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REGINA ORTH DE ARAGÃO
A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO PSÍQUICO MATERNO
E SEUS EFEITOS SOBRE O PSIQUISMO NASCENTE
DO BEBÊ
Dissertação de Mestrado
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica
cleo de Psicanálise
Laboratório de Psicopatologia Fundamental
Pontifícia Universidade Católica
São Paulo
2007
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Psicologia Clínica, sob a orientação
do Prof. Doutor Manoel Tosta Berlinck
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Banca Examinadora
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A AURÉLIO E EMANUEL
A MEU PAI, EM MEMÓRIA.
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AGRADECIMENTOS
A Manoel Tosta Berlinck, pela orientação, incentivo e confiança fundamentais
para a realização desse trabalho.
A Isabel Kahn Marin e Silvia Abu-Jamra Zornig, que indicaram caminhos
decisivos no exame de qualificação para o desenvolvimento desse trabalho.
Aos amigos e colegas do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, pela
leitura atenta e generosa de partes desse trabalho e pela interlocução sempre viva e
instigante.
Aos amigos de Brasília, muito especialmente a Norberto Abreu, Luiz Celes,
Maria Nilza Campos e Daniela Chatelard, pelo acompanhamento afetuoso e
estimulante desse percurso.
A Luiz Cláudio Figueiredo, pela interlocução sempre enriquecedora e pela
disponibilidade para a leitura atenta de meus textos.
A Myriam David, in memoriam, pelo ensinamento do valor fundamental da
vida e da infância.
A meus pacientes, crianças e adultos, por tudo o que têm me ensinado.
A meu pai, in memoriam, que transmitiu o valor e o prazer do trabalho.
A minha mãe, por sua sabedoria de viver.
A meus filhos, por existirem e inventarem sempre novos modos de olhar a vida.
5
RESUMO
Esta pesquisa tomou a clínica da criança como ponto de partida para,
passando pela clínica da maternidade, se voltar para o estudo dos
processos psíquicos que se dão no tempo antes do nascimento, e sua
questão central pode ser assim apresentada: de que maneira aquilo que se
antecipa e se constrói no psiquismo da mãe durante o tempo de espera da
criança marcará sua relação com o filho, e, portanto influenciará a própria
constituição do psiquismo desse novo ser?
Essa preparação psíquica materna envolve pelo menos três dimensões: o
tempo, o espaço, e a identificação, todas elas atravessadas por alterações
na estruturação narcísica da mulher. A duração da gravidez estabelece
uma temporalidade que permite à gestante percorrer os processos de
transformação em seu psiquismo, em paralelo às mudanças corporais e ao
crescimento do bebê em seu ventre. Em outra dimensão, essas mesmas
mudanças corporais deslocam o sentimento de seu próprio espaço
psíquico, que se altera para conter um outro ser dentro do corpo e dentro
da vida. Trata-se de processos que envolvem alterações no narcisismo
materno, estabelecendo as possibilidades de um narcisismo englobante ou
excludente, como propusemos denominar essas duas alternativas da
posição narcísica materna em relação ao bebê. E como dinâmica
intrapsíquica fundamental encontram-se os desenvolvimentos da história
edipiana; especialmente os percalços da relação da menina com a mãe dos
primeiros tempos serão determinantes para a construção da função
materna.
Palavras-chave: maternidade, constituição psíquica, função materna.
6
ABSTRACT
This research has taken the child’s therapeutic work as a starting point,
passing through the therapeutic processes carried out with pregnant
women, to conceive the study of the psychic processes that take place
before birth. The main question of this research can be presented this way:
in what manner what is anticipated and built in the mother’s psyche during
pregnancy will strongly influence her relation with the baby, and
consequently, will present a relevant effect upon the psychic constitution
of this new being.
This maternal psychic preparation involves at least three dimensions: the
time, the space and the identification, all of them touched by changes in
the narcissistic processes of the woman. The lasting of the pregnancy
establishes a time that allows the pregnant woman to pass through the
process of transformation in her psyche, together with the body changes
and the growing of the baby in her womb. In another dimension, these
same body changes produce clear alterations in the internal feeling of her
own psychic space. This psychic space changes in order to receive and to
contain another being inside her body and in her life. Those processes are
related to the alterations in the maternal narcissism, establishing the
possibilities of one including or excluding narcissism, as we have
proposed to nominate these two alternatives of maternal narcissistic
position in relation to the baby. And as one fundamental intra-psychic
dynamics, we can find the developments of her edipian history; mainly,
the specificities of the relation between the girl and the mother of the first
years of life, that will be relevant to the construction of the maternal role.
Key-words : maternity, psychic constitution, maternal role.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 16
CAPÍTULO I – De mães e de filhos 24
CAPÍTULO II – Narcisismo materno e criação do espaço
psíquico para o bebê 36
CAPÍTULO III – Resiliência e função materna 48
CAPÍTULO IV – Dor, pele psíquica e função materna 54
CAPÍTULO V - Questões sobre o autismo infantil e
depressão materna 68
CAPÍTULO VI – De mãe para filha. A transmissão
da maternalidade 82
CONSIDERAÇÕES FINAIS 101
8
BIBLIOGRAFIA 112
INTRODUÇÃO
TEMA DA PESQUISA
Ponto de partida
Será possível delimitar, situar um ponto de partida de uma
pesquisa? A resposta rápida a esta questão seria, sem dúvida, dizer que o
ponto de partida encontra-se na experiência clínica do pesquisador. Mas
talvez isso seja mais bem dito ao se afirmar que a clínica é simplesmente o
terreno privilegiado no qual a pesquisa se desenvolve, porque se
quisermos realmente buscar um ponto de partida, faz-se necessária a
referência a um mítico ponto zero, o ponto da origem, que recobre nossa
fantasia mais arcaica sobre a origem de nós mesmos, da qual a fantasia da
cena primitiva e de nossa própria concepção seria uma representação
possível. Assim sendo, vamos dizer, formalmente, que o ponto de partida
das interrogações desta pesquisa situa-se na minha clínica psicanalítica
com bebês, crianças e seus pais, sabendo, no entanto, que a busca por
atuar nessa clínica já foi, em si, norteada por essa questão sobre as
origens, que atravessa de alguma forma a todos nós.
Em razão de ter iniciado minha prática clínica como psicoterapeuta
de crianças, e mais especificamente na clínica das relações precoces entre
pais e bebês, as questões relativas à constituição do psiquismo e às suas
origens fizeram-se presentes e instigantes para mim desde então. Essas
9
interrogações apresentaram-se dessa forma não somente enquanto pontos
centrais do questionamento, inseridas no campo teórico da psicanálise,
mas também diretamente experimentadas na vivência clínica com esses
pacientes.
A essas questões sobre os determinantes da constituição do
psiquismo, veio se juntar uma interrogação sobre a intrigante variedade
dessas constituições. Assim, por dois caminhos o do estudo teórico e o da
clínica as interrogações foram se acumulando, por vezes encontrando
respostas, mas nunca por muito tempo, e não inteiramente satisfatórias. A
literatura psicanalítica a respeito do tema é muito vasta, variada e por
vezes discordante. A começar por Freud, para quem as questões da origem
e do originário muitas vezes co-existiram, de tal modo que seu texto
prestou-se, nesse ponto também, a leituras diferentes: o conceito de
originário podendo ser relacionado à noção de «infantil» em psicanálise, e
aí estamos propriamente no campo do a posteriori, da rememoração, da
reconstrução, enfim, do trabalho propriamente psicanalítico; ou, por vezes,
o conceito de originário pareceu ligar-se à noção de «infância», podendo
assim conduzir a uma perspectiva temporal, cronológica, no rumo das
teorias do desenvolvimento.
Para melhor circunscrever o tema proposto e de modo a torná-lo
mais facilmente abordável, busquei orientar-me por um eixo que
permitisse delimitar, na medida do possível, esse percurso. Winnicott
(1969c) colocou em palavras aquilo que muitas mães de recém-nascidos já
sabiam, ou seja, que não existe um bebê por si só, que não é possível
pensar em um bebê sozinho sem levar em conta seu objeto primordial, em
geral a mãe. Se o bebê se constitui por meio do outro primordial, sua mãe,
então como nasce uma mãe?
10
Do ponto de vista da função materna, a escuta de pacientes às voltas
com a questão da maternidade seja ela efetiva ou um projeto trouxe vários
elementos de reflexão. Houve um momento na minha clínica em que me
vi às voltas com diferentes mulheres, em diferentes momentos da vida
falando de suas maternidades. Maternidades potenciais, oscilantes em
torno do desejo ou não de se tornarem mães, na dúvida sobre ter ou não
filhos. E outras pacientes cujas análises foram atravessadas pelos períodos
de gravidez. E, ainda, mães em outros tempos de suas vidas, com filhos
pequenos, adolescentes, adultos.
O estudo da função materna levará a uma análise dos mecanismos e
dos processos nela envolvidos, a partir dos referenciais psicanalíticos.
Outro foco da pesquisa será o de se debruçar sobre os processos psíquicos
em jogo na posição materna.
Ainda com relação às fontes da pesquisa, é importante mencionar o
aporte das manifestações psicopatológicas da infância, aquelas que
envolvem as primeiras estruturações do aparelho psíquico. A
psicopatologia, seguindo a tradição freudiana de relacionar os fenômenos
patológicos com os normais, leva a formular interrogações
metapsicológicas sobre o bebê. O enigma do autismo e das psicoses
infantis precoces pode ajudar a refletir também sobre as crianças que
constituem simplesmente suas neuroses infantis.
No que diz respeito à pesquisa bibliográfica utilizei, a propósito,
autores de diferentes linhas teóricas dentro do campo da metapsicologia
psicanalítica. Parece-me que fazer funcionar assim as diferenças é um
exercício bastante interessante de reflexão. Dentro da tradição da
psicopatologia fundamental, que dialoga com diferentes disciplinas, além
da psicanálise, recorri eventualmente a noções da etologia, na
11
compreensão dos marcos iniciais da sensorialidade do feto e do bebê, por
meio de estudos recentes da perinatalidade, e também a estudos no campo
das teorias do apego.
Os textos pesquisados na maior parte relacionados com os
estudos sobre o bebê e o psiquismo inicial, sobre a psicopatologia em suas
formas graves nos primeiros anos de vida, e sobre a maternidade e a
feminilidade serviram como guias, como marcos, e também como
indicadores de mudanças de rumo necessárias, ainda que inesperadas, no
percurso deste estudo. E a volta freqüente aos textos freudianos operou
como referência constante ao longo dessas leituras. Algumas delas foram
feitas em textos franceses ou ingleses, eventualmente não traduzidos para
o português. Nesses casos, as traduções de citações, quando apresentadas
no decorrer do texto, serão de minha própria autoria, como também as
traduções dos títulos dessas obras.
Fontes e percurso da pesquisa
A pesquisa se desenvolve a partir da clínica com crianças, da clínica
das relações pais-bebê, da clínica das patologias graves da infância, e, por
fim, da clínica com adultos, especialmente da escuta de mulheres às voltas
com a questão da maternidade.
Nesses casos, para além da singularidade da história de cada uma
dessas mulheres é possível encontrar pontos comuns, algumas constantes,
que tentarei traduzir em termos generalizáveis, em metapsicologia.
Os relatos clínicos de criança escolhidos são propositadamente
aqueles que se situam em um período já distante do perinatal, para poder
beneficiar da visão proporcionada pelo a posteriori. Não tratarei
12
diretamente da clínica pais-bebê, que, no entanto, opera como pano de
fundo para muitas das reflexões aqui alinhavadas.
O percurso se traça, então, ao longo de vários casos clínicos que
serão evocados não como relatos clínicos em si, mas como construções de
caso, visando a formulação de hipóteses teóricas no campo da
metapsicologia, como propunha Fédida (1992) ao mostrar que o caso
clínico é uma teoria em germe. Esse ponto será mais desenvolvido no
capítulo “Considerações Metodológicas”.
Os escritos que se seguem indicam esse percurso dentro do projeto
de pesquisa a respeito da construção do espaço psíquico materno e de suas
transformações durante a gestação, com a interrogação sobre os possíveis
efeitos dessa construção sobre o psiquismo nascente do bebê.
O primeiro capítulo esboça a apresentação do problema de pesquisa
a partir de um recorte clínico e nele são colocadas algumas das questões
que se farão presentes durante a pesquisa: a constituição do aparelho
psíquico e sua função; a inter-relação entre o psiquismo materno e a
constituição do psiquismo do bebê; o papel do clínico no tratamento, os
efeitos possíveis do tratamento.
O segundo capítulo trata especialmente do psiquismo materno
durante a gestação, a partir de uma seqüência de sonhos durante a análise
de uma paciente grávida. A questão do narcisismo materno, que se
apresenta como uma das linhas da pesquisa desenvolvida neste trabalho, é
tratada, analisando as alterações no narcisismo da mãe que interferem
sobre o investimento psíquico que ela fará de seu bebê.
O terceiro capítulo discute a noção de resiliência em sua interface
com a relação materna. Resiliência tomada como um conceito-limite, fora
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do campo da psicanálise, mas que ajuda a refletir sobre os fatores de
vulnerabilidade e sobre os efeitos decisivos do encontro da criança com
seu cuidador primordial.
O quarto capítulo, novamente construído em torno de um caso
clínico, retoma as questões suscitadas no capítulo anterior, para discutir
quais podem ser os arranjos psíquicos da criança diante de situações de
vida de extrema precariedade. Nesse contexto, utilizo algumas
contribuições da etologia humana em suas pesquisas sobre as primeiras
impressões sensoriais que o feto e o bebê recebem do ambiente, e as
condições de disponibilidade do bebê para a relação com a mãe, ou quem
a substitui.
O quinto capítulo aborda a clínica do autismo, debruçando-se sobre
as características da relação entre mãe e bebê, a partir dos elementos que
se fazem presentes no caso clínico evocado, e que me remetem ao que está
em jogo no estabelecimento das primeiras relações entre mãe e filho. Trata
dos riscos, para o psiquismo da criança, dos efeitos da depressão materna.
O sexto capítulo trata da relação mãe-filha e da transmissão da
maternalidade. Após uma breve discussão das teses freudianas a respeito
da sexualidade feminina e da ligação entre feminilidade e maternidade,
são discutidas as primeiras relações entre mãe e filha, e as formas pelas
quais interferem na possibilidade, para a menina, de construção de sua
feminilidade e na realização, ou não, da maternidade.
Observe-se que as evocações de casos clínicos eventualmente se
repetem e aparecem em mais de um texto. E, sobretudo, a questão do
papel do clínico no tratamento, presente no primeiro texto, permeia de fato
toda a elaboração deste trabalho. Alguns desses pacientes, em particular as
crianças, puderam, por diferentes circunstâncias, ser revistos anos depois
14
de terminadas suas análises, e suscitaram novos elementos de interrogação
sobre a função do clínico debruçado sobre o sofrimento psíquico, em suas
várias formas. Essas interrogações ultrapassam o escopo deste trabalho,
mas serão sem dúvida fontes para a continuação desses estudos. De todo
modo, é possível avançar, desde já, a partir desses reencontros, que
mesmo para a criança pequena o encontro com o psicanalista é uma
relação única, sem precedente, que produz efeitos e inflexões importantes
na estruturação do psiquismo ou na elaboração dos modos de lidar com o
sofrimento.
Ponto de chegada
Se o ponto de partida foi o interesse pelas origens, pelo originário,
o ponto de chegada foi para um mais aquém do nascimento, isto é, o
psiquismo materno durante o tempo de espera do bebê, tempo de
construção da mãe, tempo de construção do bebê no psiquismo materno.
E, particularmente, a interface entre o narcisismo materno e o lugar
possível para o outro/bebê/estrangeiro/familiar, numa relação de tensão
com o narcisismo materno. Dentro, fora, parte dela, parcialmente outro,
parcialmente ela. Problemática da relação mãe-filho ao longo da vida.
Como o bebê poderá introjetar, no seu próprio processo de tornar-se
sujeito, o que lhe terá sido transmitido do narcisismo materno? Paradoxos
desse processo, bebê parte de si, parte do narcisismo, bebê como outro,
potencialmente ameaçador para o narcisismo, potencialmente objeto de
ódio, já que, como Freud (1914) nos ensinou, toda relação de objeto é
atravessada pelo ódio, na medida em que o outro representa uma invasão
do espaço narcísico do um.
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Espaço da pesquisa
Essa pesquisa se desenvolveu no Laboratório de Psicopatologia
Fundamental do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia
Clínica. Se o trabalho da pesquisa se passa essencialmente no interior do
cenário psíquico do pesquisador, a partir dos vários encontros clínicos e
outros que permeiam o seu percurso, ele demanda também para se
desenvolver a existência de um espaço externo – um ambiente
suficientemente bom, talvez dissesse Winnicott. Foi esse o espaço
encontrado no Laboratório, no qual a continência, o estímulo, e ao mesmo
tempo o desafio, estiverem sempre presentes. O respeito à diversidade
exteriorizada na produção singular de cada um dos pesquisadores, o
interesse pelo escrito do outro, a disposição para se debruçar sobre as
interrogações do colega, um pouco como faz o clínico sobre o pathos de
seu paciente, tudo isso configura esse espaço propício para o
desenvolvimento das pesquisas a respeito da subjetividade humana em
suas mais variadas manifestações. Essas características do trabalho ali
desenvolvido criaram as condições desse espaço externo único, operando
em contraponto e como referência ao que se desenvolvia em meu espaço
psíquico durante esta trajetória.
16
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Questões sobre a interpretação
Como surge a interpretação? Reconhecer algo no outro já é em si
um ato interpretativo. Mas como passar do reconhecimento para a
formulação de hipóteses? Como surgem as hipóteses ao clínico? Elas
surgem no intervalo produzido pelo efeito de surpresa na relação
transferencial, ou no decorrer da experiência clínica. A escrita da clínica
enfrenta esse desafio de buscar uma construção – ou “reconstrução” da
experiência. Como passar do afeto, do vivido, para a representação no
âmbito da relação transferencial e daí para uma representação com a qual
seja possível jogar, compor, dando sentido e forma ao que aparece
inicialmente como experiência “bruta”, por vezes quase sensorial?
Pensamos, então, que a função do analista encontra de perto a função
materna. Ao escrever a clínica, já num outro registro, passamos da
construção de um mito subjetivante, proposto ao analisando, a um mito
mais geral, transmissível para além do espaço analítico, que possa ser
apropriado por outros clínicos, pelo grupo de pertencimento, pelo discurso
social.
O método clínico
Trata-se de passar da escuta própria da relação analítica para a
construção do caso clínico, de modo a compor uma escrita, uma narrativa
17
que possa ser útil, transmissível, isto é, que constitua um quadro mais
geral, aplicável a outras situações clínicas.
O método clínico caracteriza-se por seu caráter qualitativo.
Investiga-se profundamente um caso, do qual visa-se extrair elementos
que possam constituir uma hipótese singular. A pesquisa qualitativa
prioriza a intensidade dos fenômenos, que reconhece como complexos,
visando sua compreensão subjetiva. É uma pesquisa que faz apelo à
construção e à interpretação. A teoria da interpretação é uma
metaforização do observado, do vivido na clínica e a escrita é uma
tradução dessa construção metafórica do caso clínico.
A posição da Psicopatologia Fundamental
A posição da Psicopatologia Fundamental, termo cunhado por
Pierre Fédida, busca resgatar a dimensão subjetiva e singular do pathos.
Diz Berlinck (2000a)
(...) a psicopatologia fundamental (...)pretende resgatar a
dimensão subjetiva e singular contida em pathos, pois
dele, além de sofrimento, deriva-se também paixão e
passividade. Neste sentido, quando pathos ocorre, algo da
ordem do excesso, da desmesura se põe em marcha, sem
que o eu possa se assenhorar desse acontecimento, a não
ser como paciente, inaugurando, assim, condições
necessárias e suficientes para a posição do terapeuta e
para a transformação da vivência pática numa patologia e,
daí, numa experiência (p. 7).
Isto é, num discurso que possa ser compartilhado socialmente.
18
Entre os princípios da Psicopatologia Fundamental, ressaltamos os
seguintes:
- Propõe a investigação do pathos psíquico, dentro de diferentes posições
teórico-metodológicas, reconhecendo a sua irredutível complexidade. Esse
reconhecimento implica admitir que nem uma única, nem o conjunto das
posições esgota sua complexidade. Isto é, cada um detém apenas uma
parcela de verdade.
- Trata-se, portanto, de se inserir numa rede de interlocuções entre
clínicos que ocupam diferentes posições.
- Considera que as teorias são necessárias, mas insuficientes. Elas ajudam
a construir o próprio discurso e conhecê-las pressupõe aceitar que outros
já pensaram sobre aquele mesmo tema.
O método designado Construção de Caso, proposto por Pierre
Fédida (1992), visa, sobretudo, propiciar ao clínico a possibilidade de,
partindo de sua vivência pessoal, produzir um escrito de natureza
metapsicológica, no qual problemáticas possam vir a ser enunciadas. No
caso clínico interessa a explicitação dos processos psíquicos e não o
conteúdo em si da narrativa. Podemos dizer ainda que o caso é uma
narrativa ficcional criada pelo psicoterapeuta e a construção de uma
narrativa do caso é parte constituinte do método clínico da Psicopatologia
Fundamental.
Trata-se de tentativa de integrar o afeto à palavra com o objetivo de
construir uma teoria sobre o caso, isto é, uma teoria da clínica. Esta
teoria, mesmo sendo criada a partir de um caso singular, faz uso de
conceitos estabelecidos dentro das áreas de saber com as quais dialoga a
psicopatologia fundamental, e, em nosso caso, muito particularmente a
19
psicanálise. Busca demarcar uma questão geral dentro da singularidade de
um estudo a partir do método clínico.
O modelo da Psicanálise
Também no modelo da psicanálise, próprio das ciências
interpretativas, o observador está profundamente implicado. Na verdade, é
no cenário psíquico do observador que se desenrola a narrativa, que se
constituem os saberes, as hipóteses, as descobertas, bases para a
construção de uma teoria. Na psicanálise é através do filtro da
transferência, com todo o seu complexo conjunto de mecanismos
psíquicos envolvidos, tais como as identificações e contra-identificações,
as projeções, as identificações projetivas e introjetivas, que se cria o relato
clínico, e a metapsicologia a ele associada. Não podemos esquecer que
também no cenário psíquico do pesquisador estão operando as suas
referências teóricas, suas transferências de trabalho, com colegas,
supervisores e mestres, e sua própria estruturação subjetiva.
A referência central ao inconsciente define a posição
epistemológica fundamental da psicanálise, e confere a ela sua
especificidade. No entanto, essa referência central não limita a criação de
um grande número de modelos psicopatológicos como, aliás, está
demonstrado pela própria evolução do movimento psicanalítico em suas
várias correntes. Essa multiplicidade de modelos psicopatológicos pode
ser tomada ao serviço de um enriquecimento da clínica, da qual se percebe
melhor hoje em dia a complexidade, e, portanto, o interesse de dispor de
diferentes ângulos de iluminação sobre realidades clínicas diversas. O
modelo deve ser percebido e utilizado enquanto tal, e não como realidade
20
suposta. Essa busca de recortes e de zonas de passagem entre os planos e
entre os modelos teóricos pode produzir efeitos de ambigüidade, que, no
entanto são fecundos na medida em que revelam algo da própria natureza
do objeto de conhecimento do qual a psicanálise está tentando dar conta.
No nosso caso, seria justamente o que compõe os laços da criança com
seus pais, e afinal de todo ser humano com seus semelhantes,
permanentemente marcados pela ambigüidade.
A psicopatologia psicanalítica, essencialmente individual, deriva do
estudo das representações e das fantasias, e as metáforas operacionais
utilizadas pelo clínico são destinadas a permitir o surgimento de sentido e
de não-sentido sem ocultar sua escuta. O método psicanalítico não
negligencia o sintoma, mas avalia sua função e seu valor revelador de um
modo de funcionamento psíquico cuja importância econômica precisará
ser definida. A gênese e a estrutura dos sintomas são reveladores dos
conflitos intrapsíquicos e dos modos de estruturação do psiquismo.
Importante lembrar o que é o próprio da psicanálise, além da
dimensão do inconsciente: a sexualidade infantil, a noção de fixação, a
sexualidade na especificidade de seu percurso e de sua estruturação, a
regressão, a dimensão do a posteriori, a problemática pulsional e o destino
das pulsões. Estamos aqui no enquadre da cura analítica, com sua
referência central e norteadora à transferência, para nos orientarmos na
direção do lugar da construção em análise, desenvolvido cada vez mais
como um espaço de narratividade, no qual se trata, para analista e
paciente, de co-construírem uma nova perspectiva da história do sujeito e
de seus percalços pulsionais e defensivos.
Da própria natureza desse encontro analítico decorre uma certa
impossibilidade de comunicar, dado o único e o enigmático da
21
singularidade de cada análise através da dinâmica da transferência. Porém,
se há uma originalidade fundamental em cada tratamento, há também um
dinamismo permanente exigindo do analista que se situe em relação às
suas próprias referências teóricas. O trabalho teórico da psicanálise
consiste, assim, em tentar construir um fundo comum a partir da
singularidade de cada análise. E o analista, sujeito implicado diante de
outro sujeito, não pode esquecer de relativizar aquilo que se diz em torno
do analisando, já que há uma distorção permanente introduzida pelo
discurso daquele que fala para o outro a respeito do outro, portanto
também de si próprio. Essa relativização reintroduz a dimensão da
transferência, presente também quando se faz um relato da clínica, e,
conseqüentemente, quando se constrói uma teoria da clínica.
A posição epistemológica da psicanálise e da psicopatologia, com
repercussões diretas sobre a prática clínica, difere da posição médica,
ciência dedutiva. Trata-se na psicopatologia trata-se de uma construção de
hipóteses a partir de inferências e não de deduções. O clínico vai sendo
tocado pelas situações clínicas, e necessita de tempo para que um
pensamento se construa a partir do vivido, das emoções que se construirão
em pensamento. É o que Bion (1979) postula como posição do analista, a
capacidade negativa, a capacidade de não saber tudo imediatamente, de
dar tempo ao tempo.
O objetivo desta pesquisa é o de produzir, em alguma medida, uma
metapsicologia acerca da prática clínica. Cabe frisar que, aqui, a palavra
“metapsicologia” é tomada no seu sentido preciso, dentro do campo da
Psicopatologia Fundamental, a saber, “(...) um discurso mito-poiético-
epopéico que é uma experiência...[, ou seja, que permite um]
22
...enriquecimento...a possibilidade de se pensar aquilo que ainda não foi
pensado(...)”(Berlinck, 2000a, p. 24).
Questão: podemos considerar a vivência da maternidade como
uma experiência páthica? Assim também a experiência do
nascimento?
O estudo da maternidade tem seu espaço dentro do campo da
psicopatologia fundamental, considerando que o psiquismo materno, nesse
tempo da gestação, configura-se em um estado particular que tem as
características de uma verdadeira crise psíquica. O nascimento envolve, de
fato, a paixão humana em sua experiência máxima, pois toca ao mesmo
tempo nas dimensões da criação, da morte e do sexo. Dar a vida implica
mudar de lugar na cadeia geracional, passar de filha a mãe, e assim seguir
no percurso em direção à morte. O nascimento traz em seu bojo a finitude,
a morte. Por outro lado, o nascimento é a revelação e a concretização da
dimensão sexual da vida da mulher.
Consideramos o nascimento, com sua coorte de intensos afetos,
angústias, fantasias e temores, inserindo-se no campo de estudos da
psicopatologia fundamental, lugar de observação e de cuidado da paixão
humana e todas as suas desmesuras.
Pathos, como excesso de paixão, se faz presente em todo
nascimento. Toda criação de um outro humano envolve a violência do
encontro com o outro, envolve o risco de jogar-se numa empreitada para a
qual não se tem garantia, apesar de todos os progressos da medicina e da
ciência atual. Mesmo que tudo ocorra bem no campo somático, há ainda, e
sempre, o desconhecido em outro registro. Como se dará a vida desse
outro, ao mesmo tempo criação de si, ao mesmo tempo autônomo e para
sempre destinado a escapar dos seus criadores?
23
Não nos esqueçamos da violência da esperança, representada pelo
nascimento, pelo surgimento do outro, potencialmente igual e diferente.
Violência do encontro com a alteridade, em si geradora de pathos.
Sofrimento inerente à violência do encontro com o outro, outro que é ao
mesmo tempo distinto e também o mais igual possível, pois produto de si
próprio.
24
CAPÍTULO I
DE MÃES E DE FILHOS
Na apresentação desta pesquisa, escrevia que as questões relativas à
constituição do psiquismo, às suas origens, tinham se apresentado a mim
de modo insistente desde o início de minha prática clínica, que se deu com
crianças pequenas e com pais e seus bebês. Se de início essa pretensão a
buscar os determinantes da constituição do psiquismo poderia parecer
utópica, e mesmo ingênua, logo as interrogações se deslocaram para algo
diferente, que foi a infinita e intrigante variedade dos modos de
constituição. Produto dessa alquimia misteriosa e fascinante que se dá
entre pais e bebês, como diz Cramer (1989). Para aproximar esse tema tão
vasto e já tão explorado da constituição do psiquismo, busquei uma forma
de circunscrevê-lo, orientando-me por dois eixos: de um lado o bebê, de
outro a mãe, contrariando o pensamento de Winnicott (1969c), para quem
não existe um bebê por si só. Do lado do bebê, parece sempre intrigante
constatar que crianças em situações de vida aparentemente muito
semelhantes reajam e se constituam de modo tão diverso. O que faz, por
exemplo, com que alguns bebês sejam mais vulneráveis às experiências de
separação do que outros?
A clínica com a criança, se não nos traz respostas, ajuda-nos a
melhor formular as questões, e será então seguindo essa trilha que
procuraremos, nesta pesquisa, encontrar recortes com a teoria para
esclarecer pontos que ainda nos interrogam. O que vai conduzir
necessariamente de volta ao estudo do “entorno” da criança (Figueiredo,
2000), e às interrogações sobre a construção das funções maternas. Desse
25
ponto de vista, a escuta de mulheres às voltas com a maternidade, seja ela
efetiva ou expressão de um desejo, produziu também vários focos de
interrogação, como já dito anteriormente.
Extrato de um caso clínico
Bruno, que acabou de completar 10 anos, chegou por indicação de
uma psicopedagoga, que não compreende como um “menino tão
inteligente possa ir tão mal na escola”. A história inicial, relatada pelos
pais, é a seguinte: a família estava no exterior, na fase final de preparação
da tese da mãe. Ela preparava-se também para uma cirurgia, e por essa
razão fazia os exames pré-operatórios, quando descobriu a gravidez, já no
início do quarto mês. A gravidez havia passado desapercebida! A partir
daí, e até o parto, há uma grande preocupação por parte dos médicos e dos
pais quanto ao estado do bebê em função dos exames realizados, o que
leva a gravidez a ser considerada de alto risco. Poucos dias após o
nascimento de Bruno, que se deu sem complicações, ele é acometido de
uma pneumonia grave, levando-o a internação em UTI néo-natal, pois
corria risco de vida. A mãe refere-se a Bruno como um lutador, um bebê
que não desiste. Ela o admira por isso, por sua garra, e surpreende-se com
a vida que está nele e não parece estar nela. Bruno então vence a infecção,
volta para casa. Nos meses que se seguem, os cuidados do bebê são
divididos entre a avó materna e a mãe, que estava, a essa altura, muito
envolvida com a redação final de seu trabalho. Voltam então para o Brasil;
Bruno tem três meses, e a avó materna morre subitamente, produzindo na
mãe uma profunda dor, e um sentimento de perda do qual ela diz não ter
se recomposto ainda hoje. Aos cinco meses de Bruno, sua mãe teve de
26
voltar para o exterior para complementar seu trabalho. Bruno fica com o
pai, os irmãos mais velhos, e uma babá, escolhida cuidadosamente, mas
que até então ele não conhecia. O retorno da mãe se dá quando Bruno
tinha entre oito e nove meses, e, evidentemente, ele não a reconhece.
Os anos seguintes se passam sem problemas somáticos. Bruno tem
uma “saúde de ferro”; seu desenvolvimento é lento, mas as etapas vão se
dando aproximadamente dentro dos tempos previstos, com exceção da
linguagem. Bruno só vai começar a falar por volta dos três anos e meio.
Sua história escolar foi sempre difícil, com inúmeras mudanças. Na
primeira escola maternal escolhida por utilizar uma língua estrangeira do
país onde ele nascera Bruno vive uma péssima relação com a professora,
que chega a bater nele, impaciente porque ele “não entendia o que ela
pedia”. Desde então, ele é acompanhado por uma fonoaudióloga, que
nessa etapa se preocupa principalmente com sua incapacidade de contar
histórias, de fazer relatos que tenham início, meio e fim. A pedagoga, por
sua vez, ressalta a discrepância entre seus resultados nos instrumentos de
avaliação, e a pobreza de sua produção, sua impossibilidade de criar
qualquer brincadeira ou história, sua dificuldade em fantasiar.
Socialmente, os pais descrevem Bruno como simpático, afetuoso,
conversador, fácil com os amigos.
É assim que Bruno chega em suas primeiras sessões: simpático,
afável, mas com um ar “pedinte”, como mendigando algo, esperando algo
de mim, com um olhar que se prega ao meu, esperando... o quê?
Conseguiu, recentemente, alfabetizar-se, mas não pode contar histórias.
Por vezes, em sua fala, parece desorientado no tempo, perdido em suas
referências de lugar, de cidade, de país. Em suas primeiras sessões aplica-
se a fazer um helicóptero, que ele já encontrou pronto ao chegar e foi
27
desfazendo para refazer. Durante a construção desse helicóptero,
trabalhamos nós dois juntos, e eu me vejo impelida a ajudá-lo nessa tarefa,
encontrando para ele as peças de Lego que me pede. Essas são especiais,
sempre as menores, difíceis de encontrar no meio das outras. A cada busca
de peça, aflijo-me em achar o que ele precisa e surpreendo-me percebendo
que Bruno é capaz de inventar novas soluções, quando a pecinha que ele
pediu não existe. Enfim o helicóptero fica pronto, um helicóptero especial,
pois é um veículo para todos os terrenos, que além de voar tem rodas para
deslocar-se sobre a terra, e uma base que lhe permite navegar. Na sessão
seguinte, Bruno “corrige” seu helicóptero, pois procurou em casa um
modelo e agora adapta seu produto a esse modelo conhecido, fazendo
então um helicóptero igual aos outros.
Depois, ele desenha com lentidão, cuidado e inúmeras correções a
figura de um menino, cujo rosto só se vê pela metade, a outra parte
ficando coberta pela aba de um boné. A figura toda é detalhada,
caprichada, a calça que veste termina com um corte bem feito da barra,
mas abaixo dela... faltam-lhe os pés! A falta dos pés no desenho faz logo
pensar numa representação evocando a castração, mas parece-me que aqui
é preciso pensar além ou aquém disso. Olhando a figura é como se
houvesse um grande esforço para se construir, para se constituir, que, no
entanto, esbarra numa falta fundamental, na falta de uma parte de si que
lhe permita “andar por suas próprias pernas”, que o impede de mover-se
pelo espaço do mundo, que o impede de criar, inventar suas histórias.
Como ressalta a pedagoga, ele não consegue se servir de sua inteligência
para pensar por si. Mas lembro-me que, laboriosamente e com minha
ajuda próxima, construiu seu helicóptero, que tinha sua marca pessoal,
mesmo que depois tenha de novo se tornado somente uma cópia. Como
28
continuaremos, na análise, nessa hesitação entre correr o risco de criar, e
refugiar-se de volta na cópia que o faz sentir-se de novo seguro?
De que ordem é esse poder materno imenso? Bruno tinha o pai, os
irmãos, a babá, a casa. Mas não tinha a mãe. Aliás, ela mesma não o teve,
no início de sua vida fetal, pois nem sequer o suspeitava dentro dela, o que
é difícil de compreender dado o seu nível intelectual. Será que isso
assinala para um distanciamento em relação ao próprio corpo? De todo
modo, é como se não houvesse espaço psíquico na mãe para se perceber
grávida. Podemos pensar então numa gravidez propriamente acidental,
mesmo levando em conta que do ponto de vista do desejo inconsciente
nenhuma gravidez pode ser pensada como acidental. Nesse caso, ela
aconteceu à revelia da mãe. E depois da gravidez sabida, essa mulher foi
tomada por situações que parecem ter impedido o investimento desse
bebê: riscos de má-formação do feto em razão das radiações dos exames
pré-cirúrgicos, angústia em relação à sua produção intelectual, morte da
avó materna, compondo um conjunto de fatores que vêm marcar sua
posição materna. No entanto, ela hoje se emociona ao falar da valentia do
filho, de sua garra e de sua luta por viver, apesar de tudo. Apesar,
principalmente, de seu próprio desconhecimento da existência dele, de seu
investimento prioritário em seu trabalho, de sua depressão pela morte da
mãe. Ele insistia em viver.
Coloca-se aqui a necessidade imperiosa, vivida a cada vez na
clínica, de pensar sobre o caso, de articular aquilo que vivemos na sessão
com o que pensamos, com o que sabemos para além daqueles momentos.
Começo então a conhecer Bruno, e as impressões que ele me causou nas
primeiras sessões, seu falar desabitado de si, seu olhar pedinte e
interrogativo, como se procurasse no outro a significação de si mesmo, me
29
impulsionam a buscar os caminhos teóricos que me ajudem a pensar sobre
ele. Preciso desses aportes porque servem para situar-me na transferência,
no campo próprio do trabalho analítico. A interrogação que move a clínica
parece-me ser a de se perguntar em que lugar podemos nos colocar para
possibilitar ao outro se descentrar da posição de sofrimento na qual está
situado, para desfazer e refazer de outro modo seus processos psíquicos.
Como o helicóptero que Bruno faz e refaz... Por onde eu mesma preciso
andar para servir a Bruno como suporte que possibilite a ele operar uma
mudança, pequena que seja, em sua posição subjetiva?
E, para além desse caso clínico, penso que podemos encontrar aqui
algumas das interrogações fundamentais em relação aos determinantes da
constituição do psiquismo. Como se processou, de que modo a
“constituição edípica de partida” (Bleichmar, 1983) dos pais foi decisiva
para a “constituição edípica de chegada” (idem), para a maneira particular
com a qual Bruno se organizou, para a “escolha” de suas falhas, de seu
sintoma? Por quais vias isso se dá? Em que memórias precoces se
inscrevem as primeiras experiências? Por que, nele, a falha apresenta-se
no criar, no inventar, no fantasiar? Por que Bruno não pode “servir-se” de
sua inteligência, que, no entanto, manifesta-se quando responde às
questões dos testes e das avaliações com a psicopedagoga? O que houve
que o impede de tomar posse de sua própria história, de suas fantasias,
para poder contar suas próprias estórias?
Podemos tomar diferentes pontos de partida para pensar sobre o
sintoma de Bruno. Podemos considerar, de um certo ângulo, o impacto da
separação precoce mãe-bebê, que se deu em momento extremamente
sensível em relação à constituição do psiquismo. De outro ponto de vista,
podemos considerar as peculiaridades do desejo materno, evidenciadas
30
pela ignorância da gravidez, e, em seguida, pela dificuldade de
investimento libidinal nessa criança, podemos ainda lembrar dos efeitos da
depressão materna, reativa à morte da avó. Cada um desses pontos de
partida, e haveria outros ainda, nos conduziria a uma corrente teórica no
campo da psicanálise, em função da forma como se compreende a
constituição do psiquismo, e em função da matriz clínica (Mezan, 1988)
que tomamos como ponto de partida.
A seguir evocaremos algumas dessas construções teóricas sobre a
relação inicial mãe-bebê, e seu impacto sobre a constituição do aparelho
psíquico. Lembremo-nos em primeiro lugar de Winnicott, cujo tema
principal de interesse foi justamente esse, e que afirma, sempre de modo
categórico, o papel fundamental do “ambiente materno” para a
determinação do psiquismo que se constitui, ou, em suas palavras, para os
processos de integração necessários para que se dê o desenvolvimento
emocional. Lacan, por sua vez, aponta para o papel da mãe como
encarnação do Outro, como aquela que veicula num primeiro tempo, junto
ao bebê, a lei simbólica da cultura, e que lhe fornece o primeiro espelho
através do qual ele ao mesmo tempo se aliena e se constitui. Laplanche
enfatiza o papel iniciático da mãe, responsável pela “sedução
generalizada” necessária, desenvolvimento do pensamento freudiano
explicitado nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, onde Freud
(1905) afirma que é função da mãe despertar o instinto sexual da criança e
ensiná-la a amar. A mãe, então é aquela que introduz o bebê no campo
pulsional, instilando Eros em sua constituição. Essa idéia parece pressupor
um bebê passivo do ponto de vista da formação do aparelho psíquico, que
se constituirá como que inoculado pelo outro. Ou seria o aparelho psíquico
uma organização que se constituirá como instância defensiva diante do
31
ataque pulsional? (Ribeiro, 2000). Dolto (1984), por sua vez, refere-se ao
papel fundamental da mãe como responsável por fazer operar as
“castrações simbolígenas”, que vão, passo a passo, estabelecendo os
marcos e fazendo surgir novas estruturações no psiquismo infantil.
Servimo-nos aqui de Winnicott, (1999) quando descreve o que está
em jogo no desenvolvimento emocional primitivo. Para ele, esse
desenvolvimento abrange três tarefas principais:
(...) a integração do eu, a psique que habita o corpo e a
relação objetal. Numa correspondência aproximada a estes
três itens, temos as três funções da mãe: segurar (holding),
manipular (handling) e apresentar o objeto. ( p.32 )
O próprio termo holding, em inglês, como também em português,
tem um significado abrangente, incluindo a idéia de tornar seguro, de
firmar, de amparar, de impedir que caia, de garantir, de apoiar. Assim, à
medida que o bebê cresce, o significado primeiro do segurar fisicamente o
corpo do bebê amplia-se cada vez mais, até englobar a função de todo o
grupo familiar, em sua designação de entorno da criança. “Segurar e
manipular bem uma criança facilita os processos de maturação, e segurá-la
mal significa uma incessante interrupção desses processos, devido às
reações do bebê às quebras de adaptação” (idem, p.54).
Winnicott afirma que as bases da relação objetal instauram-se na
primeira infância, e dependem da maneira como a mãe apresenta ao bebê
o seio, a mamadeira ou qualquer outro objeto. Nessa apresentação do
objeto, ela o faz de tal modo que permite ao bebê criar o que já se
encontrava ali, e na verdade o que o bebê cria é parte da mãe que foi
encontrada. Trata-se de um dos paradoxos fundamentais da concepção
winnicottiana de inscrição do bebê no mundo, que só é possível porque a
32
mãe encontra-se naquele estado especial que lhe dá a condição de estar
presente mais ou menos no momento e no lugar certos.
Se essas são as condições que permitem à criança situar-se no
mundo de forma criativa, podemos pensar que certamente para Bruno, o
paciente referido acima, essas condições foram falhas especialmente no
que diz respeito à apresentação do objeto, que permite à criança fazer uso
de sua criatividade a partir da ilusão renovada de ter sido o inventor do
objeto que encontra. E Bruno não parece ter podido se apossar de seus
objetos com a ilusão de tê-los inventado, de modo que hoje não se apossa
de suas próprias histórias.
Bernard Golse (1990) faz uma interessante análise dessa função
materna. Segundo ele, a apresentação do objeto introduz precocemente a
presença de um terceiro entre a mãe e seu bebê, na medida em que o
objeto apresentado permite desviar e filtrar as moções pulsionais da mãe,
tanto as agressivas quanto as libidinais, que poderiam submergir o bebê.
Por outro lado, a maneira de apresentar o objeto permite à mãe regular e
canalizar a excitação advinda da realidade externa. Essa função inscreve-
se duplamente: como elemento do sistema pára-excitação oferecido pela
mãe à sua criança, pois a protege ao mesmo tempo de uma invasão
excitante da própria mãe e de uma intrusão traumática do meio externo.
De um modo ou de outro, a função de apresentação do objeto contribui
para a instauração de uma primeira triangulação: mãe-criança-objeto.
Mas para que essas condições se dêem, Winnicott pressupõe que a
mãe se encontra num estado especial, nomeado por ele de “preocupação
materna primária”. Para alcançar tal estado, a mãe, ao longo da gravidez,
prepara-se para a chegada do bebê, por meio de um processo de
“adoecimento progressivo”, que paradoxalmente só pode ocorrer se ela for
33
saudável. A palavra “doença” é utilizada por Winnicott de forma
paradoxal, para indicar que é preciso à mãe ser suficientemente saudável
para se deixar adoecer dessa maneira, até poder se recuperar desse estado
quando o bebê a libera. Esse estado se desenvolve à medida que aumenta
sua capacidade crescente ao longo dos nove meses de gravidez de se
identificar com seu bebê, provavelmente a partir das inscrições primeiras
de sua própria experiência infantil com sua mãe. Winnicott(1969)
considera que existem mulheres que são
(...) capazes de manter uma vida rica e proveitosa, mas
que não conseguem atingir esta “doença normal” que as
capacitaria a se adaptar delicada e sensivelmente às
necessidades iniciais do bebê. Estas mulheres não são
capazes de se preocupar com seu próprio bebê, a ponto de
excluir outros interesses, da maneira que é normal e
temporária. Pode-se supor a existência de uma “fuga para
a sanidade” em algumas dessas pessoas. (p. 171).
Retornemos então às nossas interrogações sobre Bruno, agora
olhando para o que se passou do ângulo da função materna, considerada
aqui sob o ponto de vista do desenvolvimento da preocupação materna
primária. Em primeiro lugar, Winnicott afirma a necessidade do tempo da
gravidez para que a mãe desenvolva progressivamente sua capacidade de
identificação com seu bebê. No caso da gravidez de Bruno ela já começa
amputada de uma parte, pois seus primeiros meses foram perdidos pelo
desconhecimento materno. O tempo da gestação é um tempo de
elaboração necessário para a construção da representação do bebê no
imaginário da mãe.
Gostaria de ressaltar novamente a importância do tempo, da
previsão da duração da gravidez, internalizada pela mãe, e que vai
34
marcando para ela o processo de crescimento do bebê dentro de si. É
como se esse tempo durante o qual o desenvolvimento do feto se dá
favorecesse, concomitantemente, a criação do bebê imaginário no
psiquismo materno. Catherine Mathelin (1999) considera que tal tempo de
elaboração é indispensável, pois “permite à criança ‘tomar corpo’ não só
no ventre da mãe, mas também em seu fantasma” (p. 66).
Especialmente os últimos meses da gravidez são momentos
importantes para a construção da criança, como também da mãe, e
podemos supor que o processo vivido pela mãe produz remanejamentos de
tal ordem que chegam a caracterizar uma “revolução” psíquica. Nesse
sentido, é como se o estado gestacional favorecesse uma maior
permeabilidade no interior do psiquismo, com a emergência de conteúdos
até então eficientemente recalcados mesmo nas mulheres que já estavam
em processo de análise antes de engravidarem. Isso nos remete à
proposição de Freud sobre a sexualidade feminina, em que ele supõe que o
Édipo da menina só encontrará, na melhor das hipóteses, uma resolução
quando da maternidade, de preferência de um filho homem, pois somente
assim a mulher se consolaria de seu estado de castração. Essas
proposições freudianas serão discutidas mais detalhadamente no capítulo
VI deste trabalho.
Em uma conferência na Sociedade Psicanalítica de Viena, em
1911, “Sobre as bases do amor materno”, Margarete Hilferding avança
uma idéia desde então esquecida nos estudos psicanalíticos sobre a
maternidade: considerar o feto como um objeto sexual da mãe. Em seu
comentário, Teresa Pinheiro (1991) enfatiza a novidade que isso produz,
levando em conta que nos acostumamos a pensar a experiência da
gravidez do ângulo do narcisismo materno, e que é desse ponto de vista
35
que se costuma compreender a experiência de plenitude da mãe. Pensar o
amor materno via sexualidade da grávida na sua relação corporal com o
feto é algo muito diferente. No entanto, o que vemos aqui talvez pelo viés
da relação com esse outro em seu próprio corpo é a relação da mãe com
sua própria sexualidade, com sua própria identidade sexuada. A gravidez
parece definir um período extremamente fértil para a produção imaginária,
permitindo a retomada de posições infantis, edípicas, em relação às
imagos parentais, com ênfase particular nas questões da sexuação.
Carregar um filho em si, tê-lo feito, parece vir confirmar por um instante o
fantasma de ter em si os dois sexos, mais além do que resolver a castração
pensada em termos de inveja do pênis. Tornar-se fálica - provavelmente
como a própria mãe foi suposta - significa poder ser ao mesmo tempo
masculino e feminino. Mas será que as questões da gravidez e da
maternidade esgotam-se na problemática da sexualidade? Freud,
comentando a conferência de Margarete Hilferding, afirma:
(...) pode-se dizer de saída que toda tentativa de analisar o
fenômeno sob um único aspecto está fadada ao fracasso; a
sobredeterminação é especialmente evidente neste
caso.(Freud, apud Hilferding, Pinheiro, Vianna, 1991, p.
94)
Assim, haveria pelo menos mais dois outros aspectos a considerar.
O primeiro diz respeito à ambivalência fundamental no laço mãe-filho que
Freud, na época, atribuiu às moções hostis inerentes aos laços de amor,
correspondendo ao sentimento “agora sou seu escravo”. Só anos depois
ele desenvolverá em sua obra a idéia da destrutividade em si, culminando
no texto “Mal-estar na civilização”. Outro caminho já mais trilhado para
pensar a maternidade passa pelo estudo do narcisismo, que será tratado a
seguir.
36
CAPÍTULO II
NARCISISMO MATERNO E CRIAÇÃO DO ESPAÇO
PSÍQUICO PARA O BEBÊ
Trataremos agora da construção da representação do bebê no
psiquismo materno, durante os meses de gestação, com a suposição de que
o tempo da gravidez é o tempo da elaboração necessária para que essa
construção se efetive. Assim, é como se de início o bebê se apresentasse
para a mãe como um estrangeiro, constituindo um enigma que ela não
conhece nem decifra. Durante os meses da espera supõe-se que ele possa
progressivamente passar a ser o objeto das múltiplas projeções derivadas
das experiências infantis da mãe. Nesse tempo da gestação tratar-se-ia
então, para a mãe, de realizar o trabalho de transformar o estrangeiro em
familiar, atribuindo-lhe características, por meio dos efeitos de projeção e
de idealização, ancoradas em sua própria história infantil. Como dito
anteriormente, a escuta analítica de mulheres grávidas permite
acompanhar esse delicado e imprevisível trabalho psíquico que se dá
durante esses meses.
37
Se o início da gravidez pode ser marcado, para a mãe, pela
experiência imaginária de ter seu corpo ocupado, ou até mesmo invadido,
por um ser que, ainda que desejado é percebido como um estrangeiro, no
final da gestação, através de transformações sutis, porém decisivas, surge
a possibilidade de construir para o bebê um espaço dentro de si, e dentro
de sua vida. A produção onírica e associativa desse período pode revelar o
radical remanejamento psíquico que se dá na mulher durante o tempo de
espera do filho. Uma aproximação sobre o narcisismo materno e seus
percalços durante a gravidez pode ser utilizada para descrever o processo
que permite, ou não, que um espaço psíquico para o bebê, essencial para o
seu advir como sujeito, se constitua na mãe.
Assim, podemos colocar a interrogação: como nasce uma mãe?
Freud (1915) dizia que era necessário, para ter um filho, amar o que
somos, o que fomos e o que gostaríamos de ser, assim como aqueles que
de nós cuidaram, para poder investir narcisicamente uma criança.
Bydlowski (1998b) assinala que em se tratando de filiação humana uma
dívida de vida inconsciente liga o sujeito a seus pais, a seus ascendentes.
Para que se dê a transmissão da vida, fundamento de todo nascimento,
seria preciso assumir o reconhecimento dessa dívida de existência.
Mas buscando nos centrar sobre os meses da espera real do bebê, já
concebido, como descrever esse processo no psiquismo materno? Tanto
quanto seu bebê, ela também precisa do tempo da gestação para, no seu
tempo psíquico, constituir-se como mãe. Esse período seria necessário
para possibilitar o esboço da criação de um espaço psíquico materno
constitutivo de um suporte no qual o bebê possa advir como um ser
subjetivado, e não mais como um ser biológico somente. Supomos que as
experiências corporais da mãe, as mudanças físicas que ocorrem durante a
38
gravidez, sejam indissociáveis das suas experiências psíquicas. Talvez
possamos nos servir do modelo do bebê – em que o corpo e a psique são
indissociávies - para pensar o funcionamento do psiquismo da mãe.
Monique Bydlowski (1998a) define como transparência psíquica essa
modalidade particular de funcionamento do psiquismo materno, na qual a
eficiência habitual do recalcamento se vê reduzida, permitindo a
emergência de conteúdos psíquicos recalcados, relativos a experiências e
fantasias infantis; esse estado é “(...)marcado por um superinvestimento
da história pessoal da mãe, com uma plasticidade importante das
representações mentais centradas sobre uma inegável polarização
narcísica(...)” ( p. 217).
Muitas vezes, a expressão desses fantasmas se dá através de sonhos,
outras vezes se denuncia pelas bruscas e intensas oscilações emocionais
manifestadas pelas gestantes, com sentimentos agudos de tristeza ou
euforia aparentemente inexplicáveis.
Assim, podemos pensar que a gravidez inaugura a experiência de
um encontro íntimo da mulher consigo mesma; Bydlowski supõe que o
que está em questão é sua capacidade ou não de erotizar uma parte ainda
interna a si mesma. O embrião configura para a mãe, inicialmente, um
estrangeiro, um outro dentro de seu próprio corpo. Aliás, há uma
ilustração orgânica dessa relação, que se concretiza em uma das
modalidades de patologia da gravidez. Trata-se da repetição de abortos
espontâneos provocados pela rejeição do embrião pelo organismo
materno, como um objeto estranho, da mesma forma como ocorrem os
fenômenos de rejeição de órgãos transplantados. Para que a gravidez
prossiga, é preciso que haja uma adaptação imunológica entre o
organismo da mãe e o embrião, mas em alguns casos o organismo materno
39
tem dificuldade em diferenciar a gravidez de uma doença, interpretando-a
como uma agressão, levando-se a produzir substâncias para interromper a
gestação. A chave do problema está na maneira como o organismo
materno interpreta as informações genéticas paternas presentes nas células
do embrião. Para que a gestação possa prosseguir é preciso, então, que o
organismo materno faça a leitura do embrião como uma gravidez, e não
como um corpo estrangeiro a ser rejeitado.
Poderíamos tomar essa patologia como uma metáfora da aceitação
ou não pela mãe de um estrangeiro dentro de si, de seu próprio corpo. Esse
bebê pode ser percebido como um invasor, ameaçador. Sabemos também
que para mães psicóticas o bebê pode nem chegar a ser percebido como
um outro, nos casos em que a negação da gravidez persiste até o momento
do parto.
Por outro lado, o tempo cronológico da gravidez seria necessário
para permitir a elaboração do bebê como tal, num deslizamento dessa
percepção do feto como parte do corpo até se constituir como um “outro”
bebê objeto das projeções maternas. Desse modo, a crise psíquica da
gravidez poderia ser pensada como uma conseqüência da intrusão no
narcisismo da mãe, causada pela introdução desse outro, mesmo que
desejado, em seu espaço psíquico. Como dizia uma paciente ao saber que
estava grávida, “nunca mais poderei estar só”. Essa fala expressa o temor
de uma intrusão definitiva e permanente desse outro em seu campo
subjetivo.
Na busca de respostas para sua interrogação sobre a escolha
feminina de ter filhos ou não, Geneviève Serre (2002) entrevistou um
grupo de mulheres que fizeram a segunda opção. Serre, dentro do
referencial teórico adotado, partiu da hipótese inicial de que se tratava de
40
uma renúncia, ligada provavelmente a movimentos depressivos, a uma
baixa estima de si, o que foi aparentemente desmentido pelo teor de suas
entrevistas. Aliás, relata em seu artigo que nos Estados Unidos, onde
pedidos de ligaduras de trompa e de vasectomia feitos por adultos que não
querem assumir uma descendência têm se tornado muito freqüentes,
cunhou-se uma nova expressão, substituindo o termo childless por
childfree... As entrevistas realizadas com esse grupo de mulheres, todas
bem-sucedidas profissionalmente, apontaram para a percepção, por elas,
não de uma perda ou de uma renúncia, mas, ao contrário, de terem feito
uma escolha positiva ligada a um ganho de liberdade, pois assim se
“liberaram de um elo que as teria acorrentado por toda a vida”. Numa
análise desses testemunhos, Serre propõe dois registros diferentes de
compreensão: o da problemática edipiana, já que não ter filhos afasta a
mulher do risco de realização do fantasma incestuoso, e o de uma
problemática narcísica, com o temor da perda de si mesma, temor que
essas mulheres experimentariam de serem destruídas nesse jogo da
maternidade.
Cramer (1999) afirma que as mudanças durante a gravidez podem
corresponder à experiência, pela mãe, de se sentir “habitada” por um de
seus pais, ou por um aspecto deles, experiência que tanto pode ser bem-
vinda como assustadora. De certo modo, tornar-se mãe é reencontrar sua
própria mãe. Mais ainda, a gestação seria o tempo necessário para aceitar
essa nova situação que envolve ligar-se para o resto da vida com um
desconhecido, fonte de angústia, como o vazio. Trata-se, então, de realizar
o trabalho de transformar esse estrangeiro em familiar. Durante a
gravidez, a criança tem um duplo status, ao mesmo tempo presente no
interior do corpo da mãe e em seus pensamentos conscientes e
41
inconscientes, mas ausente da realidade visível, só podendo ser objeto das
“interações fantasmáticas”, onde estão em jogo essencialmente os
conteúdos psíquicos da mãe em torno desse objeto ainda eminentemente
narcísico que é o bebê, que existe sem existir.
Por meio dos sonhos relatados por uma analisanda grávida, foi
possível acompanhar esse delicado e imprevisível trabalho psíquico que
ocorre durante os meses da gestação. Se, no começo, a experiência dessa
mulher foi a de se perceber a serviço desse ser que, ainda que desejado,
era considerado por ela como um invasor no interior de seu corpo, no
final, por sutis remanejamentos, aparece a possibilidade de organizar para
o bebê um espaço dentro de si, ao mesmo tempo em que ela se vê, num
sonho, ocupando com seu marido a casa que havia sido a casa de sua
própria infância. Mas para que isso acontecesse, um longo percurso,
marcado por sua ambivalência, precisou ser trilhado durante meses. Os
sonhos dessa paciente, em sua ordenação quase lógica, obedecendo à
lógica do inconsciente, ajudaram-na a dar forma e sentido à experiência da
maternidade, vivida por ela como um fenômeno incontrolável.
Faço aqui a ressalva de que neste trabalho não se trata de fazer o
estudo detalhado desses sonhos, em suas associações e desdobramentos. A
maior parte deles foi objeto de associações por parte da analisanda,
levando a um trabalho de elaboração que muitas vezes prolongou-se por
várias sessões. A própria seqüência dos sonhos, com seu encadeamento
peculiar, foi motivo de atenção de minha parte e da analisanda, no que ela
parecia vir pontuar seu “percurso imaginário” durante a gravidez, tendo
como eixo sua história edípica, retomada em sua relação transferencial.
Assim, sirvo-me dos sonhos em relatos muito sucintos apenas para ilustrar
o que parece importante ser pesquisado mais a fundo, que é o radical
42
remanejamento psíquico que se produz na mulher durante o tempo de
espera do filho.
Nos primeiros meses, sua experiência corporal de enjôos, vômitos,
dores e tonturas vinha acompanhada do sentimento de subserviência a esse
ser, diante de quem ela tinha de se curvar, que a tomava do interior de seu
corpo. Paralelamente, seus sonhos a angustiavam, com conteúdos eróticos
homossexuais e bissexuais, totalmente novos em sua produção onírica. No
plano consciente, temia que seu marido a traísse, sem que nada de objetivo
indicasse essa possibilidade, como ela mesma reconhecia. Mas sentia-se
insatisfeita e desconfiada, achando que ele a deixava só, com sua gravidez,
e que não se mobilizava com ela para preparar a chegada do bebê.
Um elemento que se apresentará constante em todos os seus sonhos
são as várias representações oníricas de suas casas da infância. Nos
primeiros sonhos, as casas apareciam desabitadas, ou então ocupadas por
pessoas estranhas, invasoras. Nos sonhos subseqüentes começam a surgir
no interior das casas personagens mais familiares - uma tia distante, uma
amiga da infância - mas trazendo ainda uma certa impressão de
estranhamento, de modo que as associações durante os relatos dos sonhos
vinham freqüentemente acompanhadas de perguntas como: “não sei por
que coloquei tal pessoa nesse cenário”, “nunca mais pensei em fulana, não
sei por que ela aparece em meu sonho”. Até que, na segunda metade da
gravidez, os incômodos físicos diminuem, ela se sente plena, o bebê se
mexe muito, ela já sabe que é um menino. A mudança que muitas vezes se
desencadeia a partir da percepção pela mãe dos movimentos do feto
parece ser fundamental para modificar a fantasia do estrangeiro, do
desconhecido dentro de si. Os movimentos do bebê permitem à mãe criar
significações sobre ele, interpretando seus movimentos, estabelecendo-se
43
assim um modo de comunicação entre os dois. A definição do sexo do
bebê também foi, nesse caso, de grande importância para dar-lhe uma
identidade, e assim uma configuração no imaginário materno. Há um
sonho desse período que parece ter sinalizado uma reestruturação decisiva
na construção do lugar do bebê por vir. Ela está com sua mãe, que carrega
um bebê morto, e ambas procuram um bom lugar para enterrá-lo, o que é
realizado no final do sonho. Para além de uma provável relação com
questões precisas da história dessa paciente, suas associações conduzem-
na a pensar que é dela mesma, em sua imagem de bebê da mãe, que se
trata aqui. Como se fosse necessário “enterrar” esse bebê narcísico – ela
mesma, o bebê imaginário de sua própria mãe para dar lugar a um outro
bebê, agora o seu próprio, sendo um outro que não ela mesma. Esse sonho
será objeto de outras reflexões no capítulo VI. No período final da
gestação ela sonha com a mesma casa da infância, agora ocupada por ela e
seu marido, que ali recebem hóspedes, amigos do marido. É interessante
assinalar como surge a representação de “amigos do marido”, hóspedes
agora aceitos em sua casa da infância, se lembrarmos da patologia ligada à
rejeição do embrião, não aceito pelo organismo materno porque carrega a
mensagem genética do pai.
Essa seqüência de sonhos permite ressaltar a importância do tempo,
da duração da gravidez, tal como vai sendo internalizada pela mãe,
marcando para ela o processo do crescimento do bebê dentro de si. Mas
não podemos supor que haja uma coincidência perfeita entre o tempo
físico e o tempo psíquico da gravidez. A clínica mostra que a gravidez
psíquica se prolonga normalmente, na mulher, para além do momento do
parto.
44
Os sonhos, com suas várias referências às casas da infância, falam
também da construção do espaço para o bebê no interior do psiquismo
materno. Em um estudo sobre a agorafobia, Carlos Alberto da Gama e
Manoel Berlinck (2002) propõem que o espaço seja pensado como o
primeiro objeto psíquico. Buscando superar a dissociação entre externo-
interno, afirmam que
(...) o foco do problema do espaço... desloca-se para
a questão de como se dá a construção da subjetividade, ou
de como os diversos elementos se ordenam no espaço a
partir da história de cada sujeito. Visto assim, o psiquismo
seria uma organização psíquica do vazio, um espaço onde
podem ocorrer os objetos e sua dinâmica: a presença, a
ausência, o intervalo, a memória, enfim.(p. 177)
Podemos pensar a gravidez como um estado que produz uma
alteração radical dos referenciais, já materializados pelas mudanças
corporais, como também pela mudança de lugar na cadeia de filiação, da
passagem do lugar de filha para o lugar de mãe. A vertigem, fenômeno
que ocorre em pacientes agorafóbicos, é também freqüentemente
experimentada pelas gestantes, sobretudo no início da gravidez. Assim,
tomando emprestada a compreensão de Gama e Berlinck (2002) sobre
essa manifestação da agorafobia, poderíamos, do mesmo modo, considerar
a hipótese de que “(...) uma perda (ou uma alteração) de referenciais
internos provoca a sensação de perda de referenciais externos. São as
perdas de pilares de sustentação egóicos os responsáveis por esta aparente
desorganização externa.”( p.177)
45
Também há na gravidez uma alteração fundamental na referência de
si mesma. A alteração corporal, induzindo necessariamente a uma
mudança na imagem do corpo, afeta a representação narcísica da mulher.
O limite corporal se modifica, a unidade da representação de si é
deslocada para permitir a representação do corpo próprio que vai englobar
progressivamente um outro corpo. As mudanças no invólucro corporal e
imaginário representam uma ameaça à construção narcísica. Na
agorafobia, produzem manifestações de angústia cuja função sinalizadora
busca prevenir uma possível desestruturação. Mas na gestação não há
como impedir a alteração que se processa inexoravelmente, a não ser por
uma interrupção da própria gravidez. Essa é uma hipótese a ser
considerada nas ocorrências de partos prematuros ou de abortos
espontâneos repetitivos.
Toda essa modificação supõe a necessidade de o ser da mulher
poder aceitar englobar um outro. Diríamos que na dinâmica ambivalente
que se processa da mãe para o bebê, parece haver uma oscilação entre um
“narcisismo englobante”, correspondente à experiência de plenitude em
que a mulher se vive completa com seu bebê no ventre, de tal modo que o
bebê está incluído em seu próprio narcisismo. E, em contraponto,
poderíamos pensar num “narcisismo excludente”, quando ela se percebe
invadida por um outro, estrangeiro dentro de si, de quem irá livrar-se no
parto. O jogo entre a inclusão e a exclusão do bebê, no espaço psíquico da
mãe, poderá ser um dos eixos de determinação do investimento dessa
criança e do modo como se processarão as passagens dos conteúdos
maternos para o psiquismo incipiente do bebê.
No trabalho psíquico materno que consiste em transformar o
estrangeiro em familiar é necessário também que a mãe construa
46
antecipadamente o eu do bebê, na espera desse encontro, imprevisível e
eventualmente perturbador. É o que Piera Aulagnier chama de construção
do “Eu (je) antecipado”, primeiro capítulo da história do infans a vir. Em
seu texto “Nascimento de um corpo, origem de uma história” (1999), ela
pergunta:
(...) o que representa o corpo do infans para esta mãe
suposta esperá-lo para acolhê-lo?...Aquele que provaria a
ela a realização do seu desejo de ser mãe? A última
elaboração do objeto de um longo sonho começado na sua
própria infância? Ela encontra um corpo, fonte de um
“risco” relacional (...) encontro que vai exigir uma
reorganização da sua própria economia psíquica, que
deverá beneficiar esse corpo do investimento do qual
gozava até então o único representante psíquico que o
tinha precedido, (idem, p. 33),
representante psíquico que ela chama de “Eu (je) antecipado”. Para que
se dê a passagem do corpo somático, do corpo sensorial, para o corpo
relacional, é preciso uma “historicização” da vida somática, o que, para
Aulagnier, (1999), exige um biógrafo que possa ligar o evento somático a
um destino psíquico. Assim, “(...) uma primeira versão construída e
aguardada na psique maternal acolhe esse corpo para unir-se a ele. Faz
sempre parte deste “Eu antecipado” ao qual se dirige o discurso maternal,
a imagem do corpo da criança que era esperada.” (p. 21)
O “Eu antecipado” insere a criança num sistema de parentesco, e
sua imagem corporal porta em si a marca do desejo materno. Piera
Aulagnier afirma como condição para a preservação da vida psíquica – e
certamente para sua própria construção – a existência de um meio
ambiente psíquico que respeite exigências tão incontornáveis quanto
aquelas necessárias para a preservação da vida somática. Isso exige da
47
mãe que organize e modifique seu próprio espaço psíquico para fazer face
a essas novas exigências.
A antecipação, considerada fundamental por Piera Aulagnier como
uma das funções maternas, traz em si a dimensão do tempo. Podemos
pensar no tempo da gestação como representando um intervalo psíquico
para a mulher durante o qual ela fica suspensa no tempo do outro que está
se criando, o bebê. E nesse “tempo-entre” as três dimensões se
apresentariam assim: o passado, que ressurge como fantasma, o presente
como um tempo em suspenso, e o futuro, tempo marcado pelas projeções,
desejos e temores. Desse modo, o tempo da gestação fica caracterizado
como um tempo intermediário – entre os fantasmas e desejos do passado e
as projeções do futuro.
48
CAPÍTULO III
RESILIÊNCIA E FUNÇÃO MATERNA
Na introdução deste trabalho, ao indicar o interesse pelo estudo dos
determinantes da constituição do psiquismo, desdobrava essa questão
naquela outra que interroga sobre a variedade infinita dos modos de
constituição, especialmente no que diz respeito às diferenças por vezes tão
intrigantes de “capacidade” de resistência de alguns bebês, comparados
com outros, em situações de vida aparentemente semelhantes. O que faz
algumas crianças resistirem melhor do que outras?
Assim, trataremos aqui da noção de resiliência, entendida como o
conjunto das disposições de alguns indivíduos, e especialmente de
algumas crianças, que lhes permitem atravessar sem danos sensíveis
situações de graves riscos psíquicos. A noção de resiliência não faz parte
do corpo conceitual da psicanálise, mas tem sido considerada pelos
clínicos, especialmente os clínicos de crianças. É um conceito-limite que
ainda solicita muitas precisões, mas que pode ser situado no campo da
psicopatologia e, mais especificamente, na psicopatologia da criança e do
bebê. Desenvolvido principalmente pela psiquiatria infantil preventiva
inglesa, nos anos 1990, resiliência é originalmente um conceito da física
que define a resistência mecânica de um material submetido a um
impacto. Os estudos da etologia humana também têm se voltado para o
entendimento dos fatores favorecedores da resiliência. Seguindo a posição
da psicopatologia fundamental de dialogar com diferentes saberes, nesse
capítulo faremos uso de aportes das teorias do apego e da etologia.
49
Podendo fazer contraponto a essa noção de resiliência, a
insuficiência imunológica psíquica, proposta por Berlinck (2000d), é
definida como sendo a incapacidade do organismo de defender-se de
ataques virulentos externos, assim como sua vulnerabilidade diante de
ataques endógenos. Importante notar que a insuficiência imunológica
psíquica do bebê é associada por Berlinck (2000d) diretamente ao ódio
materno, inevitável na ambivalência de sua relação com a criança. Pensar
sobre a insuficiência imunológica psíquica do bebê leva, necessariamente,
a pensar sobre o outro do bebê, sobre a função materna. Voltaremos a esta
questão no fim deste capítulo.
Se perguntamos o que faz com que alguns indivíduos sejam mais
vulneráveis do que outros aos ataques – internos e externos - o conceito
de resiliência tenta dar conta dessa questão, mas invertendo a proposição,
perguntando o que faz com que alguns indivíduos sejam menos
vulneráveis do que outros. Para apresentar essa formulação, referimo-nos
às reflexões de Bertrand Cramer (1999), psicanalista atuando na clínica
com bebês e crianças pequenas.
Reconhecendo a dificuldade de fazer predições no campo do
psiquismo, que seriam quase da ordem da adivinhação, Cramer indica que
a resiliência só pode ser constatada a posteriori, quando suas
conseqüências puderem ser percebidas. Portanto, compreendê-la requer
um esforço de reconstrução, a criação de uma fantasia do passado.
Para melhor definir o estudo desses fatores, seria necessário fazer
a distinção entre os casos que envolvem situações de traumatismos
extremos e aqueles decorrentes dos chamados traumas cumulativos. Para
Cramer (1999) a resiliência diante de um trauma é
50
(...) de natureza muito diferente daquela que seria preciso
desenvolver face à grande maioria das perturbações
psíquicas precoces.... Nessas, trata-se de conflitos
relacionais, de alternâncias de privação e hiper-excitação,
de contágios de angústia, de conflitos que não podemos
reduzir à uma origem traumática determinada. Assim, a
maior parte das infelicidades da vida não são efeito de
traumatismos, mas dos percalços do agenciamento pelo
sujeito de seus ferimentos, de seus conflitos e de suas
angústias. (p. 215)
Trata-se então de buscar os fatores que protegem a criança contra
esses efeitos, sendo um deles a relação entre a resiliência e a criatividade.
Cramer supõe que a compreensão da trajetória que vai do luto na infância
à criatividade na idade adulta traria elementos interessantes para uma
teoria da resiliência. No entanto, nem sempre, felizmente, as crianças
vivem perdas causadas pela morte de pais na infância. Por outro lado,
fazem a experiência de inúmeras perdas nesses primeiros anos, e são
chamadas a elaborar progressivamente seus lutos em relação aos primeiros
vínculos, especialmente em relação ao desejo de controle da presença da
mãe. O trabalho psíquico central da infância pode ser entendido como a
aceitação, pela criança, de não ser o único objeto de desejo de sua mãe,
constatando a atração que para ela exercem o pai, seus irmãos, outras
pessoas, aprendendo então a renunciar à posse exclusiva da mãe. Assim,
supõe Cramer (1999 que a criatividade começa no berço, e Winnicott já
falou muito sobre isso. O bebê lida com a angústia da perda fabricando
fantasias que substituem seus objetos de amor, produzindo assim
representações mentais que tomam o lugar da mãe ausente, estruturando o
pensamento que se desenvolve como um antídoto contra o veneno da
ausência.
51
A resiliência é caracterizada como o conjunto dos processos que
podem temperar ou relativizar a vulnerabilidade, e a psicanálise propõe
algumas pistas teóricas para a compreensão desses processos. Uma delas
é a capacidade de rêverie materna – conceito de Bion (1979a) para ilustrar
a capacidade de contenção e de transformação do psiquismo da mãe que
deve poder “sonhar”, isto é, metabolizar e transformar as primeiras
produções ou protoproducóes psíquicas de seu bebê a fim de torná-las
utilizáveis por ele. Trata-se de um estado de mente receptivo da mãe,
capaz de acolher os estados psíquicos do bebê, transmitidos a ela por meio
dos mecanismos de identificação projetiva. Essa capacidade materna
necessita uma identificação primária com seu bebê, a quem ela empresta
seu aparelho para pensar pensamentos, isto é, seu aparelho para tornar
pensáveis pela criança seus primeiros pensamentos impensáveis por ela
sozinha. Esse processo pode ser descrito em quatro tempos. O primeiro, é
aquele no qual a mãe recebe as tensões da criança, seguido de um segundo
durante o qual ela guardará por um período suficiente aquilo que lhe foi
endereçado, experiência que permite ao bebê vivenciar que o que ele sente
pode ser recebido por um outro, que ele pode tocar sem destruir. O
terceiro tempo é o da transformação, dentro do aparelho psíquico da mãe,
dessa tensão do bebê que ela recebeu e guardou. Essa é a função de
metabolização, que Bion chamou de função alpha. O quarto tempo é
aquele da restituição ao bebê do que foi transformado pela mãe,
transmitido por meio de gestos, palavras e outras formas de comunicação.
O bebê passará progressivamente a fazer ele mesmo esse papel de
metabolizar os elementos não pensáveis de seu psiquismo, ao internalizar
52
essa capacidade materna de receber, guardar e transformar, processo que é
constituinte, segundo Bion, do aparelho de pensar da criança.
A propósito dos traumatismos hiper precoces, René Diatkine (1994)
utilizou esse conceito de rêverie materna para propor uma hipótese que
permitiria manter os dois tempos da teoria clássica do traumatismo, mas
invertendo-os. Nessa sua hipótese, o primeiro tempo desses traumatismos
precoces não seria ligado a um excesso de excitação não possível de ser
metabolizado, mas sim causado por uma insuficiência da capacidade de
rêverie materna. Insuficiência que deixaria o bebê desprotegido face aos
acontecimentos ulteriores suscetíveis de operar para ele como o segundo
tempo da dinâmica traumática. Seria então uma falha na interiorização
dessa capacidade materna que figuraria como o tempo traumático
primeiro, mas silencioso, em negativo, que só se manifesta quando da
reapresentação dos fatores que reativarão a primeira vivência traumática.
Já para os teóricos do apego, a constituição de um apego seguro é
vista como um fator preponderante de resiliência. Peter Fonagy (1995)
introduz uma novidade a esse esquema ao dizer que menos do que a
qualidade dos esquemas precoces de apego que determinará o futuro
psicopatológico da criança, será o mecanismo de “interpretação
interpessoal”, base da “capacidade reflexiva” que terá aqui um papel
central.
Fonagy (1995) transfere a ênfase na internalização do objeto de
contenção para a internalização do eu pensante a partir do interior do
objeto de contenção. Para ele, a criança, além de perceber o
comportamento do provedor de cuidado, também percebe uma imagem de
si própria no outro como mentalizando, desejando, acreditando. Aqui, o
importante é que a criança vê o provedor de cuidado representando-a
53
como um ser intencional, e é esta representação que será internalizada
para a formação do eu. Fonagy (1995) propõe o seguinte modelo: “ele
pensa em mim como um ser pensante; logo, eu existo como um ser
pensante” (p. 251). E mais, no que diz respeito a resiliência, a partir da
análise de vários estudos sobre seus fatores favorecedores, esse autor
sugere que um único relacionamento de preferência o materno com essas
características, pode ser suficiente para o desenvolvimento da capacidade
reflexiva da criança, e assim protegê-la diante de condições de risco
graves no decorrer da vida.
Por essa breve resenha de alguns autores que abordaram o tema da
resiliência, podemos perceber que o fator preponderante de resiliência
envolve sempre a relação com o outro, a relação da criança com seu
cuidador primordial. Essa discussão conduz de volta à questão sobre a
posição do bebê em sua relação com a alteridade, suposta aqui ser
representada pela mãe, ou por quem faça essa função. Essa posição é de
passividade, de receptividade, ou de “competência”? Questão que pode
introduzir uma outra temática, a da função da dor na estruturação do
psiquismo, sobre a qual um caso clínico de uma criança tendo vivido
situações de extrema vulnerabilidade nos fez refletir, e que trataremos no
capítulo seguinte.
54
CAPÍTULO IV
DOR, PELE PSÍQUICA E FUNÇÃO MATERNA
E quando as coisas não se passam bem desde o início, quando as
condições são tais que a criança se encontra numa situação de extrema
vulnerabilidade? Neste capítulo trataremos de um caso clínico envolvendo
uma criança cujo contexto inicial, até os dezoito meses, foi de extrema
precariedade, marcado pela rejeição explícita da mãe biológica, até sua
adoção por outra família.
Este caso clínico nos conduzirá a refletir sobre a função da dor na
constituição do psiquismo e sobre a função materna nessa abertura das
vias de erogenizacão do corpo do bebê.
Felipe tem cinco anos e seus pais me procuram porque, dentro de
um conjunto de comportamentos inquietantes, denotando dificuldades de
contato, falta de concentração na escola, agitação mesclada com uma
indiferença aparente ao que está ao seu redor, a criança apresenta um
sintoma que incomoda profundamente aos pais, e que prefiro chamar de
incontinência urinária ao invés de enurese. Por que incontinência urinária?
Porque parece haver uma total indiferença de Felipe à sua micção, uma
impossibilidade completa de exercer o controle esfincteriano, apesar de
todas as medidas educativas adotadas, sem que nenhuma causa fisiológica
justifique esse estado. No relato dos pais, inúmeras vezes durante o dia ele
parece não perceber que urinou ou mesmo que está molhado. Continua sua
55
atividade como se nada tivesse acontecido, e muitas vezes irrita-se quando
um adulto interrompe seu jogo para lavá-lo e trocá-lo.
Felipe foi adotado com a idade de um ano e oito meses. Até então,
viveu com sua família de origem, onde era o caçula de cinco irmãos. Seu
nascimento provocou a separação do casal parental, o pai tendo rejeitado
ao mesmo tempo esse bebê e sua mulher, provavelmente por suspeita de
traição, segundo os pais adotivos. A mãe, em conseqüência, recusou
totalmente essa criança que sobreviveu graças aos cuidados dos irmãos
mais velhos. Na sua família adotiva, Felipe é o segundo filho. Como se
deu sua adoção? Ele foi encontrado pela mãe de sua mãe adotiva, ou seja,
sua avó adotiva que morava nas vizinhanças da família de origem. A avó
adotiva cuidou dele durante um mês, até a chegada da filha para buscá-lo.
O relato dos pais é de que encontraram uma criança ainda muito
“selvagem”, assustada, que apresentava reações inesperadas e
incompreensíveis, mas que tinha estabelecido um laço com essa família
dos avós adotivos, principalmente com a avó. Transparece nessa fala dos
pais a impressão de que lidavam com um “animalzinho”, que custaram a
“domesticar”, em relação a quem precisaram de muito tempo até
considerá-lo parte do grupo familiar. Ele rapidamente começou a andar,
mas corria mais do que andava, e no início não parecia ter direção, nem a
menor noção de perigo. Falou por volta dos três anos, e vivendo num meio
bilíngüe até o início da psicoterapia, ele apresentava uma impossibilidade
de falar a língua portuguesa, que é a de sua família biológica, tendo
somente construído sua comunicação na língua dos pais adotivos.
Durante as entrevistas iniciais com os pais transparece uma
dificuldade importante da mãe para lidar com esse filho, algo que faz
pensar num certo horror em relação ao corpo desse menino.
56
Nas primeiras sessões comigo Felipe mostrou-se tal como seus pais
o descreveram: explorava a sala e os objetos, aparentemente indiferente à
minha presença, com uma atitude em que a desconfiança parecia esconder
uma certa curiosidade, mesclada com temor. Ele aceitou desde a primeira
vez estar só comigo, como que seguindo uma ordem recebida sem de fato
interiorizá-la. Parecia, assim, um pouco como um pequeno ser
mecanizado. No entanto, bem rapidamente pôde começar a jogar, aceitou
desenhar monstros e seres assustadores, interessou-se por personagens de
uma família, inventou algumas situações imaginárias.
O sintoma, no entanto, persistia sem nenhuma melhora aparente e,
principalmente, sem nenhum movimento em torno dele. Era como se uma
parte do seu corpo não lhe pertencesse, como se houvesse uma cisão entre
partes do corpo. Mas essa hipótese da cisão pressupunha um trabalho
psíquico minimamente elaborado, e eu pensava mais numa ausência de
integração de parte do corpo como se o circuito pulsional não se fechasse
num modo erógeno. Resolvi chamar a mãe para uma entrevista
individual, para uma escuta de sua fantasia em torno desse menino, de
como o encontrou, de como ele se representou para ela ao encontrá-lo. Ela
foi assim falando e rememorando esses primeiros contatos, descrevendo
esse bebê meio “animalzinho selvagem”. E lembrou-se de como ele
ficava todo o tempo sentado num velho carrinho de bebê, sem ser trocado
nem lavado, e do estado no qual estava seu corpo, coberto de feridas e de
escaras da cintura para baixo. Ela exclama “não sei como ele podia
suportar tanta dor!” Nós duas vamos tentando imaginar como ele se
sentia, como suportava tanta dor, até que ela vai percebendo que ele não
sentia essa parte de seu corpo, num arranjo radical de insensibilização,
para permitir suportar o insuportável. Ela emociona-se muito ao pensar
57
isso, e consegue então ensaiar uma reconstrução imaginária do que se
passou com seu filho, associando a sua indiferença quanto ao
funcionamento de seu corpo, no que diz respeito à excreção, ao controle
dos esfíncteres.
Após essa entrevista Felipe começa a controlar sua urina e esse
sintoma vai desaparecendo gradualmente. Estamos falando aqui de uma
“resensibilização” do corpo da criança a partir de um insight da mãe? Ele
já não é mais um bebê; o que se passa ainda entre a mãe e seu filho? Por
qual caminho o processo que se dá no psiquismo materno muda o
comportamento do filho? Qual é a receptividade dessa criança para
“perceber” e “receber” a mudança na posição materna?
Podemos pensar em Felipe como o menino que não sentia dor e
podemos também pensar nele como o bebê que foi claramente alvo do
ódio materno por parte da mãe biológica, remetendo-nos assim à
insuficiência imunológica psíquica, que aqui parece determinar uma
impossibilidade de investimento do corpo próprio. E não sentindo dor,
Felipe não tem acesso a um recurso fundamental para se situar no registro
do humano, ao mesmo tempo em que fica mergulhado num estado de
radical desamparo. Como diz Berlinck, (2000c) no seu artigo sobre a dor,
a ausência de dor representa uma ameaça grave à existência, pois é ela que
permite sinalizar os perigos contidos no ambiente. “Nessa perspectiva, a
dor é, então, um limite sui generis porque é uma resposta a uma fratura
nos limites do organismo e, portanto, do psiquismo e nos remete à nossa
finitude”(p. 60)
Mas Felipe tem agora uma segunda mãe. Essa, por seu lado, viu-se,
pela força dos mecanismos amputadores de Felipe, impedida de fazer
operar sua função materna. A partir da possibilidade de reconstruir a
58
experiência de seu filho, e em torno dela mobilizar seu próprio afeto,
parece que ela pode recuperar algo de seu funcionamento materno. A
função materna “injeta” dor no psiquismo desse bebê, assim reconstituído
pela evocação materna? Felipe “recupera” então essa parte perdida de seu
corpo, erotizada agora pela fantasia materna, para então poder exercer a
função excretória esperada dele, levando em conta sua inserção na cultura.
Ele pôde dar um passo a mais em sua humanização.
A função materna, que se exerce no estado de desamparo
fundamental do infans, vem introduzir Eros no corpo até então ignorado.
Mas voltemos à nossa questão: por quais meios isso se dá? No caso de
Felipe e de sua mãe, não podemos deixar de lado a dimensão da
transferência, que vem permitindo que esses movimentos sejam
desencadeados. Desde o momento relatado acima foi necessário alterar o
setting anterior, trabalhamos agora com sessões conjuntas da mãe e do
filho. Felipe passou a demonstrar um apego e uma dependência
extremados em relação à mãe – como também em relação ao pai, quando
está com ele – e simultaneamente um medo intenso da analista. Assim,
estando com ele nas sessões, sua mãe o protege da analista, por enquanto
uma figura má e perigosa. É nesse momento que nos encontramos
atualmente, as sessões sendo muitas vezes povoadas por monstros e seres
violentos, que em certos dias escolhem como alvo um bebê num carrinho,
empurrado por sua mãe... Até hoje, o bebê e sua mãe têm conseguido se
salvar desses ataques.
É necessário aqui fazer dois apontamentos em relação à dificuldade
especial dessa mãe para assumir sua posição materna, prejudicada por sua
esterilidade e pelas condições particulares dessa adoção. Essa criança foi
adotada num prazo de tempo que não permitiu à mãe viver um processo
59
de gravidez psíquica, que pode muitas vezes se dar enquanto dura a espera
da criança no período em que ocorrem os procedimentos para uma adoção.
Os pais relatam uma surpresa. Eles já tinham adotado uma primeira filha,
e desejavam uma segunda criança, mas não a esperavam naquele
momento – “foi tudo muito rápido” (sic). O tempo para a elaboração de
uma representação do bebê esperado não se deu, não se constituiu no
psiquismo materno o Eu antecipado, processo descrito no capítulo II.
Além disso, a adoção se deu por intermédio da avó materna. É por
ela e para ela que Felipe chega, foi ela quem cuidou dele inicialmente. E a
ambivalência do laço mãe-filha se atualiza intensamente através do
presente dado pela avó à sua filha, de um bebê tão pouco gratificante. No
fundo, tratou-se de um resgate, mais do que de uma adoção. E a escolha
foi da avó materna, não dos pais, que se encontraram diante de uma
situação já posta. Esses fatores também entraram em jogo para influir na
dificuldade do investimento materno desse bebê, que a mãe encontra então
como uma criança “selvagem”, indicando seu estatuto radical de outro –
estrangeiro – sem condições de ser objeto de seu investimento narcísico,
necessário, como vimos, para a construção da posição materna. A
importância central da transmissão entre avó e mãe para os processos de
maternalidade será discutida mais adiante, no capítulo VI.
Retomando nossas questões, como podemos pensar que se dá essa
transmissão de Eros ao bebê, como se passa do corpo funcional para o
corpo erógeno
?
Ainda no útero o feto vai recebendo estímulos táteis, sonoros,
oriundos do corpo materno. Supomos que ele vai assim constituindo uma
primeira e rudimentar experiência sensorial desse outro, ainda não
percebido enquanto tal. Com a ruptura do nascimento, o que subsiste
60
como referência para o bebê que permite a ele se orientar nesse novo meio
advém desses registros sensoriais. Os estudos da etologia humana trazem
algumas informações interessantes sobre esses primeiros marcadores
sensoriais do bebê, que, poderíamos pensar, operam como espécies de pré-
constituintes de seu aparelho psíquico nascente. Esse primeiro tempo, o
das interações precoces, inicia-se nas primeiras semanas de existência do
feto, e vai se enriquecendo progressivamente até o nascimento e durante o
primeiro ano de vida. As notas que se seguem são o resultado de
observações iniciadas desde 1975, por um grupo de etólogos (Cyrulnik,
1999).
A primeira via sensorial que chega à maturidade e
entra em função é o tocar, a partir da sétima semana in
útero; é uma pressão mecânica, uma mudança de postura
(...)são estimulações essencialmente físicas(...) Em
seguida, na décima primeira semana, o gosto e o olfato
entram em função. E, num mundo aquático, ... a água é
um excelente condutor de sons que ela traduz em
vibrações e em toques. (...) Num mundo marinho o som é
uma carícia, uma vibração, sobretudo as baixas
freqüências que são um tocar nos lugares mais sensíveis
do corpo do bebê, a saber em torno da boca e nas mãos,
primeiros locais tácteis mielinisados. Assim, a via final
comum de todas as vias sensoriais nessa etapa do
desenvolvimento é o toque (...)A audição entra em função
por volta de vigésima oitava semana. (p. 241)
Esses estudos indicam a existência de uma memória de curto
prazo em final de gravidez, que faria com que a criança já pudesse levar
em conta as palavras maternas recebidas como objetos sensoriais, que
tocam como uma pressão. Outros estudos realizados por ecografistas
mostram que os bebês reagem com movimentos à percepção das baixas
61
freqüências da voz materna. Assim, parece que no final da gravidez a
audição, o gosto e a olfação estão suficientemente desenvolvidos para
oferecer ao recém-nascido algumas referências, “(...) uma pequena
experiência sensorial de sua curta memória que dura alguns minutos, mas
que permite a ele não se encontrar como um marciano que desembarca na
terra” (p.243), ao nascer. O que quer dizer, segundo Cyrulnik, que esse
ser anfíbio que deixa seu mundo aquático para se tornar um ser terrestre
(...)reconhece as estruturas sensoriais que ele havia
percebido anteriormente sob a forma de baixas
freqüências, de tonalidades, de odores, de gostos; em
poucos dias, a criança tem um pequeno grasping sensorial
ao qual ele vai poder se agarrar. É aquilo que Daniel
Stern considera que dá início ao sentido de si (sens de
soi)(p. 243).
Há uma peculiaridade do bebê humano que o coloca em estado de
dependência total dos cuidados externos: nasce com seu grasping
sensorial, sensorialidade que começou bem antes do nascimento, mas é
impotente do ponto de vista motor. Contrapõe-se um mundo sensorial
rico, com cheiros, cores, brilhos, o esboço do formato do rosto, a uma pré-
maturidade motora que o obriga a uma radical dependência. “(...) Assim,
biologicamente, o pequeno humano é forçado à alteridade”. (p. 244).
Dependente e sensível aos fatores do ambiente, o bebê é
influenciado desde os primeiros dias de vida pela presença de um outro,
mesmo passivo, criança ou adulto, junto dele. Observações realizadas em
berçários permitiram constatar que um bebê sozinho emite sons muito
cedo; assim, após o quarto dia ele tenta algumas explorações com a boca,
com modulações. Os sons e gritos dos bebês foram gravados e em seguida
transformados, com a ajuda de computadores, em imagens. Os resultados
62
são surpreendentes, e mostram a diferença da configuração do grito
quando a criança está só ou acompanhada. Quando só, seu grito aparece
como uma forma “quadrada”; a partir do momento em que há um outro
humano presente, surge uma modulação, com variações fundamentais,
divididas em partes de 2, 4 ou 8. Assim, o jogo com os sons que saem de
sua boca muda se o bebê está só ou acompanhado, e isso desde as
primeiras semanas. Por outro lado, se o meio é sensorialmente estável,
aparece uma estabilidade dos gritos com uma estrutura que se repete,
como se houvesse uma “assinatura do grito”. São as altas e baixas
freqüências da voz que assinalam a reação do bebê, em função de
mudanças ambientais: as baixas freqüências são emitidas pelo bebê se o
ambiente está estável, e as altas aparecem quando há mudanças em seu
meio, como denotando um estado de alerta.
Há também uma série de observações que demonstram a
sensibilidade diferencial do bebê à presença da mãe, seja em reação ao seu
odor ou à sua voz. De seu lado, a mãe interpreta o que percebe, e vai
“injetando a história nesse pequeno campo sensorial que, desde o
nascimento, começa a se organizar entre ela e o bebê” (p. 245). Ao fazê-
lo, ela introduz mudanças nesse campo sensorial em função de sua própria
história. Cyrulnik propõe que o final desse período das interações
precoces será marcado pelo momento em que o bebê passa a agir para agir
sobre o corpo do outro, a agir sobre as emoções do outro, iniciando um
processo de empatia, o se dá bem antes da fala; é quando o bebê começa a
estar ativamente com o outro, sinalizando o início da intersubjetividade.
Num segundo tempo, dar-se-ia então o nascimento dentro da linguagem,
para esse bebê que foi até então modelado dentro de seu campo sensorial,
pela história e pelas significações introduzidas pela mãe.
63
Essa passagem pelos caminhos da etologia levou a considerar a
receptividade sensorial do bebê, que o predispõe para receber os estímulos
vindos da mãe, do corpo materno, da voz materna, num primeiro tempo, e
que, num processo que se torna cada vez mais complexo, leva a uma
intensa troca entre os dois parceiros da dupla. Mas também a etologia
reconhece a radical assimetria da posição da mãe e do bebê. Como
podemos transcrever essa aproximação, baseada em observações e
experimentos, para a compreensão psicanalítica, que é construída sobre o
“só-depois”, sobre a fantasia do vivido, e não sobre o vivido real, ao qual
nunca se pode ter acesso?
Um dos pontos a enfatizar nos estudos etológicos é a relativa
discrepância entre, de um lado, a “aptidão” sensorial do bebê, e, de outro,
sua “incompetência” motora, o que parece levá-lo a precisar, literal e
metaforicamente, do corpo, dos braços do outro. Dentro do campo da
psicanálise, lembramos Winnicott (1999), que ao descrever a função
materna, serve-se de um vocabulário corporal quando fala em “holding”,
em “handling” como meios fundamentais para dar ao bebê humano sua
consistência numa continuidade de existir.
Além dele, Anzieu (1985), ao propor a noção de “eu-pele”, busca
reintroduzir dentro do campo teórico da psicanálise a dimensão do corpo,
considerado por ele recalcado no pensamento psicanalítico. O eu-pele teria
uma dupla origem, epidérmica e proprioceptiva, e a partir dela poderia
estabelecer as primeiras barreiras defensivas e filtrar as trocas, tanto
internas quanto com o mundo externo. Descrito por Anzieu (1985) como
uma
(...) figuração da qual o Eu da criança se serve
durante as fases precoces do seu desenvolvimento
64
para se representar a si próprio como Eu contendo os
conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência da
superfície do corpo (p.39),
teve as suas três funções principais definidas no artigo publicado na
Nouvelle Revue de Psychanalyse, em 1974 (Anzieu, 1974). Essas três
funções principais são correlacionadas diretamente com as proposições de
Winnicott sobre o desenvolvimento emocional primitivo e as funções da
mãe. A primeira dessas funções é a da manutenção do psiquismo, ligada
ao fato de a pele sustentar os músculos e o esqueleto, e se desenvolve por
interiorização do holding materno. A segunda relaciona-se com o fato de a
pele recobrir todo o corpo, assim o eu-pele envolve o psiquismo e o
contém, desenvolvendo-se igualmente pela interiorização do handling
materno. A terceira função é a de proteção contra os estímulos externos
excessivos, função de pára-excitação.
Antes de Anzieu, mas dentro da mesma perspectiva que enfatiza a
relação do corpo com a constituição do psiquismo da criança, Esther Bick
(1968) havia proposto a noção de “pele psíquica”, objeto continente
introjetado pelo bebê que delimita as fronteiras entre o interno e o externo.
A função primária da pele do bebê é a de unir as partes da personalidade
ainda não diferenciadas de partes do corpo. Em sua forma mais primitiva
essas partes da personalidade são sentidas como não tendo nenhuma
ligação entre si e são mantidas unidas, passivamente, pela pele
funcionando como limite. Essa função de contenção das partes não-
integradas do bebê depende da introjeção inicial de um objeto externo,
sentido pela criança como capaz de cumprir essa função. Apenas mais
tarde a identificação com essa função do objeto substitui o estado não-
integrado e dá origem à fantasia de espaços internos e externos, e só então
65
a criança poderá se servir dos mecanismos de cisão e idealização. Até
então a identificação projetiva segue sendo o mecanismo psíquico
dominante. Esther Bick (1968) dá elementos para a diferenciação entre os
estados de não-integração, enquanto experiência passiva de total
desamparo, e os de desintegração, que já envolve uma operação defensiva
ativa, por meio dos processos de cisão. Faz referência à mesma distinção
estabelecida por Winnicott (1969c) ao descrever os processos de
desenvolvimento emocional primitivo, e associa as ansiedades
catastróficas ao estado de não-integração, enquanto as ansiedades
persecutórias e depressivas já indicam uma primeira organização do
aparelho psíquico. O desenvolvimento insuficiente dessa função da pele
pode ser atribuído a falhas de adequação do objeto, podendo levar, ainda,
ao desenvolvimento de uma “segunda pele”, por meio da qual a criança se
mostra numa pseudo-independência, usando inapropriadamente certas
funções mentais, com o propósito de criar um substituto para essa função
de pele continente.
No caso clínico que acabamos de evocar, essas funções da pele -
tanto as descritas na conceituação de Anzieu do eu-pele, como de Esther
Bick de pele psíquica - mostram-se falhas ou inexistentes. A não-
integração de partes do corpo da criança produzindo o sintoma de
incontinência urinária parece confirmar essa suposição de processos
iniciais, no limite do corpo e do psiquismo, que não puderam se constituir.
Aqui, podemos pensar que o psiquismo se constitui no encontro do corpo
com a relação. Considerando a história dos primeiros meses da vida dessa
criança, a hipótese de um arranjo radical para proteção contra a dor física,
vivida num estado de desamparo no qual não havia qualquer acolhimento
66
da experiência corporal do bebê, produz esse efeito de desensibilização,
ou de não-integração de partes do corpo, e de partes de si.
Daí podemos figurar o bebê, movido pelo apego e dotado de sua
sensorialidade, que constitui o recurso mais fundamental do humano para
estabelecer ligações, dirigindo-se para o adulto, em geral a mãe, que por
sua vez vai ao encontro dele marcada por sua própria história
fantasmática. Do lado do bebê teríamos a sensorialidade, do lado da mãe,
o imaginário.
Laplanche, (1988), com a teoria da sedução generalizada, pretende
dar conta desse encontro radicalmente assimétrico entre o adulto e o bebê.
O que estaria em jogo seria uma sedução originária, universal e
necessária, por parte da mãe. O caráter necessário da sedução liga-se ao
fato de a criança, confrontada com o mundo do adulto, constituir-se nessa
própria relação. Assim descreve Silva Zornig (2000) essa relação que
(...) se estabelece num duplo registro: do lado
da criança e de sua auto-conservação prevalece o
desamparo que faz com que ela necessite de uma
“ajuda estrangeira” (como a denomina Freud) para
sobreviver; porém do lado do adulto predominam as
mensagens sexualizadas, mensagens não-verbais,
verbais ou comportamentais, presentes nos primeiros
cuidados. Estes significantes são duplamente
enigmáticos: enigmáticos para a criança que não tem
capacidade para ligá-los e integrá-los, mas também
enigmáticos para o próprio adulto por se referirem a
seu recalcado (p. 41-42)
O inconsciente se formaria, de acordo com Laplanche (1987), a
partir dos restos não traduzidos das mensagens enigmáticas propostas à
criança pelo adulto, ele mesmo desconhecedor de sua sexualidade
67
inconsciente. Laplanche pressupõe uma atividade tradutora do bebê, para
dar conta das mensagens recebidas do adulto.
Figueiredo (2007) ao estudar as várias facetas da relação de
cuidado, destaca a função de interpelar e reclamar, agida por uma figura
da alteridade que produz a intersubjetividade “traumática”. Traumática,
mas necessária para a acessão do bebê à vida e à humanidade. Essa figura
da alteridade é “(...) o adulto marcado pela diferença, pela incompletude,
sexuado, desejante e vulnerável “( p. 7). E é dessa posição queele pode
exercer a função de interpelar, seduzir o bebê, introduzindo-o no campo
pulsional. Nesta condição, ele introduz ou desperta uma pulsionalidade,
uma exigência de resposta que leva a bebê a um vir-a-ser. Figueiredo faz
notar que prefere a noção de Green, defendida em “O trabalho do
negativo”, segundo a qual o objeto primário desperta a pulsionalidade, ao
invés da hipótese de Laplanche (1988) que sustenta que o adulto a
introduz no psiquismo infantil. Essa posição implica aceitar que a
pulsionalidade infantil está lá, posta, intrínseca, no bebê, e precisa ser
despertada pelo encontro com o adulto, diferentemente da posição
laplanchiana, que supõe a implantação da pulsionalidade materna, via
mecanismos projetivos, na psique infantil.
Se nos referimos à função materna que implanta ou desperta a
pulsionalidade no corpo do bebê, então falamos necessariamente também
da dualidade do amor e do ódio maternos, e talvez uma das questões que
fique para reflexão é a de como o bebê recebe esse amor e esse ódio, e de
que forma pode traduzi-lo na sua própria constituição.
68
CAPÍTULO V
QUESTÕES SOBRE O AUTISMO INFANTIL E A
DEPRESSÃO MATERNA
Neste capítulo, será a psicopatologia em sua forma grave do
autismo infantil que nos ajudará na tentativa de formulação dos pontos de
ligação entre a psique materna e a constituição do psiquismo do bebê.
Como referido em “Considerações metodológicas”, a psicopatologia é um
dos recursos dos quais o clínico pode se valer para tentar construir sua
teoria da clínica e suas hipóteses metapsicológicas. Por suas falhas, suas
distorções, suas alterações, a patologia nos indica algo do que poderia ter
sido, ou do que foi e deixou de ser. As crianças autistas, tomadas na
impossibilidade de constituir uma relação com o semelhante, poderiam
nos informar sobre as primeiras estruturações do aparelho psíquico. Há
ainda uma outra hipótese, no entanto não compartilhada por todos,
segundo a qual os processos autísticos e psicóticos precoces nos mostram
de maneira aumentada, como em câmara lenta, mecanismos psíquicos que
estariam em operação em todas as crianças, no início de suas vidas,
mesmo que de maneira muito fugidia a tal ponto que na maioria das vezes,
eles passariam desapercebidos. Ou a patologia, por meio da parada que
impõe ao desenvolvimento, ou da hipertrofia de alguns mecanismos,
permitiria observar os processos psíquicos iniciais da criança. Para os
autores influenciados pelo pensamento lacaniano, o autismo, considerado
69
uma das possibilidades de constituição da subjetividade humana, situada
aquém da alienação, etapa da constituição expressa pelo estádio do
espelho, pode também notificar sobre as formas mesmas dessa
constituição.
É importante ressaltar, no entanto, que o foco desta
pesquisa não é o autismo infantil, mesmo se em minha clínica o trabalho
psicoterapêutico com crianças autistas e psicóticas representa um campo
de grande interesse. O caso clínico que relato a seguir me conduziu
fortemente à consideração sobre a importância decisiva dos percalços da
relação inicial entre a mãe e o bebê para os processos de subjetivação da
criança. E, mais particularmente, o caso em questão mostrou a força
paralisante da depressão materna sobre os movimentos constitutivos do
bebê. Será esse especialmente o foco de reflexão provocado por essa
situação clínica.
Paulo, hoje com cinco anos, deixou de falar aos dois anos e um mês.
Até então era uma criança comunicativa, interagia com os familiares e
também com adultos pouco conhecidos, fazia frases, parecia alegre. Tudo
isso está registrado em fotos e vídeos, diz a mãe, “pois às vezes as pessoas
que o vêem hoje, não acreditam”. Ela o apresenta como “um autista”, e
não pode abandonar essa designação quando se refere a ele. Parece dessa
maneira encontrar uma forma de dar a seu filho uma marca identitária.
Quando interrogada sobre o que, a seu ver, produziu em seu filho o
mergulho no autismo, começa a relatar vários acontecimentos que
alteraram a vida de Paulo quando ele contava aproximadamente dois anos.
A babá, que cuidava dele desde os dois meses, deixa a casa.
Imediatamente depois, Paulo vai para a escola maternal. Lá, no início,
comunicava-se e interagia com as outras crianças, mas rapidamente vai se
70
calando e se isolando. A escola só comunicou à família essa observação
vários meses mais tarde, quando os pais já se preocupavam com o
comportamento de Paulo.
Num primeiro momento, é sobre isso que a mãe pode falar, sobre os
acontecimentos “externos” e sobre a coincidência deles, para explicar o
que se deu com o filho. Ela relata depois um outro fator, uma crise
conjugal grave, lembrando-se que naqueles meses voltou-se
exclusivamente para o marido, para os problemas do casamento, e
“esqueceu-se” de Paulo. Mas isso bastaria para levá-lo a um tal
desabamento psíquico, à perda de suas aquisições e à recusa de todo
contato? O que estava lá, antes, nele? Como estava ele constituído, nesses
primeiros dois anos, para que perdas, sem dúvida significativas, o
levassem ao silêncio, depois à recusa em brincar, em seguida aos gestos
estereotipados e repetitivos?
Paulo foi amamentado até um ano e três meses, e desmamado
aparentemente sem histórias. Aqui é preciso deixar falar a mãe. Com um
gesto amplo do braço, indicando a saída do filho para o mundo, ela diz:
“pensei que ele já estava pronto, já andava, já se comunicava, pensei que
o resto era natural, o desenvolvimento continuaria, naturalmente, eu não
tinha mais muito a fazer, já tinha cumprido minha parte, cuidando dele e
amamentando, como era preciso”. Chama a atenção sua ênfase no
“desenvolvimento natural”. E como foram esses primeiros meses? Ela
responde rapidamente: encarregou-se de todos os cuidados necessários -
alimentação, banhos, trocas. Achava que sua função era assegurar o
crescimento físico, o resto era natural. Não tinha nenhum gosto em brincar
com ele, acha que nem olhava para ele com prazer, só cumpria da melhor
maneira suas diversas tarefas, inclusive a amamentação. Sabia que era o
71
melhor para a criança, e assim fazia. Ela se emprestava, emprestava seu
corpo, para essas funções naturais de uma mãe. Era uma “mãe da
natureza”. Acreditava que o desenvolvimento do filho aconteceria sem
ela; era um processo quase automático, sem dúvida independente de seu
prazer, de seu investimento. Onde estava a libido? No trabalho, na relação
com o marido? Certamente não com o filho. Para essa mãe, seu papel
materno era o de cuidar bem, alimentar, estar atenta às doenças, às
vacinas. Organizar o espaço, as rotinas, até mesmo os brinquedos, bem
providos, bem escolhidos. O “resto” aconteceria naturalmente, por si só.
Ao que parece, Paulo foi se estruturando precariamente nesse
mundo organizado e previsível provido pela mãe. O desmame, no entanto,
significou talvez a interrupção de uma experiência repetida e previsível
que permitia uma proximidade, um contato, pelo menos com o corpo da
mãe, talvez daí constituindo um suporte mínimo para a fantasia de posse
da mãe, que ele pareceu guardar mesmo após a entrada no autismo. A
mãe, por seu lado, no momento do desmame, viu-se liberada dele, dos
cuidados, já que ela o considerava então já suficientemente autônomo,
podendo “andar pelas próprias pernas”, ir para o mundo, como indicou seu
gesto com o braço. No entanto, o sintoma só vai se instalar meses depois,
quando novas perdas e separações produzem o efeito patogênico, num
desdobramento da ruptura vivida quando do desmame, ocorrendo numa
organização psíquica já mal constituída em razão da ausência de
investimento materno. É como se a perda da babá e a entrada na escola
tivessem ressignificado a ruptura anterior, que se dera aos 13 meses.
Vemos aqui em ação os dois tempos do trauma? Coloca-se também a
hipótese do autismo por regressão, secundário, para distinguir do autismo
primário (Jerusalinsky, 2002).
72
Numa perspectiva diferente, a descrição da evolução de
Paulo viria corroborar a hipótese de Hochmann (Hochmann apud Golse e
Eliez, 2007) de um “processo autistisante”, que supõe a existência, antes
do enquistamento autístico, de um primeiro período de estruturação
durante o qual há ainda plasticidade antes da fixação sintomática. O
processo autistisante se desenrolaria a partir de falhas repetidas na espiral
interativa entre o bebê e seu cuidador, com a instauração de um círculo
vicioso que se auto-agrava progressivamente, entre o bebê e a mãe. Esse
modelo fala em favor da importância da intervenção precoce dirigida aos
pais e à criança que pode ter efeitos sobre os processos em curso antes da
cristalização do funcionamento autístico. Ao enfatizar a idéia de
“processo” ocorrendo no contexto da dialética relacional inicial, coloca
em questão a distinção, talvez apressada, entre autismo primário e
secundário.
Trazendo argumentos em prol desse modelo de
compreensão proposto por Hochmann, os estudos do grupo de Pisa
(Muratori e Maestro, apud Golse e Eliez, 2007) utilizando os vídeos
familiares de crianças que posteriormente se tornaram autistas, mostraram
que elas tinham sim capacidades nos três domínios - da comunicação,
socialização e proto-simbolização. No entanto, diferentemente das
crianças não-autistas, durante os primeiros 18 meses de vida essas
aptidões se instalam de maneira entrecortada e não progressiva e
homogênea até o momento em que começa o processo de desligamento e
de exteriorização dos comportamentos autistas, indicando uma espécie de
ruptura num equilíbrio presente, mas frágil, ruptura que seria precipitada
em função de fatores ambientais agravantes, como vemos no caso de
Paulo.
73
Mudando o foco para o campo materno, para efeito de nossa
reflexão, podemos nos perguntar sobre quais bases, para essa mãe,
constituiu-se ou não o laço com seu filho. Quando ela se descreve naquele
período de sua vida, diz não ter se apercebido da importância de olhar para
seu filho; diz também não ter tido prazer no contato com ele. Assim foi
também com o filho mais velho, nascido três anos antes de Paulo. Esse
menino é descrito como sendo bem adaptado, bom aluno, mas refugiando-
se com freqüência num mundo imaginário, povoado por super-heróis e
super-monstros. Ele assim brinca durante horas, não solicitando a atenção
de ninguém, mesmo porque, desde que receberam o diagnóstico de
autismo para Paulo, todas as atenções da família voltaram-se para ele. No
entanto, ao que parece, o investimento paterno desse primeiro filho
homem proporcionou-lhe o mínimo de base psíquica sobre a qual
desenvolveu-se. Esse menino é hoje mais próximo do pai, ambos
chegando a formar uma dupla, em paralelo à dupla formada pela mãe e
por Paulo.
Em seu caminhar na direção do autismo, Paulo, após abandonar a
fala, os brinquedos, os outros de seu ambiente, voltou-se exclusivamente
para a mãe, a quem vivia literalmente agarrado, preso em seu colo, em seu
corpo, recusando todo contato com o que estivesse fora desse conjunto
formado pelos dois corpos, seu e da mãe. Manteve o contato visual com
ela durante esse período, mas em seguida, ao mesmo tempo em que
passou a manipular e agitar repetitiva e mecanicamente pedaços de papel e
pedaços de madeira, perdeu também o contato visual com a mãe.
Esse breve relato é resultado das primeiras entrevistas com a mãe,
num tratamento que se esboça, talvez, após um longo período em que
foram tentadas outras terapias - comportamentais, medicamentosas - e
74
atualmente um programa intensivo seguindo um modelo desenvolvido por
pais de autistas nos Estados Unidos. Houve um certo progresso de Paulo,
que atualmente não recusa mais os brinquedos (a mãe relata que no
momento mais agudo ele reagia violentamente quando ela tentava fazê-lo
entrar em uma loja de brinquedos que ele apreciava muito anteriormente),
faz contato visual com as pessoas próximas, inicia ações na direção da
mãe, do pai, da babá. Mas mantém-se sem linguagem, emitindo um som
contínuo com uma entonação quase musical, que produz um efeito
angustiante em quem ouve. Ao mesmo tempo, bate continuamente em
suas orelhas, como se quisesse tampá-las. A fantasia que vem ao
observador é a de que ele não quer ouvir algo. Faz lembrar a interessante
observação de Laznik (1997) a respeito dos gestos repetitivos de alguns de
seus pacientes autistas, em que ela pode inferir uma significação anterior
desses gestos, testemunhos de um passado de comunicação como as ruínas
de um prédio antigo que estivesse desmoronado.
E como encontramos essa mãe hoje? Há algo intrigante em sua total
entrega a esse filho. Com seu comportamento autista, Paulo parece ter
suscitado em sua mãe um despertar tardio e extremado da função
materna. Ao vê-la com ele, pensamos na mãe de um bebê recém-nascido,
um pouco como a mãe “passavelmente enlouquecida”, descrita por
Winnicott (1969c) no estado de preocupação materna primária. Ela
dedica-se a ele integralmente, tendo transformado a casa, sua vida, suas
relações, em função desse filho. Diz agora como sente prazer com seus
gestos, com seus pequenos progressos. Não por acaso, não suportou uma
tentativa de tratamento psicanalítico, iniciada logo após o diagnóstico de
autismo, pois a analista atendia o filho longe dela, e ela diz não suportar
pensar no que poderiam estar fazendo com seu filho sem que ela veja.
75
Todos os tratamentos ulteriores foram acompanhados de perto por ela, e o
programa atualmente desenvolvido acontece na casa dela, sob sua
supervisão direta. Trata-se, provavelmente, de uma tentativa de exercer
um controle sobre sua própria violência, recalcada e projetada nos
cuidadores de seu filho, que ela sente como potencialmente perigosos para
ele.
No capitulo II, intitulado “Narcisismo materno e criação do espaço
psíquico para o bebê”, tratava-se da construção, no psiquismo materno, da
representação do bebê durante os meses de gestação, preparando para o
encontro que se dará na ocasião do nascimento. A hipótese é a de que
durante esse período, ao mesmo tempo em que se dão as mudanças no
corpo da mulher, constitui-se também, no melhor dos casos, um espaço
psíquico para o bebê que permitirá à mãe exercer sua função continente no
início da vida do lactente. A mãe, o outro primordial do bebê, será o
objeto primário que conterá seu psiquismo e que o ajudará em sua
descoberta e reconhecimento dos primeiros significantes elementares.
Espera-se que, ao final desse tempo inicial
(...) o bebê tornar-se-á capaz de evocar
simbolicamente a mãe ausente, que então terá passado do
estatuto de objeto continente ao estatuto de objeto
contido, passagem que supõe a interiorização pela criança
dessa função continente do objeto primário. (Golse, 1990,
p. 53).
Com Paulo, supomos que essa interiorização, essa apropriação do
objeto materno continente, se ocorreu, deu-se de modo precário. Aliás, o
relato do comportamento de “agarramento” do menino à sua mãe, no
momento da eclosão da crise que o desorganizou, evoca a idéia de uma
76
tentativa desesperada de não perder o pouco que ele havia conseguido
guardar ou constituir desse outro materno, tão pouco disponível, que se
esquivara dele desde sempre.
Assim, para essa mãe o tempo de espera do filho não favoreceu a
criação do espaço psíquico necessário para a posterior subjetivação do
bebê. Não há nada, em seu relato, que faça pensar na fantasia do Eu
antecipado, que prepara a chegada do bebê, Eu antecipado que pré-forma
esse bebê no psiquismo materno, e que será um dos termos fundamentais
do encontro posterior com o bebê real. (Aulagnier, 1999). Nem é possível
supor que tenha havido um encontro traumático, um encontro
decepcionante. Paulo, tal como o irmão, nasceu bem, um bebê sadio, bem
constituído. É como se essa mãe tivesse sido atravessada por um projeto
que a ultrapassava, tal como uma paciente citada por Claude Boukobza
(2002), que dizia “eu não imaginava não ter filhos”, ao invés de “eu queria
um filho”. Como propõe Boukobza,
(...)nesse projeto que as ultrapassa não se pode
deixar de reconhecer o que Freud chamava de projeto da
espécie, o projeto de perpetuar a espécie. Mas em função
de sua própria história, elas não podem retomá-lo por sua
própria conta, elas não podem subjetivá-lo. (idem, p. 20)
Lucia, mãe de Paulo, queixa-se de que ela não sabia. “Deveriam
ensinar às mães que o prazer com o filho é muito importante, deveriam
ensinar às mães que o relacionamento afetivo também é fundamental para
o desenvolvimento das crianças”, diz ela. Ela parece falar aqui de uma
falta de transmissão pela cultura, da falta de transmissão de um “saber”
sobre o que é uma criança, sobre o que precisa uma criança, transmissão
77
que deve se fazer de uma geração para outra. Mas o que ela parece
expressar assim, sem saber, é que o que lhe faltou foi da ordem da
identificação materna, da possibilidade de transmissão da função materna
a partir de uma identificação com a própria mãe, tal como vivida e
internalizada num tempo pré-edípico, naquele tempo inicial dos cuidados
maternos constituindo as bases narcísicas e identificatórias do bebê.
E o traço que mais chama a atenção na expressão queixosa desta
mãe é o sentimento de ausência de prazer na relação com o filho, quando
sabemos que o prazer materno é o que permitirá ao filho inscrever-se no
registro pulsional, a partir do investimento libidinal da mãe, erogenizando
seu corpo para além de um corpo funcional. O prazer da mãe no contato
com o corpo do filho é o que permitirá a passagem do organismo vivo
para um corpo atravessado pelas pulsões. Quando sabemos que a
depressão consiste principalmente de um impedimento em sentir prazer,
podemos supor que foi num estado depressivo que Lúcia ocupou-se de seu
filho. Nas descrições clínicas das depressões maternas, há uma forma
particular que pode ser considerada a de maior risco para o bebê, qual seja
a depressão encoberta, ou o que os psiquiatras chamam de depressão
sorridente, na qual a mãe, num esforço de negação do sofrimento, exerce
de maneira perfeita suas tarefas maternas, e mesmo as outras tarefas de
sua vida cotidiana. O risco é maior para o bebê porque essas mães não
pedem ajuda, e o meio familiar não percebe o sofrimento materno. Trata-
se, por vezes, de um tipo de comportamento muito ativo, eficiente, mas
onde falta justamente a dimensão de prazer nos contatos e nos cuidados
com o bebê. E Lúcia nos fala de um grande cansaço, pois trabalhava
muito, ocupava-se dedicadamente de uma série de situações complexas
ligadas à sua atividade profissional, ao mesmo tempo em que nada
78
deixava faltar ao filho. Ela descreve, na realidade, uma espécie de
atividade frenética, como se precisasse se ocupar muito, todo o tempo,
para fugir de sua experiência depressiva.
Dada a alta incidência das chamadas depressões pós-parto, cujos
índices verificados em pesquisas européias chegam a 15% da população,
cabe perguntar se se trata de uma patologia individual, ou se, como sugere
Boukobza (2002), estamos diante de uma “questão existencial”. Isso leva
a considerar as proposições de Berlinck a respeito da função materna no
autismo, quando afirma que é “(...) nessa oportunidade, em que o humano
encontra-se mergulhado no desamparo constitutivo da espécie, que se
manifesta a função materna” (Berlinck, 2000b, p. 101).
A função materna, ao estabelecer Eros no corpo da criança,
transformando-a em humana, dota-a do poder de estabelecer ligações. No
autismo, em que Eros estaria ausente, as ligações não se fazem, ou são
desfeitas. Para Berlinck (2000b) aqui “(...) a função materna dá lugar à
autoctonia, ao filho natural, revelando a ausência do ‘objeto a’, causa do
desejo. O autista tem genitora, mas não tem função materna: é filho
natural”.(p. 104)
Ao ouvir Lúcia falar sobre como cuidou de seu filho nos primeiros
dois anos, parece-nos ouvir uma ilustração dessa proposição. Para avançar
na compreensão do auto-erotismo do autista, Berlinck (2000b) cita Fédida
quando este afirma que
A capacidade autárquica de conservação do autismo faria,
em última análise, que a autoconservação se conformasse
(...) ao auto-erotismo. Seria como se “o autismo ocorresse
na qualidade de um avatar da perda do objeto de
autoconservação (o seio materno nutridor) e fosse uma
espécie de reviravolta autonutridora do auto-erotismo em
79
direção ao corpo próprio” (Fédida, apud Berlinck, 2000,
p.105-106).
Paulo, ao perder o seio materno quando do desmame, vai reagir
posteriormente a essa e à outras rupturas agarrando-se ao corpo da mãe,
evocando um comportamento primitivo de apego, última âncora quando já
parecem se desfazer as frágeis ligações eróticas com os objetos. Teria
havido um precário laço com o objeto nutridor, mas insuficiente para
constituir no aparelho psíquico a representação estável e contínua desse
objeto, dada a insuficiência do holding psíquico materno, em razão da
depressão da mãe. Paulo, ao agarrar-se ao corpo da mãe, parece buscar
ainda um ponto de apoio, de sustentação, como que num recurso
desesperado de autopreservação.
O narcisismo é chamado para ajudar na compreensão das relações
entre pais e filhos, entre a mãe e sua criança, compondo o campo da
intersubjetividade. Alteridade e subjetividade, “eu” e “outro” formam
pares dialéticos que o narcisismo pode ajudar a elucidar.
Quando sabemos que é a partir do narcisismo dos pais que o
narcisismo da criança se constitui, podemos supor que houve aqui uma
falha nessa passagem. Ao pensar no narcisismo materno e em suas
transformações durante o tempo de espera do bebê, lembramos que o bebê
esperado é alvo do investimento narcísico de seus pais, e particularmente
da mãe; assim, o próprio conteúdo do ventre materno passa a ser objeto de
um investimento erótico. O investimento narcisista do recém-nascido
pelos seus pais e o conjunto intersubjetivo no qual o bebê se insere
constituem uma expressão do narcisismo primário, desenvolvendo-se no
80
contrato narcisista definido como um acordo inconsciente entre a criança e
o grupo familiar, a partir dos investimentos recíprocos.
Deste modo, é o narcisismo dos pais, herdado pelo filho, que
fornece as bases para sua subjetividade, para sua humanização. Para
Godino Cabas citado por Cristina Magalhães (1986), o narcisismo
primário seria de fato uma construção teórica freudiana, como outras
ligadas ao campo do originário e do primário, podendo somente ser
estudado em forma dedutiva. Sua importância estaria em ser um conceito
articulador ligando o narcisismo parental à estruturação da instância
narcisista da criança (Godino Cabas, apud Magalhães, 1986). Em outras
palavras, trata-se do desejo parental, projetado na criança, e que esta
deverá encarnar no seu processo de subjetivação.
Nessa rápida discussão sobre o narcisismo primário ao tratar da
passagem do narcisismo parental para o narcisismo da criança, buscamos
pistas para pensar deste ângulo a questão do autismo infantil, aqui
entendido como resultante de um fracasso radical desse investimento
narcísico materno. Isso equivaleria a dizer que haveria uma ligação
estreita entre o investimento narcisista da mãe em seu filho e o
desenvolvimento das funções maternas.
As condições para que essa passagem se efetive pressupõem a
possibilidade, para a mãe, de fazer face à complexidade das relações com
sua própria mãe, tanto a mãe poderosa do período edipiano, como no
reencontro com outra imagem materna, a da mãe dos primeiros cuidados,
pré-edípica, tal como avança Bydlowski (1992) num estudo sobre a
problemática da gravidez na adolescência. Assim, para além da equação
81
simbólica da criança como realização de um desejo fálico, que viria
obturar a angústia da castração feminina, seria preciso, na experiência da
maternidade, passar pelo reencontro com a mãe originária, a mãe dos
primeiros cuidados, o que equivaleria a uma aproximação com o objeto
primordial perdido. O trabalho psíquico da maternidade, na melhor das
hipóteses, envolveria a possibilidade desse reencontro. E talvez por isso
também venha a representar, para algumas mulheres, uma ameaça de tal
modo radical que conduz a diferentes modalidades de arranjos defensivos,
e, no fracasso destes, ao surgimento de configurações psicopatológicas
francas, como as depressões pré e pós-parto, ou até as psicoses puerperais.
Senão, vemos, como no caso tratado acima, que a organização psíquica
materna pode ser preservada, mas à custa de uma retirada de investimento
do bebê por vir, podendo conduzir à estruturação de autismo ou psicose
infantil.
82
CAPÍTULO VI
DE MÃE PARA FILHA: A TRANSMISSÃO DA
MATERNALIDADE
Se em capítulo anterior a questão das transformações psíquicas
durante a gestação foi abordada focalizando o narcisismo materno e o
interjogo entre inclusão/exclusão da representação do bebê no espaço
psíquico da mãe, neste texto a interrogação central girará em torno da
relação mãe-filha, e dos percalços da possível transmissão da
maternalidade
1
de uma para a outra. Supomos que esta transmissão estará
marcada pela construção, por parte de ambas, da própria feminilidade, isto
é, pelas marcações de suas trajetórias psicossexuais.
Uma vez mais nos serviremos do um dos sonhos já tratado
anteriormente. E uma cena de jogo infantil também nos ajudará a
mergulhar mais fundo no universo da fantasia feminina em relação à
maternidade.
O sonho acontece entre o quinto e sexto mês de gestação de uma
paciente que já estava em processo de análise antes de engravidar, e cuja
produção onírica já foi relatada. Se aqui evocamos novamente esse sonho,
é porque ele trouxe à cena a relação avó-mãe-bebê, e, a esse título,
sinalizou uma inflexão marcante no processo psíquico da gravidez. No
sonho, a paciente está com sua mãe, que carrega um bebê morto, e ambas
procuram um bom lugar para enterrá-lo, o que é realizado na conclusão do
83
sonho, depois de uma busca que passa por vários cenários, todos
associados a lugares da infância. A partir desse sonho, delineia-se uma
nítida mudança na posição subjetiva da paciente em relação ao bebê,
paralelamente a uma cessação dos distúrbios físicos; desaparecem as
náuseas e os vômitos, e ela pode daí em diante experimentar um estado de
calma, de bem-estar, e progressivamente o estado de completude que
algumas gestantes alcançam. Em suas associações, ela é conduzida a
pensar que o bebê do sonho é uma representação dela mesma, bebê da
mãe, e, como dito no capítulo II, era como se fosse preciso “enterrar” esse
bebê narcísico, - ela mesma, o bebê imaginário de sua própria mãe – para
dar lugar a um outro bebê, esse agora um outro que não ela mesma.
A cena de jogo infantil é criada por uma menininha de cinco anos,
trazida pelos pais que se mostram inquietos com seu ciúme excessivo da
irmã que tem um ano de idade, e principalmente preocupados com as
mudanças em seu comportamento desde a gravidez da mãe, tendo ela se
tornado irritável, hiper sensível, despótica, produzindo em diferentes
ocasiões as mais variadas cenas de birra e de teimosia. Nessa sessão, ela
“constrói” várias casas, onde instala os diferentes personagens; assim, há
uma casa para os homens e uma casa para as mulheres. Essa última é
cheia de proteções, paredes altas, obstáculos em volta para proteger as
ocupantes, sendo que a casa dos homens dispensa esses quesitos, já que
“eles podem se proteger sozinhos”. Mas o ponto que nos interessa aqui é o
lugar que ela reserva para o bebê nessa casa das mulheres. Ela o coloca no
canto mais escondido e mais protegido, na realidade tão coberto que não
fica visível, com o intuito de protegê-lo dos ladrões e dos perigos. E o
1
A maternalidade é definida por Stoleru (2000) como o “conjunto das representações mentais, afetos, desejos
e comportamentos de uma mãe em relação à sua criança, seja essa ainda um projeto, ou esperada durante uma
84
bebê é assim claramente um objeto das mulheres, uma questão das
mulheres.
Duas meninas/mulheres, em tempos diferentes de suas vidas,
representam o bebê no campo da relação materna, seja no sonho com a
própria mãe ou na casa das mulheres, espaço exclusivamente feminino.
Para a primeira, a que tem o bebê no ventre, trata-se de “enterrar”, fazer o
luto de um bebê mítico, do bebê dela e da mãe. Para a criança, parece
tratar de guardar, ocultar e proteger esse bebê precioso investido por seu
amor por sua mãe. Ele está aqui na casa (corpo) das mulheres, e dessa
casa, por enquanto, os homens precisam estar excluídos.
Concepção freudiana da trajetória psicossexual da mulher
Para avançar em nossa discussão, retraçaremos brevemente a tese
freudiana relativa à constituição da feminilidade. Como sabemos, para
Freud o desejo de ter um filho é o último passo da complicada trajetória
psicossexual da menina. Ao longo de seus trabalhos tratando
explicitamente da questão da vida sexual, desde os “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade” (1905), até o último trabalho sobre o tema, sua
conferência “A feminilidade” (1933), ele se esforçará, não sem
dificuldade, em descrever a trajetória feminina no que ela difere da
masculina. Esforço considerável, já que a diferença é tratada com
referência a um único referente, o falo. Assim, nos “Três ensaios” (1905),
Freud aponta como o primeiro grande enigma a ser enfrentado pela
criança, em relação à sexualidade, ou seja, a pergunta sobre o nascimento
dos bebês, o que se manterá ainda no texto “Sobre as teorias sexuais das
gravidez ou já nascida”.
85
crianças” (1908). Mas já em “A organização genital infantil” (1923b),
texto que Freud indica como devendo ser intercalado dentro da teoria da
sexualidade, a questão da diferença de sexos toma o primeiro plano, e o
primado do falo é claramente colocado, passando a ser a organização da
sexualidade referida a um único sexo, o masculino. Em “A dissolução do
complexo de Édipo” (1924) Freud defronta-se com o lado “obscuro” do
sexo feminino, e então descreve o deslizamento que se dará ao longo da
linha da equação simbólica pênis-bebê, até o desejo de receber do pai um
bebê como presente. Posteriormente, a questão do trabalho psíquico a ser
feito pela menina será tratada em detalhes em “Algumas conseqüências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925), em que Freud
tornará mais precisas as diferenças no desenvolvimento psicossexual de
meninos e meninas. Esse artigo vem na esteira de “O ego e o id” (1923a),
no qual ele expõe a finalização do Édipo. A tese central do artigo de 1925
é a de que a menina precisa fazer um duplo movimento, ao mesmo tempo
uma mudança de objeto, da ligação com a mãe para a ligação com o pai, e
uma transposição do erotismo do clitóris para a vagina. Aqui Freud
descreve o surgimento na menina da inveja do pênis, concomitantemente
ao seu ressentimento em relação à mãe, que, acusada de tê-la privado de
satisfações de várias naturezas (pela restrição da amamentação, pela
repressão da masturbação clitoridiana, pelo interesse por outras crianças),
é sobretudo responsabilizada por tê-la privado do pênis, por tê-la “feito
nascer mulher” (Freud, 1931). É a inveja do pênis, e a constatação da
inferioridade de seu órgão erógeno, o clitóris, fazendo com que a menina
abandone a masturbação clitoridiana, e mais tarde, “(...) abandonando seu
desejo de um pênis coloca em seu lugar o desejo de um filho; com esse fim
em vista, toma o pai como objeto de amor” (Freud, 1925, p. 318).
86
Freud prossegue em seu esforço de descrever os processos
psicossexuais femininos no artigo “A sexualidade feminina” (1931), no
qual afirma que alguns fatos clínicos chamaram sua atenção, sendo um
deles a constatação de que quando o vínculo da mulher com o pai era
particularmente intenso, a análise mostrava ter havido uma ligação da
mesma forma intensa e apaixonada com a mãe. Com se a ligação com o
pai fosse um sucedâneo da relação primeira da menina com a mãe, cuja
duração havia sido subestimada.
Assim sendo, a fase pré-edipiana nas mulheres obtém uma
importância que até agora não lhe havíamos atribuído.
Como esta fase permite todas as fixações e todos os
recalcamentos aos quais nós relacionamos a origem das
neuroses, parece necessário reconsiderar a universalidade
da tese segundo a qual o complexo de Édipo é o núcleo
das neuroses ( p. 260).
A partir dessas constatações clínicas, Freud propõe ampliar o
conteúdo do complexo de Édipo para incluir as relações da criança com
ambos os pais, e no caso da menina afirmar que ela só atinge o complexo
de Édipo positivo depois de ter superado um período anterior, governado
pelo complexo negativo. E ele ressalta a força do recalcamento que atinge
essa primeira relação mãe-filha, afirmando:
(...) Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me
parecia tão difícil de apreender na análise – tão esmaecido
pelo tempo, e tão obscuro e quase impossível de
revivificar – que era como se houvesse sucumbido a um
recalcamento especialmente inexorável (p. 260-261;
grifos meus).
O último artigo de Freud sobre o tema, a Conferência XXXIII
intitulada “A feminilidade” (1933), trata da natureza das relações
87
libidinais da menina para com sua mãe, que persistem através de todas as
três fases da sexualidade infantil, e se expressam por desejos orais, sádico-
anais e fálicos, representados por impulsos ativos e passivos. São também,
segundo Freud, completamente ambivalentes, possuindo tanto uma
natureza carinhosa, como hostil e agressiva. A mãe, muitas vezes acusada
por mulheres em análise de ter sido a sedutora da criança, foi realmente
quem, por suas atividades de cuidado corporal, inevitavelmente estimulou
e talvez até despertou, pela primeira vez, sensações prazerosas nos
genitais da menina. Ao descrever os fatores que levam a menina a afastar-
se da mãe, Freud (1933) aponta para a hostilidade motivada por uma
longa lista de queixas, mas sobretudo colorida pela ambivalência das
primeiras relações de objeto, já que
(...) as exigências de amor de uma criança são ilimitadas;
exigem exclusividade e não toleram partilha, (...) e uma
poderosa tendência à agressividade está sempre presente
ao lado de um amor intenso, e quanto mais profundamente
uma criança ama seu objeto, mais sensível se torna aos
desapontamentos e frustrações provenientes desse objeto.
(p. 152-153)
E na conclusão desse texto, é novamente apresentada sua tese
central sobre a sexualidade feminina, segunda a qual
(...) o desejo que leva a menina a voltar-se para seu
pai é, sem dúvida, originalmente o desejo de possuir o
pênis que a mãe lhe recusou e que agora espera obter de
seu pai. No entanto, a situação feminina só se estabelece
se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um
bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis,
consoante uma primitiva equivalência simbólica.(p. 157-
158)
88
E Freud considera que o desejo de maternidade anterior da menina,
expresso em relação à mãe,
(...) não era de fato expressão de sua feminilidade, mas
serviu como identificação com sua mãe, com a intenção
de substituir a passividade pela atividade. Ela estava
desempenhando o papel de sua mãe, e a boneca ela era
própria, a menina (...).Não é senão com o surgimento do
desejo de ter um pênis que a boneca-bebê se torna um
bebê obtido de seu pai, e de acordo com isso o objetivo de
mais intenso desejo feminino.(p. 158).
A feminilidade é definida aqui por Freud como relacionada com o
objeto de amor – o pai – excluindo qualquer relação da construção da
feminilidade com o processo de identificação com a mãe.
Discussão crítica da tese freudiana
Vários foram os autores que discordaram da tese freudiana sobre a
sexualidade feminina, a começar por alguns de seus contemporâneos,
como Ernest Jones e Karen Horney, e, mais recentemente, outros autores
de cujas críticas trataremos a seguir. Pelo estudo das questões da filiação e
da maternidade, um dos pontos centrais da sexualidade feminina, alguns
deles buscam contribuir com novos dados que Freud esperava da ciência,
como ele afirma ao final do texto sobre a feminilidade. Senão, teremos de
contar com os poetas, como Freud sugere a seus leitores, para que nos
esclareçam sobre os enigmas que nos ocupam.
Jacques André (2003), em seu texto “O império do mesmo”,
apresenta alguns comentários à tese freudiana que trazem pontos
89
interessantes para o debate. Em primeiro lugar, após a dedução de que a
partir da teoria freudiana a decepção para a mãe com o nascimento de uma
filha seria inevitável, isso levaria necessariamente à instauração na menina
de um exato reflexo da posição materna, com a inveja do sexo que ela não
tem e a sua conseqüente autodesvalorização. E Jacques André surpreende-
se com o fato de Freud não ter estabelecido nenhuma relação entre essas
duas dinâmicas inconscientes, da mãe e da filha. Considerando que não
vale a pena entrar num debate ideológico em relação à concepção
freudiana, Jacques André constata a evidência clínica, nas análises de
mulheres, dos fantasmas derivados do complexo de castração para
afirmar, no entanto, que o primado fálico é uma teoria sexual infantil, e é
como tal que precisa ser tratada na cura analítica. Segundo ele, é parte de
sua exigência imaginária o fato dessa teoria se fazer passar por verdadeira.
E considera que o debate torna-se sério quando se desliza, sub-
repticiamente, de uma teoria sexual infantil para a teoria psicanalítica ela
mesma. Assim, diz Jacques André (2003) “(...) que a inveja do pênis seja
descrita como o signo sob o qual se coloca o conjunto da
psicossexualidade feminina é claramente discutível”. (p. 15).
Tendo como eixo central a referência ao inconsciente, a questão
que se coloca o que faz a diferença dos sexos? – deveria ser respondida
para além das duas únicas respostas, fálica e maternal, pois ambas são por
essência simplificadoras, ou ficam presas à dualidade: ter ou não ter/parir
ou não. Nos dois casos, “(...) nenhuma diferença dos sexos, mas um sexo
que faz a diferença. Fantasia contra fantasia, falocentrismo contra
ginocentrismo. O que se apaga, se recalca, nesse tipo de enunciado, é a
alteridade de um sexo pelo outro”( p. 16).
90
Jacques André (2003) ressalta, aliás, que na tese freudiana algo
dessa alteridade é conservado, na medida em que Freud sustenta sempre
uma assimetria entre as posições masculina e feminina. Continuando com
sua argumentação, ele afirma que
(...)a precisão é importante porque ela remete à lógica
binária, qualquer que seja ela, fálica ou da procriação, à
elaboração secundária de um requisito psíquico
inaceitável, à uma tentativa de reduzir o outro ao mesmo –
que se tenha ou não. Falocentrismo com ginocentrismo
são simbolizações tardias, duas maneiras, homogêneas ao
processo do conhecimento, de trazer o desconhecido ao
conhecido, de transformar, seguindo o recalcamento, o
outro do sexo em um simples negativo. (p. 16)
Uma outra autora, Sylvie Faure-Pragier, discute a concepção
freudiana da sexualidade feminina de outro ponto de vista. Trabalhando
em sua clínica com mulheres que denomina infecundas, sofrendo de uma
“inconcepção”, (forma de esterilidade sem causa orgânica definida) ela
propõe que para muitas dessas pacientes a mudança de objeto, da mãe
para o pai, não pôde ser efetuada, em razão da ausência do interesse
materno pelo pai, figura enfraquecida e pouco investida. Assim Faure-
Pragier considera a hipótese anatômica que Freud propõe para justificar o
afastamento da menina da mãe, e a busca do pai, como sendo uma
negação da cena primitiva por meio de uma teoria sexual infantil
masculina.
Não é a ausência do pênis que provoca a separação com a
mãe castrada, mas o amor desta por um terceiro, o pai,
habitualmente. Quando o fantasma da cena primitiva não
se instaura, vemos persistir um laço fusional mãe-filha,
91
privando esta última do espaço necessário para conceber
uma criança como uma obra. (p. 74-75)
É assim o apontamento pela mãe de um terceiro que se mostrará
indispensável para a constituição do Édipo da menina, permitindo-lhe
aceitar a passividade requerida para o desenvolvimento do fantasma,
condição necessária para que tenha lugar qualquer forma de concepção.
Vemos assim que, no que tange à problemática do desejo de ser
mãe, destino final e resolução da trajetória feminina, como afirma Freud, e
sua possível realização em ato de gravidez, é preciso levar em conta a
relação primordial com a mãe da origem, assim como a dinâmica
particular da triangulação mãe-filha-pai.
A relação da filha com a mãe pré-edipiana, e suas
conseqüências para o destino da feminilidade
A questão da fusão/diferenciação entre mãe e filha não está nunca
ausente de um conflito psíquico relativo à esterilidade ou à concepção.
Freud, ele mesmo, parece surpreender-se com a força desse laço
primordial, como deixa claro nos parágrafos acima mencionados de seu
texto sobre a feminilidade, tanto quando se refere à “força inexorável do
recalcamento” que recobre as lembranças desses primeiros anos da
infância, como quando constata que restam presentes na relação entre a
filha e o pai muitas das características da relação inicial com a mãe,
relação essa que assegura a base sobre a qual a menina fundamenta suas
futuras relações de objeto.
92
Assim, o risco desse retorno do laço primeiro com a mãe parece
permanecer como uma sombra no psiquismo feminino. Para prosseguir em
sua trajetória edipiana a menina precisa renunciar a esse primeiro objeto
de amor, a essa primeira mãe dos cuidados e também da sedução. No
entanto, o infantil que sobrevive na mulher terá de lidar sempre com um
estado enlutado. Pois a menina, como qualquer um, “não abandona
facilmente uma posição libidinal, mesmo quando um substituto já se
apresenta” (Freud,1917, p. 276-277) tanto mais que o luto do apego à mãe
precisa ser feito muito cedo, antes da entrada no porto mais seguro da
situação edipiana. Então, para fazê-lo não resta outra forma à menina do
que se identificar com a mãe, de dentro. A fórmula proposta por Freud
(1931) é a de que
(...) quando se perde um ente querido, a reação mais
natural é a de se identificar a ele, de substituí-lo, se
podemos dizer, de dentro. É esse o mecanismo que a
menina utiliza. Ela pode substituir o apego por uma
identificação, coloca-se no lugar da mãe como ela sempre
faz nos seus jogos.(p. 66).
Mas será que essa identificação de dentro não constituirá um ponto
frágil na construção da trajetória da menina em direção à assunção de sua
feminilidade? (Maugendre, 1992). Para essa autora, o complexo materno
representa a encruzilhada à qual a mulher está permanentemente
convocada a voltar. É como se o efeito do recalcamento não fosse
suficiente para conter eficazmente a força desse laço, uma vez que a
ligação com a mãe traz a marca do luto, que deixa sempre aberto o risco
de um retorno. Essa identificação traz para a menina o testemunho da
renúncia e também da rejeição a esse primeiro objeto de amor, tornando-
se a marca do recalcamento. Ao contrário, a revivescência se insurge
93
contra isso, e busca perpetuar o laço estabelecido com a primeira sedutora,
e por aí prepara a volta às primeiras crenças ligadas a essa imagem.
E a revivescência, que recusa o luto e a perda, traz de volta a
inquietante estranheza. Citando Schelling, Freud (1986) diz: “(...)
qualificamos como umheimlich tudo o que deveria ficar em segredo, na
sombra, mas que se mostrou” (p. 221).
Freud (1986) introduz sua reflexão a respeito do sentimento de
inquietante estranheza, para a qual aponta duas causas possíveis: “A
inquietante estranheza se constitui quando complexos infantis recalcados
são reanimados por uma impressão, ou quando convicções primitivas
ultrapassadas parecem novamente confirmadas” (p. 258).
Nem sempre a distinção é clara entre um e outro desses termos,
mas a idéia da inquietante estranheza nos introduz na experiência da
mulher na gravidez.
O estado de gravidez e a revivescência do primeiro laço mãe-
filha
Por duas vias podemos pensar no tempo da gravidez como
favorecendo o ressurgimento das vivências da primeira relação mãe-filha.
De um lado pelas alterações que se apresentam no psiquismo materno
durante esse período, com um certo enfraquecimento das censuras e das
defesas habituais, caracterizando um estado de maior permeabilidade
psíquica. É o que Bydlowski (1992) chama de transparência psíquica da
mulher grávida, com um enfraquecimento das resistências e um sobre-
investimento da história pessoal e um retorno das vivências infantis.
94
Por outro, o feto, metáfora do objeto interno, apresenta uma dupla
valência, narcísica e objetal, e a esse título suscita toda uma série de
lembranças e angústias relativas ao estranho familiar. Com seu duplo
status, presente no interior do corpo da mãe e em seu fantasma, mas
ausente da realidade visível, o bebê é um objeto eminentemente narcísico,
que existe sem existir. Está um jogo, em torno do bebê, uma dialética
típica da virtualização (Levy apudCoelho J., 2000), que é a dialética da
objetivação da interioridade e da subjetivação da exterioridade. Essa
peculiar situação do bebê no interior da mãe - ainda parte dela e de seu
corpo, mas objeto de projeções e de fantasias - favorece uma indistinção
entre um e outro, e produz efeitos de fusão e de indiferenciação que
podem ser angustiantes para a mulher e favorecem o ressurgimento do
sentimento de inquietante estranheza. Por outro lado, Cramer (1999)
considera que no tempo da gestação a mulher pode se sentir habitada por
sua própria mãe, ou por parte dela. A gravidez, significando a tomada de
possessão por um corpo estrangeiro real do interior do corpo e do espaço
psíquico próprio, favorece o surgimento de angústias primitivas que
podem se situar no registro da oralidade, com a fantasia de um engolindo
o outro. Assim, no limite, a mãe engoliria a criança e a tornaria autista, ou
a criança engoliria o espaço psíquico da mãe que se veria assim destruída.
A gravidez, nesse reencontro com a mãe das origens, reativaria essa
primeira relação sob a forma de uma identificação com a mãe. É certo que
a ternura inicial das primeiras trocas renasce aqui, mas junto com ela
outras moções mais hostis são ressuscitadas. A loucura materna normal
traz de volta também antigos ferimentos narcísicos, traumatismos, lutos e
a herança transgeracional, tornados mais acessíveis em razão do
95
enfraquecimento do recalque. Abrindo uma janela maior sobre o
inconsciente, os percalços da relação mãe-filha são assim desvelados. É
como se a filha, tornando-se mãe, revivesse de uma forma invertida seu
laço com sua mãe, no sentido contrário da dinâmica que a havia
conduzido em direção ao pai. O investimento narcisista da gravidez,
centrado sobre o corpo, contribui para esse retorno às origens, ao arcaico,
à experiência pela mãe do seu próprio vivido como bebê.
Para Monique Bydlowski (1992) é somente por ocasião da primeira
gravidez que se encerra o período de adolescência da menina, e é nessa
ocasião que é possível para a mulher, deixando de lado a relação com a
mãe rival edipiana da adolescência, reencontrar a mãe da ternura e dos
primeiros cuidados. Essa autora considera que é preciso que esse
reencontro se dê com a imagem de uma mãe enfraquecida, ela mesma já
incapaz de procriar, para que a gestação da filha transcorra sob o signo de
uma dádiva simbólica a essa mãe, vista numa posição de fraqueza e até de
dependência da filha. Quando tais condições não se reúnem, vários
entraves se colocam tanto para a própria concepção como para a
experiência mesma da gestação. Ela enumera quatro condições para que a
maternidade se dê: o laço com a mãe da origem, o desejo de realização
fálica, o desejo incestuoso, com a representação da criança desejada do
pai, e, por fim, o fruto da relação atual com um homem presente na vida
da mulher. Para além da equação simbólica da criança como realização de
um voto fálico, a força do laço originário com a mãe da fase pré-edipiana
é um ingrediente necessário à filiação feminina. É por esse laço que a
maternidade poderá inaugurar um reencontro com o objeto perdido e
poder á trazer de volta a lembrança de um passado nostálgico.
96
O modelo melancólico para entendimento do laço mãe-bebê
O reconhecimento da força do laço mãe-filha leva-nos a dar maior
destaque ao modelo melancólico do funcionamento psíquico, como, aliás,
também propõe Lina Balestrière (2003) em seu texto “Entre mãe e filha:
histeria ou melancolia?”. Até então temos usado o modelo da histeria,
fundador da primeira tópica do aparelho psíquico e situado sob o ângulo
do desejo e do recalcamento, para descrever os mecanismos em jogo nas
questões da feminilidade e da maternidade. No entanto, como vimos
acima, o laço inicial da menina com a mãe envolve a incorporação, a
identificação, e o trabalho de luto para dele se desligar. Por outro lado, o
bebê sendo para a mãe um objeto investido narcisicamente, o modelo
melancólico torna-se muito útil para pensar sobre as primeiras relações de
objeto.
Os dois recortes clínicos acima expostos nos conduzem a uma
elaboração a partir do modelo da melancolia. Assim, no sonho, trata-se
evidentemente de um trabalho de luto relativo a um objeto narcisicamente
investido, sendo o bebê em questão uma representação da própria
paciente, com a marca do processo identificatório. Na cena do jogo
infantil, a tonalidade é mais paranóide, a casa (corpo) das mulheres
estando ameaçada por perigos externos, perigos esses que são a
representação de sua própria hostilidade contra a mãe, projetada no
ambiente externo ameaçador. E o bebê, objeto precioso, é muito bem
guardado nesse interior, ao abrigo dos outros. A ameaça externa aqui
indica a fragilidade da representação do eu, ainda às voltas com o luto
dessa primeira relação materna, que impede para essa menina, por
enquanto, a aproximação do mundo dos homens, do pai.
97
Lina Balestriere, em seu trabalho já mencionado, propõe que ao
tratar das questões relativas à maternidade e a todos os seus percalços,
façamos uso não somente do modelo histérico, prevalente como
instrumento da psicanálise para a compreensão desses fenômenos, mas
que possamos também nos servir do modelo da melancolia. O modelo
histérico do funcionamento mental, na fundação da própria psicanálise,
refere-se às noções de desejo, fantasma, inconsciente e recalcamento.
A esse título, ele é de grande utilidade para pensar a respeito da
problemática do desejo de ter um filho, suas variações e seus entraves.
Mas chega um momento em que Freud propõe um outro modelo
metapsicológico, que será o fundador da segunda tópica, e isso para dar
conta de impasses clínicos, entre os quais a reação terapêutica negativa e a
força dos sentimentos inconscientes de culpabilidade.
Aqui não se trata mais de desejo, mas de perda; mais de
recalcamento, mas de introjeção, incorporação,
identificação; mais de conflitos entre o eu e seus objetos
sexuais, mas no interior do eu ele mesmo, doravante
dividido em eu e supereu. (Balestrière, 2003, p. 88).
E ao oferecer uma descrição do processo de deslizamento do
registro do ter para o ser, o modelo melancólico nos é extremamente útil
justamente para pensar acerca da gestação, onde esses dois registros são
confundidos, na confusão identificatória inicial da mãe com seu bebê, até
que ela possa pensá-lo, no melhor dos casos, como um outro, destacado e
diferente dela mesma. Pensar nesses termos nos permite colocar a questão
do luto, do processo pelo qual um objeto pode ser deixado, e do destino
desse objeto incorporado eventualmente ao eu, alterando-o. O bebê, no
ventre materno, começa incorporado para ir progressivamente se
98
destacando, se desligando, na construção de um lugar próprio a ele dentro
do espaço do psiquismo materno.
O cenário do nascimento configura sempre a experiência da perda
de um objeto, o feto, objeto ainda virtual, meio-eu, meio-outro, situado em
um entre dois do investimento narcísico e do investimento objetal, objeto
que poderíamos considerar potencialmente melancólico, já que seu
investimento se deu sob a égide do narcisismo.
Mas, lembra-nos Lina Balestrière, referindo-se a Freud, em “O ego
e o id” (1923) “(...) as coisas são ainda mais complexas, pois o eu ele
mesmo é um “precipitado de investimentos de objetos abandonados” ( p.
88)
E a interrogação que podemos propor concerne, no caso da
gravidez, ao destino desse “precipitado de objetos abandonados” da mãe, e
à maneira como tais objetos farão marca nesse corpo nascente do bebê,
ainda tão parte dela mesma e construído, inevitavelmente, a partir de seu
próprio narcisismo. Assim, além de projetar sobre o bebê seu próprio
narcisismo infantil, a mãe projeta também, à sua revelia, partes infantis
dela mesma ou partes das imagos parentais negativas, conflituais. É o que
Palácio-Espasa e J.Manzano, no livro Os cenários narcisicos da
parentalidade nomeiam como a sombra dos pais projetada sobre a criança
e a sombra dos objetos dos pais projetada sobre a criança.
O bebê representa uma superfície privilegiada para a recepção
desses tipos de projeções parentais, necessárias de todo o modo para sua
própria constituição. No caso de bebê do sexo feminino, há uma
facilitação dessa passagem entre mãe e bebê, já que estamos no registro do
semelhante, do idêntico. Dois movimentos maternos são possíveis nessa
configuração: a identificação do bebê menina com a avó materna, em seus
99
aspectos positivos e negativos, com uma contra-identificação da mãe à
menina que ela mesma foi; ou, então, a identificação do bebê com sua
própria imagem infantil, com uma contra-identificação à sua própria mãe.
Outros arranjos são também possíveis, e vemos como, ao longo do
desenvolvimento da gravidez, eles podem flutuar e se intercambiar, o que
dá uma melhor perspectiva ao trabalho de constituição do bebê enquanto
tal, do que quando nos confrontamos com projeções e identificações
fixadas numa só modalidade.
O que queremos destacar aqui é que está em jogo nos processos de
maternalidade esse duplo movimento, narcísico e objetal, que supõe tanto
o surgimento de angústias edipianas como angústias de abandono cujos
mecanismos se referem, justamente, ao modelo de compreensão dos
processos de luto e melancolia.
A sombra das primeiras relações com a mãe reapresenta-se, muitas
vezes, quando a menina, agora mulher, prepara-se para ser mãe. Sombra
que, segundo Freud, resta inacessível, tão violento é o recalcamento que
atinge essa etapa da vida. Mas em razão das particularidades da
experiência da gravidez, em que a facilitação da emergência dos
guardados infantis abre portas e janelas internas, permitindo ir ao encontro
de cenários inesperados, as sombras do passado se reapresentam e fazem
irrupção na intimidade do bebê. Para os pais, tratar-se-á de negociar
permanentemente com seus próprios investimentos internos parentais e
com as insatisfações dos bebês que eles próprios foram. Suas fantasias,
necessárias, irão marcar para o melhor e para o pior a relação com sua
criança. (Palácio-Espasa e Manzano, 1999).
O investimento do bebê é assim resultado, em parte, dos restos dos
objetos desinvestidos, odiados, enterrados, perdidos, dos restos das antigas
100
relações. Mas também, e aí reside o paradoxo, o bebê se constitui, no
imaginário materno, como representante do novo, do que poderá vir
reparar, refazer, retomar para melhor aquilo que antes falhou. Bebê
esperado para vir obturar as falhas narcísicas parentais, o que estará
especialmente em jogo na transmissão da maternalidade de mãe para filha.
No que diz respeito às relações inconscientes de uma filha com sua
mãe, inevitavelmente reatualizadas quando da realização da maternidade
pela filha, os laços ambivalentes de amor e de ódio, com seu rastro de
sentimentos de culpabilidade, far-se-ão presentes no trabalho de luto pela
mulher dessas primeiras relações. Ela precisará se reaproximar dessa mãe
primordial, levada a isso ao mesmo tempo pela identificação com o bebê
que ela carrega, como também pela identificação com sua própria mãe,
para chegar a modificar sua posição subjetiva nessa passagem da posição
filial para a posição materna. Os impasses e os sucessos desse processo
marcarão para a mulher a possibilidade de assumir sua função materna
junto ao bebê que está por vir.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa tomou a clínica da criança como ponto de partida
para, passando pela clínica da maternidade, se voltar para o estudo dos
processos que se dão no tempo antes do nascimento. Talvez sua questão
central possa ser assim formulada: de que maneira aquilo que se antecipa e
se constrói no psiquismo da mãe durante o tempo de espera da criança
marcará sua relação com o filho, e, portanto influenciará a própria
constituição do psiquismo desse novo ser? Esta questão central pode ser
desdobrada em algumas outras.
Uma delas seria: como se estabelece a relação com o bebê antes do
objeto ser real, quando se trata ainda de uma relação de objeto virtual? A
mãe se constitui como mãe daquela criança esperada no movimento
mesmo em que dá vida, dá corpo e cria representações (dá representação)
ao bebê dentro dela. Quais são alguns dos elementos desse processo? Uma
segunda pergunta, decorrente da primeira e intrinsecamente interligada a
ela, seria: em que isso influenciará a estruturação psíquica do bebê? Por
quais vias se transmitem os fantasmas maternos ao infans em constituição
de subjetividade? E ainda uma terceira pergunta, como conseqüência das
duas anteriores, concerne ao lugar e à função do clínico. A pesquisa
102
interroga a posição do analista nessa clínica que trata do psiquismo
nascente, ao colocar em discussão o trabalho do analista e como este pode
transformar, ou não, essa matéria sobre a qual repousa o psiquismo.
Vou tomar esta seqüência de questões a fim de discuti-las nessas
considerações finais, sabendo, no entanto, que farei um recorte artificial
para efeito da exposição, já que esses três níveis de interrogação são, até
certo ponto, inseparáveis uns dos outros, sabendo também que essa
discussão será parcial e incompleta, cada uma dessas questões podendo
levar a inúmeros desdobramentos que não cabem no escopo deste
trabalho. Porém, é preciso colocar um ponto final, que marca não o
término do meu interesse pela pesquisa, mas delimita um ponto de pausa,
uma etapa necessária para que alguns dos caminhos abertos neste estudo
possam ter prosseguimento em outro momento.
A relação de objeto virtual é esse modo de relação particular entre a
mãe e o bebê em seu ventre, processo dinâmico e adaptativo, que envolve
o conjunto dos comportamentos, afetos e representações em torno do
embrião e do feto. A relação de objeto virtual representaria, assim, a
matriz de todo o desenrolar posterior da relação de objeto, num processo
indo de um investimento narcísico extremo (tendendo a um grau zero do
objetal) até a emergência progressiva de um investimento (pré)objetal
(Missonier, 2004).
Nos diferentes estudos do período pré-natal parece haver uma
tendência a assimilar essa criança virtual à encarnação do narcisismo
materno durante todo o tempo da gravidez, tendência que não leva em
conta a dinâmica evolutiva dos processos psíquicos em curso durante esse
período. O acompanhamento de mães durante a gestação, quando não
tomadas por processos psicopatológicos que fixam uma única modalidade
103
de relação narcísica ao “bebê de dentro”, tem apontado para uma
construção progressiva, preparatória e antecipatória do reconhecimento da
alteridade do bebê. Essa construção se faz ao longo de um trabalho
psíquico contínuo, mesmo se marcado por alternâncias e por momentos de
crise. A gestação seria, então, o tempo em que se dá esse trabalho de
preparação da relação objetal.
Essa preparação envolve, a nosso ver, pelo menos três dimensões: o
tempo, o espaço e a identificação, todas elas atravessadas por alterações
na estruturação narcísica da mulher. Com efeito, como discutido no
capítulo II, a duração da gravidez estabelece uma temporalidade que
permite à gestante percorrer os processos de transformação em seu
psiquismo, paralelamente às mudanças corporais e ao crescimento do bebê
em seu ventre. Em outra dimensão, essas mesmas mudanças corporais
produzem alterações marcadas no Eu corporal, e deslocam o sentimento
de si e o de seu próprio espaço psíquico, que se alteram para conter um
outro ser dentro do corpo e dentro da vida. Processos que envolvem as
alterações no narcisismo materno, estabelecendo as possibilidades de um
narcisismo englobante ou excludente, como propusemos denominar essas
duas alternativas da posição narcísica materna em relação ao bebê.
E como dinâmica intrapsíquica fundamental, influenciando todo o
rumo desse processo de maternalização da mulher, encontram-se os
percalços da história edipica e, sobretudo, os percalços da relação da
menina com a mãe dos primeiros tempos. Como desenvolvido no capítulo
VI, o que está em jogo é a experiência de perda, o luto em relação a
esse primeiro objeto de amor – por decepção, por rivalidade – e a maneira
como isso se reapresenta na gestação, pois aqui se trata, para a mulher, de
fazer apelo no interior de si a esse registro arcaico do objeto materno
104
original, para beber nessa fonte a base para a construção de sua própria
maternalidade.
Em outras palavras, nos processos psíquicos da gestação acontece
um duplo movimento, narcisico e objetal, que supõe tanto o surgimento de
angústias edipianas como de angústias de abandono cujos mecanismos se
referem, justamente, ao modelo de compreensão dos processos de luto e
melancolia. O cenário do nascimento configura sempre a experiência da
perda de um objeto, o feto, objeto ainda virtual, meio-eu, meio-outro, que
fica situado num “entre-dois” do investimento narcísico e do investimento
objetal, objeto que poderíamos considerar potencialmente melancólico, já
que seu investimento se deu sob a égide do narcisismo.
Será preciso, à mãe, renunciar à sua posse da mãe de origem como
objeto de amor, para se identificar a ela e incorporá-la como referência
para sua própria função maternante com o bebê. Isso leva a postular a
necessidade do lugar do terceiro - no melhor dos casos presente desde o
início na relação mãe-bebê - para permitir o descolamento gradual dessa
relação primeira, e a instauração de um espaço entre essas duas mulheres
– uma distância mínima necessária que permita à filha constituir-se como
uma outra mulher, uma outra mãe.
Para tratar da segunda questão, referente à estruturação inicial do
psiquismo infantil, faz-se necessária uma observação a respeito do
narcisismo primário. Sabemos que o narcisismo, conceito-limite,
comporta inúmeros desenvolvimentos e interpretações, após sua
conceituação primeira por Freud, em 1914. Em particular, o narcisismo
primário tem sido considerado, por alguns autores, um construto teórico
freudiano, bem como seus outros conceitos no registro do “primário”.
Assim, se o narcisismo primário do bebê é constituído a partir do
105
narcisismo secundário parental, cabe discutir a tese freudiana de um
primeiro período rigorosamente anobjetal no psiquismo infantil, pois essa
tese freudiana talvez se refira a um tempo mítico.
Discordando da proposição freudiana da anobjetalidade, Jean-
Michel Petot (1992) afirma que a mãe é, tal como Winnicott a entendeu,
“o primeiro espelho da criança”, e isto desde as primeiras horas de vida. A
relação objetal mais arcaica já inclui a alienação, fundadora do ego, do
sujeito na e através da imagem do outro, tal como descreveu Lacan numa
etapa ulterior, com o estágio do espelho. Neste sentido, afirma Petot,
(...) não existe lugar para a oposição entre a tese da
precocidade das relações de objeto e a de um estágio
narcísico primário: o narcisismo primário confunde-se
com a primeira relação de objeto, uma vez que o objeto
primário não é distinto do ego, do qual forma o núcleo. (p.
186)
Tal concepção afasta-se da tese freudiana de um estágio inicial
totalmente anobjetal e leva à proposição de um estágio narcísico primário,
que ao invés de anobjetal seria a-dualista, pois ainda não haveria para o
bebê a distinção entre ego e não-ego, entre si e o outro. Mesmo no
narcisismo primário se dá a passagem pelo outro, outro que inicialmente
não é percebido como tal pelo bebê.
Como se dá a passagem do psiquismo nascente, no qual si e o outro
estão inicialmente confundidos, para chegar ao aparelho psíquico
propriamente dito, verdadeira máquina para dar forma e sentido, para
representar e para brincar com as representações?
A constituição do aparelho psíquico parece atender a uma exigência
posta ao bebê para lidar com a descontinuidade da vida após o
106
nascimento. Entre a vida antes e depois do nascimento, coloca-se a
exigência de um trabalho para fazer face às mudanças na experiência de
continuidade experimentada no útero materno. Mesmo supondo que o
corte entre a vida intra-uterina e a vida aérea não seja tão absoluto, e que
ao nascer o bebê traz consigo memórias que lhe permitem um
reconhecimento mínimo do ambiente materno, há mudanças significativas
com as quais ele tem de se haver.
Com efeito, ele tem de passar muito rapidamente, no plano
somático e sensorial, da relativa continuidade intra-uterina à
descontinuidade dos ritmos que ocorrem depois do nascimento (ritmos
biológicos, mas também ritmos alimentares, ritmo dos cuidados,
alternância dia e noite, escansão da linguagem). O trabalho psíquico a ser
desenvolvido pelo bebê é aquele que permitirá a ele fazer face à
descontinuidade da relação com o objeto externo, por meio dos processos
de simbolização, da conquista da capacidade de pensar o objeto em sua
ausência.
É dessa movimentação do desenvolvimento inicial que emerge
pouco a pouco o aparelho psíquico, cuja função primeira talvez seja
justamente a de vir obturar as descontinuidades da relação com a realidade
externa, pela instalação progressiva de uma continuidade interna, do
sentimento contínuo de existir.
O psiquismo se constitui no encontro do corpo com a relação.
Bernard Golse (2003) formula essa idéia de outra maneira, postulando
uma dupla ancoragem corporal e interativa dos processos precoces de
simbolização e de representação. Pensamos que a ancoragem corporal
remete aos conceitos do Eu corporal de Freud, do Eu-pele de Anzieu ou
da Pele-psíquica de Bick. A ancoragem interativa ou relacional remete à
107
passagem obrigatória pelo outro para que se dê o nascimento psíquico, e
nos faz relembrar tanto a noção de revêrie materna, de Bion, como
também os estudos da etologia, que descrevem o bebê com suas
capacidades sensoriais, mas cujo estado de prematuridade motora o
coloca totalmente dependente dos cuidados maternos.
E pensamos que o conceito de Stern (2000) de harmonização
afetiva descreve um processo que se situa justamente nessa junção entre o
corpo e a relação. Chamado por esse autor de affectif attunement, a
escolha da palavra attunement indica a referência musical e aponta para
um afinamento ritmado entre a mãe e o bebê. Nas palavras de Stern, a
harmonização afetiva é
(...) um ato de intersubjetividade no qual a mãe responde
a uma expressão afetiva do bebê remanejando-a de uma
outra forma, e re-apresentando-a de volta ao bebê de tal
modo que ela mostra a ele que compartilhou sua
experiência subjetiva interna.(p. 12-13)
Stern diz ter desenvolvido esse conceito para tentar responder a um
problema central na relação mãe-bebê: como uma mãe consegue fundar o
compartilhar intersubjetivo de uma experiência afetiva expressa pelo
bebê? Como fazê-lo sem usar a linguagem verbal que a criança ainda não
compreende? Trata-se, para a mãe, de comunicar ao bebê que percebeu
seu comportamento e que esse teve ressonâncias afetivas para ela. Para
superar essa dificuldade, a mãe responderá ao bebê por meio de uma
imitação modificada, que deve reproduzir as mesmas propriedades da
expressão do bebê, especialmente a intensidade, a marcação no tempo
(duração, medida, ritmo) e a forma, respeitando assim uma homologia de
108
estruturas entre sinais e respostas. Freqüentemente a mãe consegue fazê-lo
transpondo a manifestação do bebê para uma outra modalidade sensorial,
utilizando a capacidade precoce do bebê de transmodalidade, que o faz
transpor livremente as modalidades de percepção de uma para outra
(visual, tátil, auditiva etc.).
A harmonização afetiva entre mãe e bebê, ao invés de manter o
foco sobre o comportamento externo, desloca a atenção para o interior,
para a qualidade do sentimento compartilhado, e é uma parte central dos
processos que constroem, na criança, a experiência da intersubjetividade.
É assim que o bebê chega a reconhecer o estado emocional da mãe, seu
estilo interativo e percebe as mínimas mudanças nesse estilo. O
importante é que a estrutura da resposta da mãe seja análoga à do bebê,
porém levemente diferida no tempo e no ritmo. Outro ponto importante a
notar é que a percepção, pelo bebê, de uma mudança no estilo interativo
da mãe abre caminho para a criação do espaço do terceiro.
Esse conceito permite integrar a dimensão fantasmática na análise
das respostas maternas, e principalmente permite compreender como se dá
a passagem dos conteúdos inconscientes maternos para o psiquismo
nascente da criança. Por outro lado, um tal ajustamento sutil, profundo e
inconsciente entre a mãe e o bebê exige que a mãe possa se situar de certa
forma no limite dela mesma, ou melhor, que ela esteja duplamente
orientada: de um lado, ligada ao exterior para poder perceber os sinais
emitidos pelo bebê e, ao mesmo tempo, conectada ao interior dela mesma
graças à identificação regressiva que a recoloca em contato com o bebê
que ela mesma foi.
A harmonização afetiva é uma das formas, nas interações entre a
mãe e o bebê, pela qual se comunicam as fantasias, os desejos, os medos,
109
os limites. A representação na criança deriva do que se passa nas
interações, meio de comunicação entre as fantasias maternas e o corpo da
criança. O estilo da interação da dupla formaria a própria fundação da
constituição do aparelho psíquico e podemos nos perguntar se essa é uma
das vias pelas quais se inscrevem os traços mnêmicos.
Estamos então lidando com nossa segunda interrogação: como se dá
a inscrição do materno no infans, como se introduz o “afeto”, índice da
vida pulsional, no psiquismo infantil?
A concepção de Laplanche do “significante enigmático” que a mãe
representa para o bebê, a partir da assimetria fundamental entre o
psiquismo materno e o psiquismo infantil, pressupõe que esse processo de
transmissão mãe-bebê opera principalmente por meio da identificação
projetiva. Essa primeira organização do inconsciente seria resultante de
uma série de impressões, como imagens visuais ou sonoras, antes da
utilização da linguagem. Podemos pensar nos traços mnêmicos
“representados pela rede de facilitações, ou seja, por uma topografia que
começa a ser desenhada a partir das primeiras experiências com a pessoa
que cuida da criança” (Rudge, 1999, p. 16)
No artigo intitulado “O infantil na metapsicologia”, Ana Maria
Rudge retraça os passos de Freud, desde o “Projeto para uma Psicologia
Científica”, passando pela Carta 52 a Fliess, na conceitualização da
memória e dos registros das primeiras experiências como estruturantes do
psiquismo. Ela propõe, a partir de sua leitura do texto freudiano, que o
papel dos traços mnêmicos das primeiras experiências é o de condição
estruturante do desejo. Eles inscrevem-se no psiquismo como marcas,
modeladas pela repetição e pela magnitude das primeiras experiências,
que irão determinar caminhos preferenciais abertos no psiquismo. No
110
entanto, por resultarem de impressões que se deram quando o psiquismo
ainda não estava estruturado, e provavelmente também por terem
sucumbido à amnésia infantil, os traços mnêmicos não são passíveis de
rememoração. Temos assim uma condição paradoxal, pois são justamente
essas impressões às quais não podemos ter acesso que têm um caráter
compulsório. Freud (apud Rudge, 1999) dirá que “(...) nos primeiros três
ou quatro anos de vida algumas impressões são fixadas, e modos de reagir
ao mundo externo são estabelecidos, que nunca poderão ser privados de
sua importância por experiências posteriores” (p. 28).
Podemos evocar aqui um caso clássico da psiquiatria infantil, em
que foi possível acompanhar por trinta anos a evolução de uma criança
nascida com uma atresia do esôfago, anomalia que impedia a passagem do
alimento da boca para o estômago, e que obrigou o bebê a ser alimentado
por sonda durante os primeiros meses, em posição deitada e sem contato
corporal com a mãe ou com quem cuidava dela. Filmada mais tarde, aos
quatro anos de idade, essa menina é vista brincando com sua boneca, que
ela alimenta da mesma forma como foi alimentada quando bebê. Mais
espantoso ainda, é assim que ela alimentará seus três filhos, dando-lhes a
mamadeira deitados diante dela, sem contato corporal. E, por fim, sua
filha brinca com sua boneca da mesma forma. Temos aqui um testemunho
inegável dessa inscrição precoce e indelével das primeiras experiências
infantis, para aquém de qualquer simbolização no plano da linguagem.
E chegamos, assim, à nossa terceira questão: podemos esperar que
as construções vividas na relação transferencial possam produzir algum
efeito a posteriori sobre essas inscrições primeiras, que em sua essência
mesma parecem ser estruturantes e ter uma função constitutiva do
aparelho psíquico? Retomo aqui a questão que se coloca a cada vez no
111
trabalho clínico, a saber: por quais caminhos deve o analista andar para
favorecer, minimamente que seja, um deslocamento do outro em relação a
seu próprio sintoma? E mais ainda, podemos esperar que a experiência
transferencial seja de tal alcance a ponto de permitir um remanejamento
desses circuitos iniciais, inalcançáveis pela lembrança?
Também, o bebê nasce na fantasia de seus pais muito antes de ser
concebido, e ele continuará a ser parte do imaginário parental até bem
depois do nascimento. Qual é então a esfera de liberdade da criança?
Coloca-se então a questão da clínica dentro desse suposto espaço de
liberdade que existe em cada sujeito, objeto privilegiado do investimento
narcísico de seus pais. Uma parte do narcisismo parental subsiste em cada
um de nós, por toda a vida. Será dentro desse campo, demarcado pelas
amarras da filiação transmitida de geração em geração, que o espaço de
liberdade individual se abre para a escrita do idioma singular de cada um?
112
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