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TONI MORRISON E A CONSTRUÇÃO DE PARAÍSO:
QUESTÕES DE CRÍTICA LITERÁRIA E DE TRADUÇÃO
Luciana de Mesquita Silva
1
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Luciana de Mesquita Silva
TONI MORRISON E A CONSTRUÇÃO DE PARAÍSO:
QUESTÕES DE CRÍTICA LITERÁRIA E DE TRADUÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade Federal
de Juiz de Fora, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Teoria da Literatura
Orientadora: Profª. Drª. Maria Clara Castellões
de Oliveira
Juiz de Fora
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
Universidade Federal de Juiz de Fora
Setembro de 2007
2
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Dissertação defendida e aprovada, em 27 de setembro de 2007, pela banca examinadora
constituída pelos professores:
______________________________________________________________________
Profª. Drª Maria Clara Castellões de Oliveira
(Orientadora – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários – UFJF)
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Terezinha Maria Scher Pereira
(Membro interno – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários – UFJF)
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Eliana Lourenço de Lima Reis
(Membro externo – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
UFMG)
Conceito: ______________________________________________________________
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
Juiz de Fora, 27 de setembro de 2007
3
DEDICATÓRIAS
Aos meus pais, Paulo e Raimunda,
Pelo amor e carinho incansáveis,
Pelo incentivo a cada empreendimento,
Pela mão amiga nos momentos difíceis,
Pelo fato, simplesmente, de terem me trazido à vida.
Às minhas irmãs, Cristiane e Patrícia,
Pela compreensão da importância deste projeto,
Pela força nas horas de desânimo.
Aos meus amigos e familiares,
Pelo estímulo para a continuação desta tarefa,
Pelo entendimento da brevidade de nossos encontros.
4
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Maria Clara Castellões de Oliveira, que, pelo exemplo de profissionalismo
e competência, pela dedicação infindável a este projeto, pelas palavras de crítica e
elogio ditas na hora exata, pela compreensão de minhas falhas e dificuldades e pelo
incentivo constante a enfrentar desafios, foi fundamental, nestes cinco anos de
convivência, para meu amadurecimento intelectual, profissional, e, acima de tudo,
pessoal.
À Profª. Drª. Terezinha Maria Scher Pereira, pelas sugestões feitas durante o meu exame
de qualificação, as quais foram muito importantes para a realização desta pesquisa.
Aos professores do Curso de Mestrado em Letras: Teoria da Literatura, que, através de
seu trabalho, demonstraram como é válida a busca pelo conhecimento.
Aos professores da Faculdade de Letras, em especial aos que fizeram parte do antigo
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, cujas aulas ampliaram meu interesse
pelos estudos acadêmicos.
Aos colegas do Curso de Mestrado em Letras: Teoria da Literatura Carolina, Gislene,
Maria Luíza e Marcela, principalmente, pela convivência agradável e pela troca de
experiências.
Às doutorandas Karina Freitas e Maria Fernanda Aragão, que proferiram as primeiras
palavras de incentivo ao meu ingresso no Curso de Mestrado.
A todos aqueles que contribuíram, de alguma forma, para o desenvolvimento desta
dissertação.
5
RESUMO
Nesta dissertação, tivemos por objetivo comprovar o quanto questões abordadas
por Toni Morrison no romance Paradise (1998), traduzido para o português com o
título de Paraíso (1998), se aproximam daquelas discutidas no âmbito do pensamento
crítico literário, cultural e tradutório contemporâneo. Nesse sentido, realizamos
discussões sobre tradução, alegoria e história e as entrelaçamos ao pensamento de
Walter Benjamin. Detivemo-nos também em considerações relativas à hospitalidade, ao
estrangeiro e ao fanatismo e as confrontamos com reflexões feitas respectivamente por
Jacques Derrida, Julia Kristeva e Amós Oz. Finalmente, focalizamos a noção de arquivo
no contexto do romance em tela e a articulamos com percepções de Derrida sobre o
assunto.
6
ABSTRACT
In this thesis we have aimed to prove the extension to which issues developed by
Toni Morrison in the novel Paradise (1998), translated into Portuguese with the title of
Paraíso (1998), approach the ones which are discussed in the field of literary, cultural
and translation contemporary thought. Therefore, we have carried out discussions about
translation, allegory and history, and intertwined them to Walter Benjamin’s thought.
We have also dealt with considerations on hospitality, the foreigner and fanaticism, and
confronted them with reflections developed by Jacques Derrida, Julia Kristeva and
Amós Oz, respectively. Finally, we have focused on the notion of archive in the context
of the present novel and articulated it with Derrida’s perceptions on the subject.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................
10
CAPÍTULO 1
TRADUÇÃO, ALEGORIA E HISTÓRIA EM PARAÍSO................................
20
1.1 – O INÍCIO DE UMA HISTÓRIA DE TRADUÇÕES ................................................... 22
1.2 – OS ALEGORISTAS DA HISTÓRIA ....................................................................... 34
CAPÍTULO 2
O OUTRO EM PARAÍSO ...................................................................................
47
2.1 – O CONVENTO: ESPAÇO DE HOSPITALIDADE .................................................... 49
2.2 – O TRATAMENTO DE RUBY AO ESTRANGEIRO .................................................. 62
CAPÍTULO 3
A CONSTRUÇÃO DE ARQUIVOS EM PARAÍSO .........................................
80
3.1 – O ARQUIVO DE PATRICIA BEST ....................................................................... 82
3.2 – O ARQUIVO DE TONI MORRISON...................................................................... 87
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................
97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................
102
8
Numa democracia, a literatura tem o direito
ilimitado de colocar todas as questões, de
suspeitar de todos os dogmatismos, de analisar
todos os pressupostos. Tal como o estrangeiro,
que no início do livro Da Hospitalidade é aquele
que coloca a questão, a literatura tem o direito
de colocar questões, por ser estrangeira às
instituições tradicionais.
EVANDO NASCIMENTO
9
INTRODUÇÃO
10
No contexto dos Estados Unidos, a década de 70 do século XX foi marcada pelo
trabalho de escritoras negras como Maya Angelou, Nikki Giovanni e Toni Morrison.
Tais autoras buscaram trazer à luz discussões acerca das relações raciais em seu país,
demonstrando, assim, como a literatura produzida por mulheres pode ir além de
questões ligadas ao universo feminino. Nesse sentido, no campo da autobiografia,
destaca-se I know why the caged bird sings, de 1970, livro em que Angelou, ao se
apresentar como uma adolescente de dezesseis anos, descreve como é ser mulher e
negra no Sul. No que tange à poesia, Giovanni publicou Black feeling, black talk, black
judgement, no ano de 1971. Trata-se de um conjunto de poemas que desvela o ódio e a
frustração sentidos pela comunidade negra, uma vez que esta é excluída por uma
sociedade predominantemente branca. No que diz respeito aos romances, Toni Morrison
lançou The bluest eye, em 1970, e contribuiu, juntamente com Angelou e Giovanni,
para a ampliação da visibilidade da literatura afro-americana.
1
The bluest eye, primeira composição literária de Morrison, aborda aspectos
referentes à vida dos negros de classe baixa no sul dos Estados Unidos durante a década
de 40 do século XX. Nela, acompanhamos a história de Pecola Breedlove, uma menina
negra, de onze anos, cujo desejo maior era ter olhos azuis, pois, assim, ela acreditava
que não seria mais discriminada pela cor de sua pele. Nessa obra, Morrison se vale de
uma narrativa fragmentada, com múltiplas perspectivas, para propor questionamentos
em torno da segregação racial e de seus impactos na vida de uma criança. Ao criar uma
literatura relacionada ao povo afro-americano, a autora enriquece seu texto a partir de
elementos baseados na música negra tradicional como o gospel, o jazz e o blues, e de
uma linguagem permeada de características do African American Vernacular English
(Inglês Afro-Americano Vernacular), conhecido anteriormente por Black English.
1
Informações baseadas no texto “Women’s literature”, de Elizabeth Janeway. (In: HOFFMAN, Daniel
(ed.). Harvard guide to contemporary American writing. Massachusetts: Harvard, 1979. p. 383-4)
11
Com a finalidade de investigar de que forma a preocupação de Morrison com a
escrita foi trabalhada em O olho mais azul (2003), tradução de The bluest eye para a
língua portuguesa, desenvolvemos, em 2004, uma monografia de conclusão do Curso de
Bacharelado em Letras: Ênfase em Tradução-Inglês, da Universidade Federal de Juiz de
Fora, intitulada The bluest eye X O olho mais azul: o African American Vernacular
English em tradução
2
. Nesse trabalho, selecionamos conceitos como os de
domesticação, estrangeirização e invisibilidade, de Lawrence Venuti, e de polissistema,
de Itamar Even-Zohar, para averiguar e comentar as traduções dos diálogos em que o
African American Vernacular English estivesse presente. Ao concluirmos a pesquisa,
constatamos que, enquanto nos diálogos a tradução, na maioria das vezes, manteve-se
subordinada a uma linguagem formal, no fluxo de consciência de uma das personagens,
Pauline Breedlove, fizeram-se presentes alguns aspectos concernentes a um registro
informal da linguagem. Apesar disso, de forma geral, houve um apagamento das
especificidades que compõem o African American Vernacular English. Logo, o leitor
brasileiro passou a não ter contato com uma característica extremamente relevante para
a formação da imagem da cultura e do povo afro-americanos e da própria produção
literária de Morrison. Em adição, a obra traduzida parece não fazer parte de uma
literatura engajada, que busca lidar com as particularidades de uma cultura marginal à
cultura estadunidense, cultura essa que se manifesta na língua de maior prestígio dos
dias atuais, qual seja, a inglesa.
A contribuição de Morrison nas discussões relativas à população negra nos
Estados Unidos tem suas raízes em dados biográficos. A autora, cujo nome é Chloe
Anthony Wofford, nasceu em Lorain, estado de Ohio, em 1931. Sua família havia
2
Essa monografia foi premiada na XI Seminário de iniciação científica da UFJF, em 2004, e um artigo
escrito a partir dela, com o mesmo título, foi publicado na Revista Principia: caminhos de iniciação
científica. Juiz de Fora: Editora da UFJF, v. 10, p. 180-189, 2005.
12
migrado para o norte do país com o intuito de escapar do preconceito racial e de buscar
melhores oportunidades de trabalho. Desde cedo, portanto, Morrison procurou dedicar-
se aos estudos: destacou-se como aluna na Lorain High School, tendo sido membro do
conselho estudantil e trabalhado na biblioteca da escola. Em 1949, ingressou na Howard
University, em Washington D.C., uma das universidades mais bem conceituadas do
país. Nesse contexto, ela se deparou com um fato que ignorava anteriormente: a
segregação existente entre os próprios negros.
No ano de 1953, Morrison graduou-se em Inglês e logo depois desenvolveu uma
dissertação sobre o suicídio na produção literária dos escritores William Faulkner e
Virginia Woolf, o que a conduziu ao título de Mestre pela Cornell University, em 1955.
Em seguida, passou a lecionar Inglês na Texas Southern University, em Houston. Em
1957, ela retornou a Howard como professora e conheceu Harrison Morrison, um
arquiteto jamaicano. Os dois se casaram no ano seguinte e a escritora passou a utilizar o
sobrenome do marido. No entanto, o casal, que teve dois filhos, separou-se após seis
anos de união. Morrison atribui o rompimento da relação a diferenças culturais.
Depois da separação, Morrison se mudou para o estado de Nova York com os
filhos, onde trabalhou como editora na Random House até 1983, contribuindo para a
ampliação da visibilidade de autores negros como Toni Cade Bambara, June Jordan,
Angela Davis, Gayl Jones e George Jackson. Em 1984, foi nomeada professora da State
University of New York. Cinco anos depois, ela deixou esse cargo e se tornou a
primeira escritora a ocupar uma cadeira em uma Ivy League University uma
universidade que faz parte do conjunto das instituições de maior destaque dos Estados
Unidos – a Princeton University. Além de lecionar no programa de escrita criativa desse
estabelecimento de ensino, ela faz parte dos departamentos de estudos afro-americanos,
estudos americanos e estudos relativos às mulheres.
13
De acordo com informações extraídas de sítios da Internet criados por ou
vinculados a importantes instituições de ensino superior, casas literárias e suplementos
editoriais estadunidenses, paralelamente à carreira de professora universitária, Morrison
vem se dedicando à literatura. Autora de romances como o citado The bluest eye (O
olho mais azul), de 1970; Beloved (Amada), de 1987; Jazz (Jazz), de 1992; Paradise
(Paraíso), de 1998; e Love (Amor), de 2003, traduzidos para a língua portuguesa, e de
livros de ensaios que incluem Playing in the dark: whiteness and the literary
imagination, de 1992, e Racing justice, engendering power: essays on Anita Hill,
Clarence Thomas and the others on the constructing of social reality, também de 1992,
ela tem sido constantemente reconhecida pelo seu trabalho.
3
Tal fato é comprovado por
meio dos diversos prêmios recebidos. Entre eles estão o Prêmio Nacional do Círculo de
Críticos Literários por Song of Solomon, em 1977; o Prêmio de Escritora Ilustre pela
Academia Americana de Artes e Letras, em 1978; o Prêmio Pulitzer, por Beloved, em
1987; o Prêmio Pearl Buck, em 1994, e a Medalha Nacional de Humanidades, em 2000.
Todavia, foi no ano de 1993 que a autora obteve maior destaque, tornando-se a oitava
estadunidense e a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel de Literatura.
4
Um outro fator importante com relação ao reconhecimento de sua produção está
vinculado aos comentários por parte da crítica. Na introdução à coletânea de ensaios
intitulada Modern critical views: Toni Morrison (1990), por exemplo, Harold Bloom
argumenta que a escritora “como qualquer romancista potencialmente forte, luta para
não se subordinar às tradições da ficção narrativa. Como líder da cultura literária afro-
americana, Morrison é particularmente intensa na resistência a caracterizações críticas
que, segundo ela, representam mal suas próprias lealdades, suas fidelidades políticas e
3
Informações baseadas em Toni Morrison. (Disponível no site
http://voices.cla.umn.edu/vg/Bios/entries/morrison_toni.html, acessado em 10 de maio de 2006)
4
Informações baseadas em Biography: Toni Morrison. (Disponível no site
http://www.tulane.edu/~english/ToniMorrison.htm, acessado em 12 de maio de 2006) e em Toni
Morrison (Disponível no site http://us.penguingroup.com/nf/Author/AuthorPage/0,,1000023203,00.html,
acessado em 12 de maio de 2006)
14
sociais à complexa causa de seu povo” (nossa tradução)
5
. O fato de se engajar em
questões relacionadas aos afro-americanos, conferindo destaque a personagens
femininas, contribuiu para que Morrison fosse vista fundamentalmente como uma
autora mulher e negra. Entretanto, ela vai além desse perfil ao mostrar-se atenta a
assuntos discutidos na sociedade atual, haja vista as temáticas de suas obras serem
variadas. Tal peculiaridade proporciona aos leitores não o acesso ao mundo da
ficção, como também a reflexões importantes relativas à humanidade como um todo. É
o que ocorre em Paradise, livro que servirá como base para a construção desta
dissertação. Esse livro, publicado em 1998, foi traduzido para o português do Brasil por
José Rubens Siqueira e lançado pela Companhia das Letras no mesmo ano, com o título
de Paraíso. Neste trabalho, faremos menção ao título do livro em português e
utilizaremos as citações tais como traduzidas por José Rubens Siqueira, colocando o
texto original em notas de rodapé. Quando necessário, valer-nos-emos de traduções
realizadas por nós, sendo que tal fato será registrado entre parênteses, logo após as
citações.
Paraíso encerra uma trilogia formada também por Beloved (Amada 1987) e
Jazz (Jazz – 1992). Em Amada, uma escrava fugitiva que amava muito sua filha preferiu
matá-la a vê-la sofrer nas mãos de seus donos e, em Jazz, o amor de um homem por
uma jovem mulher transformou-se em violência no Harlem da década de 1920
6
. No que
concerne a Paraíso, a obsessão dos fundadores da comunidade de Ruby os Novos
Patriarcas – em conservá-la intacta ao longo dos anos acabou os conduzindo a um ato de
violência, como veremos mais adiante. Tal episódio pode ser associado ao título que
5
Texto original: “like any potentially strong novelist, battles against being subsumed by the traditions of
narrative fiction. As a leader of African-American literary culture, Morrison is particularly intense in
resisting critical characterizations that she believes misrepresent her own loyalties, her social and political
fealties to the complex cause of her people”. (BLOOM, 1990, p. 1)
6
6
Informações baseadas no texto Paradise found, de Paul Gray, Revista Time, 19 de janeiro de 1998.
(Disponível no site http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,987690-5,00.html, acessado em
29 de maio de 2006)
15
Morrison havia escolhido para sua obra War (“Guerra”, em português) mas que
acabou sendo substituído após uma decisão dos editores. Segundo eles, o nome
proposto por Morrison poderia afastar os leitores, opinião essa não-compartilhada pela
autora: “Eu ainda não estou convencida de que eles estavam certos”(nossa tradução)
7
.
Paraíso foi publicado cinco anos após Morrison ter recebido o Nobel. O
compromisso de escrever uma obra que justificasse o prêmio, além do fato de a
escritora fazer parte do contexto acadêmico, provavelmente tenha fornecido ao romance
características que apontam para múltiplas vias de abordagem, uma vez que, segundo
Paul Gray, jornalista da Revista Time, “ler o romance é ser puxado para dentro de um
mundo pungente, polêmico e, algumas vezes, violento e encarar questões tão antigas
quanto a própria civilização humana”(nossa tradução)
8
. Para desenvolver o livro em
questão, Morrison recorreu a um episódio da história dos Estados Unidos no século
XIX, após a Guerra Civil: a emigração de ex-escravos de territórios como o Mississippi
e a Louisiana para cidades negras localizadas em Oklahoma. Essas pessoas seguiram o
referido trajeto atraídas pela incitação Come prepared or not at all, presente nos
anúncios de jornal da década de 1870
9
, a qual poderia ser traduzida como “Se não
estiver preparado, não venha”. A partir desse fato, Morrison compôs uma narrativa
complexa, contada a partir de vários pontos de vista, de forma não-linear. Esse é um dos
7
Texto original: “I’m still not convinced they were right”. (MORRISON, Toni. In: MURLINE, Anna.
This side of Paradise: Toni Morrison defends herself from criticism of her new novel Paradise.
Disponível no site
http://www.swarthmore.edu/Humanities/pschmid1/engl52a/engl52a.1999/morrison.html, acessado em
acessado em 07 de abril de 2006)
8
Texto original: “To read the novel is to be pulled into a passionate, contentious and sometimes violent
world and to confront questions as old as human civilization itself”. (GRAY, Paul. Paradise found.
Revista Time, 19 de janeiro de 1998. Disponível no site
http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,987690-5,00.html, acessado em 29 de maio de 2006)
9
Essas informações foram baseadas no seguinte trecho: “Constant reading, a habit and passion she [Toni
Morrison] developed as a little girl, eventually led her to an obscure chapter in 19th century U.S. history,
shortly after the Civil War: the westward emigration of former slaves into the sparsely settled territories
of Oklahoma and beyond. Some found the promise of a new life in wide-open spaces, touted in numerous
newspaper advertisements in the 1870s, irresistible, and a challenge besides. Morrison was struck by a
caveat that often appeared in those ads: ‘Come prepared or not at all’”. (GRAY, Paul. Paradise found.
Revista Time, 19 de janeiro de 1998. Disponível no site
http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,987690,00.html, acessado em 29 de maio de 2006)
16
assuntos comentados pela crítica: Paraíso, como outros trabalhos de ficção de
Morrison, não é de leitura fácil denso, repetitivo e obscuro, requer grande
investigação e concentração”(nossa tradução)
10
.
Esta dissertação visa a trazer uma nova contribuição aos estudos acadêmicos
sobre Morrison no Brasil. Em uma pesquisa realizada no banco de dissertações e teses
do portal da CAPES em 20 de março de 2006 e atualizada em 28 de julho de 2007,
pudemos constatar que uma boa parte dos trabalhos em torno da literatura morrisoniana
focaliza o aspecto racial e aqueles relativos ao feminismo. Entre eles podemos citar os
seguintes: Racial and sexual conflicts in Toni Morrison's Sula: an approach to afro-
american women in literature, de Fatima Bezerra Negromonte (UFPB 1995); Um
olhar feminista em busca de Sula e Da canção de Solomon , de Clélia Reis Geha (UFPE
1999), e Unspeakable things (un)spoken: the representation of black women in Toni
Morrison's Beloved, de Elza de Fátima Dissenha Costa (UFPR 1999). Quanto aos
trabalhos relativos a Paraíso, observamos apenas a presença da dissertação de Viveca
Pontes de Miranda Soares Ramalho, intitulada A representação da diferença em
Paradise, de Toni Morrison e em dois contos de Guimarães Rosa: paisagem cultural e
entre-lugar narrativo (UFAL –2005)
11
.
Nosso objetivo é verificar de que forma Paraíso pode apontar para a
colaboração com um pensamento teórico acerca de questões que mobilizam a crítica
literária e cultural contemporaneamente. Tal idéia encontra respaldo nas palavras de
Barbara Christian, professora de Estudos Afro-americanos da Universidade da
Califórnia, no artigo “A disputa de teorias”:
10
Texto original: Paradise, like Morrison’s other fiction, is not an easy read dense, repetitive and
obscure, it requires close scrutiny and concentration”. (ALLEN, Brooke. The Promised Land. Disponível
no site http://www.nytimes.com/books/98/01/11/reviews/980111.11allent.html, acessado em 06 de junho
de 2006)
11
Informações baseadas no banco de dissertações e teses da CAPES. (Disponível no site
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/Teses.do, acessado em 28 de julho de 2007)
17
As pessoas de cor sempre teorizaram, mas de forma bastante
diferente do modelo ocidental de lógica abstrata. Inclino-me até
a afirmar que o nosso teorizar (e eu uso aqui intencionalmente o
verbo em vez do substantivo) aparece freqüentemente em nossas
formas narrativas, nas histórias que criamos, em adivinhações e
provérbios, nos jogos de linguagem, que o dinamismo de
idéias parece nos agradar mais do que qualquer rigidez
12
.
Selecionamos, portanto, alguns temas abordados por Morrison em Paraíso e os
entrelaçamos a considerações desenvolvidas por intelectuais tais como Walter
Benjamin, Jacques Derrida e Julia Kristeva.
No primeiro capítulo, por meio da abordagem de eventos suscitados pelas
diversas interpretações dadas a palavras presentes na placa do Forno, local de reunião
dos habitantes das comunidades de Haven e de Ruby, e que, durante o processo de
edificação da última, sofreu perdas e rasuras, teceremos discussões sobre tradução,
alegoria e história. Nesse momento, as reflexões de Walter Benjamin em Origem do
drama barroco alemão (1984), “Sobre o conceito de história” (1987) e “A tarefa-
renúncia do tradutor” (2001), e de outros estudiosos a respeito dos tópicos mencionados
serão trazidas à luz.
Segundo Roman Jakobson, em “Aspectos lingüísticos da tradução” (1969),
três maneiras diferentes de se interpretar um signo verbal: “ele pode ser traduzido em
outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não-
verbais” (JAKOBSON, 1969, p. 64). Esses tipos de tradução foram classificados por
Jakobson da seguinte forma: tradução intralingual ou refomulação trata-se da
interpretação de signos verbais através de outros signos da mesma língua; tradução
interlingual ou tradução propriamente dita – consiste na interpretação dos signos verbais
através de uma outra língua; tradução intersemiótica ou transmutação relaciona-se
12
Citação retirada do texto “A disputa de teorias”, de Barbara Christian, com tradução de Liane
Schneider. (Disponível no site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
026X2002000100005&script=sci_arttext&tlng=pt/, acessado em 05 de maio de 2006)
18
com a interpretação de signos verbais baseada em signos não-verbais. No presente
trabalho, a tradução será considerada em seu sentido amplo, como uma atividade de
interpretação. Dessa forma, no que diz respeito especificamente à análise da passagem
relativa ao Forno, em Paraíso, trabalharemos com a idéia de tradução intralingual,
fornecida por Jakobson, a partir da qual a interpretação de signos verbais é feita dentro
de uma mesma língua.
No segundo capítulo, focalizaremos os modos de convivência estabelecidos pelo
grupo de mulheres que habitavam o Convento, ambiente situado fora dos domínios de
Ruby, e aqueles determinados pelos Novos Patriarcas. Para tanto, exploraremos a
concepção de hospitalidade, tal como trabalhada por Jacques Derrida em Da
hospitalidade (2003) e em outros textos. Em seguida, a partir da atitude tomada por
alguns homens de Ruby, realizaremos um entrelaçamento de suas ações a idéias sobre o
estrangeiro, tais como discutidas por Julia Kristeva em Estrangeiros para nós mesmos
(1994), e sobre o fanatismo, tais como desenvolvidas por Amós Oz em Contra o
fanatismo (2004).
Finalmente, no terceiro capítulo, abordaremos a literatura de Morrison pelo viés
do arquivo. Partiremos do projeto arquitetado pela personagem Patricia Best com o
objetivo de reconstruir a história de Ruby. A tal empreendimento pretendemos
relacionar a própria estruturação de Paraíso por Morrison. Dessa forma, tomaremos
como base as considerações sobre o tema por parte de Jacques Derrida em Mal de
arquivo: uma impressão freudiana (2001).
19
CAPÍTULO 1
TRADUÇÃO, ALEGORIA E HISTÓRIA EM PARAÍSO
Neste capítulo, detemo-nos na construção das comunidades de Haven e,
posteriormente, de Ruby, para trazermos à luz reflexões a respeito de tradução, alegoria
20
e história. Para desenvolvermos nossa análise, apoiar-nos-emos em considerações
elaboradas por Walter Benjamin (1984, 1987, 2001) e por estudiosos de suas obras,
como Jacques Derrida (2000, 2002), Jeanne Marie Gagnebin (2004a, 2004b), Márcio
Seligmann-Silva (1999) e Susana Kampff Lages (1999, 2002).
As idéias propostas por Walter Benjamin sobre os assuntos acima mencionados
podem ser relacionadas à sua própria postura diante da vida. Nascido no dia 15 de julho
de 1892, em Berlim, numa família de judeus, Benjamin iniciou sua carreira acadêmica
em 1913, apresentando a dissertação O conceito de crítica de arte no Romantismo
alemão em 1919, na Suíça. No entanto, essa trajetória foi interrompida nove anos mais
tarde, quando sua tese de doutorado Origem do drama barroco alemão foi rejeitada pela
Universidade de Frankfurt. Esse episódio conduziu o intelectual a investir em traduções,
ensaios e críticas jornalísticas com o objetivo de garantir sua sobrevivência. Com a
ascensão de Hitler, porém, surgiram dificuldades para que ele continuasse sua produção
escrita, o que o levou a se mudar para Paris em 1935. Nessa fase, Benjamin compôs
trabalhos importantes como “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”
(1985) e “O narrador” (1994) a partir de apoio financeiro do Instituto de Pesquisas
Sociais de Frankfurt.
Benjamin possuía uma personalidade enigmática, marcada pela contradição de
interesses e pela mudança de temperamento. Tal especificidade aproximá-lo-ia mais do
perfil de um artista do que do de um filósofo. Gershom Scholem, seu amigo desde 1915
e responsável em grande parte pela descoberta do judaísmo pelo pensador, costumava
comentar a respeito da profunda sensação de melancolia transmitida por ele
(SCHOLEM, 1989; GAGNEBIN, 1999; LAGES, 2002). Esse estado melancólico
permanente contribuiu para a multiplicidade de pensamentos por parte de Benjamin,
refletida na forma como ele desenvolveu suas obras, como veremos a seguir.
21
1.1 – O INÍCIO DE UMA HISTÓRIA DE TRADUÇÕES
Em Paraíso, o ano de 1889 foi marcado pela peregrinação de um grupo de ex-
escravos do Mississippi e da Louisiana à procura de um local onde pudesse construir
uma nova vida. Durante o trajeto, esse grupo passou por diversas cidades negras, mas
nunca foi bem-recebido. Especificamente no que se refere à região de Fairly, em
Oklahoma, sofreu humilhações e rejeições. Diante desse quadro de exclusão, “as
pessoas [...] transformaram-se em um bando fechado de caminhantes unidos pela
enormidade do que lhes tinha acontecido” (MORRISON, 1998, p. 220)
13
. Essa
ocorrência ficou conhecida como Interdição.
A contínua discriminação das famílias Blackhorse, Morgan, Poole, Fleetwood,
Beauchamp, Cato, Flood e duas famílias DuPres e de fragmentos de outras famílias que
faziam parte da caravana está relacionada ao seguinte fator: seus membros eram R-8,
“uma abreviação de rocha-8, um nível muito, muito profundo das minas de carvão.
Gente negro-azulada, alta e graciosa” (MORRISON, 1998, p. 224)
14
. Isso significa que
os cento e cinqüenta e oito ex-escravos, após terem sido subestimados pelos brancos
durante um longo período, passaram a ser excluídos pelos próprios negros, de pele mais
clara. Logo, “a marca da pureza racial que lhes parecia um privilégio tornara-se uma
mácula”
(MORRISON, 1998, p. 225)
15
, isto é, o fato de serem rocha-8 se transformou
em um obstáculo para a concretização de seu objetivo, que era o de conquistarem um
lugar onde pudessem viver, livres de perseguições e segregações.
Abalados com o tratamento que haviam recebido, os componentes da excursão
se encaminharam para o oeste, optando por não mais procurarem acolhimento em
13
Texto original: “the people […] became a tight band of wayfarers bound by the enormity of what had
happened to them”. (MORRISON, 1998, p. 189)
14
Texto original: “an abbreviation of eight-rock, a deep deep level in the coal mines. Blue-black people,
tall and graceful”. (MORRISON, 1998, p. 193)
15
Texto original: “the sign of racial purity they had taken for granted had become a stain”. (MORRISON,
1998, p. 194)
22
cidades negras. Em vez disso, lutaram para erguer sua própria comunidade. Em 1890,
portanto, aqueles a quem Morrison chama de Velhos Patriarcas, liderados por Zechariah
Morgan, fundaram, no estado de Oklahoma, Haven, nome que significa “abrigo,
refúgio” (HOUAISS, 1979, p. 271), algo que seus habitantes buscaram, mas não
obtiveram nos locais a que haviam se dirigido anteriormente. A constituição desse
abrigo tinha um preço: seu isolamento da sociedade em geral.
A formação da comunidade de Haven nos conduz a algumas reflexões sobre
exílio. O termo “exílio” se caracteriza por abarcar significados variados e complexos.
Miriam L. Volpe, ao realizar um estudo da obra do escritor uruguaio Mario Benedetti,
em Geografias de exílio (2005), aponta para a abrangência desse vocábulo. Segundo
ela, exílio teria como idéia “expulsar da pátria, degredar, desterrar, banir, extraditar,
deportar. Mas também pode significar: afastar, apartar, arredar, e, como reflexivo,
afastar-se do convívio social” (VOLPE, 2005, p. 78). Em Paraíso, ocorreram vários
momentos de exílio, incitados pela exclusão dos ex-escravos das cidades negras pelas
quais passaram. Isso os privou de uma vida em sociedade.
Edward Said, em “Reflexões sobre o exílio” (2001), sugere uma comparação
entre as noções de exílio e de nacionalismos. Segundo o autor, “os nacionalismos dizem
respeito a grupos, mas, num sentido muito agudo, o exílio é uma solidão vivida fora do
grupo: a privação sentida por não estar com os outros na habitação comunal” (SAID,
2001, p. 50). No que diz respeito a Paraíso, quando os caminhantes passaram a não
mais tolerar a humilhação por terem sido discriminados por negros, de pele mais clara,
resolveram edificar a cidade de Haven. Tal atitude demonstra o seguinte comentário de
Said: “Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda
desorientadora, criando um novo mundo para governar” (SAID, 2001, p. 54).
23
Haven passou a ser um novo mundo para o povo rocha-8, mundo esse
controlado por seus fundadores. Na opinião de Zechariah Morgan, era fundamental que
as famílias da comunidade e seus descendentes lutassem para sustentar sua união,
conservando a identidade da aliança que formavam, de modo que não viessem a se
dissipar. Herdeiros do pensamento de seu avô, os gêmeos Deacon Morgan e Steward
Morgan decidiram abandonar Haven anos mais tarde para, juntamente com as quinze
famílias que ainda residiam no local, seguirem rumo ao interior de Oklahoma. Tal
atitude foi motivada pelo seguinte episódio: em 1949, os soldados negros que voltaram
da Segunda Guerra Mundial não foram bem-vindos em seu país. Essa ocorrência, por
aludir ao que aconteceu às gerações anteriores em 1889, veio a ser denominada de
Interdição, Parte Dois. Na visão de Deacon e Steward, “o que poderia ser doloroso
“desmembrar o que seus avós tinham construído não era nada comparado ao que eles
tinham suportado e ao que eles poderiam se tornar se não começassem de novo” (nossa
tradução)
16
.
Assim, no ano de 1950, foi constituída, pelos chamados Novos Patriarcas, uma
nova cidade que, como Haven, buscava sua integridade através do sangue rocha-8 de
seus moradores. Durante os três primeiros anos, a comunidade foi chamada de New
Haven. Porém, um acontecimento foi determinante para a mudança de seu nome: após
deixar Haven, Ruby, irmã de Deacon e Steward, ficou doente durante a viagem,
precisando de cuidados médicos. Ela foi levada a um hospital e não recebeu
atendimento, que no local não se admitiam negros. Ainda com vida, foi carregada
para outro hospital, mas veio a falecer na sala de espera. Ao descobrirem que a
enfermeira procurava um veterinário em vez de um médico para examinar Ruby,
Deacon e Steward conduziram a irmã morta nos braços até sua casa, onde foi enterrada.
16
Texto original: “and if it hurt pulling asunder what their grandfathers had put together it was
nothing compared to what they had endured and what they might become if they did not begin anew”.
(MORRISON, 1998, p. 6)
24
No sentido de prestar uma homenagem à sua conterrânea, a população decidiu rebatizar
a cidade com o seu nome.
Ruby também foi edificada em um lugar isolado. De acordo com Said, “os
exilados sentem uma necessidade urgente de reconstituir suas vidas rompidas e
preferem ver a si mesmos como parte de uma ideologia triunfante ou de um povo
restaurado” (SAID, 2001, p. 50). Desse modo, devido ao fato de se considerarem
descendentes de um grupo de vencedores, os quais lutaram para que não fossem mais
segregados, os Novos Patriarcas cercaram o território de Ruby, evitando que
estrangeiros tivessem acesso a ele, conforme veremos no capítulo seguinte. A moradora
Patricia Best, em uma conversa com o reverendo Misner, um pastor liberal advindo de
uma congregação de fora da cidade, evidencia a importância de as pessoas de Ruby
terem um lugar para viver nesta passagem: “Isto aqui é terra deles. Minha também.
Terra natal não é pouco” (MORRISON, 1998, p. 246)
17
.
Na opinião de Simone Weil, “ter raízes é talvez a necessidade mais importante e
menos reconhecida da alma humana” (WEIL citada por SAID, 2001, p. 56). Para que as
gerações futuras tivessem assegurada a sobrevivência de Ruby, seria necessário
combater tudo que a ameaçasse. Esse pensamento dos homens conservadores se
aproxima da reflexão de Said a respeito da condição de exílio:
O exílio é uma condição ciumenta. O que você consegue é
exatamente o que você não tem vontade de compartilhar, e é ao
traçar linhas ao seu redor e ao redor de seus compatriotas que os
aspectos menos atraentes de estar em exílio emergem: um
sentimento exagerado de solidariedade de grupo e uma
hostilidade exaltada em relação aos de fora do grupo, mesmo
aqueles que podem, na verdade, estar na mesma situação que
você. (SAID, 2001, p. 51)
17
Texto original: “This is their home; mine too. Home is not a little thing”. (MORRISON, 1998, p. 213)
25
O isolamento de Ruby, cujo extremo seria a exclusão daqueles que não
pertenciam à comunidade, poderia ser observado no contexto das próprias imposições
feitas aos moradores: itens diversos como televisão, discoteca, polícia, filmes de
cinema, música imunda, maldade nas ruas, roubo na noite, assassinato de manhã, álcool
no almoço e droga no jantar (MORRISON, 1998, p. 315) deveriam ser substituídos por
uma vida dedicada à religião, segundo os princípios do Protestantismo. A determinação
desse tipo de vivência, segundo os Novos Patriarcas, tinha como um de seus objetivos a
manutenção da unidade entre seus membros. Porém, com o passar dos anos, começaram
a surgir conflitos dentro do próprio grupo. Um dos aspectos responsáveis por tal
desequilíbrio estaria relacionado ao Forno.
Logo após a formação de Haven, em 1890, houve uma preocupação, por parte
dos Velhos Patriarcas, relativa à alimentação dos moradores, ou seja, eles achavam que
havia necessidade de um local onde todos pudessem cozinhar. A partir dessa idéia, foi
construído um forno de tijolos, que também passou a ser visto como um monumento:
“ao mesmo tempo os alimentava e monumentalizava o que haviam feito” (MORRISON,
1998, p. 15)
18
. Para completar a caracterização do Forno como uma representação de
sua história, os líderes de Haven resolveram anexar a ele uma placa de ferro. Nessa
placa, Zechariah Morgan escreveu algumas palavras, cuja origem é desconhecida.
Em 1949, quando os antigos habitantes decidiram abandonar Haven e
estabelecer uma outra cidade, os líderes, à revelia de grande parte das mulheres,
insistiram em transportar o Forno. Contudo, quando finalmente o Forno foi afixado em
Ruby, houve a queda de algumas letras das palavras que compunham a placa de ferro
sobre o mesmo. Segundo Deacon, “se algumas letras caíram, não foi culpa nossa [de
Deacon e de Steward], porque a gente embrulhou aquilo como se fosse um carneirinho”
18
Texto original: “both nourished them and monumentalized what they had done”. (MORRISON, 1998,
p. 7)
26
(MORRISON, 1998, p. 102)
19
. A queda dessas letras foi decisiva para que o texto
original passasse a receber diferentes interpretações por parte dos habitantes de Ruby.
A história de exílio dos ex-escravos e o episódio relativo ao Forno nos permitem
uma articulação com o ensaio de Walter Benjamin “A tarefa-renúncia do tradutor”
(2001), publicado em alemão no ano de 1923. Nesse texto, a condição exílica é
vinculada à fragmentação e às ruínas surgidas a partir da queda da Torre de Babel,
quando Deus, temeroso do poder a ser alcançado pelos homens caso os mesmos, através
dessa torre, chegassem até Ele, a destruiu e os dispersou, tornando a tradução uma tarefa
a ser cumprida pelo resto dos tempos (DERRIDA, 2002).
Em Paraíso, os Novos Patriarcas atribuíam tamanha importância aos fragmentos
escriturais do Forno que os enxergavam como um mandamento e não como um simples
lema. Essa postura pode ser observada na fala do reverendo Pulliam, um pastor
conservador, respeitado pelos habitantes de Ruby, que compartilhava a opinião dos
fundadores da comunidade, entre eles Arnold Fleetwood, de que a frase contida no
Forno corresponderia a “Temei a ruga de Sua testa”. Tal interpretação se baseava na
história, contada de geração para geração, de que uma das antigas moradoras de Haven,
Miss Esther, aos cinco anos de idade, havia tocado as letras originais da placa:
“Lema? Lema? Estamos falando de um mandamento!” O
reverendo Pulliam apontou para o teto um dedo elegante.
‘Temei a ruga de Sua testa’. Isso é o que está escrito mais claro
que o dia. Não se trata de uma sugestão; é uma ordem!”
“Não. Não é claro como o dia”, disse Misner. “Está escrito ‘...a
ruga de Sua testa’. Não tem nenhum ‘Temei’ na frase.”
“Vocês não estavam lá! Esther estava!Vocês não estavam aqui
também não, no começo! Esther estava!” A mão direita de
Arnold Fleetwood brandia um alerta.
“Ela era uma criança. Pode ter se enganado”, disse Misner.
(MORRISON, 1998, p. 103)
20
19
Texto original: “if some letters fell off, it wasn’t due to us because we packed it in straw like it was a
mewing lamb”. (MORRISON, 1998, p. 86)
20
Texto original: “‘Motto? Motto? We talking command!’ Reverend Pulliam pointed an elegant finger at
the ceiling. ‘Beware the Furrow of His Brow’. That’s what it says clear as daylight. That’s not a
suggestion; that’s an order!’
27
O reverendo Misner, ao levar em consideração a queda de alguns elementos que
comporiam a mensagem do Forno, defendia a presença de somente rastros desse texto:
“...a ruga de Sua testa”. Partindo desse raciocínio, os habitantes mais jovens de Ruby,
por sua vez, trouxeram à luz a frase “Sede a ruga de Sua testa”. Um deles, Destry,
revelou sua proposição aos Novos Patriarcas, representados nesse contexto por Pulliam,
Nathan DuPres e Sargeant Person. A interpretação de Destry acabou gerando uma
polêmica:
“O senhor me desculpe. Qual é o problema com ‘Sede a ruga’?
‘Sede a ruga de Sua testa’?”
“Você não pode ser Deus, rapaz”, Nathan DuPres disse com
suavidade, sacudindo a cabeça.
“Não é ser Ele, meu senhor; é ser o instrumento Dele, a justiça
Dele. Como uma raça...”
“A justiça de Deus é Dele. Como você vai ser instrumento
Dele se não faz o que Ele manda?”, perguntou o reverendo
Pulliam. “Tem que obedecer a Deus”.
“Eu sei, meu Senhor, mas nós estamos obedecendo a Deus”,
disse Destry. “Se a gente seguir os mandamentos Dele, seremos
a Sua voz, o Seu castigo. Como um povo...”
Harper Jury o silenciou. “Lá diz ‘Temei’. Não ‘Sede’. Temei
quer dizer ‘Cuidado. O poder é meu. Acostumem-se com ele’.”
“‘Sede’ quer dizer que você bota Ele de lado e você no poder”,
disse Sargeant.
“Mas nós somos o poder se...”
“Estão vendo o que eu digo? Estão vendo? Escutem isso! Está
escutando, reverendo? O menino precisa é de uma mordaça.
Que blasfêmia!”. (MORRISON, 1998, p. 103-4)
21
‘Well, no. It’s not clear as daylight,’ said Misner. ‘It says ‘...the Furrow of His Brow.’ There’s no
‘Beware’ on it.’
‘You weren’t there! Esther was! And you weren’t here, either, at the beginning! Esther was!’ Arnold
Fleetwood’s right hand shook with warning.
‘She was a baby. She could have been mistaken’, said Misner”. (MORRISON, 1998, p. 86)
21
Texto original: “‘Excuse me, sir. What’s so wrong about ‘Be the Furrow’? ‘Be the Furrow of His
Brow’?”
‘You can’t be God, boy.’ Nathan DuPres spoke kindly as he shook his head.
‘It’s not being Him, sir; it’s being His instrument, His justice. As a race – ’
‘God’s justice is His alone. How you going to be His instrument if you don’t do what He says?’ asked
Reverend Pulliam. ‘You have to obey Him.’
‘Yes, sir, but we are obeying Him,’ said Destry. If we follow His commandments, we’ll be His voice,
His retribution. As a people – ’
Harper Jury silenced him. ‘It says ‘Beware’. Not ‘Be’. Beware means ‘Look out. The power is mine. Get
used to it’. ’
‘Be’ means you putting Him aside and you the power,’ said Sargeant.
28
Ao proporem “Sede a ruga de Sua testa” como mensagem para os fragmentos dos
escritos do Forno, os jovens ilustram a tradução como atualização do sentido na história.
Na visão de Benjamin, o original sobrevive e “a tradução será na verdade um
momento de seu próprio crescimento, ele aí completar-se-á engrandecendo-se”
(DERRIDA, 2002, p. 46). Segundo Susana Kampff Lages, em “Alegoria da leitura,
figuras da melancolia: ‘A tarefa do tradutor’, de Walter Benjamin” (1999), a tradução
seria marcada pela sobrevivência (Überleben), continuidade da vida (Fortleben),
renascer da obra (Aufleben) (LAGES, 1999, p. 52). A presença do domínio da vida na
relação entre original e tradução está submetida a um elemento mais amplo: a história.
De acordo com Benjamin, “é somente quando se reconhece vida a tudo aquilo que
possui história e que não constitui apenas um cenário para ela, que o conceito de vida
encontra sua legitimação” (BENJAMIN, 2001, p. 193). Assim, o aspecto histórico está
diretamente ligado à tradução. Jeanne Marie Gagnebin, em “Origem, original, tradução”
(2004b), destaca que a história não promove um amadurecer tranqüilo, mas sim
determina o desencadeamento de um processo violento imposto pela tradução ao
original (GAGNEBIN, 2004b, p. 23).
Benjamin desenvolve argumentos que se distanciam de uma visão da tradução
como uma atividade secundária, cuja função estaria reduzida à reprodução do original.
O autor se vale de duas metáforas a da casca com o fruto e a do manto real para
discorrer sobre a relação entre a história e a tradução. Segundo ele, “se no original eles
[o conteúdo e a língua] formam uma certa unidade, como a casca com o fruto, na
tradução, a língua recobre seu conteúdo em amplas pregas, como um manto real”
(BENJAMIN, 2001, p. 201). Dessa forma, primeiramente, a imagem do rei nos conduz
a pensar em seu poder. No entanto, sua vestimenta não se ajusta completamente ao seu
‘We are the power if we just – ’
‘See what I mean? See what I mean? Listen to that! You hear that, Reverend? That boy needs a strap.
Blasphemy!’ (MORRISON, 1998, p. 87)
29
corpo. De acordo com Jacques Derrida, “não é uma fraqueza, a melhor tradução
assemelha-se a esse manto real. Ela permanece separada do corpo ao qual entretanto ela
se junta, esposando-o sem esposá-lo” (DERRIDA, 2002, p. 55). Por meio dessas
metáforas, Benjamin aponta, simultaneamente, para o caráter vital, mas transitório da
tradução. É o que observa Maria Clara Castellões de Oliveira, no texto A tradução
interpretativa de rabinos e cabalistas, a crítica literária e a tradução” (2002), ao
comentar sobre a visão benjaminiana em questão: “da mesma forma em que o manto
real confere poder a quem o veste e, com o passar do tempo, muitos assim o fazem, a
tradução, apesar de responsável pela sobrevida do original, necessita ser substituída à
medida em que o tempo se esgota” (p. 128).
Nas décadas de 60 e 70 do século XX, o cenário intelectual-acadêmico europeu
foi marcado pela renovação, com o surgimento do pós-estruturalismo e dos Estudos
Culturais. No que diz respeito ao contexto histórico norte-americano, esse período se
destacou por movimentos como o feminismo e a luta pelos direitos civis. Além disso, a
busca por raízes africanas por parte dos negros trouxe formas positivas de construir uma
nova identidade, as quais se distanciavam das dolorosas experiências do passado
(SINGH et alli, 1996, p. 7). Assim, em Paraíso, influenciados ao mesmo tempo pelos
discursos pacifistas de Martin Luther King e pelo tom provocativo de Malcolm X, os
jovens de Ruby questionavam o fato de viverem em isolamento com relação à sociedade
e demonstravam interesse em conhecer a história de seus antepassados a partir da
África. Tal abertura de pensamentos por parte dos jovens pode ser comprovada em um
diálogo entre Misner e Patricia, que era professora na comunidade:
“Eles querem saber sobre a África...”
“Ah, faça o favor, reverendo. Não venha com sentimentalismo
para cima de mim.”
“Se você se separar das raízes, acaba secando.”
“Raízes que ignoram os ramos viram pó de cupim.”
“Pat”, ele disse com branda surpresa. “Você despreza a África.”
30
“Não, não desprezo. Só que não significa nada para mim.”
“O que significa, Pat? O que significa alguma coisa para você?’
“A tabela periódica de elementos químicos e valências.”
“Triste”, ele disse. “Triste e frio.” Richard Misner virou o rosto.
(MORRISON, 1998, p. 242-243)
22
Nessa conversa, a fala de Misner mostra, comprovando o comentário de Morrison sobre
a personagem, que “ele [Misner] quer abrir discussão. Ele quer fazer essa coisa terrível,
que é ouvir as crianças” (nossa tradução)
23
. Patricia, por sua vez, apresenta uma posição
logocêntrica, fechada, semelhante ao comportamento dos Novos Patriarcas com relação
às palavras do Forno. Esses defendiam que a frase presente na placa do Forno seria
“Temei a ruga de Sua testa”, em que Deus é sugerido como uma figura a quem todos
deveriam temer e obedecer. Tal idéia, portanto, não seria condizente com os
pensamentos da juventude das décadas de 60 e 70 do século XX. É possível, dessa
forma, trazer à lembrança a afirmação de Benjamin sobre a tradução e,
conseqüentemente, sobre a atualização de sentidos, solicitada por novos espaços e
novos tempos de que “toda tradução é apenas um modo de alguma forma provisório de
lidar com a estranheza das línguas. Uma solução não temporal e provisória para essa
estranheza, uma solução instantânea e definitiva, permanece vedada aos homens, ou
pelo menos não pode ser aspirada diretamente” (BENJAMIN, 2001, p. 200).
Ao trabalharem com “temei” ou “sede”, demonstrando que a palavra é o
elemento originário do tradutor (BENJAMIN, 2001, p. 209), os moradores de Ruby
22
Texto original: “‘They want to know about Africa –’
‘Oh, please, Reverend. Don’t go sentimental on me.’
‘If you cut yourself off from the roots, you’ll wither.’
‘Roots that ignore the branches turn into termite dust.’
‘Pat,’ he said with mild surprise. ‘You despise Africa.’
‘No, I don’t. It just doesn’t mean anything to me.’
‘What does, Pat? What does mean something to you?’
‘The periodic chart of elements and valences.’
‘Sad ,’ he said. ‘Sad and cold.’ Richard Misner turned away”. (MORRISON, 1998, p. 209)
23
Texto original: “He wants to open up the discussion. He wants to do this terrible thing, which is to
listen to the children”. (Citação retirada de Toni Morrison: the Salon interview, por Zia Jaffrey.
Disponível no site http://www.salon.com/books/int/1998/02/cov_si_02int.html, acessado em 31 de junho
de 2006)
31
parecem trazer à tona traduções “relevantes”, considerando suas diferentes intenções.
“Relevante” é um termo utilizado por Derrida, no texto “O que é uma tradução
relevante’?” (2000), que significa “mais certo, pertinente, bem-vindo, apropriado,
oportuno, justificado, bem afinado ou ajustado, surgindo de forma adequada onde é
esperado” (DERRIDA, 2000, p. 17). Porém, com essas diferentes leituras dos
fragmentos do Forno, os membros da comunidade conseguiriam atingir apenas uma
parte do sentido do texto original. Essa é a característica da tradução, na visão
benjaminiana:
Da mesma forma com que a tangente toca a circunferência de
maneira fugidia e em um ponto apenas, sendo esse contato, e
não o ponto, que determina a lei segundo a qual ela continua
sua via reta para o infinito, a tradução toca fugazmente e apenas
no ponto infinitamente pequeno do sentido do original, para
perseguir, segundo a lei da fidelidade, sua própria via no
interior da liberdade do movimento da língua. (BENJAMIN,
2001, p. 211)
Derrida, no texto mencionado, referenda a opinião de Benjamin com o seguinte
comentário:
A tradução, no sentido estrito, tradicional e dominante desse
termo, encontra um limite intransponível e o começo de seu
fim, a configuração de sua ruína (mas talvez uma tradução seja
consagrada à ruína, a essa forma de memória ou de
comemoração que se denomina ruína, a ruína talvez seja sua
vocação e um destino que ela aceita desde a origem).
(DERRIDA, 2000, p. 21)
No caso da placa do Forno, antes de qualquer tradução, a queda de algumas das letras
apontaria para a presença de ruínas com relação à mensagem original.
Impossível, mas necessária: assim se faz a tradução. “Dívida inflexível e
impagável” (DERRIDA, 2000, p. 13): eis a característica da tarefa do tradutor. Esses
aspectos paradoxais, que envolvem a tradução tal como ela é vista por Benjamin e por
32
intérpretes de seu texto seminal sobre o assunto, aproximam-se da definição de
melancolia, marcada pela alternância de estados psíquicos antitéticos. Tais percepções
encontram-se no texto de Lages (1999), mencionado anteriormente, segundo o qual a
teoria da tradução de Benjamin “é também uma espécie de teoria da melancolia,
centrada no reconhecimento da perda de uma unidade que, em última instância, afeta o
próprio original, pois marcado ele mesmo pela impossibilidade de fazer coincidir
plenamente a linguagem com os objetos que representa” (LAGES, 1999, p. 55). Tal
aspecto melancólico se faz presente no próprio ato tradutório, uma vez que, em um
primeiro momento, uma espécie de violência ao se desestruturar e desorganizar o
texto original. depois dessa etapa é que passa a existir uma reorganização,
reestruturação no contexto da língua-meta (LAGES, 1999, p. 50). Esse movimento, ao
mesmo tempo violento e redentor, é inerente à tradução, uma tarefa de resgate de um
texto que poderia estar fadado ao isolamento e/ou ao esquecimento caso não fosse
submetido a interpretações (BENJAMIN, 2001, p. 211). Assim, tanto os jovens quanto
os antigos residentes de Ruby apresentaram significações para as palavras do Forno que
lhes pareceram coerentes com o seu tempo, com os seus propósitos. Mesmo que
contraditórias, essas diferentes interpretações contribuíram para manter viva a história
da comunidade. Entretanto, tal relevância atribuída ao teor dos fragmentos da placa do
Forno acabou desencadeando controvérsias. Esse fator está relacionado a um outro
aspecto trabalhado por Benjamin: a alegoria.
1.2 – OS ALEGORISTAS DA HISTÓRIA
Em Paraíso, no contexto de Haven, o Forno tinha como função o cozimento de
alimentos; ao ser afixado em Ruby, ele acabou perdendo essa utilidade, pois havia
fogão nas casas da comunidade. Contudo, os Novos Patriarcas e os jovens atribuíram ao
Forno uma nova significação a partir do destaque dado às ruínas que restaram de
33
algumas das palavras cujas letras se perderam no processo de construção da história da
cidade: o Forno passou a ser visto como um monumento. Esse ato, portanto, nos conduz
a uma reflexão sobre alegoria.
A teoria do alegórico foi desenvolvida por Benjamin em Origem do drama
barroco alemão, escrito em 1925, dois anos após a publicação de “A tarefa-renúncia do
tradutor”. Tomando como referência as palavras do autor e as do seu tradutor Sergio
Paulo Rouanet, presentes na introdução à edição brasileira do texto em questão,
podemos afirmar que no Classicismo, em contraste com a valorização do símbolo, a
alegoria era vista apenas como um modo de ilustração. Benjamin, no entanto, buscou
demonstrar que a alegoria, assim como a escrita, é uma forma de expressão. Desse
modo, em sua leitura do drama barroco alemão, ele observou que enquanto no símbolo
“o rosto metamorfoseado da natureza se revela fugazmente à luz da salvação”
(BENJAMIN, 1984, p.188), o que estaria relacionado à idéia de redenção, na alegoria
mostra-se “ao observador a facies hippocratica da história como protopaisagem
petrificada” (BENJAMIN, 1984, p. 188), ou seja, destaca-se o aspecto doentio, efêmero
da história.
Nesse sentido, a concepção barroca da história como natureza, em que o destino
surge como elemento central, “não constitui um processo de vida eterna, mas de
inevitável declínio” (BENJAMIN, 1984, p. 200). Conseqüentemente, surge o culto às
ruínas, aos fragmentos: “o que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço: essa
é a matéria mais nobre da criação barroca” (BENJAMIN, 1984, p. 200). A morte, então,
constitui o princípio estruturador da alegoria. Uma vez que nessa perspectiva cada coisa
pode vir a significar qualquer outra, torna-se necessário que, primeiramente, o objeto
seja privado de sua vida. Em seguida, o alegorista faz com que esse objeto tenha uma
significação e se transforme em algo diferente.
34
Em Ruby, os moradores parecem encarnar o papel de alegoristas, porque:
O alegorista arranca o objeto do seu contexto. Mata-o. E o
obriga a significar. Esvaziado de todo brilho próprio, incapaz
de irradiar qualquer sentido, ele está pronto para funcionar
como alegoria. Nas mãos do alegorista, a coisa se converte em
algo de diferente, transformando-se em chave para um saber
oculto. Para construir a alegoria, o mundo tem de ser
esquartejado. As ruínas e fragmentos servem para criar a
alegoria. (ROUANET, 1984, p. 40)
Ao apresentarem diferentes interpretações para a inscrição que se colocava sobre o
Forno, os habitantes da comunidade demonstraram dois pontos importantes de onde se
origina a linguagem alegórica, na visão de Gagnebin, em “Alegoria, morte,
modernidade” (2004a): “da tristeza, do luto provocado pela ausência de um referente
último; da liberdade lúdica, do jogo que tal ausência acarreta para quem ousa inventar
novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros” (GAGNEBIN, 2004a, p. 38).
O luto representado pela perda de algumas letras do Forno abriu espaço para que
lhe fossem conferidas novas significações, significações essas que ilustram o traço
fundamental da alegoria: “a ambigüidade, a multiplicidade de sentidos” (BENJAMIN,
1984, p. 199). No que tange a “Sede a ruga de Sua testa”, não está explícito a que
sujeito se faz referência. O “vós”, subentendido, pode remeter a várias interpretações. O
mesmo acontece em “Temei a ruga de Sua testa”, uma vez que não é possível identificar
quem seriam os representantes do sujeito “vós”. O seguinte comentário de Márcio
Seligmann-Silva (1999), ao discorrer sobre os aspectos da alegoria, apresenta elementos
que contribuem para explicar essa dualidade: “na alegoria, ao invés da função
comunicativa, é a mera alusão, o elemento deítico do gesto escritural/lingüístico que é
entronizado: privilegia-se a negatividade sublime do enigma em detrimento da
imediatez do signo” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 32-3).
35
As diferentes propostas oferecidas às ruínas da mensagem do Forno dividiram as
opiniões dos demais habitantes de Ruby, principalmente das mulheres, que se
mostraram sensibilizadas com o fato de o Forno ter-se tornado alegoria. As irmãs
Dovey, esposa de Steward, e Soane, esposa de Deacon, são exemplos disso. Na visão de
Dovey,
‘Temei a ruga de Sua testa’? ‘Sede a ruga de Sua testa’? A
opinião dela é que ‘a ruga de Sua testa’ sozinha bastava para
qualquer idade ou geração. Especificar, particularizar, definir o
sentido era inútil. A única definição necessária havia
ocorrido. Na Cruz. (MORRISON, 1998, p. 111)
24
Soane, por sua vez, reflete sobre o papel inicial do Forno e em que ele se transformou
ao longo do tempo:
Ah, como os homens adoraram remontar o Forno; como haviam
ficado orgulhosos, devotados. Uma coisa boa, ela pensou, boa
em si, que foi um pouco longe demais. Um utensílio que
virou altar (coisa censurada não no aterrorizante
Deuteronômio como no adorável Coríntios II também) e, como
qualquer coisa que ofende a Ele, destruiu a si mesmo.
(MORRISON, 1998, p. 123)
25
O comentário de Soane, principalmente no que diz respeito ao trecho “um utensílio que
virou altar”, vem ao encontro de uma das peculiaridades intrínsecas ao alegorista, na
visão benjaminiana, apontada por Seligmann-Silva (1999): “o alegorista também liga-se
à libertação das coisas da escravidão de serem úteis” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p.
33). O Forno não mais executava seu papel utilitário. Ele era, agora, o marco do
limiar entre o passado e o presente de um povo em busca da construção de seu sentido
na história.
24
Texto original: “‘Beware the Furrow of His Brow’? ‘Be the Furrow of His Brow’? Her own opinion
was that ‘Furrow of His Brow’ alone was enough for any age or generation. Specifying it, particularizing
it, nailing its meaning down, was futile. The only nailing needing to be done had already taken place. On
the Cross”. (MORRISON, 1998, p. 93)
25
Texto original: “Oh, how the men loved putting it back together; how proud it had made them, how
devoted. A good thing, she thought, as far as it went, but it went too far. A utility became a shrine
(cautioned against not only in scary Deuteronomy but in lovely Corinthians II as well) and, like anything
that offended Him, destroyed its own self”. (MORRISON, 1998, p. 103-4)
36
A professora Patricia, que era filha de um homem rocha-8 e de uma mulher de
pele mais clara, ofereceu a seguinte interpretação à proposição “Temei a ruga de Sua
testa”:
Mais que uma regra. Um enigma: ‘Temei a ruga de Sua testa’,
no qual o ‘Vós’ (subentendido), caso vocativo, não era uma
ordem aos crentes, mas uma ameaça àqueles que os tinham
interditado. Ele [Zechariah] deve ter levado meses para criar
essa frase, nessa forma, com sua multiplicidade de significados:
na severidade aparente, na exigência de submissão a Deus,
matreiramente não identificando, porém, o nome próprio
subentendido, nem especificando o que a ruga poderia provocar
em quem. Portanto, os adolescentes organizados por Misner
que queriam mudar a frase para ‘Sede a ruga de Sua testa’ eram
mais perspicazes do que imaginavam. (MORRISON, 1998, p.
227)
26
Posteriormente, ela acrescentou: “não era a testa de Deus que tinha de ser temida. Era a
dele próprio [Zechariah], a deles próprios [fundadores de Ruby]. Seria por isso que
‘Sede a ruga de Sua testa’ os deixava loucos?”
(MORRISON, 1998, p. 251)
27
.
A leitura de Patricia, que demonstra o próprio conceito de alegoria no que tange
à pluralidade de significações, foi inspirada na obsessão dos Novos Patriarcas pela
conservação da comunidade. Um dos reflexos disso está relacionado à maneira como
Deacon e Steward se comportaram diante dos questionamentos promovidos pelos
jovens. De acordo com Deacon, “‘ninguém, e eu quero dizer ninguém mesmo, vai
mudar o Forno, nem dar a ele nenhum nome esquisito. Ninguém vai mexer com uma
coisa construída por nossos avós’” (MORRISON, 1998, p. 102)
28
. Seu irmão veio a
acrescentar à ordem que foi imposta uma espécie de ameaça: “‘se você, qualquer um de
26
Texto original: “More than a rule. A conundrum: ‘Beware the Furrow of His Brow,’ in which the ‘You’
(understood), vocative case, was not a command to the believers but a threat to those who had disallowed
them. It must have taken him months to think up those words just so to have multiple meanings: to
appear stern, urging obedience to God, but slyly not identifying the understood proper noun or specifying
what the Furrow might cause to happen or to whom. So the teenagers Misner organized who wanted to
change it to ‘Be the Furrow of His Brow” were more insightful than they knew”. (MORRISON, 1998, p.
195)
27
Texto original: “it wasn’t God’s brow to be feared. It was his own, their own. Is that why ‘Be the
Furrow of His Brow’ drove them crazy?” (MORRISON, 1998, p. 217)
28
Texto original: “‘nobody, I mean nobody, is going to change the Oven or call it something strange.
Nobody is going to mess with a thing our grandfathers built’”. (MORRISON, 1998, p. 85)
37
vocês, ignorar, mudar, tirar ou aumentar uma palavra da boca daquele Forno, eu
arrebento a sua cabeça como se fosse uma cobra’” (MORRISON, 1998, p. 104)
29
. Em
contraposição, o reverendo Misner buscou alertar os gêmeos quanto a esse pensamento:
“parece-me, Deek, que eles [os jovens] estão mostrando respeito. É por saberem o valor
do Forno que querem lhe dar nova vida” (MORRISON, 1998, p. 103)
30
. Tal comentário
de Misner nos remete novamente à concepção benjaminiana da tradução como busca de
atualização do sentido, uma vez que é historicamente motivada.
A preocupação dos Novos Patriarcas com relação ao comportamento dos jovens,
que conduziu os primeiros à imposição de sua interpretação aos rastros da mensagem do
Forno, explica-se pelo fato de esses habitantes mais antigos visarem à conservação do
que as gerações passadas haviam lutado para construir, suprimindo, portanto, qualquer
tentativa de mudança em Ruby. Dessa forma, esses moradores seriam semelhantes ao
Príncipe, no âmbito do drama barroco alemão.
O Príncipe, juntamente com o cortesão e a corte constituem os elementos
estruturais do drama barroco, com diferentes papéis. O primeiro detém poderes
ditatoriais por meio dos quais pretende instaurar a ordem no reino. Assim, ele é visto
como “o senhor das criaturas, mas permanece ele próprio uma criatura” (BENJAMIN,
1984, p. 108). O Príncipe seria, portanto, tirano e mártir. Como tirano, comporta-se de
forma autoritária, o que, paradoxalmente, desperta compaixão, uma vez que o nobre é a
maior vítima do destino natural imposto pela história. Isso se justifica pela desproporção
entre a sua posição hierárquica e “a miséria de sua condição humana” (BENJAMIN,
1984, p. 94). Para o Príncipe, o luto é um sentimento constante: como tirano, está
ameaçado pela conspiração e pelo atentado e como mártir vê-se fadado ao sofrimento.
29
Texto original: “‘if you, any one of you, ignore, change, take away, or add to the words in the mouth of
that Oven, I will blow your head off just like you was hood-eye snake’”. (MORRISON, 1998, p. 87)
30
Texto original: “‘seems to me, Deek, they are respecting it. It’s because they do know the Oven’s value
that they want to give it new life’”. (MORRISON, 1998, p. 86)
38
Os Novos Patriarcas de Ruby, como tiranos, ao imporem uma significação às
palavras do Forno, tinham como objetivo manter o caráter imutável da cidade. Parar
Ruby no tempo fazia parte de sua natureza, pois esses antigos habitantes, que tinham
conhecimento da vida em isolamento dos demais membros da sociedade, eram mártires
sofriam a história e estavam condenados ao luto, principalmente se seu projeto com
relação a Ruby fosse destruído.
Outro elemento do drama barroco alemão apontado por Benjamin é o cortesão.
Assim como o Príncipe, ele apresenta características ambíguas: é intrigante e santo.
Como intrigante, de início mostra-se fiel conselheiro do Príncipe e o auxilia no combate
à catástrofe. Porém, trai seu senhor e passa a ser aliado da anarquia natural, contra a
qual o Príncipe deve lutar. Essa atitude está relacionada à sua fidelidade às criaturas e à
lei do destino e ao seu questionamento diante da arrogância do Príncipe na instauração
de um estado imutável, distante da influência da história-natureza. Em contrapartida, o
cortesão revela uma faceta de santo ao conhecer os homens e renunciar às paixões, o
que desencadeia nele uma inalterável sensação de luto.
Em Paraíso, os questionamentos dos jovens vieram à tona devido ao
incentivo por parte do reverendo Misner. Antes de chegar a Ruby, o religioso havia
abandonado uma igreja em que fazia “reuniões secretas para agitar o pessoal; mais
confrontos do que negociações com a lei branca” (MORRISON, 1998, p. 71)
31
. Sua
opinião era a de que os negros deveriam lutar contra a segregação racial, pois só através
desse movimento é que ela caminharia para a dissolução. Essa visão se distancia da
filosofia de vida passada de geração para geração em Ruby. Mesmo assim, apesar
dessas diferenças, os irmãos Morgan “avaliavam cuidadosamente as opiniões do
31
Texto original: “covert meetings to stir folks up; confrontations with rather than end runs around white
law”. (MORRISON, 1998, p. 56)
39
reverendo Misner para descobrir quais recomendações podiam ser ignoradas e quais
ordens tinham de obedecer” (MORRISON, 1998, p. 71)
32
.
Nesse sentido, ao compararmos Misner à figura do cortesão, podemos verificar
algumas coincidências. Como santo, Misner conhecia a natureza humana. Como
intrigante, oferecia conselhos aos Novos Patriarcas, auxiliando na vida da comunidade.
Todavia, ao confrontar seus ideais com os dos fundadores, ele verificou que o
isolamento de Ruby reforçaria a exclusão social dos negros. É por pensar dessa
forma que o reverendo conduziu os moradores mais novos a ponderarem sobre a
renovação da cidade. Eis a idéia de um dos jovens: “Ele [Roy] disse que estavam muito
atrasados; que as coisas tinham mudado em toda parte, menos em Ruby” (MORRISON,
1998, p. 123)
33
.
O reverendo Pulliam, que apoiava o projeto dos Novos Patriarcas, enxergava
Misner como um traidor, pois vivia “tentando os jovens a saírem da muralha, para além
dos limites da cidade, liderando-os, forçando-os a transgredir, a pensarem em si mesmos
como guerreiros civis” (MORRISON, 1998, p. 170)
34
. É essa atitude que Steward não
conseguia compreender: “a questão não era se deviam ou não mudar a inscrição, mas
sim saber o que o reverendo Misner ganhava ao estimular essa idéia” (MORRISON,
1998, p. 111)
35
. A insatisfação com o comportamento de Misner se baseava no fato de
os Novos Patriarcas levarem em consideração uma história de lutas e sofrimentos, que
deveria ser valorizada. Na visão de Steward, os jovens “não tinham a menor noção do
32
Texto original: “sorted Reverend Misner’s opinion carefully to judge which were recommendations
easily ignored and which were orders they ought to obey”. (MORRISON, 1998, p. 57)
33
Texto original: “He said they were way out-of-date; that things had changed everywhere but in Ruby”.
(MORRISON, 1998, p. 104)
34
Texto original: “tempting the young to step outside the wall, outside the town limits, shepherding them,
forcing them to transgress, to think of themselves as civil warriors”. (MORRISON, 1998, p. 145)
35
Texto original: “the point was not why it should or should not be changed, but what Reverend Misner
gained by instigating the idea”. (MORRISON, 1998, p. 94)
40
sacrifício que fora construir aquela cidade. Do quanto eram resguardados. De quantas
humilhações haviam sido poupados” (MORRISON, 1998, p. 111)
36
.
Misner, por sua vez, tinha noção do desequilíbrio que causou à cidade com suas
ações. Apesar disso, sua ausência de conformismo com relação à situação que os Novos
Patriarcas teimavam em estabelecer em Ruby pode ser observada nas seguintes
palavras:
Ele [Misner] não podia deixar de admitir que sem a sua
presença provavelmente não teria havido disputa, nem punhos
pintados, nem discussões sobre palavras perdidas na boca de
um Forno. E nenhum boato sobre reuniões realizadas por ele,
com dez, doze jovens. Tampouco teria havido qualquer
antagonismo público, muito menos físico, entre negociantes. E
absolutamente nenhum fugitivo. Nada de bebida. Mesmo
admitindo sua parte no esgarçamento da cidade, Misner ficava
insatisfeito. Por que essa teimosia, essa vontade com a
defesa de direitos e a ampliação do papel dos negros?
(MORRISON, 1998, p. 188)
37
A revolta de Misner parece desvelar uma sensação de luto, semelhante à peculiaridade
pertinente à faceta de santo do cortesão, uma vez que seus pensamentos se deparavam
com uma grande barreira por parte dos Novos Patriarcas.
A corte é o elemento que fecha a cadeia que estrutura o drama barroco alemão.
Segundo Benjamin, a corte é o local da salvação, através do qual o Príncipe visa a
proteger seus súditos da destruição provocada pelo curso da história. Nessa perspectiva,
constrói-se uma imagem paradisíaca, reduto em que o tempo não exerce seu poder.
Porém, a corte se caracteriza como o espaço mais subestimado às leis da natureza por
meio da conspiração e da rebeldia dos indivíduos, que resultarão na guerra civil. Assim,
36
Texto original: “had no notion of what it took to build this town. What they were protected from. What
humiliations they did not have to face”. (MORRISON, 1998, p. 93)
37
Texto original: “He could not help admitting that without his presence there would probably be no
contention, no painted fists, no quarrels about missing language on an oven’s lip. No warnings about
meetings he held with a dozen or so young people. Certainly no public, let alone physical, antagonism
between businessmen. And absolutely no runaways. No drinking. Even acknowledging his part in the
town’s unraveling, Misner was dissatisfied. Why such venom against asseting rights, claiming a wider
role in the affairs of black people?” (MORRISON, 1998, p. 161)
41
“a imagem da corte não é muito diferente da imagem do inferno, que de resto foi
chamado o lugar da eterna tristeza” (BENJAMIN, 1984, p. 167).
Ruby, então, pode ser comparada à corte. A manutenção de seu isolamento por
parte de seus fundadores visava a garantir que os habitantes não viessem a sofrer o
mesmo tipo de discriminação que ocorreu com seus antepassados. Trata-se de um
espaço em que a imagem do paraíso fazia-se presente. Todavia, a comunidade estava
submetida à influência do tempo histórico e, por isso, carecia de mudanças. Logo, a
partir da rebeldia dos jovens em busca da renovação, Ruby perdeu o caráter paradisíaco
e passou a representar a corte em seu estado infernal.
Tanto o Príncipe como o cortesão e a corte são constituídos sob uma tensão entre
dois extremos, o que confere a eles um caráter melancólico. Um desses extremos
representará a história-natureza e o outro fará parte da anti-história. Desse modo, no
primeiro quadro, o mártir sofre as investidas da história, o intrigante se porta como
agente da catástrofe e a corte é o ambiente infernal, onde a história atua com toda sua
perversidade. Por outro lado, no segundo contexto, o tirano age com o intuito de
naturalizar a história, o santo oferece conselhos ao Príncipe e a corte vem a se
identificar com o paraíso.
No contexto de Paraíso, a história-natureza é representada quando os jovens
entraram em conflito com os habitantes mais antigos, questionando o isolamento da
comunidade e, portanto, sua exclusão dos acontecimentos históricos. Esse quadro se
distancia da Ruby que antes seria a encarnação da anti-história, uma vez que sua
condição paradisíaca, sustentada de maneira impositiva por parte dos Novos Patriarcas,
apenas persistia à custa da inexistência de qualquer tipo de relacionamento com a
sociedade em geral.
42
As diferentes maneiras de percepção do passado por parte dos moradores de
Ruby se vinculam a alguns aspectos presentes no texto benjaminiano “Sobre o conceito
de história” (1987). Para ilustrar de que forma concebe a história, Benjamin se vale da
imagem do anjo presente no quadro Angelus novus, de Paul Klee:
Seu rosto [do anjo] está dirigido para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do
paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não
pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente
para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado
de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
progresso. (BENJAMIN, 1987, p. 226)
Nessa imagem, destaca-se um momento de destruição, de desestruturação. O anjo
contempla o passado, composto por ruínas. Essas ruínas, por sua vez, representam os
despojos dos vencidos. Logo, para Benjamin, a história deve se distanciar de uma
estrutura linear, marcada por eventos claramente encadeados. Além disso, a história
oficial deve ser questionada, uma vez que é contada pelos vencedores e não pelos
vencidos. Em Paraíso, Morrison faz um recorte na história dos Estados Unidos,
selecionando o período que se estende do pós-Guerra Civil até meados da década de 70
do século XX. A partir disso, conta a saga de um grupo de ex-escravos, os vencidos, em
busca de um refúgio contra a segregação racial a partir das vozes dos próprios negros,
oprimidos por uma sociedade eminentemente branca.
Na visão benjaminiana, “a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à
da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em
coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção”
(BENJAMIN, 1987, p. 223). Assim, em Paraíso, ao protegerem Ruby da influência
histórica, os Novos Patriarcas objetivavam salvar, redimir o que seus antepassados
43
vivenciaram e construíram com muita dificuldade. No entanto, surge a seguinte
pergunta: o que realmente aconteceu no passado?
Deacon e Steward nasceram em 1924, trinta e quatro anos após a fundação de
Haven, e “durante vinte anos ouviram contar como tinham sido os quarenta anos
anteriores. Ouviam, imaginavam e lembravam cada coisa” (MORRISON, 1998, p. 26)
38
.
A partir disso é que eles criaram uma imagem do passado. Essa atitude se vincula ao
comentário de Benjamin que diz: “Articular historicamente o passado não significa
‘conhecê-lo como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal
como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1987, p. 224).
Logo, o passado, que poderia voltar ao presente simplesmente em forma de
lembranças, foi apropriado pelos Novos Patriarcas, notadamente por Deacon e Steward,
de uma maneira que eles pareciam querer repetir, reproduzir a história das gerações
anteriores. Tal desejo é destacado por Misner:
Insistentemente e ao menor estímulo, estavam sempre
desenterrando histórias dos antepassados, de seus avós e
bisavós, de seus pais e mães. [...] Mas por que não havia
histórias deles próprios para contar? Calavam-se sobre a própria
vida. Não tinham nada a dizer, passavam em branco. Como se o
heroísmo passado fosse suficiente para viver o futuro. Como se,
mais do que filhos, quisessem duplicatas. (MORRISON, 1998,
p. 188)
39
Ao agirem dessa forma, os Novos Patriarcas foram marcados pela melancolia, aspecto
esse presente no próprio anjo benjaminiano, segundo argumenta Lages, em Tradução e
melancolia (2002):
38
Texto original: “heard for twenty years what the previous forty had been like. They listened to,
imagined and remembered every single thing”. (MORRISON, 1998, p. 16)
39
Texto original: “Over and over and with the least provocation, they pulled from their stock of stories
tales about the old folks, their grands; their fathers and mothers.[…] But why were there no stories to tell
of themselves? About their own lives they shut up. Had nothing to say, pass on. As though past heroism
was enough of a future to live by. As though, rather than children, they wanted duplicates”.
(MORRISON, 1998, p. 161)
44
O olhar fixo do anjo corresponde à fixidez que caracteriza o
impulso melancólico, quando excessivamente preso ao que
passou, àquilo que não mais possui vida, ao passado não
como fonte de recordações, lembranças positivamente
investidas, potencialmente atualizáveis no presente e no futuro,
mas o passado como tempo esvaziado pela experiência da
morte, como cristalização de múltiplas ausências. (LAGES,
2002, p. 150)
Os jovens, em contraposição, a princípio pareciam desprezar o passado. No
entanto, o que eles fizeram foi se apropriarem de uma reminiscência do passado,
reminiscência essa baseada na visão defendida pela geração anterior para, a partir disso,
atualizarem a história da comunidade. Tal comportamento vem ao encontro da idéia de
que é preciso estabelecer uma conexão entre passado e presente. Isso se verifica na
seguinte afirmação de Gagnebin (2004b): “A restauração da origem não pode cumprir-
se através de um suposto retorno às fontes, mas, unicamente, pelo estabelecimento de
uma nova ligação entre o passado e o presente” (GAGNEBIN, 2004b, p. 16).
No contexto de Ruby, portanto, os rastros presentes na placa do Forno
receberam diferentes interpretações de acordo com os pensamentos de seus moradores.
O objetivo dos Novos Patriarcas ao imporem “Temei a ruga de Sua testa” como única
leitura possível seria o de manter a estabilidade da comunidade, contrariando o curso da
história. Por outro lado, com a proposta “Sede a ruga de Sua testa”, os jovens
procuraram renovar a mensagem do Forno, atualizando-a em função dos novos tempos.
Essa renovação não foi definitiva, uma vez que, posteriormente, “os jovens tinham
mudado as palavras de novo. Não se chamavam mais de Sede a ruga de Sua testa. O
grafite na tampa do Forno agora dizia ‘Nós somos a ruga de Sua testa’” (MORRISON,
1998, p. 342)
40
. Logo, ao proporem uma outra interpretação para os fragmentos da
mensagem sobre o Forno, os jovens de Ruby estariam se ajustando a uma nova
40
Texto original: “the young people had changed its words again. No longer were they calling themselves
Be the Furrow of His Brow. The graffiti on the hood of the Oven now was ‘We Are the Furrow of His
Brow’”. (MORRISON, 1998, p. 298)
45
circunstância imposta pelos Novos Patriarcas à história dessa comunidade a partir de
um ato de violência, do qual trataremos no capítulo seguinte.
46
CAPÍTULO 2
O OUTRO EM PARAÍSO
Neste capítulo, objetivamos analisar a relação dos Novos Patriarcas com os
indivíduos que transitavam fora do universo de Ruby, bem como a sua convivência com
os demais membros da comunidade em questão. No que diz respeito ao primeiro caso,
47
buscamos focalizar um grupo de mulheres que habitava um local próximo, conhecido
como Convento. Dessa forma, procuramos nos aproximar da visão de Jacques Derrida
(2003, 2004a, 2004b) sobre a hospitalidade, da discussão de Julia Kristeva (1994)
acerca do estrangeiro e da abordagem de Amós Oz (2004) no que concerne ao
fanatismo.
A escolha dos autores mencionados está vinculada não à temática explorada
em suas obras, como também ao contexto em que estão inseridos. Com relação a
Jacques Derrida, ele nasceu na Argélia, colônia francesa na África, em 1930. Filho de
pais judeus, acompanhou durante sua infância e adolescência a colonização e a guerra
presentes em seu país. Anos mais tarde, mudou-se para a França, onde desenvolveu sua
carreira acadêmica, e tornou-se renomado professor, ministrando palestras em
universidades da Europa e dos Estados Unidos. Além disso, Derrida publicou um
considerável número de livros e artigos, entre os quais foram traduzidos para a língua
portuguesa títulos como A escritura e a diferença (1995), A farmácia de Platão (1997) e
Gramatologia (1999). Um dos temas dos quais Derrida se ocupou nos últimos anos que
antecederam a sua morte, em 2004, foi a hospitalidade, abordada em obras como Da
hospitalidade (2003) e Papel-máquina (2004b).
Julia Kristeva, assim como Derrida, tem a França como seu lócus de enunciação,
apesar de não ser natural dessa nação. Psicanalista e professora de Lingüística da
Universidade de Paris, Kristeva nasceu na Bulgária em 1941 e nos anos de 1960 partiu
para a capital francesa. Lá, desafiou os círculos acadêmicos notadamente masculinos e
passou a escrever textos teóricos e ficcionais em que questões referentes ao estrangeiro
são um dos assuntos desenvolvidos. Entre suas produções estão Sol negro: depressão e
melancolia (1989), Os samurais (1996), e O velho e os lobos (1999), traduzidas no
Brasil.
48
Amós Oz, por sua vez, é um escritor e jornalista judeu nascido em Jerusalém, em
1939. Logo, ele advém de um espaço marcado pelos conflitos entre israelenses e
palestinos, posicionando-se a favor da criação de dois estados como solução para os
problemas que afligem a sua região. Autor comprometido com o processo de paz em
questão, tendo sido membro do movimento israelense “Paz agora”, Oz se inspira no seu
lócus de enunciação para produzir não textos críticos como também romances entre
os quais se encontram Conhecer uma mulher (1992), Fima (1996), Pantera no porão
(1999) e De amor e trevas (2005), todos eles traduzidos para a língua portuguesa.
Nesse sentido, apesar de Derrida e Kristeva proferirem suas vozes fora de seus
locais de origem e de Oz se manifestar a partir de sua própria terra, eles revelam uma
preocupação semelhante: refletem sobre a maneira como deveríamos ver o outro, o
estrangeiro, e recebê-lo em nosso contexto, sugerindo como proposta o diálogo, a
reconciliação. Dessa forma, os três estudiosos demonstram sua atenção a questões que
atingem a humanidade nos dias atuais, procurando trazer para o conjunto de teorias
estabelecidas uma nova perspectiva.
2.1 – O CONVENTO: ESPAÇO DE HOSPITALIDADE
No final do primeiro capítulo desta dissertação, fizemos referência ao romance
Paraíso com o intuito de mencionarmos um episódio relativo aos jovens de Ruby: a
proposição da frase “Nós somos a ruga de Sua testa” como uma interpretação diferente
dos resquícios escriturais concernentes à placa sobre o Forno. Essa interpretação surgiu
após a população da cidade ter sido surpreendida por um ato violento arquitetado, em
grande parte, pelos Novos Patriarcas. Em uma manhã ensolarada do mês de julho de
1976, Deacon, Steward e mais sete homens saíram de Ruby carregando objetos como
cordas, algemas e armas e seguiram rumo a um lugar situado a vinte e sete quilômetros
49
de distância da comunidade o Convento. Ali viviam cinco mulheres: Consolata,
Mavis, Grace, Seneca e Pallas. Ao chegarem à casa mencionada, eles atiraram em uma
delas. Nesse momento, três mulheres estavam na cozinha e ouviram os disparos.
Percebendo que estavam encurraladas, elas se prepararam para enfrentar o perigo e, ao
se verem de frente com os homens armados que invadiram o Convento, não hesitaram
em lutar contra eles: jogaram um cinzeiro em Arnold, atingiram o pulso de Jeff com um
taco de bilhar, bateram uma frigideira na cabeça de Harper, enfiaram uma faca no
ombro de Menus. Em seguida, correram em direção ao jardim e conseguiram escapar.
Mas ainda havia uma mulher na casa: Consolata, cujo apelido era Connie. Esta estava
dormindo, contudo, ao ouvir passos na escada, saiu do quarto e se deparou com um
corpo ensangüentado, caído no chão. Ela verificou que a veia do pescoço da vítima
ainda estava pulsando, porém a respiração era fraca. De repente, Connie se surpreendeu
com a presença de Deacon, com quem havia tido um relacionamento no passado:
“‘Você voltou’”, ela diz e sorri. [...] [Deacon] levanta a mão para deter o irmão e
descobre qual dos dois é mais forte. A bala entra na testa dela” (MORRISON, 1998, p.
332)
41
.
Antes de investirem contra essas mulheres, os homens de Ruby, ao adentrarem o
Convento, descobriram alguns fatos estranhos: elas não dormiam em camas, mas em
redes, e seus quartos eram mobiliados apenas com uma escrivaninha ou uma mesa-de-
cabeceira. Além disso, chamaram-lhes a atenção:
Um calendário de 1968, com grandes X marcando várias datas
(4 de abril, 19 de julho); uma carta escrita com sangue, tão
borrada que não para decifrar a mensagem satânica; um
mapa astrológico; um chapéu jogado em cima do pescoço de
um busto feminino de plástico, e, num lugar que antes abrigara
41
Texto original: “‘You’re back’, she says and smiles [...]. He lifts his hand to halt his brother’s and
discovers who, between them, is the stronger man. The bullet enters her forehead”. (MORRISON, 1998,
p. 289)
50
cristãos, ou católicos, pelo menos, nenhuma cruz de Cristo em
parte alguma. (MORRISON, 1998, p. 16)
42
Esse foi o cenário encontrado por aqueles que viviam isolados em Ruby. No passado,
porém, durante os anos 30 e 40 do século XX, tal ambiente apresentava outra imagem,
uma vez que ele funcionava como uma escola para garotas índias. Tratava-se da “Escola
Cristo Rei para Meninas Nativas”, mas todos, sem nenhuma razão aparente, referiam-se
ao lugar como Convento, nome que acabou sendo conservado ao longo dos anos. As
quatro professoras da escola eram freiras e se mudaram para a mansão quando ela foi
posta à venda por um preço muito baixo. Desse modo, a sala de jantar se transformou
em sala de aula, a sala de estar em capela e o salão de jogos em escritório. Entretanto,
alguns traços da antiga decoração da casa, que havia pertencido a um bandido,
acabaram permanecendo: tanto os candelabros pendurados no teto do saguão de entrada
quanto as maçanetas, por exemplo, tinham forma de seios, aspecto que chocou os
homens de Ruby no momento em que invadiram o Convento.
O tempo se passou e, na década de 1950, a “Escola Cristo Rei para meninas
nativas” deixou de receber jovens índias para ser um abrigo de garotas transviadas
mandadas pelo Estado. Todavia, os recursos para manter esse trabalho começaram a
ficar escassos e o Convento acabaria tendo suas portas fechadas. A fim de que isso não
fosse concretizado, as participantes do projeto foram realocadas, com exceção de
Connie, Mary Magna e Irmã Roberta. Estas puderam continuar no local, produzindo e
vendendo alimentos como pimenta, ovos, molhos, geléias e pães europeus, uma vez que
Sargeant Person, morador de Ruby, propôs-se a arrendar uma parte das terras delas para
plantação.
42
Texto original: “A 1968 calendar, large X’s marking various dates (April 4, July 19); a letter written in
blood so smeary its satanic message cannot be deciphered; an astrology chart; a fedora tilted on the
plastic neck of a female torso, and, in a place that once housed Christians well, Catholics anyway not
a cross of Jesus anywhere”. (MORRISON, 1998, p. 7)
51
Entre as três mulheres em questão, Connie pertencia ao contexto do Convento
não porque era freira, mas sim por ter sido tirada das ruas de um país sul-americano por
Mary Magna, no ano de 1925, aos nove anos de idade, e criada pela mesma desde então.
Na verdade, Mary Magna havia recolhido mais duas crianças na época, porém decidiu
deixá-las em um orfanato e ficar apenas com Connie, pois havia se apaixonado por ela:
“Por causa dos olhos verdes? Do cabelo cor de chá? Talvez pela docilidade dela? Quem
sabe por causa da pele esfumaçada, crepuscular?” (MORRISON, 1998, p. 258)
43
.
Connie, desde pequena, foi ensinada a ter uma vida dedicada à religião: “Durante trinta
anos ofereceu seu corpo e sua alma ao Filho de Deus e à Sua Mãe, tão completamente
quanto se tivesse tomado o véu ela própria [...]. E aqueles trinta anos de submissão ao
Deus vivo partiu-se como um ovo quando ela encontrou o homem vivo” (MORRISON,
1998, p. 260)
44
. Esse “homem vivo” seria Deacon, que era casado com Soane, mas em
1954 acabou se envolvendo com Connie. Esta, na época com trinta e nove anos,
aventurava-se em encontros escondidos com seu amante em uma casa que havia sido
incendiada.
Em uma das datas marcadas para o casal se encontrar, depois de esperar por
Deacon durante longas horas, Connie avistou um caminhão. Ele parou e ela subiu. Ao
perceber o semblante de espanto de Connie, o homem que estava dirigindo aproximou-
se dela e “ela recuou, olhando o rosto exato dele, repelida mas presa pelos olhos dele,
castos e arregalados de ódio” (MORRISON, 1998, p. 271)
45
. O motorista era Steward.
Na semana seguinte, após terem esclarecido o mal-entendido, Deacon e Connie foram
ao seu local de encontro, o qual não era mais tão seguro. Isso fez com que ela
43
Texto original: “The green eyes? the tea-colored hair? maybe her docility? Perhaps her smoky,
sundown skin? (MORRISON, 1998, p. 223)
44
Texto original: “For thirty years she offered her body and her soul to God’s Son and His Mother as
completely as if she had taken the veil herself […]. And those thirty years of surrender to the living God
cracked like a pullet’s egg when she met the living man”. (MORRISON, 1998, p. 225)
45
Texto original: “She backed away, staring at the exact face of him, repelled by but locked into his eyes,
chaste and wide with hatred”. (MORRISON, 1998, p. 235)
52
convidasse seu amante para ir ao Convento. Ele pensou na sugestão, mostrou-se
satisfeito e Connie, em um ato impulsivo, mordeu seu lábio. Depois disso, Deacon
nunca mais apareceu. Connie, então, passou a refletir sobre sua própria postura diante
da vida: “De Cristo, a quem se dava submissão total e depois se engolia a idéia de Sua
carne, para um homem vivo. Vergonha. Vergonha sem culpa” (MORRISON, 1998, p.
276)
46
.
Decorrido o episódio, certo dia uma mulher apareceu na cozinha do Convento e
revelou a Connie o que a havia conduzido até lá: estava grávida e queria ajuda para
cometer aborto por ter dois filhos. Connie não demorou a reconhecê-la como Soane.
Ela, então, negou auxílio a Soane e depois veio a saber que a mesma tinha perdido o
bebê. Algum tempo depois, Connie acabou ajudando Scout, um dos filhos de Deacon e
Soane, a sobreviver após ter se envolvido em um acidente. Graças a esse gesto, a esposa
de Deacon, que sabia do envolvimento de Connie com seu marido no passado e se
decepcionara com ela por não tê-la ajudado a cometer aborto, deixou os ressentimentos
de lado e estabeleceu um laço de amizade com a habitante do Convento. Esse fato
aconteceu no final da década de 1960, período em que Mary Magna tinha adoecido. Em
retribuição a todo amor e carinho recebidos da mãe adotiva, Connie passou a cuidar dela
com a maior dedicação, que não mais podia contar com a ajuda de Irmã Roberta, que
havia se mudado para um asilo. Logo, Connie e Mary Magna ficaram sozinhas no
Convento. Mas não por muito tempo.
Certo dia, enquanto Connie dedicava-se aos cuidados com sua mãe, uma mulher
chamada Mavis Albright recorreu a ela para pedir ajuda, pois seu Cadillac havia
quebrado ali perto. Connie a convidou para entrar e ofereceu-lhe algo para beber, sem
ao menos perguntar o seu nome. Mavis é quem se preocupou com esse detalhe:
46
Texto original: “From Christ, to whom one gave total surrender and then swallowed the idea of His
flesh, to a living man. Shame. Shame without blame”. (MORRISON, 1998, p. 240)
53
“Esqueci de perguntar seu nome. O meu é Mavis Albright.”
“Me chamam de Connie”. (MORRISON, 1998, p. 53)
47
Após algum tempo de conversa, Connie deixou Mavis descascando pecãs e voltou a
cuidar de Mary Magna. De repente, a visitante escutou um barulho de carro parando e
viu entrar na cozinha uma mulher de pele escura – Soane. Esta se assustou ao se deparar
com uma pessoa estranha no Convento. Connie logo chegou, abraçou-a longamente e
apresentou as duas desconhecidas uma para a outra, explicando a Soane os motivos que
conduziram Mavis até o local. Mais tarde, Mavis aproveitou a carona de Soane até um
posto de gasolina de Ruby e, ao chegarem lá, verificou que não havia brancos na cidade.
Resolvido o problema com seu automóvel, Mavis voltou ao Convento e acabou
permanecendo na casa. Ela resolveu tomar essa atitude pois estava em uma situação de
perigo: era acusada de ter assassinado dois de seus quatro filhos, Merle e Pearl, quando
um dia foi comprar salsichas e deixou os vidros do Cadillac fechados. Os bebês não
resistiram. A imprensa divulgou o caso e ela sentiu que seu marido Frank e seus dois
outros filhos, Sal e Frankie, queriam matá-la. Como estava com medo, saiu de casa e,
após passar uma temporada com sua mãe, decidiu seguir para a Califórnia, até que
encontrou o Convento.
Passado certo período residindo no local mencionado, Mavis se ausentou para
fazer compras e, quando voltou, “entrou na rampa, perto da porta da cozinha, pisou no
freio com tanta força que os pacotes escorregaram do banco e caíram debaixo do painel”
(MORRISON, 1998, p. 92)
48
. Isso ocorreu porque ela se assustou ao ver uma mulher
inteiramente nua sentada no jardim. Seu nome era Grace, que gostava de ser chamada
de Gigi. Gigi havia chegado a Ruby procurando por um motel. O modo de se vestir
47
Texto original: “‘I forgot to ask your name. Mine’s Mavis Albright.’
‘People call me Connie’”. (MORRISON, 1998, p. 38)
48
Texto original: “pulled into the driveway, near the kitchen door, she slammed the brakes so hard her
packages slid from the seat and fell beneath the dashboard”. (MORRISON, 1998, p. 75)
54
calças muito justas e saltos extremamente altos havia chamado a atenção do sobrinho
de Deacon e Steward, K.D, que ele nunca havia visto uma mulher andar e rebolar de
forma tão intensa. Um morador da cidade, Roger Best, dono de um serviço funerário,
estava se dirigindo ao Convento e ofereceu carona a Gigi. Ela estava sozinha no mundo:
“Sua mãe, impossível de localizar; o pai, no corredor da morte. Só sobrava um avô, num
trailer bacana em Alcorn, Mississippi” (nossa tradução)
49
. Ao chegar ao Convento, Gigi
observou que tinha sido preparada uma grande quantidade de comida. Era para o velório
de Mary Magna, que não havia resistido à doença. Quando Connie apareceu na cozinha,
ela não se importou com a presença da desconhecida e ainda pediu a ela que tomasse
conta da casa, pois iria descansar. De visitante, Gigi passou a ser mais uma moradora do
Convento.
Depois de Mavis e Gigi, Seneca seria a próxima abrigada na casa. Após ter sido
abandonada pela irmã que a criava, ela passou por mais de um lar adotivo e sofreu
abuso sexual. Traumatizada, desenvolveu o hábito de cortar sua própria pele: “O truque
era cortar na profundidade exata. Não leve demais se não o corte fazia uma linha
vermelha muito clara. Nem fundo demais a ponto de ele ficar saliente e esguichar tão
depressa que não dava para ver a rua” (MORRISON, 1998, p. 298)
50
. Seneca namorava
um presidiário, Eddie Turtle, e não tinha lugar para morar. Costumava pegar carona,
indo de um lugar para outro. Numa dessas vezes, avistou uma garota, Sweetie, andando
sozinha na estrada, e resolveu segui-la. Sweetie, que era habitante de Ruby, queria
apenas fugir um pouco de sua rotina doméstica: era casada e tinha quatro crianças
deficientes. Seneca e Sweetie acabaram se dirigindo ao Convento e foram recebidas por
Mavis e Gigi, que, ao verem o estado de fraqueza de Sweetie, logo trataram de colocá-la
49
Texto original: “Her mother was unlocatable; her father on death row. Only a grandfather left, in a
spiffy trailer in Alcorn, Mississippi”. (MORRISON, 1998, p. 257)
50
Texto original: “The trick was to slice at just the right depth. Not too light, or the cut yielded too faint a
line of red. Not so deep it rose and gushed over so fast you couldn’t see the street”. (MORRISON, 1998,
p. 260)
55
“na cama, debaixo de tantos cobertores que a transpiração lhe entrava pelas orelhas.
Nada do que lhe ofereciam ela aceitava comer ou beber” (MORRISON, 1998, p. 151)
51
.
Sweetie acreditava que as mulheres do Convento agiam como demônios. Quando seu
marido, Jeff, descobriu onde ela estava e foi buscá-la, ouviu dela a seguinte frase: “elas
me forçaram, me arrebataram” (MORRISON, 1998, p. 153)
52
. Por outro lado, Seneca se
sentiu bem acolhida naquele ambiente e “passara acordada a noite inteira, ouvindo
Mavis e Gigi. A casa parecia pertencer a elas, embora as duas falassem de alguém
chamado Connie. Cozinhavam para ela e não espionavam” (MORRISON, 1998, p.
153)
53
. A partir de então, Seneca passou a fazer parte do contexto do Convento.
Pouco tempo depois, chegou ao local uma menina de dezesseis anos Pallas.
Ela morava com o pai e um dia decidiu levar seu namorado Carlos, alguns anos mais
velho do que ela, para conhecer sua mãe, Divine. Após alguns dias, Pallas acabou
descobrindo que os dois haviam se envolvido. Desnorteada com o acontecimento, a
jovem começou a andar sem rumo. Na estrada, ao vê-la mancando, descalça, o
motorista de um caminhão cheio de índios resolveu parar. Uma mulher perguntou para
onde ela estava indo. Pallas não tinha voz para falar e apenas apontou para a direção em
que seguia. Ela subiu no caminhão, mantendo-se o mais distante possível dos homens.
Mais tarde, foi deixada na porta de uma clínica, que estava com a saúde debilitada.
Lá, foi recebida por Billie Delia, moradora de Ruby. Esta havia passado um período no
Convento após uma briga com a mãe, Patricia Best, que acreditava que a filha tivesse se
envolvido simultaneamente com dois irmãos Brood e Apollo. Preocupada com a
recuperação de Pallas, Billie Delia a conduziu até a casa de Connie, Mavis, Gigi e
Seneca, dizendo:
51
Texto original: “in a bed under so many blankets perspiration ran into her ears. Nothing they offered
would she eat or drink”. (MORRISON, 1998, p. 129)
52
Texto original: “they made me, snatched me”. (MORRISON, 1998, p. 130)
53
Texto original: “had spent the whole night up, listening to Mavis and Gigi. The house seemed to belong
to them, although they referred to somebody named Connie. They cooked for her and didn’t pry”.
(MORRISON, 1998, p. 131)
56
Elas foram boas comigo. Melhores que...é... muito boas. Não
tenha medo. Eu tinha. Medo delas, quer dizer. Não se muita
gente como elas por aqui.’ Ela riu. ‘Meio malucas, talvez, mas
soltas, relaxadas, assim. Não se assuste se elas estiverem nuas.
Eu me assustei no começo, mas depois, não sei, não tinha mais
importância [...] você vai poder se recuperar, pensar nas
coisas, sem nada nem ninguém amolando o tempo todo. Elas
vão cuidar de você ou deixar você em paz, o que você preferir.
(MORRISON, 1998, p. 204)
54
Assim, Billie Delia deixou Pallas sob os cuidados de Mavis. Em seguida, a menina foi
apresentada a Connie, que perguntou sobre sua vida e a tratou como se fosse uma
conhecida: “Agora vá e durma. Fique o quanto quiser e me conte o resto quando quiser”
(MORRISON, 1998, p. 205)
55
. Pallas tornou-se a mais nova residente do Convento.
O tratamento dispensado por Connie às novas habitantes do Convento, que a ele
se agregaram por uma série de diferentes motivos, e aquele existente entre as próprias
mulheres permitem-nos trazer à discussão os pensamentos de Jacques Derrida acerca da
hospitalidade. Após assistir a um seminário em que o estudioso argelino falou acerca do
assunto em questão, a filósofa e psicanalista Anne Dufourmantelle solicitou-lhe a
concessão de duas dessas sessões. O pedido foi aceito e o material, reunido em livro,
recebeu como título Da hospitalidade (2003). Nessa obra, Derrida discute sobre o
direito à hospitalidade que, segundo ele, “pressupõe uma casa, uma linhagem, uma
família, um grupo familiar ou étnico recebendo um grupo familiar ou étnico”
(DERRIDA, 2003, p. 21-23). No entanto, tal ato de receber alguém de fora não ocorre
de forma simples, uma vez que alguns questionamentos surgem diante dessa situação:
54
Texto original: “‘They were nice to me. Nicer than well, very nice. Don’t be afraid. I used to be.
Afraid of them, I mean. Don’t see many girls like them out here.’ She laughed then. ‘A little nuts, maybe,
but loose, relaxed, kind of. Don’t be surprised if they don’t have on any clothes. I was, at first, but then it
was, I don’t know, nothing […]. Anyway you can collect yourself there, think things through, with
nothing bothering you all the time. They’ll take care of you or leave you alone – whichever way you want
it’”. (MORRISON, 1998, p. 176)
55
Texto original: “Go on and get some sleep now. Stay as long as you like and tell me the rest when you
want to”. (MORRISON, 1998, p. 176)
57
A hospitalidade consiste em interrogar quem chega? [...] como
te chamas? diga-me teu nome, como devo chamar-te, eu que te
chamo, que quero chamar-te pelo nome? como vou chamar-te?
É assim também que se dirige, ternamente, às crianças e aos
amados. Ou será que a hospitalidade começa pela acolhida
inquestionável, num duplo apagamento, o apagamento da
questão e do nome? É mais justo e mais amável perguntar ou
não perguntar? Chamar pelo nome ou sem o nome? Dar ou
aprender um nome dado? Oferece-se hospitalidade a um
sujeito? A um sujeito identificável? A um sujeito identificável
pelo nome? A um sujeito de direito? (DERRIDA, 2003, p. 25-
27)
Nesse conjunto de indagações envolvendo a hospitalidade promovida ao estrangeiro
estaria implícita a maneira como vemos o indivíduo que não faz parte do grupo, o que
irá determinar se haverá ou não alguma condição para que esse sujeito seja acolhido.
Na verdade, na visão de Derrida, o ideal seria que a hospitalidade fosse absoluta
ou incondicional. De acordo com o autor, “a hospitalidade absoluta exige que eu abra
minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de um nome de família, de um
estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que
eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que
ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade (a entrada num pacto), nem mesmo seu
nome” (DERRIDA, 2003, p. 23-25). Logo, ao praticarmos esse tipo de hospitalidade,
estaríamos rompendo com o próprio direito de hospitalidade, com a hospitalidade
condicional, aquela que pressupõe que consideremos a identidade do estrangeiro.
Haveria, portanto, a existência de dois pólos:
A lei incondicional da hospitalidade ilimitada (oferecer a quem
chega todo o seu chez-soi e seu si, oferecer-lhe seu próprio,
nosso próprio, sem pedir a ele nem seu nome, nem
contrapartida, nem preencher a mínima condição) e, de outro,
as leis da hospitalidade, esses direitos e deveres sempre
condicionados e condicionais, tais como os definem a tradição
greco-latina, mais ainda a judaico-cristã, todo o direito e toda a
filosofia do direito até Kant e em particular Hegel, através da
família, da sociedade civil e do Estado. (DERRIDA, 2003, p.
69)
58
Esses dois regimes de lei são interdependentes. Mesmo que a lei incondicional da
hospitalidade esteja acima das leis condicionais, de caráter restritivo, a primeira
necessita, requer e implica as outras. Trata-se, então, de sistemas “ao mesmo tempo
contraditórios, antinômicos e inseparáveis” (DERRIDA, 2003, p. 71). Segundo Derrida,
a conjunção de tais princípios da hospitalidade resultaria, simultaneamente, na seguinte
prática: “a chamada e o apelo do nome próprio em sua pura possibilidade a ti, tu
mesmo, que digo “venha”, “entre”, “sim”), e o apagamento do nome próprio (“venha”,
“sim”, “entre”, “quem quer que sejas tu e quais sejam teu nome, tua língua, teu sexo, tua
espécie, quer sejas humano, animal ou divino...)” (DERRIDA, 2003, p. 121).
No universo do Convento, as mulheres parecem ilustrar o que seria essa
hospitalidade proposta por Derrida: com relação a Mavis, antes mesmo de perguntar seu
nome, Connie demonstrou toda sua atenção a ela; no caso de Gigi, uma desconhecida,
ela não se preocupou em deixá-la tomando conta da casa enquanto iria descansar; na vez
de Seneca, no momento de sua chegada, Mavis e Gigi ofereceram-lhe uma cama para
dormir e “se comportavam como se soubessem tudo a seu respeito e estivessem
contentes de ela ficar na casa” (MORRISON, 1998, p. 153)
56
; por fim, Pallas, ao ser
apresentada a Connie por Seneca, foi surpreendida pela seguinte atitude: “Ela
estendeu a mão e Pallas foi até ela, sentou no colo dela, choramingando primeiro,
depois chorando, enquanto Connie dizia: ‘Beba um pouco disto aqui’ e ‘Que brincos
lindos’ e ‘Coitadinha, coitadinha. Magoaram a minha menina’” (MORRISON, 1998, p.
201)
57
.
56
Texto original: “behaved as though they knew all about her and were happy for her to stay”.
(MORRISON, 1998, p. 131)
57
Texto original: “‘Drink a little of this,’ and ‘What pretty earrings,’ and ‘Poor little one, poor, poor little
one. They hurt my poor little one’”. (MORRISON, 1998, p. 173)
59
As próprias mulheres de Ruby, ao recorrerem ao Convento, eram tratadas como
se fizessem parte do grupo, haja vista as visitas freqüentes de Soane, o fato de Billie
Delia ter podido ficar na casa após fugir de sua mãe e a maneira pela qual Sweetie
recebeu cuidados por parte de Mavis e Gigi. Portanto, o comportamento das moradoras
do Convento, notadamente o de Connie, “essa velha dama doce e nada ameaçadora que
parecia amar cada uma delas mais que a outra, que não criticava nunca, que repartia
tudo mas exigia pouca ou nenhuma atenção, que não exigia nenhum investimento
emocional, que ouvia, que não trancava nenhuma porta e aceitava cada uma como era”
(MORRISON, 1998, p. 300)
58
, assemelha-se ao que Derrida considera como modelo de
postura diante dos que advêm de um contexto diferente: “Digamos sim ao que chega,
antes de toda determinação, antes de toda antecipação, antes de toda identificação, quer
se trate ou não de um estrangeiro, de um imigrado, de um convidado ou de um visitante
inesperado, quer o que chega seja ou não cidadão de um outro país, um ser humano,
animal ou divino, um vivo ou um morto, masculino ou feminino” (DERRIDA, 2003, p.
69).
Giovana Cordeiro Campos, em sua dissertação de mestrado intitulada For whom
the bell tolls, de Ernest Hemingway, e suas traduções no contexto brasileiro (2004),
apóia-se nas reflexões de Paul Ilie (1980) para escrever a respeito do exílio interior.
Segundo a autora, quando um indivíduo apresenta uma sensação de estranhamento com
relação aos valores dominantes, este é caracterizado por um exílio interior. Tal estado
de espírito surgiria antes mesmo de o deslocamento espacial ser concretizado.
Em Paraíso, Mavis, Gigi, Seneca e Pallas sentiam-se diferentes, angustiadas nos
espaços que lhes eram próprios. Essa condição acabou as conduzindo até o Convento,
local em que foram recebidas com a hospitalidade característica de Connie, “essa mãe
58
Texto original: “this sweet, unthreatening old lady who seemed to love each one of them best; who
never criticized, who shared everything but needed little or no care; required no emotional investment;
who listened; who locked no doors and accepted each as she was”. (MORRISON, 1998, p. 262)
60
ideal, amiga, companheira, ao lado de quem estavam protegidas de qualquer ameaça”
(MORRISON, 1998, p. 300)
59
e que, em determinada ocasião, afirmou que “‘se tem um
lugar [...] em que deviam estar e alguém que ama vocês esperando lá, vão embora. Se
não, fiquem aqui e me sigam” (MORRISON, 1998, p. 300)
60
. Eis a decisão das novas
moradoras do Convento: continuar no ambiente em que foram abrigadas, uma vez que
“não podiam ir embora do único lugar de que tinham liberdade para ir embora”
(MORRISON, 1998, p. 301)
61
.
Nesse sentido, antes de as habitantes do Convento permanecerem isoladas da
sociedade, elas foram marcadas por um exílio interior, que, de acordo com Campos,
“este indivíduo sente a necessidade de expressar sua diferença, ou seja, o exilado
começa a expressar concretamente o seu novo ideário e a se reconhecer como estranho e
exilado frente ao olhar da maioria, que não compartilha de seus novos valores”
(CAMPOS, 2004, p. 39-40). No Convento, as mulheres viviam sozinhas, sem a
necessidade da presença masculina, o que intrigava alguns dos membros de Ruby.
2.2 – O TRATAMENTO DE RUBY AO ESTRANGEIRO
Grande parte dos moradores de Ruby, especialmente os Novos Patriarcas, não
tolerava o comportamento das habitantes do Convento. Tal atitude pode ser comprovada
em uma ocasião que reuniu tais mulheres em Ruby o casamento de K.D, sobrinho de
Deacon e Steward, e Arnette, irmã de Jeff e cunhada de Sweetie. Connie, Mavis, Gigi,
Seneca e Pallas foram convidadas por Soane, o que causou descontentamento a
59
Texto original: “this ideal parent, friend, companion in whose company they were safe from harm”.
(MORRISON, 1998, p. 262)
60
Texto original: “‘if you have a place […] that you should be in and somebody who loves you waiting
there, then go. If not stay here and follow me’”. (MORRISON, 1998, p. 262)
61
Texto original: “they could not leave the one place they were free to leave”. (MORRISON, 1998, p.
262)
61
determinados membros de Ruby. Durante a festa que se seguiu à cerimônia religiosa, as
mulheres do Convento, exceto Connie, que não havia aceitado o convite, chamaram a
atenção dos presentes quando “saíram do carro com ar de dançarinas de cabaré: shorts
rosa, tops minúsculos, saias transparentes; olhos pintados, sem batom, evidentemente
sem roupa de baixo, sem meias” (MORRISON, 1998, p. 183)
62
. Elas, então, dirigiram-
se à mesa de comida e, ao verificarem que havia limonada e ponche para beber,
saíram do recinto e seguiram em direção ao Forno. Lá, dançaram, riram, gritaram,
pegaram algumas bicicletas e desceram a Avenida Central. A reação dos habitantes de
Ruby, principalmente daqueles de moral conservadora, foi imediata. O reverendo
Pulliam, por exemplo, conhecia esses tipos de pessoa, eram “como crianças, sempre à
cata de diversão, devotadas a isso, sempre precisando de uma ajuda para isso. Uma
carona, uma mão, uma nota de cinco dólares” (MORRISON, 1998, p. 184)
63
. Não só ele
como outros homens que faziam parte do conjunto formado pelos Novos Patriarcas
enxergavam essas mulheres como uma ameaça à paz e à integridade de Ruby, haja vista
que um deles acabou escorraçando Mavis, Gigi, Seneca e Pallas de lá. Essa ocorrência
demonstra que a forma como as moradoras do Convento foram recebidas pelo grupo
rocha-8 se distancia da sugestão de Derrida com relação à hospitalidade. Isso se explica
pelo fato de que, nas palavras do intelectual, “nenhum que chega é recebido como
hóspede se ele não se beneficia do direito à hospitalidade ou do direito ao asilo, etc.
Sem esse direito ele pode introduzir-se ‘em minha casa’ de hospedeiro, no chez-soi
do hospedeiro (host), como parasita, hóspede abusivo, ilegítimo, clandestino, passível
de expulsão ou detenção” (DERRIDA, 2003, p. 53).
62
Texto original: “they pilled out of the car looking like go-go girls: pink shorts, skimpy tops, see-through
skirts; painted eyes, no lipstick; obviously no underwear, no stockings”. (MORRISON, 1998, p. 156)
63
Texto original: “cike children, always on the lookout for fun, devoted to it but always needing a break
in order to have it. A lift, a hand, a five-dollar bill”. (MORRISON, 1998, p. 157)
62
O fato de os moradores de Ruby terem uma história caracterizada pela
segregação, uma vez que sentiram como é ser considerado diferente, estranho, em uma
sociedade na qual a cor da pele é um fator determinante para a inserção do sujeito em
sua conjuntura, acabou influenciando em sua maneira de lidar com os indivíduos de fora
do grupo. Tal aspecto pode ser relacionado ao pensamento de Julia Kristeva em
Estrangeiros para nós mesmos (1994). Nesse livro, a autora promove discussões sobre
o estrangeiro ao longo da história e em contextos variados – na tragédia grega, na Bíblia
e na literatura desde a Idade Média até o século XX. Segundo Kristeva, o termo
“estrangeiro”, que significa “aquele que não faz parte do grupo, aquele que não ‘é dele’,
o outro(KRISTEVA, 1994, p. 100), vai além da referência àquele que não é natural de
nosso país. Na verdade, ele estaria dentro de nós mesmos, uma vez que “é a face oculta
da nossa identidade, o espaço que arruína nossa morada, o tempo em que se afundam o
entendimento e a simpatia” (KRISTEVA, 1994, p. 9). Com relação a Paraíso, os
habitantes de Ruby passaram a tomar conhecimento dessa faceta desconhecida, presente
nos Novos Patriarcas, a partir de alguns acontecimentos estranhos: uma mãe foi
empurrada escada abaixo pela filha de olhos frios, filhas se recusavam a levantar da
cama, dois irmãos mataram um ao outro num dia de Ano Novo, pessoas com doenças
venéreas se tornaram comuns.
Essas catástrofes levaram Deacon, Steward e mais sete homens a se reunirem em
volta do Forno. Após algum tempo de discussão, eles concordaram que a causa de todos
esses males não poderia ser outra as mulheres do Convento. Essa conclusão se deveu,
em grande parte, ao seguinte comentário feito por um dos participantes da sessão:
“Essas putas sozinhas nunca botaram o numa igreja, e aposto com quem quiser
que nem estão pensando nisso. Elas não precisam de homens e não precisam de Deus.
[...] a confusão está se enfiando dentro das nossas casas, das nossas famílias”
63
(MORRISON, 1998, p. 317)
64
. Nessa passagem, uma aproximação com o que
Kristeva, no capítulo intitulado “São Paulo e Santo Agostinho: terapia do exílio e da
peregrinação”, chama de hospitalidade religiosa: os membros da reunião em Ruby
demonstraram uma não-aceitação de sujeitos que pareciam se distanciar do
Cristianismo. Nesse caso, como comenta Kristeva, “o estrangeiro não está excluído se
for cristão, mas o não-cristão é um estrangeiro cuja hospitalidade cristã não é levada em
conta” (KRISTEVA, 1994, p. 92). Em adição ao aspecto mencionado, é interessante
observarmos o destaque conferido à palavra “nossas” no comentário do morador de
Ruby, o que nos leva a pensar na importância do estabelecimento de um território para
um povo, seguidor dos preceitos do Protestantismo, que antes vivia em peregrinação.
Isso se relaciona com o fato de a religião poder ser vista como um traço de
enraizamento, conforme propõe Kristeva na seguinte afirmação:
O estrangeiro incorporado como peregrino certamente não
resolve os seus problemas sociais e jurídicos, mas encontra, na
civitas peregrina do Cristianismo, ao mesmo tempo um
impulso psíquico e uma comunidade de ajuda mútua que
parecem ser a única saída para o seu desarraigamento. Sem
rejeição nem assimilação nacional, o elemento religioso
preserva a origem étnica ao mesmo tempo em que a domina
pela abertura de uma experiência psíquica e social diferente.
(KRISTEVA, 1994, p. 89)
Em Paraíso, enquanto os Novos Patriarcas conseguiam controlar Ruby por meio de seu
isolamento da sociedade, a cidade se conservava da forma como eles desejavam.
Todavia, a partir do momento em que os moradores de Ruby passaram a ter contato
com pessoas provenientes de outro contexto, houve um abalo na fixidez da estrutura da
comunidade. É o que ocorreu, por exemplo, quando os jovens se deixaram influenciar
pelas idéias revolucionárias do reverendo Misner e passaram a questionar o sentido dos
64
Texto original: “There here sluts out there by themselves never step foot in church and I bet you a
dollar to a fat nickel they ain’t thinking about one either. They don’t need men and they don’t need God.
[…] the mess is seeping back into our homes, our families”. (MORRISON, 1998, p. 276)
64
fragmentos escriturais da placa sobre o Forno e quando o trânsito de mulheres na
estrada entre Ruby e o Convento tornou-se intenso: “mulheres chorando, mulheres
atentas, mulheres carrancudas, mordendo o lábio, ou mulheres simplesmente perdidas”
(MORRISON, 1998, p. 310)
65
.
Temendo uma possível desestruturação de Ruby, os nove homens que se
juntaram em torno do Forno chegaram ao seguinte plano: avançar contra as mulheres do
Convento. Essa conclusão trouxe à luz a chama da violência, até então oculta, naqueles
que seguiam os princípios do Protestantismo. Tal fato se relaciona com o seguinte
pensamento de Kristeva: “Do amor ao ódio, o rosto do estrangeiro nos força a
manifestar a maneira secreta que temos de encarar o mundo, de nos desfigurarmos
todos, até nas comunidades mais familiares, mais fechadas” (KRISTEVA, 1994, p. 11).
Todos os detalhes da organização do ataque foram espionados por Lone DuPres que,
assim como Soane, era amiga de Connie. Lone, então, resolveu se dirigir ao Convento
no meio da noite com a intenção de contar às mulheres a estratégia que havia sido
concebida. Estas, por sua vez, não acreditaram nas palavras de Lone e, na manhã do dia
seguinte, acabaram sendo surpreendidas pelos homens que investiram contra elas. O ato
de violência em questão mostrou-se como uma faceta extrema da intolerância dos
Novos Patriarcas com relação aos não-pertencentes ao contexto de Ruby.
Antes de esses homens irem de encontro às mulheres do Convento, Steward
havia demonstrado preocupação quanto à presença na comunidade de pessoas que não
tivessem o sangue puramente rocha-8. Em certa ocasião, um casal e seu bebê se
perderam no meio da estrada e acabaram encontrando Ruby. Lá, o motorista parou na
porta do armazém de Anna Flood, onde estava presente o reverendo Misner, e
perguntou aos dois por qual caminho deveria seguir. Após fornecida a orientação, Anna,
65
Texto original: “crying women, staring women, scowling, lip-biting women or women just plain lost”.
(MORRISON, 1998, p. 270)
65
ao saber que a criança não estava bem, propôs-se a buscar medicamentos para ela.
Misner entregou os frascos ao homem e foi observado por Steward. Este não hesitou em
comentar:
“Quem são esses?”, Steward perguntou.
“Uns caras perdidos”, Anna entregou a ele uma latinha de Blue
Boy.
“Caras perdidos ou brancos perdidos?”
“Ah, Steward, faça o favor.”
“Grande diferença, Anna. Grande. Certo, reverendo?” Misner
estava acabando de entrar.
“Eles se perdem como todo mundo”, disse Anna.
“Nascem perdidos. Dominam o mundo e continuam perdidos.
Certo, reverendo?” (MORRISON, 1998, p. 144)
66
Nessas declarações, Steward mostrou hostilidade com relação aos brancos,
representantes daqueles que segregaram os seus antepassados durante a escravidão e dos
quais ele queria manter distância.
Por outro lado, até mesmo dentro da própria comunidade, havia exemplos de
falta de tolerância com alguns de seus membros. É o caso de Misner, que advinha de
outra congregação e passou a incitar os jovens a lutarem contra a exclusão racial. Essa
atitude acabou desagradando parte dos habitantes mais antigos, os quais insistiam em se
manter em isolamento. Misner não conseguia compreender a resistência desses
moradores quanto a mudanças e expôs isso a Anna:
“Me ajude a entender este lugar. Sei que sou forasteiro, mas
não sou inimigo.”
“Não, não é. Mas nesta cidade essas duas palavras querem dizer
a mesma coisa”.(MORRISON, 1998, p. 245)
67
66
Texto original: “‘Who all is that?’ asked Steward.
‘Just some lost folks.’ Anna handed him a thirty-two-ounce tin of Blue Boy.
‘Lost folks or lost whites?’
‘Oh, Steward, please.’
‘Big difference, Anna girl. Big. Right, Reverend?’ Misner was just stepping back in.
‘They get lost like everybody else’, said Anna.
‘Born lost. Take over the world and still lost. Right, Reverend?’” (MORRISON, 1998, p. 122)
67
Texto original: “‘Well help me figure this place out. I know I’m an outsider, but I’m not an enemy.’
‘No, you’re not. But in this town those two words mean the same thing’”. (MORRISON, 1998, p. 212)
66
A afirmação de Anna se vincula ao que Kristeva discute a respeito do
estrangeiro: “O estrangeiro é o outro da família, do clã, da tribo. Inicialmente, ele se
confunde com o inimigo. Exterior à minha religião também, ele pode ser o infiel, o
herético” (KRISTEVA, 1994, p. 100). Assim, em Ruby, ser diferente era ser inimigo,
era causar contrariedade aos que, no caso dos Novos Patriarcas, persistiam em conservar
a pureza racial proveniente do sangue rocha-8. A moradora Billie Delia, por exemplo,
foi vítima dessa situação. Filha de Patricia Best e Billy Cato, ela teve sua honra
manchada por ter cometido um ato considerado infame pelos Novos Patriarcas: como
gostava muito de andar a cavalo, quando viu Mr. Nathan “abrindo espaço na multidão
depois da igreja, ela correu para o meio da Central Avenue, onde baixou a calcinha de
domingo antes de levantar os braços para ser alçada ao lombo de Hard Goods”
(MORRISON, 1998, p. 176)
68
. Essa atitude impulsiva de Billie Delia desagradou os
indivíduos mais tradicionalistas e passou a servir de comentário para as rodas de
conversa espalhadas pela cidade. No entanto, a reação aparentemente esperada dos
moradores tornou-se absurda quando somos levados ao conhecimento de que o referido
episódio ocorrera quando Billie Delia ainda era criança. Então, qual seria a explicação
para tanta polêmica envolvida no caso? O suposto motivo de tamanha repercussão seria
o seguinte: apesar de seu pai ser rocha-8, Billie Delia nasceu com o tom de pele mais
claro, devido à cor de sua mãe. Patricia Best mostrou sua indignação, como vemos no
seguinte trecho: “Que história era aquela de baixar as calças no meio da rua? Billie
Delia tinha três anos na época. Pat sabia que, se sua filha fosse uma rocha-8, eles
nunca usariam aquilo contra ela. Teriam visto a coisa pelo que era apenas, uma
criança inocente teria feito uma coisa dessas, claro” (MORRISON, 1998, p. 236)
69
.
68
Texto original: “negotiating space among the after-church crowd, she ran out into the middle of Central
Avenue, where she pulled down her Sunday panties before raising her arms to be lifted onto Hard Goods’
back”. (MORRISON, 1998, p. 151)
69
Texto original: “Was it that business of pulling down her panties in the street? Billie Delia was only
three then. Pat knew that had her daughter been an 8-rock, they would not have held it against her. They
67
Patricia conhecia bem a exclusão dirigida aos que não tinham um tom de pele
mais escuro em Ruby. Sua mãe, Delia, parecia branca, de tão clara que era, o que
contrastava com a cor de seu pai, Roger Best. Segundo relata Patricia, os grandes
culpados pela morte de sua mãe, após o parto de sua irmã, que também não resistira,
seriam os homens rocha-8 de Ruby. Isso dever-se-ia às seguintes razões: eles não foram
até o Convento buscar uma das freiras, que eram brancas, para ajudar as parteiras da
cidade ou simplesmente não agiram pelo fato de Delia ter a pele mais clara. Tal era o
desafio dos Novos Patriarcasconviver com alguém que seria a representação daqueles
negros que segregaram seus antepassados e que, com essa atitude, contribuíram para
que eles zelassem pela manutenção de uma comunidade fechada e excludente.
Nos casos de Misner e Delia, os habitantes de Ruby dispensaram um tratamento
condescendente, próximo àquilo que Derrida considera como hospitalidade condicional.
Esse tratamento não ocorreu quando os homens rocha-8 resolveram invadir o Convento
e atacar suas moradoras. De acordo com Derrida, “não hospitalidade, no sentido
clássico, sem soberania de si para consigo, mas, como também não hospitalidade
sem finitude, a soberania pode ser exercida filtrando-se, escolhendo-se, portanto
excluindo e praticando-se violência” (DERRIDA, 2003, p. 49).
Em Ruby, as mulheres podiam sair de casa a qualquer hora do dia, até mesmo de
madrugada, sem correrem qualquer risco, “porque ninguém ali achava que ela fosse
uma presa de caça” (MORRISON, 1998, p. 18)
70
. Esse excesso de cuidado por parte dos
homens, que indicaria, à primeira vista, uma certa liberdade de ir e vir às mulheres,
escondia a imposição do seguinte papel a elas: dedicarem-se única e exclusivamente ao
marido, aos filhos e à Igreja. Em um diálogo entre Dovey e Soane, as duas ratificam a
submissão que tinham aos seus maridos:
would have seen it for what it was – only an innocent child would have done that, surely”. (MORRISON,
1998, p. 203)
70
Texto original: “because nothing at the edge thought she was prey”. (MORRISON, 1998, p. 9)
68
“Não acho que ele ficar satisfeito na mesa”, Dovey disse
para a irmã.“Por que não?”
“Não sei. Ele elogia a minha comida, e logo depois sugere um
jeito de fazer melhor da próxima vez.”
“Fique quieta, Dovey.”
“Deek não faz isso com você, faz?”
“Isso não. Ele é enjoado de outro jeito. Mas eu não me
preocuparia com isso, se fosse você. Se ele está contente na
cama, a mesa não quer dizer nada”. (MORRISON, 1998, p.
98)
71
As mulheres de Ruby, dessa forma, deveriam seguir uma conduta pautada no
que era estabelecido pelos homens, tal como ocorre no Velho Testamento. Qualquer
atitude que fosse de encontro à autoridade patriarcal era vista de forma negativa. É o
que explica a personagem Fairy, parteira de Ruby, ao comentar sobre sua atividade:
“Homens têm medo de nós, vão ter sempre. Para eles, a gente é a empregada da morte
que se bota no meio deles e dos filhos que as mulheres deles fizeram. [...] a parteira é a
interferência, a que as ordens, de cuja habilidade secreta tanta coisa depende, e a
dependência os irrita” (MORRISON, 1998, p. 312)
72
. Ou seja, a parteira era uma figura
que fugia ao controle dos homens, que os mesmos não tinham como interferir em seu
trabalho. Além disso, se o resultado dessa atividade tipicamente feminina contrariava as
expectativas da família da gestante, a parteira poderia sofrer sérias conseqüências:
quando Lone fez o parto de Sweetie e esta deu à luz quatro crianças defeituosas, os
Fleetwood a responsabilizaram pelo fato de os bebês não terem nascido perfeitos.
71
Texto original: “‘I don’t expect he’ll be satisfied at table,’ Dovey told her sister.
‘Why not?’
‘I don’t know. He compliments my cooking, then suggests how to improve it next time.’
‘Hold still, Dovey.’
‘Deek doesn’t do that to you, does he?’
‘Not that. He’s picky other ways. But I wouldn’t worry about it if I was you. If he’s satisfied in bed, the
table won’t mean a thing’”. (MORRISON, 1998, p. 82)
72
Texto original: “Men scared of us, always will be. To them we’re death’s hand-maiden standing as
between them and the children their wives carry. […] the midwife is the interference, the one giving
orders, on whose secret so much depended, and the dependency irritated them”. (MORRISON, 1998, p.
272)
69
Mas não era somente esse tipo de trabalho feminino que desafiava os homens
tradicionalistas de Ruby. Segundo Patricia, o próprio vínculo das mulheres ao
nascimento e aos perigos de sangue mestiço implícitos na reprodução constituiria uma
ameaça, porque “as gerações tinham de ser não racialmente íntegras, mas livres de
adulteração também. [...] Pat sorriu de lado. Nesse caso, pensou, tudo o que os preocupa
deve vir das mulheres” (MORRISON, 1998, p. 251)
73
.
A inquietação dos homens de Ruby com o fato de as mulheres poderem quebrar
a cadeia sangüínea rocha-8, contribuindo para a desagregação da comunidade, explica o
cerceamento criado por eles ao mundo feminino. Essa atitude transpunha as fronteiras
desse território patriarcal. É o que podemos perceber quando as moradoras do Convento
foram atacadas. O comentário de Steward, ao descrever a fuga de algumas dessas
mulheres, confirma sua maneira de enxergá-las: “Evas negras carnudas não redimidas
por Maria, como corças assustadas saltando para um sol que acabou de queimar a
neblina e agora verte seu óleo quente sobre os esconderijos da caça. Com Deus ao seu
lado os homens fazem mira. Por Ruby” (MORRISON, 1998, p. 29)
74
. Logo, segundo tal
visão masculina, altamente conservadora, as habitantes do Convento seriam como Eva
que, ao desafiar a ordem divina, foi responsabilizada pela expulsão do homem do
Jardim do Éden.
No que se refere aos gêmeos de Ruby, essa imagem se contrapunha ao ideal de
modelo feminino construído por eles durante sua adolescência, quando, certo dia, foram
visitar uma cidade negra e se admiraram com uma cena que ocorria nos degraus da
prefeitura um grupo de dezenove damas negras que posavam para uma foto. Essas
usavam vestidos leves de verão e pequenos chapéus, tinham cinturas finas, olhos
73
Texto original: “the generations had to be not only racially untampered with but free of adultery too.
[…] Pat’s smile was crooked. In that case, she thought, everything that worries them must come from
women”. (MORRISON, 1998, p. 217)
74
Texto original: “Bodacious black Eves unredeemed by Mary, they are like panicked does leaping
toward a sun that has finished burning off the mist and now pours its holy oil over the hides of game. God
at their side, the men take aim. For Ruby”. (MORRISON, 1998, p. 18)
70
expressivos, pele macia, além de andarem como se estivessem desfilando. Esse modelo
arquivado na memória de Deacon e Steward foi utilizado para uma comparação
envolvendo as mulheres do Convento:
Para ele [Steward], as mulheres do Convento eram uma paródia
desavergonhada das dezenove damas negras da lembrança
juvenil e da perfeita compreensão entre ele e o irmão. [...] Elas,
com seu riso desmiolado, ultrajavam os tons melodiosos, o
tilintar do riso alegre e querido das dezenove damas que,
destinadas a viver para sempre em sonhos de tons pastel,
estavam agora fadadas à extinção por essa espécie nova e
obscena de mulher. (MORRISON, 1998, p. 320-1)
75
Apesar de os homens moralistas de Ruby se incomodarem com o fato de as mulheres do
Convento terem hábitos e comportamentos “obscenos”, andarem com vestimentas
chamativas e dançarem de maneira sensual, por exemplo, parece que sua intolerância se
devia mais intensamente a outro fator. Enquanto os Novos Patriarcas eram responsáveis
por protegerem suas mulheres, as quais acabavam dependendo deles nesse sentido, as
pertencentes ao ambiente do Convento demonstravam que a presença masculina era
dispensável em sua residência. Esse assunto foi comentado por Morrison em uma
entrevista concedida a Elizabeth Farnsworth, em 9 de março de 1998. Nela, Morrison
afirmou que “Ruby tem as características, os traços do Velho Testamento. Ela é
patriarcal. Os homens protegem muito suas mulheres, preocupam-se muito com seus
papéis como líderes” (nossa tradução)
76
. Para estabelecer um paralelo com a
predominância patriarcalista da comunidade mencionada, Morrison prosseguiu,
75
Texto original: “The women in the Convent were for him and his brother’s youthful memory and
perfect understanding. […] They, with their mindless giggling, outraged the dulcet tones, the tinkling in
the merry and welcoming laughter of the nineteen ladies who, scheduled to live forever in pastel shaded
dreams, were now doomed to extinction by this new and obscene breed of female”. (MORRISON, 1998,
p. 279)
76
Texto original: “Ruby has the characteristics, the features of the Old Testament. It's patriarchal. The
men are very protective of their women, very concerned about their role as leaders”. (FARNSWORTH,
Elizabeth. Conversation: Toni Morrison. Disponível no site
http://www.pbs.org/newshour/bb/entertainment/jan-june98/morrison_3-9.html, acessado em 3 de junho
de 2007)
71
referindo-se ao Convento como um local que “se torna uma espécie de proteção por
excelência para algumas mulheres que estão fugindo de todos os tipos de trauma, e elas
não procuram a companhia dos homens. Elas foram profundamente ofendidas pelos
homens, de forma que, embora discutam e briguem na maior parte do tempo, estão no
que consideram um lugar livre” (nossa tradução)
77
.
Assim, as mulheres do Convento tiveram uma história de vida marcada pelo
aspecto negativo no que se refere ao sexo masculino: Connie foi estuprada aos nove
anos de idade, depois envolveu-se com Deacon, que a abandonou subitamente; Mavis
era violentada por seu próprio marido, o qual não permitia que ela fizesse amizade com
outras mulheres; Seneca tinha sofrido abuso sexual e namorava um criminoso; Gigi
acabou tendo um caso amoroso com K.D., que a humilhava, chegava a bater nela e
acabou se casando com Arnette; Pallas viu seu namorado trocá-la por sua própria mãe.
Tais biografias, caracterizadas por desilusões, perdas, vazios existenciais, ilustram a
referência de Kristeva à vida e aos laços do estrangeiro: “Não pertencer a nenhum lugar,
nenhum tempo, nenhum amor. A origem perdida, o enraizamento impossível, a
memória imergente, o presente em suspenso. O espaço do estrangeiro é um trem em
marcha, um avião em pleno ar, a própria transição que exclui a parada. Pontos de
referência, nada mais” (KRISTEVA, 1994, p. 15).
Portanto, para mulheres marcadas pelo desenraizamento de laços de família,
pelo exílio interior, o Convento se tornou um espaço em que suas lembranças e traumas
eram compartilhados, no intuito de serem superados. Nesse local, as residentes tinham a
oportunidade de se auto-conhecerem e buscarem seu crescimento pessoal. Na visão de
Pallas, “a casa inteira parecia permeada por uma ausência de masculinidade, como um
77
Texto original: “becomes a kind of crash pad for some women who are running away from all sorts of
trauma, and they don't seek the company of men. They have been hurt profoundly by men, so that even
though they quarrel and fight most of the time, they're in what they consider a free place”.
(FARNSWORTH, Elizabeth. Conversation: Toni Morrison. Disponível no site
http://www.pbs.org/newshour/bb/entertainment/jan-june98/morrison_3-9.html, acessado em 3 de junho
de 2007)
72
domínio protegido, livre de caçadores, mas excitante também. Como se num dos muitos
quartos da casa ela pudesse encontrar a si mesma, uma pessoa autêntica, sem freios, mas
que ela considerava ‘legal’” (MORRISON, 1998, p. 206)
78
. quanto a Mavis, esta
conseguiu ultrapassar alguns obstáculos: “Aquela que não sabia se defender de uma
menina de onze anos, e muito menos do marido. Aquela que não conseguia inventar
nem cozinhar uma refeição simples, que dependia das lojas de conveniência e de
comida pronta, agora era capaz de criar coisas como crepes, sem ter que sair às compras
todo dia” (MORRISON, 1998, p. 199-200)
79
.
A transformação ocorrida na vida de cada uma dessas mulheres se deve em
grande parte à forma como Connie lidava com elas: apesar de às vezes não ter paciência
para ouvi-las, havia atenção, carinho, respeito. Tal dedicação pode refletir a maneira
como Connie gostaria de ser tratada, uma vez que, como dito, sua história foi marcada
pela violência e pelo abandono. Nesse sentido, estabelecemos uma relação entre esses
aspectos e o que Kristeva afirma acerca dos que são próximos do estrangeiro: “Os
amigos do estrangeiro, excetuando as boas almas que se sentem obrigadas a fazer o
bem, somente poderiam ser aqueles que se sentem estrangeiros de si mesmos”
(KRISTEVA, 1994, p. 30). Connie recebia as mulheres no Convento porque talvez se
identificasse com as dificuldades pelas quais cada uma delas havia passado e, dessa
forma, procurasse “salvá-las” dessa condição, atitude essa tomada por Mary Magna ao
tirá-la das ruas aos nove anos de idade. Além disso, ela demonstrava se sentir sozinha,
principalmente após a morte de sua mãe adotiva. Logo, Connie parece buscar o
preenchimento do vazio que possuía através da companhia de outras pessoas que,
inicialmente, estranhas, acabaram se transformando em sua família.
78
Texto original: “the whole house felt permeated with a blessed malelessness, like a protected domain,
free of hunters but exciting too. As though she might meet herself here an unbridled, authentic self, but
which she thought of as a “cool” self – in one of this house’s many rooms”. (MORRISON, 1998, p. 177)
79
Texto original: “The one who couldn’t defend herself from an eleven-year-old girl, let alone her
husband. The one who couldn’t figure out or manage a simple meal, who relied on delis and drive-
throughs, now created crepe-like delicacies without shopping every day”. (MORRISON, 1998, p. 171)
73
No ambiente do Convento, portanto, as mulheres buscavam dividir seus
problemas e seus desejos, o que ratifica um alto grau de integração entre elas. Esse tipo
de convívio se aproxima das idéias de Derrida expostas em uma entrevista concedida ao
jornal Le monde, publicada com o título de “O princípio da hospitalidade” (2004a): “A
hospitalidade consiste em fazer tudo para se dirigir ao outro, em lhe conceder, até
mesmo perguntar seu nome, evitando que essa pergunta se torne uma “condição”, um
inquérito policial, um fichamento ou um simples controle das fronteiras” (DERRIDA,
2004a, p. 250). Assim, a aceitação do outro, nesse caso, é feita sem a imposição de uma
condição.
Mas como poderia existir um lugar onde mulheres viviam, umas na companhia
das outras, sem a presença de qualquer representante do sexo masculino? Tal era o
questionamento constante dos Novos Patriarcas, encarnados nas figuras de Deacon e
Steward. As habitantes do Convento representavam a diferença, a qual incomodava os
homens conservadores de Ruby. Há uma relação entre essa evidência e o que argumenta
Kristeva a respeito do estrangeiro. De acordo com a autora, “por ocupar explicitamente,
manifestamente, ostensivamente o lugar da diferença, o estrangeiro lança à identidade
do grupo, tanto quanto à sua própria, um desafio que poucos dentre nós estão aptos a
aceitar. Desafio de violência: ‘Não sou como você’” (KRISTEVA, 1994, p. 47). Derrida
também discute esse assunto em uma entrevista concedida ao jornal Le figaro magazine
posteriormente publicada em Papel-máquina (2004b) com o título “O que quer dizer
um filósofo francês hoje?”. Nesse texto, o intelectual aponta para o identitarismo como
a postura que determina a contraposição de um grupo ao estrangeiro: “O identitário ou o
identitarismo incita, como o nacionalismo ou como o comunitarismo, a desconhecer a
universalidade dos direitos e a cultivar diferenças exclusivas, a transformar a diferença
em oposição” (DERRIDA, 2004b, p. 312). Portanto, a identidade construída e imposta
74
pelos fundadores de Ruby os conduziu à não-aceitação de mulheres que se
comportavam de uma forma diferente da que seria ideal para eles. Daí o ataque ao
Convento.
Essa atitude extremista parece ter sido conseqüência do desespero dos Novos
Patriarcas ao verem que o destino que vislumbravam para Ruby poderia estar com seus
dias contados. Isso significaria a perda de uma luta que vinha se desencadeando desde o
ano de 1890, quando as gerações passadas constituíram Haven na tentativa de se
libertarem da discriminação que haviam sofrido por parte de pessoas de sua própria
raça. Assim, os fundadores de Ruby, na resistência a qualquer tipo de mudança, fosse
ela advinda do exterior ou proveniente do posicionamento de alguns de seus
conterrâneos (conforme observamos, no capítulo anterior, a proposta dos jovens de
atualizar o sentido dos fragmentos escriturais da placa do Forno) acabaram segregando
aqueles que eram vistos como uma ameaça à estabilidade da comunidade. Segundo
Kristeva, “o estrangeiro exclui, antes mesmo de ser excluído, muito mais do que o
excluem. Os fundamentalistas são mais fundamentais quando perdem toda ligação
material, inventando para si próprios um nós puramente simbólico que, por falta de
solo, enraíza-se no rito até atingir a sua essência que é o sacrifício” (KRISTEVA, 1994,
p. 31).
As questões relativas ao fundamentalismo discutidas por Amós Oz em Contra o
fanatismo (2004) podem ser associadas aos pensamentos de Derrida e Kristeva. Nesse
livro, cuja origem é uma série de conferências realizadas por Oz na Universidade de
Tübingen, na Alemanha, em 2002, o intelectual discorre a respeito do conflito árabe-
israelense, posicionando-se a favor da idéia de que tal guerra não seria motivada por
diferenças religiosas ou culturais, mas sim estaria relacionada a uma disputa de
territórios. Logo, seria equivocado procurar apontar o certo e o errado nessa história. Na
75
verdade, na visão do autor, tanto os palestinos quanto os judeus seriam vítimas, uma vez
que os primeiros teriam a Palestina como terra natal e, ao tentarem viver em outros
países árabes, foram rejeitados, enquanto os outros, que foram expulsos da Europa,
enxergariam Israel como seu lar. Eis, então, a razão principal da luta entre tais povos – a
reivindicação do mesmo espaço de terra. Mas haveria, nesse caso, mais um aspecto a ser
considerado: o fanatismo. De acordo com Oz, “a crise atual no mundo no Oriente
Médio, em Israel e na Palestina não diz respeito aos valores do Islã. Não diz respeito,
de jeito algum, à mentalidade dos árabes, como querem alguns racistas. Diz respeito à
luta antiga entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre
fanatismo e tolerância” (OZ, 2004, p. 14). Assim, a contraposição ao pragmatismo, ao
pluralismo e à tolerância geraria um tipo de comportamento fanático que estaria
presente, segundo Oz, “em quase todos os lugares, e suas formas mais silenciosas, mais
civilizadas, estão presentes em nosso entorno, e talvez dentro de nós também” (OZ,
2004, p. 23).
No contexto de Paraíso, os habitantes de Ruby e seus antepassados tiveram uma
vida marcada pela peregrinação em busca de um território em que pudessem viver sem
serem excluídos. No entanto, esse isolamento estaria acompanhado da intolerância dos
Novos Patriarcas de Ruby com relação às pessoas que não eram nem de sua cor, nem de
sua religião. Principalmente no caso das mulheres do Convento, eles chegaram a revelar
traços característicos do fanatismo, que estariam diretamente vinculados à
agressividade: “se julgo algo mau, elimino-o, junto com seus vizinhos” (OZ, 2004, p.
14). Entretanto, a prática dessa brutalidade não ocorreria fortuitamente, que “o
fanatismo é, com freqüência, intimamente relacionado a uma atmosfera de desespero
profundo. Num lugar em que as pessoas sintam que não nada além de derrota,
humilhação e indignidade, podem recorrer a várias formas de violência desesperada”
76
(OZ, 2004, p. 16-17). Assim, ao observarem que a continuidade da história de Ruby tal
como fora por eles traçada poderia ter um fim, seus fundadores logo trataram de dizimar
o que viam como uma ameaça. Esse foi o ato extremo cometido por parte daqueles que,
desde o início da edificação da comunidade, mantiveram uma postura ligada ao
fanatismo, a qual, na opinião de Oz, poderia ser contida pelos sujeitos moderados
pertinentes a cada sociedade.
Desse modo, as formas de pensar e de agir demonstradas pelos Novos Patriarcas
acabaram sendo questionadas por alguém que apresentava um estilo equilibrado: o
reverendo Misner. Este, ao mesmo tempo em que procurava um diálogo com os
habitantes tradicionalistas, estimulava os jovens a não se submeterem mais à imposição
das idéias dos antigos fundadores de Ruby. Logo, o fato de se contrapor a algumas
atitudes conservadoras levou Misner, juntamente com os jovens, a ser tachado de
traidor. Porém, o que poderia ter apenas um lado negativo passa a se revelar como algo
positivo. É o que sugere Oz no seguinte trecho: “A traição não é o contrário do amor, é
uma de suas muitas opções. Penso que traidor é aquele que muda aos olhos dos que não
podem mudar, não mudariam, odeiam a mudança e não podem conceber a mudança,
com exceção de que sempre querem mudar você. Em outras palavras, traidor, aos olhos
do fanático, é qualquer pessoa que muda” (OZ, 2004, p. 22). Para os Novos Patriarcas, a
palavra “mudar” teria como tradução “determinar o fim da cidade de Ruby”. Então, para
que isso não ocorresse, seria preciso destruir a fonte das catástrofes que arruinavam a
estabilidade do grupo.
A tragédia ocorrida no Convento chocou a população de Ruby, que via na
atitude dos nove homens uma reprodução do mundo de que haviam escapado: excluídos
e humilhados por brancos e depois por negros de pele mais clara, os representantes do
sangue rocha-8 acabaram discriminando e agredindo pessoas que apenas tinham um
77
modo de vida diferente. Tal situação se assemelha ao conflito entre israelenses e
palestinos: ambos os grupos sofreram rejeição e, conseqüentemente, passaram a não
tolerar um ao outro, porque “cada um dos lados olha o outro e no outro a imagem de
seus opressores do passado” (OZ, 2004, p. 55). Dessa forma, para que houvesse uma
interrupção definitiva nessa guerra, seria necessário um compromisso das duas partes.
Oz afirma que, “quando digo compromisso, não tenho em mente capitulação, não tenho
em mente oferecer a outra face a um rival, a um inimigo ou a um cônjuge, quero dizer
tentar encontrar o outro no meio do caminho” (OZ, 2004, p. 97).
“Encontrar o outro no meio do caminho”: eis a atitude que se distancia do
objetivo dos Novos Patriarcas de Paraíso. Segundo Oz, “nenhum homem e nenhuma
mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, metade ligado à terra firme,
metade contemplando o oceano” (OZ, 2004, p. 39). Assim, na visão dos habitantes
conservadores de Ruby, dever-se-ia manter a comunidade em isolamento e impedir
qualquer tipo de mudança. Entretanto, essa intenção acabou sendo desafiada pelo
próprio curso da história, através do qual foram renovadas as gerações da população de
Ruby, além de ser intensificado o trânsito de pessoas na estrada até o Convento (os
homens, para comprar alimentos produzidos no local, e as mulheres, no intuito de
buscarem refúgio para os seus conflitos interiores). Ao notarem que o destino que
arquitetaram para Ruby estava sendo aos poucos destruído, os Novos Patriarcas
praticaram o ato extremista, a partir do qual houve um chamamento à abertura, ao
diálogo, à tolerância. É o que observaremos no próximo capítulo, em que analisaremos
algumas passagens de Paraíso que corroboram a idéia de que “a literatura é sempre a
resposta, porque a literatura contém um antídoto ao fanatismo ao injetar imaginação aos
seus leitores” (OZ, 2004, p. 33).
78
79
CAPÍTULO 3
A CONSTRUÇÃO DE ARQUIVOS EM PARAÍSO
Neste terceiro e último capítulo, investigaremos o projeto idealizado pela
personagem Patricia Best na tentativa de construção da história de Ruby e o
relacionaremos à forma como Morrison organiza sua obra, fundamentando-nos,
basicamente, em questões levantadas por Jacques Derrida em Mal de arquivo: uma
impressão freudiana (2001). Nesse livro, escrito a partir de uma conferência proferida
em 5 de junho de 1994, em Londres, Derrida traz à luz uma concepção de arquivo que
se distingue da noção tradicional de retorno às origens, de experiência de memória e de
sentido de arcaico. Segundo o autor, a palavra “arquivo” remete ao vocábulo grego
arqueîon, que designava o domicílio dos que detinham o poder os arcontes e
representava o lugar onde estes guardavam e, ao mesmo tempo, interpretavam as leis.
Além dessa função topo-nomológica, o arquivo traria em si o poder de consignação.
Nas palavras de Derrida, “a consignação tende a coordenar um único corpus em
um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma
80
configuração ideal” (DERRIDA, 2001, p. 14), o que resultaria na ausência de
dissociação e de heterogeneidade. Todavia, para a construção de um sistema
homogêneo, o arquivo acaba se tornando excludente e repressivo, manipulando a
memória e restringindo a interpretação dos seus elementos. Tal relação entre poder e
arquivo ultrapassa as fronteiras da historiografia. Para ilustrar esse pensamento, Derrida
se concentra no campo da psicanálise: assim como o poder permanentemente constrói e
destrói o arquivo, de acordo com os seus interesses, a pulsão de morte registra e apaga a
própria lembrança. Segundo Derrida, “a pulsão de morte é, acima de tudo, anarquívica,
poderíamos dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do
arquivo” (DERRIDA, 2001, p. 21). Logo, a psicanálise deixaria de ser vista como uma
teoria de memória para passar a ser considerada como uma teoria de arquivo. Tal
descoberta freudiana trouxe à superfície uma noção de verdade que necessita ser
recomposta a cada momento. Em busca de discorrer sobre os arquivos da psicanálise,
Derrida parte de uma obra do historiador de cultura judaica Yosef Hayim Yerushalmi
para destacar uma passagem da vida de Sigmund Freud.
No seu aniversário de trinta e cinco anos, Freud recebeu a Bíblia das mãos de
seu pai, Jakob Freud, com uma nova encadernação de couro. Nela, estavam presentes a
data de sua circuncisão e uma dedicatória. Em sua escrita, Jakob sugeria que a leitura do
Livro teria sido importante na formação de seu filho, apesar de em algumas vezes Freud
reprimir a relevância do judaísmo em sua obra. Anos mais tarde, Freud escreveu um
ensaio sobre Moisés, o que seria um exemplo, na opinião de Yerushalmi, de
“obediência retrospectiva” “trata-se da obediência deferida de Freud a seu pai, do
patriarca ao arquipatriarca” (DERRIDA, 2001, p. 75). Dessa forma, Freud sofria do mal
de arquivo, que teria esta definição derridiana: “É não ter sossego, é incessantemente,
interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde,
81
mesmo se há bastante, alguma coisa que nele se anarquiva” (DERRIDA, 2001, p. 119).
A personagem Patricia Best, assim como a própria Toni Morrison podem ser
vistas como sofredoras do mal de arquivo. Porém, enquanto a primeira tenta construir o
seu arquivo a partir da concepção da história como um continuum, uma construção
linear e homogênea, a segunda aponta para a impossibilidade de tal fato e organiza a sua
narrativa de modo fragmentado, cheio de lacunas e brechas, que se abrem a múltiplas
interpretações, tal como sugeriu Walter Benjamin ao reivindicar o seu conceito de
história, abordado no primeiro capítulo desta dissertação.
3.1 – O ARQUIVO DE PATRICIA BEST
Uma das personagens cuja contribuição é de grande importância para a
composição de Paraíso é a professora Patricia Best. No capítulo intitulado com o seu
nome, Toni Morrison a apresenta como alguém que se dedica a seu “projeto de
história”: elaborar as árvores genealógicas de cada uma das quinze famílias que
compunham a comunidade de Ruby. Sua intenção inicial seria presentear seus
conterrâneos. Para tanto, iniciou o trabalho colhendo informações nas redações
autobiográficas de seus alunos. No entanto, os pais começaram a reclamar porque seus
filhos estavam investigando assuntos particulares em excesso. Patricia, então, passou a
consultar pessoas através de conversas, anotações em suas bíblias e pesquisas em
registros de igrejas. E mais uma vez encontrou barreiras quando os moradores deixavam
de recebê-la em suas casas ou quando simplesmente mudavam o rumo do diálogo. Além
desses obstáculos para captar provas documentais, Patricia era desafiada pelo seguinte
fator:
A história oficial da cidade, elaborada nos púlpitos, nas aulas da
escola dominical e nos discursos em cerimônias, tinha um forte
caráter público. Qualquer nota de rodapé, qualquer brecha ou
questão a ser colocada exigia grande imaginação e a persistência
82
de uma mentalidade que não se sentia confortável com histórias
orais. Sempre que possível, Pat queria provas documentais para
fundamentar as histórias, e quando não havia provas ela fazia
interpretações livres, mas, segundo ela, perspicazes, porque
ela tinha a distância emocional necessária. (MORRISON, 1998,
p. 218)
80
O que era dito de geração para geração, principalmente no que se refere aos
irmãos Deacon e Steward os quais tinham a memória poderosa, ao se lembrarem de
coisas que aconteceram, de que foram testemunhas ou não (MORRISON, 1998, p. 23) –
constituía a história oficial para os moradores de Ruby. Ou seja, conforme foi
mencionado no primeiro capítulo desta dissertação, tomando como referência o texto
benjaminiano “Sobre o conceito de história”, Deacon e Steward se apropriaram de uma
reminiscência do passado (BENJAMIN, 1987, p. 224) e passaram a impor sua visão
fono e falocêntrica da história de Ruby. Dessa forma, insatisfeita com uma memória
pautada na oralidade, Patricia buscou encontrar respostas nas brechas, nas lacunas
existentes nessa história tida como oficial.
Para iniciar sua tarefa, a professora realizou um esboço do quadro de famílias
que deram origem a Ruby. Segundo sua pesquisa, os que foram expulsos de Fairy,
Oklahoma, e lutaram para a construção de Haven incluíam os Blackhorse, os Morgan,
os Poole, os Fleetwood, os Beauchamp, os Cato, os Flood e os DuPres. Logo,
somavam-se setenta e nove ou oitenta e uma pessoas (caso fossem levadas em conta
duas crianças que foram adotadas pelo grupo). Junto a esses caminhantes se
encontravam fragmentos de outras famílias. A viagem, portanto, havia sido realizada
por cento e cinqüenta e oito participantes no total. Anos mais tarde, na década de 1950,
as famílias que deixaram Haven e seguiram rumo ao Oeste foram comandadas pelos
80
Texto original: “The town’s official story, elaborated from pulpits, in Sunday school classes and
ceremonial speeches, had a sturdy public life. Any footnotes, crevices or questions to be put took keen
imagination and the persistence of a mind uncomfortable with oral histories. Pat had wanted proofs in
documents where possible to match the stories, and where proof was not available she interpreted – freely
but, she thought, insightfully because she alone had the required emotional distance” (MORRISON,
1998, p. 188).
83
Novos Patriarcas: Deacon Morgan, Steward Morgan, William Cato, Ace Flood, Aaron
Poole, Nathan DuPres, Moss DuPres, Arnold Fleetwood, Ossie Beauchamp, Harper
Jury, Sargeant Person, John Seawright, Edward Sands e Roger Best.
Roger Best, pai de Patricia, foi o primeiro a violar a regra de pureza racial ao se
casar com Delia, de pele mais clara. Essa ocorrência contrariava um hábito muito
comum em Ruby: os casamentos entre indivíduos da mesma família, com o objetivo de
conservar o sangue rocha-8 ao longo das gerações. Foi o que aconteceu, por exemplo,
com o marido de Patricia, Billy Cato o pai dele, August Cato, era também seu tio-
bisavô. Além de marcarem sua história com essa peculiaridade, os habitantes de Ruby
consideravam-se especiais pela imortalidade. Conforme relata Patricia, com exceção de
sua mãe e da irmã de Deacon e Steward, “ninguém nunca morreu em Ruby [...] desde
1953 quem morreu, morreu na Europa ou na Coréia, ou em algum outro lugar fora desta
cidade” (MORRISON, 1998, p. 231)
81
.
Desde a fundação de Ruby, era encenada uma peça de Natal pelas crianças da
escola. Na montagem da apresentação, a população em geral colaborava de várias
formas: “os homens mais velhos arrumavam a plataforma, montavam o berço, os mais
jovens inventavam novos estalajadeiros e retocavam a pintura das máscaras. As
mulheres faziam bonecas bebês e as crianças desenhavam comidas natalinas”
(MORRISON, 1998, p. 215)
82
. Com relação à peça de 1974, o discurso de abertura
ficaria a cargo de Nathan DuPres, considerado o homem mais velho de Ruby. Na
representação natalina em questão, a rejeição de José e Maria a caminho de Belém foi
comparada à exclusão sofrida pelos antepassados dos habitantes de Ruby. O reverendo
Misner, que conversava com Patricia durante a encenação, inicialmente “tinha achado
81
Texto original: “nobody in Ruby has ever died […] after 1953 anybody who died did it in Europe or
Korea or someplace outside this town”. (MORRISON, 1998, p. 199)
82
Texto original: “older men repaired the platform, assembled the crib; young ones fashioned new
innkeepers and freshened the masks with paint. Women made doll babies, and children drew colored
pictures of Christmas dinner food”. (MORRISON, 1998, p. 185)
84
que havia na peça quatro estalajadeiros, sete Marias e sete Josés para agradar ao
maior número possível de crianças” (MORRISON, 1998, p. 245)
83
. Mas depois achou
que pudesse haver outras razões. Então perguntou a Patricia o porquê de apenas sete
famílias em vez de nove, que seria o número considerado oficial daquelas que fizeram o
trajeto de Fairly até a edificação de Haven. Patricia desconversou.
Ao voltar para casa, entretanto, a professora refletiu sobre o questionamento de
Misner e tentou chegar a alguma conclusão de quais seriam as famílias cortadas da
peça. Uma era a dos Cato e a outra poderia ser a dos Jury ou a dos Fulton Best (de seu
pai). Isso porque os Jury e os Fulton Best, apesar de terem ido para Haven logo no
começo, não faziam parte do grupo de caminhantes original. Na tentativa de desfazer a
confusão, Patricia recorreu a seu pai lançando a seguinte indagação: “‘Por que eles
mudaram? Antes tinha nove famílias na peça. Depois oito durante anos e anos. Agora
tem sete’” (MORRISON, 1998, p. 249)
84
. Roger Best argumentou que talvez não
houvesse um número suficiente de crianças. Patricia insistiu na busca por informações e
concluiu que o motivo real dessa situação seria a cor da pele, reflexo da quebra do
preceito de pureza sangüínea. Roger Best negou tal versão e mudou de assunto.
Decepcionada com o que tinha ouvido, a professora se dirigiu ao jardim, onde havia
sido enterrado o corpo de sua mãe. Lá, resolveu agir da seguinte maneira: “Um a um ela
foi derrubando no fogo os arquivos de papelão, grampeados, em folhas soltas. Teve de
rasgar as capas dos cadernos de composição e segurá-los inclinados com um pauzinho
para não abafarem o fogo. A fumaça era amarga. Ela deu um passo para trás, arrancou
galhos de lavanda e atirou-os no fogo também. Levou algum tempo, mas acabou
virando as costas para as cinzas e voltou para casa” (MORRISON, 1998, p. 251)
85
.
83
Texto original: “he had assumed it was in order to please as many children as possible that there were
four innkeepers, seven Marys and Josephs”. (MORRISON, 1998, p. 211)
84
Texto original: “‘Why do they change it? There used to be nine families in the play. Then eight for
years and years. Now seven’”. (MORRISON, 1998, p. 215)
85
Texto original: “One by one she dropped cardboard files, sheets of paper both stapled and lose into
the flames. She had to tear the covers off the composition notebooks and hold them slant with a stick so
85
Ao buscar informações para restaurar o arquivo de Ruby, através da confecção
das árvores genealógicas das famílias da comunidade, Patricia verificou que este estava
irremediavelmente perdido, conclusão essa que a levou a queimar todo o material que
havia reunido. Antes do que fez a professora, os Novos Patriarcas de Ruby, à maneira
dos arcontes gregos, determinaram aos fragmentos das palavras do Forno uma única
interpretação, mostrando que o arquivo “guarda, põe em reserva, economiza, mas de
modo não-natural, isto é, fazendo a lei (nomos) ou fazendo respeitar a lei” (DERRIDA,
2001, p. 17). Nesse sentido, os Novos Patriarcas tinham como objetivo preservar a
história de Ruby a história dos vencedores, daqueles que estavam no poder
garantindo sua continuidade, o que comprova a percepção de Derrida de que “o arquivo
foi sempre um penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro” (DERRIDA, 2001, p.
31).
No entanto, as ações de Patricia e dos Novos Patriarcas, ao se direcionarem a
uma memória única, homogênea de Ruby, sugerem a seguinte idéia: “Como se Deus
houvesse inscrito uma coisa na memória de um povo e de um povo inteiro: no futuro,
lembre-se de se lembrar do futuro. É como se a palavra ‘povo’, nesta frase, não pudesse
ser pensada senão a partir da unicidade inaudita desta injunção de arquivo” (DERRIDA,
2001, p. 50). Essa unicidade baseada em respostas fechadas não se sustenta, conforme
apontou Morrison nas passagens acima relatadas: Patricia destruiu o que havia
selecionado para a construção das árvores genealógicas e Ruby conheceu a instabilidade
após a tragédia ocorrida no Convento. Morrison, portanto, ao contrário das personagens
mencionadas, propõe uma abertura à multiplicidade, como veremos a seguir.
3.2 – O ARQUIVO DE TONI MORRISON
they would not smother the fire. The smoke was bitter. She stepped back and gathered clumps of lavender
and threw it in as well. It took some time, but finally she turned her back on the ashes and walked into her
house”. (MORRISON, 1998, p. 217)
86
Após a leitura de algumas obras de Toni Morrison, podemos sugerir que uma
das marcas estilísticas por ela adotadas encontra-se em sua aptidão em desafiar os
leitores desde o início de seus textos. Assim, a autora inicia Paraíso com a seguinte
declaração: “Eles atiram na branca primeiro” (MORRISON, 1998, p. 11)
86
. Nesse caso,
as indagações com relação a quem seriam “eles” e o motivo pelo qual provocaram tal
violência permanecem insolúveis ao longo de boa parte do livro. no penúltimo
capítulo é que temos a confirmação de que “eles” seriam os nove homens de Ruby,
liderados pelos Novos Patriarcas, que invadiram o Convento, por enxergarem em suas
habitantes uma espécie de ameaça à comunidade. Esclarecida a imprecisão, faltaria
apenas descobrir quem seria a mulher branca, a primeira a ser atacada. Tal detalhe com
relação à cor da pele da personagem seria um fator relevante em uma história que conta
a saga de negros rocha-8 em busca da constituição e estabilização de um local em que
pudessem viver imunes à discriminação sofrida por seus ascendentes. Porém, Morrison,
em vez de revelar aos leitores se a mulher branca se tratava de Mavis, Gigi, Seneca ou
Palllas, optou por deixar essa questão sem resposta. A razão dessa escolha foi elucidada
por ela na reportagem da revista Time, anteriormente mencionada:
Eu fiz isso de propósito [...] Queria que os leitores tivessem
curiosidade de saber a raça daquelas garotas até que esses
leitores entendessem que a raça delas não tinha importância. Eu
quero dissuadir as pessoas de lerem literatura dessa forma [...]
Raça é a informação menos confiável que você pode ter sobre
alguém. É uma informação real, mas não lhe diz quase nada.
(nossa tradução)
87
86
Texto original: “They shoot the white girl first”. (MORRISON, 1998, p. 3)
87
Texto original: “‘I did that on purpose […] I wanted the readers to wonder about the race of those girls
until those readers understood that their race didn’t matter. I want to dissuade people from reading
literature in that way [...] Race is the least reliable information you can have about someone. It’s real
information, but it tells you next to nothing’”. (GRAY, Paul. Paradise found. Revista Time, 19 de janeiro
de 1998. Disponível no site http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,987690,00.html, acessado
em 29 de maio de 2006)
87
Esses fatos nos permitem vincular o romance de Morrison às narrativas bíblicas,
tal como as caracterizou Erich Auerbach no artigo “A cicatriz de Ulisses”, presente no
livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1987). Nesse artigo,
o autor focaliza uma cena do canto XIX de Odisséia e a contrapõe ao relato bíblico
referente ao sacrifício de Isaac (Gên. 22: 1-19).
Ao chegar à sua casa como forasteiro, Ulisses foi recebido por Penélope, que
logo demonstrou uma preocupação com a hospitalidade: ordenou Euricléia, sua ama, a
lavar os pés do visitante. Durante o cumprimento da tarefa, Euricléia começou a falar da
ausência de seu senhor, que parecia ter a mesma idade do hóspede e poderia, como ele,
estar vagando de um lugar para outro. De repente, a ama notou uma semelhança entre o
estrangeiro e a personagem de sua narração. Ao perceber esse acontecimento, Ulisses se
dirigiu para uma parte escura do recinto, a fim de que Euricléia não descobrisse sua
verdadeira identidade. No entanto, a serviçal acabou tocando a cicatriz em sua coxa e,
conseqüentemente, expondo toda a sua satisfação e alegria. Ulisses, por sua vez,
esforçou-se para contê-la e conseguiu evitar que Penélope o reconhecesse naquele
momento.
Na passagem citada, tudo é “modelado com exatidão e relatado com vagar”
(AUERBACH, 1987, p. 2): as personagens têm seus sentimentos claramente delineados
e o espaço e o tempo são utilizados para a descrição detalhada do cenário. Entre o
momento em que Euricléia observa a cicatriz de Ulisses e o ponto em que ela evidencia
sua felicidade foi inserida uma série de versos com o objetivo de apontar para a origem
da cicatriz e para alguns fatos vinculados a essa ocorrência. Tal recurso narrativo
poderia estar relacionado à tentativa de aumentar a tensão, criando expectativas para o
leitor, o qual deslocaria o trecho em que se encontra a crise para um segundo plano.
Todavia, no caso de Homero, essa idéia estaria equivocada, uma vez que “o que ele nos
88
narra é sempre somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do
leitor” (AUERBACH, 1987, p. 3), não permitindo, portanto, a existência de segundos
planos. A técnica de “avançar e retroceder” através de interpolações escolhida por
Homero encontraria como razão não a construção de um período de suspense, mas sim
o desejo de iluminar, explicitar todos os componentes da obra, “sem que se mostre, em
parte alguma, uma forma fragmentária ou parcialmente iluminada, uma lacuna, uma
fenda, um vislumbre de profundezas inexploradas” (AUERBACH, 1987, p. 4).
Por outro lado, na parte inicial do relato sobre o sacrifício de Isaac, em que Deus
e Abraão são os interlocutores, é manifesto apenas o que diz respeito às palavras
proferidas por eles. Mais adiante, no contexto da narração propriamente dita, alguns
aspectos deixam de ser esclarecidos: as características dos apetrechos (lenha e faca) e
dos seres que fazem parte da comitiva (servos e burro) e os detalhes da viagem feita por
Abraão. Surge, então, um terceiro elemento Isaac cuja descrição se restringe ao fato
de o mesmo ser filho de Abraão. Quanto ao discurso direto, embora este esteja presente,
seu objetivo não seria exteriorizar pensamentos, mas, antes, referir-se a algo implícito,
subentendido.
Nesse sentido, enquanto na escrita de Homero “fenômenos acabados,
uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem
interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos
que se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão” (AUERBACH, 1981, p. 9), na
Bíblia, com relação à passagem mencionada, “só é acabado formalmente aquilo que nas
manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão [...] tempo e espaço
são indefinidos e precisam de interpretação; os pensamentos e os sentimentos
permanecem inexpressos: são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários”
(AUERBACH, 1987, p. 9).
89
Na visão de Auerbach, portanto, Odisséia exigiria uma análise e a Bíblia, uma
interpretação. O mesmo acontece em relação a Paraíso, pois, assim como nas narrativas
bíblicas, “o todo [...] permanece enigmático” (AUERBACH, 1987, p. 9). A alegação de
que Paraíso é uma escritura que se distancia do modo de narrar privilegiado por textos
canônicos da literatura greco-cristã para se aproximar da maneira como são elaboradas
as narrativas bíblicas pode encontrar sua justificativa na forma pela qual Morrison
estrutura esse romance, organiza esse arquivo.
Evando Nascimento, em Derrida (2004), considera serem os três preconceitos
da metafísica ocidental: o logocentrismo, o fonocentrismo e o falocentrismo. O
logocentrismo estaria relacionado ao “privilégio do discurso falado, o lógos, na
presença viva de seu pai-autor” (NASCIMENTO, 2004, p. 22). Segundo esse
pensamento, seria valorizada a origem do discurso, origem essa representada pela figura
paterna, a qual controlaria qualquer tipo de interpretação. No que diz respeito a Paraíso,
esse aspecto poderia ser vinculado à tentativa dos Novos Patriarcas de estabelecimento
de sua visão da história de Ruby como única e verdadeira para os demais moradores da
comunidade. Na percepção de Nascimento, ao abordar a questão do fonocentrismo, “um
discurso falado aparentemente tem uma voz, uma única substancia fônica, enquanto
uma escrita pode ser dotada de múltiplas vozes, repetidas, diferidas, entrecruzadas”
(NASCIMENTO, 2004, p. 26). No caso de Ruby, verificamos a importância que seus
fundadores conferem às histórias contadas de geração para geração a memória dessa
sociedade seria construída, portanto, por meio da oralidade. Quanto ao terceiro
preconceito da metafísica, o falocentrismo, este é marcado pelo “privilégio do phallus
(a representação do pênis), que o valor de presença é uma referência à virilidade
como modo privilegiado da relação a uma origem simples, não-dividida, idêntica a si
mesma (NASCIMENTO, 2004, p. 26). No romance morrisoniano em questão, os
90
homens detinham o poder e eram liderados por Deacon e Steward, os quais, por serem
gêmeos, representariam a unidade, que acabou se desintegrando a partir de uma atitude
de Deacon. A esse falocentrismo Morrison contrapõe a noção de sororidade, dividindo o
romance em nove seções, cujos títulos apresentam nomes de mulheres, ligadas ou a
Ruby ou ao Convento Ruby, Mavis, Grace, Seneca, Divine (mãe de Pallas), Patricia,
Connie, Lone e Save-Marie (filha de Sweetie, habitante de Ruby). Ao optar por esse
recurso estilístico, Morrison nos possibilita articular a sua escritura à percepção de que
“somente uma comunidade que se paute também pelo valor de sororidade, que
reconheça o estatuto e o lugar da irmã pode se dizer amplamente justa. Enquanto o
político for determinado pelo lugar do frater em detrimento da sóror haverá sempre
indivíduos menos cidadãos que outros” (NASCIMENTO, 2006, p. 69).
Após o ataque deflagrado às mulheres do Convento, os moradores de Ruby
acompanharam a desestruturação parcial do Forno: “A chuva que cai em cascatas pelo
topo do Forno atinge a lama pontilhada de flocos do reboco lavado dos tijolos. O Forno
se inclina um pouquinho para um lado. O chão batido em que repousa está minado”
(MORRISON, 1998, p. 329-30)
88
. O Forno, como observamos no primeiro capítulo
desta dissertação, era visto como a representação da história de Ruby. Logo, sua
instabilidade seria a tradução do estado em que ficou a comunidade as pessoas
estavam assustadas, confusas, sem saber o que o futuro lhes reservava. A
desestabilização de Ruby passou a existir em conseqüência de um ato de intolerância
cometido por seus próprios fundadores.
Certo dia, um mês depois do episódio trágico ocorrido no Convento, Deacon
andou pela Central Avenue a pé, descalço, chamando a atenção de todos que passavam
por ele. Chegou à Cross Peter e se dirigiu à casa de Misner. Quando Misner apareceu,
88
Texto original: “Rain cascading off the Oven’s head meets mud speckled with grout flakes washed
away from bricks. The Oven shifts, just slightly, on one side. The impacted ground on which it rests is
undermined”. (MORRISON, 1998, p. 287)
91
ele começou a falar de forma confusa sobre vários assuntos. Depois confessou ao
reverendo que havia cometido adultério, mas não expôs que sua amante era Connie,
moradora do Convento. Em seguida, começou a contar outra história: a de seu avô
Zechariah Morgan. Segundo ele, Zechariah tinha um irmão gêmeo e a dupla era
chamada de Coffee e Tea. Sua unidade não se refletia apenas na aparência, como
também na afinidade que possuíam. Em determinada ocasião, ao passarem perto de um
bar, alguns homens brancos, armados, obrigaram os dois a dançar. Tea se viu forçado a
atender ao pedido. Coffee, todavia, preferiu ser baleado no pé. A partir desse
acontecimento, passaram a não se considerar mais irmãos. Coffee resolveu planejar uma
vida nova em outro lugar e não convidou Tea para a peregrinação a Oklahoma e, mais
tarde, a fundação de Haven.
Essa revelação de Deacon demonstra que, desde a sua origem, Haven contava
com uma fissura. A separação dos gêmeos sugere uma quebra de unidade. Foi o que se
repetiu em Ruby, após o incidente no Convento, com Steward e Deacon, que este
passou a sentir “uma incompletude, uma solidão abafada, que lhe tirava o apetite, o
sono, a saúde” (MORRISON, 1998, p. 345)
89
. Logo, ao decidir procurar Misner,
Deacon agiu, pela primeira vez, sem a influência de Steward. Essa passagem, em que,
novamente, irmãos têm sua integração desconstruída, aponta não apenas para a
circularidade existente na narrativa morrisoniana, como também para a concepção de
Derrida de que, “uma vez que há o Um, há o assassinato, a ferida, o traumatismo. O Um
se resguarda do outro. Protege-se contra o outro, mas no movimento desta violência
ciumenta comporta em si mesmo, guardando-a, a alteridade ou a diferença de si (a
diferença para consigo) que o faz Um. O ‘Um que difere de si mesmo’” (DERRIDA,
2001, p. 100). Em Paraíso, a desestruturação do Um, representado pela dupla Steward e
89
Texto original: “an incompleteness, a muffled solitude, which took away appetite, sleep and sound”.
(MORRISON, 1998, p. 300-1)
92
Deacon, poderia assinalar o fim da história de Ruby. Porém, uma sensação que tiveram
Misner e Anna alude a algo diferente.
Os personagens em questão não estavam presentes em Ruby quando o ataque ao
Convento aconteceu. Ao retornarem à cidade, foram surpreendidos pelas diversas
versões contadas pelos moradores, as quais tinham apenas a seguinte coincidência:
quando o motorista da ambulância foi até o Convento para recolher os corpos das
mulheres, não encontrou “nenhum corpo. Nada. Até o Cadillac tinha desaparecido”
(MORRISON, 1998, p. 335)
90
. Diante desse fato, Misner e Anna decidiram ir até o local
do crime para investigar o caso. Ao entrarem no recinto em questão, examinaram os
quartos, comentaram sobre possíveis pistas, recolheram alguns ovos e pimentas para
análise e “foi então que eles viram. Ou sentiram, porque não havia nada para ver. ‘Uma
porta’, ela [Anna] disse depois. ‘Não, uma janela’, ele [Misner] disse, rindo. ‘Essa é a
diferença entre nós. Você uma porta, eu vejo uma janela’ […] Fosse uma porta a ser
aberta ou uma janela aberta, o que aconteceria se você entrasse? O que haveria do
outro lado? O que poderia ser? O quê?’” (MORRISON, 1998, p. 350-1)
91
.
As imagens da porta e da janela abertas acenam para uma ampliação de
pensamentos que os membros de Ruby deveriam ter para dar prosseguimento à história
da comunidade: a não-aceitação de estranhos no local, o isolamento da sociedade, a
insistência em manter a pureza do sangue rocha-8 e a crença na imortalidade eram
fatores que precisavam ser revistos. A começar por esse último aspecto, porque no
período da tragédia em Ruby um dos filhos de Sweetie, uma menina, havia falecido.
Seu nome era Save-Marie. A perda dessa criança deixou os moradores ainda mais
abatidos. Mas Misner lhes trouxe consolo ao olhar para o caixão da menina, cujo nome
90
Texto original: “no bodies. Nothing. Even the Cadillac was gone”. (MORRISON, 1998, p. 292)
91
Texto original: “that they saw it. Or sensed it, rather, for there was nothing to see. A door, she said
later. ‘No, a window,’ he said laughing. ‘That’s the difference between us. You see a door; I see a
window’ […] Whether through a door needing to be opened or a beckoning window already raised , what
would happen if you entered? What would be on the other side? What on earth would it be? What on
earth?’” (MORRISON, 1998, p. 305)
93
lembra a sonoridade de “Salve-me”, e se deparar, novamente, com a imagem da janela
aberta: “‘Embora a vida na vida seja finita e a vida depois da vida duradoura, Ele está
sempre conosco, na vida, depois dela e, principalmente, entre as duas, à espera de que
conheçamos o esplendor’” (MORRISON, 1998, p. 353)
92
.
Com essa passagem, Morrison aponta para a existência de um futuro para Ruby,
apesar de deixar a cargo dos leitores inferirem qual teria sido esse futuro. Quanto às
moradoras do Convento, a escritora, nas últimas páginas de Paraíso, traz cenas
fragmentadas, em que as cinco mulheres em questão encontram seus familiares. Assim,
acompanhamos Gigi conversando com seu pai, Mavis dialogando com sua filha e
Pallas, Seneca e Connie revendo suas respectivas mães.
O ressurgimento dessas personagens, bem como a repetição da história de
Coffee e Tea através de Steward e Deacon, remetem não apenas à concepção de
tradução benjamiana como um processo de sobrevivência, como também à questão do
retorno do recalcado. No texto “Lo Sinistro” (O Estranho 1981)
93
, Freud, baseado na
língua alemã, propõe que “o estranho se dá, freqüente e facilmente, quando se
desvanecem os limites entre fantasia e realidade” (nossa tradução)
94
. Após terem
desaparecido sem deixar vestígios, as mulheres que foram atacadas pelos homens de
Ruby ganham visibilidade, mesmo que em outra dimensão. Isso demonstra que,
seguindo o pensamento freudiano, a repressão é “condição necessária para que o
primitivo possa retornar como algo estranho” (nossa tradução)
95
. Ao apresentar
novamente Gigi, Mavis, Pallas, Seneca e Connie, Morrison ilustra o fato de que “se é
92
Texto original: “‘Although life in life is terminal and life after life is everlasting, He is with us always,
in life, after it and especially in between, lying in wait for us to know the splendor’”. (MORRISON, 1998,
p. 307)
93
As citações referentes ao texto “Lo Sinistro” foram retiradas de Obras completas: tomo III. Trad. Luis
Lopez-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. p. 2483-2505 e traduzidas por nós para a
língua portuguesa.
94
Texto em espanhol: “lo siniestro se da, frecuente e fácilmente, cuando se desvanecen los límites entre
fantasía y realidad”. (FREUD, 1981, p. 2500)
95
Texto em espanhol: “condición necesaria para que lo primitivo pueda retornar como algo siniestro”.
(FREUD, 1981, p. 2499)
94
justo se lembrar do futuro e da injunção de se lembrar, isto é, a injunção arcôntica de
proteger e recolher o arquivo, não é menos justo lembrar dos outros, os outros outros, e
os outros em si e que os outros povos pudessem dizer o mesmo de outra maneira. E
que todo outro é totalmente outro” (DERRIDA, 2001, p. 99).
No trecho final de Paraíso, pela primeira e única vez, uma referência ao que
seria a palavra utilizada como título para o romance. Nesse momento, Connie teve uma
visão de sua mãe biológica, Piedade, que provavelmente aguardava o seu retorno:
Quando o oceano oscila, enviando ritmos de água para a praia,
Piedade olha para ver o que veio. Mais um navio, talvez, mas
diferente, indo para um porto, tripulação e passageiros, perdidos
e salvos, trementes, pois estão desconsolados algum tempo.
Agora, repousarão antes de enfrentar o trabalho sem fim que
foram criados para fazer aqui, no Paraíso (MORRISON, 1998,
p. 365)
96
Desse modo, faz-se presente uma nova interpretação ao termo mencionado, a partir da
qual se sugere que a condição paradisíaca não se restringe a uma situação de deleite.
Portanto, à maneira da noção derridiana de arquiescrita, Paraíso “indicia mais do que
um nome; sinaliza a condição de possibilidade da própria significação enquanto tornar-
se signo do traço ou do rastro” (NASCIMENTO, 2004, p. 35).
Ao se inspirar em um episódio da história dos Estados Unidos e escolher uma
composição fundamentada em diferentes pontos de vista femininos para sua obra,
Morrison demonstra que “o sentido arquivável se deixa também, e de antemão, co-
determinar pela estrutura arquivante. Ele começa no imprimente” (DERRIDA, 2001, p.
31). Dessa forma, como imprimente, Morrison se distancia da tradição logo, fono e
falocêntrica e constrói um arquivo fragmentado, plurifônico, não-patriarcal.
96
Texto original: “When the ocean heaves sending rhythms of water ashore, Piedade looks to see what
has come. Another ship, perhaps, but different, heading to port, crew and passengers, lost and saved,
atremble, for they have been disconsolate for some time. Now they will rest before shouldering the
endless work they were created to do down here in Paradise”. (MORRISON, 1998, p. 318)
95
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta dissertação, buscamos trazer à luz um estudo de Paraíso, de Toni
Morrison, valendo-nos do romance como lócus de raciocínio sobre questões que
mobilizam as críticas literária, tradutória e cultural nos dias de hoje. Além do mais,
colocamos Morrison e seus personagens em diálogo com intelectuais que
tradicionalmente não foram utilizados em estudos de suas obras. Dessa forma,
procuramos ampliar o modo de abordagem desse e de outros livros de Morrison e de
autores que, como ela, lidam com assuntos relativos aos diferentes universos dos
descendentes da África negra.
Embora trate de temas que dizem respeito mais especificamente aos afro-
americanos e confira, nesse cenário, visibilidade a personagens femininas, Morrison,
também em função de sua inserção acadêmica, extrapola esses contextos. Desse modo,
sua visão atenta a discussões que preocupam os meios literário e cultural
contemporâneos contribuiu para que ela alcançasse uma posição de destaque na cena
literária mundial, tendo sido a primeira escritora negra e até hoje a única a ser
agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura. Paraíso, lançado após tal premiação, é
uma confirmação dessa importância.
97
Tal romance nos fornece visões sobre tradução, alegoria e história muito
próximas da de Walter Benjamin. Como pudemos observar, Morrison aponta, em
Paraíso, para o fato de que a tradução se constitui, como indica Benjamin, em uma
atividade necessária, mas ao mesmo tempo transitória, uma vez que “se constrói e se
esgota no tempo e no espaço”, segundo percepção de Maria Clara Castellões de Oliveira
durante o processo de orientação dessa dissertação. No que concerne à alegoria, a obra
em questão nos permite perceber que, quando um objeto é transformado pelas mãos do
alegorista, ele passa a adquirir uma nova significação. No entanto, nessa característica
estaria implícita uma linguagem enigmática, que abre espaço para uma multiplicidade
de interpretações. A história, por sua vez, é vista por Morrison, no contexto que
examinamos, de forma não-linear, pelo prisma dos vencidos, que, ao longo do
desenrolar da história, acabam reproduzindo ações semelhantes àquelas dos vencedores,
contra os quais se debatiam. Além disso, a autora sugere que a construção da imagem
do passado é baseada antes em uma reminiscência do mesmo do que naquilo que de fato
ocorreu. Essas reflexões feitas a partir de Paraíso podem ser ilustradas por meio do
episódio da queda de parte das letras da mensagem presente sobre o Forno: após
transformarem o antigo local de cozer alimentos em alegoria, os Novos Patriarcas e os
jovens de Ruby passaram a oferecer diferentes interpretações aos resquícios escriturais
da placa, fundamentados na maneira como enxergavam a história da comunidade. Tal
passagem, marcada por controvérsias, é bastante significativa no livro de Morrison,
porque nos conduz ao pensamento, baseado na visão de Jeanne Marie Gagnebin, de que
a história não se caracteriza por um amadurecer tranqüilo, mas sim pelo
desencadeamento de um processo violento determinado pela tradução.
Em Paraíso, Morrison também nos coloca frente a frente com dois tipos de
hospitalidade sobre os quais Jacques Derrida se detém em seus estudos: a hospitalidade
98
condicional e a hospitalidade incondicional. Enquanto, no âmbito da primeira, o
indivíduo que não é membro do grupo ao qual recorre é recebido mediante a imposição
de condições, no que se refere à segunda, tais condições passam a não existir e o
estrangeiro, antes de qualquer identificação, é acolhido como hóspede. É o que pudemos
verificar nas atitudes dos Novos Patriarcas de Ruby e das mulheres do Convento,
respectivamente. No caso dos fundadores de Ruby, estes costumavam segregar aqueles
que não tinham sangue puramente rocha-8 ou que não praticassem seus princípios
religiosos, demonstrando uma hospitalidade condicional. Por outro lado, no ambiente do
Convento, todas as pessoas eram abrigadas incondicionalmente.
Na abordagem da hospitalidade em Paraíso, somos levados a discutir o status do
estrangeiro, aproximando-o de colocações feitas por Julia Kristeva. Em Ruby,
especialmente no que diz respeito aos Novos Patriarcas, ser estrangeiro era ser inimigo,
pelo fato de esses moradores buscarem incessantemente proteger a cidade de qualquer
ameaça de instabilidade. Quanto ao Convento, ser estrangeiro era também ser
componente do grupo: as histórias de vida das mulheres que a ele se dirigiam tinham em
comum o exílio interior, a partir do qual se fez presente a possibilidade de convivência
dentro da diferença.
Algumas questões suscitadas pela narrativa morrisoniana permitem-nos
estabelecer uma interlocução com o tratamento dispensado por Amós Oz ao fanatismo.
Segundo o autor, o fanatismo estaria relacionado a um alto grau de desespero, que
poderia ter como conseqüência uma atitude violenta. Em Paraíso, os Novos Patriarcas,
confrontados com a diferença e a dissonância, representadas fundamentalmente pelas
mulheres do Convento, e, dessa forma, temendo pela suposta estabilidade de sua
comunidade, lideraram um grupo de homens para atacá-las. Nesse sentido, passamos a
99
refletir sobre a possibilidade de se contrapor à intolerância com relação ao outro o
diálogo, a convivência dos contrários.
Finalmente, quando investigamos a estrutura elaborada por Morrison no
romance em tela, observamos a tentativa da mesma, na linha de um pensamento
próximo ao da desconstrução de Jacques Derrida, de se afastar de concepções
fonocêntricas, logocêntricas e falocêntricas. O seu texto, portanto, sinaliza para o fato de
que diferentes versões da história podem ser contrastadas àquela tida como única e
verdadeira e, principalmente, abre espaço para as mulheres proferirem suas vozes.
Esses fatores nos encaminham à afirmação de que Morrison, assim como uma
das personagens de Paraíso, Patricia Best, sofre de mal de arquivo, diagnosticado por
Derrida como a busca por aquilo que está oculto no arquivo. No caso de Patricia, esta,
em seu plano de reconstrução da história de Ruby, procurou encontrar respostas
fechadas, que visassem a fornecer coerência e uniformidade àquilo que fora construído
em função da oralidade, intermediada pela memória obviamente fragmentada dos seus
habitantes e controlada pela voz do patriarcalismo. Morrison, por sua vez, ao escrever à
semelhança das narrativas bíblicas, organizou um arquivo aberto a múltiplas
possibilidades interpretativas. Tais especificidades, portanto, podem ser vinculadas à
epígrafe escolhida para esta dissertação: ao se basear em um acontecimento da história
de seu país para compor a sua história, Morrison produziu uma obra que suspeita dos
dogmatismos, analisa os pressupostos e, acima tudo, coloca questões que se aproximam
daquelas discutidas no âmbito do pensamento crítico literário, cultural e tradutório
contemporâneo.
100
101
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