” faz parte da terminologia
diplomática. “casula” pertence ao repertório da liturgia; “baldaquim” é terminologia
da arquitetura: “retriz” é termo de zoologia; “tarampantão” é uma formação
121
onomatopaica; ferulada” é forma neológica criada pelo processo de sufixação. As
demais palavras não apresentam rubrica especial nos dicionários consultados.
Não ignoramos que, se muitas das palavras apontadas nas tabelas como
total ou parcialmente desconhecidas estivessem contextualizadas, os informantes
teriam chegado ao significado adequado ou, pelo menos, próximo daquele
empregado no texto pelo escritor. Mas, de qualquer maneira, podemos afirmar que
esses itens lexicais não fazem parte do vocabulário ativo deles. Estão guardados,
porém, no “tesouro vocabular” do romancista, como disse Haroldo de Campos. Ao
empregá-los, João Ubaldo Ribeiro coloca-os no lugar ideal para preservar a tradição
vocabular da língua portuguesa: o texto literário.
O fato de termos trazido a esta parte da pesquisa o mestre- escola, o mestre-
de-campo, Monsenhor Gabriel, Capitão Cavalo e D. Afonso Jorge II não significa
dizer que outras personagens como Hans Flussufer, ou Ana Carocha, a Degredada,
não demonstrem em suas falas o uso culto da língua. Apenas estabelecemos como
critério de escolha o fato de serem aquelas alvos da pena do escritor para exercer
sua análise crítica sobre as elites dominantes, das quais Capitão Cavalo se
apresenta como ponto de equilíbrio. Também não significa que não poderão ser
convidadas a participar quando abordarmos outros tipos de registro. As situações
de uso chancelarão o convite.
122
6. A TRANSGRESSÃO VOCABULAR E O JOGO DOS SENTIDOS
No Dicionário Houaiss, “transgredir” apresenta uma acepção positiva ir além
de; atravessar e outra negativa não cumprir, não observar (ordem, lei, regulamento
etc.); infringir, violar. A forma derivada “transgressão”, portanto, poderá significar o
ato de ir além ou inobservância, infração, violação, dependendo do contexto em que
seja empregada.
Consideramos nesta pesquisa como elementos do vocabulário transgressor
os neologismos criados por João Ubaldo, o vocabulário popular, mais
especificamente as palavras obscenas e injuriosas e os arcaísmos.
Os neologismos são transgressores por não pertencerem ao vocabulário
comum dos falantes da língua, visto resultarem da competência do escritor em criar
unidades lexicais novas para satisfazer necessidades de expressão; os termos
obscenos e injuriosos, pelo seu emprego bloqueado em determinadas situações de
interação verbal e o pouco prestígio social que carregam; os arcaísmos, sendo
formas em desuso, por terem também seu emprego restrito a alguma situação
discursiva especial. Comecemos pelas inovações lexicais.
6.1 De txutxurianas e solta-baixios: a inovação vocabular
123
O léxico de uma língua é a resultante acumulada de fatores sociais, bem
como o meio receptor e criador dos sistemas de denominação terminológica ou não
que, pela freqüência de circulação, perderam, ao longo do tempo, o seu caráter de
novidade. Esse conjunto é a parte mais superficial de uma língua e, como tal, mais
susceptível a influências diversas.
A renovação lexical de uma língua tem como fonte a possibilidade de se
criarem termos novos a partir de algumas situações-base:
a palavra nova surge a fim de denominar um fato novo que precisa de
um signo que o represente no mundo lingüístico, para poder circular nos discursos,
nos enunciados;
a palavra vem de outro sistema lingüístico, traduzida, adaptada ou não;
a palavra resulta de uma associação abstrata ou não de sons da língua;
a palavra surge a partir do aproveitamento de um significante já existente
na língua a que se atribui um novo significado por efeito metafórico, metonímico
etc.
A essa nova unidade lexical criada por uma das possibilidades
apresentadas a partir de um processo racional – a neologia -- chamamos
neologismo. Posteriormente, se aceita e amplamente usada, a nova palavra é
dicionarizada, sendo esse um dos critérios que consagram a lexicalização de uma
palavra, integrando-a definitivamente ao léxico da língua. Pilla chama a atenção
para as conseqüências de atribuir-se exclusividade aos dicionários no trabalho de
institucionalização da palavra nova:
A tradição de que somente o registro em dicionários é confiável e infalível para
dirimir dúvidas pode, de certa forma, afetar nossa consciência, a ponto de não
atribuirmos ao uso, à consciência coletiva da massa falante e à inexorável
necessidade de renovação da língua, o valor e o poder necessários como critérios
para o reconhecimento de um neologismo.
2000, p.16)
124
A competência dos falantes em geral para criar novos itens é resultado da
gramática internalizada de cada um. Esta os dota da capacidade de criação, bem
como a de reconhecer os novos termos, em função da potencialidade virtual e
infinita para a renovação do léxico. Os recursos próprios do falante, ou ainda a
motivação por questões semânticas de caráter extralingüístico que configuram a
lacuna de denominação, permitem afirmar que a formação de novas palavras
resulta da necessidade de nomeação dos novos fatos em uma comunidade para
fins comunicacionais.
É, portanto, no universo do léxico que se formalizam as transformações e
mudanças por que passa o sistema de valores compartilhados por um grupo social.
A escolha das palavras que vão materializar um enunciado não é aleatória.
Selecionar um substantivo mais geral em lugar de um mais restrito, empregar um
verbo ou sua forma nominalizada, a escolha entre uma unidade do léxico já
pertencente ao repertório comum e uma criação lexical que surpreenda pelo seu
caráter insólito, o jogo combinatório nos enunciados, trazem ao enunciado certa
intenção discursiva, ainda que esta seja a de um produtor de enunciados que se
pretenda neutro.
Sobre essa questão, Edith Pimentel Pinto traz à luz as idéias de Mário de
Andrade sobre os neologismos (1990, p.182-8). Para o escritor, há dois grupos de
criação lexical. O primeiro tem como característica a efemeridade da criação, isto é,
os termos são criados em determinado momento, para determinada situação
especificamente, sem valor vocabular registrável para a língua comum e por isso
não devem mesmo ser registrados pelos vocabularistas porque não têm existência
imprescindível. A esse tipo de novidade lexical, Mário de Andrade denominava
palavras transitórias, ou seja, palavras que são importantes para determinado ato
discursivo, mas supérfluas na língua. O outro tipo tratava das novas formações com
chance de se estabilizarem na língua pela necessidade de suprir um vazio
vocabular. Assim, considerava-as imprescindíveis. Edith Pimentel acrescenta ainda
que, para Mário, os neologismos poderiam ser de formação interna, isto é, formados
com elementos da própria língua por mecanismos autóctones ou importados e
125
herdados de outras estruturas lingüísticas. E, a considerar no início do século XX
como português-padrão o falado em Portugal, incluir-se-iam neste último grupo os
brasileirismos e os regionalismos.
Michel Rifaterre (1989, p.53) distingue o neologismo literário do neologismo de
língua. Este surge da necessidade de designar uma nova realidade e resulta da
relação entre a coisa e a palavra, e seu emprego depende de fatores
extralingüísticos. O neologismo literário, por sua vez é sempre captado como uma
anomalia e utilizado em função dessa anomalia, às vezes até independentemente
de seu sentido. Seu emprego e seus efeitos de sentido dependem de relações que
se localizam inteiramente na linguagem. Assim restrito ao universo literário criado
pelo escritor, dificilmente conseguirá escapar do âmbito da palavra escrita e entrar
em circulação atingindo o uso coletivo.
Barbosa reforça a idéia a respeito dos neologismos literários:
Os neologismos estão sempre ligados a uma situação específica de enunciação
em que cada ato discursivo instaura um designatum do signo. O ´referente` é
estabelecido em função do contexto lingüístico e extralingüístrico em que é
atualizado. A pluri-referencialidade é qualidade inerente do signo do discurso
literário.
(1998, p.46-7)
Por depender do “aqui e agora” do momento da criação literária, a busca de
expressividade pelo escritor pode fazê-lo lançar mão de qualquer processo de
criação neológica, não sendo possível estabelecer-se sob esse aspecto uma norma
discursiva para o texto literário onde são encontradas as novas palavras.
A nosso ver, a criatividade de Ubaldo se apresenta muito mais no emprego
de formas do léxico real menos conhecidas, menos desgastadas pelo uso, que
propriamente por criações neológicas surpreendentes que marquem seu estilo.
Mesmo assim, são encontrados vários neologismos disseminados pelas páginas do
romance, todos tendo comprometimento com a expressividade do texto no qual são
empregados.
126
As formações neológicas distribuem-se em neologismos formais ou
vocabulares e neologismos semânticos. Entenda-se neologismo vocabular ou
formal aquele em que se verifica a presença de significantes novos. As novas
palavras pertencentes a esse grupo são consideradas como “verdadeiros
neologismos, tais como os que relacionamos a seguir, encontrados no corpus, cujos
significados foram construídos a partir dos contextos onde aparecem:
“Comprende coisa aqui, disse Balduíno, zerva forte,
muito forte, zerva do mato boa. Pega isso, índio
pega: txutxuriana, dois mói; casca do pê-roxo, duas
lasca; capibaléu, duas raiz grossa; um cunhão de
jacaré-curuá; caroço de curuiri, duas mão; ponta de
rabo de jararacuçu; cardo de ceranambi apurado até
não poder, três mais um dedo de caneca.
(FIP, p.31)
“_ Índio ajeita, certo, certo,certo! Precisa de um
pouco, um pouco-pouco de ajuda mas faz tudo na
luna preta, sem luz de luna, escondida, né? AH!,
piriripatatá, índio sabe, saracondida, é?”
(FIP, p.164)
“Daí a pouquinho o fulano começa a sentir uma
quenturinha nos baixios, quenturinha essa que vira
um calorão, calorão esse que levanta o mucurango
que chega a parecer que ele vai estourar
. (FIP, p. 31)
neologismo significado
capibaléu nome de uma planta
mucurango pênis
carotonha cara feia
ceranambi nome de planta
garguelar segurar pela goela
txutxuriana espécie de erva
saracondida escondida
23
23
Este é um caso em que a criação neológica tem seu sentido suposto por semelhança com a palavra “escondida”
que a antecede no mesmo enunciado .
127
São vários os processos neológicos ativados na formação dos
neologismos vocabulares e semânticos.
O neologismo fonológico resulta da criação de uma unidade lexical cujo
significante é completamente inédito, isto é, sem aproveitamento de qualquer
palavra já existente na língua. Barbosa (1996, p.176) argumenta que esse é um
processo de baixa freqüência, pois muito dificilmente se cria um signo lingüístico,
signo de “alguma coisa”, que se não apóie em outro elemento mórfico já existente
na língua, ou, então, que nela tenha entrado por empréstimo, mas que algumas
vezes acontece no discurso literário. A criação de um neologismo fonológico deve
estar muito bem circunscrita no enunciado onde é empregado o novo termo para
evitar problemas de decodificação por parte do leitor.
Registramos um neologismo fonológico e ao mesmo tempo formal na
palavra criada pelo escritor para nomear uma das ervas empregadas na tisana
milagrosa preparada pelo índio Balduíno: txutxuriana. Consideramos neologismo
fonológico por não haver no sistema da língua portuguesa o encontro /tx/ e formal
no todo da palavra.
Oriunda do grego, a palavra onomatopéia significa “criação de palavras” e
representa o modelo de signo transparente motivado pelo som. Esse grupo de
palavras, do ponto de vista semântico, atende a dois tipos de motivação. O primeiro
deles corresponde à imitação do som pelo som. Segundo Barbosa (1996, p.176), o
ponto de partida é extralingüístico, e configura-se pela seqüência inédita da relação
do ponto de vista significado / significante, sendo uma tentativa de reprodução, ou
antes, de imitação lingüística da coisa significada pelo significante que lhe serve de
suporte formal, tendendo à denotação. Daí resultam, às vezes, formações ex-nihilo
que criam novos signos sem recorrer a bases lexêmicas ou morfemas gramaticais
já existentes na língua, cuidando apenas da adaptação aos elementos fonológicos
do sistema lingüístico.
Para Ullmann (1964, p.175), nesse caso, o som é verdadeiramente um 'eco do
sentido': o próprio referente é uma experiência acústica, mais ou menos
rigorosamente imitada pela estrutura fonética da palavra, como ocorre em
128
“_ [...] Afereventa, afereventa, deixa sereno três dias, bebe
xuque-xuque-xuque”.
(FIP, p.31)
“_ [...]golezinho só, bochechadim, possassê, gute-gute-
gute, trelelê, tralalá, óia o vergaio subindo nas artura[...]”
(FIP, p.84)
Nos dois excertos a seguir, as onomatopéias não estão ali para representar
sons. Interpretamos como um signo criado para substituir um gesto de afirmação
para inspirar confiança aos companheiros envolvidos no resgate de Crescência:
“_ Índio dá jeito em tudo, índio dá jeito{...] índio já mostrou
que arresorve tudo, pipiripapá-pipiripapá, pode deixar.”
(
FIP, p.162)
“_ Índio ajeita, certo, certo,certo! Precisa de um pouco, um
pouco-pouco de ajuda mas faz tudo na luna preta, sem luz
de luna, escondida, né? AH!, piriripatatá, índio sabe,
saracondida, é?”
(FIP, p.164)
Em trecho já reproduzido no primeiro capítulo desta tese, João Ubaldo
emprega outra onomatopéia para referenciar o ruído provocado pelo ato de beber:
tuque-tuque-tuque-tuque (FIP,p.36). Para comer e matar a dentada “arrum-
arrum”, “creque-creque”, “ramo-ramo”. Nos exemplos recentes, as onomatopéias
parecem reforçar semanticamente as idéias contidas nos verbos colocados nos
enunciados: “beber”, “resolver” e ainda a idéia de esperteza que se depreende do
verbo “saber”.
Quanto à materialidade do significante, as formações que aparecem
respeitam a tradição da língua, uma vez que são constituídas por combinações dos
fonemas que fazem parte do sistema fonológico do português, respeitados,
rigorosamente, os padrões silábicos. Já no exemplo a seguir ocorre a transgressão
desses padrões, não necessariamente quanto à representação pelos fonemas da
língua, mas quanto à estrutura silábica. A única formação onomatopaica que
transgride o sistema silábico da língua é “pssst-pssst” em:
129
“_ [...] muringa só um piricunchinho _pssst-pssst! _ já basta.” (FIP, p.65)
As formações onomatopaicas, à maneira dos neologismos, tendem a ser
obliteradas, cessado o motivo, a necessidade expressiva e individual de um
determinado momento, e seu caráter espontâneo condiz com o coloquialismo
presente na fala de Balduíno, permitindo, no mais das vezes, a associação imediata
com o ruído que pretende realçar para efeito de expressividade no texto. No trecho
a seguir, há a preferência por fonemas vibrantes ou plosivos para dar a idéia de
som forte, pancadas, em consonância com o verbo “invadir”:
_ [...] eles já tá morrendo de medo, quanto mais na hora que índio _
ratataratá, perequetabum! _ invade o quilombo.
(FIP, p.164)
Pela efemeridade das onomatopéias criadas, não as situamos no dialeto
social culto, lugar da memória lingüística. Preferimos deixá-las no universo do
vocabulário comum ou no popular, consideradas as condições de produção do
discurso informal.
O neologismo sintagmático é a unidade lexical resultante da combinatória de
elementos já existentes na língua. Deste grupo fazem parte as formações por
derivação e composição, processos mais produtivos na língua portuguesa em se
tratando da criação de neologismos. Incluem-se nas criações por neologia sintática:
a derivação prefixal e sufixal; as formadas por conversão; as composições
subordinativas e coordenativas; composição a partir de bases não-autônomas;
composição sintagmática. De todos esse processos, o mais praticado por João
Ubaldo é a derivação sufixal como ocorre nos exemplos a seguir.
“Joga feitiço da Degueredada, faz desgraça, vai secar
tu e tua parentage, tua mãe, teu pai, teus com quem
vive, teus de sangue tudo!”
(FIP, p. 36)
“Que as dama se queixa de ver índio nu e as filha e
familha também, que índio bebe cachaça e faz
disturbação
[...].” (FIP, p. 38)
130
“[...] Todas gente que querer bebe cachaça, festa
grande, muita disturbança, muita alegria.”
(FIP, p.194)
Os dois últimos neologismos conservam os semas contidos em “distúrbio”,
mas os contextos em que aparecem estabelecem diferentes sentidos para cada um
dos signos. No primeiro caso, a presença do verbo “queixar-se” mantém o traço
semântico de desordem. Já no segundo, as expressões “festa grande” e “muita
alegria” alteram-lhe o sentido positivamente, perdendo-se a noção de conflito para
“festejo”, “comemoração”. As formas “desturbação” e “disturbança” parecem
transgredir o modelo de formação de substantivos abstratos a partir da base
verbal+sufixo (–ção), (-ança), (-ância). A considerar como base o substantivo
“distúrbio”, seria confirmada a trangressão, mas existe dicionarizada a forma verbal
“desturbar”, que significa causar distúrbio a; perturbar, mantendo as formações
dentro da norma da língua.
Relacionamos mais algumas ocorrências neológicas. Assinalamos (*) os
neologismos derivados de formas verbais dicionarizadas:
neologismo Processo de formação Significado contextual
assivissojoemapense sufixação quem vive na Assinalada
Vila de São João Esmoler
do Mar do Pavão
parentage sufixação parentes, familiares
descompreendido* prefixação quem não compreende
algo
entontecido* sufixação tonto;atordoado
quilombeiro sufixação aquele que vive no no
quilombo;quilombola
reimadores* sufixação que gera mau humor
entibiados* sufixação enfraquecido
abestalhadores* sufixação torna idiota
encortinadas* sufixação com cortinas
chibateados* sufixação chicoteados
131
entremeantes* sufixação que intercepta, fica no meio
encharoladas* sufixação colocadas em charola,
andor
inarrolável prefixação não relacionado
sobre-horrendo prefixação muito mais que horrendo
semi-sorriso prefixação sorriso disfarçado
semi-funéreo prefixação quase fúnebre
descarreirador* sufixação que tira do caminho
ensecado* sufixação encalhado
despachamento* sufixação ato de despachar
mulatada sufixação grupo de mulatos
vitoriadas* sufixação comemoradas
abordunado parassíntese com bordunas
solta-baixios composição purgante
sota-cocheiro composição segundo cocheiro
pouco-pouco composição pouquíssimo
auto-xingamento composição xingar a si mesmo
Encontramos o adjetivo “canhoado” na seguinte passagem:
“(D. Afonso Jorge). Este, depois de quase ter sido
apedrejado, enforcado, esquartejado, esfaqueado,
flechado, fuzilado, canhoado, incinerado vivo,
afogado, atirado de despenhadeiros ou dado de comer
aos jacarés, havia simplesmente sido banido.”
(FIP, p.
320)
Todas as formas nominais derivam de bases verbais dicionarizadas, à
exceção de “canhoado” que vem de uma base virtual “canhoar” para que seja
considerado um neologismo de acordo cm a norma da língua.. Pelo contexto,
“canhoado” assume por “contaminação semântica” o significado “atingido por bala
de canhão”. Para o sentido “dar tiro de”, existem as formas verbais dicionarizadas
“acanhonear” e “canhonear”.
132
Alves (1994, p.56) inclui no grupo dos neologismos sintagmáticos as
composições por sigla ou acronímia.
Os neologismos semânticos ou conceituais apropriam-se de significantes já
existentes e, por efeito de figuração de sentido, atribuem-lhes novos traços de
significado, mais um conteúdo. São recorrentes nesse grupo os processos
metonímicos e metafóricos, dentre outros.
Para Guilbert
24
apud Valente (2005, p.131), há três formas de neologia
semântica:
linguagem figurada, que se situa no campo da retórica.
“[...]golezinho só, bochechadim, possassê, gute-gute-
gute, trelelê, tralalá, óia o vergaio subino nas artura,
que não tem nada que baixe.”
(FIP, p. 84)
“_ [...] Daí a pouquinho o fulano começa a sentir uma
quenturinha nos baixios [...]. “
(FIP, p.31)
“[...] Toda gente tem ou cachaça feia ou boa
cachaça[...]. Dentro dessa cachaças há a chorosa, a
confessional, a dançarina, a amante, a querelosa, a
porradeira e as inteiramente fora de si.”
(FIP, p.43)
Mais uma vez o contexto auxilia na apreensão dos significados dos
neologismos. Os efeitos causados pela cachaça dão nomes à bebida, num
processo claro de metonímia na relação causa /efeito. “Vergalho” ou “vergaio”
adquire sentido hiperbólico, pois equipara o órgão genital masculino ereto por efeito
da tisana ao do cavalo ou do boi, depois de cortado e seco, quando enrijece de tal
forma que é usado como chicote. Aqui o novo sentido é construído por relação
metafórica., assim como “baixios”
neologia por conversão, que ocorre a partir de qualquer mudança na
categoria gramatical do item lexical.
24
GUILBERT, ML. La créatividade lexicale. Paris, Larousse, 1975
133
neologia sociológica, quando um termo de uma língua de especialidade
transpõe as barreiras de uso exclusivo e passa a circular como termo do
vocabulário comum.
Foram localizados em nossa pesquisa vários termos de especialidade
(litúrgicos, jurídicos, de marinharia) e, até onde pudemos verificar, Ubaldo mantém o
traço de termo de especialidade no uso contextualizado que faz dessas palavras.
O critério de distribuição de Guilbert entra em conflito com o de Ieda Maria
Alves (1994, p.61) quando propõe o fenômeno da conversão como sendo semântico.
Alves enquadra a conversão em processo distinto do semântico e faz referência a
ele como derivação imprópria, ressalvando que o contexto em que se insere a
unidade léxica é que nos permite observar o fenômeno da conversão.
Considerados à parte como processos empregados para criação de novos
itens lexicais, apresentam-se os tipos especiais como a truncação, a reduplicação e
a derivação regressiva.
A reduplicação consiste em repetir duas ou mais vezes uma determinada
base que tem vida independente em enunciados da língua, provocando realce
semântico para o sentido da base reduplicada como ocorre em “pouco-pouco”, ou
uma determinada sílaba ou palavra não significativa individualmente nas quais
predomina muito mais o efeito onomatopaico, como pode ser visto nos exemplos
arrolados quando tratamos especificamente das onomatopéias.
A derivação regressiva pode gerar neologismos pela supressão de um dos
elementos de caráter sufixal. Segundo Alves
(1994, p.71), em português, grande
parte dos casos de derivação regressiva é constituída pelos substantivos deverbais,
resultantes da substantivação de suas respectivas formas verbais pelo acréscimo
das desinências nominais –a, -e, -o ao radical do verbo
25
À primeira vista, os textos ubaldianos dão a impressão de que neles existe
um número bastante significativo de criações neológicas. Esta impressão se desfaz
25
Os processos neológicos como truncação ou cruzamento vocabular e neologia alogenética não foram aqui citados por não
termos encontrado nenhuma ocorrência no texto.
134
quando vamos ao dicionário e lá encontramos a maioria delas dicionarizada. São
palavras pertencentes ao léxico geral da língua, acumuladas ao longo de sua
história, que, de alguma forma, pertencem ao repertório do autor e por ele são
empregadas criteriosamente em seus escritos.
Quanto aos neologismos encontrados, predominam aqueles formados pelo
processo de derivação sufixal, respeitando as matrizes morfológicas da língua. As
onomatopéias, em sua maioria, respeitam a estruturação silábica do português. As
novas unidades lexicais não registradas nos dicionários podem ser reconhecidas e
decodificadas com certa facilidade, pois o leitor tem a possibilidade de identificar
nelas, de imediato, os modelos que as originam, além de terem no enunciado
artisticamente elaborado o suporte para apreensão do significado.
6.2 Empalar ou... $%!#*+ % : as palavras obscenas
Não se deve rir da desgraça alheia, nem
fazer pouco dos desventurados, até porque
aquilo que a um vitima sói muitas vezes
sobrevir a outro, não raro piormente. Sabe
toda a consciência cristã que bem pouco
caridosa é a ausência de compaixão e carece
de desculpas aquele que vê mofa no
sofrimento do próximo.
(FIP, p.241)
Dino Preti, em seu artigo Variação lexical e prestígio social das palavras
(2003, p.56), aborda o fato de existir hoje uma aceitabilidade maior quanto à presença
de gíria e de palavras obscenas nos textos escritos da mídia e na literatura,
atribuindo tal fato a mudanças de comportamento social, pois dentro dos padrões
mais liberais da vida moderna, esses vocábulos acabam adquirindo um valor
catártico para aliviar a tensão social, marcar a luta de classes, extrapolando das
chamadas ´classes baixas´(entenda-se economicamente inferiores) para outras
classes.
135
A análise do lingüista sobre o assunto nos levaria a concluir que os
palavrões, assim como as gírias, deveriam estar incluídos no vocabulário comum.
No entanto, gíria e palavrão constituem um repertório com menos prestígio social,
ou pelo menos, não há expectativa de encontrá-los no meio de um discurso que não
seja considerado informal, distenso. Isto, de certa maneira, restringe a presença
dessas formas ao vocabulário popular. Deduz-se que, em relação ao uso de
palavras obscenas ou de baixo calão, deve-se levar em conta a expectativa do
interlocutor e a situação discursiva em que são empregadas.
Afrânio Coutinho (1979, p.28) defende o uso dos chamados palavrões em
textos literários:
Por que a juventude de hoje foi aberta a todos os segredos do palavreado de calão
ou gíria e não pode lê-lo num livro? Não Vai nisso uma grande dose de hipocrisia
ou puritanismo de epiderme?
[...]
Por que essa recusa a registrar em livro as famosas palavras de “quatro letras”
quando elas pertencem à linguagem corrente e todo mundo a enuncia?
(1979, p.28)
Em O feitiço da ilha do Pavão encontramos alguns itens lexicais dessa
natureza, como ocorre na passagem em que o narrador faz a intermediação entre o
pensamento da personagem Capitão Cavalo e o leitor:
“Numa hora como a que estavam vivendo, aqueles
asnos emproados tinham resolvido procurá-lo, para lhe
infernarem a paciência e lhe fazerem propostas
esmioladas [...] Podia dizer-lhes que fossem à merda,
que agora tinha seu filho para preocupar-se, mas
resolveu ser paciente e não tocar nesse assunto”.(
FIP,
p.154)
Pelo discurso indireto, o narrador explicita a tensão da personagem
empregando a expressão “fossem à merda”, pensada e não dita por Capitão
Cavalo, o homem de maior prestígio da ilha, respeitado pelas autoridades
instituídas da Vila de São João Esmoler, para exteriorizar sua impaciência diante de
pessoas pouco agradáveis. A seleção de palavras construtoras dos sintagmas
136
“asnos emproados” e “propostas esmioladas” e o uso da forma verbal “infernarem”
denotam o grau de impaciência e descrédito do Capitão.
Na voz do índio Tantanhengá, este revoltado por saber que seu povo seria
expulso da vila e obrigado a voltar “para os matos”, encontramos outras ocorrências
de palavrão no enunciado:
“_ Cadê tendente? Cadê Dão Filipe de Meulo
Furutado? Cadê condenado pecador, tenente
estrumo? [...} Donde que saiu? Saiu de cu, bosta sem
mistura, bosta pura! Fio arrejeitado de sarigüéia
amolestosa, bixiguento! Cadê tendente? Nós mandava
antes de branco parecer! Vão-te à merda do caraio da
postema da barbaridade!Dismigaia moleira, come
nariz, chupa olho, capa zovo, enfia porrete no rabo
[...]” (
FIP, p. 36)
Há neste excerto palavras já cristalizadas pelo uso como palavrão: “cu”,
“merda(na expressão “Vão-te à merda), “caraio”, “zovo”, palavra do vocabulário
comum com sentido metafórico. Mas existem outras também de baixo prestígio pelo
referente que simbolizam: “bosta”, “rabo”, “postema” (lembrando pus, secreção),
“bixiguento” (remetendo à doença bexiga ou varíola). No momento em que o índio
fala, não há intenção de monitorar o discurso como acontece no trecho anterior. As
palavras empregadas são efetivamente formas de exteriorização psíquica ou
exercício da função emotiva da linguagem. Chama atenção neste caso a seqüência
de palavras “Vão-te à merda do caraio da postema da barbaridade!” que constrói,
de fato, um palavrão no seu sentido literal. Embora os termos sucedam-se sem
necessariamente haver uma ligação sintática entre eles, a seqüência materializa a
explosão emotiva da personagem.
As palavras de baixo calão estão nos vários discursos, sendo que a primeira
análise leva em conta a expectativa dos interlocutores. Embora o palavrão seja
pensado, não é dito, e apenas Capitão Cavalo, o narrador e o leitor sabem da
intenção do dizer. E o escritor, naturalmente. Na segunda, como a personagem não
tem compromisso com a censura, com os preceitos morais da comunidade, e essa
137
é uma das razões por que ela e seus irmãos de sangue estão sendo expulsos da
vila, os termos aparecem explícitos no enunciado, ainda que a carga ofensiva que
contêm seja diluída por uma farta dose de humor que caracteriza a exacerbação do
índio.
Borges Lustosa, outra personagem eminente também apresenta termos
injuriosos e blasfemadores em sua fala. Em seqüência caótica de termos, o Lobo de
São João exterioriza sua ira contra o índio, empregando “postema”, que também
aparece na fala de Balduíno, ao lado de “abantesma”, “aldrabão”, regionalismo de
Portugal, efetivamente, duas palavras com baixa freqüência de uso:
“_ Em guarda, vilão, biltre, postema, aldrabão,
abantesma, verme pestilento, filho do demônio,
encarnação de Judas, porteiro do inferno, praga do
gênero humano, desta feita podes dizer adeus a tudo e
todos, podes despedir-te de tua vida ascorosa.”
(FIP, p.
158)
Novamente a escolha do escritor tende para a forma menos comum ao decidir-
se entre o emprego de “asquerosa” e “ascorosa”, ambas dicionarizadas. Segundo DH,
esta palavra tem sua origem no grego e chegou ao português pelo latim, sendo a
primeira uma forma dissimilada da segunda.
A linguagem usada pelo mestre-de-campo vai ser motivo de crítica severa de
Capitão Cavalo quanto à inadequação à situação:
“_Senhor mestre-de-campo, lembre-se o mestre-de-
campo que está em minha casa e, em casa como a
minha, não se sacam espadas, nem se usa tal
linguagem, muito menos à mesa
.” (FIP, p.159)
Outras transgressões vocabulares do mestre-de-campo:
“[...]Mas a contingências fisiológicas insopitáveis, pois
as novas cólicas o assaltavam a cada instante, de
forma que chegava à porta de saída e era obrigado a
voltar desabaladamente, seguido pelo ajudante, que
tentou antecipar-se na ocupação do penicão, mas foi
energicamente rechaçado.
138
_ Este penico é meu! Vai cagar na puta que te pariu!”
(FIP, p.77)
“_ Maldito, patife, velhaco, ordinário, maldito entre os
malditos, filho de uma puta!”(
FIP, p.251)
“_ Ordens, meu Comandante! _ disse o padre, com as
pernas juntas e o corpo retesado.
_Levanta este cu! À traseira! _ ordenou o mestre-de-
campo e, imediatamente após, num só movimento ágil,
o padre ficou de quatro, para ser quase de pronto
penetrado com energia pelo mestre que levou mais
tempo do que Balduíno esperava e continuou a dar
ordens, como se estivesse à frente de uma batalha.”
(FIP, p.259)
Encontramos em Lima (1996) uma análise da expressão “puta que te pariu”.
Partindo da evolução semântica do vocábulo “puta”, chega-se à expressão.
O deslizamento da significação, que transformou a palavra em palavrão, muito se
abrandou com a deformação fonética sofrida, permanecendo, no vocábulo
pronunciado com a intervocálica dental pura. Sua carga pejorativa, ou seja o
palavrão, já não está presente em certas situações e contextos, quando sua
inclusão no fluxo sintático confere apenas um valor conotativo de grandeza maior e
máxima, uma espécie de superlativo. Como nestes exemplos: “assisti a uma puta
briga”, “fiquei puto de raiva”.
Aliás, há uma certa constância no valor interjectivo da palavra quando esta se
incorpora a uma frase feita; assim, “puta que te pariu” é uma grande ofensa; mas
se lhe retirarmos o direcionamento ao falante, o que restar, ou seja “puta que
pariu!” acompanhada da entoação adequada, não passa de uma exclamação de
grande espanto”.
(1996, p.16)
Quanto ao uso interjectivo ofensivo ou não ofensivo, podemos concordar,
mas isso não significa que tal ou tais expressões percam o seu caráter chulo e não
tenham seu emprego monitorado pelas circunstâncias de maior ou menor
formalidade que circundem o ato discursivo.
Nos dois primeiros excertos, o tabuísmo é, de fato, a exteriorização de um
estado emocional que contrasta com a formalidade das palavras presentes no
segmento “contingências fisiológicas insopitáveis”, insistentes em preservar a face
da autoridade, o que não se sustenta por muito tempo diante da inexorável
situação. No último, no entanto, o termo é empregado num discurso envolto em
139
atmosfera de erotismo concretizada pela expressão “ficar de quatro” e “ser
penetrado”.
Eremitoso Rodão é um embusteiro que vive perto da furna da Degredada.
Vez ou outra incorpora o espírito de Joana Leixona, mulher de enormes pecados
em outra vida:
“Tinha sido puta de alto bordo no Porto e na grande
cidade da Leixônia, puta lena, alcoviteira de primeira,
dona de casa de puta, corretora de escravos,
desencaminhadora de donzelas, esposas e maridos.
[...]
(FIP, p.71)
Em DH, “lena” e “alcoviteira” significam dona de prostíbulo, caftina,
significado já clarificado no texto pela expressão “dona de casa de puta”. Já vimos
em outras análises o uso da sinonímia como realce expressivo. Em lugar de repetir
o signo, ele explora a repetição do significado, mas empregando outros
significantes. Neste caso, o escritor joga com a série sinonímica para reforçar o
passado promíscuo que tivera Joana antes de se tornar um “espírito” obrigado a
cumprir fadário (destino fixado por um poder sobrenatural e ao qual não se pode
fugir):
“_ Caraclo! _ gritou de repente Eremitoso, rodopiando
e falando numa voz bem mais grossa que a habitual.
_ Carái! Caráiles, poriquê si mi li acordam, si mi li
abusam? Porique si mi li portubas? Non tenes aqueles
que tis ocúpis os rabis sujos, desinfelizes, troços de
carvones? Quales das quales nigrinhis rampeiras
queres mi faláris? [...]”
(FIP, p.71)
A vida pregressa de Joana Leixona justifica o emprego das palavras de
baixo calão. A forma estilizada da fala, porém, serve para quebrar o tom agressivo
ou constrangedor dos tabuísmos e das formas injuriosas com as quais se refere às
negras que esperavam pelo atendimento de Dona Ana Carocha, a feiticeira, que
morava na furna: “rabis sujos”, ”desinfelizes”, “troços de carvone”, “nigrinhis
rampeiras”. Em seguimento a essa fala, pela voz do narrador, outras ofensas são
feitas: “negrinhas brasileiras de merda”, “azêmolas fedidas”, “troços de betume”,
140
“caganitas de breu”. “Caganitas” é um tabuísmo e significa, segundo DH, indivíduo
baixinho, apesar de sugerir outro significado mais depreciativo que esse
apresentado no dicionário.
Também a realeza do quilombo “cai do trono” lingüístico e transgride
quando usa a locução “de merda” para estigmatizar os negros não congolenses:
“Já os cativos se comportavam como libertos, já não
se comprava nem se vendia um áfrico de merda.
(FIP, p.94)
D. Afonso Jorge II exaspera-se ao saber que o avô de Crescência vendera
mãe e filha como escravas e radicaliza ao pensar na punição para tal insulto aos
filhos do Congo. A escolha do verbo “empalar” seria mais econômica, porém
certamente menos expressiva:
“_ Devia ser enforcado! Devia ser sentado nu, na
ponta dos pés, com uma estaca de madeira e ponta
afiada na porta do cu, para que, do cu ao coração,
sentisse trespassá-lo devagar o espeto da traição ao
sangue.”
(FIP, p.126)
O erotismo está presente em muitas passagens da narrativa, ora por meio
de um discurso produzido no nível culto da língua, ora no nível popular. Muito mais
freqüente é o vocabulário comum que se presta à manipulação do escrito para
construir sentidos especiais, contando para isso com a cumplicidade do leitor e a
habilidade do escritor.
Segundo Preti (1983, p.65), em geral pode-se dizer que um dos índices do
vocábulo grosseiro e obsceno é a sua referência a uma vida sexual quase sempre
deformada, que se fundamenta nos comportamentos de exceção, nos vícios e
exageros eróticos.
Assim era a vida de Iô Pepeu com as mulheres da Casa dos
Degraus. No trecho a seguir, o discurso erótico vem marcado pelos verbos
“atochar”, atravessar, “empinar”, “estraçalhar”, “comer”, “olhar”, “enlouquecer” e pelo
emprego figurado dos substantivos “bonifrate” e “gorgomilos”, palavras do
vocabulário comum que, nesse contexto, erotizam a cena:
141
“_ A ela sem pena! _ bradou uma voz de mulher, por trás
do madeirame de uma janela do andar de cima da Casa
dos Degraus.
_ Mais alto! Mais sentimento! Mais sinceridade!
_ Sim! Assim! Vou comer-te toda, desalmada. Ai que te
atocho até os gorgomilos, malvada! Olha-o cá, olha-o
bem! Gostas! Enlouqueces quando o tocas? É o teu
bonifrate querido, todo teu, podes viver sem ele? Vê como
se empina por ti? Que queres que ele faça? A ela sem
pena, a ela sem pena, anda, não esperes que te peça!
_A ela sem pena, sem pena! Sem pena! Martrata!
Estraçaia! A ela sem pena!”
(FIP, p. 19)
Iô Pepeu, com sua fixação sexual por Crescência, é responsável por outras
passagens eróticas. Ainda que não diga as palavras que levam Iô Pepeu ao gozo
final, Crescência aceita ser possuída:
“Nua em pêlo à sua frente, braços pendidos com
naturalidade, um joelho levemente dobrado, uma
perna meio passo à frente da outra, não tinha a
expressão nem um pouco diferente de quando falava
com ele em casa ou lhe trazia um refresco; os lábios
num semi-sorriso amistoso, os olhos suavemente fixos
nele. Ele chegou mais perto para ver e sentir a pele rija
e sem manchas, os poros eriçados pelo friozinho de
junho e ela deixou-se admirar sem se mover. Ele
pediu-lhe que de deitasse, ela se deitou, quase na
mesma posição em que estivera de pé, apenas um
dos joelhos mais dobrados. Ele quis falar, pensou em
como não conseguira convocar palavras para
descrever o que sentia e, tremendo como se estivesse
com calafrios de febre, também tirou a roupa.“ Abre as
pernas”, disse, e ela abriu. Sentindo que, novamente
desta feita mais que nunca ia precisar que a mulher
dissesse aquilo de que tanto dependia, pediu-lhe que o
fizesse, com voz constrita e esganiçada. “Não”,
respondeu ela, falando pela primeira vez naquela
noite. “
(FIP, p.29)
Nesse fragmento, o erotismo se instala também pelo emprego das palavras
do vocabulário comum que, delicadamente arranjadas pelo escritor, estimulam os
142
sentidos da visão e do tato, explode na expressão “abre as pernas” e finaliza na
negativa decepcionante da mulher.
A variação lingüística está presente em outros discursos erotizados
quando, por exemplo, Iô Pepeu vai buscar como parceiras as mulheres da Casa
dos Degraus. Tentando acalmar o furor priápico causado pela tisana que Balduíno
lhe preparara na tentativa de livrá-lo do vício “das palavras”, procura as negras para
aliviar-se:
“Pois então, Foi Santa, foi Nana, foi Vitória, foi Das
Dores, Foi Eulâmpia, Foi Nazinha, foi quem apareceu.
O sucedido se passou como se segue. Diazinho
amanhecendo, levanta-se Iô Pepeu, dá uma mijada no
pé da pimenteira, o mangalho não baixa, vai-se ele à
cozinha, arrasta de lá Vitória, leva-a para dentro, ela já
vozeirando “a ela sem pena” desde o corredor, passa-
lhe a vara da maneira por ela preferida, qual seja, de
quatro com a saia lhe rodeando o pescoço e ele lhe
amassando os peitos[...]
Talvez um banho salgado para espantar a moleza. [...]
sim era bom um banhozinho salgado, espertava até
demais, porque primeiro sentiu uma dormência na
boca e depois um abrasamento intenso nos baixos,
que a água fria não arrefecia. Mais tarde acharia que
ficara meio avariado da idéia, porque, sem ver nem
como, correu de volta à casa dos Degraus rápido
como um cavalo e, sentindo-se tão teso que lhe
doíam os rins, passou a chamar as mulheres uma por
uma. Nas últimas vezes, já não conseguia terminar,
todo esfolado e encharcado de suor. Não, aquilo
podia não querer baixar, mas ele lhe daria um
descanso a si mesmo. Não era possível passar o
tempo todo naquele vuque-vuque “.
(FIP, p.84-5)
Frases feitas, onomatopéias, palavras do vocabulário comum não tornam o
texto menos erótico. Acrescentam-lhe, sim, a dose certa de malícia que a situação
requer, o que não acontece quando Iô Pepeu está com Crescência.
Os desvios sexuais se oferecem como tema do discurso erotizado, diluído
pelo humor malicioso que se apresenta. A desobediência às orientações do índio
quanto ao uso da tisana teve desdobramentos imprevisíveis por Iô Pepeu, mas
sabiamente antecipados pela longa experiência do índio:
143
“[...] Imaginou que, passeando pelo matagal,
conseguiria desviar seus pensamentos para alguma
coisa que não fosse fornicar, mas acabou por fazer o
que Balduíno havia previsto. Viu uma mulazinha
castanha e achou-a irresistível, com seus olhos negros
pestanudos, seu coro macio e luzidio, suas ancas bem
proporcionadas e sua cauda cerdosa e vibrátil, a qual
já acostumada por outros moços, se arredou
nervosamente para um lado, assim que ele subiu num
toco, baixou as calças e começou a penetrá-la. Dessa
vez gozou e derreou sobre os quartos dela. Que
continuou parada, como se compreendesse a
situação.”
( FIP, p.86)
O sexo com animais está registrado em Freyre como prática comum
dos meninos na época do Brasil Colônia:
Tanto o excesso de mimo de mulher na criação dos meninos e até dos mulatinhos,
como o extremo oposto _ a liberdade para os meninos brancos cedo vadiarem
com os moleques safados da bagaceira, deflorarem negrinhas, emprenharem
escravas, abusarem de animais _ constituíram vícios de educação, talvez
inseparáveis do regime de economia escravocrata dentro do qual se formou o
Brasil.
(1987, p.375)
Ainda que tenham sido utilizadas as expressões “baixou as calças”,
“começou a penetrá-la” e “gozou”, palavras pertencentes ao campo léxico-
semântico do erotismo
, o grotesco da cena narrada se perde na sensualidade das
palavras escolhidas por Ubaldo para descrever física e comportamentalmente a
“mulazinha castanha”, dando-lhe um tratamento poético. Os “olhos pretos
pestanudos”, o “couro macio e luzidio”, “ancas bem proporcionadas”, “cauda
cerdosa e vibrátil”, lembram, de certa forma, a descrição de Crescência feita por
mani banto, assim como a docilidade, a obediência ao ceder à volúpia sexual do
filho de Capitão Cavalo. E ambas, irresistíveis para o jovem, não falam as tais
palavras...
O mestre-escola Moniz Andrade não escapa da decadência moral por sua
predileção por meninos e meninas de que era preceptor. Pederastia, pedofilia e
144
sadomasoquismo se apresentam no jogo de palavras “meninos”, “meninas”,
“brincadeira de rua”, “baixar as calças”, “apalpadelas”, “chibateando”,
“vergastassem”, que se misturam ao vocabulário comum costurando o discurso
erotizado:
“[...] Bem verdade que brincadeira de rua não poderia
propriamente jamais vir a ser, porque o mestre-escola
fazia era ir desenvolvendo aos poucos um rol de
pretextos e manobras a fim de que certos alunos e
alunas de que era preceptor particular baixassem as
calças, para serem chibateados levemente por eles,
entre uma apalpadela e outra. Jamais passaram disso,
a não ser que se considere o fato de que, depois de
algum tempo chibateando os alunos, o mestre passava
a pedir retribuição, baixando por seu turno as calças
para que o vergastassem só que, ao contrário do que
fazia, com toda a força que quisessem [...].”
(FIP, p.
232)
As palavras injuriosas, as blasfêmias também se enquadram no conjunto de
vocábulos transgressores, de baixo prestígio social pela carga ofensiva,
deselegante com que normalmente maculam os enunciados onde são empregados,
por serem a materialização de sentimentos inferiores como raiva, inveja,
prepotência, desespero etc.
Com freqüência esse veio semântico é explorado por João Ubaldo pelo uso
de adjetivos em série, o que intensifica o sentimento exteriorizado, principalmente
quando tem a intenção de imprimir sentidos de humor ao texto, chegando às raias
do cômico. O desespero de Iô Pepeo diante do “falo inerte” é anunciado pela série
adjetiva:
“_Desgraçado _ vociferava, entre tabefes, sacudidelas
e esticões. _ Miserável, aí embaixo, dependurado
como um pescoço de galinha morta, miserável,
miserável, mil vezes desgraçado!
Sim, miserável, desgraçado, maldito, traiçoeiro,
aleivoso, covarde, poltrão! Quantas vezes sonhara
com a mão esbelta e grácil de Crescência, apertando-
o como se tivesse sido feita apenas para isso,
enobrecendo-o somente com esse gesto? Ela
atendera ao puxão suave da mão dele e parecia cada
145
vez mais, à vista e aos ouvidos, uma potranca prestes
a ser coberta, a pele comocionada fibrilando, as
narinas abertas, o fôlego apressado, a boca úmida e
lustrosa com os lábios crispados, esperando agora
somente que ele a deitasse, enlaçasse e, em meio a
gemidos, suspiros e arrulhos, irrompesse de vez por
ela adentro, fazendo-a gozar como já quase estava,
somente por estreitar suas coxas arrebatadoras uma
contra a outra. Mas, qual, assim que os dedos
delicados cingiram o que antes se exibia como uma
lança enristada, esta inexoravelmente principiou a
murchar e já transmutara numa pelanca desvalida”
.
(FIP, p. 243)
A exaltação do mérito peniano como “lança enristada” se perde na triste
comparação a “um pescoço de galinha morta”, “pelanca desvalida”, pelo que o
verbo “murchar” é responsável. As palavras são do vocabulário comum, mas no
texto assumem valor altamente pejorativo, desmoralizante nesse infausto episódio.
De outros discursos presentes na narrativa, selecionamos o que
chamaremos de vocabulário do erotismo na Vila de São João Esmoler:
Verbos
encostar enlaçar pegar morder sentir querer fazer fornicar penetrar
gozar foder folgar distrair irromper afastar enrijecer entumescer arrastar
atravessar arreganhar apertar atochar chibatear levar para cama
tocar (segurar) empinar maltratar desfarelar cingir cheirar despir-se
pincelar
Substantivos
cilindro de carne lança falo bago nuca peito nádegas coxas lugar
meio do mundo sítio vaso (dianteiro) vaso (traseiro) traseiro mamas
púbis pelanca garanhão vergalho cangote periquitona quirica
146
mucurango agente (de humilhação) lambidas beijos umidade fragrância
quadris encarquilhamento arrebatamento ancas cangote gemidos
bonifrate gorgomilos
Adjetivos
rijo belo eriçado enristada desvalida ereto duro doido entrabertas
enlanguecidos macio acolhedor ostentoso arfante inerte úmidos
arrebatadora
Voltando à epígrafe com que iniciamos esta parte do trabalho, não se deve
rir da desgraça alheia, nem do que a provoca. Principalmente quando se trata de
personagem de uma obra literária cujo autor é preocupado com o comportamento
humano e as repercussões sociais desse comportamento. Pelas palavras, a elite foi
representante da tradição da língua, mas por elas também, vieram se juntar ao povo
e à sua linguagem espontânea, eliminando, pelos caminhos da transgressão
vocabular, as diferenças que geram preconceitos.
Como se vê, a maioria dos termos relacionados pode se apresentar em
discursos cultos e pertencerem ao vocabulário comum. Outros ficam restritos ao
uso da linguagem popular. No texto ubaldiano, transgressão e tradição alinham-se
artisticamente para oferecer ao leitor o prazer estético da leitura.
6.3. Nem chus nem bus: os arcaísmos se apresentam
Cressot (s/d,p.76) usa a expressão “fundo médio” para designar um certo
número de palavras ou expressões pertencentes à língua geral de que o falante
dispõe para realizar seus atos comunicativos. Nela estão inseridas palavras da
língua antiga e da língua clássica, os termos técnicos, científicos, populares, de
147
gírias, provincianos e estrangeiros que a qualquer título tenham conservado ou
adquirido direito de cidadania. Afirma que muitos vocábulos de alto valor expressivo
são relegados ao esquecimento pela rotina do uso lingüístico e pela falta de
curiosidade para conhecer novas palavras, novos termos, no que o manuseio
freqüente dos dicionários ajudaria muito. Cressot considera que o emprego de
palavras pertencentes a falares particulares e de fases anteriores de uma mesma
língua devem ser vistos como empréstimos. Esse tipo de empréstimo é apresentado
pelos estudos tradicionais do léxico como arcaísmos.
Dessa maneira, os arcaísmos no texto literário resultam em efeitos
evocativos e emotivos. Segundo Ullmann (1973, p.64-5), o diacronismo vocabular traz,
de alguma forma, o passado ao presente, pois la capacidad evocadora de estas
formas reside precisamente em el hecho de que son arcaísmos, restos de
anteriores etapas de la história de la lengua
26
. Para ele, o resultado mais expressivo
do uso de um arcaísmo é a evocação da cor local ou a exploração no pastiche.
Trazer um termo arcaico a um texto literário moderno pode produzir efeitos de
sentido vários: humor, associações históricas, literárias ou bíblicas, ou pode
contribuir para criar uma atmosfera de tradição e antigüidade.
Mattoso Câmara (1974, p.81) aponta a língua literária como o lugar para serem
encontrados os arcaísmos, pois as obras antigas “continuam a impor padrões
estéticos. Diz ainda: o escritor que emprega arcaísmos em relação à língua comum
do seu tempo o faz para fins estilísticos, pretende dar certa cor a seu estilo.
Muitas vezes o emprego dessas formas é apenas semântico, isto é, usa-se
uma palavra ainda vigente, cujo sentido antigo não mais possui; ou ainda, num
grupo de derivadas, uma das formas é arcaizada e outras permanecem em uso na
língua.
Há duas maneiras de se trazer de volta ao uso um arcaísmo. A memória do
povo mantém arquivadas formas antigas que já foram esquecidas pelo uso
acadêmico e, por algum motivo, elas são repostas nos atos comunicativos. A outra
maneira é o emprego estilístico de que fazem uso os literatos. Para este caso
26
O texto correspondente na tradução é “ a capacidade evocadora dessas formas reside precisamente no fato de que
são arcaísmos, restos de etapas anteriores da história da língua”. ULLMANN, S . Lenguaje y estilo. Madrid:
Aguilar, 1973. 322p
148
encontramos os exemplos de arcaísmos “revitalizados”, segundo Ismael de Lima
Coutinho
(1976, p. 212)
27
: “devaneio”, “grei”:
“Sim, airosa _ e de repente deu um passo à frente,
juntou as mãos e fechou os olhos num devaneio
inesperado.”
(FIP, p.129)
“[...]pela segunda vez cometendo a mesma felonia,
penaria todos os rigores da lei cabíveis a desordeiros,
vagabundos, salteadores e demais celerados que
sobejam em sua grei imunda.”
(FIP, p.41)
Cressot (s/d,p.77) apresenta a palavra “grei” como exemplo de empréstimo de
palavra feito a uma fase anterior da língua. DH, em uma das acepções, confirma a
presença de um diacronismo “antigo”, segundo o critério estabelecido na
organização do dicionário. O emprego da palavra com a acepção o conjunto de
súditos; vassalagem; povo; nação se ajusta figuradamente ao texto.
Ismael de Lima Coutinho (1976, p.212) apresenta alguns fatores que acionam o
processo de arcaização de vocábulos: desaparecimento das instituições, costumes
e objetos; sinônimos ou neologismos: eufemismo ou a degradação de sentido; o
sentido especial; a homonímia.
O romance em análise não tem datas explicitamente apontadas em toda
narrativa. João Ubaldo, porém, fornece informações que permitem ao leitor situar-se
no tempo em que a história se desenvolve. A ilha do Pavão é parte da colônia
portuguesa, os índios ainda interagem diretamente com o colonizador português, o
escravismo resiste às iniciativas de libertação dos negros, a Igreja atua diretamente
como lídima representante dos interesses da Coroa. Portanto, a reapresentação de
palavras já abandonadas pelo uso comum, ou, pelo menos, com baixa freqüência de
uso, se justifica na medida em que restaura o ambiente, a vida social daquela época, a
cultura, a ideologia vigente, desenhando um ambiente de realidade e dando
verossimilhança ao universo da ficção literária, como vemos no trecho a seguir, diante
do emprego do substantivo “dação”, encontrado em DH com a rubrica diacronismo:
27
Ismael de Lima Coutinho (1976) se baseia no resultado de estudo feito por Francisco José Freire (1863) e Duarte
Nunes do Leão (1864) sobre termos arcaicos para exemplificar casos de “ressurreição” de termos.
149
antigo e a acepção.ato ou efeito de dar; doação. O objeto da doação é uma “sesmaria”
que, segundo DH era terreno abandonado ou inculto que os reis de Portugal cediam
aos novos povoadores:
Por graciosa dação real, me foi concedida esta sesmaria,
mas disso não me aproveitei para contestar direitos dos
que aqui estavam.
(FIP, p.155)
Acatamos como critérios para a identificação de uma palavra como arcaísmo,
ou forma arcaizante, os mesmos empregados no DH em relação ao que foi
classificado como diacronismo, considerando o fôlego da obra, e a atualidade da
publicação:
Neste dicionário, classificaram-se de arcaísmos as palavras ou variantes usadas
no português medieval até o português camoniano (século XVI).
Como antigos, foram classificados os vocábulos e locuções, expressões e
acepções usados na língua, do século XVI ao XIX, mas já não empregados no
século XX.
Obsoletos ou obsolescentes são termos que classificam vocábulos que deixaram
de ser empregados já dentro do século XX ou cujo uso se acha em processo de
marginalização.
(2001, p XXIX)
Vjeamos algumas formas diacrônicas presentes no romance O feitiço da
ilha do Pavão:
“Vêem nos pesadelos numerosos demônios e suas
malfeitorias mais torpes e guisas mais ardilosas [...].”
(FIP,
p.10)
Rodrigues Lapa comenta o caráter arcaico da palavra “guisas”:
´Guisa` é um velho substantivo português, de origem germânica, que significava “
maneira, modo” Se fôssemos a dizer ou a escrever hoje qualquer coisa com isto _
´Não gosto das guisas de Fulano` _ era uma gargalhada geral, e o pobre que tal
dissesse ou escrevesse arriscava-se a ser internado numa casa de saúde.
Convém aliás frisar que a locução ´à guisa de` ´à maneira de`, já é de uso muito
restrito, puramente literário e muito afetado. Por isso, se usa muitas vezes para
fins humorísticos
(1998,69-70)
Em DH , encontramos o verbete “chus”adv. (sXIII cf. IVPM) arc. mais 
nem c. nem bus coisa nenhuma; nada  não dizer c. nem bus nada dizer; não
pronunciar uma palavra  ETIM lat. plus 'id.'. Segundo Lapa
(1998, p.70), a locução
150
em foco é um fenômeno de arcaísmo, pois é quase impossível a separação dos
elementos que a compõem. Diz ele: Não compreendemos o vocábulo isolado, nem
é preciso: basta que compreendamos o sentido global da locução. Só esse tem
importância. A locução de uso popular dá um tom de humor à passagem:
“Tinha ficado sentado na beira da cama esperando,
tinha até dado umas carreirinhas para esquentar o
sangue, mas nada, nem chus nem bus “.
(FIP, p.85)
O vocábulo “botica” é considerado diacronismo “antigo” ou seja, permaneceu
em uso do século XVI ao século XIX, já não sendo empregado no século XX. Das nove
acepções que DH apresenta para “botica”, apenas a que se refere ao vocábulo de uso
informal no português europeu como regionalismo não é considerado um diacronismo
antigo.
“Nas rua Direita, por exemplo, até as pedras do
calçamento parecem rebuliçar com a agitação das
dezenas de artesãos, boticas, armarinhos, casas de
secos e molhados, armazéns, negras de tabuleiro[...]”.
(FIP, p.16) - diacronismo :antigo.
Nojo é um vocábulo que apresenta a rubrica diacronismo “obsolescente”, ou
seja em processo de marginalização pelo pouco uso registrado no século XX,
substituído com freqüência pela palavra “luto”. Na passagem a seguir, porém, é
perfeitamente adequada ao tempo a que o romance está circunscrito:
“Sentado no varandão da casa grande, em frente ao
pomar, o coração do capitão se apertava, enquanto ele
pensava em seu filho único, pois, apesar de, depois do
nojo rigoroso a que se obrigara pela morte de Dona
Maria Joana [...]”
(FIP, 150) - diacronismo:obsolescente.
“Arruar” é um diacronismo “antigo” e significa andar pelas ruas de maneira
ostentatória, a pé ou a cavalo. Ubaldo vai buscar a expressão “cadeiras de arruar”
que, no tempo do Brasil colônia era carregada por escravos, numa autêntica
151
ostentação da riqueza daquela época, para evocar a cor local de um quilombo no
qual o modelo português servia de inspiração.
“Isolada a um dos cantos do largo, uma fileira de
cadeiras de arruar e liteiras requintadas, com seus
carregadores ao pé [...]”.(FIP, p.118)_ diacronismo:
antigo.
O verbo “arrodear” está rubricado em DH como diacronismo “antigo”, mas
aparece no Dicionário do Nordeste (2004) como um regionalismo. Em DA, não há
referência ao caráter diacrônico da palavra, nem ao uso regional, apenas registrando-o
como forma mais presente no uso popular. O Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa (2004) registra a forma.
“Mas Iô Pepeu suspeitou que eles podiam estar sendo
seguidos pelos homens do intendente e convenceu
Balduíno com facilidade a subir a pedra do Urubu,
arrodear o mangue Grande e finalmente, passar por
um trecho da mata do Quilombo [...].”
(FIP, p.96) –
diacronismo: antigo
Os exemplos destacados estão presentes na voz do narrador, regida pela
mão hábil do escritor que orquestra as palavras em arranjos expressivos, trazendo,
pelo uso de formas arcaizantes, um pouco do passado lexical da língua portuguesa
ao presente da narração.
6.4 O discurusso deTantanhengá. Ou Balduíno da Anunciação. ou Galo Mau.
Como se queira
O levantamento vocabular realizado a partir da construção do discurso das
personagens Borges Lustosa, Capitão Cavalo etc (4.2) registra a presença de itens
lexicais pertencentes ao dialeto social culto, chegando ao nível da erudição. Já a
152
fala de Balduíno Galo Mau assenta-se no outro extremo quanto à seleção lexical,
uma vez que seu discurso vem marcado pelo vocabulário popular.
Disseminados no vocabulário comum, aqui predominante também, vão estar
presentes termos que transgressoramente ajudam a elaborar um discurso marcado
pelo humor, pelo coloquialismo e pelo erotismo que servem para traçar o perfil
psicossocial da personagem contestadora, por defender os direitos adquiridos no
processo civilizatório a que foi submetido seu povo. O colonizador colocou o nativo
em contato com a modernidade: novos hábitos alimentares, nova maneira de viver,
alguns valores novos, apesar de não admitir abrir mão de certos traços de sua
cultura tais como andar nu, não ser sedentário, ter seus deuses e suas crenças.
Assim, o índio acrescentou algumas práticas às que sua cultura já construíra em
contato direto com a mãe Natureza. Como conseqüência, são incorporados a seu
vocabulário os signos que designam essa outra realidade: “sal”, “açúcar”, “sabão”,
“vidro”, “almofada”, “dinheiro”, “carne de vaca”, “panela de ferro”, “faca amolada”,
“tenda de novidades”, “armazém”, “roupa”, “chapéu”,que recobrem satisfatoriamente
o campo léxico da civilização.
O jabarandaia Tantanhengá, com sua fala arrevesada, é a voz que luta pela
liberdade dos primeiros habitantes da ilha, os índios, reavivando na narrativa os
embates entre silvícolas e colonizadores no período inicial da formação da nação
brasileira. Sua fala revela os embargos na aquisição de uma nova língua,
principalmente no que se refere à pronúncia das palavras, marcada por
metaplasmos dos mais variados tipos. O exagero com que esse fato é apresentado
ao leitor constrói uma personagem caricatural, não exatamente pelo que diz, mas
pelo modo como diz aquilo que pensa. Ainda assim, os desvios fonéticos não
chegam a interferir na comunicação. Seus interlocutores, inclua-se aqui o leitor, não
têm dificuldades em perceber no significante alterado os significados pretendidos.
Nas passagens a seguir, vê-se Balduíno às voltas com signos que não pertencem a
seu repertório comum:
A) “Seu Dão intendente não tá aí. Tá tudo
fechado, hoje é feriado, dia de outono.
153
_ Dia de quem? Quem é tono, é santo? Santo
Antono não é, não fica com conversa querendo
enganar índio, Santo Antono é no tempo de trezena e
novena, índio não é besta!
_ Não sei se é santo, só sei que é feriado, dia
do outono. Está na postura, é feriado dia do outono,
dia da primavera, todos esses dias. O outono começa
hoje, é muito importante, é feriado.”
(FIP, p.37)
B) “Merecias a morte e ainda a terás, pelas minhas
mãos, Deus há de ser servido! Que queres, afinal?
Dize o que queres e desde já advirto que, se fores
insolente, nada obterás.
_ Índio não sabe o que quer dizer solente, mas
índio é solente se quiser, índio é qualquer coisa que
quiser, não recebe ordes [...].”
(FIP, p.263)
A discussão provocada pelo desconhecimento do signo em sua totalidade
como portador de um significante e de um significado provoca o hiato na
compreensão do que estava escrito na “postura”. Num país tropical, a estação do
ano, o outono, não é bem delimitada. Como não era identificada como parte do real
no mundo de Balduíno, não era nomeada, não havia familiaridade entre a coisa e a
sua representação simbólica, como talvez fosse na cultura do europeu. A identidade
sonora entre ou/tonu/ e An/tonu/, este já alterado foneticamente na fala do índio,
traz para seu mundo a relação com a figura religiosa, e com ela outras marcas da
religiosidade cristã: a trezena e a novena. Ele não sabe o que é outono, com suas
cerejas e maçãs, mas tem certeza de que não é Santo Antônio, porque esta
realidade já faz parte de seu conhecimento de mundo, trazida pelos jesuítas no
trabalho de catequese:
“Iô Pepeu aproximou-se para ler o que estava escrito
no papel pregado na porta.[...]. Dodecassílabos de
grande poder evocativo exaltavam a formosura do
outono, a dadivosa estação das frutas. [...]
_ Índio não percebeu nada_ disse Balduíno _ O que é
estação?
_ É o tempo, agora é o tempo das frutas. A maçã, a
cereja...
154
_ O que é cejera? O que é amaçã?
_ Frutas. São frutas que tu não conheces, mas há. O
outono é o tempo das frutas.
_ De acajueiro mesmo não, agora não tem caju. E
quase o resto todo não precisa de tono, dá tempo
todo.”
(FIP, p.39)
Depreende-se do diálogo que as palavras “outono”, “estação”, “cereja” e
“maçã” não são percebidas pelo índio como elementos simbólicos. O outono não é
realiza semanticamente como estação das frutas, pois o caju é fruta (ou pedúnculo,
melhor dizendo; a fruta é a castanha) e não dá no outono. Caju é a fruta que faz
parte do seu mundo. Portanto, outono não faz sentido para ele, assim como a
“cejera” e “amaçã”. Para Berger e Luchmann:
A linguagem tem origem e encontra sua referência primária na vida cotidiana,
referindo-se sobretudo à realidade que experimento em estado de vigília, que é
dominada por motivos pragmáticos( isto é, o aglomerado de significados
diretamente referentes a ações presentes e futuras) e que compartilho com outros
de maneira suposta evidente[...] A linguagem conserva mesmo assim seu
arraigamento na realidade do senso comum da vida diária
.
(1976, p. 58)
A presença de termos grosseiros, injuriosos e obscenos materializa
algumas intenções presentes no discurso como, por exemplo, demonstrar a ira
provocada pela ordem de expulsão dos índios, engendrada pelo intendente Felipe
de Melo Furtado,
“_Mentira. Mentira de Dão Filipe, tendente,
filadumaégua com oitenta jumentos.”
(FIP, p.37)
o desprezo pela mulher do intendente, Dona Felicidade:
“[...] Isso tudo por causa de Dona Felicidade, aquela
peste que deveria ser faxineira do inferno, aquela
155
bacurau remelenta e fedorenta, do nariz de quati,
dos dentes de baiacu e do bafo de lama
.(FIP, p.46);
[...] índio papa qualquer coisa, índio acha toda mulher
merecedora, mas nem índio ia querer papar aquela
surucucu do balaio baixo”.
(FIP, p.46);
para desqualificar as autoridades mandatárias da ilha que freqüentavam a
“Cambra”:
“_Disconfiado nada, tudo burro, tudo safado tapado.
Índio já pensou tudo, já tá tudo aqui pensado,
pensadinho.”
(FIP, p.64);
ou que reinasse no quilombo,
“[...] Índio é mestre do mato, conhece bicho do mato,
conhece planta, conhece tudo, conhece quilombeiro
safado medroso, já tinha metido medo neles na saída
de lá [...].”
(FIP, p.165)
Nesses fragmentos, os adjetivos empregados são altamente injuriosos quer
qualifiquem aspectos morais como safado, sem-vergonha, medroso ou
intelectuais como burro tapado, além de aspectos físicos remelenta, fedorenta em
perfeita harmonia com os substantivos peste e faxineira, surucucu que,
metaforicamente, designam a figura desagradável daquela senhora. As
desqualidades físicas da esposa do intendente são marcadas pelas semelhanças
com animais que pertencem ao mundo de referência do índio: quati, um mamífero
de nariz comprido; baiacu, um peixe coberto de espinhos e bacurau, uma ave de
hábitos noturnos
28
. Os vocábulos aqui destacados têm todos etimologia tupi, assim
como surucucu e aparecem empregados em sentido metafórico.
28
Seria mera coincidência ou um ato intencionalmente sugestivo do escritor selecionar substantivos que
apresentam uma sílaba que se repete nos vocábulos baiacu, bacurau e se reduplica em “aquela surucucu do balaio
baixo?
156
Os sentimentos do índio em relação aos representantes da Coroa que
habitam a ilha se reforçam pela repetição da palavra “raiva” e pela expressão “gente
ordinária” que aparecem no trecho a seguir:
“Da Câmara cuidaria Iô Pepeu, da cacimba do forte
cuidariam umas meninas de confiança dele (Balduíno)
assim como dos potes da casa do intendente, umas
meninas tudo com raiva de Dão Felipe, raiva do mestre
Borges, raiva de Dona Felicidade, raiva dessa gente
ordinária toda, que agora queria mandar os índios de volta
para o mato”.
(FIP, p.66)
A “tisana tesífera” ou “invencível calda” que Balbuíno fabricara havia sido
despejada em todos os recipientes usados para armazenar a água da fortaleza:
“porrão”, “pote”, “vaso”, “vasilhame”, “moringa”, “cacimba”, “citerna”, “tinas”, “barrilotes”
e “panelas” pelas “meninas que pegavam água na cisterna da fortaleza” (FIP, p.66). Seu
efeito provocara “contingências fisiológicas insopitáveis”, “espasmos irreprimíveis”, “dor
de barriga”, “cólicas”, “tripas rebeladas”, “peidos”, “bufas” ou sons emitidos de parte do
corpo que não a boca, mas antes o seu oposto. (FIP, p. 78). Essa foi a arma natural
usada por Balduíno para enfrentar Borges Lustosa que arregimentou “gentes d`armas”,
municiada com o aparato bélico da vila, para enfrentar a Sedição Silvícola, título nobre
para a insubordinação dos índios à ordem de expulsão decretada pelo Intendente
Felipe de Melo Furtado
.
A vitória parcial dos índios mereceu de Balduíno Galo Mau discurso de “boa
veia” popular, no qual termos chulos e obscenos estão presentes para desmoralizar os
derrotados. Na fala do índio justifica-se a motivação para o nome popular do grande
fato histórico da Vila de São João Esmoler, a batalha do Borra-Botas:
“Viu mecês? Nós peguemos mecês! Cês bota índio pra
fora se índio querer! Índio também tem querer! Sabe o que
Dona Filicidade tá fazendo? Tá cagando no piniquim!
Sabe o que Dão Boroge Lussitosa tá fazendo? Quiequié
que Dão Boroge tá fazendo? Tá caçando mais pinico
porque atirou pinico ni índio e não pegou ni índio e agora
ele tá sem ter onde cagar! Sabe pra que serve guarda e
157
miriça? Borra nas bota! Sabe o que Dão Boroge faz pra
acabar caganeira? Enfia canhão no cu! Índio peidão?
Branco cagão! Branco cagão, huí-huí, branco cagão,
cagão, cagão
! (FIP, p.81)
As condições que cercam os atos de fala conduzem o interlocutor à
percepção do jogo semântico proposto pelo locutor. A construção de um discurso
transgressor pelos caminhos do erotismo é marcada pelo emprego de itens do
vocabulário comum com sentido metafórico quando se refere, por exemplo às
partes baixas do corpo ou fenômenos fisiológicos, produzindo efeitos grotescos, de
que são exemplos:
pênis : vergaio ( vergalho)
pau de bandeira
baixios
pau de bandeira
mangalho
cilindro de carne
lança
falo
mucurango
bonifrate
testículo : zovo
bago
tomate
cunhão
vagina: quirica
periquitona
vaso dianteiro
meio do mundo
sítio
pelve: baixios
ânus rabo
traseiro
flatos peido ( peidar)
bufa
urinar mijar
158
defecar cagar
borrar-se
No fragmento a seguir, como palavrões, expressões injuriosas ou obscenas
propriamente ditos, registram-se as unidades pertencentes ao vocabulário do
dialeto social popular “cu, rubricado em DH como um regionalismo e tabuísmo no
Brasil e em Portugal,puta” efanchão”. A artesania do escritor em combinar
palavras desconstrói, por meio do humor, a carga negativa ou a rejeição resultante
do emprego de tabuísmos que transgridem o dialeto social comum. A atenuação do
sentido resulta do contraste estabelecido pelo emprego imponente da típica sintaxe
lusitana e vocábulos como “santa” e “soldadesca”, representantes lexicais da
tradição da língua, e os termos chulos da fala popular.
“Com que então o mestre-de-campo, com aquela cara
de santa puta arrependida, ia aos cus da soldadesca,
bonita notícia![...] Ainda não podia provar nada, mas
sabia de fonte mais que limpa, que seu inimigo era um
fanchão e estaria perdido se isso viesse a ser
sabido”.
(FIP, p.255)
Para Pierre Guiraud apud Preti (1983, p.64)
29
é grosseira toda palavra que
tende a descrever, a pôr em relevo o corpo e suas funções, e em particular as mais
baixas, e essa grosseria é mais acentuada quando ela se exprime por meio de
termos de origem popular, termos que, por sua natureza, atualizam as imagens
mais materiais e corporais das coisas e funções designadas e às quais, por outro
lado, se ligam o descrédito, o desprezo de que são objetos aqueles que os
empregam. Dentro dessa perspectiva enquadram-se os comportamentos de
exceção refletidos nos vícios e exageros eróticos presentes na passagem em que
Balduíno cede a cena a um “velho muito velho” que lhe ensinara a fórmula da
“tisana”, capaz de operar milagres. Por sua ingestão, aquilo fica o dia inteiro e a
noite inteira que nem um pau de bandeira e nem todas as mulheres da vila,
29
GUIRAUD, P. Lês Gros mots. 2.ed. Paris: PUF, 1976. p.9
159
encarreiradinhas, conseguiriam baixá-lo. Escalavrar, desfarelar, mas derribar nunca
do nunca. (FIP, p.32)
“Esse façanhoso preparo lhe tinha sido ensinado havia
muito tempo, por um velho muito velho, que morreu
numa esteira, empernado com uma mulher novinha,
novinha. O velho emborcava a tisana _ ih,ih,ih!_ e ia
para onde tinha mulher passando. A mulher passava,
ele dizia: vamos se distrair? A mulher dava risada. Ela
aí dizia: espie eu aqui, cabecinha pra riba por sua
causa, querendo se distrair. A mulher dava mais risada
e dizia velho, velho, por que tu não faz como os outros
velhos e não vai pra sua rede pitar seu cachimbinho,
se queixar das novidades e contar história? Ele olhava
para a mulher com aqueles olhinhos pregueados, fazia
que não ouvia e dizia: vamos se distrair, essa menina,
bote aqui a mãozinha. A mulher ria de novo, ia rindo e,
nessa risadinha _ ih,ih,ih!_ adivinhe o que o velho fazia
mais ela. Depois ele deixava elas disminlingüida na
beira do rio e gostando muito de velho desse dia em
diante, e ia caçar outra”.
(FIP, p.32)
Observe-se que ali não ocorre nenhum palavrão ou expressão grosseira.
Pelo contrário, seu vocabulário simples, carregado de afetividade, constrói um
discurso altamente erotizado a partir da rede de significados implícitos tecida por
termos aparentemente ingênuos, presentes no jogo de sedução. No dizer de Preti
Tal sentido “escondido” acabaria por dominar todos os demais e transformaria o
ato de fala ou o texto num discurso homogêneo e dirigido, marcado por um eixo
isotópico que não é o do leitor ingênuo, desconhecedor do contexto “ proibido”,
mas que pertence a um ouvinte ou leitor especial, capaz de compreender essa
isotopia oculta.
(1983, 71)
Não só no jogo de sentidos maliciosos ou pela exacerbação emocional nas
injúrias o vocabulário comum é percebido. Estão na fala da personagem vários
grupos fraseológicos explorando o senso comum. Alguns são utilizados na íntegra,
sem qualquer alteração em sua estrutura, como ocorre em:
Índio não é besta!”(FIP,p.37)
160
“Os brancos não eram os donos do mundo, o mundo
não tinha dono.”
(FIP, p. 44)
“_[...] Iô Pepeu não tira ela da idéia, ele quer casar.”
(FIP, p.163)
“_Tontice, índio tira ela daqui. Rei maruco doido nem
vai botar a mão nela, tu pode deixar.Índio tinha tudo
na cabeça.”
(FIP, p.135)
“ _ [...]eles vai correr tudo com o rabo no meio das
pernas
.” (FIP, p.163)
Em outras ocorrências, realizam-se pequenas alterações para adequá-los
expressivamente ao contexto em que aparecem:
“Mas que calda era essa, qual o efeito dela? Deixa
isso de mão, confia no índio, quanto menos falar da
calda, melhor.” (FIP, p.66)
“Ainda não podia provar nada, mas sabia de fonte
mais que limpa que seu inimigo [...].”
(FIP, p.255)
“_Ah _ riu Balduíno _ Mecê mecezinho acha que pode
botar cachaça toda na idéia e ainda sair correndo
atrás de mulé?[...] Não, vai não, e eu sei o que mecê
tá pensando, mas não adianta, tem que esperar hora.
Hora certa, tem hora certa pra tudo.”
(FIP, p. 255)
“Ainda não podia provar nada, mas sabia de fonte
mais que limpa que seu inimigo [...].”
(FIP, p.255)
“Índio avisa amigo é.”
(FIP, p.263)
Registram-se outros grupos fraseológicos no texto ubaldiano que merecem ser
destacados:
“deitar aos porcos”
“tirar proveito de”
“cair no choro”
“ não vale um chavo furado”
161
“dar na veneta”
“nua em pêlo”
“leva-e-traz”
“dar de mão beijada”
“passar-lhe a vara”
“ironia dos fatos”
“sem que nem para quê”
“dar na telha”
“lavar as mãos”
“fazer a corte”
“ter dinheiro de sobra”
“lavar a honra”
“a toque de caixa”
“chegar de mãos abanando”
“mal saído dos cueiros”
“ir às turras
“dar trela”
“morrer de medo”
Quanto à etimologia, são termos de origem tupi presentes nos trechos que
representam a fala do jabarandaia Galo Mau, palavra tupi que significa “manda-
chuva”:
flora
ipê-roxo curuiri milomi acatuaba jenipapo urucu acajueiro cipó
jataíba caju caacambuí araçá oitizeiro
fauna
jacaré-curuá jararacuçu siri tatu mutuca potó saúna
jararaca quati bacurau baiacu jitiranabóia jacurutu
surucutinga cobra-cipó
utensílios
coité borduna moquém
162
Alguns itens lexicais são apontados pelos dicionários como brasileirismos ou
regionalismos. Celso Cunha (
1987) fez a recolha de várias definições do termo, mas
selecionamos a de Mattoso Câmara em seu Manual de filologia e gramática
:
Qualquer fato lingüístico peculiar ao português do Brasil, em contraste com o fato
lingüístico correspondente peculiar ao português usado em Portugal ou
lusitanismo. O brasileirismo pode ser a) regional, quando privativo de uma dada
região do Brasil;b) geral, quando se estende por todo o território brasileiro. É este
último que caracteriza o português do Brasil em face do português de Portugal,
podendo ser um vulgarismo (V.) ou estar aceito na norma lingüística espontânea.
(1974, p.95-6)
Outro estudioso da língua portuguesa, Serafim da Silva Neto apud Cunha
(1987, p.34), restringe, de certo modo, o espectro de um brasileirismo dizendo que o
qualificativo de “brasileirismo” só deve se aplicar a palavras de uso exclusivamente
regional
30
.
Os dicionários gerais que usamos como referência para nossa pesquisa
registram, quando necessário, as duas rubricas: brasileirismo e regionalismo,
indicando na maioria das vezes, a região ou regiões geográficas onde são
empregados. Vejamos como estão distribuídos em DH alguns dos brasileirismos
usados por João Ubaldo Ribeiro:
classe vocábulo rubrica observação
substantivos
moquém Regionalismo/Brasil
boniteza Regionalismo/Brasil
cunhão
corruptela popular de
colhão(fonte:
NAVARRO:2004:125)
jacaré-curuá Regionalismo/Brasil
borduna Regionalismo/Brasil
cacimba Regionalismo/Nordeste/Brasil
verbo
caçar Regionalismo/Brasil
sentido
figurado:caçar mulher
pitar Regionalismo/Brasil
adjetivo
desmilingüida Regionalismo/Brasil
30
A citação de Serafim da Silva Neto foi publicada na Separata da Revista e Portugal, vol. XXV. Lisboa, 1960,
p.29, nota 37
163
Poucos são os itens lexicais registrados cujas origens configuram
empréstimos. Foram localizados “badulaque”, “pandilheiro”, que são espanholismos;
“brandir, um francesismo; “alcovitagem” e “armazém”, exemplos de arabismos;
“zumbaieiro” e “moringa”, de origem malaia e, de origem africana, “quilombo”.
“Quilombeiro” é uma formação neológica usada pejorativamente em lugar de
quilombola, pertencente ao vocabulário comum.
Do vocabulário culto registram-se “horripilante”, “fiambre” e o tratamento
cerimonioso “excelência”, celênça em “língua de índio”, plenamente adequado à
situação de uso quando se dirigia à única autoridade da ilha do Pavão reconhecida
como tal por Balduíno.
Todas as línguas apresentam em seu léxico palavras opacas ou
transparentes, ou seja, palavras que mantêm mais ou menos vivo o caráter de
signo motivado. No grupo das palavras transparentes, estão os diversos signos
motivados tais como as onomatopéias e as palavras derivadas. A freqüência com
que esses dois recursos vocabulares aparecem no texto ubaldiano nos permite
defini-los como marcas de estilo do escritor e, sem dúvida alguma, têm papel
relevante na construção de sentidos do texto.
Do grupo formado por derivação, destacamos a produtividade semântica do
emprego de formas diminutivas em que os sufixos -inho /-zinho se unem a bases
substantivas ou adjetivas para construir diferentes intenções discursivas:
“[...]O branco vem sem ninguém chamar nem sentir
necessidade, traz as coisas dele, ensina ao índio,
acostuma o índio bem acostumadinho e depois quer
tirar tudo do índio?Como isso, como mostra e depois
quer tira? Não vai tirar nada de nadinha, falou,
fechando os punhos[...].”
(FIP, p. 44)
“[...]já ta tudo aqui pensado, muito pensadinho [...]”
(FIP. p.64)
“[...]Mas é, índio quer pouco, pouquinho mesmo, não
trapaia, índio quer biter só pouquinho”.
(FIP, p.263)
164
“[...]E para um homem dobrado bastava uma florzinha
fervida numa canequinha de derréis, uma cabacinha
mirim, destamanhinho”.
(FIP, p. 47)
Nesses exemplos ocorrem duas estratégias distintas, mas complementares:
nos três primeiros casos, há a repetição da base na forma diminutiva, donde o
reforço semântico. No último exemplo, outras unidades léxicas são empregadas
para realçar a idéia imposta pelo diminutivo: “mirim”, “derréis”. Também neste
trecho o jogo de contraste semântico entre “homem dobrado” e a “pequenez da flor”
hiperboliza o efeito devastador futuro da florzinha depois de fervida. As aparências
enganam.
Na passagem do velho, dono da receita da tisana, os diminutivos
empregados, de aparência afetiva, carinhosa, aparentemente despretensiosa
estabelecem uma forte carga de erotismo, “olhinhos pregueados”, “cabecinha pra
riba”, “bote sua mãozinha aqui”, construindo o discurso da sedução. O locutor
confia na colaboração do leitor para a captura dos implícitos a fim de completar o
sentido do enunciado e instalar ali o humor e o erotismo.
Várias outras ocorrências do emprego do diminutivo marcam o registro
coloquial informal presente na fala do índio:
“Num zagera na cambra, talascadinha aqui,
talascadinha ali, muringa só um piricunchinho.”
(FIP,
p.65)
“Ih,ih,ih, índio avisou. Tomar pouquinho, golinho
curto.”
(FIP, p.88)
Quando analisamos o vocabulário do escritor, também foi detectada a
presença de diminutivos. Os sentidos lá analisados, no entanto, diferem dos que
aqui relacionamos. Outro é o contexto, diverso o nível social da personagem, daí,
diferentes empregos para o mesmo fato lingüístico e, conseqüentemente, efeitos de
sentido diferenciados.
165
Três formações de aumentativo foram identificadas, referindo-se
denotativamente à noção de tamanho, mas a segunda acrescenta ainda forte traço
semântico de pejoratividade:
“_Índio vai invadir, mas não vai fazer combate [...] sabe
tudo pra tirar ela de lá mais ligeiro do que passarão
pica-peixe garfeando sauna.”
(FIP, p.165)
De forma que Dão tendente, por causa do filho dela
e da tentação que ela sentia, vendo no índio o que ele
não via no marido pançudo, ia cumprir a ameaça.”
(FIP, p.46)
“[...] Daí a pouquinho o fulano começa a sentir uma
quenturinha nos baixios, quenturinha essa que vira
um calorão, calorão esse que levanta o mucurando
que chega a parecer que vai estourar [...].”
(FIP, p.31)
No último excerto, a gradação é construída pela seqüência semântica de
quentura e calor, mas a hiperbolização que figurativiza os efeitos da tisana se deve
ao emprego do sufixo formador de aumentativo –ão em calorão em contraste com
o diminutivo –inho em quenturinha
O perfil transgressor de Balduíno da Anunciação é campo fértil para
violações vocabulares. Se consideramos o dialeto social culto e o comum como os
lugares em que a tradição da língua se fixa, as inovações lexicais provocadas por
contingências da produção literária diante de uma situação especial tendem a vida
curta. Assim como as gírias, poderão cair no gosto do leitor e com o tempo serem
absorvida pelo vocabulário comum até atingirem o estágio de lexicalização. É,
porém, um percurso muito longo, dependente de vários fatores. A tendência é terem
vida útil restrita ao universo do romance ubaldiano.
A análise do vocabulário de Tantanhengá define um texto marcado pelo
coloquialismo, pela irreverência, pelo humor. Ainda que informal muitas vezes, não
deixou de ser instrumento veiculador da ideologia contestadora contra o poder
instituído. O discurso marca o lugar de onde fala a personagem representante do
povo e se reforça pela presença freqüente de marcas de oralidade, como a
repetição de palavras, possivelmente para suprir lacunas deixadas pelo domínio de
166
um vocabulário menos farto, porém não menos expressivo. Para concluir,
transcrevemos a passagem em que Balduíno da Anunciação, tal como seu criador,
sabe valorizar a palavra , melhor dizendo, a palavra que pertence à memória da
língua , à sua tradição:
“Balduíno Galo Mau, nos intervalos das risadas
esticadas com que emoldurava os episódios da
batalha do Borra-Bota [...] assegurava: um golezinho
só, [...] que não tem nada que baixe, nem porrada,
nem água fria, nem quirica seca, nem mulé disafiante,
nem nada, nada desse mundo! Independe, disse
Balduíno, com muito orgulho pelo uso de tão bela
palavra, sabes que mais? Independe!”
(FIP, p.84).
167
7. Conclusão
A grande aventura vai chegando ao seu final.
A análise do vocabulário empregado por João Ubaldo Ribeiro no romance O
feitiço da ilha do Pavão faz-nos concluir que o jogo vocabular incessante entre tradição
e transgressão é o grande tesouro da ilha.
As primeiras leituras do livro nos davam a impressão de que a transgressão
vocabular seria o traço mais significativ. Iniciado, porém, o levantamento dos itens a
serem analisados - substantivos, adjetivos e verbos -, percebemos que fomos iludidos.
De fato as palavras trangressoras ali estavam, mas não de forma tão freqüente. Ao
fim, constatamos que o vocabulário que marca a tradição lexical é muito mais presente
e, por mais estranho que pareça, esse repertório, há tanto tempo pertencente ao léxico
da língua e tão desconhecido por seus usuários, dá aos enunciados um tom de
exotismo, constituindo-se numa viagem no tempo e na história da formação da língua
portuguesa. Não nos referimos aqui somente a palavras eruditas, tais quais
abordamos nesta tese, que estas são relativamente poucas em relação ao conjunto de
termos que fazem parte do léxico geral. O estranhamento, o desconhecimento de
várias palavras, é justificável quando deparamos com unidades muito antigas no léxico
da língua, que datam do século X, XII, XIII... e que ainda são buscadas pelo escritor
para serem empregadas em sua primeira acepção dicionarizada. Para transpor esses
“precipícios abissais” e fugir das “caribdes antropófagas” espalhadas pelo texto,
socorremo-nos dos dicionários, amigos generosos nessas horas, mas tão esquecidos
nas aulas de língua portuguesa. Graças a eles tornaram-se possíveis muitas
descobertas, informações várias que fizeram mais interessante o trabalho com a
palavra, sua forma, suas significações, seus vários usos.
A redescoberta prazerosa de nossas origens veio pelos muitos termos usados
no texto de João Ubaldo e que fazem parte de nosso cotidiano, legadas ao léxico da
168
língua por índios, negros africanos e quem mais influenciou nossa cultura. Na raiz, o
latim, redivivo em expressões no original.
Nem só de tradição, porém, se faz o texto. A transgressão vem materializada
em neologismos, palavras obscenas e arcaísmos.
Se há a necessidade expressiva de palavras de baixo calão, sua presença no
texto perde muito de seu caráter ofensivo, injurioso ou obsceno. Outras unidades
vocabulares são chamadas ao discurso para transformar a agressividade verbal em
agradável sensação de prazer, e muitas delas pertencem ao paradigma da tradição. A
alquimia, em que tradição e transgressão estão presentes, transforma dor em riso e a
cumplicidade das palavras magistralmente manipuladas pelo escritor traz o humor ao
texto.
Cúmplices são também as palavras que materializam em enunciados a visão
crítica do mundo contemporâneo. A ficção se transforma em veículo de denúncia das
iniqüidades morais e éticas que fazem da corrupção a ferida maior na vida da ilha-país
do mar do Pavão descoberta por João Ubaldo.
A palavra comum, pertencente à tradição, é manipulada para sensualizar o
discurso erótico presente no romance, assim como para exacerbar taras e
promiscuidades do comportamento transgressor do ser humano.
As formações neológicas localizadas no texto são transgressoras pelo caráter
de novidade vocabular, não por estarem comprometidas necessariamente com a
produção de um significado inusitado, mas pelo fato de o escritor criar um novo termo
mais expressivo quanto à sonoridade, ou acrescentar um traço hiperbólico ao narrado,
ou ainda, enveredar mais uma vez pelos caminhos do texto bem humorado. No
entanto, se o neologismo é transgressor por si só, a maneira como é construído reflete
a mais pura tradição da língua. Em todas as novas unidades identificadas nesta tese,
os processos de formação de palavras empregados respeitaram as tradicionais
matrizes morfológicas. Até mesmo a insólita formação do gentílico
“assivissojoemapaense” para os habitantes da Assinalada Vila de São João Esmoler
do Mar do Pavão termina por ser uma palavra formada por sufixo acrescentado a
estranha acrossemia.
169
Não bastando o emprego desse vocabulário tão rico e variado, o escritor ainda
presta sua homenagem a itens lexicais hoje relegados ao desuso. Ao trazer ao texto
alguns termos arcaizantes, torna-os presentes na memória de seus leitores,
demonstrando que ainda há algum sopro de vitalidade semântico-expressiva em cada
um deles.
O trabalho vocabular de João Ubaldo Ribeiro demonstra que não é pertinente
julgar-se um texto como menos formal apenas porque dele fazem parte palavras de
menos prestígio social, ou desgastadas pelo uso freqüente. A predileção por itens
lexicais ligados à tradição não exclui do romance o vocabulário popular representado
pelas palavras de uso comum e grupos fraseológicos. Para um escritor que se sabe
leitor de grandes obras, detentor de formação intelectual das mais consideradas,
produzir uma narrativa que transita pelos diferentes usos da língua, do mais formal ao
mais informal deve ser trabalho de árdua elaboração, cujo resultado é a qualidade
literária que encontramos em seu livro.
Pelo convite à reflexão sobre temas que fazem parte da vida do povo brasileiro,
pelo compromisso em resgatar a identidade nacional, pela qualidade de seus textos e
pela revitalização das palavras que ajudam a reconstruir a história da gente brasileira,
razão desta pesquisa, ler o texto de João Ubaldo Ribeiro é uma lição de amor e de
respeito à língua portuguesa trazida ao fim desta tese pelas palavras de Argemiro
31
:
Que seria de mim fora da minha terra? Que sabe
alguém mais do que eu? A minha língua, minhas palavras,
estas coisas todas posso esquecer? Não posso.
RIBEIRO, JU. Vila Real. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997p.166
170
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_______________. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ONG, W. J. Oralidade e escrita: a tecnologização da palavra. Campinas: Papirus,1998.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso. Princípios e procedimentos.3 ed. Campinas: Pontes,
2001.
PLEBE, A. e EMANUELE, P. Manual de Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
RODRIGUES, A. D. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas.São
Paulo: Edições Loyola, 1994.
SANTOS, D.S. Os processos de formação de palavras na crônica jornalística de João
Ubaldo Ribeiro: a alquimia do riso. Dissertação de mestrado defendida em 2000, UERJ.
(digitada)
SILVA NETO, S. da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 3 ed. Rio de
Janeiro: Presença; Brasília,NL, 1976.
VALENTE, A. A linguagem nossa de cada dia. Rio de Janeiro: Leviatã, 1997.
177
VIEGAS, A.C.C. Literatura e consumo: o caso Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: Ágora da
Ilha, 2002.
VILELA, M. Estudos de lexicologia do português. Coimbra: Almedina,1994.
178
ANEXO
Inquérito sobre palavras desconhecidas
Nome:
Área de atuação:
Escolaridade( informar o grau de pós-graduação, se for o caso)
Quanto ao significado: C: conheço; D: desconheço
Palavra
classe
Quanto ao
significado
carguejar verbo
tutear verbo
presuntivo adj.
lhaneza Subs.
tarouco adj
chavo subst
extremada adj
sagaz adj
magnanimidade subst
Amolente-(se) verbo
acólito subst
seresma subst
esdrúxula adj
empalar verbo
insidioso adj
ensanchas subst
camaristas subst
estirpe subst.
airoso adj
veludínea adj.
concupiscência subs
179
convizinho adj
tabefe sbst
retrizes subst
paganismo subst
engendrar verbo
maquinação subst.
Assentar(sentar) verbo
intento subst
enviatura subst
enfunado adj
falbalá subst
régia adj
cotica subst
encharolado adj
baldaquim adj
asseado adj
excelso adj
dardejar verbo
lanceiro adj
casula subst
vestidura subst
ovação subst
carrancuda adj
galhardear verbo
tarampantão subst
fachuda adj
prorromper subst
alarido subst
arruar verbo
buraçanga subst
enxamear verbo
sacripanta subst
telhudo subst
ajoujados adj
azorrague subst
louçainhas subs
180
broquel subs
atavios subs
capão(animal) subst
áulico adj
arrotreador adj
árdega adj
hacanéia subst
aparatoso adj
ferulada subst
fedegoso adj
abocanhar verb
alamares subs
bicorne adj
fulguroso adj
santoral subst
nefária adj
treteira adj
fornicar verbo
touça subst
defuntar verbo
chibaltear verbo
pembeiro subst
arraçado adj
canhembora subst
181
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