sintaxe, para depois, amaldiçoando o cálamo rebelde, desejar a morte súbita de todos
os palmípedes do universo e a conseqüente extinção da laia dos escrevedores e
gramáticos. (FIP, p.40). O narrador nos apresenta um desses textos oficiais:
“Nessas duas páginas, em meticulosa caligrafia processual,
faziam-se primeiramente assisados considerandos, a saber,
entre outros: que era da natureza das diversas raças e
povos díspares opugnarem-se entre si, se submetidos a
excessiva convivência, como sobejamente ilustrava a
História,estando o índio para o branco, assim como o hitita
para o egípcio, ou este para o hebreu, ou os romanos para
os filhos de Dido; que os da raça vermelha, em todas as
partes do mundo, por mais que forcejassem a caridade e o
empenho catequético dos brancos, mostravam-se
invariavelmente infensos ao mais elementar ensinamento,
quer da cristandade, quer da urbanidade, embriagando-se
em público, trafegando sem roupa ou qualquer espécie de
cobertura, bebendo a fumaça do cânhamo-da-índia ou do
tabaco, soltando nos ares vapores ofensivos pelo vaso
traseiro, dando-se a algazarras a toda e qualquer hora,
refugando trabalho honesto e ignorando a autoridade; que
cabia à Intendência da Câmara o zelo da ordem pública, da
moralidade e dos bons costumes, múnus em cujo fiel e
indemovível exercício penhorariam honra e vida; que a
própria palavra “selvagem”, ordinária do mais patrício e
castiço latim e digna de pena de um Cícero ou de um Tito
Lívio, queria dizer ‘’próprio da selva”, construindo-se a partir
desse alicerce um perfeito silogismo, nos puros moldes do
insigne mestre de Estagira: selvagens são os habitantes da
selva; os índios são selvagens;ergo, o sítio próprio para os
índios é a selva, não havendo como refutar tão exata razão
sem que a lógica do universo se derribe. Tudo isso e mais
outros juízos e postulados levavam o intendente e a Câmara
a haver por bem injungir os ditos índios a deixar a vila para
dela não mais se aproximarem, a não ser portando salvo-
conduto, concedido ao alvedrio da Intendência. Três dias a
contar da data, o índio pilhado na sede da vila receberia por
ensinadela ser posto a ferros e escorraçado de volta ao
meio natural. Pela segunda vez cometendo a mesma
felonia, penaria todos os rigores da lei cabíveis a
desordeiros, vagabundos, salteadores e demais celerados
que sobejam em sua grei imunda.”
(FIP, p.40-1)
Os “lavores de erudição” de Moniz Andrade se concretizam quando ele traz
ao texto a perífrase “mestre de Estagira” para referir-se a Aristóteles, ou quando faz
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