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Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
Luis Vicente Barros Cardoso de Melo
Brincando com bambus e panos:
um espaço de aprendizagem coletiva
São Paulo
2008
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1
Luis Vicente Barros Cardoso de Melo
Brincando com bambus e panos:
um espaço de aprendizagem coletiva
Dissertação apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, para a obtenção do título de
mestre em Artes.
Área de concentração: Artes Visuais
Orientadora: Regina Stela Barcelos
Machado.
São Paulo
2008
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Luis Vicente Barros Cardoso de Melo
Brincando com bambus e panos: um espaço de aprendizagem coletiva
Dissertação apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, para a obtenção do título de
mestre em Artes.
Área de concentração: Artes Visuais
Aprovada em: ________________________________________________
Banca Examinadora
Prof. Dr. _____________________________________________________
Instituição____________________________________________________
Assinatura ___________________________________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________
Instituição____________________________________________________
Assinatura ___________________________________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________
Instituição____________________________________________________
Assinatura ___________________________________________________
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Às crianças da Ladeira da Margarida, que
me colocaram no movimento de novo.
4
Agradecimentos
Agradeço a USP por receber em suas salas de aula uma diversidade de alunos
vindos de diferentes cantos do Brasil, tornando ainda mais rico o aprendizado dentro
dessa universidade.
Agradeço a Regina Machado, minha orientadora, pelo encontro, pelo desafio de
tornar minha escrita tão fluida quanto minha prática, gerando em mim confiança para
contar minha própria história.
Agradeço a Marcela, minha amada e amante, pelas conversas e pelo seu eterno
olhar de menina e sabedoria preta-velha.
Agradeço a Ana Branco, minha madrinha, pelo “empurrão”, por me encorajar a fazer
o mestrado na USP.
Agradeço ao Ripper por me apresentar aos bambus e pela confiança no trabalho
realizado na disciplina de bambu.
Agradeço a Cristina Porto por proporcionar meu encontro com Nathercia Lacerda.
Agradeço a Rosa Araújo Geszti pela indicação do mestrado em Arte-educação na
USP.
Agradeço a Nathercia Lacerda pela sintonia, pela troca de e-mails, pelas conversas
inspiradoras, por seu encanto pelas crianças e seu espírito brincante.
Agradeço a Joana D’Arc pela convivência durante o processo de construção da
Ciranda das Cores.
Agradeço a Lela Vianna e Mariana Dutra pelos risos e pela sincronia durante a
construção da Ciranda das Cores.
Agradeço a Wanda pelo axé colocado na costura da Ciranda das Cores.
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Agradeço a Alexandra Pena por compartilharmos os espaços da brincadeira, das
emões e reflexões.
Agradeço a equipe do Projeto Rede Brincar e Aprender: Isabela, Carla, Alexandra e
Nathercia por colocar corpo e pensamentos em movimento.
Agradeço a minha tia Francesca pela revisão e leitura cuidadosa desse trabalho.
Agradeço a meus pais Vicente e Heloisa, e minha irRenata pelo carinho, pela
motivação, pela amizade e pelo espaço da conversa.
Agradeço a minha vó Sônia pelos aprendizados enquanto costurávamos.
Agradeço ao Mario, Bina, Lucas e Nicolas, meus irmãos de trabalho e fé, por
estarem sempre por perto.
Agradeço ao André pelas aquarelas e por compartilharmos o encanto pelas ondas
do mar.
Agradeço ao Roberto Reveilleau, que com seu trabalho da Técnica de Alexander me
ajudou a ter clareza e direção no trabalho.
Agradeço a Cristina Rizzi pelas observações feitas na banca de qualificação que me
auxiliaram na continuidade do trabalho.
Agradeço a Carla Dias pelas contribuições recebidas para o desenvolvimento do
trabalho.
Agradeço a Lydia Hortélio pelo encontro iluminado em terras bahianas.
Agradeço aos brinquedos e brincadeiras de Lucilene e Adelsin que me encorajaram
a seguir nessa direção.
Agradeço as criaas da Ladeira da Margarida pela brincadeira em liberdade.
6
“Abre a roda tindolelê
Abre a roda tindola
Abre a roda tindole
Tindolelê, tindolalá.
Cantiga de roda recolhida
Por Lydia Hortélio
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Melo, Luis Vicente Barros Cardoso de. Brincando com bambus e panos: um espaço
de aprendizagem coletiva. Dissertação de mestrado, ECA - USP, São Paulo, 2008.
Resumo
O ponto de partida desse trabalho são as práticas da disciplina eletiva Tópicos
Especiais em Design XV Bambu, oferecida aos alunos de graduação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), que tem como foco a utilização
do bambu em construções coletivas.
Esta dissertação investiga as contribuições dos brinquedos para a formação de
um espaço de convivência e aprendizagem, relatando a história de uma pesquisa a
partir de oficinas realizadas com um brinquedo feito de bambus e panos chamado
Ciranda das Cores.
Esse brinquedo foi construído na comunidade do Horto, localizada na Zona Sul
do Rio de Janeiro. A brinquedoteca Volante do Horto é um dos pólos de ação do
Projeto Rede Brincar e Aprender, que tem como objetivo valorizar o brincar no dia
a dia da comunidade contribuindo para a formação solidária e harmoniosa da
criança.
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Melo, Luis Vicente Barros Cardoso de. Playng with bamboo and fabric: a space of
group learning. Master Thesis Post-graduate Program in Arts, ECA - USP, São
Paulo, 2008.
Abstract
The starting point of this work is the practice of an optional class “Especial
Topics in Design XV – Bamboo” offerred to the graduation students of Pontific
Catholic University of Rio de Janeiro (PUC- RIO), which has the focus of using
bamboo in group constructions.
This dissertation investigate the toys contributions to in the formation of
learning and co-living space, reporting the story of a research based in workshops
performed with a toy made with bamboos and fabric called Ciranda das Cores (Circle
of Collors).
This toy was built in a “Horto” community, found in the South Zone of Rio de Janeiro.
The toyplace brinquedoteca Volante do Horto” is one of the main pole of action of
the project Rede Brincar e Aprender (Play and Learn Net), which has the goal of
valorizating the playing in the community day- by- day contributing to the solidary and
harmonious child constitution.
9
Sumário
1. Introdução 12
1.1. A história 15
1.1.1. Os bambus 18
1.2. A história dentro da história 22
1.3. Antes de começar... 25
2. Lugar de vivência, experimentação e trabalho com o brincar 33
2.1. Projeto Rede Brincar e Aprender 34
2.1.1. A rede 35
2.2. A comunidade 36
2.3. Espaços de brincar, a brinquedoteca 41
2.3.1. A brinquedoteca Volante do Horto 43
2.3.2. A dinamizadora 44
2.3.3. A intenção 45
3. A Ciranda das Cores 48
3.1. O brinquedo 49
3.2. Guilherme Augusto e as oficinas 57
3.2.1. As cores 60
3.2.2. A forma 62
4. Espaços de brincar 69
4.1. A lógica dessarrumadora 70
4.2. O espaço de brincar 76
4.3. Retorno 79
5. Conclusão 84
6. Referências bibliogficas 90
10
7. Bibliografia 91
Apêndice 94
A. caderno de registro Ciranda das Cores
11
(Foto 1. Bambuzais.)
12
1. Introdução
Era uma vez um contador de estórias que pertencia a uma linhagem de bardos cuja
tradição consistia em preservar e relatar os contos dos tempos antigos na corte de um certo
rei. Acontece que esse contador sentia-se orgulhoso de sua antiga linhagem, do seu
repertório e do nível de sabedoria de suas estórias, pois essas eram usadas como
indicadoras do presente, registros do passado e faziam alusões às coisas do mundo dos
sentidos bem como às do mundo am das aparências.
Mas havia na corte também, como é natural e útil, outros especialistas de todos os
tipos. Havia chefes militares, cortesãos, conselheiros e embaixadores. Havia engenheiros
habilitados na arte de construir e demolir, homens da religião e de outros tipos de
aprendizagem. Em resumo, havia pessoas de todos os tipos e condições, e cada uma delas
se achava melhor que todas as outras.
Um dia, depois de muita discussão entre estas pessoas valorosas sobre quem seria
mais importante, a única conclusão a que puderam chegar apontava o contador de estórias
como o menos importante, o menos útil, o menos habilitado para qualquer arte conhecida.
A assembléia decidiu, portanto, para iniciar o processo de reduzir o número de
pessoas inúteis á sua volta, eliminar o contador de estórias. Ao mesmo tempo, cada pessoa
pensava consigo mesma: “quando nos livrarmos dele, vamos poder provar que todos os
outros, um de cada vez, também são supérfluos, então ficarei apenas eu como o único
conselheiro do rei”.
Foi nessa situação que uma delegação selecionada de cortesãos dirigiu-se ao
contador de estórias dizendo: “Fomos encarregados por todos os senhores que servem sua
majestade neste reino de informá-lo de que decidimos que, dentre todos os associados da
corte, você é o mais supérfluo. Não vai para a guerra a fim de assegurar a glória do reino ou
para aumentar os domínios de nosso vitorioso monarca. o julga casos, para preservar a
tranqüilidade do Estado. Não trabalha para a serenidade da alma como os chefes religiosos.
Não é bonito como os elegantes cortesãos. Enfim, você não serve para nada!” “Veneráveis
e respeitáveis pavões da sabedoria e pilares da fé!” gritou o contador de estórias “Longe
de mim discordar de qualquer coisa que tenham resolvido, mas como me cabe dizer a
verdade nos negócios da corte, por lealdade à sua majestade, tenho a dizer o seguinte:
existe uma estória antiga e profundamente sábia que prova cabalmente que, longe de ser
desnecessário, o contador de estórias é absolutamente essencial para o bem-estar e o
poder do império. Se me for permitido narrá-la, eu ficaria muito feliz de fazê-lo.”
A delegação não estava exatamente com vontade de ouvi-lo. Mas nesse momento o
rei chamou a todos para saber o que se passava. Quando soube da proposta do contador
de estórias, ordenou que relatasse seu conto sem omitir nenhum detalhe.
E ele começou:
“Pavão da terra! Fonte de sabedoria! Grande majestade e sombra de Allah sobre a
terra! Saiba que uma vez, nos mais remotos tempos, houve um rei, assim como sua
majestade, justo e poderoso, estimado em muitas terras, amado por seu povo e temido por
seus inimigos.
Esse rei tinha três lindas filhas, agradáveis como a lua. Um dia, as três saíram para
um passeio perto do palácio e desapareceram. Buscas extensas foram realizadas, mas não
se encontrou nenhuma pista do seu paradeiro. Depois de muitos dias, o rei ordenou que os
arautos anunciassem: Reverenciáveis doutores da lei e da fé! Leões e tigres de todas as
invencíveis armadas! Implacáveis defensores da ordem, inexoráveis punidores dos
descrentes, reis das artes, do comércio e da indústria! Ouçam e saibam da minha ordem.
Devem escolher representantes entre vocês, dois ou três, que partirão em busca das
princesas e não devem retornar sem elas. Os que conseguirem herdao o reino. Se
falharem, não ousem pôr os pés em nossos domínios, sob pena de serem mortos.
A corte dividiu-se em grupos para eleger os representantes e esses nomearam e
votaram seus deputados até que dois homens foram escolhidos: O emir Al-Jaish, o bebedor
de sangue comandante das armadas invencíveis, e o homem mais sábio daquele lugar, o
primeiro ministro, conhecido como o vizir Al-Wuzurq.
13
O rei falou-lhes pela última vez, e depois eles tocaram a cabeça, o coração e os olhos
murmurando ‘Ouvir é obedecer!’. Em seguida, pularam em seus cavalos e galoparam para
fora do portão do palácio, enquanto as trombetas soavam anunciando sua partida.
Eles viajaram, encontraram muitas dificuldades e, em uma palavra, fizeram tudo que
seu valor e sagacidade combinados puderam determinar-lhes. Mas, antes de achar qualquer
pista das princesas, foram capturados por bandidos e vendidos como escravos para o dono
de uma estalagem, que os fez trabalhar como bestas de carga, cuidando dos homens e dos
cavalos dos viajantes que por ali passavam.
Depois de muito tempo sem notícias, o rei e a corte estavam na mais profunda
tristeza. Foi, então, que um jovem contador de estórias, ele mesmo filho de um contador de
estórias, e assim por diante durante incontáveis gerões, chegou naquele lugar. Pediu
permissão ao rei para sair em busca das princesas. A princípio, o rei recusou, pensando que
um simples contador de estórias nada poderia fazer num caso em que dois dos melhores
homens do reino haviam falhado. Mas finalmente, percebendo que as coisas não poderiam
ficar piores do que estavam, consentiu.
O contador de estórias montou num cavalo e galopou rápido como uma flecha na
direção do sol nascente. Depois de muitas aventuras, chegou a uma estalagem e viu,
servindo miseravelmente aos hóspedes, vestidos em farrapos e com os pés acorrentados,
as vacilantes figuras do emir e do vizir. Quando esses o reconheceram, imploraram sua
ajuda. Então, o jovem pagou sua fiança ao dono da estalagem, libertando-os e comprando-
lhes roupas decentes.
De início, ficaram desconcertados por saber que um homem tão humilde estava
encarregado de encontrar as princesas. E como sua arrogância voltava rapidamente,
sentiram-se incomodados por alguém assim tê-los salvo do cativeiro. Finalmente, entretanto,
tiveram que concordar em levá-lo junto na continuidade da busca. Seguiram caminhos sem
saber por onde iam, até que, ao cair da noite, chegaram a uma humilde choupana. Na
soleira da porta, estava sentada uma pobre velha remexendo uma cesta de bambu. O
contador de estórias parou e todos sentaram para conversar. Depois de compartilharem a
sopa que a pobre mulher ofereceu, o contador de estórias relatou um conto de antigamente
para entreter os outros dois, e a mulher perguntou o que faziam por ali.
Somos três membros da corte de nosso rei e estamos em busca de suas três lindas
filhas, que desapareceram muitos meses atráseles disseram. ‘Mas até agora nem as
encontramos, nem ouvimos uma palavra sequer a seu respeito, embora tenhamos passado
por muitas dificuldades.’
Ah, - disse a mulher pode ser que eu seja capaz de ajudá-los, que mostraram sua
sabedoria pela estória que me contaram, e acho que podem ter uma chance, mas apenas
uma chance de sucesso. As três princesas foram capturadas por três gênios malignos e
foram levadas por eles para o fundo de um lago que fica perto daqui. Há um palácio mágico
sob as águas, e é praticamente impossível para um ser humano lá penetrar.’
Depois de descansarem uma noite na choupana, os três partiram para o lago. Ele
estava rodeado de árvores cobertas de vinheiras retorcidas, e um ar de maldade pairava no
lugar.
Vou descer primeiro disse o chefe dos guerreiros pois sou o mais forte e posso
enfrentar qualquer tipo de adversário. O que podem um ministro e um poeta fazer num caso
como este?’
torceu seus bigodes vangloriando-se e tirou parte de sua roupa. Os outros fizeram
uma corda com os galhos da vinheira e o soldado, empunhando a espada na mão direita,
começou a descer para dentro das águas.
Se eu puxar – disse ele – tragam-me de volta para cima.
À medida que mergulhava, sentiu a água cada vez mais fria e, de repente, ouviu um
som como o de mil trovões, vindo das negras profundezas do lago. O medo congelou seu
coração e o tão valente guerreiro puxou agitadamente a corda para que o trouxessem de
volta à superfície.
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Então, o ministro insistiu que era sua vez pois ele cobiçava, como tantos
administradores, o poder que chegaria a suas mãos se ele se casasse com uma das filhas
do rei. Mas aconteceu a mesma coisa, e ele teve que ser puxado de volta para terra firme.
Foi a vez do contador de estórias. A água estava gelada, mas ele armou-se de
coragem para enfrentá-la. O barulho era tão forte como o de mil tempestades, mas ele
conseguiu não dar ouvidos. Finalmente, quando pensou que teria que desistir, descobriu
que tinha caído além das maldições que protegiam os gênios e estava numa enorme
caverna sob as águas. Abriu uma porta e chegou a um quarto onde a primeira coisa que viu
foi uma das princesas sentada no chão. Num canto, estava dormindo um horvel gênio em
forma de serpente, com dezoito cabeças. O contador de estórias pegou uma espada
brilhante pendurada na parede e, de um só golpe, cortou as dezoito cabeças do monstro. A
princesa beijou sua mão e colocou uma corrente real em volta de seu pescoço.
Onde estão suas irmãs?’ – perguntou o jovem.
Ela abriu outra porta e estava a segunda princesa, guardada por um gênio que
dormia e que tinha a forma de uma gigantesca caveira com pernas finas.
O contador de estórias puxou uma adaga cravejada de jóias de um suporte na parede
e com um golpe separou a terrível cabeça das pernas e o gênio espirou com um gemido.
Então os três foram para o próximo quarto, onde encontraram a irmã mais nova,
guardada por um gênio com cabeça de abutre e corpo de lagarto. Instantaneamente, ao ver
que o gênio estava dormindo, o jovem pegou um garrote pendurado na parede e
estrangulou–o. As duas princesas puseram uma coroa na sua cabeça e uma espada de
honra na sua mão.
Em seguida, voltaram rapidamente ao lugar onde se encontrava a corda, e o contador
de estórias fez sair a primeira princesa, depois de dar o sinal para que a corda fosse
puxada. Ela chegou em cima com segurança. Depois a segunda princesa foi salva, e a
corda desceu para buscar a terceira princesa.
Suba’ disse o contador de estórias. Mas ela retrucou:
Você deve ir, pois tenho medo de traição. Se nós três chegarmos primeiro, eles
podem deixá-lo e ficar com a recompensa só para eles.’
Mas o jovem recusou-se a ir primeiro, e o mesmo fez a princesa. Depois de certo
tempo, os dois homens em cima decidiram levar as duas princesas, ameaçando-as de
morte caso elas não comprovassem a estória de que eram eles os verdadeiros heróis.
Assim os quatro chegaram de volta ao palácio e foram recebidos como vencedores.
Disseram ao rei que a princesa mais nova tinha sido morta na caverna e o rei ordenou
quarenta dias de luto, depois dos quais o emir e o vizir deveriam casar-se com as jovens
que supostamente tinham salvo.
Enquanto isso, no fundo da caverna dos gênios, o jovem e a princesa mais nova
perceberam que tinham sido abandonados quando a corda não voltou pela última vez.
Procuraram em todos os quartos e em um deles acharam uma caixa de bronze cravejada de
jóias. Quando a princesa abriu a tampa, uma voz disse:
Qual a sua ordem? Sou o espírito da caixa. Peça o que quiser e lhe será dado.’
O contador de estórias imediatamente pediu para que fossem transportados ele e a
princesa, com a caixa para a superfície do lago, o que foi feito num piscar de olhos. Então
pediu um grande navio carregado de tesouros com um brasão feito da espada, da coroa e
da corrente impresso nas velas do navio.
Quando ele e a princesa embarcaram, ordenou que o navio voasse instantaneamente
para o ancoradouro que ficava ao lado do palácio do pai da princesa.
Quando viu o navio, o rei pensou:
Este é o navio de um monarca muito rico; vou até lá honrá-lo pessoalmente, pois tem
três símbolos de realeza nas suas velas e deve ser três vezes tão importante quanto eu’.
O rei, então, subiu no navio e começou a falar com o contador de estórias com grande
humildade, não o reconhecendo nas roupas e jóias que tinha conseguido através da caixa
mágica.
Mas a princesa, incapaz de conter sua alegria, saiu do lugar onde estava escondida e
contou a seu pai toda a estória. Então, os maldosos ministro e emir foram expulsos do reino,
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e o contador de estórias casou-se com a princesa, herdando com ela os domínios do rei
para todo o sempre.
Isso, nobre senhores continuou o contador de estórias mostra-lhes o quanto um
contador de estórias pode ser importante.’
1
Esta dissertão relata a história de um encontro com Nathercia Lacerda,
educadora que tem na arte e no brincar sua inspiração metodológica e que me levou
a um lugar de vivência, trabalho e experimentações com o brincar, o Horto. Nessa
convivência, foi construído o brinquedo Ciranda das Cores, que com sua forma e
cores despertou uma série de reflexões que fundamentam o brincar como espaço
genuíno de aprendizagem.
Como no conto do filho de um contador de histórias essa dissertação é o relato
de uma história dentro de uma história: a história desse encontro dentro da história
de minha trajetória como educador artista pesquisando as atividades de construções
coletivas, as vivências coletivas como espaços de aprendizagem.
1.1. A história
Esta história coma antes de me formar na universidade, começa quando entrei na
PUC-RIO para fazer o curso de graduação em Desenho Industrial. Numa sala de
aula muito diferente das outras, chamada de Barraca. Telhado de lona laranja, chão
de terra, paredes de treliça, que o sol atravessava iluminando as pessoas, quatro
tablados de madeira para os alunos se acomodarem da melhor forma: sentados,
deitados, podendo dormir durante as aulas, o que também fazia parte do
aprendizado. No centro, o lugar do fogo, que era aceso para aquecer no frio e
clarear as idéias.
1
O Filho de um Contador de Estórias, de Idries Shah.
16
Esse espaço que é chamado de barraca é o Laboratório de Pesquisa do
Aprendizado do Projeto em Design - uma sala de aula construída pela professora
Ana Branco que foi e vem sendo desenhada e redesenhada a cada semestre. Sua
forma, seu desenho abrigam o estudo de uma metodologia no desenvolvimento de
projetos em design. Essa metodologia era chamada de design participativo, e
começou a ser desenvolvida nos anos oitenta por um grupo de professores do
Departamento de Artes e Design da PUC-Rio.
Nessa metodologia, a construção de um objeto começava a partir de um
encontro, onde existia um desejo comum entre duas pessoas para que o trabalho se
realizasse. Começando o processo de acompanhamento das atividades, o aluno
(Foto 2. Barraca.)
17
observava e participava das atividades propostas pelo intercessor
2
, passando a
conviver naquele novo ambiente. A idéia era exercitar a curiosidade e a pergunta do
aluno e perceber como aquele conjunto de ações e objetos presentes no lugar se
configuravam dentro do intercessor. Por meio da observação participativa nas
atividades que aconteciam no espaço se revelava a ação intencional do grupo
observado. A partir daí, começava o processo de dar forma à intenção, ao objetivo
identificado. Era realizada uma série de experimentações relacionadas ao objetivo
identificado, dialogando com os materiais, as formas, realidade e acaso. As
respostas obtidas com as experimentações auxiliavam na concretizão do objeto
que, as construído era entregue ao intercessor. Assim o objeto era resultado
dessa convincia.
Durante minha formão acadêmica, além da vivência na barraca, fui bolsista
de iniciação científica no LILD, Laboratório de Investigação em Living Design. Esse
espaço é coordenado pelo professor José Luiz Mendes Ripper. O LILD era um
galpão cercado de bambus, com uma figueira enorme na entrada. Seu espaço
interno não tinha divisórias para que todos os pesquisadores pudessem se olhar, ver
o que o outro estava fazendo, conversar sobre o que estava sendo feito, as
descobertas, as experiências. Lá, aprendi a fazer a manutenção do espaço de
trabalho, a cuidar de cada ação, do início ao fim dela. Foi o espaço onde aprendi as
técnicas, a mexer nas máquinas, a trabalhar com bambu e outros materiais. Tudo
aprendido na prática, fazendo, experimentando, muitas vezes, errando. A pesquisa
era feita com os materiais oferecidos pela natureza, praticamente prontos para o
2
Intercessor: Pessoa com quem se escolhe trabalhar, acompanhando sua atividade profissional. É
o parceiro de trabalho que, em todos os momentos do projeto, vai trazer as informações sobre a
realidade com a qual trabalha, por meio de suas ações e palavras.
18
uso, como o bambu, o barro, os grãos, as fibras... Pesquisava as conexões de um
bambu com o outro para aplicação em estruturas e objetos.
Acredito que tanto a vivência na barraca quanto no LILD foram fecundantes
para minha formação como pessoa e como profissional. Mais do que a vivência no
espaço, foi importante a convivência com as pessoas. A possibilidade de trabalhar
com os materiais oferecidos pela natureza, a liberdade de poder experimentar,
explorar, investigar, errar e conversar foram experiências significativas em minha
formação. Essa foi minha escola, minha escolha.
1.1.1. Os bambus
Depois de formado, de alguma maneira, os bambus sempre me levaram aos
lugares de trabalho e experimentação. Quando comecei a trabalhar com bambu, as
oportunidades de trabalho que me encantavam eram relacionadas a oficinas
oferecidas para diferentes grupos.
Em 2000, o LILD foi convidado para participar de alguns eventos promovidos
por instituições como o SESC e o Projeto Portinari, para realizar oficinas de
construções com bambu, em diferentes municípios do Estado do Rio de Janeiro.
Nos eventos do SESC, fazíamos oficinas para repassar a tecnologia desenvolvida
no laboratório em pequenas estruturas com bambu.
Os eventos do Projeto Portinari faziam parte de um projeto chamado “Se eu
fosse Portinari...” que eram eventos de arte-educação itinerante com oficinas e
19
exposição das obras de Portinari. Uma dessas oficinas era de construção de
brinquedos de bambu, onde construíamos cabanas, tendas, casinhas e bonecos
junto aos participantes. Trabalhávamos com as criaas e com seus pais e avós,
que se aproximavam, envolvendo diferentes gerações na mesma atividade.
Essa foi a primeira vez que tive a experiência de conduzir uma atividade de
aprendizagem artística. Pensava que o importante era que os participantes, crianças
ou adultos, tivessem a experiência de construir algo coletivamente com o bambu.
Tendo, assim, os dois princípios que acreditava serem fundamentais para o
aprendizado: o fazer junto e o contato com o bambu, uma forma da natureza. Essa
era a primeira vez que refletia sobre a criação de um espaço de aprendizagem.
(Foto 3 . Oficina de brinquedos de bambu - Projeto “Se eu fosse Portinari...”)
20
Um ano depois, no segundo semestre, por solicitação dos alunos do
Departamento de Artes e Design da PUC-RIO, foi aberta uma disciplina eletiva
BAMBU. Naquele momento, Ripper me perguntou se eu aceitaria lecionar essa
disciplina. Na mesma hora, aceitei, mesmo faltando apenas uma semana para
começarem as aulas. Comecei a me perguntar: O que fazer? Como fazer uma
disciplina de bambu? Como ensinar aos alunos sobre o bambu? Toda minha
experiência era prática, era de contato direto com o bambuzal. Sabia que todos
estaríamos aprendendo juntos; afinal de contas, eu tinha 24 anos, meus primeiros
alunos seriam meus amigos e trabalvamos com bambu. Assim, a idéia era de
promover experiências de contato direto com o bambu no bambuzal, para que
pudéssemos aprender com esse material, deixá-lo mostrar o caminho, que era a
forma como eu tinha aprendido. Mas, o que iríamos construir? A primeira
providência foi encontrar espaços, onde pudéssemos experimentar os objetos feitos
em aula.
Essas parcerias
3
foram fundamentais para a realização das práticas de
construção nas aulas, pois o contato com esses grupos tornou posvel reconhecer
suas intencionalidades, os processos que envolviam todas as ações desses lugares,
dando direção ao que era construído.
3
A primeira parceria foi com o Acampamento Caeté, colônia de férias na Serra de Petrópolis, que é de
um amigo, Marcelo Moreira, que havia trabalhado comigo no LILD. O Caeté é um espaço, onde eu já
havia realizado oficinas com as crianças durante as temporadas de férias. O acampamento é um
local no meio da Mata Atlântica, com espécies de bambu exóticas e nativas, o que era essencial para
o trabalho pretendido. A proposta era passarmos um fim de semana lá, em que faríamos um
intensivão, tiraríamos o bambu e construiríamos algo com ele para ser usado no espaço no período
da colônia de férias.
A segunda parceria surgiu a partir de uma oficina realizada no Festival da Primavera, evento
realizado pelo DCE da PUC-RIO, em que aconteciam oficinas, exposições, apresentações de dança,
música e teatro. Uma das participantes era a arte-educadora Rosa Araújo Geszti que, ao final da
oficina, me convidou para conhecer Cristina Porto, coordenadora da brinquedoteca Hapi, que acabou
sendo parceira. A proposta para a brinquedoteca era que os alunos desenvolvessem brinquedos para
o espaço, para serem usados pelas crianças.
21
Durante as aulas, procurei criar situações, espaços onde todos participassem
da atividade, de forma a se sentirem fazendo parte daquele todo e íntegros em sua
ão. Nas práticas coletivas, um ajudava o outro na ação, as ações eram
compartilhadas, cada um dava continuidade ao movimento feito anteriormente pelo
outro, exercitando a observação e participação no movimento que se apresentava.
O trabalho coletivo tanto no bambuzal quanto na construção dos objetos,
transformou a aula num espaço de convivência. Para cada aluno, aquela vivência
tinha um significado único. Todos éramos ensinantes e aprendentes. O espaço de
convivência gerado pela construção coletiva criava uma situação favorável de
aprendizagem. O biólogo Humberto Maturana
4
diz:
No momento em que eu digo a vocês perguntem e aceito que me guiem com suas
perguntas, estou aceitando vocês como professores, no sentido de que vocês me
estão mostrando espaços de reflexão aonde devo ir. Assim, o professor ou professora
é uma pessoa que deseja esta responsabilidade de criar um espaço de convivência,
este domínio de aceitação recíproca que se configura no momento em que surge o
professor em relação com seus alunos e se produz uma dinâmica na qual vão
mudando juntos.
Nesse espaço de convivência, as questões que guiavam o processo de
aprendizagem eram descobertas a partir do que estava sendo vivenciado pelo
grupo, não tendo como ter controle do que era aprendido. Pois, na verdade, cada
um ia aprender pelas suas próprias significações.
Então, uma questão começou a caminhar comigo: Quais as práticas que
promoviam o acontecer desse espaço de convivência? Pois comecei a ver que
tamm existiam as aulas em que era uma outra dinâmica que se estabelecia entre
4
Informação obtida pela internet. Disponível em: http://somaie.vilabol.uol.com.br/maturana2.html
acesso em 16.10.2004
22
alunos e professor. Via que o espaço de convivência era criado coletivamente, não
era imposto. O espaço de convivência, realmente, dependia de uma aceitação do
grupo de que o conhecimento ali seria construído junto.
1.2. A história dentro da história
Em 2004, fui convidado pela educadora Nathercia Lacerda, que faz parte da
equipe do CIESPI
5
, para participar do Projeto Rede Brincar e Aprender
desenvolvendo brinquedos e oficinas com bambu junto à Brinquedoteca Volante do
Horto, comunidade localizada no Bairro do Jardim Botânico, zona sul do Rio de
Janeiro. Nathercia ficou sabendo de meu trabalho com bambus pela Cristina Porto,
coordenadora da Brinquedoteca Hapi.
O Projeto Rede Brincar e Aprender atua em quatro comunidades localizadas
na Zona Sul do Rio de Janeiro: Mangueira de Botafogo, Santa Marta, Horto e
Rocinha. E tem como objetivo valorizar o brincar no dia a dia da comunidade
contribuindo para a formação solidária e harmoniosa da criança.
Fiquei durante quase um ano com a Lela Vianna e a Mariana Dutra, duas
alunas da PUC, trabalhando na comunidade do Horto, junto a Brinquedoteca Volante
do Horto, um dos pólos de ação do Projeto Rede Brincar e Aprender, sob a
5
CIESPI: Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância. É uma ONG, um centro de
estudos e de referência sobre a infância e juventude e seus elos familiares e comunitários. Tem como
meta subsidiar políticas públicas e práticas por meio de projetos sociais e pesquisas para essa
população, contribuindo para o seu desenvolvimento integral e para a promoção, a defesa e a
garantia dos seus direitos.
23
coordenão de Nathercia Lacerda e com as dinamizadoras Joana D’Arc e Cristiane
Nascimento, todas moradoras do Horto.
A proposta inicial era fazermos oficinas de construção de brinquedos de
bambu em alguns espaços na comunidade, como escolas e clubes, trabalhando com
grupos de crianças e educadores. Era preciso construir um carrinho que servisse de
transporte, suporte para que as dinamizadoras da brinquedoteca volante do Horto
transportassem os brinquedos e os elementos que utilizavam para trabalhar com as
crianças, pois uma das características dessa brinquedoteca era que ela não
acontecia em um único local fixo. Como diz o nome, era uma brinquedoteca
itinerante.
A partir dessa oportunidade de entrar em contato com esse universo do
brincar, fiz uma outra proposta. Que fizéssemos as oficinas de brinquedos de bambu
e, em vez de construir um carrinho, construíssemos junto às dinamizadoras, ambas
moradoras da comunidade, um objeto que fosse desenvolvido passo a passo a
partir do acompanhamento do trabalho delas, e das atividades que já faziam com as
crianças na comunidade.
Para realizar esse trabalho, escolhi trabalhar com a metodologia que aprendi
durante meu período de formação acadêmica nos projetos que desenvolvi e ver de
que forma ela se aplicaria ao contexto com o qual eu estava envolvido.
No Horto, o brinquedo foi construído junto com Joana D’Arc e com as crianças.
O brinquedo foi sendo desenhado, revelado para nós a partir dos movimentos das
24
crianças que eram observados e transformados em novas possibilidades de formas.
No Horto, a possibilidade de ficar durante quase um ano acompanhando e
participando do trabalho realizado na brinquedoteca volante, junto com o grupo
social envolvido, me possibilitou olhar para o brinquedo como menino, com a
referência dessas criaas, da forma como se relacionavam com os bambus,
cordas, panos, com o espaço ao redor e os transformavam em brinquedos. Como
resultado dessa convivência, foi construído o brinquedo que Joana “batizou” de
Ciranda das Cores.
Como diria o narrador do conto Pirlimpsiquice, de Guimarães Rosa, essa
experiência “foi de oh”
6
. Construindo o brinquedo com as crianças, participando de
todo o processo de construção, de certa forma não era o brinquedo que ia sendo
construído, as pessoas envolvidas tamm se constram. Eu fui me construindo
junto ao objeto. Para Humberto Maturana “O ser e o fazer de uma unidade
autopotica
7
o inseparáveis”(Maturana, 1995, p.89)
6
Nesse conto de Guimarães Rosa, o narrador relata uma história de sua infância, de um teatrinho
que ele e seus amigos fizeram na escola. Ele começa o conto falando “Aquilo na noite do nosso
teatrinho foi de oh.” No conto, os meninos ensaiaram uma peça, mas, na hora da apresentação,
aconteceu uma série de imprevistos e eles acabaram apresentando uma outra peça inventada para
os outros alunos da escola não descobrirem a que estavam ensaiando. A experiência do
encurralamento, de estar diante da platéia e dar um branco, possibilitou àquele grupo de meninos
serem protagonistas de sua própria peça, possibilitou a manifestação não do texto decorado, mas da
história que haviam criado coletivamente durante os ensaios.
7
Autopoiese: Essa palavra é utilizada por Humberto Maturana e Francisco Varela para designar a
organização caractestica dos sistemas vivos. “Auto, naturalmente, significa ‘si mesmo e se refere à
autonomia dos sistemas auto-organizadores, e poiese – que compartilha da mesma raiz grega com a
palavra ‘poesia’ significa ‘criação’, construção’, Portanto, autopoiese significa ‘autocriação’”.
25
1.3. Antes de começar
Essa vivência de quase um ano no Horto, essa forma de entrar em contato
com o universo dos brinquedos, gerou um conjunto de questões que
desencadearam todo o processo de construção desta dissertação e que nortearam o
desenvolvimento desta pesquisa.
Na experimentação do brinquedo Ciranda das Cores, foi observado que o
brincar, o brinquedo, a brincadeira convidavam a pessoa a fazer parte de um espaço
de convivência. A partir dessa observação, comecei a me perguntar: Como o
brinquedo auxiliava na formão de um espaço de convivência?
No mesmo ano em que estava trabalhando no Horto, a psicóloga Alexandra
Pena estava realizando o trabalho oficina do corpo na comunidade Mangueira de
Botafogo. Alexandra trabalhou, propondo a criação de um grupo de reflexão,
discussão e troca de vivências com educadores, permitindo o questionamento,
valorizando o conhecimento e a história de cada um com o objetivo de que esses
educadores se apropriassem de seu trabalho. Segundo Alexandra:
O eixo principal é o corpo, deixar o corpo se expressar, mostrando dores, prazeres,
sensões, sentimentos. Relaxar o corpo das tensões diárias, brincar e ouvir o que
ele tem a nos dizer. Criar um espaço de aconchego para o corpo. Acredito que
através de um contato com o próprio corpo e com tudo que este revela é possível
tornar-se mais participativo e crítico com relação ao mundo.
Nas experiências feitas na comunidade Mangueira de Botafogo, com a oficina
do corpo, foi notada uma resistência inicial por parte do grupo em relação à
proposta. Foi observado que esse bloqueio inicial do grupo, gerado por uma
proposta que estimula a iniciativa do participante, estava associado a uma postura
26
de espectador, aguardando uma informão que poderia ser modificadora de
alguma coisa. Esses grupos tinham uma expectativa de receber uma determinada
informação, uma fórmula pronta, sem que houvesse qualquer forma de troca,
simplesmente a assimilação da informação. Enquanto que, num espaço de
convivência, professor e aluno, ambos eram ensinantes e aprendentes.
A partir dessas duas observões, comecei minha pesquisa. No ano de 2005,
Alexandra Pena e eu fizemos oficinas com o brinquedo Cirandas das Cores em
diferentes grupos nas quatro comunidades onde o projeto Rede Brincar e Aprender
atua. A coleta do material de pesquisa foi realizada por meio de uma observação
participativa nessas oficinas, na convivência com um grupo de crianças na Ladeira
da Margarida, localidade do Horto e a partir de cartas enviadas por e-mails para
Nathercia Lacerda e Alexandra Pena. Por essa via de comunicação, foi gerada uma
série de reflexões sobre o que vinha sendo vivenciado em cada oficina.
Todo processo vivenciado durante três anos, desde a construção da Ciranda,
foi registrado em cadernos
8
. O caderno era uma ferramenta que eu utilizava para
registrar os aprendizados adquiridos sobre o que eu estava fazendo e percebendo.
O aprendizado era construído na costura dos registros em diferentes linguagens: a
escrita, o desenho e a fotografia. O caderno foi uma ferramenta que me auxiliou a
reconhecer o meu próprio processo de fazer e refletir sobre o que eu tinha feito,
dialogando com autores de diferentes áreas do conhecimento.
8
O caderno era composto por desenhos do que tinha sido vivido, observado, criado e imaginado; por
anotações e textos sobre observações e descobertas; e pelas gratidões que eram escritas da
seguinte forma: Agradeço a... Pelo fato de... que gerou em mim.... Essa forma de registrar o
aprendizado me possibilitava ver fora de mim o que havia de fato incorporado em cada encontro.
Segundo o biólogo Humberto Maturana, “A conseqüência de uma interação entre dois seres vivos
não é determinada pelas propriedades do outro, mas pelo modo com que esse é incorporado em sua
dinâmica autopoiética.” (Maturana, 1995, p. 92)
27
Estudando as metodologias aplicadas em pesquisas em cncias sociais,
principalmente as voltadas para a inserção numa comunidade, onde além da
simples observação, tamm o aprendizado com o trabalho realizado com o
grupo e com a situação em que está envolvido, observei que a metodologia que
estava usando, apesar de em alguns aspectos ser similar ao que era proposto por
algumas delas, não se encaixava essencialmente dentro de nenhuma das
existentes. Segundo Howard Becker, “É como mandar construir uma casa para si.
Embora existam princípios gerais de construção, não dois lugares iguais, não
dois arquitetos que trabalhem da mesma maneira e não há dois proprietários com as
mesmas necessidades. Assim, as soluções para os problemas de construção têm
sempre que ser improvisadas. Essas decisões não podem ignorar princípios gerais
importantes, mas os princípios gerais em si não podem resolver os problemas dessa
construção. Para fazê-lo, temos que adaptar os princípios gerais à situação
específica que temos em mãos”.
No primeiro encontro para orientação com Regina Machado, ela me propôs o
exercício do “tiro ao alvo”. A idéia era escrever questões pertencentes ao trabalho
associadas ao desenho de uma imagem, como a de um alvo, onde a questão
principal seria colocada no centro e as outras dispostas ao redor. Para Regina, o
que “fundamenta esta técnica é a idéia de que o tiro ao alvo é análogo à mandala e,
à medida que o professor vai configurando o desenho da forma, vai, ao mesmo
tempo, configurando o desenho interno da sua experiência: Ordernar fora siginifica
ordenar dentro de si mesmo. A experiência se transforma e o alvo tamm”.
Apresento agora os alvos com as questões e imagens que foram desenhados ao
longo do processo de construção desta dissertação.
28
O primeiro alvo é a imagem de uma espiral que ilustra um movimento circular
que sai de um determinado ponto original e que está relacionada às primeiras
questões que desencadearam esse processo de pesquisa. Essa espiral é
representada como o rizoma de um bambuzal que tem como função armazenar todo
nutriente, toda informação da planta e que conecta todas as varas de um bambuzal.
As varas aqui são as questões lançadas ao meio em busca de informações.
29
No segundo alvo, a espiral se mantém e se prolonga para outras questões
surgidas a partir das oficinas realizadas com a Ciranda das Cores.
30
O terceiro alvo apresenta um outro desenho, que é a trama de um tipiti
planificada
9
. Nesse momento do trabalho, as questões da pesquisa, comaram a
se entrelaçar com as questões que já trazia comigo, pesquisando as construções
coletivas como espaços de aprendizagem.
9
O tipiti é um utensílio indígena utilizado para secar a mandioca. Fiz esse desenho em 1998,
buscando aprender a trama desse objeto.
31
O quarto alvo é um recorte do alvo anterior, que se assemelha muito ao
desenho de um broto de bambu. Suas questões estão relacionadas ao momento
final da pesquisa.
32
Ao longo do processo de fazer esta dissertação, o alvo foi se transformando à
medida que novas questões iam surgindo a partir das reflexões sobre o que estava
sendo vivenciado na pesquisa. Essas questões pediam novos alvos, que aqui
relaciono com os capítulos do trabalho.
No primeiro capítulo, apresento o Horto, lugar de origem do brinquedo Ciranda
das Cores, e o contexto que envolveu e influenciou seu processo de construção. O
segundo capítulo é dedicado ao brinquedo Ciranda das Cores, às oficinas realizadas
e às brincadeiras manifestadas com suas formas e cores. O terceiro capítulo trata
das reflexões sobre o brincar e a criação de espaços de aprendizagem.
Esta dissertação foi escrita seguindo os acontecimentos no tempo, não por
uma questão lógica, ou de linearidade, mas para que não se perdesse na lógica de
construir uma dissertação, o relato vivo experimentado em cada momento,
principalmente por esse ser um trabalho construído coletivamente, por meio de
encontros que foram sinalizando o caminho por onde seguir.
33
2. Lugar de vivência, trabalho e experimentações com o brincar.
(Foto 4.Ciranda das Cores, Parque da Cidade, RJ.)
34
2.1. Projeto Rede Brincar e Aprender
Em 2004, em um encontro com a educadora Nathercia Lacerda, fui convidado
a participar do Projeto Rede Brincar e Aprender, na comunidade do Horto. Lugar de
vivência, trabalho e experimentações com o brincar.
Para apresentar o projeto trago, um texto escrito coletivamente pela equipe
que o desenvolve, formada por Alexandra Pena, Carla Sartor, Isabela Massa,
Nathercia Lacerda e eu.
O projeto tem como tema o brincar e sua multifacetada ptica, com vistas a expandir
oportunidades de desenvolvimento dos potenciais das crianças em seus locais de
moradia. Esse projeto de pesquisa-ação visa fortalecer e promover um circuito de
trocas de vivências, em que sejam partilhadas vidas, incertezas, novos caminhos e
alternativas encontradas por famílias, profissionais, organizações populares e
instituições comprometidas com o futuro de crianças e jovens.
Apoiados em uma longa parceria com pessoas e instituições de 4 (quatro)
comunidades de baixa renda da zona sul do Rio de Janeiro - Mangueira de Botafogo,
Santa Marta, Horto e Rocinha - o projeto teve início em novembro de 2002 atuando
por meio de brinquedotecas e bibliotecas comunitárias.
Em funcionamento ininterrupto desde outubro de 2002, o projeto propõe a
manutenção das brinquedotecas e bibliotecas reconhecidas como espaços de
referência dentro das comunidades. O funcionamento desses espaços dicos
configura-se como alternativas complementares à educação formal, permitindo o
acesso à arte a crianças, famílias e educadores. Acreditamos que a criança inserida
na família, na vida comunitária e na história da sua cidade, cresce consciente de sua
importância na construção do mundo.
O foco de ação do projeto encontra-se no desenvolvimento pleno de crianças, tendo
como eixo o brincar. Mas por que a brincadeira? O brincar é uma linguagem universal
comum a todos. O ato de brincar estrutura e fortalece os elos da criança com o
mundo. Assegurar à criança o direito de brincar é assumir o compromisso com uma
vida prazerosa, solidária e compartilhada. Associada ao brincar, a prática da arte-
educação é uma grande aliada. Essa ptica educacional é um caminho de atuação
em que os sentidos se encontram prontos a captar sinais, atentos a curiosidades e
abertos a idéias ainda desconhecidas. As diferentes formas de expressão e
manifestações artísticas abrem espaços fundamentais para a compreensão do
indivíduo, para o fortalecimento da auto-estima, para clarear a visão de futuro,
permitindo um olhar crítico sobre a sociedade.
35
2.1.1. A rede
O funcionamento do projeto caracteriza-se por uma rede de comunicação que
entrelaça diferentes linguagens e metodologias que permitem a permanente reflexão
e visualização de novas e variadas perspectivas com relação à formação de
crianças.
Ao buscar uma imagem que ilustre como se realiza a organização dessa rede,
encontro no rizoma, característico das gramíneas como o bambu, um belo exemplo.
O rizoma é um único centro gerador composto por vários bulbos que geram as varas
que comem o bambuzal. Como no rizoma, o projeto tem, em diferentes cleos,
um sistema gerador de ações, as ramificações formam-se no rizoma
permanentemente. Como no rizoma, o projeto ramifica suas parcerias, amplia seu
alcance de forma individual e coletiva. O rizoma torna-se cada vez mais forte e rico
quanto mais ramificações tem, ampliando a rede de interações com os novos brotos
gerados. Percebe-se no projeto Rede Brincar e Aprender ramificações que se
fortalecem a cada pessoa que passa a fazer parte dessa rede. O bambuzal
necessita do contato humano com técnica e conhecimento para que o rizoma possa
gerar novos brotos, fortalecendo-os. No Rede, os elos são criados e conquistados a
partir da relação afetiva que se forma por meio de uma convivência permeada pelo
respeito às diferenças. Basta um pequeno pedaço de rizoma na terra para fazer
brotar um frondoso bambuzal. Gestos cotidianos, muitas vezes entendidos como
pequenos gestos, são essências para o projeto tornar-se grande no sentido humano
e solidário.
Começando a fazer parte dessa Rede, fui trabalhar na comunidade do Horto
junto à Brinquedoteca Volante, que era coordenada pela educadora Nathercia
36
Lacerda e pelas dinamizadoras Joana D’Arc e Cristiane Nascimento, todas
moradoras do bairro. A partir de uma primeira caminhada pela comunidade com a
Nathercia para conhecer o local, as pessoas envolvidas com a brinquedoteca e os
moradores da comunidade, fiquei encantado por descobrir que ainda se encontra
preservada a brincadeira de rua e uma vida com menos pressa.
2.2. A comunidade
Em plena Zona Sul do Rio de Janeiro, metrópole brasileira do século XXI, o tempo no
horto é este: manso e agradável. Tempo de conversar no quintal, saboreando as
laranjas tiradas do pé. Tempo de se deixar largar ao sol gostoso do final da tarde.
Tempo de brincar.
Numa cidade urbana onde crianças e adultos vivem cada vez mais confinados, seu
chão de barro vermelho, terra preta ou asfalto cinzento, seus espaços ao ar livre que
mais se assemelham a uma roça, convidam a correr, sentir o vento, brincar as
brincadeiras passadas de geração a geração.
Suas casas foram constrdas junto à maior floresta urbana do mundo. Misturam-se
aos moradores uma fauna imensa e variada que inclui macacos, gambás, cobras,
lagartos, pássaros, borboletas e outros tantos. E as flores? Muitas e tão lindas em
suas formas e cores.
Celeiro de recentes e antigas memórias, o passado remoto e o cotidiano de hoje
enovelam-se nas conversas dos mais velhos ao da porta. Eles falam de escravos,
imigrantes, imperatrizes, ranchos e blocos de carnaval, da antiga brica de tecidos
que apitava para anunciar o início dos trabalhos.
A história da cidade nos séculos XIX, XX, XXI é revivida através do relato vivo de seus
moradores que se mantêm, à custa de muita luta, no mesmo solo onde viveram seus
antepassados, com raízes que se misturam às de mangueiras centenárias.
10
A Comunidade do Horto fica localizada no bairro do Jardim Botânico na Zona
Sul do Rio de Janeiro. é um local cercado de rios, cachoeiras, animais, árvores e
plantas da Mata Atlântica, onde moram inúmeras famílias descendentes de ex-
escravos, ex-funcionários do Jardim Botânico e ex-operários da antiga fábrica de
tecidos América Fabril existente no bairro. A região é composta pelas seguintes
localidades: Caxinguelê, Ladeira da Margarida, Grotão, 2040, Conjunto Habitacional
D. Castorina, Vila São Jorge e Chácara do Algodão.
10
Informação pessoal. Mensagem recebida por nathlacerda@terra.com.br em 2006.
37
(Figura 1. Localização do Horto na Zona Sul do Rio de Janeiro.)
38
Para ilustrar a riqueza desse lugar, trago fotos e alguns depoimentos
11
de seus
moradores.
Sílvio Iório, 78 anos
Aqui eu conheço desde 1922, aqui era a chácara 12 da Fazenda Rodrigo de
Freitas. Daí construíram a fábrica de tecidos Carioca e essas casas aqui ao
redor. Foi no final do século passado, 1890 mais ou menos, e as casas foram
construídas na mesma hora. Por que na época era aqui a Fazenda Rodrigo de
Freitas que compreendia a região toda, inclusive a Lagoa Rodrigo de Freitas, a
Chácara da Lage, o quei Clube, o Jardim botânico, onde foi construído o
Horto Bonico, a Fábrica de pólvora... é tudo dessa época. Isso veio desde D.
Jo VI em 1808. Ai, veio evoluindo achegar a esse ponto daqui da nossa
comunidade.
Ana Maria Melo Moraes, 72 anos, moradora do bairro desde 1959
Porque isso aqui, essas casas, essas paredes aí, essas daqui não fui eu que
mandei fazer... Essas paredes não são de tijolo. São pedras desse tamanho
assim e barro, óleo de baleia. Era do tempo de D. João VI ainda.
11
Depoimentos retirados do livro “Memórias brincantes, histórias saltimbancos” produzido pela
Equipe Veredas, composta por Edith Lacerda, Maria do Carmo Cardoso e Nathercia Lacerda, no
ano de 2001.
(Foto 5. Caxinguelê)
39
Irati Rego de Carvalho, 59 anos
Mas o mato eu conheço tudo. Tem algumas cachoeiras. É que tem o rio
principal nosso aqui, que desce, atravessa o Jardim Botânico e chega na
Lagoa. É o Rio dos Macacos. Por causa dos macaquinhos que têm na mata aí.
Esse macaco prego tem muito! Ainda ontem eles estavam aqui, comendo jaca
aqui.
Casca de Cutia é uma madeira que tem na mata aí, uma canela, vo
entendendo? A casca dela você tira, faz um gargarejo que nem faz com romã,
é anti-inflamatório que alivia, tira aquela inflamão toda. São coisas assim.
Tem Jaborandi... Tem muita coisa aqui na mata. Essa mata nossa tem muita
planta aqui dentro que ainda não foi identificada.
Felipe Gilar dos Santos, 12 anos.
Aqui têm os matos que a gente brinca de pegar grilo. A gente fica procurando,
a gente ele parado, pega o potinho, a gente tenta pegar assim e põe
dentro do pote. depois a gente solta. Esses grilos pretos, quando abrem a
asa, soltam um negócio assim e a asa é toda colorida azul, vermelha, abóbora,
branca, amarela.
(Foto 6. Rio dos Macacos cruzando o Jardim Botânico.)
40
O trabalho realizado pelo Projeto Rede Brincar e Aprender na comunidade se
em parceria com a AMAHOR (Associação de Amigos e Moradores do Horto).
Entidade sem fins lucrativos que nasce em conseqüência da necessidade dos
moradores em ter uma organização social lida, com a finalidade de dar
sustentação à luta da população tradicional pela permanência no Horto, e
manutenção das características do local. O projeto atua na comunidade,
dinamizando espaços de brincar.
(Foto 7. As ruas no Caxinguelê.)
41
2.3. Espaços de brincar, brinquedotecas.
Tive a oportunidade de conhecer e vivenciar o dia-a-dia de quatro
brinquedotecas. A Brinquedoteca Hapi, a Brinquedoteca Peteca da Rocinha, a
Brinquedoteca Volante do Horto e a Brinquedoteca da Casa do Rio Comprido.
Segundo Cristina Porto, coordenadora da Brinquedoteca Hapi,
As brinquedotecas, de forma geral, possuem uma estrutura básica comum. O acervo
de brinquedos é catalogado e organizado no sentido de propiciar seu uso coletivo, que
inclui empréstimos, tendo algumas regras como suporte... O acervo distribui-se,
normalmente, em salas amplas, ou mesmo pequenas, de forma a permitir, facilitar e
enriquecer as brincadeiras. Os brinquedos são expostos de acordo com determinados
critérios e, de preferência, em estantes da altura das crianças. O mobiliário é
arrumado de modo a formar ambientes propícios para o desenrolar das atividades
específicas.(Porto, 1998, p 188 - 189)
Essas brinquedotecas apresentavam basicamente essa estrutura apresentada.
Suas configurações variavam de acordo com o tamanho e formato do espaço e com
o acervo adotado por cada uma. Eram espaços repletos de jogos, brinquedos, livros
e fantasias. Observei que normalmente as brinquedotecas tinham uma
coordenadora e um ou mais de um dinamizador
12
. Acho importante aqui ressaltar
essa relação estabelecida entre coordenadora e dinamizadores, pois é a qualidade
dessa relação que direciona o acontecer do trabalho de uma brinquedoteca. A forma
como a brinquedoteca é coordenada influencia diretamente no trabalho do
dinamizador com as crianças. Cristina Porto observou que as brinquedotecas “vêm
se tornando um lugar novo de convívio, onde o brinquedo e a brincadeira podem ser
mediadores de relações em que os indivíduos falem sobre suas vidas e troquem
experiências.”(Porto, 1998, p.184) Para Nathercia Lacerda, o que importa é que se
12
Dinamizador: Nome dado, no Projeto Rede Brincar e Aprender, ao responsável pela dinamização
das atividades e pela manutenção do espaço e do acervo das brinquedotecas e bibliotecas. Nas
brinquedotecas, normalmente essa pessoa é chamada de brinquedista.
42
constitua um espaço de convivência perpassado pelo respeito às diferenças, e que
valorize todo um processo de educação transformadora”
13
.
Nas brinquedotecas de atuação do Projeto Rede Brincar e Aprender, Nathercia
Lacerda conduz seu trabalho como uma pessoa que provoca, que lança perguntas,
questões, estabelecendo um espaço permanente de criação. Nathercia Lacerda
comenta:
Sinto como se eu preparasse a terra, me sinto como uma pessoa da terra, que
trabalha na terra, com a terra para que ela brote, para que as sementes, cada uma no
seu tempo e com suas características, brotem. Eu entendo as pessoas como
sementes com potencial de floração e frutificação, com potencial de brotar. Mas nem
sempre eu sei exatamente que semente é aquela. São sementes que guardam
surpresas, sementes que trazem o novo e esse novo é que é importante em um
espaço de brincar, é a própria essência do brincar.
Nathercia prefere chamar a esses espaços de espaços de brincar, porque
esses incluem uma brinquedoteca. No caso do Horto, conforme será apresentado a
seguir, a brinquedoteca acontecia em espaços como escolas e ruas, além da sala,
espaço físico que abrigava seu acervo.
13
Informação pessoal. Mensagem recebida por nathlacerd[email protected] em 2006
43
2.3.1. Brinquedoteca Volante do Horto
A Brinquedoteca Volante do Horto surge em 2002 como uma proposta de valorizar a
brincadeira ao ar livre em diferentes localidades da comunidade. A brinquedoteca
Volante tinha como objetivo o brincar na rua, resgatando as brincadeiras de
antigamente e o fazer artesanal de brinquedos. Essas atividades eram orientadas
pelas dinamizadoras Joana D’arc e Cristiane Nascimento e funcionava em dois dias
na semana: às segundas-feiras à tarde, na Escola DEPSI e na Escola Municipal
(
Foto8. Estandarte da Brinquedoteca Volante do Horto
.)
44
lia Kubitschek, alternando cada semana em um dos locais; E às terças-feiras pela
manhã, no Condomínio Dona Castorina, onde havia uma sala montada com um
acervo e que servia como um ponto de referência para as crianças e moradores.
Nesses três espaços, eram feitas brincadeiras de movimento (bambolê, bola, corda),
brincadeiras populares (amarelinhas, batatinha frita, coelho na toca, roda),
experimentações com tinta e massas de modelar e investigação de sucatas caseiras
com a criação de pequenos objetos. Além dessas atividades, eram feitas
brincadeiras na rua onde as dinamizadoras moravam, no Caxinguelê e na Ladeira
da Margarida.
No Horto, pela brinquedoteca ser itinerante, ela acontecia onde estivesse a
dinamizadora. Era a sua presença num determinado lugar que fazia acontecerem
esses espaços de brincar. Milton Santos (2002) diz que “O espaço não contém
lugares. São estes que criam o espaço, solidariedade como possibilidade, expressão
da coexistência, neste sentido cria o espaço”.
2.3.2. A dinamizadora
Em março de 2004, comamos a acompanhar, Lela Vianna, Mariana Dutra e
eu, o trabalho de Joana, pois os horários de Cristiane não eram compatíveis com os
nossos, tornando inviável acompanhar seu trabalho naquele momento.
Joana nasceu em outro estado e veio morar na Margarida após se casar. Sua
experiência com o brincar vem de uma cidade mineira pequena, das crianças da
Margarida e da brinquedoteca Hapi (multiplicidade de linguagens características de
cada local). Luis Felipe, seu filho, sempre foi com ela para todos os lugares (andarilho
igual a ela). Sua escolha profissional tem o eixo de agregar por meio do brincar, de
criar elos entre diferentes locais
14
.
14
Informação pessoal. Informação fornecida por Nathercia Lacerda após a construção do brinquedo
Ciranda das Cores em novembro de 2004.
45
Além de trabalhar nas duas escolas, escola DEPSI e Escola Municipal Julia
Kubitschek, Joana também realizava brincadeiras no quintal de sua casa, na Ladeira
da Margarida, localidade do Horto. Lá, as próprias crianças batiam em sua porta,
chamando-a para brincar. Começamos a observar e participar de suas atividades,
passando a conviver naquele novo ambiente. Por meio dessa convivência nas
atividades que Joana fazia, revelava-se sua intenção com as brincadeiras e
brinquedos que levava.
2.3.3. Intenção
Milton Santos (2002, p79) diz, em um de seus escritos, que “a ação intencional
é movimento consciente e voluntário do agente na direção das coisas, envolvendo
uma projeção do agente, que as crenças, os desejos, as intenções implicam um
objeto” E Milton Santos ainda conclui que “A intenção é central na prática diária”
sendo diferente de um propósito que “sue ambições ou projetos de longo prazo”
Joana trabalhava principalmente seguindo o movimento das crianças,
brincando do que elas estavam brincando, e levava sempre alguma brincadeira ou
atividade para fazer com elas. Joana também possuía outros brinquedos que as
crianças podiam brincar sem uma condução da brincadeira, como bambolê, corda
para pular, bolas de gude, papel e lápis para colorir. As brincadeiras se adaptavam
ao espaço físico, ao número de crianças e à faixa etária das mesmas.
Por exemplo, na escola Júlia Kubitschek, Joana ficava com as crianças no
pátio externo, que era bastante amplo. Isso tornava posvel levar o brinquedo pára-
46
quedas, que era um círculo de pano dividido em mais ou menos dez pedaços (como
uma pizza), e cada pedaço possuía estampas e cores diferentes. A Joana fazia
diversas brincadeiras com ele, como:
- Brincadeira do mar
Cada criança segura em um lugar da borda do círculo e todas sacodem ao
mesmo tempo, imitando as ondas do mar. Algumas crianças entram em baixo como
se fosse uma onda; depois trocam com as outras.
- Brincadeira do urso
Fazendo a mesma onda com as crianças segurando na borda, a Joana joga
um ursinho de pelúcia no centro do círculo, que é jogado para o alto pelas crianças,
sem deixá-lo sair do espaço do pano e cair no chão.
Esse era um dos brinquedos relacionados à intenção da Joana expressa na
frase: Vamos brincar”. Essa frase foi identificada em um jogo de palavras
15
feito
com o Universo vocabular
16
de Joana. Essa foi a frase que norteou as
experimentações para a concretização do brinquedo que Joana deu o nome de
Ciranda das Cores.
15
Jogo de palavras - Essa é uma das técnicas para identificação do objetivo do intercessor na
metodologia do design participativo. O universo vocabular do intercessor, no caso da Joana D’Arc, é
escrito, palavra por palavra, em papéis separados, formando um grupo de aproximadamente
duzentas palavras. Esses papéis são entregues ao intercessor, pedindo que ele os arrume. A partir
da organização dada pelo intercessor para as palavras, são feitas diversas frases para o jogo de
palavras buscando identificar a intenção daquele universo vocabular. Essas frases são entregues ao
intercessor para que ele sinalize sua intenção na escolha de uma das frases.
16
Universo Vocabular é o conjunto de palavras expressa pela pessoa. Segundo Paulo
Freire(1979, p.73), essas “palavras geradoras” são “constituídas pelos vocábulos mais carregados de
certa emoção, pelas palavras típicas do povo. Trata-se de vocábulos ligados à sua experiência
existencial, da qual a experiência profissional faz parte”.
47
(Foto 9. Joana DArc com Luis Felipe, seu filho, arrumando o jogo de palavras.)
48
3. Ciranda das Cores
(Foto 10. Ciranda das Cores na Brinquedoteca Hapi, Museu da República, RJ.)
49
3.1. O brinquedo
A construção participativa de um brinquedo envolve uma série de
experimentações com diferentes materiais, diferentes formas, a partir de uma
intenção identificada, associada aos gestos e movimentos do grupo em atividade.
Esses gestos e movimentos observados e registrados são informações para a
construção de hipóteses-isca
17
que serão levadas ao grupo. começa a
decodificação dos códigos da brincadeira, a apreciação de como aquele conjunto de
ões e objetos se configura no grupo. Esse momento é um momento de
atualização, ou manifestação, em que o objeto começa a ganhar forma a partir das
brincadeiras feitas com as hipóteses-iscas levadas ao grupo.
No caso do brinquedo Ciranda das Cores, uma das brincadeiras feitas pelas
crianças foi a de trenzinho: as crianças pegaram todos os elementos levados,
amarraram um no outro, formando uma fila. Outra brincadeira foi da Linda Rosa
Juvenil
18
: uma menina entrou no centro da roda e as outras começaram a rodar em
volta dela. Ao final da brincadeira, fizeram uma história, a história da “menina da
saia”, que era assim: “a menina da saia, acordou, dançou e acabou a história”.
17
Hipóteses-isca: São objetos produzidos com materiais simples. A iia é que esses objetos
tenham uma aparência de inacabado, para que o grupo sinta-se à vontade para brincar e interferir na
forma, posibilitando diferentes usos.
18
Brincadeira de roda presente na cultura popular brasileira.
50
Essas brincadeiras espontâneas que as crianças faziam na relação com as
hipóteses-isca levadas originaram o brinquedo Ciranda das Cores.
(Seqüência
1
. Das hipóteses
-
isca ao brinquedo Ciranda das Cores.)
51
Na qualidade de objeto construído, suporte material, o brinquedo pode se
apresentar de duas maneiras: “...aquilo que é utilizado como suporte numa
brincadeira. Tudo, nesse sentido, pode se tornar um brinquedo e o sentido de objeto
lúdico só lhe é dado por aquele que brinca enquanto a brincadeira perdura”.
(Brougère, 2001, p.62-63) ou “...um objeto industrial ou artesanal, reconhecido como
tal pelo consumidor em potencial, em função de traços intrínsecos (aspecto, função)
e do lugar que lhe é destinado no sistema social de distribuição dos objetos. Quer
seja ou não utilizado numa situação de brincadeira, ele conserva seu caráter de
brinquedo e, pela mesma razão, é destinado à criança.” “Trata-se da materialização
de um projeto adulto destinado a crianças.” (Ibidem, p.62-63)
Vejo na Ciranda das Cores um misto entre essas duas formas de
apresentação do brinquedo, por se apresentar como um objeto artesanal,
reconhecido visualmente como um brinquedo, em função de sua forma e cores.
Porém, se difere do caso citado acima por não ser um projeto adulto, construído a
partir das referências do adulto sobre a criança, mas por ser um objeto construído a
partir dos movimentos das crianças junto a um grupo social, a partir do conjunto de
brincadeiras que envolvem suas atividades e que pode se tornar qualquer coisa na
mão das crianças, dando suporte à brincadeira da criança.
A Ciranda das Cores estaria mais próxima de alguns brinquedos que hoje são
mais raros de serem encontrados, que seriam os brinquedos construídos
artesanalmente por quem brinca ou por um artesão. Esses brinquedos sinalizam
uma relação mais próxima do adulto com a criança na troca de saberes sobre as
52
formas de construir, sobre as formas de brincar que são passadas de geração em
geração.
Observei que, quando a criança brinca, ela cria um repertório de brinquedos e
brincadeiras relacionadas ao local em que mora, a sua relação com esse espaço e
com o parceiro de brincadeira. Em uma das vezes em que estive na Ladeira da
Margarida
19
para brincar com as crianças, os meninos vieram me mostrar um novo
brinquedo com o qual eles estavam brincando naquele momento, lá. Era o Bobteco,
uma atiradeira feita com cano de PVC e borracha de balão de encher. Gabriel
contou que foram os meninos mais velhos que os ensinaram a fazer o bobteco.
Esses brinquedos m sendo transmitidos através das gerações, atualizando-se,
utilizando os materiais disponíveis no local. Para o filósofo e antropólogo Gilles
Brougèrè, “A brincadeira pode fabricar seus objetos, em especial, desviando de seu
uso habitual os objetos que cercam as crianças”. (Brougère, 2001, p.13)
Em 2005, durante o Curso de Formação para Educadores Brincantes
20
, recebi
um texto do educador Adelson Murta sobre a Cultura da Criança.
Consideramos como Cultura da Criança o conjunto dos brinquedos, brincadeiras,
histórias e cantigas que as próprias crianças inventam, elegem e recriam no seu
convívio do dia-a-dia e em liberdade. A Cultura da Criança é rica, variada, alegre e
encantada. É uma cultura do movimento, da fantasia, do inventivo, da descoberta, do
pensamento associado ao sentimento, ao gesto e à intuição. A variedade de
movimentos do repertório dos Brinquedos permite à criança experimentar um grande
número de situações e desafios. Os brinquedos vão dos mais sutis e delicados, como
19
Ladeira da Margarida: Localidade no Horto, onde mora Joana D’Arc. A Ladeira da Margarida é
assim: você sobe um ladeirão, cercado de árvores, pequenas casas e flores que enfeitam o caminho.
em cima, o chão de terra batida, o varal de roupas, as crianças brincando na rua, os vizinhos
conversando na porta de casa...
20
O Curso de Formação para Educadores Brincantes acontece no Teatro Escola Brincante, espo
criado por Antônio Nóbrega e sua esposa Rosane Almeida. O curso tem a duração de um ano e é
dividido em oito módulos que oferecem a vivência de cantos, danças, toques instrumentais, histórias,
brinquedos e brincadeiras da cultura popular brasileira.
53
soprar bolinha de sabão, ao amplo e expansivo como pular corda ou elástico. Pela
sua própria natureza transformadora, os brinquedos vão se tornando gradativamente
mais desafiadores e novas possibilidades vão surgindo. A recriação é constante e a
criança vai se descobrindo e desenvolvendo a sua relação com o mundo. Nos
brinquedos, iremos encontrar as várias etapas necessárias ao desenvolvimento motor,
social, do raciocínio e da sensibilidade da Criança. Uma outra característica dos
brinquedos é que eles, mesmo obedecendo a uma ordem universal, estão
relacionados e em equilíbrio com a natureza e a cultura da região onde acontecem.
Cada pedacinho do Brasil tem a sua maneira própria de cantar, falar e brincar.
Sabendo que os movimentos das brincadeiras são comuns às crianças de todos os
tempos e lugares, podemos acreditar numa “Cultura do Ser Humano ainda novo” com
a sua natureza preservada. Se as crianças de todo o mundo têm a necessidade de se
expressar e brincar com as mesmas coisas, é fundamental que os profissionais das
áreas que lidam com as crianças reaprendam a sua linguagem e a sua expressão
mais verdadeira: o Brinquedo.
Nesse curso, brincando e construindo brinquedos com Lydia Hortélio
21
,
Adelson Murta
22
e Lucilene Silva
23
, aprendi que os gestos e movimentos que havia
observado no processo de construção da Ciranda das Cores faziam parte de uma
cultura, a Cultura da Criança.
Alguns autores vão trabalhar com o termo Cultura Lúdica, que engloba o
repertório criado, inventado pelas próprias crianças, os jogos e brincadeiras de
adultos, e os jogos e outros elementos criados pelos adultos para as crianças. Gilles
Brougère entende por cultura lúdica “uma estrutura complexa e hierarquizada,
constituída de brincadeiras conhecidas e disponíveis, de costumes lúdicos, de
brincadeiras individuais, tradicionais ou universais e geracionais. Essa cultura lúdica
não es fechada em torno de si mesma, ela integra elementos externos que
21
Lydia Hortélio: É nascida na Bahia, em Salvador; tem formação em música, educação musical e
etnomusicologia. Dedica-se ao ensino e à pesquisa da música brasileira e da cultura infantil.
22
Adelson Murta: Mais conhecido como Adelsin, é mineiro, formado em Artes Plásticas. Pesquisador
dos brinquedos, desenvolve trabalhos de observação, valorização e divulgação da Cultura da criança.
23
Lucilene Silva: Nascida em Minas, hoje morando em São Paulo, é formada em canto popular pela
Universidade Livre de sica. Desenvolve trabalhos de pesquisa e documentação das sicas e
brincadeiras tradicionais da cultura infantil.
54
influenciam a brincadeira: atitudes e capacidades, cultura e meio social.” (Brougère,
2001, p.50-51)
Tanto na Cultura da Criança quanto na Cultura Lúdica, o que esem foco é o
brincar: a relação que a criança estabelece com as pessoas e coisas que são
oferecidas a ela ou procuradas por ela.
Para brincar, muitas vezes as crianças usam somente o corpo, sem precisar de
um suporte material para que a brincadeira aconteça. Por exemplo, numa
brincadeira de roda, o pprio corpo é o instrumento de brincar, são as próprias
crianças, seus próprios corpos em movimento, de mãos dadas, rodando e cantando
que constroem a brincadeira. Esse exemplo ilustra o que esnas entrelinhas da
brincadeira: a relação. Para o poeta e educador Francisco Marques (Chico dos
Bonecos)(2007):
A brincadeira é o relacionamento que ela desencadeia, é a investigação que ela
provoca, é a interação que ela desenrolarelacionamento entre a pessoa e o próprio
corpo, a pessoa e o ambiente, a pessoa e os outros. Este é o coração da brincadeira:
relacionar, relacionar-se, interpretar, interpretar-se, ler, reler-se. A brincadeira,
portanto, não é o brinquedo, o objeto, e também não é a cnica, o conjunto de
procedimentos e habilidades.
O brinquedo na mão das crianças oferece infinitas possibilidades de uso. No
caso da Ciranda das Cores foi observado que a variedade de movimentos que o
brinquedo possibilitava, pela sua forma e variedade de cores, era um convite ao
movimento, possibilitando que o participante, seja criança ou adulto, pudesse criar
novas formas de brincar. E o brinquedo passava a ser o que quem brincava com ele
imaginava e criava. Brincando com a ciranda, as brincadeiras eram inventadas, re-
inventadas, não existindo uma fórmula de como brincar, a criança e o adulto,
criavam e recriavam suas brincadeiras.
55
Durante uma das brincadeiras com a Ciranda da Cores na Brinquedoteca Hapi,
uma das participantes comentou que a Ciranda das Cores lembrava os parangolés
24
de Hélio Oiticica. Busquei por algumas imagens dos parangos em uso e observei
que, assim como o parangolé de Hélio Oiticica, a Ciranda das Cores convidava o
participante a fazer parte, a dar vida ao objeto. Nas palavras de Hélio Oiticica “...tudo
em sua estrutura se organiza ou se apresenta como um convite para que seja o
espectador participante quem realize essa ‘seqncia de ações humanas providas
de sentido’. A obra, esse dispositivo penetvel, só orienta sua ação.” (fundação
cisneros, 2002)
Para Hélio Oiticica, “todos estes dispositivos, todos estes convites a participar,
a fazer parte de uma realidade distinta tinham como objetivo transformar o
espectador – participante, levá-lo a ver seu mundo de outro ponto de vista...”
Tanto nos parangolés quanto na ciranda, as imagens geradas pelo objeto
ganham vida à medida que o participante começa a se movimentar, a brincar, a
dançar.
24
Parangolé Objeto feito por lio Oiticica em 1964. É uma espécie de vestimenta, que se
assemelha a uma capa, uma bandeira, ou um estandarte. O parangolé marca a produção de Oiticica
por uma busca para integrar a arte na experiência cotidiana. Era uma gíria dos morros cariocas nos
anos 60, que significava uma agitação súbita ou uma alegria inesperada no burburinho de uma roda
de samba ou no susto de uma batida policial.
56
(Foto 11. Parangolés. Fundação Cisneros, 2002.)
(Foto12. Menino com a ciranda. Museu da República.)
57
Segundo Gilles Brougère (2001, p.14) “O objeto tem o papel de despertar
imagens que permitirão dar sentido a essas ações. O brinquedo é, assim, um
fornecedor de representações manipuláveis de imagens com volume”. e “Esse
domínio da imagem aproxima-o da obra de arte e nos indica a grande riqueza
simlica da qual ele dá testemunho.” (Brougère, 2001, p.11)
O brinquedo e a obra de arte se aproximam pela sua dimensão simbólica, pelo
que esses objetos geram de imagens, o que eles recordam, o que eles trazem à
tona, o que pode ser manifestado com seu uso ou na apreciação dele.
3.2. Guilherme Augusto e as oficinas
No Livro “Guilherme Augusto Araújo Fernandesde Mem Fox, é contada a
história de um menino que morava ao lado de um asilo e conhecia todo mundo lá. A
pessoa de quem ele mais gostava era Dona Antônia. Um dia, ele escutou seus pais
falando que Dona Antônia havia perdido a memória. Guilherme Augusto, curioso,
comou a perguntar ao seu pai e aos amigos do asilo o que era memória. Depois
de ouvir todas as respostas, comou a recolher memórias para dona Annia,
diversos objetos que para ele significavam o que ele tinha ouvido sobre o que era
memória. (Como, por exemplo, a resposta que a Sra. Silvano deu quando ele
perguntou o que era memória. Algo quente, meu filho, algo quente. E ele foi direto
pegar um ovo ainda quentinho no galinheiro). Depois, colocou todos esses objetos
numa cesta e levou para Dona Antônia. E, então, ela começou a se lembrar.
58
Como o ovo quente que para Guilherme Augusto significava memória, as
cores, formas e materiais presentes no brinquedo estavam relacionadas ao grupo
social no qual foi construída a Ciranda das Cores. Durante seu processo de
construção, a ciranda foi ganhando formas e cores a partir das significações dos
grupos de criaas e, principalmente, de Joana DArc. Brougère (2001, p.40-41) diz
que A significação aparece através de uma expressão material. Trata-se do
material, da forma e/ou do desenho, da cor, do aspecto tátil, do odor, do ruído ou
dos sons emitidos”. Broure (2001) ainda comenta que “manipular brinquedos
remete, entre outras coisas, a manipular significações culturais originadas numa
determinada sociedade”.
Essas cores, formas e materiais presentes na Ciranda das Cores foram
despertando novas significações em cada oficina realizada com o brinquedo nas
quatro comunidades onde o Projeto Rede Brincar e Aprender atua. Assim como o
ovo quente que despertou memórias de Dona Antônia, esses elementos tornavam-
se “um código e, por conseguinte, meio de significação”. (Ibidem, p.41-42)
Durante as oficinas, observava que pequenos gestos, pequenos movimentos
realizados com os panos, às vezes, eram enormes para uma pessoa. Observando o
movimento que se manifestava com aqueles panos, reconheci que cada pequeno
gesto realizado por crianças, senhoras, educadoras e adolescentes era uma
manifestação, algo que estava dentro da pessoa e que se configurava fora. Para
alguns, era um desafio brincar com aquele colorido; para outros, um momento de
recordação, momento de descoberta, exploração, presença, riso, compartilhar.
59
Nas oficinas, o foco eram as pessoas, a relão que se estabelecia entre as
pessoas e o brinquedo inusitado, que nunca se tinha visto, que o seguia a priori
nenhuma maneira específica de brincar. A Ciranda das Cores convidava o grupo
tanto para a ão, para o movimento, como para se relacionar com formas e cores.
O brinquedo era uma imagem num objeto e num volume” (Brougère, 2001, p.21).
As próprias brincadeiras que surgiam durante as oficinas iam sendo utilizadas nas
oficinas seguintes como um estímulo para desencadear outras brincadeiras. O que
era brincado numa oficina ia como se estivesse grudado” na Ciranda para o
próximo encontro. Muitas vezes, para começarmos uma oficina, trazíamos uma
brincadeira feita na oficina anterior e dizíamos para o grupo quem tinha feito aquela
brincadeira e onde e, ao final, fechávamos a oficina, recordando o que tinha sido
vivenciado e anunciando que aquelas brincadeiras, a partir daquele momento, iam
ser levadas com a ciranda para outros lugares, para serem brincadas com outros
grupos.
O brinquedo, ao mesmo tempo que oferece para a criança um suporte de
ão, de manipulação, de conduta lúdica, traz-lhe também formas e imagens,
símbolos para serem manipulados”. (Ibidem, p.40-41) As cores e as formas, como
informação, m uma riqueza muito grande porque, para cada pessoa, eso
associadas ao universo de imagens criadas na sua relação com o mundo. No
brinquedo, cor e forma são elementos que podem servir como um estímulo externo
para “despertar” nos participantes as recordações, a imaginação e as possibilidades
de brincar.
60
3.2.1. As cores
Na utilização da Ciranda das Cores em oficinas, observei algumas
manifestações como resposta ao estímulo colorido oferecido pelo brinquedo.
Numa oficina realizada na comunidade Mangueira de Botafogo, com um grupo
de senhoras da Terceira Idade, Percebi que as cores estavam associadas às
experiências vividas de cada uma, às imagens que foram construídas com relação
àquela cor durante sua vida.
Como exemplo: Dona Nenzinha, ao desenrolar sua “bandeira” vermelha,
recordou da Lapinha
25
, quando era mais ma havia encenado o auto na figura da
mestra do cordão encarnado. Rapidamente, convocou a amiga que, segurando a
bandeira azul, representava a figura da contra mestra do coro azul. E saíram
pela sala cantando:
Boa noite, meus senhores todos
E a senhora deste lugar,
Sou contra – mestra desta lapinha
E hoje a todos vem cumprimentar.
Ofereço esse ramalhete que a contra – mestra dá
Sou eu um lindo anjo
Que dos montes eu venho fugido
Venho à procura de uma rosa
Que ela me traz perseguida
Eu venho convidar minhas companheiras
Com elas vou formar a nossa brincadeira.
25
Lapinha: denominação popular do pastoril.
61
Ao final da oficina, D. Nenzinha comentou: “Nossa, como pode tudo voltar
assim de repente! Nem sabia que eu lembrava tudo isso”. Em uma outra
experiência, com um grupo de educadoras da mesma comunidade, onde foram
recordados os sambas de enredo, uma das participantes pegou a bandeira azul, cor
de sua escola de samba, e comou a brincar de porta bandeira.
(Foto 13. Lapinha.)
62
3.2.2. A forma
Nas formas da natureza, na música, na arquitetura, nas artes, são encontrados
padrões harmônicos. Segundo o arquiteto György Doczi (1990), que estudou esses
padrões da natureza, quando você entra em contato com eles, “vodesperta para
o maravilhoso” igual à criança que brinca com uma concha, uma folha.
“Se olharmos atentamente uma flor, assim como qualquer outra criação natural
ou ainda algo feito pelo homem, encontraremos uma unidade, uma ordem comum a
todos” (Doczy, 1990, p.1)
(Foto 14. Primeira configuração da ci
randa, feito em TNT.)
63
A forma do brinquedo despertou uma série de experimentações, ora com os
triângulos soltos, ora conectados, formando uma roda. Trago alguns exemplos para
demonstrar a diversidade de imagens geradas pelo brinquedo.
Na primeira experiência de oficina com a ciranda, sendo proposta num espaço
para brincar, brincamos com dois grupos de crianças, da Brinquedoteca Peteca e da
Banca do Saber. Eram grupos de crianças da ASPA
26
(Ação Social Padre Anchieta),
na Rocinha. Começamos a oficina, fazendo algumas brincadeiras, antes de
apresentar a ciranda. Depois, colocamos a ciranda no meio da roda, e as crianças
foram correndo pegar o pano para ver o que era aquilo. Começaram a abrir os
panos e a brincar de várias formas.
Num determinado momento, fomos para um pátio maior onde algumas
crianças correram com os panos voando pelo espaço, outras se enrolaram pelos
panos que eram segurados numa das pontas pela Nathercia Lacerda, que relata:
Voávamos e dançávamos. Essa ligação com o ar e com o movimento solto e leve é
o que mais me encanta quando me largo na ciranda repartida em tantas cores.
26
ASPA É uma instituição comunitária, sem fins lucrativos, que tem como proposta atuar nas áreas
social, cultural e educacional. Desde a década de 60, vem atuando na Rocinha, oferecendo
atividades que contribuem com a melhoria da qualidade de vida de seus moradores. Entre elas, a
brinquedoteca Peteca que foi implantada em parceria com o Centro de Assessoria ao Movimento
Popular. (CAMPO)
64
Com os panos unidos, rodamos em cirandas, e brincamos com ele aberto no
chão, onde só podia pisar nos buracos sem pisar nas cores. Brincamos de pular
dentro e fora da ciranda. Nessa primeira experiência, vimos que a música, o som
saía da ppria brincadeira, por meio das cantigas e da falação do próprio brincar.
(Foto 15. ASPA, Rocinha.)
65
Numa outra oficina com um grupo de educadoras, já comamos a oficina com
a ciranda montada em forma de roda. A partir daí, foram surgindo novas cantigas.
Uma das participantes trouxe uma cantiga de uma brincadeira que ela fazia em
Goiás, para as pessoas se apresentarem:
A ......... vai entrar na olaria do povo.
A ......... vai entrar na olaria do povo.
Desce como um vaso velho e quebrado;
Sobe como um vaso novo.
Desce como um vaso velho e quebrado;
Sobe como um vaso novo.
(Foto 16. ASPA, Rocinha.)
66
Assim, cada pessoa entrava na roda e descia e subia, dançando; na segunda
vez, todos na roda imitavam seus movimentos. Depois, foram feitas brincadeiras
como Escravos de Jó, em que a ciranda ia sendo passada de mão em mão, e uma
coreografia foi montada pelo grupo de educadoras. Em seguida, a ciranda foi
desmontada, e foi feito um grande trem, que era movimentado de acordo com a
música cantada pelo grupo.
Na creche Mundo Infantil na comunidade do morro Santa Marta, brincamos
com um grupo de crianças que, com os olhos brilhando, observando, se
perguntavam: Quem eram aqueles ali? As crianças nesse grupo tinham de 2 a 3
anos e, num primeiro momento, estranharam nossa presença com a Ciranda das
(Foto 17. Oficina com educadoras, Comunidade Mangueira de Botafogo.)
67
Cores, quando começamos a fazer algumas brincadeiras. Nesse momento, a
educadora que estava acompanhando começou a participar da oficina e a fazer
algumas brincadeiras, e eno as crianças começaram a brincar. Brincaram de
trenzinho: dois entravam pelos buracos no mesmo pano, se enrolavam e vestiam os
panos.
Com um outro grupo de criaas da mesma comunidade, fizemos a oficina em
uma praça, em frente ao Morro Santa Marta. A partir de umas brincadeiras iniciais
que propusemos, surgiu uma nova brincadeira: um de cada vez ia ao centro da
ciranda e falava um verso, e, enquanto o verso era falado, os outros ao redor iam
em direção ao centro, levantando a ciranda, escondendo quem estava no centro,
parecendo uma flor fechada que ia se abrindo após o verso falado.
Na comunidade do Horto, na Escola Municipal Capistrano de Abreu,
trabalhamos com um grupo de crianças entre 9 e 10 anos. Diferente do que
vínhamos fazendo, espalhamos as partes da Ciranda no chão e convidamos as
crianças a explorarem o brinquedo. Surgiram aviões, carros, trens, bandeiras,
cortinas para a casinha de bonecas, e, pela primeira vez, a Ciranda se transformou
em armas. Eram armas de fogo, espadas e laas que os meninos usavam.
(Foto 18. Creche Mundo Infantil, Santa Marta.)
68
Durante essas oficinas, surgiram outras, novas questões. Uma delas, a partir
dessa última oficina que relatei, na qual a ciranda foi transformada em arma. Nesse
momento, perguntei-me se as brincadeiras manifestadas com a ciranda não seriam
as formas encontradas por cada grupo para conviver num espaço, criando um
espaço de convivência?
Dessa questão surgiu outra: Se a função das brincadeiras propostas com a
ciranda era mostrar que existiam outras possibilidades, outras formas de se estar
junto?Quando comecei a pesquisa, trazia comigo a queso: Como o brinquedo
auxiliava na formação de um espaço de convivência? Essa era a questão que
norteava o meu olhar, minha ão e reflexão nas oficinas. Depois das oficinas, vi
que a Ciranda das Cores, de diferentes formas, por causa da diversidade dos grupos
com que trabalhamos, possibilitava a criação de um espaço de convivência, ou pela
memória afetiva, ou por um movimento novo despertado pelo colorido e pelas suas
formas. Como o grupo compartilhava do mesmo estranhamento de não saber como
brincar inicialmente com a Ciranda, aos poucos, as pessoas se sentiam à vontade,
convidadas para brincar do jeito delas, sem que houvesse algum julgamento se
aquela era a forma certa ou errada de brincar. Os participantes estabeleciam suas
próprias relações com o brinquedo. Para Brougère (2001,p.9), “o brinquedo não
condiciona a ação da criança, ele lhe confere um suporte determinado, mas que
ganhará novos significados através da brincadeira.” Nesse momento, percebi que a
Ciranda das Cores não mostrava uma nova possibilidade de brincar, mas ela
possibilitava à expressão do que já existia, do que estava latente em cada grupo.
69
4. Espaços de brincar
(Foto 19.Acampamento do MST, Mangaratiba. RJ.)
70
4.1. Desarrumar agica
Naquele dia, Nasrudin acordou com uma idéia na cabeça:
- Vou até a cidade de Isfaham dar uma olhada no mercado de burros. O meu esficando
velho e daqui a pouco vai começar a me dar trabalho.
No final do dia, lá estava ele montado no seu burrico cinzento, no meio do mercado de
Isfaham. Era uma gritaria danada, todos elogiando os seus burros ao mesmo tempo. Cada um
tentava atrair os compradores de um jeito especial, dizendo frases cheias de palavras pomposas.
Nasrudin passeava calmamente no meio daquele movimento todo quando um burrico
simpático chamou sua atenção. Era branco, com uma marca escura entre os olhos que lhe dava um
ar divertido; parecia que ele tinha uma estrela na testa.
O mulá começou a barganhar com o vendedor, porque era costume naquele lugar, como em
muitos mercados do Oriente, regatear qualquer produto. Durou bem meia hora a conversa entre os
dois.
Finalmente chegaram a um acordo, e lá se foi Nasrudin, todo contente, de volta pra casa.
Ele ia na frente, montado no seu velho burro, e atrás, com uma corda no pescoço, que
Nasrudin segurava, ia o burrico branco. Era a velha estrada de sempre, que o mulá conhecia como a
palma da sua mão. O sol estava muito forte, e Nasrudin cochilou. Não tinha com que se preocupar:
seu burro sabia o caminho de casa e o levaria até lá com segurança, caso ele pegasse no sono de
vez.
Acontece que dois ladrões apareceram na estrada, procurando alguém para roubar. Um mais
velho, magrinho, de nariz comprido, e o outro, um menino de uns doze anos, com cara de sonso;
- Olha só aquele velhote meio dormindo na sela do burro – disse o mais velho. – Está no papo.
Você vai até lá, tira a corda do pescoço do burro branco, com muito cuidado, e coloca a corda no seu
próprio pescoço. Enquanto isso, eu levo o burro para vender no mercado em Isfaham. Depois a gente
se encontra lá, certo?
O menino foi, tirou a corda do pescoço do burro, colocou-a no seu próprio pescoço, e Nasrudin
nem percebeu.
Quando chegou a casa, chamou a mulher para ver a novidade:
- Olha só o belo burrico que comprei no mercado de Isfaham.
- Que burrico? – perguntou ela, muito surpresa, olhando para o menino.
Foi então que Nasrudin se virou para trás e viu o menino com a corda no pesco.
- Quem é você? – gritou. – E onde está o burro branco que eu comprei?
O menino pensou rápido.
- Eu sou o burro falou, com um ar perdido que ele sabia fingir muito bem – é que eu era um
menino que costumava desobedecer a minha mãe. Um dia, ela ficou tão brava que mandou um
feiticeiro me castigar assim, me transformando em burro, para eu aprender. Como fui comprado por
um homem sábio e bom como o senhor, o encanto se quebrou, e eu virei menino outra vez. Devo lhe
agradecer pelo resto da minha vida.
Nasrudin mexeu e remexeu na barba. Depois disse:
- É, eu paguei um bom dinheiro por você, mas assim você não me serve para nada. Pode ir
embora, mas com uma condição: você tem que me prometer, mas prometer mesmo, que de hoje em
diante vai obedecer a sua mãe. Volte para casa agora e faça tudo o que ela mandar.
- Eu prometoconcordou o menino, abaixando a cabeça com o ar mais sonso do mundo.
Nasrudin tirou a corda do pescoço do menino, que sumiu o mais rápido que pôde.
No dia seguinte, o mulá voltou ao mercado para comprar outro burro. De repente, parou,
admirado. Viu um burro branco, com uma marca escura entre os olhos que lhe dava um ar divertido;
parecia que ele tinha uma estrela na testa. O burrico zurrou e levantou as orelhas.
Nasrudin ficou enfurecido. Aproximou-se do burro e falou, com o dedo apontado pra ele:
- Menino mau! Você me prometeu que ia obedecer a sua mãe e não cumpriu a promesa.
Agora, veja só o que aconteceu. Você virou burro outra vez!
71
As histórias do personagem Nasrudin apresentam uma gica bem própria do
personagem em lidar de forma inusitada com as situações. Regina Machado, em
seu livro Nasrudin, comenta que o personagem “sempre faz a gente ver as coisas
como a gente nunca tinha imaginado antes. Ele mostra, a gente ri, e parece que
tudo se desarruma dentro da gente.” (Machado, 2001, p.61)
Lembro-me de uma conversa com a coordenadora Nathercia Lacerda após a
realização das oficinas com a Ciranda das Cores, em que ela disse que o objeto
apresentado para as pessoas descontrói a lógica socialmente imposta e se mostra
como um convite à descoberta e à experimentação, fazendo sempre a gente rir.
Exatamente como com as histórias de Nasrudin.
Levar a Ciranda das Cores aos grupos de educadores e à terceira idade era
similar ao que acontece na presença de um palhaço no ambiente hospitalar.
a surpresa da presença de um palhaço, como conceito aparentemente tão oposto à
realidade hospitalar, tem a capacidade de brecar, suspender momentaneamente a
lógica dos pensamentos e a dinâmica dos sentimentos vividos por pacientes,
familiares e profissionais. Isso abre espaço para que essas pessoas percebam novos
processos que acontecerão a partir da visão de mundo do palhaço. (Massetti, 1998,
p.18)
Como na presença do palhaço num ambiente hospitalar, a ciranda gerava uma
desconstrução nas pessoas. Os participantes numa oficina não sabiam como iam
usar aquele objeto para brincar. Com a ciranda não havia regras, não havia
fórmulas, e, por isso, ela desarrumava alguma coisa dentro da gente, tornando
possível que o participante, no caso o adulto, abrisse um espaço para algo novo
acontecer, para conviver. E possibilitava que fosse criado um espaço receptivo para
os gestos e movimentos espontâneos de cada um no grupo. Com os grupos de
72
crianças era diferente. O brinquedo, na mão das crianças, dava suporte para uma
seqüência de gestos, movimentos espontâneos, feitos em inteireza.
Recordo-me de um texto sobre o surfe que apresenta o encontro entre o
surfista e o mar e que associo ao encontro da criança com o brinquedo.
... esse sujeito que é pensamento e ação consegue sê-lo porque, não se colocando
fora da relação, mas totalmente nela, o tempo presente deixa de ser vivido como um
trampolim para o futuro. O tempo presente se amplia, se intensifica.
O exemplo do surfe é neste caso ilustrativo sobre um encontro entre o mar e o
surfista, no qual o objetivo a ser atingido é a ação de surfar: a meta final coincide com
o processo. Por isso, a relação entre o surfista e o mar tende a ser menos a de um
domínio de um sobre o outro e mais a de uma composição de dois conjuntos de
forças heterogêneas. Poderíamos até mesmo dizer que, em diversos momentos de
sua prática, o surfista surfa com o mar, sem tentar apoderar-se dele, e sem por ele ser
tragado ou anulado. Surfar implica então estar com o mar, com a prancha, com o
vento, compondo gestos com o meio que o cerca, num processo de afinada selão.
No lugar de se apoderar do meio, de se agarrar a ele ou de se submeter a seus
movimentos, para surfar é preciso aprender a estar com o meio.
Para tanto, o surfista ao surfar é ação, pois ele está totalmente presente nesta ão,
completamente atento às especificidades de seu encontro com o mar. Fora dali não
sobrou nenhum resíduo dele para observar. A ão de surfar coincide com a sua
percepção. Por isso, para o surfista, cada onda é, de fato, uma onda diferente
da seguinte. A habilidade do surfista, como a de um homem que ama a matéria
com a qual age, não é o exercício de um despotismo violento”. A ação de
surfar pode, assim ser bela, não necessariamente porque se assemelha a
alguma imagem do surfe ideal, mas porque se insere de tal modo na paisagem
real de um momento, que cada parte do corpo do surfista e de sua prancha vai
expressá-la e mesmo potencializá-la. Ele é belo porque prolonga a beleza do
mundo em que habita. De modo que, ao contemp-lo, nossos olhos tamm
são levados a surfar por toda a extensão da paisagem. (Santanna, 2001, p. 98)
(Seqüência 2. Aquarelas de André Cortes)
73
Percebo que essa é a natureza do próprio brincar, ele não tem uma finalidade
pré-estabelecida, ele só existe no momento da brincadeira e para quem está
brincando. Brougère (2001, p.102) observou que “essa situação, frívola diante da
parada das obrigações e condições da vida cotidiana, surge como um espaço único
de experiências para aquele que brinca”.
Para o adulto, essa pausa em seus compromissos para brincar é entendida
como diversão, passatempo, um intervalo na correria do dia-a-dia. Francisco
Marques (Chico dos Bonecos) (2007) diz que “para a criança, qualquer situação,
ambiente ou objeto, se transformam em objeto, ambiente e situação de brincadeira.
Para a criança, brincar é uma postura diante da vida, é um olhar para o cotidiano,
um olhar desconcertante”.
E continua:
Quando a criança brinca, no fundo, no fundo, o que ela está realizando? A criança
brinca com uma pedrinha, um graveto, com as próprias os, as palavras, as
canções, a escada de maracá, o jabolô... Brincando, a criança está, o tempo inteiro, e
inteira no tempo, investigando, experimentando, explorando. Estes três temperos
explorar, experimentar, investigar - formam a base da Construção do Conhecimento.
(Marquês, 2007)
74
(Seqüência 3. Experimentação, investigação e exploração.)
75
Ana Mae Barbosa (2005, p.32), discorrendo sobre a proposta triangular para o
ensino da arte, afirma que “o conhecimento em artes se dá na intersecção da
experimentação, da decodificação e da informão”. Concordo com essa afirmão
pois, quando a criança e o adulto começam a brincar e a experimentar novos
movimentos, estimulados pelo colorido e pelas formas do brinquedo, eles
estabelecem uma conversa criadora e significativa com o objeto. Acredito também
que esse exercício de relações formais e interpretativas com o brinquedo possa
fundamentar a construção do conhecimento.
Ao brincar, percebi que era criado um espaço de aprendizagem a partir das
possibilidades de convivência que se davam no momento da brincadeira, na relação
de cada um com suas emoções, com seu próprio corpo, com o espaço que o
circunda, com os objetos, com o parceiro de brincar e com o lugar onde vive. O
filósofo e educador John Dewey diz que
Toda experiência é resultante da interação entre um indivíduo e algum aspecto do
mundo. Uma experiência completa tem padrão e estrutura porque não é simples
alternância entre ação e recepção, mas porque se constitui da relão entre estes
dois fatores. No ato criador, fazer e receber são, continuamente, instrumentais um
para o outro. A arte, enquanto verdadeira experiência une na sua própria forma, o
produzir e o perceber, o fazer e o receber. (Dewey, 1980)
Brincando com a Ciranda das Cores, crianças e adultos, estavam a todo tempo
sendo colocados ou se colocando em movimento. Quando em movimento a
memória, o prazer das brincadeiras e, às vezes, a agressividade em brincadeiras
com armas eram despertadas. Eram movimentos feitos no espaço interno de cada
um e no espaço externo, amplo, espaço do cotidiano, trazendo à tona a
singularidade de interação de cada grupo.
76
4.2. O espaço de brincar
“Como seres humanos, só temos o mundo que criamos com outros.
Humberto Maturana
77
O brincar acontece no espaço da exisncia, espaço da prática concreta do
cotidiano. Para o geógrafo Milton Santos, essa existência o existe
individualmente, mas na comunidade, na “coexistência”. (Santos, 2002)
E é a partir dessa “coexistência” que surge o espaço, numa relão
indissocvel entre sistemas de ações e sistemas de objetos. Um exemplo ilustrativo
desse espaço criado a partir da coexistência são os mutirões. No dicionário do
folclore brasileiro, mutirão é o “nome genérico atribuído ao trabalho cooperativo
entre as populações rurais”, diferente do pensamento de produção industrial, das
linhas de produção, em que cada um tem uma função especializada. O mutirão é
uma instituição social espontânea” (Cascudo, 2001, p.409). A intenção de se fazer
um mutirão é anunciada pelo dono do serviço em um local onde um grupo de
pessoas costuma freqüentar, como uma praça, um bar, na vizinhança. No dia
marcado, os participantes chegam ao local bem cedo, levando as ferramentas
necessárias para o trabalho.
Tive a oportunidade de realizar alguns mutirões para a construção de
estruturas com bambu. Pude observar que, durante todas as práticas, desde a
coleta do bambu até o objeto instalado, todas as ações no grupo foram
compartilhadas. Todos participaram de todas as etapas de produção, num sistema
de rodízio, que ocorria naturalmente por meio de gestos, palavras, garantindo a
continuidade do processo, e que criava um espaço de convivência, estabelecido
pelas interações que se apresentavam a partir das diferenças existentes de cada
participante do grupo. Assim o trabalho se dava no lugar da coexistência.
78
Uma atividade, quando envolve mais de uma pessoa solidariamente, cria um
ritmo próprio de cada grupo. Esse ritmo é o mesmo “dos processos formadores de
padrões comuns que criam os ritmos da dança, música e fala”. (Doczi, 1990, p.36)
Segundo Doczi (1990, p.36), “movimentos compartilhados fazem a dança,
padrões compartilhados fazem a escrita e sons compartilhados criam a música e a
fala”. Cada participante se posiciona para o trabalho a partir de um movimento
anterior e continuamente todos se põem a compor bailados. Alguém que segura o
bambu na posição para que o outro possa amarrar, uma pessoa que segura o
bambu para que o outro possa serrar com firmeza, uma pessoa que escolhe
compartilhar o peso dos bambus durante o transporte. O mutirão é “uma resultante
do instinto gregário do homem”.(Cascudo, 2001, p.409)
No mutirão, o grupo se organiza a partir das interações vivenciadas, seguindo
seus hábitos ou tendências peculiares, tecendo novas redes de relões, em
consonância com os elementos do ambiente, do lugar.
Assim como num mutirão, as crianças não precisam de ninguém para se
organizar em brincadeiras. Percebi que o que vinha acontecendo nos trabalhos
coletivos com bambu, era o que vinha acontecendo nas oficinas com a Ciranda das
Cores. Crianças e adultos se organizavam sozinhos em suas brincadeiras.
Conversando com Nathercia Lacerda sobre essa percepção, foi pensada a
seguinte questão: As crianças não precisam de ninguém para se organizar em
brincadeiras, então, qual seria o sentido de profissionais se voltarem para a criação
de espaços de brincar ?
79
Observei com essa queso que, para seguir com a pesquisa, era preciso estar
com as crianças. Segundo Lydia Hortélio
27
:
É a nossa chance ter uma criança perto para ver como é entrar no movimento outra
vez, no mundo dela. Para aprender a brincar, é preciso, em primeiro lugar, não querer
brincar. Não pense em querer nada. Você está à toa na vida e, de repente, um gesto o
chama e vose esquece de você, você entra no brinquedo. É um mistério. Eu não
saberia, a esta altura, dizer o que é brincar. Mas é tudo o que mais busco, a
inspiração da minha vida. Quando você brinca, você se esquece de si mesmo e faz
parte do todo. Na hora, vo não tem conscncia disso, vo é feliz, vive uma
inteireza. Brincar é, para mim, o último reduto de espontaneidade que a humanidade
tem. É a língua do ser humano.
4.3. O Retorno
No final de 2005, retornava ao Horto para estar com um grupo de crianças
durante oito meses. No Horto, o local escolhido foi a Ladeira da Margarida. A
escolha pelo local foi porque as crianças ainda brincavam na rua até tarde, na
frente da porta de suas casas, e a intenção, naquele momento, era exatamente de
estar junto a um grupo de criaas, que brincavam juntas, para que eu pudesse
compreender a função desse educador que observa, brinca, conversa e está junto.
Durante os meses de outubro a novembro de 2005 e março a julho de 2006,
de 15 em 15 dias estive por volta das seis horas da tarde na Ladeira da Margarida.
Esse era o horário em que as crianças estavam chegando da escola, era o horário
que tanto os que estudavam à tarde quanto os que estudavam de dia se juntavam
para brincar. E eu estava lá só para isso: brincar.
27
Informação obtida pela internet. Disponível em: http:// www.overmundo.com.br/blogs/brincar-e-o-
ultimo-reduto-de-espontaneidade-que-a-humanidade-tem Acesso em 09.2007
80
Lembro-me de, no início, achar estranho, chegar e passar uma, duas horas
jogando bola, pique-esconde, bolinha de gude. Considerava tão esquisita a situação
de o propor nada que, em algumas vezes, levei algumas coisas para fazermos
juntos, e, todas às vezes, depois de passado um tempo, os meninos começavam a
me perguntar: “Vamo jogá bola?, “Vamo brincá de pique - esconde? Eu sempre
dizia: “Depois.” E quando olhava, mal tínhamos começado a fazer algo, e já estavam
todos correndo, jogando bola, armando o jogo de vôlei. Então, resolvi parar e entrar
na brincadeira deles, descobrir quais eram as brincadeiras daquele grupo de
crianças, os brinquedos que eles construíam. E assim fui caminhando, a cada dia
me surpreendendo ou com um brinquedo que eles me mostravam ou comigo
mesmo, com alguma recordação que alguma daquelas brincadeiras me geravam,
lembranças do pátio em que brincava de bola e pique - esconde com meus amigos,
de cheiros e de imagens.
Numa das tardes em que estive lá, fui conversar com Paulinho, avô de
algumas crianças, que construía barquinhos de madeira. Falamos sobre sua
infância, sobre o que achava da infância de seus netos. Contou suas histórias de
menino, e o que vi com essa conversa é que as brincadeiras que fazia com as
crianças, não eram delas só, já eram feitas ali por seus avós. Pipa, pião, futebol,
mata frango, bob-teco, casinha, bola de gude. Brincadeiras que vinham sendo
transmitidas através de gerações, sendo atualizadas agora, utilizando o material que
está disponível, manifestando as questões atuais do local.
Em alguns encontros, depois de ter conversado com Joana D’Arc, que, nesse
momento, o era mais dinamizadora da Brinquedoteca Volante do Horto, sobre
81
as atividades que ela costumava fazer com as crianças, comecei a levar alguns
elementos para estar com eles.
Num dia, levei uma história do Nasrudin para contar e, então, preparamos um
espaço para contar a história. Fiquei encantado com o cantinho” que fizemos. Essa
ão de criar um espaço mudou toda a relação com o lugar, com os meninos,
concentrou a ação antes de começar. Coloquei uma pedra embaixo da árvore que
tinha um foco de luz, pegamos um banco, ou melhor, uma gangorra desmontada
que estava na garagem e fizemos um balcão apoiado por duas pedras. Comecei a
contar o conto, e de repente todos estavam superenvolvidos. Era o conto “os dois
bois” que escolhi por achar muito engraçada a reação que ele gera nas pessoas.
Todos estavam tão envolvidos que responderam logo à pergunta: Qual dos
dois bois falou que tinha cabeça e rabo na mesma parte do corpo? - “o da frente... o
de trás...” até que uma das crianças falou: “Boi não fala”. Diferente das outras
vezes, todas as crianças vieram participar, e cada um ia brincando do que lhe dava
vontade.
Num outro dia, cheguei por volta das 11 horas na Ladeira da Margarida,
conforme combinado com as crianças, para montarmos uma casinha com bambus.
O local escolhido para montar foi na horta, atrás da garagem de Paulinho. Uma das
crianças pegou uma faca, começou a cortar as bananeiras que estavam
atrapalhando e ia dizendo aos outros o que fazer. Depois começaram a aparecer as
vassouras, e os meninos se puseram a varrer o chão, preparando o terreiro para
fazer a casinha. Nesse mesmo tempo, outra criança foi em casa pegar uma
82
cavadeira para fazer os buracos para colocar os bambus. Depois do terreiro
preparado, os meninos escolheram o lugar onde iria ficar a casinha e comaram a
cavar os buracos. Parecia que faziam aquilo há muito tempo. Os bambus foram
colocados um em cada ponta do espaço onde seria a casa - quatro bambus. A partir
daí, foram colocando um bambu e outro, amarrando, fazendo o telhado, as paredes.
Buscaram uma escada para amarrar os bambus no alto.
Depois de toda estrutura montada, eles começaram a cobrir com o plástico. Fui
ajudando a fazer o que eles tinham pensado, amarrando os plásticos e lonas. A
casinha foi chamada por eles de “casinha da D. Antônia”.
28
Com essa experiência, observei que o fato de oferecer os materiais ou contar
uma história era exatamente como levar a Ciranda das Cores nas oficinas,
possibilitava ver como cada um, ou o grupo, ia se envolvendo com o que era
oferecido até a manifestação de uma forma, um brinquedo, uma brincadeira.
Independente do que era feito, se era brincar das brincadeiras deles ou com alguma
coisa que eu levava, brincar era o que eles queriam quando eu chegava e era o
que me encantava. Assim o espaço de brincar era criado.
28
D. Antônia é uma antiga moradora da Ladeira da Margarida, responsável pela organização das
festas de São João, Dia das Crianças, Natal e que ensinava muitas brincadeiras para as crianças.
83
(Seqüência 4.Construção da casinha de D. Antônia.)
84
5. Conclusão
85
Khing, o mestre entalhador, fez uma armão
Para os sinos,
De uma maneira preciosa. Quando terminou,
Todos que aquilo viram ficaram surpresos.
Disseram
Que devia ser obra de espíritos.
O príncipe de Lu disse ao mestre entalhador:
Qual é seu segredo?
Khing responde: Sou apenas operário:
Não tenho segredos. Há só isso:
Quando comecei a pensar no trabalho que me
Ordenaste,
Protegi meu espírito, não o desperdicei
Em ninharias, que não vinham ao acaso.
Jejuei, a fim de pôr
Meu coração em repouso.
Depois de jejuar três dias,
Esquci-me do lucro e do sucesso.
Depois de cinco dias,
Esqueci-me do louvor e das críticas.
Depois de sete,
Esqueci-me do meu corpo
Com todos seus membros.
Nessa época, todo pensamento de Vossa Alteza
E da corte se esvanecera,
Tudo aquilo que me distraia do trabalho
Desaparecera.
Eu me recolhera ao único pensamento
Da armação do sino.
Depois, fui à floresta
ver árvores em sua ppria condição natural.
Quando a árvore certa apareceu a meus olhos,
A armação do sino tamm apareceu, nitidamente,
Sem qualquer dúvida.
Tudo o que tinha a fazer era esticar a mão
E comar.
Se eu não houvesse encontrado esta determinada
Árvore
Não haveria
Qualquer armão para o sino.
O que aconteceu?
Meu próprio pensamento unificado
Encontrou o potencial escondido na madeira;
Deste encontro ao vivo surgiu a obra
Que você atribui aos espíritos.
86
Começo a dissertação, apresentando o conto de Idries Shah, “O filho de um
contador de histórias”, que em sua estrutura narrativa traz uma hisria dentro de
uma história. Esse conto foi trabalhado por Regina Machado na disciplina “A arte da
narração no processo formativo de educadores artistas”.
Entrar em contato com a seqüência narrativa desse conto, suas partes,
personagens, lugares e climas possibilitou uma série de associações com minha
própria trajetória como educador artista. Com esse conjunto de associações, foi
possível costurar um mapa com imagens, palavras e textos, fatos, aprendizados,
vivências, dando visibilidade a uma possível organização para esta dissertação.
No início, trazia comigo a questão de como o brinquedo auxiliava na formação de
um espaço de convivência. Em minhas primeiras reflexões sobre a criação de um
espaço de aprendizagem artística, acreditava que o espaço de convivência gerado
pela construção coletiva criava uma situação favorável de aprendizagem pois, num
espaço de convivência, professor e alunos, ambos eram ensinantes e aprendentes.
Acredito que a ciranda das cores seja fruto de um espaço de convivência, em que,
à medida que o brinquedo ia sendo construído as pessoas envolvidas também se
construíam. Eu fui me construindo junto ao objeto.
A Ciranda das Cores trouxe movimento e colorido à minha trajetória. Esse brinquedo
representa simbolicamente o trabalho que venho realizando como educador artista.
87
Pude reconhecer em sua estrutura, características da forma como venho
trabalhando, como, por exemplo: agregar as pessoas em uma mesma atividade.
Essas mesmas características encontram ressonâncias nos objetivos do Projeto
Rede Brincar e Aprender em sua atuação nas comunidades. A ciranda das cores
forma a um desenho pessoal e coletivo, organizando um conjunto de relações numa
síntese integrada.
Quando entrei para o mestrado, tinha pouco conhecimento de pessoas que estudam
e pesquisam os brinquedos, as brincadeiras, as cantigas e as histórias. Os
encontros com alguns desses pesquisadores, como por exemplo: Lydia Hortélio,
Adelsin Murta, Lucilene Silva, Regina Machado, Francisco Marques Chico dos
Bonecos me possibilitaram construir o percurso desse trabalho de um modo
diferente do que se apenas tivesse estudado nos livros. Observando a pratica
dessas pessoas, pude ver um lugar em que os fundamentos poéticos dialogam com
os fundamentos teóricos. O encontro com essas pessoas me encorajou a seguir
pesquisando nessa direção.
Com eles, aprendi que o brinquedo não é o objeto, e também não é a técnica _ mas
sim as relações por ele desencadeadas.
Os contos tradicionais, os brinquedos milenares, que são passados de geração em
geração, os bambus, assim como as cores e formas da ciranda das cores guardam
a memória viva de um determinado lugar. E neles uma quantidade de sabedoria,
uma quantidade de informação acumuladas em imagens e símbolos. Nesses
elementos, existe uma estrutura, um padrão harmônico, que é universal e que tem
ressonância com a própria estrutura humana e, por isso, tem o potencial de
88
“despertar para o maravilhoso”, possibilitando sempre novas significações, novas
possibilidades de relação.
O conto do entalhador no início deste capítulo mostra a relão do entalhador com a
madeira e narra sua preparação para tal encontro. Para um educador artista que
escolha trabalhar com esses elementos que guardam uma memória viva, acredito
que um elemento essencial em sua preparação seja brincar, entendendo que:
brincar não tem uma finalidade pré-estabelecida, existe no momento da
brincadeira e para quem esbrincando; brincar surge como um espaço único de
experiências para aquele que brinca; brincar é uma postura diante da vida; brincar é
explorar, investigar e experimentar; e, principalmente, o brincar acontece na
coexistência, porque só temos o mundo que construímos com o outro.
Acredito que o educador que brinca precisa se dispor a estar naquele lugar, naquele
instante junto com seus alunos, ou com um grupo de crianças, ou adultos, ou idosos.
Precisa confiar no que vai se transformar aquele encontro, confiar na qualidade de
sua presença, estar pronto para responder ao que vem naquele instante. Ser flexível
como as crianças. Estar nesse instante é estar fora do tempo e do espaço. Estando
nesse instante, a brincadeira assim como o trabalho quando feito em mutirão ganha
a dimensão da festa. Nessa dimensão, as ões se transformam em um ritual e, por
isso, tem o poder de evocar um elemento fora do tempo.
Termino esta dissertação, desejando conhecer mais o repertório de brinquedos,
brincadeiras, cantigas e histórias. Câmara Cascudo diz que do conjunto de objetos
e manifestações a eles relacionados decorrem os primeiros contatos do ser humano
89
com a cultura de seu povo; daí sua importância como elementos de identificação
cultural e instrumento de socialização, educação e aprendizado. (Cascudo, 2001,
p339)
Esta dissertação é fruto de uma busca de aprender a ensinar, é fruto de encontros;
por isso, procurei tornar a escrita clara e acessível a quem não tem o hábito da
leitura acadêmica, utilizando fotos e histórias com a intenção de que cada um, ao ler
este trabalho, possa costurar uma ciranda de relações com sua própria narrativa.
Espero que essas palavras possam brincar dentro de cada um que leu esta
dissertação.
90
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VON, Cristina. A história do brinquedo. São Paulo: Alegro, 2001
VYGOTSKY, Lev S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: VYGOTSKY, Lev
S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
WARSCHAUER, Cecília. Rodas em rede: oportunidades formativas na escola e fora
dela. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2001.
93
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
94
Apêndice
A. caderno de registro Ciranda das Cores
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