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Derval Cardoso Gramacho
TORÉ:
UMA TRADIÇÃO INVENTADA NA ETNOGÊNESE DOS KIRIRI
Santo Antonio de Jesus, Bahia
2010
Universidade do Estado da Bahia UNEB
DCH Campus V / Santo Antônio de Jesus
Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional
Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória
e Desenvolvimento Regional
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Derval Cardoso Gramacho
TORÉ:
UMA TRADIÇÃO INVENTADA NA ETNOGÊNESE DOS KIRIRI
Dissertação apresentada ao
Colegiado do Curso de Mestrado em
Cultura, Memória e Desenvolvimento
Regional, do Campus V da UNEB,
como requisito para obtenção do
grau de Mestre.
Orientado pelo Professor Doutor
Paulo de Assis Almeida Guerreiro.
Santo Antonio de Jesus, Bahia
2010
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G745 Gramacho, Derval Cardoso.
Toré: uma tradição inventada na etnogênese dos Kiriri. / Derval
Cardoso Gramacho 2010.
123 f.
Orientador: Prof. Dr. Paulo de Assis Almeida Guerreiro.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Pós-graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, 2010.
1. Índios Kiriri. 2. Índios da América do Sul Brasil Bahia
I. Guerreiro, Paulo de Assis Almeida. II. Universidade do Estado da
Bahia, Programa de Pós-graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional.
CDD: 980.1
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga CRB-5/1396.
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Dedicatória
A minha mulher, Maria Vitória, parceira de tantas jornadas, minha eterna
gratidão, o meu amor e o meu carinho pela sua dedicação e cumplicidade.
Aos meus filhos e às minhas filhas e aos netos e netas com o meu eterno
reconhecimento pelas lições que me ajudaram a aprender, pela singularidade
com que transitam em minha vida.
À memória de meus antepassados que antes de mim percorreram este
caminho de construção do saber.
A minha mãe, Bernadete, ao meu pai, Jair, ao meu padrasto, Amadeu, e a Tia
Alice, todos in memoriam.
5
Agradecimentos
Ao Grande Espírito (Wakan Tanka), o Grande Pai (Tunkasila), o Criador e
Doador de toda vida, por me permitir existir e ter a permissão de realizar este
trabalho. Hecht etu aloh!
Agradeço a parceria, o apoio, a dedicação de todos os amigos e todas as
amigas presentes durante a realização deste projeto, em especial Edmary
Urpia, Theomária e Gilmar Alves.
Também não poderia deixar de constar o casal Lívia Maria Natália de Souza
Santos e José Henrique de Freitas Santos, corresponsáveis pelos primeiros
passos desta caminhada.
A José Carlos Santos Ribeiro, amigo e colaborador de todas as horas;
Verbena Córdula, Cristina Mascarenhas, André Fabrício da Cunha Holanda,
Jorge Lisboa de Paula, Daniela Maria Pereira de Souza, Josias Rocha Junior,
Maria Durvalina Cerqueira Santos, Ana Carolina Lima Castellucio, Telma
Cristina Damasceno-Fath, Ana Claudia Freitas Pantoja, Augusto Souza de Sá
Oliveira, Eliéte Oliveira, Tânia Motta, Suzane Lima Costa, Sebastião Heber
Vieira Costa, Anna Amélia de Faria, Ivan Gargur, entre outros, que serviram
de interlocutores, auxiliares e substitutos até mesmo nas atividades
profissionais para que eu pudesse estar presente em todas as etapas deste
projeto; pelas palavras de estímulo, pela confiança depositada, pelos livros
emprestados, doados, presenteados, pelas indicações de textos, filmes,
bibliografia de apoio à minha pesquisa. A todos e a todas o meu eterno
reconhecimento e gratidão.
Ao meu orientador, Professor Dr. Paulo de Assis Almeida Guerreiro, cuja
postura de professor despertou o meu respeito e admiração, agradeço pela
oportunidade de convivência e aprendizado durante o curso e a execução
deste projeto.
Ao corpo docente do Mestrado do Campus V (Multisaj), pela dedicação e
competência e pelos novos conhecimentos que me possibilitaram atingir.
6
Ao povo Kiriri, em especial, e a todos os povos indígenas do Nordeste
brasileiro que pela sua existência e essência me permitiram a realização
deste estudo de caso e a releitura de diversos saberes e apreensão de novos
conhecimentos, sentidos e significados. Pilamaya aloh. Mitakuye Oyasin.
7
Epígrafe
Tradição não é simplesmente o passado.
O passado é o marco. A Tradição é a continuidade.
O passado é o acontecimento que fica. A Tradição é o fermento que
prossegue.
O passado é a paisagem que passa. A Tradição é a corrente que
continua.
O passado é a mera estratificação dos fatos históricos já realizados.
A Tradição é a dinamização das condições propulsoras de novos fatos.
O passado é estéril, intransmissível. A Tradição é essencialmente
fecundadora e energética.
O passado é a flor e o fruto que findaram. A tradição é a semente que
perpetua.
O passado é o começo, as raízes. A Tradição é a seiva circulante, o
prosseguimento.
O passado explica o ponto de partida de uma comunidade histórica.
A tradição condiciona o seu ponto de chegada.
O passado é a fotografia dos acontecimentos. A tradição é a sua
cinematografia.
Enfim: Tradição é tudo aquilo que do passado não morreu.
Prof. Hélio Rocha
8
RESUMO
Uma leitura do ritual do Toré na prática dos povos Kiriri (BA) sob a ótica da
teoria da tradição inventada, proposta pelo pesquisador inglês Eric
Hobsbawm (2008) é o tema desta dissertação. A teoria sustenta que muitas
das tradições presentes no mundo contemporâneo na verdade se constituem
em tradições inventadas, termo pelo qual se entende como um conjunto de
práticas normalmente reguladas ou abertamente aceitas e que abarca, além
das tradições propriamente inventadas, construídas e formalmente
institucionalizadas, também aquelas cujo aparecimento se torna difícil de
localizar em um período de tempo e que se estabeleceram nas sociedades
com enorme rapidez. Este estudo igualmente busca identificar a importância
deste mesmo ritual enquanto instrumento capaz de servir como definidor de
uma identidade étnica. Detém-se na observação do modus vivendi dos Kiriri e
busca reconstituir um pouco da história deste povo que alcançou o
reconhecimento de sua indianidade nos anos de 1970 e somente em 1995
vem resgatar a posse de suas terras no município de Banzaê, no sertão
baiano. O objetivo deste estudo é ver como a adoção do Toré como sinal
diacrítico identitário dos povos indígenas do Nordeste, conforme instituído
pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a partir de meados do século XX,
mobilizou a comunidade dos Kiriri para adquirir e incluir o ritual e como sua
práxis influenciou as transformações do cotidiano da vida da coletividade.
Palavras chaves: Toré. Tradição inventada. Identidade. Etnicidade. Índios e
indianidade.
9
ABSTRACT
A reading of the ritual of the Toré in practice of the people Kiriri (BA) under
the optics of the invented tradition theory, proposed by the English
investigator Eric Hobsbawm (2008) is the subject of this dissertation. The
theory supports what a great deal of the present traditions in the
contemporary world in fact constitute in invented traditions, term for which
one understands like a set of normally regulated or openly accepted practices
and what comprises, besides the traditions properly invented, built and
formally institutionalizated, also arrange whose appearance becomes difficult
to locate in a period of time and what were established in the societies with
enormous speed. This study equally looks to identify the importance of the
same ritual while instrument able to serve like definer of an ethnic identity. Its
detain in the observation of the modus vivendi of the Kiriri and it looks to
reconstitute a little of the history of these people that reached the recognition
of his indianity in the years of 1970 and only in 1995 comes to rescue the
possession of his lands in the local authority of Banzaê, in the Bahia
backwoods. The objective of this study is to see like the adoption of the Toré
like diacritic sign identity of the native people of the Northeast, conformable
one set up by the Indian Protection Service (SPI), from middles of the century
XX, it mobilized the community of the Kiriri to acquire and to include the ritual
and since his práxis influenced the transformations of the daily life of the
community.
Words keys: Toré. Invented tradition. Identity. Ethnicity. Indians and indianity.
10
Sumário
Introdução ................................................................................................................ 10
1. Entre símbolos e significados ........................................................................... 34
1.1 Do imaginário ao significante identitário .............................................................. 37
1.2 No Toré, uma leitura da identidade na Pós-Modernidade .................................. 41
1.3 Conjeturas histórico-literárias ............................................................................. 46
2. Do ritual Tuxá ao Toré Kiriri .............................................................................. 48
2.1 O imaginário e a nova tradição ............................................................................ 50
2.2 Uma invenção empoderadora ............................................................................ 52
2.3 Contextualização histórica .................................................................................. 54
2.4 Aculturação, hibridismo ou sincretismo ............................................................... 56
2.5 Perda da língua, perda do simbólico .................................................................. 59
2.6 O SPI e o discurso positivista de proteção ao índio ............................................ 62
3. A invenção da tradição ...................................................................................... 68
3.1 Ab origine ou in illo tempore ............................................................................... 73
3.1.1 Índios, indígenas e parentes ........................................................................... 77
3.1.2 Quem são os Kiriri ........................................................................................... 81
3.1.3 O saber do índio e a verdade das matas .......................................................... 87
3.1.4 Fibra de 500 anos de resistência ..................................................................... 90
4. O ritual do Toré Novas tradições e grupos emergentes ............................... 93
4.1 Narrativas apagadas .......................................................................................... 95
4.2 A luta dos ressurretos pelo reconhecimento ...................................................... 98
4.3 Toré é coisa de índio ......................................................................................... 102
4.4 Toré e jurema: um complexo ritual ................................................................... 103
4.5 A dança e o enrame dos encantos .................................................................... 107
5. Reflexões .......................................................................................................... 111
Referências ....................................................................................................... 120
11
Introdução
O objetivo deste estudo é analisar o ritual do Toré na práxis do povo Kiriri,
com base na teoria desenvolvida pelo historiador inglês Eric Hobsbawm
(2008) de que muitas das tradições presentes no mundo contemporâneo na
verdade se constituem em tradições inventadas. Além disso, identificar a
importância deste mesmo ritual enquanto instrumento capaz de servir como
definidor de uma identidade étnica, conforme preconizado pelo órgão
governamental responsável pelo reconhecimento e doador de identidades
indígenas no Brasil.
Além de proceder à revisão bibliográfica e documental, este trabalho
demandou a prática de atividades de campo, conforme requer todo estudo de
caso, que envolve ainda um fazer observacional do objeto de estudo. Na
oportunidade, aproveitamos para colher algumas entrevistas, depoimentos e
imagens com vistas à futura realização de um documentário sobre a temática
do Toré. Detivemo-nos na observação do modus vivendi dos Kiriri e
buscamos reconstituir um pouco da história deste povo que acompanho há
algum tempo em face de exercer por mais de 30 anos a profissão de
jornalista e haver participado da cobertura de momentos específicos, a
exemplo da retomada de Mirandela.
Os kiriri aprenderam o Toré com o povo Tuxá, do município de Rodelas,
Bahia. Em 1974, um grupo liderado pelo cacique Lázaro se deslocou para
aquele município para assistir e participar do ritual e dar início ao
aprendizado. A adoção e inclusão social do novo rito mexeram com a
estrutura de crenças e a organização social vigente na comunidade Kiriri.
Também transformaram as relações inter-raciais, pois o Toré acabou por
consolidar o reconhecimento da identidade étnica dos Kiriri perante eles
próprios e os não índios, conforme a imagem que o seu repertório permite
fazer do que é este índio. Tal fato levou ao fortalecimento do grupo e reativou
12
os esforços no sentido de expulsar os posseiros que ocupavam suas terras
até 1995, quando conseguiram a retomada da reserva indígena.
Para dar conta de tanto conteúdo, foi preciso nos escudar nos discursos de
autores e pesquisadores de culturas similares e de povos outros cujas
características são semelhantes às dos nossos povos nativos. Não
pretendemos e não assumimos o lugar de fala dos índios, porque não é este
nosso objetivo. Nossa intenção é lançar um olhar antropológico sobre uma
prática ritual classificada como tradição, que faz parte de uma cultura que
aqui podemos definir como a constituição significativa e a contextualização
social das expressões linguísticas, gestos, ações, conforme Hill (2006, p. 34).
Em uma visão sociológica, o termo cultura também pode ser apreendido
como o resultado de uma mistura entre razão e emoção que vai ter, entre
outras, uma função estruturante, orientadora, e operadora (HILL, 2006, p. 34)
e que Edward Tylor (1832-1917) sintetizou em seu significado etnográfico,
como o complexo que envolve conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem
como membro de uma sociedade (LARAIA, 2006, p. 25). Logo, a cultura é
aprendida e se perpetua pela permanência do grupo social.
Neste caso que nos detemos para estudar, chegamos à compreensão de que
cultura é também o conjunto de todas as tradições, sejam elas inventadas,
em conformidade com a teoria de Hobsbawm (2008), quer sejam tão antigas
quanto o grupo no qual se manifesta através de seu caráter estruturador,
operador, orientador ou mesmo supridor.
13
Uma jornada pessoal
Do contato com as diversas etnias indígenas nordestinas, iniciado em 2000,
quando fui convidado a prestar consultoria à Organização Não
Governamental (ONG) Águia Dourada, que reunia representantes de algumas
tribos da região, encabeçada por líderes Fulni-ô, despertou a minha
curiosidade sobre as práticas rituais dos povos nativos do Nordeste
brasileiro. À época, pessoalmente já havia passado por algumas iniciações
xamânicas nas tradições do povo Lakota, dos Estados Unidos, e havia
escrito, em parceria com Victória Gramacho, dois livros sobre as práticas e o
conhecimento daquele povo, oportunidade em que também nos debruçamos
sobre estudos a respeito das culturas de indígenas brasileiros.
Em 2001, deixei a Águia Dourada e passei a atuar na ONG Thydêwá que,
orientada pelo argentino radicado no Brasil, Sebastián Gerlic, passou a
agregar mais povos indígenas que a primeira e absorveu boa parte dos
nativos que migraram para a nova organização. Das atividades da Thydêwá
nasceram mais de uma dezena de livros, cada um dedicado a um povo
(Pankararu, Truká, Kariri-Xocó, Tupinambá, Kiriri, Tumbalalá, entre outros),
dos quais participei como consultor e revisor, além da publicação Arco
Digital
1
, que assino como coeditor.
Também nesta ONG auxiliei a implantação, como orientador de oficinas de
treinamento, a rede Índios online
2
. Esta rede deu acesso aos habitantes de
aldeias nos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, inicialmente,
à Internet. Com isto, ampliou-se a possibilidade de comunicação e inter-
1
O livro Arco digital Uma rede para aprender a pescar (Maceió, 2007), é fruto de uma
ação que envolveu mais de 100 indígenas de 20 nações na produção de textos e fotos. Foi
publicado pela Thydêwá com apoio do Ministério da Cultura e do Instituto Oi Futuro, e
organizado por Nhenety Kariri-Xocó; Derval Gramacho; e Sebastián Gerlic.
2
Endereço na web www.indiosonline.org.br.
14
relação dos índios e o desenvolvimento de projetos comuns a todos os povos
congregados na Thydêwá.
A Thydêwá trabalha para o resgate, a preservação, a defesa e
a valorização da cultura indígena. A iniciativa pretende criar
uma nova cultura de paz na região e acabar com o
preconceito. "Sabemos que não será de forma rápida que
iremos conseguir mudar essa realidade. Historicamente, os
índios sempre foram vistos como escravos e têm muitos
problemas com os donos das terras, pois estas não são
demarcadas e também devido ao poder e dinheiro envolvidos.
Mas os Pataxós são um povo necessitado de respeito e estão
buscando os seus direitos", assegura Sebastian Gerlic,
presidente da organização e coordenador do projeto
(DIMENSTEIN, 2004).
Deste contato com os Kiriri, Tumbalalá, Kariri-Xocó, Pankararu, Tupinambá,
Pataxó --Hãe, Pataxó do Prado, Truká, Fulni-ô, entre outros, nasceu o
nosso interesse e observação sobre as formas de relacionamento, dos
discursos, dos rituais, entre os quais o Toré.
O Toré despertou-nos a atenção pelo fato de se revelar como uma presença
natural entre todos esses povos. Em cada reunião, em toda apresentação
para o público, o Toré era mostrado e se enunciava como uma narrativa
sobre uma identidade indígena, reconhecida como tal pelos não índios
assistentes ou partícipes dos eventos. Nesta narrativa, observa-se a
presença de poucos símbolos cujos significados são incomuns aos povos
nativos.
A repetição de um ato simbólico nas narrativas do Toré foi percebida por nós
como um indício de que estávamos diante de uma tradição inventada, ou
ainda perante um caso de hibridismo cultural.
A escolha pela expressão tradição inventada se dá em face de entendermos
que a teoria esboçada por Hobsbawm (2008), acolhida e endossada por
pesquisadores do quilate de Bhabha (1998), Hall (2006) e Castoriadis (2007),
15
entre outros destacados nomes do cenário internacional, não fere o princípio
do que, hoje, os pesquisadores denominam de etnogênese. Ao contrário,
entendemos que os estudos de Hobsbawm (idem) fazem parte do conjunto de
fenômenos que formam o processo etnogenético. Muito embora tal teoria
tenha sido delineada por um historiador, pode-se perceber na mesma um teor
que mais se aproxima da antropologia e da sociologia do que da história.
Este caráter nos fez votar pela opção de manter o nosso estudo
fundamentado na tradição inventada como um elemento ou uma variável da
etnogênese. E nosso olhar se propõe a ter um caráter mais próximo da
antropologia.
Hibridismo um conceito pertinente ao desenvolvimento histórico
Canclini (2008) explica o conceito de hibridação como os processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de
forma separada, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e
práticas (idem, p. 29). Para elucidar o que denomina de ciclos de hibridação,
isto é, o trânsito do discreto ao híbrido e a novas formas discretas, ele busca
apoio no antropólogo Brian Stross, professor da Universidade do Texas, para
quem, historicamente as experiências humanas têm passado de formas mais
heterogêneas a outras mais homogêneas, e depois a outras relativamente
mais heterogêneas, sem que nenhuma seja pura ou plenamente
homogênea (idem, p. 20).
Ainda que o conceito de hibridação seja antigo e pertinente ao
desenvolvimento histórico, Canclini (2008) questiona quanto ao fato de este
termo ser bom ou ruim, pois
16
Ao transferi-la da biologia às análises socioculturais, ganhou
campos de aplicação, mas perdeu a univocidade. Daí que
alguns prefiram continuar a falar de sincretismo em questões
religiosas, de mestiçagem em história e antropologia, de fusão
em música. Qual é a vantagem, para a pesquisa científica, de
recorrer a um termo carregado de equivocidade? (CANCLINI,
2008, p. 19).
Na compreensão de Canclini (2008), o século XX foi um terreno fértil para a
multiplicação de processos hibridizatórios e facilitou a colocação, sob um
mesmo termo, de fatos tão variados quanto a combinação de ancestrais
africanos, figuras indígenas e santos católicos na umbanda brasileira
(CANCLINI, 2008, p. 20), por exemplo. O conceito de hibridismo tem sido
usado de forma mais intensa desde a década dos anos 1990, sobretudo nas
abordagens de processos interétnicos e de descolonização, globalizadores,
fusões artísticas, literárias e comunicacionais, entre outras.
Desta forma, o conceito de hibridação tem sido útil para sinalizar e explicar
múltiplas alianças, a exemplo do imaginário pré-colombiano com o novo-
hispano dos colonizadores e, em seguida, com o das indústrias culturais
(idem, p. 21). Até então os raros escritos históricos das hibridações
evidenciaram a produtividade e o poder inovador de muitas misturas
interculturais (CANCLINI, 2008, p. 22).
Assim, ele sustenta que a forma pela qual a hibridação estabelece estruturas
ou práticas sociais discretas para produzir novas estruturas e práticas, nem
sempre é de modo planejado e, às vezes, dá-se como resultado não previsto
de processos migratórios, ou ainda, de turismo e de intercâmbio econômico
ou comunicacional.
[] freqüentemente a hibridação surge da criatividade
individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida
cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se
reconverter um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação
profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri-
17
lo em novas condições de produção e mercado (CANCLINI,
2008, p.22).
Reconversão para o professor da Escola Nacional de Antropologia e História
do México, é a palavra que explica
[] as estratégias mediante as quais um pintor se converte em
designer, ou as burguesias nacionais adquirem idiomas e
outras competências necessárias para reinvestir seus capitais
econômicos e simbólicos em circuitos transnacionais
(Bourdieu). Também são encontradas estratégias de
reconversão econômica e simbólica em setores populares: os
migrantes camponeses que adaptam seus saberes para
trabalhar e consumir na cidade ou que vinculam seu
artesanato a usos modernos para interessar compradores
urbanos; os operários que reformulam sua cultura de trabalho
ante as novas tecnologias produtivas; os movimentos
indígenas que reinserem suas demandas na política
transnacional ou em um discurso ecológico e aprendem a
comunicá-las por rádio, televisão e internet. [] A análise
empírica desses processos, articulados com estratégias de
reconversão, demonstra que a hibridação interessa tanto aos
setores hegemônicos como aos populares que querem
apropriar-se dos benefícios da modernidade (CANCLINI, 2008,
p. 22).
Os processos de hibridação induzem ao comportamento de relativizar a
noção de identidade, bem como e na clausura toda pretensão de fixar
identidades puras ou autênticas, cujas ocorrências são contestadas por Hall
(2006) e Bhabha (1998), entre outros. Para Hall (2006), as mudanças
estruturais que acometem o ambiente social desde o final do século XX, além
de fragmentar as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia,
raça e nacionalidade, que antes forneciam as configurações do indivíduo
social, também passaram a intervir nas identidades pessoais e abalaram a
idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados (HALL, 2006, p.
9).
18
Há, neste caso, a perda de um sentido de si, conforme enfatiza Hall (2006),
sentimento ao qual também denomina de deslocamento ou descentração do
sujeito. Este deslocamento/descentramento do indivíduo quer do seu lugar no
mundo social e cultural, quer de si mesmo, constitui uma crise de identidade.
Tal fator é explicado por Hall (2006) pela citação de Mercer (1990), para
quem, a crise funciona como o agente que põe a identidade como uma
questão, pois só neste momento é que algo que se supõe como fixo,
coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza
(MERCER, 1990, p. 43, in HALL, 2006, p. 9). Logo
[] o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as
identidades que compunham as paisagens sociais lá fora e
que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
necessidades objetivas da cultura, estão entrando em
colapso, como resultado de mudanças estruturais e
institucionais. O próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-
se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2006, p.
12).
Tais considerações servem de apoio à consolidação do discurso cancliniano
quanto à questão da hibridação das culturas, cujo processo evidencia o risco
de delimitar identidades locais autocontidas ou que tentem afirmar-se como
radicalmente opostas à sociedade nacional ou à globalização (CANCLINI,
2008, p. 23). Destarte, acentua o autor, quando se estuda os processos
culturais percebe-se que mais do que levar-nos (sic) a afirmar identidades
auto-suficientes, serve para conhecer formas de situar-se em meio à
heterogeneidade e entender como se produzem as hibridações (idem, p. 24).
Contudo, ele indica como empecilho para se alcançar a capacidade de
promover a reforma da pesquisa intercultural e interferir no projeto de
políticas culturais transnacionais e transétnicas o fato de os estudos sobre
19
hibridação se limitarem à descrição dos processos de misturas interculturais.
A seu ver, são recentes os estudos sobre os processos de hibridação que os
coloca em relações estruturais de causalidade, bem como é possível dotar a
hibridação de capacidade hermenêutica para interpretar as relações de
sentido que se reconstroem nas misturas (CANCLINI, 2008, p. 24).
Neste sentido, o autor revela que o conceito de hibridação se torna útil nas
pesquisas que buscam conglomerar de forma conjunta relações interculturais que
por vezes recebem denominações diversas, a exemplo de fusões raciais ou étnicas
chamadas mestiçagem; o sincretismo de crenças, ou misturas entre o artesanal e o
industrial, o culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagens midiáticas.
Estes termos mestiçagem, sincretismo, crioulização
continuam a ser utilizados em boa parte da bibliografia
antropológica e etno-histórica para especificar formas
particulares de hibridação mais ou menos clássicas. [] A
palavra hibridação parece mais dúctil para nomear não só as
combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também
a de produtos de tecnologias avançadas e processos sociais
modernos ou pós-modernos. [] Destaco as fronteiras entre
países e as grandes cidades como contextos que condicionam
os formatos, os estilos e as contradições específicos da
hibridação. As fronteiras rígidas estabelecidas pelos Estados
modernos se tornaram porosas. Poucas culturas podem ser
agora descritas como unidades estáveis, com limites precisos
baseados na ocupação de um território delimitado. [] A
hibridação ocorre em condições históricas e sociais
específicas, em meio a sistemas de produção e consumo que
às vezes operam como coações, segundo se estima na vida de
muitos migrantes (CANCLINI, 2008, p. 29).
Diante de tais argumentações podemos admitir que o nosso trabalho é feito a partir
de uma leitura híbrida, ou seja, utiliza conhecimentos da cultura urbana ocidental
para pensar os símbolos de culturas indígenas que se põem, apesar de serem
também ocidentais, diametralmente opostas ao conhecimento etnocêntrico,
eurocêntrico e grafocêntrico da nossa civilização. Mesmo que, na
contemporaneidade o sujeito desta cultura diversa se faça utilizador e consumidor
20
da sociedade e dos saberes globalizados. Fazemos assim de forma consciente e,
conforme coloca o próprio Canclini (2008), ainda quem prefira outros termos que
não o hibridismo para se referir às convergências religiosas ou étnicas.
Sincretismo e diferenças entre costumes e tradições
Nos nossos estudos preferimos usar o termo sincretismo nas referências às
questões religiosas e também analisar a práxis do ritual do Toré pelos Kiriri como um
evento que pode ser incluído na teoria da tradição inventada. Conforme Hobsbawm
(2008, p. 9) tradição inventada é um termo usado em um sentido amplo, embora
nunca indefinido. Este conceito abarca, além das tradões propriamente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, também aquelas cujo aparecimento
se torna difícil de localizar em um período de tempo e que se estabeleceram nas
sociedades com enorme rapidez.
Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade
em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se
estabelecer continuidade com um passado histórico
apropriado. Exemplo notável é a escolha deliberada de um
estilo gótico quando da reconstrução da sede do Parlamento
britânico no século XIX, assim como a decisão igualmente
deliberada, após a II Guerra, de reconstruir o prédio da
Câmara partindo exatamente do mesmo plano básico anterior.
O passado histórico no qual a nova tradição é inserida não
precisa ser remoto, perdido nas brumas do tempo. Até as
revoluções e os movimentos progressistas, que por definição
rompem com o passado, têm seu passado relevante, embora
eles terminem abruptamente em uma data determinada, tal
como 1789 (HOBSBAWM, 2008, p. 9-10).
21
O autor revela que, na ocorrência desta relação com um passado histórico, o
vínculo entre este passado referencial e as tradições inventadas se dá em um
nível de continuidade que ele considera ser bastante artificial. Isso porque,
em sua opinião, tais práticas rituais podem ser lidas como reações a
situações novas que ou assumem a forma de referência a situações
anteriores ou, por outro lado, constituem o seu próprio passado por via da
repetição quase que obrigatória (HOBSBAWM, 2008, p. 10).
Conforme a teoria, nas sociedades ditas tradicionais, costume e tradição são
coisas diferentes. Isso porque o costume até mesmo nessas sociedades não
impede a ocorrência de inovações e aceita mudanças, desde que às
mudanças possam dar a sanção do precedente e o caráter de continuidade
histórica. Hobsbawm (2008) entende que o costume não pode se fixar,
cristalizar-se, em face da dinâmica da vida que se apresenta cotidianamente
mutável, inclusive dentro das comunidades tradicionais. A função do costume
é, portanto, evitar a fixidez que impeça a inovação e a mudança e dar a este
processo a legalização de acordo com o expresso na história. Logo, diz o
pesquisador, a decadência do costume inevitavelmente modifica a tradição
à qual ele geralmente está associado (HOBSBAWM, 2008, p. 10).
Por outro lado, as tradições se estruturam e se mantêm pela repetição
invariável do ritmo de suas narrativas que procuram consolidar a rigidez que
inviabiliza assumir e consumir a inovação e a mudança. Portanto, consoante
com o teórico, é característica própria das tradições, inventadas ou não,
assegurar a invariabilidade. Neste sentido, é importante observar que isso
decorre do fato de o passado seja ele real ou urdido , ao qual a tradição
se referencia, impor práticas fixas, como a repetição. E é pela repetição que
elas se consolidam. Como no caso do Toré.
Na prática deste ritual, a tradição dos povos nativos do Nordeste se impõe
como uma forma de reação a uma exigência do não índio (no caso, o
governo), que aqui pode ser lida como uma nova situação (inovação), a qual
simbolicamente vai ressignificar a identidade deste povo perante os não
indígenas. Para tanto, o Toré também precisa adquirir significado, o que se
22
torna possível através da construção de um passado próprio que pela prática
repetitiva vai dar a forma de referência a situações precedentes e fixar-se em
um ponto da história. Ponto este que vai gerar um marco histórico que passa
a se constituir como o passado desta tradição.
Convém antecipar um pouco, nesta apresentação, o texto de Castoriadis
(2007) que vamos abordar mais adiante. Para este autor, o termo tradição
encaminha a nossa percepção de que se trata de uma instituição fixada por
meio de narrativas, e ainda impregnada de simbologia. Para ele, tudo aquilo
que nos é apresentado no contexto sociohistórico, está invariavelmente
tramado com o simbólico, ainda que não se esgote meramente neste
simbólico (CASTORIADIS, 2007, p. 142).
O autor observa que as consignações do simbólico levam, neste caso, ao
elemento imaginário implícito a todo símbolo e todo simbolismo. É este
imaginário que nos conduz à compreensão de se tratar de algo inventado,
cuja apreensão é feita a partir do que, para ele, pode ser consequência de
um deslocamento de sentido, e que símbolos disponíveis anteriormente se
veem acometidos de significações que não as suas normais ou canônicas
(CASTORIADIS, 2007, p. 154). Tais considerações nos devolvem ao texto de
Hobsbawm (2008). De acordo com este último, o costume traz os símbolos
que vão significar a tradição inventada ou forjada que, por seu turno, vai
ressignificar a sociedade, seja ela tradicional ou não.
Os equívocos da lei
Ao longo de nossa pesquisa para a realização deste projeto, pudemos
perceber que, no tocante às culturas dos nativos nordestinos, é difícil
constituir-se marcos históricos em função da ausência de literaturas ou de
23
narrativas precisas. Os historiadores construtores da narrativa da história
brasileira abandonaram o discurso do colonizado e se ativeram apenas e tão
somente às falas do poder colonizador. Com isto, criamos imagens
deturpadas quanto a quem eram os habitantes primevos deste território do
qual foram expropriados física e sentimentalmente. O discurso colonial foi tão
forte que o Brasil é lido hoje como uma nação formada pelos afro-
descendentes, sem que a população atual faça qualquer vínculo com o fato
de ser índio-descendente.
Esta leitura pode ser comprovada na decisão imposta pelo governo através
da Lei nº 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de História da
Cultura Africana nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Este
diploma legal altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996.
De modo que o não cumprimento da Lei nº 10.639 é o mesmo que não
cumprir a LDB, o que pode resultar até em fechamento da escola em falta
pelo Ministério da Educação.
Ainda que três anos antes de tratar da aprovação da Lei nº 10.639, em 2000,
quando o País comemorava os 500 anos do Descobrimento
3
, a imprensa
houvesse dado ampla cobertura às manifestações de várias nações
indígenas que protestaram contra as políticas discriminatórias e opressoras
exercidas pelos poderes oficiais constituídos do Brasil, o discurso dos índios
caiu no vazio. A reação do governo foi apelar para a força repressora através
do braço punitivo do Estado, a polícia. Isto serviu para silenciar ou
deslegitimar a posição dos indígenas que ante a ação policial passou a ser
vista e narrada como perturbadores da ordem e do bem estar social que
tumultuavam as comemorações do quinto centenário de tão importante
evento.
3
Somos adeptos da ideia defendida hoje pela quase totalidade dos historiadores,
sociólogos e antropólogos de que o episódio referenciado como descobrimento foi, na
verdade, o achamento do Brasil, o que se comprova, entre outras coisas, pelo fato de os
portugueses já trazerem, na época, um nome previamente definido Vera Cruz, que
significa a cruz verdadeira. Isto já era um indício de que os navegadores sabiam de
antemão o que procuravam e o que iam achar.
24
Somente em março de 2008 é que o governo volta a repensar a questão da
obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e decide alterar a
legislação. Naquele momento, a Lei nº 10.639/03 é revogada pela Lei nº
11.645, de 10 de março de 2008, para acrescentar a obrigatoriedade do
ensino da cultura indígena e da cultura africana, conforme a Lei n. 9.394/96,
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Tal fato, no entanto, não significa que a cultura indígena é reconhecida como
o conjunto de tradições e práticas autóctones. O índio continua a ser o
excluído, o povo posto à margem da sociedade brasileira por não ter, ainda,
no entendimento da legislação nacional, a capacidade e habilidade de
conviver socialmente conforme as regras dos não índios, ou seja, não está
apto a assimilar e adotar o nível de civilização do País, conforme o artigo
sexto do Código Civil brasileiro.
As políticas indigenistas cometidas pelo governo desde a proclamação da
República que se consolidam a partir de 1910, com a criação do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), são suficientemente explícitas no sentido de
reconhecer o índio como um ser incapaz de responder por ele mesmo. Ao
mesmo tempo propõe a adequação deste índio à cultura eurocêntrica mantida
pelas classes sociais dominantes do País, vez que somente a cultura branca
se constitui em uma boa cultura, pois só ela é capaz de propiciar o
desenvolvimento da sociedade. Os alheios a esta cultura, como os indígenas,
não estão aptos a conviver nesta sociedade e precisavam ser preparados
para se verem incluídos nas periferias desta sociedade predominante e
ocupar um lugar nas margens das urbes.
O índio era e ainda é considerado como o sujeito descontextualizado,
sobretudo historicamente. Sua narrativa foi substituída pela do colonizador
que o afasta do tempo histórico para colocá-lo no terreno do estranhamento,
no qual se nega ao mito (aqui entendido como tradição que, através do
alegórico, propicia a exposição simbólica de um fato natural, histórico ou
filosófico,) a sua qualidade intrínseca de mito e lhe atribui a condição de
lenda (evento ou história fantasiosa cuja veracidade não pode ser
25
comprovada). Ele é o possuidor de uma cultura bárbara, sempre referenciada
pelo caráter antropofágico, repetido à exaustão como o motivo que justifica a
intervenção do Estado, desde o tempo da coroa portuguesa, em seu modus
vivendi. Inclusive no aspecto religioso pela imposição da fé cristã, e da
extinção de aldeias inteiras para combater a contaminação da sociedade não
índia pelos hábitos perniciosos desse povo que consome carne humana, que
não professa a religião, crê nas forças elementais e naturais como se deuses
fossem, anda nu e vive em plena mata. Motivos suficientes para se tentar
transformar o sujeito índio e torná-lo adaptável à cultura do homem branco e
colocá-lo em situação de civilidade.
Olhar esta ausência do índio das narrativas históricas nos remete a uma
interpretação dalinguagem articuladora das crises sociais deflagradas a
partir das histórias de diferença cultural, como ressalta Bhabha (1998). Estes
conflitos se sustentam, de acordo com o autor citado, na concepção de
desrespeito, termo forjado nas fronteiras da destituição étnica que é, ao
mesmo tempo, o signo da violência racializada e o sintoma da vitimização
social (BHABHA, 1998, p. 20). Este desrespeito se revela em uma forma de
vitimização através da imposição ao índio da ditadura do silêncio, o que torna
inaudível o seu discurso perante a sociedade na qual ele não consegue se
inserir.
Bhabha (1998) aponta que o discurso colonial como aparato de poder se
sustenta no reconhecimento e repúdio de diferenças raciais, culturais e
históricas. O seu papel estratégico principal é, para o autor, criar um espaço
para abrigar povos sujeitos. Espaço este que se configura pela produção
de conhecimentos do colonizador e do colonizado que são estereotipados
mas avaliados antiteticamente (BHABHA, 1998, p. 111). Isto porque o
discurso colonial sempre pretende apresentar o colonizado como um tipo
degenerado pela sua origem racial, o que vai servir de justificativa para a
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução (idem, idem).
Uma análise do discurso colonial permite identificar que nele se manifesta,
sobretudo, uma fixidez na construção ideológica da alteridade, como enfatiza
26
Bhabha (1998, p. 105). A percepção desta fixidez se revela, nesse discurso,
como signo da diferença cultural, histórica, racial e sexual que pode ser lido
como rigidez ou como uma ordem imutável, ao tempo em que pode ser
sentida também como desordem, degeneração e representação demoníaca,
qualidades emprestadas ao colonizado de forma exacerbada para justificar a
intervenção. Intervenção que se concretiza na desapropriação do território
afetivo para desconstruir a identidade do colonizado que pode ser um Outro
para o colonizador, mas não necessariamente reconhecido como o seu álter,
desde quando lhe é similar, mas não exatamente igual.
Freire (1969) entende que as relações entre o dominador e o dominado, são
o reflexo de um contexto social mais amplo, ainda que se manifestem em um
plano formalmente pessoal. Assim, de acordo com o pensamento freiriano,
como decorrência desse tipo de relação, o dominado termina por assumir,
mediante o processo de introjeção, os mitos culturais do dominador. De igual
modo, a sociedade dependente absorve os valores e estilo de vida do
colonizador. Disso resulta, na percepção do autor, uma dualidade da
sociedade dependente, que se sente atraída e rejeitada pela sociedade
metropolitana ao mesmo tempo.
Constata-se, então, que, além do seu território físico, o índio foi
desapropriado também do seu território afetivo. A desapropriação, neste
sentido, desterrou o índio do lugar onde suas práticas rituais, seus costumes
e sua tradição estavam instalados, onde construíram relações sociais e de
parentesco. Pela imposição de uma nova fé, consolidou-se, no Brasil colônia,
o discurso imperialista que levou os indígenas ao sujeitamento a obediência
cega e muda ao colonizador , e à escravidão.
É a partir daquele momento no qual o índio é desapropriado de seu espaço
físico e de seu lugar emocional que o colonizador impõe ao colonizado um
novo conceito de cultura que Freire (1969) designa de cultura do silêncio.
Este silêncio, definido primeiramente como mutismo, caracteriza-se
notadamente pela ocorrência de uma resposta que falece de criticidade. A
cultura do silêncio é própria de sociedades às quais são negados a
27
comunicação e o diálogo, substituídos pelo que Freire denomina de
comunicados.
Para compreender a teoria da cultura do silêncio, é preciso tomá-la como
parte constitutiva de um todo maior e no qual se deve reconhecer a cultura ou
culturas que determinam a voz da cultura do silêncio que é fruto da relação
entre o colonizado e o colonizador. Isto é, o conceito da cultura do silêncio
pressupõe uma análise da dependência do fenômeno relacional entre a
cultura do silêncio e a cultura que tem voz. De acordo com Lima (1981),
Freire se preocupa com aquelas pessoas que não têm uma voz própria, uma
postura crítica, que sofrem de dualidade existencial e de um senso de
autodepreciação e são caracterizadas pela submissão e pelo silêncio (LIMA,
1981, p. 89).
Na concepção teórica de Freire (1969) a sociedade dependente é uma
sociedade silenciosa porque não tem uma voz autêntica, e quando fala é
como um eco da voz da metrópole. Logo,a metrópole fala, a sociedade
dependente ouve (FREIRE, 1969, p. 32-37). Este silêncio de um em face do
outro se reproduz também no interior da sociedade dependente quando a sua
elite silenciosa diante da metrópole silencia o seu próprio povo. A imposição
do silêncio faz com que o dominado esqueça a sua língua. Com o
apagamento dessa linguagem que vai possibilitar a sua identificação como
pertencente a determinado grupo a sua identidade também vai ser
descentrada.
Isso em face de que sem a fala ele perde o referencial de pertença ao seu
grupo. Ao falar sobre a importância da língua na estruturação identitária do
indivíduo no sentido sociocultural, Hall (2006, p. 40) vai-se socorrer em
Saussure, para quem a língua é um sistema social e que pré-existe ao
indivíduo; e em Lacan, cujo entendimento é de que a identidade está
estruturada como a língua, de tal modo fixada no inconsciente que o/a
falante individual não pode, nunca fixar o significado de uma forma final,
incluindo o significado de sua identidade (HALL, 2006, p. 40-41). Mergulhado
na cultura do silêncio, o dominado, quando finalmente sente a necessidade
28
de ocupar um lugar de fala, percebe que por não recordar mais a sua própria
língua vai apropriar-se da língua do dominador, muito embora não seja capaz
de assimilar o discurso do dominante.
O colonizador falante sabe que a identidade se constrói através do falar e é
nesta fala, de acordo com Fanon (2008), que o sujeito vai poder existir para o
outro e vice-versa. Por isso, busca justapor à língua do sujeitado a sua fala.
É através deste processo que o primeiro vai promover o esvaziamento da
cultura dominada, desconstruir a identidade do indivíduo que se enxergava
dentro de um grupo que lhe permitia assumir uma nacionalidade,
religiosidade, etnicidade etc.
A perda da língua, consequência do processo histórico de dominação,
constitui-se em um empecilho para a construção de relatos por parte dos
povos nativos sobre suas tradições. Torna-se difícil repetir a narrativa de
eventos e rituais, por exemplo, cujas estruturas estão estreitamente
vinculadas à linguagem, hoje apagada quase que por completo, na vivência
de cada povo indígena nordestino.
É particularmente difícil, por exemplo, tentar explicar o que é o Toré quando
a única expressão do idioma que se tem, na maioria das tradições, sobre
este evento é o nome do ritual. Como o homem branco submeteu os índios, à
semelhança do que fez com os africanos, à sua cultura e anexou-os às suas
tradições, nas quais a oralidade foi afastada pela conquista da escrita, o
índio viu as suas tradições escorrerem por entre os dedos e a memória do
tempo. Para sobreviver na nova ordem, teve que buscar entender a língua do
dominador e assimilar os seus hábitos e costumes. A sua cultura oral se
perdeu no tempo e as novas gerações, cada vez mais apartadas dos seus
ancestrais, não mais percebem a sua fala original, mantêm apenas um ou
outro vocábulo que geralmente nomeia algum substantivo simples.
Se a língua é entendida como um sistema de signos que exprimem ideias,
comparável, entre outros elementos, aos ritos simbólicos, pode-se concluir
que a língua constitui uma instituição social que deve ser também analisada
29
pelo prisma de sua anterioridade às outras práticas, pelo seu papel
fundante (GOMES, 2000, p. 15).
Para esta autora, o diálogo ou a troca de palavra, é o que define, em um
grupo, o pacto social que se estabelece entre os membros deste grupo e o
define como ele é e como se processa a troca da palavra e estabelece o
sistema comum de fala pela conversa em uma mesma língua.
A velha terminologia língua-mãe nos dá bem a dimensão
constituinte a que estamos submetidos por esse sistema de
diferenças: não se troca fora do simbólico, fora das
diferenciações, proibições/sanções estabelecidas.
Na língua, como instituição social, nos organizamos enquanto
pacto, sempre levando em conta o estatuto desse pacto/língua
que nos precede e em relação ao qual não temos escolha.
Somos constituídos na linguagem como sujeitos singulares e
sociais de um só golpe (GOMES, 2000, p. 15-16).
É nos toantes que marcam o ritmo do Toré onde uma memória da linguagem
desse povo é avivada e resgata com a nítida intenção de atribuir ao ritual o
caráter de elemento identificador de suas etnias. São palavras, expressões
aprendidas com os mais velhos da tribo e que vão dotar os toantes de uma
possibilidade de cunhar um elo de identificação do indígena, conforme
pretendido pelo representante do SPI, Raimundo Dantas Carneiro, na década
dos anos de 1950, quando decidiu, de acordo com o imaginário dos não
índios sobre a representação do que deve ser um índio, fixar o Toré como o
elemento significador desta identidade étnica.
Todo este conteúdo aqui esboçado e os diferentes olhares sobre o objeto de
nosso estudo obviamente devem aparecer mais detalhadamente ao longo dos
capítulos que se seguem. Neles nos propomos a construir não uma nova
teoria, mas a condição de uma nova maneira de olhar e de ver este índio
nosso ancestral primevo como autor de sua própria história, ainda que
30
ágrafo, e ocupante do seu próprio lugar de fala, até mesmo pela sua cultura
caracteristicamente oral.
Teoria do empoderamento
Para tanto, este estudo se compõe de quatro partes nas quais pretendemos
fazer uma leitura sobre o ritual do Toré praticado pelo povo Kiriri. A escolha
pelos Kiriri se dá em rao de esse povo ter apresentado, desde a
incorporação de tal prática ritual ao seu modus vivendi, uma mudança de
atitude que poderíamos interpretar como um rompimento com a cultura do
silêncio para assumir uma posição de empowerment (empoderamento).
A idéia de empoderamento (empowerment) começou a ser desenhada nos
primeiros anos da segunda metade do século XX, quando se acentuam as
lutas pelos direitos civis, a exemplo do movimento feminista. Nos anos 1990,
a teoria do empoderamento se aproxima de movimentos de afirmação de
direitos da cidadania. De acordo com o sociólogo norte-americano crítico do
capitalismo e uma das principais vozes do movimento antiglobalização,
Immanuel Wallerstein (1992), pode-se pensar o empoderamento como ganho
de poder, revelado no fato de que determinados grupos conquistam melhor
posição na sociedade para enfrentar situações de opressão e injustiças, ou
ainda como uma concessão, na qual grupos majoritários com mais poder
empoderam os grupos minoritários considerados incompetentes para
influenciar, negociar, participar, controlar e sustentar situações e condições
que comprometem suas próprias vidas.
Há os que interpretam a ideia do empowerment como a dimensão criativa e
instituinte da ação política através de processos de mobilizações e práticas
capazes de agenciar e ou impulsionar determinados grupos ou comunidades.
31
Neste sentido, pode-se destacar o movimento que se originou na transição da
década de 1960 para a seguinte, 1970, dentro da Igreja Católica que se
configurou como a Teologia da Libertação. Esta facção, que teve entre seus
expoentes o então frei Leonardo Boff, reagia à apatia da Igreja diante do
sofrimento humano e do não reconhecimento das denúncias e não combater
a violência e injustiças cometidas contra os menos favorecidos.
A partir dos grupos adeptos da Teologia da Libertação começou-se todo um
trabalho de resgate da dignidade humana junto às populações carentes e/ou
marginalizadas, a exemplo das populações indígenas, que com a
recuperação da autoestima começam a se empoderar e fazer com que os
seus discursos se tornassem audíveis para os segmentos da sociedade
dominante e ocupar espaço nos meios de comunicação. Pois a ação dos
teólogos libertários se dá no sentido de promover e propiciar a integração e o
investimento dos excluídos e carentes nos bens elementares à sobrevivência.
O pensador Paulo Freire tem sido considerado, pela sua obra e sua
dedicação à causa dos oprimidos e oposição ao neoliberalismo, como um dos
mais importantes interventores social radical em função de suas propostas de
atuação nas causas das situações-problemas através da interrupção da
reprodução das estruturas opressoras da sociedade, as quais perpetuam
situações de dominação. A interferência neste sentido só pode ser
conseguida pela educação, entendida por Freire (1967), comoprática da
liberdade, capaz de conscientizar o indivíduo de sua condição de oprimido e
instrumentalizá-lo (empoderá-lo) para agir sobre esta realidade, de modo a
modificá-la. Neste caso, enfatiza Freire (1967), a ação do interventor social é
de apoiar o processo, mas sem o conduzir, e ajudar o indivíduo a enfrentar o
medo da liberdade que a tomada de consciência da necessidade de
mudança (empowerment) pode gerar, e fazê-lo aceitar e desempenhar o seu
papel de sujeito do processo histórico.
Assumir o ritual do Toré como símbolo de um processo que permitiu o
reconhecimento dos indivíduos e do grupo ao qual pertencem e se verem
reconhecidos, fortaleceu a autoestima do povo Kiriri. Mais ainda: este
32
simbólico que se atém ao ritual é e foi capaz de impulsionar os Kiriri à prática
de uma fé que se consolida pela união do grupo em torno deste novo
elemento o Toré que vai propiciar a gestação de novos paradigmas
dentro da comunidade. A partir de então, com o reconhecimento de sua
identidade como pertencentes a uma etnia indígena, os Kiriri se sentem fortes
e vêem o seu discurso reforçado pela reverberação, ainda que mínima, nos
meios de comunicação social, e decidem se organizar, desde o ritual, para as
ações de resgate dos bens elementares necessários à sobrevivência da
comunidade, principalmente a terra.
Inicia-se, assim, o processo de empoderamento deste povo. Fato que se
revela nas conquistas feitas nas últimas três décadas através da ocupação
do território de sua reserva como consequência da expulsão dos posseiros e
grileiros, e o reflexo desta nova posição como estímulo à luta de outros
indígenas da região.
Hobsbawm (2008) poderia, se o soubesse, utilizar-se do exemplo de
empoderamento dos Kiriri a partir da aquisição de uma tradição para
exemplificar a sua teoria e o seu argumento de que a tradição, mesmo
inventada, reveste-se de um poder, em face de sua função simbólica e do
imaginário que a ela se vincula.
No primeiro capítulo desta dissertação, decidimos ler a narrativa desta
tradição o ritual do Toré Kiriri a partir de alguns aspectos, a exemplo da
importância dos símbolos e significados; da identidade e suas variáveis,
sobretudo no contexto da Pós-Modernidade; do empoderamento que viabiliza
a superação da cultura do silêncio; e de sua contextualização histórica. Para
tanto, fomos buscar suporte para além da nossa experiência, baseada nos
contatos com os indígenas nordestinos, na argumentação teórica dos autores
que procuramos para respaldar este presente estudo de caso.
O segundo capítulo traz uma leitura da apropriação do ritual pelos Kiriri como
consequência das relações com o povo Tuxá, de Rodelas, região Norte da
Bahia, que foram os mentores da aprendizagem do Toré pelos Kiriri, além de
33
outros povos, como os Atikum, Truká, Tumbalalá e Pancararé. Ainda dentro
deste contexto, abordaremos a questão do imaginário e a nova tradição;
referenciamos o empoderamento dos indígenas após a incorporação do ritual,
enquanto uma tradição inventada, ao cotidiano da comunidade; analisaremos
os discursos que apontam sobre a aculturação dos índios, ou ainda as
questões do hibridismo e/ou o sincretismo cultural.
Ainda neste capítulo nos detemos sobre um tema relevante que é a perda da
língua original e a perda do simbólico e os reflexos disso no seio da
coletividade. Fechamos este conjunto com um olhar sobre a incoerência do
discurso implantado pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910,
que propõe a defesa dos seus curatelados, para usar uma expressão própria
de seus representantes, mas cujas ações visavam apenas erradicar a cultura
primitiva (no sentido pejorativo deste termo) de modo a forjar um novo índio
que pudesse ser inserido na sociedade branca, enquanto um ser civilizado,
pela ótica governante.
O terceiro capítulo vai tratar essencialmente da invenção da tradição do ritual
do Toré e sua assimilação e prática pelos Kiriri. Esta leitura se dá pelas
entrevistas e depoimentos obtidos junto a algumas lideranças dos Kiriri, mas
também de seus mentores, os Tuxá. Para completar esta leitura, contamos
com o apoio de Hobsbawm (2008), Bhabha (1998), Hall (2006), entre outros
autores afinados com a teoria apresentada inicialmente por Hobsbawm
(idem), de modo a tentar compreender, pela visão interdisciplinar desta teoria
que envolve historiadores, sociólogos, antropólogos e psicólogos sociais, o
simbólico e as representações que envolvem o mito e o rito dos Kiriri,
obviamente com a preservação da distância que os símbolos da cultura e em
particular deste ritual têm do conhecimento criado pelos teóricos não índios e
que certamente só podem ser lidos por aproximação com aqueles simbólicos
de culturas diversas das de um povo ágrafo e cujas narrativas orais, em
consequência da perda da língua original, também só podem ser lidas por
avizinhações de sentidos e significados.
34
Com o apoio de Eliade (1992) buscamos entender as relações dos povos
arcaicos com o tempo e a temporalidade, o mito, que remete sempre a
aqueles tempos do momento da Criação, e o ritual. Conheceremos um pouco
quem são os Kiriri e abordaremos, na prática destes indígenas, o ritual do
Toré, sobre o qual, no quarto capítulo, apresentaremos uma descrição
detalhada, acrescida de depoimentos a respeito da sua importância e do seu
valor tanto social, quanto como manifestação religiosa e cultural de um povo.
Por fim, trazemos algumas reflexões quanto à existência dos indígenas
brasileiros fora da região amazônica e a preservação de seus costumes,
hábitos e tradições e a necessidade de se abrir espaço, na sociedade
nacional, para incluir as diferenças como diferenças e não estigmatizar os
diferentes que são vistos como incapazes de serem iguais para serem
pessoas normais ou comuns.
Também questionamos a postura de uma sociedade que se autodenomina
como gentil e hospitaleira, mas que não admite ser contrariada com a
presença daqueles que não lhes são iguais e que precisam da força da lei,
enquanto diploma legal, para garantir-lhes os direitos ou até mesmo para
suprimir-lhes este direito de ser um outro que pode ser similar, mas não é o
mesmo, não é igual, como tão prontamente afirma Bhabha (1998).
Este é o nosso projeto. Falamos do índio, sobre o índio, sem querer, em
momento algum, nem de forma nenhuma, ocupar o lugar de fala que lhe
pertence por natureza. Fazemos uma revisão, sim, da ótica pela qual a
sociedade nacional etnocêntrica, eurocêntrica e grafocêntrica vê o índio,
conforme acentuamos neste estudo, a partir do discurso do colonizador em
toda sua sanha antropofágica que, pelo poder que detém, transfere esta
qualidade para o colonizado, que é um degenerado, um demônio, porém,
integrante da sociedade silenciosa e silenciada, cuja fala carente de
criticidade, faz com que acabe devorado pelo ódio e pela violência do
devastador discurso colonialista instalado e vigente no Brasil desde os idos
de 1500 quando oficialmente aportaram aqui os primeiros exploradores.
35
1. Entre símbolos e significados
Comumente interpretada como o processo de transmissão de hábitos e
costume de geração para geração, a tradição (do latim traditione, tradere =
ato de transmitir ou entregar,) fundamenta-se nas conjeturas antropológicas
de que as pessoas são mortais e que, por isso, há uma necessidade de se
manter uma coerência de conhecimento entre as gerações.
A partir deste entendimento a tradição pode ser lida como tudo o que uma
geração herda das suas precedentes e lega às seguintes. Desta leitura,
pode-se deduzir que a tradição é, em um conceito mais amplo, um conjunto
de narrativas passado a cada geração quer por transmissão oral, ou escrita,
quer pelas práticas rituais ou pelos elementos de valores morais e ou
espirituais.
Alguns textos se referem à tradição como manifestação ou prática de caráter
conservador, a exemplo de expressões de fé ou crença de um povo. No
entanto, o que tem sido considerado como o conjunto de memórias, costumes
ou hábitos inveterados nem sempre foi realmente transmitido e repassado às
novas gerações exclusivamente de uma comunidade e em um processo
sistêmico desta mesma comunidade. A tradição não é estanque, assim como
não é a sociedade e nem os indivíduos.
Ao falar de tradição nos remetemos a algo instituído, a uma instituição fixada
por meio de narrativas, impregnada de simbologia. Destarte, podemos
invocar Castoriadis (2007, p. 142), para quem, tudo que se nos apresenta,
no mundo social-histórico, está indiscutivelmente entrelaçado com o
simbólico, ainda que não se esgote neste mesmo simbólico.
Encontramos primeiro o simbólico, é claro, na linguagem. Mas
o encontramos igualmente, em um outro grau e de uma outra
maneira, nas instituições. As instituições não se reduzem ao
36
simbólico, mas elas só podem existir no simbólico, são
impossíveis fora de um simbólico em segundo grau e
constituem cada qual sua rede simbólica. Uma organização
dada da economia, um sistema de direito, um poder instituído,
uma religião existem socialmente como sistemas simbólicos
sancionados. Eles consistem em ligar a símbolos (a
significantes) significados (representações, ordens, injunções
ou incitações para fazer ou não fazer, conseqüências, -
significações, no sentido amplo do termo) e fazê-los valer
como tais, ou seja (sic) a tornar esta ligação mais ou menos
forçosa para a sociedade ou o grupo considerado
(CASTORIADIS, 2007, p. 142).
O autor se detém no tema para analisar a questão do simbolismo e toma
como exemplo a religião, esta instituição tão importante em todas as
sociedades históricas, e que, conforme seu discurso, em todas as suas
formas sempre comporta um ritual. Este ritual, por sua vez, suporta uma série
de detalhes decorrentes do que Castoriadis (2007) chama de mandamentos
divinos determinados pela referência com a realidade dos praticantes ou fiéis,
de acordo com a cultura considerada, que possuem uma referência não
funcional, mas simbólica e que obviamente são determinados pelas
implicações ou conseqüências lógico-racionais das considerações
precedentes (CASTORIADIS, 2007, p. 143).
No olhar de Castoriadis (2007), a essência do ritual leva a duas indagações:
a primeira diz respeito à especificidade dos detalhes; a segunda, por que
todos os detalhes e símbolos são postos no mesmo plano. Ao articular a
defesa para os seus questionamentos, o filósofo argumenta que a escolha de
um símbolo
não é nunca nem absolutamente inevitável, nem puramente
aleatória. Um símbolo nem se impõe com uma necessidade
natural, nem pode privar-se em seu teor de toda referência ao
real [] Enfim, nada permite determinar as fronteiras do
simbólico. Ora, do ponto de vista do ritual, é a matéria que é
indiferente, ora é a forma, ora nenhuma das duas. [] Em
suma, um ritual não é um processo racional e isso permite
responder à segunda pergunta que fizemos: por que todos os
37
detalhes são colocados no mesmo plano? Se um ritual fosse
um processo racional, poderíamos encontrar nele a distinção
entre o essencial e o secundário, a hierarquização própria a
toda rede racional. [] A colocação no mesmo plano, do ponto
de vista da importância, de tudo o que compõe um ritual é
precisamente o indicador do caráter não racional do seu
conteúdo. Dizer que não pode haver graus no sagrado é uma
outra maneira de dizer a mesma coisa: tudo aquilo de que o
sagrado se apoderou é igualmente sagrado (CASTORIADIS,
2007, p. 144).
Às determinações do simbólico subsiste um componente ao qual Castoriadis
(2007) vai classificar como essencial e que se traduz como o elemento
imaginário de todo símbolo e de todo simbolismo. Imaginário que, observa
ele, em seu sentido corrente nos remete ao discurso que fala de alguma
coisa inventada, que pode ser uma invenção absoluta, ou como um
deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis
são investidos de outras significações que não suas significações normais
ou canônicas (CASTORIADIS, 2007, p. 154).
Neste viés, o imaginário se vale do simbólico para, além de exprimir-se,
existir. Ou seja, em sua opinião, passar do virtual a qualquer coisa a mais.
Assim,
o delírio mais elaborado bem como a fantasia mais secreta e
mais vaga são feitos de imagens mas estas imagens lá
estão como representando outra coisa: possuem, portanto,
uma função simbólica. Mas também, inversamente, o
simbolismo pressupõe a capacidade imaginária. Pois
pressupõe a capacidade de ver em uma coisa o que ela não é,
de vê-la diferente do que é. Entretanto, na medida em que o
imaginário se reduz finalmente à faculdade originária de pôr ou
de dar-se, sob a forma de representação, uma coisa e uma
relação que não são, [] falaremos de um imaginário último ou
radical, como raiz comum do imaginário efetivo e do simbólico
(CASTORIADIS, 2007, p. 154).
38
Logo, a influência do imaginário sobre o simbólico é percebida na suposição
de que o simbolismo é capaz de fixar um vínculo permanente entre os dois
termos, o que poderia se revelar no fato de que um representa o outro. O que
só ocorre nas etapas mais desenvolvidas do pensamento racional lúcido,
quando estes três elementos (o significante, o significado e seu vínculo sui
generis) são mantidos como simultaneamente unidos, e distintos, em uma
relação ao mesmo tempo firme e flexível (CASTORIADIS, 2007, p. 155).
1.1 Do imaginário ao significante identitário
Neste sentido, o objeto deste estudo, o ritual do Toré na prática do povo
Kiriri, pode ser lido a partir deste imaginário que remete o olhar para uma
tradição inventada e cujos símbolos foram tomados com a nítida intenção de
revelar ao mundo real o caráter de um significante de pertença a uma etnia.
Antes mesmo de se mostrar como parte de um contexto religioso, onde toda
sua simbologia vai construir um elo de conexão com o divino e com as suas
divindades, o ritual surge como força de definição de identidade desse povo
que busca reificar em sua simbologia um elo com o universo simbólico do
colonizador (neste caso, os não indígenas), para ser lido como uma narrativa
que aproxima o espectador do ritual desta identidade que ele imagina, em
conformidade com o seu imaginário, do que deve ser o índio (NASCIMENTO,
2005, p. 48).
O ritual do Toré passa a existir, por conseguinte, para os povos indígenas
nordestinos, enquanto um significante cuja função principal é se constituir
como ícone designativo de suas identidades. Portanto, para além de se
compor como cerimônia integrante de culto religioso, o Toré se configura
enquanto instrumento de revelação de ser índio perante os não índios. O
ritual funciona, desta forma, como elemento aglutinador desta identidade que
39
se desvenda nessa manifestação ritualística, essencialmente simbólica, como
expressão do desejo de reconhecimento de outro lugar e de outra coisa,
conforme enfatiza Bhabha (1998, p. 29), que conduz a experiência da
história além da hipótese instrumental.
Observada como uma tradição inventada, conforme veremos mais adiante, a
partir da intervenção do próprio não índio sobre o seu imaginário do que deve
ser o índio, esta manifestação ritual adquire significado no que Bhabha
(1998, p. 29) define como o espaço da intervenção que emerge nos
interstícios culturais que introduz a invenção criativa dentro da existência. É
assim que acontece o retorno ―à encenação da identidade como iteração, a
re-criação do eu no mundo da viagem, o re-estabelecimento da comunidade
fronteiriça da migração (BHABHA, 1998, p. 29).
Para Bhabha (1998), do mesmo jeito que Hall (2006), a questão da
identidade subjetiva aparece, hoje, descentrada do sujeito para se revelar no
que vai ser denominado como identificação. Daí, o sentimento de pertença
a uma etnia, a um grupo social, a uma classe de gênero, é motivado pelo
desejo de reconhecimento de si pelo outro, desde quando este é o
mecanismo que vai tornar possível a identificação subjetiva. Portanto, é no
que Bhabha interpreta como a sobreposição e o deslocamento de domínios
da diferença que ―as experiências intersubjetivas e coletivas de nação, o
interesse comunitário ou o valor cultural são negociados (BHABHA, 1998, p.
20).
A prática ritual dos Kiriri e a leitura feita do Toré pelos não índios merece a
observação deste autor, para quem, os termos do embate cultural, seja
através de antagonismo ou afiliação, são produzidos performativamente
(BHABHA, 1998, p. 20). Para ele, a representação da diferença não deve ser
lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos
preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição (idem). Isto por que
40
a articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é
uma negociação complexa, em andamento, que procura
conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em
momentos de transformação histórica. O direito de se
expressar a partir da periferia do poder e do privilégio
autorizados não depende da persistência da tradição; ele é
alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através
das condições de contingência e contraditoriedade que
presidem sobre as vidas dos que estão na minoria (BHABHA,
1998, p. 20-21).
O autor acentua que, neste sentido, a tradição permite que se reconheça uma
forma parcial de identificação, argumento este que está em consonância com
o discurso do historiador inglês Eric Hobsbawm (2008), que teceu a teoria da
invenção da tradição. Pois, escreve Bhabha,
ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades
culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse
processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade
original ou a uma tradição recebida. Os embates de fronteira
acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem
consensuais quanto conflituosos; podem difundir nossas
definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras
habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim
como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento
e progresso (BHABHA, 1998, p. 21).
A teoria da invenção das tradições, conforme o entendimento de Hobsbawm
(2008), explica como a criação ou recriação de uma tradição tem por objetivo
justificar as posições políticas das partes envolvidas. Sobre este tema
Ranger (2008) referencia, a título de exemplo, a formação das tribos na
África. Este movimento de constituição tribal como uma forma simbólica de
representação identitária é um conceito nascido da idéia eurocêntrica sobre a
constituição de grupos em uma escala evolutiva, a qual os africanos movidos
pelo interesse de afirmação étnica começaram a se constituir enquanto tribos
também.
41
Para Hobsbawm (2008, p. 257), o fenômeno da invenção das tradições ocorre
em função da necessidade de as pessoas precisarem ser reconduzidas a
suas identidades tribais: a etnicidade devia ser restaurada, como base da
associação e da organização. Em sua opinião, esse evento pode ser
compreendido como um conjunto de práticas, em geral regulado por regras
tácita ou abertamente aceitas, de natureza ritual ou simbólica, que visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o
que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado
(HOBSBAWM, 2008, p. 9).
O pesquisador afirma ser possível que:
[] muitas vezes se inventem tradições não porque os velhos
costumes não estejam mais disponíveis nem sejam viáveis,
mas porque eles deliberadamente não são usados, nem
adaptados. Assim, ao colocar-se conscientemente contra a
tradição e a favor das inovações radicais, a ideologia liberal da
transformação social, no século passado, deixou de fornecer
os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades
precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos
com tradições inventadas (HOBSBAWM, 2008, p. 9).
O historiador inglês aponta a invenção de tradições como importante fator na
formação de identidades nacionais na modernidade. Das tradições
inventadas, ele distingue entre as invenções políticas e as invenções
sociais de tradições. As primeiras seriam fruto de movimentos sociais e
políticos organizados ou mesmo de Estados como festas cívicas, heróis
nacionais, bandeiras e hinos. Já as invenções não oficiais, ou sociais,
seriam as geradas por grupos sociais sem uma organização formal ou sem
um objetivo político específico.
Ao ler esta teoria, Bhabha (1998, p. 22) interpreta que as diferenças sociais
não são simplesmente dadas à experiência através de uma tradição cultural
já autenticada. E acrescenta que, na verdade,
42
elas são os signos da emergência da comunidade concebida
como projeto ao mesmo tempo uma visão e uma construção
que leva alguém para além de si para poder retornar, com
um espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas
do presente (BHABHA, 1998, p. 22).
Disto se depreende que a tradição inventada se constitui em uma experiência
que procura se construir significativamente a partir da busca de signos
anteriores à sua própria essência e que vão revelar novos sentidos e
significados ao presente. Ou seja, conforme o autor citado acima, ela é
achada no além de si, revisada e reinterpretada, com o intuito de reificar
identidades e identificação no momento do agora. Nesta transposição, as
estratégias traçadas ou definidas constroem as narrativas de representação e
que implicam na aquisição de poder (empowerment, conforme Bhabha, 1998)
ou de superação do status quo anterior para uma nova posição/situação
(entitlement, de acordo com Sen, 2007).
1.2 No Toré, uma leitura da identidade na Pós-Modernidade
Ao se refletir sobre a prática do Toré, hoje um ritual comum às populações
indígenas do Nordeste, uma questão a ser respondida sobre a práxis dos
povos nativos é se esta tradição foi, em algum momento da história, comum
aos ancestrais de todos os indígenas da região e para quais comunidades
este ritual se constitui uma tradição inventada.
Embora o problema da antiguidade não seja o cerne de nosso estudo, não
poderíamos ignorar este aspecto da questão. Hobsbawm (2008, p. 9) afirma
que muitas das tradições queparecem ou são consideradas antigas são
bastante recentes, quando não são inventadas. O autor explica que a
43
expressão tradição inventada pode referenciar tanto aquelas realmente
inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto, por outro
lado, as tradições surgidas de forma mais difícil de ser localizadas no tempo,
ainda que tenham se estabelecido com rapidez.
Não há certeza se o Toré era praticado pelos povos nativos que
primordialmente ocupavam o território brasileiro antes da chegada do
colonizador europeu. No entanto, hoje o Toré funciona como um ícone
designativo da identidade étnica indígena que se construiu notadamente a
partir da segunda metade do século XX.
No caso do Toré, registra-se uma invenção de caráter social que tem como
propósito criar um perfil identitário capaz de possibilitar a identificação, por
outros grupos, dos praticantes do ritual como pertencentes à etnia indígena.
Para entender melhor esta questão, buscamos apoio em Hall (2006) que
melhor explicita a problemática da identidade na sociedade contemporânea,
ou seja, na PósModernidade ou ainda modernidade tardia, como usa
designar o próprio Hall.
A constituição do Toré como elemento significador de uma identidade para os
indígenas nordestinos começa em paralelo com o despertar do sujeito pós-
moderno que tem início na Segunda Guerra Mundial e vai se consolidar nos
anos 1960. Este sujeito vai ter sua identidade, conforme Hall (2006),
previamente vivida de forma unificada e estável, no contexto da modernidade
tardia, fragmentada, composta não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas (HALL, 2006, p. 12).
Desta forma, com o descentramento a identidade deixa de ser fixa, essencial
ou permanente, para se tornar umacelebração móvel que éformada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais o sujeito é
representado ou interpelado nos sistemas culturais, e passa a ser definida,
agora, historicamente e não biologicamente (HALL, 2006, pp. 12-13). Desta
maneira, analisa o autor
44
a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo,
através de processos inconscientes, e não algo inato,
existente na consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo imaginário ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre em processo,
sempre sendo formada. As partes femininas do eu
masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com
ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não
reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez de falar da
identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de
identificação, e vê-la como um processo em andamento. A
identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já
está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é preenchida a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros
(HALL, 2006, pp. 38-39).
Muito embora a denominação de índios atribuída aos habitantes nativos das
Américas desdea primeira invasão de Cristovão Colombo ao continente
(LUCIANO, 2006, p. 30) fosse utilizada com sentido pejorativo pelos brancos,
em decorrência do processo histórico de discriminação e preconceito contra
os nativos, os deres do movimento indígena organizado brasileiro, iniciado
na década de 1970, chegaram à conclusão de que era
importante manter, aceitar e promover a denominação
genérica de índio ou indígena, como uma identidade que une,
articula, visibiliza e fortalece todos os povos originários do
atual território brasileiro e, principalmente, para demarcar a
fronteira étnica e identitária entre eles, enquanto habitantes
nativos e originários dessas terras, e aqueles com procedência
de outros continentes, como os europeus, os africanos e os
asiáticos (LUCIANO, 2006, p. 30).
Esta aceitação e as ações do movimento indígena proporcionaram a
mudança do perfil e o sentido pejorativo foi substituído por um significante
positivo de identidade multiétnica, conforme Luciano (2006, p. 30).
45
De pejorativo passou a uma marca identitária capaz de unir
povos historicamente distintos e rivais na luta por direitos e
interesses comuns. É neste sentido que hoje todos os índios
se tratam como parentes.
O termo parente não significa que todos os índios sejam iguais
e nem semelhantes. Significa apenas que compartilham de
alguns interesses comuns, como os direitos coletivos, a
história de colonização e a luta pela autonomia sociocultural
de seus povos diante da sociedade global. Cada povo indígena
constitui-se (sic) como uma sociedade única, na medida em
que se organiza a partir de uma cosmologia particular própria
que baseia e fundamenta toda a vida social, cultural,
econômica e religiosa do grupo. Deste modo, a principal marca
do mundo indígena é a diversidade de povos, culturas,
civilizações, religiões, economias, enfim, uma multiplicidade de
formas de vida coletiva e individual (LUCIANO, 2006, p. 31).
Para este autor, a valorização positiva da designação genérica de índio ou
indígena, ―expressa por meio do termo parente, simboliza a superação do
sentimento de inferioridade imposto a eles pelos colonizadores durante todo
o processo de colonização (LUCIANO, 2006, p. 31). Desta forma, acentua
que tal mudança contribuiu para impulsionar a emergência das reafirmações
de identidades étnicas particulares de cada povo com força e clareza nunca
antes vistas (idem). Ou, conforme seu entendimento, enquanto os
qualificativos índio ou indígena eram recusados pelos próprios indígenas por
serem pejorativos e desqualificadores,as identidades étnicas particulares
também eram negadas ou reprimidas (idem).
Antes da década de 1970, chamar alguém de índio, fosse ele
nativo ou não, era uma ofensa. E como a denominação estava
associada aos povos nativos, conseqüentemente as
denominações e as autodenominações étnicas eram
igualmente indesejáveis. Por isso, muitos índios negavam suas
identidades e suas origens, ou melhor, tentavam negar suas
origens étnicas, pois na maioria dos casos a negação era uma
verdadeira ilusão, uma vez que ninguém consegue esconder
aparência física, usos, costumes e modos de vida e de
pensamento. A denominação original de caboclo na Amazônia,
por exemplo, está fortemente relacionada a essa negação das
identidades étnicas dos índios. Foi uma invenção daqueles que
46
não queriam se identificar como índios, mas também não
podiam se reconhecer como brancos ou negros (pois não
pareciam), como se fosse uma identidade de transição de índio
(ser inferior ou cultura inferior) para branco (ser civilizado e
superior). Neste sentido, o caboclo seria aquele que nega sua
origem nativa, mas que por não poder ainda se reconhecer
como branco se identificava com o mais próximo possível do
branco (LUCIANO, 2006, p. 31-32).
É dentro deste contexto, onde a identidade do sujeito é deslocada para a
identificação com os ícones, signos e símbolos culturais e é percebida pelo
Outro com base na assimilação destes elementos que pela identificação
definem o perfil cultural de quem é visto, que nos propomos a analisar o ritual
do Toré enquanto manifestação iconográfica significante de uma identidade
étnica. Isto é, reveladora de uma cultura indígena e que dá aos seus
praticantes o sentido de pertença a um grupo, uma nação ou uma etnia.
Ainda que se trate de uma tradição inventada, convém observar, pelo
histórico dos povos nativos, as ocorrências de significantes diferentes na
construção do ritual. Estas variáveis facilmente perceptíveis entre os seus
praticantes se dão em função do significado que o ritual foi impregnado para
eles, pelas intenções e também pelo nível de intervenção que suas culturas,
(aqui lida como o conjunto de tradições
4
), foram submetidas pelo colonizador.
1.2 Conjeturas histórico-literárias
Provavelmente a primeira referência literária feita sobre o Toré inscrita na
carta de Pero Vaz de Caminha (1500), na qual o escriba narra sobre o
4
Por tradição entendemos aqui o que Hobsbawm (2008) traduz comoum conjunto d e
práticas, de natureza ritual ou simbólica, que busca inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição. Repetição esta que, automaticamente, implica
continuidade com um passado histórico adequado (HOBSBAWM, 2008, p. 9).
47
comportamento daquela gente que assistiu silenciosamente a celebração da
primeira missa. E depois de acabada a missa, quando sentados nós
escutávamos a pregação, muitos deles se levantaram e começaram a tocar
corno ou buzina, saltando e dançando por um bom tempo (CASTRO, 1998,
p. 98). Pela descrição de Caminha (1500), infere-se que os índios
perceberam ser a missa um ritual religioso dos brancos recém chegados e ao
final, ao que nos parece, tentaram mostrar a forma como eles reverenciavam
os seus deuses, dançando e cantando, de igual modo ao que hoje se anuncia
como a prática do ritual ancestral do Toré.
Outra possível referência literária a esta práxis pode ser lida nas narrativas
do alemão Hans Staden (2008) sobre suas viagens ao Brasil, em 1548 e
1550. Ao descrever a sua captura, o aventureiro alemão conta que os
homens Tupinambá se reuniram em uma cabana e lá beberam cauim e
cantaram em honra aos seus ídolos, chamados maracás, que são matracas
de cabaças e que tão corretamente lhes anunciaram a minha captura (2008,
p. 69). Adiante o narrador acresce: Os irmãos que me aprisionaram ainda
disseram: Agora as mulheres vão levá-lo para o pocaré. [] eu ainda não
conhecia o significado daquela palavra. Significa dança (2008, p. 70).
Para os antigos Tupinambá, o pocaré era o momento de ouvir e interpretar os
maracás, aos quais faziam oferendas, pois acreditavam que as cabaças com
que são feitos este instrumento eram receptáculos das vozes dos espíritos e
a conformação material dos mesmos. O cauim ajudava o desenvolvimento
ritual, com a colocação de outro nível de consciência dos participantes, o que
facilitava compreender a fala dos espíritos do maracá. Conforme relata
Staden
[] Cada homem tem o seu próprio maracá. [] (os pajés)
percorrem o território uma vez por ano, vão de cabana em
cabana e anunciam que um espírito vindo de muito longe
esteve com eles e lhes delegou poder, que todos os chocalhos
os maracás poderiam falar e receber poder. [] Os
adivinhos então ordenam que cada um pinte seu maracá de
vermelho, orne com penas e se aproxime. [] Quando estão
todos reunidos, o adivinho pega os maracás um a um e lhes
aplica uma erva a que chamam de pitim. Então ele segura o
48
chocalho bem próximo à boca, agita-o e lhe diz:Né cora,
agora fale e faça-se ouvir quando estiver aqui dentro. []
Assim ele faz com todos os chocalhos, um depois do outro, e
todos os selvagens pensam que seu chocalho tem grande
poder (STADEN, 2008, p. 153-155).
Atualmente o Toré está vinculado à cerimônia da Jurema, arbusto do qual
tiram a entrecasca da raiz para produzir uma bebida que auxilia na alteração
sensorial e psíquica dos praticantes.
49
2. Do ritual Tuxá ao Toré Kiriri
A invenção da tradição do Toré pelos Kiriri, a partir dos anos 1970, deveu-se
à necessidade de este povo obter o reconhecimento de sua identidade étnica,
conforme Nascimento (2005), e uma tentativa de mostrar o seu poder diante
da ação que começava a ser articulada pelas lideranças Kiriri com a intenção
de promover a retomada das terras da reserva então ocupadas por
fazendeiros e posseiros.
No entanto, a inclusão desta prática ritual na vida dos Kiriri apresenta
aspectos que podem ser observados através da teoria da hibridização
cultural, de acordo com os pressupostos firmados por Canclini, no sentido de
propiciar uma leitura, por assimilação, dos simbólicos da cultura indígena e
sua possível correlação com a do homem branco. O Toré era uma
manifestação ausente da memória dos Kiriri, sobretudo devido à relação de
povo catequizado pelos jesuítas desde a segunda metade doculo XVII;
além do que, até a decisão de aprender o Toré, prevalecia entre eles uma
prática de ciência afro-brasileira, vinculada principalmente à umbanda, que
depois seria banida e tratada como coisa de negro (NASCIMENTO, 2005),
mas que terminaria por influir no modelo do ritual inventado e importado do
povo Tuxá, do município de Rodelas (BA), que foi o mentor da aprendizagem
do Toré pelos Kiriri.
Ao ritual Tuxá os Kiriri incorporaram algumas variáveis, a exemplo da
inclusão de toantes (canções que marcam o ritual) com invocações cristãs,
que citam nominalmente Jesus Cristo e a Virgem Maria. Além disso,
introduziram os seus encantados ou encantos
5
e um espaço ao qual eles
5
Estes seres considerados como supostamente animados e habitantes da Terra e do céu,
conforme Ferreira (1999), são descritos pelos indígenas como homens de aparência
descomunal, ferozes e implacáveis, de feições rudes e olhos esbugalhados,
verdadeiramente assustadores, à semelhança de como caracterizam o gentio brabbio,
seus antepassados que ainda viviam no mato, embora não sejam sempre equacionados
com esses últimos (NASCIMENTO, 2005, p. 44, in GRÜNEWALD, 2005). O autor
50
chamam de camarinha, similar ao ambiente de recolhimento das iaôs no
candomblé. Diante disto Nascimento (2005) sustenta que
as crenças e práticas envolvidas no toré guardam muitos
pontos de semelhança com aquelas que se pode encontrar nos
chamados candomblés de caboclo (Santos,1992), nos cultos
de jurema dos xangôs pernambucanos, ou ainda entre os
incontáveis praticantes dos chamados catimbós (Andrade,
1983; Cascudo, 1951, 1969; Vandezande, 1975) espalhados
por todo o Nordeste (NASCIMENTO, 2005, p. 49).
No sentido religioso, o Toré é um ritual cuja função é fazer a ligação dos
iniciados (pajés, curadores e entendidos da sua ciência) com o mundo
sobrenatural, onde habitam espíritos que não são de mortos, mas
representam os guardiões e protetores dos humanos. Durante o Toré, é
praticamente corriqueiro a todas as tribos o uso da jurema (uma planta de
princípio psicoativo) que facilita as visões dos iniciados e que, no caso Kiriri,
viabiliza a manifestação ou enrame dos encantados de forma similar ao que
se dá quando o Orixá baixa na iaô.
Mas o Toré tem a sua parte lúdica que é a dança e os toantes e que se
constitui na parte cênica do ritual mostrada aos não indígenas em geral
[] na qualidade de um ritual indígena todavia reduzido, na
representação, a uma dança, que se apresenta aos não-
índios, os quais costumam exigir de índios que estes
apresentem seus rituais tradicionais, de acordo com seu
próprio imaginário do que deva ser um índio (NASCIMENTO,
2005, p. 48).
referencia que apesar da aparência, inclusive, com aparições zoomorfas, costumam ser
prestativos. Apresentam-se em formas de visagens ou em sonhos. Na forma de animais são
identificados apenas pelos iniciados. Valem-se disso para se aproximar dos humanos e
conhecerem os segredos das pessoas que depois transmitem aos pajés durante a
realização dos trabalhos xamânicos.
51
Afora esta representação, da qual se exclui a parte das incorporações e das
consultas aos seres encantados, ou o que eles, indígenas, chamam de sua
ciência, os demais aspectos do ritual são mantidos envoltos em uma aura
de mistério, de conhecimento esotérico pertencente e restrito aos índios, em
especial aos iniciados ou entendidos.
2.1 O imaginário e a nova tradição
Até hoje a gente vem usando nossa tradição, tanto no sol
como na chuva. De noite fazemos nosso ritual, que a gente
nunca abandonou e não vamos abandonar, porque é a nossa
segurança. O Toré significa, para nós, uma oração. Cada
canto é uma oração que traz a saúde da gente (Rubens Kiriri,
in GERLIC, 2003)
Meu nome é José Miguel da França. Sou o Pajé dos Kiriri. []
A luta para retomar nossas terras custou muito trabalho. O
cacique foi buscar os direitos das terras e nós ficamos
trabalhando aqui. Nos reuníamos todos na casa de dona Dalta.
O cacique foi lá em Tuxá (outra nação indígena, de Rodelas),
para pedir orientação, para aprender o Toré. Aí nós
começamos trabalhamos e trouxemos os cantos de lá, agora
nós pegamos os cantos daqui (Pajé José Miguel França, in
GERLIC, 2003).
As duas falas acima referenciam aparentemente dois eventos distintos entre
si. No entanto, trata-se do mesmo ritual visto por dois olhares que se
distanciam em um vácuo do tempo ou na emergência do interstício para
repetir a expressão de Bhabha (1998). Mas a afirmação enfática de Rubens
De noite fazemos nosso ritual, que a gente nunca abandonou e não vamos
abandonar, porque é a nossa segurança, (grifo nosso) , é explicada por
Hobsbawm (2006, p. 9) com a justificativa de que muitas tradições que
podem parecer ou são consideradas muito antigas na verdade são recentes,
52
ou simplesmente inventadas. Além do que, boa parte destas tradições se
estabelece institucionalmente com rapidez dentro das comunidades, o que
dificulta a sua localização no espaço e no tempo.
No entanto, pode-se fazer a ressalva de que, do ponto de vista do povo
indígena o tempo não é contado de igual forma que para o não índio.
Sobretudo se se levar em consideração que os índios, ainda hoje, têm
dificuldades em compreender a estruturação da língua portuguesa e sua
complexidade, inclusive de significados, desde quando não é a sua língua
original. A conotação da temporalidade para o índio se dá de modo diverso
de como a compreende os não índios, daí que a identificação do povo com o
ritual pode implicar na sua inclusão como algo totalmente atemporal ou de
uma temporalidade que excede ao entendimento do homem eurocêntrico e
etnocêntrico.
Sem esta percepção, o depoimento do jovem Rubens pode ser compreendido
pelo fato de ele ter nascido posteriormente à inclusão do Toré pelo seu povo.
E devido a isto, ele nunca percebeu a ausência do ritual que, para ele, está lá
desde sempre como parte integrante do Zeitgeist de sua existência.
É o oposto da fala do Pajé José Miguel que viveu o momento em que este
espírito foi trazido para se corporificar no seu tempo. Por isto, ele percebe
não só o instante da invenção, mas também da transplantação dos elementos
constitutivos do ritual. ―O cacique foi lá em Tuxá [] para pedir orientação,
para aprender o Toré. Aí nós começamos trabalhamos e trouxemos os
cantos de lá (grifo nosso), agora nós pegamos os cantos daqui. No primeiro
movimento, até os cantos foram copiados. A tradição Tuxá foi assimilada por
inteiro e transplantada de uma nação para outra.
No entanto, agora nós pegamos os cantos daqui (grifo nosso). Este agora
expresso na fala do Pajé Kiriri está no tempo do além, pois, conforme aponta
Bhabha (1998, p. 23), o termo vem significar a distância espacial que
demarca a ocorrência de um progresso. É este além de que no imaginário da
distância espacial dá relevo a diferenças sociais, temporais, que
53
interrompem nossa noção conspiratória da contemporaneidade cultural
(idem). Assim, prossegue o pesquisador, o presente não pode mais ser
encarado simplesmente como uma ruptura ou um vínculo com o passado e o
futuro (idem, idem). O depoimento do Pajé José Miguel nos devolve à
reflexão sobre a hipótese de que o ritual do Toré pode ser percebido sob a
ótica de que, em um dado momento, ela se tornou uma tradição inventada.
Contudo, até agora essa invenção não possibilitou o intitulamento
(entitlement) dos Kiriri, conforme defende o economista Prêmio Nobel
Amartya Sen (2007). Isto devido ao fato de o indígena brasileiro ser tutelado
pelo Estado. Logo a mudança de status social, político ou econômico das
comunidades depende da ação/intervenção estatal. O intitulamento pensado
por Sen (2007) se refere mais objetivamente à superação do estágio de
pobreza, de aculturação, ou de impossibilidade de participar/atuar do/no
mercado.
2.2 Uma invenção empoderadora
A assimilação do ritual pelos Kiriri os fez reconhecidos e se reconhecerem
como indígenas e este reconhecimento de sua identidade étnica é que
impulsiona o movimento de lutas pela retomada de suas terras uma área de
12.299 hectares invadidas e ocupadas pelos grileiros e posseiros.
A retomada do território indígena se realizou de forma gradual, de 1984 até
ser finalizada em 11 de novembro de 1995, com a ocupação definitiva de
Saco dos Morcegos, que passa a se chamar Mirandela, antiga missão
jesuítica que aldeou os Kiriri no século XVII, além dos povoados de
Marcação, Pau-Ferro, Gado Velhaco, Araçás, Baixa da Cangalha e Baixa do
Juá, forçou a retirada de mais de seis mil posseiros da área da reserva Kiriri.
Essa população foi relocada e distribuída pelas periferias de cidades
54
vizinhas, como Ribeira do Pombal, Euclides da Cunha, Cícero Dantas e
Tucano.
As relações com outros segmentos da sociedade nacional acentuam nos
membros do grupo a produção de valores considerados por aquela sociedade
como parte integrante e tradicional da identidade indígena, a exemplo da
prática de rituais, acentuadamente o Toré, e atividades comunitárias como a
produção artesanal. Para reforçar esta identidade, as lideranças Kiriri se
empenharam em ampliar a consciência do individual para o coletivo e
tomaram iniciativas de estreitamento das relações intertribais, em especial
com os Tuxá, de Rodelas, com os quais se iniciaram no ritual.
O Toré é parte de um conjunto mais amplo de crenças no centro do qual
se encontra a jurema que, muito provavelmente, podem vir a ser
agrupadas em um complexo ritual comum aos povos do sertão (Cf.
NASCIMENTO, 1994, citado em BRASILEIRO, 1996). Vale ressaltar que a
relevância deste ritual entre os índios no Nordeste extrapola o campo
estritamente religioso, ramificando-se em outras esferas, notadamente a
política, que, em certas situações sociais, assume preponderância sobre o
elemento religioso (TURNER, 1969). Intuindo representar o Toré como um
símbolo de união e de etnicidade entre os índios no Nordeste foco
privilegiado de poder, fornecedor de elementos ideológicos de unidade e de
diferenciação e, portanto, fonte de legitimação de objetivos políticos o
cacique predispõe o seu grupo a adotá-lo. Para tanto, contaria com o auxílio
de dois pajés Tuxá que permaneceram entre os Kiriri durante o tempo
necessário ao aprendizado do ritual (BRASILEIRO, 1996, pp. 101-102).
Brasileiro (1996, p. 106) chama a atenção para o fato de que o ritual é o
principal espaço de articulação dos Kiriri, (e) por ele passam todas as
alianças e disputas que lhe são próprias. Inclusive, as discussões e tomadas
de decisões sobre a vida sociopolítica da comunidade.
55
2.3 Contextualização histórica
Nas narrativas históricas sobre o povo Kiriri, conta-se sobre a política de
povoamento e exploração do Sertão da Bahia e do Sertão de São Francisco,
determinada pelo Governo Geral de Portugal, à época, século XVII, instalado
no Brasil. A meio caminho de uma das entradas que ligavam Salvador ao Rio
São Francisco ficavam Canabrava (hoje Ribeira do Pombal) e Saco dos
Morcegos (Mirandela), localidades habitadas pelos índios Kiriri (ou Cariri),
pertencentes ao tronco Jê, chamados Tapuias, isto é, os não Tupi.
A começar do ano de 1666, liderados por Jacob Rolando e João de Barros,
as missões jesuítas ocuparam a região com a finalidade específica de
catequizar os índios. Além disso, construir igrejas e edificar as primeiras
vilas. Nessa iniciativa, os jesuítas acabaram por entrar em conflito com
Garcia DÁvila, dono da capitania hereditária que se estendia do litoral da
Bahia, com passagem pelo sertão, até os estados do Piauí e Maranhão. Além
da questão da posse do latifúndio, a missão jesuíta se apropriava dos índios
habitantes daquelas áreas, os quais Garcia DÁvila também considerava
propriedades suas por estarem em suas terras.
Os padres, por seu turno, assumiam os Kiriri como propriedade da igreja. O
desacordo entre as partes levou a uma guerra na qual se atribui a Garcia
DÁvila a morte de 400 índios já rendidos, além da escravização dos
sobreviventes que foram levados para Salvador. Depois desse episódio, os
índios começaram a se deslocar para regiões mais distantes das estradas e
das vilas para evitar o contato e o confronto com os brancos, mas
permaneceram as ligações com os jesuítas. Os brancos, no entanto, não
demoraram a ocupar as terras e instalar suas fazendas de gado a começar
nas margens dos rios, fato que dificultava, quando não impedia, a vida livre
dos nativos. Assim, não tardaram a ocorrer confrontos violentos entre índios
e posseiros, que resultaram em massacres de ambos os lados por gerações.
56
A invasão de suas terras provocou a desapropriação física com a perda dos
bens da nação Kiriri e, de forma mais intensa, a desapropriação do terreno
afetivo, o que equivale dizer do seu passado histórico, de sua língua, de seus
rituais. A ocupação do território dos Kiriri sob os auspícios da Igreja e do
Estado propiciou um constante conflito entre os indígenas e os colonos
invasores. Os índios que não eram mortos nos conflitos acabavam mortos por
doenças trazidas pelo europeu e às quais não tinham um sistema
imunológico capaz de enfrentar. Além disso, outro tanto fora escravizado.
Fragmentado, esse povo se espalhou pelasrias comunidades do sertão
baiano, sempre à margem da sociedade dos brancos, os quais pagavam
valores irrisórios pela mão de obra nativa levada para trabalhar nas roças
implantadas nas terras que outrora pertencera aos indígenas, conforme
Osvaldo Morais, em seu texto Aculturação dos Índios Kiriris
6
.
Nesse convívio, os Kiriri absorveram a cultura dos civilizados, esqueceram
a sua língua, abandonaram os seus rituais que foram substituídos por outros
dos brancos e dos afro-descentes escravizados que conseguiam escapar dos
feitores e se refugiavam dentro das aldeias indígenas. Esse envolvimento
propiciou a miscigenação do grupo Kiriri fato que contribuiu para a
descaracterização da sua identidade enquanto povo indígena, na ótica do
não índio, inclusive pelas características físicas do biótipo que se origina dos
relacionamentos interétnicos.
A força da missão catequizadora jesuítica devastou o território das crenças e
das tradições dos nativos que passavam à condição de desterrados em suas
próprias terras, pois atuavam na lavoura a cuidar daquilo que um dia fora
deles. Expropriados de suas posses, foram exilados de seu terreno afetivo e
desapropriados de sua língua, o mais expressivo símbolo da identidade
cultural de um povo, pois, como lembra Castoriadis (2007), é na linguagem
que primeiro encontramos o simbólico, isto é, o sistema que permite a
6
O texto do professor Osvaldo Morais está disponível em http://www.osvaldomorais.com/
index.php?option=com_content&article&id=119:osvaldo-morais-aculturacao-dos-indios-
kiriris&catid=41:artigos&Itemid=86. Acesso em 7.set 2009.
57
conexão dos significantes aos significados e que lhes atribui este valor, ou
seja, torna esta ligação mais ou menos forçosa para a sociedade ou o grupo
considerado (CASTORIADIS, 2007, p. 142).
Pensamento este que é compartilhado por Forattini (2000), para quem,
nenhuma definição da humanidade pode ser considerada adequada se não
levar em conta a maneira pela qual os indivíduos se comunicam. E mais que
isto: como trocam experiências, preparam as gerações futuras, planejam a
sobrevivência e se adaptam ao meio em que vivem.
De acordo com Forattini (2000), é no final da era Paleolítica, quando os seres
finalmente se reconhecem como humanos, enquanto espécie, que se pode
enunciar sobre a constituição de um conjunto humano que contém um
denominador comum a todos. E é a começar de aí que se observa o
desenvolvimento cultural o comum a todos. E cultura aqui significa o
aprendizado desta convivência do conjunto e apreensão do sentido do senso
comum, que, acima de tudo, é simbolicamente representada pelo idioma
completamente desenvolvido e associado à tecnologia inventiva. Isto porque
a cultura implica a criatividade e a habilidade que resulta em organização de
complexidade crescente, a procura de novos conhecimentos e o intercâmbio
entre as populações (FORATTINI, 2000, p. 59-60).
2.4 Aculturação, hibridismo ou sincretismo
Muitos pesquisadores e autores decidiram, ao abordar questões de
relacionamentos culturais, adotar o termo cultura híbrida para justificar ou
explicar determinadas variáveis antes consideradas, por exemplo, como
práticas sincréticas, como é o caso do vínculo estabelecido entre as
divindades do Candomblé e os santos Católicos. Assim, na visão
58
contemporânea do ritual do Toré possivelmente há quem resolva adotar a
teoria da cultura híbrida, conforme desenhada por Canclini (2008), para falar
sobre sincretismo, ainda que o próprio Canclini ressalve que este termo
continue a ser utilizado pela bibliografia antropológica e etno-histórica para
especificar formas particulares de hibridação mais ou menos clássicas
(CANCLINI, 2008, p. 29).
Particularmente consideramos o termo sincretismo mais apropriado para falar
desta articulação que enreda a cultura dominada pela do dominante.
Inclusive porque entendemos que o hibridismo, neste caso, acaba por
mascarar o discurso do dominador que assume, nesta circunstância, o
caráter mais ameno do que efetivamente o é, conforme explicita Bhabha
(1998):
Um aspecto importante do discurso colonial é sua dependência
do conceito de fixidez na construção ideológica da alteridade.
A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no
discurso do colonialismo, é um modo de representação
paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também
desordem, degeneração e repetição demoníaca. Do mesmo
modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia discursiva,
é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre
o que está sempre no lugar, já conhecido, e algo que deve
ser ansiosamente repetido (BHABHA, 1998, p. 105).
Bhabha (1998, p. 105-106) denuncia que o estereótipo colonial é validado
pela força da ambivalência que lhe é atribuída pelo discurso, a mesma
ambivalência que garante a repetibilidade desse estereótipo em conjunturas
históricas e discursivas mutantes, assim como embasa suas estratégias de
individuação e marginalização. Neste sentido, em conformidade com o
pensamento do autor, o ponto de intervenção no discurso colonial deveria
ser deslocado do imediato reconhecimento das imagens como positivas ou
negativas para uma compreensão dos processos de subjetivação tornados
59
possíveis (e plausíveis) através do discurso do estereótipo (BHABHA, 1998,
p. 106).
Neste contexto, o processo de hibridação
7
, além de pôr na clausura toda
pretensão de fixar identidades puras ou autênticas, cujas ocorrências são
contestadas por Hall (2006), Bhabha (1998), Gellner (1983) e Mercer (1990)
entre outros, evidencia o risco de delimitar identidades locais autocontidas
ou que tentem afirmar-se como radicalmente opostas à sociedade nacional
ou à globalização (CACLINI, 2008, p. 27).
Canclini (2008) chama a atenção para o fato de que ao se definir uma
identidade através do processo de abstração de traços, a exemplo da língua,
procedimentos estereotipados ou das tradições, a tendência geral é de se
tentar desvincular essas práticas da história de misturas em que se
formaram.
Como conseqüência, é absolutizado um modo de entender a
identidade e são rejeitadas maneiras heterodoxas de falar a
língua, fazer música ou interpretar as tradições. [] Os
estudos sobre narrativas identitárias com enfoque teóricos que
levam em conta os processos de hibridação (Hannerz; Hall)
mostram que não é possível falar das identidades como se se
tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-
las como a essência de uma etnia ou de uma nação
(CANCLINI, 2008, p. 28).
7
O hibridismo difere da leitura que fazemos de sincretismo, que justapõe uma ideia,
convenção ou símbolo a outro elemento, mas não o elimina no todo, pois alguns sinais
originais continuam perceptíveis neste terceiro componente surgente. No caso da
hibridação, conforme Canclini (2008), as estruturas ou práticas sociais são fundidas para
gerar novas estruturas e novas práticas. Em nosso entendimento, o hibridismo pode
mascarar o discurso do dominante, pois o torna suave. Além disso, arrefece pretensões de
fixação de identidades puras/autênticas e pressupõe o surgimento de uma nova estrutura
em decorrência do embate entre duas ou mais oposições. No sincretismo, a justaposição
de elementos se dá sem a eliminação do todo de nenhuma das peças, ao tempo em que
contorna um novo universo composto de constitutivos dos anteriormente existentes.
60
Ao se debruçar sobre este tema, Hall (2006) diz que as mudanças estruturais
que acometem o ambiente social desde o final do século XX, além de
fragmentar as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia e
nacionalidade, que antes forneciam as configurações do indivíduo social,
também passaram a intervir nas identidades pessoais e abalarama idéia
que temos de nós próprios como sujeitos integrados (HALL, 2006, p. 9). Há,
neste caso, a perda de um ―sentido de si, conforme enfatiza Hall (2006),
sentimento ao qual também denomina de deslocamento ou descentração do
sujeito. Este deslocamento/descentramento do indivíduo quer do seu lugar no
mundo social e cultural, quer de si mesmo, constitui uma crise de identidade.
Logo
[] o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as
identidades que compunham as paisagens sociais lá fora e
que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
necessidades objetivas da cultura, estão entrando em
colapso, como resultado de mudanças estruturais e
institucionais. O próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-
se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2006, p.
12).
2.5 Perda da língua, perda do simbólico
Alguns estudiosos das tradições Kiriri, a exemplo de Morais (s/d), não se
esquivam de falar da aculturação deste povo. Além dos combates com os
colonos europeus, que quase levaram o povo Kiriri ao extermínio, o contato
com o branco, e em especial com os jesuítas, praticamente erradicou a
cultura Kiriri. Hoje, pouco se sabe de suas antigas práticas de trabalhos em
61
cerâmica, tecelagem, produção de instrumentos musicais, indumentárias
rituais, danças, métodos de subsistência etc.
Dentro desta ótica de aculturação termo que tem sido evitado pelos
estudiosos e adeptos do discurso civilizatório pregado pela elite dominante
que busca se eximir de sua responsabilidade pelo extermínio dos
incivilizados e, portanto, tenta se escudar na ambivalência do estereótipo,
como denuncia Bhabha (1998), para alterar elementos da narrativa colonial,
pode-se dizer que isto se configura na constatação de que os Kiriri não usam
mais sua língua nativa. Desconhecem-na, salvo o que se pode ter noção
através de um escasso vocabulário composto basicamente de substantivos
comuns. Se o simbólico está, primeiro, na língua, como enfatizam Castoriadis
(2007) e Gomes (2000), entre tantos outros, a perda deste bem, mas que
qualquer outro, representa a descaracterização da identidade e da cultura do
povo. Além disso, em função do processo de catequese e do contato com os
brancos, os Kiriri perderam a maior parte de sua cultura indígena e da
organização social original.
É a partir do Toré que esse povo começa a se reorganizar e dar sentido à
sua origem indígena. É pela apropriação do rito, que Canclini (2008)
descreve comoato cultural por excelência, que esse povo vai se tornar
capaz de inventar a sua tradição e, desta forma, resgatar o seu valor
identitário expresso no simbolismo ritualístico, pois é o rito que, de acordo
com o autor, tenta pôr ordem no mundo, desde quando é ele, o rito, que se
constitui capaz de operar no sentido de resolver, por meio de uma operação
socialmente aprovada e coletivamente assumida, a contradição que se
estabelece ao construir como separados e antagonistas princípios que
devem ser reunidos para assegurar a reprodução do grupo (CANCLINI,
2008, p. 46).
No entanto, o próprio Toré, enquanto tradição inventada e que se pretende
traduzir como elemento identificador étnico, surge, neste sentido, de uma
62
iniciativa impositiva, de caráter legalizador, ordenada pelo Estado tutor
8
através da voz de mando de um de seus representantes.
Conforme Falcão (2009), para entender o problema da tutela do indígena
brasileiro é preciso examinar a situação jurídica desse índio, classificado em
três categorias: isolados, em vias de integração e integrados, para se
proclamar quem está ou não sob tutela. O autor destaca que pelo instituto da
tutela os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e
regulamentos especiais, o qual cerrará à medida que se forem adaptando à
civilização do País. A legislação decide que a capacidade de fato, dos
índios, sofrerá as restrições prescritas nesta lei, enquanto não se
incorporarem eles à sociedade civilizada. E enfatiza que os índios de
qualquer categoria, não inteiramente adaptados, ficam sob a tutela do
Estado, que a exercerá segundo o grau de adaptação de cada um.
Na opinião de Falcão (2009), não é de estranhar que o Estatuto do Índio, no
art. 7º, diga, de modo semelhante, que o regime tutelar especial adotado pela
Lei n.º 6.001/73 somente se aplicaria aos índios não integrados. Logo, depois
de categorizar os índios, o próprio Estatuto do Índio admitiu existir índios já
integrados e que não teriam necessidade de serem submetidos ao regime de
tutela. Entenda-se por índios integrados todos aqueles que, não vivendo nem
convivendo mais com a selva, vivem e convivem com o meio civilizado,
morando nas cidades, vilas ou povoados, aí exercendo atividades típicas de
civilizados.
8
Conforme Falcão (2009), o instituto da tutela está regrado pelo Código Civil nos artigos
406 e 445 (Capítulo I, Título VI, Livro I, da Parte Especial), e tem como normas subsidiárias
os artigos 26, parágrafo único, 44, 45 e 104 a 106 da Lei nº 6.697, de 10 de setembro de
1979 (Código de Menores), e art. 164 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente), dispondo o Código Civil quanto ao regime tutelar indígena no
parágrafo único do art. 6º que: Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar estabelecido
em leis e regulamentos especiais, o qual cerrará à medida que se forem adaptando à
civilização do País (FALCÃO, Ismael Marinho. Regime tutelar do índio. Disponível em
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=167. Acesso em 20.set 2009).O texto é uma
mostra do discurso colonial, sobretudo no aspecto de sua incoerência discursiva, conforme
pontua Bhabha (1998), por exemplo. Como preservar a cultura autóctone se o índio é
integrado à sociedade civilizada a partir da sua civilização, que se dá pelo distanciamento
de suas origens? Como falar de não violentação apenas pelo fato de não ocorrer agressão
física?
63
Tutela é termo proveniente do latim de igual grafia, que significa proteger, e,
do ponto de vista jurídico, é tomado como indicativo da instituição
estabelecida por lei para proteção dos menores órfãos ou sem pais, sem
condições de, por si sós, dirigir suas pessoas e administrar seus bens, motivo
por que se lhes dará um assistente ou representante legal, chamado tutor. A
tutela se extingue quando o tutelado atinge a maioridade, é emancipado, ou
se o menor é posto sob o pátrio-poder, pela legitimação, reconhecimento, ou
adoção (Código Civil, art. 442). Já as funções da tutela cessam quando
expira o prazo para a vigência do encargo; sobrevindo escusa legítima, ou
pela remoção (Código Civil, art. 443).
Verifica-se, pela redação do art. 7º e seu parágrafo único do
Estatuto do Índio, que a tutela indígena é semelhante à de
direito comum, por ser um mandato legal e com poderes
limitados pela própria lei de instituição, já que o objetivo maior
do Estatuto do Índio e do próprio regime tutelar indígena é o
de preservar a cultura indígena e integrar o elemento silvícola
à comunhão nacional de modo progressivo e harmônico, sem
violentação dos hábitos, usos e tradições característicos da
cultura selvática (FALCÃO, 2009, disponível em
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=167. Acesso em
20.set 2009).
2.6 O SPI e o discurso positivista de proteção ao índio
Até o final da primeira metade do século XX a maior parte dos atuais povos
indígenas do Nordeste não havia conseguido obter o reconhecimento de suas
identidades étnicas.
A criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) pelo governo republicano em
20 de junho de 1910, através do Decreto-Lei nº 8.072, intencionava mudar a
situação de hegemonia da Igreja Católica no trabalho assistencialista junto às
64
comunidades indígenas. A ação do governo, neste sentido, nascia sob um
discurso de proteção que ocultava a intenção de manter o índio sob a tutela
do Estado e, ao mesmo tempo, garantir a estratégia de ocupação territorial
do País, diante da constatação de que as missões catequistas, além de não
conseguir converter os nativos, não eram capazes de impedir a invasão dos
territórios indígenas e nem evitar o extermínio desses povos, sobretudo pela
ação dos pistoleiros e dos grileiros.
A iniciativa do governo federal, que passou a centralizar a política
indigenista, também implicou na redução das ações dos estados no tocante
às decisões sobre o destino dos índios. Esse povo foi ignorado desde a
primeira Constituição brasileira, concedida em 1824, como parte de uma
estratégia que vai se consolidar no País em 18 de setembro de 1850, com a
instituição da Lei Imperial nº 601, chamada Lei da Terra, e que foi
regulamentada pelo Decreto Imperial nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854
9
.
Esta lei extinguiu progressivamente os aldeamentos, cujas terras foram
anexadas aos municípios ou adquiridas por grandes latifundiários. Com isto
tornava-se ilegal a prática do sistema de posse pela simples ocupação,
responsável pela existência da maior parte dos povoados na região Nordeste,
e o uso da terra se tornava possível apenas através do sistema da
propriedade particular obtida por algum título oficial emitido neste sentido.
Para os indígenas, a lei teve duas vertentes: parte de suas
terras foi considerada proveniente do indigenato, e, portanto,
reconhecida como indígena por direito originário, o que,
porém, quase nunca significou a real posse da terra pelo povo
nativo, tanto que a maior parte, proveniente da colonização
dos índios, foi considerada devoluta e deixada à mercê dos
latifundiários, que passaram a reivindicar a legitimação de tais
9
Novas referências a este diploma só vão ser feitas na Constituição republicana de 1891
ao tratar da definição do termo e compartir as terras devolutas em federais e estaduais. A
polêmica questão e os termos inicialmente postos no Decreto Imperial citado acima são
ratificados pelas Constituições Federais de 1946 e de 1967. A CF de 1988 introduz
alterações apenas no tocante à preservação ambiental, contrai o conceito de segurança
nacional e impõe limites ao uso de terras devolutas da União como bem de
desenvolvimento, conforme Dirley da Cunha Júnior (2007).
65
territórios. O artigo 87, que deixava nas mãos dos juízes
municipais, delegados e subdelegados, o controle sobre as
terras devolutas, e o artigo 14, que possibilitava ao governo
vender essas terras devolutas, como e quando julgasse mais
conveniente (BONAVIDES; AMARAL, 1996), criaram um
padrão que seria muito utilizado pelos governadores de
províncias, sobretudo das regiões Nordeste e Sudeste:
declarar, por decreto, a extinção dos aldeamentos, para que os
terrenos fossem revertidos ao patrimônio das províncias, daí
para as Câmaras Municipais e, então, para o domínio de
particulares. A própria miscigenação, intensificada com a
política pombalina, cem anos antes, foi utilizada, naquele
momento, para desqualificar o indígena como tal, o que
significava mais liberação de terra (HERBETTA, 2008, pp. 178-
179).
O XVI Congresso Americanista, realizado em 1908, em Viena, Áustria, foi
marcado pelas denúncias de que o Brasil massacrava os índios como parte
de uma política nacional de extermínio da população autóctone. A
preocupação em restaurar a boa imagem do País no âmbito internacional foi
o fator impulsionador para o governo pensar em definir um programa de ação
de assistência e proteção à população indígena. É nesse contexto que o SPI
é criado. A missão principal do órgão era pacificar os índios que lutavam em
vários estados da Federação para impedir a ocupação de seus territórios, a
exploração dos recursos naturais de suas terras e resistir às ameaças de
morte muitas vezes consumadas por pistoleiros contratados por latifundiários.
O governo também pensava em minimizar o noticiário da imprensa sobre a
questão indígena que promovia a manutenção da má reputação do País,
conquistada a partir das denúncias feitas naquele congresso na Áustria,
perante a opinião pública internacional. Para o SPI cumprir a missão
pacificadora que lhe fora atribuída, o governo designou, para sua direção, o
coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, um positivista que havia se
notabilizado por ter mantido contato pacífico com alguns povos indígenas
durante os trabalhos de implantação da rede de telégrafo em várias regiões
do interior do País.
66
É Rondon quem vai desenvolver a chamada política de integração, na qual o
índio é reconhecido como sujeito transitório, isto é, aquele que vai ser
preparado para ter acesso à civilização. O objetivo desta política positivista
era erradicar a diversidade étnica e cultural, uma vez que a diversidade era
reconhecida pelo Serviço de Proteção ao Índio como uma etapa do
desenvolvimento que se concluiria com a inclusão do índio à sociedade
nacional (conforme o texto disponível em
http://www.funai.gov.br/quem/historia/spi.htm. Acesso em 19.set 2009).
A política integracionista brasileira aplicada pelo SPI e mantida pelo governo
federal mesmo depois da extinção deste órgão, em 5 de dezembro de 1967,
através da instituição sucessora, a Fundação Nacional de Apoio ao Índio
(FUNAI), sustenta-se na crença de que a humanidade está sujeita a um único
processo evolutivo, do qual a civilização ocidental representa o estágio mais
avançado. Nesta concepção, o caráter coletivo das populações aborígines
não é reconhecido. Embora os índios sejam vistos como dignos de
conviverem integrados à sociedade nacional, são tratados como
culturalmente inferiores. Por isso, a política do governo se propõe a dar a
esses índios as condições para evoluir e poderem ser agregados à
civilização.
Neste sentido, observe-se que há um jogo de poder no interior do discurso
colonial, cuja construção narrativa tem o intuito de produzir o colonizado
como uma realidade social que é ao mesmo tempo um outro e, ainda assim,
apreensível e visível em seu todo (BHABHA, 1998, p. 111). Dessa forma, o
desejo do colonizador é de um Outro reformado, reconhecível, como sujeito
de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente (grifo do
original) (BHABHA, 1998, p. 130).
Nos anos 1940, o SPI reconheceu como pertencentes à etnia indígena, na
Bahia, os Pataxó Hã--Hãe, os Pataxó, Baenã, Kariri-Sapuyá, Kamakã e
Tupinambá de Olivença. Somente na década seguinte foram instalados
postos indígenas nas comunidades Tuxá e Kiriri.
67
À frente da Inspetoria Regional 4 (I.R.4) do Serviço de Proteção aos Índios
(SPI) àquela época, Raimundo Dantas Carneiro é quem vai sugerir a
necessidade de constituição de um elemento identificador capaz de
possibilitar o reconhecimento de uma comunidade como povo indígena. Isso
porque sem a posse da língua original, miscigenados, os índios se
assemelhavam aos tipos regionais e eram aculturados devido ao apagamento
de seus costumes, tradições e prática religiosa.
Dantas Carneiro, para quem o ouricuri dos Fulni-ô, de Pernambuco, era uma
referência do sagrado, onde se dançava o primitivo e o verdadeiro Toré
(cf. GRÜNEWALD, 2005), resolve adotar este ritual como referência da
identidade nativa e estabelece que toda comunidade que exigisse o
reconhecimento de sua indianidade deveria ser capaz de dançar o Toré. O
chefe do I.R.4 acreditava que esta arte demonstrava a conscientização de
que eles eram índios (GRÜNEWALD, 2005, p. 17).
Tal exigência promove uma mobilização dos grupos indígenas e a
rearticulação do movimento de reconhecimento de suas indianidades que
visavam, entre outras coisas, reaver os seus territórios. Assim, os grupos
aligeiravam as relações interétnicas com o objetivo de reatualizar a tradição
do ritual do Toré. Os Kiriri vão buscar junto aos Tuxá o aprendizado desta
prática. Os Tuxá criaram, com isso, laços de parentesco com os Atikum e
Truká, de Pernambuco, e com os Kiriri (BA), aos quais revelou os segredos e
mistérios do ritual que antes eles, Tuxá, compartilhavam com os Pankararu
(PE), com os quais sempre mantiveram estreitas relações (cf. SAMPAIO-
SILVA, 1997).
Como dizíamos antes, o Toré, enquanto tradição inventada para traduzir a
identidade étnica, surgiu não de uma decisão dos povos, que Raimundo
Dantas Carneiro chamava de nossos curatelados
10
, mas de uma imposição,
10
Curatela é o instituto jurídico pelo qual o magistrado nomeia uma pessoa, denominada
Curador, com a finalidade de administrar os interesses de outrem que se encontra incapaz
de fazê-lo. Nosso Ordenamento Jurídico trata deste instituto nos artigos 1.767 e seguintes
do Código Civil de 2002. O artigo 1º do Código Civil de 2002 determina que "toda pessoa é
68
de caráter legalista, conforme os interesses do Estado tutor através da voz
de mando de um de seus representantes. Curatela é o instituto jurídico pelo
qual o magistrado nomeia uma pessoa, denominada Curador, com a
finalidade de administrar os interesses de outrem que se encontra incapaz de
fazê-lo.
capaz de direitos e deveres na ordem civil". Apenas são considerados inaptos para o
exercício da vida civil, ou seja, absolutamente incapazes de exercê-la, dentre outros, "os
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a
prática desses atos" (inciso II do artigo 3º). E são essas pessoas que o instituto da Curatela
visa proteger. Estão sujeitos à Curatela as pessoas elencadas no artigo 1.767 do Código
Civil, chamados curatelados:
I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para os atos da vida civil; II - aqueles que, por outra causa duradoura, não
puderem exprimir a sua vontade; III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os
viciados em tóxicos; IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; V - os
pródigos (FECCHIO, Ignez. Curatela. Disponível em
http://www.webartigos.com/articles/8501/1/curatela/pagina1.html. Acesso em 19.set 2009).
Como pode ser visto, não há porque se designar os indígenas de curatelados, exceto pelo
preconceito e em face da construção do discurso colonial que, conforme Bhabha (1998)
constrói o colonizado como um ser passível de intervenção, desde quando ele se apresenta
como tipos degenerados, conforme sua origem racial, de modo a justificar a conquista e
estabelecer sistemas de administração e instrução (BHAB HA, 1998, p. 111).
69
3. A invenção da tradição
Até os anos 1930 os registros oficiais sobre os povos indígenas que
habitavam a região Nordeste reconheciam e referenciavam essencialmente
os Fulni-ô, Potiguara e Pankararu, todos de Pernambuco. Estes povos
praticavam, já naquela época, o ritual do Toré.
Os anos seguintes foram de mobilização e expansão de novos indígenas que
buscavam junto ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI) o reconhecimento de
suas condições de pertença a uma etnia até então negada.
Atualmente, encontram-se, na região, reconhecidos como tais pelo governo
do homem branco, aproximadamente cinco dezenas de comunidades
indígenas. E, como afirma Grünewald (2005), este crescimento foi e tem sido
acompanhado do aumento da presença do toré como item de cultura (idem).
Sobre este evento, Grünewald (2005) observa que o reconhecimento das
comunidades indígenas nordestinas se deveu à informação de que havia um
espaço na sociedade brasileira para eles ocuparem enquanto indígenas e foi
por isso que vários povos emergiram no cenário regional (GRÜNEWALD,
2005, p. 17) e tentavam se afirmar enquanto pertencentes aos diversos
troncos indígenas que habitavam a região.
No entanto, é conveniente destacar que em função do elevado índice de
miscigenação os povos indígenas se assemelhavam fisicamente aos
regionais. Além disso, estes povos foram submetidos a um forte e intenso
processo de aculturação e, consequentemente, de desidentificação. Então,
como identificá-los enquanto indígenas?
Raimundo Dantas Carneiro, na década de 1950, à frente da 4ª Inspetoria
Regional do Serviço de Proteção ao Índio, com o apoio do etnólogo Carlos
Estevão Oliveira, decidiu pela escolha de um ritual religioso, o Toré, como
70
critério de reconhecimento étnico daqueles que reivindicavam a sua
identidade enquanto partícipes de uma sociedade indígena nordestina.
Dantas Carneiro inspirou-se, nesta decisão, na prática religiosa dos Fulni-ô,
de Pernambuco, integrantes do grupo mais antigo dos povos reconhecidos
como autênticos indígenas da região, que ele conhecia e reconhecia como o
primitivo e o verdadeiro toré, conforme Grünewald (2005) e Herbetta
(2008).
Destarte, todo aquele que reivindicasse o reconhecimento de pertença a um
grupo étnico autóctone, teria que demonstrar o conhecimento e o domínio do
ritual do Toré que, assim, tornou-se expressão obrigatória da indianidade
nordestina (HERBETTA, 2008, p. 179). Com isso, outros rituais e
manifestações, até então praticados pelas comunidades que buscavam
reafirmar-se, foram abandonados e os espaços deixados vazios pela perda
desses rituais foram cotidianamente preenchidos pelo aprendizado e a
(re)inclusão do Toré.
Era preciso dançar o Toré, desempenhá-lo, a fim de atender a exigência
imposta pelo SPI para comprovar, perante a sociedade não índia, o caráter
de indianidade de todos aqueles que reivindicassem este reconhecimento. O
inspetor Raimundo Dantas Carneiro acreditava que a prática do ritual do Toré
significava que eles tinham a conscientização de que eles eram índios
(GRÜNEWALD, 2005, p. 17).
Este saber que alguns povos, a exemplo dos Fulni-ô e Pankararu, conheciam
e praticavam ab origine e fazem parte dos ensinamentos in illo tempore da
criação, passou a ser buscado por todos aqueles que reivindicavam o
reconhecimento de sua indianidade. Isso deu origem a um movimento de
interação social entre as diversas novas comunidades indígenas que para
assegurar o seu reconhecimento étnico precisavam representar o Toré, daí a
necessidade de aprendê-lo.
71
[] O cacique foi lá em Tuxá (outra nação indígena, de
Rodelas), para pedir orientação, para aprender o Toré. Aí nós
começamos trabalhamos e trouxemos os cantos de lá, agora
nós pegamos os cantos daqui (GERLIC, 2003).
A fala do Pajé Kiriri José Miguel França revela o tronco ao qual pertence o
Toré praticado pela sua comunidade. Os Tuxá, do município de Rodelas,
instalado na região do Vale do Rio São Francisco, distante 540 quilômetros
de Salvador, mantinham este conhecimento em função de sua aproximação
com os Pankararu, de Pernambuco, com os quais se relacionavam
amistosamente antes mesmo de ter início o movimento de resgate do
reconhecimento étnico iniciado nos anos 1930 (ver SAMPAIO-SILVA, 1997).
[] a nossa aldeia Tuxá de Rodelas, a aldeia mãe de Rodelas,
ela arrebanhou todos aqueles que estavam perdidos, que
estavam sem sua luz e ela deu o saber e o conhecimento para
eles hoje estarem no seu conhecimento, dos seus cantos, de
sua tradição, de sua cultura, de seus regimes. Para mostrar
que é índio, tem que ter cultura, tem que ter regime. E para
nós, da Bahia, que já somos uma mistura muito grande, quem
mostra que nós somos índios é isso aqui: pisar o pé no chão,
dançar o Toré a hora que precisar para mostrar para o mundo
todo tomar conhecimento do nosso povo (Cacique Manuel
Eduardo Cruz, Bidu, em depoimento ao autor, 2009).
Os Tuxá, diz Bidu, ensinaram a tradição aos Atikum e aos Truká, ambos de
Pernambuco, e na Bahia, além dos Kiriri, fomos dar instrução aos
Tumbalalá, de Abaré e Curaçá. Para o cacique Raimundo Nonato Tuxá, não
foram só os Kiriri e os Tumbalalá que beberam da fonte Tuxá, mas várias
outras tribos que foram buscar no tronco, na nossa aldeia, que é a aldeia
Tuxá. E os mais velhos ensinaram o povo e o fortaleceram cada vez mais
(depoimento colhido pelo autor, 2009).
Já na opinião de Marcelo de Jesus Kiriri o Toré tem um significado muito
grande, muito importante para o seu povo, e, não fosse o ritual acho que
não estaríamos onde estamos agora (depoimento colhido pelo autor, 2009).
72
Para ele, tudo que foi conquistado pelos Kiriri nas últimas décadas só foi
possível através do Toré.
Todavia, os pesquisadores comungam que de igual forma que a história dos
indígenas nordestinos é plena de descontinuidades, também o Toré,
instituído como ícone maior da indianidade na região Nordeste, tem histórias
descontínuas, difusas, esquecidas e lembradas, recontadas, reinterpretadas,
construídas, imaginadas e, obviamente, vividas (GRÜNEWALD, 2005, p. 17).
Ora, é este processo de emergência de construção de uma nova situação
política, novo status social, ou ainda de novos paradigmas identitários, que
Hobsbawm (2008) vai chamar de invenção das tradições. Tais tradições
surgem como necessidades de consolidar novas estruturas originadas de
movimentos sociais, sobretudo os de caráter político e de identidade. Como
explica este autor, a tradição inventada, quer seja ritual ou simbólica,
objetiva, pela repetição contínua, imprimir no espírito da comunidade
determinados valores e normas de comportamento através da reprodução,
fato que vai gerar e estabelecer uma continuidade com um passado histórico
apropriado.
O ritual do Toré comum às sociedades indígenas nordestinas foi, por
exigência, aprendido, o que nos leva a ler esta narrativa em conformidade
com a teoria de Hobsbawm (2008) de se tratar de uma tradição inventada,
isto é, copiada, aprendida e constituída a começar da vivência de cada grupo
com suas peculiaridades, inclusive sincréticas. Haja vista a configuração dos
cânticos que referenciam santos e deidades, a exemplo do próprio Cristo,
católicos.
Lá no pé do cruzeiro, oh jurema
Eu brinco é com o Maracá na mão (bis)
Pedindo a Jesus Cristo
Com Cristo no meu coração (bis)
Hêina, hêina êh (estribilho)
Hêina, hêina ah (NASCIMENTO, 2005, p. 43).
73
No tocante à relação com o passado, a repetição do ritual produz a
construção de uma nova memória na comunidade cuja experiência
revivenciada assume a narrativa de um continuum que se propaga no tempo
e faz com que a reprodução preencha os espaços e, consequentemente, crie
a impressão de que a tradição está presente desde ab origine, do tempo da
criação. Isto pode ser visto na fala de Rubens Kiriri (GERLIC, 2003), quando
ao se referir ao Toré, enfatiza que fazemos nosso ritual, que a gente nunca
abandonou e não vamos abandonar (idem). Fato é que Rubens nasceu
depois que os Kiriri reaprenderam o ritual e durante toda sua vida conviveu
com esta prática, daí, para ele, o Toré estar ali desde sempre.
Hobsbawm (2008) entende que o passado histórico no qual a nova tradição
é inserida não precisa ser remoto (idem, pp. 9-10). Assim, em sua opinião,
[] na medida em que há referência a um passado histórico,
as tradições inventadas caracterizam-se por estabelecer com
ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras,
elas são reações a situações novas que ou assumem a forma
de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu
próprio passado através da repetição quase que obrigatória
(HOBSBAWM, 2008, p. 10).
Convém frisar, no entanto, que particularmente nas sociedades tradicionais a
relação com este tempo histórico, cronologicamente narrado e apreendido
pelo homem ocidental de cultura eurocêntrica, dá-se de forma diferenciada,
haja vista que o seu modus vivendi e, consequentemente, a sua cultura tem
uma relação com o tempo de forma peculiar. Ele é ininterrupto e não
comporta intervalos ou elementos eventualmente distintos, como podemos
ver no item a seguir.
74
3.1 Ab origine ou in illo tempore
As sociedades arcaicas mantêm uma postura de indiferença diante do tempo
histórico. A despeito, inclusive, de terem a consciência da existência deste
tempo e do histórico, conforme Eliade (1992, p. 5), fazem todo esforço no
sentido de desprezá-la. Tal característica, de acordo com este autor, pode
ser interpretada como uma revolta contra o tempo concreto e histórico, em
face da nostalgia que permeia o sentimento dessas sociedadespor uma
volta periódica aos tempos míticos do começo das coisas, à Grande Era
(idem).
Para Eliade (1992), conforme registra em seus estudos sobre os povos
primitivos, o significado e a função do que se chama nas sociedades ditas
civilizadas de "arquétipos e repetição" só apareceram depois que ele
percebeu o desejo das sociedades arcaicas de rejeição do tempo concreto, a
hostilidade em relação a qualquer tentativa de montagem da história
autônoma, isto é, a história não ordenada por meio de arquétipos (idem, p.
5).
A teoria de Hobsbawm (2008) da invenção das tradições também leva em
conta este estranhamento da sociedade arcaica em relação ao tempo
histórico, conforme compreendido pela sociedade ocidental. Quando este
autor afirma que as tradições que parecem ou são consideradas antigas são
bastante recentes (2008, p. 9), ele parte do pressuposto da diferença de
como o homem primitivo apreende este tempo histórico e o seu desejo pelo
eterno retorno ao grande momento da criação.
Por sua vez, Eliade (1992) revela que a preocupação desse homem
tradicional reside sobre a imagem que tem de si e sobre o lugar que ele
assume no Cosmo (idem, p. 8). Logo, observa,
75
A mais importante diferença entre o homem das sociedades
arcaicas e tradicionais, e o homem das sociedades modernas,
com sua forte marca de judeu-cristianismo, encontra-se no fato
de o primeiro sentir-se indissoluvelmente vinculado com o
Cosmo e os ritmos cósmicos, enquanto que o segundo insiste
em vincular-se apenas com a História. Claro que, para o
homem das sociedades arcaicas, o Cosmo também tem uma
"história", embora apenas por ser considerado como uma
criação dos deuses, e por ser visto como o trabalho de
organização de seres sobrenaturais ou heróis míticos. No
entanto, essa "história" do Cosmo e da sociedade humana é
uma "história sagrada", preservada e transmitida por
intermédio de mitos. Mais do que isso, é uma "história" que
pode ser repetida de maneira infinita, no sentido de que os
mitos servem como modelos para cerimônias de reatualização
periódica dos importantes eventos ocorridos no princípio dos
tempos (ELIADE, 1992, p. 8-9).
Provavelmente o homem dito civilizado, incluído na sociedade eurocêntrica,
prenhe de uma cultura e religiosidade cristã que cinde este ser humano em
carne (profano) e espírito (divino), não se consegue perceber como uno e
como parte integrante do Cosmo, ao contrário daquele povo primevo que se
vê completo ab origine e cujos rituais permanecem e perpetuam in illo
tempore. As falas de Rubens Kiriri e do Pajé José Miguel França, citadas no
capítulo 2.1, referenciam sobre a apercepção do tempo histórico do Toré
dentro daquela comunidade, diversa que é da percepção do homem moderno.
Até hoje a gente vem usando nossa tradição, tanto no sol
como na chuva. De noite fazemos nosso ritual, que a gente
nunca abandonou e não vamos abandonar, porque é a nossa
segurança (Rubens Kiriri, in GERLIC, 2003)
[] O cacique foi lá em Tuxá [], para pedir orientação, para
aprender o Toré. Aí nós começamos trabalhamos e
trouxemos os cantos de lá, agora nós pegamos os cantos
daqui (Pajé José Miguel França, in GERLIC, 2003).
O que auscultamos nos dois depoimentos é uma abstração do tempo
histórico linear vivido pelo homem moderno e que não consegue apreender o
76
sentido do ritual que é usado e que nunca foi abandonado porque esteve e
está sempre presente, em uma ideia clássica de perenidade, presente no
passado e no presente, pleno de significados e que revivifica o mito a cada
reencenação no agora. Um agora que está no tempo do além que, para
Bhabha (1998, p. 23), refere-se à distância espacial que destaca diferenças
sociais, temporais, que interrompem nossa noção conspiratória da
contemporaneidade cultural (idem) e que faz com que o presente não seja
mais encarado simplesmente como uma ruptura ou um vínculo com o
passado e o futuro (BHABHA, 1998, p. 23).
Na opinião de Eliade (1992), o menosprezo da história, ou dos eventos
destituídos de modelos trans-históricos (1992, p. 5), e a recusa do tempo
profano, ininterrupto, pelos indivíduos das sociedades tradicionais se deve à
leitura de uma valorização metafísica da existência humana (idem, idem). No
entanto, diz Eliade,
essa valorização não é, enfaticamente, a mesma procurada
por certas correntes filosóficas pós-hegelianas em especial
o marxismo, o historicismo e o existencialismo com a
finalidade de ser dada à existência humana desde a
descoberta do "homem histórico", do homem que está inserido,
desde que ele mesmo se coloque, dentro da história (ELIADE,
1992, p. 5).
Para o homem arcaico, os objetos do mundo externo ou os atos humanos não
possuem valor intrínseco. Atos e objetos adquirem um valor, e, ao fazer isso,
tornam-se reais, porque participam, de uma forma ou outra, de uma realidade
que os transcende (ELIADE, 1992, p. 12). Por isso, é queentre tantas
pedras, uma torna-se sagrada e, assim, instantaneamente, satura-se do
ser porque constitui uma hierofania, ou possui maná, ou ainda porque
comemora um ato mítico, e assim por diante (idem).
77
O fato de os conceitos metafísicos do mundo arcaico no mais das vezes não
terem sido formulados em linguagem teórica, na opinião de Eliade (1992),
exige do estudioso/pesquisador habilidade para ler o que o símbolo, o mito e
o ritual expressam, em planos diversos, e com os meios que lhes são
apropriados, sobre a realidade final das coisas, [] para podermos traduzi-
los para a nossa linguagem habitual (ELIADE, 1992, p. 11).
Assim, a seu ver, o mito é o relato de uma história verdadeira, ocorrida no
início dos tempos, in illo tempore, quando algo passou a existir em função da
ação de seres sobrenaturais. Pode-se resumir, portanto, esta interpretação
do mito como a narrativa da criação de uma realidade. Neste caso, o mito
revela a forma pela qual algo que não era passou a ser uma realidade.
Por esta interpretação, na práxis e no cotidiano dos povos primitivos, o mito é
reatualizado pelo rito que, por sua vez, enquanto a celebração que remete o
homem ao divino, possui o poder de reafirmá-lo. Dentro das culturas
arcaicas, o mito tem a finalidade de preservar e transmitir paradigmas, os
modelos exemplares (ELIADE, 1992, p. 9), e é pelo rito que o homem se
integra ao mito e com ele aprende a conhecer a origem e o segredo das
coisas ab origine. O ritual torna real no agora uma transcendência vivida e
que renova o mito e ao renová-lo habilita o homem a repetir o que deuses e
herois fizeram in illo tempore (ELIADE, 1992).
No Toré, o índio se integra com o seu encantado e vivencia com ele a
experiência do transcender outros níveis de realidade para ser iniciado no
segredo das coisas que integram o conhecimento da ciência do índio, a
exemplo da jurema. O ritual traz para o presente a afirmação de uma
identidade e os modelos exemplares desta identidade que se mantém viva e
sentida desde a origem do tempo, aquele tempo da Criação, quando o índio
era um com o Uno e começava a traçar no plano da realidade a história
sagrada da humanidade que também é contada e revelada nos movimentos
circulares da dança ritualista do Toré, repetida, na concepção dos
autóctones, desde um passado que referencia este rito que assim se fez
desde aqueles tempos.
78
3.1.1 Índios, indígenas e parentes
Desde a chegada do europeu ao novo continente e do primeiro contato dos
povos arcaicos com o homem civilizado que o índio se constitui objeto das
mais diversas imagens e conceituações por parte dos não índios e pelos
próprios índios. Todo esse processo se dá e está eivado e acintosamente
marcado por sentimentos de preconceitos e ignorância, (conforme LUCIANO,
2006). O estranhamento do invasor diante do diferente que se lhe
apresentava levou-o a condicionar até mesmo o fato de os habitantes da
terra não pertencerem à natureza humana, conceito que se fundou com base
no comportamento revelado pelos autóctones quanto à forma com que e de
que se alimentavam, por andarem nus, por se banharem várias vezes ao dia,
por falarem uma língua diferente e não possuírem escrita, por pintarem os
corpos e usarem adornos com peles e penas de animais.
O preconceito inicial e que faz parte do comportamento do dominador e do
discurso colonialista, como já foi dito anteriormente neste trabalho, através
da citação de obras de autores como Bhabha (1998), Hall (2006), Castoriadis
(2007), Freire (1969) e Canclini (2008), entre outros, que pautou a relação
entre os habitantes nativos do Brasil e o branco europeu, perpetuou-se ao
longo dos séculos e se revela, ainda, na sociedade contemporânea. A
sociedade brasileira se mantém apegada à ideia de que o indígena tem uma
cultura inferior à dos outros povos e considera que a única perspectiva (para
o índio) é a integração e a assimilação à cultura global (LUCIANO, 2006, p.
35).
Na opinião deste autor, a postura do colonizador e os conceitos expressos,
em atos e palavras, em relação aos índios, ocasionaram um forte sentimento
de inferioridade à população nativa que teve muitos de seus grupos
erradicados pela ação predatória do branco europeu, sobretudo nos conflitos
pela posse das terras. O sentimento de inferioridade tem tornado mais difícil
79
enfrentar os desafios de lutar pela autoafirmação identitária e obter direitos
de cidadania nacional e global enquanto índios e indígenas.
Quanto ao uso das ―categorias índio e parente nas relações intra e
interétnicas, Luciano (2006) considera que ambas são fundamentais para o
entendimento das novas formas de relações sociais, políticas e econômicas
dos povos indígenas do Brasil, além, é claro, de outros termos e conceitos
próprios do universo indígena e indigenista (idem, p. 30). Para este autor, a
designação índio ou indígena, é o resultado de um mero erro náutico (idem,
idem). Logo, observa ele,
não existe nenhum povo, tribo ou clã com a denominação de
índio. Na verdade, cadaíndio pertence a um povo, a uma
etnia identificada por uma denominação própria, ou seja, a
autodenominação, como o Guarani, o Yanomami etc. Mas
também muitos povos recebem nomes vindos de outros povos,
como se fosse um apelido, geralmente expressando a
característica principal daquele povo do ponto de vista do
outro. Ex.: Kulina ou Madjá. Os Kanamari se autodenominam
Madjá, mas os outros povos da região do Alto Juruá os
chamam de Kanamari (LUCIANO, 2006, p. 31).
De acordo com Luciano (2006), o substantivo índio chegou a ser usado e
adquirir um significado pejorativo como resultado do processo histórico de
dominação e do preconceito que se criou em relação aos povos nativos. A
seu ver, a sociedade branca percebe o índio como aquele Outro sem
civilização, sem cultura, incapaz, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro
(LUCIANO, 2006, p. 31). Alguns brancos também veem o índio como um ser
romântico, protetor das florestas, símbolo da pureza, quase um ser como o
das lendas e dos romances (idem, idem).
Igual percepção tem Santana (2010, p. 4), para quem, o conjunto de todos os
povos indígenas brasileiros é visto como se fosse um só povo em oposição
ao que se identifica como brancos. Isto, apesar da grande variedade de
80
povos, etnias e culturas que se comunicam através de inúmeras línguas e
dialetos que propagam cosmovisões diversificadas
e que perpassam por uma etnografia de práticas e saberes
comunitários reveladores de uma memória marcada em
estratégias identitárias de experiências compartilhadas, num
ethos que se configura em noções de tempo, espaço e mundo
ligados à sagrada mãe terra (SANTANA, 2010, P. 4).
Foi a partir da década de 1970, quando se organizou, no Brasil, o movimento
indígena, que esses povos chegaram ao consenso sobre a importância de se
manter, aceitar e promover a denominação genérica de índio ou indígena
(idem, idem). Isto porque, concluíram as lideranças do movimento, tal
denominação consegue expressar uma identidade que une, articula,
visibiliza e fortalece todos os povos originários do atual território brasileiro
(idem), além de que serve também para demarcar a fronteira étnica e
identitária entre eles, enquanto habitantes nativos e originários dessas terras
(idem). E foi a começar de então que o sentido pejorativo atribuído ao índio
começou a ser mudado e adquirir o significado positivo de identidade
multiétnica.
Foi também a começar desta transformação e do movimento indígena
organizado que levou à condição de, hoje, todos os índios se tratarem como
parentes.
O termo parente não significa que todos os índios sejam iguais
e nem semelhantes. Significa apenas que compartilham de
alguns interesses comuns, como os direitos coletivos, a
história de colonização e a luta pela autonomia sociocultural
de seus povos diante da sociedade global.
Cada povo indígena constitui-se (sic) como uma sociedade
única, na medida em que se organiza a partir de uma
cosmologia particular própria que baseia e fundamenta toda a
81
vida social, cultural, econômica e religiosa do grupo. Deste
modo, a principal marca do mundo indígena é a diversidade de
povos, culturas, civilizações, religiões, economias, enfim, uma
multiplicidade de formas de vida coletiva e individual
(LUCIANO, 2006, p. 32).
Assim, de acordo com o entendimento deste autor, a aquisição de um valor
positivo pelos termos índio ou indígena, e que, nas relações interétnicas,
revela-se na expressãoparente, transmuta o sentimento de inferioridade
imposto a cada povo indígena pelo colonizador. A ressignificação destes
termos criou um estado de emergência das reafirmações de identidades
étnicas de cada povo em face, sobretudo, da nova qualificação transferida
para as comunidades nativas no aspecto social e político.
Antes da organização do movimento indígena, chamar alguém de índio era
uma ofensae como a denominação estava associada aos povos nativos,
conseqüentemente as denominações e as autodenominações étnicas eram
igualmente indesejáveis (idem). Em face desta situação muitos índios
recusavam suas identidades e suas origens étnicas, seus costumes, modos
de vida e pensamento.
A denominação original de caboclo na Amazônia, por exemplo,
está fortemente relacionada a essa negação das identidades
étnicas dos índios. Foi uma invenção daqueles que não
queriam se identificar como índios, mas também não podiam
se reconhecer como brancos ou negros (pois não pareciam),
como se fosse uma identidade de transição de índio (ser
inferior ou cultura inferior) para branco (ser civilizado e
superior). Neste sentido, o caboclo seria aquele que nega sua
origem nativa, mas que por não poder ainda se reconhecer
como branco se identificava com o mais próximo possível do
branco (LUCIANO, 2006, pp. 32-33).
Sobre a questão identitária Santana (2010, p. 4) ressalva que, para a maioria
dos índios do continente americano, a identidade étnica se expressa através
82
das mais diversas recriações de mundo e ethos comunitário através de
símbolos e rituais reconhecidos em sistemas referenciais de memória oral, o
que os tornam diferentes deste Outro que é o branco.
O reflexo das mudanças introduzidas no cotidiano dos povos indígenas desde
os anos 1970, quando o movimento indígena ganhou organização e presença
social e política, pode ser observado no comportamento do próprio índio que,
hoje, é um índio que sente orgulho de ser nativo, portador de uma cultura
própria e pertencer a uma ancestralidade particular. Tais transformações
originaram o fenômeno da etnogênese, principalmente no Nordeste
(LUCIANO, 2006), onde os povos que antes recusavam suas identidades
étnicas agora reivindicam o reconhecimento de suas etnicidades e, em
paralelo, de suas territorialidades nos marcos do Estado brasileiro.
[] eles representam hoje o segmento indígena mais ativo e
mais combativo na busca por reconhecimento e visibilidade
política, buscando marcar posição e fronteira étnica que lhes
garantam um espaço sociocultural e político num mundo que
ilusoriamente se pretende cada vez mais monocultural e global
(LUCIANO, 2006, p. 34).
3.1.2 Quem são os Kiriri
Dos Kiriri que, à época do Brasil colonial, ocupavam uma faixa territorial que
se estendia do Paraguaçu, no Ceará, até Itapicuru, na Bahia, já não existem
mais falantes de sua própria língua, que alguns pesquisadores dizem
pertencer ao tronco macro-jê, ou kamakã, conforme entendimento de outros.
Por volta de 1983 investigadores de campo conseguiram recolher de apenas
83
um ancião, de uma população estimada em 1.800
11
pessoas, que possuía
uma pequena memória de sua língua, o total de cem palavras. O resultado
deste trabalho foi publicado por Meader
12
(1978).
O gentílico Kiriri e seu variante Kariri é aplicado a vários povos do Nordeste,
embora, atualmente mais referencie especificamente os índios Kiriri de
Mirandela. Fabre (2005) cita Loukotka (1963, p. 13) que indica ser o grupo
indígena de Mirandela o resultado da junção de três tribos originalmente
diferentes: massakará (que pertencia à família linguística kamakã, da qual se
tem registro de apenas três vocábulos encontrados em um manuscrito citado
também em Loukotka), Kariri e katembri.
Kiriri ou Kariri é um vocábulo Tupi que significa povo silencioso, calado,
taciturno. Tal designação teria sido atribuída pelos Tupi habitantes do litoral
brasileiro aos índios do sertão (cf. BRASILEIRO, 1996).
E este povo faz jus a tal designação. Desconfiados, em geral esquivam-se de
falar com estranhos. É possível que tal comportamento se deva ao fato de
ainda serem visíveis os prejuízos causados pelo contato com os não índios
iniciado ao final da primeira metade do século XVII. Primeiramente, foram os
jesuítas cuja ação inicial se deu no sentido de congregar os índios no
povoado de Saco dos Morcegos, fundado em 1656, em vez de deixá-los viver
dispersos na caatinga. Em um segundo momento, o trabalho se voltou para
converter os indígenas ao cristianismo, o que levou à perda da língua e o
afastamento das práticas de costumes e de rituais, a exemplo do
Uaraquidzam, a Cabana Sagrada. Catolizados, os Kiriri vivem atualmente sob
a proteção do padroeiro da aldeia, Nosso Senhor da Ascensão.
11
Dados da FUNASA Fundação Nacional de Saúde, que até o início do ano de 2010
respondia pelo atendimento às populações indígenas, indicam que em 2006 os Kiriri
existentes na Bahia somavam 1.612 pessoas. Disponível em
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kiriri acesso em 25.jan 2009.
12
MEADER, Robert E.. Índios do nordeste. Levantamento sobre os remanescentes tribais
do nordeste brasileiro. Brasília: SIL, 1978, cf. citação de FABRE, Alain. Diccionario
etnolingüístico y guía bibliográfica de los pueblos indígenas sudamericanos. KIRIRI.
Edição eletrônica, 2005. Disponível em http://butler.cc.tut.fi/~fabre/BookInternetVersio/
Alkusivu.html. Acesso em 17.jan 2010.
84
Os jesuítas agiam, na verdade, como se os Kiriri fossem propriedades suas.
Comportamento este que levou a se estabelecer um conflito com o dono das
terras da capitania hereditária, Garcia DÁvila, para quem, uma vez que os
índios ocupavam suas posses, também lhe pertenciam. Nem mesmo a
expulsão dos jesuítas do País diminuiu os confrontos e conflitos entre nativos
e invasores que começavam a apoderar-se das terras até então ocupadas
pela população indígena.
No final do século XIX, no episódio de Canudos, este povo viveu uma nova e
marcante experiência de convivência com os não índios. A reserva dos Kiriri
fica próxima ao município de Canudos, o que facilitou o contato do líder
messiânico, Antonio Conselheiro, com os indígenas e resultou na adesão de
muitos deles às promessas do profeta sobre a existência de um rio de leite e
ribanceira de cuscuz. Mariano (2000, p. 2) relata o depoimento de Zacarias
Antonio, de 92 anos, de acordo com quem a madeira usada na construção da
igreja de Canudos teria sido levada da reserva.
Outra história famosa sobre a participação dos índios em
Canudos é que teria sido uma flecha kiriri que matou o temido
Coronel Moreira César, o Corta Cabeça. Com a guerra de
Canudos, muitos índios morreram e, com eles, o conhecimento
sobre rituais como o cururu e os últimos falantes da língua
nativa, o kipeá.
Quando os poucos sobreviventes conseguiram voltar para a
reserva, descobriram que já não eram bem vindos:
encontraram brancos por toda parte, inclusive em Mirandela e
passaram a viver espalhados pela serra, morando em casebres
de palha. O século XX foi repleto de conflitos com os
descendentes desses posseiros, culminando, em 1995, após a
morte do índio Adão, na ocupação definitiva de Mirandela
(MARIANO, 2000, p.3).
Atualmente vivem aproximadamente dois mil índios na reserva de Mirandela,
divididos em dois grupos e liderados por caciques distintos.
85
Brasileiro (1996) sobre este fato relata ter mapeado as disputas entre as
lideranças Kiriri que colocaram em cheque a autoridade do cacique e
cindiram o grupo de tal forma que a aldeia Kiriri se constituiria, no final dos
anos 1980, em dois segmentos faccionais (BRASILEIRO, 1996, p. 10).
Este povo vivencia, ainda hoje, um processo de emergência étnica que
começou a se configurar a partir dos anos 1960 quando foi deflagrado o
movimento de busca do reconhecimento de sua condição de povo autóctone
e que, na década seguinte vai se acentuar com o (re)aprendizado e adoção
do Toré e o abandono de outras práticas rituais até então incorporadas ao
seu cotidiano com o nítido propósito de garantir a atribuição por parte do
poder constituído (o Estado) da condição de povo indígena.
Os kiriri constituem hoje um exemplo de luta para outros povos indígenas
brasileiros em face de suas conquistas. No espaço de quinze anos, este povo
que experienciou a ação da empresa colonizadora no sentido de
desindianizá-lo, primeiro pelos jesuítas, com o processo de catequese e de
aldeamento; depois, com a iniciativa do Marquês de Pombal, que após
expulsar os jesuítas impôs às aldeias nomes de vilas portuguesas e proibiu o
uso de qualquer língua indígena em suas escolas , estruturou-se
politicamente e promoveu, em fins dos anos noventa do século passado, a
extrusão de cerca de 1.200 não índios incidentes na Terra Indígena Kiriri
13
,
homologada desde 1990.
Por se reconhecer na sua memória social, história e sentimentos constituídos
pela sua organização sociopolítica, a sociedade Kiriri assume, no agora, um
projeto coletivo de identidade étnica. Neste sentido, Nascimento (1998)
observa que no início da década de 1960,
13
A Terra Indígena Kiriri está localizada nos municípios de Banzaê (95%) e Quijingue (5%)
situados no Norte do estado da Bahia (região do semiárido), e tem uma extensão territorial
de 12.300 hectares, em uma faixa de transição entre o agreste e a caatinga. Os núcleos
tradicionais de ocupação Kiriri - Sacão, Baixa da Cangalha, Cantagalo, Lagoa Grande,
Cacimba Seca foram substituídos pelos povoados antes ocupados por regionais:
Mirandela, Gado Velhaco, Marcação, Araçá, Pau Ferro, Segredo, Baixa do Camamu, Baixa
da Cangalha.
86
quando passam a contar com o auxílio de organizações não
governamentais como o CIMI e a ANAÍ-BA, bem como do
próprio movimento indígena nacional, os índios Kiriri divisaram
a possibilidade de se reorganizarem etnicamente, revertendo o
processo de desarticulação política de sua população que, até
então, encontrava-se à mercê das imposições dos fazendeiros
e políticos locais. Sua organização política foi concomitante à
retomada de suas tradições culturais, através do
reaprendizado do ritual do Toré, que os Kiriri foram buscar
junto aos índios Tuxá (Rodelas BA), considerados por eles
como parentes de outra rama. (NASCIMENTO, 1998, p. 69)
Na concepção de Brasileiro (1996), no caso dos Kiriri há uma continuidade
histórica, decorrente do fato de que a existência deste grupo, enquanto
segmento etnicamente diferenciado, jamais deixou de ser pressuposta no
campo intersocietário instituído desde o seu aldeamento (idem, p. 14), ao
contrário de outras sociedades indígenas nordestinas. Entre os demais
grupos, conforme a pesquisadora,a fronteira étnica parece ter se diluído
frente à presença maciça de regionais (idem, idem).
Para detalhar o aspecto divergente do caráter histórico do povo Kiriri, a
autora interpreta que a continuidade percebida neste caso vai implicar em um
âmbito de negociações da própria definição étnica [] que envolveu a
exclusão e inclusão de diversos grupos locais e familiares, ao sabor,
inclusive, dos casamentos interétnicos e das alianças pessoais (idem, idem).
A fronteira étnica seria, a seu ver, historicamente negociada no contexto
regional.
É preciso, no entanto, fazer-se uma pausa para explicar que a fronteira étnica
é um limite que se estabelece nas bordas das relações sociais, conforme
Barth
14
(1976), ainda que tais áreas de fronteiras, no sentido dos estudos
interétnicos, possam se observar, também, concomitantemente, no plano
territorial. Este limite, de acordo com Barth (idem), é o que permite definir o
grupo e não o conteúdo cultural que este grupo contém. Neste sentido,
14
Os textos de Barth reproduzidos neste trabalho foram traduzidos do livro Los Grupos
Étnicos y SUS Fronteras (México: Fondo de Cultura Económica, 1976) pelo autor.
87
observa que os grupos étnicos não se fundamentam simples ou
necessariamente na ocupação de territórios exclusivos (BARTH, 1976, p.
17), mas é preciso analisar os meios pelos quais conseguem preservar sua
identidade, mesmo que seus integrantes interatuem com outros, pois não é
só mediante um recrutamento definitivo, senão em virtude de uma expressão
e uma ratificação contínuas que isso se torna possível (idem, idem).
Mais ainda, os limites étnicos canalizam a vida social e isto
ocasiona uma organização frequentemente muito complexa de
relações sociais e de conduta. A identificação de outra pessoa
como membro do mesmo grupo étnico envolve uma
coparticipação de critérios de valoração e de juízo. Pelo
mesmo, se parte do suposto de que ambos estão
fundamentalmente "jogando o mesmo jogo"; isto significa que
existe entre eles uma possibilidade de diversificação e
expansão de sua relação social capaz de cobrir, no caso dado,
todos os setores e domínios de sua atividade (idem, idem).
Dessarte, o antropólogo considera a existência de um princípio dicotômico
responsável pela transformação do outro em um estranho e, ato contínuo,
pelas diferenças reveladas neste outro, em um integrante de outro grupo
étnico. Este princípio dicotômico condiciona e supõe um reconhecimento
prévio das limitações dos indivíduos e dos grupos a fim de poderem chegar a
um entendimento recíproco, conscientes de que em ambos estão presentes
diferentes critérios para emitir juízo de valor, de conduta e uma restrição da
interação possível a setores que pressupõem comum acordo e interesse
(BARTH, 1976, pp. 17-18).
No caso dos Kiriri, Brasileiro (1996, pp. 19-20) chama a atenção para o fato
de que o contato
com segmentos da sociedade nacional em um contexto de
antagonismos crescentes produziram significativas mudanças
na organização social kiriri e a perda de alguns atributos,
88
reputados como tradicionais, que supostamente poderiam
definir a sua inserção na categoria jurídica índio, condição
primordial para a obtenção de certos direitos originários
assegurados pela Legislação. Nos últimos anos, norteando a
luta pela posse do território, tem se (sic) observado neste povo
a emergência de um processo de afirmação da sua
especificidade étnica, com ênfase na revitalização de uma
ordem política, que tem como marco a indicação de um
cacique, em 1972, que ali viria a estabelecer um poder
centralizado e determinante, alicerçado na assunção de ideais
éticos, tais como aobrigação e a devoção a um projeto
comunitário (idem, idem).
Brasileiro (1996) defende a ideia de que depois que Barth (1976) elaborou a
noção de grupo étnico, que ele define como acomunidade composta de
membros que identificam a si mesmos e são identificados por outros e que
constituem uma categoria distinta de outras categorias da mesma ordem
(BARTH, 1976, p. 11), a questão das identidades étnicas se tornou relevante
para o entendimento do fenômeno do contato, ao mesmo tempo em que o
papel da cultura passou a ser repensado no processo de construção de
etnicidades.
3.1.3 O saber do índio e a verdade das matas
A luta para retomar nossas terras custou muito trabalho. Nós trabalhávamos
na poeira, na chuva, no frio, na fome, só com a força de Deus e nossos
protetores. A fala é do Pajé José Miguel da França, para quem todo trabalho
do seu povo se realiza na busca pela verdade. E nós temos a nossa verdade
nas matas, porque o índio é da mata O mato nos ensina tudo o que
podemos fazer. O branco tem o saber dele e o índio também tem o seu
saber, comenta ele (em depoimento ao autor).
89
O Pajé diz que o Kiriri vive da terra e planta mandioca, feijão de corda,
feijão carioca (que resiste à seca, um fenômeno climático que aflige o
semiárido), batata e milho. Além da agricultura de subsistência esses índios
caçam tatu, camaleão, teiú, tamanduá, codorna e até pássaros menores,
como o sabiá e a nambu que pegamos para comer e usamos as penas para
fazer artesanato.
Por sua vez, o liderança Marcelo de Jesus Kiriri anuncia que seu povo ainda
tem outra grande batalha na caminhada pela constituição de sua identidade
indígena que é resgatar a língua nativa original. Atualmente esse povo fala
apenas o Português e esporadicamente usam alguns poucos vocábulos do
dialeto Kipeá, da família linguística Kariri, e que, conforme citamos
anteriormente, somam pouco mais de 100 palavras. E promete que as
lideranças vão batalhar por isso, pois elas sabem quão importante é o índio
conhecer e falar a sua língua, também considerado o mais importante
elemento definidor de identidade étnica.
Mariano (2000) narra que o Kiriri é um povo silencioso, amoroso, paciente e
tranquilo. Dona Edite confirma esta versão quando declara que não estamos
acostumados com nenhuma zoada. Ela afirma que até hoje não se
acostumou a caminhar na cidade quando precisam ir até lá: A gente não
pode caminhar sossegado, como eu ando aqui em nosso mato (depoimento
colhido pelo autor).
Por sua vez, Bonifácio, o Boni, conta que desde quando eu me entendi, a
tradição indígena era o batalhão. O batalhão era uma força onde nós
trabalhávamos todos unidos. E complementa:
Na segunda-feira, a roça era comunitária geral, era um dia
sagrado, onde todos os índios Kiriri se juntavam. Eram todos
juntos cantando o batalhão, e se bebia um vinho de milho,
mairu. Essa bebida faz parte da tradição do índio e esta
tradição não pode acabar. Os mais velhos faziam o mairu
mastigando na boca, eu já alcancei fazendo no pilão, pisando
de dois ou três índios. Não é beber para desmoralizar, para
90
morrer. Se souber usar ela é a saúde, como um remédio.
Também tinha o arupin que, como o nome diz, é feita de
mandioca (depoimento ao autor).
Seu Vital lamenta o fim da tradição do batalhão que se deu em função da
introdução da tecnologia na vida campesina de seu povo. O trator chegou à
aldeia Kiriri, eliminou o uso tradicional da enxada, e acabou com o prazer do
trabalho coletivo com todos juntos, cantando e limpando o mato ao mesmo
tempo. Era um dia em uma roça e no dia seguinte em outra, cantando
Oi lá no Calumbi tem um boi que dá
O corta, corta, emenda, emenda, e conta que eu vou emendar
Oi lá no Calumbi tem um boi que dá
Estou com minha dor de dente começando a pinicar.
Oi lá no Calumbi tem um boi que dá
Quem não tem chaculadeira não toma café nem chá.
Oi lá no Calumbi tem um boi que dá
Eu me chamo dengo-dengo e meu denguinho dengo-dengá
(Colhida pelo autor).
Uma característica marcante da sociedade Kiriri, como destaca Brasileiro
(2003), foi introduzida na vida da comunidade no crepúsculo da década de
1980. O ano de 1988 se constitui como divisor de águas, pois, desde então
os índios Kiriri se dividiram e passaram a se organizar em dois segmentos
faccionais liderados pelos seus respectivos caciques, pajés e conselheiros,
também chamados de chefes locais, que respondem pela administração dos
núcleos, que são as áreas onde esse povo se fixou, à medida que era
rechaçado de Mirandela pelos não índios, desde o fim do aldeamento
missionário (cf. BRASILEIRO, 2003).
Como resultado dos conflitos políticos, quer do endogrupo quanto do
exogrupo (interétnico) e da fragmentação hereditária, a população Kiriri
experimenta um processo de migração de caráter praticamente permanente.
Além de realizar migrações sazonais, com retorno ao local e ao convívio do
grupo nas épocas de plantio e colheita. De acordo com Brasileiro (idem) e o
91
apurado em nossas pesquisas, a migração se dá de forma acentuada com
destino a São Paulo e Rio de Janeiro, ou ainda para regiões mais próximas, a
exemplo do vizinho estado de Sergipe. Nesses lugares, com o objetivo de
acumular capital que vão trazer para a área de origem, eles se submetem a
extensas e árduas jornadas de trabalho.
3.1.4 Fibra de 500 anos de resistência
Os Kiriri ganharam as manchetes dos jornais baianos e do País em 1995
quando se deu a retomada de Mirandela. A luta foi árdua e custou a vida de
pelo menos dois índios Adão (no mês de março), e João Jesus dos Santos
(em abril), mortos a tiros a mando dos posseiros. Desde então a situação
tornou-se cada vez mais tensa até que em junho daquele ano, o conflito entre
indígenas e posseiros chegou ao confronto armado. Na época, até o padre
Ramos Neves, antipatizante do movimento indígena, chegou a compartilhar
com os políticos da região, o delegado de polícia e os posseiros a montagem
de uma emboscada dentro da própria igreja de Mirandela, para onde tentou,
sem êxito, atrair os índios.
A situação precisou ter a intervenção da Polícia Federal que tudo
acompanhou até o momento em que a FUNAI, herdeira do SPI, realizou a
indenização dos posseiros. No sábado, dia 11 de novembro de 1995, o
cacique Lázaro recebia a imprensa e organizações simpatizantes da luta dos
Kiriri para comemorar a vitória da retomada da primeira cidade indígena do
Brasil (LÁZARO, Mirandela, 1995).
92
Os Kiriri compareceram vestidos com suas indumentárias rituais, tecidas em
caroá
15
. O cacique Lázaro em um discurso emocionado aproveitou para
responder ao comentário do padre Ramos, feito no momento mais crítico do
conflito, quando os Kiriri ocuparam o povoado, de que nunca tinha visto índio
vestido de capim. Lázaro afirmou que aquela roupa não era de capim, não
era de palha, era tecida com a fibra da resistência de 500 anos (idem). Os
Kiriri são um exemplo de luta e, como lembra Nascimento (1995), esse povo
sempre resistiu. E se assim não fosse em tanto tempo, com tantos inimigos,
ou falsos protetores, os Kiriri poderiam ter sido dizimados, ou seus
descendentes poderiam ter esquecido suas origens, quem eles realmente
eram e quem eram os verdadeiros donos de Mirandela (idem).
E Nascimento (1995) acentua reflexivamente que o projeto de erradicação
destes nativos não se efetivou, por mais que eles tivessem sido
desapossados de sua terra e de seus costumes. O autor propõe a leitura da
obra do jesuíta e historiador Serafim Leite para entender o começo da luta
dos Kiriri e suas estratégias para vencer aqueles que pretendiam apartá-los
das tradições. Leite conta em seu trabalho que em 1693 o padre Manoel
Correia, depois de promover a destruição da Cabana Sagrada dos Kiriri, teve,
algum tempo mais tarde, um encontro com alguns desses índios, aos quais
disse:
Ou não acreditais nessa cabana ou acreditais. Se não
acreditais para que vos afligis por ter queimado um pouco de
palha? Se acreditais, para que estamos nós aqui e nos dizei
que quereis ser cristãos e vos fazei cristãos?
O Principal (o cacique) respondeu:
15
Caroá (Neoglaziovia variegata) é uma planta terrestre ou saxícola (plantas que crescem
nos solos pétreos ou nas fendas dos rochedos), da família das bromeliáceas, nativa do
Nordeste brasileiro. Possui poucas folhas lineares e acuminadas, dispostas em roseta,
flores de sépalas vermelhas e pétalas purpúreas. Suas folhas fornecem fibras, de grande
resistência e durabilidade. Também é conhecido pelos nomes de carauá, caruá, caroá-
verdadeiro, coroá, coroatá, crauá, croá e gravatá (disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Caro%C3%A1. Acesso em 10.mai 2010).
93
Queremos ser cristãos, mas queremos também conservar
os costumes dos nossos antepassados.
Explicou-lhes o padre que poderiam continuar com todos os
costumes, que o fossem simplesmente, e não práticas opostas
à fé cristã, em que muitos já viviam batizados. E com
inalterável e nunca desmentida tolerância dos Jesuítas,
permitiu-lhes as danças, cantos, bebidas, contanto que em
tudo houvesse o moderado resguardo, o próprio de seres
humanos dotados de razão. Aquietaram-se todos, exceto uns
poucos, que se afastaram para o mato a duas léguas da
Aldeia. Ergueram aí duas ou três casas e entre elas a cabana
sagrada. Tendo ouvido aos padres que Roma era o centro de
todas as Igrejas da terra, deram ao sítio o nome de Roma. E
nela continuaram as festas do Uaraquidzam, interrompidas na
Aldeia.
Na noite silenciosa, as cantilenas e músicas encheram a
floresta, e os ecos chegaram à Aldeia Cristã. Ao celebrar-se a
missa, os padres impediram-lhes a entrada na Igreja, até eles
confessarem que não tinham procedido bem. Foi a única
represália dos Jesuítas. Os Kiriris, com toda a rudeza da sua
inteligência ainda inculta, compreenderam a linguagem da
brandura e da persuasão. Acederam. E recomeçou a
catequese (LEITE, 1938, pp. 313-314)
E assim, conforme observação de Nascimento (1995), os Kiriri tentaram
sempre continuar seus costumes, ainda que praticados às escondidas,
quando proibidos de fazê-lo. Mas foi em Canudos, onde morreram os mais
importantes pajés, e muitos dos guardiões das tradições, cujos
conhecimentos não haviam sido repassados a mais ninguém, que a história e
a tradição deste povo começaram a mudar. Canudos pôs um ponto final em
muitas questões referentes à sua cultura e o consequente aumento dos
limites étnicos e suas fronteiras, conforme a teoria concebida por Barth
(1976) e já refletida neste texto.
94
4. O ritual do Toré - Novas tradições e grupos emergentes
Uma questão sempre presente quando se fala sobre as comunidades
indígenas nordestinas é a da aculturação destas populações. Esta
aculturação se deve à perda de elementos como a língua original e a tradição
de cada um desses povos. A perda da cultura, que pode ser lida como a
essência ordenadora da vida social, conforme a definição de Albuquerque
(2008), produz a noção de aculturação decorrente desta perda, que é uma
categoria discursiva que nos informa antes sobre a ideologia daqueles que a
cunharam do que sobre o fenômeno em si (idem, p. 58). Ele também
acredita haver uma idealização imagética do índio que prevaleceu por longo
tempo em face de ter se constituído como símbolo de consenso entre as
ideologias de esquerda e de direita que reivindicavam, cada uma a seu modo,
uma identidade do Brasil (idem, idem). E observa que
Para essas ideologias, a imagem da identidade brasileira deve
ser a de uma nação que, para o bem ou para o mal, integrou o
seu passado no presente.
Este passado e presente fazem parte de um mesmo quadro
semântico no qual, por um lado, o passado é representado por
imagens de uma natureza intocada e de um Brasil ancestral,
tomados como sinônimos de indígena e, por outro, por
imagens de uma natureza domesticada pela civilização
brasileira moderna, que busca então sua identidade num
eufemismo: o da assimilação da diferença (ou, mais
criticamente, da domesticação da mistura) (ALBUQUERQE,
2008, p. 58).
Destarte, o autor entende que a compreensão das questões contemporâneas
relativas à mudança cultural e legitimação de novas tradições, a exemplo do
Toré e sua emergência no contexto político dos povos indígenas nordestinos,
exige a implantação de novos recursos teóricos e modificações e acréscimo
de algumas noções sobre o tema. Desse modo, Albuquerque admite que as
95
tradições podem ser inventadas, criadas no momento presente sem que seus
elementos correspondam ao passado. Daí, ele afirmar que as tradições
também são inventadas devido à agência dos indivíduos e que, por isso
mesmo, toda tradição teria uma imperiosa contemporaneidade.
O autor pensa a cultura autêntica como uma instituição formada por pessoas
que reconhecem o passado em suas formas, mas produzem reorganizações
destas formas no presente, atribuindo à cultura uma qualidade dialética
(idem, p. 62). Dialética esta que é pensada, a seu ver, como parte dessa
cultura autêntica e possui um movimento contínuo e descontínuo e que
legitimam posições dessemelhantes de modo exclusivo a cada momento. Em
face disso, conclui, toda tradição possui uma história própria e peculiar.
Albuquerque (2008) invoca Bhabha (1998), para quem a leitura da
representação da diferença não deve ser feita de modo apressado, como se
fosse tão só os reflexos de características culturais ou étnicas
preestabelecidas. A articulação social da diferença, da perspectiva da
minoria, é uma negociação complexa [] que procura conferir autoridade aos
hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica
(BHABHA, 1978, pp. 20-21).
Em relação à dinâmica das tradições inventadas dentro dos grupos sociais
emergentes, Bhabha (1998) acentua que a reencenação do passado introduz
outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição
(idem, p. 21). Esta nova temporalidade, também presente no discurso das
minorias, na forma de exigência de uma temporalidade própria, vai além de
uma retomada do passado como causa social ou precedente estético; ela
renova o passado, reconfigurando-o como um entre-lugar contingente, que
inova e irrompe a atuação do presente (idem, p. 27).
Neste sentido, Albuquerque (2008) acrescenta que a compreensão das
demandas políticas dos povos indígenas do Nordeste e da legitimidade de
suas tradições inventadas, passa necessariamente pela crítica de uma
imagem idealizada do índio (idem, p. 62). Mas qualquer discussão sobre a
96
imagem do índio perpassa, necessariamente, pela (re)leitura do Toré,
elemento ordenador da identidade deste índio que se apresenta, no
Nordeste, como integrante de mais de quatro dezenas de comunidades e o
Toré é, de todas elas, a principal expressão artística, política e religiosa.
4.1 Narrativas apagadas
A ausência de narrativas precisas sobre o ritual do Toré enquanto elemento
da cultura da população autóctone nordestina torna difícil o empreendimento
dos pesquisadores que intencionam se debruçar sobre este tema, ainda
pouco investigado, conforme observa Grünewald (2005, p. 14), dentro de um
campo etnológico preferencialmente atento à exploração de questões de
natureza mais propriamente étnicas.
Este apagamento do Toré se dá de igual modo ao que as narrativas
históricas fizeram com os índios, cuja versão do encontro dos dois mundos,
ou das duas culturas do autóctone brasileiro e o desbravador europeu , foi
deliberadamente substituída pela do segundo, que lhe tirou o papel de
protagonista e lhe relegou a interpretação de um mero figurante, quando este
personagem, o índio, se fazia, a partir do discurso colonial, necessário
emergir para compreensão dos que acompanham o desenrolar do ato
histórico. Ato no qual, o enredo não privilegiava os figurantes ou mesmo
qualquer outro ator que não os protagonistas interpretados pelos invasores
europeus, cuja missão era exterminar a classe considerada inferior.
Barcellos e Paiva (2003) atentam para este fato que consideram ser uma
brutal realidade a demonstração do caráter extremamente genocida do
invasor europeu: invade, rouba, estupra, mata e ainda transforma esse
97
genocídio e etnocídio em gloriosa história de conquista e exaltação de seus
heróis e grandes feitos.
Este é o contexto no qual o colonizador praticamente dizimou de forma eficaz
as populações indígenas do nordeste brasileiro. O termo eficaz aqui
empregado tem o intuito de destacar as metodologias empregadas na
erradicação do povo autóctone. Quando não mortos pelas doenças e pelos
conflitos armados, os índios foram apagados pela catolização, cristianização,
aldeamento e o desuso obrigatório de suas línguas originais. O processo
levado a cabo pela empresa colonizadora foi tão eficiente em sua proposição
que desde a segunda metade do século XIX os grupos indígenas nordestinos
passam a ser tratados, tanto pelo Estado quanto pelos pensadores sociais,
como entidades extintas (ARRUTI, 1995, p. 1).
Na aurora do século XX, o assunto se torna objeto de interesse acadêmico
apenas quando da reunião e comentário de textos e gravuras
de missionários e viajantes dos séculos XVI, XVII e XVIII, onde
eram procurados elementos que permitissem reconstituir
antigas repartições geográficas, famílias linguísticas,
fragmentos de vocabulários ou ainda avaliar a contribuição
destes grupos para o avanço colonial (ARRUTI, 1995, p. 2).
É também neste momento que o governo da República decide criar o Serviço
de Proteção ao Índio (SPI) que, até meados da década de 1930, mantinha
apenas um Posto Indígena no Nordeste, em Pernambuco, junto ao grupo
Fulni-ô. Esta iniciativa é apontada como a primeira agência laica proposta
pelo Estado brasileiro para gerenciar os povos indígenas. Todavia, apesar de
seus idealizadores sustentarem o discurso de que seus princípios estão de
acordo com a linguagem positivista e assumirem até mesmo uma postura
anticlerical, o modelo indigenista adotado retoma como herdeiro formas
de administração colonial empregadas desde os tempos dos missionários
jesuítas (OLIVEIRA e FREIRE, 2006, p. 112). Os mesmos autores afirmam
98
que os postos indígenas montados pelo SPI têm muito de semelhante com os
aldeamentos impostos pelos missionários católicos desde o século XVI e a
ação indigenista assumida pelo Estado teria por finalidades
a) estabelecer a convivência pacífica com os índios; b) agir
para garantir a sobrevivência física dos povos indígenas; c)
fazer os índios adotarem gradualmente hábitos civilizados; d)
influir de formaamistosa sobre a vida indígena; e) fixar o
índio à terra; f) contribuir para o povoamento do interior do
Brasil; g) poder acessar ou produzir bens econômicos nas
terras dos índios; h) usar a força de trabalho indígena para
aumentar a produtividade agrícola; i) fortalecer o sentimento
indígena de pertencer a uma nação (SOUZA LIMA, 1987, apud
OLIVEIRA e FREIRE, 2006, pp. 112-113).
Portanto, em acordo com a interpretação de Arruti (1995) de que a história
dos grupos indígenas no Brasil é, no mais das vezes, a revelação de sua
sujeição diante do invasor europeu, que assume a forma de uma fronteira
em movimento e adota uma visão que ilumina no tempo as regiões que vão
sendo alcançadas pelo empreendimento colonial, para deixá-las na sombra
no momento seguinte, muitas vezes pela constatação de que nelas os grupos
indígenas teriam sido inteiramente extintos (ARRUTI, 1995, p. 1).
Isso fez com que em alguns casos, como o do Nordeste, desde
muito cedo essa história fosse considerada encerrada. Seus
grupos teriam sido ou exterminados fisicamente ou assimilados
completamente à cultura e à sociedade regional, passando a
compor o tipo humano e cultural do caboclo ou sertanejo, aliás
(sic) reserva folclórica do próprio país. Falar de sua história é
falar de um passado distante, que quase abandona o terreno
da história para entrar no dos mitos de origem (idem, idem).
Diante de tais e tantas constatações é que muitos autores, a exemplo do
próprio Arruti (1995), defendem a tese de que a história precisa ser reescrita.
E a história dos povos indígenas do Nordeste precisa se afastar das
justificativas de como e por que os grupos autóctones teriam desaparecido.
99
Somente assim será possível, como propõe Arruti (idem), inverter a leitura
da documentação disponível e, enfim buscar entender como algo deles pôde
se manter invisível para que eles se reinventassem ao longo das últimas
décadas. Em seu modo de ver, a urgência de se reescrever a história se dá
em função de que o ―efeito do presente sobre nossas leituras do passado,
nesse caso, é tão forte que não é possível simplesmente tentar refazer os
caminhos que levam do passado ao presente dedutivamente (idem, p. 44).
Este preâmbulo se faz necessário para que se possa entender o sentido e a
importância do ritual do Toré reaprendido e adotado pelos aborígenes do
Nordeste e que funciona como sinal diacrítico da indianidade desse povo. E
mais do que isso, intenciona despertar a consciência para o fato de que a
história do índio na região é marcada pelas descontinuidades de igual modo
ao que ocorre com o Toré, que no dizer de Grünewald (2005, p. 17), tem
também histórias descontínuas, difusas, esquecidas e lembradas,
recontadas, reinterpretadas, construídas, imaginadas e, obviamente, vividas.
4.2 A luta dos ressurretos pelo reconhecimento
Ao contrário do que se poderia imaginar, desde quando ao final da primeira
metade do século XIX já tinham sido considerados extintos, depois do
primeiro quarto do século seguinte os índios do Nordeste, como a Fênix,
ressurgem da névoa histórica dentro da qual se ocultaram para evitar o
verdadeiro apagamento. Ressurretos, voltam, de modo singular, a reivindicar
seus direitos à terra e ao reconhecimento de suas identidades étnicas. O
movimento indigenista ganha força a partir do momento que os índios Carnijó
(PE) obtiveram o reconhecimento oficial de sua condição de indianidade
através do SPI Serviço de Proteção ao Índio, com a denominação de Fulni-
ô, em meados dos anos 1920. Com o reconhecimento, o grupo foi colocado
100
sob a proteção do Estado, o que originou a suspensão das agressões por
parte dos posseiros e grileiros das terras indígenas, além de propiciar aos
índios acesso a bens materiais (sementes, ferramentas e benfeitorias, etc.).
Tais mudanças tiveram repercussão junto aos demais grupos da região e
acordou o interesse de outras comunidades descendentes de populações
anteriormente aldeadas e que buscavam alcançar a mesma proteção. O novo
panorama social que se delineia a partir daquele instante, de acordo com
Arruti (2004), marca a deflagração do processo que, mais tarde, os
antropólogos viriam denominar de etnogênese. Na definição usada pelo
próprio Arruti (idem), etnogênese vem significar o processo de autoatribuição
do rótulo de índios por grupos que, até determinado momento, eram tomados
indistintamente como sertanejos ou caboclos (idem, idem). O primeiro ciclo
dessa etnogênese se encerra no início dos anos 1940.
Até então, na Bahia, apenas uma comunidade havia conseguido o
reconhecimento de sua indianidade, os índios Rodelas, reconhecidos sob o
etnônimo de Tuxá.
Os Tuxá, à época, em face de suas relações com os Pankararu, de
Pernambuco, já conheciam e praticavam o Toré, que na década seguinte se
constituiria em um elemento constante nos processos de reconhecimento
identitário dos povos indígenas do Nordeste. Neste contexto, o Toré passa a
ser um elemento denotativo de identidade, pois é nele que se realiza de
forma mais plena a demarcação identitária desejada pela população que
compõe as sociedades arcaicas nordestinas. E os Tuxá tiveram papel
significativo no ensino do ritual aos Kiriri, Atikum, Truká e mais recentemente
aos Tumbalalá. Com isto, os Tuxá, de acordo com Sampaio-Silva (1997),
cumpriram o sentido do Toré que, quando ultrapassa as fronteiras sociais de
um grupo exclusivo, tem a função de promover o intercâmbio social e cultural,
e através do contato intergrupal, a interação e a solidariedade.
O Toré assume, no dizer de Grünewald (2005, p. 13), a característica de
tradição delimitadora daquela gente como membros de um grupo social. Ao
101
mesmo tempo em que atua e mobiliza sentimentos e noções identitárias, o
Toré adquire a conotação de sagrado. Um sagrado que, além de se remeter a
um sistema cosmológico, é também o rito através do qual a experiência do
grupo praticante com o sagrado se concretiza, pois a comunhão que os
indivíduos do grupo realizam no toré os unifica, [] tornando-os diferentes
dos vizinhos e deixando claro para eles próprios que eles são os mesmos,
dividindo uma mesma força mística repleta de ancestrais (idem, idem).
No tocante à ação delimitadora que Grünewald (2005) atribui ao Toré,
convém destacar que a persistência de limites demonstrada através de
elementos incorporados aos grupos étnicos se origina do isolamento que
implicam as características de diferenças raciais e culturais,separatismo
social, barreiras de linguagem, inimizade organizada ou espontânea,
conforme o entendimento de Barth (1976, p. 12). Este autor também
considera que os limites étnicos é que permitem, portanto, o fluxo da vida
social, determinam as formas de relações sociais e os comportamentos dos
membros de cada grupo que, quando interatuam, podem fazer com que suas
diferenças se reduzam, vez que a interação exige e determina uma
congruência de códigos e valores; em outras palavras, uma similitude ou
comunidade de cultura (BARTH, 1976, pp. 17-18).
O Toré, dentro do contexto sociopolítico que se delineia a começar dos anos
1950, quando se acentua a busca dos remanescentes das populações
aldeadas nordestinas pelo aprendizado do ritual, vai se materializar na forma
de uma religião indígena
16
. Estranhada, obviamente, pela sociedade branca,
do mesmo modo que ela também estranha o Candomblé, por exemplo, em
face de o sagrado estar unido a músicas, danças, bebidas e manifestações
de alegria, ou seja, pelo seu caráter extremamente lúdico, dificilmente
apreendido pelos não índios dentro do que entendem como uma cerimônia
sagrada.
16
Grünewald (2005, p. 23), no entanto, tece uma consideração sobre o fato de o Toré não
ser tão religioso como pretendem alguns pesquisadores. Inclusive porque, para muitos
indígenas, a religião deles não passa pelo Toré, pois apesar do seu sentido de sagrado,
não se vincula às práticas religiosas do como entendem o termo, conforme este autor.
102
Para Durkheim (1996), uma coisa não invalida a outra, mesmo porque as
duas estão quase sempre juntas. Principalmente quando se trata de
sociedades arcaicas. Nessas sociedades, mas também na sociedade
civilizada, conforme o pensamento de Durkheim (idem), toda cerimônia
religiosa traz em si um spiritu de festa, do mesmo modo que toda festa traz
implícitas características de ato religioso. A principal delas é a intenção de
aproximar as pessoas, além de colocá-las em um estado de êxtase.
Isso porque, nas duas situações, tanto na festa quanto na cerimônia
religiosa, na percepção de Durkheim, o indivíduo é transportado para fora de
si, distraído de suas ocupações e preocupações ordinárias (idem, p. 418), ao
mesmo tempo em que se procura estímulos que possibilitem elevar o nível
vital, bem como fazer as pessoas esquecerem o seu mundo real e transportá-
las a um outro em que sua imaginação está mais à vontade (idem, p. 414).
No caso do Toré, neste sentido, o ritual, também chamado de brincadeira de
índio
Reordena e elabora saberes múltiplos sobre a natureza, o
tempo e o imaginário social, celebrando a vida, a criação
permanente e afirmando a possibilidade futura de uma
comunidade imaginada e benfazeja entre todos que dele
participam (OLIVEIRA, 2005, p. 10).
Tradição, união e brincadeira, conforme designam o ritual os próprios
indígenas, o Toré é um elemento intricado que envolve dimensões
contrastantes de uma importância crucial para os índios, desde quando é
nele
que se realiza mais plenamente uma demarcação identitária,
sem deixar de ser para os próprios participantes de uma
atividade lúdica e ligada aos desejos individuais de cada um.
103
Abre espaço para a atualização da memória, por um lado
recuperando-a enquanto vigorosa adesão emocional a um
passado sentido como vivo e permanente, que se alonga e
estende seus braços no sentido do presente. Por outro lado
(sic) integra-se a um movimento criador, que opera
seletivamente com a memória e a resgata sob a lei da
contemporaneidade (OLIVEIRA, 2005, p.10).
A apropriação do Toré como símbolo de referência étnica faz parte da luta do
índio para se mostrar índio, tanto para garantir suas características
identitárias, inclusive por adesão ao grupo étnico, quanto para evitar que tais
características sejam diluídas entre os regionais, como analisa Grünewald
(2005). Ao mesmo tempo, o Toré, como identificador político de significação
étnica, além de mudar o sentido político do grupo vai exigir a incorporação de
novos significados das práticas rituais de caráter sacro e profano. Esta busca
de significados que pretendem consolidar o conhecimento da cultura
adquirida revela, de acordo com Hobsbawm (2008), tratar-se de uma tradição
inventada, pois carece ainda da formação de significados e significantes para
aliá-la a um processo histórico que interligue o presente ao passado, ainda
que esta linha do tempo seja fluida e que represente mesmo o illo tempore, o
tempo da criação, conforme Eliade (1992).
4.3 Toré é coisa de índio
Há uma atitude comum aos grupos indígenas do Nordeste de promover certa
aura de mistério e de segredo em torno do ritual do Toré. Esta vocação,
inclusive, tem sido o empecilho para o trabalho de muitos pesquisadores que
não conseguem ultrapassar a barreira do segredo que cerca a prática da
ciência do índio. Grünewald (2005) ao analisar a questão argumenta que
embora boa parte dos conteúdos místicos e esotéricos possam ser
104
compartilhados com pessoas do exogrupo, ter acesso aos segredos que
rodeiam o Toré permanece como uma missão por demais difícil.Pode-se
supor a existência de possíveis hierarquias de conhecimento ou até mesmo
da dissimulação que o próprio segredo opera a fim de criar o fato do
conteúdo exclusivo do grupo étnico, observa Grünewald (2005, pp. 26-27).
Ao cercar o ritual com esta aura de segredo, os indígenas reforçam a crença,
principalmente dos não índios, de que realmente o Toré é uma ciência do
índio e que, como praticamente todo ritual, possui um conhecimento não
compartilhado com os não iniciados. Tal atitude empresta aos condutores do
Toré uma posição de poder que os põe em uma situação superior, por assim
dizer, em face de terem acesso ao segredo que nem todos possuem.
O Toré significa para nós uma reza. Cada canto é oração que traz a saúde
da gente
17
. As palavras de Rubens Kiriri revelam o significado desta prática
para o seu povo. Ele acrescenta que todo sábado nós temos nossa dança de
ritual, onde todos os índios Kiriri estão presentes, de grande a pequeno, o
pajé, o cacique, os conselheiros, estamos todos lá, pedindo a Deus que
nunca acabe nosso Toré, nossa força (RUBENS, 2009, depoimento ao
autor).
4.4 Toré e Jurema: um complexo ritual
O termo Toré nomeia, hoje, um ritual complexo que possui uma forte
significação política, artística e religiosa para a população indígena do
Nordeste brasileiro (cf. GRÜNEWALD, 2005, 2008; NASCIMENTO, 1995,
1998, 2005; ALBUQUERQUE, 2008; BRASILEIRO, 1996; OLIVEIRA, 2005,
17
Depoimento colhido pelo autor.
105
2006; SANTANA, 2010; ARRUTI, 2004). Portanto, no aspecto social, se
constitui como um dos dois principais ícones da indianidade. O segundo é a
jurema, que não por acaso integra o conjunto de crenças dos índios, na qual
também se inclui o próprio Toré. Apesar de nem o Toré nem a jurema serem
exclusivos das sociedades indígenas, ambos codificam a autoctonia dos
índios da região Nordeste do Brasil (GRÜNEWALD, 2008, p. 1).
O toré é uma tradição indígena de difícil demonstração
substantiva por conta da variação semântica e das diversas
formas de suas realizações práticas entre as sociedades
indígenas e fora delas. Trata-se, a princípio, de uma dança
ritual que consagra o grupo étnico. [] O toré ganha
visibilidade (e a relevância atual) a partir de um processo
social que se inicia na primeira metade do século XX. Hoje, o
toré está inclusive totalmente incorporado ao movimento
indígena no Nordeste como forma de expressão política (idem,
idem).
É da casca da raiz da jurema que se faz a beberagem usada ritualmente pela
quase totalidade dos povos indígenas nordestinos. A jurema
18
(Mimosa nigra
ou Acácia hostilis) possui uma elevada concentração de N-N-dimetiltriptamina
(DMT), uma substância alcaloide capaz de produzir alterações de consciência
e percepção. Já os índios que não fazem uso da jurema falam que a planta
possui forças mágicas ou cósmicas e é cultuada ou, pelo menos,
18
Planta da família das leguminosas, comum no Nordeste, com propriedades psicoativas. Exerce
importante função ecológica por abrigar espécies de bactérias nitrificantes, i. e., que fixam nitrogênio,
essencial para a vida, no solo. O termo jurema designa várias espécies de leguminosas dos gêneros
Mimosa, Acácia e Pithecelobium (Jonathan Ott, 1995; Sangirardi Jr.1983). No gênero Mimosa, cita-se
a Mimosa hostilis Benth., a Mimosa Verrucosa Benth e a Mimosa tenuiflora. No gênero Acácia,
identifica-se a Acacia piauhyensis Benth, ou Acácia jurema. A classificação popular distingue a
Jurema branca e Jurema preta. Para Sangirardi Jr.(1983) a Jurema preta é a Mimosa hostilis ou
Mimosa nigra, a Jurema branca, o Pithecellobium diversifolium Benth e a Mimosa verucosa.
Conforme esse autor o termo Jurema, Jerema ou Gerema vem do tupi yú-r-ema espinheiro.
Nas cascas e raízes frescas da Jurema (Mimosa hostilis) foi identificado, em 1949, um alcalóide
denominado por Nigerina classificado como um alcalóide indólico, N,N-dimetiltriptamina DMT, uma
potente substância alucinógena ou psicodisléptica responsável pelo seu efeito psicoativo.
106
reconhecidas enquanto portadora de influências oriundas das matas nativas
(idem, idem).
Deste modo, ambos os elementos, tanto o Toré quanto a jurema, são
sagrados e, ainda que como ritual ocupe espaços não indígenas, constituem-
se em indicadores, afirmadores e delimitadores da presença, inclusive
espiritual, indígena na sociedade nacional. Albuquerque (2008, p. 65), para
quem o Toré é, antes de tudo,um sistema religioso e curativo (grifo do
original), diz que o ritual é um sistema próprio de possessão por espíritos,
de um tipo especial de incorporações chamadas de irradiações. São assim
denominadas porque, no entendimento dos índios, os Encantos são
entidades vivas que não morreram, mas encantaram e, ao irradiarem nos
participantes do Toré, trazem a cura ao limparem o médium, pois os
Encantos são a força virgem da natureza (idem, idem). Por isso, ele
considera a presença da bebida feita da Jurema, de princípio psicoativo,
dentro do Toré, como fundamental.
A estrutura deste culto compartilha com outros ritos dos povos indígenas
nordestinos uma linguagem ritual que é denominada pelos antropólogos de
complexo ritual da jurema. Tal complexo revela, por seu turno, a existência
de um campo religioso especificamente indígena, que inclui um conjunto de
representações no qual a presença da jurema engloba também as
concepções existentes em torno desta planta, a exemplo dos sistemas de
crença e cura, sistemas de classificação botânica, representações e
epistemologia (cf. ALBUQUERQUE, 2008; NASCIMENTO, 1994).
O ritual do Toré consiste de uma dança circular, com os dançarinos alinhados
em fila ou parelha, seguida e marcada por cantos (também chamados de
toantes ou linhas) ao som de maracás, gaitas e apitos e algumas vezes com
o tambor (zabumba). Interpretado como cerimônia religiosa para uns, não o é
para todos. Grünewald (2005, p. 23) chama a atenção para o fato de que em
algumas aldeias a participação dos indivíduos no ritual precisa de permissão
das lideranças religiosas às quais o índio deve obediência, a exemplo de
cultos pentecostais e neo-pentecostais.
107
Em função disto, para alguns povos, de acordo com o autor supracitado, o
aspecto espiritual do Toré só se apresenta para uns poucos que efetivamente
estão empenhados nos rituais, enquanto que para a maioria prevalece
apenas a ideia de brincadeira ou de tradição étnica que sacraliza o grupo,
mas não divindades (idem).
O toré, enquanto ritual religioso, caracteriza-se pelo transe
mediúnico, nele ocorrendo a possessão ou, se preferirmos
usar categorias nativas kiriri, enramar ou manifestar. É
através dessa possessão que os encantos se manifestam. A
comunicação com os encantos, ou encantados, é o objetivo do
ritual (NASCIMENTO, 2005, p. 40).
De acordo com Mariano (2000), o que impressiona no Toré dos Kiriri é a
força com que todos pisam o chão, de forma ritmada, juntos, como se fossem
uma só pessoa. O motivo de tanta harmonia está no prazer que eles têm em
simplesmente estar juntos. Além do objetivo principal que é a comunicação
com os encantados, os Kiriri usam também a cerimônia para reforçar as suas
relações e o entusiasmo e a coragem no sentido coletivo, como observa
Mariano (idem).
O Toré se realiza todos os sábados à noite e reúne toda a comunidade.
Homens, mulheres, velhos, jovens e crianças vestem as roupas feitas de
palhas de ouricuri, preparam coletivamente uma refeição que todos comem
juntos, e depois descansam. Pois, vão precisar de muita energia para passar
a noite a dançar.
Os índios cantam e dançam ao som dos maracás que marcam o ritmo dos
passos e dos toantes. O maracá instrumento feito a partir da cabaça é um
objeto ritual símbolo da indianidade do qual se tem referência desde os
primeiros documentos escritos produzidos no País, a exemplo da Carta de
Pero Vaz de Caminha (1500) e os relatos de Hans Staden (1548-1550).
Durante o ritual qualquer pessoa pode portar o maracá, porém somente os
108
iniciados ou entendidos na ciência dos índios podem usar o instrumento na
parte propriamente religiosa que pode acontecer em separado, fora do
espaço da dança realizada no terreiro.
4.5 A dança e o enrame dos encantos
Antes do início do ritual o terreiro é purificado pela defumação feita por um
iniciado que usa o cachimbo, que chamam de paú, de formato tubular que é
soprado pelo fornilho, onde se põe o tabaco, para lançar jatos de fumaça ao
longo de toda extensão do terreiro, inclusive a camarinha, espaço fechado no
qual se realizam os trabalhos dos encantados incorporados. Enquanto o
escolhido faz a purificação do terreiro, ele é acompanhado, em fila, por dois
ajudantes. Um, que porta a lamparina de querosene, e outro, a cabaça que
contém a jurema, ou o vinho de milho (não alcoólico), ou cachaça, que são
jogados no chão para atrair os encantos e afastar o que denominam de coisa
ruim que são os espíritos de mortos não índios. Um apito também é usado
para anunciar a aproximação dos encantados e convidar as pessoas para a
formação e início da dança.
A dança tem um movimento espiral que se contrai para o centro e daí volta a
se expandir em seu movimento circular, no sentido anti-horário, em passos
ritmados pelo toante e pelos maracás, que se repete em um continuum.
Esse movimento é percorrido com uma pisada
característica, um passo simples de caminhar e às vezes
correr dançando para que a fila não se rompa, com
pequenos pulinhos em que se bate em uníssono com um
dos pés com força no chão de modo a produzir um
estrondo ritmado no chão de terra batida. É o jeito kiriri de
109
pisar, ao qual dão grande importância, e através do qual
costumam se distinguir de outros índios que dançam suas
próprias versões do toré (NASCIMENTO, 2005, p. 41).
O movimento da dança para sempre que o canto/linha é substituído ou para
que os dançarinos possam renovar o fôlego. Nestes momentos, o círculo fica
aberto e a formação pode ser alterada com a saída e entrada de dançarinos,
pois não exigência de dançar todas as linhas.
O ritmo também muda a cada vez que um encantado baixa ou, como usam
dizer os Kiriri, enrama. Uma vez enramado o encanto a formação é trocada e
passa a se constituir de duas alas em posições opostas enquanto entre as
filas o encanto incorporado dança os seus passos até que são conduzidos à
camarinha
19
. Enquanto isso, a dança prossegue no terreiro até que um novo
encanto seja incorporado. Só quando todos os encantos enramaram e
foram incluídos na camarinha, acompanhado dosderes espirituais, é que
eles vão fazer o seu trabalho e responder às consultas dos que estão
necessitados de orientação ou medicação. Neste momento, a dança é
suspensa e as pessoas aproveitam para descansar e aguardar o reinício.
Neste intervalo são servidos mais da infusão da jurema e do vinho de milho,
chamado de buraiê. Estas bebidas são repetidamente ingeridas pelos
participantes ao longo da cerimônia.
Outro elemento presente no Toré é o tabaco, que eles chamam de ―Badzé,
fumado pela maior parte dos participantes durante todo o ritual em seus paús
cônicos, feitos de madeira, e cercado de grande respeito. Os encantados
também possuem seus cachimbos que usam, quando incorporados, para
defumar as pessoas às quais dão consultas, pois a função principal do ritual
19
É neste espaço, uma pequena cabana de pau a pique e de chão de terra batida, com
alguns poucos bancos de madeira, onde se mantém a bebida da jurema e o vinho de milho.
Ao redor da bacia ou tacho no qual se reserva a jurema os Kiriri dispõem os paús
(cachimbos) que no conjunto formam um altar, para o qual se destina a atenção e
reverência dos indígenas. Cada um dos cachimbos pertence a um encantado e sua guarda
é confiada a um entendido na ciência, constituindo-se esta posse em um signo de especial
distinção (NASCIMENTO, 2005, P. 46).
110
e da presença dos encantos é curar. Neste sentido, Nascimento (2005) faz
uma observação fundamental para se entender o processo de cura na visão
dos povos indígenas e que distingue a doença de índio da doença de
branco.
Não podemos dizer que chegamos a entender plenamente
como caracterizam a etiologia e sintomatologia de uma e de
outra, mas não há dúvida de que a doença de índio está
ligada a problemas espirituais, e que, por isso mesmo, só a
ajuda dos encantados pode curar, pois só eles se encontram
nesse plano espiritual. [] As doenças de branco são aquelas
tratadas pelos médicos [] Mas como os doentes kiriri vão
antes ao trabalho, quem decide qual é o tipo d doença em
questão é o pajé ou as manifestantes, isto é, os encantados.
Todavia, quando é possível também tratam com seus próprios
remédios as doenças de branco (NASCIMENTO, 2005, p. 58).
Encerrados os trabalhos e desincorporados os encantos, os demais se
juntam novamente à formação do Toré. E se preparam para o fechamento
das atividades ritualísticas. O momento final do Toré Kiriri é denominado de
Sereia. Nesta etapa, há um caráter mais majestoso, marcado por maior
devoção que no início do ritual, quando o clima entre os presentes é de que
participam de um evento lúdico, de uma festa plena de descontração e
alegria. Na Sereia, uma cruz é tracejada no chão do terreiro com dezenas de
velas dispostas em fila dupla e no ponto em que os braços da cruz fazem a
interseção eles colocam um pequeno cruzeiro de madeira ao redor do qual se
sentam algumas crianças. Em torno delas sentam-se os homens e atrás deles
o grupo de mulheres que permanecem em pé e dançam e cantam as linhas
de fechamento do ritual. Finda a cantoria, os homens se ajoelham e com as
mãos unidas em sinal de prece fazem uma oração cristã, seguida do sinal da
cruz, após o que a cerimônia está terminada.
Apesar da presença dos elementos católicos cristãos incrustados nas
tradições e no cotidiano dos Kiriri, o que os faz atribuir, por exemplo, a
Nosso Senhor Jesus ter deixado as plantas, inclusive a jurema, para os
índios se curarem das doenças; que os cantos são como uma oração e que
111
o estribilho heina, heina hoa/heina, heina hoá, repetido sempre entre um
linho e outro, é mesmo que o sinal-da-cruz (NASCIMENTO, 2005, p. 59), ou
o momento da Sereia, não impede que no Toré, ainda que sincretizado, ou
hibridizado como pode preferir outros, os Kiriri ajam em conformidade com os
sentimentos que reiteram a sua alteridade étnica. É também pelo e no Toré
que a sua identidade indígena se realiza de forma plena e acabada. Como
enfatiza Nascimento (2005), apenas em um plano ritual é que este povo
poderia vivenciar em toda extensão a sua condição indígena, desde quando
é nesse plano que demarcam com maior riqueza e elaboração sua
especificidade cultural (idem).
Por outro lado, diante de tudo que aqui foi colocado, o ritual, adotado ou
reaprendido pelos índios, é entendido como uma tradição, cuja interrupção o
ruptura da prática, os seus antepassados não tiveram condições de impedir.
Desse modo, os povos atuais, em função da memória parcial que mantinham
sobre a existência do Toré, conseguiram resgatar a essência da
manifestação e a sua práxis. Tudo isto leva a acreditar que se trata mesmo
de uma tradição inventada, conforme a teoria de Hobsbawm (2008), que
prevê a retomada, a partir de um determinado ponto, o rito interditado, ou
uma cerimônia aprendida e que vai criar, desde então, umnculo com o
passado e se consolida pela sua repetição tradicional.
Ao que tudo indica, o Toré é uma tradição homologicamente apropriada pelos
Kiriri e os demais povos indígenas do Nordeste brasileiro com o propósito de
assegurar a configuração política de sua identidade étnica, a exemplo do que
sustenta a teoria de que a invenção de toda tradição é movida pelas
necessidades políticas ou de empoderamento religioso, social ou inter-
relacional.
112
5. Reflexões
Falar sobre índios no Brasil é referir uma diversidade de povos, ocupantes
primevos da terra achada pelos navegadores e exploradores portugueses, e
que aqui se encontravam há dezenas de séculos. A investida do colonizador
para garantir a ocupação territorial se deu de forma violenta, o que resultou
na desapropriação das terras, dos aspectos emocionais e a sujeição dos
indígenas aos poderes econômicos coloniais em face da necessidade de
sobrevivência.
O empreendimento colonial português agia diferentemente da empresa
colonizadora que ocupara, poucos anos antes, as terras das Américas
Central e do Norte. Aqui, a ação se dava no sentido de pilhar as riquezas
naturais e dizimar a população nativa que se opusesse a esta iniciativa.
Neste sentido, podemos evocar o texto de Martins (2002), segundo o qual, o
interesse da oligarquia fundadora do pacto colonial era fundar uma empresa
econômico-especulativa capaz de resolver a crise financeira crônica dos
Estados ibéricos e que, ao mesmo tempo, propiciasse a aproximação dessas
nobrezas com as cortes da França e da Inglaterra. O autor assevera em sua
análise que
O grupo colonizador que aqui aportou era formado sobretudo
(sic) por nobres aventureiros, indivíduos de confiança da
Coroa e especuladores destituídos de qualquer vontade
política de fundar uma experiência de colonização
comunitarista, como foi verificado na América do Norte. Até as
primeiras décadas do século XX, o imaginário patrimonialista
oligárquico se reproduziu sobre o desejo de pilhagem e de uso
destrutivo das riquezas naturais e humanas. [] O imaginário
colonial tem como símbolo central a figura histórica e polêmica
dos clãs agrários e não da família de colonos, como no caso
da América do Norte (MARTINS, 2002, p. 93).
113
A ideia dos aventureiros europeus de que havia reencontrado o paraíso
perdido, narrativa originada no primeiro contato com o ambiente da nova
terra, logo desapareceu para dar lugar a um novo discurso. Discurso que
implicou em assumir uma nova postura e estratégia a do colonizador em
todo seu poder de agressividade e fúria. O encantamento do europeu no
primeiro momento, como exposto na Carta de Caminha (1500), desfaz-se
para ceder espaço aos atos imperialistas que se projetam até a penúltima
década do século XIX.
Quando Portugal começa o processo de desfrute da terra e sufocação dos
elementos humanos não-brancos (CASTRO, 2008, p. 126) se evidenciam as
reais intenções em relação à colônia e a aplicação do discurso colonialista
arquitetado para justificar todo e qualquer tipo de ação e intervenção
necessárias à implantação da empresa colonial e ao investimento da Igreja.
Bhabha (1998, p. 111) explica a violência da cultura colonizadora a partir da
análise do discurso do colonizador. Nele o colonizado é sempre uma
população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a
justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução.
Hall (2006), quando escreve sobre a constituição da identidade nacional
destaca que a construção deste perfil sempre se dá pela imposição de uma
cultura sobre outra, ou seja, do dominador sobre o dominado. E essa
imposição nunca ocorre de forma pacífica, mas pela subtração forçada da
diferença cultural, pois a maioria das nações consiste de culturas separadas
que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta isto é,
pela supressão forçada da diferença cultural (HALL, 2006, p. 59).
Uma das estratégias do discurso do invasor português para tentar manter a
hegemonia sobre o novo território e os seus ocupantes foi a de desconstruir a
imagem do bom selvagem de que gozavam os silvícolas brasileiros. Assim,
poucos anos depois do achamento do Brasil, a população autóctone passou
de simpática gente, como fora referenciada nos primeiros relatos históricos, a
terríveis canibais, antropófagos vorazes. Motivo suficiente para uma ação
devastadora daqueles que se mostravam resistentes aos interesses da coroa.
114
Dos milhares de indígenas existentes no Brasil na época da chegada dos
portugueses, as estatísticas do IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, de 2001, indicam que a população de índios em todo o País é
pouco superior a 700 mil atualmente. Por outro lado, a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) trabalham com
uma população de 374.123 pessoas, de 291 etnias, habitantes de 3.225
aldeias e falantes de 180 línguas. Isso porque ambas as fundações assistem
só as populações indígenas reconhecidas oficialmente e habitantes de
aldeias localizadas em reservas oficialmente delimitadas.
Os números do IBGE são considerados mais coerentes pelos especialistas e
estudiosos pelo fato de levar em conta alguns critérios de autodefinição
usados pelos próprios indígenas. Conforme Luciano (2005), além dos
critérios técnicos da Organização das Nações Unidas, de 1986, que definem
como comunidades, povos e nações indígenas aqueles que por contar
com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à
invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus
territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores
da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e
a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e
sua identidade étnica, como base de sua existência continuada
como povos, em conformidade com seus próprios padrões
culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos
(LUCIANO, 2005, p. 27).
Já os critérios de autodefinição usados pelos indígenas preconizam o
reconhecimento daqueles que possuem uma
continuidade histórica com sociedades pré-coloniais; estreita
vinculação com o território; sistemas sociais, econômicos e
políticos bem definidos; língua, cultura e crenças definidas;
identificar-se como diferentes da sociedade nacional;
115
vinculação ou articulação com a rede global dos povos
indígenas (LUCIANO, 2005, p. 27).
Pelos registros da FUNASA, em 2008 a região Norte concentrava a maior
parte da população indígena, 44%. O menor contingente 2% habita as
reservas estabelecidas na região Sudeste. As demais regiões possuem,
respectivamente, Nordeste, 26%; Centro-Oeste, 19%; e Sul, 9% da população
indígena brasileira.
Já os números do Censo Demográfico 2000 do IBGE indicam uma
concentração da população indígena da ordem de 29,07% na região Norte;
enquanto o restante se distribui em 23,21% no Nordeste; 14,22% no Centro-
Oeste; 21,96% no Sudeste; e 11,54% no Sul.
Apesar das referências da FUNAI de que a população indígena assistida
representa um conjunto de 180 línguas, na verdade, com exceção de alguns
povos da Amazônia, a quase totalidade dos povos, especialmente os
nordestinos, em função do processo de aculturação perpetrado pelo
colonizador, teve as línguas nativas gradativamente substituídas pelo
português. Em paralelo, foram apartados de suas culturas de tal forma que o
seu modus vivendi hoje pouco difere dos camponeses não índios.
As áreas que ocupam dificilmente possibilitam uma vida
autônoma de produção e reprodução de suas culturas,
tradições e valores para as quais necessitariam de um resgate
e de uma reorganização social. No entanto, a identidade
indígena entre os povos da região é marcada por rituais
específicos, como as festas do Toré (dos Tuxá) e o Ouricuri
(dos Fulni-ô), nos quais é proibida a presença de não-índios,
como marca da fronteira identitária étnica. Neste sentido, a
identidade indígena, negada e escondida historicamente como
estratégia de sobrevivência, é atualmente reafirmada e muitas
vezes recriada por esses povos (LUCIANO, 2005, p. 42).
116
Ao longo dos séculos o indígena nordestino foi submetido à expropriação de
sua identidade e de sua cultura. A população silvícola foi desapropriada de
suas terras e matas dizimadas pelo avanço da ocupação colonialista, e
relocada para as zonas periféricas das vilas e cidades do homem branco.
Logo passou a assumir o comportamento e as atitudes do elemento
dominador, a habitar em vilas, trabalhar em roças e vender sua força de
produção para os novos proprietários das terras, assemelhado ao homem do
campo, além de se envolver em casamentos e relações inter-raciais o que,
pela miscigenação, alterou até mesmo o seu biótipo.
Diverso dos indígenas das regiões Oeste e Norte do País, onde a ocupação
do colonizador se deu em menores proporções e até hoje mantém áreas de
matas e florestas, o nativo nordestino precisou resgatar, inclusive, o
reconhecimento oficial da sua condição de indígena. Esses povos podem ser
chamados de sobreviventes e resistentes da história de colonização
européia e hoje, ―como desafio, buscam consolidar um espaço digno na
história e na vida multicultural do país (LUCIANO, 2005, p.29).
Desde os anos 1990, conforme Luciano (2005), ocorre no Nordeste e também
no Pará um fenômeno denominado como etnogênese, também chamado de
reetinização, através do qual os indígenas que, por coações políticas,
econômicas e religiosas ou por terem sido desapossados de suas terras e
estigmatizados em função de suas tradições, tiveram que esconder e/ou
negar suas identidades tribais como estratégia de sobrevivência, reassumem
e recriam as suas tradições.
O termo etnogênese foi cunhado por Melvyn Goldstein que, em um trabalho
publicado em 1975, analisava a questão dos refugiados tibetanos na Índia. O
termo foi assimilado pela antropologia como significado do processo de
emergência de novas identidades étnicas e o ressurgimento de etnias
conhecidas anteriormente. A etnogênese, todavia, não significa só a
manifestação física de grupos específicos e culturalmente diferenciados, ela
envolve os processos de transformação social vivenciado por qualquer grupo
humano, sobretudo os que se referem à definição de identidade.
117
Logo, pode-se concluir que a invenção de uma tradição é também um
processo etnogenético e que isto se constitui uma tendência da cultura global
contemporânea, consequência do capitalismo globalizante e da Pós-
Modernidade. No Brasil, o termo tem sido aplicado nos grupos indígenas,
conforme Barbosa (2007, p. 195), cujas denominações não encontram
registro na literatura especializada. É o caso, por exemplo, dos Kambiwá,
Kapinawá, Truká e Atikum, todos de Pernambuco; dos Tingui-Botó e
Geripancó, de Alagoas; e Kantaruré, da Bahia.
Os movimentos de caráter etnogenético que ocorrem no Nordeste desde
1980 não foram devidamente assimilados pela comunidade não índia. Isso
decorre, possivelmente, do fato de o índio nordestino, enquanto conceito de
alteridade, não se enquadrar na representação mais genérica de índio,
reiteradamente acionada nas ações indigenistas, na mídia e em determinadas
produções didáticas ou paradidáticas (BARBOSA, 2007, p. 195-196).
Um grave problema detectado pelos estudiosos da questão indígena é que no
Nordeste essas populações enfrentam de modo mais evidente o preconceito,
a negação de sua identidade e dos seus direitos pela comunidade não índia
porque o termo índio não coincide com o imaginário deste não índio do que
deve ser o índio em função das suas representações culturais que tiveram
sua diversidade historicamente construída.
No entanto, as dificuldades não impediram a luta de este povo no sentido de
resgatar a sua cultura e obter, através da memória recuperada, a sua
identidade enquanto pertencente a um grupo étnico. No caso específico dos
Kiriri, a luta compreendia também a recuperação de seus territórios. A
apropriação do ritual do Toré serviu para reconfigurar o simbólico deste povo
e reificar a sua identidade que ganha força pela consolidação da tradição e
atribui poder suficiente aos Kiriri para os embates de retomada de suas
terras.
A reocupação e reorganização da propriedade acabam por se refletir na
reestruturação do terreno afetivo/emocional dos Kiriri que assim se
118
empoderam e se intitulam. Eles mesmos revelam, em depoimentos, que sem
o Toré não teria sido possível a mudança do status sociocultural da
comunidade. A partir de suas experiências vitoriosas, os Kiriri tornaram-se
espelhos para outros povos que assim dão início a novos movimentos de
reivindicações e de retomadas de seus territórios.
Apesar de se saber da justeza dos movimentos indígenas, estas
comunidades continuam como alvo da violência e do preconceito por parte
dos não índios. A postura da sociedade que se inscreve como civilizada
revela o quanto de hipocrisia existe na coletividade brasileira que nega o
protótipo de um povo hospitaleiro, pacífico e gentil. Antes de tudo, o
brasileiro é um povo preconceituoso, difícil de conviver e admitir as
diferenças; em segundo lugar, é um povo violento que vive sob a égide da Lei
de Gérson (tirar vantagem em tudo), que é um reflexo do comportamento de
pilhagem do conquistador português; e sua gentileza é limitada até o ponto
em que o seu conforto não seja incomodado.
Assim, em vários momentos o discurso dos povos autóctones foi abafado
pelos setores dominantes da sociedade civilizada, e transformado pelos
meios de comunicação de modo a que se tornasse apenas um comunicado,
conforme a cultura do silêncio pensada por Freire (1969). Na verdade, até
hoje a mídia tem tentado fazer com que o discurso do índio se mantenha
inaudível para o mundo contemporâneo. Mas os ruídos da comunicação têm
permitido vazamentos e um pouco deste discurso tem conseguido passar e
ser percebido, ainda que de modo diminuto, para um público que começa a
se somar a estes movimentos.
De forma ainda tímida as transformações que as tradições inventadas
ocasionaram nas culturas e no modus vivendi destes povos começam a
constituir marcos que redefinem a participação dos índios na história do País.
A revisão histórica vai possibilitar cobrir algumas lacunas deixadas pelas
narrativas feitas até então a partir do ponto de vista colonialista e da
sociedade metropolitana ou a comunidade que tem voz, ainda de acordo com
a teoria freiriana da cultura do silêncio.
119
O Estado de Direito demoniza os menos favorecidos social e
economicamente. Ora, já vimos antes aqui, conforme Bhabha (1998) que esta
é uma das características atribuídas pelo discurso colonialista aos
colonizados. Logo, o que o Estado faz é nada mais que repetir o discurso
aprendido. È fazer com que os ditos povos incivilizados se mantenham no
lugar de sujeitados, subjugados pela força da sociedade civilizada e capaz de
produzir desenvolvimento.
O objetivo é justamente descentrar a identidade do sujeito e usurpar-lhe o
lugar de fala que passa a ser ocupado pelo agente do Estado. Também o
índio tem sido vitimizado por este mecanismo através do tutelamento, que o
coloca como o bárbaro incapaz de falar por si, de responder pelos seus atos,
por precisar se civilizar para que possa integrar a sociedade branca,
apresentada como civilizada e a única capaz de propiciar o desenvolvimento.
Esta narrativa não deixa de referir o caráter de antropófago que o colonizador
transferiu para o índio colonizado.
Até que os não civilizados consigam evoluir e se tornarem capazes de
compartilhar da vida civilizada, eles serão mantidos à margem, silenciados,
não só para que não tenham voz, mas
A lei é feita para punir e não para privilegiar. Até porque, a exemplo da Igreja
Católica, que para cada pecado impõe uma pena, a Justiça propõe para cada
erro ou crime, uma sanção que além do corpo visa prejudicar também a
mente e o espírito humano. A lei impede que o índio, ali registrado como o
indivíduo incivilizado, o antropófago, o selvagem, o bárbaro, possua direitos
de cidadania. Ele é o apátrida, o desterrado em sua própria terra. Aquele que
não tem voz e não ter para evitar que a imagem de povo degenerado,
agressivo, conforme a premissa do discurso colonialista, não se desvaneça e
não se perca o poder da autoridade do branco, enquanto tutor desse sujeito
transitório que deve ser preparado ter os seus demônios expulsados para
que venha a ser absorvido pela periferia da civilização.
120
Há uma necessidade de se promover meios de convivência entre índios e
não índios através de normas sociais que possibilitem aos primeiros o
exercício de sua cidadania, independente de serem forçados a se incluir na
sociedade não indígena para serem considerados cidadãos. Sair também da
condição de tutelados para terem os seus direitos próprios e não aqueles
direitos que a classe dominante do País entende ser os direitos que eles
precisam. É preciso se assumir que eles são diferentes, como o Outro é
diferente, mas que, por isso mesmo, deve ser reconhecido e aceito enquanto
este outro que é.
Em termos, este discurso pode parecer utópico. Na verdade toda utopia vai
se construir como uma narrativa que tem como inspiração algo de concreto.
O concreto aqui é o reconhecimento, conforme já feito pela ONU, de que
existe um povo indígena e que este povo tem uma cultura própria, tradições
próprias, costumes próprios e uma organização social e econômica própria
que só precisa ser respeitada.
121
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