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UFRJ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A CONSTRUÇÃO DO LAÇO SOCIAL NA PSICOSE
Doris Rangel Diogo
Rio de Janeiro
2008
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2
A CONSTRUÇÃO DO LAÇO SOCIAL NA PSICOSE
Doris Rangel Diogo
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Ana Cristina Costa Figueiredo
Rio de Janeiro
Julho de 2008
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A CONSTRUÇÃO DO LAÇO SOCIAL NA PSICOSE
Doris Rangel Diogo
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de doutor.
Aprovada por:
___________________________________________
Profª Ana Cristina Costa de Figueiredo (Orientador)
Drª Saúde Coletiva - IMS/UERJ
___________________________________________
Profª Ana Beatriz Freire
Drª Psicologia – PUC- RJ
____________________________________________
Profª Angélica Bastos Grimberg
Drª Psicologia – PUC- SP
____________________________________________
Profª Letícia Martins Balbi
Drª Psicologia – PUC- RJ
_____________________________________________
Prof. Paulo Eduardo Viana Vidal
Dr. Teoria Psicanalítica – UFRJ
Rio de Janeiro
Julho de 2008
4
FICHA CATALOGRÁFICA
DIOGO, Doris Rangel.
A construção do laço social na Psicose
Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2008
Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas:
1. Psicanálise 2. Laço social 3. Psicose – I. Figueiredo, Ana Cristina Costa de. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.
5
RESUMO
O tema desta tese é o laço social na psicose. Seu interesse é responder à questão: como
a clínica psicanalítica, tanto aquela que se realiza através do dispositivo de consulta quanto a
que tem lugar na prática institucional, pode favorecer a construção de uma suplência que
propicie laço social? Na perspectiva de Freud, o delírio e a alucinação seriam tentativas de
cura, isto é, tentativas de recuperação do objeto perdido em sua função de alteridade.
Seguindo a trilha freudiana, Lacan propôs a metáfora delirante como forma de suplência à
foraclusão do Nome-do-Pai, logo, como recurso capaz de cumprir, de certo modo, a função
de
ponto de basta da metáfora paterna. No entanto, esta pesquisa revela que não apenas com
metáfora se faz uma suplência. Esta última pode-se constituir de modo diferente daquele pelo
qual a metáfora realiza a reconstrução do sentido. Para examinar teoricamente outras
suplências, privilegia-se, neste estudo, o segundo axioma do ensino de Lacan, que, utilizando
a topologia, propõe a pluralização dos
Nomes-do-Pai. Dessa forma, a noção de suplência se
equipara a de um saber-fazer com alíngua (lalangue), e a noção de laço social passa a ser
equivalente à de sinthoma. Comentam-se, ainda, algumas passagens clínicas. Dois aspectos
são enfatizados, ambos ilustrativos da evidência de que nem todas as suplências têm estatuto
de sinthoma. O primeiro refere-se às estratégias e táticas do manejo da transferência pelo
analista (consulta) e do tratamento do Outro pela equipe (prática institucional); o segundo, a
um modo singular de tratamento do gozo, o saber-fazer com alíngua como invenção do
sujeito.
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RESUME
Le thème de cette thèse est le lien social dans la psychose. Notre intérêt est de
répondre à la question: Comment la clinique d’orientation psychanalytique, tant celle qui se
réalise au travers du dispositif de consultation ou celle qui a lieu dans la pratique
institutionnelle, peut favoriser au sujet psychotique la construction d’une suppléance, vers le
lien social? Dans la perspective de Freud, le délire et l’hallucination seraient des tentatives de
guérison, c’est à dire des tentatives de récupération de l’objet perdu dans sa fonction
d’altérité. Suivant ce chemin freudien, Lacan propose la métaphore délirante comme forme de
suppléance à la forclusion du
Nom-du-Père, donc une possibilité de réaliser, d’une certaine
façon, la fonction de
point de capiton de la métaphore paternelle. Toutefois, notre recherche
révèle que ce n’est pas seulement avec une métaphore que se fait une suppléance. Celle-ci
peut se constituer d’un mode différent de la reconstruction du sens que la métaphore réalise.
Pour examiner théoriquement d’autres suppléances, nous avons, dans notre étude, privilégié le
deuxième axiome de l’enseignement de Lacan qui, utilisant la topologie, propose la
pluralisation des Noms-du-Père. De cette manière, la notion de suppléance se compare à celui
d’un savoir-y- faire avec lalangue et la notion de lien social devient équivalente à la fonction
du sinthome. Pour conclure, quelques passages cliniques sont commentés. Deux aspects sont
rehaussés, et les deux cherchent à illustrer l’évidence que toutes les suppléances n’ont pas le
statut de sinthome. Le premier se réfère aux stratégies et tactiques du maniement du transfert
par l’analyste (consultation) ou du traitement de l’Autre par l’équipe (pratique
institutionnelle) et le second travail, le mode singulier de traitement de la jouissance qui est un
savoir-y-faire avec lalangue, en tant qu’invention du sujet.
Mots-clè: psychanalyse, lien social, psychose
7
À minha família,
estreitando os laços
que nos unem.
8
AGRADECIMENTOS
A Ana Cristina Figueiredo, pela orientação cuidadosa, pelos instigantes questionamentos e
pela presença serena e amiga, mesmo nos momentos difíceis dessa caminhada.
A Angélica Bastos, Ana Beatriz Freire, Ana Carolina Lo Bianco e Regina Herzog, professoras
do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, pelas intervenções pertinentes e pelo
apoio nesse percurso.
À CAPES, pelo apoio financeiro através da bolsa do PDEE, que me permitiu realizar a
pesquisa de campo nas instituições belgas.
A Andréa Guerra, parceira de pesquisa no doutorado que, atenta e sensível, acolheu meu
desejo, articulando com Claudia Generoso, no circuito EBP-BH, minha entrada nos laços
sociais com os parceiros belgas.
A Cristiano Ventura, belga-brasileiro que, muito gentil, intermediou meu pedido de
intercâmbio universitário, o que me possibilitou acesso à rede institucional ULB, Foyer de
l’Equipe e ACF, tecida em seu próprio percurso.
Aos professores e supervisores psicanalistas que me receberam na pesquisa de campo,
especialmente, Alfredo Zenoni (ACF); Philippe Fouchet (ULB), Marc Minnen, Louise
Borriello e Félix Salmoïlovich (Foyer de l’Equipe); Dominique Holvoet, Guy Poblome,
Veronique Robert, Cédric Lamarque e Sophie Louis (Courtil), pelas orientações teórico-
clínicas e pela generosa hospitalidade na comunidade belga.
Aos meus pacientes, pelas questões que me puseram a trabalho e por me possibilitarem
aprender com suas invenções diante dos enigmas da vida.
À minha família, especialmente aos meus irmãos Sonia, Gilmar e João, pelo incentivo e pela
compreensão nesses tempos de tão poucos encontros.
9
Aos meus pais, Mario Diogo e Anália Rangel Diogo, com quem aprendi a viver conjugando
amor e trabalho, o que me possibilita fazer laços pela vida afora.
Às minhas filhas, Tatiana e Patrícia, bem como aos meus genros, Gustavo e Bruno, pela
dedicação demonstrada na solução de assuntos do cotidiano, pela generosidade e apoio afetivo
nessa travessia.
Aos mais jovens, Fabiana, Luiza, Isadora e Júlia, que, com humor nos e-mails, tornaram meus
dias de trabalho mais divertidos.
Aos membros e participantes da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) Seção Rio,
especialmente, a Stella Jimenez, coordenadora do Núcleo de Topologia, onde avanço no
trabalho teórico-clínico estreitando parcerias afetivas.
A Romildo do Rego Barros, não pelas instigantes discussões no seminário sobre o laço
social na EBP - Seção Rio, como também pela presença atenciosa em outros laços
compartilhados.
Aos colegas da Pesquisa Clínica em Psicanálise do IPUB, coordenada por Ana Cristina
Figueiredo, cujo trabalho se estrutura em ambiente de cooperação e amizade.
Às queridas amigas Maria Isabel Lins e Ana Tereza Groisman, pela gentileza em me
introduzir junto a amigos para minha acolhida em Bruxelas.
Aos amigos belga-brasileiros, Yolanda Thomé, Maria de Lourdes Berten, André Berten,
Marie Madeleine G. Ladrière e Guy Ladrière, cuja hospitalidade e generosidade tornaram
alegre e familiar minha estadia em Bruxelas.
A José Otávio de Vasconcelos Naves, com quem compartilho momentos importantes da vida,
pelo apoio afetivo neste percurso.
A Maria Sílvia Hanna, pela amizade e pelas pertinentes orientações no trabalho com a clínica
da psicose.
10
Aos queridos amigos que me acompanharam com carinho nessa travessia, especialmente,
Maria de Fátima Saadi, Sonia Vianna, Maria Lídia Alencar, Lucila Sabino, Mariana Mollica,
Pascale Diss, João von Tilburg, Astrea da Gama e Silva, Cristina Lutterbach, Ângela
Bernardes, Inês Lamy, Selma Ranieri, Jeanne-Marie Ribeiro, Cleide Maschietto, Fátima
Pinheiro, Andréa Vilanova, Isabela Nogueira, Cristina Frederico, Nelisa Guimarães, Vânia
Gomes, Elizabeth Amado, Emilia Monteiro, Leila Reis, Débora Fuentes, Sílvia Freitas,
Georgina Cerquise, Tatiana Trindade, Cibely Ayres.
À direção do PARN, nas gestões de Carlos Marins, Martha Moraes, Regina Bordallo, Mariza
Fonseca e ao Ministério da Saúde pela licença de capacitação profissional.
Ao meu sobrinho Thiago, pelo apoio afetivo e pelo suporte de informática na formatação do
texto.
A Silvia Venturini, pela leitura cuidadosa na revisão final do meu texto.
A Andréa Fresta e José Luiz, funcionários da UFRJ, e aos colaboradores Nelson Voigt e
Victor Moretto, pelo apoio e logística.
11
A vida é constante, progressivo desconhecimento.
João Guimarães Rosa
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9
PARTE I - CLINICA DO SUJEITO E LAÇO SOCIAL ......................................... 13
CAPÍTULO I: Clínica do sujeito: um campo de discussões .................................... 13
1.1. A clinica do sujeito no campo da saúde mental ................................................... 16
1.1.1. Inclusão: uma questão de laço social ........................................................... 18
1.1.2. Tecendo a rede na atenção psicossocial: diretrizes de trabalho ................... 20
1.2. Recortes sobre o sujeito e o objeto em Freud e Lacan ...................................... 21
1.2.1. As concepções de sujeito e de objeto em Freud ............................................. 21
1.2.2. Pontuações sobre o sujeito e o objeto
a em Lacan ........................................ 44
CAPÍTULO II: Laço social na Psicanálise ............................................................. 55
2.1. Contribuições de Freud para o estudo do laço social ....................................... 55
2.2. Lacan e a formulação lógica do laço social ..................................................... 73
2.3. Laço social na psicose ..................................................................................... 94
PARTE II: A PSICANÁLISE APLICADA À TERAPÊUTICA .......................... 134
CAPÍTULO I: A clínica da psicose nos dispositivos de consulta 134
1.1. Caso C.: Metamorfose ambulante .................................................................... 134
1.2. Caso S.: Líder de Vendas ................................................................................. 166
CAPÍTULO II: A prática institucional ................................................................. 175
2.1. Foyer de l’Equipe: um estilo de comunidade terapêutica ............................. 180
2.2. Courtil: a invenção contingente .................................................................... 189
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 196
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 202
13
INTRODUÇÃO
O tema desta tese é o laço social na psicose. O interesse é responder à questão: como a
clínica de orientação psicanalítica, tanto a que se realiza através do dispositivo de consulta
quanto a que tem lugar na prática institucional, pode favorecer a construção de uma suplência
que propicie laço social?
Tal interrogação visa a explicitar a articulação clínico-conceitual da noção de laço
social, bem como a estabelecer uma interlocução com as propostas da atenção psicossocial,
que vêm sendo implementadas pela reforma psiquiátrica no campo da saúde mental.
Essa articulação clínico-conceitual pressupõe a necessidade, tanto de uma precisão
teórica que explicite os axiomas que sustentam a noção de laço social, quanto de um
questionamento dessa noção. Tal questionamento é possível a partir dos elementos recolhidos
nas diferentes modalidades de intervenção no campo da saúde mental. Do material recolhido,
esta tese destaca a singularidade de cada sujeito em sua resposta à experiência do real como o
ponto a ser desvelado na transmissão da psicanálise.
A pesquisa de campo tem como ponto de partida meu trabalho com sujeitos psicóticos
atendidos em consultório e em ambulatório público de saúde mental, no Rio de Janeiro. O
ambulatório funciona segundo as diretrizes da política de reforma psiquiátrica adotada pelo
Sistema Único de Saúde (SUS). Desse trabalho, extraí material clínico a ser comparado com
dados da segunda fase da pesquisa de campo, realizada nos Centros de Convivência, sob
orientação dos supervisores Alfredo Zenoni, Marc Minnen e Louise Borrielo, do Foyer de
l’Equipe, e Guy Poblome, do Courtil. Os dados obtidos na pesquisa de campo foram
discutidos simultaneamente com o Professor Philippe Fouchet, da Université Libre de
Bruxelles. O foco principal da pesquisa é a especificidade do processo de construção de
suplências como possibilidade de laço social, considerando-se o manejo da transferência, por
parte da equipe, em cada caso.
A diretriz da pesquisa é o método psicanalítico, que se caracteriza pela articulação
entre investigação e tratamento. Conforme assinalaram Figueiredo e colaboradores (2001,
p.18), “O universal que regula sua prática de investigação e tratamento é ‘não todo’, ainda que
algo de uma universalização do saber deva ser obtido visando à transmissão”. O método foi
14
desenvolvido em dois tempos: o primeiro, teórico, enfatiza as articulações conceituais; o
segundo, teórico-clínico, destaca relatos, estratégias, táticas de manejo da transferência e
processos de construção subjetiva.
A investigação conceitual interroga a possibilidade de laço social na psicose, já que tal
modalidade de defesa se caracteriza por uma rejeição da castração, o que determina efeitos na
linguagem e nas relações do sujeito com as demandas do Outro.
Optei por apresentar a pesquisa articulando duas partes. Na primeira parte, abordo a
fundamentação teórica, tendo a clínica do sujeito (ZENONI, 2000) como eixo do trabalho de
reinserção social de sujeitos psicóticos. Entendo ser este o ponto nodal da clínica
psicanalítica. Sendo assim, a tese especifica a noção de sujeito e de objeto como construtos
que desvelam a experiência do encontro do ser falante com o campo do Outro. Neste campo,
situa o Édipo (FREUD, 1921/1980), ou seu correlato, o significante
Nome-do-Pai (LACAN,
1957-58a/1999), tomado como paradigma do que promove o laço social. Em outras palavras,
por fixar a significação fálica, interditar o gozo e introduzir o desejo, tal operador simbólico
constitui a solução típica que, na neurose, separa o ser falante e o Outro real. Este último
passa a ter o estatuto de Outro simbólico, o que possibilita a extração do objeto a.
No fio desse argumento, a tese destaca a formulação de Lacan (1971-72/inédito)
segundo a qual o discurso é laço social, o que ele demonstra através do matema que articula
cadeia significante, sujeito dividido e objeto a. Nesse contexto, o dito esquizofrênico, devido
à inexistência do Outro, é suposto estar fora-do-discurso (LACAN, 1972), hipótese que pode
ser ampliada para os momentos de desencadeamento dos demais tipos clínicos de psicose.
Com isso, a tese coloca em questão a possibilidade de tais sujeitos estarem no laço social.
Como conceber a construção de laço social na psicose, se o Édipo ou o
Nome-do-Pai,
como operador simbólico que subjaz a esse laço, não é o recurso que funciona na resposta do
sujeito psicótico à realidade?
A psicose é abordada como a modalidade de defesa do eu que rejeita tanto a
representação incompatível como seu afeto, o que implica um desligamento parcial da
realidade (FREUD, 1911b/1980). Trata-se, portanto, de uma escolha subjetiva. Neste caso, o
sujeito, ao mesmo tempo em que rejeita o laço social típico, busca outra solução para a
fixação do gozo, uma resposta para o enigma da existência, o que Freud reconheceu como
tentativa de cura. Seguindo essa trilha, Lacan, no início de seu ensino, alinhado às premissas
freudianas, formula a metáfora delirante como suplência à
foraclusão da metáfora paterna. No
entanto, apesar dos estudos sobre a psicose, verifica-se, por questões de método, a reserva de
ambos os autores quanto ao tratamento psicanalítico da psicose. Tal posição pode ser notada
15
em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, quando Lacan (1957-
58b/1998) afirma que não se trata de ultrapassar Freud, o que implica aguardar uma mudança
de abordagem para a clínica psicanalítica da psicose. A reserva era reconsiderada pelos
referidos autores quando a análise já estava em andamento (MALEVAL, 2000b). Nesse
contexto, marcado pela orientação lacaniana de não ceder diante da psicose, a direção do
tratamento apostava na possibilidade de construção de uma metáfora delirante como suplência
à
foraclusão do Nome-do-Pai.
Em seguida, a tese faz referência à segunda formalização do ensino de Lacan, que,
introduzindo o axioma topológico, formula a noção de alíngua, situada em uma anterioridade
lógica à linguagem. Assim, a noção de Nome-do-Pai deixa de ser o único paradigma do
tratamento do gozo, passando a ser uma suplência dentre outras à falta de relação sexual. A
mudança de paradigma abre nova perspectiva para a clínica da psicose, pois permite sustentar
a construção de suplências, pontos de ancoragem (STEVENS 2000), como forma de
tratamento do real do gozo, não só através da metáfora delirante, mas também através de uma
significação fora-de-sentido.
Na segunda parte, a tese aborda o campo da clínica da psicose a partir da psicanálise
aplicada à terapêutica. A clínica do sujeito é retomada como o fio que atravessa as
intervenções nos dispositivos de consulta e na prática institucional nos Centros de
Convivência. Em relação à primeira modalidade, a que se realiza em encontros regulares entre
analisando e analista, a tese focaliza o processo de construção tecido na transferência. Tal
processo possibilitou a fixação de um ponto de ancoragem em dois casos de esquizofrenia – o
primeiro, Caso C., atendido em consultório privado, e o segundo, Caso S., em ambulatório da
rede pública. O Caso C. foi escolhido em função do percurso que vai do desencadeamento à
estabilização, destacando-se o tratamento dado ao objeto voz. O Caso S. foi escolhido por
indicar como o dispositivo de consulta em ambulatório pode favorecer, em alguns casos, a
construção do laço social. O fio que liga esses dois casos é o manejo da transferência,
modalidade de laço social que constituiu uma suplência a partir da qual outras foram
construídas.
Em relação à segunda modalidade, a da prática institucional, a pesquisa considera os
modos de intervenção em situações de convivência, no Foyer de l’Equipe e no Courtil,
destacando duas modalidades de prática institucional, ambas orientadas pela descoberta de
Freud e pelo ensino de Lacan.
Nessas instituições, a tese focaliza momentos clínicos de sujeitos psicóticos,
destacando dois eixos. O primeiro diz respeito ao modo como o analista ou o membro da
16
equipe da prática institucional manejou o endereçamento ou interveio a partir do tratamento
do Outro
, o que se recortou, a posteriori, como efeito terapêutico em termos de tratamento do
gozo. O segundo concerne ao processo de invenção do sujeito, que pode levar à construção de
uma suplência ou ponto de ancoragem como possibilidade de laço social.
A pesquisa sustenta que a invenção pode se apresentar sob a forma de uma produção
de sentido
, como uma metáfora delirante – é o que indica o Caso C. – ou sob a forma de uma
construção
fora-de-sentido como revela o Caso Sophie, discutido a partir do texto
publicado. Neste último, o trabalho evidenciou tanto a versão do objeto quanto a da letra, que
fixa, por algum tempo, o gozo até então à deriva. No percurso realizado, privilegiamos o
tratamento dado ao objeto não extraído na psicose.
Segundo a posição adotada nesta tese, é possível, em alguns casos de psicose, a
construção de suplências que propiciem laço social. Levam-se em conta os dados da clínica e
as articulações teóricas, como, por exemplo, a noção de suplência e de
sinthoma, as quais se
apóiam, conforme a contribuição de Lacan, no recurso à topologia.
Para concluir, a tese sugere que a meta da atenção psicossocial no âmbito da reforma
psiquiátrica seja abordada na perspectiva do laço social, apostando que
a cidadania pode vir
por acréscimo.
O interesse clínico, mas também o depoimento de Freud “Eles me transmitiram o
que rigorosamente falando eles próprios não possuíam” (FREUD, 1914a/1980, p.23) que
considero paradigmático do laço social, puseram-me a trabalho.
17
PARTE I – CLÍNICA DO SUJEITO E LAÇO SOCIAL
Capítulo I - Clínica do sujeito: um campo de discussões
A prática da psicanálise inventada por Freud e orientada pelo ensino de Lacan só pode
ter lugar porque considera que sujeito na linguagem, mesmo que o ser falante se recuse a
dela fazer uso. Essa suposição tem como requisito a noção de verdade como aquilo que pode
se desvelar ao ser, em parte, nas incidências das palavras na fala, o que põe em jogo o Outro e
levanta a questão do laço social. O que indica que um sujeito está inscrito no laço social? É a
primeira questão da tese. Para abordá-la, partimos da noção de sujeito.
A ligação entre sujeito e verdade não surgiu, evidentemente, com a psicanálise. Dela
temos notícias desde tempos imemoriais, o que indica ser ela inerente à própria relação do ser
com a linguagem. Freud, ao inventar a psicanálise, uma experiência que articula pulsão sexual
e linguagem sob transferência, interrogou a relação entre sujeito e verdade.
Tal interrogação, ao tomar o sujeito como enigma, permite ao analista ocupar a
posição, não de sujeito, mas daquele que sustenta um lugar vazio, logo, desejante. É a partir
dessa posição que propõe o dispositivo da transferência àquele ser falante que decidiu pôr em
palavras seu sofrimento (gozo), sintoma, excesso ou falta em relação a uma medida comum,
reconhecida como limite suportável para cada um. Somos aqui remetidos à hipótese,
defendida em “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/1980) e mantida até o
final da obra freudiana, de que uma correlação de forças quantitativas que o aparelho
psíquico transforma ou não em elaboração, cujo excesso, vivenciado como desprazer, fixa o
sujeito nas curvas da repetição e do
pathos.
Essa concepção de sujeito pode ser notada quando o autor se refere à escolha da
neurose, que, incluindo também a psicose e a perversão, pode ser apreendida na lógica de
funcionamento singular de cada ser falante. A posição subjetiva é desvelada, retroativamente,
a partir de uma decisão do ser falante diante da realidade da castração.
Tal escolha acesso a uma das modalidades de defesa do eu para lidar com a
realidade da castração, designadas como neurose, perversão e psicose, e constituídas por tipos
clínicos, como, por exemplo, histeria, fetichismo e esquizofrenia. A cada uma dessas formas
de defesa corresponde um tipo de retorno do que restou traumático do encontro com a
alteridade (Outro). Trata-se, nesse retorno, daquilo que não foi passível de simbolização, resto
18
referido por Freud ao objeto da pulsão parcial em sua relação a das Ding, a parte
irrepresentável do objeto, objeto perdido que passa a funcionar como causa cujo efeito é o
sujeito. O retorno desse resto pode ocorrer sob a forma do recalcado, do fetiche ou do objeto
como presença real, indicando, respectivamente, cada uma das citadas modalidades de defesa.
Cada uma das defesas constitui uma resposta ao encontro traumático no início da existência.
Deixando a desejar, tal resposta lança o sujeito, a cada vez, na busca por uma solução mais
favorável.
Vemos, assim, que Freud não se ocupou dos fenômenos, mas do modo de
funcionamento do aparelho psíquico e de sua incidência no singular de cada caso. Isso implica
articular o que é dito em relação a categorias
a priori que constituem uma trama conceitual.
Podemos notar tal diferença no relato de um sintoma. Um eczema na pele, por exemplo, não é
idêntico na histeria ou na melancolia, distinguindo-se segundo a função que o sintoma ocupa
na lógica do funcionamento psíquico. Essa lógica pressupõe estar a lei de funcionamento do
inconsciente operando ou não. No primeiro caso, supõe um sujeito dividido pelo recalque,
cujo dizer ultrapassa os ditos, desvelando parte da verdade que o próprio sujeito desconhece.
No segundo caso, aquele sintoma pode estar ocupando uma função de suplência à foraclusão
simbólica, evitando um desencadeamento psicótico. A verdade não pode ser buscada
diretamente, pois ela, tal como a medusa, quando vista de frente, pode ser mortífera. Assim, é
através da linguagem que a ela se tem algum acesso.
Para que uma experiência de análise tenha lugar, a condição é o consentimento do
sujeito, seja através de um endereçamento espontâneo, seja acolhendo um encaminhamento
por parte de terceiros. O consentimento implica que o ser falante suponha um sujeito, que seja
afetado, em alguma medida, por uma relação entre verdade, saber e palavra. Mas trata-se de
uma verdade, como indica Freud, da qual ele não quer saber, ou seja, uma verdade sobre a
castração materna. Na segunda tópica, Freud referiu-se à divisão do eu diante da realidade da
castração, o que estendeu para todos os tipos clínicos, a diferença residindo no modo de
substituição dessa realidade: fantasia, na neurose e na perversão, e delírio, na psicose.
Em relação à clínica diferencial entre neurose e psicose, Lacan (1957-58b/1998,
p.555) destaca que o Outro do sujeito não tem o mesmo estatuto nas duas posições subjetivas,
o que implica dizer que o Outro pode se apresentar no real, em sua dimensão de certeza, ou
mediado pelo simbólico, provocando enigma. É o que podemos notar nesta passagem:
“o estado do sujeito (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro (A). O que
nele se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro), do
qual Freud procurou inicialmente definir a sintaxe relativa aos fragmentos que nos chegam em
momentos privilegiados, sonhos, lapsos, chistes” (1957-58b/1998, p.555).
19
Em “Do sujeito enfim em questão”, Lacan (1966a/1998), em breve comunicação,
estabelece a direção da clínica ao ressaltar a questão do sujeito como o que de mais íntimo
na descoberta psicanalítica. Correlacionando o sujeito da psicanálise com o que se produz no
princípio da ciência embora esta expulse as questões que concernem à verdade destaca o
lugar do
sintoma desvelado por Freud, não como signo, indicando algo que não vai bem e que
deve ser extinto, mas como articulação significante, onde irrompe a
verdade, cuja chave é a
castração.
Embora a abordagem do sintoma tenha sido deslocada, no percurso de Lacan, dessa
articulação significante para a de significante e gozo, fica mantida a questão e, de certo modo,
o desejo do autor de que os psicanalistas orientados nessa direção possam
responder a certas
urgências subjetivas.
Notamos, nessa passagem, a articulação entre sintoma, verdade e castração, eixos
importantes da clínica da neurose. No entanto, por estarmos abordando aqui a psicose, somos
levados a colocar a questão: qual seria o destino da clínica do sujeito na psicose, em que não
há sintoma como retorno do recalcado, embora haja sofrimento psíquico?
Em relação à psicose, Lacan (1957-58b/1998) comenta, em “De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que Freud, ao transformar as memórias de
Schreber em caso clínico, introduziu a idéia de que sujeito na psicose. Em seu relato
clínico, Freud (1911b/1980), não se contentando com a tese do desligamento da libido,
interrogou a modalidade de defesa do eu em jogo, o que descreveu como “aquilo que foi
internamente abolido retorna desde fora” (p.95)
. Nesse mesmo artigo, propôs a tese do delírio
como solução para um conflito homossexual aflorado, forjando a concepção inovadora do
delírio como tentativa de cura, processo de reconstrução através do qual o sujeito tenta
recuperar o objeto perdido.
Assim, a concepção inédita de sujeito formulada por Freud deriva da função atribuída
ao objeto perdido, o que, como dissemos acima, coloca o sujeito freudiano como sujeito da
articulação entre linguagem e pulsão. Esta última se apresenta como dualidade entre pulsão de
vida e pulsão de morte, seja na psicopatologia da vida cotidiana, seja nos tipos clínicos.
O que privilegiamos em uma instituição como lugar de vida é circunscrever, no
endereçamento de cada paciente a um dos membros da equipe, seu processo de elaboração.
Para tanto, partimos da suposição de que um sujeito em trabalho que decide sobre suas
escolhas e cuja modalidade de defesa visa ao tratamento do Outro, em relação tanto ao saber
quanto ao desejo.
20
1.1. A clínica do sujeito no campo da saúde mental
A questão da cidadania remete às conquistas de direitos individuais e sociais na
sociedade ocidental moderna. Em uma abordagem histórica de tais conquistas, Pont (2004)
destaca o liberalismo de Rousseau, que, no século XVIII, consolidou as premissas para as
lutas por igualdade, bem como as conquistas das lutas anticolonialistas nos Estados Unidos,
lavradas na Declaração dos Direitos do Homem e na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, em 1789, na França, assegurando direitos de igualdade, liberdade, segurança e
propriedade. Essas lutas e conquistas influenciaram a elaboração da primeira Constituição
Brasileira de 1824 e, mais recentemente, a Constituição de 1988. Nesta última, que representa
um avanço na consolidação dos direitos sociais, ancoraram-se muitos projetos de mudanças
políticas e sociais no âmbito da saúde, como o SUS, e, posteriormente, a reforma psiquiátrica.
A reforma psiquiátrica, cuja consolidação legal se deu através da Lei 10.216 de 2001,
é constituída por um conjunto de diretrizes que vêm reorientando as políticas públicas de
saúde mental em substituição à secular prática asilar dos hospitais psiquiátricos. Para atingir
esse objetivo, a reforma propõe uma mudança na cultura em relação aos valores e práticas que
estigmatizam o sujeito identificado como louco, questionando relações de tutela a partir da
assunção da responsabilização social e promovendo a cidadania. Segundo o “Relatório final
da III Conferência Nacional de Saúde Mental” (BRASIL, 2002), a meta da reforma é “Cuidar,
sim. Excluir, não!”.
Visando a atingir tal meta através de intervenções centradas na atenção psicossocial,
foram criados, na rede de saúde mental, dispositivos para regular o fluxo da demanda e a
utilização dos recursos materiais e técnicos para os serviços de assistência em saúde mental.
Dentre esses dispositivos, destacamos os CAPS, a reinvenção do ambulatório, a inserção em
atividade laborativa assistida, as residências terapêuticas, as oficinas terapêuticas, o lazer
assistido e os programas de geração de renda, articulados em redes territorializadas. Esses
dispositivos funcionam em uma perspectiva de clínica ampliada, tendo a função social de
criar estratégias de acolhimento em situações de crise e grupos de recepção para definir
programas de acompanhamento de psicoterapia, de psicanálise aplicada à terapêutica e de
reabilitação psicossocial.
A reforma psiquiátrica constitui, portanto, um marco histórico de mudança na
assistência em saúde mental, com a consolidação de uma legislação que possibilita proteção
21
aos assistidos e acesso a serviços abertos no nível da atenção psicossocial, apostando nos
espaços sociais de convivência entre usuários, cuidadores e outros possíveis parceiros sociais.
O ambulatório de saúde mental como
locus de uma prática clínica continuada
antecedeu a reforma em pelo menos três décadas. Ao longo desses anos, o ambulatório tem
passado por mudanças decorrentes tanto de políticas públicas quanto da formação das equipes
técnicas. Tais mudanças se devem às transferências de trabalho sustentadas a partir de
diferentes paradigmas teóricos, fazendo do ambulatório um campo de pesquisa e de produção
acadêmica, confrontando discursos e práticas (FIGUEIREDO, 1997; TENÓRIO, 2001;
DIOGO, 2003).
É nesse sentido que Figueiredo (2001) situa a reforma psiquiátrica como um segundo
momento, que reúne a psicanálise e a reforma institucional na psiquiatria, marcado, sem
dúvida, por diferenças, dentre as quais a de uma comunidade constituída por analistas
lacanianos que vêm articulando teoria e manejo da transferência. Isso se especialmente na
clínica da psicose, o que vem se constituindo como um modo de transmissão da psicanálise na
rede pública.
Para o ambulatório convergem, dentre outras, as demandas institucionais de inclusão
social dos assistidos. A elas se juntam as demandas de familiares em relação à seguridade
social, devido à falta de perspectiva de trabalho e de auto-suficiência dos pacientes. A
proposta da reforma é, considerando as diferenças individuais, facilitar o acesso aos direitos
sociais na perspectiva de um resgate da cidadania.
Acontece que os ideais de cidadania, como, por exemplo, a autonomia ou o acesso a
uma função laborativa remunerada, podem funcionar como imperativos superegóicos
ordens, injunções, expectativas do Outro não localizados no simbólico. Assim, uma
sugestão de algum técnico para que o sujeito lute por seus direitos pode gerar efeitos
contrários aos esperados pela equipe. Neste caso, não são raros os efeitos inesperados,
disruptivos, seja em relação ao próprio sujeito, seja dirigido a um membro da equipe, no
processo de reabilitação psicossocial. Tais episódios revelam um retorno da pulsão, sob a
forma do agir violento ou da imobilidade, como forma radical de defesa para barrar a
demanda do Outro, tomada como excessiva.
Vemos, assim, que a problemática clínica, como queixa ou como demanda de um
sujeito, é inseparável da dimensão social, pois não sujeito sem Outro. Com efeito, “é
quando se trata de encontrar uma solução social que a verdadeira problemática clínica
começa” (ZENONI, 2000). Uma vez que a questão diz respeito a como, em uma dada
situação, o sujeito se arranja com o Outro, que pode se apresentar como desregulado ou
22
intrusivo, uma intervenção, visando à inclusão social, requer que o “eixo do trabalho seja o
sujeito” (ZENONI, 2000).
Trata-se, não de dizer sim ao Outro desregulado do sujeito, mas de localizar e dar
suporte às formas de defesa que este vem erigindo para tratar o Outro, o que implica também
o manejo da transferência por parte do técnico de referência. Este, colocando-se em uma
posição de reserva (LACAN, 1955-56/1985), acolhe o endereçamento da transferência e
sustenta a construção do sujeito, aquele que detém o saber a ser desvelado.
A clínica do sujeito não requer o dispositivo de consulta, pois a intervenção pode, no
âmbito da clínica ampliada, incidir em qualquer situação contingente, como durante uma
atividade de lazer assistido ou em uma oficina terapêutica. A especificidade da clínica do
sujeito reside, como vimos, no trabalho de construção do sujeito em relação ao seu Outro, no
sentido de tornar mais possível a vida consigo mesmo e com os outros. Veremos, na segunda
parte da tese, modalidades de tratamento do gozo que podem favorecer a sustentação de
suplências.
1.1.1. Inclusão: uma questão de laço social
A rede de saúde mental, organizada segundo as diretrizes da reforma, é constituída por
dispositivos nos quais incidem práticas cujas orientações teóricas nem sempre são
convergentes. Essa diversidade resulta em um campo de discussão que gera desafios quanto à
implementação das ações integradas das equipes de trabalho e à definição dos modos de
utilização dos dispositivos. Assim, considerar o sujeito como protagonista social ou como
objeto de programações cognitivistas não é o mesmo que se referenciar pela concepção da
clínica do sujeito. Este último paradigma, como vimos, supõe a dimensão da verdade nos atos
de enunciação do sujeito, que, por isso mesmo, é responsável, não apenas juridicamente por
seus atos, mas, sobretudo, por sua condição de ser falante dividido pelo significante e pelo
gozo. Não é nosso objetivo, aqui, comparar os modelos teóricos vigentes na reforma, o que
merece um estudo específico, mas desenvolver a seguinte questão: como os serviços que
integram a rede de saúde mental podem favorecer a construção do laço social?
Uma das propostas da reforma incide sobre a reabilitação psicossocial através da
participação nos dispositivos acima mencionados. Acreditamos que a questão da inclusão
social não diz respeito à modalidade de prática: se é coletiva ou individual, se acontece no
CAPS, no ambulatório ou na atividade de lazer assistido. O que conta supomos é como
cada dispositivo ou suporte social pode ser utilizado em determinado momento do percurso
singular do sujeito na construção do laço social. A questão concerne, antes, à orientação de
23
trabalho o que tem como paradigma a concepção de sujeito determinante das estratégias e
táticas de intervenção que podem favorecer a construção do laço social do que ao tipo de
dispositivo em si mesmo.
Assim, a construção do caso clínico nas reuniões de equipe é o momento privilegiado
para avançar na elaboração dessas questões. Trata-se de sustentar a construção da suplência
que está sendo tecida pelo sujeito como substituição à falta de articulação dos registros real,
simbólico e imaginário, na tentativa de uma estabilização no laço social. Tal modalidade de
intervenção em nível institucional requer uma convergência mínima de orientação teórica da
equipe de trabalho.
Abordando o impasse entre hierarquização e igualitarismo na constituição das equipes
de saúde no âmbito da reforma, Figueiredo (2000) propõe a transferência de trabalho como
uma referência comum àqueles que as constituem. Esse ponto de convergência possibilitaria a
convivência e as ações no interior de um campo constituído por variações teóricas e diferentes
modos de intervenção na clínica.
A autora situa a
transferência de trabalho nas equipes a partir de uma equivalência
com a noção de transferência como necessária ao tratamento, conforme apontou Freud, e ao
funcionamento institucional, tal qual revelou Lacan. Este nomeou transferência de trabalho
as atividades realizadas nos cartéis visando à transmissão da psicanálise em sua Escola.
Em relação à transferência de trabalho entre pares nas equipes que constituem os
serviços de saúde mental da rede, Figueiredo (2000) oferece indicações mínimas para a
sustentação do campo de trabalho. Dentre tais indicações, a autora propõe a idéia de sujeito
por oposição a de objeto de d cuidados da equipe, e a idéia de tratamento como um conjunto
de intervenções visando à reconstrução possível após o processo de desencadeamento do
adoecer, revelador da falência dos recursos até então utilizados pelo sujeito.
Com tal finalidade, Figueiredo (2000) destaca o endereçamento do sujeito que busca
atendimento a um dos integrantes da equipe como expressão da transferência necessária à
sustentação do trabalho que aquele vinha realizando; pois não se trata apenas de um querer
saber, mas de que, por vezes, “o sujeito sabe alguma coisa que é difícil deixar aparecer
porque também lhe é estranha, mas que está ali clamando, como diz Freud, por elaboração”
(FIGUEIREDO, 2000, p. 130).
Destacamos como ponto central da elaboração de Figueiredo (2000) a proposta da
clínica do sujeito como eixo, indicação mínima tanto no que concerne à transferência de
trabalho quanto no que diz respeito ao endereçamento na transferência como dispositivo das
intervenções clínicas.
24
1.1.2. Tecendo a rede na atenção psicossocial: diretrizes de trabalho
Como fazer da rede um lugar que propicie laço social? A rede, na reforma psiquiátrica,
está referida à rede social como uma possível multiplicidade de protagonistas e arranjos, a ser
atualizada em cada caso no território onde o usuário circula. A rede propriamente dita é
constituída pela rede institucional, com os serviços que a compõem, pela rede social da
família, do trabalho, da religião, do lazer, e mesmo pela rede solidária, que daí pode surgir, na
comunidade.
Não é possível abordar a rede sem considerar onde e como ela se articula, isto é, o
território. A concepção e a práxis institucional apontam, no entanto, a prevalência do território
como lugar geográfico, onde se articulariam usuários residentes em uma determinada área
geográfica e os serviços de saúde mental ali existentes. Mas o território social, decorrente da
história de vida de cada usuário, de sua circulação na polis, nem sempre coincide com o
território geográfico. O território social pode estar aberto a mudanças, a partir de novas trocas,
de novos circuitos que surgem alterando o mapa anterior. Coloca-se, assim, a questão: como
flexibilizar esse modelo que, na reforma, está atrelado ao lugar de residência do assistido?
Há, na reforma, serviços que funcionam com regras flexíveis, o que oferece maior
margem de manobra para acolher a produção psicótica e as soluções que o sujeito aponta
como saída. É o caso do sistema de referência - contra-referência, que busca fazer funcionar
uma lógica que rompe com a noção de hierarquização, substituída pela idéia de
complexificação do sistema. Este pode ser concebido como um conjunto de nós
interconectados, que podem integrar novos nós em um sistema aberto, sem ameaças a seu
equilíbrio (GARCIA, 2002). Na contemporaneidade, são as redes virtuais que criam novos
territórios a partir dos pontos acessados, produzindo uma certa inversão do modelo anterior,
no qual a rede era decorrente do território. Essa subversão – pensar o território a partir da rede
pode ser um paradigma interessante para operar nos processos da atenção psicossocial. Em
relação ao sujeito, a questão se desloca. A rede ganha um novo sentido como rede de
significantes, como campo do Outro diante do qual o sujeito pode encontrar um lugar que
particularize sua relação com a linguagem. Será preciso operar a partir da configuração
particular que, na ausência do Nome-do-Pai, o Outro apresenta para cada sujeito psicótico.
Essa configuração orienta a transferência, o estilo que o sujeito encontra para formular suas
soluções e, principalmente, a tentativa de construir um enlaçamento possível do sujeito com o
campo do Outro, com o campo social (SOUTO, 2000). A questão – insistimos – é: como fazer
25
da rede um lugar que propicie laço social? Não basta o pertencimento social, pois muitos
sujeitos têm referências sociais, residem com familiares, e isso não implica que estejam no
laço social.
Eis nossa proposta: O eixo das intervenções é a clínica do sujeito (ZENONI, 2000), na
qual a rede é tecida, no percurso do caso, a partir do modo como o sujeito se apropria da rede
social, transformando-a em rede transferencial. conjunção/disjunção entre a rede social e a
rede transferencial. A rede transferencial expressão de Viganò (2003), que nela reconhece a
segunda questão preliminar é criada a partir das escolhas de gozo do sujeito, responsável
por sua posição e por seus atos, e a partir das decisões singulares da equipe, que, sustentada
pela transferência de trabalho, autoriza-se a intervir, apostando na possibilidade de invenção
do sujeito (MILLER, 1999-2000, p.11-12). Nessa perspectiva, a construção do sujeito pode
ter a função de um ponto de basta, um ponto de ancoragem, como possibilidade de laço social
com o Outro da cultura.
Zenoni (2001) propõe uma invenção possível, uma forma de articular os registros
real, simbólico e imaginário, a partir do tratamento do Outro. Com isso, a direção ética de
tratamento consistiria, não em sustentar os ideais da reabilitação psicossocial, mas em
circunscrever o percurso onde o gozo se apresenta, com os possíveis riscos aí implicados, para
que acertos, derivas, fracassos e surpresas possam vir a se inscrever. A direção do tratamento
da psicose é discutida por Jimenez (2004). Segundo a autora, é preciso valorizar e promover
as suplências ao
Nome-do-Pai, os lugares referenciais nos quais o sujeito havia se colocado
antes do surto. É o que se pode notar no caso S., uma paciente esquizofrênica em cujo
processo terapêutico articulamos o dispositivo de consulta com intervenções pontuais na rede
transferencial. Propomos, a partir dessa experiência e de outros casos clínicos, a inclusão
social pela via do laço social no processo de acompanhamento no ambulatório, o que
focalizaremos na segunda parte desta tese, intitulada “A psicanálise aplicada à terapêutica”.
Como partimos da suposição de que um sujeito em trabalho que decide sobre suas
escolhas, e de que esse sujeito pode estar ou não ancorado no campo do Outro, faremos um
percurso sobre a concepção de sujeito em Freud e Lacan, visando a esclarecer a incidência de
tais formulações na construção do laço social na psicose.
1.2. Recortes sobre o sujeito e o objeto em Freud e Lacan
1.2.1 As concepções de sujeito e de objeto em Freud
26
Abordar o laço social implica situar as categorias de sujeito e de objeto. Há uma noção
de sujeito no legado freudiano? A noção de sujeito não está formulada de modo explícito nos
textos freudianos, isto é, não está definida como um construto em relação a outros que
constituem a trama conceitual de sua invenção teórica. Todavia, nela supomos uma concepção
inédita de sujeito, a partir da correlação passível de ser estabelecida com a noção de objeto
nas modulações que ele pode apresentar em uma análise, o que remete ao mais íntimo da
experiência de cada ser inscrito na linguagem.
Incidências da concepção de sujeito em Freud
Inferimos que um dos modos de Freud (1897a/1980) se referir ao sujeito aparece na
expressão escolha da neurose, presente desde seus primeiros trabalhos. Tal expressão remete
a uma decisão do eu, relativa à modalidade de defesa: neurose histérica, neurose obsessiva e
paranóia. Essa escolha/decisão implica uma concepção de sujeito como efeito das
experiências infantis relacionadas ao sexual e ao recalque, modalidade de defesa comum,
nesse momento, a tais afecções.
No “Rascunho H”, Freud (1895/1980) refuta a idéia, dominante na psiquiatria da
época, de que a paranóia seria um distúrbio puramente intelectual. Para Freud, a paranóia é
um modo de defesa patológica, como a histeria, a neurose obsessiva e a psicose alucinatória.
Mais precisamente, trata-se, desde que esteja presente a respectiva disposição peculiar, de
uma defesa diante de algo que o paciente não pode suportar. Tal disposição constituiria uma
tendência, descrita pelo autor através do caso clínico de uma mulher cujo delírio de
perseguição é desencadeado após uma perda afetiva, a alucinação incidindo como retorno da
censura rejeitada. Freud assinala que o tema permaneceu inalterado, mas não a localização da
coisa. Vindo de fora, o julgamento (censura) podia ser por ela rejeitado e mantido fora do eu.
“Portanto, o propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o ego [eu],
projetando seu conteúdo no mundo externo” (p. 286).
Quanto a essa primeira elaboração, Freud (1911b/1980), em “Notas psicanalíticas
sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” mantém a operação de rejeição, mas
substitui a hipótese do mecanismo de projeção por um “retorno desde fora do que havia sido
abolido no simbólico” (FREUD, 1911/1980, p.95).
Como afirma Freud (1896a/1980) no “Rascunho K”, a defesa seria uma "tendência
natural" (p.300) do aparelho, que, segundo os moldes do princípio da constância, visa a
restaurar o funcionamento psíquico, atuando não apenas no momento do evento traumático,
27
mas também no retorno das idéias 'recalcadas'
1
. Nesse trabalho, Freud assinala que as
lembranças, quando se referem às idéias sexuais que causaram desprazer e estão ligadas a
eventos ocorridos prematuramente, podem ser mais intensamente investidas após a
puberdade. Neste caso, o desprazer experimentado pode ser mais intenso, provocando o
surgimento de sintomas e determinando o percurso da doença.
Freud (1897d/1980) organizou quadros comparativos, cronológicos, relacionando o
evento traumático e o recalque, buscando localizar a etiologia nas diferentes afecções. Nesse
contexto, a paranóia, assim como a demência precoce, seriam manifestações tardias que
eclodiriam após a puberdade. No entanto, Freud expressava sua dúvida quanto à etiologia ser
devida ao momento do evento traumático ou ao momento do recalque. É o que demonstram as
questões formuladas na “Carta 57” (1897a/1980) e na “Carta 75” (1897d/1980), ambas
endereçadas a Fliess, nas quais afirma que a diferença estaria no recalque, que pode
transformar uma fonte de prazer interno em aversão interna (FREUD, 1987d/1980, p.365). É
nesta última carta que a expressão
escolha da neurose, aplicável à histeria, à neurose
obsessiva e à paranóia, é descrita como "decisão" (p.365). Pode-se dizer que a decisão
corresponde à escolha ou não do recalque.
O que subjaz a essa decisão, que conduz à escolha de uma neurose ou de uma psicose?
No caso da neurose obsessiva e da paranóia, conforme exposto por Freud (1896a/1980) no
“Rascunho K”, o ponto comum seria uma experiência precoce de desprazer, anterior ao
recalque, experiência, contudo, não explicável. Teria esse desprazer relação com o momento
de simbolização primordial, em que o não da expulsão se refere ao que provoca desprazer ao
infans? Neste caso, tratar-se-ia de uma experiência relacionada ao ódio, que é anterior ao
amor, o que, nos termos da segunda tópica, indicaria uma tendência da pulsão de morte.
Freud distingue a neurose obsessiva da paranóia. Enquanto na primeira opera uma
autocensura, cujo sintoma primário é a escrupulosidade, na segunda ocorre uma recusa da
crença na autocensura. Neste caso, o desprazer, por projeção, passa a ser atribuído a pessoas
próximas, e as lembranças que causam desprazer são substituídas por eventos atuais
semelhantes.
Nesse ponto, com o retorno do recalcado sob forma distorcida, a defesa fracassa de vez; e os
delírios assimilatórios não podem ser interpretados como sintomas de defesa secundária, mas
como o início de uma modificação do ego [eu], expressão do fato de ter sido ele subjugado”
(FREUD, 1896a/1980, p.309).
1
Embora date dessa época a distinção entre recalque e rejeição, Freud, ao se referir à paranóia, por vezes a
considera como sujeita ao recalque.
28
Tal distinção remete à defesa: seja o recalque no qual o 'sujeito', ao suportar o
desprazer no 'eu', de algum modo se implica, como na neurose seja a recusa, na qual o
'sujeito' não se implica, porque o 'eu' não se reconhece. No artigo “Novos Comentários
sobre as Neuropsicoses de defesa” (1896b/1980), Freud desenvolve as hipóteses apresentadas
no “Rascunho K”
. Trata-se da distinção entre neurose obsessiva e paranóia, apresentada pelo
autor após a análise de um caso de paranóia crônica em que a paciente, confirmando as
hipóteses do analista, relatou experiências sexuais ocorridas na infância com um irmão. Por
essa experiência, a paciente não se sentiu envergonhada (p.204), tendo o desencadeamento da
paranóia ocorrido quando seu irmão passou a não freqüentar mais sua casa depois de uma
discussão com seu marido.
Em outro caso, Freud (1896b/1980), ao relacionar as alucinações visuais com o
retorno do recalcado, distingue a paranóia da histeria e da neurose obsessiva, assinalando, em
relação à primeira, a presença de uma alteração do eu em que a não incorporação de uma
crença leva o aparelho psíquico a ceder às exigências pulsionais do isso.
Em “Meus pontos de vista sobre o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia
das neuroses” (1906[1905]/1980), Freud se refere à fantasia de sedução ou lembranças
imaginárias, geralmente produzidas durante a puberdade como tentativas de afastar
lembranças da própria atividade sexual (p.286). Justifica, assim, a modificação sofrida pela
teoria, segundo a qual os sintomas histéricos não são derivados diretos de lembranças
recalcadas de experiências infantis, mas de fantasias. Ainda nesse artigo, o autor distingue a
fantasia inconsciente dos histéricos das criações imaginárias dos paranóicos, que se tornam
conscientes como delírios (p.286-87), mantendo, assim, a mesma posição em relação à
escolha da neurose.
Em “A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da
neurose”, Freud (1913c/1980, p.400) distingue a histeria, a neurose obsessiva, a paranóia e a
demência precoce em função do momento do desencadeamento da doença. Enquanto as duas
primeiras podem se manifestar na infância, as duas últimas, aqui nomeadas
parafrenias,
manifestar-se-iam após a puberdade. A escolha da neurose, segundo esse artigo, resultaria de
uma disposição, o que é, de certo modo, enigmático.
Mais adiante, Freud (1913c/1980) afirma que “as disposições são inibições do
desenvolvimento” (p.400), daí os pontos de fixação da libido. O autor ressalta que os escritos
de Fliess revelaram a significação biológica de certos períodos de tempo: “tornou-se
concebível que distúrbios de desenvolvimento possam ser remontáveis a mudanças temporais
nas sucessivas ondas de desenvolvimento” (p.400). Embora esteja usando uma terminologia
29
desenvolvimentista, Freud faz referência à anterioridade lógica das fixações que, a posteriori,
podem vir a se revelar. Referindo-se à paranóia e à demência precoce, afirma:
“As características peculiares a ambos megalomania, afastamento do mundo dos objetos,
dificuldade aumentada na transferência obrigaram-nos a concluir que sua fixação
disposicional deve ser procurada num estádio de desenvolvimento libidinal antes de a escolha
objetal ter-se estabelecido – isto é, na fase do auto-erotismo [no caso da esquizofrenia, na qual
os instintos parciais do indivíduo, cada um por sua conta, buscam a satisfação de seus desejos
no próprio corpo] e do narcisismo [no caso da paranóia, na qual a escolha de um objeto se
realizou, mas esse objeto coincide com o próprio ego [eu] do indivíduo]. Assim, estas formas
de moléstia, que fazem seu aparecimento tão tardiamente, remontam a inibições e fixações
muito primitivas” (FREUD, 1913a/1980, p.400).
Ainda em relação à escolha da neurose, Freud (1913c/1980) refere-se ao estádio de
organização pré-genital da neurose obsessiva, no qual os componentes pulsionais estariam
reunidos na escolha de um objeto cujos componentes são o sadismo e o componente anal-
erótico. Mas, nesse momento, “a primazia das zonas genitais ainda não tinha sido
estabelecida” (p.403).
Nos textos posteriores a 1920, abordando as modalidades de defesa neurose, psicose
e perversão Freud indica uma diferença anteriormente estabelecida. E propõe-se a retomar a
questão que o instigava desde cedo: a da
causalidade que explicasse os diferentes quadros
clínicos. Tal explicação seguiria a via da escolha, decisão que implica o sujeito, embora este
venha a se constituir, nas incidências pontuais do inconsciente, a partir dessa própria decisão
.
Freud (1950[1895]/1980, p.439) circunscreve uma noção de sujeito que não coincide
com o eu da consciência, descrevendo a operação que distingue na percepção do objeto: dos
predicados que podem ser inscritos e evocados pela atividade da memória, resta a parte
constante, que escapa ao juízo.
Notamos que Freud usa a expressão complexo-sujeito ao se referir àquilo que, do
encontro com o próximo, não é percebido como atributo predicado que será inscrito como
traço de memória mas como a parte constante do objeto, que subsiste como estrutura.
Inferimos que a expressão complexo-sujeito seria correlata do objeto das Ding, a Coisa, que
restou como parte não simbolizada do encontro com o próximo, a primeira alteridade do
sujeito. Em função do exposto, o complexo-sujeito não deixa de ser um modo de Freud
antecipar o que virá a descrever como o território estrangeiro interno na experiência do
estranho-familiar, quando algum traço que remete ao objeto perdido reaparece na fantasia.
Nos textos freudianos, encontramos também a expressão decisão do aparelho psíquico.
Que decisão seria esta e como ela se realizaria? No artigo “Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental”, Freud (1911a/1980) refere-se à decisão do aparelho
30
psíquico no que concerne à transformação de parte do princípio do prazer em princípio de
realidade:
“[...] foi apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento experimentado, que
levou ao abandono desta tentativa de satisfação por meio da alucinação. Em vez disso, o
aparelho psíquico teve de decidir tomar uma concepção das circunstâncias reais no mundo
externo e empenhar-se por efetuar nelas uma alteração real” (FREUD, 1911a/1980, p.278).
Em “História do movimento psicanalítico” (1914a/1980), o autor alude ao ato de
consentimento, o que – embora encontremos o termo pessoa – implica um sujeito: “A análise,
entretanto, não se presta a uso polêmico; pressupõe o consentimento da pessoa que está sendo
analisada” (p. 63).
Freud (1917/1980), no artigo “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, ao se
referir à dimensão do inconsciente e à reserva pulsional que resta ‘fora’ da inscrição
simbólica, indica uma divisão inexorável: “o ego [eu] não é o senhor da sua própria casa”
(p.178). Podemos reconhecer aí uma concepção de sujeito segundo a qual este deveria
assumir alguma atitude em relação à divisão do eu.
Encontramos tal divisão, de modo ainda mais explícito, no artigo freudiano “O
estranho” (1919/1980). Figura aqui a particular concepção de sujeito em Freud, a que é
indicada pelo objeto estranho-familiar da pulsão. Citando, dentre outros, Schelling, Freud
afirma: “[...] o estranho (unheimlich) é o nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e
veio à luz” (p.282). Dessa elaboração, extrai conclusões que serão orientadoras para a
clínica psicanalítica – sobre a justaposição entre os registros do simbólico e do real.
Com isso, o que deveria ter permanecido secreto, simbolizado, retornou sob a forma
de real. Trata-se de algo reconhecido como estranho, não familiar, o que a própria
ambigüidade do termo em alemão revela ao remeter à significação antitética das palavras
primitivas. Tal ambigüidade não escapa a Freud, interessado em situar na linguagem a
experiência subjetiva
2
.
Freud (1910/1980) encontrou subsídios para explicar esse achado de sua pesquisa
sobre os sonhos no trabalho do filólogo Karl Abel. Estudando a língua egípcia, Abel concluiu
que, na origem dessa língua, uma mesma palavra podia apresentar sentidos antitéticos
como, por exemplo, forte e fraco, comandar e obedecer conclusão estendida para as línguas
2
No artigo intitulado “A significação antitética das palavras primitivas”, escrito em 1910, Freud parte de uma
afirmação que havia feito em “A Interpretação dos sonhos” (1900) afirmação que a ele próprio provocara
enigma sobre o modo como os sonhos ignoram os contrários e as contradições, podendo representá-los como
uma e mesma coisa. Tal propriedade tem por conseqüência a dúvida sobre o que quer dizer cada elemento,
que se apresenta por seu contrário, comparecendo como positivo ou negativo.
31
semita e indo-européia. Freud cita as conclusões do filólogo, que esclarece haver uma
intenção em usar a palavra antitética privilegiando apenas um dos sentidos, para o que são
utilizados outros elementos na escrita, que podem não ser falados, mas representados como
imagem. Assim, poderíamos dizer, com Lacan, que se trata de uma cadeia significante, pois
cada termo subseqüente pode alterar todo o sentido dado pelos que lhe antecederam. Outro
ponto destacado por Freud (1910/1980), de relevância clínica, é que uma palavra, tal como
um conceito, só existe a partir de sua diferença em relação a outra, como luz e escuridão.
Neste artigo, refere-se ainda ao comentário do filólogo sobre a inversão de som das
palavras. Discorda de que tal inversão seja efeito da reduplicação da raiz. Freud reconhece
uma equivalência desses fenômenos com as brincadeiras infantis e os lapsos, em que o sujeito
enuncia o contrário do que conscientemente tencionava dizer. Tal posição implica considerar
a hipótese do inconsciente, corte que coloca em outros parâmetros a concepção de sujeito da
linguagem. Após repertoriar a ambivalência do termo unheimlich, afirma:
“O que mais nos interessa nesse longo excerto é descobrir que entre os seus diferentes matizes
de significado a palavra
heimlich exibe um que é idêntico ao seu oposto, unheimlich’.
Assim, o que é
heimlich vem a ser unheimlich” (FREUD, 1919/1980, p.282).
Se, no texto de 1910, a significação antitética das palavras fazia referência ao
inconsciente recalcado, no texto de 1919, o objeto unheimlich indica a presença do objeto
inominável, das Ding, a Coisa.
Além das mencionadas referências, a partir das quais extraímos a concepção de sujeito
presente nas formulações freudianas, outras, como o uso do termo pessoa, a requererem
semelhante trabalho. É o caso da seguinte passagem: “[...] a identificação é conhecida pela
psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (FREUD,
1921/1980, p.133). Supomos que a expressão outra pessoa indique que o sujeito é designado
como pessoa, referência que, à primeira vista, poderia ser tomada como exclusivamente
pertencente ao registro imaginário. Mas a identificação primária remete ao próximo da ajuda
alheia ao qual Freud (1950[1895]/1980) refere-se em “Projeto para uma psicologia
científica” o que indica, em termos teóricos, a primeira alteridade, aquela que transmite o
simbólico. Trata-se, aqui, do primeiro tipo de laço, anterior a qualquer escolha de objeto
sexual. Assim, a noção designada pelo termo outra pessoa não se reduz à dimensão
imaginária do semelhante ponto que abordaremos ao tratar da noção de laço social mas a
situa.
32
Lendo o “Projeto para uma psicologia científica” a partir de “A negativa”, destacamos
a decisão tomada em termos de juízo de atribuição, que se realiza sob a forma da escolha
em
mim / fora de mim:
“Expresso na linguagem dos mais antigos impulsos instintuais os orais o julgamento é:
‘Gostaria de comer isso’, ou ‘gostaria de cuspi-lo fora’, ou, colocado de modo mais geral,
‘gostaria de botar isso para dentro de mim e manter aquilo fora’. Isso equivale a dizer: ‘Estará
dentro de mim’ ou ‘estará fora de mim’. Como demonstrei noutro lugar, o ego-prazer [eu-
prazer] original deseja introjetar para dentro de si tudo quanto é bom, e ejetar de si tudo quanto
é mau. Aquilo que é mau, que é estranho ao ego [eu], e aquilo que é externo são, para começar,
idênticos” (FREUD, 1925c/1980, p. 297).
A passagem indica que aquilo que até então era idêntico seria uma unidade mítica do
eu, que remeteria à dialética dentro-fora. A concepção de sujeito como distinto da instância do
eu é novamente sustentada por Freud (1925a/1980) em “Algumas notas adicionais sobre a
interpretação dos sonhos como um todo”. É o que atesta a referência freudiana à
responsabilidade moral do eu (ich) pelo conteúdo inconsciente nos sonhos, seja sob a forma de
desejos interditos, seja como punição, dado o sentimento de culpa inconsciente relacionado a
esses desejos.
Em “A dissecção da personalidade psíquica”, Freud afirma queonde estava o id
[isso], ali estará o ego [eu]” (1933[1932a]/1980, p.102), evidenciando a concepção de sujeito
em sua elaboração. Trata-se da fórmula que Lacan, em “A coisa freudiana ou o sentido do
retorno a Freud em psicanálise”, analisaria detidamente, destacando tratar-se do lugar do ser,
do sujeito e não do eu em sua dimensão narcísica: “‘Ali onde isso era’, como se pode dizer,
ou ‘ali onde se era’ [...] ‘é meu dever advir’” (LACAN, 1955/1998, p. 418).
Segundo Freud, uma parte do isso da qual o eu separou-se por meio de resistências
devidas à repressão. A repressão, contudo, não se estende para dentro do isso: o reprimido
funde-se no restante do isso (FREUD, 1933[1932a]/1980, p.99).
“[...] seu propósito é, na verdade, fortalecer o ego [eu] ou fazê-lo mais independente do
superego [supereu], ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a
poder assenhorear-se de novas partes do id [isso]. Onde estava o id [isso], ali estará o ego [eu].
É uma obra de cultura não diferente da drenagem do
Zuider Zee (FREUD,
1933[1932a]/1980, p.101).
Em “Esboço de psicanálise”, Freud (1940[1938a]/1980) estende a concepção da
divisão do eu, apontada nos casos de fetichismo e de psicose, para as neuroses, indicando que
essa divisão, que é extensiva a todo ser falante, está referida à percepção da realidade da
castração da mãe.
33
Assim, Freud utiliza o termo escolha da neurose como uma alternativa, que se
apresenta em momentos decisivos, em relação ao objeto. Que escolha seria esta? Do ser, do
eu, do sujeito? Embora Freud não o formule nesses termos, a referência à escolha não deixa de
colocar em questão a dimensão do sujeito. Pelo acima exposto, trata-se de uma escolha de
disposição, de pontos de fixação da libido e, embora sob a rubrica do
eu, de uma escolha cuja
radicalidade reside na tendência a fixar-se em uma posição subjetiva. No âmbito da segunda
tópica, Freud enfatiza a particular dinâmica entre eu, isso e supereu: quanto mais o primeiro
busca atingir padrões de moralidade, restringindo suas manifestações de agressividade, mais o
supereu, incitado pelo isso, busca uma satisfação masoquista. Essa dinâmica paradoxal revela
os limites do supereu como instância reguladora da satisfação pulsional, o que, como veremos,
coloca questões sobre o remanejamento do gozo e, por vezes, obstáculos ao laço social. No
tocante à terminologia, Freud não denomina essa fenda no eu como divisão subjetiva. No
entanto, não deixa dúvidas quanto ao fato de tratar-se de uma divisão que resulta de um ato de
reconhecimento e/ou de negação da castração, ato que revela a concepção de sujeito nele
implicada. O que se destaca nessa concepção é que o sujeito pode se desvelar como incidência
na linguagem quando colocada uma decisão sobre o objeto.
Algumas pontuações sobre o estatuto do objeto
A elaboração teórica sobre o objeto, que pode se desvelar na experiência de uma
análise, foi apresentada por Freud, inicialmente, no “Projeto para uma psicologia científica”
(1950[1895]/1980). Neste artigo, o autor circunscreve
das Ding, a Coisa, o objeto perdido
como a parte inominável da imagem mnêmica relativa ao encontro entre o infans e o próximo,
nebenmensch (p.434). Com o objetivo de situar a noção de das Ding, objeto precursor dos
objetos que irão se perfilar na história de cada sujeito seja dos objetos das pulsões parciais
em sua conexão com o desejo, seja do objeto de amor – partiremos da experiência de
satisfação inscrita no sistema no aparelho psíquico
3
, onde tal objeto se constitui.
3
O aparelho psíquico, tal como concebido por Freud neste artigo, é constituído pelos sistemas  e que
recebem estimulação tanto de fonte exógena (mundo externo) como de fonte endógena (interior do próprio
corpo)
sistemaé formado por um grupo de neurônios permeáveis que recebem diretamente a estimulação de
fonte exógena. Ao sistema
chegam as excitações endógenas e, de modo indireto, as exógenas. o sistema de
neurônios
, excitável pela percepção e não pela reprodução, tem como função produzir as diversas qualidades,
sensações. Por não estar afetado pela memória, como o sistema
sua ação será requerida no reconhecimento do
objeto (FREUD, 1950[1895]/1980). Estabelecendo uma distinção entre esses sistemas, Freud descreveu o
sistema
como aquele que não tem contato direto com o mundo externo – do qual recebe estimulação
fracionada, a partir do sistema
mas que está continuamente exposto às excitações de fonte endógena (p.404).
Na busca da descarga, esse sistema encontrará várias vias facilitadas. É a memória que orienta a via escolhida,
indicando vias preferenciais em função de facilitações (rastros de passagens) anteriormente percorridas, o que
34
O sistema é constituído por neurônios do pallium investidos a partir do sistema,
do qual recebe excitações de fonte exógena e pelos neurônios do núcleo que recebem a
estimulação procedente da fonte endógena (p.419). Essa estimulação endógena se produz em
nível intercelular, de modo contínuo, em um processo que se realiza por “somação, até os
neurônios ficarem permeáveis” (p.420).
“[...] No momento em que a via de condução alcança seu nível de saturação, essa acumulação
não tem mais limites [...] Quando isso ocorre, no interior do sistema surge o impulso que
sustenta toda a atividade psíquica [...] Conhecemos esta força como vontade” (p.421).
Tal impulso é a energia que move o aparelho psíquico, mais tarde conceituada por
Freud (1915a/1980) como pulsão. Em estado de
urgência, busca descarga, utilizando vias até
então privilegiadas, como a que conduziu à
experiência de satisfação.
A experiência de satisfação
Ao descrever o processo que culmina na experiência de satisfação, Freud parte do
estado de urgência em que se encontra o infans, que reage ao desconforto, na tentativa de
restabelecer o estado de quietude, através de uma alteração interna. Tal alteração visa à
redução das excitações endógenas, que se acumulam de forma contínua e periodicamente
se transformam em estímulo psíquico (FREUD, 1950[1895]/1980, p.421).
Na situação de urgência, o infans expressa o desprazer através do choro ou do grito.
Como meio de descarga, tal reação conduz a uma alteração interna. Contudo, como nenhuma
descarga dessa espécie produz alívio da estimulação endógena – e como o organismo é
incapaz, inicialmente, de realizar a ação específica, aquela que deteria a tensão cumulativa
os apelos do infans atraem a atenção de uma pessoa experiente, aquela que propiciará a
assistência alheia.
Neste encontro, o próximo interpreta o apelo do infans e a ele responde oferecendo
alimentação, aproximação do objeto sexual e mediação simbólica. Essa intervenção produz
uma alteração no mundo externo e permite que o infans, por meio de dispositivos reflexos,
detenha o estímulo endógeno que se acumula de forma contínua. Tal operação produz efeitos
Freud sintetiza, afirmando: “A memória está representada pelas diferenças de facilitação entre os neurônios
p.
35
de alteração interna no aparelho psíquico, constituindo a experiência de satisfação (p.421).
Em função do que está em jogo nesse encontro, Freud afirma:
“a via da descarga da alteração interna adquire a importantíssima função secundária da
comunicação e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os
motivos morais” (FREUD, 1950[1895]/1980, p.422).
Nessa passagem, destaca-se a dimensão ética do encontro entre o infans e o próximo.
Não se trata, aqui, de semelhantes, uma vez que o próximo é o elo de transmissão da lei que
organiza a cultura, o que lhe outorga o lugar de alteridade. O que confere densidade a esse
comentário freudiano é o lastro posto em jogo na transmissão efetivada através dos cuidados
do adulto, que erotiza o infans, cujo estado de desamparo é condição para que uma
subjetivação possa ter lugar. A partir de então, o próximo passa a ser buscado como o objeto
capaz de realizar a
assistência alheia de que carece o infans em estado de urgência. Assim,
tem início o processo que deflagra o impulso no sentido de relançar a busca de um
determinado objeto.
Em outras palavras, é a resposta do
próximo ao apelo do infans que possibilita a
experiência de satisfação, subvertendo definitivamente o organismo deste último pela ação
específica mediada pela linguagem. Produzem-se, assim, alterações no sistema conforme
descreve Freud:
“(1) efetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a urgência que causou desprazer
em
(2) produz-se no pallium a catexização de um neurônio (ou de vários) que corresponde
à percepção do objeto; e (3) em outros pontos do pallium chegam as informações sobre a
descarga do movimento reflexo liberado que se segue à ação específica. Estabelece-se então
uma facilitação entre essas catexias e os neurônios nucleares” (FREUD, 1950[1895]/1980,
p.422).
Será a partir da catexia dos neurônios do pallium e do núcleo do sistema que se
criará uma via de facilitação, como uma trilha que se abre à medida que se realiza a
experiência, produzindo-se o que Freud chamou de estado de urgência ou desejo. Quando tal
estado voltar a ocorrer, a catexia reativará essas lembranças: “É provável que a imagem
mnêmica do objeto seja a primeira a ser afetada pela ativação de desejo” (p.424).
Essa experiência de humanização afetará as diversas funções do aparelho psíquico a
percepção, a atenção, o pensamento, a curiosidade intelectual, a memória – inscrevendo traços
do próximo como primeira alteridade; seus efeitos serão, por isso mesmo, indestrutíveis.
4
4
Nos termos de Lacan, a alteridade é, inicialmente, denominada Outro primordial (LACAN, 1955/1998).
36
O circuito de apelos e cuidados implica presença e ausência, o que nos coloca a
questão: como pode o aparelho reconhecer o objeto capaz de realizar a
ação específica de que
ele carece, na tentativa de realizar a experiência de satisfação? Essa questão será retomada
mais adiante.
Freud distinguiu a experiência de satisfação da experiência de dor – as quais, em certa
medida, se excluem – evidenciando ter-se baseado na hipótese de que o “sistema nervoso tem
a mais decidida propensão a fugir da dor” (p.408). Sendo assim, perguntamos: o que acontece
quando uma excitação desperta a lembrança ligada à dor?
A experiência de dor
Examinando a experiência de dor pela via da inscrição de traços mnêmicos relativos à
intensidade e ao limite, em termos de diferenciação de barreiras de contato, Freud desvelou a
especificidade dessa experiência, afirmando:
“A dor produz em  um grande aumento de nível, que é sentido como desprazer por uma propensão
à descarga e uma facilitação entre esta e a imagem mnêmica do objeto que acentua a dor” (FREUD,
1950[1895]/1980, p.424).
Na experiência primordial do infans, a dor está relacionada com a imagem do objeto
hostil. Uma vez catexizada tal imagem, estabelece-se, devido à sensação de desprazer, uma
facilitação acentuada na direção da descarga, experiência que deixa rastros permanentes
5
. No
traço hostil do objeto reconhecemos uma das modalidades de das Ding, parte irrepresentável
da imagem do objeto primordial. Tal modalidade pode ser localizada, não apenas na literatura,
mas também na clínica, em que pode se desvelar como o derradeiro objeto de desejo.
Ainda em “Projeto para uma psicologia científica”, Freud descreve dois tipos de
experiências, de satisfação e de dor, em relação às quais situou, de um lado,
satisfação/prazer/atração, e, de outro, dor/desprazer/repulsão.
5
Neste ponto, considerando a tendência à descarga decorrente das experiências de dor, interrogamos se esses
traços permanentes seriam passíveis de algum remanejamento promovido por um novo investimento. De acordo
com a tese freudiana, tal como exposta na “Carta 52”, “os traços da memória estariam sujeitos, de tempos em
tempos, a rearranjo e retranscrição, dependendo das circunstâncias”(FREUD, 1896a/1980, p.317). Como as
mencionadas circunstâncias não foram especificadas, não como responder se, no caso da dor, tal
remanejamento seria possível. No entanto, o trabalho ao qual se dedicam alguns sujeitos psicóticos nos levam a
supor que se trata de uma aposta, senão em novo rearranjo, ao menos em um investimento colateral, o que
indicaria um passo ao lado na monotonia da repetição.
37
“A atração de desejo pode ser facilmente explicada pelo pressuposto de que a catexia da
imagem mnêmica agradável num estado de desejo supera amplamente em Q a catexia que
ocorre quando há uma simples percepção, de modo que a facilitação particularmente boa passa
do núcleo
 para o neurônio correspondente do pallium. [...] É mais difícil explicar a defesa
primária ou
recalcamento o fato de a imagem mnêmica hostil ser regularmente abandonada
o mais depressa possível por sua catexia” (FREUD, 1950[1895]/1980, p.427).
Inferimos que não se trata, quanto aos termos que constituem cada pólo, de
equivalência, mas de correspondência, seja entre satisfação e prazer, seja entre dor e
desprazer. Em relação a este último pólo, a dor implica quantidade e nível de excitação no
sistema , enquanto o desprazer, como qualidade da excitação, apresenta-se como sensação
no sistema
. Cabe ao sistema inibir a descarga de uma catexia que provoque desprazer.
Caso contrário, este poderá sobrevir intenso e provocar uma defesa primordial excessiva.
Nesse contexto, a fim de evitar que uma lembrança hostil, que provoca dor, seja
recatexizada – o que é possível pela inibição da descarga através de investimentos colaterais –
o sistema precisa deuma indicação de realidade. Para tanto, é necessário distinguir
percepção e lembrança, o que está fora do alcance desse sistema, orientado pelo nível da
excitação neuronal. Freud se dedicou ao problema, não se contentando em afirmar que o
sistema percebe a qualidade ou a sensação da excitação, pois a questão diz respeito a como
a qualidade se transforma em quantidade no sistema . Trata-se de saber como localizar o
índice de realidade de um fenômeno em relação a uma lembrança O desdobramento dessa
questão levou o autor a atribuir ao eu a função de reconhecimento do objeto, o que
comentaremos mais adiante. Por ora, continuaremos a abordar a defesa em relação à
experiência de dor.
Vimos que a intensidade da defesa primária, promovida por parte do sistema , em
relação à descarga está em correlação positiva com a experiência de desprazer, relacionada à
dor, o que levaria a uma reação de afastamento da lembrança que provoca tal excitação. No
entanto, o sistema nervoso, que subjaz ao modelo do aparelho reflexo, costuma reagir
evitando a dor. Não é exatamente isso que Freud viria a encontrar em sua clínica. Nela,
constatou o que também nos ensina a prática clínica orientada pela psicanálise aplicada à
psicose
6
: que a busca de satisfação é reiterada, mesmo quando a repetição da experiência
6
Ao empregar a expressão psicanálise aplicada à psicose, referimo-nos à utilização dos princípios da
psicanálise aplicada à terapêutica que se orienta pela clínica do sujeito em sua relação com a linguagem.
Desenvolveremos esse ponto considerando, dentre outras, a contribuição de Brodsky (2003) e Zenoni (2000)
no Capítulo III, quando comentaremos a prática clínica orientada pela psicanálise lacaniana nas instituições.
Nessa perspectiva, abordaremos a questão das estratégias e táticas relativas ao tratamento do gozo no caso de
alguns sujeitos psicóticos atendidos em ambulatório do SUS, no
Courtil e no Foyer de l’Equipe.
38
conduz ao desprazer que ameaça a vida. Assim, essa primeira suposição de que o aparelho
psíquico visa ao prazer foi revista por Freud, que destacou ser a tendência à satisfação
pulsional o que prevalece, paradoxo evidenciado, como veremos, na segunda tópica
freudiana.
7
Desvelando a compulsão à repetição nos sonhos que ocorrem nas neuroses
traumáticas, nos sintomas neuróticos e nos jogos infantis, Freud (1920/1980) que
inicialmente considerara a repetição como tentativa de transformar a inscrição de desprazer
em prazer conclui que o afeto do desprazer não implica, necessariamente, o afastamento da
representação do objeto que provoca dor. É levado, assim, a rever a primeira teoria pulsional,
cujo pressuposto aproximava redução de tensão e prazer.
Deslocando a hipótese da dominância do princípio do prazer para a de sua vigência
como forte tendência nos processos psíquicos, Freud (1920/1980, p.20), na segunda teoria
pulsional, passou a sustentar que tais componentes podem estar intrincados, como na
ambivalência de amor e ódio em relação ao mesmo objeto (p.74), ou não intrincados, caso em
que a descarga é favorecida.
A hipótese freudiana sobre a fusão e a desfusão entre os componentes eróticos da
pulsão de vida e os componentes destrutivos da pulsão de morte (1923b/1980, p.57) constitui
um dos parâmetros teóricos que orientam a clínica da psicose. Nela, os componentes
destrutivos podem se manifestar disjuntos dos componentes eróticos, favorecendo tanto a
inércia quanto a passagem ao ato, que indica um funcionamento próprio do processo primário.
Retomaremos esse ponto ao comentar, mais adiante, os Casos C. e S., que, no percurso da
análise, referiram uma inércia insistente.
7
Uma das hipóteses sustentadas por Freud em 1920 refere-se à idéia de que “toda pulsão tende à restauração de
um estado anterior de coisas” (1920/1980, p.54). Revela-se, assim, que a satisfação, como finalidade pulsional,
mesmo que não realizada, está a serviço da tendência conservadora do eu. O impulso de desejo reprimido insiste
na busca de satisfação, e o recalque favorece a civilização. Notamos aqui que o aparelho psíquico busca reduzir
suas excitações, cuja tensão é considerada, no contexto da primeira teoria pulsional, como desprazer. Entretanto,
Freud, em “O Problema econômico do masoquismo” (1924b/1980), revê tal suposição, ao afirmar que há tensões
prazerosas, como a excitação sexual, e outras desprazerosas, que supomos relacionadas com a angústia. No
citado artigo, Freud desvelou a lógica da
reação terapêutica negativa, na qual se destacam os efeitos nefastos da
ação do supereu, sob a forma do sentimento inconsciente de culpa, que não favorece o laço social. Sendo assim,
destacamos a hipótese da coalescência entre as duas tendências pulsionais
Eros, como pulsão de vida, e
Thanatos, como pulsão de morte em que a primeira deriva da segunda, como um desvio do desprazer. A
tendência de retorno ao inorgânico persiste, mas orientada pelo trilhamento pelo qual transitam os investimentos
da libido. É o que podemos notar nesta pontuação de Freud: “o organismo deseja morrer apenas do seu próprio
modo” (1920/1980, p.57). Revela-se aqui o paradoxo de uma escolha que implica a tendência a desfazer as
ligações no âmago da luta pela vida.
39
A distinção entre energia livre e energia ligada, introduzida por Freud
(1950[1895]/1980, p.398) no “Projeto para uma psicologia científica”
8
, corresponde àquela
entre neurônios livres e catexizados. Com a diferenciação do sistema, tais modalidades de
energia corresponderão aos dois modos de funcionamento do aparelho psíquico: o processo
primário, que tende à descarga, e processo secundário, que, em função das barreiras de
contato, tende a acumular, investir neurônios colaterais e seguir trilhamentos. O investimento
implica a retenção de energia por algum tempo, o que permite sua utilização em certas
funções, como o pensamento inibidor do eu originário.
Retomando o fio do argumento sobre a experiência de dor, Freud, em “Além do
princípio do prazer” (1920/1980) e em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926[1925]1980),
ratifica a formulação de que essa experiência pode ter-se originado a partir do rompimento do
escudo protetor devido à intensidade da excitação. Enfatiza a ausência desse tipo de defesa
quando a excitação é de fonte endógena, cujo excesso pode ter efeito traumático. Em
contrapartida, o processo de simbolização, deflagrado pelo encontro com o próximo, pode
favorecer a ligação da excitação de fonte endógena. Esse é o caso da experiência de
satisfação, que, como vimos, tende à repetição em busca de reeditar a identidade de
percepção.
Não se trata, quanto aos termos que constituem cada um dos pólos, de equivalência,
mas de correspondência entre registros: de um lado, satisfação e prazer; de outro, dor e
desprazer.
A possibilidade de investimento, ou seja, de ligação pulsional é uma das questões
colocadas pela clínica com sujeitos psicóticos, em função da dispersão e da tendência à
descarga pela via do processo primário. Retomaremos essa questão ao tratar da construção de
suplência como possibilidade de laço social.
Antes de abordar as possibilidades teóricas de resposta do sistema diante de um objeto
que desperte a ativação do desejo, focalizaremos a função que o eu – efeito da ligação
resultante dos investimentos que transformam energia livre em energia ligada exerce no
tocante ao reconhecimento do objeto pelo aparelho psíquico em processo de constituição.
A função do eu no processo de reconhecimento do objeto
8
Garcia-Roza (1998) comenta a elaboração freudiana sobre as energias livre e ligada exposta no “Projeto para
uma psicologia científica”. Destaca a passagem do prazer ao princípio de prazer, que se realiza através de um
processo de ligação (
Bindung) constitutivo de um esboço de organização do eu. Tal processo se diferencia da
energia dispersa: “A ligação consiste numa contenção ao livre escoamento das excitações, transformando a
dispersão das excitações em um estado de integração. A noção de ligação (
Bindung) é indissociável das noções
de investimento colateral e de trilhamento” (p.149).
40
O eu
9
, nos termos do “Projeto para uma psicologia científica”, é concebido por Freud
(1950[1895]/1980, p.428) como um complexo de neurônios pertencentes ao sistema e
continuamente investidos. Distinguem-se, no sistema
 duas partes: o núcleo,
permanentemente investido, e o pallium, com investimento variável. Ambas visam a regular
as excitações, verificando certas condições antes de realizar a descarga.
Nesse contexto, uma das funções do eu é
inibir a descarga, estabelecendo uma
distinção entre a percepção de um objeto da realidade e a lembrança do objeto que promoveu
a ação específica, o que é possível pela manutenção de um investimento moderado no objeto,
pois, do contrário, terá lugar a descarga. Com esse objetivo, o eu tanto investe imagens de
objetos que se tornam atração de desejo (p.427) quanto favorece o recalcamento, defesa
primária em relação ao desprazer. Tais processos têm lugar à medida que se configura a
organização do eu (p.428).
Como o aparelho psíquico discrimina a diferença entre percepção e lembrança do
objeto? O sistema não tem como discernir sobre a indicação de realidade, o que requer
uma ação do sistema Como afirma Freud (1950[1895]/1980), cabe a este último transmitir
uma informação sobre a qualidade da sensação:
“Provavelmente, são os neurônios[sistema de neurônios perceptíveis, que trazem consigo a
consciência relativa às sensações de prazer e desprazer], o que é possível pela
transformação dos processos quantitativos em qualidades sensoriais que fornecem indicação
da realidade [...] para
” (p.431)
Tal informação sobre a indicação de realidade constitui o critério que permite
reconhecer se o objeto da percepção corresponde à imagem mnêmica do objeto de desejo que
conduziu à experiência de satisfação, para, então, iniciar a descarga. Esse processo
favorece a defesa, pois evita o desprazer e a dor que lhe corresponde.
Seguindo o fio do argumento freudiano sobre o reconhecimento do objeto, destacamos
que, se a lembrança é intensamente catexizada, a ponto de ser ativada de modo alucinatório,
produz-se a mesma indicação de realidade proveniente de uma percepção externa, o que
indicaria uma falha quanto ao critério de distinção. No entanto, esse critério pode funcionar
quando a catexia da lembrança ocorrer em uma situação em que o eu mantenha a catexia
moderada da lembrança do objeto desejado. Em função do exposto, Freud afirma que é uma
9
Seguimos a indicação de Garcia-Roza (1998, p.151), que designou como eu originário a organização que surge
com a catexização dos neurônios com energia psíquica no início da constituição do aparelho psíquico. O eu,
neste caso, distingue-se do eu como instância psíquica diferenciada dotada de funções. O
eu realidade originário
corresponde ao o eu-real (real-ich) formulado por Freud em “Os instintos e suas vicissitudes” (1915a/1980),
cujo surgimento é anterior àquele do
eu-prazer.
41
“inibição [da descarga] pelo eu que possibilita um critério de diferenciação entre a percepção
e a lembrança” (p.431), logo, da realidade do objeto, antes de iniciar a descarga.
Por outro lado, a informação da quantidade de excitação dos neurônios do sistema
,
que buscam a descarga por meio das vias motoras dos órgãos sensoriais, também é
transmitida ao sistema podendo representar, para este, uma proteção. Freud denominou
atenção reflexa (p.432) à informação dessa descarga, que funcionaria como um sinal
biológico para que, por sua vez, enviaria novas catexias nessa direção.
O eu recebe informações e regula a passagem de impulsos sob a ação do processo
primário para “não levar a catexia das lembranças desejadas além de certa medida” (p.432),
evitando, assim, o desprazer. Isso é possível através da manutenção do umbral da barreira de
contato em relação à intensidade da estimulação, e do investimento de neurônios adjacentes
aos que receberam a estimulação. Esse trabalho visa a promover o surgimento de processos
psíquicos secundários no sistema , os quais “dependem da utilização correta de ‘indicações
da realidade’, que só se torna possível quando existe inibição por parte do eu”
10
(p.433).
De certo modo, a hipótese sobre a função de defesa do eu havia sido antecipada por
Freud na “Carta 52”, em que o autor se refere às inscrições pré-conscientes, ligadas às
representações de palavras que corresponderiam ao eu. Nessa passagem, aponta a
especificidade “dos neurônios da consciência que seriam também neurônios da percepção e,
em si mesmos, destituídos da memória” (1896c/1980, p.318). No “Projeto para uma
psicologia científica”, Freud destaca que a consciência fornece qualidade nos sonhos do
mesmo modo que na atividade de vigília, concluindo que “a consciência não se restringe ao
eu” (FREUD, 1950[1895]/1980, p.449).
Tal diferenciação das funções dos neurônios indica que a
prova de realidade psíquica
é conduzida pelo eu, sendo a informação de qualidade fornecida pelos neurônios .
atração de desejo, mas também defesa primária, e o eu, como complexo de neurônios,
trabalha a favor da defesa
11
.
10
Garcia-Roza (1998), buscando relacionar as premissas do “Projeto para uma psicologia científica” com as
formulações do artigo “O ego e o id”, focaliza a afirmação “Wo Es war, soll Ich werden”. Considerando cada
uma dessas dimensões como lugares psíquicos, e admitindo certo risco em tal apropriação, o autor afirma:
Wo
Es war
, onde havia o caos, um estado de pura dispersão de excitações, constituiu-se uma organização. Nesse
momento de indiferenciação original mítico por excelência, teria tido lugar a experiência primária de satisfação”
(GARCIA-ROZA, 1998, p.149).
11
A questão da defesa passou por uma reformulação teórica na segunda tópica da teoria freudiana. Como
podemos notar, em “Além do princípio do prazer”, Freud, utilizando a imagem da vesícula viva, explicou como
o aparelho psíquico constrói um sistema de defesa que modifica a própria estrutura do sistema nervoso. Essa
vesícula viva seria constituída por camadas contíguas. A
camada cortical receptiva teria sofrido uma alteração,
tornando-se
inorgânica e passando a funcionar como um escudo protetor, como forma de defesa em relação às
excitações do mundo externo (1920/1980, p. 42-44). Mantendo a idéia do escudo protetor, mas privilegiando as
42
Freud (1950[1895]/1980, p.424) ressalta que decepção quando o ato reflexo se
baseia em uma
alucinação, como equivalente de uma percepção, levando-nos a inferir que
uma alucinação não seria capaz de provocar uma mudança no mundo externo. A alucinação
não pode, portanto, reproduzir a ação específica, o que representaria um risco para o infans,
em função do desprazer que poderia ser gerado pelo desapontamento e frustração da
satisfação que o objeto oral propicia.
Por outro lado, ao se basear nas produções das imagens oníricas como realizações de
desejo, o que é possível por uma regressão que investe representações, Freud declarou-se
inclinado a deduzir que “as catexias de desejo primárias também foram de caráter
alucinatório” (p.449). Tal hipótese é ratificada pelo autor em “A interpretação dos sonhos”,
em que comenta a
experiência de satisfação subjacente ao desejo infantil que move o
inconsciente (1900/1980, p.602).
Descrevendo o desejo como “um impulso psíquico que procurará recatexizar a
imagem mnênica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação
da satisfação original” (FREUD, 1900/1980, p.602), Freud deixa aberta a possibilidade de que
essa experiência tenha o estatuto de uma experiência produzida pelo próprio aparelho
psíquico:
“Nada nos impede de presumir que tenha havido um estado primitivo do aparelho psíquico em
que esse caminho [da excitação à ativação da imagem mnêmica da percepção] era realmente
percorrido, isto é, em que o desejo terminava em alucinação. Logo, o objetivo dessa primeira
atividade psíquica era produzir uma “identidade perceptiva” uma repetição da percepção
vinculada à satisfação da necessidade” (1900/1980, p.602).
Nesse contexto, qual seria a diferença entre a experiência alucinatória de desejo e a
alucinação como fenômeno elementar? Retomaremos a questão no segundo capítulo, na seção
intitulada “Laço social na psicose”.
Em relação ao reconhecimento do objeto, vimos, então, que o aparelho trabalha
visando, por um lado, a inibir a descarga quando se depara com traços de objetos que
provocam desprazer e dor; e, por outro, a recatexizar a imagem mnêmica da percepção do
objeto diante de um objeto que desperte desejo buscando reproduzir a identidade de
percepção ligada à experiência de satisfação.
formas de inscrição dos registros da experiência no campo psíquico, Freud (1925[1924]/1980), no artigo “Uma
nota sobre o bloco mágico”, propõe uma analogia entre as três camadas do brinquedo denominado
bloco mágico
e as funções dos sistemas Pcpt-Cs e Inconsciente. Nessa analogia, a folha de celulóide e o papel encerado do
brinquedo corresponderiam ao aparelho
Pcpt-Cs, que, como escudo protetor, teria a função de diminuir a
intensidade da excitação recebida pelo aparelho. a prancha de cera corresponderia ao inconsciente, onde são
mantidos os traços de memória permanentes, mas passíveis de remanejamento.
43
A busca da identidade de percepção
O estado de desejo é constituído pelo triplo investimento nos neurônios (do pallium e
do núcleo) do sistema criando-se uma via de facilitação. Diante do estado de desejo, que
relança a busca por um objeto que possa evocar a experiência de satisfação alucinada,
surgem três possibilidades: coincidência, interseção e disjunção.
Na primeira possibilidade, a coincidência entre a percepção do objeto e a imagem
mnêmica converter-se-ia em identidade, o que levaria à ação específica (p.433). Mas, como a
experiência de satisfação foi alucinada, é impossível que essa possibilidade teórica tenha lugar
como experiência.
Na segunda possibilidade, estariam presentes uma catexia de desejo e uma percepção
que a ela não corresponde inteiramente, mas apenas em parte (p.434). Destacamos, em tal
hipótese, uma tentativa de correlacionar os componentes do complexo perceptual do objeto
com a localização dos elementos do sistema . Assim, nessa primeira abordagem, o neurônio
a, a Coisa, estaria no núcleo do eu do sistema , que recebe a estimulação da fonte endógena
ou, indiretamente, da exógena; enquanto que a outra parte, o neurônio b, atividade ou atributo,
a parte variável, seu predicado que a particulariza, estaria no pallium.
Freud assinala que, através de conexões do neurônio
c que incluem imagens do
corpo próprio em movimento, obtidas casualmente durante o ato de mamar, na tentativa de
encontrar a imagem do objeto o
infans pode encontrar acesso ao neurônio b, e aceder à
identidade de percepção, que consiste em fazer voltar o neurônio b desaparecido (p.435). A
tentativa do infans seria de reencontrar o objeto, mesmo que para tanto seja preciso certa
torção, um movimento no sentido de reencontrá-lo, de reevocar a identidade, objetivo que
produziria satisfação. Portanto, o objeto a ser buscado é aquele que constituirá a realidade
psíquica, cujos traços ficaram retidos na memória.
Essa hipótese foi descrita por Dreyfuss (1982, p.55) como interseção, única passível,
dentre as três possibilidades teóricas supostas, de evoluir para o estado de desejo. No entanto,
o autor, observando que uma percepção que afeta o pallium não é equivalente a uma excitação
nuclear, opôs-se à assimilação do neurônio a, a Coisa, ao núcleo do eu, propondo:
a Coisa [como estrutura comum a esses dois investimentos distintos] é, principalmente,
assimilável à interseção vazia dos dois conjuntos disjuntos, tal como ela pode ser figurada
sobre uma folha de papel, em duas dimensões” (DREYFUSS, 1982, p.58).
O argumento de Dreyfuss está afinado com a elaboração freudiana (1950[1895]1980)
sobre das Ding, a Coisa, apresentada tanto na consideração do complexo do próximo (p.438)
quanto na abordagem da função judicativa (p.481). Nesta, Freud distingue das Ding como não
44
assimilável, não sujeita à comparação, logo, como irrepresentável. É o que a distingue dos
atributos do complexo perceptivo, os quais são passíveis de conhecimento pelo eu através de
sua própria experiência.
A terceira possibilidade tem lugar quando, em presença de uma catexia de desejo,
manifesta-se uma percepção que não coincide em nada com a imagem mnêmica desejada
(
mnêm +), o que incita o aparelho psíquico ao trabalho (p.437).
A disjunção, como terceira alternativa, indica que não qualquer parte em comum
entre a percepção e os traços mnêmicos do objeto de desejo. Neste caso, a alternativa seria
seguir a segunda possibilidade, a da interseção. O pensamento, o juízo e o estado de desejo
apresentam certa equivalência, pois operam a partir da não coincidência, isto é, da interseção
ou da disjunção entre a percepção do objeto e a imagem mnêmica do objeto perdido da
experiência de satisfação, buscando restabelecer alguma ligação entre esses elementos
(p.437). Ao descrever o complexo do próximo, Freud situou das Ding como primeiro objeto,
aquele do mítico encontro entre o
infans e o Outro.
Dreyfuss (1982, p.58), considerando a terceira possibilidade, descreve a disjunção
entre esses dois componentes, sustentando que das Ding deve designar também o que de
comum a todas as percepções relativas à presença do Outro. Como tal, “a Coisa não é
redutível a um componente perceptivo banal” (p.58).
Ao abordar o processo judicativo, Freud (1950[1895]/1980) esclarece que “coisas são
resíduos que se esquivaram ao juízo” (p.441). Assinala que, sob a forma de um resíduo, o
complexo-coisa continua reaparecendo ao lado dos complexos-atributos (p.502). Estes últimos
constituem vias de pensamento que podem se tornar independentes da percepção, o que
resulta em economia para o sistema. É como se o pensamento, a partir do juízo, constituísse
uma via de reconhecimento do objeto do desejo que dispensasse o recurso à percepção. Tal
configuração economizaria um trabalho a ser constantemente realizado a partir de percepções,
evidenciando um aparelho que trabalha com a possibilidade do erro. No desdobramento dos
processos de pensamento, o autor lista os erros de juízo ou falhas de premissa e de ignorância
em que o processo de pensamento pode incorrer, indicando que o aparelho rateia, o que
constitui uma característica de seu próprio modo de funcionar.
Freud (1900/1980, p.603-604) desenvolve a tese de que toda atividade de pensamento
é uma via indireta para alcançar a realização de desejo através da busca pelo reencontro com
um objeto. No que concerne à defesa em relação ao processo primário, o pensamento é
trabalho de investimento, logo, processo secundário, uma tentativa de recuperação da
satisfação regulada pelo princípio da realidade. Ao situar o pensamento como desejo, Freud se
45
detém na censura como guardiã da saúde mental. Toma como contraponto a psicose,
relacionando-a aos efeitos da
redução patológica da censura ou da intensificação patológica
da excitação inconsciente. Esta última dominaria o pré-consciente, ocasionando a regressão
alucinatória que passa a dirigir o aparelho psíquico (1900/1980, p.605).
Das Ding, o objeto da pulsão e o objeto do amor
Que relação entre das Ding, o objeto que relança o desejo, com a elaboração sobre
o objeto das pulsões parciais? Vimos que das Ding foi concebida por Freud como o resíduo
que escapa ao juízo, logo, como uma perda que se instala no âmago do simbólico a partir da
entrada na linguagem. Trata-se da perda que institui um não saber sobre o próprio corpo. O
infans, para alterar esse estado de coisas, depende do próximo. O objeto perdido do desejo
sexual infantil tem como protótipo o objeto da pulsão oral relativo à experiência de satisfação.
A perda do objeto do desejo primordial realiza-se em um circuito pulsional instaurado
pela busca de satisfação através da ingestão de alimento. Deslocada tal finalidade, o objeto
perdido assume a função de relançar essa busca. Assim, Freud refere-se ao objeto perdido do
desejo infantil como o único que pode “mover o aparelho anímico” (1900/1980, p.604).
Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905a/1980), na seção “A teoria da
libido”, Freud considera o momento de passagem do investimento nesse primeiro objeto à
escolha de um objeto sexual fora do circuito dos objetos infantis. O autor situa tal passagem
na puberdade, momento de definição da escolha de um objeto sexual, cuja disposição havia
sido estabelecida na primeira infância, entre dois e cinco anos. Freud afirma que, via de regra,
a pulsão sexual torna-se auto-erótica, isto é, busca satisfação através do
prazer de órgão, o
que virá a se alterar com o investimento em novo objeto, após o período de latência, iniciado
ao final da fase fálica (p.229).
No artigo “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”
(1911a/1980), Freud esclarece a transformação de parte do
eu-prazer no eu-realidade, cuja
função será a de decidir sobre as mudanças necessárias para alcançar a satisfação. No
desenvolvimento desse artigo, o autor se detém na regulação do prazer-desprazer.
Considerando o funcionamento do aparelho segundo um modelo reflexo, Freud relaciona,
inicialmente, o princípio do prazer ao princípio da constância. Assinala que este último visa a
manter a homeostase reduzindo a um nível mínimo as excitações pulsionais, que, quando
ultrapassam certo limiar, são vivenciadas como desprazer. Todavia, a relação entre prazer e
46
desprazer sofisticou-se em elaborações posteriores, sobretudo na que teve lugar em 1920, com
a virada teórica que estabeleceu uma nova dualidade: pulsão de vida e pulsão de morte.
Por ora, seguindo as elaborações sobre as relações entre os princípios de prazer e de
realidade, notamos que tais princípios não se opõem, mas estão polarizados em certa tensão.
Com efeito, a instauração do princípio de realidade, que se refere à realidade psíquica, visa a
reencontrar a identidade perceptiva entre o objeto de satisfação primordial, visado pelo
princípio do prazer, e os objetos encontráveis na experiência. Trata-se, no segundo, de uma
torção em relação ao primeiro, que o transforma, a partir de certas negociações com o afeto da
angústia, sem extingui-lo, como assinala Freud: “na realidade, a substituição do princípio do
prazer não implica a deposição daquele, mas apenas sua proteção” (FREUD, 1911a/1980,
p.283). Nesse ponto, podemos notar o paradoxo da formulação freudiana, segundo a qual a
insatisfação – que mantém uma íntima relação com desprazer – é parte da realidade que move
cada sujeito para a busca do prazer. Assim, a renúncia à satisfação pela via do eu-prazer, que
não comporta adiamentos e substituição, seria o fundamento do laço social entre o sujeito e o
outro.
Em “Os instintos e suas vicissitudes”, Freud se deteve na gênese do amor e do ódio,
tendo como pano de fundo a experiência de simbolização, e fez algumas inferências a partir
da articulação teórico-clínica. Nesse processo, revelou-se uma mudança no estatuto do eu e do
objeto em relação à prova de realidade. Freud, reconhecendo a anterioridade do ódio em
relação ao amor (1915a/1980, p.157), propõe outra versão do momento mítico de constituição
do objeto, diferente da exposta no artigo “Formulações sobre os dois princípios do
funcionamento mental” (1911a/1980).
Com efeito, Freud distingue um eu-realidade original, anterior ao eu-prazer, sobre o
qual afirma: “o ‘ego [eu] da realidade’ original, que distinguiu o interno e o externo por meio
de um sólido critério objetivo, se transforma num ‘ego [eu] do prazer’ purificado, que coloca
a característica do prazer acima de todas as outras” (FREUD, 1915a/1980, p.157)
. Que
critério sólido seria esse? Freud não o explicita. Mas havia proposto uma outra articulação,
em que descreve a primeira diferenciação entre dentro e fora, a partir da ação motora do
organismo. Tal ação, “visando a eliminar estímulos, obtém êxito em termos de mundo
externo” (p.139), que os estímulos podem ser evitados pela ação muscular, ao passo que
esta mesma ação é ineficaz quando se trata de estímulos internos que provocam desprazer,
não havendo, neste caso, modificação. A diferenciação entre dentro e fora a partir do eu-
prazer se realiza porque este último dividiu o
47
“mundo externo em duas partes, uma que é agradável e que ele incorporou a si mesmo e outra
em um remanescente, que lhe é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que projeta
no mundo externo e sente como hostil, o que faz com que duas polaridades coincidam: o
sujeito do ego [eu] com o prazer, e o mundo externo com o desprazer (com o que,
anteriormente, era indiferente)” (FREUD, 1915a/1980, p.157).
O que sucede ao objeto nesse processo de diferenciação entre o eu-prazer e o eu-
realidade
?
Seguindo os passos da elaboração freudiana, destacamos que o ódio é mais antigo que
o amor, assumindo uma função primeira de separação em relação ao dentro-fora, o que
Freud remonta a uma distinção entre opostos. Precisando os termos dessa operação, Freud
exclui uma relação direta entre pulsões e objetos, reservando as inferências sobre atitudes de
amor e ódio às “relações entre o ego [eu] total e os objetos” (FREUD, 1915a/1980, p.159).
Em “Os instintos e suas vicissitudes”, considera que só cabe usar a palavra amor após
ter havido uma “síntese de todos os instintos componentes da sexualidade sob a primazia
genital e a serviço da função reprodutora” (1915/1980, p.158). Tal formulação implica
reconhecer o amor em um vínculo quando este se referencia pelo primado do falo, logo,
quando porta o selo da inscrição da castração. O amor suporia, portanto, alguma separação
entre sujeito e objeto, uma síntese dos componentes libidinais de amor e de ódio, o que
levanta questões sobre o amor na psicose.
No entanto, ainda nesse artigo, Freud refere-se a fases preliminares do amor seja
como incorporação-devoração, seja como domínio sobre o objeto de amor que não seriam
incompatíveis com a estrutura da psicose, mas nas quais sobressairiam os componentes
agressivos em relação ao objeto, implicando até mesmo seu aniquilamento. Tais componentes
agressivos derivam do ódio e não têm a mesma fonte que o amor, pois o ódio, que é mais
antigo que o amor, tem por finalidade a auto-preservação, e não se originou, como o amor,
dos impulsos com objetivo sexual.
O ódio, relacionado ao que está fora, remonta à relação entre eu-prazer e eu-realidade,
ela própria precedida por um eu-realidade primitivo que, na expulsão para fora, anterior a
essa dialética, diferenciou, através de uma ação motora, o dentro e o fora.
A constituição do objeto é simultânea ao surgimento do ódio. O ódio surge de uma
experiência constitutiva que cria uma primeira diferenciação no que antes era idêntico,
revelando a indiferença como anterior a essa primeira partição. Como afirma Freud, na
relação com o objeto, o ódio é anterior ao amor. É a atividade da expulsão que vai constituir
um objeto exterior ao eu.
48
Freud (1925c/1980) enlaçou linguagem e pulsão na experiência de simbolização
primordial ao descrever o juízo de atribuição como uma decisão quanto à introjeção ou à
ejeção de um atributo, operação expressa na linguagem das mais antigas moções pulsionais,
ou seja, sob a forma da pulsão oral. A decisão de
comer ou cuspir, isto é, de introduzir isso
em mim ou manter isso fora de mim, remete à experiência de satisfação – trata-se de introjetar
o que o
eu-prazer reconhece como bom e ejetar o que é mau. Cabe considerar a ressalva
freudiana de que a distinção entre interno e externo se realiza sobre o que era inicialmente
idêntico para o eu.
A segunda decisão, a do juízo de realidade, implica verificar se algo que está no eu
como representação também pode ser encontrado na realidade. Neste caso,
a perda dos
objetos que deram satisfação é condição para se instalar a prova de realidade.
Portanto, a
prova de realidade busca reencontrar um objeto que foi perdido, e, nessa busca, deverá avaliar
em que medida um objeto pode vir a ser aceito como substituto do objeto primordial. Como o
objeto não é reencontrado, na neurose, a pulsão se relança nessa tentativa.
O objeto real de satisfação está perdido para todo ser falante. Quando não
substituição da realidade material pela realidade psíquica o que implica a simbolização
dessa perda resta um buraco, e o objeto retorna em outro lugar, ‘fora’ da simbolização. É o
que está em jogo na psicose.
1.2.2. Pontuações sobre o sujeito e o objeto a em Lacan
Em suas elaborações, Lacan concedeu um lugar de destaque à noção de sujeito, que se
caracteriza por uma incidência pontual e descontínua no discurso e cujo ponto nodal é sua
divisão em relação ao significante e ao gozo. Tal noção, no entanto, passou por finos ajustes,
decorrentes dos paradigmas dominantes em cada percurso de seu ensino. Em função de nosso
objetivo articular laço social e psicose privilegiamos a noção de sujeito tecida a partir dos
anos sessenta, quando Lacan, realizando uma mudança teórica relevante para a clínica,
introduz o matema e o objeto a, fruto de sua invenção. Essas mudanças constituem o ponto
de partida rumo à elaboração, em um segundo momento, do campo do gozo, situado em uma
anterioridade lógica ao campo da linguagem. Abre-se assim uma nova perspectiva para a
intervenção na clínica da psicose.
Segundo Maleval (2000b), opera-se, nesse momento do ensino de Lacan, um
deslocamento da noção de Outro da Lei suposto deter um saber sobre o gozo do Outro
primordial para a noção de incompletude do Outro, ao qual falta um significante. Nesse
49
contexto, Lacan antecipa a distinção entre Édipo e castração, operação doravante não mais
referida ao agenciamento do Outro, mas concebida como efeito do encontro traumático com a
linguagem. A mudança de axioma incidirá na elaboração das nas operações de alienação e
separação, constituintes do sujeito dividido e do objeto a.
Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Lacan
precisa a formulação freudiana que articula o eu e o isso, assinalando: “Lá onde isso era, [Eu]
posso vir a sê-lo, por desaparecer de meu dito” (1960a/1998, p.815). Nessa formulação,
destaca-se o sujeito como descontinuidade no real, que pode se presentificar, por exemplo,
sob a forma da partícula expletiva
ne. O ponto a reter é que o sujeito [Eu] é marcado pela
divisão significante.
Após apresentar o matema S (), que indica a incompletude do Outro, Lacan
(1960a/1998) introduz o objeto a no matema da fantasia. Esse matema indica o sujeito em
conjunção/disjunção ao objeto. Em outras palavras, no que concerne à questão da falta no
Outro, a fantasia pode ser uma tentativa de resposta ao enigma provocado por essa falta, o que
dá densidade à fórmula o sujeito é seu objeto.
Lacan, após incluir o olhar, a voz e o nada na série dos objetos oral, anal e fálico,
estabelecidos por Freud, afirma: “é a esse objeto inapreensível no espelho que a imagem
especular dá sua vestimenta” (LACAN, 1960a/1998, p.832). Na psicose, o objeto a não
recebe essa vestimenta, uma vez que não foi extraído do campo da realidade, devido à
resposta de rejeição à castração.
Com a alteridade marcada pela falta de um significante, o que indica a incompletude
do Outro, a noção de laço social é definida pela não ultrapassagem de um limite de gozo. É o
que atesta a passagem seguinte: “a castração significa que o gozo seja recusado, para que
possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo” (LACAN, 1960a/1998, p.841).
No desdobramento dessas questões, em “Posição do inconsciente”, Lacan formula as
operações de alienação e de separação como causa do sujeito, situando o inconsciente como o
que conjuga dois campos: o do sujeito e o do Outro. No fio desse argumento, o autor designa
o sujeito como “aquilo que o significante representa, e este não pode representar nada senão
para outro significante: ao que se reduz, por conseguinte, o sujeito que escuta” (LACAN,
1960b/1998, p.849). Notamos que, nesse momento, o sujeito é definido a partir da linguagem,
sem qualquer menção explícita ao gozo. Contudo, este último não deixa de estar implícito nos
desdobramentos dessas operações.
As operações de alienação e de separação
50
A alienação é a divisão subjetiva produzida pela incidência do significante que vem do
campo do Outro. Lacan assinala que a disjunção entre o campo do ser e o campo do Outro
pode ser encarnada como:
“a bolsa ou a vida, cujo resultado ficará sempre “desfalcado”: será a vida sem a bolsa – e será
também, por haver recusado a morte, uma vida algo incomodada pelo preço da liberdade. [...]
O que se ilustra pelo fato de que, num prazo mais longo, será preciso abandonar a vida depois
da bolsa, e por fim restará apenas a liberdade de morrer” (LACAN, 1960b/1998, p.855).
A alienação, como operação simbólica resultante de uma escolha forçada, funda o
sujeito em sua divisão, produzindo uma perda significante. Com efeito, quando o sujeito é
representado por um significante, deixa de sê-lo pelos demais. Ora, o que ocorre quando os
dois tempos da alienação ao significante - não estão presentes? petrificação do
significante, ou seja, significante no real, cujo efeito pode siderar o sujeito. É o que, por
vezes, ocorre na psicose.
Vejamos como a alienação se articula com a operação de separação. Em “O
Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, Lacan precisa o lugar
da alteridade, dando relevo à transmissão do significante
:
“O Outro é o lugar onde se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder
presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. E eu disse
é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão”
(1964/1998, p.194).
Destaca-se, nessa formulação, que a sexualidade se instaura pela via da falta, e que a
separação do objeto primordial surge do recobrimento de duas faltas, respectivamente, no
campo do sujeito e no campo do Outro. Notamos aqui que a alienação significante encobre o
a, o objeto do gozo perdido. Vejamos o que caracteriza cada uma dessas faltas:
“Uma falta é, para o sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe faz o Outro
através de seu discurso. Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança,
isto, que é radicalmente destacável: ele me diz isso, mas, ‘O que é que ele quer?’ [...] O desejo
do sujeito é apreendido pelo sujeito nisso que não cola, nas faltas do discurso do Outro...
enigma do desejo do Outro: ‘por que será que você me diz isso?’” (LACAN, 1964/1998,
p.203).
Como as duas faltas se recobrem, “para responder a este enigma, o sujeito traz a
resposta da falta antecedente de seu próprio desaparecimento que ele vem aqui situar no ponto
de falta percebida no Outro” (p.203). Trata-se, aqui, da falta significante inscrita no momento
da alienação, que o sujeito vem fazer coincidir com a falta no Outro:
51
“O primeiro objeto que o sujeito propõe nesta dialética do desejo em sua relação ao Outro é
seu próprio desaparecimento ‘Pode ele me perder?’ [o que pode ser apreendido na] fantasia
de amor aos pais” (p.203).
Vemos, aqui, que “uma falta recobre a outra” (p.203). Neste ponto, “a dialética dos
objetos do desejo faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro” (p.203). As
operações de alienação e separação são circulares: “é uma falta engendrada no tempo
precedente que serve para responder à falta suscitada no tempo seguinte” (p.203). Operação
de separação, de não reciprocidade, mas de possibilidade de torção no retorno. O que seria
essa torção? Lacan esclarece que, nessa torção, a separação representa o retorno da alienação:
“é por ele operar
com sua própria perda, a qual o reconduz a seu começo” (LACAN,
1960b/1998, p.858).
Como se articulam a elaboração sobre o recalque que Lacan (1964/1998, p.206)
traduz como
representante da representação, Vorstellungrepräsentanz [do desejo] – e as
operações de alienação e de separação, que fundam o sujeito como efeito do significante?
Lacan situa o Vorstellungrepräsentanz, o representante da representação, ponto central
do recalque primário, como o significante binário, S2, na operação de alienação, enquanto o
desejo comparece no intervalo entre S1 e S2, ponto de falta no Outro. O S2 da operação de
alienação, ponto em que pode ocorrer o fading, o desaparecimento do sujeito, é justo o ponto
de seu recalque.
“O sujeito por um processo que não é sem engano, que não é sem apresentar esta torção
fundamental através da qual isto que o sujeito encontra, isto não é o que anima seu movimento
de reencontro retorna logo ao ponto inicial, que é aquele de sua falta como tal, da falta de
sua
aphanisis” (1964/1998, p.207).
Em outras palavras, a operação de separação resulta do encontro de duas faltas: a falta
do Outro, (), ponto em que o sujeito se constitui, e a falta do sujeito, , que relança seu
desejo em busca de um objeto. Mas, por uma torção fundamental, o que o sujeito encontra
não coincide como o que o impulsiona em sua busca; por se tratar da falta, é levado a relançar
o movimento. Como é nesse campo que o sujeito pode jogar sua partida, Lacan assinala que a
separação tem como efeito a queda do S2 da alienação sob a barra do recalque: “Aquilo de
que o sujeito tem que se libertar é do efeito afanísico do significante binário” (LACAN,
1964/1998, p.208).
Em função dessa articulação, que situa o recalque como S2, as operações de alienação
e separação ficam restritas às estruturas em que o recalque opera, ou seja, a neurose e a
perversão. O que essa formulação esclarece sobre a clínica da psicose? Que possibilidades
52
para o psicótico de lidar com o significante na ausência da operação de separação? Vimos que
o delírio, como produção de sentido, pode ser a via escolhida. Mas outras, por exemplo, a
invenção de um objeto. Que concepção de sujeito inclui o gozo? Por ora, manteremos essas
questões a fim de retomá-las no terceiro capítulo, em que abordaremos o laço social na
psicose.
Essas elaborações sobre o sujeito e o objeto a repercutem na concepção de clínica do
sujeito, eixo da orientação psicanalítica na prática institucional. Assim, destacamos a
distinção que tal concepção estabelece entre a psicanálise e outros discursos, que preconizam
o sujeito como protagonista social.
Em “A ciência e a verdade”, Lacan (1966c/1998) retoma as teses de freudianas
(1900/1980) sobre o desejo inconsciente, efeito da divisão do eu diante da castração materna,
à luz da lingüística e da topologia. Formula, assim, a concepção de sujeito como efeito do
significante em relação ao objeto a como causa. Distingue tal concepção da noção humanista
de sujeito, derivando-a do sujeito da ciência moderna, do
cogito formulado por Descartes,
salvaguardando aí uma antinomia, já que a ciência foraclui o sujeito.
Vimos que, na formulação sobre as operações de alienação e separação, o gozo, como
objeto a, subjaz à operação de alienação, que cria o S1. É o que assinala Laurent:
“A alienação (isto é, o fato de que o sujeito, não tendo identidade, tenha que identificar-se a
algo) encobre ou negligencia o fato de que, em um sentido mais profundo, o sujeito se define
não apenas na cadeia significante, mas no nível das pulsões, em termos de seu gozo em
relação ao Outro” (LAURENT, 1997, p.43).
Quanto à tentativa de recuperação do gozo, busca que se dirige a um ponto mítico,
Lacan, em “O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise”, afirma que, em tal repetição, o
que se repete é a perda, que a repetição comemora (1969-70/1992, p.18). Essa perda produz
um desperdício de gozo, movimento que é reiterado e aponta para a dimensão do objeto como
perdido. Nesse contexto, restrito à neurose, o objeto a é também o que vem tentar responder à
pergunta O que quer uma mulher? Essa é a pergunta formulada por um homem ao colocar
uma mulher no lugar de objeto a, objeto causa de desejo.
Nesse contexto, a alteridade não se reduz ao Outro primordial. É também o objeto
extraído, aquele que resultou da superposição das duas faltas, a do campo do sujeito e a do
campo do Outro.
No entanto, a partir de “O Seminário, livro 20: Mais, ainda”, a noção de sujeito e de
alteridade é colocada em outra perspectiva. Partindo de sua concepção de sujeito o que é
representado por um significante para outro significante Lacan (1972-73/1993) radicaliza a
53
diferença que aí se evidencia, propondo: “é a introdução da diferença enquanto tal, no campo,
que permite extrair de ‘alíngua’ o que é do significante” (p.194). Em outras palavras, o sujeito
é não só efeito da cadeia significante, o que pressupõe o recalque, mas é sujeito a partir de um
significante extraído do campo do gozo, de
alíngua. O sujeito é, pois, efeito do significante a
partir da incidência do gozo. Nessa perspectiva, não apenas o par significante S1-S2, mas
também o significante S1 fixa o gozo. Antes de passarmos a essa articulação, que tem
conseqüências para as intervenções na clínica da psicose, estabelecendo a possibilidade de
novos modos de fixação de gozo, vejamos algumas especificidades do objeto a.
Alguns recortes sobre o objeto a
O conceito de objeto a é uma invenção de Lacan cuja referência é o objeto perdido
freudiano, das Ding, a Coisa, mas que dele se distingue. É o que passaremos a comentar.
Em “O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise”, Lacan (1959-60/1997) propõe uma
leitura do “Projeto para uma psicologia científica” em que põe em relevo o objeto das Ding, a
Coisa, que Freud (1950[1895]/1980, p.422]) designou como o objeto perdido da mítica
experiência de satisfação primordial, primeira apreensão da realidade pelo infans, no encontro
com o Outro.
Retomando a formulação freudiana sobre a prova de realidade, na tentativa de saber
se o objeto da percepção corresponde ao objeto faltoso que, em última instância, é das Ding,
Lacan (1959-60/1997, p.72) destaca que o objeto buscado, o Outro absoluto do sujeito, é a
mãe. Esse primeiro exterior, estranho, até mesmo hostil, é o que fornece todas as coordenadas
de prazer. Esse objeto é mudo, é o que se cala, estando, por isso mesmo, referido à
linguagem. Esse é o objeto em relação ao qual o sujeito fez a escolha da neurose, ou seja,
decidiu sua posição diante da falta no Outro.
Descrevendo como o princípio de prazer regula com rodeios e uma série de
satisfações – a busca do objeto, Lacan (1959-60/1997, p.77) ressalta que essa busca se
mantém a “certa distância daquilo em torno do que ela gira” (p.78). Essa regulação pelo
princípio de prazer é a “lei que fixa o nível de uma certa quantidade de excitação que não
poderia ser ultrapassada sem transpor os limites da polarização prazer/desprazer [...] os limites
da dor” (p.78).
54
Destacamos que a primeira alteridade do sujeito é o Outro como alteridade radical
das Ding, objeto incestuoso, a mãe – que restará não como objeto simbolizado que retorna
como falta, por efeito da lei da castração, mas também em seu limite, como gozo. O que a lei
regula? Uma certa distância com relação à Coisa materna. Com isso, o sujeito passa, de certo
modo, a se contentar com substitutos no percurso da busca da satisfação. Essa distância é uma
distância íntima, uma vez que o objeto concerne ao sujeito, sempre pontual (p.97). Na direção
do tratamento, promover essa
certa distância requer a simbolização da perda do objeto ou
algum tratamento do objeto não extraído.
Resta considerar outro destino pulsional, aquele que toca a proibição do incesto,
quando o ser falante rejeita a perda do objeto de satisfação primordial. É nesse contexto que
Freud afirma que “o desamparo é a fonte primordial de todos os motivos morais”
(1950[1895]/1980, p.422).
Do objeto perdido ao objeto a
Como assinalamos, a noção de sujeito só pode ser abordada, em psicanálise, em
articulação com a noção de objeto perdido ou objeto a.
As concepções de objeto a e de das Ding não se recobrem, pois constituem
formulações de contextos teóricos diferentes. Enquanto das Ding diz respeito a um objeto
inapreensível com relação à representação o que escapou à operação do juízo o objeto a
indica a inconsistência do Outro e pode ser representado nos três registros, R, S e I. Em sua
elaboração sobre o objeto a, Lacan (1962-63/2005) afirma tratar-se de uma parte perdida do
corpo, corte entre o sujeito e o Outro. Oferece, então, o exemplo da placenta, indicando a
interseção em jogo, que se trata de algo que não pertence nem a um campo nem a outro,
embora só exista a partir desse encontro.
Em “O Seminário, livro 10: A angústia”, Lacan (1962-63/2005) desenvolve uma série
de articulações em torno do objeto a, notadamente em sua relação com a angústia de
castração, abordando-o como objeto causa de desejo e como objeto indicativo de um modo de
gozo. A fim de precisar a noção de objeto, Lacan, recorrendo à matemática, define-o como
uma função, designando-o por uma letra, a: “Tal notação algébrica tem sua função. Ela é
como um fio destinado a nos permitir reconhecer a identidade do objeto nas diversas
incidências em que ele nos aparece” (1962-63/2005, p.98).
Trata-se aqui de distinguir o que é da ordem do significante e o que escapa a essa
ordem como algo irredutível. Lacan o precisa ao designá-lo como “objeto externo a qualquer
definição possível de objetividade” (p.99), embora seu comparecimento no campo da
55
realidade esteja referido ao objeto estranho-familiar (FREUD, 1919/1980), que, apesar de sua
exterioridade ao campo do simbólico, só pode ser descrito por meio de significantes.
Qual é a especificidade do objeto
a? Lacan o designa como objeto passível de ser
separado do corpo, resto da operação de alienação significante do sujeito em sua relação com
o campo do Outro, resultado da incidência da castração, o que, em termos freudianos, remete
ao desejo (p.99). Mas, na formulação de Lacan, o objeto
a indica a falta, não como objeto de
desejo, mas como causa de desejo, como o que comanda cada investida pulsional na tentativa
de reencontrar a identidade de percepção. Daí Lacan referir-se à
solidariedade íntima (p.266)
entre sujeito barrado e objeto. Com efeito, no engendramento significante do sujeito no campo
do Outro, o objeto surge como resto em torno do qual gira o desejo, objeto ao qual temos
acesso por meio da angústia.
Por estarmos trabalhando a questão da alucinação na psicose, seguiremos parte do
percurso de Lacan (1962-63/2005) nesse seminário, em que o autor aborda o objeto voz como
objeto a. O objeto voz é introduzido a partir do chofar, um tipo de chifre ligado a rituais
religiosos e soprado em certas ocasiões. O chofar emite um som inédito e tem relação com a
voz de Deus, voz separada de qualquer fonema, que remete ao mugido do touro morto e ao
clamor da culpabilidade.
Ora, por que a voz é interpretada pela culpabilidade? Ao abordar a questão, Lacan
refere-se ao trabalho de Conrad Stein. A partir do texto freudiano “Totem e tabu”, o autor
estabelece uma distinção entre os significantes primordiais, que são emitidos e vocalizados, e
os significantes que se apresentam em cadeia, isto é, articulados pelas leis da linguagem,
destacando a dimensão de ato. Lacan, comentando esse trabalho, decide não acolher a
dimensão de ato, mas tomar esses significantes primordiais com relação ao objeto
a,
esclarecendo:
“O que sustenta o a deve ser bem desvinculado da fonetização. A lingüística acostumou-se a
perceber que esta não é outra coisa senão um sistema de oposições, com o que ele introduz de
possibilidades de substituição e de deslocamento, metáforas e metonímias. Esse sistema apóia-
se em qualquer material capaz de organizar em oposições distintivas entre um e todos. Quando
alguma coisa desse sistema passa para uma emissão, trata-se de uma dimensão nova, isolada,
de uma dimensão em si, a dimensão propriamente vocal” (LACAN, 1962-63/2005, p.273).
No fio desse argumento, Lacan enumera outros objetos musicais, tanto de sopro como
ritmados, que, como o chofar, fazem parte da tradição de várias culturas e dão suporte à voz
como modalidade de objeto a, sem excluir, vale lembrar, a referência ao Outro, a Deus
(p.274-75). No deslizamento dessa operação metonímica do objeto voz como objeto separável
56
do corpo, Lacan (p.274) chega ao mugido do touro morto, colocando a questão: a quem se
deve lembrar do pacto? Aos fiéis ou a Deus?
Com isso, assinala que se trata de situar o objeto voz como separável do corpo, não em
relação ao interior-exterior, mas “na referência ao Outro e às etapas da emergência e da
instauração progressiva, para o sujeito, do campo de enigmas que é o Outro do sujeito”
(p.275).
O objeto voz na psicose
Lacan (1962-63/2005) refere-se à perturbação causada, na psicose, pela presença do
objeto
a como olhar ou como voz nos fenômenos de despersonalização e no sentimento de
desapossamento
. Esses efeitos imaginários indicam a falta de uma simbolização que regularia
uma certa distância entre sujeito e objeto. Como assinala Lacan, distância necessária
“[...] em relação ao espelho [Outro] para dar ao sujeito o distanciamento de si mesmo que a
dimensão especular é feita para lhe oferecer. [...] O que se deve dizer não é que os objetos
sejam invasivos na psicose. O que constitui seu perigo real para o eu? É a própria estrutura
desses objetos que os torna impróprios para a ‘egoização’. [...] a forma não especularizável na
estrutura de alguns desses objetos. [...] Se o que é visto no espelho é angustiante, é por não ser
passível de ser proposto ao reconhecimento do Outro” (1962-63/2005, p.134).
Ao considerar o objeto voz tal como ele pode se manifestar na psicose, Lacan (1962-
63/2005) refere-se a seus dejetos, “sob a forma das vozes perdidas”, e a seu caráter
parasitário, “sob a forma dos imperativos interrompidos do supereu” (p.275). Trata-se,
portanto, da voz como presença e retorno ao real, no que ela se distingue do objeto perdido,
buscado, mas não reencontrado.
Em “Le Séminaire, livre 23: Le Sinthome”, Lacan (1975-76/2005) formula que “as
pulsões funcionam como eco no corpo do fato que um dizer”, (p.17). Nesse sentido, toda
pulsão indica a presença do Outro. Todavia, Lacan assinala uma particularidade no caso da
orelha, “via que responde no corpo à voz” (p.17), pois, dentre os orifícios, a orelha é “aquele
que não se pode fechar” (p.17), o que expõe o sujeito aos ditos do Outro. Esses ditos tanto
podem se petrificar sob a forma de imperativos do supereu, o que ocorre na psicose, como
podem ser apropriados pelo sujeito, que os transforma no processo de transmissão. É o que
veremos ao comentar uma frase de Freud, na qual se revela uma hiância entre o dito, o dizer
do Outro, e o escutado pelo sujeito. Por outro lado, a alucinação pode ser o desvio que indica
o caminho da subjetivação possível, o que Lacan (1955-56/1988), seguindo a tese freudiana
da restituição do eu, destacou. Assim, na alucinação, os significantes que se desencadeiam e
57
passam a falar sozinhos podem ter essa função “é ainda uma sorte que eles indiquem
vagamente a direção” (p.331). (Verificar página)
Ao abordar o objeto voz, Miller (1989/1994) destaca, na elaboração de Lacan, a
função particular que a voz ocupa como
a-fônica; como objeto a, seja como efeito do objeto
perdido, resto da operação simbólica na neurose, em relação aos indivíduos inscritos na
castração – seja como presença imaterial onde não seria esperado – na psicose.
Miller (1989/1994) nos lembra que Lacan extraiu o objeto vocal dos fenômenos de
automatismo mental – tal como descrito por seu mestre em psiquiatria, Clérambault – logo, da
voz que se manifesta nos fenômenos elementares:
“Ali fala-se de vozes, mesmo sendo elas todas imateriais e que nem por isso deixam de ser
para o sujeito perfeitamente reais. Elas até chegam a ser aquilo do qual ele não pode duvidar,
sem que ninguém consiga registrá-las. Não é a materialidade sonora delas que está no primeiro
plano” (p.50).
Para ilustrar a especificidade da voz na psicose como voz do Outro, Miller
(1989/1994) refere-se à formulação da paciente citada por Lacan (1955-56/1988) em “O
Seminário, livro 3: As psicoses” Eu venho do salsicheiro e Porca. O que Miller
assinala aqui é que se trata de uma fantasia de despedaçamento dessa paciente que, na palavra
porca, ouve ecoar a fala de seu ser:
É a carga afetiva ou, digamos, libidinal da palavra “porca” que opera uma ruptura na
continuidade da cadeia significante e uma rejeição no real. [...] Na medida em que um pedaço
de cadeia significante, quebrado por aquilo que por enquanto chamamos de carga libidinal,
não pode ser assumido pelo sujeito, ele passa para o real e é atribuído ao Outro. A voz aparece
em sua dimensão de objeto quando é a voz do Outro (1989/1994, p.51)
Como vimos acima, na neurose, a voz não é escutada; do mesmo modo que, nessa
modalidade de defesa, não comparecem no real os demais objetos a. Neste caso, eles são
caracterizados como uma pequena coisa separável do corpo. Conforme afirma Lacan, esse
processo de separação não ocorre na psicose, o que um estatuto de presença ao objeto não
extraído na relação com o Outro materno (1962-63/2005, p.99). Trata-se do objeto ao qual,
mais tarde, Lacan (1967) refere-se como objeto que o sujeito traz no bolso, ao alcance da
mão.
Conforme assinala Miller, na psicose
“[...] a voz entra no lugar daquilo que, do sujeito, é propriamente indizível e que Lacan
chamou de “mais-gozar”. [...] O que importa é que essa voz venha do Outro. Neste sentido, a
58
voz é a parte da cadeia significante que não pode ser assumida pelo sujeito como “eu” (je), e
que é subjetivamente atribuída ao Outro” (1989/1994, p.51-52).
Um tratamento possível do objeto voz pelo sujeito, que consiste em velá-lo com
objetos imaginários, é mencionado por Miller:
“Se falamos tanto, se fazemos colóquios, se conversamos, se cantamos e ouvimos os cantores,
se fazemos e ouvimos música, a tese de Lacan comporta que é para calarmos aquilo que
merece ser chamado de voz como objeto
a” (1989/1994, p.52).
Talvez seja por isso que, nas instituições, encontramos psicóticos que não dispensam
o uso de fones de ouvido, mesmo durante outras atividades dos ateliês, o que pode indicar
uma tentativa de tratar a invasão de gozo, criando descontinuidade, intervalo, onde a operação
de separação da voz do Outro não se fez. No manejo da transferência na psicose, não se trata
de interpretar o retorno do objeto, mas de localizar onde o objeto de gozo se situa se no
corpo ou fora dele e como o sujeito vem tentando tratá-lo. Retomaremos esse ponto ao
focalizar o tratamento do objeto voz no Caso C..
59
Capítulo II – LAÇO SOCIAL NA PSICANÁLISE
2.1 Contribuições de Freud para o estudo do laço social
Na perspectiva da psicanálise, o laço social remete à relação entre sujeito e alteridade
(Outro), o que supõe uma concepção particular de sujeito e de objeto e evidencia a lógica do
inconsciente incidindo nos ditos da linguagem. Em “A Interpretação dos Sonhos”, Freud
(1900/1980) revela como o desejo inconsciente, marcado por uma divisão constitutiva, não
coincide nem com a noção de eu consciente nem com a de indivíduo, considerado como
unidade autônoma e indivisa, em oposição ao social. Essa diferença é fundamental para o
tema que estamos abordando, pois, nessa perspectiva, ‘laço social’ não é relação social,
fenômeno observável.
A noção de desejo inconsciente implica a suposição do recalque, um dos modos de
defesa que o infans pode dispor para responder à angústia que lhe suscita o encontro com o
sexual traumático diante da realidade da castração. A operação do recalque provoca uma
clivagem, separando afeto e representação, consciente e inconsciente, dois diferentes
processos do funcionamento psíquico. Essa inscrição, que fixa o representante pulsional,
passa a funcionar como pólo de atração, criando um sistema de novas inscrições de
representantes pulsionais. Estes últimos, articulando-se através dos mecanismos de
condensação e deslocamento, produzem uma codificada rede em permanente atividade. Tal
sistema, operando segundo uma lógica que, devido à ação do recalque, busca satisfação
pulsional por vias substitutivas, produzirá, como efeito, as formações do inconsciente: sonhos,
sintomas, chistes e atos falhos.
60
Essa noção de inconsciente estava anunciada em trabalhos anteriores de Freud,
como “As Neuropsicoses de defesa” (1894/1980), e em sua correspodência com Fliess, como
podemos notar na “Carta 69” e na “Carta 71”. Na primeira, Freud (1897a/1980) descreveu a
fantasia sexual – em lugar de um evento necessariamente real – cuja temática invariavelmente
envolvia os pais, o que, posteriormente, viria a formular como
realidade psíquica (FREUD,
1897c/1980). Na segunda, Freud (1897c/1980) articulou uma analogia entre os pólos do
conflito psíquico, que envolvia o desejo recalcado e a censura nos sintomas e nos sonhos, com
os elementos em jogo na tragédia de Édipo, o apaixonamento pela mãe e o ciúme do pai.
Como segundo passo, elevou essa lógica à categoria de um evento universal, que se reeditaria,
de modo singular, em cada fantasia infantil e teria relação com a etiologia das psiconeuroses.
Colocando em certa continuidade o funcionamento normal do aparelho psíquico com o
que se passa na neurose, Freud privilegiou a dimensão da fantasia inconsciente,
estabelecendo-a como paradigma da clínica psicanalítica. Nesse contexto, o recalque é a
operação subjacente aos conflitos entre instâncias psíquicas no campo da linguagem, em que
é possível situar os relatos do sujeito sobre sua relação com outros significativos de sua
história. A fala ultrapassa o sujeito que a enuncia, como no relato do sonho em que o sujeito,
na elaboração, afirma: “Não é minha mãe” (FREUD, 1925c/1980). Neste caso, a partícula não
indica o lugar em que o sujeito aparece no discurso. Tal negação indica o reconhecimento e a
negação da castração.
Assim, as concepções inéditas de sujeito e objeto, ancoradas na noção de realidade
psíquica, revelam-se nas modalidades da fantasia, na neurose e na perversão, ou, em seu
contraponto, nas alucinações e delírios, na psicose. Quanto a esta última, a rejeição
(
Verwerfung) e a recusa (Verleugnung) são apontadas por Freud como possíveis modalidades
de defesa diante da realidade de castração. Esta se presentifica toda vez que o sujeito é
convocado a tomar uma posição com relação ao objeto, isto é, uma decisão que atualiza a
prova de realidade. É no fio dessa rede conceitual, e tendo como visada as estratégias na
clínica sob transferência, que abordaremos a noção de laço social na psicanálise.
1- Duas modalidades de laço social em Freud: identificação e catexia de objeto
Partindo de uma equivalência entre a psicologia individual e a psicologia social, Freud
(1921/1980) sustentou o argumento de que a libido Eros, o amor sexual tanto pode ligar
um sujeito a um objeto de amor através do qual ele busca satisfação sexual quanto cada um
dos membros de um grupo ao líder. Neste último caso, os impulsos sexuais estariam inibidos
61
quanto a seus objetivos. Embora sejam formas correlatas de buscar satisfação, os laços
inibidos não são capazes de satisfação tal como os não inibidos, pois estes realizam o objetivo
sexual, o que favorece a descarga libidinal.
Comentando que toda relação emocional íntima entre duas pessoas, para ter alguma
permanência, requer que a hostilidade e a aversão estejam recalcadas, Freud estende o alcance
dessa formulação ao amor ao líder como uma das formas ampliadas de amor, logo, de
hostilidade recalcada.
Reproduzimos aqui a representação gráfica da dupla ligação – do amor ao líder
colocado na posição de ideal do eu e da identificação histérica entre os membros do grupo
com a qual Freud (1921/1980, p.147) demonstrou a constituição libidinal dos grupos:
Essa representação gráfica revela que a fonte libidinal das catexias e das identificações
localiza-se nas instâncias psíquicas denominadas isso, eu e ideal do eu, enquanto o objeto
externo é o suporte para o qual se dirige o investimento libidinal. Notamos que, nesse
processo, o objeto externo permite que o vínculo emocional que cada membro tem com o
líder, colocado por cada um no lugar de ideal do eu, seja localizado como traço com o qual,
em seu eu, eles se identificam. Essa identificação pode levar à hipnose coletiva, com efeito
devastador para a cultura.
Na ligação entre os membros do grupo, Freud distinguiu duas modalidades de laço
emocional do sujeito com outra pessoa: a catexia de objeto sexual e a identificação
(1921/1980, p.133). Na primeira, o objeto é investido de modo erótico, como um vínculo
sexual; na segunda, esse vínculo, embora presente, está inibido em seu objetivo sexual, o que
possibilita, por essa operação, que um traço do objeto possa ser erigido no eu, transformando-
o.
Descrevendo esse processo, Freud (1923b/1980) afirmará, em o “O ego e o id”, que o
eu é “um precipitado de catexias objetais abandonadas”, e que ele “contém a história dessas
escolhas de objeto” (p.44), o que implica dizer que esse é o modo pelo qual ele se constitui.
A identificação refere-se a uma operação inconsciente que articula dois elementos,
sujeito e objeto, que ocupam lugares distintos na topografia psíquica eu, eu ideal, ideal do
eu, isso, supereu. Tal articulação define uma posição subjetiva na dinâmica psíquica. Esses
62
elementos podem ser afetados pela percepção de algum traço do objeto tomado como suporte
na realidade material.
Assim, tanto a identificação como a catexia de amor, o vínculo sexual com um objeto,
são possibilidades de
laço emocional com outra pessoa, passíveis de convergência em relação
a um mesmo objeto, bem como de reversibilidade. Como ocorre a reversibilidade entre
catexia e identificação?
Em “A dissecção da personalidade psíquica”, Freud (1933[1932a]/1980) assinala que
“As catexias objetais procedem das exigências pulsionais do id [isso]. O ego [eu] tem de, em
primeiro lugar, registrá-las. Mas, identificando-se com o objeto, o ego [eu] recomenda-se ao id
[isso] em lugar do objeto e procura desviar a libido do id [isso] para si próprio” (p.98).
Notamos como a transformação da catexia em identificação implica uma mudança do
objeto da satisfação pulsional. Com efeito, passa-se de um investimento a partir do isso, que
se apóia em um objeto da realidade material, com a castração que isso pode implicar, para a
busca de uma satisfação narcísica, em que o objeto é erigido no eu. Neste caso, a operação de
transformação da catexia em identificação pode ser um recurso de que um sujeito dispõe para
lidar com as frustrações e perdas de objetos de amor. Tal operação pode, contudo, resultar em
um aumento da insatisfação libidinal, uma vez que, na identificação, trata-se de vínculos em
que a libido obtém satisfação através de um objeto que não contempla a finalidade do objetivo
sexual, o que nos indica um limite da sublimação na busca de satisfação libidinal.
Considerando a particularidade que uma noção adquire no contexto de uma teoria,
levantamos a hipótese de uma correlação conceitual entre a noção de laço emocional com
outra pessoa em Freud e a noção de laço social em Lacan. Tal hipótese se sustentaria nas
formulações dos autores sobre o estatuto do objeto na relação do sujeito ao Outro.
Trata-se aqui de considerar as operações psíquicas relativas à constituição do objeto, o
que tem início com o tratamento dado pelo eu real
12
ao objeto perdido da experiência de
satisfação primordial, do encontro mítico entre o infans e a alteridade (Outro). A simbolização
da perda do objeto terá efeitos no campo da realidade, constituindo uma dentre as modulações
com que esse objeto pode se apresentar na experiência subjetiva. Como operador simbólico
dessa diferença, destaca-se o paradigma do Édipo como Lei simbólica da castração, conforme
elaboração estabelecida por Freud (1924c/1980) e rearticulada por Lacan (1957-58b/1998),
em termos de lógica simbólica, através da noção de Nome-do-Pai.
12
Trata-se aqui como comentamos ao abordar das Ding, o objeto perdido da noção de eu formulada em
“Projeto para uma psicologia científica”, segundo a qual o eu se constitui realizando as operações de
diferenciação entre o mundo interno e o mundo externo.
63
A correlação entre a noção de laço emocional com outra pessoa em Freud e a noção
de
laço social em Lacan tem como base as operações constitutivas da relação do sujeito ao
Outro. Destaca-se em tais operações a simbolização da perda do objeto, o que implica a
castração simbólica e seus efeitos como laço social. Tomamos, então, como termos correlatos
o laço emocional com outra pessoa e o laço social.
Entretanto, essas duas formulações conservam as especificidades com que foram
construídas. Ressaltamos que também em Freud o laço social não se reduz ao simbólico, pois
seu âmago, como veremos ainda neste capítulo, é o objeto perdido.
Freud (1921/1980) definiu a identificação como “a mais remota expressão de um laço
emocional com outra pessoa” (p.133). Essa identificação, precursora de todo laço, até mesmo
da escolha de objeto, foi por ele designada como
identificação primária, no que ela se
distingue da
identificação regressiva e da identificação histérica. A identificação primária é a
identificação
ao pai da pré-história, descrita no mito de “Totem e Tabu” (1913a[1912-
13]/1980).
2- O lugar do mito do assassinato do pai no laço social
Falar de origem é tocar o inapreensível, seja no tempo, seja no dizer, daí Freud
(1913a[1912-13]/1980) ter recorrido ao mito do pai primevo, em “Totem e Tabu”, para situar
esse tempo, do qual só se pode falar a posteriori.
Não deixa de ser curioso que Freud (1939[1934-38]/1980) tenha escrito “Moisés e o
monoteísmo: três ensaios” mais de duas décadas após “Totem e Tabu”, reafirmando as teses
polêmicas sobre a transmissão transgeracional. É o que nos leva a fazer esse percurso a partir
da questão: como se articulam herança e transmissão na concepção freudiana de laço social?
O mito do assassinato do pai primevo, o único na horda a deter todas as mulheres, é
relatado por Freud como um ato praticado coletivamente: “Certo dia, os irmãos que tinham
sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda
patriarcal” (1913a[1912-13]/1980, p.170).
O ato praticado pelos irmãos incluiu a devoração do “temido, amado e invejado pai
primevo”, com o qual eles se identificaram, “cada um deles adquirindo uma parte de sua
força” (p.170), “o que possibilitou às gerações posteriores receberem sua herança de emoção”
(p.188).
Destaca-se, nessa passagem, a identificação que os filhos realizaram com a
incorporação, não de um traço ou atributo do pai, mas de algo que remete ao ser do pai: sua
64
força, sua emoção, das quais se apropriou, em parte, cada um deles. Freud atribui à
enigmática
identificação primária, derivada do ato praticado, que incluiu a incorporação oral
do pai primevo, um lugar de origem tanto para o sujeito como para o social. Tal identificação
constituiria “a base da organização social, das restrições morais e da religião” (p.170).
Em função do sentimento de culpa devido ao remorso pelo assassinato do pai, ato que
não pode ser desfeito, os próprios filhos instituíram a lei de interdição às mulheres e a
proibição da morte do totem, substituto do pai:
“Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que,
por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do
complexo de Édipo. Quem quer que infringisse os tabus tornava-se culpado dos dois únicos
crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava” (1913a[1912-13]/1980, p.172).
Freud propõe uma relação entre o remorso do grupo e o sentimento de culpa
individual, que se resume na afirmação: “O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo”
(p.171). Seguindo esse fio, Freud levanta a hipótese de que o ato praticado gerou remorso nos
irmãos, por conta da afeição pelo pai, até então recalcada.
No entanto, em nota de rodapé, o autor afirma que o remorso se deveu não a essa
afeição, mas também ao fracasso da satisfação plena, que o ato não proporcionou aos que o
praticaram. Ele teria sido vão, que nenhum dos irmãos veio a ocupar o lugar do pai, lugar
de exceção, o de ter todas as mulheres.
Coloca-se aqui a questão: como teria surgido essa afeição recalcada pelo pai, revelada
após o ato praticado? Baseando-se em suas observações clínicas e em sua tese sobre a
equivalência entre primitivos, neuróticos e crianças, Freud (p.171) explica que a afeição
recalcada seria correlata da ligação ambivalente que crianças e neuróticos estabeleceriam com
o pai. Essa formulação está em consonância com a noção, formulada em “Os instintos e suas
vicissitudes”, de que a ambivalência é uma forma de ligação e que “o amor se manifesta
acompanhado de impulsos de ódio contra o mesmo objeto” (1915a/1980, p.160). Nessa
modalidade de satisfação pulsional, prevalece a lógica do narcisismo, vínculo típico do
período de subjetivação anterior à travessia do complexo de Édipo, momento em que a
escolha de objeto, marcada pelo complexo de castração, é estabelecida.
Examinando os efeitos do remorso, Freud considera que os dois tabus erigidos – morte
do totem e proibição do incesto não tinham o mesmo estatuto. O primeiro remetia ao
assassinato do pai, implicando um ato real que não podia ser desfeito. O segundo, a norma da
proibição do incesto, colocava-se como risco em potencial, pois cada um dos membros do clã
fraterno buscava ocupar o mesmo lugar que o pai ocupara, isto é, aquele que garantia a
65
prerrogativa de ter todas as mulheres. Essa disparidade criava o risco de luta fratricida, que
o desejo cria rivalidades, e não união, entre os membros do clã. A ameaça, como formula
Freud, teria levado à instituição da lei universal da proibição do incesto, sob a forma do
complexo de Édipo. Com a instituição da lei simbólica, a interdição passou a ser transmitida
na cadeia transgeracional.
O modo como essa transmissão da herança se faz não está livre de questionamentos,
uma vez que se trata de um evento inapreensível, suposto teoricamente, do qual, como disse
Freud a propósito do recalque, se tem notícias pelas defesas que engendra. O que o mito
afirma é que o pai morto ressurge, em parte, no pai simbólico, que, sob a forma da lei,
interdita o excesso de gozo. Contudo, Freud é enfático ao afirmar que é com a emoção do pai
da pré-história que se estabelece o primeiro laço.
Podemos, assim, inferir que o fundamento do laço social remonta ao assassinato do pai
primevo, ato que teria deixado traços inerradicáveis na história da humanidade: “quanto
menos ele próprio tenha sido relembrado, mais numerosos devem ter sido os substitutos a que
deu origem” (1913a[1912-13]/1980, p.184). Trata-se aqui de um evento traumático a ser
elaborado.
Levantamos, assim, a questão: qual seria o estatuto desses
traços inerradicáveis?
Vimos que, na tessitura desse mito, Freud partiu de uma analogia, articulando os elementos
que recolheu na sua clínica com a hipótese sobre o Édipo como evento universal. Com esses
elementos, supôs um pacto simbólico que estabelece interditos e, ao mesmo tempo, possibilita
acesso ao gozo sexual, atribuindo uma função à transmissão entre as gerações na economia do
funcionamento psíquico.
Nesse contexto, a culpa pelo ato praticado permanece como inscrição inconsciente,
traços inerradicáveis que, segundo Freud, “não são totalmente esquecidos” (1913a[1912-
13]/1980, p.184). Mais uma vez, perguntamo-nos: qual seria o estatuto desses traços?
Supomos que estejam no isso. Mas estariam submetidos ao recalque? Seguindo a trilha aberta
por Freud, abordaremos a passagem da herança à transmissão, dois tempos de um processo.
3 – Herança e transmissão
Em “Totem e tabu”, Freud, sustentando a hipótese da continuidade dos processos
psíquicos através das gerações como transmissão filogenética, interroga-se sobre o modo
como se realiza essa transmissão:
“Quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na seqüência das gerações? Quais são as
maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à
66
geração seguinte? Uma parte do problema parece ser respondida pela herança de disposições
psíquicas que, no entanto, necessitam receber alguma espécie de ímpeto na vida do indivíduo
antes de poderem ser despertadas para o funcionamento real. Pode ser este o significado das
palavras do poeta: Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”
(1913a[1912-13]/1980, p.187).
Podemos distinguir, nessa passagem, dois tempos: o primeiro diz respeito à
transmissão; no segundo, trata-se do que o
infans faz com a herança recebida. É justo aí, nessa
passagem da transmissão à herança, que Freud situa a identificação primária como
identificação ao pai da pré-história. Isso confere à identificação primária a função de matriz
do laço social, transmitido pelo Outro primordial.
Comparando os neuróticos com os primitivos, Freud (1913a[1912-13]/1980)
considerou, inicialmente, que o sentimento de culpa dos primeiros pautava-se pela realidade
psíquica, quer dizer, representava uma busca de punição por intenções e fantasias, e não por
atos agressivos realizados em relação ao outro. No entanto, o autor relata ter sido levado a
reconhecer, a partir da clínica, a insuficiência de tal hipótese, pois encontrou fragmentos de
realidade histórica que se atualizavam nos atos praticados.
Indo além da analogia entre neuróticos e primitivos, Freud apontou que a entrada na
cultura teria produzido o efeito de transformar o que seria o ato desinibido dos primitivos em
inibição, substituindo o ato, correspondente ao processo primário, pelo pensamento, que
evidencia um funcionamento típico do processo secundário. Tecendo tais conjecturas, afirma
ser possível “presumir com segurança que ‘no princípio foi Ato’” (p.191). Para Freud, o
assassinato do pai foi um evento real que deixou traços. Ora, como esses traços
inerradicáveis seriam transmitidos na cadeia transgeracional?
Como vimos, Freud (1913a[1912-13]/1980, p.170) refere-se à incorporação como o
processo através do qual se realiza a identificação primária com o pai morto, “a mais remota
expressão de um laço emocional com outra pessoa” (1921/1980, p.133). Como se realizaria,
então, esse processo de incorporação da herança?
Enfatizando os efeitos gerais e duradouros das primeiras identificações da infância,
Freud, em “O ego e o id”, descreve a identificação primária:
“Isso nos conduz de volta à origem do ideal do ego [eu]; por trás dele jaz oculta a primeira e
mais importante identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai em sua própria
pré-história pessoal. Isso aparentemente não é, em primeira instância, a conseqüência ou
resultado de uma catexia do objeto; trata-se de uma identificação direta e imediata, e se efetua
mais primitivamente do que qualquer catexia do objeto” (1923b/1980, p.45)
13
.
13
Na nota de rodapé correspondente a essa citação, Freud esclarece que a identificação ao pai é, na verdade,
extensiva aos pais, pois teria ocorrido quando a criança, partindo da premissa universal do falo, não havia ainda
estabelecido a diferença sexual entre pai e mãe (1923b/1980, p.45). Logo, essa identificação, que se realiza na
67
Distinguem-se aqui a identificação primária e o ideal do eu. Com efeito, estão em jogo
dois diferentes objetos: o primeiro encontra-se em um plano recuado, sem representação; o
segundo vem recobrir o primeiro, velando parcialmente esse vazio. Destacamos, assim, dois
processos: a incorporação do pai morto e a constituição do ideal do eu.
No artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905a/1980, p.204),
abordando a organização sexual pré-genital, descreve a fase oral ou canibal como a que
conjuga a atividade sexual e a ingestão de alimentos visando à
incorporação do objeto. Nessa
ocasião, antecipa que tal modalidade de satisfação libidinal será protótipo de “um processo
que, sob a forma de identificação, deverá desempenhar um importante papel psicológico”
(p.204). Essa indicação nos leva a inferir que a
incorporação, operação de constituição da
identificação primária, diz respeito à decisão em jogo no juízo de atribuição. Trata-se aqui da
operação que se realiza em termos de introdução no eu ou expulsão para fora do eu, a partir da
qual se constitui a Bejahung (afirmação) ou a Verwerfung (rejeição)
14
.
A incorporação, que busca reter o objeto apropriando-se de seus atributos, é o
processo que conduz à constituição do eu inconsciente (FREUD, 1915a/1980, p.157). Nesse
processo, o infans introduz no eu algo antes localizado fora, no mundo externo. Para que essa
operação seja possível, faz-se necessária uma primeira distinção – entre dentro e fora – do que
antes era idêntico. Essa decisão é realizada pelo eu-real originário, que, em seguida, será
substituído pelo
eu-prazer. Este último exercerá a função de regular o aparelho psíquico
visando a certa homeostase. O processo de simbolização primordial
15
realiza uma separação
entre o eu e o que lhe é exterior, onde localiza o objeto.
Faz-se necessária aqui uma distinção: embora a perda do objeto da experiência de
satisfação imponha-se a todo ser falante, o mesmo não se pode dizer da simbolização dessa
perda, caso em que a identificação primária permanecerá como resto não simbolizado do
objeto perdido.
Freud (1921/1980) descreveu o segundo tipo de identificação como regressiva quanto
à catexia. No entanto, essa identificação depende da modalidade de escolha de objeto,
anaclítica ou narcísica. Vejamos, inicialmente, a identificação regressiva na melancolia,
descrita por Freud (1917[1915b], p.281) como um mecanismo não habitual na retirada de
fase oral pré-genital da organização sexual, é anterior ao posicionamento da criança diante da castração na
travessia do complexo de Édipo. Freud citou como exemplo o caso de uma paciente adulta que negava a
castração materna.
14
A operação de simbolização foi, inicialmente, descrita no “Projeto para uma psicologia científica”, tendo sido
formalizada por Freud no artigo “A negativa” (1925c/1980), no qual distingue os dois tempos – juízo de
atribuição e de existência – da operação de
Bejahung (afirmação), abordada no capítulo anterior.
15
Denominação dada por Lacan (1955-56/1985, p.98) ao processo constituído em dois tempos: o do juízo de
atribuição e o do juízo de existência.
68
catexia de um objeto de amor. Em lugar de ser deslocada para outro objeto, a catexia regride à
identificação do eu com o objeto perdido ou abandonado: “Assim, a sombra do objeto cai
sobre o ego [eu], que pode passar daí em diante a ser julgado por um agente especial, como se
fosse um objeto, o objeto abandonado” (p.281).
O que está em jogo nessa identificação? Trata-se de uma tentativa de substituição do
amor pela identificação com o objeto perdido. Como a escolha de objeto na melancolia foi,
predominantemente, de tipo narcisista, isto é, baseada na identificação ao objeto, no momento
de ruptura da catexia, esta regride para a identificação, erigindo o objeto no eu, na tentativa de
preservar o objeto perdido.
Segundo Freud (1917[1915b], p.282), a escolha de objeto apresenta, na melancolia,
uma contradição: conjuga a fixação no objeto amado com a fraca resistência da catexia. O
autor conclui tratar-se de uma escolha de objeto de tipo narcisista, que pode, diante de um
obstáculo, retornar para o eu: “Um amor que não pode ser renunciado embora o próprio
objeto o seja” (p.284).
Na melancolia, há, então, dupla vicissitude pulsional: regressão à identificação
narcísica e ao sadismo, reação original do eu para com os objetos do mundo externo
(1915a/1980, p.157-8). O objeto de amor é aquele que, geralmente, está localizado fora do eu.
Mantendo o objeto no eu, o melancólico, em caso de perda do objeto de amor, traz para junto
de si o ódio, uma das manifestações da pulsão de morte. Neste caso, o eu identifica-se com o
objeto hostil, e o supereu passa a tratar o eu como o objeto.
Essa identificação regressiva distingue-se da identificação regressiva histérica, na qual
uma regressão da catexia de objeto à identificação. Neste caso, a identificação se faz com
um traço do objeto, e não pela ereção do objeto no eu. Se o que faz a diferença entre a
identificação regressiva na melancolia e na histeria é a modalidade de escolha de objeto
respectivamente, narcísica e anaclítica – podemos supor que, entre a identificação primária e a
regressiva, o sujeito se posicionou diante da castração, na travessia do Édipo, o que revelou
a
posteriori a escolha da neurose.
Como a travessia edípica pode assumir duas diferentes direções, Freud (1921/1980,
p.133) distingue os laços de identificação e de escolha de objeto que podem ligar um menino
ao pai: no caso da identificação, a escolha do menino caracteriza-se por ser como o pai; no
caso da catexia do objeto de amor, essa escolha se caracteriza por ter o pai como objeto.
Nesse contexto, Freud assinala que “a distinção depende de o laço se ligar ao sujeito
ou ao objeto do ego [eu]” (p.134), indicando, assim, que esses processos de catexia e
identificação se passam em nível inconsciente.
69
No caso da menina, a entrada no complexo de Édipo tem lugar após o reconhecimento
da castração materna e da própria castração, quando então se volta para o pai na intenção de
receber um complemento fálico, como um filho. Em seu percurso, a menina pode encontrar
algumas saídas, dentre elas a da equivalência fálica, pela via da maternidade. No entanto, a
travessia se realiza pela via do amor, como bem mostra, em termos radicais, a tragédia de
Medéia, cujos filhos eram suporte de seu desejo por Jasão. O amor por um homem, como
portador do falo, seria, assim, uma das possíveis saídas dessa ligação infantil da menina ao
pai. Essa travessia é muito mais rica em detalhes e em processos, comportando nuances de
separação e novas ligações, uma vez que depende de uma decisão no campo da realidade.
No texto “A negativa” (
Die Verneinung), Freud (1925c/1980) distingue dois tempos: o
juízo de atribuição e o juízo de existência. O primeiro decide sobre o atributo, qualidade boa
ou má:
Quero comer isso ou quero cuspir isso? Quero introduzir isso em mim ou quero
expulsar isso de mim?
o segundo, o juízo de existência, realiza a prova de realidade
relativa ao objeto. Assim, a prova consiste em verificar se o objeto existente no eu pode ser
reencontrado também na percepção, o que, por vezes, requer ajustes em relação ao objeto
externo.
Freud destaca que a condição para o estabelecimento da prova de realidade é a perda
do objeto. Na realidade, o objeto está perdido para todos. Então, que condição seria essa da
qual nos fala Freud? Supomos tratar-se aqui da decisão com relação ao falo como operador da
castração, em relação ao qual cada sujeito vai-se posicionar na partilha dos sexos.
Em o “O ego e o id”, Freud (1923b/1980, p.46) assinala que a identificação regressiva
pode ocorrer tanto na melancolia quanto na dissolução do complexo de Édipo. No último
caso, o menino, ao abandonar a catexia de objeto dirigida à mãe, pode identificar-se com ela,
em lugar de intensificar sua identificação com o pai, o que reforçaria sua masculinidade.
Processo análogo é descrito por Freud a propósito da menina que, ao abandonar o pai como
objeto de amor, na saída do Édipo, coloca em evidência sua disposição sexual masculina.
Dessa forma, erige no eu uma identificação fálica, identificando-se com o pai, isto é, com o
objeto que foi perdido. Nesses casos, no entanto, a identificação regressiva não tem o mesmo
efeito que na melancolia, pois incide sobre um traço do objeto, não recobrindo todo o eu.
Para concluir a série das identificações enumeradas por Freud (1921/1980, p.135),
vejamos a terceira modalidade: a identificação histérica, cujo exemplo clássico é o do
contágio de uma reação emocional em um pensionato a partir de uma carta de amor recebida
por uma das pensionistas. Essa modalidade de identificação também se realiza através de um
traço. A diferença é que o objeto não é o objeto da escolha de amor, importando a
70
possibilidade ou o desejo de colocar-se na mesma situação, caso das meninas no pensionato.
A identificação, por meio do sintoma, tornou-se assim o sinal de um ponto de coincidência no
eu de cada uma, sinal que tem de ser mantido recalcado (p.136).
Freud (1921/1980) descreveu a identificação histérica erigida entre os membros de um
grupo que elegeu um líder. Neste caso, a identificação incide sobre uma “importante
qualidade emocional comum: a natureza do laço libidinal de cada membro do grupo com o
líder” (p.136). Vemos, então, que a identificação histérica realiza-se no registro do
imaginário, correspondendo a um traço.
Como veremos ao comentar o Caso C., na segunda parte desta tese, essa modalidade
de identificação pode ser ou não um recurso temporário.
4- Transmissão, dívida e laço social
Retomamos aqui a questão sobre o estatuto dos traços inerradicáveis transmitidos
entre as gerações. O que se transmite de uma geração a outra? Trata-se da transmissão de uma
dívida simbólica ou do real da dívida simbólica da geração precedente?
Acreditamos que o modelo de inscrições e transcrições, exposto na “Carta 52”, possa
nos esclarecer em relação às diferenças de registros no aparelho psíquico
16
. Nessa carta, Freud
(1896c/1980) sustenta o argumento de que os registros são sucessivos e que os rearranjos das
inscrições na fronteira entre os sistemas correspondem a determinados momentos do
desenvolvimento, nos quais haveria ou não a tradução desse material psíquico. Cada
transcrição “subseqüente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação” (p.319). Quando
essa transcrição não ocorre, “a excitação é manejada segundo as leis psicológicas vigentes no
período anterior e consoante as vias abertas nessa época” (p.319), o que Freud denomina
fueros”, territórios submetidos a uma legislação que não está mais em vigor, mas que
persistem em atividade.
16
Nessa carta, Freud descreve um aparelho de memória no qual pelo menos três tipos de registros nos
neurônios diferenciados, passíveis de retranscrições e rearranjos em um processo de estratificação. Esses
registros, que criam sulcos nos neurônios do campo da linguagem, virão a se organizar em uma trama cujo
mecanismo de facilitações e inibições submete-se ao modo de funcionamento dos processos primário e
secundário, segundo um sistema de regulação prazer / desprazer. Esse modelo de funcionamento do aparelho
psíquico, definido no “Projeto para uma psicologia científica”, visa a regular as excitações, através da descarga e
da inibição, buscando certa homeostase. Nesse sistema, a inibição da descarga promove a inscrição e o
investimento, processo através do qual o eu, ao mesmo tempo em que se constitui, também exerce uma função
reguladora do aparelho. Supomos que esse sistema diferenciado de transcrições e retranscrições possa ser uma
referência para esclarecer as inscrições dos
traços inerradicaveis transmitidos na cadeia transgeracional.
71
Nesse contexto, o recalque – uma das possibilidades de rearranjo do material inscrito –
é designado como uma
falha na tradução de alguma inscrição relacionada à sexualidade na
passagem entre os sistemas: uma defesa do aparelho para lidar com o excesso de prazer ou de
desprazer (1896c/1980, p.319).
Entretanto, nem sempre ocorre a fixação da representação pela via do recalque, assim
como nem toda inscrição está submetida ao recalque. Nesse ponto, a clínica psicanalítica,
sobretudo a da psicose, nos ensina que não se trata apenas de transmissão simbólica entre as
gerações. O processo de simbolização do infans é complexo. Realiza-se em algumas
operações de constituição e ultrapassagens, deixando sempre restos não articuláveis.
Supomos, pela singularidade de cada caso, que, na transmissão entre as gerações, subjazem
traços, inscrições não recalcadas pelo Outro primordial, herança a ser deslindada pelo
infans.
A transmissão envolve três gerações:
“[...] o superego [supereu] de uma criança é, com efeito, construído segundo o modelo, não de
seus pais, mas do superego [supereu] de seus pais; os conteúdos que ele encerra são os
mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que
dessa forma se transmitiram de geração em geração” (FREUD, 1933[1932a]/1980, p.87).
Concluímos que a hipótese freudiana sobre o mito do pai primevo dispõe lado a lado o
simbólico e o que resta como traços inerradicáveis, ponto-limite no qual reconhecemos certa
analogia com a referência ao umbigo do sonho (FREUD, 1900/1980).
Para dizê-lo de outro modo, vimos que Freud definiu a identificação primária como a
matriz das identificações, considerando-a o laço social mais remoto, locus da herança
transgeracional. Essa herança, que supomos libidinal, é atualizada na função que os pais
podem ocupar tanto na transmissão da linguagem quanto da lei edípica.
O infans nasce no simbólico e pode ocupar um lugar no desejo dos pais. Mas um
hiato evidente entre o infans e o Outro da ajuda alheia. Assim, ao nos referirmos à
transmissão, supondo a identificação primária como elo entre as gerações, estamos operando
com grandezas díspares e inacessíveis. A dinâmica entre as instâncias psíquicas em um campo
subjetivo em constituição não é idêntica àquela vigente em um campo constituído. Além
disso, é preciso considerar os enganos inerentes ao processo psíquico. Por analogia com a
formulação de Freud sobre a inacessibilidade do recalque primário, podemos dizer que, da
identificação primária, temos notícia por seus efeitos nas defesas que ela pode engendrar,
como, por exemplo, na renúncia à falta fálica. Logo, não se trata de fazer equivalências entre
o inconsciente de duas ou mais gerações, mas de localizar como o sujeito está operando com a
separação em relação ao objeto.
72
Como no início não há eu, este surge por um processo de diferenciação em relação ao
isso, sendo necessária uma nova ação psíquica para que aquele se constitua. Freud
(1914b/1980) refere-se ao narcisismo renascido dos pais ao investir o filho com as insígnias
do ideal, relativo a desejos que eles não realizaram. No entanto, nem toda criança encontra
essa falta do lado dos pais, condição para tal investimento
17
.
Freud aborda a questão da herança não apenas ontogenética, mas também
filologenética ao longo de sua obra, debruçando-se mais detidamente sobre ela em “Moisés
e o monoteísmo: três ensaios”, em que retoma o mito do pai primevo apresentado em “Totem
e tabu” (1939[1934-38]/1980).
Partindo de uma analogia entre indivíduo e grupo, Freud sustenta a hipótese da
herança arcaica, que abrange não apenas disposições, mas também um tema geral: “traços de
memória da experiência de gerações anteriores” (FREUD, 1939[1934-38]/1980, p.20). Tal
herança decorreria não apenas da comunicação oral transmitida, mas também de inscrições
herdadas, como traços mnêmicos inconscientes, denominadas fator constitucional de cada
indivíduo:
“O comportamento de crianças neuróticas para com os pais nos complexos de Édipo e de
castração abunda em tais reações, que parecem injustificadas no caso individual e só se tornam
inteligíveis filogeneticamente por sua vinculação com a experiência de gerações anteriores”
(1939[1934-38]/1980, p.122).
Segundo Freud, os traços de memória dessa herança arcaica seriam veiculados
biologicamente. Como essa possibilidade requer uma comprovação teórica impossível,
contentamo-nos em supor que se trata de uma construção mítica, segundo a qual a herança
seria transmitida através da linguagem, no processo de libidinização do infans.
No desdobramento de sua tese sobre a herança arcaica, declara com convicção que os
homens sempre souberam do parricídio, que teria permanecido como uma inscrição
recalcada. Interrogando-se sobre como essa recordação poderia ser ativada, responde que não
se conhecem todos os motivos; mas, a partir de uma analogia com a neurose, afirma:
“Contudo, o que, certamente, é de importância decisiva é o despertar do traço da memória
esquecido por uma repetição real e recente do acontecimento” (1939[1934-38]/1980, p.122).
17
Como parece ser o caso de um menino autista que acompanhei, por um tempo, no Courtil. Seu nome próprio,
Destin, lhe foi dado pela mãe. Ela relatou em entrevista que, não tendo se percebido grávida, surpreendeu-se com
a notícia dada pelo médico, comentando sobre dificuldades em conciliar o trabalho com a maternidade. Na
ocasião, o médico teria lhe respondido: “É o destino [C’est le destin]”. O dito materno pode dar uma pista sobre
o desejo da mãe, o que não é o mesmo que situar a questão do lado desse sujeito, que, por ora, responde ao Outro
com seu silêncio.
73
Assim, Freud assinala que tanto o assassinato de Moisés quanto o de Cristo constituem
uma repetição do assassinato do
pai primevo, o que torna esses acontecimentos causas, a
serem reeditadas, “como se a gênese do monoteísmo não pudesse passar sem essas
ocorrências” (p.122).
Qual seria a função de reeditar a morte do pai? Freud costuma recorrer aos poetas
quando esbarra em algum enigma. Em “Moisés e o monoteísmo: três ensaios”, às voltas com
a hipótese da repetição do assassinato do pai primevo, cita Schiller: “O que deve viver imortal
na canção tem de perecer na vida” (1939[1934-38]/1980, p.122).
A passagem parece indicar uma transformação no estatuto do objeto, que passaria a ter
uma inscrição simbólica, uma forma de representação, o que implica sua perda como objeto
real. Supomos estar em jogo aqui um tratamento dado ao objeto perdido da experiência de
satisfação. Para dizê-lo de outro modo, a passagem remeteria à morte da Coisa, à inscrição da
perda, após a castração, de um objeto até então idealizado. Coloca-se aqui a questão do
tratamento dado ao resto da identificação primária não simbolizada, cuja imagem seria a da
mãe fálica ou a do pai primevo. Trata-se de saber, portanto, o que é feito do Outro como lugar
de gozo.
Comparando as duas passagens poéticas citadas por Freud a propósito da transmissão
da herança, notamos certa diferença. Na primeira, em que faz referência a Goethe “Aquilo
que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (1913a[1912-13]/1980, p.187) –
destaca os dois pólos da herança, apontando para um trabalho a ser realizado. Na segunda
passagem, a de Schiller “O que deve viver imortal na canção tem de perecer na vida”
(1939[1934-38]/1980, p.122) indica que, para que essa transformação ocorra, é necessária
uma operação de perda do objeto, o que seria um modo de apontar para a dissolução do
complexo de Édipo, momento em que se processa a separação entre o sujeito e o objeto
libidinal.
Seguindo essas indicações, colocamos a questão: qual seria, afinal, a noção de laço
social em Freud? Como matriz do laço, situamos a identificação primária. Como vimos, trata-
se aqui de dar um lugar aos traços inerradicáveis, referentes ao assassinato do pai, nas
gerações precedentes. Um dos destinos possíveis é a identificação primária ao pai – conjunção
de um vínculo libidinal e da identificação em um mesmo objeto seguida de uma
identificação ao falo como ideal do eu. Essa identificação situa sujeito e objeto, possibilitando
trocas simbólicas.
Para alçar outro patamar, aquele que possibilita o acesso à diferença sexual, e no qual
o desejo joga a sua partida, a condição seria a travessia do Édipo. Essa travessia implica uma
74
definição desses vínculos a partir da incidência da castração. Tal posição, ilustrada pelas
citadas passagens poéticas, evidencia que o laço social em Freud se articula como complexo
de Édipo, remetendo à sua dissolução. Freud refere-se a outro passo, um segundo tempo, que
passa pela morte/perda/castração da identificação ao pai idealizado.
que a aquisição pela via do ideal do eu pode-se cristalizar, em que medida cada
sujeito se defronta com a escolha de atualizar esse assassinato do pai em sua história?
O que insiste como insatisfação na relação com o objeto idealizado não remete a um
objeto que provoca angústia? E não estaria, justamente aí, a possibilidade de fazer, a partir
dessa insatisfação pulsional, que localiza o objeto, o laço social?
Nessa trilha, uma passagem que, a nosso ver, é ilustrativa sobre o laço social. A
passagem não pertence aos textos ditos sociológicos. Trata-se do relato de uma experiência do
próprio Freud, que permite pensar como se imbricam as noções de fantasia, transmissão e laço
social. Com efeito, em “A história do movimento psicanalítico”, comentando a reação de
repúdio de seus pares a respeito de sua formulação teórica sobre a sexualidade na etiologia
das neuroses, Freud afirma:
“A idéia pela qual eu estava me tornando responsável de modo algum se originou
em mim. Fora-me comunicada por três pessoas cujos pontos de vista tinham
merecido meu mais profundo respeito - o próprio Breuer, Charcot e Chrobak, o
ginecologista da Universidade, talvez o mais eminente de todos os médicos de
Viena
. Esses três homens me tinham transmitido um conhecimento que,
rigorosamente falando, eles próprios não possuíam. Dois deles, mais tarde, negaram
tê-lo feito quando lhes lembrei o fato; o terceiro (o grande Charcot) provavelmente
teria feito o mesmo se me tivesse dado vê-lo novamente. Mas estas três opiniões
idênticas, que ouvira sem compreender, tinham ficado adormecidas em minha mente
durante anos, até que um dia despertaram sob a forma de uma descoberta
aparentemente original” (1914a/1980, p.22).
Destacamos, nesse depoimento, o dito “estes três homens me transmitiram um
conhecimento que, rigorosamente falando, eles próprios não possuíam”. É possível dizer que,
no registro do simbólico, algo do significante foi transmitido, e não por qualquer um, como
assinala Freud, mas por pessoas cujos pontos de vista ele respeitava, logo, por pessoas em
relação as quais ele sustentava, na posição de transferência, uma suposição de saber.
Mas observa-se que Freud passa a relatar como cada um dos três não reconheceria
como seu o dito, o que evidencia o equívoco na transmissão. Com isso, situa o sujeito em
relação ao outro, o que não dá conta do real que se apresenta, que eles o dizem, mas não
assumem o dito. Assim, Freud teria escutado e teria sido causado por um dito não assumido
por quem o proferiu, dando lugar à incidência da falta e ao objeto causa de desejo como o que
faz questão para o sujeito. Isso significa que a transmissão comporta algo do dizer, do dito e
75
do que se escuta desse dito; algo inscrito na cadeia simbólica e que, ao mesmo tempo,
porque não está totalmente inscrito, torna-se passível de vir a emergir como algo original,
articulando as dimensões do simbólico e do real na transmissão.
Outro ponto relevante é o da assunção da responsabilidade, referido por Freud na
passagem “a idéia pela qual estava me tornando responsável", e quando afirma:
“Não revelei a paternidade ilustre desta idéia escandalosa com o intuito de atribuir a
outros a responsabilidade dela. Dou-me conta muito bem de que uma coisa é
externar uma idéia uma ou duas vezes sob a forma de um
aperçu passageiro, e outra
bem diferente é levá-la a sério, tomá-la ao da letra e persistir nela, apesar dos
detalhes contraditórios, até conquistar-lhe um lugar entre as verdades aceitas”
(1914a/1980, p.25).
Destaca-se, nessa passagem, a referência à paternidade, o que indica a direção da
transmissão: trata-se não apenas da paternidade de uma idéia, mas também da assunção da
responsabilidade por ela. A meu ver, essa passagem pode ser articulada a outra, escrita um
pouco antes por Freud, em “Totem e tabu”
18
. Na referida passagem, destaca-se que um
ímpeto, um impulso do sujeito, é necessário para que ele conquiste, torne seu aquilo que
herdou. Tal operação parece indicar um modo de se apropriar, uma identificação, um trabalho
a ser realizado para transformar a herança em transmissão, logo, em laço social. Supomos
que, nos termos de Lacan, em relação às operações de alienação e de separação, a herança
corresponderia à primeira operação, enquanto a transmissão corresponderia à segunda, à
separação, que requer a perda do objeto. Pode-se dizer, então, que não laço social sem que
o sujeito se responsabilize por seu ato.
Afirmar que o que se transmite é a falta ou a castração pode dar a falsa idéia de que a
transmissão depende daquele que está ocupando uma função de suposição de saber. O dito
freudiano, comentado acima, revela que uma transferência de ensino ou de trabalho pode
atestar uma transmissão. Todavia, se pode dizer se houve ou não transmissão a posteriori,
pelos efeitos produzidos.
Acreditamos que a transmissão se revela por um ato do sujeito, o que implica a
angústia, que situa o objeto e pode anteceder a esse ato. Portanto, não se trata de apontar a
denegação dos mestres de Freud por não reconhecerem seus ditos, o que contrariaria a
18
A passagem, que citamos ao introduzir a questão da herança, é a seguinte: “Quanto podemos atribuir à
continuidade psíquica na seqüência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por determinada
geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte? Uma parte do problema parece ser respondida
pela herança de disposições psíquicas que, no entanto, necessitam receber alguma espécie de ímpeto na vida do
indivíduo antes de poderem ser despertadas para o funcionamento real” (1913a[1912-13]/1980, p.187).
76
hipótese freudiana de não complementaridade entre o sujeito e o objeto da fantasia. Trata-se
de situar uma parte da herança como o que não se aprende nem se ensina, mas que pode vir a
ser transmitido, na incidência do real em justaposição ao simbólico. A transmissão, revelando
o laço social aí implicado, dependeria menos do Outro do que do sujeito, cuja decisão
implicará uma mudança. O equívoco assinalado por Freud indica que, na transmissão, realiza-
se uma operação simbólica, o que, conforme formula Lacan (1962-63/2005), produz um resto.
Retomaremos essa questão ao abordar as formulações de Lacan sobre a incidência do objeto
a
como causa de desejo ou como objeto mais-gozar.
Baseando-nos nessas formulações e nos dados da clínica, nos quais supomos que
certas construções de sujeitos psicóticos podem ser descritas como identificações imaginárias,
colocamos a questão: o que acontece com a identificação primária na psicose?
Stevens (1990) esclarece que, por retroação ao Édipo, a identificação primária pode ter
dois destinos. O primeiro, na neurose, em que o Édipo operou e submeteu o sujeito à lei do
desejo. Neste caso, uma dialética em que o pai gozador é barrado pelo pai da lei do pacto
simbólico. E o segundo, na psicose, em que o Édipo não operou: “Na psicose, esta primeira
identificação resta assim ligada ao pai primitivo do gozo incontido [...] como identificação à
Coisa” (p.26). Enquanto no primeiro caso pode haver restos de traços de exigência no
supereu, e o sujeito dispõe de outros recursos para lidar com essas injunções, no segundo
caso, o sujeito fica exposto a um supereu devastador, podendo permanecer petrificado em
uma significação.
A contribuição de Stevens (1990), ao lado das conclusões freudianas sobre a
identificação na melancolia, dá-nos uma pista sobre o estatuto da identificação primária, que,
na ausência da interdição da castração, busca uma modalidade de satisfação semelhante à do
gozo suposto ao pai primevo. Esse gozo, em graus variados, manifesta-se como gozo devido à
fusão / desfusão dos componentes eróticos e agressivos da pulsão sexual.
Assim, sugerimos que a identificação primária, tal como concebida por Freud, não se
constitui apenas no registro simbólico, mas em uma nomeação simbólica que encobre o fato
de o objeto de gozo, como tal, estar perdido.
A função de transmissão da herança libidinal efetiva-se através de operações, dentre as
quais a incorporação do objeto perdido e a nova ação psíquica em jogo no narcisismo, que
constituem um lugar de ideal do eu para o infans a partir do desejo dos pais.
Na psicose, o objeto também está perdido. No entanto, tal perda não funciona como
uma falta simbolizada. Assim, um vazio e uma tentativa de recuperação desse objeto,
através de algumas construções substitutas, na dimensão do imaginário. Voltaremos a esse
77
ponto ao discutir o Caso C., adiante, em que a identificação de um sujeito esquizofrênico a um
cantor de rock funcionou como um dos elementos que favoreceram a estabilização de sua
posição subjetiva.
Refutando a tese de Jung de que a teoria da libido teria fracassado ao explicar a
demência precoce, Freud (1914b/1980, p.97) esclarece que o fato de o anacoreta retirar o
interesse sexual de seus semelhantes não indica que a libido tenha sofrido introversão até a
fantasia ou retorno ao eu. O argumento de Freud é de que o anacoreta poderia ter sublimado
esse interesse sexual em um interesse elevado pelo divino ou por outro objeto de estudo, sem
que a libido tivesse sofrido introversão com conseqüências patogênicas. Reconhecemos em
Freud a noção de que laço social não é fenômeno, mas relação entre o sujeito e o Outro. Trata-
se de considerar se o sujeito está ou não conectado, através de identificações, ao Outro da lei
simbólica. Assim, não interessa saber se ou não trocas sociais, mas considerar os recursos
de que o sujeito dispõe para fazer laços.
2.2. Lacan e a formulação lógica do laço social
Abordar a noção de laço social em Lacan implica considerar a noção de discurso, uma
vez que, segundo uma de suas formulações, o discurso é o laço social. É o que podemos notar
na passagem seguinte, de “L’Etourdit”:
“O que é o discurso? É o que na ordem..., no ordenamento do que pode se produzir pela
existência da linguagem, faz função de laço social. talvez um banho social, como isto,
natural, é que se dividem, eternamente, os sociólogos... mas, pessoalmente, eu não creio
nisto” (LACAN, 1972a/1973, p.6).
Em que implica essa pertinência do discurso à linguagem? Considerando as
formulações de Lacan (1957/1998) em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde
Freud”, texto em que estabelece uma ligação entre as leis do significante e as leis do
inconsciente, inferimos que, inicialmente, o autor extrai a relação entre discurso e laço social
das contribuições da lingüística de Saussure (1945 [1915]), que afirma:
“A língua não é mais do que uma determinada parte da linguagem, um produto social da
faculdade de linguagem e um conjunto de convenções, adotados pelo corpo social, para
permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” (p.51).
78
No fio desse argumento, Saussure destaca que o “laço social constitui a língua, que é
um tesouro depositado pela prática da fala nos sujeitos que pertencem a uma mesma
comunidade [...] e que não está completa em nenhum deles” (1945 [1915], p.51).
Evidencia-se, assim, que o laço social constitui a língua: um legado em permanente
transformação a depositar-se através das gerações, sem ser criado por nenhum ser falante.
Lacan, ao situar o laço social nas relações do discurso com a fala que pressupõe a língua,
que, por sua vez, não existe fora do fato social, e as leis da linguagem teve como ponto de
partida a lingüística. Atribuindo a Saussure a correspondência entre, de um lado, o conjunto
sincrônico e a cadeia significante e, de outro, o discurso, que segue um deslocamento no
tempo e ordena a direção, Lacan (1955-56/1988) afirma: “Há em primeiro lugar um conjunto
sincrônico, que é a língua enquanto sistema simultâneo de grupos de oposição estruturados,
há em seguida o que se passa diacronicamente, no tempo, e que é o discurso (p.66).
Embora o termo discurso seja freqüente na obra Lacan, sua acepção não é sempre a
mesma. Ao longo de seu ensino, notamos que uma dissociação entre essa primeira noção
de laço social, como correlata do discurso – que tem como premissa a alteridade como
discurso do Outro e a que o autor vem a desenvolver sob a forma dos discursos
estabelecidos, cujo ponto nodal é o objeto
a. Suas formulações evidenciam que a noção de
discurso não se esgota nessa perspectiva, pois situa o sujeito dividido pelo significante em
relação ao objeto, dimensão inconsciente da realidade psíquica revelada pela psicanálise.
Em síntese, a noção de discurso como correlata da noção de laço social não é unívoca
ao longo do ensino de Lacan. Destacamos duas elaborações como paradigmáticas. Na
primeira, relendo a tese freudiana que articula castração e complexo de Édipo, Lacan formula
a operação da metáfora paterna, em que o significante
Nome-do-Pai vem em substituição ao
significante do desejo enigmático da mãe. Na segunda, apresentada em “O Seminário, livro
17: O Avesso da psicanálise”, Lacan (1969-70/1992) propõe a formalização de quatro
discursos e estabelece uma disjunção entre castração e complexo de Édipo, abrindo uma
perspectiva para além dos pressupostos freudianos.
1- A inscrição do Nome-do-Pai e o laço social
A noção de laço social como discurso supõe uma relação entre o sujeito e a alteridade.
Ora, o que assume função de alteridade para o sujeito? No ensino de Lacan, a alteridade
coube, inicialmente, ao Outro do significante e ao Outro da lei, sendo posteriormente situada
no objeto a. Nos anos cinqüenta, Lacan, retomando o legado freudiano a partir da lingüística e
79
da antropologia estrutural, propõe a alteridade como um lugar simbólico, o Outro (A). É o que
demonstra através do esquema L (1954-55/1991, p.307). Nele, o autor distingue os eixos do
simbólico (S-A) do Outro (A), o inconsciente freudiano no campo do simbólico, ao ES (S),
o isso freudiano no real e do imaginário (a-a’) o eu especular e o outro, ou seus objetos
indicando que não se trata de uma relação entre dois sujeitos, mas de dimensões de uma
experiência subjetiva apresentada num esquema quaternário. O que se evidencia aqui é a
realidade psíquica, noção fundamental na clínica do sujeito segundo a perspectiva
psicanalítica.
´
ESQUEMA L
Em “A coisa freudiana ou o sentido do retorno a Freud em psicanálise”, Lacan
(1955/1998) assinala a distinção entre Outro (A) simbólico e o outro () imaginário como
lugares que o analista pode ocupar no dispositivo. Tal distinção é crucial para a direção do
tratamento, pois o endereçamento da fala supõe um terceiro, o inconsciente. Sobre o lugar do
analista, Freud (1912/1980) havia discernido que amor e o ódio não se dirigiam à sua pessoa,
mas ao lugar que ele ocupava na transferência, dispositivo no qual se atualizavam as imagos
infantis.
Articulando as leis da linguagem com as leis do inconsciente freudiano, Lacan
(1955/1998) situa o Outro como lugar do pacto simbólico em que “a fala pode resgatar a
dívida que engendra” (p.436).
O Outro, como lugar do significante e do Outro da Lei, pode ser apreendido na
suposição de que “o inconsciente é o discurso do Outro” (LACAN, 1957/1998, p.529). Nele,
o sujeito comparece na fala, ultrapassando-se em seu dito, como nos atos falhos, que
evidenciam sua posição na fantasia derivada da travessia do complexo de Édipo. Em “O
80
Seminário, livro 5: As formações do inconsciente”, Lacan (1957-58a/1999), partindo da
fórmula da metáfora, apresenta uma formalização do Édipo freudiano. A metáfora se
caracteriza pela substituição de um significante por outro, graças à qual surge um sentido
novo. Nessa fórmula, o S e o S’ representam, respectivamente, o significante que representa o
pai e o significante que representa a mãe; o x é uma significação desconhecida, aquilo a que a
mãe está ligada, o falo, o que a criança pode ter vislumbrado desde muito cedo, fazendo-se,
inclusive, de falo; e o s, é o significado novo.
Lacan (1957-58a/1999) concebe a metáfora paterna como a operação que reordena o
processo de simbolização primordial. A operação é fundada sobre o princípio de redução do
complexo de Édipo a um processo metafórico no qual o significante Nome-do-Pai vem em
substituição ao significante enigmático do desejo da mãe. A metáfora paterna, cuja função é a
de mediação simbólica entre a criança e a mãe, inclui o falo, objeto de desejo da mãe.
“O desejo da mãe comporta um para-além. que para atingir esse para-além é necessária
uma mediação, essa mediação é dada pela posição do pai na ordem simbólica” (LACAN,
1957-58a/1999, p.190).
Em relação à formalização da metáfora paterna
19
, Lacan (1957-58b/1998) indica que a
substituição ocorre de modo idêntico ao que vimos acima. O Nome-do-Pai substitui o lugar
inicialmente simbolizado pela ausência da mãe:
Nome do Pai . Desejo da Mãe Nome do Pai
Desejo da Mãe Significado do Sujeito Phallus
Nesse momento de seu ensino, Lacan (1957-58a/1999) atribui ao pai real a função de
operador da castração, pois ele é o suporte da lei que incide tanto em relação à criança, ao
proibir que ela se torne parceira da mãe, quanto em relação à mãe, proibindo-a de reintegrar o
seu produto. Trata-se, portanto, do pai como Nome-do-Pai, estreitamente vinculado à
enunciação da lei, significante cuja incidência promove a separação do sujeito em relação ao
19
A formalização desse matema foi apresentada por Lacan (1957-58b/1998, p.563) em “De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose”.
81
Outro primordial. O decisivo na travessia edípica é a relação, não com o pai, mas com a
palavra do pai junto à mãe, no sentido de privá-la do filho como objeto de seu desejo.
O
ponto nodal do Édipo diz respeito a como o sujeito responde à intervenção do pai
que priva a mãe do objeto que ela não tem se vai ou não “simbolizar e dar valor de
significação” a essa privação (p.191). Assim, essa privação, “o sujeito infantil a assume ou
não, aceita ou recusa” (p.191).
A primeira escolha em jogo é a de ser ou não ser o falo da mãe. Lacan comenta que,
no caso de a criança não ultrapassar esse ponto nodal, ela mantém uma identificação
imaginária com o objeto da mãe, esse objeto rival, o falo. A segunda escolha será a de ter ou
não ter o falo. Entre esses dois tempos, instala-se o complexo de castração, sobre o qual
Lacan esclarece que “para ter o falo é preciso que se tenha instaurado que não se pode tê-lo,
de modo que a possibilidade de ser castrado é essencial na assunção do fato de ter o falo”
(1957-58a/1999, p.193).
Lacan (1957-58a/1999) propõe três tempos lógicos para o Édipo. No primeiro, a
criança identifica-se especularmente com o objeto de desejo da mãe; é o momento de
constituição do eu, que se faz acompanhar pelo eu-ideal como duplo-especular. No segundo
tempo, a ausência/presença da mãe faz questão para a criança. Trata-se do momento descrito
por Freud (1920/1980) a partir do jogo do fort-da e definido por Lacan (1953/1980) como
simbolização primordial, a morte da coisa e a constituição da linguagem; uma passagem que
atesta a invenção que a palavra possibilita através de um jogo de presença e ausência. Nesse
jogo, de aproximação e afastamento do carretel, a palavra é dita na ausência do que ela indica.
Essa repetição pode ser ultrapassada ou não. Em caso positivo, ocorre o que Lacan (1956-
57/1995, p.193) denominou
jump (passagem), que resulta na inscrição do falo simbólico
como objeto de troca. Mas essa passagem pode não se realizar, permanecendo o sujeito na
tentativa de efetuar o passo. Para que essa simbolização da mãe tenha lugar, é necessária a
mediação do pai real; é preciso que ele introduza a lei do significante, o
Nome-do-Pai, que
interdita, ao mesmo tempo, mãe e criança: um não à reintegração da criança pela mãe; um não
à criança em restar como objeto de gozo da mãe. No terceiro tempo, o do declínio do
complexo de Édipo, “o pai pode dar à mãe o que ela deseja e pode dar porque o possui”
(LACAN, 1957-58a/1999, p.200). Essa decisão exclui a criança das possíveis trocas entre os
pais.
Nesse contexto, Lacan (1957-58a/1999, p.200) distingue as identificações com o pai
nos três tempos do Édipo. No primeiro, o pai aparece velado na mãe: a criança terá de situá-
lo. No segundo, o pai aparece como presença que interdita o gozo entre a mãe e a criança;
82
como aquele que é suporte da lei. No terceiro tempo, o pai, por ser aquele que tem o falo,
pode ser tomado pelo filho como objeto de identificação, como ideal do eu, momento de
declínio do Édipo.
O que a operação da metáfora possibilita é a inscrição do significante
Nome-do-Pai,
um limite que interdita o desejo enigmático/capricho da mãe e uma significação fálica ao
sujeito. O significante
Nome-do-Pai, ao atar os elementos mãe, criança e falo, produz um
efeito de fixação semelhante ao
point de capiton. Aqui, o nome do laço social é Édipo, em
Freud, ou Nome-do-Pai, em Lacan.
Com as mudanças empreendidas por Lacan, nos anos sessenta, em seu ensino, a partir
do escrito “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” – em que se
destacam a concepção do Outro como barrado pela falta e a concepção de objeto
a haverá
novo rearranjo na abordagem do laço social.
Consideraremos a questão dos discursos estabelecidos por Lacan, para, nesse percurso,
precisar as mudanças quanto à articulação entre significante e gozo, um dos pontos de
inflexão desse novo rearranjo.
2- Laço social e a formalização dos quatro discursos.
Em “O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise”, Lacan (1969-70/1992) propõe
uma formalização dos discursos. A novidade que esse modelo apresenta é o deslocamento da
noção de discurso do campo simbólico para uma articulação entre simbólico e real. Trata-se
de uma conjunção, em um mesmo aparelho, entre significante e gozo. Essa elaboração supõe
as operações de alienação e separação na relação entre o ser falante e o Outro (), cujo efeito
é a distinção de quatro elementos: , , e a (LACAN, 1964/1998). Eles se alojam em um
dos quatro lugares preestabelecidos na estrutura discursiva.
Lacan (1971-72, inédito), utilizando o recurso do quadrípode
20
, estabelece a estrutura
dos discursos. Refuta a idéia de que a cada um deles corresponderia um determinado sentido,
indicando que o discurso pode ser definido pelo produto que engendra:
20
Explicando que a estrutura do quadrípode “permite, pela supressão de uma das arestas, obter a fórmula dos
discursos”, Lacan (1971-72, inédito) afirma que um pólo, o da
verdade, do qual saída de vetores para os
demais vértices, mas não chegada de nenhum vetor para alimentá-lo. Com o referencial topológico, ao que
parece, Lacan estaria mantendo o paradoxo que a noção de verdade comporta em seu ensino: a verdade é semi-
dita, limite que toca a impossibilidade de dizê-la toda.
83
“O modo como um discurso se ordena de forma a precipitar um laço social comporta
inversamente que tudo isso que se articula ordene-se a partir de seus efeitos” (Lição de
04/05/1972).
Com isso, uma entrada, uma transformação, algo se produz e também se perde
como gozo. Este pode vir ou não a ser parcialmente recuperado em outra modalidade
discursiva.
“O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise”, Lacan (1969-70/1992) distingue
quatro discursos: discurso do mestre, da histérica, do analista, do universitário.
DM DH DA DU
Essas estruturas, construídas sob a forma de matemas, articulam quatro elementos:
S
1:
significante mestre, que vem do campo do Outro, marcando uma exterioridade;
S
2:
saber, bateria de significantes constituinte de uma rede em que S
1
irá intervir;
: sujeito dividido, resultado da intervenção de S
1
na rede de significantes S
2
;
: o que resulta como perda na operação significante, remetendo à repetição, ao gozo,
ao objeto mais-de-gozar e ao objeto causa de desejo.
Esses elementos circulam, vindo a ocupar um dos quatro lugares da estrutura
discursiva agente, trabalho, produção e verdade e exercendo a função que tal posição na
estrutura lhes confere, o que produzirá um determinado efeito de discurso.
agente trabalho
verdade produção
Em cada discurso um sujeito, e não uma relação entre sujeitos, que a relação
fundamental é a de um significante que funciona como o que representa o sujeito junto a outro
significante. “O discurso subsiste sem palavras [...] mas não sem linguagem” (LACAN, 1969-
70/1992, p.11), pois, na linguagem, uma estrutura, com certas relações estáveis, comanda o
funcionamento. Ora, como funciona essa estrutura?
Lacan (1969-70/1992) assinala que não há discurso isolado, pois os discursos se
apresentam em série. Nesta série, três discursos existiam. No entanto, foram desvelados
a partir do quarto: o discurso do analista, por ele introduzido como o avesso do discurso do
mestre.
84
possibilidade de mudança de discurso por um quarto de giro, para a direita ou para
a esquerda. Isso indica a progressão ou a regressão em relação a uma modalidade de gozo. Na
passagem de um a outro, sobrevém o discurso do analista como aquele que problematiza o
saber, que, nesse discurso, está no lugar da verdade. Assim, o discurso do analista faz com
que o sujeito dividido, que está no lugar do outro, trabalhe, produzindo significantes.
O trabalho de análise pode passar por todos os discursos, mas o primeiro que nele se
estabelece é o discurso da histérica, que o analista institui a partir de uma questão (saber)
sobre a verdade (p.31). Pode-se notar como é fundamental o lugar que o objeto
ocupa no
discurso, já que pode funcionar como objeto mais-de-gozar ou como semblant de objeto causa
de desejo, produzindo efeitos distintos.
Assim, o objeto
a, em uma relação de co-variância com os demais elementos
significantes, determina, por sua posição na estrutura, a modalidade de gozo que cada
discurso engendra. É o que assinala Lacan:
“[...] nada é mais candente do que aquilo que do discurso faz referência ao gozo. O discurso
toca nisso sem cessar, posto que é dali que ele se origina. E o agita de novo desde que ele tenta
retornar a essa origem. É nisso que ele contesta todo apaziguamento” (LACAN, 1969-
70/1992, p.66).
Isso constitui um ponto de inflexão na teoria dos discursos, devido à prevalência do
registro do real, do campo do gozo, em relação ao do simbólico. Lacan instituiu o campo do
gozo como aquele no qual incide a repetição, conceito que, na teoria freudiana, está ligado à
pulsão de morte. O passo dado aqui foi a elaboração de um aparelho que contempla a
dualidade pulsional, da articulação significante e do objeto mais gozar em ação, através da
articulação entre significante e objeto a. Sobre esse movimento de recuperação de gozo,
Lacan afirma:
“[...] Como tudo nos indica nos fatos, na experiência clínica, a repetição se funda em um
retorno do gozo. E o que a esse respeito é propriamente articulado pelo próprio Freud é que,
nessa mesma repetição, produz-se algo que é defeito, que é fracasso. [...] algo que é perda.
[...] Aí é que se origina, no discurso freudiano, a função do objeto perdido” (p.44).
Daí podemos depreender que é em torno dessa repetição, que remete ao objeto perdido
como impossível de saber, que se pode articular o laço social. Como essa repetição produz
uma perda, todo discurso rateia, nenhum deles sendo mais conveniente do que o outro e, mais
do que isso, cada um deles gerando um impossível.
Referindo-se a um impossível apontado por Freud (1937a/1980, p.282) nas atividades
de governar, educar e analisar, Lacan (1969-70/1992, p.164) as faz corresponder,
85
respectivamente, ao discurso do mestre, do universitário e do analista. Nessa série, inclui,
ainda que sob a forma de questão, o impossível do discurso da histérica, aquele de fazer
desejar. Em seguida, Lacan indica os limites que o real, sob a forma do objeto
a, impõe à
articulação significante em cada uma dessas modalidades discursivas.
Na conferência em Milão, ao considerar os discursos, Lacan (1972b/1978) também
destaca que é o
mais-de-gozar que faz funcionar o sistema, que comanda, apontando sua
relação com a
mais-valia concebida por Marx. Evidencia-se, assim, que a formalização dos
discursos elaborada por Lacan inclui o real em jogo na clínica: a repetição, o gozo que
surpreendeu Freud na reação terapêutica negativa e no problema econômico do masoquismo,
e que condicionou sua virada teórica, no sentido do intrincamento da pulsão de vida com a
pulsão de morte, revelando os limites da interpretação. Sob este aspecto, a estrutura dos
quatro discursos estabelece algumas modalidades típicas de gozo, como é o caso do discurso
do mestre, no qual o S1 no lugar de agente faz trabalhar o outro, o escravo, que detém o saber,
produzindo gozo. Modalidade de discurso dominante nas instituições, o discurso do mestre é
também o discurso do inconsciente, o que implica o sujeito dividido pelo significante. O
sujeito dividido pelo significante e o objeto que lhe corresponde resultam das operações de
alienação e separação.
A formalização dos quatro discursos requer que os quatro elementos – , , ,
estejam individualizados para ocupar lugares na estrutura, o que impõe um limite teórico à
utilização dos discursos estabelecidos para abordar momentos clínicos de sujeitos cuja
estrutura não resultou da realização das operações de alienação e separação.
Lacan (1964/1998) cita como exemplo o fenômeno da holófrase, quando não há
intervalo entre e e esses elementos se solidificam. Isso implica dizer que não há, na
alienação, os dois tempos da pulsação do inconsciente, dado pela distância entre ,
significante fundante do sujeito e o , significante do seu ponto de desaparecimento, que
indica o recalque. Retomaremos esse ponto ao abordar a questão do laço social na psicose.
A formalização dos quatro discursos é uma novidade do ensino de Lacan que
possibilita, por exemplo, demonstrar momentos de passagem em uma análise ou uma
mudança no modo de o sujeito se inscrever no laço social. No entanto, não é esse o passo
dado por Lacan em “O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise”. Aqui, Lacan aprofunda
a questão, levantada por ele em trabalhos anteriores, sobre a disjunção entre castração e
complexo de Édipo.
3- Disjunção castração e Édipo e os efeitos na formulação do laço social
86
A tese lacaniana dos quatro discursos evidencia uma passagem. Por um lado, cria um
modo de operar com a conjunção entre elementos heterogêneos, significante e objeto a. Por
outro lado, efetiva a disjunção entre castração e complexo de Édipo, cuja articulação
fundamentava a distinção entre esses elementos.
A disjunção entre as noções de castração e de complexo de Édipo coloca em questão a
noção de laço social até então vigente, cujo correlato era a metáfora paterna, efeito da
inscrição simbólica do significante Nome-do-Pai.
Tal disjunção havia sido anunciada por Lacan em elaborações anteriores, como em
“Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. Nesse escrito, após ter
comentado que “o gozo está vedado a quem fala, podendo ser dito, nas entrelinhas, por
quem quer que seja sujeito à Lei” (1960a/1998, p.836), Lacan faz corresponder a castração ao
falo, objeto fora do corpo, que pode ser negativizado, mas que dá corpo ao gozo no desejo. No
âmago dessa elaboração, Lacan afirma que:
“[...] não é a Lei em si que barra o acesso do sujeito ao gozo; ela apenas faz de uma barreira
quase natural um sujeito barrado. Pois é o prazer que introduz no gozo seus limites, o prazer
como ligação da vida, incoerente, até que uma outra proibição, esta incontestável, se eleve da
regulação descoberta por Freud como processo primário e pertinente à lei do prazer”
(LACAN, 1960a/1998, p.836).
O ponto de inflexão aqui é o prazer como o que barra o gozo, no que essa lógica se
diferencia da interdição, da privação como reguladora do gozo
21
. No final desse escrito, Lacan
afirma: “a castração significa que é preciso que o gozo seja recusado para que possa ser
atingido na escala invertida da Lei do desejo” (1960a/1998, p.841).
Nessa passagem, destacamos que é a subtração de gozo que corresponde à noção de
laço social em Lacan. Enquanto na formulação da metáfora paterna a subtração de gozo era
efeito da interdição da palavra do pai, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano” ela passa a ser efeito da castração, mas pela via do prazer, que barra o
desprazer.
Em “Le Séminaire, livre 16: D’un Autre à L’autre”, Lacan ratifica a tese da disjunção
entre castração e Édipo. Nesse momento, destaca o
“princípio de prazer como o que faz barreira orgânica ao gozo. Que essa barreira possa ser
metaforizada no interdito à mãe, isto é, afinal de contas, contingência histórica, e o
complexo de Édipo só está aí como ‘appendu’”
22
(1968-69/2006, p.277).
21
Isso remete ao que Freud (1930[1929]/1980) havia assinalado: que o supereu incita ao gozo, fazendo,
assim, obstáculo ao laço social.
22
Mantivemos o termo em francês por não encontrar um que lhe correspondesse em português.
87
Com essa disjunção, a castração deixa de ficar vinculada ao Édipo, passando a ser
definida como uma operação real do significante logo, referida ao campo da linguagem
que acarreta uma perda de gozo. O objeto
a é o que, na estrutura dos discursos, inscreve essa
perda. Logo, o objeto a, como o objeto que a pulsão contorna, é o fulcro em torno do qual um
significante mas não qualquer um pode se enganchar, produzindo como efeito o laço
social: um lugar significante no campo da linguagem.
Embora a disjunção entre castração e Édipo estivesse formulada desde o escrito
“Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, ela veio a ser
efetivamente desenvolvida, produzindo efeitos, em “O Seminário, livro 17: O avesso da
psicanálise”. Nele, Lacan (1969-70/1992) deslocou a função do pai real – agente da castração,
aquele que intervém na relação entre mãe e filho (LACAN, 1956-57/1995) – para a de
operador real da castração. No primeiro caso, o pai real era o pai da realidade, cuja função era
a de interditar, sobretudo, a mãe, no sentido de que não tomasse o filho como objeto de gozo.
Supunha-se que ele o fizesse transmitindo a Lei edípica, cujo lastro estava na tradição, na
cultura. No segundo caso, a função do pai real é a de transmitir algo de sua própria falta e de
como se arranja com isso, pois ele é aquele que toma uma mulher como objeto causa de
desejo.
Logo, uma passagem do pai como o que opera a partir da função simbólica, da
substituição de um significante, ao pai como o que revela a falta de significante, “o pai que
não sabe nada sobre a verdade” (LACAN, 1969-70/1992, p.122). O pai real, neste último
caso, é o que tem, na relação com o gozo/prazer, um anteparo à pulsão de morte. Então, não
se trata da transmissão de uma Lei universal, mas da transmissão da relação particular do pai
com o gozo. Como do gozo só é possível falar a partir do significante (p.168), “a castração é a
operação real introduzida pela incidência do significante, seja ele qual for, na relação ao sexo”
(p.121).
Em função desse deslocamento do simbólico ao real, Lacan afirmou que o Édipo era
um sonho de Freud. Se o Édipo era um sonho de Freud, o umbigo desse sonho, supomos,
estaria localizado no pai primevo, no evento real do assassinato do pai, que teria deixado
traços inerradicáveis na transmissão. Vimos como Freud não abria mão desse evento real do
assassinato do pai, que jaz por trás do simbólico sob a forma de pulsão de morte, da qual o
vivo se diferencia.
Em que convergem e divergem as formulações de Freud e Lacan sobre o laço social?
Manteremos a questão para abordá-la mais adiante.
88
Parece que, com a formalização dos discursos, Lacan teria operacionalizado a relação
entre desejo e castração. Com efeito, afirma que o objeto
a, objeto perdido, é o que move o
discurso, já que é dali que ele se origina.
Como essa elaboração, marcada pela ênfase no objeto a em relação ao significante,
afeta a noção de laço social na clínica diferencial da neurose e da psicose?
Em relação à neurose, Barros (1999), em “Psicanálise, sintoma e laço social”, aponta o
passo dado por Freud, em relação a Breuer, no sentido de “incluir ou levar em conta o objeto
inconfessável no discurso da histérica” (p.22). Destacando que Freud, ao inventar a
psicanálise, “corrige a idéia de que os laços sociais se dariam de maneira complementar, entre
sujeitos que se juntariam em uma unidade coletiva” (p.22), o autor aborda essa
impossibilidade situando o “lugar para o resto do gozo perdido” nos discursos formulados
por Lacan (p.22). Cada um dos discursos revelaria o aspecto sintomático de cada modalidade
de laço social.
Barros (1999), considerando os aspectos funcional e disfuncional do sintoma, situa a
relação de dissimetria na qual o sujeito, que, por um lado, é efeito da cadeia significante do
Outro e, por outro, manifesta uma forma de gozo, apresenta-se como dividido.
Desenvolvendo um argumento a partir de uma interrogação, Barros (1999) conclui que
o laço social fundamental teria como protótipo a fantasia. A fantasia implica a
impossibilidade de complementaridade, destacando-se a conjunção/disjunção do sujeito,
efeito da cadeia significante do Outro, em relação ao objeto a, como uma resposta à perda da
realidade.
Essa formulação nos subsídios para pensar a questão da clínica do sujeito, um dos
paradigmas da prática institucional, pois situa o sujeito na relação ao campo do Outro, o que
de saída inclui o social.
Como vimos, no caso da psicose, por não haver individualização dos quatro elementos
, . e – coloca-se um obstáculo à utilização do recurso dos discursos estabelecidos na
abordagem do laço social. Por outro lado, essa, como veremos, não é a única via de
articulação do laço social.
4- Alíngua e laço social
No ensino de Lacan, podemos assinalar a passagem de uma concepção estruturalista
(simbólica) a outra, borromeana (RSI). A primeira foi tecida pelo autor ao reler o legado de
Freud a partir da lingüística e da antropologia. Essa concepção tem como um de seus
89
conceitos-chave o Nome-do-Pai, operador simbólico que situa o complexo de Édipo, como
Lei universal que regula o desejo a partir da castração. A segunda concepção tem início com a
disjunção entre as noções de castração e de complexo de Édipo. No momento em que o Édipo
deixa de ser o paradigma normatizador, a castração passa a ser referida à linguagem, pois o
gozo é interdito a todo aquele que fala (LACAN, 1960a/1998).
Com a estrutura dos quatro discursos, vimos que é o objeto a que faz mover o
discurso. No entanto, uma mudança mais radical do que a de localizar o irredutível do gozo,
que se repete no âmago de cada estrutura discursiva, é formulada por Lacan (1972-73/1993)
em “O Seminário, livro 20: Mais, ainda”. Nessa nova perspectiva, é o campo da linguagem,
como estruturado por uma cadeia significante, que passa a ser considerado como produzido
em um segundo tempo lógico, posterior ao campo do gozo, em que se produz alíngua
23
. Essa
tese foi assim formulada por Lacan:
“A linguagem é, sem dúvida, feita de alíngua. É uma elucubração de saber sobre alíngua. Mas
o inconsciente é um
saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de
muito o de que podemos dar conta a título de linguagem” (1972-73/1993, p.190).
O que se evidencia é que alíngua sustenta o inconsciente, indicando uma passagem
que articula real e simbólico. Lacan (1972-73/1993, p.190) exemplifica alíngua como o que
permitiu a homofonia em um dito/dizer que acabara de pronunciar durante o seminário.
Porém, essa criação pode aparecer de um modo não articulado na comunicação, mas referido
ao gozo repetitivo, que pode não estar cifrado. Tal criação, no entanto, pode-se revelar como
uma oportunidade para uma intervenção, permitindo que alguma suplência venha a se
constituir na experiência clínica. É o que veremos, na segunda parte desta tese, ao comentar a
construção de pontos de ancoragem, através de significantes fora-de-sentido, na perspectiva
da psicanálise aplicada à terapêutica.
Com a noção de alíngua, Lacan desloca o ponto em que o sujeito pode aparecer: não
apenas na cadeia significante a partir do inconsciente, o que requer o recalque, mas também
no elemento, no significante Unário.
“S1, esse um, o enxame, significante-mestre, é o que garante a unidade, a unidade da
copulação do sujeito com o saber. [...] O significante Um não é um significante qualquer. Ele
é a ordem significante, no que ela se instaura pelo envolvimento pelo qual toda cadeia
subsiste. [...] O Um encarnado na alíngua é algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a
frase, mesmo todo o pensamento. É o de que se trata no que chamo de significante-mestre”
(1972-73/1993, p.196).
23
Segundo Miller, alíngua é feita de aluviões que se acumulam de mal-entendidos, de criações lingüísticas de
cada um” (1996/1998, p.71). Na clínica, encontramos
alíngua nas repetições de expressões, em geral sem
significação, mas que produziu gozo ao ser falante.
90
Acreditamos que essa formulação abre a possibilidade de que a alteridade venha a se
constituir uma vez que ela não é necessariamente dada seja como Outro (inconsciente),
seja como objeto
a extraído. Nessa perspectiva, o S1 extraído de alíngua pode vir a funcionar
como um ponto de ancoragem para o gozo, o que veremos nos casos clínicos comentados na
prática institucional.
5- Laço social e a pluralização dos Nomes-do-Pai
Lacan (1974-75, inédito), utilizando o recurso da topologia dos nós, comenta que
Freud, embora não soubesse do que une os registros real, simbólico e imaginário, dele
desconfiava, pois inventara o quarto termo, a realidade psíquica, para atar as três consistências
da experiência subjetiva:
“O que ele chama de realidade psíquica tem perfeitamente um nome, é o que se chama
complexo de Édipo. Sem o complexo de Édipo, nada, da maneira como ele se atém à corda do
simbólico, do imaginário e do real, se sustenta” (Lição de 14/01/1975).
Sublinhando a invenção freudiana do quarto elo, embora este nada soubesse sobre o nó
que une os registros, Lacan (1974-75, inédito) inscreve sua elaboração sobre os nós no legado
freudiano. Como exemplo, o autor cita o processo de análise, que pode ter, como um dos
desdobramentos, outra forma de atar o complexo de Édipo. pontos de convergência, mas
no percurso desse seminário, notamos que Lacan revela a diferença que os liga na cadeia de
transmissão, o que passamos a comentar.
Em “O Seminário, livro 22: R.S.I.”, Lacan (1974-75, inédito) ratifica a formulação
sobre o pai real apresentada em “O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise”. O pai real é
o pai perversamente orientado, isto é, o que toma uma mulher como objeto causa de seu
desejo, enquanto ela não se dedica a colocá-lo nesse lugar. Ela, por seu lado, ocupa-se dos
filhos, que são para ela objetos a, o que indica que não reciprocidade, mas algum
consentimento da mulher em se deixar tomar como objeto causa de desejo pelo parceiro.
Sobre o lugar particular que o pai pode ocupar em relação aos filhos, Lacan afirma:
91
“[Esta é a] única garantia de sua função de pai, que é a função de sintoma, tal como a escrevi
ali [f(x)]. Para isso, basta que ele seja um modelo de função... Ele pode ser o modelo de
função, realizando o tipo. Pouco importa se ele tem sintomas” (Lição de 21/01/1975).
Aqui, o pai real tem como contraponto a exceção, que indica o lugar ocupado pelo pai
da horda, aquele que não estaria submetido à norma fálica. O pai real, nessa formulação,
realiza o tipo, e não o modelo ideal, presente no primeiro ensino de Lacan, daquele que
representa a Lei universal. O pai real está orientado pelo gozo, cuja Lei é o desejo, revelador
da falta.
Demonstrando a topologia do nó borromeano, Lacan (1974-75, inédito) destaca a
função do quarto elo, que opera fixando o nó, isto é, mantendo os registros diferenciados.
Com esses elementos, Lacan realiza uma passagem, a pluralização dos
Nomes-do-Pai, o que
faz do
Nome-do-Pai também uma suplência:
“Quando comecei a fazer o seminário dos “Nomes do Pai” [...] não foi por nada que o chamei
Os Nomes do Pai e não O Nome do Pai, eu tinha uma idéia de suplência que o campo toma
[...] não é porque essa suplência não seja indispensável que ela não tenha lugar
: nosso
Imaginário, nosso Simbólico, nosso Real estão talvez para cada um de nós em estado de
suficiente dissociação para que somente o Nome do Pai faça e mantenha tudo isso junto”
(Lição de 11/02/1975, grifos nossos).
Deslizando do complexo de Édipo para a pluralização dos Nomes-do-Pai, Lacan
(1974-75, inédito) distingue o pai como nome e o pai como nomeador, indicando que a
nomeação, será um quarto elemento, não necessariamente o simbólico. Neste caso, o acento
está colocado na função de fazer nó, isto é, de manter os registros individualizados, o que é
diferente de ser um suporte para o simbólico. Nessa formulação, sobressai uma nova
concepção de laço social, a da pluralização dos Nomes-do-Pai, que remete a modalidades de
suplência à relação sexual que não existe:
“Quando digo o Nome-do-Pai, isso quer dizer que pode haver aí, como no
borromeano, um número indefinido. É esse o ponto vivo. É que esses números
indefinidos, estando atados, tudo repousa sobre um; enquanto buraco, ele comunica
sua consistência a todos os outros” (Lição de 15/04/75).
A possibilidade de outras amarrações que não somente através do Nome-do-Pai, no
entanto, não implica equivalência em relação à estabilização. Nesse ponto, inferimos que
mesmo na possibilidade de existirem outras amarrações para o nó, o buraco do simbólico é
mais estabilizador, pois é o verdadeiro buraco.
92
Avançando em direção à função do pai como nomeador, Lacan, na lição de 13 de maio
de 1975, opera um deslocamento ao afirmar que a duplicação do simbólico não é
indispensável para manter os registros diferenciados. Para que isso ocorra, basta que haja um
elemento que exerça essa função, o que tem por efeito distintas nomeações:
NS - Nomeação do simbólico - Sintoma
NI - Nomeação do Imaginário - Inibição
NR - Nomeação do Real - Angústia
Ainda nesse seminário, Lacan (1974-75, inédito) relê as identificações descritas por
Freud em “Psicologia de grupo e análise do ego”. Propõe uma correspondência entre tais
identificações e o os registros R, S, e I do Outro Real, que seria, acreditamos, o Outro
primordial do encontro do infans. “Se há um Outro Real, ele não está senão no nó, e é por isso
que não há Outro do Outro” (Lição de 18/03/1975). Eis a proposta:
Identificação com o I. do Outro Real - Identificação histérica
Identificação com o S. do Outro Real - Identificação do traço unário
Identificação com o R. do Outro Real - Nome-do-Pai
(Lição de 18/03/1975)
Supomos que, quando Lacan (1974-75, inédito) denomina Nome-do-Pai essa
identificação com o real do Outro Real identificação que, em última instância, remete ao
recalque primário, a um não saber sobre o gozo do Outro – ele está ratificando a tese, que vem
sustentando, de uma falta de significante para todo ser falante. Destaca que não se trata de
uma intervenção simbólica, de um significante que viria em lugar do significante do desejo
enigmático da mãe. Trata-se do pai real como o que transmite a castração a partir da própria
falta de significante.
Jimenez (1992, mimeo), distinguindo o pai nos três registros – real, simbólico e
imaginário refere-se ao pai real como efeito do significante: “O pai é basicamente um
significante; isso gera um resto, uma exclusão, um outro pai que cai”. A autora, em seu
argumento, destaca que o pai real, como resto dessa operação, não pode ser concebido como
existindo previamente ao simbólico, descrevendo-o como “o pai que goza da pancada da lei”.
Essa é a dimensão do pai que comparece na repetição sintomática. A autora cita o exemplo de
um paciente muçulmano de Lacan que apresentava uma câimbra nas mãos. O sintoma
revelava a herança da dívida paterna, pois o pai não pagara uma dívida em seu país, onde a
punição para tal era a amputação das mãos.
93
Nessa mesma direção, Lacan (1953/1980), em “O mito individual do neurótico”,
aborda a dívida do
Homem dos Ratos em relação ao casamento com a moça rica/pobre como
herança da dívida do pai. Qual seria aqui o estatuto da dívida? A dívida seria simbólica, mas o
que esses casos denotam é que a dívida se revela como imperativo superegóico, logo, como
gozo no registro do real. Seria essa uma identificação ao traço unário ou ao real do Outro
Real?
6- Sinthoma como laço social
Comentando “Le Séminaire, livre 23: Le sinthome”, Miller
24
(2000) destaca a torção
no ensino de Lacan, que, tendo inicialmente proposto a prevalência do simbólico em relação
aos outros registros, como o imaginário e o real, passa, em seu último ensino, a privilegiar o
enodamento dos três registros, o que implica uma operação no sentido de dar um lugar ao
gozo singular na construção do laço social.
Utilizando a topologia dos nós borromeanos para articular os registros da experiência
subjetiva, Lacan (1975-76/2005) elaborou a noção de sinthoma como correspondente ao
quarto elo uma letra de gozo irredutível ao significante, logo, não reabsorvível pela
interpretação indicando esse algo que rateia para todo ser falante em sua relação ao gozo.
Com essa mudança de perspectiva, opera um deslocamento da primazia do simbólico,
equiparando os três registros. Aqui, “o sinthoma é considerado equivalente à realidade do
inconsciente” (LACAN, 1975-76/2005, p.139).
Nesse contexto, Lacan (1975-76/2005) dedica-se à obra de Joyce, apontando que sua
escritura, como sinthoma, fez suplência à metáfora paterna ausente, um equivalente da
amarração propiciada pelo Nome-do-Pai. Para Lacan, a invenção de Joyce permitiu que ele
fizesse do sinthoma um nome a partir da escrita, o que teria possibilitado a amarração dos
registros do R, S e I. Essa escrita revela a solução inventada pelo sujeito, no real, como um
saber-fazer-aí (savoir-y-faire) com o gozo.
Seguindo os fios dessas elaborações, Lacan (1975-76/2005) demonstra a mudança no
de Joyce em dois tempos: antes e depois de sua dedicação à escrita, indicando que a obra
24
Curso de Orientação Lacaniana III, 9, lição de 13/12/2000.
94
produziu uma correção no que havia antes. A hipótese de Lacan é que, no de Joyce, o
Real e o Simbólico estariam ligados, enquanto o Imaginário estaria solto. Com essa
distribuição dos elementos, Lacan demonstra, através do nó, o efeito de desatamento do
imaginário. Toma como referência um episódio relatado pelo próprio Joyce, que declara ter
experimentado, após uma surra aplicada por colegas, um desprendimento de seu próprio
corpo, tal como uma pele que estivesse se desprendendo de um fruto.
O ego corretor, a escrita de Joyce, teria permitido um enodamento borromeano onde
antes havia fixação apenas entre o real e o simbólico (inconsciente), que o imaginário
deslizava. É o que assinala Lacan (1975-76/2005): “O que eu sugiro é que, em Joyce, o ego
vem corrigir a relação faltante. Por este artifício de escritura se restitui, diria eu, o
borromeano” (p.152). Destacamos aqui o nó de Joyce, antes e após a correção:
Qual seria a singularidade do sinthoma de Joyce, que faz laço social?
Miller (2000)
25
, comentando que, em sua leitura, Lacan teria, com Joyce, ressaltado a
dimensão do avesso do lacanismo que dava um lugar de primazia ao Outro como
fundamento da transmissão na cadeia geracional destaca: “nesse sentido, ele pode dizer que
a singularidade do sinthoma de Joyce está precisamente no fato de não enganchar nada no
inconsciente do Outro”.
É nesse ponto que o de Joyce pode ser paradigmático em relação à questão do laço
social, pois ele indica a possibilidade de enodamento dos registros sem a duplicação do
simbólico. No entanto, isso é realizado através de um uso muito particular da língua.
Skriabine (2006), partindo das elaborações de Lacan sobre o nó de Joyce, e destacando
a própria obra, comenta a habilidade do artista “[...] em tomar o desdobramento incessante do
pensamento à deriva, [em que os] significantes jogam sós, se é possível dizê-lo, fora do
significado: sintaxe e léxico se desfazem, isso se embala ou isso transborda em outro
pensamento”(p.61).
25
Curso de Orientação Lacaniana III, 9, lição de 13/12/2000.
95
Essa descrição, que Skriabine destaca nas epifanias de Joyce, é bastante semelhante à
que apresentamos sobre
alíngua. Segundo o autor, elas constituem “o resto, o resíduo das
reparações”, o que indica um enodamento particular.
7- Fora-de-sentido
Um sinthoma pode ser construído com elementos fora-de-sentido, porque o que
interessa é sua função de suplência, quer dizer, de manter os elos dos registros unidos e
diferenciados. A construção sintomática de Joyce evidencia a inscrição no laço social por uma
via distinta da construção de uma metáfora paterna ou delirante, ou seja, evidencia um saber-
fazer
com alíngua (lalangue) (LACAN, 1972-73/1993). Como vimos, alíngua se articula
‘fora’ do imaginário, caracterizando-se por repetições significantes no real que não remetem à
significação.
Lacan afirma que “o
sinthoma está no lugar mesmo onde o falha, onde há lapso do
nó” (1975-76/2005, p.97). No caso de Joyce, a falha está no imaginário, desarticulado do
simbólico e do real. É nesse ponto que a obra faz suplência. A solução de Joyce passa,
portanto, pela via da arte. Tal amarração permanece não borromeana; um limite
instransponível de estrutura. Esta, por sua vez, tem a função de cessar o deslizamento do
imaginário.
A possibilidade de construção pode ser paradigmática da clínica na psicose, pois o
sinthoma torna possível a localização da letra de gozo. Este, que antes retornava de modo
difuso, foi fixado em um ponto de basta ( point de capiton).
Com o axioma borromeano, Lacan apresenta alternativa para a noção de laço social,
até então restrita à metáfora paterna e à metáfora delirante, cuja função de fixação do gozo
correspondia, de certo modo, à primeira. Na perspectiva da topologia borromeana, o sinthoma
é o que vem fazer suplência à relação sexual que não existe, fixando o gozo que não está
submetido a um ciframento.
8- De Freud a Lacan: a transmissão na formulação sobre o laço social
No que concerne à questão do laço social, que implica a relação entre o sujeito e a
alteridade, seja como objeto perdido, seja como objeto a, há convergência e divergência entre
as formulações de Freud e Lacan. Concluímos que não poderia ser diferente, pelo modo como
cada um buscou responder às questões: O que é um pai? Como se realiza a transmissão?
96
Lacan entrou na psicanálise pela via da linguagem, do Outro como lugar significante,
do inconsciente como discurso do Outro. Freud adotou o viés do mito, que vela/desvela o
vazio deixado pelo rastro do objeto perdido, cuja ausência é o que move o aparelho psíquico.
Essa diferença não anula o movimento inicial, tanto de Freud quanto de Lacan, de buscar as
respostas através do simbólico, via da qual cada um deles, após se defrontar com certa
impossibilidade, percebeu o limite. Nesse ponto, cada um aportou uma invenção: Freud, o
inconsciente, como um anteparo à pulsão de morte; Lacan, o real, como contraponto à ordem
simbólica.
Em relação ao laço social, a realidade psíquica, tomada como complexo de Édipo, foi
destacada por Lacan (1974-75, inédito) como o quarto elo do enodamento, o
Nome-do-Pai em
Freud
. Inferimos que Lacan, nesse contexto, está apontando que, em Freud, o estatuto do
Nome-do-Pai é real, no que ele se distingue do Nome-do-Pai como traço unário. Neste caso, o
que funda a alteridade do Outro é o objeto
a, resto não simbolizado que aponta o rastro da
Coisa. Logo, o Nome-do-Pai, como identificação ao real do Outro Real, indicaria não apenas
o lugar do simbólico, mas também o gozo, como dimensão real da transmissão na cadeia
geracional, a ser deslindada por cada ser falante.
Acreditamos que, por outro caminho, o da identificação primária, Freud teria apontado
esse real na transmissão de traços inerradicáveis do pai assassinado. De “Totem e tabu”,
extraímos o mito do assassinato do pai, no qual Freud separa o gozo do pai da horda da
recuperação possível na assunção do pacto por cada um dos filhos, através do ato da
incorporação de sua força no banquete totêmico. Trata-se de uma construção mítica que
aponta para um real inapreensível. Considerando que, com esse mito, Freud procura articular
o que encontrava na clínica, não se trata de um evento passado, mas de um ato que cada
sujeito irá ou não atestar pela via da incorporação, o que, em termos freudianos, remete à
escolha da neurose.
A identificação primária, tal como Freud (1921/1980) a concebe em “Psicologia de
grupo e a análise do ego”, é o processo de incorporação do pai por cada sujeito, o que
ocorrerá através da transmissão pelo Outro. Ora, trata-se de uma transmissão do simbólico, do
real, do imaginário ou dos três registros?
Lacan dirá, em “O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente”, que Melanie
Klein, em suas pesquisas clínicas, reconheceu, “na etapa da formação dos maus objetos”, os
objetos rivais presentes no corpo da mãe, dentre os quais o pai, “representado sob a forma de
seu pênis” (1957-58a/1999, p.170). O autor assinala que tal achado, do terceiro termo paterno,
que supomos como falo imaginário, é pertinente, pois essa vinculação se situa nas primeiras
97
etapas das relações imaginárias, que estarão afetadas na esquizofrenia e na psicose de um
modo geral.
Em seu comentário sobre a incorporação primordial, a
Bejahung, Didier-Weill (1988)
faz referência à contribuição de Klein sobre a ambivalência entre o bom e o mau objeto,
presentes no corpo da mãe. Pondera que essa ambivalência não visa a dois elementos
diferentes, como poderia fazer supor uma leitura das alternativas
isto eu quero introduzir em
mim
ou isto eu quero excluir, propostas por Freud em “A negativa”. Para o autor, trata-se da
decisão em relação a incorporar ou não o significante fálico paterno, que Melaine Klein havia
definido como capaz de ser extraído do corpo da mãe. Tal significante pode ser simbolizado
como falta, operação cuja resposta seria a fantasia, ou restar, na ausência de simbolização,
como real. Supondo que a ambivalência entre o bom e o mau objeto seria induzida pela
incorporação, e não anterior a ela, Didier-Weill argumenta a partir da própria dialética:
uma parte do falo não incorporável, que restará como real sob a forma do significante
ausstosung, parte rejeitada.
Na tentativa de situar possíveis semelhanças e diferenças em relação à abordagem do
pai, destacamos o lugar que a identificação primária, formulada por Freud (1913a[1912-
13]1980), ocupa nas elaborações de Lacan.
Notamos que, com a tese sobre a pluralização dos Nomes-do-pai, Lacan (1974-75,
inédito) opera um deslocamento em relação à posição inicialmente tomada. Com efeito, em
“O Seminário, livro 9: A identificação”, Lacan (1961-62, inédito) abordou a identificação
primária a partir do traço unário, logo, exclusivamente a partir do simbólico. A tese que ele
sustenta em “O Seminário, livro 22: R.S.I.” é que essa identificação se realiza com o real do
Outro Real – o
Nome-do-Pai (Lição de 18/03/1975).
Acreditamos que essa formulação indica um ponto de convergência entre as
elaborações de Freud e Lacan: a transmissão entre as gerações não se reduz ao simbólico, mas
inclui o real. Lacan dá um passo a mais nessa direção ao inventar o objeto
a, em torno do qual
a pulsão faz seu trajeto.
Esse ponto de convergência ainda pode ser atestado na frase de Freud, aqui comentada
a propósito da transmissão em relação a seus mestres
26
, e em relação à qual cabe a feliz
formulação de Lacan:
“A hipótese do inconsciente, Freud o sublinha, não pode se manter senão ao supor o Nome-
do-Pai. É certo que supor o Nome-do-pai é Deus. Por isso a psicanálise, ao ser bem-sucedida,
prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a
condição de nos servirmos dele” (LACAN, 1975-76/2005, p.136).
26
Ver nosso comentário na seção 2.1, “Contribuições de Freud para o estudo do laço social”.
98
Até esse ponto, que indica a fantasia inconsciente como a modalidade típica de laço
social na neurose, podemos estabelecer uma correspondência entre as formulações de Freud e
Lacan. Mas não podemos fazer o mesmo a partir da formulação de Lacan sobre o
sinthoma
como Nome-do-Pai. A nosso ver, quando Lacan envereda pela obra de Joyce e dela extrai
conseqüências como a concepção do quarto elo, que não remete apenas ao simbólico, ou a
abordagem da escrita como quarto elo, mesmo que a significação seja uma questão para o
futuro – indica um ponto de ultrapassagem na transmissão em relação a Freud.
Assim, em Freud, o laço social é a fantasia, na neurose, ou a possibilidade de
restituição do eu, através do delírio, na psicose. Em Lacan, o laço social é o
sinthoma, mas
não apenas, pois o sinthoma é uma modalidade, dentre outras, de laço social.
A formulação de Lacan estabelece a possibilidade de se examinar outras formas de
amarração dos registros R, S e I na clínica. Mesmo que o sinthoma seja uma invenção rara,
pois requer quatro elos e diferenciação dos registros, a orientação a partir do real e a prática
em termos de savoir-y-faire com o gozo possibilitam novas modalidades de inscrição no laço
social.
Embora não encontremos em Lacan a afirmação textual de que o sinthoma é laço
social, concordamos com Miller (1997, p.193), que a extraiu por dedução em “La
Conversation de Arcachon”. Essa formulação é pertinente, sobretudo pelo lugar atribuído ao
Nome-do-Pai a partir de “O Seminário, livro 22: R.S.I.”, em que se destaca sua função de
suplência, de manter unidos e diferenciados os elos do nó.
Como essa suposição teórica abre uma nova perspectiva para a construção do laço
social na psicose, deter-nos-emos em sua formulação. No entanto, abordaremos, antes, a
questão do laço social na psicose, buscando precisar o que está em jogo em relação a esse
ponto nas contribuições de Freud e Lacan.
2.3. Laço social na psicose
2.3.1. Da perda à construção da realidade
Como vimos, o laço social põe em questão a relação entre o sujeito e o objeto
(alteridade). Na neurose, essa articulação se faz através da fantasia, que incide na escolha de
objetos imaginários, suporte para que algum investimento seja possível. Neste caso, o outro
(parceiro) é o suporte em que se atualiza, em certa medida, a gramática da fantasia singular do
sujeito. Nesse contexto, o sujeito é revelado pelo lugar que o objeto ocupa na dinâmica que
99
vem a se constituir como realidade psíquica. Esta resulta das operações articuladas entre o
complexo de Édipo e o complexo de castração, cujo efeito é a simbolização ou não do objeto
perdido. O laço social passa então pela falta do objeto, que engendra a busca de um substituto
a partir das coordenadas da realidade psíquica. Tal operação implica o recalque como
modalidade de defesa do eu, que fixa parte do gozo a uma representação. A partir desse
referencial, colocamos a questão: como conceber o laço social na psicose, em que o recalque
não é a modalidade de defesa operante e tampouco a perda do objeto está simbolizada? Na
abordagem dessa questão, destacamos quatro eixos das contribuições de Freud para a clínica
da psicose, especialmente no que se refere ao laço social.
1- A psicose como uma modalidade de defesa em relação à realidade
Desde seus primeiros trabalhos, Freud, orientando-se em uma perspectiva clínica,
privilegia a posição subjetiva no diagnóstico diferencial. Para extrair a diferença entre neurose
e psicose, Freud não se contentou em descrever os fenômenos, mas buscou identificar os
mecanismos do funcionamento psíquico, correlacionando-os com os tipos clínicos. Ou seja,
buscou cernir os modos através dos quais o aparelho psíquico busca encontrar alguma
homeostase entre as exigências pulsionais e a satisfação obtida no encontro com um objeto.
Concebendo o aparelho psíquico como um aparelho que, a princípio, visa à defesa em relação
ao desprazer e à dor, Freud cedo percebeu a ação de uma modalidade de defesa do eu.
Freud não propôs uma defesa específica para a psicose, contrariamente ao que
estabeleceu para a neurose, cuja defesa é o recalque. Encontramos, ao longo de sua obra,
referências a diferentes modalidades de defesa, o que configura certa ambigüidade. A nosso
ver, não se trata apenas de repertoriar os termos por ele empregados para descrever as
modalidades de defesas, mas de destacar a função que elas podem exercer na dinâmica
psíquica.
Freud refere-se à rejeição (Verwerfung) em dois artigos. No primeiro, “As
neuropsicoses de defesa”, distingue a defesa em jogo na psicose da que ocorre na neurose
obsessiva e na histeria. Na psicose, “a defesa seria mais poderosa e mais bem-sucedida, já que
o ego [eu] rejeita
27
a idéia incompatível juntamente com seu afeto, e comporta-se como se
27
Segundo Laplanche e Pontalis (1970, p.554), nesse artigo, Freud refere-se à conversão como o mecanismo de
defesa da histeria, e ao deslocamento, no caso da neurose obsessiva. Em ambos os casos, haveria uma separação
entre representação e afeto. Em relação à psicose, Freud refere-se ao mecanismo da rejeição ou projeção, que
incidiria concomitantemente sobre a representação e o afeto.
100
jamais a idéia lhe tivesse ocorrido” (FREUD, 1894/1980, p.71). Quanto ao laço social, os
efeitos dessa defesa são relevantes:
“O ego [eu] rompe com a representação incompatível; esta, porém, fica inseparavelmente
ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o ego [eu] obtém esse
resultado, também ele se desliga, total ou parcialmente, da realidade” (p.72).
Esse argumento reaparecerá na segunda tópica, que retomaremos, dada a sua
relevância para o tema de que estamos tratando. Antes, porém, prosseguiremos a pesquisa
sobre a rejeição
. Em “História de uma neurose infantil”, Freud (1918[1914]/1980) refere-se
novamente à rejeição (Verwerfung) ao comentar o caso clínico do Homem dos Lobos, sem, no
entanto, atribuir-lhe o diagnóstico de psicose. Em relação à castração, destaca duas atitudes do
paciente: a da rejeição e a que a reconhecia como um fato.
Entre esses dois momentos, no relato do caso Schreber, Freud revê a hipótese,
apresentada no “Rascunho H” (1895/1980), de que a projeção seria a defesa específica da
paranóia. Aqui, a projeção é descrita como o rechaço de uma idéia incompatível com o eu,
cujo conteúdo seria projetado no mundo externo. No referido relato, Freud retifica essa
formulação, afirmando: “[...] foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é
projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que
foi internamente abolido retorna desde fora” (1911b/1980, p.95).
Destacamos, nessa passagem, dois aspectos. O primeiro é a retificação da concepção
do mecanismo da projeção na paranóia, que passa a ser considerado como secundário ao
mecanismo que abole o simbólico. O segundo é a mudança em relação à percepção interna
28
:
enquanto na primeira formulação esse processo é definido como projeção, na segunda, o
processo implica um ato que abole e conserva o que não fora simbolizado. Essa retificação
revela a especificidade da psicose tanto na operação de exclusão rejeição da idéia
incompatível, recusa da crença, algo abolido quanto na forma como reaparece o que foi
excluído, uma mudança tópica irreversível.
Na segunda tópica, em decorrência da nova concepção do aparelho psíquico e do lugar
nela ocupado pela premissa universal do falo, Freud reformulou a teoria das defesas do eu,
distinguindo três opções para o sujeito diante da realidade da castração materna: o recalque
(Verdrängung), a recusa (Verleugnung) e a rejeição (Verwerfung). Cada uma dessas defesas
visa a neutralizar idéias ligadas ao retorno de representações pulsionais inconscientes, que
28
O termo usado por Freud para descrever essa operação é aufhebung, o que remete a uma significação
contraditória, como abolir, mas conservar.
101
seriam incompatíveis com idéias ligadas à censura na esfera psíquica. Importa assinalar a
dimensão de escolha destacada por Freud; escolha inconsciente, que implica responsabilidade,
e não moral, do ser falante. Trata-se de uma operação simbólica da qual resultará uma posição
subjetiva na partilha dos sexos, o que produz os efeitos por Freud denominados
neurose,
perversão ou psicose.
Partindo da função mediadora do eu no conflito entre as reivindicações do isso e do
supereu, Freud (1924a[1923]1980) propõe uma diferença genética entre neurose e psicose:
enquanto “a neurose é o resultado de um conflito entre o ego [eu] e o id [isso]”, a psicose é “o
desfecho semelhante entre a oposição de interesses entre o ego [eu] e o mundo
externo”(p.189). Nas neuroses de transferência, o eu se defende contra o impulso libidinal
através do recalque. Entra em conflito contra o isso, a favor do supereu e do mundo externo, e
o material recalcado busca satisfação através do sintoma.
Quanto à modalidade de defesa em jogo na psicose, Freud assinala: “A dissociação do
mundo externo é alguma frustração muito séria de um desejo por parte da realidade
frustração que parece intolerável” (FREUD, 1924a[1923]/1980, p.191-92). Essa definição de
defesa é bastante semelhante a outra, apresentada pelo autor no início de sua obra: uma defesa
radical que, diante de uma representação incompatível, “abole representação e afeto”
(FREUD, 1894/1980, p.72). No entanto, na segunda tópica, o termo usado para descrever a
modalidade de defesa do eu na psicose não é rejeição (
Verwerfung), mas recusa
(Verleugnung)
29
de um fragmento do mundo exterior. Revela-se, assim, certa ambigüidade
quanto à especificidade da defesa na psicose, não em relação à neurose, mas em relação à
perversão. Estas modalidades de defesa – rejeição e recusa – se opõem ao recalque, como não
reconhecimento da castração. Examinemos agora a distinção entre neurose, perversão e
psicose.
No artigo “Fetichismo”, Freud (1927/1980) formula que, tanto na neurose como na
psicose, duas atitudes que coexistem lado a lado: uma que nega, e outra que reconhece a
castração. Sobre a diferença entre essas duas estruturas clínicas, afirma:
“[...] na neurose, o ego [eu] está a serviço da realidade, reprime um fragmento do id [isso], ao
passo que na psicose, ele se deixa induzir pelo id [isso], a se desligar de um fragmento da
realidade Freud” (1927/1980, p.183-84).
Nesse contexto, Freud utiliza o termo Verleugnung (recusa) tanto para o caso de
psicose quanto para o de fetichismo, estabelecendo, contudo, uma distinção. No fetichismo,
29
Segundo Hanns (1996), esse termo permite diferentes acepções: repúdio, recusa e rejeição; “e quase sempre se
refere a uma tentativa de negar algo afirmado ou admitido antes. Freud (1927) o descreve como mecanismo de
defesa em diversos contextos, notadamente quando aborda a psicose e o fetichismo” (p.303) .
102
haveria um conflito entre negar e reconhecer a ausência do objeto fálico na mãe, o que faz
com que haja duas correntes: uma que reconhece, e outra que nega a castração. É o que a
construção do próprio objeto fetiche revela. No tocante à psicose, a corrente do
reconhecimento da castração está
ausente, restando a que a nega.
Em “Esboço de psicanálise”, Freud (1940a[1938]/1980, p.231-32) propõe a noção de
uma divisão (clivagem) do eu na neurose, na perversão e na psicose. Nessa clivagem, duas
atitudes psíquicas contrárias colocam-se lado a lado: uma que leva em conta a realidade, e
outra que, sob influência dos impulsos pulsionais do isso, desliga-se da realidade. A tese
freudiana, retomada nesse artigo, é de que a decisão do conflito irá depender da intensidade de
cada corrente. No caso em que a segunda corrente, a que nega a realidade, “se torna a mais
forte, a pré-condição necessária para uma psicose se acha presente. Se esta relação é invertida,
o delírio se retira para o inconsciente” (p.232).
Em “A divisão do ego no processo de defesa”, Freud (1940b[1938]/1980) ratifica essa
hipótese, descrevendo como o eu se encontra dividido diante das exigências pulsionais do isso
e da proibição da realidade da castração. Assinala que a criança pode tomar, simultaneamente,
duas vias: por um lado, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro,
reconhece o perigo da realidade. O efeito dessa decisão é a divisão do eu: “tudo tem de ser
pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no ego
[eu] (FREUD, 1940b[1938]/1980, p.309). Enquanto o psicótico poderia alucinar um objeto
onde há essa falta, o fetichista realiza um deslocamento do pênis para outro objeto. No
fetichismo há, portanto, duas correntes: a primeira, que nega a castração, deslocando o objeto
valorizado para outra parte do corpo ou para outro objeto, sem o qual o sujeito não pode
passar em termos de realização sexual; e a segunda corrente, que, sob a forma do temor à
castração, a reconhece, o que, como vimos, não é o caso na psicose. Portanto, se a defesa é a
mesma, a recusa (verleugnung) da castração da mãe, isso não significa que o processo seja o
mesmo na psicose e no fetichismo. É o que podemos notar no exemplo do menino citado por
Freud, cuja posição subjetiva indicava uma desinclinação em admitir a castração materna. Em
lugar de admiti-la, “criou um substituto para o pênis de que sentia falta nos indivíduos do
sexo feminino o que equivale a dizer, um fetiche. Procedendo assim, é verdade que rejeitou
a realidade, mas poupou seu próprio pênis” (1940b[1938]/1980, p.311).
A prova de realidade é uma tomada de decisão sobre a correspondência entre o objeto
encontrado e o objeto perdido da satisfação primordial. Nesse percurso, o eu terá que decidir
quais as deformações que aceita quanto à representação desse objeto, que é impossível o
reencontro com o objeto de satisfação primordial.
103
No final de sua obra, Freud pareceu inclinado a indicar a recusa (Verleugnung) como a
modalidade de defesa em jogo na psicose, destacando, neste caso, a corrente que nega a
castração. Qual seria, então, a diferença em relação à rejeição? Seria essa uma imprecisão de
nomenclatura? Ou afirmar que se trata de recusa (
Verleugnung) implica dizer que a castração
simbólica está colocada para todos, inclusive para o psicótico, que, no entanto, a nega?
Como na psicose não reconhecimento da castração, a simbolização da perda do
objeto não se realiza, logo, a fantasia não se configura velando e desvelando o objeto. O que é
feito, na psicose, com o objeto e com o investimento da libido? Veremos adiante como isso
ocorre de modo distinto na esquizofrenia e na paranóia.
2- Distinção entre esquizofrenia e paranóia
Proporemos aqui algumas distinções entre a esquizofrenia e a paranóia quanto ao laço
social na psicose. Freud (1911b/1980) buscava, por comparação, a especificidade de cada tipo
clínico. Um aspecto distintivo da paranóia, apontado pelo autor e pertinente ao nosso foco, é o
desligamento parcial da catexia dos objetos:
“O paranóico percebe o mundo externo e leva em consideração quaisquer alterações que nele
possam acontecer, e o efeito que aquele lhe causa estimula-o a inventar teorias explanatórias
(tais como os ‘homens apressadamente improvisados’, de Schreber). Parece-me, portanto,
muito mais provável que a relação alterada do paranóico com o mundo deva ser explicada
inteira ou principalmente pela perda de seu interesse libidinal” (FREUD, 1911b/1980, p.99).
Essas observações indicam a possibilidade de que o paranóico se mantenha no laço
social, diferentemente do que ocorre com outras posições subjetivas, como a psicose
alucinatória (amência de Meynert) (FREUD, 1924a[1923]/1980, p.190-92). No entanto, essa
possibilidade não significa que o paranóico não possa estar fora do laço social quando em
estado de desencadeamento.
Na tentativa de estabelecer uma clínica diferencial, Freud (1911b/1980) sugeriu que o
termo paranóia ficasse restrito a “um tipo clínico independente, mesmo quando neste se
fizessem presentes características esquizofrênicas” (p.100). A paranóia, assim descrita,
diferiria da demência precoce devido à fixação disposicional e ao mecanismo próprio do
retorno do recalcado na formação de sintomas.
Apesar das diferenças entre esquizofrenia e paranóia, Freud (1911b/1980) supõe a
possibilidade, tanto de mútua passagem de um quadro clínico ao outro, como também de
afecções mistas. O autor situa o caso Schreber nesta última categoria, assinalando tratar-se de
104
um caso de demência paranóide, por apresentar “traços parafrênicos, enquanto que, na causa
ativadora, no emprego do mecanismo da projeção, e no desfecho, exibe um caráter paranóide”
(p.102). Inferimos que a denominação
demência paranóide corresponderia à esquizofrenia
paranóide.
Inspirando-se em contribuições de Abraham, Freud (1911b/1980) aponta a retirada da
libido do mundo externo como característica particular da demência precoce, afirmando que
esse “desligamento da libido vem no lugar do recalque” (p.102). Distingue, assim, a demência
precoce da paranóia, na qual, como vimos acima, esses vínculos poderiam ficar em parte
preservados. Na esquizofrenia, aqui denominada demência precoce, o processo seria outro,
podendo ocorrer uma fase de alucinações, como uma luta entre o ‘recalque’ e uma tentativa
de restabelecimento no sentido de devolver a libido a seus objetos.
No fio destas elaborações, e comentando uma observação de Jung sobre os resíduos de
antigas catexias objetais como material dos delírios, Freud afirma:
“Essa tentativa de restabelecimento que os observadores equivocadamente tomam pela própria
doença, não faz uso da projeção, como na paranóia, mas emprega um mecanismo alucinatório
(histérico). Este é um dos principais aspectos em que a demência precoce difere da paranóia”
(FREUD, 1911b/1980, p.102).
O modo peculiar de restabelecimento em cada uma dessas afecções leva Freud
(1911b/1980, p.102) a deduzir uma diferença quanto à fixação disposicional. Enquanto na
paranóia uma fixação da libido no narcisismo, na esquizofrenia
30
, a libido regride ao auto-
erotismo.
Outro critério de distinção entre esses quadros clínicos encontra-se na tese freudiana
de que a paranóia constitui uma defesa contra impulsos homossexuais, o que não ocorre na
esquizofrenia. Nesta afecção prevalece o desligamento da libido dos objetos (FREUD,
30
Esse termo foi cunhado por Bleuler (1911/1988), que, refutando a designação de demência precoce por
Kraepelin, assim batiza a afecção psíquica que lhe é correspondente. Ele também forjou o termo autismo, a partir
da referência ao auto-erotismo formulado por Freud, como um dos sintomas específicos da esquizofrenia. Por
outro lado, Bleuler não se refere aos mecanismos psíquicos relativos ao processo primário e nem reconhece o
conceito de pulsão sexual, postulados por Freud, mantendo sua hipótese de uma causa orgânica e hereditária de
etiologia desconhecida na esquizofrenia. Como sintoma, o autismo está referido ao fenômeno do isolamento em
relação ao mundo exterior, ou seja, à perda de contato com a realidade, pois o sujeito se refugia em um mundo
imaginário onde se encenam desejos e perseguições. Na descrição da esquizofrenia, Bleuler (1911/1988, p.11-
14) distinguiu os sintomas específicos (funções elementares e funções complexas) dos sintomas acessórios.
Como funções elementares, o enfraquecimento das associações de idéias, o enfraquecimento das relações
afetivas e o autismo, que, embora apareça como função complexa, reúne-se aos sintomas anteriores como
específico da esquizofrenia. Esses sintomas se distinguem dos fenômenos acessórios ou secundários, como
alucinações, idéias delirantes, problemas de memória e transtornos somáticos. Quanto ao tratamento, Bleuler,
partindo de suas observações clínicas, indicava que se preservasse a vida em família e na sociedade,
recomendando algumas atividades. Tal indicação coloca-o à frente de seu tempo, em que os doentes que
padeciam de demência precoce restavam hospitalizados, o que agravava muito o quadro.
105
1911b/1980, p.64-66). Com efeito, Freud aponta a irrupção do impulso homossexual como a
base da paranóia de Schreber. Esse impulso, que apareceu, após um intervalo de alguns anos,
como um anseio por parte dele para com o médico Flechsig, atualizava, na transferência, a
modalidade de ligação do paciente com o pai e com o irmão.
De acordo com a tese freudiana, a paranóia de Schreber teria como causa ativadora da
doença o aparecimento de uma fantasia feminina isto é, homossexual passiva de desejo
31
,
que tomou por objeto a figura do médico (FREUD, 1911b/1980, p.66). O delírio, no qual
Flechsig é substituído por Deus, teria sido uma solução encontrada para o conflito entre os
impulsos pulsionais e a resistência correspondente. Isso evidencia um trabalho subjetivo
desde a incubação à manifestação do delírio.
Quanto à parafrenia
32
, em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud (1914b/1980)
destaca que a libido, ao desinvestir os objetos, retira-se para o eu numa tentativa de
restituição, constituindo a megalomania. Quando esse processo falha, pode sobrevir a
hipocondria. Com efeito, no caso de Schreber, um delírio hipocondríaco antecedeu o
desencadeamento psicótico.
Ainda a propósito da parafrenia, Freud (1914b/1980) comenta que podem surgir
obstáculos à condução da análise no que concerne à transferência, uma vez que os
parafrênicos apresentam duas características fundamentais: a megalomania e o desvio do
interesse do mundo externo. Freud relata ter percebido a “inacessibilidade aos esforços
terapêuticos” devido à retirada da catexia libidinal dos objetos (p.90).
O desinvestimento libidinal não indica que o sujeito esteja fora do laço. Freud
(1914b/1980) distingue, quanto a esse processo, a neurose e a parafrenia. Na primeira, o
desinvestimento ocorre através do mecanismo da introversão
33
. A libido é retida na fantasia,
investindo, por algum tempo, objetos imaginários e reais, e renunciando a atividades cujos
31
A hipótese da paranóia como defesa contra o recrudescimento de impulsos homossexuais foi contestada por
outros analistas, dentre eles, Lacan (1957-58b/1998), o que, adiante, comentaremos.
32
Esse termo aparece pela primeira vez no final do caso Schreber, quando Freud (1911b/1980) se às voltas
com a distinção clínica entre a esquizofrenia e a demência precoce. Esta última, descrita por Kraepelin (1899),
foi designada por Bleuler (1911/1988) como esquizofrenia. Por não concordar com nenhum desses termos, Freud
propôs o termo
parafrenia, sem conotação especial, que teria a vantagem de, como substituto, não fazer
referência à demência precoce, evolução que nem sempre se verificava nesses casos; nem ao termo
esquizofrenia, ao qual Bleuler (1911/1988), apesar de descrevê-la a partir de alguns conceitos psicanalíticos,
como o de
spaltung, cisão do eu, atrelou uma etiologia orgânica. Em “Notas psicanalíticas sobre um relato
autobiográfico de um caso de paranóia (
dementia paranoides)”, uma nota do editor que esclarece a diferença
de uso do termo parafrenia: enquanto no referido artigo esse termo substitui os de demência precoce e de
esquizofrenia, em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud teria dado a esse termo um sentido mais amplo,
englobando paranóia e esquizofrenia (1911b/1980, p.101).
33
Freud (1914b/1980, p.90) assinala que esse é o único caso em que cabe usar o termo introversão, proposto por
Jung.
106
objetivos estão relacionados com aqueles objetos. No segundo caso, o das afecções
parafrênicas, o processo é diverso. Como assinala Freud,
“a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na fantasia, mas se
retira para o ego [eu] [...] quando [o parafrênico] ‘realmente’ os substitui, o processo
parece ser secundário e constituir uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a
libido de volta aos objetos” (1914b/1980, p.90-91).
Destacamos, nessa passagem, o processo de desligamento parcial da libido dos
objetos, efeito do desencadeamento da parafrenia, e a
tentativa de recuperação. Esta última
constitui o processo autoterapêutico definido por Freud como um trabalho do sujeito no
sentido de reconstruir a realidade. Nesse momento de sua elaboração, Freud situou esse
trabalho como um dos três grupos de fenômenos que podem ser notados no quadro clínico da
paranóia e da esquizofrenia:
1- Os que representam o que resta de um estado normal de neurose (fenômenos residuais).
2- Os que representam o processo mórbido (afastamento da libido de seus objetos e, além
disso, megalomania e hipocondria, perturbações afetivas e todo o tipo de regressão).
3- Os que representam a restituição, nos quais a libido é mais uma vez ligada aos objetos,
como na histeria, na esquizofrenia ou na parafrenia.
(FREUD, 1914b/1980, p.103).
Esses fenômenos de restituição, que têm por base uma ficção a partir do delírio e da
alucinação, por vezes confundidos com o agravamento da afecção, foram destacados por
Freud (1911b/1980) como um trabalho de elaboração, uma tentativa de cura. Tal formulação
abre uma perspectiva a partir da qual podemos situar não os delírios, mas outras
construções de um sujeito, ponto central de nossa pesquisa.
Um aspecto relevante da questão do laço social na psicose é o tratamento que cada
sujeito pode dar ao excesso pulsional, que retorna sob a forma de excitação psíquica. Em
relação ao trabalho psíquico que pode ser iniciado nessas circunstâncias, Freud
(1914b/1980)
34
parte da premissa de que o aparelho psíquico é um “dispositivo destinado a
dominar excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos
patogênicos” (p.102). Na tentativa de manter o equilíbrio do aparelho, o trabalho psíquico de
34
O artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução” veio à luz em um momento particular da obra de Freud
(1914b/1980), tanto em termos de questionamento teórico a partir da clínica, no âmago da primeira teoria
pulsional, quanto em termos dos interlocutores da época, notadamente seu discípulo Jung, que o aproximou de
seu mestre Bleuler, de Zurique. Freud tinha interesse em se comunicar com Bleuler, que havia acabado de
publicar a monografia sobre esquizofrenia, visando à expansão da psicanálise. Essa aproximação com o campo
da psiquiatria despertou em Freud o interesse por temas por ele tratados sob a rubrica da escolha da neurose,
rendendo elaborações que se tornaram paradigmáticas para a clínica da psicose no tocante à especificidade da
modalidade de defesa do eu o que inclui as vicissitudes pulsionais no que ela se diferencia das modalidades
em jogo na neurose e na perversão. Nesse percurso, não sem percalços, Freud sustentou a ferro e fogo a hipótese
do caráter sexual da pulsão, mesmo que isso viesse a lhe custar a perda desses interlocutores.
107
elaboração de um conflito pode favorecer o escoamento de descargas a serem evitadas. Para
tal, a libido pode-se ligar a objetos reais ou imaginários. No entanto, o problema pode surgir
quando a megalomania falha, dando lugar à hipocondria. Neste caso, o represamento da libido
no “ego [eu] se torna patogênico, dando início à tentativa de recuperação que nos dá a
impressão de ser uma doença” (p.102).
Com relação à paranóia, Freud (1914b/1980, p.113) ratifica a hipótese sobre o lugar
que a voz ocupa nessa afecção, questão abordada em “Novos comentários sobre as
neuropsicoses de defesa” (1896b/1980). Neste trabalho, o autor havia afirmado que as auto-
acusações recalcadas retornariam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta, que, após
sofrerem distorções, passavam a ser relacionados com experiências recentes, análogas às
antigas. Na retomada dessa questão, a voz passa a ser atribuída à consciência, como a voz do
Pai, o que tem relação com os pressupostos do fundamento do laço social
35
. Freud,
ressaltando o aspecto narcísico dessa defesa, refere-se à instância do ideal do eu, função que
será posteriormente, em “O ego e o id”, atribuída ao supereu. Ao final do comentário sobre a
paranóia, Freud anuncia a possibilidade de estabilização através da alucinação, tese que
continuará sustentando na segunda tópica. Destacamos aqui a dimensão real do objeto voz,
pois este foi o objeto tratado pelo sujeito do Caso C., o que, supomos, contribuiu para a
estabilização da suplência
36
.
Quanto ao investimento libidinal, Freud (1917[1916]c/1980, p.491) assinala que a
demência precoce desliga a libido dos objetos e bloqueia seu retorno a eles, transformando-se
em libido narcísica.
À luz da segunda tópica, Freud (1924a[1923]/1980) destaca, inicialmente, a etiologia
comum entre neurose e psicose: a frustração externa em função da não realização de um dos
desejos infantis, profundamente enraizados na organização filogeneticamente determinada.
Em seguida, o autor aponta a distinção: o efeito patogênico dependerá de o eu ceder às
exigências do isso ou conseguir silenciá-lo, mantendo-se vinculado à realidade (p.190-91). No
caso da psicose, o eu, cedendo ao isso, pode manifestar graus variados de afastamento da
realidade:
“Na amência de Meynert – uma confusão alucinatória aguda que constitui talvez a forma mais
extrema e notável de psicose o mundo exterior não é percebido de modo algum ou a
35
Trata-se aqui de um ponto nodal da teoria psicanalítica, tal como concebido em “Totem e tabu”, mas
antecipado nas cartas a Fliess, em que Freud distinguiu neurose e psicose tomando como paradigma a crença ou
a descrença na auto-recriminação devido à culpa pelo assassinato do
pai primevo. À luz da dualidade pulsão de
vida/pulsão de morte, esses pressupostos foram retomados, dentre outros trabalhos, em “O ego e o id”, em que
Freud (1923b/1980) comenta os efeitos devastadores da voz insensata do supereu na neurose e na psicose.
36
O Caso C. será abordado na segunda parte desta tese.
108
percepção dele não possui qualquer efeito (p.190-91). [...] As esquizofrenias inclinam-se a
acabar em um estado de hebetude afetiva com perda de toda participação no mundo externo”
(p.191).
Tal referência aos graus de afastamento é relevante para nossa pesquisa, pois os casos
clínicos abordados são de sujeitos esquizofrênicos. Um deles, o do Caso C., tentava responder
à questão de como negociar para não ceder à inércia; o outro, o do Caso S., esteve às voltas
com a questão de como obter algum rendimento pela via do trabalho. Destacamos, nessa
passagem, a inclinação à retirada do investimento dos objetos. Como veremos, a resposta à
questão relativa a essa inclinação – o sujeito esquizofrênico desinveste ou não os objetos? – só
pode ser dada caso a caso.
A frustração, como fator etiológico, pode-se originar também na instância do supereu,
quando este assume as exigências do mundo externo, o que dificulta ainda mais a resolução
do conflito (FREUD, 1924a[1923]/1980, p.192). O supereu é o representante tanto do mundo
externo quanto do isso, e sua origem remonta às primeiras identificações resultantes do Édipo.
Nesse processo de identificação, a relação com os objetos foi dessexualizada, e é possível que
a desfusão pulsional daí resultante intensifique as exigências quanto à realização do modelo
ideal para o isso e para o eu (FREUD, 1924b/1980, p.208). Notamos que Freud põe o acento
no conflito entre as instâncias como o que pode desencadear uma neurose ou uma psicose,
mas mantém a distinção etiológica segundo as modalidades de defesa do eu, que busca
especificar.
Embora tenha-se referido à psicose, Freud mantém, nesse momento de sua elaboração,
a distinção estabelecida entre paranóia e esquizofrenia. Consideramos importante retomá-la,
dado as nuances teóricas e os casos clínicos aqui comentados. Como vimos, Freud
(1914b/1980) apontou que, na esquizofrenia, após o desligamento libidinal dos objetos, o
sujeito não os substitui, mas passa a investir o eu, restabelecendo um modo de satisfação auto-
erótico. Nessa afecção, o autor destacou um modo típico de tratar as palavras, ausente na
neurose. É o que passamos a examinar.
3- O estatuto das palavras na esquizofrenia
Em “O inconsciente”, Freud (1915c/1980), considerando os mecanismos da linguagem
na passagem entre o inconsciente e o pré-consciente, investiga o significado e a gênese da
formação das palavras no uso que lhes os esquizofrênicos. Toma esses casos como
contraponto aos de histeria, em que opera o recalque.
109
Nesse artigo, considera as observações clínicas de Victor Tausk, com as quais
concorda. Tausk relatou, dentre outros, o caso de uma paciente que, após uma discussão
amorosa, passou a se queixar de que seus olhos “estavam tortos e por isso passara a ver o
mundo com olhos diferentes” (p.226). A paciente atribui tal mudança à ação do amante, a
quem chama de
entortador de olhos
37
. Freud (1915c/1980) designou por fala hipocondríaca
ou fala do órgão a esse uso da linguagem, que é “dominado pelo elemento que possui uma
inervação do corpo (ou, antes, a sensação dela)” (p.227). Notamos, aqui, que a expressão
verbal utiliza um modo de funcionar do corpo para descrever, literalmente, sem mediação
simbólica, a experiência do sujeito.
Pontuando a diferença entre histeria e esquizofrenia, Freud (1915c/1980) assinala que,
se a paciente fosse uma histérica, teria, de fato, entortado convulsivamente os olhos, o que
implicaria na substituição, pela via metafórica, de uma representação por outra, como ocorre
na formação de sintomas.
Relacionando o fenômeno da
fala do órgãocom dados clínicos da monografia de
Bleuler (1911/1988) sobre a esquizofrenia, Freud (1915c/1980) refere-se à transferência
integral de catexia de uma representação para outra, o que indica um modo de funcionamento
característico do processo primário, que busca a via da descarga. Nesse momento, o autor
supõe uma analogia entre esse modo de operar com as palavras e o que se passa no sonho, em
que as imagens também se acoplam por condensação ou por deslocamento. No entanto, como
veremos, não se trata aqui de substituição metafórica. Considerando a estranheza desse
processo, em que “predominância do que tem a ver com as palavras sobre o que tem que
ver com as coisas” (p.229), Freud afirma:
“O que dita a substituição não é a semelhança entre as coisas denotadas, mas a uniformidade
das palavras empregadas para expressá-las. Onde as duas – palavras e coisas – não coincidem,
a formação de substitutos na esquizofrenia diverge do que ocorre nas neuroses de
transferência” (p.229).
Nota-se que não se trata de metáfora, mas da própria representação de palavra,
prevalecendo sua imagem acústica em relação à conexão dessa imagem com a imagem visual
da representação de coisa
38
.
37
Quinet (2003), comentando essa passagem, afirma que se isso “se passasse com um falante da língua
portuguesa, sua queixa poderia ser assim expressa: ‘Ele me virou a cabeça’” (p.114).
38
Em “O Inconsciente” (1915c/1980, p.239), um esclarecimento do editor James Strachey sobre a mudança
de terminologia empregada por Freud quanto às formas de representação: em “As afasias”, denomina
‘representação de objeto’ o que em “O inconsciente” designou como ‘representação de coisa’; ao passo que, em
“O inconsciente”, ‘representação do objeto’ denota um complexo formado pela ‘representação da coisa’ e pela
‘representação do objeto’ combinadas — um complexo que não recebeu nome algum em sua monografia.
110
Diagrama psicológico de uma representação de palavra
39
Considerando o diagrama, Freud (1915c/1980, p.244) destaca que a representação de
palavra está ligada à representação de objeto apenas por sua imagem sonora, e que, do mesmo
modo que a imagem sonora representa a palavra, o objeto é representado pela imagem visual.
No caso da fala de órgão, a ruptura se dá entre a representação de objeto e a representação de
palavra.
Freud (1915c/1980, p.230) distingue a representação consciente, que articula a
representação de coisa (sachvorstellung)
40
com a representação de palavra
(wortvorstellung)
, da representação inconsciente, que se restringe à representação de coisa
41
.
Uma vez que, na esquizofrenia, encontramos a representação de palavra desligada da
representação de coisa, essa distinção interessa à clínica, não apenas no que diz respeito ao
diagnóstico diferencial entre neurose e psicose, mas no que concerne à direção do tratamento:
trata-se aí de se fazer destinatário da produção do sujeito sem introduzir equívocos nas
intervenções.
Quanto à neurose, a hipótese freudiana é que o recalque nega a tradução em palavras
de uma representação de coisa, que permanece no inconsciente. Para esclarecer o que se passa
na esquizofrenia, Freud recorre aos processos do pensamento, que se tornam conscientes
através de sua ligação com a representação de palavras, tese discutida em “A interpretação
dos sonhos”. No entanto, isso não responde à sua questão, como ele próprio afirma, pois a
39
Trata-se de uma demonstração gráfica, publicada em “As afasias”, e reproduzida no artigo “O inconsciente
(1915/1980, p.244).
40
Optamos pelo uso do termo representação em lugar de apresentação, logo, nos referiremos à representação de
coisa
(sachvorstellung) e representação de palavra (wortvorstellung).
41
Garcia-Roza, baseando-se em “As afasias”, afirma: “O termo representação-objeto não designa o referente ou
a coisa (da qual ele retiraria sua significação), mas, na sua relação com a representação-palavra, designa o
significado. A significação não está na coisa, também não está em cada imagem (visual, tátil, acústica, etc.)
como se cada uma delas representasse um elemento da coisa, ela resulta da associação desses vários registros
pelos quais se dá a representação” (GARCIA-ROZA, 1998, p. 48).
111
representação de objeto não se torna consciente a partir de seus próprios resíduos de
percepção. Garcia-Roza (1998) esclarece:
“Se é pela sua articulação com a representação-objeto que a representação-palavra adquire sua
significação (ou denotação), é também pela sua articulação com a representação-palavra que o
objeto ganha identidade e que é possível uma implicação do conceito. Como não conceito
sem significação, assim como não significação sem palavra, não pensamento anterior às
palavras. A linguagem está presente desde o começo” (GARCIA-ROZA, 1998, p.49).
Continuando sua investigação, Freud (1915c/1980, p.231-32) questiona-se quanto à
causa da prevalência da representação de palavra na esquizofrenia. Refutando a hipótese de
que estaria em jogo um efeito do recalque operação que, como ocorre nas neuroses de
transferência, visa a manter a coisa à distância – o autor sustenta tratar-se de uma tentativa de
recuperação ou de cura que tão manifestamente domina o quadro clínico da esquizofrenia.
Freud (1915c/1980) afirma que tais tentativas “são dirigidas para a recuperação do
objeto perdido” através de sua parte verbal (p.232). Esse recurso, que conduz o sujeito a se
contentar com a representação de palavra, negligenciando a articulação entre a representação
de palavra e a representação de coisa, pode revelar-se na alucinação.
Em “A interpretação dos sonhos”, Freud (1900/1980, p.642), partindo do critério da
indicação de realidade, apresentado no “Projeto para uma psicologia científica”
(1950[1895]/1980, p.433), destacou a incidência do recalque na passagem do processo
primário ao secundário, demarcando a distinção entre atividade consciente e inconsciente.
Freud ressalta, nessa passagem, que, quando a operação do recalque, que transforma o afeto
do prazer em desprazer, não ocorre, ou quando as catexias que mantêm o recalque são
retiradas, sobrevém “a revivificação alucinatória da identidade perceptiva desejada” (p.643).
Isso indica que o aparelho psíquico tende a alucinar as experiências, a menos que a defesa
esteja operando, o que requer a fixação correspondente ao recalque primário. Como
contrapartida, temos a alucinação como fenômeno clínico do retorno do traço mnêmico ‘fora’
do recalque, indicando que as funções do eu foram afetadas nesse processo de
reconhecimento do objeto.
Ainda buscando uma explicação para a prevalência da representação de palavra, Freud
interroga-se sobre como se articulariam os processos de pensamento do esquizofrênico.
Respondendo a essa questão, afirma que o esquizofrênico trata as coisas concretas como se
fossem abstratas (1915c/1980, p.233).
No “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”, Freud (1917[1915a]/1980)
retoma a distinção, comentada em “O inconsciente”, entre a regressão nos sonhos e a que
ocorre na alucinação esquizofrênica, concluindo:
112
“É nesse sentido que a diferença essencial entre a elaboração de sonhos e a esquizofrenia se
torna clara. Na última, o que se torna objeto da modificação pelo processo primário são as
próprias palavras nas quais o pensamento pré-consciente foi expresso; nos sonhos, o que está
sujeito a essa modificação não são as palavras, mas a representação de coisa à qual as palavras
foram levadas de volta Nos sonhos uma regressão topográfica; na esquizofrenia, não. Nos
sonhos existe livre comunicação entre catexias da palavra (Pcs.) e catexias da coisa (Ics.),
enquanto é uma característica da esquizofrenia que essa comunicação seja interrompida”
(p.260-261).
Inferimos da formulação freudiana que essa particularidade no uso da linguagem pelo
esquizofrênico diz respeito ao encadeamento simbólico. Nos sonhos dos neuróticos, o
recalque opera através da fixação do gozo e da perda de um representante da representação,
que passa a ser substituído por outro. A substituição redobra a não correspondência entre
palavras e coisas, possibilitando os equívocos de linguagem nas formações do inconsciente,
apreendidos sob a forma de enunciação. Por outro lado, na esquizofrenia, a ruptura entre a
representação de palavra e a representação de coisa indica um modo de funcionamento do
inconsciente, ‘fora’ do recalque.
Na esquizofrenia, trata-se de uma ruptura na ligação entre a representação de palavra e
a representação de coisa. no sonho, é a representação de coisa, isto é, as imagens acústicas
e visuais, que estaria sujeita à mudança topográfica do inconsciente para o consciente, cujo
material estaria submetido ao recalque.
Como na esquizofrenia o recalque não opera como tal, a alucinação poderia ser uma
alternativa contrária à dispersão, ou seja, uma tentativa de fixar algum retorno do
investimento libidinal no objeto. Tratar-se-ia, portanto, de uma saída em direção ao laço
social possível, na qual o sujeito, através de uma construção delirante, pode vir a atar a
dispersão, localizando uma alteridade.
A clínica nos revela, no entanto, que essa peculiaridade da linguagem do
esquizofrênico pode não se manifestar, ou pode fazê-lo de forma discreta, indicando que nem
toda a linguagem do esquizofrênico funciona sob a prevalência da representação de palavra
em relação à ligação desta à representação de coisa. Como veremos ao comentar o Caso C., na
segunda parte da tese, o sujeito proferiu o neologismo matueiro algumas vezes. Certo dia, o
analisando enumerou: matueiro, matutando, bicho do mato, mato. Aqui, a homofonia é mais
relevante do que a relação de significação entre os elementos. Nesse caso de esquizofrenia, o
sujeito, paralelamente à utilização do neologismo, fez uso de metáforas no trabalho que
realiza com letras de músicas, o que retomaremos na discussão do caso.
Como vimos, a representação de palavra pode ser o recurso empregado por um ser
falante na tentativa de, pela via da alucinação, recuperar o objeto perdido, o que corresponde,
113
na linguagem freudiana, à tentativa de cura. Notamos aqui a analogia que Freud estabelece
entre a fantasia e o delírio, o que faz da localização do objeto perdido e da fixação da libido
através de uma representação o ponto nodal do segundo. Freud refere-se a um processo de
construção que veio a se tornar o ponto de partida na concepção de uma clínica da suplência
na psicose.
4- Construção: alucinação e delírio como tentativa de cura
Freud (1911b/1980), ao transformar as memórias de Schreber em um caso clínico, cita
um episódio de Fausto, de Goethe. Nele, o coro dos Espíritos convoca a personagem para
construir novamente o mundo após tê-lo destruído com suas
maldições que o liberam do
mundo
. Esse episódio é tomado por analogia com a construção do delírio na paranóia, uma
tentativa de construir novamente o mundo após o desencadeamento, para nele poder viver: “A
formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa
de restabelecimento, um processo de reconstrução” (p.94).
Reconhecemos aqui os dois tempos do delírio. O primeiro, o momento de
desligamento da libido, seria, segundo Freud, equivalente ao do recalque. Ele “consiste num
desligamento da libido em relação às pessoas e coisas que foram anteriormente amadas”
(p.95). O segundo, o momento de reconstrução, através de novo investimento, “desfaz o
trabalho da repressão [recalque] e traz de volta novamente a libido para as pessoas que ela
havia abandonado” (p.95). Embora reconhecendo a função estabilizadora de alguns delírios,
Freud, desde o primeiro momento, mostrou-se reservado quanto ao futuro de uma solução
delirante que não se apóia na Lei compartilhada do Édipo. No entanto, destacamos que o
cerne da questão aqui é que a montagem do delírio visa a localizar o objeto cujo estatuto é
real, pois, “internamente abolido, este retorna desde fora” (p.95).
A clínica da psicose revela que, após um desencadeamento, o sujeito se dedica a um
trabalho na tentativa de constituir um lugar cujas fronteiras e possibilidades são delimitadas
com marcas singulares. Esse trabalho, que Freud designou como de restituição do eu, pode-se
constituir através de um trabalho com a linguagem que, na esquizofrenia, pode evidenciar a
prevalência da representação de palavra em relação à representação de coisa, uma tentativa
de recuperação do objeto perdido (FREUD, 1915c/1980, p.232).
Comparando, mais uma vez, a solução neurótica com a psicótica, Freud destaca o
quanto a primeira implica uma perda localizada da realidade, enquanto a segunda tenta
substituir essa realidade:
114
“Dificilmente se pode duvidar que o mundo da fantasia desempenhe o mesmo papel na
psicose, e de que aí também ele seja o depósito do qual derivam os materiais ou o padrão para
construir a nova realidade. Ao passo que o novo e imaginário mundo externo de uma psicose
tenta colocar-se no lugar da realidade, o da neurose, pelo contrário, está apto, como o
brinquedo das crianças, a ligar-se a um fragmento um fragmento diferente daquele contra o
qual tem de defender-se e emprestar a esse fragmento uma importância especial e um
significado secreto que nós (nem sempre de modo inteiramente apropriado) chamamos de
simbólico
” (FREUD, 1924d/1980, p.234, grifo nosso).
Freud (1940[1938]/1980) afirma que a clínica permite dizer que “o delírio existiria
muito tempo antes de sua irrupção” (p.232). Logo, o desencadeamento psicótico dependerá da
correlação de forças entre reconhecimento e negação da realidade, revelando um modo de
funcionamento que já existia. Freud ilustrou esse argumento com a analogia entre a divisão do
eu e as linhas de clivagem de um cristal:
“Se atirarmos ao chão o cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz
segundo linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam
predeterminados pela estrutura do cristal. Os doentes mentais são estruturas divididas e
partidas do mesmo tipo” (FREUD, 1933[1932a]/1980, p.77).
Freud (1937b/1980) comenta que o assentimento à construção que ocorre na análise
com neuróticos pode ser atestado pela convicção do analisando ao responder com
recordações vivas, não do evento, mas de detalhes a ele relacionados. O autor aponta que
essas lembranças seriam o produto da negociação de um conflito psíquico. Neste último, a
revivescência dessas lembranças visa a conciliar o impulso ascendente do recalcado e a
resistência, deslocando os traços de memória despertados para objetos adjacentes de menor
significação. Quanto a esse processo, o autor destaca certa analogia entre as recordações vivas
e as alucinações, diferenciando-as pela crença em sua presença concreta que essas últimas
afirmam. Isso o instiga a esclarecer como tudo se produz. Desenvolvendo essa questão, Freud
(1937b/1980) supõe que uma característica geral das alucinações, que não se manifesta apenas
na psicose, é que,
“[...] nelas, algo que foi experimentado na infância e depois esquecido retorna algo que a
criança viu ou ouviu numa época em que ainda mal podia falar e que agora força o seu
caminho à consciência, provavelmente deformado e deslocado, devido à operação de forças
que se opõem a esse retorno” (p.302).
Assinalamos, nessa passagem, o destaque dado à constituição da alucinação como uma
forma de construção que liga elementos díspares como traços de memória do objeto, e a
censura que limita seu desvelamento. Indica-se, assim, que todo ser falante, por sua inscrição
na linguagem, terá de construir alguma modalidade de resposta na tentativa de articular a
115
libido com os limites de sua satisfação. Esse trabalho de restituição pode surgir de modo
espontâneo, como podemos notar nas memórias de Schreber, em que ele próprio comenta,
passo a passo, sua construção
auto-terapêutica.
Em relação à recuperação desse fragmento perdido, Freud (1915c/1980), no artigo “O
inconsciente”, ao abordar a prevalência da representação de palavra em relação à
representação de coisa na esquizofrenia, refere-se à tentativa de recuperação do objeto
perdido, das Ding. Aqui, o delírio é uma tentativa de incluir esse fragmento que retornou sob
a forma de alucinação.
Em “Construções em análise”, Freud (1937b/1980) interroga-se sobre a possível
analogia entre o processo dinâmico do delírio e o que se passa no sonho, que, deformando seu
conteúdo latente, encontra, no afastamento da realidade, uma alavanca para realizar o impulso
recalcado. Desenvolvendo o argumento de que fragmento de verdade histórica no delírio,
cuja certeza deriva justamente desses impulsos infantis, tal como a força motivadora dos
sonhos, Freud propõe uma direção para o trabalho terapêutico:
“[...] reconhecimento de seu núcleo de verdade [...] libertar o fragmento de verdade histórica
de suas deformações e ligações com o dia presente real [...] conduzi-lo de volta para o ponto
do passado a que pertence” (p.303).
Em função da hipótese de que haveria um fragmento de verdade histórica tanto no
delírio dos psicóticos quanto nos sintomas dos neuróticos, isto é, de que “ambos estão
sofrendo de suas próprias reminiscências” (p.303-04), Freud propõe a mesma orientação de
trabalho. Ela visaria a interpretar esse
fragmento da experiência perdida. No entanto, ele
admite que isso poderia trazer conhecimento para o analista, mas nenhum sucesso terapêutico.
Assim, Freud se mostra reservado, sublinhando a inadequação do método psicanalítico ao
tratamento da psicose, questão à qual já havia se referido antes.
A inacessibilidade do sujeito foi, inicialmente, um dos motivos para Freud
(1913b/1980) ter contra-indicado o método psicanalítico no tratamento de casos de
esquizofrenia. Nesses casos, “por não poder cumprir a promessa de cura” ao paciente, o mais
indicado era não tomá-lo em tratamento (p.165). Para evitar equívocos de diagnóstico, Freud
sugeria um período de tratamento experimental, antes do início da análise.
Considerando os obstáculos que podem ocorrer na condução da análise, Freud
(1914b/1980, p.90) referiu-se a dificuldades na transferência, no caso dos parafrênicos, por
eles apresentarem megalomania e desvios do interesse do mundo externo. Em primeiro lugar,
Freud relata ter percebido a inacessibilidade aos esforços terapêuticos devido à retirada da
catexia libidinal dos objetos. Essa observação é retomada em nossa pesquisa com a pergunta:
116
se o endereçamento na transferência é uma das possibilidades de laço social, poderia o sujeito
esquizofrênico estar no laço social? Retomaremos a questão após a apresentação dos casos C.
e S., respondendo-a com elementos clínicos.
Com relação à contra-indicação da análise para psicóticos, Freud (1912) considerou
não só o desinvestimento nos objetos, mas também a erotomania, um tipo de investimento que
coloca um obstáculo à utilização do método psicanalítico:
“Onde a capacidade de transferência tornou-se limitada a uma transferência negativa, como é
o caso dos paranóicos, deixa de haver qualquer possibilidade de influência ou cura” (FREUD,
1912/1980, p.142).
Paralelamente à contra-indicação, Freud também se refere à possibilidade de
tratamento psicanalítico em caso de psicose, desde que houvesse uma mudança de método.
Com efeito, em “Construções em análise”, comenta que o trabalho com psicóticos pode trazer
conhecimento, mesmo não sendo coroado de sucesso terapêutico (FREUD, 1937b/1980,
p.303). No “Esboço de psicanálise” (1940[1938a]/1980, p.200), o autor retoma uma idéia
comunicada em “Sobre a psicoterapia” (1905b/1980, p.274): a possibilidade da extensão do
tratamento psicanalítico aos psicóticos, desde que se encontrasse um método mais satisfatório.
Inferimos, pelos obstáculos por ele levantados, que tais mudanças estariam relacionadas com
o manejo da transferência – manejá-la em caso de erotomania, por exemplo – e com a
interpretação, dado o estatuto não metafórico da linguagem.
Como vimos, Freud introduziu a novidade de considerar o delírio e a alucinação como
um trabalho do sujeito visando a uma elaboração do conflito que teria levado ao
desencadeamento. A construção do delírio é uma tentativa de cura que pode funcionar ou não
como um substituto para a perda da realidade. Essa tentativa, no entanto, pode revelar-se
precária ou arriscada em termos de passagem ao ato, o que pode ser considerado caso a
caso. Aliás, por essa solução, que pode ser espontânea, por vezes não levar à estabilização, é
que se justifica o trabalho orientado pela psicanálise.
Podemos dizer que, por um lado, Freud mostrou a dificuldade de compatibilizar o
método psicanalítico com a resposta psicótica à realidade; mas, por outro, deu uma pista da
saída quando elevou o delírio à dignidade de trabalho subjetivo, e ao afirmar que a relação
do inconsciente com a realidade jamais foi fechada, estando aberta a novas percepções
(FREUD, 1924d/1980, p.232). Encontramos o ponto de partida para uma clínica
psicanalítica das psicoses, desde que encontremos um modo de manejar na transferência os
citados impasses.
117
2.3.2. Da metáfora delirante ao sinthoma
Como vimos, Lacan elaborou dois axiomas. O primeiro tem como eixo o Nome-do-
Pai
, que, como metáfora paterna, tem uma função estruturante na constituição do sujeito. O
segundo axioma, respondendo a impasses do primeiro, propõe a pluralização do ponto de
basta, sob a forma de
Nomes-do-Pai, cujo correlato é o sinthoma. A cada um desses axiomas
corresponde um modo de articular a clínica da psicose e o laço social.
1- Sobre a foraclusão do Nome-do-pai
Lacan, em “O Seminário, livro 3: as psicoses”, propõe um retorno aos postulados
elaborados por Freud ao longo de sua obra, articulando-os com a temática das psicoses, e
contrapondo-se aos desvios seguidos por analistas que, nela, enfatizaram a dimensão do
imaginário. Para tal, Lacan, cotejando a leitura do artigo freudiano “Notas psicanalíticas sobre
um relato autobiográfico de um caso de paranóia” (1911b/1980) com as memórias de
Schreber, que lhe serviram de base, destaca que a psicose é uma questão a ser abordada pelo
simbólico:
“A questão não é tanto a de saber por que o inconsciente que está aí, articulado à flor da terra,
permanece excluído para o sujeito, não-assumido mas porque ele aparece no real” (1955-
56/1988, p.20).
A resposta a essa questão é que, na psicose, não Bejahung (afirmação) ‘por trás’ do
processo de verbalização: Verwerfung. Como não houve simbolização, o significante
retorna no real. Lacan, em seu retorno a Freud, privilegiou caminhos, tomando decisões que
nem sempre coincidem com as do inventor da psicanálise. Esse é o caso em relação à
modalidade de defesa que opera na psicose: Lacan (1955-56/1988) escolheu a Verwerfung e a
designou como foraclusão (p.178). A densidade desse conceito é dada pelo referencial da
estrutura presença ou ausência da simbolização primordial, em termos de recalque primário
e pela referência a uma decisão advinda do juízo de atribuição e do juízo de existência, o
que é irrevogável e prescritível no tempo.
118
Lacan (1955-56/1988) constrói a noção de foraclusão a partir do mecanismo da
rejeição tal como descrito por Freud “aquilo que foi internamente abolido retorna desde
fora” (1911b/1980, p.95) – distinguindo-o da projeção no registro do recalque. Inova ao
localizar a
foraclusão no momento de simbolização primordial, baseando-se, para tanto, no
artigo “A Negativa” (FREUD, 1925c/1980). Tal articulação não se encontra assim formulada
no texto freudiano, embora Freud tenha-se referido à significação
a posteriori da perda do
objeto a partir da operação de castração (FREUD, 1923a/1980, p.182-183).
Com esse passo, Lacan circunscreve a especificidade da psicose como não realização
de uma operação simbólica, ausência irreversível. É o que o termo
foraclusão indica no
âmbito jurídico: a expiração de um prazo em função da qual não se pode mais recorrer em um
processo. Assim, Lacan precisa a formulação freudiana ao especificar que não se trata de
retorno, termo mais apropriado para o recalcado, mas de “reaparecimento, manifestação no
real do que não foi simbolizado” (LACAN, 1955-56/1988, p.98). Distinguindo dois campos
intransponíveis, real e simbólico, e duas operações, recalque e foraclusão, Lacan estabelece
uma diferença de estrutura entre neurose e psicose.
Na neurose, um significante, o Nome-do-Pai, articula-se à simbolização primordial,
enquanto na psicose o que se realiza é a foraclusão desse significante. Segundo Lacan, “pode
acontecer que alguma coisa de primordial quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização,
e seja, não recalcado, mas rejeitado” (1955-56/1988, p.97). O autor destaca:
“Ao nível dessa Bejahung pura, primitiva, que pode realizar-se ou não, estabelece-se uma
primeira dicotomia - o que teria sido submetido à Bejahung, a simbolização primitiva, terá
diversos destinos, o que cai sob o golpe da Verwerfung primitiva terá um outro [...] Há,
portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou Verwerfung” (p.98).
A ausência dessa operação simbólica é equivalente à falta de uma operação, haja vista
a escolha da neurose, referida por Freud, e a decisão que implica o juízo de existência, cuja
negação Lacan nomeou foraclusão. A falta dessa operação significante, cuja significância
viria ordenar a cadeia significante (p.229), tem efeitos na linguagem, com os neologismos, as
mensagens interrompidas, as alucinações auditivas verbais e os delírios.
Por considerar a escolha entre Bejahung e Verwerfung como o que define de modo
irreversível a estrutura subjetiva, ao tomar como paradigma o Édipo, Lacan situa a psicose,
nesse primeiro axioma de seu ensino, como déficit, falha, acidente no registro simbólico
(1957-58b/1998, p.582).
Não encontramos essa concepção em Freud, embora ele também tenha tomado a
articulação entre o complexo de Édipo e a castração simbólica como paradigma do
119
funcionamento psíquico. Acreditamos que cada discurso emerge num dado contexto histórico,
e que Lacan, naquele momento, estabelecia um diálogo com outros de seu tempo, quando ele
fazia questão de dar primazia ao simbólico. Sobre essa questão, é pertinente o comentário de
Vidal (2005):
“Lacan funda com esse termo um conceito que não é mecanismo, mas posição na linguagem
da ordem de um ‘não querer saber nada disso’. A foraclusão é, então, mais do que uma
tradução do termo Verwerfung, é a rejeição de certos significantes que ficarão para sempre
‘fora’ do inconsciente. Consiste, pois, numa posição ativa do sujeito face ao insuportável,
um dos nomes do impossível. A foraclusão não se reduz ao ato de rejeição, mas também a
seu efeito, ao modo de aparição do real. Fala daquilo que, excluído do simbólico,
(re)aparece a partir do real” (p.152).
Em função dessa posição, Lacan refere-se à psicose como o resultando de uma falha
na simbolização; uma falha, portanto, em relação à Lei da fala, Lei que, ancorada no Édipo,
regula a sexualidade humana. Em decorrência dessa falha, o fenômeno de linguagem vai-se
apresentar para o sujeito psicótico como algo que lhe concerne (1955-56/1988, p.91), mesmo
que não acredite nele.
No tocante à alucinação auditiva verbal, Lacan (1955-56/1988) afirma que, quando
não estrada principal, isto é, quando não o significante que ordena a cadeia, “isso me
põe a falar sozinho à beira da estrada principal” (p.330). Isso significa que talvez “a função
das alucinações auditivas verbais sejam letreiros à beira de seu pequeno caminho” (p.331).
Reconhecemos, nesse ponto, um desdobramento do que Freud formulou sobre a alucinação, a
saber, que ela se constitui a partir de traços de memória da infância que forçam caminho à
consciência (1937b/1980, p.302).
Lacan (1957-58b/1998) distingue os fenômenos de linguagem em dois tipos: os
fenômenos de código e os de mensagem. Dentre os primeiros, encontramos neologismos,
alucinações, fenômenos intuitivos; dentre os fenômenos do segundo tipo, as mensagens
interrompidas. Lacan esclarece que, nestas últimas, “as frases se interrompem no ponto em
que os termos, no código, indicam a posição do sujeito a partir da própria mensagem e que
são designados por ‘shifters’” (p.546).
Como veremos ao comentar o Caso C., na segunda parte da tese, o analisando refere,
sob transferência, ouvir a voz de um espírito santo. Essa alucinação auditiva verbal se
apresenta sob a forma de mensagens interrompidas, que o analisando complementa, buscando
dar-lhes um sentido. É o que podemos notar nestas frases:
- Se não fosse aquele valente corria o risco de virar mendigo.
- O príncipe fez assim... fiz bem em levar os alimentos no Centro Espírita.
120
- O artista fez assim... estou no caminho certo, quando penso no que meu irmão fez...
- O bonito fez assim... estou lutando pra viver.
- Ele continua me edificando... isso é para dizer que meu irmão cometeu crime....
O uso que esse analisando faz da alucinação vem possibilitando um trabalho que
produz efeitos de subjetivação, como o de elaborar o processo de ‘luto’ em relação à perda de
um irmão com quem tinha uma relação do tipo duplo especular.
Na psicose, o narcisismo pode revelar-se tanto nos fenômenos de corpo como no duplo
especular, em função de uma regressão tópica ao estádio do espelho. Mas isso não desvela o
modo de funcionamento subjetivo, isto é, não revela o processo dinâmico no qual o sujeito
vem tentando elaborar um conflito (FREUD, 1924d/1980, p.232). Assim, na impossibilidade
de realização do significante Nome-do-Pai ao nível simbólico, resta ao sujeito a imagem a que
se reduz a função paterna:
“É uma imagem que não se inscreve em nenhuma dialética triangular, mas cuja função de
modelo, de alienação especular, ainda assim ao sujeito um ponto de enganchamento e lhe
permite assim apreender-se no plano imaginário” (LACAN, 1955-56/1988, p.233).
Interessa-nos assinalar, nessa passagem, que a identificação imaginária pode funcionar
como uma suplência que favorece a estabilização do sujeito. Nos relatos clínicos, essa
identificação imaginária pode ser referida a ídolos e a outros personagens que o sujeito por
vezes erige como modelo, o que funciona fazendo uma contenção do gozo no corpo.
1.1. Da foraclusão à metáfora delirante
Buscando evidenciar a diferença estrutural entre neurose e psicose, Lacan (1957-
58b/1998), no escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”,
retoma a tese da metáfora paterna desenvolvida em “O Seminário, livro 5: As formações do
inconsciente”. Nela, Lacan (1957-58a/1999), formalizando o Édipo, propõe um matema para
demonstrar a operação simbólica na qual o significante Nome-do-Pai incide substituindo o
significante enigmático do desejo da mãe. Essa operação, que atesta a simbolização na
neurose, revela-se como ausência na psicose:
“É num acidente desse registro [simbólico] e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do
Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que
confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose” (LACAN,
1957-58b/1998, p.582).
121
Aprofundando o corte entre neurose e psicose em relação à castração simbólica, Vidal
(2005) retoma o termo
Verwerfung tal como abordado por Lacan no escrito “Resposta ao
comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud”. Afirma que a Verwerfung
traduzida como retranchement, cerceamento, é o que se opõe à Bejahung primária e constitui
como tal o que é expulso” (p.153), apontando a distinção entre a expulsão para fora do eu
(
Ausstossung) e a Verwerfung primitiva quanto à operação de simbolização
42
.
A posição do sujeito na psicose, de
não querer saber nada da castração, marca a
diferença entre o recalque e a foraclusão, remetendo a um enigma: a insondável decisão do
ser na causalidade da loucura (LACAN, 1946/1998, p.179). Essa decisão se revela a
posteriori, quando o que foi rejeitado pode reaparecer no real, inclusive sob a forma de uma
alucinação. Esse é o caso do corte no dedo no caso do
Homem dos Lobos (FREUD,
1918[1914]/1980). Esse
não querer saber nada da castração implica uma posição do sujeito.
A questão da responsabilidade do sujeito resulta do que Lacan aponta como
escolha do ser.
O ponto a destacar aqui é que a clínica da psicose revela que o sujeito, em seu
percurso, reitera sua posição diante da castração, evidenciando que se trata de uma escolha.
Tal posição, definida por Freud (1924d/1980), marca a distinção entre os tipos clínicos em
relação não só à perda da realidade, mas sobretudo ao modo como essa perda é substituída.
Desenvolvendo a tese de que a psicose constitui uma estrutura clínica cuja
especificidade é a
foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, Lacan (1957-58b/1998)
sustenta que, nessa estrutura, a metáfora paterna não se fez, restando um furo correspondente
no lugar da significação fálica.
A foraclusão do Nome-do-Pai não implica necessário desencadeamento psicótico, pois
o sujeito pode funcionar utilizando recursos suplementares: através, por exemplo, de uma
bengala imaginária, antes do desencadeamento; ou de uma identificação do tipo duplo
especular, após o desencadeamento. Essas soluções, que se situam no eixo imaginário (a-a’)
do esquema L, podem, por vezes, evidenciar fenômenos de transitivismo, aliando erotomania
e agressividade. Tais soluções podem deixar de funcionar quando um fator precipitante
42
Vidal propõe uma distinção entre Ausstossung e Verwerfung: “[no escrito de Lacan] em alguns momentos, os
dois termos parecem se aproximar. Enquanto o primeiro (
Ausstossung) opera em consonância com a Bejahung,
produzindo um real que será recortado pelo símbolo como definitivamente perdido, o segundo termo
(
Verwerfung) carece de qualquer relação com o juízo. A Verwerfung determina o que, cerceado na abertura do
ser, não se encontra na história do sujeito, lugar onde o recalcado faz seu retorno. A posição do sujeito assim
definida implica em ‘não querer saber nada no sentido do recalque’, o que equivale a dizer que o cerceado
(
retranché) não constitui um saber inconsciente. O que ocorre com isso que não foi simbolizado? Lacan formula
a operação do seguinte modo: ‘O que não veio à luz no simbólico, aparece no real’ (VIDAL, 2005, p.153).
122
provoca a dissolução do imaginário, momento em que o tripé constituído pelo falo, pela mãe e
pela criança se desfaz.
O que está em jogo é a posição da criança em relação ao Outro, se houve ou não a
operação de simbolização, o que foi formulado por Lacan como metáfora paterna. No caso da
psicose, a criança estaria na posição que, na estrutura, corresponderia, por analogia, ao
primeiro tempo do Édipo. É o que Lacan (1957-58b/1998), referindo-se ao caso Schreber,
afirma: “[...] é por ter que ser o falo que o paciente estará fadado a ser uma mulher” (p.571).
O que teria desestabilizado Schreber?
Seguindo a tese da metáfora paterna e de seu fracasso na psicose, Lacan (1957-
58b/1998) responderá a essa questão afirmando que foi a nomeação de Schreber como
presidente do Tribunal de Apelação de Dresden que, incidindo no lugar de apelo ao Nome-do-
Pai
, precipitou o desencadeamento. Segundo Lacan, esse efeito decorre da estrutura: “Para
que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai, verworfen, foracluído, isto é,
jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito”
(p.584).
Esse apelo ao Nome-do-Pai tem lugar quando o sujeito é chamado a ocupar a função
que corresponderia à função simbólica do pai, isto é, tomar a palavra, realizar a procriação,
assumir uma função para a qual foi nomeado. No caso de Schreber, essa função o coloca
diante da tomada de decisão em relação às leis.
Lacan (1957-58b/1998, p.572) propõe uma correlação entre a posição do sujeito na
estrutura, a fantasia e a montagem do delírio. Schreber, por exemplo, construiu um delírio
após um tempo de negociações, dada a não aceitação das injunções superegóicas. Entre os
dois tempos, o desencadeamento e a constituição do delírio, Lacan refere ter havido um
momento de morte do sujeito.
Em relação à posição do sujeito, Lacan (1957-58b/1998) sublinha que, “na
impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos
homens” (p.572). Essa solução revela o sentido da fantasia que ocorreu a Schreber após a
nomeação para o novo cargo – seria belo ser uma mulher na hora da copulação.
Partindo da tese freudiana da construção do delírio como tentativa de cura, das
articulações desse autor sobre o caso Schreber e de sua própria elaboração do Édipo como
metáfora paterna, Lacan (1957-58b/1998), utilizando o referencial da lingüística e da
antropologia estrutural, formulou a hipótese da metáfora delirante.
Seguindo a tese de Freud (1911b/1980) de que o que foi abolido no simbólico retorna
no real nesse caso, a fantasia que veio a encontrar assento no delírio – Lacan (1957-
123
58b/1998, p.584) reconhece na construção de Schreber, Mulher de Deus, uma metáfora
delirante. Essa metáfora um novo lugar a Schreber, que, com a erotomania divina, institui
Deus como Outro e se coloca como aquele que pode procriar como pai, recobrindo, com o
delírio, a fenda que a frustração teria aberto, expondo a realidade.
Como vimos, Freud (1911b/1980) introduziu uma perspectiva nova ao considerar o
delírio uma tentativa de cura, evidenciando a dimensão de sujeito na psicose. Ao se dedicar à
construção delirante, o sujeito visa à substituição da realidade, o que não se realiza sem
conflito, pois “todo o processo de remodelamento é levado a cabo contra forças que se lhe
opõem violentamente” (FREUD, 1924d/1980, p.232). Lacan, trabalhando na vertente da
estrutura, afirmou que:
“É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, início à
cascata de remanejamento do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário,
até que seja alcançado o nível em que o significante e o significado se estabilizam na metáfora
delirante” (LACAN, 1957-58b/1998, p.584).
Com a construção Mulher de Deus, Schreber supre o buraco no simbólico
correspondente à ausência do Nome–do-Pai. Trata-se, como comenta Freud, de uma solução
assintótica: um dia procriar. Esse delírio seria a solução encontrada pelo sujeito para a fantasia
de feminização
43
.
Com essa metáfora delirante, uma estabilização dos registros da experiência
subjetiva. Com efeito, Schreber escreve suas memórias e faz apelo à Corte Suprema para
retomar o cargo, solicitação que é atendida, permitindo-lhe voltar a exercer sua função
pública.
A metáfora delirante cumpre a função de um ponto de basta (point-de-capiton),
induzindo efeitos de significação que, no entanto, situam-se ‘fora’ da norma fálica, pois trata-
se de uma construção delirante, que não passou pela castração simbólica. Por isso Freud
refere-se ao delírio como uma solução precária, que pode se desfazer, já que as representações
ligadas aos impulsos libidinais não estão fixadas pelo recalque, o que implicaria a castração.
Como vimos, o delírio dá assento ao que retornou no real, ‘fora’ do simbólico.
Em relação ao tratamento da psicose, Lacan se mantém alinhado à posição de Freud,
afirmando, no final do escrito sobre a psicose, que não se trata de superá-lo. Quanto ao
impasse, propõe a foraclusão do Nome-do-Pai como questão preliminar a todo tratamento
43
Ao abordar a questão, Lacan (1972a/1973, p.22), em “L’etourdit”, dirá que se trata de um gozo transsexualista,
como efeito
empuxo-à-mulher da psicose, o que situa em outra perspectiva a hipótese de Freud sobre a paranóia
como defesa contra a homossexualidade.
124
possível da psicose. A questão em jogo nesse momento é: como aplicar um método cuja regra
fundamental é a associação livre, visando a extrair os equívocos da linguagem para desvelar a
fantasia inconsciente, se, na psicose, dado que o recalque não opera, os restos mnêmicos não
respondem do mesmo lugar? Coloca-se, ainda, o problema do manejo da transferência
erotomaníaca, suposta por Freud a partir da relação de Schreber com Flechsig, e reafirmada
por Lacan como um risco de desencadeamento em outros casos de psicose.
Embora, nesse momento de seu ensino, Lacan (1955-56/1988) tenha sugerido o lugar
de
secretário do alienado para o analista, o tratamento psicanalítico da psicose continuou
sendo uma questão não resolvida, à espera, talvez, do que Freud (1940[1938]) formulara: uma
mudança de método.
Nesse contexto, a metáfora delirante é uma modalidade de suplência à
foraclusão do
Nome-do-Pai, logo, um modo de laço social na psicose, tanto pela tentativa de substituição da
perda da realidade, quanto pelo efeito de estabilização dos registros do R, S e I que ela pode
promover. Um limite inerente a essa modalidade de suplência é que nem todo delírio evolui
para uma metáfora delirante, como encontramos na construção de Schreber. Além disso,
certos delírios são devastadores, havendo, inclusive, psicóticos que não mencionam delírios.
Abrimos, aqui, um espaço para situar a noção de suplência
44
. Encontramos o termo
suplência em “O Seminário, livro 4: A relação de objeto”, quando Lacan (1956-57/1995),
referindo-se ao caso Hans, comenta que, na operação de substituição, o cavalo (objeto da
fobia) situa-se na série significante que remete à analogia entre o pai e o totem. Nesse caso,
trata-se da noção de suplência do simbólico pelo imaginário, destacando-se sua função
especial de suprir o significante Nome-do-Pai (p.234). O que se nota no desdobramento do
caso Hans é que, com a intervenção do pai real, a castração pôs fim à fobia, revelando a
função que ela aí vinha suprindo (p.236).
O termo reaparece em “O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente”, quando
Lacan (1957-58a/1999) situa a suplência na psicose. Nessa passagem, o autor refere-se a
Freud, que teria revelado como “o que se articula na psicose serve, justamente, para suprir
essa ausência do ponto organizado, ou seja, dependente da estrutura significante do desejo do
Outro” (p.493). Nesse contexto, a suplência seria o delírio e a alucinação, construção que
responderia ao que provocou o desencadeamento. Trata-se aqui da suplência ao significante
Nome-do-Pai, foracluído do simbólico, o que guarda estrita relação com a formulação sobre a
44
Notamos que os termos suppléance e suppléer, conforme descrito no dicionário Petit Robert (p.2171),
apresentam desdobramentos de sentido equivalentes aos do termo em português. Um dos derivados de
suppléer,
o termo
supplément, tanto apresenta a conotação de complementar o que falta como de suplementar, que
significa ajuntar algo ao que já está completo, no sentido de anexar um suplemento, algo a mais.
125
metáfora paterna. No caso Schreber, o que faz função de suplência é a metáfora delirante
Mulher de Deus.
Reencontramos esse termo, após um grande intervalo, em “O Semínario, livro 20:
Mais, ainda”. Tal intervalo indica que a noção de suplência tem dois tempos, os quais
correspondem aos dois axiomas do ensino de Lacan. Aqui, o termo aplica-se à falta de relação
sexual: “O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor” (LACAN, 1972-
73/1993, p.62).
Nessa segunda formalização, ao comentar os nós, Lacan (1974-75, inédito) indica que
o termo suplência não se aplica apenas ao que vem suprir a falta significante. Até mesmo o
Nome-do-Pai é uma suplência:
“[...] não é porque esta Suplência não seja indispensável que ela não tenha lugar: nosso
Imaginário, nosso Simbólico, nosso Real estão talvez para cada um de nós em estado de
suficiente dissociação para que somente o Nome- do- Pai faça nó por manter tudo isto junto”.
É essa noção de suplência, como o que mantém ligados os três registros, que vem se
articular com a elaboração da noção de sinthoma, apontando para outros modos de amarração
que não apenas através da duplicação do registro do simbólico, conforme atesta o nó de Joyce.
Skriabine (2002), tomando como paradigma o axioma borromeano, afirma:
“O Nome-do-Pai, redutível ao sinthoma inanalisável, puro nome, é o lugar onde se refugia o
gozo que escapa ao deslizamento do significante. Tem a mesma função da metáfora delirante
na psicose, tentativa de cura, diz Freud, pois condensa o gozo para o qual o simbólico não faz
mais barragem” (p.59).
Assim, o autor destaca fazendo referência à proposição de Miller segundo a qual a
metáfora delirante é um dos Nomes-do-Pai que é a metáfora delirante que, como sinthoma,
desvela a função do Nome-do-Pai.
Comentaremos, na segunda parte da tese, o Caso C., cujo sujeito encontrou uma
solução delirante que o estabilizou. A construção operou como resposta ao terror de acabar
em nada, posição a partir da qual o sujeito, diante da inexistência do Outro, apresentava-se
sem qualquer formulação. No entanto, tomando como paradigma a metáfora delirante de
Schreber, interrogamos-nos quanto ao estatuto dessa construção tratar-se-ia de uma
metáfora delirante?
No caso Schreber, a metáfora delirante vem como resposta a uma fantasia, criando um
substituto para a realidade e definindo, não apenas os lugares do sujeito e do Outro, mas
também o modo de funcionamento dessa realidade. Nesse caso, o delírio restabeleceu, de
126
modo imaginário, os lugares e as funções simbólicas, criando, ainda, uma solução para a
fantasia de procriação. Nem toda idéia delirante reconstrói integralmente a dinâmica da
fantasia. Supomos que, no Caso C., o sujeito recriou o Outro, o que fez diferença em seu
percurso, estabilizando os registros de sua experiência subjetiva. No entanto, essa construção
delirante não se apresenta como o único eixo do trabalho ao qual esse sujeito vem se
dedicando. Em seu percurso, se destaca um trabalho com as letras de músicas. A clínica nos
revela que não apenas através de uma metáfora delirante se faz uma suplência.
1.2. Teoria do discurso e laço social na psicose
Como vimos, para Lacan, o discurso é laço social, tese que, articulando significante e
gozo, supõe que os quatro elementos do discurso estejam individualizados. Para tal, a
condição é que tenham ocorrido as operações de alienação e separação do ser em relação ao
campo do Outro.
O que as operações de alienação e separação esclarecem sobre os mecanismos da
psicose? Tais operações, que, como vimos, levam à produção do sujeito dividido pelo
significante a partir do objeto a, por dependerem do recalque, ficam restritas à neurose.
Lacan (1964/1998) refere-se ao lugar que o sujeito débil pode vir a ocupar quando pela
mãe fica reduzido a não ser mais do que o “suporte do seu desejo num termo obscuro, que
introduz na educação do débil a dimensão do psicótico” (p.225). Neste caso, a criança se
coloca na posição de objeto de gozo do Outro, indicando que as operações de alienação e
separação não tiveram lugar.
Nessa passagem, Lacan (1964/1998) introduz o fenômeno da holófrase. Nela, não
intervalo entre S1 e S2. Esses elementos se solidificam. Dito de outro modo, não há, na
alienação, os dois tempos da pulsação do inconsciente, dado pela distância entre S1,
significante fundante do sujeito, e S2, significante do seu ponto de desaparecimento, que
indica o recalque.
Qual seria o destino da operação de alienação na psicose? Segundo Lacan
(1964/1998), seria a holófrase. É o que está em jogo no fenômeno psicossomático, na psicose
que a debilidade pode encobrir, e na paranóia. Nesta última, a solidificação da cadeia
significante “interdita a abertura dialética que se manifesta no fenômeno da crença” (p.265), o
que Freud apontou no fenômeno do Unglaube. Sobre esse fenômeno, Lacan esclarece que não
se trata da ausência de crença, mas da “ausência de um dos termos da crença, do termo em
127
que se designa a divisão do sujeito, [...] do momento no qual seu sentido vai se esvanecer”
(p.225), logo, do momento da divisão subjetiva, justamente desse momento de
fading no qual
incide a castração.
Para precisar e ilustrar essa pulsação, Lacan retoma, em seguida, o jogo do fort-da,
que exprime o movimento de alienação, afirmando que não fort sem da, sem Dasein.
Assinala ser o segundo tempo (S2) que, incidindo sobre o primeiro (S1), engendra o , sujeito
dividido. A falta desse intervalo lança o sujeito em uma repetição indefinida desse
movimento. Por não ter ascendido ao intervalo entre os significantes, o que é possível a
partir da operação da separação, o sujeito permanece retido nas malhas do movimento da
alienação (p.266).
Em outros termos, na psicose, por falta de intervalo entre os significantes, não um
representante da representação. Falta um dos termos da dialética do desejo, S2, como recurso
simbólico no encontro do sujeito com o Outro materno.
Stevens (1987), destacando que, na formulação de Lacan, a separação é um efeito
articulável ao intervalo significante, como falta do Outro, postula que:
“A falta de intervalo entre S1 e S2, a holófrase, significa que o desejo do Outro não
aparecendo na falha, onde seria interrogável, não deixa chance ao sujeito de interrogar,
moldar seu desejo [...]. A partir do momento em que o sujeito ocupa um certo lugar em
relação a essa articulação significante, que esse desejo sem falha do Outro aparece como um
gozo ao qual o sujeito pode se reduzir a ser o objeto, é então sob a forma de uma voz
escutada, tal como um supereu obsceno e feroz fazendo irrupção no real, que ele reencontrará
em um momento essa fantasia – como um desejo não interrogável – do Outro” (p.69).
Seguindo as elaborações de Lacan, destacamos que as operações de alienação e de
separação não são equivalentes na neurose e na psicose, que, na primeira, o significante
possibilita o sentido sob um fundo de não sentido, enquanto, na segunda, teríamos
petrificação do significante unário. Em relação à psicose, Lacan refere-se à holófrase na
paranóia, mas não estende sua formulação à esquizofrenia, o que nos resta como interrogação:
haveria correspondência entre a holófrase e a prevalência da representação de palavra em
relação à representação de coisa tal como descrita por Freud (1915c/1980) a propósito da
esquizofrenia? Embora reconheçamos sua importância, não abordaremos, por ora, a questão.
Maleval (2000b) observa que o estatuto do Outro, como alteridade simbólica, sofreu
uma mudança entre os escritos “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose” e “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. A mudança
atesta a passagem do Outro como significante, cujo lugar coincidia com o Outro da Lei, para
o Outro barrado, como demonstra o matema S (), cuja barra indica a falta, a incompletude
128
do Outro. Tal observação nos interessa, pois os textos de referência do primeiro ensino de
Lacan sobre a psicose datam justamente dessa primeira formulação, período em que o Outro,
, como significante, é também o lugar onde incide o Outro da Lei, ou seja, o Nome-do-Pai.
Maleval destaca que os níveis inferior e superior do grafo do desejo correspondem,
respectivamente, à primeira e à segunda modalidade supracitada de Outro: no primeiro nível,
o Outro prévio, constituído por uma bateria de significantes cuja posição seria de
garantia da
verdade da mensagem
; no segundo, o Outro cuja falta resulta de uma subtração no lugar do
Outro
, o que é indicado por S (). O autor reconhece nesse matema o Nome-do-Pai, uma vez
que
a ordem simbólica é constituída por um furo.
O deslocamento que situa o Outro como inconsistente revela que a hiância é de
estrutura: “Ela não é desestabilizadora em si mesma, ao contrário, a falta-a-ser do sujeito vem
recobrir aquela do Outro quando se produz o processo de alienação-separação” (MALEVAL,
2000b, p.103).
No fio desses argumentos, Maleval (2000b) assinala que uma nova abordagem da
foraclusão do Nome-do-Pai, esboçada por Lacan e desenvolvida por seus alunos, passou, a
partir dos anos sessenta, a enfatizar, não os fenômenos de linguagem, mas a questão da
localização do gozo quando ele não está fixado pelo significante (p.103). Essa mudança lógica
indica a passagem da noção de Outro como lugar do significante para a de Outro barrado, .
Como vimos ao abordar as concepções de sujeito e de objeto em Lacan, a mudança
quanto ao estatuto do Outro pode ser notada quando, em “O Seminário, livro 10: A angústia”,
o autor propõe o esquema da divisão, distinguindo o campo do sujeito e o campo do Outro,
em que demonstra a operação simbólica da castração (1962-63/2005, p.128). A incidência da
castração sobre o Outro e sobre o sujeito tem como conseqüência lógica a produção de um
resto: o objeto
a. Este objeto é o que sobra do lado do sujeito quando de sua entrada no
simbólico.
Em nota de rodapé, anexada ao escrito sobre as psicoses em 1966, Lacan (1957-
58b/1998) localiza o objeto
a no Esquema R, apontando suas conseqüências para o campo da
realidade. Esse campo se estabiliza a partir da extração do objeto e da fantasia. Ela vem
recobrir o vazio correspondente à falta de objeto, articulando dois elementos: sujeito e
objeto a. É o que assinala Lacan:
“[...] é como representante da representação na fantasia, isto é, como sujeito originariamente
recalcado, que o
, do desejo, suporta aqui o campo da realidade, e este se sustenta a partir
da extração do objeto ‘a’ que, no entanto, lhe fornece seu enquadre” (p.559).
129
Tal demonstração revela que o campo da realidade passa a ser concebido como uma
articulação entre significante e gozo, este último barrado pela castração. Neste caso, o
sujeito só aparece como objeto de gozo do Outro na fantasia. Dado que o campo da realidade,
para estar estabilizado, depende da extração do objeto
a, e que, na psicose, tal operação não se
realiza, os objetos podem aparecer no campo da realidade como presença real, o que provoca
horror ou perplexidade.
Lacan (1966b/2003), na “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos”,
refere-se à distinção entre sujeito do gozo e sujeito do significante ao comentar a
particularidade da posição de Schreber, na qual prevalece a adesão ao gozo. Lacan põe em
relevo a posição do sujeito, com seu ser apassivado em sua relação com Deus, que ele mesmo
respalda, cuidando para não deixar um intervalo no qual Deus poderia se esquivar. Essa
lógica evidencia que é na posição de
objeto de gozo do Outro que o sujeito sustenta tal cena,
afirmando a
decisão do ser nessa escolha radical. A partir dessas coordenadas, Lacan precisa
a definição da paranóia, destacando que, nesse caso, “o sujeito identifica o gozo no lugar do
Outro” (p.221).
Essas formulações trouxeram um desdobramento importante para a teoria da clínica da
psicose, pois desde então o ensino de Lacan passou a considerar a questão do sujeito não
apenas como uma questão de significante, mas, sobretudo, de gozo. Com efeito, o gozo pode
irromper de modo não localizado, logo, devastador, o que leva o sujeito a ensaiar alguns
modos de regulação. Tal recurso passa a ser considerado na clínica como modalidade de
defesa do eu em relação ao real.
Em “L’Etourdit”, Lacan (1972a/1973), de certo modo, aponta a distinção entre a
paranóia e a esquizofrenia quando se refere ao dito esquizofrênico como aquele que se
distingue “ao ser apanhado sem o recurso de nenhum discurso estabelecido” (p.31). Logo a
seguir, esclarece o estatuto do discurso: “Tenho a tarefa de desbravar o estatuto de um
discurso ali onde eu sinto que... discurso: e eu o situo pelo laço social a que se submetem
os corpos que habitam [labiten] esse discurso” (p.31). Essa especificidade residiria no modo
como o esquizofrênico, não estando inscrito na norma fálica, tenta se arranjar com o enigma,
colocado para todo ser falante, de que a linguagem como órgão ex-siste ao corpo. Dito de
outro modo, o esquizofrênico é “obrigado a inventar um discurso, é obrigado a inventar seus
socorros, seus recursos, para poder usar seu corpo e seus órgãos” (MILLER, 1999-2000/2003,
p.11).
A proposição segundo a qual o esquizofrênico estaria
fora-do-discurso – o que implica
afirmar que o Outro não existe acabou sendo generalizada, passando-se a afirmar que o
130
psicótico não estaria no laço social. A questão merece exame. Nessa perspectiva, o dito
esquizofrênico não preenche as condições dos discursos estabelecidos, cujo requisito é a
individualização dos termos que o constituem. Sendo assim, surge a questão: trata-se de um
limite do recurso teórico dos discursos para situar as produções de um sujeito ou de uma
impossibilidade estrutural de estabelecer alguma alteridade que não seja com o real do corpo?
A clínica e a literatura nos ensinam que alguns sujeitos esquizofrênicos constroem suplências
bem engenhosas como tentativa de obter um lugar no campo do Outro. Como situar essas
produções em termos de suplência como tentativa de laço social?
Por outro lado, na referida passagem de “L’Etourdit”, não fica claro que o paranóico
possa estar no discurso estabelecido, embora ele não esteja, com relação ao discurso, na
mesma posição que o esquizofrênico. Na verdade, a psicose é pouco abordável pela teoria dos
discursos.
O estatuto do Outro não é o mesmo na paranóia e na esquizofrenia. Vimos que, na
paranóia, alguma forma de alteridade se faz presente, mesmo que inflada pelo imaginário. Ela
se localiza em um suporte fora do corpo do sujeito, o que configura uma distância mínima.
Em relação a esse ponto a partir do qual retorna o gozo, o esquizofrênico revela menos
recursos, pois ele retorna nos órgãos do corpo, por vezes tomado como uma forma radical de
alteridade, exterior ao sujeito. É o que se pode notar nas queixas hipocondríacas, na
fala de
órgão, em que o gozo retorna nas palavras, e em outras formas de tratamento do gozo que
passam pelo corpo. Nessa categoria incluímos certos regimes, desde práticas esportivas a
alimentares, que o sujeito inventa para introduzir uma ordem no mundo. Essas duas
modalidades de psicose mantêm o ponto comum de não estarem inscritas na função fálica,
mas cada uma dessas versões revela um modo próprio de defesa em relação ao real.
Em relação ao estatuto do Outro, alguns autores estabelecem uma distinção entre
paranóia e esquizofrenia, afirmando que o paranóico dispõe de um S1, e que, portanto,
Outro na paranóia, ao passo que, na esquizofrenia, trata-se da inexistência do Outro. Com
relação a essa distinção, Quinet (2002) sustenta a hipótese de que, na paranóia, ocorre a
“retenção do Um – um significante, ou melhor, um significante mestre (S1), ao qual o
paranóico adere firmemente” (p.11). Por outro lado, dada a falta de um significante que
cumpra essa função, predomina, na esquizofrenia, a dispersão, relatada pelo sujeito ou
inferida pelo analista, sob a forma de deslocamento dos investimentos ou deslizamento
significante.
Quinet (2002, p.16), avançando na precisão da especificidade da paranóia, não sem
considerar as bases da distinção proposta por Freud (1896a/1980), no “Rascunho K”, entre
131
neurose obsessiva e paranóia, comenta uma contribuição de Soler (2001, p.239), que, em uma
leitura lacaniana, aponta justamente para uma diferença quanto à simbolização primordial
entre neurose e paranóia. O autor, baseando-se nas formulações de Soler, destaca que, tanto
na primeira como na segunda, há inscrição do significante referente ao desejo da mãe.
Todavia, na paranóia, não
Nome-do-Pai para barrar esse desejo, logo, não significação
fálica desse desejo, o que o torna ainda mais enigmático.
Desenvolvendo a questão, Quinet afirma que, na paranóia, por faltar o significante
Nome-do-Pai, o S1 fica retido, o que resulta em uma identificação que não vacila, isto é, que
não se coloca como questão, mas como certeza, indicando a não divisão do sujeito pelo
significante:
“Na paranóia, o sujeito está fixado a esta identificação e alienado ao significante. O paranóico
tem uma identificação imediata a este significante que o fixa e representa para todos os outros
significantes. Identificado a esse Um, não se inscreve como (-1) em relação nem ao
significante, nem ao gozo” (QUINET, 2002, p.16)
Por não haver recalque, não perda de gozo suficiente para instaurar um equívoco
em relação ao saber do Outro. Esse saber pode vir a ser atribuído ao outro imaginário, o que
implica um retorno desde fora, no real, indicando a não simbolização. Segundo Quinet (2002),
“o paranóico é o Um da referência” (p.17). O autor situa essa auto-referência do lado do
sujeito, fenômeno que se articula com a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro.
Como vimos, na paranóia, o sujeito se fixa em um S1; na esquizofrenia, dispersão
imaginária, com retorno de gozo nos órgãos, e simbólica, pois diversos S1 surgem como
tentativa de representar o sujeito. De acordo com Quinet (2002), essa fixação em um
significante S1 na paranóia também pode ocorrer durante a evolução da esquizofrenia
paranóide, processo por ele descrito como paranoização (p.20). Esse processo se “dá pelo
advento de um significante que o sujeito adota para se constituir como tal” (p.11). Como
exemplo de paranoização, o autor menciona a passagem do caso Schreber em que surge, na
língua fundamental, o significante luder (prostituta, vagabunda), que o representa como
mulher para Deus, e que veio, a partir daí, a se constituir como metáfora delirante,
estabilizando-o por algum tempo:
“A partir desse significante, uma concentração, um remanejamento significante em torno
do S1 e a recomposição da realidade, cumprindo o delírio, aí sim, a função de reconstrução do
mundo” (QUINET, 2002, p.21).
132
Acompanhando o processo de estabilização do caso de C., notamos que o analisando
referiu-se a si próprio utilizando os seguintes significantes:
poeta vagabundo, aposentado,
curinga, filho de Deus. Este último S1, por ter advindo após a instituição, pelo sujeito, de um
ponto êxtimo – Outro, Deus – passou a funcionar como um ponto de basta.
Coloca-se, aqui, a questão: trata-se, nessa estabilização, do processo de paranoização,
ou da nomeação
filho de Deus, advinda como efeito da constituição do Outro, Deus? Neste
último caso, a nomeação teria aberto a perspectiva para um Outro diferente do indicado pela
mãe. O que teria temperado o gozo excessivo referido ao desejo da mãe? Enfim, trata-se de
paranoização ou de alguma discriminação dos registros RSI?
Zenoni (2003), abordando a distinção entre a esquizofrenia e a paranóia a partir do
segundo axioma de Lacan, situa a segunda como a medida da psicose. O autor
45
comenta que
o sujeito paranóico dispõe de S1, mas que, quando se diz rei, acredita-se rei. Isso ocorre
porque não barra entre S1 e . O esquizofrênico, por sua vez, não adere a um S1.
enxame (
essaim) de S1, logo, dispersão.
Em relação à direção do tratamento na esquizofrenia e na paranóia, Zenoni (2003)
elege a via do sintoma para abordar a construção do laço social na esquizofrenia. Trata-se de
abordá-la através da localização do gozo. O autor assinala a equivalência entre
sinthoma e S1,
estabelecida por Lacan em “Le Séminaire, livre 23: Le sinthome”. Nesse sentido, a direção
seria sustentar a produção de algum objeto “fora de si, fora-do-corpo. Inventar objetos e
enodar a dispersão”.
Nesse contexto, Zenoni (2003) faz uma distinção entre a fixação do gozo através de
um S1 e o laço social, indicando como condição para este último que o S1 seja
compartilhável, o que dependerá do S1 em jogo. S1 favoráveis, e outros, não. Como
exemplo de S1 favorável, o autor cita alguns significantes fundadores de religiões ou grupos
de ajuda.
Como direção de trabalho, Zenoni (2003) sugere a tentativa de cernir um S1 que seja
compatível com o laço social. Como exemplo, menciona o caso do sujeito que sustenta
posição contrária à do monarca belga Rei Leopoldo. Qual seria, nesse caso, a direção a dotar?
Trata-se de procurar trabalhar com algum semblant, como a escritura de um livro ou a
realização de pesquisas em arquivos; de transformar o S1 para que ele se torne compatível
com o laço social. Nesse ponto, Zenoni discorre sobre a prática institucional, em que a
45
Em supervisão com Zenoni, abordamos as estratégias e táticas que poderiam ser mais eficazes na direção do
tratamento com sujeitos paranóicos e com sujeitos esquizofrênicos.
133
instituição é o próprio tratamento. Tal prática requer um parceiro regulado (partenaire règle),
isto é, submetido ao tratamento do Outro, que possa sustentar o trabalho e a construção do
sujeito.
Como o Outro com o qual o paranóico tem de se haver não é barrado pela falta da
operação significante, algum recurso o sujeito utilizará para tentar barrá-lo, seja através de
uma idéia delirante, seja inventando um objeto separado do corpo. O que nos interessa aqui é
destacar o modo como o esquizofrênico pode tratar o gozo. Vimos que o gozo pode receber
um tratamento
fora-de-sentido, o que parece ser a via possível em alguns casos de
esquizofrenia.
Baseando-se na conferência de Lacan sobre os efeitos do quarto elo no enodamento
dos registros do RSI, Maleval (2000b) destaca duas versões do simbólico:
“o primeiro, o do significante que faz cadeia se articulando a outro, que possui valor
diferencial, que suporta a função de representação, e o segundo, o da letra, ‘essencialmente
localizada’, que se define por uma identidade de si a si mesma, na qual se ancora o sintoma.
Este pode ser apreendido como uma função da letra fixando o gozo sem Outro” (p.143).
2. A foraclusão generalizada
Em “La Conversation de Arcachon” (DEFFIEUX & LA SAGNA, 1997), Miller
comunica sua elaboração sobre a mudança que Lacan imprimiu em seu ensino com a
introdução do axioma borromeano, ocasião em que forjou a expressão foraclusão
generalizada.
De que se trata na foraclusão generalizada? Miller, citando comentário de Brousse,
sublinha que não se trata de duas classificações, mas de duas formalizações, o que ele põe em
evidência no ensino de Lacan (p.153). Para abordá-la, o autor retoma a distinção entre doença
das mentalidades e doença do grande Outro, por ele estabelecida vinte anos antes
46
,
propondo outra ponto de basta, sim ou não no contexto da segunda formalização de
Lacan. Em relação à primeira distinção, destaca que a doença das mentalidades implica a
autonomia do imaginário em relação ao simbólico, situando-se, portanto, no eixo a-a’,
enquanto que a paranóia seria a doença do Outro. Uma das conclusões comunicadas por
Miller em Arcachon é que “o ponto de basta generaliza o Nome-do-Pai. Este é menos um
elemento do que um sistema, um enodamento, um aparelho, fazendo ponto de basta, um
grampo” (p.154). Essa é uma mudança de perspectiva, pois o ponto de basta, antes efeito da
46
Trata-se da comunicação do autor nas Jornadas EFP, em 1977. O texto, “Lições sobre a apresentação de
doentes”, está traduzido em “Matemas 1”, e é apresentado ao final da referida conversação
.
134
incidência do Nome-do-Pai, passa a ser uma categoria que o inclui, indicando que outros
grampos podem exercer essa função. Nessa perspectiva, Miller sublinha, em Lacan, a
equivalência entre sintoma e Nome-do-Pai (DEFFIEUX & LA SAGNA, 1997), o que faz com
que a psicose não seja mais situada como deficitária. Focalizando a construção, sob
transferência, de uma metáfora delirante, Miller relê a metáfora paterna nela assinalando sua
incidência libidinal. Segundo o autor, “o
Nome-do-Pai localiza o gozo, [...] apresentado em
termos de significado, o que não está longe do objeto
a, que é em parte significado”. Nessa
releitura, Miller afirma que, na metáfora paterna, o Nome-do-pai é sintoma (p.175).
Em “La Conversation de Arcachon”, Soler aborda a questão do ponto de basta
discussão relevante na consideração do problema do laço social – lembrando o exemplo
freudiano, mencionado aqui, do anacoreta. A autora comenta que, no deserto, o anacoreta,
embora pareça ter saído de todos os laços, pode ter “uma relação de objeto perfeitamente
consistente” (p.183). Nesse ponto, a autora, seguindo a trilha freudiana, coloca questões que,
dada a pertinência para a nossa pesquisa, reproduzimos:
“O que é que constitui o laço social conectado a um sintoma, valendo por Nome-do-Pai?
Como diagnosticar quando um laço social que faz
semblant ou um isolamento efetivo, no
qual a pulsão está desconectada do inconsciente?” (DEFFIEUX & LA SAGNA, 1997, p.183).
Essas questões foram comentadas por Miller (DEFFIEUX & LA SAGNA, 1997), que
extraiu das formulações de Lacan a seguinte conclusão sobre o laço social:
“É o sintoma. É que o laço social é ele mesmo o aparelho do sintoma construído pelo sujeito.
[...] é o sentido mesmo disso que eu chamo o parceiro-sintoma. Se colocarmos uma
exterioridade entre o laço social e o sintoma, daí não sairemos, jamais. É necessário cortar e
dizer: o laço social é o sintoma
(p.193, grifo nosso). É que se abre a dimensão de invenção
do sintoma [...]
savoir-y-faire com o sintoma é equivalente a se servir do Nome-do-Pai”
(p.281).
Como vimos, Lacan, em “O Seminário, livro 22: R.S.I.”, estabelece uma condição
para o sinthoma: que ele seja o que mantém juntos e diferenciados os três registros da
experiência subjetiva. Nem toda suplência satisfaz essa condição. Se o laço social é o
sinthoma, então, nem todas as formas de suplência se caracterizam como laço social.
suplências que, em relação à invasão de gozo e à própria estabilização, são mais favoráveis
que outras.
Jimenez (2004) comenta a possibilidade de, no percurso de uma análise com um
psicótico, o sujeito vir a passar de uma suplência a outra que favoreça a estabilização dos
registros, o que requer certas manobras na transferência. Retomaremos esse ponto mais
adiante, ao focalizar a psicanálise aplicada à terapêutica.
135
Na referida conversação, Miller afirma que a segunda formalização, borromeana,
fundada sobre a generalização da
foraclusão, não se opõe à primeira, a estruturalista (p.256).
O autor faz uma distinção entre a foraclusão, que é um furo, e o não (não relação
sexual), destacando que não há matema para este não . Assinalando a necessidade de
distinguir uma negação de uma proposição escrita, Miller aponta que o que se pode é, nesse
lugar, escrever a proposição:
Nome-do-pai é uma suplência” (p.259). No entanto, a tese da
foraclusão generalizada permite mais de uma leitura.
Maleval (2000b) propõe uma distinção entre a foraclusão do Nome-do-Pai (Po), que
nomeia de foraclusão restrita, e a foraclusão generalizada. Quanto a esta última, o autor
destaca, citando Miller, que ela implica um indizível para todo sujeito, destacando que o que
está em jogo é que “a referência é sempre vazia” (p.153)
. Maleval sublinha que a
foraclusão generalizada é diferente da foraclusão do Nome-do-Pai, na qual reconhece a “não-
função de um significante excluído” (p.104). É quando a
foraclusão ocorre que a função de
nomeação do
Nome-do-Pai se desvela: “a de esconder, velar o Um-Pai real” (p.157). Não
como ignorar aqui certa semelhança com a formulação de Freud (1917[1915b]/1980) em
“Luto e melancolia”, quando o autor se refere à identificação do melancólico com o objeto
perdido. É por supor que, na psicose, o sujeito está mais diretamente diante do Um-Pai real
que encontramos na orientação da clínica, tanto no Courtil quanto no Foyer de l’Equipe, uma
referência ao tratamento do Outro, o que comentaremos na segunda parte desta tese.
Skriabine (2002), após repertoriar as noções de foraclusão e de Nome-do-Pai desde
“O Seminário, livro 3: As psicoses” a “Le Séminaire, livre 23: Le sinthome”, elabora vinte e
uma considerações sobre a estrutura, ao fim das quais propõe duas conclusões:
“A primeira: há, estruturalmente, foraclusão do Nome-do-Pai, no sentido de uma medida
comum ‘inata’, normalidade mítica, que manteria os três registros enlaçados em um enlace
borrromeano de três, bem sucedido. Nada, a priori, os liga: foraclusão generalizada. A
segunda: a estrutura se funda sobre uma falta, sobre uma falha original, cuja estrutura
topológica é a mesma dos nós. Para além da metáfora, o real dessa estrutura é o real
topológico dos nós” (p.58).
Em relação ao ponto que estamos focalizando, o da foraclusão generalizada,
inferimos que Skriabine (2002), em suas elaborações, supõe os dois axiomas do ensino de
Lacan como excludentes. Com isso, indica que a foraclusão do Nome-do-Pai é extensiva a
todo ser falante, sendo sempre necessário um quarto elemento para fazer suplência a essa
falha original. Neste caso, o que distingue neurose e psicose são modos de amarração. Vale
notar que no quadro da clínica diferencial proposto pelo o autor não há, a priori, possibilidade
de situar a esquizofrenia.
136
Considerando esse quarto elemento, Hulak (2006) destaca que, no segundo axioma de
Lacan, o conceito de gozo toma a frente em relação a outros conceitos, como o de linguagem
e fala como comunicação:
“O grande Outro, o Nome-do-Pai, o símbolo fálico se encontram reduzidos a uma função de
grampo entre estas instâncias essenciamente disjuntas. Eles estão reduzidos a ser
conectores” (HULAK, 2006, p.130).
Destaco aqui a função de conectores dos registros, a relevância que adquire o que pode
exercer a função de fixá-los. No entanto, não é evidente que haja, nesse contexto, lugar para a
simbolização primordial como ponto de corte estrutural entre a neurose e a psicose. Os
debates sobre o tema indicam que uma diferença entre neurose e psicose. Contudo, o
recalque deixaria de ser considerado como recurso paradigmático para articular gozo e
linguagem. Nesse contexto, as soluções construídas como modos de amarração dos três
registros constituiriam, em cada caso, esse quarto elemento.
Em “Le Séminaire, livre 23: Le sinthome”, Lacan (1975-76/2005) assinala que cada
um um retoque na língua que fala. Trata-se de conservar o significante sem remeter à
significação, isto é, criar a língua que se fala. Ao afirmar que “inventar é inventar no real”
(p.132), Lacan destaca que a invenção está fora do sentido, que este implica a articulação
entre simbólico e imaginário. Nesse contexto, Lacan comenta que inventou o real, como o que
se impôs a ele: “o real é minha resposta sintomática” (p.132). Inferimos que essa invenção é
fazer existir o que não há: dentre outras, as invenções científicas, a psicanálise, a arte, as
cidades, e também as invenções de cada um na vida ou no percurso da clínica.
Quando Lacan afirma que é o real que pode aportar o elemento para manter unidos o
imaginário e o simbólico (p.132), registros estranhos entre si, não deixa de ser surpreendente,
pois até então a função de fixação era atribuída ao simbólico. Com efeito, afirmar que é o real
que pode enodar implica uma mudança no que antes estava referido ao par significante.
Laurent (1989, p.19), a propósito das estabilizações, afirma que, em seu último ensino, Lacan
articula S1 e a, centrando no S1 a função sinthoma.
A noção de alíngua permite pensar alguma invenção, sobretudo em casos de psicose
nos quais, no lugar do Outro, um vazio, como na esquizofrenia e no autismo. A aposta do
trabalho em algumas das instituições que constituem o RI3, como, por exemplo, Antenne 110
e Courtil, é fazer existir esse Outro da linguagem, o que tentaremos cernir na clínica.
3. Produzir um sujeito
137
Produzir um sujeito é uma orientação de trabalho na clínica da psicose que supõe a
possibilidade de que um ser falante que se encontre na posição de objeto de gozo do Outro
passe a uma posição de sujeito no campo do Outro. A expressão foi forjada por Miller
(1983/1996) em referência ao tratamento possível da psicose como uma questão de sujeito,
que ele se apresenta na posição de objeto que busca suturar o Outro. Tal orientação se
assenta no trabalho que muitos psicóticos realizam na tentativa de abrir um espaço no Outro e
a ele endereçar algo que não seja seu próprio corpo. Essa seria uma tentativa de barrar o
Outro, que se apresenta de modo devastador, seja como presença, seja como ausência.
Essa orientação pressupõe o Outro como um lugar onde o sujeito pode se ancorar, isto
é, um lugar no campo da linguagem. Assim, quando nos referimos a
produzir um sujeito,
trata-se de assinalar a função de cada membro da equipe, no caso da prática institucional, no
sentido de reconhecer que um sujeito em trabalho, que uma lógica de funcionamento;
mas que o sujeito em questão ainda não encontrou um lugar significante que o coloque a certa
distância em relação ao Outro, que pode ser encarnado pelo semelhante.
138
PARTE II – A PSICANÁLISE APLICADA À TERAPÊUTICA
Ao utilizar a expressão Psicanálise aplicada à terapêutica, estamos nos referindo aos
princípios da psicanálise que se orienta pela clínica do sujeito em sua relação com a
linguagem quando ela não tem como objetivo a formação de um psicanalista.
Desenvolveremos esse ponto considerando que, conforme nos diz Brodsky (2003) baseando-
se no ensino de Lacan (1966a/1998, p.758), em termos de princípios que orientam uma
prática, só uma psicanálise, a aplicada. No entanto, isso não exclui a existência de
modalidades de prática.
Atestando o que assinala Zenoni (2002), segundo o qual não psicoterapia e nem
toda situação oferece as condições para se realizar uma sessão analítica, a prática
institucional, que não exclui entrevistas individuais, constitui um modo de operar a partir da
orientação da psicanálise. É dessa perspectiva que propomos, nesta tese, duas possibilidades
de psicanálise aplicada: o dispositivo de consulta e a prática institucional. Abordaremos a
primeira a partir dos casos C. e S.; o primeiro, atendido em consultório, e o segundo, em sua
vertente pública, o ambulatório, cujo eixo de trabalho está nos desdobramentos do laço
transferencial (FIGUEIREDO, 1997). Em seguida, abordaremos duas modalidades de prática
institucional – realizadas no Foyer de l’equipe e no Courtil – nas quais se articulam o
tratamento do Outro e a invenção do sujeito.
CAPÍTULO I – A Clínica da Psicose nos Dispositivos de Consulta
1.1. Caso C.: Metamorfose Ambulante
O trabalho clínico que passarei a relatar
47
situa-se no campo da psicanálise aplicada à
terapêutica, tendo como fundamentação teórica os princípios da psicanálise inventada por
47
O relato dos casos clínicos será feito em primeira pessoa do singular, pois não me seria possível manter o uso
da primeira pessoa do pural na abordagem de casos nos quais estou implicada como analista e por cuja condução
do tratamento me responsabilizo.
139
Freud e orientada pelo ensino de Lacan. Nesse campo, abordarei o Caso C., destacando de seu
percurso de análise, realizada em consultório, o tratamento dado ao objeto voz, não extraído
do campo da realidade, no processo de construção do laço social. A idéia de trabalhar esse
caso clínico surgiu da seguinte questão: como elaborar teoricamente uma passagem realizada
na análise de um sujeito esquizofrênico cuja mudança de posição na transferência antecedeu
uma nova posição no laço social? A mudança a que C. fez referência é a de ter deixado de
fazer da analista um
muro das lamentações, a quem dirigia constantes e reiteradas queixas de
profunda depressão e de angústia, para fazer dela alguém a quem conta o que se passa na vida.
Essa passagem ocorreu dois anos, em uma análise que ele vem realizando dez, e que
pode ser escandida em quatro tempos, considerando sua produção subjetiva. Na discussão do
caso, deter-me-ei no quarto tempo.
Em seu relato, C. destaca que essa mudança não se restringe à relação analítica e vem
produzindo efeitos na vida, como a redução do mal-estar no corpo, o alívio da depressão e o
interesse em participar do convívio social.
É possível afirmar que o trabalho de construção ao qual C. vem-se dedicando tem
possibilitado certo apaziguamento e algum remanejamento do gozo vivido como angústia
avassaladora, bem como a sustentação de uma suplência singular em direção ao laço social,
que ele designou como solução parcial.
A referida passagem foi antecedida por uma experiência mística, descrita como tal
pelo analisando, que a ancorou no sintagma Deus é Deus. Isso basta! Essa construção, que ele
fez passar pela transferência, e a partir da qual se fez representar pelo sintagma Sou
espiritualista, filho de Deus espiritualista, localiza o objeto voz nas mensagens alucinadas
48
.
Quatro tempos no percurso da análise
1- Da queixa à demanda de ser amado: Do acaso ao trabalho a se fazer.
2- Laço transferencial e construção de um lugar no Outro: Citação de Jó.
3- Desdobramento do laço transferencial: Curinga.
4- Nomeações: Deus, espiritualista, traidor e metamorfose ambulante.
1- Da queixa à demanda de ser amado: Do acaso ao trabalho a se fazer
48
Há, no texto, indicação de notas numeradas que podem se consultadas no final do relato clínico.
140
C. estava com cinqüenta e um quando me foi encaminhado por uma médica
homeopata que tratava de sua esposa bastante tempo. Por insistência desta última, e por
estar muito deprimido, C. consentiu em iniciar a análise e um tratamento psiquiátrico.
Em sua análise, ele dirá que aceitou tudo isso para atender a um pedido de sua mulher
e para buscar ajuda para o
desgaste da relação, o que, no entanto, não impediu que uma
separação conjugal viesse a se consumar cerca de três meses após ter iniciado as entrevistas
preliminares ao tratamento.
A ruptura dessa união, que se mantivera por dezoito anos, e o modo como ocorreu
tiveram efeitos imediatos de desorganização na vida de C., configurando um
desencadeamento psicótico que perdurou por longo tempo.
C. relatou que sua esposa, que já vinha se mostrando cética quanto ao futuro do
casamento, decidiu certo dia não retornar do trabalho para casa, tendo lhe avisado por telefone
que, por motivo de estafa, tinha pedido licença médica, e ficaria na casa de um irmão. C. disse
estar transtornado com a decisão da mulher e com a escolha da casa desse cunhado, com
quem tinha dificuldades em função de sua inclinação a querer se exibir como machão e
querer resolver tudo à moda nordestina, na base da peixeira.
Comentou ter telefonado para a mulher, mantendo, por algum tempo, a expectativa de
que ela voltasse para casa. Essa separação foi confirmada em ato jurídico, por solicitação da
mulher, cerca de dois anos após o ocorrido, quando C. a reencontrou pela primeira vez após a
separação.
À análise, C. chegou com uma demanda de alívio para seu sofrimento, devido à
depressão e à intensa angústia decorrentes da crise no casamento, descrito como uma relação
simbiótica
. Contou que era difícil suportar a separação, pois se habituara a viver junto com a
esposa, que funcionava como
apoio colateral: ela telefonava várias vezes durante o dia,
acompanhando e direcionando suas atividades. Em tom de reclamação, C. comentou repetidas
vezes que sua esposa não tinha o direito de fazer isso com ele:
Ela me tirou da casa dos meus pais prometendo a cura através do amor e agora me
abandona, sem se importar com meu futuro. Eu já estava com a minha vida resolvida.
Ela era mulher e mãe: ela me colocava no colo, fazia compressas para abrandar
dores de cabeça e, ao mesmo tempo, fazia sexo...
Nesse primeiro tempo, C. disse sentir-se invadido por uma angústia constante, com
vivências corporais de despedaçamento e estranheza, que assim descrevia:
141
Calor insuportável em todo o corpo, corrente de água fervendo seguida de água
gelada, subindo e descendo pelas veias, sensação de aflição continuada entre a pele e
a carne, membros que se paralisam e que não obedecem ao meu comando, espada que
atravessa meu coração, um furo no coração que dói sem parar, intestinos sem
funcionar por dias, perda de apetite e insônia persistente. Os jovens dizem: não
esquente a cabeça. E a minha está tão quente, ao da letra mesmo, que não sei
como não está saindo fumaça!
Durante esse período crítico, C. relatou que o psiquiatra fez uma intervenção
importante, prescrevendo, dentre outros medicamentos, um neuroléptico de nova geração
associado a um antidepressivo, que aliviou os sintomas de insônia e as reações
extrapiramidais da medicação anterior (1). No entanto, as crises de angústia e depressão
persistiam. Nesse primeiro tempo, C. declarou-se tomado por idéias suicidas de atirar-se pela
janela. Dizia-se tentado a realizar o mesmo ato cometido pelo irmão, a quem era muito ligado,
e que, como ele, fora abandonado pela esposa.
Certa vez, relatou ter-se aproximado da janela com os olhos vendados, para não se ver
praticando o ato, comentando: sou um sujeito contemplativo e não suportaria me olhar nesse
momento. Descreveu outras tentativas nas quais conseguira deter-se, dizendo que lhe faltava a
coragem brutal do irmão. Outra barreira ao ato foi o temor à sanção de Deus, que justificava:
pois considero o suicídio uma forma de homicídio, temo ir para o fogo do inferno. No
entanto, em momentos de descrença profunda em Deus, essa idéia retornava de modo
insistente, ocasiões em que me telefonava, em
pânico (2).
Sua análise começou em meio a esse desencadeamento, que não deixa de ter relação
com a primeira crise, na adolescência (3). C. pedia ajuda para lidar com uma
angústia
avassaladora. Por vezes, ficava me olhando fixamente, dizendo que queria levar minha
imagem, que não conseguia retê-la na memória. Queixando-se de solidão absoluta, de não
ter com quem falar ao telefone, da falta quase total de contato social, C. intensificou a
demanda de falar ao telefone comigo, insistindo em ouvir minha voz e confirmar que eu
continuava lá.
Considerando o relato de C., que me advertia sobre sua tendência a colocar tudo numa
pessoa, que então funcionava como referência única em sua vida, mantive fixas as sessões
semanais, aceitando alguns contatos telefônicos e indicando o telefone do CVV (4) como
alternativa em sua procura por alguém com quem falar. C. consentiu a indicação, passando a
fazer uso desse recurso regularmente, tanto quanto para se queixar do abandono.
A tática de indicar o CVV fez parte da estratégia de inventar e sustentar parceiros de
trabalho do sujeito, já que C. procurava uma substituta para o lugar ocupado até então por sua
142
ex-mulher. Voltarei a considerar as táticas para inventar parcerias ao abordar a questão da
construção do laço social possível na psicose.
Essa forma de intervenção, sustentada por cortes e convites para retomar o trabalho na
sessão seguinte, teve certo efeito apaziguador, e,
a posteriori, adquiriu o estatuto de ato, dado
o efeito de redução da intensidade da demanda de contato comigo. C. denominou-o processo
de amadurecimento
, pois, antes, sentia-se como uma criança que perdeu a mãe.
Nas entrevistas, usei a expressão trabalho a se fazer, no que C. consentiu, com certa
crítica e ironia, não deixando de assinalar que sua expectativa era de consolo e alívio para seu
sofrimento, e não de sofrer com hora marcada, na sessão.
Invariavelmente, quando C. suspendia o uso dos pronomes de tratamento Doutora ou
Senhora, o que implicava alguma cerimônia, substituindo-os por você ou pelo meu nome
próprio, começava um processo de ataque ao laço que estava em vias de se constituir, com
risco para a transferência. Tratava-se do outro lado da demanda de ser amado.
Supondo que esse recurso de linguagem indicava algum risco de confusão imaginária,
eu tentava manejar o endereçamento de modo a restabelecer a diferença necessária ao
trabalho. No manejo da transferência, minha tática continuou sendo a de aceitar o lugar que o
analisando me oferecia, promovendo, contudo, algum deslocamento em sua demanda de ser
amado. Estava em jogo a consideração de que o tratamento possível da psicose implica o
manejo da transferência na sustentação do trabalho que o analisando vem construindo.
C. mostrava-se, por vezes, irritado, dizendo que não queria perguntas, mas respostas, e
que a análise era um
blá-blá-blá quando ele precisava de soluções concretas. Reagia, assim,
ao meu modo de manejar a transferência que estava se instaurando, já que eu me dirigia a ele
a partir da suposição de um sujeito
. Na maior parte das vezes, após um protesto, C. pedia
desculpas por ter se excedido nas solicitações. Outras vezes, quando essa
demanda de
consolo, como ele a designava, não cessava durante a sessão, C. consentia na minha sugestão
de que permanecesse por algum tempo na sala de espera, para que não saísse transtornado do
consultório. Invariavelmente, justificava: um doente quer sempre mais, esperava uma palavra
de consolo de sua parte, só o amor pode curar um doente.
Essa demanda de amor, mais precisamente, de ser amado, considerada insaciável pelo
próprio sujeito, configurou-se como modalidade de transferência. Foi em uma dessas
situações de tensão, no início da análise, que C., queixando-se, me disse: estou entregue ao
acaso. Diante da minha surpresa, ele se referiu ao verso “O acaso vai me proteger enquanto
eu andar distraído”, da música “Epitáfio” (5).
143
Ironizando os tratamentos, C. dizia estar entregue à própria sorte, ao acaso, e que não
contava com a proteção de ninguém, andando a esmo nas ruas. Dado o interesse que
demonstrei pela letra da música, C. disse que
acaso também poderia ser sorte e Deus, o que
mudava um pouco as coisas, saindo mais aliviado da sessão. Só a posteriori pôde-se dizer que
teve lugar, aí, uma primeira passagem no percurso do tratamento: do acaso ao trabalho. Com
efeito, C. passou a trazer letras de músicas de ídolos roqueiros e também de sua autoria, o que
já indicava um lugar para a construção de uma alteridade. Esta última veio a se produzir, anos
mais tarde, com o significante Deus.
Nas entrevistas, passou a tratar de suas questões existenciais: angústia, depressão e
solidão, expondo sua teoria do protesto: o social, establishment, atrapalha o sexual, porque
consome muita energia
. Com isso, justificava certo negativismo.
Na análise, C. situou sua doença como
mal de amor, dizendo que um amor novo
poderia curar um amor perdido:
o meu caso é mulher. Em função disso, passou parte de sua
análise descrevendo tentativas de engatar uma relação com uma nova namorada. Começou
namorando a sobrinha da ex-mulher, que era empregada na casa e que permaneceu no
emprego após a separação do casal. Com ela estabeleceu algumas trocas, ainda que marcadas
por uma insatisfação crescente, mas rompeu o relacionamento após três anos em função da
infidelidade da namorada.
Sob transferência, sustentei sua decisão de manter esse relacionamento, apesar de o
analisando se queixar de extorsão. Mais tarde, veio a admitir sua decisão de entregar somas de
recursos escassos para obter certas concessões. Na ocasião, no entanto, colocava-se na
posição de
objeto usado, escolha possível que ele manteve e que eu sustentei enquanto seguia
o
trabalho de construção da transferência analítica como suplência.
Nessas idas e vindas, C. começou a elaborar a vivência de abandono desencadeada
com a separação da mulher, que não aceitou nenhum contato, indo residir na casa de um
irmão com quem C. revelou não simpatizar. Alternava a elaboração dessa perda com
expectativas de um novo relacionamento amoroso. Suas tentativas percorriam um ciclo que ia
da
euforia à desilusão. Em meio à busca de uma substituta para o lugar vazio e às frustrações
vividas, debatia-se com a idéia constante de suicídio como saída para o sofrimento,
destacando a descrença na existência de Deus.
Antes de passar ao segundo tempo, comentarei algumas soluções inventadas por C.
que funcionaram, de certo modo, antes de sua entrada em análise, mas que não foram
suficientes para evitar um novo desencadeamento após a separação conjugal.
144
Construção de suplências anteriores à análise
A música letras, melodias e arranjos tem funcionado como uma das suplências
mais significativas desde o primeiro desencadeamento de C., na adolescência. Ele se
considera conhecedor e amante de jazz, rock nacional e internacional, o que vem lhe servindo
de recurso autoterapêutico frente às vicissitudes do real.
C. construiu uma identificação imaginária com um roqueiro americano, a quem admira
como cantor e compositor desde o dia em que, ainda jovem, escutou sua voz inconfundível e
inesquecível. Destacou o arrebatamento que essa voz lhe causou, a ponto de interromper o
banho para anotar o nome do cantor, passando a comprar todos os discos e a acompanhar sua
carreira artística, o que vem fazendo trinta anos. Ele transformou o cantor em seu ídolo,
sua referência ideológica, não apenas pelo tipo de música, country, que associa à vida que
tinha vivido na fazenda, mas também por ser como ele,
matueiro, neologismo que indica um
significante comum entre ele e o ídolo, o de terem vindo
do mato, do interior para a cidade.
Comentando o estilo despojado do ídolo, um representante do movimento beatnik (6),
C. destaca o sintagma poeta vagabundo, traço que se pronuncia em sua identificação com o
cantor. Essa idolatria assim refere-se à sua ligação com o artista intensificou-se após a
perda de seu irmão, o que seus familiares reconheceram, passando a lhe trazer discos e livros
sobre o cantor (7).
Acredito que o casamento funcionou como uma relação dual imaginária; que C.
construiu uma relação do tipo duplo imaginário com a esposa, que havia sido colega de
faculdade de uma de suas irmãs. Como ficava em casa, em seus aposentos havia sido
aposentado por invalidez em decorrência de doença psiquiátrica aceitava o que sua esposa
programasse, permitindo, inclusive, que ela acompanhasse todo o seu dia por telefone.
Relatou que participavam, regularmente, de atividades alternativas como yoga, palestras,
reuniões de grupo, excursões formando um
par inseparável. Comentou, ainda, que faziam
visitas regulares às respectivas famílias, destacando o apoio colateral da esposa quando
perdeu seus pais, após doenças prolongadas. As trocas sociais eram, assim, mediadas pela
esposa. Ele a acompanhava, convivendo com outros. Isso indica que o laço social se distingue
do fenômeno de circular e conviver socialmente, um vez que implica passar pelo Outro da
linguagem.
2- Laço transferencial e construção de um lugar no Outro: Citação de Jó.
145
No início do tratamento, a transferência em relação à analista constituiu o suporte em
que ancorava sua demanda de ser amado, o que, progressivamente, passou a dar lugar a uma
relação, contingente, de confiança e amizade.
Engajando-se nesse trabalho, C. destacou que seu projeto de vida era se tratar:
quero
ter destino diferente do que teve meu irmão, ele foi engolido pela angústia, quero descobrir
uma solução para refazer minha vida.
Com essa decisão, C. passou a articular suas questões com poesias, com citações
escolhidas do repertório musical e com passagens bíblicas, que funcionavam não como
ilustração, mas, sobretudo, como recurso de elaboração, enganchando significantes às
invasões de angústia. Constatei, posteriormente, que as poesias de sua autoria inauguraram a
série de escritos que viria a atravessar sua análise.
Uma tentativa de identificação ocorreu quando C. se descreveu como estando no lugar
de
, personagem bíblico que passou por provações sustentando sua em Deus. Esse foi o
ponto de inflexão nesse momento da análise, quando passou a atribuir suas sensações de mal-
estar nos órgãos ao diabo:
Onde Deus passa o Diabo passa também... Se Deus existe, como
pode permitir isso?
Essa identificação com a personagem bíblica passou por vicissitudes durante a
análise, e será retomada no quarto tempo deste percurso.
Como tática na direção do tratamento, tenho mantido a transferência reduzida a um
mínimo operativo, introduzindo questões endereçadas ao sujeito com humor, que ele opera
com certa ironia. C., que inicialmente se recusava a responder a partir de uma posição de
sujeito, mesmo que aí se situasse como objeto do Outro, passou a consentir, o que possibilitou
certa perda de gozo a favor de uma angústia mais circunscrita.
Certo dia, diante de uma demanda insistente de solução para a depressão por não ter
nada para fazer, respondi, em tom de humor, com um dito que ele costumava usar: Não
adianta chover no molhado. Com o tempo, essa expressão se tornou uma espécie de bordão,
cujo efeito era a diluição de suas demandas imperativas. Ele havia utilizado essa expressão ao
se referir às tentativas infrutíferas da família e dos médicos em conseguir socializá-lo.
3- Desdobramento do laço transferencial: Curinga
Nesse momento de sua análise, C. trazia questões que o incomodavam, buscando, ao
que pareceu, uma elaboração subjetiva. Durante um período, comentou sua relação com o
irmão o primeiro acima dele na série familiar – destacando a forte ligação entre eles.
146
Atribuindo um lugar especial a esse irmão, dizia que ele era aquele que lhe abria os
caminhos
. Descrevia-o como o único companheiro desde a infância, com quem brincava e
estudava, nos tempos da fazenda, e a quem admirava a ponto de seguir seus conselhos na
conquista de mulheres e na escolha do curso de Odontologia, profissão que o irmão exercia.
Ao se referir à morte do irmão, que realizou o ato por defenestração, C. relatou
situações dramáticas. O ato foi consumado após investidas anteriores, quando fora impedido
pelo analisando. Suponho que C. estabelecia com esse irmão uma relação de duplo
imaginário.
Referindo-se ao ato do suicídio como resultado bem sucedido de uma coragem brutal
do irmão, C. disse ficar entre a admiração, por ele ter conseguido pôr fim ao sofrimento, e o
repúdio pelo ato cometido, por
não saber que destino teve a alma dele, se está vagando ou
descansando
.
Essa temática retornava, não como uma vivência de dor por uma perda não
elaborada, mas também como uma alternativa que C. se colocava frente a qualquer
sobressalto nas contingências da vida, desde roubo de dinheiro e de pertences pela empregada,
até perda de pessoas queridas, vivenciadas como abandono e solidão.
Em uma sessão, C. relatou ter sofrido uma queda à noite, perguntando-me se poderia
ter sido privação de sentidos. Comentou que essa foi a explicação que sua mãe lhe dera para a
morte do irmão, e que temia estar com o mesmo problema.
A questão, aqui, era o empuxo ao ato, referido em outros momentos. Como ele
insistiu em saber sobre o que teria se passado com seu irmão, interroguei: Quem pode dizer o
que se passou com seu irmão? Ao que respondeu: É, ninguém sabe o que aconteceu. Essa
intervenção interceptou a angústia, e C. passou a tratar de outras questões.
No percurso da análise, C. começou a referir diferenças entre ele e o irmão. Certa vez,
disse: Eu peço ajuda pelo telefone nos momentos em que estou desesperado, ele não fazia
tratamento nem pedia ajuda. Todavia, isso não se sustentava por muito tempo, pois o irmão
ressurgia como herói a quem admirava, posição que ele se sentia compelido a seguir quando
estava aflito.
Apesar de C. fazer referência ao suicídio como saída para sua situação, trabalhei com a
hipótese de que ele estava tentando elaborar a perda relativa à morte do irmão, o que
atravessou boa parte de sua análise. Nesse período, passou a se referir à ligação analítica
como amor platônico, tipo de amor sem contato físico e sexual, vínculo que se irradiou para
fora da análise.
147
Certo dia, ofereceu-me um desenho, dizendo: É o esquema do tratamento que está se
irradiando na vida
. O desenho era formado por um círculo central, onde ele escreveu o meu
nome, e de onde saíam setas para outros círculos com nomes de pessoas com quem estava
estabelecendo ligações sociais ou terapêuticas: o psiquiatra, a homeopata, a dentista, as
namoradas, uma empregada da casa, a gerente do banco, a professora de dança de salão,
algumas colegas da aula de dança e da igreja evangélica, vendedores de lojas. Esse
mapeamento, suponho, indicava a tática de C. em eleger uma pessoa de referência para lidar
com o que chamava de fobia social. Considero que esse desenho faz alusão à constituição de
uma rede transferencial, o que comentarei ao abordar o laço social na psicose.
Como assinalei, a música constituía um hobby para C., que se dedicava à pesquisa de
estilos e gravações. Ele uniu esse
hobby à aula de dança de salão, estabelecendo uma parceria
com uma professora, com quem se encontrava nos dias de bailes e com quem desenvolveu um
laço de amizade. Sentia-se refazendo a vida, em ambiente alegre, para o que considerava
necessário o
apoio colateral, que havia funcionado em sua relação com a esposa. Com a
morte súbita dessa professora, C. mostrou-se desanimado com a vivência da perda, não
sustentando sua participação nessa atividade.
Certo dia, trouxe-me xerox coloridas de quadros que tinha pintado anteriormente, para
que eu conhecesse seu trabalho. Comentou ter produzido cerca de trinta quadros, nos quais se
destacavam figuras geométricas distribuídas de modo calculado no espaço. Embora tivesse
participado de exposições e vendido algumas de suas obras, não se interessou em
comercializar as demais, considerando-as parte de sua coleção particular. Comentou que não
conseguia mais pintar, devido aos tremores e à ausência de sua mulher, que produzia esses
quadros enquanto sua mulher estava em casa. Parece que sua produção foi possível porque
a esposa, apoio colateral, sustentava a cena do casamento, que contribuía para sua
estabilização.
No Natal do terceiro ano de análise, surpreendeu-me com um caderno, em que se liam
várias frases que atribuía a mim, poesias e pensamentos que anotara no metrô, após a sessão.
Comentou que levaria consigo o caderno, pois o lia nas horas de angústia, quando não tinha
alguém com quem falar.
Escrever poesias é um ato de C. que antecedia à análise, mas que ele havia
interrompido após o último desencadeamento. Com a decisão de se tratar, passou a me
endereçar essas produções, solicitando, por vezes, que eu as guardasse, o que aceitei.
Nesse terceiro tempo da análise, C. conheceu uma mulher, em uma paquera na rua,
com quem passou a se encontrar regularmente. Relatou experiência de amor sem paixão, com
148
trocas afetivas e menos expectativa de união imediata. Mas a expectativa de casamento por
parte da namorada, que era evangélica e queria ter filhos, trouxe conflitos que, com a recusa
de C. em concordar com uma união formal, culminaram, após dois anos, com o fim do
relacionamento.
C. admitiu que havia contribuído para esse desfecho:
perdi porque ela queria casar e
eu não topei, não dava pra mim... Estou sofrendo...
No entanto, não cogitou em rever sua
decisão. Pergunto-me se haveria, nesse caso, implicação subjetiva, questão que retomarei na
discussão do caso.
Certo dia, C. comentou, bastante animado, que havia descoberto um
espaço cultural,
próximo de sua casa, decidindo participar de um coral, a convite da professora, que o nomeou
Curinga do grupo, isto é, aquele para quem é dada a possibilidade de cantar em diferentes
posições de voz. Os elogios da professora e a aceitação de suas idiossincrasias por parte do
grupo acolhedor garantiram sua permanência por uns meses. Sobre sua participação, contou:
No coral, percebo que estou me socializando, mas isso vai contra minha natureza, que é de
poeta vagabundo, quero ficar lá porque vou precisar no futuro, na terceira idade.
Esse espaço cultural, destinado às pessoas da terceira idade faixa etária em que ele
ainda não se encontrava funcionou, segundo ele, como facilitador, dado o acolhimento e a
delicadeza dos participantes e dos animadores de atividades, com os quais ele se sentia menos
exigido socialmente. A participação nesse espaço, paralelamente ao namoro, ao suporte dado
pelas irmãs e pelas empregadas, bem como o trabalho na análise configuraram uma cena,
sujeita, contudo, a reviramentos constantes.
4- Nomeações: Deus, espiritualista, traidor e metamorfose ambulante.
Os Nomes de Deus
Como ponto de inflexão dessa etapa, destaco a mudança situada por C. em sua posição
subjetiva na transferência: antes eu vinha aqui para me queixar, e você era meu muro das
lamentações, agora, eu venho aqui para contar o que se passa comigo.
Segundo C., essa mudança aliviou a aflição continuada que sentia nos órgãos,
diminuindo a angústia mental e a depressão, o que vem lhe possibilitando maior contato com
as pessoas e uma circulação social diferente no bairro onde reside. Ele conclui: O que mudou
é que agora tenho Deus comigo...
149
Suponho que essa mudança subjetiva está correlacionada com a nomeação Sou
espiritualista, filho de Deus
, que ocorreu no desdobramento de algumas experiências relatadas
na análise. C. apropriou-se de uma intervenção que fiz na ocasião em que relatou um
momento crítico com uma das empregadas, com quem tinha chegado quase ao corpo-a-corpo
em discussões sobre problema espiritual e falta de fé:
C: Estou aflito, com calores no corpo, porque não consegui responder à empregada.
Ela queria me convencer a entrar para a igreja evangélica... Mais do que isso, ela
queria definir o nome de Deu
s, insistindo que eu ficaria curado se aceitasse Jesus, o
único Deus... Virou discussão, ela falava assim, em cima de mim... Discórdia em
casa...
D: Deus não pode ter um nome em cada religião?
C: Sim, Cristo, Jeová, Buda, Krishna, Maomé, Alá, e também no esoterismo como
consciência cósmica, fonte, poder superior, etc...
Nesse dia, C. saiu um pouco menos aflito, dizendo que iria evitar esses papos com as
empregadas
. Elas se acham donas da verdade. Isso é o pastor que faz lavagem cerebral.
Posteriormente, destacou a expressão Deus pode ter um nome em cada religião como
uma aquisição de sua análise, o que não deixou de me surpreender, como analista, dado o
modo como ele se apropriou desse sintagma, concluindo: Esse Deus que a gente fala aqui...
Esse Deus que pode ter um nome diferente em cada religião e mesmo assim ser Deus. Sem
questionar ou concordar, acolhi suas formulações.
Pouco tempo depois, C. iniciou uma sessão dizendo ter visto, na vitrine de uma
livraria, o livro Os 72 nomes de Deus. Perguntei-lhe se tinha ficado interessado em ler esse
livro. Respondeu-me que não, porque era muito caro e porque não precisava ler, pois tinha
a resposta:
Deus é Deus. Fazendo distinção entre Deus e religião, questionava as práticas
religiosas, por vezes com ironia:
Não entro na igreja católica. Conheço bem tudo aquilo, eu era coroinha, para
agradar minha mãe. Fui muitas vezes confessar porque ela insistia. não pra
mim porque não confio nos padres, para eles tudo é pecado...
Em relação às religiões e seitas orientais, esses deuses não me dizem nada: quando
fazia yoga e falavam de Deus, não sabia como era esse Deus.
O nome de Cristo é o mais aceito, pelo menos no Ocidente. O problema é que ele é
muito mal assessorado. Veja o que as igrejas evangélicas têm feito com o nome dele:
os pastores querem saber de dinheiro e de trabalho dos fiéis, achincalham com o
nome dele. Para eles, tudo é Jesus.
Alucinação
150
Em uma sessão, C. declarou ouvir vozes: Acabei de ouvir um espírito bom, mas eu não
vou falar disso aqui porque a senhora, como psicanalista, não vai acreditar...
Depois de titubear um pouco, C. decidiu contar que, algum tempo, vinha anotando
o que o ES (Espírito Santo) lhe dizia, para não esquecer. A partir de então, passou a ler na
sessão algumas frases que tinha ouvido naquela semana.
Observei que havia designado a voz como
Espírito Santo, grafando o nome com as
iniciais
ES. No entanto, ele não se referia a um dos elementos da trindade do catolicismo,
religião na qual fora educado, e da qual se tornara praticante, segundo ele, por insistência de
sua mãe. Ele nomeava essa voz de um modo mais singular, o que pude inferir de seus ditos.
Notei algo novo no processo de construção de C.: ele introduz o objeto voz do ES, como sinal
da existência de Deus, em posição de alteridade.
Na ocasião em que C. disse ter escutado essa voz, ele freqüentava um centro espírita.
Comentava as sessões de
passes de cura e os contatos com os dirigentes e as secretárias da
instituição, que aceitaram sua proposta de se vincular como membro sem assistir às aulas e
palestras, desde que assumisse o compromisso de estudar a doutrina kardecista:
No centro espírita, eles falam de Deus como pai, de Cristo como filho de Deus e dos
espíritos. Acho que esse Deus tem mais a ver comigo. Além disso, eles não me exigem
nada e consideram que o trabalho só tem valor quando há caridade. Contribuo
levando alimentos [...] me aceitam como eu sou.
Percebi que ouvir a voz do ES não lhe causava estranhamento. Certo dia, ele disse:
Acredito em comunicação dos espíritos. Fui iniciado nessa doutrina pelo médico da família.
São mensagens (8).
Notei que C., às vezes, questionava os ditos do ES. Outras vezes, apontava um aspecto
contraditório ou paradoxal da voz: Como o ES pode dizer isso, se ele mostra todo o tempo que
meu irmão agiu errado? Entre idas e vindas, o significante traidor foi destacado por C. ao se
referir ao irmão, o que passou a acontecer cada vez menos na análise. Levanto a hipótese, a
ser retomada na discussão do caso, de que essa designação do irmão contribuiu para o
trabalho de elaboração da perda.
A experiência mística
Em uma sessão, C. comentou que tinha vivido uma experiência mística: O Espírito
Santo me disse: coloque o disco do Crivela... O disco estava no aparelho quando eu fui
151
colocá-lo. Isso foi a presença de Deus. C. destaca o nome do cd evangélico: Cura e
libertação
.
C. localizou nesse evento sua libertação, passando a acreditar em Deus e decidindo
interromper a busca nas igrejas:
Deus se revelou colocando o cd no aparelho de som. Deus é um nome e é também a
presença, como revelação, mesmo sem imagem, porque eu não o vi, mas o cd estava
lá. [...] 60% da minha doença era por não acreditar em Deus. Agora, tenho Deus no
meu coração.
Apontou, a partir dessa experiência mística, certo apaziguamento da angústia:
Agora, eu sei que não vou acabar em nada, que vou ter um encontro com Deus após a
morte. [...] Agora tenho conexão direta com Deus. [...] Deus deu prova de libertação,
não preciso andar desesperado atrás de resposta nas igrejas. [...] Fico dividido se foi
Deus ou não, parece delírio, mas o cd estava lá.
Em outra sessão, relatou que sentiu a presença de Deus durante uma oração que lhe foi
dedicada pelos membros do centro:
O espírito de Deus existe, não duvido mais.
C. declarou escolher a quem conta sobre as mensagens espirituais que recebe,
explicando que não fala disso nem com os membros do centro nem com os médicos. Em
relação aos primeiros, porque considera uma vivência particular:
O espírito fala comigo sobre
coisas pessoais. Em relação aos médicos, porque são sabidos demais. Intervim, nesse ponto,
dizendo: Parece que isso faz parte do trabalho que você vem fazendo, que passa por aqui,
como você disse um dia.
Localizando essa certeza no encontro com Deus em um tempo futuro, C. relançou a
questão de outra forma: Será um encontro como filho diante do Deus Pai ou como um homem
no encontro com uma Deusa? Estou sem saber se me dedico à vida espiritual e espero
encontro com uma Deusa após a morte, ou busco uma mulher.
Essa questão, que ocupou C. durante certo tempo, não ficou sem resposta. No
desenrolar do trabalho de análise, certo dia, ele me comunicou já tê-la encontrado:
Irei ao encontro com Deus como filho de Deus [...] espiritualista. [...] Quanto ao
problema de mulher, quero encontrar aqui nesse mundo mulheres como tive na
década de 70. Sem subestimar as mulheres, poderia viver um amor possível com cada
uma delas, sem compromisso de casamento; casamento não quero, porque sofri muito.
152
Destaco, aqui, a delicada questão do amor, sobretudo com relação ao manejo da
ligação e da perda, ponto ao qual voltarei na discussão do caso.
Em outra sessão, C. disse:
Outro dia, estava no espaço cultural e ouvi claramente o
ES me dizer: Você também é daqui... do mundo da música... À frase interrompida o
analisando deu um sentido: Antes, eu não pertencia a nada nem a ninguém, agora pertenço a
esse mundo da música. Com o tratamento, comecei a pertencer...
O pertencimento a que C. faz referência, no entanto, está sujeito a interrupções. Ele
vinha participando de um coral e decidiu abandonar a atividade quando a professora foi
substituída por outro regente, descrito como exigente e perfeccionista, que pretendia
profissionalizar o coral, reproduzindo o modelo de escola. C. recusou a proposta, dizendo:
Renunciei ao coral porque nunca gostei de escola. Diante dessa frustração, decidiu mudar de
atividade, passando a participar, na mesma instituição, de um grupo de ginástica oriental,
cantando mantras e continuando um trabalho em torno do objeto voz. Nesse grupo, inicia uma
amizade com a professora. Noto como elege um duplo para fazer par, o que comentarei na
discussão do caso. Paralelamente, C. continuava se dedicando à
pesquisa musical e à tradução
de músicas em inglês e à poesia, o que mantém para uso privado.
Mais tarde, C. dirá que deixou de freqüentar o centro porque eles não acreditam em
Acaso, afirmando: Na minha religião tem lugar para o Acaso.
Tecendo uma história familiar
Nesse momento da análise, C. passou a elaborar algumas experiências que considerava
dolorosas, traumáticas em sua vida, começando a tecer uma história. Sobre a mãe, disse:
Acho que tudo isso aconteceu comigo porque havia muito exagero da minha mãe, que
queria que eu fosse o primeiro em tudo, uma perfeição, o novo Messias. Eu tinha
dificuldades... Ela não se cansava de me levar para a igreja com ela, era mais que
devota, ela era fanática... todo dia... Ela tinha problemas...
Nesse ponto, introduziu o avô materno: Minha família foi muito castigada por
tragédias. Referindo-se à morte do avô, que teria sido enforcado em acidente, disse: Isso
abalou minha mãe.
O máximo que ela conseguiu comigo foi me intelectualizar um pouco. Ela era
professora de inglês, ela exigia estudo, sonhava muito alto, me achava especial...
Minha mãe errou muito. Ela me criou para ela e não para o mundo, risco de eu ter
ficado desesperado quando ela morresse, procurando por ela na rua. Isso não
153
aconteceu porque minha irmã, percebendo o risco de “edipismo”, me levou para a
casa dela em outro estado, e depois N. [ex-mulher] me tirou de lá, da casa dos meus
pais.
Nesse ponto, teceu elogios à irmã, ao cunhado e à ex-mulher. Referiu-se, então, a uma
separação real, entre ele e a mãe, que lhe foi favorável:
Meu cunhado, que era estrangeiro, ficou horrorizado com a situação e forçou a
separação, me levando para trabalhar em sua firma fora do Rio. O B. [cunhado] fez
certo, tirou a mãozinha da mãezinha. Ela ficou chorando inconsolável, e eu também.
Foi horrível. Mas foi no trabalho em G. que aprendi a assinar meu nome nos
papéis da empresa, a lidar com documentos, o que me é útil até hoje, quando tenho
que resolver problemas na vida. Devo muito a eles... Eles me colocaram no caminho
da vida. Só agora, como estou melhor, estou percebendo isso...
Antes, eu era cópia da minha mãe, isso era também uma forma de doença. Hoje,
noto meu lado agressivo e estou assumindo isso... Antes, eu sentia raiva enorme e
calava. Agora, eu falo, aprendi a reagir, a me defender falando e não acumulo raiva
em silêncio. Antes, reclamava, mas não reagia na hora... é diferente...
Sobre o pai, disse:
Era um homem bom com os filhos, mas fanático [...] Ele fazia o culto do homem pelo
homem... Seguia um líder político integralista, com quem marchou nas ruas...
nazista... Foi daí que fiquei inimigo de mim mesmo, como são os judeus. [...] Pai fez
maus negócios e depois, com a ajuda do meu cunhado, se reergueu. Nós éramos
amigos, ele evitava os conflitos.
Quanto aos irmãos, comenta:
Agora tenho gratidão por minhas irmãs, mas antes eu não reconhecia o que elas
faziam, achava que elas tinham inveja de mim...
A verdade é que eu fiquei pirado, estático, na inércia, sem resposta. Fiquei como
minha mãe que dizia: estou aflita, estou nervosa, todo o tempo. Fui feliz no
casamento, mas acabou... Hoje, estou um neurótico em tratamento. Acho que daqui a
pouco poderei ficar sem análise... falta uma esposa...
Seleção de provérbios (9)
Nas sessões de análise, os ditos atribuídos por C. ao ES foram cedendo lugar à leitura
de provérbios orientais, previamente selecionados no livro Oriente-se. Eis um deles: “A quem
sabe esperar, o tempo abre as portas”. No meu caso, abriu depois de anos batendo de
porta em porta, pedindo ajuda.
Suponho que, com esse trabalho, C. introduziu algo novo: alguma distância entre o
sujeito e o objeto voz, o que comentarei na discussão do caso. Simultaneamente ao trabalho
com os provérbios, começou a mapear um novo circuito de restaurantes, cafés, cinemas,
154
livrarias e centros culturais em seu bairro, reduzindo significativamente o que chamava de
fobia social:
Nosso tratamento fez brotar pensamento em mim. Antes, eu ia sem pensar, ia por
ir, perambulava ao acaso. Agora, é outra coisa: sensação de cura e de felicidade. Estou meio
feliz.
A sigla SAD
Em uma sessão, C. contou:
Sempre quis ter uma sigla, como meu sobrinho, que tinha a TFP (Trabalho, Família e
Propriedade)
49
, reacionária, mas uma sigla... Agora tenho a sigla SAD (Som, Amor,
Dinheiro). tempos procurava uma terceira coisa, porque som e amor eu sempre
tive, dinheiro, passei a dar importância com o tratamento, [...] como resultado da
auto-estima; antes eu não ligava.
Em relação à questão do dinheiro, C. se manteve durante alguns anos com recursos de
seu salário ou do benefício previdenciário, o que era complementado pelo salário da esposa.
No entanto, com a separação conjugal e com a perda do benefício, passou a usar recursos de
poupança e a ser sustentado por uma irmã que administra os bens herdados da família
enquanto aguarda o prazo de dois anos para receber sua aposentadoria.
O novo aqui é que C. começou a se interessar pelas despesas no presente e por sua
segurança no futuro, a transformar uma poupança em previdência privada, e a depositar nessa
conta uma mesada que recebe da irmã, reserva que mantém fora do conhecimento da família,
extraindo disso certo prazer.
Mudança na condução da análise
Por uma contingência, um ano após a mudança subjetiva referida por C., participei-lhe
minha impossibilidade de continuar a atendê-lo, já que me ausentaria do país por um ano.
49
Ao enunciar a sigla TFP (Tradição, Família e Propriedade), C. referiu-se a Trabalho em lugar de Tradição.
155
C. mostrou-se surpreso e preocupado, dizendo: [...] logo agora, que eu estou tão bem,
não quero ter uma recaída
. Decidiu aceitar um encaminhamento para dar continuidade ao
trabalho que vinha fazendo. No entanto, solicitou a indicação de uma analista que o atendesse
no mesmo bairro, local que estava habituado a freqüentar. Considerei esse pedido e, após sua
decisão, no horário de sua sessão, apresentei-lhe a nova analista. No percurso, C. comentou
que tinha medo de se perder. Intervim, dizendo que ele podia escolher um ponto de referência
no caminho. Ele escolheu uma casa azul, que podia ser avistada à distância, vindo a dizer,
posteriormente, que esse ponto lhe lembrava a minha ausência. Mais tarde, comentou que se
aproximava e se afastava da casa azul, antes de cada encontro com a nova analista, o que
parece indicar a reiteração da operação de separação, relacionada com a transferência.
A primeira coisa que C. disse à nova analista, no ato da apresentação, foi que estava
ali porque se cuidava para não ter o mesmo destino do irmão, que não teve oportunidade e foi
engolido pela angústia.
Nesse período, C. deu continuidade ao seu tratamento com a nova analista, tendo
mantido contato comigo através de cartas, reafirmando sua intenção de retomar sua análise
quando eu retornasse. Considero relevante que tenha mantido seu processo de elaboração e de
estabilização com a nova analista, que pôde sustentar o trabalho que ele vinha desenvolvendo.
É importante assinalar que eu e essa colega analista temos uma parceria antiga de
trabalho, o que pode ter contribuído para a permanência e continuidade da análise de C.,
cabendo a questão do que é ou não passível de deslocamento no laço transferencial.
Com meu retorno às atividades, conforme previsto, C. viu-se diante de uma escolha,
tendo optado por retomar sua análise comigo, dizendo: Senti sua falta, mas consegui levar a
vida sem recaídas, porque tive bom encontro com a Dra. G.C
. Ele ressaltou o humor como
um traço dessa analista, estilo que o ajudou a dar continuidade ao trabalho que vinha fazendo
em sua análise e a enfrentar a fobia social.
Negociação em direção ao laço social possível
Destaco alguns fragmentos de sessões posteriores aquela na qual C. disse vir à análise
para contar o que se passa na vida, o que representou uma novidade em relação à posição
subjetiva de se lamentar (10).
Em uma sessão, referiu-se à inércia que às vezes ganha espaço, e, logo a seguir,
contou com humor que o nome da banda de rock Rolling Stones significa pedras que rolam.
Comentou o que M. Jagger teria dito, em entrevista – pedra que não rola cria limo – o que ele
156
decifrou, rindo: Deve ser por isso que eles vivem em tournée. Isso não pra mim, rodam o
tempo todo. Eles são roqueiros...
D: Mas, você acha que é possível, ‘dar um roller’, como dizem?
C: Isso é como dar uns bordejos...
D: Pois é, e o ritmo pode ser variado.
C: Só que estamos falando na teoria e, na prática, é outra coisa: quando dá isso, sinto
falta de força de vontade para romper a inércia.
D: Como você faz com isso?
C: Quando tenho compromisso, como vir aqui, ir no espaço cultural, dar umas voltas
no bairro, coisas que eu gosto, aí me arrumo... Outras vezes, curto a inércia, mas tem
hora que extrapolo... Outras, vou negociando, mas, às vezes, aperta demais e não
mais pra sair... Aí é horrível, perco a medida...
C: Encontrei uma solução parcial. Não me iludo com este mundo; desde criança, o
diabo me aprontou algumas surpresas... Ele veio para matar, roubar e destruir. A
diferença é que, agora, tenho Deus no coração: ele une, dá vida... Isso é o que
continua, mesmo quando fico sem fazer nada. Um Deus que vou encontrar depois da
morte.
Certo dia, C. mencionou, em tom jocoso, um comentário do psiquiatra Você está
bem, mas não totalmente, porque, cem por cento, ninguém está! – prosseguindo:
Estou contente porque abordei uma mulher no ônibus... Ela não quis me dar o
telefone dela, mas aceitou meu cartão... quem sabe...
Estou em bom momento com as empregadas, irmãs, tenho sua amizade, vou ao espaço
cultural, consigo fazer uma coisinha, porque me tratam bem e tem gente boa.
tenho chance... Deus tem parte nisso... Gosto de assistir shows nas praças...
Prefiro ser essa metamorfose ambulante que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo... como acontece com os fanáticos... da religião, da política...
Destaco, nessa passagem, uma posição subjetiva, metamorfose ambulante (11), que
possivelmente indica a
insondável decisão do ser. C., que retificou minha intervenção em
relação à
‘dar um roller’, disse-me que se tratava de buscar uma medida para lidar com o
gozo quando ele insiste.
Mais adiante, comenta as dificuldades em relação à medida/desmedida do gozo da
inércia:
C: Fico em casa, matutanto... pensando, isso vem de matueiro, bicho do mato, mato...
D: E fora isso?
C: Fora isso é a música, empregada nova, escrevi carta em inglês para prima.
C: Ontem, busquei coragem... Refutei o negativismo e fui à festa de carnaval do
espaço...
D: Como foi lá?
C: Fiquei feliz à beça de me ver integrado. Gosto de algumas pessoas. Lá, sou bem
tratado. O problema é que funciona como escola, as pessoas ficam insistindo,
convidando. Mas acho que com uma mulher lá, posso ter futuro... Acho que ela gosta
de mim. A gente se trata como namorados, nós nos abraçamos... mas sabemos que
157
casamento não dá certo. Ela também sofreu desilusões e não quer mais saber de viver
junto.
C: Como fico achando que vou tremer, coloquei rivotril no bolso e fui...
D: Então rivotril, um aliado?
C: Sempre tive problemas de tremer as mãos em público, e o rivotril faz as mãos
pararem de tremer e também um pouco de contentamento. Coloco no bolso, nem
sempre uso, vou negociando...
Destaco, nos ditos de C., a dimensão ética de uma escolha subjetiva que se recoloca a
cada vez, diante dos enigmas do real, num espaço/tempo de negociação entre a inércia e o
laço social possível.
Notas
(1) No percurso da análise, C. mudou sua posição em relação ao psiquiatra, passando de um vínculo ambivalente
para um
trabalho de parceria.
(2) Atualmente, C. reside sozinho, mas conta com duas empregadas que se revezam, com quem mantém contato
mais estreito. Convive com duas irmãs, que lhe dão suporte familiar. C. queixa-se, no entanto, de falta de
atenção e carinho, vindo a admitir, posteriormente, que sua insatisfação decorre do seu nível de exigência:
Caí
de nível, passei das mãos da esposa para a das irmãs.
(3) Para situar os desencadeamentos anteriores, apresento uma retrospectiva histórica:
- O analisando está com sessenta e um anos, e iniciou sua análise aos cinqüenta e um anos, face ao terceiro
desencadeamento psicótico mais evidente, precipitado pela separação conjugal. Ele é o mais novo de uma
família de sete irmãos. O irmão a quem era mais ligado, o primeiro acima dele na série familiar, se suicidou, por
defenestração, após separar-se da esposa. Esse fato ocorreu quando o paciente estava com tinta e dois anos, o
que, segundo ele, causou-lhe
perplexidade e enigma.
- C. Casou-se aos trinta e três anos com uma colega de faculdade da irmã, que conhecia algum tempo.
Durante dezoito anos, período em que esteve casado, não realizou tratamentos psiquiátricos regulares, tendo feito
uso de medicação prescrita por médico clínico. Dessa união não teve filhos. Não o lamenta, considerando-se sem
possibilidades de cuidar de crianças. Considera que essa união o protegeu, relatando boas recordações e
queixando-se, no entanto, de seu término. Durante o período em que esteve casado, C. pintou e comercializou
alguns quadros, atividade que deixou de exercer com a separação. No período da vida conjugal, a esposa arcava
com as despesas, para as quais C. contribuía com recursos de poupança.
- Dos vinte e seis aos trinta e dois anos, C. exerceu função burocrática no escritório de um advogado
conceituado, amigo da família. No intervalo entre essas atividades laborativas, a família se encarregou de manter
sua contribuição previdenciária, tendo sido registrado como corretor de imóveis, o que passou a considerar sua
profissão. Nota-se que as experiências de trabalho ocorreram em situações protegidas, ligadas à família. Mas C.
relatou ter exercido regularmente essas funções, interrompendo suas atividades aos trinta e dois anos, com o
segundo desencadeamento, ocorrido após o suicídio do irmão.
- Relatou sofrer de
fobia social desde os vinte e cinco anos, tendo abandonado o curso de Odontologia durante
uma prova prática, em que deixou cair das mãos os instrumentos do laboratório.
- O primeiro desencadeamento psicótico ocorreu em torno dos dezoito anos, quando permaneceu internado por
alguns dias em clínica psiquiátrica. Atribuiu a crise à decisão da namorada de terminar repentinamente o
relacionamento, o que foi vivido como abandono. Descreve a primeira crise:
Fiquei deitado na cama, esperando
a volta da namorada
. A boca ficou trancada, não comia nada. A espada que estava na parede dividiu minha
cabeça ao meio. Muito tempo depois, ela, para me provocar, mandou o convite de casamento com outro homem
.
Na mesma época, ocorreu a morte de um sobrinho, a quem ele era muito ligado, o que o afetou muito.
(4) Centro de Valorização da Vida, um serviço de utilidade pública que funciona 24 horas, com voluntários que
se dispõem a ouvir, sem tecer comentários, pessoas que querem falar de suas aflições.
(5) Verso da sica “Epitáfio”, dos Titãs. “Espécie de poesia satírica (em geral uma quadra) feita por um vivo
como se se tratasse de um morto” (Fonte: Novo Dicionário Aurélio).
158
(6) O movimento
beatnik, segundo C., foi um movimento revolucionário na cultura americana, que teve início na
década de 50 e questionava o
establishment. Sobre esse movimento nas artes, Vivian Rangel, em “Beatnik”
(Caderno B do Jornal do Brasil de 22 de outubro de 2005), citando Allen Ginsberg e Kerouac, destaca que o
nome surgiu a partir da junção de
beat e nik. Beat estaria referido à “experiência transcendental e revolucionária
[...] um entendimento do que acontece do lado mais negro da alma, estar ferrado, pulsar ou espancar [...] o
radical de beatitude”. O sufixo
nik, de sputinik, remeteria a elipses e vertigens. Comenta que muitos artistas
foram atraídos por esse movimento de contracultura, dentre os quais Bob Dylan, que teria fugido de casa, após
ler “On the road”.
(7) Fez do cantor roqueiro um ídolo. Esse ídolo tem parte do seu nome, mas isso nunca foi referido por ele.
Destaca a
voz inconfundível que o teria arrebatado e impelido a imediatamente comprar um disco. Comenta a
peregrinação religiosa do ídolo, com quem se identifica como
poeta vagabundo.
Comentou que colecionava objetos, escrevia letras e enviava fitas de músicas para o cantor gravar, e que o ídolo,
certa vez, lhe respondeu agradecendo o envio das letras e elogiando seu esforço em escrever letras de música em
inglês. Destacou músicas do cantor que lhe seriam endereçadas, e referiu-se à influência musical que suas letras
teriam tido na carreira do cantor, com quem manteve correspondência por mais de vinte anos. Mencionou um
Museu Bob Dylan que ainda preserva. Essa ligação fez com que ele se interessasse pela cultura americana,
aprimorando-se na língua inglesa, como autodidata. Referiu também que, antes de sair de casa, olhava para um
pôster de tamanho natural do cantor, baseando-se em sua imagem para enfrentar as situações da vida.
No entanto, recentemente, passou algumas sessões de análise comentando sua decepção com o cantor por ele ter
declarado ser um impostor, pois criara um mito em torno do seu nome, e por ele ter ido pedir a bênção ao Papa
depois de renegar os padres durante toda a vida.
Após certo afastamento, C. decidiu voltar a ouvir as músicas, questionando a idolatria. Ele admitiu ter-se
enganado ao fazer do ídolo o
novo Messias, pois o que achava que nele era uma busca de Deus se transformou
em
estrelismo e estratégia de marketing para vender discos.
A novidade foi que C. passou a aliar a crítica ao cantor, por sua mudança de atitude, com algum investimento, o
que possibilita a hipótese de certa flexibilização diante da surpresa e da frustração:
Se tinha um mocinho ali, esse
mocinho era ele, e não eu
. Passou a tomar a mudança de opinião do cantor e relacioná-la com o sinal dos
tempos
, do envelhecimento e da finitude, o que estria colocado para todos.
Tendo participando sucessivamente de atividades em diferentes religiões, em busca de Deus, C. relatou
passagens de livros de auto-ajuda, insistindo na questão da existência ou não de Deus ora na certeza da
existência (
Este mundo não pode ter surgido do nada, é criação de Deus), ora na certeza da inexistência (Se
Deus existe, como pode permitir que haja misérias, guerras, tanto sofrimento? Se Deus existe, como ele permite
que eu fique com toda essa angústia
?). Ele, como Jó, da passagem bíblica, sujeitou-se a provações para sustentar
sua fé em Deus.
Embora tenha visitado templos diversos, C. decidiu permanecer em um centro espírita, por compartilhar a crença
nos espíritos, inclusive em mensagens recebidas pelos médiuns do centro. Por alguns anos, freqüentou um centro
espírita onde permaneceu até o momento em que lhe foi dito que o
acaso não existe, o que implica uma
referência, segundo ele, ao resgate do
karma por atos cometidos em vidas passadas. C. deixou de freqüentar
assiduamente a instituição, mas permaneceu com alguma ligação, através de leituras e da ajuda com alimentos.
Mais tarde irá dizer que em seu pensamento religioso tem lugar para o
acaso.
(8) Eis alguns ditos de C. sob a forma de frases interrompidas que ele complementava oralmente:
- O ES me disse: Ele vai ficar bom... Ele está dizendo que estou no caminho certo dos tratamentos e agora tenho
Deus no coração.
- O espírito me disse: Se não fosse ela... Ele está falando da R. (Nome da irmã). Ela me ajuda pagando os
tratamentos... Se não fosse ela, não poderia vir aqui... nem tinha plano de saúde, risco de virar mendigo. Foi ela
que não me deixou cair nas drogas, sou da geração 70... Eu não tinha gratidão, agora tenho.
- O cantor fez você... Não acho, nisso o ES está enganado. Nem sempre ele tem razão no que diz. Eu me fiz
trabalhando, indo aos tratamentos e escutando músicas.
- O distinto fez assim... O ES está me dizendo que eu fiz certo e meu irmão fez errado... ele tirou a vida... Isso
não se faz.
- Se não fosse aquele valente... As coisas seriam piores. Isso é uma contradição do ES, que sempre me elogia,
me edifica. Acho que é pra dizer que, se meu irmão não tivesse morrido, a família não ia me ajudar... É verdade
que a família ficou mais cuidadosa comigo, mas ele não foi valente.
- O príncipe fez assim... O ES está dizendo que fiz bem em levar os alimentos ao centro.
- Ele te deixou... O ES critica meu irmão, por ter se suicidado.
-O artista fez assim... O ES me edifica, para dizer que estou no caminho certo, quando penso no que meu irmão
fez...
- O bonito fez assim... Ele está falando de mim, que estou lutando pra viver. Ele continua me edificando... Isso é
para dizer que meu irmão cometeu crime.
159
- Hoje, tenho outra opinião sobre meu irmão. Antes, tinha pena, sofria, pensando onde ele estaria. Hoje, acho
que ele escolheu. Ele quis se vingar da mulher... e sobrou pra mim. Depois de anos, não quero saber onde ele
está... Tem dias que até esqueço que tudo isso aconteceu... Ele foi um traidor, fazendo isso, traiu nosso pacto de
amizade. O ES me mostrou como ele agiu errado, não pensou em como eu ia ficar
.
(9) Eis alguns provérbios que C. selecionava para comentar na consulta:
“Tudo com moderação, inclusive a moderação.”
“Só porque a água está calma, não pense que não há crocodilo.”
“Um pequeno vazamento é capaz de afundar um grande navio.”
“Nem sempre uma coisa boa é tão boa como o nada.”
“Que o príncipe seja príncipe, que o súdito seja súdito, que o pai seja pai, e que o filho seja filho.”
Cada um tem
seu lugar.
“Quem quer colher rosas deve suportar espinhos.” Isso quer dizer aceitar os defeitos e não só as qualidades das
pessoas.
“Nada assenta tão bem no corpo como o espírito” Veja, até os chineses acreditavam nos espíritos.
“Não há que ser forte, há que ser flexível.”
(10) Certo dia, ele cantou versos da música “Epitáfio”, para ilustrar o que estava pensando:
C: Devia ter... aceitado as pessoas como elas são, a vida como ela é... a cada um a alegria e a tristeza que vier...
Esta música tem um quê de romântica, de ensinar a viver... Essa música diz muito de mim, isso de aceitar as
pessoas como elas são... Eu tenho dificuldades...
[Silêncio]
C: Estou no espaço cultural, vejo que tem gente que não tem nada a ver comigo, mas são gentis... antes, eu
iria embora, agora, estou podendo ficar e posso até curtir. Mas tem dias que acho ruim decidir em quem vou
dar beijinho, se puxo assunto... Ao mesmo tempo, estou curado, tomo cafezinho no meio das pessoas, danço...
C: Como uma pessoa normal, agora, tenho outras preocupações: dinheiro, trabalho... Chega a ser cômico como
pude ter raiva da minha irmã que me ajuda. Ela poderia me dizer: Vai trabalhar pra comer e ela nunca disse...
Porque esta é a lei do mundo.
D: E você diante da lei do mundo?
C. Vou me sentir melhor quando puder viver do dinheiro que trabalhei... [referindo-se à aposentadoria] Por
enquanto, acho que ser útil ao próximo também é trabalho.
Em outra sessão, comenta:
Estou fazendo média com as empregadas e com amigos evangélicos. [...] Não discussão porque quando
começam a querer pregar a Bíblia, eu digo que já fui evangélico, conto experiências...
Percebo que a depressão cede quando decido fazer alguma coisinha. Adoro colar objetos quebrados, com
araldite. Fico muito alegre... que nem sempre tem coisa quebrada em casa... até falei com minha irmã, pra
ver se na casa dela tem...
Estou enfrentando a fobia social, mas também gosto de ficar dedicado à música, tocando gaita, acompanhando
os roqueiros, curtindo, em casa...
O processo de análise de C. continua sendo atravessado por letras de músicas. Outro dia, ele trouxe versos em
inglês de duas músicas dos
Rollings Stones, dos quais destacou dois tempos: satisfação agora e ninguém tem
tudo o que deseja
. A partir desses recortes, questiona sua posição subjetiva em função de uma retificação
atribuída ao cantor, dizendo:
C: Se o M. Jagger não tem tudo o que deseja e passou a cantar assim... imagina eu... Ninguém tem tudo...
Encontrei uma solução parcial.
D: Solução parcial?
C: Porque conheço este mundo, tudo é passageiro e relativo. Mas sei a diferença: antes eu não pensava, era
o imediato; com tratamento, comecei a pensar... Você fez minha cabeça... [riso]
D: Sem o seu trabalho, nada acontece aqui. Veja como você hoje chegou trabalhando.
C: No ônibus, pensei: Estou meio feliz... Estou feliz desde ontem. Comprei cd novo, mas o diabo me persegue
desde pequeno... Tem horas que fico na inércia...
Não intervim. Mais adiante, C. voltou a falar, e, depois de permanecer em silêncio por um tempo, concluiu:
C: Era isso que eu tinha para dizer.
160
D: Paramos por aqui, então.
(11) Essa expressão é parte do verso “Prefiro ser esta metamorfose ambulante que ter aquela velha opinião
formada sobre tudo”, da letra de “Metamorfose ambulante”, de Raul Seixas.
Discussão do Caso C.: metamorfose ambulante
Como eixo da discussão, destaco o processo de construção de um ponto de ancoragem
no contexto do dispositivo de consultas de psicanálise aplicada à terapêutica.
C. me procurou por insistência da esposa, em função da angústia e da depressão
deflagradas pela crise no casamento, que conduziu, em seguida, à separação do casal. O
processo de retirada da catexia de um objeto é uma experiência delicada, pois evoca a relação
com o objeto perdido e põe em jogo as defesas do sujeito face ao vazio que se instala com a
perda que está sendo vivida. Que luto seria possível para esse sujeito? A perda atual
despertava lembranças de outras perdas de sua história, sobretudo a da primeira namorada,
fator precipitante do desencadeamento psicótico na adolescência. Que modalidade de gozo se
revelava? Com a retirada do investimento libidinal até então dirigido à mulher que vinha
funcionando como
apoio colateral surgiram fenômenos corporais e uma inibição acentuada
diante da vida, caracterizando um quadro que se configurou como o terceiro desencadeamento
psicótico.
Lacan (1955-56/1988), em “O Seminário, livro 3: As psicoses”, refere-se à alienação
imaginária, em que o duplo, como gêmeo, situa-se no eixo a-a’. Retomando essa questão, na
lição de 18/03/1975 de “O Seminário, livro 22: R.S.I.”, Lacan (1974-75, inédito) afirma que
“tudo o que enquanto par se reduz ao imaginário”, comentando que o problema dessa
modalidade de estabilização é a sua fácil dissolução.
Essa é, contudo, a alternativa escolhida por alguns sujeitos. Zenoni (2003a) comenta
que a presença de um semelhante, em certos casos, funciona como um recurso de
estabilização que vem reforçar, ou mesmo substituir, uma imagem do próprio corpo do
sujeito, quando ela não se impõe sobre o real do seu corpo. No caso de C., a perda da mulher
como objeto de amor revelou o lugar de duplo imaginário que ela ocupava, como mediadora
em suas experiências subjetivas diante do Outro.
É no ponto de ruptura em que a suplência vinha funcionando que se busca, na clínica
da psicose, reconstruir o laço social possível. Que recursos esse analisando mobilizou para
lidar com a dor dessa perda que provocou um excesso pulsional?
161
Pelos relatos de C., inferimos que os fenômenos de corpo, a identificação ao ídolo e a
escolha da empregada como objeto de amor fizeram alguma contenção do gozo. No entanto, o
interesse do analisando girava em torno da recomposição da dupla imaginária perdida.
Construção na análise
No percurso da análise, constatei a impossibilidade de C. reinvestir alguns projetos
anteriores. Em relação à sua atividade artística, ele revelou que não mais se interessava em
pintar nem comercializar seus quadros, colocando como condição a cena familiar que a
mulher sustentava. Comentou que sua produção endereçava-se à mulherou dependia de sua
participação no processo – perdendo o sentido com a separação.
O projeto de recompor a dupla imaginária perdida através de uma parceira substituta
não foi, até o momento, e segundo as expectativas do analisando, realizado. Ele segue
relatando suas tentativas de encontrar uma companheira, mas passou a fazer distinção entre
amor romântico e sexo, ressaltando suas dificuldades em relação ao primeiro. Destaca que
teme a paixão, pois sofreu com a separação.
Outro ponto de investimento do analisando é a música, campo em que se destaca um
interesse particular pela obra de um roqueiro. Qual seria o estatuto da identificação ao
roqueiro? Levantei a hipótese de que a identificação ao roqueiro surge como resposta à
inexistência do Outro. O ídolo está no registro do imaginário, no sentido de constituir um
outro idealizado, haja vista as referências à imagem corporal. Trata-se de um dos participantes
do movimento
Beatnik. Investindo-o como guru, o analisando institui alguma diferença, ainda
que imaginária, entre ele e o ídolo, o que tem efeito de pacificação do gozo.
C. mantém um acervo sobre o artista e se coloca como estudioso da obra do
compositor, a quem considera uma referência no universo do rock. Esse trabalho se
caracteriza por inferir novidades de estilo na obra do ídolo, extraindo dela e dos depoimentos
do roqueiro à mídia respostas para suas questões sobre Deus, religião, morte, sexo e
sociedade.
No auge de sua idolatria, C. enviou para o cantor cartas e fitas com suas composições,
na expectativa de que fossem por ele gravadas. As cartas foram respondidas por ele, através
de sua equipe, que o incentivou em sua dedicação em escrever poesias em língua estrangeira.
Essa correspondência durou alguns anos, fortalecendo a identificação que ele designou como
poeta vagabundo, matueiro, desengonçado.
162
Parece que, nesse caso, o gozo se fixava tanto na imagem do ídolo quanto no trabalho
da escrita de letras de música em língua estrangeira, que constituía um suporte para o objeto
voz. No entanto, esse recurso mostrou-se insuficiente para manter o sujeito no laço social
quando a relação conjugal se desfez.
Durante a análise, C. comentou declarações do ídolo à mídia em que ele assumia
posições antes recusadas em relação à religião. Isso contribuiu para algum enfraquecimento
da idolatria, revelando que as idéias defendidas pelo cantor constituem parte importante do
suporte da identificação. No entanto, novas interpretações que C. pôde dar às declarações do
cantor fizeram com que ele voltasse a ocupar o lugar de ídolo, porém mais humanizado.
Pode-se dizer,
a posteriori, que a decisão desse sujeito em vir às consultas falar de seu
sofrimento psíquico funcionou como um anteparo ao retorno do gozo, embora a implicação
subjetiva tenha vindo a ocorrer bem mais tarde.
O que favoreceu a transferência? Talvez a escuta, a presença real, a dissimetria, a
continuidade. No entanto, suponho que o fator decisivo foi a possibilidade de algum
investimento libidinal, por parte do sujeito, na transferência.
Assim, não teria havido, nesse caso, uma retirada total do investimento dos objetos,
como pode ocorrer na esquizofrenia. Isso indica que uma escolha de objeto narcísica pode vir
a acontecer, constituindo uma alternativa ao retorno do gozo nos órgãos do corpo.
O psicótico, sobretudo o esquizofrênico, recusa a solução considerada típica de laço
social aquela que se faz a partir do Nome-do-Pai sendo possível, por vezes, uma
alternativa. O analista espera, assim, uma oportunidade, consentida pelo sujeito, de ingresso
em uma via possível de construção. No caso de C., localizo essa oportunidade no momento
em que ele cantou o verso de uma música:
O acaso vai me proteger enquanto eu andar
distraído
. Esse foi o gancho que permitiu a sustentação de um trabalho, que ele vinha
realizando, com letras de músicas, algumas de sua autoria. Nas sessões, o interesse musical
transformou-se em trabalho regular, o que o analisando passou a intercalar com leitura de
poesias. Mais adiante, o analisando passou a trazer também os escritos com as frases
interrompidas, mensagens que relatou receber do ES (Espírito Santo).
Nomeações: Deus (alteridade), ES (objeto voz), Espiritualista, filho de Deus
Qual é o estatuto da articulação entre Deus (nome e imagem) e ES (objeto voz) na
experiência de subjetivação relatada por C.? Parece que a formulação Deus é Deus. Isso
basta! Sou espiritualista, filho de Deus constituiu, no campo da linguagem, um ponto de
163
articulação entre Simbólico e Imaginário, cujo efeito foi a produção de um sentido, como
efeito de gozo. Os dados indicam que essa construção foi tecida a partir da localização do
objeto voz no retorno
Real como alucinação, na experiência mística e nas mensagens
interrompidas. No processo de inventar uma alteridade, o relato da experiência mística como
prova da existência de Deus (Outro) parece ter favorecido a localização da voz (ES, espírito
bom, da parte de Deus) como objeto
a não extraído.
O lugar da experiência mística na construção delirante
No trabalho de análise, C. estabeleceu a distinção entre Deus, religião e igreja. Nesse
contexto, situou seu interesse na ligação com Deus, criticando as práticas institucionais que
exigem dinheiro e trabalho dos fiéis. Com isso, o analisando fez existir um Deus liberal, que
aceita sexo fora do casamento, diferente do Deus que a mãe lhe havia transmitido através da
religião católica, o qual descreveu como repressor.
Como efeito da experiência mística, o analisando afirmou a certeza de um encontro
com Deus após a morte: Deus existe, agora sei que não vou acabar em nada. Definindo esse
ponto de certeza no encontro em um tempo futuro, C. relançou a questão de outra forma: será
um encontro como filho diante de Deus Pai, ou como um homem no encontro com uma
Deusa? Decidindo-se pela primeira alternativa, C. explicou que o nome pode variar, mas
um Deus. Com isso, ele parece ter localizado em outro espaço/tempo um encontro com o
Outro. Suponho que foi essa localização, em uma curva assintótica, que implica certa
distância em relação ao objeto a não extraído, que teria produzido o efeito de pacificação,
comentado pelo analisando.
Foi a partir dessa elaboração delirante que alguma separação entre o sujeito e o Outro
Real se tornou possível. Essa solução delirante, embora mais simples, revela um ponto de
semelhança com a que foi formulada por Schreber
50
, em termos de um encontro futuro com
Deus.
Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan (1957-
58b/1998, p.578) concebe o Esquema I, nele demonstrando a dupla assíntota, que une o eu
delirante ao outro divino, de sua divergência no espaço e no tempo com a convergência ideal
50
Conforme relato de Freud (1911b/1980).
164
de sua conjunção. Nesse esquema, cuja referência matemática foi apontada por Freud
(1911b/1980), Lacan situa a solução delirante de Schreber.
Um ponto a destacar é que C. fez passar sua construção delirante pela transferência,
articulando-a com uma intervenção que eu havia feito:
Deus não pode ter um nome em cada
religião?
Ao formular Deus é Deus, isso basta, C. estancou o processo metonímico e, com esse
nome, fez alguma amarração, fixando parte do gozo, que retornava como angústia e depressão
persistente. Essa construção constitui um ponto de ancoragem: uma tentativa do sujeito de
levantar um anteparo ao vazio. O efeito desse processo foi o deslocamento da resposta sobre o
Outro, situada no futuro, apaziguando o retorno do gozo no corpo
. Como suporte para
sustentar essa construção, C. vem mantendo seu trabalho de análise e o investimento da rede
transferencial
51
.
O lugar do objeto voz na construção delirante
Nesse caso clínico, o processo de construção delirante, a partir da alucinação,
possibilitou um trabalho de restituição do eu, que produziu um efeito de subjetivação
(HULAK, p.2006).
Freud (1915c/1980, p.232) comenta que, na esquizofrenia, a hipercatexia da
representação de palavra é uma das tentativas de recuperação do objeto perdido. Essa tese é
confirmada, em “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”, no tocante ao mecanismo
da alucinação, que seria uma “tentativa de restituição do ego [eu], destinada a restaurar uma
catexia libidinal às idéias de objetos” (FREUD, 1917[1915a]/1980, p.262).
Lacan (1955-56/1988, p.331) situou a alucinação como letreiros que sinalizariam
trilhas na ausência da estrada principal, o que significa que esse fenômeno pode servir de pista
na construção de uma solução delirante.
Suponho que, no Caso C., o objeto voz, apesar de não ser extraído do campo da
realidade, seria localizável nos seguintes suportes: na voz do cantor de rock, na gravação de
sua voz, em fitas de músicas de sua autoria enviadas para o cantor-ídolo, na voz feminina que
acalma ao telefone, na voz alucinada do ES, na voz curinga do coral, e na prática do canto de
51
Na direção do tratamento, sustentei o endereçamento transferencial, introduzindo uma pluralização do laço, na
perspectiva da rede transferencial, a partir das escolhas do analisando, o que ele representou, posteriormente, em
um desenho.
165
mantras. É possível que o objeto voz não tenha o mesmo estatuto nessas manifestações, mas o
que destaco é a tentativa de o analisando tratar, por esses meios, a voz do Outro.
Para que serve a localização do objeto? A relação do sujeito ao objeto possibilita
localizar e tratar o gozo. Quando um sujeito psicótico insiste em não evitar o real (MILLER,
1996/1998), o objeto perdido, a ausência que insiste, é o derradeiro objeto. Isso é o que se
pode deduzir do texto freudiano “Além do princípio de prazer”.
Como vimos ao abordar as concepções de sujeito e de objeto, o olhar e a voz foram
incluídos por Lacan (1962-63/2005) dentre os objetos da pulsão, por ele redimensionados
como objeto
a. Em sua formulação, o autor referiu-se ao chofar, tipo de chifre ligado a rituais
religiosos e soprado em certas ocasiões. Notamos que o objeto voz não se refere à emissão
de voz; a voz, como objeto, é inaudível. Ela se torna audível como injunção superegóica:
Tu és (LACAN, 1972-73/1993).
Assim, a voz se constitui como voz
a-fônica como descreve Miller (1989/1994)
referindo-se à voz como objeto
a seja como efeito do objeto perdido, resto da operação
simbólica na neurose, em relação aos indivíduos inscritos na castração; seja como presença
onde esse objeto não seria esperado, na psicose.
Partindo de um fragmento clínico, em que situa o retorno da voz no real como ponto
de inflexão de uma mudança na posição do sujeito no circuito da invocação, Vives (2002, p.6)
afirma que ela implica, simultaneamente, o reconhecimento do Outro e sua falta, destacando a
subtração a uma dependência absoluta em relação ao Outro. Com relação ao Caso C., parece
tratar-se da pulsão invocante, a partir do Outro barrado pelo sujeito. Este confirma ou desdiz
as interpretações da voz atribuída ao ES, o que não é o mesmo que uma voz cujo significante
resta petrificado.
A construção do laço social, a partir do objeto voz localizado na alucinação
Trata-se, no Caso C., de alucinação auditiva verbal, escrita como voz do ES, Outro
Real (Supereu) que se dirige ao sujeito na posição passiva como Tu és.... Nesse caso, o sujeito
recebe a mensagem e, pela via interpretativa, interpõe comentários de assentimento ou não.
Que função tem a voz dessas frases interrompidas na construção delirante desse sujeito?
Em “O Seminário, livro 20: Mais, ainda”, Lacan (1972-73/1993, p.167) cita as frases
interrompidas como exemplo dos elos soltos do nó borromeano, logo, como invasão de gozo.
Cabe, aqui, a questão: quanto ao caso C., as frases interrompidas indicam a ruptura dos elos
do nó, como no caso de Schreber, ou uma tentativa de religar esses registros? Vejamos o
166
trabalho que o analisando faz a partir da voz. Nesse caso, o retorno do objeto no real, como
voz, nomeou um espírito,
ES, cujos ditos foram registrados como escrita, trabalho regular de
assentar no papel, numerar a seqüência, ler e interpretar parte desse material na análise
.
Qual a relação entre a localização da alteridade, Deus, e a referência aos ditos da voz
atribuída ao ES? Para C., o ES é um espírito bom que vem da parte de Deus. Baseando-me
nesses elementos, levanto a hipótese de que a construção em torno do nome de Deus cumpriu
a função de ponto de ancoragem para o gozo que antes retornava no corpo.
Parece-me que a localização da alteridade (
Deus), mediatizada pelo objeto voz (do ES)
que se dirigia ao sujeito como
Tu és, foi, na maior parte das vezes, acolhida como ele me
edifica, possibilitando um trabalho de restituição do eu. Nesse caso, a construção delirante,
que sustenta a certeza de um encontro com Deus após a morte, parece ter colocado uma barra
nas injunções do supereu. Embora não possa precisar, os elementos indicam um trabalho de
constituir o Outro e de enodar a dispersão no significante filho de Deus. Nesse caso, as frases
interrompidas teriam possibilitado, portanto, fixação, e não dispersão.
Separação significante a partir da alucinação
O ‘diálogo’ que C. passou a estabelecer com a voz parece ter contribuído para a
elaboração da perda do irmão, ocorrida alguns anos antes. Nesse contexto, o significante
traidor indica a saída de certo transitivismo em sua relação com o irmão. O que teria
possibilitado essa saída? Teria sido a nomeação significante do real da perda ou essa
nomeação como parte do trabalho de luto?
Como o trabalho se fez durante algum tempo em torno da ambivalência amor/ódio,
parece que a nomeação introduziu alguma distância entre o eu e o objeto, dimensões
subjetivas do analisante cujo suporte era o irmão. Esse trabalho de elaboração parece ter-se
dado, não pela via do luto, mas por uma via equivalente, a de uma perda na melancolia.
Freud (1917[1915b]/1980) estabelece uma distinção entre o trabalho da melancolia e o
do luto. No que concerne à melancolia, a tese freudiana é de que o conflito se passa dentro do
eu, em que uma parte vocifera contra outra. Segundo Freud, nesse processo, “cada luta isolada
da ambivalência distende a fixação da libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo-o e,
mesmo, por assim dizer, matando-o” (1917[1915b]/1980, p.290). Trata-se, no caso da
melancolia, de uma forma de afastamento do objeto, por distensão do investimento, dada a
modalidade de defesa da “regressão da libido ao eu” (p.291).
167
O significante traidor parece indicar essa distensão entre o eu e a imagem no eixo a-a’,
cujo suporte era o irmão, tendo como efeito um desinvestimento da identificação imaginária.
Todavia, esse processo de elaboração melancólica não modifica a hipótese de que se trata de
um caso de esquizofrenia.
Da escrita das mensagens da voz do ES aos provérbios orientais
Por certo tempo, C. referiu-se com regularidade à voz, cujos escritos foram cedendo
lugar aos provérbios, que ele escolhia de um livro para comentar. Qual a diferença entre as
frases interrompidas que C. complementa e os provérbios orientais que ele comenta?
No caso dos provérbios, trata-se de uma elaboração simbólica, indicando que o
analisando opera não com analogias, mas também com substituições metafóricas. O que
estaria em jogo, nesse exercício simbólico? Lacan (1972-73/1993, p.30) situou os provérbios
na vertente da significância, como efeito de significado, logo, como alheio ao que insiste
como causa. Se na neurose o provérbio opera como obstáculo à questão do sujeito,
perguntamos-nos por sua função na psicose, mais precisamente, nesse caso clínico.
Esse caso de esquizofrenia diverge da assertiva de que, nessa afecção, “todo simbólico
é real” (LACAN, 1954/1998, p.394). No entanto, indica que uma parte da simbolização não se
fez, em conseqüência da “falta essencial de um significante” (LACAN, 1955-56/1988, p.229).
Faço a hipótese de que se trata de um caso de esquizofrenia paranóide. No entanto, interrogo-
me quanto à função que a metáfora tem em seu processo de subjetivação.
Observei que, em seus relatos, C. fazia uso, não de metonímia, como também de
metáforas, tanto ao citar as letras de músicas e provérbios quanto ao relatar alguma
experiência no encontro com o outro. Sem dúvida, esse recurso, que é bastante utilizado pelo
analisando, parece ter uma função de, na conversação, aliar certo humor com as expressões
correntes na língua.
- Não adianta chover no molhado.
- Preciso tirar este atraso.
- Pedra que não rola cria limo.
- Graça que de graça não tinha nada, porque me custou bastante cara. [Comentando
sobre a perda da namorada].
- Prefiro ser esta metamorfose ambulante que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo.
Essas expressões, em geral frases curtas, indicam um uso metafórico da linguagem.
Contudo, remetem a uma significação existente na língua, o que assinala seu limite, sem
168
possibilidade de equivocação do sentido. Esse limite indica sua posição subjetiva, resultando
da ausência da metáfora paterna, cuja operação inscreve a falta fálica e resulta na extração do
objeto. Nesse caso clínico, a articulação entre significante e gozo pode favorecer um ponto de
fixação, equivalente a um ponto de basta, mas pode constituir também outra forma de gozo, o
gozo de
filosofar sobre a vida.
No processo de elaboração de C., intervim com cortes, visando à redução da vertente
interpretativa, tanto da alucinação quanto das letras de música, na localização do objeto voz, o
que produziu alguns efeitos de implicação subjetiva.
A ironia, as letras de música, os provérbios são os recursos que C. utiliza para
enriquecer, com certo humor, seu artefato lingüístico, e solucionar certas questões na cidade,
em resposta à
fobia social; logo, são recursos a serem preservados. O que é novo, no caso
desse sujeito, é que esse uso da língua revela um prazer e um modo de funcionar na vida.
Elaborações subjetivas e efeito terapêutico
No quarto tempo do percurso de sua análise, C. referiu-se a uma mudança de posição
na transferência, na qual eu, como analista, teria passado da posição de um muro das
lamentações para a posição de alguém a quem se fala. Com isso, C. assinalou que podia
escolher a posição subjetiva de sofredor a ser consolado ou a de sustentar seus ditos. Nesse
momento, houve uma mudança em termos de implicação subjetiva, o que gerou efeitos
terapêuticos, no sentido de o analisando assumir responsabilidades sobre seus ditos e
participar socialmente.
Os efeitos terapêuticos valorizados pelo sujeito foram a suspensão dos sintomas
(depressão e angústia) e a abertura para outras opções de vida. Suponho que esses efeitos
estão relacionados, não com a construção delirante que possibilitou um ponto de
ancoragem para o gozo do supereu, mas também com um trabalho particular e cotidiano que o
analisando vem fazendo com relação a manejar o gozo da inércia.
Uma questão de medida: o tratamento possível do gozo
Em uma sessão, C. citou a passagem bíblica na qual o apóstolo Pedro negou Jesus ao
dizer que não o conhecia, comentando: ...mas eu não quero negá-lo, agora eu sei que Deus
existe, embora eu não o tenha visto. De que negação se trata, já que esse analisando não opera
a partir do recalque em relação à simbolização primordial? Parece-me que esse comentário
169
exemplifica o argumento freudiano sobre o negativismo como o “desejo geral de negar” de
alguns psicóticos, “sinal de uma desfusão de instintos [pulsões] efetuada através de uma
retirada dos componentes libidinais” (FREUD, 1925c/1980, p. 300). Inferimos que esse
negativismo se inscreve como resposta ao Outro.
No caso de C., devido à ausência da
afirmação primordial, que depende da extração
do objeto, indícios de uma tentativa reiterada de inscrever simbolicamente parte da
experiência delimitando o objeto voz. Nesse sentido, o coral mostrou-se uma atividade muito
interessante, à qual ele aderiu com prazer, embora criticasse o repertório, que não coincidia
com o estilo musical de sua preferência. Esse equilíbrio instável foi rompido com a mudança
de regente, pois C. considerou excessiva a demanda do Outro, encarnado pelo regente que
queria profissionalizar o coral. Nessa situação, tomou a demanda do Outro da alteridade
simbólica na dimensão de imperativo superegóico, do Outro Real, renunciando à sua
participação no coral e fazendo valer sua identificação como
poeta vagabundo. Com isso, o
analisando chegou a se afastar das atividades, mas decidiu não abandonar o espaço cultural,
participando, após algum tempo, de outra atividade musical, organizada em torno do canto de
mantras.
No final do quarto tempo de sua análise, C. referiu-se à
medida que vem utilizando
para participar da vida. Inferimos que se trata de uma medida para regular o gozo da inércia
em relação ao investimento libidinal em algum objeto fora do corpo:
- Estou enfrentando a fobia social.
- Quando tenho compromisso [...] me arrumo... Outras vezes, curto a inércia, mas
tem hora que extrapolo... Outras, vou negociando, mas, às vezes, aperta demais e não
dá mais pra sair... Aí é horrível, perco a medida.
- Encontrei uma solução parcial.
- Prefiro ser esta metamorfose ambulante que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo, como acontece com os fanáticos da religião e da política.
A posição subjetiva de C. indica um sujeito em trabalho de reconstrução do eu através
do objeto voz, trabalho realizado desde o primeiro desencadeamento. No início da análise, C.
situou o eu (distraído) como objeto do Acaso (Outro Real) através de letras de músicas. Ora, o
que singulariza a transferência no Caso C.?
No início, C. estabeleceu uma transferência erotomaníaca que, com o trabalho, foi-se
deslocando para o que denominou amor platônico. A partir do quarto tempo do percurso,
modificou essa posição e passou a se referir à amizade como um laço de confiança. Destaco
como elemento singular da análise de C. o tratamento dado pelo sujeito ao objeto voz,
construção sustentada na transferência.
170
No quarto tempo desse processo, C. comentou a mudança que indica relativa
estabilização, nomeando-se com o S1
metamorfose ambulante, em oposição significante ao
outro imaginário fanático, enquanto o Outro Real (Acaso) ficou mantido a certa distância.
Parece-me que essa medida negociada em relação à inércia, na qual o objeto voz
circula sem excesso, favorece uma estabilização em direção a um laço social possível, cujo
ponto de ancoragem está em um encontro futuro com
Deus, em lugar de alteridade.
Em relação à questão abordada nesta tese aquela relativa à possibilidade de laço
social na psicose, mais especificamente, na esquizofrenia, em que a recusa ao laço com o
Outro é reiterada destacamos que esse sujeito, ao mesmo tempo em que rejeitava o laço,
tentava recriar, em outras bases, um modo de articular significante e gozo.
Nesse caso clínico, a possibilidade de pacificação do gozo passou por uma localização
do objeto
a, não extraído, logo, real. O trabalho do analisando revelou que ele vinha tratando
o objeto voz através da música, como tentativa de algum velamento da voz do Outro. A
construção delirante estabeleceu, nesse caso, um divisor de águas, em função da pacificação
do gozo e da suspensão de seu retorno no corpo. Trata-se de uma solução parcial não
compartilhada, cujos efeitos terapêuticos são destacados pelo sujeito.
1.2 - Caso S.: Líder de Vendas
Esse caso, de uma jovem mulher psicótica, com diagnóstico de esquizofrenia, foi
escolhido para nossa pesquisa por revelar como um ambulatório de saúde mental pode intervir
tendo como eixo de trabalho a clínica do sujeito (ZENONI, 2000). Neste relato, destaco o
modo singular de vinculação da analisanda ao laço social, o que me possibilita questionar as
estratégias de intervenção, o manejo da transferência e os critérios de alta no ambulatório.
Zenoni (2000) comenta “que é quando se trata de encontrar a solução social que a
verdadeira problemática clínica começa”. Destaca-se aí que não há clínica que não seja social,
que o sujeito está referido ao Outro da linguagem, como alteridade. O ambulatório
funcionou, no caso dessa analisanda, como lugar constante de ancoragem na rede social,
através da sustentação do trabalho de transferência no ir e vir dos encontros. Quando falava,
S. manifestava sua impotência frente aos desafios da vida cotidiana devido às repetidas
frustrações e aos impasses no convívio familiar, marcado por violência e ameaças constantes
de ruptura social. No entanto, uma demanda se fazia constante: o desejo de voltar ao trabalho
e ter seu próprio dinheiro.
171
No percurso do atendimento, foram construídas parcerias pontuais com projetos de
atenção social ligados a outras instituições. No entanto, a paciente se engajava e
sistematicamente abandonava esses projetos, insistindo na idéia de retorno ao trabalho, que
parecia inviável nas circunstâncias dadas, mas que a movia para continuar indo às consultas e
sustentando a transferência
.
1. Do silêncio ao segredo
É importante dizer que, após a revelação de um segredo pelo sujeito, é possível
situar um tempo anterior, no qual se destaca o silêncio, considerado como um primeiro tempo
do trabalho. No momento das entrevistas iniciais, S. estava com trinta e cinco anos. Havia
tido um surto psicótico oito anos, após a morte da mãe, do pai e de um irmão em curto
espaço de tempo. Solteira, vivia com duas irmãs e um cunhado na casa que fora de seus pais e
que estava em inventário. Na época do surto, trabalhava como vendedora em uma loja de rede
nacional e obtinha, com as comissões, um bom salário. No momento, não tinha qualquer
atividade, e esperava que alguém lhe organizasse o tempo e a rotina, que lhe indicasse aonde
ir. Vagava pelas ruas, afirmando, quando questionada pela família, que estava buscando
emprego. Conforme o relato da família, usava o mesmo medicamento há oito anos sem
apresentar mudanças, embora não tivesse voltado a ser internada. Perdeu os documentos e os
direitos previdenciários, passando a depender integralmente das irmãs. S. aceitou o
encaminhamento do psiquiatra para a psicóloga, tomando-o como uma ordem médica, sem
questionar. Nas consultas, permanecia em silêncio durante um bom tempo, e, quando falava,
repetia: Quero voltar ao trabalho, sou boa vendedora. Levantei a hipótese de que sua
presença revelava seu consentimento subjetivo.
Essa demanda, no entanto, parecia impossível naquele momento, devido ao estado
confusional, bem como ao estado físico muito debilitado. Embora S. insistisse na idéia de
voltar ao trabalho, não cuidava da aparência e da higiene, e tinha dificuldade de controlar os
esfíncteres, por não perceber o funcionamento de seu corpo. Dizia: Quando percebo, já
aconteceu. Essa atitude gerava sérios conflitos familiares. Vivia pedindo desculpas e voltando
a repetir os mesmos comportamentos, que uma de suas irmãs julgava propositais, destinados,
como ela disse, a sacanear a família.
Ao longo do tempo, as tentativas de envolver os membros da família no tratamento
fracassaram. Consideravam-no perda de tempo e diziam não ter mais qualquer esperança na
recuperação, sendo constantes as críticas quanto à preguiça e à falta de interesse de S..
172
Restava, é verdade, um vínculo entre S. e uma das irmãs, que respondia quando solicitada.
Contudo, toda demanda era de hospitalização, para evitar o horror provocado pela
desagregação psicossocial.
S. revelava sinais de um laço transferencial, valorizando sua hora e comparecendo
com muita assiduidade, o que foi tomado como uma forma de demanda, a ser construída.
Referia-se às consultas com a psicóloga em outros atendimentos clínicos no ambulatório. No
entanto, durante os encontros, permanecia por pouco tempo, insistindo na idéia de voltar ao
trabalho. Queria voltar a ter o seu dinheiro e mostrava-se muito triste com as brigas em
família.
Progressivamente, S. passou a permanecer por mais tempo na sessão, mencionando, de
modo desarticulado, acontecimentos de sua vida antes da crise, sem querer aí se deter.
Ressaltando que, quando trabalhava, tudo era diferente, dizia estar ali por isso, para voltar
ao trabalho, afirmando não querer falar do passado. Certo dia, S. manifestou angústia,
dizendo: E quando A. [irmã] morrer, quem vai cuidar de mim? Com quem vou contar para
me dar um prato de comida? Tenho medo do futuro. E saiu, em seguida, para não pensar.
A direção que dei ao tratamento de S. foi a de sustentar, ao longo de cinco anos, um
lugar, um tempo, em que o silêncio e pedaços de história se alternavam; aguardando uma pista
quanto a uma possível suplência. Em seus relatos esporádicos, destacava-se a posição
subjetiva de se colocar como objeto de gozo do Outro, encarnado por alguns membros da
família. Ao mesmo tempo em que insistia na idéia de voltar ao trabalho, S. mencionava
tentativas de participação na comunidade através de cursos livres e encontros sociais na
igreja. Quanto a essas tentativas, destacava as dificuldades nas trocas sociais, o que reforçava
sua impotência e a da família frente às resistências de alguns participantes desses grupos em
lidar com a diferença.
Como S. demonstrava interesse em participar de alguma atividade, estabeleci contatos
com a rede de serviços em seu território social, fazendo parcerias com a equipe de um
hospital-dia. Essa tentativa não funcionou, pois a família se queixava de que a paciente
queria perambular, repetindo andanças pela rua. Com efeito, S. saía de casa e sumia,
provocando atitudes restritivas e de vigilância por parte da família. No atendimento, S. contou
que queria participar das oficinas, mas que não poderia porque o referido hospital ficava perto
do trabalho do cunhado, que era gente ruim, em quem não confiava. Isso problematiza a idéia
de território. Não basta que existam recursos no território de residência do usuário dos
serviços da rede; é preciso traçar o território onde o sujeito efetivamente circula.
173
Esse quadro repetitivo, de quase inércia, foi quebrado com repentinas faltas da
paciente, que era muito assídua. Após o contato da analista, a paciente retornou muito aflita,
dizendo que tinha um segredo para contar e que estava proibida de falar dele para qualquer
pessoa. Visivelmente transtornada, contou que estava sendo espancada regularmente pelo
cunhado companheiro de uma das irmãs que a ameaçara com a promessa de mais surras
caso contasse a alguém. Disse ter decidido não vir mais ao ambulatório, afirmando ter
comparecido porque havia recebido meu telefonema. Ao finalizar o relato, queria que eu lhe
prometesse guardar segredo:
A Sra. guarda segredo, não é? Pelo amor de Deus, ele acaba
comigo, ele me mata!
Diante de seu relato e de seu apelo de cumplicidade no silêncio, busquei comprometê-
la com seu segredo. Após um certo trabalho, S. decidiu contar o fato para a irmã mais velha,
na minha presença. A irmã se emocionou e se envolveu com o problema, e o constatou,
presenciando uma cena de violência ao chegar a casa fora do horário habitual, tendo sido
também agredida pelo cunhado, que decidira colocar a paciente nos eixos. Isso gerou uma
crise familiar sem precedentes.
Frente à solicitação da irmã, que insistia em um afastamento, sugerindo a
hospitalização como medida de proteção para a paciente, e com o agravamento dos episódios
de violência, o trabalho clínico incluiu atendimento familiar buscando uma saída para a crise.
S. e sua irmã decidiram registrar uma queixa na delegacia. Informei-as sobre o recurso do
S.O.S. Direitos do paciente psiquiátrico, do Instituto Franco Basaglia, que as orientou a
registrar a queixa na DEAM, oferecendo suporte jurídico ao processo. No entanto, a outra
irmã avisou ao marido, que se feriu propositalmente, registrando também uma queixa na
delegacia, contra a cunhada. A queixa resultou em um processo jurídico contra a irmã mais
velha da paciente. A crise familiar teve desdobramentos importantes. Curiosamente, após
esses contatos com o SOS e com a DEAM, onde foi inscrita, e tendo em vista ameaças de
morte por parte do cunhado, S. passou a se interessar por sua segurança e pela segurança da
irmã, assumindo certas responsabilidades e saindo da inércia habitual.
Segundo S., sua irmã decidiu que ela não poderia permanecer sozinha em casa,
exposta a agressões enquanto aguardava a decisão da Justiça sobre o pedido de afastamento
do cunhado do convívio familiar, passando a levá-la consigo, provisoriamente, para as escolas
onde trabalhava como professora. Esse esquema funcionou durante alguns meses. S.
aguardava pela irmã durante toda a jornada de trabalho, indo de uma escola para outra,
convivendo com outros funcionários. Mas era uma situação insustentável, o que levou a
família a insistir na idéia de hospitalização.
174
Com essa crise, um irmão, que morava fora do núcleo familiar, decidiu pagar um
plano de saúde, visando a exames que justificassem uma internação hospitalar. Assim, a
paciente foi vista por um psiquiatra do convênio, que mudou sua medicação, nela incluindo
risperidona, com ótimos resultados
52
. A paciente ficou mais desperta, passando a controlar
seus movimentos repetitivos de corpo e também seus esfíncteres. S. decidiu permanecer com
esse psiquiatra, tendo em vista a melhora apresentada. Sobreveio, no entanto, nova crise: a
família não podia pagar o custo da medicação, que, não sendo prescrita por um médico do
ambulatório, não podia ser obtida na farmácia da rede pública.
2. Da demanda de medicamento à tentativa de reabilitação social
Nesse momento, negociei a demanda da família por um médico da rede pública que
prescrevesse a nova medicação, dela obtendo o compromisso de viabilizar a participação de S.
no CAIS
53
, um serviço de atenção psicossocial alinhado à perspectiva da reforma psiquiátrica.
O serviço ficava, no entanto, fora de seu território geográfico, já que, em sua área de
referência, o único serviço de atenção diária era inviável, tendo em vista a proximidade com o
trabalho do referido cunhado.
Para tal, trabalhei previamente a parceria com a equipe desse serviço, que, no início,
colocou uma série de obstáculos, administrativos e técnicos, especialmente o fato de a
paciente estar freqüentando um ambulatório, o que é considerado um passo adiante no
processo de desospitalização. Propus um trabalho de parceria, comprometendo-me em mantê-
la em atendimento paralelamente à sua participação nas atividades. Com o acordo, demos
início a uma modalidade de intervenção prevista pela clínica ampliada. Destaco, aqui, as
restrições iniciais da equipe quanto à participação da paciente nas oficinas. É preciso
problematizar a idéia de hierarquização entre os serviços substitutivos da reforma psiquiátrica.
A participação de um paciente de ambulatório em serviços de atenção diária não representa,
necessariamente, um retrocesso.
Na oficina, a paciente se revelou rapidamente como vendedora e, depois, como
responsável pelo bazar, resgatando sua experiência prévia ao desencadeamento da psicose
52
Em contato com o psiquiatra que a acompanhava, fui informada de que a Risperidona é um neuroléptico
qualitativamente superior aos outros antipsicóticos, especialmente em relação aos sintomas negativos.
53
O CAIS (Centro de Atividades Integradas em Saúde Mental) é um núcleo que funciona no IPP/MS, e que tem
o objetivo de oferecer assistência intensiva e integral, intervindo nas situações de sofrimento psíquico através de
uma programação terapêutica que inclui oficinas e atendimento terapêutico.
175
como vendedora em comércio especializado. Nas sessões de análise, S. passou a falar das
dificuldades de relacionamento com outros pacientes, bem como da alegria em ter recebido
bônus com as vendas, com os quais comprou presentes de Natal para a família e objetos para
si mesma. Comentava também as brigas, as paqueras e sua irritação com alguns pacientes e
com a equipe. Nota-se uma mudança na posição do sujeito, na qual se destaca alguma
invenção em torno da atividade de vendas.
S. comentou ter substituído temporariamente as andanças pela rua pela permanência
na instituição durante o dia, passando a estabelecer laços de convivência, o que gerou efeitos
em suas relações familiares. A partir da participação na oficina da beleza, S. passou a cuidar
de sua aparência, tendo se transformado em uma mulher vaidosa. A situação familiar se
estabilizou com a saída de seu cunhado da casa onde moravam, após uma agressão à própria
mulher. Isso contribuiu para uma melhor convivência entre as irmãs. S. passou a assumir
funções das quais até então se mantinha excluída, como cuidar da alimentação do sobrinho,
contar-lhe histórias, além de cuidar de si mesma.
Do ponto de vista da política institucional, alguns objetivos foram atingidos. O CAIS,
como um ancoradouro social, constituiu um outro lugar em relação à família e à relação
transferencial com a analista. Essa triangulação possibilitou a permanência da paciente em
casa, ao mesmo tempo em que um suporte institucional contínuo dava certa assistência, com a
garantia de medicamentos.
Todavia, do ponto de vista da política da psicanálise, que se situa a partir da clínica do
sujeito, foi possível reconhecer que o trabalho clínico não podia cessar, devido à insistência
da paciente em voltar ao trabalho, embora isso implicasse sua permanência por mais tempo no
ambulatório. Certo dia, a analisanda me comunicou que havia saído do centro de atividades
após ter-se contrariado, de modo incontornável, com outra paciente quanto à administração do
bazar. Permaneceu, no entanto, vinculada à assistência psiquiátrica, mantendo o ótimo vínculo
estabelecido com o médico do ambulatório e garantindo, assim, a medicação.
3. Dos ancoradouros institucionais à circulação na cidade
A analisanda recusou-se a conviver em qualquer serviço de atenção diária. No entanto,
manteve o resgate de sua atividade de vendedora iniciado com a sua participação na oficina
do bazar – decidindo vender objetos recicláveis coletados na rua, junto com outros ex-
pacientes da instituição, para obter melhor rendimento. Inicialmente, não foi fácil para a
176
paciente sustentar sua decisão junto à família e à equipe, pois a nova atividade foi percebida
como perda de referências sociais.
Circulando entre moradores de rua e estabelecendo algumas formas de trocas
simbólicas, S. permaneceu residindo com a família, não sem dificuldades. Nesse período, S.
sustentava o laço transferencial, vindo para o atendimento quando julgava necessário para
resolver problemas práticos, isto é, sempre que acontecia alguma encrenca na família ou na
rua. Decidiu assim permanecer ligada ao ambulatório – sem comparecer regularmente – o que
foi por mim aceito. Coloca-se, aqui, a questão relativa à alta e ao desligamento. S.
evidenciava uma transferência a mim endereçada e situava o ambulatório como lugar de
referência, indicando a necessidade de uma discussão, à luz das propostas da reforma
psiquiátrica, relativa à flexibilização dos critérios de alta.
Nesse contexto, surgiu, através de um morador de rua que indicara a S. um posto de
entrega do material coletado, uma nova oportunidade. No referido posto, S. estabeleceu
contato com um vendedor de revistas, decidindo também se dedicar, após treinamento, à
venda do material. A nova atividade, da qual fui informada posteriormente, veio a
funcionar como a retomada de um lugar social, a partir de seu engajamento contínuo como
vendedora da revista Ocas
54
. Em pouco tempo, S. conquistou um lugar dentre os vendedores
da revista, reinventando um saber prévio ao desencadeamento psicótico, quando se destacava
com líder de vendas em loja de grande porte. Em função de seu desempenho, S. conquistou
melhores postos de venda da revista, vindo a ocupar um dos melhores, em uma universidade,
e por vezes obtendo, dizia, um rendimento superior ao da irmã como professora.
A partir do significante líder de vendas, S1 que a ressituou em um dado lugar no
campo do Outro, S. circunscreveu uma parte do gozo andanças pela rua e vigilância da
família ao qual estava submetida. Ao mesmo tempo, vender revistas é uma atividade que a
situa na história familiar, que seus pais eram proprietários de duas bancas de jornal, onde
seu irmão e sua irmã continuam trabalhando, mas onde nunca, dizia, houve lugar para ela.
4. Sobre a rede transferencial: território e laço social
54
A revista Ocas é publicada pela Organização Civil de Ação Social. Segundo seu editorial, a interação
decorrente da compra e venda da publicação permite que os vendedores estabeleçam contatos e dêem novos
passos de reintegração. Os vendedores, após treinamento, compram as revistas que veiculam artigos diversos
sobre sociedade e cultura e, portando crachá de identificação, a revendem em locais preestabelecidos, como
portarias de universidades, cinemas, teatros. O valor de revenda, portanto, o lucro do vendedor, é
preestabelecido.
177
Nesse caso clínico, os momentos de crise foram propícios para introduzir alguma
mudança de direção no tratamento. A precariedade, um atributo de todo sujeito, revela-se,
sobretudo, diante dos enigmas e surpresas da vida. No recorte desse percurso clínico, pode-se
perceber a precariedade da paciente, da família e da instituição de saúde, o que indica que o
lugar do analista em um ambulatório não se limita a conduzir uma análise, nem a
exclusivamente construir um delírio, até porque, muitas vezes, ele não se manifesta com tal.
Nesse caso, o trabalho foi na direção de estabelecer parcerias possíveis e pontuais nas
crises que se instalavam e com as oportunidades que iam surgindo. A estratégia era buscar um
modo de operar sobre a surpresa no sentido de circunscrever algo do Real que insistia nas
andanças na rua através de uma aposta na transferência, visando a inscrever uma perda de
gozo e à construção de algum laço social possível. Isso implicou na assunção da
responsabilidade de S. por seu ato, inclusive o de vir a se recusar a algo oferecido pela
instituição.
O presente caso clínico é paradigmático de como a rede que efetivamente opera é a
rede transferencial, isto é, a rede que vai sendo tecida pelo sujeito em seu próprio percurso
para além dos encontros com a analista e das propostas da rede institucional a partir de
encontros contingentes nos quais o gozo se faz presente. É o que está em jogo quando S.
decide deixar o programa de reabilitação psicossocial, a oficina do bazar, para conviver com
outros pacientes que conheceu na instituição mas que se articulavam na rua por conta
própria, coletando objetos recicláveis, circulando na cidade sem se transformar em uma
moradora de rua, já que retornava para casa todos os dias.
No momento dessa passagem, pareciam evidentes os riscos sociais da via escolhida
por S., que se colocar como coletora de latinhas na rua poderia facilitar uma forma de
exclusão social. Assim, sua decisão poderia ser tomada como um retrocesso no processo de
reabilitação. No entanto, o risco seria, aqui, o da invalidação, pela equipe, da responsabilidade
do sujeito pelo próprio ato, instituindo a tutela, ainda que sob a forma de cuidados, o que
representaria uma contradição com a meta da reforma.
O caso de S. revela que foi justamente a partir do encontro com outros vendedores de
rua que um ponto de virada foi possível. Ao decidir se engajar nas vendas da revista Ocas, S.
tornou-se uma líder de vendas, e, em pouco tempo, cerca de três meses, redimensionou suas
trocas simbólicas.
Qual seria o estatuto do significante líder de vendas? Trata-se de um nome, mas não
de um nome qualquer, que resgata um certo lugar em que S. já havia se situado em relação
ao Outro, antes do desencadeamento, e que teria funcionado como uma suplência à foraclusão
178
do Nome-do-Pai (LACAN, 1956-57, p.234). Esse nome situa também um certo modo de fazer
algo com o gozo seja inscrevendo suas andanças na rua, seja ultrapassando seu próprio
desempenho e o de outros vendedores – apontando para a construção de um
laço social.
O último encontro de S. comigo ocorreu após um intervalo de seis meses, quando me
procurou para tratar de mais um problema prático. S. havia sido convidada, por bom
desempenho, a participar de um seminário organizado pela coordenação da revista Ocas, mas
sua irmã havia colocado obstáculos, que teria de permanecer durante três dias fora de casa,
em uma instituição. Na ocasião, S. comentou a programação do evento, abordando sua
angústia quanto ao modo de encaminhar a questão com a irmã, que, segundo ela, não gosta de
agregação social. S. circunscreveu sua angústia frente à separação: como fazer isso sem brigar
com a irmã? Surgiu o significante
negociar e também o número do celular do coordenador do
encontro, que havia se oferecido como mediador caso fosse necessário. Certas passagens que
implicam alguma forma de separação são por ela reconhecidas como a hora de falar com a
minha psicóloga
, com a Sra., para juntar a minha força com a sua, o que indica que S.,
embora não freqüente o ambulatório regularmente, ainda deseja manter o laço transferencial.
Coloca-se, assim, a questão relativa à finalização do trabalho.
Pode-se dizer que a cidadania, nesse caso, veio por acréscimo, a partir da atividade de
vendas como um lugar social a ser conquistado a cada vez, e a partir de negociações em
situações de conflito. Com efeito, não se tratou aqui de obtê-la por um acesso franqueado aos
direitos sociais, o que torna mais complexa a proposta da atenção psicossocial. Seis anos se
passaram desde que S. tornou-se participante, como vendedora, do Projeto Ocas. Nesse
período, tivemos raros encontros, mas, curiosamente, um deles ocorreu fora do contexto do
ambulatório, no campus universitário, quando ela vendia a revista e eu pude registrar esse
trabalho.
179
CAPÍTULO II
A PRÁTICA INSTITUCIONAL
A prática institucional privilegia a presença da psicanálise em relação ao dispositivo
de consulta
. Este último supõe a presença do analista e a prática das sessões regulares,
enquanto a primeira é exercida entre vários de modo orientado pela psicanálise. Segundo
Zenoni (2002), trata-se de considerar se a prática institucional pode ser orientada pela
psicanálise, “se os discursos que atravessam a instituição podem ser orientados pelas questões
que a psicose coloca para a psicanálise, e não se a psicanálise pode se inscrever entre outras
práticas”.
O divisor de águas aqui é a possibilidade de uma instituição, onde circulam diferentes
discursos, e que está necessariamente inscrita no discurso do mestre, ser orientada pela
psicanálise, que privilegia a clínica do sujeito, o que implica considerar não apenas que ele
está no campo do significante, mas também que ele está no campo do gozo.
Segundo Zenoni (2002), a opção pela prática institucional se justifica pela
especificidade de certos estados clínicos da psicose, nos quais o “sujeito está mais próximo da
passagem ao ato e do desligamento de todo laço social”. É o que se apresenta sob a forma de
atos violentos ou suicidas, estupor, errância, isolamento radical, uso devastador de drogas,
constituindo um risco para o sujeito e para o outro. Nesse momento, é necessário um
acolhimento coletivo e institucional.
Situada na perspectiva do segundo axioma de Lacan, a orientação de trabalho que
Zenoni (2002) propõe para a prática institucional é retirada do ensinamento da própria
psicose, que, em lugar de operar com o significante Nome-do-Pai, opera tentando localizar e
tratar o gozo do Outro, dizer-lhe não. O autor destaca que o tratamento do Outro não visa à
regra pela regra nem à regra terapêutica em função do estado de saúde. Este último pode
questionar a dimensão de exceção da regra terapêutica.
A concepção de tratamento do Outro, seja este referido à alteridade do sujeito ou à
alteridade do praticante que está ao seu lado, supõe a necessidade de uma intervenção na
contingência que se apresenta em uma dada situação de convivência, logo, de uma
intervenção caso a caso. Trata-se de intervir, por exemplo, diante de uma demanda repetitiva,
diante de algo novo ou inusitado na enunciação do sujeito. De acordo com a elaboração de
180
Miller (1983/1996) em “Produzir um sujeito?”, a orientação de tratamento na psicose seria
favorecer a passagem, pelo sujeito, da posição de objeto, que situa o Outro no lugar do gozo,
para aquela em que ele se faz representar por um significante. De que lugar o analista ou o
praticante opera para favorecer essa passagem do sujeito?
Em “La conversation de Arcachon”, Laurent comenta a posição do analista no
tratamento na segunda clínica lacaniana, apontando para uma decisão do analista em se fazer
destinatário, por supor que há uma entrada possível. O que Laurent destaca é que, na segunda
clínica,
“[...] trata-se de se fazer o ponto de basta e o destinatário, com esses pontos ínfimos [como um
pequeno movimento de olhos, por parte de uma criança]. É necessário entrar na matriz do
discurso através do signo, e não através do sentido, o que supõe decidir que há ali uma entrada
possível” (DEFFIEUX & LA SAGNA, 1997, p.186).
Essa é a aposta de algumas instituições de referência no campo da prática institucional,
as quais vêm trabalhando algumas décadas a partir da psicanálise inventada por Freud e
orientada pelo ensino de Lacan. Quanto à prática que realizam, tais instituições se referem a
dois eixos: o tratamento do Outro e a invenção do sujeito. Cada uma delas, contudo, possui
uma forma própria de realizar essa proposta, além de incidir, na intervenção, o estilo do
praticante.
Em que consiste o tratamento do Outro e qual seria a sua finalidade? Inferimos que se
trata de uma estratégia clínica que visa a estabelecer as condições para o trabalho de parceria
entre o praticante e o residente. Passaremos a examinar como ela se realiza na instituição
Antenne 110, para, em seguida, examinar como é manejada no Foyer de l’Equipe e no
Courtil. Realizaremos esse percurso a partir da questão: como o tratamento do Outro se
articula com a construção da suplência ou do ponto de ancoragem?
Baio (2000)
55
, em “Les conditions de l’Autre et l’ancrage”, destaca três eixos a partir
dos quais situa as questões e impasses com que cada um dos educadores é confrontado
quando uma criança psicótica tenta “se produzir, se ancorar como sujeito no campo do Outro”
(p.19). São eles:
1
o
: Designado como condição do Outro, refere-se às condições às quais o educador (técnico
de referência) deve responder, como parceiro de trabalho da criança, para favorecer a
passagem através da qual ela se produz como sujeito. A prática entre vários foi inventada
para responder a tais condições, que, segundo Baio, são duas: o Outro que sabe e o Outro que
sabe não saber.
55
Baio (2000) comenta que esse artigo foi discutido em reunião geral em Antenne 110, tendo recebido
contribuição dos membros da equipe para apresentação na IV Jornada do RI3.
181
2
o
: Diz respeito aos dois tempos lógicos necessários a que a criança psicótica se produza
como sujeito. Nesse ponto, Baio refere-se ao artigo de Miller, “Produzir um sujeito?”, no qual
o autor aborda a possibilidade de um ser falante que se encontra na posição de objeto de gozo
do Outro passar a uma posição de sujeito no campo do Outro.
3
o
: Concerne ao trabalho de ir além das identificações imaginárias, visando à enunciação do
sujeito psicótico. Baio explicita o que a equipe de
Antenne 110 concebe como enunciação:
“quando queremos sublinhar o ato do sujeito psicótico na medida em que ele vai de encontro
à enunciação do Outro” (p.25). No trabalho, essa passagem pode ser localizada no momento
em que uma criança toma a palavra, inscrevendo sua significação, marcando seu saber
irônico, dando um passo a mais, que pode ser um
Witz; quando, enfim, se faz presente como
sujeito.
Condição do Outro
O Outro, aqui, está situado do lado do educador, do parceiro ao qual uma criança pode
se endereçar, pois para que seu trabalho se inscreva é necessário um outro, ao lado, através do
qual o sujeito possa autenticar sua produção, dando-lhe um lugar no Outro.
Nesse contexto, o Outro sabe que o sujeito está em trabalho, que o que ele faz tem
uma lógica, que se trata de um trabalho para deixar sua posição de objeto; que o sujeito, como
não dispõe de uma significação fálica, trabalha para se ancorar em uma significação
inventada.
Nesse ponto, o educador funciona como lugar e condição para que o sujeito possa
passar de um encontro com o Outro louco desregulado para o encontro com um Outro no qual
ele possa ocupar uma posição de sujeito. Trata-se aqui do Outro como campo da linguagem,
no qual sujeito pode cavar um lugar, produzir-se como sujeito através de seu ato.
Destacamos, nessa orientação da prática institucional, que uma aquiescência inicial
da equipe em relação ao trabalho que o sujeito vem realizando para descompletar o Outro
louco que ele traz, Outro Real podemos dizê-lo não submetido à lei da castração; Outro
que o sujeito busca suturar ao se colocar como objeto.
Para que o educador possa vir a ser esse parceiro, Baio (2000) assinala ser necessário
que ele esteja a tempo e no local em que algum lance aconteça, para recolher o ato do sujeito,
para responder a um apelo, o que pode vir a constituir um endereçamento. Assim, a prática
institucional mostra-se especialmente propícia a esses momentos de encontro. É nesse
182
momento que uma passagem pode acontecer, por exemplo, sob a forma de um endereçamento
mais particularizado a um dos parceiros ou a partir da localização de um objeto.
Uma segunda dimensão é a do
Outro que sabe não saber qual é a significação desse
sujeito. Quanto a essa dimensão, Baio (2000) menciona uma intervenção em que duas
crianças se atiraram à geladeira para comer tudo e esvaziá-la. Nessa situação, o educador se
dirige ao Outro desregulado, como a um terceiro, e, gritando, diz: “Não, isso não vai nos
obrigar a comer até esvaziar o refrigerador!” (p.22).
Nesse contexto, destaca-se o endereçamento ao Outro que comanda, através de um
imperativo, e o efeito de surpresa da enunciação do educador, que fala em seu próprio nome,
mas dirigindo-se ao Outro, visando a criar as condições para a realização da atividade, logo, a
favorecer a inscrição no laço social.
O objetivo de tomar a palavra e intervir através de sua própria enunciação é colocar
uma barra sobre o Outro desregulado, que seria o Outro Real. Em relação a essa questão, Baio
(2000) assinala que os educadores são intratáveis com isso que “impede de trabalhar”, como
também com isso que “obriga o sujeito a se fazer objeto” que devora (p.22). O pressuposto
aqui é que, nesse momento, a criança está na posição de objeto, obedecendo a um imperativo
do Outro.
O autor considera, ainda, algumas funções da reunião de equipe, dentre as quais
destacamos a “de entreter cada um de nós na dupla condição de saber e não saber, o que nos
afasta de nossa posição fantasmática para estar, ao contrário, atentos ao ato do sujeito
psicótico” (BAIO, 2000, p.24).
Quanto à construção do laço social, Baio (2000, p.24) distingue as dimensões de uma
construção do sujeito no campo do Outro:
1ª A inscrição de um saber: momento de descoberta ou de invenção.
2ª A inserção desse saber no laço social.
3ª O aparecimento do gosto de saber e ensinar.
183
Duas modalidades da prática institucional: Foyer de l’Equipe e Courtil
Com o objetivo de focalizar a construção do laço social em Centros de Convivência
56
,
apresento a elaboração de minha experiência
57
no Courtil e no Foyer de l’Equipe
58
. Essas
instituições têm, cada uma, a sua história, relatadas, respectivamente, por Zenoni (1998) e
Stevens (2003). Essas histórias trazem a marca do desejo decidido de seus fundadores e
daqueles que, ao longo dos anos, se integraram à equipe do projeto inicial, mantendo viva a
aliança entre a prática institucional e a elaboração teórico-clínica da psicanálise inventada por
Freud e orientada pelo ensino de Lacan.
O Courtil e o Foyer de l’Equipe são instituições com inserções, histórias, clientelas e
estratégias clínicas distintas, embora ambas se dediquem à clinica da psicose e compartilhem
a orientação lacaniana do Campo Freudiano. Por que estabelecer alguma relação entre elas?
O que me faz aproximá-las aqui é a constatação, fruto de minha experiência nos estágios, de
que essas instituições produzem duas modalidades de
prática institucional no campo da
psicanálise aplicada à terapêutica, o que é bastante ilustrativo em relação à questão da
construção do laço social na psicose
59
. A prática institucional não visa a substituir o
dispositivo de consulta nem a psicanálise pura. Trata-se de modalidades diferentes de
intervenção a partir da psicanálise.
Nessas instituições, as equipes são constituídas por praticantes com formação
acadêmica em diferentes áreas, o foco recaindo, não sobre a especialidade, mas sobre a
possibilidade de o praticante intervir em seu próprio nome. Assim, trata-se de intervir na
contingência do encontro com cada residente, seja sob a forma de um “sim” ou de um “não”,
seja nos termos da clínica do ato, visando ao tratamento do gozo. Essa aposta é sustentada
pelo praticante através do manejo de estratégias e táticas que possam favorecer um
savoir-y-
faire
com a suplência que o caso vem construindo.
Trata-se, não de uma prática coletiva, mas de uma equipe desespecializada, constituída
por profissionais que, em sua função, se colocam na posição de “analisandos civilizados”
(STEVENS, 2003, p.20). Estes nem são necessariamente psicanalistas nem estão em processo
56
Estou reunindo sob essa denominação as instituições Courtil e Foyer de l’Equipe, que se dedicam à
psicanálise aplicada à terapêutica, intervindo nas situações de convivência diária. O
Courtil trabalha a proposta
com crianças autistas e psicóticas, que permanecem na instituição por uma jornada que pode ser diária, semanal
ou mensal, e cuja duração será determinada a partir da decisão da equipe, em função do percurso do caso. O
Foyer de l’Equipe é uma comunidade terapêutica destinada a adultos psicóticos em processo de reinserção
picossocial, cujo projeto terapêutico tem o limite de dois anos.
57
Essa elaboração foi realizada a partir de anotações da experiência no estágio de doutorado, durante o qual a
equipe e os residentes me receberam com hospitalidade.
58
Inscritas na rede social, essas instituições são reconhecidas como referência quanto à reinserção psicossocial
no campo da saúde mental, constituindo um campo de interlocução interinstitucional.
59
Stevens, em supervisão ou em debates, destaca que a prática institucional pode produzir um ponto de basta por
um tempo, ou possibilitar que o sujeito percorra um pedaço do caminho.
184
de análise, mas têm uma transferência com a psicanálise como sujeito suposto saber e são
regulados por essa transferência. Cada praticante tem seu estilo, o que colorido às
intervenções, favorecendo efeitos terapêuticos. Passarei a considerar agora o modo particular
como a
prática institucional se articula no Foyer de l’Equipe e no Courtil.
1. Foyer de l’Equipe: um estilo de comunidade terapêutica
O Foyer de l’Equipe desenvolve uma modalidade de prática institucional no campo da
psicanálise aplicada cujo dispositivo clínico é a própria comunidade. Propiciando um espaço
de convivência em que residentes,
staff, funcionários, praticantes e estagiários se encontram, a
instituição está inserida na rede social, nela exercendo uma função.
Situando a clínica do sujeito (ZENONI, 2000) como eixo do trabalho, o Foyer de
l’Equipe
define sua função social como a de um centro de pós-cura destinado à reinserção
psicossocial de neuróticos graves e psicóticos adultos de ambos os sexos. O foco desse
trabalho é promover, remanejar ou sustentar alguma construção do sujeito que favoreça sua
estabilização no laço social.
Diferenciado por certos significantes o que pode ter algum efeito a posteriori, no
percurso do residente em seu processo de reinserção social – o Foyer de l’Equipe pode
despertar o interesse de um sujeito que demanda um lugar. Essa demanda pode tanto ser
espontânea quando o próprio sujeito a efetiva diretamente quanto se realizar através da
aceitação de um encaminhamento de outra instituição. Em ambos os casos, haverá uma
passagem de candidato a residente da comunidade. Com isso, tem início um processo de
conhecimento e de experimentação, tanto para o candidato quanto para o restante da
comunidade. Nesse momento, algo se decide, não sem um consentimento do sujeito, o que
fica assentado no projeto terapêutico a ser realizado. Nesse projeto, são considerados dois
pólos a vida comunitária e o retorno à vida fora da instituição que se visa a manter
articulados durante a estadia do residente.
A vida comunitária no Foyer de l’Equipe constitui o campo de uma experiência em
que a relação com o outro no cotidiano favorece o despertar de afetos, o que requer um
manejo por parte da equipe para manter um ambiente de convivência. A continuidade da vida
coletiva depende de um mínimo de regras, de confrontação e de negociação, o que nem
sempre é possível. Como as situações de convivência constituem o próprio campo de
intervenções, possíveis incidentes podem servir de ocasião para o reconhecimento de
185
dificuldades. Ao indicar um momento persecutório, ou uma angústia que o sujeito
experimentava, tais dificuldades podem favorecer um processo de elaboração subjetiva ou o
início da construção de um ponto de ancoragem. Por outro lado, a convivência pode
desencadear episódios disruptivos e dar lugar à passagem ao ato, o que nem sempre é possível
evitar.
Nesse espaço de vida, o residente pode realizar atividades sócio-recreativas, participar
de ateliês organizados pela comunidade ou buscar atividades externas, por iniciativa própria
ou através de convênios que a comunidade estabelece visando à formação cultural e
profissional. Nesse contexto, qualquer atividade, promovida pela instituição ou externa, tem
uma dimensão clínica cujo foco é o sujeito em sua relação com o objeto, o que passa pelo
Outro com o qual ele tem de se haver.
O trabalho terapêutico é centrado na convivência diária e nas atividades realizadas
dentro e fora do espaço da instituição, inclusive a obtenção de um documento, a limpeza da
louça, a visita a uma exposição. Não sessões de análise individual, mas atendimentos
individuais quando solicitados pelo residente ou quando há alguma questão institucional ou da
rede social a ser resolvida.
Embora haja um praticante (
répondant) ao qual cada residente se dirige, os demais
praticantes podem intervir, visando ao que se chama de tratamento do Outro do sujeito,
quando um endereçamento. A prática institucional visa a localizar as formas de tratamento
do gozo das quais o sujeito dispõe para regular o retorno no real da pulsão. intervenções
pontuais e outras que se caracterizam por um acompanhamento durante certo tempo. Passarei
a considerar alguns exemplos de intervenções pontuais.
Certo dia, introduzi um dicionário como meio de acolher e deslocar a demanda de uma
residente, que perguntava insistentemente como se escreviam certas palavras ao redigir uma
carta. Nesse caso, a intervenção a proposta de que pesquisasse no dicionário, atividade na
qual lhe dei suporte teve o efeito de produzir uma barra sobre o saber do Outro, ao mesmo
tempo em que velou o objeto olhar, objeto privilegiado para essa residente. No percurso dessa
residente, destacam-se passagens ao ato, sob a forma de cortes no corpo. A equipe levantou a
hipótese de que a residente demandava um olhar da equipe. A residente aceitou bem esse
modo de aproximação, que possibilitou algum desvio do olhar que ela costumava requisitar.
A intervenção, através da pesquisa no dicionário, apaziguou-a; ela concluiu a carta, extraindo
disso alguma satisfação, e reconhecendo uma forma de ajuda. As intervenções pontuais
visam a tornar possível o trabalho de construção ao qual o sujeito vem-se dedicando.
186
Na semana do Natal, propus na reunião comunitária um ateliê para a véspera da data,
dia em que estaria de plantão. A atividade visava a construir uma guirlanda de Natal
perfumada, feita com plantas do jardim, para enfeitar a porta de entrada da instituição. Houve
inscrições e, no horário marcado, iniciamos a atividade. O processo, desde a proposta à
realização da atividade, ensinou-me sobre o modo de funcionamento da equipe.
A guirlanda foi feita com arame recoberto de alecrim e de outras folhagens com flores
vermelhas típicas do Natal colhidas no jardim da instituição. Durante a execução coletiva, as
sugestões foram acolhidas e trabalhadas. G., por exemplo, disse que a guirlanda não poderia
ficar ‘toda certinha’ pois poderia parecer uma coroa mortuária. Em francês
courone é uma
palavra que pode ser usada para designar coroa de Natal, coroa de rei e também coroa
mortuária. Acolhi sua sugestão e ele passou a prender os galhos de modo a formar uma coroa
mais estilizada, com alguns galhos caindo ou subindo.
Em função do efeito, F., outro residente que, embora sentado a certa distância,
participava da atividade, disse que daquele modo a guirlanda não poderia ficar, pois os
enfeites estavam encobrindo o furo central. Acolhi sua sugestão dizendo que ele tinha razão
em apontar para isso, pois do contrário não seria uma coroa/guirlanda. Outra paciente, que
dava sugestões e prendia enfeites, mostrou-se impaciente com o ritmo de um participante, não
podendo prosseguir na atividade. G. mostrou-se contente com o resultado. Alguns residentes
deram sugestões onde colocar, como prender na parede – e muitos falaram sobre o perfume
agradável. Ao final, registrei no jornal de bordo os ditos dos residentes, recolhendo elementos
e passando adiante o material. Em outro momento, durante a participação no ateliê de
fotografia, G. protestou contra quem anotou seu nome no quadro de entrada indicando seu
interesse em participar do ateliê. Em reunião, a interveniente (técnico de referência)
transmitiu à equipe o protesto de G. e sua enunciação: Eu mesmo devo me inscrever.
A. lembrou à equipe que uma das questões de G. dizia respeito, justamente, a como se
separar do Outro materno em uma família em que todos os irmãos deixaram a casa paterna.
Para não ficar completamente retido na trama familiar, G. se distancia, no real, da convivência
com o Outro nesse caso, encarnado pela mãe razão de sua longa carreira em diferentes
instituições de saúde mental. Acredito que seja a partir do recolhimento de ditos como esse
que se possa fazer da passagem pelo Foyer de l’Equipe uma oportunidade de favorecer uma
mudança de posição pelo o sujeito.
Em uma supervisão, propus a questão: como articular o trabalho de construção de um
sujeito, visando à fixação de um ponto de ancoragem, se o que se visa nas intervenções é ao
tratamento do Outro e ao deslocamento do endereçamento da transferência dirigida a um dos
187
praticantes para a transferência institucional? O tratamento do Outro possibilita ou cria
obstáculos a um laço transferencial?
Na discussão, o supervisor Félix Salmoïlivich assinalou que a noção de tratamento do
Outro traz implícita a idéia de temporalidade. Comentou que essa não seria uma direção
predominante no trabalho da equipe, o que considera uma mudança positiva. A questão foi
retomada em outros termos: como pode o sujeito separar-se do Outro, isto é, manter uma
distância em relação ao objeto? Como pode a instituição servir a essa finalidade? A
orientação do trabalho no
Foyer de l’Equipe é manter a transferência sobre a instituição,
evitando isolá-la em um dos membros da equipe.
Em função do modo de operar, a aposta da instituição é localizar, favorecer e sustentar
o trabalho de suplência que o sujeito venha construindo como tentativa de restituição da perda
da realidade. A sustentação desse trabalho se faz, sobretudo, na situação de convivência e nos
encontros nos ateliês, mas podem também se manter em encontros com o técnico de
referência (répondant). Nessa perspectiva, a equipe intervém propiciando algum
remanejamento do gozo, para que o sujeito possa encontrar um ponto significante no qual
ancorar seu interesse, o que pode favorecer o laço social.
No Foyer de l’Equipe, os ateliês e os programas culturais são organizáveis com a
participação de no mínimo três pessoas, incluindo o animador da atividade. A justificativa é
que dois participantes não constituem um grupo, formação priorizada nessa prática
institucional. Supus, inicialmente, que essa definição visasse a ‘triangularizar’ a cena,
desviando o foco do endereçamento transferencial direto por parte do residente em direção ao
praticante.
No entanto, interrogo-me quanto à possibilidade de ser essa uma estratégia decorrente
da elaboração de Lacan (1974-75, inédito) sobre os grupos, tal como exposta na lição de 15 de
abril de 1975 de “O Seminário, livro 22: R.S.I.”. Nessa passagem, baseando-se na topologia
do nó, que se constitui da não relação sexual como buraco, Lacan conclui: “Não dois, pelo
menos três, se forem três, já faz quatro, é o numero mínimo de participantes para um grupo, o
que seria equivalente à estrutura do Cartel: 3+1”. Seja pela vertente da estrutura edípica, seja
pela vertente da equivalência dos registros e do furo central, que possibilita o nó borromeano,
parece que a estrutura do cartel favorece a circulação dos discursos. Trata-se de uma questão a
ser elaborada.
Outra questão diz respeito ao destino da transferência após o término da estadia na
instituição. No Foyer de l’Equipe há o status de antigo residente, através do qual aquele que já
passou uma estadia na instituição pode manter um contato regular ou pontual com o
188
interveniente (técnico de referência) ou com outro membro da equipe, ou realizar alguma
atividade na comunidade. Para tal, é necessário o acordo prévio. os que vêm jantar uma
vez por semana, os que participam de um dos ateliês e aqueles que comparecem a encontros
festivos. Durante a permanência na instituição, o antigo residente segue algumas normas
previstas. As intervenções da equipe continuam seguindo a orientação de tratar o Outro e de
sustentar o trabalho de suplência ao qual o sujeito vem-se dedicando. Não se favorece a
transferência dirigida ao interveniente. A orientação é acolher, mas responder em nome da
equipe. Embora a equipe busque deslocar a transferência para a instituição, ocorre que, em
alguns casos, o que prevalece é o vínculo transferencial com um dos membros da equipe.
Sustentando a construção de suplências
O manejo da transferência é um dos pontos a se destacar nas intervenções, tanto com
os residentes quanto com os antigos residentes, pois tem suas raízes na própria orientação do
trabalho na prática institucional do
Foyer de l’Equipe, que se propõe a intervir a partir da
psicanálise, mas não a partir do dispositivo de consulta. Para ilustrar alguns modos de intervir,
destaquei elementos de relatórios
60
e de reuniões de equipe, que passo a comentar, buscando
elaborar teoricamente a experiência vivida no campo de pesquisa.
A equipe, tomando como paradigma o que Freud (1926[1925]/1980) sublinhou sobre
as modalidades de defesa do eu, considera que a maior parte dos residentes organiza sua
estadia na instituição seguindo modos particulares que visam a proteger o eu contra a
satisfação pulsional diria, imediata buscando assim algum adiamento. Essas modalidades
de defesa são diversas e podem, por vezes, tomar formas tais que levam à exclusão daqueles
da vida na cidade, da vida familiar e mesmo de sua própria existência. Elas podem se
expressar sob a forma de hábitos e rituais que sempre cumprem uma função particular para
cada um, mesmo que possam se revestir de uma característica comum entre alguns residentes.
São exemplos dessas modalidades de defesa: o tratamento léxico ou gramatical das palavras;
os fenômenos psicossomáticos; a perda ou o aumento organizado de peso; a neutralização ou
exacerbação das sensações do corpo; a entrega ao sono ou, ao contrário, a participação em
todas as atividades; o afastamento em relação a todos os compromissos comunitários e a
reclamação de uma liberdade fora da lei comum; o recurso a uma fala reduzida à sua mais
simples expressão ou ao uso de uma ironia.
60
Dentre as fontes consultadas, destaco o artigo “Un lien qui se trouvaille”, escrito em 2003 pela equipe do
Foyer de l’Equipe, e publicado no endereço virtual: http://equipe.lesiteweb.be.
189
As modalidades de defesa podem ser formas inventadas pelo sujeito para o tratamento
do Outro (ZENONI, 1990). A tática que cada sujeito encontra para não utilizar respostas
radicais, como a passagem para o ato suicida ou o consumo excessivo de drogas, é algo a ser
percebido necessariamente por cada membro da equipe, pois seria através dessas respostas
que cada residente “tenderia a preencher a fenda no real, colocando-se na posição de dejeto”.
Tomando como ponto de partida a escrita, uma forma particular de tratamento do
Outro utilizada por alguns residentes, a equipe se interroga sobre a orientação do tratamento
da psicose na prática institucional:
“Como, nessas circunstâncias, se fazer o parceiro orientado para a particularidade da escrita ou
de outra suplência, para que essa forma de tratamento se inscreva como um achado que
permita ao sujeito sair do estatuto de objeto em que se coloca para o Outro? Como
circunscrever uma construção através da qual o sujeito possa tentar uma separação parcial do
Outro que não necessite dos meios do real?” (Equipe do
Foyer de l’Equipe).
1- João, o correspondente
João realiza uma atividade que requer tempo e que sempre fez parte da sua vida: a de
escrever cartas para amigos, ex-colegas e família. Ele chega a escrever várias vezes por dia,
pois é tomado pela necessidade de dizer tudo e não deixar nada de fora. Nelas, relata sua vida
nos últimos tempos, o que nos serve, nos momentos clínicos, para ler as tentativas de solução
de um sujeito que se debate numa existência sem rumo. João comenta, também, o número de
correspondências que envia e recebe. Durante toda a sua estadia, no entanto, ele envia apenas
uma carta a um membro da equipe, que lhe responde verbalmente e sobriamente. Esse estilo
sustenta a hipótese do efeito limitante da resposta “acusada recepção”, modalidade de
intervenção para tratar o Outro. É importante destacar que o membro da equipe não responde
em seu próprio nome e o faz de modo discreto. A relação de João com a escrita é que o que
ele escreve, assim como o que ele diz, poderia ser utilizado contra ele. Esse é o pólo negativo
da escrita. O receptor das cartas pode se revestir como figura de hostilidade. A equipe
levantou a hipótese de que o residente indicava haver um laço entre o número de cartas
escritas e a injunção a falar e a tudo desvelar.
Mas a equipe ressalta um pólo positivo na escrita de João. Neste caso, o remetente
reconhece em seu trabalho uma pesquisa estética: isso seria para ele um verdadeiro trabalho,
uma verdadeira ocupação, o trabalho sobre jogos de palavra. Ele experimenta uma escrita que
qualifica como poesia, sobre a qual declara: Eu estou na palavra e não na idéia. Em outro
190
momento, revela que deseja escrever outra coisa além de cartas, testemunhando, também, o
interesse pela dimensão
fora-de-sentido.
Destaco, a seguir, alguns pontos do percurso do caso.
Manejo da equipe
Em certo momento, a equipe propôs a esse residente um ateliê fora da instituição onde
ele poderia criar seus escritos, proposta por ele aceita.
O interveniente répondant, que corresponderia ao técnico de referência em algumas
de nossas instituições manteve a sustentação do trabalho de suplência. Nas idas e
vindas do estágio, o sujeito relata sua experiência, destacando o que lhe interessa, que
é como escrever e não o porquê escrever. O que esse sujeito distingue é que o porquê
não estimula sua imaginação, e ainda o precipita a uma ruminação mental.
Efeitos terapêuticos após o desligamento do Foyer de l’Equipe
O antigo residente mantém uma correspondência com um dos membros da equipe.
Um dia ele comentará sua surpresa ao receber uma resposta à primeira carta enviada
após sua partida: “Obrigado pela carta, eu não esperava uma resposta”.
Outro efeito da escrita por ele apresentado foi comparecer regularmente à instituição,
em horário previamente marcado, para, ao lado de um interveniente, organizar sua
agenda de compromissos.
Após um ano, ele manteve o contato por cartas, mas deixou de comparecer para
organizar o seu tempo. Paralelamente, continuou desenvolvendo suas atividades de
escrita na cidade, e a última notícia sua é que ele está desenvolvendo o projeto de
escrever um romance ao redor da figura paterna.
O que caracteriza o trabalho de sustentar uma suplência no percurso de uma prática
institucional? Em primeiro lugar, é necessário localizar o ponto de interesse do sujeito com o
qual ele vem tentando fazer uma suplência. Em segundo, é preciso sustentar a construção em
andamento, o que implica não aceitar necessariamente o ritmo e a intensidade com que o
sujeito vem fazendo esse trabalho.
Nesse ponto, é importante uma hipótese sobre o momento do caso por parte da equipe,
buscando responder à questão: qual a função que essa construção tem na economia libidinal
do sujeito? Outro passo é formular uma hipótese sobre em que medida essa construção
favorece ou desfavorece uma suplência. No caso de João, a hipótese da equipe era de que
havia um laço entre o número de cartas escritas e a injunção de que, falando, tudo poderia ser
191
desvelado. A partir dessa hipótese, a estratégia da equipe passou a ser a de acolher
sobriamente, visando a regular o gozo perturbador. Neste caso, a resposta para uma carta
enviada pelo residente a um membro da equipe
acusada recepção indica o tratamento do
gozo.
2) Paulo, o rapper
Paulo é um jovem de dezenove anos que iniciou sua estadia no Foyer de l’Equipe após
uma internação hospitalar devida a uma tentativa de suicídio, quando se atirou em uma via
pública. Ele decidiu iniciar uma estadia na comunidade terapêutica e, logo no início,
envolveu-se em uma relação especular com vizinhos de quarto, a ponto de formular uma
posição dual intransigente – ou ele ou eu correlacionada a questões delirantes sobre a
gemealidade, o que o colocava à beira da passagem ao ato.
Ao mesmo tempo em que demonstra estar fixado nessa relação especular devastadora,
ele se engaja em uma relação mediatizada e pacífica, usando significantes encontrados na
cultura rap:
“Ele escuta discos, assiste a clips, conhece cantores e se veste como eles. Através de sua
escrita de textos de canções, ele trata os temas característicos da cultura
rap e também os
temas mais pessoais. Essa prática tem antecedentes. Com a idade de dezessete/dezoito anos,
ele participou de concertos de
rap com sua irmã. Ele cantava no grupo que ela organizava e
escrevia os textos, parando somente quando ficou doente. Paulo espera um dia retomar esta
atividade” (Equipe do
Foyer de l’Equipe).
Uma particularidade do caso é que, para escrever, esse sujeito tem necessidade de
escutar música e de ter muita gente à sua volta, trabalhando seus textos nas salas comunitárias
e convocando parceiros. Enquanto com um dos residentes experimenta a musicalidade do
texto, com um dos membros da equipe busca soluções para o emprego de palavras,
procurando aliar som (musicalidade e ritmo) e sentido (coerência do texto).
Quanto ao manejo, a equipe se prestou ao jogo proposto pelo residente, mas orientou o
trabalho em ateliês coletivos, como o grupo de leitura e o grupo do jornal. Isso o conduziu a
publicar, no jornal da instituição, bandas de desenho que traziam textos com interjeições
semelhantes àquelas da linguagem falada, o que a equipe destacou, afirmando ter sido o
registro sonoro que, nesse caso, prevaleceu.
No início de sua estadia, esse sujeito lamenta que sua escrita não seja mais como
antes, quando ele escrevia com facilidade muitos textos, os quais ele queimava, por razões
inexplicáveis. A hipótese da equipe é de que essa queixa estaria ligada ao problema de
192
encontrar um lugar para ele ou um receptor no qual possa depositar seus textos e, assim,
separar-se deles sem ser obrigado a queimá-los. No entanto, após sair da instituição, ele parou
de escrever textos de
rap: Isso não vem mais. Passou a se dedicar ao desenho.
A equipe se interroga sobre o que teria levado esse sujeito a estancar a atividade,
levantando a hipótese de que a falta de produção estaria ligada ao novo modo de vida do
residente. Considerando que as condições de escrita, de troca, de transmissão e de
conservação não eram mais as mesmas, conclui que o tratamento através da escrita não
poderia ter lugar fora do laço social protegido, a instituição.
Esses casos foram reunidos por um ponto em comum: o tratamento do Outro através
da escrita. A discussão diz respeito a como uma mesma atividade pode ter, não só uma função
particular para cada residente, mas requerer condições diferentes para que ela possa se realizar
como suplência. É necessário que a equipe identifique o modo pelo qual o residente procura
tratar isso que provém de uma enigmática instância como impulso imperioso, que alguns
situam em uma radical exterioridade e outros, no mais íntimo deles mesmos. A equipe supõe
que cada residente já havia iniciado algum trabalho de reconstrução antes de ter decidido pela
estadia na instituição. Esse interesse não muda muito, pois está referido ao circuito de gozo,
que busca reeditar a experiência primordial de satisfação. Em função dessa suposição, no
Foyer de l’Equipe não se promove a participação do residente nas atividades como condição
para a sua permanência na comunidade, mas busca-se sustentar o trabalho que ele vem
desenvolvendo.
A equipe destaca que, na instituição, “o residente pode encontrar um parceiro decidido
a extrair com ele a dimensão de criação, o que ofereceria uma alternativa ao incansável
trabalho, que vem tentando realizar sozinho, para cifrar o gozo que o embaraça”. Isso implica
posição de disponibilidade da equipe, desde que o residente decida compartilhar a construção
subjetiva à qual vem-se dedicando.
Dos cinco residentes cujos casos clínicos focalizamos, dois, na condição de antigos
residentes, comentaram que haviam dado continuidade ao trabalho a partir do achado que
encontraram durante a estadia na instituição. É o que assinala a equipe: “Um deles, João,
escolheu um objeto destacável do Outro, saiu da posição de ficar se justificando e se fixou em
uma tarefa descoberta por ele”.
Assim, um dos aspectos a destacar é o modo como cada residente circunscreve algo
particular em uma atividade, indicando a prevalência de um certo interesse, um certo circuito
pulsional, mesmo quando o objeto não está extraído. Poderíamos supor, por exemplo, que a
voz fosse o objeto que o rappper estivesse tratando, mas a hipótese da equipe foi de que ele
193
produzia as músicas em uma determinada cena, com outros, o que nos leva a inferir que esse
era o modo de tratar o objeto olhar. Com esse tratamento, era possível certo velamento,
alguma subtração de gozo. Foi o que ocorreu no caso do
correspondente, em que a equipe se
fez receptora das cartas sem estimular novas produções. Esse trabalho de sustentação da
suplência pode ser conduzido, não em uma comunidade terapêutica ou em centros de
convivência, mas também nos dispositivos de consulta, seja no consultório ou no ambulatório.
Neste caso, as oficinas ou as atividades de suporte podem acontecer fora do espaço
institucional.
2. 2. Courtil: a invenção contingente
A modalidade de prática institucional inventada pelo Courtil é tecida por cada membro
da equipe, seja como
prática entre vários, seja como vários trabalhando em parceria. A
proposta é que “a instituição seja uma para cada participante” (STEVENS, 2003, p.17), isto é,
que ela possa favorecer a produção de um sujeito onde a repetição insiste.
No
Courtil, a prática institucional tem como diretriz teórica a psicanálise inventada
por Freud, orientada pelo ensino de Lacan, e transmitida pela equipe
61
, que a constitui a partir
de uma elaboração teórico-clínica das questões que a psicose coloca para a psicanálise.
Nesse contexto, a criança, o adolescente ou o jovem adulto em processo de admissão é
recebido pelo diretor da instituição, que decide sobre o acolhimento do pedido, em geral
solicitado por uma instituição social. Esta, trabalhando a partir de dossiês, ocupa-se de
crianças e jovens em situação de risco psicossocial. Após avaliação, a referida instituição
propõe alternativas de cuidados médico-pedagógicos a crianças e jovens que vêm encontrando
dificuldades em participar de atividades escolares ou no convívio familiar. Quando, nesse
quadro, o serviço social identifica alguma questão psicológica que dificulta a permanência da
criança com a família, encaminha a criança ou o jovem ao Courtil. No processo de admissão,
considera-se não apenas a pertinência do encaminhamento como também a possibilidade de
realização de algum projeto terapêutico visando ao laço social, seja com a escola, com a
família ou com algum estágio. De qualquer modo, o Courtil aceita crianças e jovens que
estejam inseridos em outro lugar de vida: família de origem, família de acolhimento ou
61
A direção e a maior parte da equipe do Courtil tem participação ativa na Section Clinique da ACF
(Association du Champ Feudien) em Bruxelles. Nela, o corpo de diretores do
Courtil, ao lado de dirigentes de
outras instituições, dentre as quais,
Antenne 110 e Foyer de l’Equipe, coordenam atividades teóricas e clínicas. O
Courtil integra a rede de instituições denominada RI3, que se concentra em torno da pesquisa e da clínica do
autismo e da psicose infantil.
194
mesmo outra instituição. A maior parte das crianças freqüenta escola próxima à instituição, o
que requer uma organização diária da rotina de cada uma delas.
Equipe
A equipe é constituída por dirigentes, coordenadores, responsáveis terapêuticos,
técnicos com formação acadêmica e estagiários. Eles atuam nos ateliês, nas atividades sócio-
recreativas e nas interlocuções institucionais que cada caso requer. No
Courtil, as
intervenções da equipe incidem em situações de convivência institucional com os residentes,
crianças e adolescentes cuja posição subjetiva sugere quadro de neurose grave, autismo ou
psicose. Acontecimentos novos ou repetitivos, na convivência institucional, provocam
trabalho, convocando um ou mais membros da equipe a intervir nos termos da clínica do
sujeito. Para que o membro da equipe intervenha em seu próprio nome, é necessário que se
autorize a fazê-lo, isto é, que se coloque em uma posição que poderíamos aproximar do que
Lacan (1958/1998) denominou desejo do analista. Há demandas iterativas, algumas com risco
de passagem ao ato, em relação ao outro ou em relação ao próprio sujeito, o que requer uma
presença atenta, mas despreocupada, do membro da equipe
62
. A equipe busca situar uma
novidade em relação a uma repetição, inaugurando, como pude acompanhar, o segundo
tempo, que só pode ser discernido por seus efeitos.
Inferimos das reuniões e dos seminários que a orientação do trabalho articula as
contribuições de Freud e os dois tempos do ensino de Lacan, especialmente o último, em que
propõe a noção de alíngua, situada em uma anterioridade lógica à linguagem (LACAN, 1972-
73/1993). Nessa perspectiva, a noção de
Nome-do-Pai deixa de ser o único paradigma do
tratamento do gozo, passando a ser uma suplência dentre outras à falta de relação sexual. Essa
mudança de paradigma abre nova perspectiva para a clínica da psicose, pois possibilita situar
algumas invenções, modos de tratamento do real do gozo, através de uma significação
fora-
de-sentido.
Stevens (2000) denominou ponto de ancoragem o modo como essa invenção pode
encontrar no Outro do significante, que constitui o tecido das significações, um ponto de
fixação do gozo: “Uma série de modos de bricolage de sujeitos psicóticos com o real do gozo
e com o Outro do significante” (p.35). O autor cita os modos de enodamento: imaginário do
62
A presença do membro da equipe favorece o endereçamento, pois mesmo as crianças que não falam, quando
decidem, solicitam ajuda, puxando o praticante pelo braço a fim de serem auxiliadas em algum objetivo
imediato, como pegar algum alimento que esteja fora de seu alcance. No entanto, trata-se de uma presença atenta
e despreocupada, no sentido de não se ocupar da criança.
195
corpo e seus objetos (imaginário e real) ; o significante e a letra (simbólico e real) ; da
identificação até o delírio
(imaginário e simbólico) (p.36). Outro nome para o que Lacan
designou suplência, como nó subjetivo, a ancoragem tem a vantagem de incluir de modo mais
direto o tratamento do real através do não-sentido (non-sens). É o que leva Stevens (2000) a
fazer um paralelo com o chiste, em que a palavra se situa como fora-de-sentido (hors-sens).
Nesse contexto, o riso que a ironia esquizofrênica provoca – e que a princípio destitui o Outro
– pode fazer laço social quando a invenção fora-de-sentido do sujeito é recebida pelo Outro.
Assim, o processo de invenção do sujeito requer a aquiescência do Outro, que, como
seu parceiro (técnico de referência, interveniente), coloca-se ao lado sem interpretar. É nessa
perspectiva que uma instituição pode constituir a oportunidade de ancoragem, ao menos
temporariamente. Stevens (2000), tomando como referência o matema do sintoma, substitui-
no por uma âncora, como a que é utilizada pelas embarcações para deter a deriva:
“A âncora é uma metáfora ou, principalmente, uma insígnia que põe um ponto de parada à
contigüidade do gozo e do significante na psicose. Na falta de uma significação fálica, a
escrita da metáfora vem assegurar uma significação para o sujeito e/ou um ponto de apoio no
laço social” (p.37).
Nesse ponto, o autor sublinha que se refere a e/ou’ porque não está seguro em afirmar
que os pontos de ancoragem dos quais fala chegam a assegurar uma significação para o
sujeito e um ponto de apoio no laço social, acreditando que se trata, por vezes, de soluções
parciais. Essa observação, que indica prudência em relação ao furor sanandis, é um dos
marcos presentes tanto no trabalho do Courtil quanto no trabalho da RI3 e do Foyer de
l’Equipe. A prudência refere-se não apenas à posição da equipe em relação ao caso, mas
também à tentativa de cernir o que se faz em termos conceituais.
Considerando a prática entre vários, Di Ciaccia (2005, p.15)
63
ressalta que ela se
caracteriza pela troca de parceiro ou de interveniente. O objetivo dessa estratégia é favorecer
com que crianças autistas que não se endereçam ao Outro possam ter acesso a uma
pluralidade de outros. Com isso, pode-se perceber, a posteriori, que uma delas tenha se
endereçado a um dos intervenientes, constituindo o Outro, o que é possível se o
interveniente estiver atentamente distraído e recolher o achado. A prática entre vários tem
então essa indicação precisa, pois quando a criança se endereça de modo particular a um dos
intervenientes, o trabalho passa a ser sustentar esse endereçamento, favorecendo a instalação
de um laço transferencial. Neste caso, seria danoso impedir um endereçamento ao Outro.
63
Embora esse artigo não se refira exclusivamente à prática institucional desenvolvida no Courtil, abordamo-lo
aqui dada a sua pertinência com a temática de que estamos tratando.
196
No fio desse argumento e considerando os dois eixos, simbólico e realidade, do
esquema R proposto por Lacan, Di Ciaccia (2005) formula: “Quanto mais o sujeito tem
possibilidades de se situar no simbólico, mais ele tem possibilidades de fazer laço social e,
eventualmente, de criar no limite esse laço social que se chama uma psicanálise” (p.21). Por
situar o sujeito autista próximo de zero no eixo simbólico, Di Ciaccia (2005) propõe a
prática
entre vários
como estratégia válida para fazer uma forçagem através da qual a criança autista
pode aproveitar a chance de trocar o real pelo simbólico
. Destacamos, nessa formulação, a
idéia de gradação, que possibilita situar o laço social como efeito da relação do sujeito com o
significante (campo do Outro).
Como a instituição pode favorecer a construção do laço social?
Certo dia, Kevin, que não falava, pegou-me pelo braço e, levando-me ao jardim, me
mostrou abelhas ao redor de uma flor no alto de uma árvore. Na ocasião, eu lhe disse:
Você
descobriu as abelhas! Ele se mostrou muito contente com sua descoberta, pulando e
apontando. Ficamos observando o movimento das abelhas. Nesse momento, algo se
inaugurou, pois, no dia seguinte, ao chegar da escola, ele me buscou para fazer o mesmo
percurso. Daí em diante, passou a ir também sozinho, buscando-me, outras vezes, para ir com
ele ao que chamei de visita às abelhas. Na ocasião, o supervisor Guy Poblome me apontou
que Kevin estava, através do chamado ao outro com o qual fazia a experiência, constituindo o
Outro como campo da linguagem.
Momentos de encontro, contingentes, em que Kevin se dirige ao Outro através do
outro, para buscar sua aquiescência. É assim que situo o
Outro que sabe que o sujeito está em
trabalho
do qual fala Baio (2000): coloca-se como parceiro quando uma criança se endereça,
pois é necessário um parceiro ao lado para que o trabalho se inscreva, para que o sujeito possa
autenticar sua produção.
No Courtil, esses elementos são decantados a partir da experiência de cada um com a
criança, do que é discutido na reunião clínica ou do que está circulando no dossiê eletrônico.
Um ponto a destacar é que cada membro da equipe procura situar alguma novidade em
relação à repetição, distinguindo dois tempos e destacando as intervenções que tiveram
lugar. A pertinência da intervenção será avaliada a posteriori, pelos efeitos produzidos.
197
Reuniões
As reuniões constituem a espinha dorsal da instituição, pois, nelas, as intervenções
possibilitam a construção do caso, cujo ponto de partida é algo que se pronunciou, em geral
nas entrevistas de admissão, como projeto terapêutico. No percurso, destacam-se dúvidas,
imprevistos, surpresas que o interveniente da equipe relata ou interroga, pontuando algo
enigmático, seja novo ou repetitivo, na convivência com o residente
64
no Courtil. As questões
visam a localizar alguma lógica subjetiva de funcionamento: que lógica é essa? Tratar-se-ia da
tentativa de extrair alguma solução para se virar com o Outro? O que fazer? Como intervir?
Certa vez, o supervisor Alexandre Stevens, em uma sessão clínica, assinalou: Só não podemos
esquecer que essa elaboração é nossa
. Advertia, assim, a equipe quanto ao risco de se
antecipar com um saber sobre o caso.
A orientação de trabalho inclui a formação teórica, a elaboração da clínica, mas se
constitui, sobretudo, a partir de um saber produzido pelo próprio sujeito, sendo função da
equipe perceber e sustentar sua invenção ou construção. Podemos reconhecer essa diretriz da
proposta na abordagem do caso clínico do jovem que, travestindo-se de modo exuberante
como uma prostituta, colocava-se na janela, o que perturbava os outros residentes. Em
reunião, Stevens (2003) propôs:
Mas não antes das quatro. Comentando o efeito dessa
intervenção, um tanto sem sentido, o autor destacou que ela introduziu um sim sobre o fundo
de um não, um limite, um regulamento com o qual o jovem interrogou o limite do corpo.
A intervenção Não antes das quatro produziu efeitos apaziguadores, tanto em relação
ao jovem quanto em relação aos outros residentes. No relato, Stevens assinala que, certo dia,
depois das quatro, o jovem, que estava com os lábios levemente pintados, dirigiu-se a ele
perguntando se daquele modo estava bem, ao que ele respondeu: Mas que horas são? Diante
dessa intervenção, o jovem foi espontaneamente retirar a maquiagem.
O trabalho organiza-se em torno do tratamento do Outro e das invenções do sujeito, o
que, muitas vezes, implica criar alternativas através do tratamento do objeto que localiza o
gozo e do qual o sujeito não se afasta. É importante destacar que não basta localizar um objeto
de interesse, pois ele pode estar favorecendo o gozo.
64
Utilizarei o termo residente ao me referir às crianças, adolescentes e jovens que realizam algum projeto no
Courtil, mesmo os que retornam diariamente para casa. O que justifica o uso desse termo é menos a idéia de
moradia substituta e mais a de permanência na instituição, referida a um espaço físico nomeado, inscrito em um
grupo coordenado por uma equipe específica durante a realização de um percurso em situação de convivência
diária.
198
Em artigo recente, Stevens (2008) refere-se ao tratamento do Outro nas intervenções
com crianças autistas e esquizofrênicas no
Courtil. Nesse contexto, o autor refere-se ao
tratamento do próprio analista, do interveniente, dos educadores (técnico de referência),
daquele que está com a criança. No entanto, se a operação de subtração do Outro utiliza o
interveniente como suporte, o Outro em questão é “aquele que já está lá, mesmo que recuado,
na subjetividade da criança” (p.26).
O autor destaca trata-se de uma posição em relação ao saber: é necessário que a
criança subtraia algo do Outro. Citando um exemplo comentado por Laurent, assinala que “a
criança vem tentar subtrair, no Outro, o significante que falta” (STEVENS, 2008, p.26). O
percurso do caso em questão revela os efeitos do manejo sutil da interveniente, que sustentou
a posição de dizer não à subtração no real, ao mesmo tempo em que aceitava as tentativas, por
parte da criança, de descompletá-la. Assim, o interveniente, aceitando que, desse modo, o
sujeito tenta se constituir, permite-se dizer não a uma demanda repetitiva, o que pode servir
como barra para o Outro do sujeito, pacificando-o.
Kusnierek (2005), comentando o artigo “Sophie et les potirons” (LAMBEAU,
LESNICK & STREVELER, 2004), sobre a orientação na prática clínica com psicóticos,
destaca tratar-se de um trabalho com a letra fora-de-sentido (hors-sens). A autora sublinha os
efeitos da intervenção de uma equipe que, ao deixar de responder à demanda da paciente de
fazer semblante de objeto materno nas brincadeiras, passou a sustentar sua construção, que
veio a se revelar, a posteriori, um ponto de ancoragem.
Nesse caso, a construção se fez em torno do cultivo e classificação das sementes da
abóbora, em termos de diferença imaginária entre macho e fêmea. Kusnierek (2005) ressalta o
ordenamento inventado pelo próprio sujeito,
fora-de-sentido compartilhado, o que lhe
possibilitou um tratamento do gozo pela via do objeto. O ponto nodal do argumento da autora
é a orientação teórica da prática clínica com psicóticos, que incide em um trabalho com a letra
fora-de-sentido (hors sens). Tal orientação encontra seu fundamento no segundo ensino de
Lacan. Assim, esse modo de intervenção se distingue da interpretação orientada pelos
pressupostos do Nome-do-Pai como ponto de fixação simbólico e da articulação entre
significante e gozo a partir das operações de alienação e separação.
Seynhaeve (2005) toma esse mesmo caso como paradigmático da clínica de alíngua,
pois o sujeito trata o gozo por duas vias: a versão objeto e a versão letra. Em relação à
primeira, a abóbora é o objeto que ocupa o sujeito, que o investe libidinalmente. Ele se
apresenta como objeto condensador de gozo. Em relação à versão letra, a abóbora (potiron)
constitui um significante assemântico que a instituição acolhe: “É um S1 isolado elevado à
199
dignidade de sintoma que faz laço social” (SEYNHAEVE, 2005, p.8). É o ponto de basta do
sujeito. O que está em jogo é a hipótese de
alíngua (lalangue) como sintoma.
As interlocuções
As interlocuções em geral são realizadas com a família, a escola, os profissionais de
saúde, as instituições de estágio ou ligadas à justiça. Essas interlocuções dependem da
situação de cada criança ou jovem residente, que, embora pertença a uma instituição social,
como, por exemplo, a família, nem sempre está inscrito no laço social. Durante as
interlocuções, o membro da equipe do
Courtil é, com freqüência, convocado a se posicionar
como detentor de um saber médico ou psicológico sobre a criança ou o jovem, o que requer
um manejo caso a caso para deslocar discurso do mestre e criar alguma possibilidade de
parceria de trabalho. Nessas interlocuções, a orientação é a da clínica do sujeito, que supõe a
colocação da barra no Outro – do lado do membro da instituição – diante das demandas outro,
especialista ou legislador. O resultado das intervenções nem sempre se aproxima daquele em
que a equipe aposta, o que retorna como trabalho.
Nesse contexto, o campo de intervenções da prática institucional se configura de
acordo com as contingências, visando a sinalizar acontecimentos novos e repetições iterativas
de gozo. A oportunidade para a intervenção pode se apresentar em qualquer situação de
convivência entre o membro da equipe, seus pares, o residente e o grupo; por exemplo, no
trajeto para realizar uma atividade, na sala de espera, na ida ao supermercado ou durante um
passeio.
Assim, o sujeito psicótico rejeita o laço social como discurso estabelecido e, ao
mesmo tempo, tenta construir um substituto para a perda da realidade através de uma
invenção que pode ter função de laço social. No entanto, nem toda invenção possibilita laço
social, isto é, nem toda invenção constitui uma significação no campo do Outro. Por isso, a
questão diz respeito a como a equipe pode favorecer uma construção que propicie laço social.
Vimos que a posição de não atender à demanda pode abrir espaço para uma construção, que,
embora fora-de-sentido, pode-se constituir como um ponto de ancoragem em direção ao laço
social.
200
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na perspectiva da psicanálise inventada por Freud e orientada pelo ensino de Lacan,
esta tese questiona as possibilidades de construção de laço social na psicose. Como primeiro
passo, situo a questão nos termos da clínica do sujeito, apontando que a resposta só é possível
através da linguagem, que, na neurose, é desvelada no dito/dizer do sujeito, na relação de
alteridade com o objeto com o qual ele joga sua partida. Embora o foco da tese seja o laço
social na psicose, extraio essa noção da elaboração freudiana relativa à neurose, buscando
pontos de convergência e de divergência em relação às formulações de Lacan. A decisão de
partir da neurose deve-se não apenas ao fato de ela ter sido considerada por Freud e, durante
parte de seu ensino, por Lacan como paradigma da clínica, mas também ao interesse em
resgatar o fio cortante da formulação freudiana, que, ao se referir ao laço emocional com outra
pessoa, dá uma pista do trabalho singular do sujeito em tentar recuperar o objeto perdido.
A fim de abordar a clínica do sujeito na perspectiva da psicanálise, esta tese repertoria
as elaborações teóricas sobre o sujeito e o objeto, inicialmente na obra de Freud, concluindo
que, embora não haja uma noção estabelecida, há, entretanto, uma concepção de sujeito na
obra do autor. Tal concepção pode ser extraída, dentre outras, das referências freudianas à
decisão do infans, que implica conseqüências para o sujeito. Essa decisão é denominada
escolha da neurose, o que indica a modalidade de defesa do eu, essencial nas distinções
clínicas entre neurose, perversão e psicose. Em Freud, destaco o lugar do objeto perdido da
experiência de satisfação como o que move o funcionamento do aparelho psíquico. Em nossa
leitura, o objeto perdido constitui o âmago da questão da alteridade no texto freudiano.
Segundo as elaborações de Freud e Lacan, esse objeto está perdido para todo ser falante,
perda que, no caso da psicose, não corresponde à extração do objeto do campo da realidade
(LACAN, 1957-58b/1998), o que revela seus efeitos na linguagem e, por vezes, na rejeição a
um lugar no laço social.
Investigando a noção de laço social postulada pelo inventor da psicanálise, a tese
destaca que Freud (1913a[1912-13]/1980; 1939[1934-38]/1980) reconhece o declínio social
do pai e o inventa como mito, como incorporação da Lei cuja transmissão se realiza na cadeia
transgeracional. Em função dessa elaboração, Lacan (1974-75, inédito) e alguns de seus
comentadores, dentre eles, Barros (1999), sustentam que a noção de laço social em Freud tem
como protótipo a realidade psíquica.
201
Como paradigma da noção freudiana de laço social, destaco a frase que me fisgou,
levando-me, dentre outros motivos, a escrever esta tese: “Eles me transmitiram o que,
rigorosamente falando, eles próprios não possuíam” (FREUD, 1914a/1980, p.23). Nessa
perspectiva, a transmissão supõe uma falta no Outro, sob a forma de um desconhecimento no
próprio dito, revelando uma hiância entre o dito e o dizer. A frase de Freud, que marca uma
distinção entre herança e transmissão, pode ser lida a partir das operações de alienação e de
separação tal como elaboradas por Lacan (1960b/1998; 1964/1998). Nesse contexto, a
alteridade é situada em termos de objeto
a, resultado da superposição das duas faltas a do
campo do sujeito e a do campo do Outro – em jogo naquelas operações.
Destaco que, em Lacan (1957-58a/1998), é a subtração de gozo que corresponde à
noção de laço social. Enquanto na formulação do autor sobre a metáfora paterna a subtração
de gozo é concebida como efeito da interdição da palavra do pai, em “Subversão do sujeito e
dialética do desejo no inconsciente freudiano”, Lacan (1960/1998) aponta que essa subtração
é efeito da castração sobre todo aquele que fala, deixando mais evidente que é o prazer que
barra o desprazer.
É possível dizer que é em torno dessa repetição que remete ao objeto perdido como
impossível de ser reencontrado (na neurose) ou como objeto não extraído (na psicose) que
se pode articular o laço social. Como essa repetição necessariamente engendra alguma perda,
todo discurso rateia, nenhum deles sendo mais conveniente do que o outro. Segundo a
formalização dos discursos proposta por Lacan (1969-70/1992), é necessário que os quatro
elementos – , , , – estejam individualizados para que ocupem lugares na estrutura. Esse
requisito impõe um limite teórico à utilização dos discursos estabelecidos para situar o ser
falante cuja estrutura não resultou das operações de alienação e separação, como é o caso do
psicótico.
No desdobramento dessas questões, a tese ressalta a noção de
alíngua, com a qual
Lacan (1972-73/1993) desloca o ponto em que o sujeito pode aparecer: não apenas na cadeia
significante a partir do inconsciente, o que requer o recalque, mas também no elemento, no
significante Unário. Nessa perspectiva, o S1 extraído de alíngua pode vir a funcionar como
um ponto de ancoragem para o gozo, o que se pode notar nos casos clínicos comentados na
prática institucional. Deslizando do complexo de Édipo para a pluralização dos Nomes-do-
Pai, Lacan (1974-75, inédito) distingue o pai como nome e o pai como nomeador, indicando
que a nomeação será um quarto elemento, e que esse não é, necessariamente, simbólico.
Neste caso, o acento está colocado na função de fazer nó, isto é, de manter os registros
articulados, o que é diferente de ser um suporte para o simbólico. Nessa formulação, sobressai
202
uma nova concepção de laço social, a da pluralização dos Nomes-do-Pai, que remete a
modalidades de suplência à relação sexual que não existe. Na perspectiva da topologia, o
sinthoma é o que vem fazer suplência à falta de relação sexual, fixando o gozo que não está
submetido a um ciframento.
Na neurose, o laço social passa pela falta de objeto, que engendra a busca de um
substituto a partir das coordenadas da realidade psíquica. Essa operação implica o recalque
como modalidade de defesa do eu que fixa parte do gozo a uma representação. A partir desse
referencial, a tese focalizou a questão: como conceber o laço social na psicose, em que o
recalque não é a modalidade de defesa que opera e a perda do objeto da experiência de
satisfação não está simbolizada?
A clínica da psicose revela que, após um desencadeamento, o sujeito se dedica a um
trabalho na tentativa de reconstruir a realidade, um lugar para viver, cujas fronteiras e
possibilidades são delimitadas com marcas singulares. Freud (1914b/1980) designou esse
trabalho como de restituição do eu. A construção do delírio que pode funcionar por algum
tempo como um substituto para a perda da realidade – é uma tentativa de cura. Essa tentativa,
no entanto, pode-se revelar precária, levando, por vezes, à passagem ao ato, o que só pode ser
considerado caso a caso.
Para demonstrar alguns processos de estabilização, esta tese utiliza duas possibilidades
de psicanálise aplicada: o dispositivo de consulta e a prática institucional. No dispositivo de
consulta, encontros regulares entre o paciente e o analista que maneja a transferência. Esse
dispositivo constitui, por vezes, uma modalidade de suplência a partir da qual o analista ou
um técnico com transferência de trabalho pode sustentar a construção singular a qual o
sujeito vem-se dedicando. A outra vertente da psicanálise aplicada, a prática institucional, visa
a intervenções contingentes no cotidiano da instituição, nas quais se articulam o tratamento do
Outro e a invenção do sujeito. Embora possa haver endereçamento transferencial, o foco da
prática institucional é menos a relação do paciente com um analista e mais as intervenções da
equipe a partir dos princípios da psicanálise (ZENONI, 2002). Nesta tese, abordei os casos C.
e S. como exemplos do dispositivo de consulta, e as intervenções nas instituições Foyer de
l’Equipe e Courtil como modalidades de prática institucional.
Na discussão do Caso C., assinalei o processo de estabilização do analisando, que, sob
transferência, construiu uma idéia delirante, formulando Deus é Deus, isso basta e
denominando-se espiritualista, filho de Deus. Com essa construção, C. estancou o processo
metonímico, e, com esse nome, fez alguma amarração, fixando parte do gozo que retornava
como angústia e depressão persistentes. Essa construção constitui um ponto de ancoragem:
203
uma tentativa, por parte do sujeito, de colocar um anteparo ao vazio. O efeito desse processo
foi o deslocamento da resposta sobre o Outro então situada como certeza em um encontro
num futuro assintótico e o apaziguamento do retorno do gozo, que até então ocorria nos
órgãos do corpo
. Como suporte para sustentar essa construção, C. vem mantendo seu trabalho
de análise e o investimento da rede transferencial. Considerando o processo de construção de
C., destaquei o tratamento dado ao objeto voz, ao qual ele vinha se dedicando desde o
primeiro desencadeamento, quando encontrou algum suporte para o gozo na voz arrebatadora
do ídolo de rock. No percurso da análise, o objeto voz foi localizado na alucinação, um
trabalho de restituição do eu que produziu um efeito de subjetivação. Nesse processo de
subjetivação, que tinha a música como suporte para o objeto voz, privilegiei, como analista, o
S1
metamorfose ambulante. Esse significante estabilizou os registros, dado que o sujeito o
enuncia em oposição ao significante
fanático, aquele que tem uma opinião formada sobre
tudo. Na discussão do caso, apontei que
fanático era o significante com o qual o analisando se
referia ao enigma que lhe provocava tanto o fanatismo político do pai (ativista do movimento
integralista) quanto o fanatismo religioso da mãe. Logo,
metamorfose ambulante é um
significante do campo do Outro que responde, de certo modo, a esse enigma, indicando certa
distância em relação ao objeto a não extraído.
Quanto ao Caso S., recolhi, como analista, o S1 líder de vendas, apontando, ao discuti-
lo, a função de ponto de ancoragem que esse significante cumpriu para o sujeito, o que se
revelou como resgate de uma suplência que havia funcionado antes do último
desencadeamento. Essa suplência, que aponta a inconsistência do Outro, criou algo onde antes
nada havia: a função de vendedora, o que potencializa o saber-fazer com o gozo,
circunscrevendo as andanças e a conversação.
No percurso desse caso, foram decisivas tanto a relação de transferência com a
analista, pela via da confiança, quanto a participação nas oficinas do CAIS, onde a paciente
redescobriu a atividade de vendas. No bazar promovido pela instituição, fez novas parcerias,
mantidas por certo tempo fora da instituição. Através delas, descobriu a circulação da revista
Ocas, que passou a ser para ela objeto de venda e via de algum convívio social. O que o
processo de estabilização de S. nos ensina é que a inclusão diz respeito ao laço social; que,
parafraseando Lacan (1958/1998), a cidadania, tal como a cura, pode vir por acréscimo
quando o sujeito constrói ou atualiza uma suplência, um ponto de ancoragem ou um sinthoma.
Assim, essa lógica situa a proposta de inclusão social da reforma psiquiátrica a partir da
clínica do sujeito, e não como um imperativo de bem-estar psicossocial.
204
Como uma das conclusões desta pesquisa, destaco aquilo que o trabalho de
sustentação da suplência realizado, sob transferência, tanto por C. quanto por S. revelou, a
saber, que é possível apostar no dispositivo de consulta em casos de esquizofrenia desde que
haja consentimento do sujeito. O Caso S. passa a ser paradigmático de uma modalidade de
intervenção no ambulatório, sem que nada impeça sua extensão ao consultório ou à prática
institucional, o que apresento como estratégia no tratamento de pacientes que estejam fora do
laço social. Visando a favorecer a construção do laço social, é necessário articular quatro
eixos, sendo o primeiro a condição dos demais:
-
Clínica do sujeito: requer que a equipe, em geral constituída por discursos e saberes
diversos, tenha como orientação comum a suposição de que um sujeito em trabalho que
decide sobre suas escolhas e busca elaborar questões em relação à vida, inclusive se segue a
via da inércia, reiterando a recusa ao laço, ou se consente em outra alternativa. Essa
orientação parte da contribuição de Freud (1911b/1980) segundo a qual, após um
desencadeamento psicótico, o sujeito busca reconstruir o mundo para nele viver, sem,
contudo, esquecer a dualidade pulsional em jogo.
- Projeto terapêutico: busca identificar, desde as entrevistas preliminares, se o sujeito
refere algum trabalho de suplência ao qual vem-se dedicando, visando a algum ponto de
ancoragem no laço social. No desenrolar do acompanhamento, o projeto pode ser revisto a
partir de alguma mudança no percurso.
- Trabalho em equipe: visa à construção do caso e à elaboração de estratégias de
intervenção clínica, favorecendo as intervenções contingentes. Nesse processo, um
participante da equipe pode ser convocado a encarnar o lugar do Outro da erotomania ou do
ódio, ou a enunciar um saber sobre o sujeito, o que requer um manejo da transferência a fim
de acolher o endereçamento, sustentando, contudo, um lugar vazio.
- Parcerias entre serviços de saúde e rede social: as parcerias são constituídas caso a
caso, privilegiando os caminhos que, em cada um deles, o gozo engendra. Para potencializar o
trabalho singular de construção do sujeito, o recurso a oficinas que funcionem em CAPS, em
ambulatórios, no CAIS ou na rede transferencial mostra-se, por vezes, interessante. Tais
oficinas podem oferecer ao sujeito a oportunidade de desenvolver uma atividade ou uma
técnica, e de conviver com outros sujeitos em processo de reabilitação. Outra possibilidade
seria uma parceria com empresas para um estágio assistido ou para um treinamento, com
objetivo de geração de renda. Essas parcerias têm sentido se forem acordadas a partir da
escolha do sujeito, tendo como suporte a rede transferencial em que ele circula ou pretende
se engajar.
205
O ambulatório não é o locus privilegiado para esse trabalho de sustentação da
construção do laço social, pois este se faz na contingência do encontro entre um sujeito e o
destinatário que ele escolhe para endereçar sua questão subjetiva, o que pode ocorrer nos
diferentes serviços da rede ou mesmo fora dela. No entanto, o ambulatório é um
locus
propício para a sustentação do trabalho que o sujeito vem fazendo. Com efeito, a
regularidade nos encontros favorece a transferência e o recolhimento de ditos do sujeito, o que
pode, em alguns casos, levar à construção de um ponto de ancoragem, ou seja, de um lugar no
laço social. Não se trata de criar ateliês e oficinas nos ambulatórios, mas de mapear recursos e
favorecer o acesso de interessados a essa informação. Enfatizo a orientação que privilegia a
clínica do sujeito, pois, nessa perspectiva, tem cabimento uma parceria ou uma informação
quando elas resultam de uma demanda do sujeito, quando vêm como resposta mediadora em
relação ao Outro Real. Do contrário, essa seria uma prática de inclusão social orientada pela
tutela, o que, cedo ou tarde, conduz ao abandono ou ao fracasso da proposta. Na perspectiva
da clínica do sujeito, a proposta da inclusão social tem como aposta a via do laço social, isto
é, uma tentativa de o sujeito articular de algum modo o significante e o gozo, e, sobretudo,
responsabilizar-se por seu ato, mesmo que seja o da recusa a fazer laço com o Outro.
Em relação à prática institucional, esta tese interroga-se quanto à estratégia
denominada tratamento do Outro. Tal estratégia incide nas formas de endereçamento do
sujeito, o que não deixa de ter alguma relação com a transferência. No entanto, constata-se,
nos casos clínicos aqui comentados, que o tratamento do Outro favoreceu o acolhimento do
endereçamento transferencial necessário ao trabalho de sustentação da invenção do sujeito.
Como exemplo, aponto o Caso Sophie (Potiron), que indica um modo de saber-fazer com
alíngua (lalangue) em que o ponto de ancoragem se produziu como efeito de uma construção
fora-de-sentido, possibilitando um lugar para o sujeito no laço social.
Assim, destacamos, nesta tese, que tanto a função do analista no dispositivo de
consulta quanto a do técnico de referência da equipe na prática institucional orientada pela
psicanálise é sustentar o trabalho de construção ao qual o sujeito vem-se dedicando. Esse
trabalho, que constitui um modo de localizar o gozo, logo, o objeto a que retorna no real,
pode, em alguns casos, conduzir à construção de uma suplência ou ponto de ancoragem. O
trabalho de elaboração tanto pode levar o sujeito a reconstruir um sentido como ocorre no
Caso C., através dos significantes espiritualista, filho de Deus e metamorfose ambulante
quanto pode levar a uma invenção fora-de-sentido – como ocorre nos desdobramentos do caso
Potiron. O segundo axioma do ensino de Lacan não anula, portanto, o primeiro, mas o
ressitua e abre outras possibilidades de construção do laço social na psicose.
206
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